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PSICOTERAPIA INFANTIL

Análise do livro a parte que falta

As histórias infantis, utilizadas como mediadores terapêuticos, aproximam as crianças


das noções de tempo e espaço, emoções, personagens e mudanças. Com o uso desse recurso,
podemos trabalhar as representações simbólicas e psíquicas, ao estimular a imaginação e
auxiliar na identificação e na compreensão da criança a respeito de seu mundo externo
(GUTFREIND, 2004). Como espaço transicional, a história conforta a criança e auxilia no
enfrentamento de suas emoções complexas (WINNICOTT, 1975).
Para Braga (2015) As crianças experienciam suas emoções, de maneira individual. O
espaço proporcionado pelas histórias, funcionam como mediadores às crianças no
conhecimento sobre si próprias de forma significativa.
Escolher utilizar um livro como um instrumento de intervenção não é suficiente para
atingir o objetivo delimitado, também é necessária a escolha dos procedimentos a serem
realizados durante a atuação como a forma de apresentar o livro; possibilidades de demandas
a serem trabalhadas e no que intervir (BRITO, 2018).
A obra leva as crianças a pensarem, com bastante leveza e despretensão, nas relações,
nas pessoas ao redor e na nossa capacidade de ser feliz por conta própria, sem esperar pelo
outro, pensar sobre ganhos e perdas e trabalhar habilidades sociais. Emoções que podem ser
trabalhadas: felicidade, otimismo, angústia, frustração.
O livro “A parte que falta” de Shel Silverstein nos revela a história de uma criatura
circular que aparentemente não se sente feliz, pois lhe falta uma parte. Essa busca pelo que
falta gera sentimentos de perseverança e otimismos, onde o personagem de enxergar partes
que realmente são importantes para ele mesmo sem ter encontrado a completude, como por
exemplo encontrar e admirar uma borboleta.
A metáfora do valor da borboleta também está presente em outros eventos que a
história apresenta como a conversar com a minhoca; cantar; enfrentar descidas, subidas, suor,
frio, neve, sol; cair em buraco. Quantas destas experiências poderiam ser agradáveis viver.
Para Brito (2018) as habilidades sociais podem ser um tema a ser abordado, observar se as
relações interpessoais são consideradas como aversivas ou reforçadoras, sendo assim, é
importante transpor para a vida da criança, o quanto tem custado, quais desafios ele tem
enfrentado buscando por algo que ele julga importante e que falta na vida.
Durante seu trajeto o personagem tem que lidar com a frustração de não encontrar “sua
parte”. Além de ter de lidar com a rejeição em alguns momentos. Porém o que mais
impressiona é o otimismo e a perseverança do círculo que mesmo rejeitado aprendeu com
esse momento e continuou procurando.
O diálogo que ilustra bem essa passagem é de quando ela encontra uma pequena parte
que a diz: “Espera aí, não sou a parte que te falta não sou a parte de ninguém, sou parte
completa (individualidades). Acho que mesmo que fosse de alguém não seria sua parte
(rejeição)”.
Essa passagem, mostra um exemplo do seguimento de uma regra pela parte diferente
da que o personagem segue e pode ser um exemplo para ressaltar na terapia diferentes
possibilidades de funcionamento de vida. A parte que o rejeita é bem menor que o
personagem, o que supostamente não seria esperado, e questionar acerca de que momentos a
criança já se sentiu desta forma. Deixa-la nomear o possível sentimento do personagem pode
ser valioso na medida que se pode definir operacionalmente tal sentimento (BRITO, 2018).
Existem diferentes momentos em que o personagem se frustra, dentre eles, um em que
o personagem quebra uma parte que encontra e relaciona por ele segurar forte demais. A
responsabilidade atribuída aos comportamentos dele pode servir de modelo para a criança
relacionar seus próprios comportamentos com não ter sucesso em suas tentativas, apesar de
fazer melhor que podia.
Essa busca e seus encontros com diferentes partes que “não serviam”, mostra a
capacidade de extrair otimismo desses momentos de frustração, além de aprender com as
diferenças. E mesmo após tantos desafios, tentativas frustradas, o personagem segue
cantando e procurando a parte que falta de forma mais calma. A tolerância à frustração e a
insensibilidade às contingências andam lado a lado a partir de perspectivas de interpretação do
livro. Por isso, para abordar tais temas, o terapeuta precisa estar atento às análises funcionais
dos comportamentos do cliente, analisando consequências a curto, médio e longo prazo
(BRITO, 2018).

