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Com isso chegamos ao terceiro possível espectro que estaria ameaçando a língua
portuguesa: a ‘corrupção’ pela introdução de elementos da linguagem popular. Só que o termo
corrupção já vem carregado de conotações negativas, e pressupõe que o ideal é a língua ficar
como está, ou como estava há 100 anos, e que alguém (os professores, os gramáticos, a
Academia, o Ministério) tem o direito de dizer como a língua deve ser. Uma atitude que não
se precisa adotar.
Uma coisa se pode responder de cara: apesar dos professores, dos gramáticos, da
Academia e do Ministério, a língua portuguesa do Brasil, tanto falada quanto escrita, vem
incorporando elementos chamados de ‘populares’ (ou com outros nomes menos respeitosos)
em boa quantidade. Alguns gostam, outros não, o que não faz a menor diferença para a língua,
que, como tudo o mais, continua mudando com o tempo.
Vamos ver alguns exemplos, tirados da língua escrita, presumivelmente imutável.
Quando eu era criança, aí pelos anos 50, me apaixonei por uma coleção de livros denominada
O tesouro da juventude, da qual talvez alguns leitores se lembrem. A coleção tinha de tudo:
biologia, poesia, história, passatempos, geografia e assim por diante. Eu gostei tanto que
guardei a coleção para meus futuros filhos.
Os filhos vieram, cresceram e aprenderam a ler (até aprenderam a gostar de ler).
Quando achei oportuno, passei a eles os 18 volumes do Tesouro para que se apaixonassem.
Não se apaixonaram. Tiveram tanta dificuldade em entender o texto, escrito em uma
linguagem para eles arcaica, que acabaram desistindo da leitura, apesar do interesse dos
assuntos. Trinta e poucos anos de intervalo foram o bastante para que meus meninos
achassem a linguagem difícil, pedante, antiquada.
Não sei se isso é bom ou mau, mas é um fato. A língua escrita (que dirá a falada) está
mudando a cada momento: novas estruturas são incorporadas, velhas estruturas são
descartadas e o vocabulário vai se renovando. Para ficar só na gramática: os leitores
certamente conhecem a construção mesoclítica do tipo ajudar-me-á, dir-se-ia. Essa construção
era normal na linguagem escrita (não na falada!) em 1950, mas hoje em dia caiu no desuso. O
manual geral da redação do jornal Folha de S. Paulo a proíbe a seus redatores (p. 128):
“pronome no meio do verbo — mesóclise — não é mais empregado no jornal.”
Outra forma que raramente se encontra hoje é o mais-que-perfeito simples (‘fizera’),
substituído em toda parte por tinha feito. O pronome vós, com suas formas verbais, está
extinto, e tu começa a desaparecer de seu último reduto, a poesia. Os pronomes aglutinados
do tipo ‘lho, ma’ e outros são coisas de um passado remoto. O verbo ter como sinônimo (e
substituto) de haver é absoluto na língua falada, e já é comum na literatura (a partir,
provavelmente, de Carlos Drummond de Andrade, que nos anos 20 ousou escrever “no meio
do caminho tinha uma pedra”). E se alguém usar, mesmo escrevendo, vir como futuro do
subjuntivo do verbo ver (se você me vir, chame-me) corre o risco de não ser entendido.
Isso falando da linguagem escrita. Na fala, as diferenças são bem maiores,
principalmente se a comparamos com a escrita. Tomemos uma frase de todo dia, como:
“Esses documento, eu tou entregando eles procê estudar”, Essa frase, assim escrita, choca.
Mas experimente pronunciá-la, e vai descobrir que é assim que você fala — você e todo
mundo. Ela contém uma boa quantidade de traços gramaticais ‘condenados’: a presença do
tópico ‘esses documento’, sem função (tradicional) na oração; a forma ‘cê’, redução de você,
contraída com a preposição ‘pra’ (não ‘para’); a forma do verbo auxiliar, ‘tou’ (não ‘estou’); o
uso de ‘eles’ como objeto; e a falta da marca de plural em ‘documento’. Se o falante for um
bom mineiro, ainda vai pronunciar ‘entregano’ em vez de ‘entregando’.
Erros, horrores, a morte da língua? Não, apenas fatos. Para alguns, fatos dolorosos.
Para outros, simplesmente a maneira como fala o nosso povo — não as ‘pessoas incultas’, ou
‘pouco escolarizadas’, mas todo mundo: você, seus amigos e eu. Ou será que você, em uma
comunicação oral informal, diz coisas como: “Estou-lhe entregando estes documentos para
que você os estude?”
