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O Crime

“Generosos cidadãos do Brasil, que amais a vossa pátria, sabei que sem a abolição total do infame
tráfico da escravatura africana, e sem a emancipação sucessiva dos atuais cativos, nunca o Brasil firmará a
sua independência nacional, e segurará e defenderá a sua liberal constituição; nunca aperfeiçoará as raças
existentes, e nunca formará, como imperiosamente o deve, um exército brioso, e uma marinha florescente.
Sem liberdade individual não pode haver civilização, nem sólida riqueza, não pode haver moralidade, e
justiça e sem estas filhas do céu, não há nem pode haver brio, força e poder entre as nações”, José Bonifácio,
no livro “Sobre a escravatura”, escrito antes do fim do tráfico negreiro no Brasil.
Fundamentada em princípios cristãos, uma monarquia quase parlamentarista permitia e legislava a
escravidão. Em um país rico em recursos naturais, uma constituição conservadora e uma monarquia
admirável a escravidão era comum, era ordinária, aceita, quase bem-vista. Em uma imensidão de riqueza e
beleza a escravidão manchava, ameaçava todo e qualquer bem em nosso país. Mas através de corajosos
brados pela liberdade a necessidade de se cessar a escravidão começou a ser ouvida; não começou, pois
sempre existiu, mas sua urgência se tornou insuportável.
É de como acordo que cada ser humano quer a manutenção de seus direitos naturais e a
possibilidade de buscar a felicidade, mas em 1888, havia discordância em quem era ser humano, e muitas
pessoas foram excluídas dessa maliciosa lista. Houve homens, mulheres, velhos e novos que acreditavam que
o ser humano não era definido pela cor de pele, cultura ou língua, que seres humanos eram todos que
pensavam racionalmente e se pareciam como espécie, mesmo que em cores, culturas e línguas diferentes.
Também houve aqueles que defendiam a escravidão, afirmando que os escravos eram propriedade dos
senhores e que a escravidão era e ainda é uma instituição natural, intrínseca aos seres humanos.
Muito já foi dito sobre como a escravidão rouba ferozmente, impiedosamente e quase eternamente o
direito que o escravo tem a sua própria vida, mas o problema da escravidão é ainda mais infeccioso, sujando
cada parte de uma sociedade que a tolera. Por causa da alma do povo e por causa do direito à propriedade a
escravidão deveria ter sido abolida no Brasil em 1888.
A escravidão não é uma ameaça ao direito à propriedade, ela é a sua destruição, primeiramente a
escravidão transforma um direito universal em um privilégio, e não há maior ameaça ao bem do que tornar
um direito em um privilégio. O direito a propriedade advém do direito à vida e se não há o direito de possuir
a própria vida, as próprias escolhas, o próprio corpo não há possibilidade para a existência do direito à
propriedade. Pode parecer superficial a perda universal desse direito, mas ele de fato não é. Se uma lei diz
que metade da população não pode ser considerada humana, o que a impede de aumentar esse grupo no dia
seguinte? Se uma lei diz que metade da população não tem direito a sua vida o que protege o resto da
população? Além de cometer um crime hediondo contra almas humanas, ao aceitar leis desse tipo nos
tornamos vulneráveis a toda nova ideologia, que reduz a alma humana a filosofias vãs e que restringem
direitos básicos a seres humanos. O escravo era privado de seu trabalho, da possibilidade de dar subsistência
a sua família, privado de sequer ter uma família. Roubar o direito à propriedade, torná-lo opcional, torná-lo
possível apenas para alguns roubava do escravo parte de sua humanidade e ameaçava que todos o perdessem.
Um direito não universal é fraco e pode ser abolido. Entendendo que o direito à propriedade não
existe verdadeiramente em uma sociedade escravocrata pois não abrange a todos, podemos nos assegurar de
que o caos social bate à porta, sociedades escravocratas estão fadadas a um fim terrível. Para que sociedades
organizadas existam, para que pessoas possam criar famílias, para que a troca de bens exista, para que nossas
ideias sejam articuladas, para que a real liberdade exista precisamos do direito à propriedade, precisamos ter
o direito a herança, precisamos ter direito ao fruto de nosso trabalho. É uma questão de tempo até que o
suposto direito a propriedade de sociedades escravocratas seja abolido, completamente ignorado, até que não
sobre nem menos uma sombra de tão glorioso e necessário direito.

O fim do direito à propriedade privada dá espaço para ideologias como o comunismo. Ora se o
direito à propriedade, o direito de cada indivíduo de buscar, lutar e fadigar para ter algo para chamar de seu,
se esse direito não existe, o sonho de Marx foi conquistado. Se a propriedade, intelectual e material, não
pertence ao indivíduo, ela pode pertencer a qualquer um, inclusive ao estado. O sonho comunista é a
abolição da propriedade e isso a escravidão faz de forma eximia.

