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AUTISMO

Disciplina: Transtornos Desintegrativos e Invasivos


da Infância

Modalidade de Curso
Curso Livre de Capacitação Profissional

Pedagógico do Instituto Souza


atendimento@institutosouza.com.br
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TRANSTORNO DESINTEGRATIVO DA INFÂNCIA (TDI)

O transtorno desintegrativo da infância (TDI) foi inicialmente descrito por


Theodore Heller, um educador austríaco, em 1908. Heller relatou o caso de seis
crianças que, após um desenvolvimento aparentemente normal nos quatro primeiros
anos de vida, apresentaram uma grave perda das habilidades de interação social e
comunicação.

Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM-IV-


TR) 2002, o transtorno desintegrativo da infância é também conhecido como

Síndrome de Heller, Demência Infantil ou Psicose Desintegrativa. A atual


Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva usa a
terminologia transtorno desintegrativo da infância (psicoses) ao se referir ao público
alvo do Atendimento Educacional Especializado.

Para fins deste estudo, queremos fazer uma ressalva a respeito do texto que
vocês encontrarão a seguir.

Sem desmerecer a cientificidade do DSM-IV-TR, acreditamos que as


características apresentadas para o transtorno desintegrativo da infância refletem
uma visão mais pragmática e imediatista através de sinais e sintomas, não levando
em conta a forma como o sujeito vive sua condição. É, portanto, uma classificação
que merece ser estudada com cautela para que não se torne mais um rótulo,
empobrecendo a perspectiva do sujeito, impossibilitando a leitura do professor sobre
o aluno que se apresenta com esse diagnóstico na escola.

Ratificando mais uma vez a importância do DSM, porém tendo em vista a


necessidade de ampliarmos sua visão, traremos a seguir um pequeno aporte da
visão psicanalítica a respeito da psicose. Essa escolha diz respeito ao fato de que a
Psicanálise traz pontuais contribuições a respeito dos aspectos psíquicos envolvidos
no diagnóstico desses transtornos, bem como oferece questionamentos que
poderão nos auxiliar para uma visão abrangente da psicose na escola. Vale lembrar
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ainda que, para a Psicanálise, a psicose infantil é uma estrutura diferente do autismo
e dos demais transtornos globais do desenvolvimento tratados neste módulo.

A VISÃO DO DSM-IV-TR

A principal característica do transtorno desintegrativo da infância (TDI) é


surgir após um período de dois anos de desenvolvimento normal e aparecer antes
dos dez anos de idade. O TDI é acompanhado de uma regressão das aquisições já
adquiridas nas seguintes áreas:

 Linguagem expressiva ou receptiva;


 Habilidades sociais ou comportamento adaptativo;
 Controle esfincteriano;
 Jogos ou habilidades motoras

De acordo com Marcelli; Cohen (2009), no transtorno desintegrativo da


infância, a perda das aquisições afeta particularmente a comunicação e a
linguagem. O DSM-IV-TR enfatiza ainda que os indivíduos com esse transtorno
exibem os déficits sociais, comunicativos e de comportamento observados no
Transtorno Autista.

Quanto à prevalência, o TDI é um quadro muito raro e específico de psicose


e não se refere a todas as psicoses. O início do quadro se dá por volta dos três ou
quatro anos e os principais indícios de instalação do transtorno incluem o aumento
da irritabilidade e ansiedade, bem como a perda da fala e do interesse pelo
ambiente.

ALGUMAS REFLEXÕES DA PSICANÁLISE PARA O ENTENDIMENTO DA


PSICOSE INFANTIL
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Para compreendermos a psicose infantil pelo viés da psicanálise, é preciso


que primeiramente falemos sobre como um sujeito se constitui, bem como as falhas
que poderão ocorrer nessa trajetória, caso ocorram impasses na constituição.
Na visão psicanalítica, o sujeito se constitui, ou seja, não está ali desde o início. Por
isso se afirma que o bebê é um ―bolo de carne ou, para usar a definição de
Lajonquière (2003), um acúmulo de partes: um monte de carne, unhas e cabelos,
que para vir a se constituir como sujeito precisa de um outro primordial (geralmente
a mãe) que oferecerá à criança um lugar de existência.
Para que um bebê se constitua como sujeito, é preciso que a mãe ou quem
exerça essa função delimite a geografia do corpo da criança numa espécie de
mapeamento corporal através da fala, dos toques, dos carinhos. Um exemplo disso
é o deleite que a criança sente quando a mãe durante as trocas ,por exemplo, beija,
aperta, abraça esse sujeitinho contornando cada segmento do seu corpo através de
um ―banho de palavras. É durante esse encontro que um organismo que é
inicialmente biológico passará a existir e ocupar um lugar na família.