A língua hoje, como sempre, dá muito pouca atenção a seus sistematizadores. Vive,
funciona e evolui à sua maneira, como todas as outras instituições sociais. Não falamos nem
escrevemos hoje como em 1950, como não dançamos mais o tuíste, e raras vezes usamos
gravata ou luvas de pelica quando saímos para fazer compras.
Vou deixar clara uma coisa: não estou defendendo que se escreva da mesma maneira
que se fala. Aliás, este ensaio não contém propostas dessa natureza, mas apenas observação de
fatos, e um desses fatos é que entre nós as regras gramaticais mudam (em parte) conforme se
esteja escrevendo ou falando. Hoje, como sempre, a linguagem da fala não é a mesma da
escrita, mas ambas evoluem e, nesse evoluir, se influenciam mutuamente. Assim como certas
expressões próprias da escrita penetram em nossa fala cotidiana (como quando dizemos
“prazer em conhecê-la”), muitas formas provenientes da fala informal acabam sendo aceitas
na escrita. Isso é também um fato, e não está em absoluto sob o controle de nenhuma pessoa
ou instituição.
No entanto, isso não quer dizer que a língua esteja em perigo. Está só mudando,
como sempre mudou, senão ainda estaríamos falando latim. Achar que a mudança da língua é
um perigo é como achar que o bebê está ‘em perigo’ de crescer.
Essa evolução da língua, em suas duas variedades principais, vem desde sempre, e
tudo indica que vai continuar. Pelo que sabemos do passado, e pelo que esperamos do futuro,
no Brasil o povo vai continuar usando a mesma língua que hoje chamamos simplesmente
‘português’. Essa língua vai mudar, como já mudou muito no passado, e pode ser que dentro
de algum tempo se comece a chamá-la de ‘brasileiro’, considerando-a outra língua, diferente
da de Portugal.
Talvez seja uma pena a gente se afastar assim de nossas raízes, mas, afinal de contas,
é o mesmo que os portugueses estão fazendo. Em Portugal, hoje, não se pronuncia um bom
número de vogais, como em ‘setembro’, pronunciado ‘s’tembro’, ou ‘capelinha’, pronunciado
‘cap’linha’. Isso é uma inovação lusitana, porque no século 16, a julgar pelo testemunho dos
gramáticos da época e pela análise da métrica, as vogais pretônicas eram pronunciadas
claramente, como se faz hoje no Brasil. Ou seja, nesse detalhe como em muitos outros, não
apenas o Brasil se afasta de Portugal, mas Portugal também se afasta do Brasil. É o que
fatalmente acontece quando duas comunidades lingüísticas se separam política, cultural e
geograficamente. Foi o que aconteceu com o latim popular, que se transformou nas atuais
línguas românicas.
Se alguém, de posse de uma máquina do tempo, se transferir para, digamos, o século
25 (aí por agosto de 2401), vai certamente notar muita diferença entre a língua falada no
Brasil e a que falamos hoje. Acho que vai ser possível entender a maior parte, mas muita coisa
vai ser surpresa. Uma dessas surpresas pode ser a informação de que portugueses e brasileiros
já não se entendem mutuamente, e que se você quiser ir morar em Portugal deve começar
fazendo um curso de português em alguma escola (ou, sei lá, tomar uma injeção de português,
quem sabe?).
De uma coisa não podemos escapar: as línguas evoluem, apesar da oposição, dos
esforços e da cara fechada dos gramáticos. Não se trata de um ‘perigo’, mas de um processo
tão natural quanto o crescimento das crianças, a rotação da Terra, o ciclo de vida e a morte
dos seres vivos. Perigo, se há, está nesse complexo de inferioridade lingüística que nos
transmitem os autonomeados conhecedores e protetores da língua — quando nos proíbem de
chamar nossa própria mãe de ‘progenitora’ (porque eles acham que teria que ser ‘genitora’),
ou de dizer ‘a nível de’ (expressão que para mim é antipática, mas que todo mundo vive
usando e é, portanto, parte da língua).
O perigo existe, sim, quando nos dizem que a língua usada pelos cento e muitos
milhões de brasileiros não merece respeito, e que apenas os especialistas é que detêm o poder
de ‘falar certo’. Uma atitude mais construtiva é reconhecer os fatos, aceitar nossa língua como
ela é e desfrutar dela em toda a sua riqueza, flexibilidade, expressividade e malícia.