Você está na página 1de 6

1

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO - ANÁLISE E ARTICULAÇÃO TEÓRICA

Julia Mofati Azevedo1


Núbia dos Santos Alves2
RESUMO

O presente texto é uma análise e síntese do longa-metragem “Hoje Eu Quero Voltar


Sozinho”, em diálogo com os desafios de uma prática escolar inclusiva, de alunos
que necessitam de um atendimento especializado. A metodologia utilizada para a
análise envolve a decomposição escrita dos conceitos de imagem, som e estrutura
do filme, para em seguida interpretar as relações destes elementos.

1. INTRODUÇÃO

Derivado de um curta-metragem, Hoje eu quero voltar sozinho, retrata um


compilado de vivências na adolescência, como amizades, primeiro beijo,
descobertas e deficiência, perpassados em um ambiente escolar de classe média
alta e dominado pela branquitude. É interessante salientar que, durante o longa, não
há preocupações como fugir de casa, medos, ou se rebelar com os pais, mas sim
fazer um intercâmbio bancado por eles.
Leonardo, interpretado por Guilherme Lobo é o personagem principal da
trama. Como o único garoto cego de sua turma, ele enfrenta uma série de conflitos
internos como qualquer adolescente, com o bônus de tentar criar sua independência
rompendo a barreira de superproteção da família. O personagem tem uma boa
relação com os pais, no entanto, ele se estranha com a ausência de liberdade, se
abrindo em inúmeros momentos com sua melhor amiga Giovana.
A protagonista do filme, Giovana (Tess Amorim), é a melhor amiga de Leo,
por isso sempre está por perto o ajudando, tanto na escola quanto no retorno para
casa. Durante algumas tardes, Leo e Giovana vão à piscina para se refrescar e
conversar sobre suas vontades, mas isso começa mudar de formato com a chegada
de Gabriel (Fabio Audi), quando as atenções dos amigos começam a ser divididas
para ele, gerando desconforto na amizade.

1
Graduanda de licenciatura em Educação Física na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
jmofati75@gmail.com
2
Graduanda de licenciatura em Educação Física na Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:
nubia.ufes@gmail.com
2

Gabriel, é o aluno novo da escola que convenientemente se senta atrás do


Leonardo, o primeiro contato surge numa breve conversa em que Gabriel pede uma
borracha emprestado, então logo eles ficam amigos. Nesta amizade acontecem
alguns deslizes como “você viu aquele vídeo?", visto que é novo para Gabriel ter um
amigo cego. Neste longa, amor à primeira vista não existe, mas sim numa segunda.
Em determinadas cenas, como a primeira que acontece, o enquadramento
da câmera faz com que o telespectador não entenda que Leonardo é cego,
evidenciando suas outras questões que eram mais pertinentes no momento. Nas
situações em que sua deficiência ficava em evidência a composição do ambiente e
o ângulo transmitia um olhar da perspectiva do personagem, compreendendo sua
particularidade.
Da fotografia a trilha sonora, é possível sentir a leveza da obra, que não foi
feita para causar expressões abruptas, mas surpresas agradáveis embaladas pela
pureza de um primeiro beijo entre dois garotos. É interessante evidenciar que, não
é de intuito do diretor levantar bandeiras de forma impositiva, mas mostrar a
naturalidade do desenrolar de um amor gay.
Hoje Eu Quero Voltar sozinho não é um filme que trata das mazelas das
minorias como o preconceito, mas retrata de forma intimista das relações de forma
simplista, ultrapassando os estereótipos e rótulos mas tratando com sagacidade
imperceptivel pelo público que se percebe imerso nessa história de amor. É, de fato,
um grande achado no cinema nacional.