Esse é o momento inicial de constituição do sujeito, chamado tempo de


alienação, um tempo que é fundamental para que o bebê se constitua, sendo
tomado pelo desejo materno. Diz-se que a alienação é uma das operações de
causação do sujeito. O outro momento fundante do sujeito é o tempo da separação
(LAZNIK-PENOT, 1997).

Se a alienação é necessária para que o sujeito possa advir, é preciso,


também, que se opere a separação para que a criança possa se afastar do laço
maciço que a liga à mãe, podendo viver como um sujeito separado dela.

A separação é operada pela função paterna.

A função paterna é exercida pelo pai ou por outra pessoa que ocupe esse
lugar, às vezes um tio, avô, ou até mesmo alguém que não tenha uma ligação direta
com a família, porém é alguém que a mãe admira e tem como referência para si
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enquanto figura representativa da lei. É importante mencionar que a função paterna


é simbólica, ou seja, na falta de uma pessoa que a realize, essa poderá ser
exercida, por exemplo, pelo ator da novela da oito por quem a mãe nutre certa
admiração. Ela tomará as falas desse personagem e transformará em lei os seus
ditos toda a vez que se dirigir ao filho.

Com a entrada do pai na relação, o bebê sai da posição de único objeto de


desejo da mãe que em função disso passa a realizar as atividades anteriormente
exercidas, retomando sua vida. Esse geralmente é o momento em que a mãe
retorna ao trabalho, vai para a academia de ginástica, volta a se enfeitar para o
marido, etc. É um importante momento tanto para a mãe quanto para o bebê.
E quando essa separação não acontece e a mãe toma essa criança para si
impedindo que o bebê também busque outras pessoas e experiências além
daquelas proporcionadas por ela? Podemos dizer que o pai (simbólico) não
conseguiu entrar nessa relação, operando a separação; dizemos que falhou a
função paterna. Nesse caso, mãe e filho formarão uma célula, permanecerão
fusionados e um quadro de psicose poderá se instalar.

Para tanto, na psicose, falha a função paterna, essa que porta a lei e
interdita o vínculo mãe-bebê, lançando o sujeito para a vida. A criança psicótica fica
então capturada aos desejos da mãe, não conseguindo dela se separar. Tal situação
fará com que a criança tenha grandes dificuldades de ocupar o lugar de sujeito na
vida.

Para ilustrarmos um dos efeitos da não instalação dessa função, traremos a


seguir um exemplo que reflete as falhas nesse processo quando observado na
escola.

Letícia, com diagnóstico de psicose e aluna de uma escola pública, não


conseguia permanecer em sala com seus colegas. Fugia para o parquinho e ficava
correndo entre os brinquedos. Gostava muito de ficar na sala da recepção da escola
até o dia em que encontrou o filho da diretora que trabalhava na secretaria. Esse, ao
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vê-la fora da sala, falou em alto e bom tom que ela retornasse imediatamente para
junto de seus colegas e que aquele era o momento de estar estudando. O rapaz a
partir desse dia ocupou simbolicamente para Letícia o lugar paterno, aquele que a
interditava toda vez que ela ultrapassa as regras da escola. Letícia fez outras
investidas e muitas fugas se sucederam, porém, a professora lembrava-lhe que o
filho da diretora havia dito que ela não poderia sair da sala à hora que quisesse. Aos
poucos ela foi se organizando e saindo menos da sala de aula.

Não se sabe por que Letícia tomou a figura do filho da diretora como o
representante da lei, o que sabemos é que às vezes essas crianças elegem um
personagem e passam a tê-lo como referência. Nesse caso, um feliz encontro
aconteceu entre Letícia e o filho da diretora. Este conseguiu ocupar o lugar da lei,
exercendo a função paterna: aquele que diz ―não e organiza, de certa forma, a vida
escolar de Letícia.

