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APRESENTAÇÃO.................................................................................................................................. 7
AUTONOMIA CIENTÍFICA ................................................................................................................... 8
AUTORREGULAÇÃO E ESPECIFICIDADE DO ESPORTE ................................................................. 11
TRANSNACIONALISMO ESPORTIVO ............................................................................................... 23
MODELOS EUROPEU E NORTE-AMERICANO DE GOVERNANÇA ESPORTIVA ........................... 30
APRESENTAÇÃO................................................................................................................................ 35
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO ESPORTE ....................................................................................... 36
Princípios constitucionais do esporte ................................................................................... 39
LEGISLAÇÃO DESPORTIVA............................................................................................................... 43
Esporte formal e não formal .................................................................................................. 44
Princípios gerais do esporte ................................................................................................... 45
Princípios setoriais do esporte profissional ......................................................................... 48
Manifestações do esporte brasileiro..................................................................................... 51
Normas setoriais do esporte brasileiro ................................................................................ 52
GOVERNANÇA DESPORTIVA BRASILEIRA ...................................................................................... 53
APRESENTAÇÃO................................................................................................................................ 59
DIREITO SOCIETÁRIO DESPORTIVO ............................................................................................... 60
Organização societária de entidades de prática desportiva .............................................. 61
Estruturação dos órgãos estatutários da entidade ....................................................... 65
Mecanismos de transparência ......................................................................................... 66
Sistemas de controle interno ............................................................................................ 66
Organização societária de ligas e entidades de administração desportiva ..................... 69
ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS .......................................................................................................... 69
DIREITO DO TRABALHO DESPORTIVO ........................................................................................... 75
APRESENTAÇÃO................................................................................................................................ 83
JUSTIÇA DESPORTIVA E COMBATE AO DOPING ............................................................................ 84
Princípios do processo disciplinar desportivo ..................................................................... 88
Organização da Justiça Desportiva brasileira....................................................................... 91
Processo desportivo ................................................................................................................ 91
Infrações em espécie............................................................................................................... 92
Combate ao doping .................................................................................................................. 92
INTERVENÇÃO ESTATAL NO ESPORTE ........................................................................................... 94
Segmentação legal do esporte no Brasil .............................................................................. 96
Formas de atuação estatal na área esportiva ...................................................................... 99
Subsidiariedade no esporte ................................................................................................ 104
Apresentação
O esporte é parte da vida social há milênios, identificando-se, em todas as civilizações antigas,
exemplos de práticas atléticas destinadas à congregação comunitária e ao preparo físico dos homens
para os desafios da atividade agrícola e especialmente para o seu empenho nos conflitos armados
que pontuaram desde sempre a história humana.
O ápice do esporte na Antiguidade certamente se deu na Grécia, civilização que nos legou os
Jogos Olímpicos, originalmente travados em honra dos deuses cultuados pelo povo helênico e
resgatados muitos séculos depois, para se tornarem, hoje, uma das maiores plataformas de
entretenimento e congraçamento global.
A dimensão alcançada pelas recentes edições dos Jogos Olímpicos, assim como o destaque
planetário desfrutado pelo futebol – a modalidade esportiva mais popular em todo o mundo – são
dois exemplos da importância socioeconômica do esporte e, nesse contexto, a incidência do Direito
sobre as suas relações é incontornável e cada vez mais aguda.
Este módulo buscará introduzir o leitor aos fundamentos do que pode ser caracterizado como
Direito Desportivo, iniciando pela própria controvérsia existente na doutrina especializada a
respeito da sua caracterização como disciplina jurídica autônoma. Feita essa breve digressão, será
apresentado o que efetivamente torna as relações entre Direito e esporte verdadeiramente singulares:
a possibilidade de autorregulação, as especificidades que delimitam certo regime jurídico específico
e o seu caráter tendente ao transnacionalismo.
Autonomia científica
Um ponto inicial do estudo do chamado Direito Desportivo é justamente a sua própria
nomenclatura, ou seja, a cogitação a respeito da própria existência do Direito Desportivo como um
ramo autônomo da ciência jurídica.
Tal investigação deve iniciar-se na definição básica do que seria uma disciplina autônoma no
meio jurídico. Marcos Juruena Villela Souto, fazendo referência a Celso Antônio Bandeira de
Mello, afirma que “há uma disciplina autônoma quando ela corresponde a um conjunto
sistematizado de princípios e normas que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais
ramificações do Direito”. 1
O saudoso professor fazia tal referência justamente para identificar, há mais de uma década,
o equívoco incorrido em se tentar distinguir o então chamado Direito Regulatório como um ramo
jurídico autônomo, distinto do Direito Administrativo que lhe dava – e ainda lhe dá – berço e
fundamento. Nesse sentido, cabe citar passagem importante da referida obra:
O paralelo feito com o ramo do Direito Público é útil para traduzir a perplexidade que ainda
paira sobre a doutrina que se debruça sobre o estudo das relações entre o Direito e o esporte,
havendo, entre o ainda restrito número de autores que se dedicam a esta área, quem defenda que o
Direito Desportivo seria tão somente uma designação para um feixe de relações jurídicas geradas
pelas atividades atléticas, sujeitando-se desportistas, dirigentes e entidades dedicadas à
1
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulador. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 6, 7.
2
Idem. p. 21, 22.
8
administração e promoção do esporte a normas de diversas naturezas, enquadrando-se cada situação
a princípios e regras do Direito do Trabalho, Comercial, Administrativo ou Civil, conforme a ênfase
que o caso concreto demandar.
Neste sentido é a afirmação de importantes autores norte-americanos:
Como se vê, mesmo autores de uma obra denominada Sports Law (Direito Desportivo)
questionam a autonomia do ramo objeto dos seus estudos, apontando a sujeição das relações
socioeconômicas próprias das atividades esportivas a diferentes princípios, próprios de disciplinas
específicas do Direito em geral.
Essa perplexidade quanto à posição e à própria existência autônoma do Direito Desportivo se
reflete na feliz expressão de Martinho Neves Miranda, quando identifica a disciplina como “um
direito em verdadeira competição”. 4 De fato, o autor carioca cria uma precisa síntese para demonstrar
como a regulação propriamente desportiva, emanada das entidades de administração do esporte,
submete-se a diretrizes próprias do Direito Privado; enquanto a crescente relevância socioeconômica
de tal atividade acaba atraindo a intervenção do Estado e, por conseguinte, o influxo de normas de
Direito Público no conjunto normativo que rege o funcionamento de tal indústria. 5
Talvez seja essa singular duplicidade de regimes simultaneamente incidentes sobre a mesma
atividade um primeiro sinal de que, se não é uma disciplina autônoma plenamente consolidada no
quadro da ciência jurídica, o Direito Desportivo está desenvolvendo-se solidamente nesse sentido,
como bem assinala Jack Anderson:
3
COZZILLIO, Michael J. et al. Sports law: cases and materials. Durham: Carolina Academic Press, 2007, p. 5. Tradução livre.
4
MIRANDA, Martinho Neves. O direito no desporto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 129.
5
Idem. p. 129-136.
9
Em resumo, embora este livro use o termo descritivo direito desportivo,
isto não significa que o direito desportivo seja, ao menos ainda, digno de
ser descrito como um distinto e autônomo ramo do Direito. Esta pode ser
uma abordagem relativamente conservadora, mas pode se sustentar no
argumento de que a afirmação de um direito desportivo puro não estará
consolidada até o momento em que tribunais ou o legislativo ajustem
princípios jurídicos à natureza esportiva do tema tratado. Todavia, as
indicações são de que o direito desportivo está se movendo rapidamente
em tal direção. 6
Talvez três dos aspectos tratados neste módulo possam ser os traços distintos desse novo ramo
da ciência jurídica: a autorregulação jurídica do esporte; a especificidade das suas relações,
demandando a modulação de regras gerais às singularidades das disputas esportivas e das relações
estabelecidas entre atletas, entidades e público em geral; e, finalmente, a sua vocação transnacional,
que faz o esporte ser sempre indicado como um dos teatros em que se constitui uma ordem jurídica
além do Estado.7
Seja à luz de uma abordagem mais conservadora, seja avançando na autoafirmação de uma
nova disciplina jurídica, verifica-se que o Direito Desportivo se constitui em objeto cada vez mais
relevante de estudo, como bem resume Mark James:
“Direito Desportivo” tenta prover uma explicação distinta das razões pelas
quais o Esporte, como um grupo de atividades relacionadas entre si, é, e
deveria continuar a ser, tratado de forma diferente pelo Direito; é o
desenvolvimento de uma teoria que junta precedentes baseados em
distintos princípios jurídicos num objeto de estudo singular e coerente. 9
6
ANDERSON, Jack. Modern sports law. Oxford: Hart Publishing, 2010, p. 24. Tradução livre.