2. DESENVOLVIMENTO

A partir da interpretação do filme, percebe-se diversas influências na vida do


menino Leonardo, onde o mesmo se encontra um jovem superprotegido,
introspectivo até um determinado momento e inseguro. Essas características
demonstraram certa curiosidade pois se aplicava a todos os locais em que Léo
estava: tanto em casa, no espaço escolar, sofrendo preconceito e repressões e por
fim na sociedade.
Tratando-se da teoria histórico-cultural, defendida e criada por Vygotsky, que
traz a formação humana considerando o sujeito uma somatória de todas suas
experiências e influências de vida e que estabelece uma estreita relação entre
3

educação e formação humana, pode-se compreender de forma mais eficaz o papel


da educação na vida do menino Leonardo e de seus amigos, onde apesar de
algumas vezes a escola não mostrar auxílio ao jovem, traz uma professora negra
que se preocupa com o aprendizado do mesmo e uma escola capacitada com
Perkins para que a acessibilidade seja alcançada.
É de suma importância ressaltar as condições de acessibilidade nas escolas
brasileiras e os avanços da educação especial no Brasil, e a democratização dos
espaços públicos e/ou privados, sejam escolas ou não, a partir de DAINEZ E
SMOLK:
Ampliação do direito educacional/escolar a essa população: a identificação da
criança excepcional3 como aluno do sistema geral de educação, regulamentada
pelas disposições da LDBEN n.4.024/61 (BRASIL, 1961
); a determinação de tratamento
especial a esses alunos, amparado pela Lei nº 5.692/71 (BRASIL, 1971); o entendimento
da Educação Especial como modalidade da educação escolar e sua oferta como
dever constitucional do Estado, garantida desde a Educação Infantil na LDBEN n.
9.394/96 (BRASIL, 1996
). Essas mudanças levaram ao aumento das matrículas desses
alunos em escolas regulares públicas, de modo que, a partir de 2008, a porcentagem
de alunos com deficiências matriculados em classes comuns passou a ser maior que
a desses alunos em classes e escolas especiais (CASTRO; DALL’ACQUA, 2013
). (DAINEZ e
SMOLK, 2019).
O presente filme mostra uma realidade muitas vezes contrária às que de fato
se encontram em termos de: materiais escolares, quantidade de alunos em sala de
aula, a atenção aos alunos com deficiência e a inclusão desses alunos na
aprendizagem. Desafios presente com um aluno cego e que muitas vezes se
estendem a outras formas de deficiência, e que, ainda que haja investimento a
qualidade da inclusão não se dá de fato, por isso trago DAINEZ E SMOLK:

Kassar (2011)
“Os desafios impõem-se quando, segundo , devido à escolha de
programas que indicam se pautar por restrições de investimento, contamos
com a oferta de uma única forma de atendimento aos alunos com
deficiência, que não dá conta de atender às diversas demandas e
Garcia (2008) Pletsch (2010)
características; e, quando trabalhos como os de e
apontam para as tensões produzidas no cotidiano escolar frente às
condições de implementação de uma política educacional global. Um
Laplane (2014)
estudo como o de chama, ainda, a atenção para o fato de que,
embora o conjunto de recursos de apoio à escolarização tenha se
4

expandido com as políticas de educação inclusiva, ainda não se garante o


sucesso desses alunos no sistema de ensino.” (DAINEZ e SMOLK, 2019)
Observando todo esse contexto é possível notar a solidão da pessoa com
deficiência visual na sociedade, ou quando não só, cercada por poucos amigos
videntes nos quais tem o apoio e muitas vezes ainda não são compreendidos e de
fato não incluídos nas vivências.
Numa sociedade padronizada, as minorias tendem a sofrer repressões, o
filme nos mostra além da solidão e insegurança que um deficiente visual sofre, o
preconceito com sua deficiência e a homofobia. Leonardo e Gabriel desde que
começaram a andar juntos sofrem, sem antes mesmo se identificarem como
homossexuais os ataques diretos dos demais colegas de classe, colegas esses
brancos, héteros e “descolados” que acreditam nas suas próprias convicções e não
agem com respeito diante das diferenças. Em contrapartida o trio mostra ser super
empatico uns ao outros: Leonardo, Gabriel e Giovana, ANGELUCCI (2015), é muito
sábia quando traz:
As contradições são inúmeras também, fazendo-nos ora aderir a
determinado princípio, ora desprezá-lo. Nós, sujeitos humanos, seres de
cultura, não simplesmente aderimos a sistemas fechados, não compramos
pacotes. Não sem, pelo menos, tentarmos customizá-los. Construímos
acordos, na maior parte das vezes, tácitos, conosco mesmos e com nossas
tradições. Sofremos dessas contradições e enriquecemos nossas culturas
também com elas. A singularidade, nesse sentido, passa a ser marcada
pelo movimento de apropriação das diferentes e contraditórias heranças
que carregamos. (ANGELUCCI, 2015, pág 12)