Transtornos Invasivos sem outra especificação

Esses transtornos surgem após um período de desenvolvimento normal,


ocorrendo regressão em habilidades já adquiridas pela criança, bem como o
aparecimento de signos autistas. Essa regressão acontece especialmente na
comunicação e na linguagem (COHEN; MARCELLI, 2009).

Para uma melhor compreensão dos transtornos, traremos os critérios


diagnósticos do DSM-IV-TR (2002):

Esta categoria deve ser usada quando existe um prejuízo severo e invasivo
no desenvolvimento da interação social recíproca ou de habilidades de comunicação
verbal ou não-verbal, ou quando comportamento, interesses e atividades
estereotipados estão presentes, mas não são satisfeitos os critérios para um
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Transtorno Invasivo do Desenvolvimento específico, Esquizofrenia, Transtorno da


Personalidade Esquizotípica ou Transtorno da Personalidade Esquiva. Esta
categoria inclui, por ex., "Autismo Atípico" — apresentações que não satisfazem os
critérios para Transtorno Autista em vista da idade tardia de seu início,
apresentações com sintomatologia atípica, sintomatologia subliminar ou todas
acima.

Como vimos, para o fechamento de um diagnóstico de Transtornos


Invasivos sem outra especificação, devem ser excluídas as hipóteses de autismo,
síndrome de Asperger, síndrome de Rett e transtorno desintegrativo da infância
(psicose), além de outros transtornos que foram citados acima.

As vicissitudes na inclusão de alunos com Transtornos Globais do


Desenvolvimento

Nesta unidade discorreremos acerca das vicissitudes, ou seja, os caminhos


que a inclusão dos alunos com Transtornos Globais do Desenvolvimento poderá
tomar, enriquecendo o texto com exemplos do cotidiano da escola.

A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação


Inclusiva é clara quando afirma que esses alunos, assim como os alunos com
deficiência e altas habilidades/superdotação, devem estar incluídos no sistema
regular de ensino, recebendo o atendimento educacional especializado (AEE) no
contra turno do ensino comum. Diante disso, propomo-nos a realizar algumas
reflexões que possam contribuir com o trabalho dos professores na escola, tanto dos
profissionais que realizam o AEE quanto dos professores do ensino regular que
recebem esses alunos.

Como vimos nas unidades anteriores, esses transtornos dificultam o


estabelecimento das relações sociais e a inserção desses sujeitos na vida. Sendo
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assim, esses sujeitos se apresentam de forma singular no universo escolar, com


uma forma própria de estar no mundo. As singularidades desses sujeitos, muitas
vezes, podem angustiar o professor, podendo, no início, levá-lo a crer que não
saberá trabalhar com esses alunos ou mesmo que esses sujeitos não se
beneficiarão da escola.

As representações acerca desses alunos são, em sua maioria,


depreciativas, enfatizando o que eles supostamente não fazem. Cavalcanti; Rocha
(2001, p.26) revelam as representações mais propagadas acerca do autismo:
A figura sombria de uma criança de costas sob uma redoma de vidro (...), assim
como os pequenos desenhos de crianças tapando os olhos e os ouvidos com as
mãos (...), as crianças são descritas como sujeitos que não falam não se
comunicam, não brincam, não estabelecem relações com as pessoas, isoladas em
seus mundos enigmáticos e despovoados.

É notório que essas representações estão associadas à idéia de


impossibilidade, enfatizando o que o sujeito com autismo supostamente não pode,
não consegue, não faz. As autoras citam, ainda, metáforas utilizadas por diversos
autores ao se referirem a esses alunos: ―Fortalezas Vazias, ―Carapaças,
―Conchas ou ―Tomadas Desligadas. Todas essas representações reforçam a
idéia de déficit.

Com relação aos sujeitos psicóticos, evidentemente a realidade não é


diferente. Yañez (2001, p.193) apresenta as frequentes queixas com relação à
criança psicótica: ―‗parece estar desligada‘, ‗fica colada na gente‘, ‗ não brinca,
desmonta e destrói todos os brinquedos‘, ‗não obedece às ordens‘ (...).