7
Expressão emprestada da obra de referência no tema do chamado Transadministrativismo: CASSESE, Sabino. Oltre lo
stato. Roma/Bari: Laterza, 2006.
8
Ou Direito no Desporto, como sugerido pelo próprio título da obra de Martinho Neves Miranda, op. cit.
9
JAMES, Mark. Sports law. Hampshire: Palgrave Macmillan, 2013, p. 21. Tradução livre.
10
Autorregulação e especificidade do esporte
A autorregulação esportiva é, como induz a própria expressão, a característica que o esporte tem
de editar, de forma autônoma, as normas que regem o funcionamento das suas instituições e atividades.
Tal capacidade tem relação direta com a própria natureza das atividades atléticas: as diversas
modalidades esportivas surgem, normalmente, das interações sociais e das necessidades de
desenvolvimento físico identificadas em determinada comunidade. Não à toa, são radicalmente
distintas as formas pelas quais as disputas físicas ou demonstrações de habilidade individual, comuns
a toda e qualquer sociedade, expressam-se de acordo com a localização geográfica.
Da ritualística das artes marciais orientais, passando pelas demonstrações de força de
tradicionais competições gaélicas e chegando à quase mística interação com o ambiente marinho
percebida em tradicionais esportes polinésios, constata-se que o esporte tem, na sua origem, a
consolidação de manifestações geradas no seio de cada comunidade e de tradições cultivadas, muitas
vezes, ao longo de séculos.
A noção de que o esporte é um bem comunitário, desenvolvido à margem da intervenção
estatal e constituído como um meio de integração dos integrantes de determinado grupo social, cria
um ambiente propício ao seu regramento autônomo, uma vez que, tratando-se de atividade gerada
e desenvolvida em tais condições, cujos “guardiões” são os seus próprios praticantes, nada mais
natural que a deferência do aparato estatal em relação à ascendência que os “mestres” daquela
atividade exercem sobre os seus praticantes.
A apreciação de tal fenômeno pode ser feita no esporte nacional, o futebol, assim analisado
por Roberto da Matta:
Sob o ponto de vista jurídico, o fenômeno da autonomia desportiva pode mais uma vez ser
objeto de referência à doutrina da Martinho Neves Miranda:
10
MATTA, Roberto da. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 136.
11
A liberdade de prática coletiva do desporto opera-se quando os indivíduos
se agrupam para exercerem a atividade de acordo com os critérios
estabelecidos pelos componentes do grupo.
Nesse sentido, a liberdade em tese desfrutada por tais entidades, associada à enorme
capacidade de adesão gerada pela prática do esporte, gerou um aparato institucional desenvolvido
em paralelo aos organismos estatais, criando, desenvolvendo e protegendo regras que permitissem
a disputa igualitária de que trata Roberto da Matta no excerto transcrito acima.
Com efeito, muito da capacidade de autorregulação do esporte decorre, mais do que da
necessidade, da vontade dos diversos grupos sociais de medir as suas capacidades em disputas com
representantes de outras comunidades. Para tanto, as condições de tais embates deveriam ser
uniformemente estabelecidas para todos os seus praticantes, independentemente da sua origem.
A adesão voluntária a um conjunto uniforme de regras e a renúncia, igualmente voluntária,
ao poder de alterar tais regras em favor de uma entidade comum, autônoma em relação aos
parâmetros de institucionalização de determinado grupo social, consolidaram a autonomia
desportiva consagrada internacionalmente.
Não à toa, tal preceito é disposição fundamental, por exemplo, da Carta Olímpica, editada
pelo Comitê Olímpico Internacional (COI):
11
Op. cit. p. 93.
12
Disponível em: <https://stillmed.olympic.org/media/Document%20Library/OlympicOrg/General/EN-Olympic-
Charter.pdf#_ga=1.214614551.1205387379.1489327155>. Acesso em: 12 mar. 2017.
12
A questão da autorregulação do esporte encontra especial ressonância na Europa, onde o contínuo
debate entre autoridades da União Europeia e dirigentes esportivos – lembre-se de que grande parte das
federações internacionais de diversas modalidades desportivas tem sede no Velho Continente – traduz
perfeitamente as tensões derivadas, de um lado, da relevância do esporte para aquele bloco continental,
e, de outro, da chamada “especificidade” do esporte invocada pelos cartolas.13
A relevância do esporte foi oficialmente sublinhada pela Declaração de Amsterdã, em outubro
de 1997, como citado por Brian Kennelly e Tom Richards:
13
Tratando-se de um curso de Direito Desportivo, deve-se atentar também para o jargão específico que nasce no público
em geral. A expressão cartola é, no Brasil, uma designação quase sempre pejorativa dos dirigentes esportivos, muito
provavelmente em um exercício de metonímia, em que a pessoa é substituída por peça do vestuário, designando a
origem aristocrática habitualmente atribuída aos representantes das entidades de prática – clubes e associações – e de
administração desportiva – federações e confederações.
14
KENNELLY, Brian; RICHARDS, Tom. European union sports policy. LEWIS, Adam Q. C.; TAYLOR, Jonathan. Sport: law and
practice. West Sussex: Bloosmbury, 2014, p. 1099. Tradução livre.
15
GRAY, Andy. The sport regulatory regime and sports rights. Londres: Informa Professional Academy, 2014, p. 36.
13
Adicionalmente, é curioso perceber a proliferação de precedentes aplicando o Direito
Concorrencial europeu a litígios relacionados ao esporte e, ao mesmo tempo, perceber que um
documento oficial da União Europeia, o chamado White Paper on Sport, de 2007, 16 reconhece
expressamente um monopólio para cada entidade nacional de administração desportiva, na medida
em que declara a existência de um “princípio de uma só federação por esporte”. 17
Essas contradições recorrentes, de ambos os lados, devem-se certamente ao aspecto dúplice
apresentado pelo esporte, que é, ao mesmo tempo, uma atividade socialmente relevante e um
conjunto expressivo de empreendimentos econômicos. Compreender os limites entre essas “duas
faces” do esporte poderá permitir a discussão em termos mais objetivos, no que tange aos
fundamentos da necessária intervenção estatal e ao espaço de autorregulação desportiva.
Quando da edição do Tratado de Amsterdã, a “especificidade do esporte” já vinha sendo
debatida por décadas. Com efeito, o supramencionado conceito foi pela primeira vez objeto de
deliberação do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) em meados da década de 1970, em
dois casos paradigmáticos.
Um deles declarou expressamente que o esporte não era uma preocupação dos signatários do
Tratado de Roma, como se lê no parecer do Advogado-Geral Trabucchi no Caso C-13/76, Donà
vs. Mantero: 18
16
COM (2007) 391, 11 de julho 2007. Tradução livre.
17
KENNELY, Brian; RICHARDS, Tom. op. cit. p. 1094. Tradução livre.
18
No caso em questão, a discussão girava em torno de regra da Federação Italiana de Futebol, que só permitia jogadores
filiados à mesma entidade participarem de jogos profissionais ou semiprofissionais. A ação judicial buscava impugnar tal
restrição com base nas liberdades profissionais consagradas nas normas da Comunidade Econômica Europeia (Apud
ANDERSON, Jack. op. cit. p. 323).
19
ECR [1976] ECR 1333. Tradução livre.
