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QUE COISA MAIS ESDRÚXULA!

— contração das proparoxítonas em paroxítonas —

N a noite seguinte, já todas reunidas, Irene anuncia o tema do


serão:
— Um traço característico do português não-padrão é que nele
as palavras proparoxítonas praticamente não existem. E é disso que
vamos falar hoje. As proparoxítonas, como vocês sabem muito bem,
são aquelas palavras cuja sílaba tônica é a antepenúltima. Quem me
dá exemplos?
— FÁBRICA, ELÉTRICO, MÁQUINA... — diz Sílvia.
— RIDÍCULO, ESTÚPIDO, HIPÓCRITA... — completa Emília. — Parece
que o português não-padrão tem “preguiça” de pronunciar estas
palavras “sofisticadas”, não é? Mas eu já aprendi que a explicação
pela “preguiça” é ridícula, estúpida e hipócrita...
— Isso mesmo, Emília — diz Irene —, nós, que estamos
tentando descobrir a lógica de funcionamento do PNP, não podemos
aceitar essa explicação. Vamos tentar outra?
Irene distribui mais uma de suas famosas folhas impressas,
dizendo:
— Para começar, vamos observar estas palavras que no
português padrão são proparoxítonas e ver como elas são
pronunciadas no PNP.

Quadro 16
PORTUGUÊS PADRÃO PORTUGUÊS NÃO-PADRÃO
árvore > arvre
córrego > corgo
cubículo > cuvico
fósforo > fósfro
glândula > landra
música > musga
pássaro > passo
sábado > sabo
tábua > tauba
víbora > briba

[pág. 107]
— Quanta transformação, tia Irene — admira-se Vera.
— É mesmo — concorda Sílvia. — Algumas palavras ficaram
bastante diferentes. Se o quadro não mostrasse a forma da língua
padrão, eu teria dificuldade em saber de onde a forma não-padrão
tinha saído...
— Você tem razão, Sílvia — diz Irene. — Fica mesmo difícil
reconhecer que briba provém de VÍBORA e que landra provém de
GLÂNDULA. E o mais interessante é que estas palavras sofreram
também uma transformação de significado. Briba, em algumas
regiões do Nordeste, é o nome dado à lagartixa caseira. E landra é
um termo empregado para designar as amígdalas inflamadas...
— Que curioso... — deixa escapar Emília.
— Outra palavra que poderia ter entrado neste quadro é tique,
que é a forma não-padrão de TÍQUETE, do inglês TICKET, que já vi
escrito em muito restaurante bom: “Aceitamos todos os tiques” —
continua Irene. — A mesma coisa acontece em alguns hotéis, onde os
apartamentos STANDARD, palavra inglesa que significa “padrão”,
viraram apartamentos estande.
— O que foi que aconteceu, afinal? — pergunta Sílvia. — Por
que estas palavras ficaram assim?
— O que aconteceu foi que estas palavras sofreram uma
contração — responde Irene. — Sofreram algum tipo de
“encolhimento” para caberem no ritmo natural do PNP, que é um
ritmo paroxítono, no qual a sílaba tônica é sempre a penúltima.
O que nos diz a história da língua

— E esse ritmo paroxítono é exclusivo do português não-


padrão? — pergunta Emília.
— Parece que não — responde Irene. — Um breve exame da
história da língua portuguesa pode, mais uma vez, esclarecer muita
coisa. Logo abaixo do primeiro quadro há outro com algumas
palavras muito conhecidas, usadas por todos os falantes cultos de
português. Observem agora quais são as palavras latinas que deram
origem às formas atuais do português. [pág. 108]

Quadro 17
PORTUGUÊS PADRÃO LATIM PORTUGUÊS PADRÃO LATIM

ASNO < ÁSINU- MILAGRE < MIRÁCULU-


BRAVO < BÁRBARU- OBRA < ÓPERA-
CALDO < CÁLIDU- OMBRO < ÚMERU-
COELHO < COÁGULU- PALAVRA < PARÁBOLA-
CONTO < CUNÍCULU- PERIGO < PERÍCULU-
DEDO < CÓMPUTU- POBRE < PÁUPERE-
ESPELHO < DÍGITU- POVO < PÓPULU-
FALA < SPÉCULU- QUARESMA < QUADRAGÉSIMA-
FRIO < FÁBULA- REGRA < RÉGULA-
GENRO < FRÍGIDU- SOGRA < SÓCERA-
ILHA < GÉNERU- TELHA < TÉGULA-
HOMEM < ÍNSULA- TREVA < TÉNEBRA-
LETRA < HÓMINE- VELHO < VÉTULU-
MALHA < LÍTTERA- VERDE < VÍRIDE-

— Que lista enorme! — espanta-se Vera.