A fim de refletirmos sobre essas representações de impossibilidade, é


interessante pensarmos acerca da interrogação de Teresa Campello apresentada
por Cavalcanti; Rocha (2001, p.39): ―O que essas crianças têm? Vocês só falam o
que elas não têm‖. De fato dá-se ênfase ao que psicóticos e autistas não
conseguem realizar. Evidentemente que isso irá influenciar o processo de ensino,
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uma vez que diante dessas ―incapacidades o professor acaba desacreditando da


capacidade de aprendizagem desses alunos.

Jerusalinsky (2001) discorre acerca da antecipação do fracasso, quando os


pais têm um filho com uma patologia orgânica. Sabe-se que a suposição de sujeito é
determinante para que esse sujeito possa advir. Assim, segundo o autor:

O que se espera, o que se imagina do futuro de uma criança, é posto em


jogo em cada uma das demandas que lhe são supostas e que lhe são dirigidas. Por
isso, as mesmas podem ser silenciadas quando se supõe que o bebê é incapaz de
produzi-las ou a elas responder. E assim, tal incapacidade pode acabar se
cumprindo no bebê- mesmo que não haja nada da patologia orgânica que assim o
determine – por efeito das expectativas engendradas desde o imaginário parental
(p.39).

A partir das afirmações de Jerusalinskyi, é possível pensar essa questão no


contexto educacional. A incapacidade de aprender pode acabar se cumprindo no
aluno, assim como no bebê, se o professor não conseguir supor naquele sujeito,
independentemente de sua singularidade, alguém capaz de aprender. Assim, se o
professor antecipar o fracasso, o aluno poderá responder colando-se à imagem
daquele que não aprende, a fim de assegurar esse lugar no qual é reconhecido pelo
professor.

É bom ressaltar que os alunos com transtornos globais do desenvolvimento


desenvolvem a capacidade de aprendizagem. Kupfer; Petri (2000) ressaltam que as
crianças com autismo e psicose possuem ―ilhas de inteligência‖ preservadas. A
essas ilhas de inteligência é preciso dar sentido, para que não desapareçam nem
virem estereotipias. Segundo as autoras, a escola é fundamental para o crescimento
ou para a conservação das capacidades cognitivas que essas crianças já
adquiriram.
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É possível irmos mais além e pensar que a instituição escolar poderá ter
valor terapêutico para esses sujeitos. Assim, de acordo com Kupfer (2001, p.91), a
escola oferece mais do que uma oportunidade de aprender:
Como alternativa ao Outro desregrado, a escola entendida como discurso
social, oferece à criança uma ordenação, oferece as leis que regem as relações
entre os humanos, que regem o simbólico, para delas a criança tomar o que puder.
Aposta-se com isso no poder subjetivante dos diferentes discursos que são
postos em circulação no interior do campo social (...).

É precisamente por produzir efeitos subjetivantes, oferecendo leis,


ordenação, que ir à escola tem valor terapêutico para crianças com impasses
subjetivos. Portanto, a escola desempenha um papel importante na vida dessas
crianças, podendo contribuir para a retomada da estruturação perdida pelo sujeito.

Além disso, segundo Kupfer (2001), a escola oferece um lugar social. Toda
criança vai à escola, de forma que o significante criança está ligado ao significante
escola. Na escola o aluno recebe, conforme a autora, o ―carimbo de criança. Essa
designação de lugar social é importante para essas crianças com dificuldades em
estabelecer laço social.

Jerusalinsky (2004, p.150) também ressalta a importância do significante


escola para essas crianças:

(...) a escola não é socialmente um depósito como o hospital psiquiátrico,


a escola é um lugar para entrar e sair, é um lugar de trânsito. Além do
mais, do ponto de vista da representação social, a escola é uma
instituição normal da sociedade, por onde circula, em certa proporção, a
normalidade social.
Portanto alguém que frequenta a escola se sente geralmente mais
reconhecido socialmente do aquele que não frequenta. É assim que
muitos de nossos psicóticos púberes ou adolescentes reclamam que
querem ir à escola como seus irmãos, precisamente porque isso
funcionaria para eles como um signo de reconhecimento de serem
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capazes de circular, numa certa proporção, pela norma social. E


efetivamente isso acaba tendo um efeito terapêutico (...).