14
Analisando esse mesmo período e referindo-se ao mesmo julgamento, leia-se o comentário
de Simon Gardiner et al.:
Dessa forma, o precedente citado acima poderia conduzir no sentido de haver alguma espécie
de isenção do esporte em relação à incidência do Direito Europeu. Entretanto, tal impressão não
durou, já que o Caso Walrave 21 mudou a percepção sobre a relação entre esporte e regulação
econômica. Os fatos subjacentes à lide são bem relatados por Simon Gardiner et al.:
A decisão foi favorável aos autores, pois o TJUE entendeu que a regra não era de natureza
puramente esportiva, afetando interesses econômicos das partes, excetuando, todavia, as questões
relativas à efetiva formação da seleção nacional: “8) Esta proibição, todavia, não afeta a composição
das equipes esportivas, particularmente seleções nacionais, cuja formação é uma questão puramente
esportiva, e, assim sendo, em nada se relaciona com atividade econômica”. 23
20
GARDINER, Simon et al. Sports law. Londres: Routledge, 2012, p. 393. Tradução livre.
21
Walrave and Koch vs. Union Cycliste Internationale, Case C-36/74 [1974] ECR 1405. Tradução livre.
22
GARDINER, Simon. op. cit. p. 394. Tradução livre.
23
Walrave and Koch vs. Union Cycliste Internationale, Case C-36/74 [1974] ECR 1405. Tradução livre.
15
Em outras palavras, a contratação de prestadores de serviços relacionados à atividade esportiva era
uma atividade econômica sujeita aos ditames dos tratados que regiam a CEE, enquanto que a
composição da seleção nacional, tratando-se de atividade de interesse exclusivamente esportivo, fugia à
incidência das mesmas normas. À luz de tal decisão, ainda que o TJUE tenha reconhecido que havia
regras esportivas fora do alcance do Direito Europeu, algumas normas editadas no âmbito da
administração esportiva poderiam ter impacto econômico, sujeitando-se, portanto, ao escrutínio das
autoridades comunitárias.
O empuxo para uma maior incidência do Direito Europeu sobre questões esportivas foi dado
pelo Caso Bosman,24 na medida em que este teve um impacto relevante no sistema de transferência de
jogadores de futebol, mudando a forma como a indústria relacionada à modalidade esportiva mais
importante da Europa funcionava. 25
O caso é assim descrito por Jack Anderson:
24
Union Royale Belge de Sociétés de Football vs. Jean Marc Bosman (C-415/93) [1995] ECR I-4921. Tradução livre.
25
JAMES, Mark. op. cit. p. 267-273.
26
O clube belga com quem Bosman tinha contrato até então.
27
Op. cit. p. 326.
16
Dada a decisão do Caso Bosman em 1995, a Declaração de Amsterdã veio à luz dois anos depois
e foi seguida pelas conclusões da Presidência do Conselho Europeu em dezembro de 1998, convidando
a “Comissão […] a [salvaguardar] as atuais estruturas esportivas e manter a função social do esporte
dentro do quadro de trabalho comunitário”.28
Como se vê, ao mesmo tempo que ressalta a importância social do esporte, uma autoridade
europeia advoga pela perpetuação do seu modelo tradicional de governança.
O mesmo Conselho Europeu emitiu a Declaração de Nice, em dezembro de 2000,
declarando que:
28
KENNELLY, Brian; RICHARDS, Tom. op. cit. p. 1099.
29
Idem. p. 1101.
30
Idem. p. 1101, 1102.
17
cooperação entre os organismos responsáveis pelo esporte, assim como
protegendo a integridade moral e física de homens e mulheres atletas,
especialmente aqueles jovens.
3. A União e os Estados-Membros promoverão cooperação com terceiros
países e as competentes organizações internacionais no campo da educação
e do esporte, em particular o Conselho da Europa. 31
31
UNIÃO EUROPEIA. Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, de 13 de dezembro de 2007. Disponível em:
<http://eur-lex.europa.eu>. Acesso em: 3 jan. 2015.
32
KENNELLY, Brian; RICHARDS, Tom. op. cit. p. 1094.
33
GRAY, Andy. op. cit. p. 37.
34
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 3 jan. 2015.
18
A regulamentação desse dever constitucional veio pela chamada Lei Pelé (Lei nº 9.615, de 24
de março de 1998), que no seu art. 3º classifica três diferentes manifestações esportivas: desporto
educacional (art. 3º, I), praticado em escolas de todos os níveis, buscando promover educação por
meio da prática esportiva; desporto de participação (art. 3º, II), livremente praticado em qualquer
ambiente social, de modo a promover integração comunitária e saúde individual; e esporte de
rendimento (art. 3º, III), orientado à obtenção de resultados competitivos.
Evidentemente, as duas primeiras categorias podem ser identificadas com o papel social do
esporte, um dos três temas propostos pelo White Paper, sendo os outros dois a dimensão econômica
do esporte e a organização do esporte.35 No Brasil, a subsidiariedade econômica imposta ao Estado
pela própria Constituição da República (art. 170) cria restrições à intervenção estatal no esporte –
também objeto de discussão em módulo mais adiante –, exigindo que o financiamento público ao
esporte tenha prioritariamente repercussão social.
Tal previsão constitucional apresenta alguma similaridade com a ênfase social claramente
contida no art. 165 do TFUE. A partir deste ponto, os precedentes judiciais mais importantes
relativos a questões esportivas podem ser analisados sob um novo prisma. Todos os casos que
suscitam um debate sobre os limites da intervenção da União Europeia no esporte se relacionam
àquilo que é, na legislação brasileira, esporte de rendimento, ou seja, o tipo de atividade esportiva
tendente a ser explorada economicamente.
Os Casos Walrave e Bosman se referiam à liberdade fundamental de exercício profissional
por parte dos cidadãos europeus. O fato de os autores, nesses casos, terem atividades profissionais
relacionadas com o esporte era mera circunstância. As regras questionadas eram formalmente
editadas por reguladores esportivos, mas eram substancialmente econômicas.
Outro precedente importante é o chamado Caso Motoe.36 A hipótese ali versada é assim
resumida na obra coletiva liderada por Simon Gardiner:
35
KENNELLY, Brian; RICHARDS, Tom. op. cit. p. 1103. Tradução livre.
36
Motosykletistiki Omospondia Ellados Npid vs. Elliniko Dimosio [2008] 5 C.M.L.R. 11.
19
Adicionalmente, os organizadores de eventos tinham que ter seus
patrocinadores aprovados pelo referido comitê e os participantes não
podiam ser obrigados a consentir com as regras de propaganda e
publicidade sem a intervenção da Elpa ou do mencionado comitê. Tal
situação suscitou o questionamento que a Elpa tinha uma vantagem
potencial na organização de tais eventos, nos casos em que a entidade
atuasse com fins comerciais, por conta do seu monopólio regulatório sobre
a aprovação e fiscalização dos mesmos eventos.
37
GARINDER, Simon et al. op. cit. p. 399, 400.
20
O novo movimento no debate sobre autorregulação e especificidade do esporte é o Caso
Meca-Medina. Eis o sumário dos seus fatos:
Muito embora a decisão tenha, ao final, mantido a medida disciplinar imposta aos atletas
envolvidos, o precedente afirmou, no § 27 da sua fundamentação, que “é aparente que o simples
fato de que uma regra seja de natureza puramente esportiva não tem o efeito de excluí-la do alcance
do Tratado”. 40 A decisão foi duramente criticada, porque o TJUE teria admitido o recurso contra
o Tribunal de Primeira Instância sob “argumentos extremamente genéricos”, 41 levantando questões
que já se entendiam superadas: “1. Em que hipóteses uma atividade esportiva ‘se submete aos
ditames do Tratado’? e 2. Qual é a condição para ‘envolver-se’ (em uma atividade submetida aos
ditames do Tratado)?”. 42
38
Court of Arbitration for Sports, ou, na sua tradução em português, Tribunal Arbitral do Esporte.
39
ANDERSON, Jack. op. cit. p. 348.
40
Idem.
41
INFANTINO, Gianni. Meca-Medina: a step backwards for the European sports model and the specificity of sport? Sports
Law Administration and Practice, v. 13, p. 3, 2006. Tradução livre.
42
Idem.
21
Como os fundamentos da ação movida pelos autores se referiam a ditames do Direito
Concorrencial Europeu, as preocupações acima eram efetivamente justificáveis, já que praticamente
qualquer medida disciplinar teria um impacto econômico nos interesses de um atleta ou de um clube.