Por causa da boa religião e da alma do servo e do senhor. Oque é da alma do senhor que vê relances
de uma alma cansada e aflita em seu escravo e que mesmo assim nada faz para lhe aliviar a agonia? O que é
da alma do senhor que não é só indiferente, mas induz sofrimento intencionalmente em seu escravo apenas
para benefício próprio? O que é da alma do escravo que continuamente vê uma alma como a sua, um
intelecto que se assemelha ao seu, alguém de seu povo, a raça humana, lhe torturando, lhe infligindo todo
tipo de dor de forma terrível e ordinária? O que sobra da alma deles? Negar que fazem parte da mesma raça é
inútil. A virtude, a verdadeira virilidade, a compaixão não podem existir plenamente em um senhor de
escravos, ele as afastou de si; a coragem, a honra, o autogoverno não podem existir plenamente em um
escravo, isso lhe foi tirado.
O que é da alma humana que pratica o abuso e o que é daquela que não luta contra ele? As filhas do
escravo não são dele, são do senhor, e esse pode usá-las da forma que entender, sem qualquer pudor,
preocupação com suas sofridas almas. O escravo, acostumado com a imoralidade, não protege suas filhas,
mal sabe qual daquelas crianças é sua. A mulher escrava é usada por seu senhor, é casada e recasada, é mãe
sem um pai para sua criança. O que resta de alma para os homens que não veem a profundidade desse mal?
O que resta de humanidade nesses homens que afligem de tal forma suas mulheres? O que resta de alma
nessas mulheres que ao invés de cuidadas são molestadas? Ao invés de amadas, exploradas?
A hipocrisia dos ritos religiosos era comum para o escravo e para seu ilegítimo dono. Obrigar os
escravos a seguirem dogmas dos quais não entendem foi um desserviço ao evangelho, não apenas um
desserviço, mas uma afronta ao Cristianismo. A posse de escravos por monastérios foi uma vergonha, um
crime, um absurdo. Aqueles que deveriam zelar pelo sofredor, pelo estrangeiro, pelo próximo eram os
mesmos que usavam almas humanas para o seu prazer. Fazer com que os escravos fizessem parte de uma
cultura com aspectos cristãos, mas que os desrespeitava tão fortemente era tornar o evangelho confuso e
falso. Fazer batismos e casamentos falsos apenas para o alívio da consciência do senhor e sem de fato
ensinarem qualquer religião para os escravos foi lhes negar o verdadeiro evangelho. O único cristianismo
que muitos escravos viram foi um cristianismo hipócrita e egoísta.
Mesmo diante de tal realidade, existem aqueles que acreditam que a escravidão não deveria ter sido
abolida no Brasil em 1888, dizem que a escravidão sempre existiu e é legalizada pela Bíblia, portanto aboli-
la seria ir contra a ordem natural, afirmam que não houve sequer uma nação, civilização, reino ou sociedade
que não tivesse a escravidão entranhada em sua constituição, isso deixa claro que é uma instituição intrínseca
a natureza humana. Encontrarmos outra prova ao olharmos o documento mais importante do ocidente: a
Bíblia. Tanto no antigo, quanto no novo testamento a escravidão era permitida e legislada, e em nenhum
momento Cristo a condena.
Seguindo essa linha de pensamento cada mal, cada crime, cada vicio podem ser justificados, não é
porque algo é velho que é bom. Em toda nação, civilização, reino ou sociedade houve corrupção, de todo
tipo, e isso não as torna virtudes. A justificativa da escravidão, seguindo essa lógica louca, deve vir de outro
lugar, não de sua vergonhosa idade. Só resta se basear na Bíblia, mas isso leva a mais embaraço para a
horrenda instituição, pois no contexto israelita o escravo era como um filho, passível de herdar terras se seu
dono não tivesse herdeiros. O escravo tinha direito a família, entrava nessa condição por vontade própria ou
por conquista em batalhas. O tráfico, o sequestro de homens e mulheres na costa da África era punível de
morte segundo a lei de Moises. O silencio de Cristo sobre esse assunto é simples de se resolver: se seguissem
seus ensinamentos, se o sermão da montanha fosse de fato colocado em prática, se a ética do Reino de Cristo
fosse implantada não haveria espaço, sequer na mente dos homens, para a escravidão.
Outros ainda ousam dizer que ao defenderem a escravidão, defendem os direitos do senhor de
escravos, afirmando que o governo não poderia interferir na propriedade dos senhores de terra, que isso seria
uma violação a seus direitos de liberdade, uma vez comprado o senhor não poderia perder um bem que ele
mesmo conquistou.
Mas tal lógica louca não sobrevive à realidade: os direitos de um indivíduo vão até o limite dos
direitos de outro indivíduo. Não posso usar meu direito à liberdade de expressão pichando a casa do meu
vizinho, roubando assim o direito de propriedade dele. Não posso usar meu direito de ir e vir para tirar a vida
de uma pessoa. Os direitos dos senhores de terra deviam ir até o limite dos direitos dos escravos, e esse
limite foi ultrapassado, inúmeras vezes.
Pelas diversas provas apresentadas e por outras infinitas mais a escravidão deveria ter sido abolida
em 1888 por causa do Direito a propriedade e pelo bem da Religião e da alma do servo e do senhor.
Todos concordamos que a escravidão é moralmente errada, mas precisamos conhecer a profundidade
dessa corrupção para que ela permaneça abolida, até o fim da eternidade.

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