O fato de os alunos com psicose ou autismo frequentarem a escola produz


efeitos terapêuticos e subjetivantes para a criança com Transtornos Globais do
Desenvolvimento, evidenciando a importância da escolarização. Em face a isso, é
importante que o professor invista na capacidade de aprender desses alunos,
lançando um olhar que os retire da solidão em que muitos se encontram.

A fala de uma professora da rede pública de Santa Maria-RS, que trabalha


com alunos autistas e psicóticos, demonstra o quanto podemos nos surpreender
com esses sujeitos: ―O Mauricio chegou, eu lembro que ele era o que tinha mais
características, porque o Vagner conversa contigo, se relaciona. Mas com o Mauricio
eu me surpreendia quando eu dava ordens para ele e ele atendia. Ver que ele
progrediu de certa maneira e isso me surpreende bastante. Me surpreendia, porque
eu não esperava, como ele não tem linguagem oral, fala, tu imagina que ele não vai
te entender, também. Só que ele demonstrou que ele me entende. Ele faz as coisas
que eu peço. E isso é bem interessante. Até quando a gente trabalha com jogos,
que ele consegue fazer a atividade que tu imagina que ele não vai conseguir. Nesse
sentido eu me surpreendi”.

O depoimento dessa professora evidencia que o professor que trabalha com


esses alunos deve estar disposto a reconhecer e valorizar a singularidade e uma
forma de aprender não padronizada. O exemplo da professora Hellen citado na
Unidade B, que trabalhou com todos os alunos do lado de fora da sala de aula até
que Matheus conseguisse entrar, ilustra bem essa questão.

Colli et al discorrem acerca da importância de o professor investir nesses


alunos, desejando que eles aprendam:

A escolarização destas crianças precisa estar lastreada no desejo do


professor, pois este, ao apontar seu desejo para o aprendizado da criança, supõe
nela um sujeito também desejante e, portanto, capaz de aprender. Desta disposição
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da subjetividade é que poderão surgir as curiosidades que abrirão acesso ao sujeito


em aprendizagem. (Colli et al, 1997, p. 40).

Com base nos pressupostos teóricos apresentados neste módulo,


passaremos agora a refletir sobre atividades pedagógicas que podem ser
desenvolvidas no AEE. Evidentemente, essas reflexões não se configuram como
receitas, mas, sim, como sugestões baseadas em estudos teóricos, vivências das
autoras e de outros professores. Assim, a partir dos exemplos citados aqui, muitos
outros poderão surgir, uma vez que cada aluno é singular e tem interesses que lhe
são peculiares.

Um primeiro ponto que pode ser pensado no trabalho com esses alunos diz
respeito às estereotipias. O professor precisa estar atento às manifestações
estereotipadas desses sujeitos, buscando dar significado a elas. Por exemplo: na
sala de aula, a professora passava o conteúdo no quadro e os alunos copiavam
quando Mauricio, um menino autista, levanta-se, vai até o quadro e bate o apagador
insistentemente no quadro. A professora olha para ele e diz: ―Quer apagar
Mauricio? Não dá para apagar ainda, agora é hora de copiar. Ouvindo isso o aluno
retorna para sua classe. Esse ―bater no quadro poderia ter sido considerado uma
estereotipia típica do autismo, no entanto a professora deu um significado àquele ato
e isso fez toda a diferença, pois ao invés de permanecer batendo o apagador,
Mauricio retornou a sua classe.

Na mesma escola citada anteriormente, Antônio, um aluno autista, caminha


pela sala de aula e pela escola, colocando todo tipo de papel na boca, chegando,
por vezes, a engoli-lo. O que fazer diante dessa situação? Como dar sentido a isso?
Aqui poderíamos pensar em uma atividade pedagógica que utilizasse o papel, objeto
de interesse de Antônio. Que tal propormos uma atividade com papel machê? Por
coincidência, o termo papel machê vem do francês ―papier mâché que significa
papel mastigado. O papel machê é uma espécie de massa de modelar com a qual
podemos fazer diversas esculturas. Para fazer o papel machê, utilizamos papel
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picado, cola branca e água. A técnica desse papel para modelagem consiste no
seguinte:
- picar o papel, pode ser jornal, em pedaços pequenos, deixando de molho na água
por algumas horas. Se a criança não consegue ainda picar o papel com tesoura, ela
poderá rasgá-lo em pequenos pedaços;