— Mas ela poderia ser ainda maior — explica Irene —, pois é
imensa a quantidade de palavras proparoxítonas latinas que em
português se transformaram em paroxítonas. Algumas sofreram
transformações tão radicais quanto aquelas que vimos no primeiro
quadro de VÍBORA > briba e de GLÂNDULA > landra. É difícil reconhecer
em COELHO o latim CUNÍCULU-, OU em TREVA O latim TÉNEBRA-.

— Aqui também houve transformação de significado, Irene? —


pergunta Sílvia.
— Certamente que houve. Além disso, às vezes de uma única
palavra latina surgiram várias outras em português. O latim MÁCULA-

, por exemplo, além de MALHA também deu em português MÁGOA,

MANCHA e MÁCULA, palavra de uso mais literário. Vejam quantas


mudanças na forma e no significado... A contração também atingiu
alguns nomes próprios, como os das conhecidas cidades portuguesas
de BRAGA (em latim BRÁCARA) e COIMBRA (em latim CONÍMBRIGA), ou os
nomes de pessoas CARLOS (em latim CÁROLUS) e ESTÊVÃO (em latim
STÉPHANU-). [pág. 109]
— Que diria um cidadão romano, falante do latim clássico, se
fosse trazido de volta à vida nos dias de hoje e nos ouvisse falar? —
imagina Vera. — Talvez pensasse: “Que povo mais preguiçoso!”
— E estaria pensando errado — diz Irene — porque a preguiça
nada tem a ver com o caso. Pelo contrário, o que aconteceu foi uma
aceleração no ritmo da fala, a língua ficou mais dinâmica, mais
rápida, e este fenômeno aconteceu não só em português, mas
também em outras línguas da família, como o espanhol e o francês.
Alguns estudiosos nos informam que já no latim havia esta tendência
e era comum se dizer períclum (“perigo”) em vez de perículum.
— E no que deu essa aceleração? — pergunta Sílvia.
— Com a aceleração do ritmo da fala, as vogais que se
encontravam depois da sílaba tônica foram sendo pronunciadas cada
vez mais fracas até desaparecerem por completo. Depois, outras
transformações aconteceram e aquelas palavras ganharam o aspecto
que têm hoje no português-padrão...
— Coitadinhas das vogais postônicas — diz Emília em tom
infantil. — Foram engolidas pelo bicho-papão da sílaba tônica...
— Foram mesmo — confirma Irene sorrindo. — A própria
norma-padrão reconhece este fenômeno. Para designar as tetas da
vaca, os dicionários admitem a forma ÚBERE, proparoxítona, e
também a forma UBRE, paroxítona. E embora alguns gramáticos mal-
humorados façam cara feia, não há como impedir que o povo chame
de azaléia a linda flor que eles teimam em nos obrigar a chamar de
azálea...
— Azálea jacta est — diz Emília, e todas caem na gargalhada.

Vocabulário erudito e vocabulário popular

Passado o riso, Vera pergunta:


— Mas apesar dessa tendência, nós temos ainda muitas
palavras proparoxítonas em português, tia. Por quê?
— De fato, temos, Verinha. Mas se você reparar bem, são
palavras, em sua maioria, “sofisticadas”, como disse a Emília.
Termos de uso literário, ou termos técnicos e científicos, formados
diretamente com base no latim ou no grego: TÉPIDO, TÚGIDO, ÍNCLITO,

ÁCIDO, TÉCNICO, PÚTRIDO, ÂMAGO, TÓRRIDO, EFÊMERO, ÁVIDO, IMPÁDO,

[pág. 110] LÁBARO, LÚGUBRE, FÚNEBRE, FÍSICO, PSÍQUICO, MÍSTICO...


— É mesmo, tia, não são exatamente palavras de uso
corriqueiro, de uso popular.
— Elas constituem aquilo que é chamado o vocabulário erudito
da língua portuguesa — explica Irene. — É por isso que algumas
vezes uma mesma palavra latina, como já vimos, deu origem em
português a duas palavras novas: uma, mais antiga, paroxítona, de
uso popular, e outra, de formação mais recente, proparoxítona, de
uso erudito.
— Exemplos, por favor — pede Emília.
— No segundo quadro, Emília, veja o latim COÁGULU- — indica
Irene. — Na língua popular ele deu origem a COALHO, e na língua
erudita a COÁGULO, termo técnico da medicina. É por isso que o leite
COALHA, mas o sangue COAGULA.