Porém, a questão pode ser apreciada de um modo diferente, restringindo o eventual
escrutínio judicial a deveres de natureza procedimental. Na medida em que poderes regulatórios
esportivos podem afetar interesses econômicos ou profissionais de atletas ou clubes, um
desenvolvimento mais consistente da Teoria dos Efeitos Horizontais dos Direitos Fundamentais,
pela qual particulares devem agir de acordo com o devido processo legal quando no exercício de
funções regulatórias ou disciplinares, pode ser uma alternativa para assegurar as liberdades
econômicas outorgadas aos atletas e clubes europeus e, ao mesmo tempo, limitar um controle
excessivamente genérico por parte do Direito Concorrencial Europeu sobre normas regulatórias e
disciplinares de natureza esportiva.
Todas as objeções contra a intervenção europeia são esquecidas, no entanto, quando a questão
é a proteção legal dos direitos dos organizadores de eventos esportivos. As preocupações geradas
pelo voto do Juiz Laddie no Caso Arsenal Football Club PLC vs. Reed – posteriormente reformado
pelo TJUE –, 43 no qual o clube inglês não obteve tutela judicial que protegesse as suas marcas do
uso indevido por um comerciante cuja mercadoria ostentava sinais idênticos ou similares àqueles
do Arsenal, são um dos pontos de partida para uma onda de reivindicações relativas à harmonização
de regras sobre propriedade intelectual 44 e à edição de normas específicas sobre eventos esportivos. 45
Como demonstrado, a presença estatal na Europa não é sempre indesejável. Intervenção
pública para estabelecer termos objetivos de proteção jurídica de eventos esportivos seria bem-vinda.
Um bom exemplo de um ponto de conciliação entre as duas posições opostas é o trabalho da
Comissão Europeia no monitoramento de incentivos estatais ao esporte. Todos os principais casos
noticiados apontam para a admissão da intervenção estatal quando houver aspectos sociais
envolvidos no subsídio financeiro ou nas isenções fiscais concedidas por estados-membros ou
governos regionais para projetos esportivos – instalações esportivas, estádios ou arenas multiuso –,
embora haja graves questionamentos relativos ao financiamento de clubes de futebol profissional. 46
Portanto, sem prejuízo do retorno ao tema da intervenção estatal no esporte, a ser feito mais
adiante neste curso, o que se percebe é que a autorregulação e a especificidade do esporte são duas
faces de uma mesma moeda. As peculiaridades da prática esportiva justificam a adoção de modelos
distintos de regulamentação legal, mitigando a incidência de normas que em geral disciplinam a
defesa da concorrência, a integridade pessoal e a própria liberdade profissional. A especialização dos
43
Arsenal Football Club PLC vs. Reed [2003] 3 W.L.R. 450.
44
COUCHMAN, Nic. Sports merchandising: paradise lost, and regained? Sports Law Administration and Practice. v. 9, p. 1-3,
2002.
45
BAILEY, Darren. Sports’ organisers rights: where next? Sports Law Administration and Practice. v. 21, p. 4-11, 2014.
46
KEANE, Benoît. Serious competition? State aid and sport. Sports Law Administration and Practice. v. 12, p. 1-5, 2014.
22
seus órgãos de governança e a sua natural propensão ao transnacionalismo, gerando uma
necessidade de uniformização das suas regras em todo o planeta, induz a um grau ímpar de
autonomia institucional para as organizações desportivas.
Todavia, tais singularidades não podem deixar o esporte à margem do quadro de direitos
fundamentais nacional e internacionalmente reconhecidos, nem ser justificativa para práticas
deletérias que foram amplamente noticiadas ao longo dos anos. Ainda é uma busca em curso a
criação de um justo equilíbrio que preserve a autonomia do esporte dos desejos de
instrumentalização secreta ou ostensivamente nutridos por governos de diversos matizes
ideológicos, mas ao mesmo tempo insira a prática e, principalmente, a gestão esportiva em um
cenário de respeito aos direitos individuais, sociais e econômicos.
Transnacionalismo esportivo
Soa uma obviedade dizer que, sendo um fenômeno social, o esporte também é afetado pelas
transformações de um mundo chamado pós-moderno, em que as certezas que sempre caracterizaram
diversas relações humanas são permanentemente postas em xeque, questionadas e relativizadas, na
medida em que ferramentas tecnológicas e novos arranjos socioeconômicos revelam a insuficiência
das diversas instituições que ditam – ou ditavam – as normas de regência de inúmeras atividades.
A evolução tecnológica, especialmente na área de comunicação e transportes, acabou por
reduzir distâncias não só físicas, mas sociais, disseminando valores já internacionalmente consolidados
a comunidades isoladas e, ao mesmo tempo, trazendo novas ideias que transformam tradições e
aceleram ainda mais o grau de inovação nos mais diversos setores da ação humana. Tudo isso foi, no
fim do século XX e início do século XXI, “empacotado” sob o genérico título de globalização,
expressão entendida como anátema por uns, e enaltecida como signo de uma nova era por outros.
Nesse sentido, a lição de Diogo de Figueiredo Moreira Neto é de importante remissão,
dissecando tal fenômeno nas suas duas acepções:
23
entendimento que o conceito possa comportar, ele compreenderá
diferentes conteúdos valorativos, podendo ser considerada ora como um
bem, ora como um mal; ora como um anátema, ora como uma esperança
para um mundo melhor.47
Tratando, portanto, a globalização como um fato, sem qualquer consideração valorativa sobre
os seus efeitos, impõe-se reconhecer a existência de interesses sociais e econômicos consolidados
pela referida “dilatação de horizontes” de que fala o autor citado acima. Nesse sentido, a expansão
vertiginosa da União Europeia talvez seja o maior exemplo da superação dos limites territoriais no
desenvolvimento de inúmeras atividades humanas.
Não só isso: os cada vez mais intensos movimentos migratórios, a potencialização do trabalho
remoto integrando sistemas de produção ao redor do mundo e a consolidação de uma audiência
global têm efeitos sobre a própria forma de se estabelecer norma jurídica. Tradicionalmente calcado
na ideia de territorialidade, o Direito passou a ter de lidar com relações que cada vez mais
extrapolavam os limites físicos de determinado Estado, o que, obviamente, esbarra na insegurança
quanto às normas que disciplinarão eventuais conflitos entre as partes envolvidas.
A necessidade de uniformização de condutas ao redor do globo, a fim de estabilizar os padrões
de comportamento de agentes que se relacionam para muito além do alcance dos estados nacionais
multiplicou os centros de poder, conferindo efetiva capacidade de produção de normas a entidades
privadas, baseadas nas noções de adesão e consensualidade, por exemplo, as entidades que regem a
aviação civil internacional e as que estabelecem os protocolos de funcionamento da rede mundial
de informática.
Nesse cenário, surge a ideia de um Direito Administrativo Global, que seria, mais uma vez
nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, “o resultado do exercício normativo de todos e
quaisquer centros de poder capazes de administrar interesses de natureza coletiva”. 48
Ora, o esporte se insere como um singular fator de integração da chamada “aldeia global”.
Muito antes do aprofundamento do processo de globalização sucintamente referido acima, o
esporte já desempenhava um papel de promoção de congraçamento internacional. Não à toa, tanto
o COI, quanto a Fédération Internationale de Football Association (Fifa), para ficar nas duas
entidades de administração desportiva de maior destaque, precedem em muitos anos a própria
Organização das Nações Unidas (ONU), sendo já chavão mencionar que tanto um quanto a outra
ostentam mais países filiados aos seus quadros do que esta última.
47
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. O direito administrativo e o policentrismo de suas fontes: direito administrativo
global e ordenamento jurídico. Poder, Direito e Estado. Belo Horizonte: Fórum, p. 118, 119, 2011.
48
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao transadministrativismo. Novas Mutações Juspolíticas. Belo
Horizonte: Fórum, 2016. p. 332.
24
Em paralelo, o esporte também se favoreceu do processo de globalização, transformando a
sua inata vocação econômica em um negócio bilionário e tornando clubes que, por definição, são
agremiações que vocalizam interesses locais, em marcas globais, com projeção nos quatro cantos do
planeta. Nesse sentido, é interessante o testemunho de Ferrán Soriano, ex-vice-presidente do FC
Barcelona na gestão que liderou a guinada do clube catalão, sempre um dos grandes times
espanhóis, mas longe de ser a incontestável potência esportiva e econômica que é hoje:
Entretanto, para que o Barcelona possa medir forças com os seus adversários em um cenário
planetário, é importante que as regras do jogo sejam as mesmas, e uma autoridade única, que fixe
os padrões de funcionamento de uma determinada modalidade esportiva, é uma realidade já
estabelecida no contexto da administração desportiva.