É possível ressaltar também o quão a sociedade e até mesmo professores


são despreparados em muitos momentos para lidar com o deficiente visual no
Brasil, o filme vem mostrar que desde a casa do menino Leonardo, onde a entrada
era com escadas, não que não fosse possível, porém muito mais difícil, até a sua
viagem escolar onde seu próprio professor coletava suas amostras de campo para
que Leonardo participasse da aula, não se pensa com ele e nem para ele, a
atividade nesse momento é trazida como integração, somente mantendo-o ali, não
como inclusão, pensando com e para ele.

Como enfatiza Vygotsky (1995), o desenvolvimento cultural, a história


pessoal entretecida na e pela história geral dos homens, leva-nos
5

inescapavelmente aos problemas da educação; sendo a educação formal


um direito fundamental, uma via de acesso, socialmente instituída, da
constituição do saber humano em saber da criança (PINO, 2000
). (DAINEZ e
SMOLKA, 2019, pág 12)

Uma outra questão que é possível tirar desse filme é acerca da reforma da
educação especial no Brasil, onde de forma geral o governo quer direcionar ao
público que possui qualquer tipo de deficiência a escolha de qual espaço formativo
frequentar, tirando obrigação dessa integração social e maquiando a inclusão da
forma que abre espaço ao retrocesso da segregação, como acontecia nos anos 80
e gerou instituições privadas para cuidar desse público alvo nos anos 90,
direcionando assim capital do estado para manutenção de empresas e pessoas
individuais. ANGELUCCI, traz em resumo acerca do pensamento:

Passados 25 anos da discussão, continuamos precisando defender uma


escola para todos(as), com todos(as) e sobre todos(as). Porque nossa
humanidade não é e não quer ser homogênea, amálgama de tecidos
humanos, tampouco coletânea de diagnósticos, de fragmentos
objetificantes de identidades equivalentes a classificações patológicas.
Porque a escola deve reconhecer nossa humanidade plural, reflexiva,
tornando-se potente para sustentar as diferenças que nos tornam sujeitos
igualmente humanos, a partir de nossas distintas experiências sensoriais,
comunicacionais, cognitivas, afetivas. (ANGELUCCI, 2015, pág 18)

3.CONCLUSÃO

A partir da oportunidade e criação de um indivíduo e a forma como se dá


essa vivência e experiência é possível construir corpos (como um todo) altamente
capazes de produzir ou não. O filme nos trouxe um jovem criado de forma
superprotetora e desafiadora, onde o mesmo não teve nem o reconhecimento de
sexualidade, devido a desatenção ou preocupação excessiva sobre a sua
deficiência visual, onde o capacitismo se instaura limitando aquele ser somente
àquelas características.
Outro marco é a escola como possível e potente lugar de humanização social
das minorias: deficientes, negros, homossexuais, etc., que nos faz analisar e pensar
formas de atuação perante a inclusão de fato e não somente a integração,
promovendo a inserção e dando voz às minorias.
6

É importante reparar a sociedade como um todo mas também com


personalidades únicas, pessoas empáticas e pessoas frias, o que nos remete a
analisar a cultura como um todo que adentra em cada ser e traz a socialização de
pessoas com os grupos onde mais se identificam.

REFERÊNCIA

Hoje Eu Quero Voltar Sozinho. Direção: Daniel Ribeiro. Produção: Diana Almeida. Local: Brasil.
Vitrine Filmes, 2014.

DAINEZ, Débora e SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A função social da escola em discussão, sob a
perspectiva da educação inclusiva, Educ. Pesqui. vol.45 São Paulo, 2019 pág.5, p12:

ANGELUCCI, Carla Biancha. PATOLOGIZAÇÃO DAS DIFERENÇAS HUMANAS E SEUS


DESDOBRAMENTOS PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL, 37ª Reunião Nacional da ANPEd – 04 a 08
de outubro de 2015, UFSC – Florianópolis, 2015, pág 8, pág 12, pág 18.

Você também pode gostar