- triturar bem os pedaços de papel e, quando estiver bem triturado, espremer até
tirar toda a água;

- por fim, colocar em um recipiente o papel triturado e acrescentar cola branca até
transformá-lo em uma massa adequada para a modelagem. Se adicionarmos um
pouco de detergente líquido, a massa ficará mais fácil de ser trabalhada. Com essa
técnica simples, a criança terá o prazer de manipular e produzir a massa. A
modelagem é o segundo passo da atividade. Basta, então, usar a criatividade e
buscar com a criança formas a serem esculpidas. Essa atividade pode ser realizada
tanto na sala de recursos multifuncionais quanto na sala de aula regular com toda a
turma. Quem sabe outras atividades com papel surjam, como a dobradura, por
exemplo?

Um segundo ponto sobre o qual podemos refletir no trabalho com os alunos


com transtornos globais do desenvolvimento diz respeito à resistência a alterações
na rotina. O professor pode usar o diálogo como ferramenta quando alguma
alteração for feita, explicando desde o início que algo no ambiente mudará ou que
sofreu alterações. É preciso que o professor dê sentido à mudança, ouça e
compreenda a angústia de seu aluno.

A escuta atenta e a compreensão da angústia do aluno por parte do


professor podem ser exemplificadas através do relato de atividade realizado com
uma aluna psicótica na sala de recursos.

Transcorridos aproximadamente dois meses do ano letivo, os alunos da sala


de recursos tiveram que mudar de sala, em função de questões organizacionais da
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escola. Valquiria não gostou da troca e começou a repetir durante a aula: ―Vamos
lá no outro colégio, ―Nós vamos voltar lá (colégio significava sala de aula).
Nenhuma explicação conseguiu diminuir a angústia de Valquiria, tampouco as
atividades apresentadas pela professora atraíram sua atenção. Essa troca repentina
pareceu desestruturar a aluna. A fim de resolver o impasse, sugeriu-se que ela
escrevesse um bilhete para a diretora da escola, pedindo para que os alunos (além
de Valquíria havia outros alunos) pudessem voltar para a antiga sala. Valquiria
concordou. Assim, junto com a professora, Valquíria escreveu e assinou o bilhete
abaixo:

Quando a professora iniciou a escrita do bilhete dizendo em voz alta:


―gostaríamos de trocar de sala com a professora Heloisa‖, Valquiria
complementou: ―e colocar a mesa no lugar. A mesa havia sido trocada de lugar
pela professora que agora estava na antiga sala. O bilhete foi deixado sobre a mesa
da diretora. Após, foi explicado a Valquiria que a resposta viria somente na semana
seguinte, pois a diretora não se encontrava na escola.
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Na semana seguinte a diretora respondeu:

E assim foi feito! Após a leitura da resposta da diretora, Valquíria concordou


com a troca para a sala mais próxima da sua antiga sala. A angústia da aluna
diminuiu e neste dia foi possível desenvolvermos atividades em nossa nova sala,
agora um espaço dedicado à escuta das demandas de Valquíria e dos demais
alunos que por lá passarem.

Outro exemplo vivido na sala de recursos com a aluna Valquíria e seu


colega Vilian reflete a importância da escrita enquanto uma ferramenta que poderá
ser usada para permitir que alunos com dificuldades na sua constituição psíquica
possam começar a esboçar um lugar de sujeitos.

Para iniciar a aula, a professora pedia aos alunos que assinassem uma lista
de presenças. Abaixo segue uma lista, em que a aluna Valquiria escrevia seu nome:
as letras ―V e ―N que aparecem no desenho. Como Vilian pegava a caneta e fazia
riscos, Valquiria o orientava: ―não risca, faz o nome, ―não risca, escreve. Nesse
dia, o aluno esboçou o ―N, conforme aparece na lista.
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Numa manhã, quando a professora entrou na sala após buscar o material


para iniciar o trabalho, Valquíria que escrevia no quadro disse: ―Olha o que eu fiz!.
Havia um ―Y e um ―Q escritos no quadro. Quando a professora admirada olhou
para ela, esta falou: ―Não conta pra ninguém‖. Em outra oportunidade a mesma
aluna ao escrever alguns rabiscos no quadro falou em voz alta: ―Taís, eu estou
aqui!.