— Por que meus professores de latim nunca me ensinaram as


coisas desse jeito? — lamenta Vera. — Ia ser tão melhor do que ficar
decorando aquelas listas de declinações insuportáveis...
— Não é mesmo? — concorda Irene.
— E como fica a divisão do bolo da língua entre as paroxítonas
e as proparoxítonas no português de hoje? — pergunta Sílvia. —
— Muito desigual — responde Irene. — As proparoxítonas
perdem de longe... As paroxítonas constituem a esmagadora e
retumbante maioria das palavras. Só para você ter uma idéia, eu
tenho aqui uns números anotados... — ela consulta uma folha de
papel. — Camões, nosso velho conhecido, no seu maravilhoso poema
épico Os Lusíadas, que é a obra-prima da língua portuguesa clássica,
só usou 267 palavras proparoxítonas, o que equivale a apenas 5% de
todo o vocabulário utilizado no poema.
— Que mixo! — comenta Emília.
— Os Lusíadas têm 8.816 versos — continua Irene. — Destes,
8.325 (94%!) têm rima paroxítona, 482 têm rima oxítona e apenas
nove versos apresentam rima proparoxítona...
— Pobrezinhos, tão solitários... — lamenta Emília.
— E vejam que Os Lusíadas é uma obra extremamente
requintada, com um vocabulário riquíssimo, que inclui lindos
proparoxítonos como áfrico, altíssono, ígneo, íncola, túmido,
undívago... Mas eles naufragam no enorme oceano de paroxítonos...
[pág. 111]
— E como seria num texto mais simples? — imagina Sílvia.
— Faça você mesma o teste — sugere Irene. — Escolha uma
notícia de jornal ou de revista, assinale as palavras proparoxítonas
presentes no texto e compare o número delas com o das palavras
paroxítonas. Os números certamente vão apresentar uma diferença
ainda maior do que n’Os Lusíadas.
Mais duas palavrinhas

— Quer dizer que as proparoxítonas constituem mesmo um


“corpo estranho” dentro da língua portuguesa? — conclui Vera.
— De certa forma, sim — responde Irene. — E podemos dar
duas provas disso. A primeira, a questão do acento gráfico. Quando
aprendemos a usar os acentos gráficos somos apresentadas a uma
regra que diz: “Todas as palavras proparoxítonas são acentuadas”.
Por quê?
— Porque, justamente, a tendência natural, o ritmo próprio do
português é o paroxítono, acertei? — anima-se Emília.
— Acertou — confirma Irene. — Vejam só, uma palavra escrita
simplesmente DUVIDA não apresenta problemas para um falante de
português alfabetizado, pois ele naturalmente a lerá acentuando, na
fala, a sílaba -VI-. Mas para que ele acentue na fala a sílaba DU-, será
preciso que ela venha enfeitada com um acento gráfico — DÚVIDA —,
pois esta acentuação não corresponde à tendência natural do
português. É por isso também que as paroxítonas só são acentuadas
graficamente nuns casos bem específicos, e a maioria delas não
recebe acento gráfico.
— E qual a segunda prova da “esquisitice” das proparoxítonas?
— quer saber Sílvia.
— A outra coisa que nos revela essa “esquisitice” da
acentuação na antepenúltima sílaba é o termo que também se usa
para designar as palavras proparoxítonas. Quem sabe?
Emília, Vera e Sílvia se entreolham. Ninguém sabe.
— Meninas, que vergonha! — diz Irene. — Nenhuma de vocês
ouviu falar de palavras esdrúxulas?
— Esdrúxulas? — repete Vera. — Conheço essa palavra, mas
não sabia que era usada para designar as palavras proparoxítonas.
[pág. 112]
— Pois é, sim — diz Irene. — Mas, vejam vocês, este adjetivo,
além de designar as proparoxítonas, também passou a significar, na
linguagem familiar, “esquisito, estranho, fora do comum”, justamente
por ser uma palavra esdrúxula!
— Vivendo e aprendendo... — comenta Emília, anotando em
seu bloquinho.
— Como vimos mais uma vez — conclui Irene —, aquilo que
parece “errado” ou “estranho” no português não-padrão é, na
verdade, resultado da ação de tendências muito antigas na língua,
que são refreadas, reprimidas pela educação formal, pelas regras da
linguagem literária, oficial, escrita, mas que encontram livre curso na
boca do povo. [pág. 113]

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