Por fim o personagem encontra outra parte e ambos acreditam ser a parte um do outro.
Ao se fundirem o protagonista percebe que mesmo se completando perdeu alguns momentos
que antes lhe traziam felicidade e que essa completude não valia a pena.
Podemos então abordar ganhos e perdas nos afetam (em todo ganho há perdas e vice-
versa); completude e incompletude (a completude é temporária e ocorre em uma área da
vida); rejeitar e ser rejeitado (dependendo das regras que controlam os comportamentos,
somos rejeitados ou rejeitamos); saciedade e privação (quando se está saciado, há a privação
de outros reforçadores); e durante as sessões com diferentes crianças podem surgir outras.
Aceitando assim que lhe falta uma parte e que pode as vezes não faltar e que pode
faltar de novo. Trazendo a reflexão de que se pode viver feliz com o que nos falta.
Segundo Lacan e os princípios de psicanálise, no início da vida, a criança percebe que
a mãe volta toda sua atenção para ela (narcisismo primário), ao longo desse processo a mãe
passa a olhar para outra coisa, algo que a criança não sabe o que é. A criança percebe então
que a mãe deseja algo que não está nela, e entende que lhe falta algo. Porém a criança não
sabe exatamente o que falta ao certo, essa ferida narcísica provoca uma sensação na criança
de que falta algo. Com isso ela começa a buscar algo que falta (objeto A), a fim de, se tornar
completo para voltar a ter a atenção desse outro (NASIO, 1997).
É enraizado na nossa cultura que precisamos achar as partes que nos faltam, para que
possamos encontrar a felicidade plena. Com isso somos levados a lidar com a angústia dessa
busca e a frustração do que não conseguimos conquistar.
Por isso trabalhar a falta é muito importante, pois nunca se trata de reencontrar ou não
o objeto, mas de lidar com essa falta, de fazer algo com ela. Ser marcado pela falta e aprender
a contorná-la nos caracterizaria como humanos (A “FALTA”... 2021).
Por fim gostaria de deixar uma citação feita pela youtuber Julia Tolezano da Veiga
Faria (Jout jout). Que foi a responsável por difundir esse livro pelo país após um famoso
vídeo.
“Não sei quanto a você, mas sempre falta um trocinho. Às vezes falta muita coisa, às
vezes só uma coisinha que parece um mundo de faltas. Para muitos falta o
indispensável e aí o que falta para você parece nada, mas é demais de onde você tá
olhando. O negócio é que vai faltar, e depois não vai mais. Depois vai faltar de novo
e lutar contra a falta parece uma luta cansativa demais para entrar. Então que tal
entender a falta, andar com ela, fazer de tudo para preenchê-la, mas sabendo que ela
volta. E que volte! Porque saber que vai voltar é um belo de um carinho” (FARIA,
2018).

Referências

A “FALTA” EM PSICANÁLISE. 2021. EU(EM)TORNO. Disponível em:


https://euemtorno.wordpress.com/2021/09/02/a-falta-em-psicanalise/#:~:text=Da%C3%AD
%20dizer%2Dse%20que%2C%20em,de%20fazer%20algo%20com%20ela.. Acesso em: 24
set. 2022.
BRAGA, Gimene Cardozo et al. Crianças e o conhecimento de si próprias a partir de histórias
infantis. Revista de Enfermagem da UFSM, v. 5, n. 2, p. 327-338, 2015.

BRITO, Rayana. Livro “A parte que falta” como recurso terapêutico na Psicoterapia


Comportamental. 2018. Disponível em: https://comportese.com/2018/07/16/livro-a-parte-
que-falta-como-recurso-terapeutico-na-psicoterapia-comportamental/#:~:text=Muitas
%20vezes%20relaciona%2Dse%20a,devido%20%C3%A0%20falta%20desta%20parte..
Acesso em: 24 set. 2022.

FARIA, Julia Tolezano da Veiga: JoutJout Prazer. A falta que a falta faz. YouTube, 20 de
fevereiro de 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GFuNTV-hi9M .
Acesso em: 20/09/2022.

GUTFREIND C. Psicoterapia com crianças: benefícios do conto e da


narratividade.Rev Bras Psicoter. 2004 set-dez;6(3):239-47.

NASIO, J.D. Lições sobre os sete conceitos cruciais em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1997. PINHEIRO, M.F.

WINNICOTT DW. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro (RJ): Imago; 1975.

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