Será visto mais adiante que, devendo várias modalidades esportivas o seu desenvolvimento à
prática e à organização disseminadas ao longo do século XX em território europeu, o modelo de
governança esportiva se consolidou segundo parâmetros de tal continente, vinculados ao já
mencionado sistema piramidal, em que as agremiações locais se filiam a organizações de nível regional;
que por sua vez se congregam em uma associação nacional, organizada com os seus pares de outros
países em confederações continentais, estando todos esses níveis vinculados a uma única entidade
internacional, que detém o poder sobre o regramento e a prática formal daquela modalidade.
49
SORIANO, Ferran. A bola não entra por acaso. São Paulo: Larousse, 2010, p. 62.
25
Esse monopólio de fato – e de direito, como assinalado acima, nas referências às normas
europeias sobre a atividade esportiva –, acaba por inserir a governança esportiva em um quadro de
transadministrativismo, definido pela doutrina como “a disciplina jurídica das relações assimétricas
de poder, que se institucionaliza consensualmente fora e além do Estado.” 50
É isso exatamente o que se vê no esporte: a adesão às entidades internacionais de
administração desportiva é voluntária, mas uma vez inserido em tal contexto associativo, há o
estabelecimento de uma relação de sujeição do atleta, do clube ou da federação às normas editadas
pela sua respectiva entidade internacional.
Tal circunstância, aliada à especificidade de que se falou acima, reforça a aspiração da
comunidade esportiva à autorregulação, compondo a tríade que distingue o Direito Desportivo –
ou Direito no esporte, como preferem alguns.
Nesse quadro, o Court of Arbitration for Sports (CAS) – Tribunal Arbitral do esporte – tem
desempenhado papel crucial no desenvolvimento do que pode vir a ser caracterizado como uma Lex
Sportiva, 51 similar, em âmbito desportivo, à conhecida Lex Mercatoria, conjunto de normas
consuetudinárias que compõem o Direito Comercial em âmbito internacional.
O CAS é fruto da visão prospectiva de Juan Antonio Samaranch, ex-presidente do COI, que
concebeu e fomentou a criação de uma “suprema corte do esporte” em 1983, pretendendo-se, já
naquela época, a criação de um órgão que dirimisse todos os conflitos relacionados ao esporte.52
Depois de 10 anos de funcionamento, o CAS submeteu-se a uma profunda reforma, de modo
a tornar-se mais independente do COI, especialmente após a advertência do Tribunal Federal da
Suíça, quando do julgamento do Caso Gundel. Eis o relato do episódio, feito por Jonathan Merritt:
50
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao transadministrativismo. op. cit. p. 339.
51
FOSTER, Ken. Lex sportiva and lex ludica: the court of arbitration for sport’s jurisprudence. Entertainment and Sports Law
Journal, v. 3, p. 2, 2005.
52
MERRITT, Jonathan. Commercial aspects of sport. Londres: Informa Professional Academy, 2014. p. 59.
53
Federação Equestre Internacional.
26
tribunal que não preenchia os requisitos de imparcialidade e
independência necessários para caracterizar apropriadamente uma corte
arbitral. No seu julgamento de 15 de março de 1993, o Tribunal
reconheceu que o CAS como uma verdadeira corte arbitral. [...] Todavia,
neste julgamento, o Tribunal chamou atenção para os inúmeros vínculos
entre o CAS e o COI: o fato que o CAS era custeado quase que
exclusivamente pelo COI; o fato que o COI tinha competência para
modificar os estatutos do CAS; e o considerável poder detido pelo COI e
seu Presidente para indicar os membros do CAS. No entendimento do
Tribunal, tais vínculos seriam suficientemente sérios para questionar a
independência do CAS, e o COI fosse uma parte no processo. 54
Entretanto, para fins de compreensão do papel do CAS nesse contexto, a abordagem de Ken
Foster, já citado acima, identifica seis diferentes funções que poderiam ser associadas aos cinco
princípios de Direito Esportivo estabelecidos pelo próprio CAS. 57
O primeiro de tais princípios é o chamado Lex Ludica, que prevê a autonomia dos árbitros e
delegados “de campo”, excluindo as decisões proferidas durante as provas e partidas da possibilidade
de questionamento até mesmo perante o próprio CAS ou qualquer outro órgão arbitral
54
Op. cit. p. 60, 61.
55
Idem. p. 61.
56
Apud BLACKSHAW, Ian S. Mediation and arbitration. Amsterdam: THC Asser Press, 2009, p. 177.
57
Op. cit. p. 11-13.
27
desportivo,58 tal como foi decidido nos casos Mendy vs. Association Internationale de Boxing
Amateur (AIBA) 59 e Segura vs. International Amateur Athletic Federation (IAAF). 60 Este princípio
é associado à função de órgão autorregulador do CAS. Nesse aspecto, o CAS estabelece os limites
da efetiva especificidade do esporte, ditando que tipo de matérias não estarão sujeitas a
questionamento jurídico.
O segundo princípio se refere à boa governança, que exige clara e definida competência e
autoridade das entidades de administração desportiva para fazer valer as regras de cada modalidade, 61
exigindo de tais entidades razoabilidade, transparência, objetividade e boa-fé na edição e aplicação das
suas próprias regras; 62 assim como estabelecendo o CAS como intérprete final de qualquer
controvérsia acerca de tais regras. 63 A este princípio, Foster associa a função de ombudsman:
58
Idem. p. 3, 4.
59
CAS OG Atlanta 1996/006.
60
CAS OG Sydney 2000/13.
61
FOSTER, Ken. Op. cit. p. 5, 6.
62
Idem. p. 6.
63
Ibidem. p. 7.
64
Ibidem. p. 12.
65
Ibidem. p. 7, 8.
66
Idem.
28
O quarto princípio a ser analisado se refere à harmonização de parâmetros, “coletando” e
promovendo as melhores práticas entre as entidades de administração desportiva. 67 Duas funções
são associadas a este princípio: parajurisdicional e órgão do COI. Segundo Foster, a primeira função
é claramente ligada à intenção do CAS de tornar-se “a jurisdição exclusiva relativamente a disputas
esportivas internacionais”, 68 e se calca na “crescente ‘juridificação do CAS”. 69
Finalmente, justiça e tratamento equitativo combatem penalidades fixas, garantem
proporcionalidade nas regras e decisões das entidades de administração desportiva, assim como
asseguram as legítimas expectativas de atletas e organizações esportivas, 70 papéis associados à
arbitragem ordinariamente exercida pelo CAS.
Este conjunto de princípios legais estabelecido pela jurisprudência do CAS alcançou o efetivo
reconhecimento da comunidade jurídica, como bem assinala Jack Anderson:
67
Ibidem. p. 8, 9.
68
Ibidem. p. 11, 12.
69
Idem.
70
Idem. p. 10, 11.
71
Op. cit. p. 87, 88.
72
BLACKSHAW, Ian op. cit. p. 188.
29
Embora haja reconhecimento ao mérito da conduta do CAS, esta é uma recomendação
recorrente:
73
NAIDOO, Urvasi; SARIN, Neal. Dispute resolution at games time. Fordham Intellectual Property. v. 12, p. 515, 2002.
74
BERSAGEL, Annie. Is there a stare decisis doctrine in the court of arbitration for sport? An analysis of published awards
for anti-doping disputes in track and field. Pepperdine Dispute Resolution Law Journal. v. 12, p. 204-206, 2012.
30
Figura 1 – Entidades de prática e de administração desportivas
Fonte: o autor.
Traduzindo tal pirâmide para a realidade do futebol, chegando ao nível nacional, a federação
internacional seria a amplamente conhecida Fifa; a confederação continental seria a Confederación
Sudamericana de Fútbol (Conmebol); e a federação nacional seria a Confederação Brasileira de
Futebol (CBF).
Analisando-se os três níveis subsequentes, constata-se que o Brasil apresenta uma peculiaridade
que não se vê em nível profissional em outros países de expressão na modalidade em tela.