Segue outro exemplo interessante que mostra como o registro do simbólico


é falho nessas crianças e quanto nós, professores, podemos contribuir para que
uma ampliação dessa função aconteça, a fim de que os alunos saiam um pouco do
campo do real que lhes é peculiar. Tal ampliação terá importante papel no momento
da aprendizagem da escrita ou da matemática quando eles precisam imaginar,
hipotetizar situações para que essa aprendizagem aconteça.
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Em uma produção de uma maquete da cidade, várias caixas de alimentos


foram utilizadas para simbolizar casas e outras construções. Assim uma caixa
transformou-se em igreja, outra em prefeitura, uma bandeja transformou-se em
praça, etc. Valquiria colou uma caixa de caldo de galinha na maquete. A professora
perguntou: ―o que é isso?. A essa pergunta Valquiria respondeu: ―É uma caixa de
caldo de galinha, não tá vendo?. Na semana seguinte, a professora propôs que os
alunos relembrassem o que produziram na maquete. Valquiria lembrou de tudo: da
prefeitura, da igreja, da praça, do banco. Quando a professora perguntou sobre a
caixa do caldo de galinha ela responde: ―É uma caixa de caldo de galinha, eu já te
disse!. Valquíria suspirou impacientemente como quem diz: quantas vezes vou ter
que falar o óbvio?

Todos esses exemplos e muitos outros podem ser desenvolvidos no AEE na


sala de recursos. O tema da atividade poderá variar de acordo com os interesses do
aluno. Poderemos desenvolver, por exemplo, atividades com música, escrita, argila,
papel marchê como no caso do Antônio.

Materiais como a massa de modelar ou argila permitem unificar a


fragmentação da imagem corporal dos alunos com problemas no desenvolvimento.
Bonecas de pano que podem ser cortadas e recosturadas também proporcionam
essa unificação. Linha e barbante usados nas brincadeiras ajudam a ―amarrar‖ e
simbolizar esse corpo que parece não se adequar ao ambiente.

Vimos até aqui que o professor do AEE poderá proporcionar momentos para
que o aluno possa, através do brincar, retomar a função simbólica que ficou
adormecida em função das dificuldades encontradas pelo sujeito para se constituir.
O professor do AEE deve trabalhar em conjunto com o professor do ensino regular
para que juntos possam estabelecer estratégias de ensino e atividades que irão ao
encontro do desejo de seus alunos. O professor que estiver disposto a trabalhar de
uma forma diferente, levando em consideração que cada sujeito tem sua forma
peculiar de estar no mundo, com certeza aprenderá muito.
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Para finalizar, sugerimos a leitura de duas reportagens, disponíveis nos links


abaixo, que relatam o trabalho da professora Hellen, citada anteriormente. Essa
professora se mostrou disponível para um trabalho diferenciado que pudesse
atender às especificidades de Matheus, seu aluno.

http://revistaescola.abril.com.br/avulsas/inclusao_matheus_aprende_escrever.shtml
http://revistaescola.abril.com.br/avulsas/inclusao_matheus_aprende_emocoes.shtml

Sugestões de filmes que trazem a temática dos Transtornos Globais do

Desenvolvimento:

► O Enigma das Cartas, do diretor Michael Lessac (1993);

► Código para o Inferno, do diretor Harold Becker (1998);

► Rain Man, do diretor Barry Levinson (1988).

Click e Assista

https://www.youtube.com/watch?v=tqEUEKC8MOc
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Referências

ALBERTI, S. Autismo e esquizofrenia na clínica da esquize. Rio de Janeiro: Marca d‘Água , 1999.

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ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. DSM-IV-TR: Manual diagnóstico e estatístico de


transtornos mentais. 4.ed.rev. Porto Alegre: Artmed, 2002.

BAUER, S. Síndrome de Asperger - Ao longo da vida. Disponível em:

http://gopher.udel.edu/bkirby/asperger/bauerport.html. Acesso em julho de 2009.

BERNARDINO, L.M.F. A abordagem psicanalítica do desenvolvimento infantil e suas vicissitudes. In:


BERNARDINO, L.M.F. (org.) O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança, sujeito em
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