Com efeito, o nível destacado para as federações estaduais ou regionais corresponde, no mais
das vezes, ao âmbito amador em outros países, não tendo qualquer relevância na organização de
competições profissionais. Na verdade, em praticamente todas as nações com histórico ou
desempenho relevante no plano internacional, os clubes profissionais acabam se organizando sob
ligas, que se situam no mesmo plano das federações nacionais e assumem a organização e a execução
dos campeonatos das principais divisões, enquanto as federações se concentram na regulação da
modalidade, na promoção das divisões de base e na gestão das seleções nacionais.
Tal espécie de estruturação da governança esportiva, que se reproduz de forma muito similar
em praticamente todas as modalidades, assegura às entidades de administração do esporte um
verdadeiro monopólio, já que nenhuma atividade é reconhecida como pertencente àquele esporte
fora da esfera de autoridade das referidas entidades. É neste sentido a redação do Estatuto da Fifa:
Artigo 11 – Admissão
1. Qualquer associação que seja responsável por organizar e supervisionar
o futebol em todas as suas formas no seu país pode se tornar membro.
Consequentemente, recomenda-se que todas as associações integrantes [da
31
Fifa] envolvam todos os agentes relevantes no futebol vinculado à sua
própria estrutura. Sob pena dos parágrafos 5 e 6 abaixo, somente uma
associação de cada país será reconhecida como membro. 75
Fonte: o autor.
75
Disponível em:
<http://resources.fifa.com/mm/document/affederation/generic/02/78/29/07/fifastatutsweben_neutral.pdf>.Acesso em:
26 mar. 2017.
76
Disponível em: <https://stillmed.olympic.org/Documents/olympic_charter_en.pdf>. Acesso em: 26 mar. 2017.
32
Diversamente desse modelo, florescido na Europa e consolidado em todo o mundo, o modelo
norte-americano de governança e organização desportiva tem uma natureza marcadamente
comercial, em que ligas do mesmo esporte competem entre si, tendo uma existência paralela àquela
da entidade nacional reconhecida pelas federações internacionais e pelos comitês olímpicos
nacionais, muitas vezes desenvolvendo a sua modalidade sob regras diferentes daquelas consagradas
no resto do planeta.
O grande exemplo deste último aspecto é a National Basketball League, a famosa NBA, que
até hoje submete as suas disputas a regras diferentes da Fédération Internationale de Basketball
(Fiba), por exemplo, a localização da linha demarcatória dos arremessos de três pontos, colocada
mais distantes nas quadras dos jogos da NBA.
Aliás, a própria regra dos arremessos de três pontos vigorou durante muito tempo somente
na NBA, sendo um aspecto do jogo incorporado posteriormente pela Fiba.
Em que pese ao sucesso mundial estrondoso da NBA, a entidade que representa o basquetebol
norte-americano nas competições internacionais é a USA Basketball, 77 organização que, a cada dois
anos – nos Jogos Olímpicos e nos campeonatos mundiais –, vem contando com os atletas profissionais
integrantes da NBA, mas que também recruta atletas universitários, outros amadores ou até mesmo
profissionais jogando em outras ligas para competições de menor relevância internacional.
Diferentemente das ligas mencionadas no caso do futebol internacional, onde se vê que a
Lega Calcio italiana, La Liga espanhola e a Premier League inglesa são organizações estabelecidas
no mesmo nível das federações nacionais, mas submetem-se à regulação desportiva e observam o
monopólio consagrado no modelo europeu de esporte, as ligas norte-americanas muitas vezes
concorrem entre si.
Um exemplo característico é o futebol americano. A National Football League (NFL) é o
resultado da fusão havida entre uma liga com este mesmo nome e a sua concorrente, a American
Football League (AFL). Dessa rivalidade entre as duas ligas, nasceu o hoje mundialmente admirado
Superbowl, concebido originalmente para ser um tira-teima entre os campeões de cada uma das
entidades concorrentes.
Pouco depois do advento do Superbowl, as duas ligas acabaram fundindo-se, estruturando-
se internamente em duas conferências que herdaram parte dos nomes originais. Hoje, a final que
consagra o campeão da NFL se dá entre os campeões da Conferência Americana (AFC) e da
Conferência Nacional (NFC).
77
Disponível em:
<http://www.fiba.com/pages/eng/fc/FIBA/fibaStru/nfLeag/p/nationalfederationnumber/379/nfProf.html>.Acesso em: 26
mar. 2017.
33
O próprio futebol amplamente praticado no resto do mundo, conhecido nos Estados Unidos
como soccer, hoje tem ao menos três diferentes ligas concorrentes. A que atualmente conta com
maior projeção e que promove a competição reconhecida para os fins de representação internacional
dos torneios continentais de clubes é a Major League Soccer (MLS).
Entretanto, a liga com origens mais antigas é a North American Soccer League (NASL), que
contou na sua primeira versão – entre 1970 e 1984 – com o time do New York Cosmos, que na
década de 1970 tinha Pelé, Beckenbauer e Carlos Alberto Torres na sua linha titular. O time segue
disputando a mesma liga, reativada em 2010, e que hoje conta com oito times, 78 contra os 22 times
da MLS, que já prevê o ingresso do vigésimo terceiro em 2018 (o Los Angeles FC). 79
Já a terceira liga é a United Soccer League (USL), que já tem 30 times e mais um esperado
para ingresso em próximas temporadas. Embora mais nova, a entidade conta com diversos times
B de equipes da MLS, mostrando mais força do que a NASL para consolidar-se no mercado
norte-americano. 80
A ênfase comercial da atuação de tais ligas é evidente, tratando-se a competição de cada uma
delas como um produto único, centralizando-se políticas de remuneração de atletas, de
comercialização de propriedades de marketing e de direitos de transmissão. Os clubes, mais do que
filiados à liga, são verdadeiros sócios, perdendo em autonomia de gestão, mas ganhando no poder
de negociação conjunto liderado pela referida entidade.
78
Disponível em: <http://www.nasl.com>. Acesso em: 26 mar. 2017.
79
Disponível em:<http://www.mlssoccer.com>. Acesso em: 26 mar. 2017.
80
Disponível em:<http://www.uslsoccer.com>. Acesso em: 26 mar. 2017.
34
MÓDULO II – ORGANIZAÇÃO DESPORTIVA
BRASILEIRA
Apresentação
Assim como no resto do mundo, o esporte no Brasil alcançou, ao longo da história, uma expressão
singular, e a sua importância socioeconômica é inegável e crescente. Porém, mais do que meio de
integração social e uma ascendente indústria no quadro econômico brasileiro, o esporte é uma
verdadeira expressão cultural do País.
Nesse sentido, o futebol, como maior expressão esportiva nacional, reflete muito da relevância
descrita acima, como este autor já teve oportunidade de destacar em trabalho anterior:
Porém, a “monocultura esportiva” que prevaleceu no País até a década de 1980 já não mais existe.
A paixão e o envolvimento do brasileiro com o esporte já se espraiam por outras modalidades:
81
MARTINS, Fernando Barbalho. Futebol: manual de (re)montagem. Rio de Janeiro: APERJ, 2015. p. 45.
Essa afirmação nacional se revela de forma inequívoca em outra
constatação que ouvi uma vez de Armando Nogueira, outro ícone da
crônica esportiva. Ressalvada a imprecisão da citação feita em cima da uma
memória de programa de televisão perdido nos anos, diz ele que feliz é o
país que celebra heróis forjados nos verdes campos de futebol, em vez dos
sangrentos campos de batalha.
A estatura e a penetração social atingidas pela memória de Ayrton Senna, pela imagem até hoje
atual de Gustavo Kuerten e pelo modelo de sucesso espelhado pelas sucessivas gerações de seleções
nacionais de voleibol confirmam a importância que o esporte tem no tecido social brasileiro.
Refletindo essa importância, o ordenamento jurídico brasileiro contempla o esporte em todos
os seus níveis e incrementa a interação entre os diversos campos do Direito e as atividades esportivas,
buscando disciplinar os seus aspectos econômicos e sociais.
Neste módulo, serão tratadas a abordagem constitucional do esporte e as diretrizes lançadas
para a sua disciplina legal na Carta de 1988, para depois analisarem-se os principais diplomas legais
que, especialmente nos últimos anos, buscaram modernizar a estrutura de governança e de operação
do esporte brasileiro. Finalmente, será exposto o quadro de governança esportiva no País,
indicando-se especialmente as novas exigências legalmente impostas às entidades de prática e de
administração desportiva nacionais.
Constitucionalização do esporte
O processo constituinte iniciado em 1986, com a eleição da Assembleia que produziu a Carta
promulgada em 5 de outubro de 1988, foi um momento único na história política do País, tendo
refletido singular movimento de efetiva participação da sociedade civil na elaboração do documento
legal que se vai demonstrando um duradouro projeto democrático para o Brasil.
O verdadeiro sentimento de pertencimento despertado pela chamada Constituição Cidadã
decorre do caráter plural que inspira o seu texto, o qual até mesmo, em certos pontos, beira a
prolixidade e contempla uma minudência muitas vezes incompatível com um texto fundamental.
82
MARTINS, Fernando Barbalho. O esporte como identidade nacional. Blog Pátria Desportiva, Disponível em:
<http://patriadesportiva.blogspot.com.br/search?updated-min=2008-01-01T00:00:00-02:00&updated-max=2009-01-
01T00:00:00-02:00&max-results=41>. Acesso em: 31 mar. 2017.
36
Nesse contexto de ampla participação e abrangência dos mais diversos setores da sociedade, o esporte
também contou com explícita disciplina constitucional.
Tal deliberação da Assembleia Constituinte de 1987-1988 se consubstancia na tradução, no
Brasil, de um movimento bem destacado por Martinho Neves Miranda:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos
termos seguintes: [...]
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da
imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
83
Op. cit. p. 12.
37
A inclusão de uma tutela de expressão econômica relacionada ao esporte no rol de direitos
fundamentais da Constituição da República sinalizou claramente, já no fim da década de 1980, a
repercussão econômica que o esporte já gerava àquele momento, além de abrir as portas do Estado
brasileiro para a proteção do atleta como profissional investido de direitos como qualquer outro
trabalhador, conceito cuja afirmação ainda não se consolidou plenamente na sociedade brasileira.
A segunda previsão constitucional a respeito do esporte está no art. 24, IX, no capítulo que
fala das competências legislativas concorrentes: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao
Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] IX - educação, cultura, ensino e desporto”.
Além de se constituir um objeto específico de disciplina legislativa, merecendo referência
expressa da Constituição, a inclusão do desporto no tópico da competência legislativa para disciplinar
educação, cultura e ensino destaca a relevância social do esporte, reconhecendo-o como poderosa
ferramenta de formação individual e comunitária, atividade de potencialização das iniciativas
educacionais e, como destacado na apresentação deste módulo, efetivo traço cultural do País.
Neste ponto, cumpre destacar que, configurando-se como objeto de competência legislativa
concorrente, caberá à União, neste quadro, a atribuição de disciplinar o esporte nas suas linhas
gerais, traçando as diretrizes mais amplas e genéricas para fomento das atividades desportivas.
Já aos Estados e ao Distrito Federal restará a competência para a edição de normas de cunho
especial, ou seja, adequar as diretrizes gerais estabelecidas em nível federal à realidade concreta de
cada ente federativo, criando mecanismos de fomento, regulação e controle apropriados às
peculiaridades regionais.
Por fim, mas não menos importante, ao revés, o dispositivo mais impactante no âmbito da
organização desportiva nacional: o art. 217 da Carta Magna. Eis a sua redação:
38
Princípios constitucionais do esporte
Podem-se extrair do art. 217, transcrito acima, alguns princípios que irradiarão os seus efeitos
por todo o ordenamento jurídico-desportivo:
84
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 93.
39
A diferença principal entre esta e as demais funções administrativas
estudadas – a de polícia, a dos serviços públicos, as funções de
ordenamento econômico e de ordenamento social – está precisamente na
característica de disponibilidade da ação do Estado, ou seja: o fomento
público não é uma função estatal de caráter impositivo, dependendo do
consenso dos beneficiários, e não da compulsão sobre eles exercida, de
modo que, ao pô-lo à disposição das pessoas, o Estado a ninguém obriga –
indivíduo, associação ou empresa – a valer-se de instrumentos jurídicos de
incentivo, tão somente convocando os interessados a aderir a uma busca
consensual de superação pessoal. 85
Saindo um pouco do estrito exemplo do fomento, tal como descrito pelo mestre acima
citado, mas passando à questão do ordenamento social, o frescobol pode ser utilizado como
ilustração para este tema. Não se tratando de uma modalidade propriamente organizada,
mas caracterizando-se como uma atividade atlética, o Poder Público pode determinar
espaços próprios na orla marítima para a sua prática, estando tal ação estatal coberta pela
cláusula constitucional da informalidade contida na parte final do caput do art. 217.
85
Idem. p. 578.
40
De fato, a Constituição estabelece o dever de não intervenção estatal na organização e no
funcionamento das atividades esportivas, reforçando a subsidiariedade já destacada acima e
vedando que o Estado busque ingerência nos assuntos internos de agremiações e federações
desportivas.
Tal princípio, no entanto, embora reforce o caráter autorregulatório das entidades esportivas,
não encerra uma isenção absoluta de submissão ao ordenamento jurídico. Aqui, é possível
reforçar a ideia de respeito à multicitada especificidade do esporte, mas sempre submetendo
interesses econômicos à mediação e limitação legislativa, tal como qualquer outra atividade
humana.
À luz desse pano de fundo, a Constituição faz claramente a opção preferencial pelo incentivo
ao desporto educacional, ou seja, os recursos públicos serão prioritariamente destinados a
projetos que tenham ênfase na função educacional do esporte.
e) Princípio do tratamento diferenciado – o mesmo art. 217, no seu inc. III, estabelece o
dever de tratar-se distintamente o desporto profissional daquele não profissional. Primeiro
pela finalidade de cada um. Ainda que seja de alto rendimento, a modalidade que não esteja
profissionalizada – hipótese cada vez mais rara nas esferas mais elevadas de performance
esportiva, mas ainda existente, especialmente no Brasil –, não tem, por exemplo, acesso a
recursos financeiros para o seu desenvolvimento, merecendo, portanto, atenção específica do
Estado.
Mais do que isso, abstraindo-se as cada vez mais raras hipóteses de desporto de alto
rendimento não profissionalizado, o esporte puramente amador normalmente se enquadra
como atividade de participação, ou seja, do esporte como meio de congregação social, com o
seu caráter competitivo subordinado a finalidades de cunho comunitário e sem maior ênfase
à performance técnica dos seus praticantes.
41
Nesse sentido, a disciplina de eventuais aspectos disciplinares dos atletas e das agremiações ou
mesmo as condições regulamentares de realização de tais eventos são necessariamente menos
rigorosas do que aquelas impostas ao desporto profissional, desenvolvido em ambiente de
profissionalismo, muitas vezes gerando renda para os envolvidos e sempre se submetendo a
estritos parâmetros de índole disciplinar.
Nesse caso, o que se vê é que a Constituição da República estabeleceu uma pauta de objetivos
e diretrizes a serem observados pela legislação e pela própria Administração no que diz respeito
ao fomento e à disciplina das atividades esportivas, enquadrando as suas normas justamente
no conceito contemporâneo de princípios jurídicos, tal como destacado em outra obra deste
autor, que toma emprestadas as lições de Humberto Ávila a respeito das três dimensões
normativas: “comportamental, finalística e metódica. A cada uma de tais dimensões,
corresponderia uma espécie normativa”.86
86
WILLEMAN, Flávio de Araújo; MARTINS, Fernando Barbalho. Manual de direito administrativo. Niterói: Impetus, 2015, p.
18.
87
Idem. p. 19.
42
Identificados os três tópicos constitucionais a respeito do esporte, será visto que os efeitos
de tais normas de hierarquia superior têm relação direta com a moldura legislativa que
rege a atividade no Brasil.
Legislação desportiva
A partir do reconhecimento de tutela explícita ao esporte na Constituição de 1988, o Estado
brasileiro passou a desenvolver um processo de estruturação jurídica das suas atividades, tendo a
primeira tentativa de sistematização legal do esporte sido a chamada Lei Zico, designada assim em
homenagem ao já ex-secretário de Esportes do governo do presidente Fernando Collor de Mello,
mas já sancionada sob a presidência de Itamar Franco, sob o nº 8.672, de 6 julho de 1993.
O diploma em questão, que buscava justamente instituir normas gerais sobre desporto, foi
integralmente revogado pela edição da Lei Pelé, denominada a partir da liderança exercida no
processo pelo então ministro do Esporte do governo Fernando Henrique Cardoso, e sancionada
sob o nº 9.615/98.
Em virtude da sua abrangência, a Lei Pelé foi sucessivamente alterada e emendada ao longo
dos anos, a fim de atualizar as suas disposições, adaptando-a especialmente à nova realidade
organizacional do esporte de alto rendimento, ainda muito distante das efetivas práticas nacionais.
Essas sucessivas alterações acabaram prejudicando a sistematização interna do próprio diploma
legal, espalhando normas de conteúdos afins por diversos artigos da Lei Pelé e dificultando um
estudo mais organizado dos seus comandos.
De toda forma, podem-se identificar cinco grandes áreas de disciplina estatuídas pela Lei Pelé:
a) Normas fundamentais do esporte – constantes dos Capítulos I a III (arts. 1º a 3º), em
que os conceitos elementares do esporte e os princípios normativos incidentes sobre as
atividades desportivas são positivados em caráter introdutório e como balizas
interpretativas das demais disposições da própria Lei Pelé e de outras normas esparsas
sobre esporte.
b) Sistema Brasileiro do Desporto – normas já esparsas ao longo do texto legal, buscam
organizar o sistema de governança desportiva no País. Será objeto de análise específica
ainda neste módulo, em tópico distinto, mas podem-se identificar as suas regras e os
princípios estampados em algumas seções do Capítulo IV: Seção I (art. 4º); Seção III
(arts. 11 e 12-A); Seção IV (arts. 13 a 24) e Seção V (art. 25), além dos arts. 26 a 27-A,
já inseridos no capítulo que trata da Prática Desportiva Profissional.
43
c) Financiamento público do esporte – este é um ponto que também padeceu com as
sucessivas alterações legislativas, encontrando-se parte disciplinado na Seção II do
Capítulo IV (Recursos do Ministério do Esporte; arts. 5º a 10) e outra parte no Capítulo
VIII, que trata especificamente “Dos Recursos Para o Desporto” (arts. 56 e 57). Tal
objeto será tratado com mais detalhes no Módulo 4.
d) Regramento trabalhista – inserido no capítulo que trata da Prática Desportiva
Profissional, disciplina direitos e obrigações dos atletas profissionais (arts. 27 a 46), tendo
especial ênfase no futebol e constituindo objeto de estudo de tópico do Módulo 3.
e) Ordem desportiva – estabelece as diretrizes gerais para a manutenção da ordem e
disciplina desportivas, distribuindo competências disciplinares, arrolando as sanções
possíveis e traçando as bases para a instituição da Justiça Desportiva. As suas normas estão
mais sistematizadas nos Capítulos VI (arts. 47 a 48-C) e VII (arts. 49 a 55-C). Também
será objeto de análise específica no Módulo 4.
Feito esse quadro e remetidas lições mais específicas a outros módulos deste trabalho, cabe
apreciar, no próximo tópico, as normas fundamentais estatuídas pela Lei Pelé.
Art. 1º [...]
§ 1º A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e
internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade,
aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.
§ 2º A prática desportiva não formal é caracterizada pela liberdade lúdica
de seus praticantes.
44
Princípios gerais do esporte
A previsão do art. 1º, § 1º, tem interligação com o chamado princípio da soberania, o
primeiro arrolado no art. 2º da Lei Pelé, que lista 12 diferentes princípios gerais e ainda aponta para
cinco outros especificamente aplicáveis ao esporte profissional. Veja-se cada um deles:
Por outro lado, o § 3º do mesmo art.1º, inexistente na redação original da Lei Pelé e
introduzido pela Lei nº 13.322, de 28 de julho de 2016, prevê a inserção do País na esfera
internacional dos direitos e das garantias desportivas: “Art. 1º [...] § 3º Os direitos e
garantias estabelecidos nesta Lei e decorrentes dos princípios constitucionais do esporte
não excluem outros oriundos de tratados e acordos internacionais firmados pela
República Federativa do Brasil”.
45
h) Princípio da autonomia – reproduz, no inc. II, princípio já consagrado na Constituição
da República, definindo tal autonomia como a “faculdade e liberdade de pessoas físicas e
jurídicas organizarem-se para a prática desportiva”.
j) Princípio da liberdade – neste caso, embora o Brasil, como será visto mais adiante,
vincule-se, na prática formal, ao chamado modelo europeu do esporte, inserindo-se no
sistema piramidal de governança ali existente, indivíduos e agremiações podem atuar à
margem de tal sistema institucionalizado, ou mesmo instituir um sistema paralelo,
havendo, segundo tal princípio, a clara possibilidade de mesclar-se, no Brasil, o modelo
europeu com aquele norte-americano de governança esportiva.
46
m) Princípio da identidade nacional – também replica outro princípio constitucional,
relativo à proteção da manifestação desportiva nacional.
Dessa forma, a divisão de recursos públicos e privados pode, por exemplo, condicionar-
se aos resultados obtidos ou a compromissos de atingimento de meta. O princípio
também pode incidir para preservar o caráter competitivo ínsito a qualquer manifestação
esportiva, evitando investidas “politicamente corretas” que eventualmente desnaturem a
efetiva valorização dos vencedores de disputas esportivas em qualquer nível.
47
r) Princípio da eficiência – tem estreita relação com o já citado princípio da qualidade e é
explicitamente associado ao “estímulo à competência desportiva e administrativa”, e mais
do que o desenvolvimento do esporte brasileiro “dentro do campo”, tem importante
atuação na modernização da gestão esportiva.
Tamanho poder e certa distorção no tratamento diferenciado que recebem criou uma
estrutura opaca, que não raro faz mau uso dos crescentes recursos canalizados para o
desenvolvimento do esporte. Dessa forma, a percepção de recursos públicos, por razão
evidente, demanda práticas e sistemas transparentes, viabilizando a fiscalização do
emprego de tais verbas do erário.
Mas também a gestão administrativa deve apresentar uma maior publicidade, expondo-
se ao meio social como um todo e, em especial, à comunidade envolvida na organização
e prática de determinada modalidade – atletas, público, patrocinadores, profissionais
técnicos e árbitros –, viabilizando o controle de uma atividade monopolizada de fato, mas
que não pode “pertencer” a um determinado grupo ou indivíduo.
48
A transparência, neste caso, é ferramenta para o incremento do controle social da
atividade esportiva, criando efetivas condições para o envolvimento comunitário com o
desenvolvimento de cada modalidade.
Portanto, o patrimonialismo explícito que sempre dominou a gestão dos clubes e das
federações deve necessariamente ceder a práticas estritamente ligadas aos objetivos de
desenvolvimento do esporte, ou até mesmo à geração de lucros a partir da atividade
desportiva. A conduta do gestor esportivo deve aproximar-se daquela de quem
administra recursos públicos, visto que, na própria dicção da Lei Pelé, “a organização
desportiva do País [...] integra o patrimônio cultural brasileiro e é considerada de elevado
interesse social” (art. 4º, § 2º), constituindo-se como bem imaterial integrante do
patrimônio comunitário.
Neste sentido, a remissão às lições do Direito Administrativo ilustra as obrigações
impostas pela incidência do princípio da moralidade na gestão desportiva:
88
FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 106.
49
O princípio da moralidade administrativa impõe, além da honestidade, o
cuidado no trato da coisa pública, nas intenções, na qualidade do resultado
obtido. [...] O controle da moralidade reforça o dever de motivação e
explicitação das finalidades [...].89
O dirigente esportivo, por analogia ao gestor público, lida com recursos de interesse social e
deve fazê-lo com retidão de propósitos e voltado para a produção de resultados efetivos para
o desenvolvimento do esporte.
t) Princípio da responsabilidade social dos seus dirigentes – contido no inc. III do parágrafo
único do art. 2º, é verdadeiro desdobramento do princípio da moralidade descrito acima, na
medida em que cobra o cumprimento do papel modelar que a sociedade espera do esporte.
Os dirigentes devem ser os responsáveis primeiros pela custódia dos valores de cidadania,
respeito, tolerância, honestidade e excelência que se espelham na atividade esportiva.
Introduzidos tais princípios específicos pela Lei nº 10.672, de 15 de maio de 2003, desde
então a legislação vem buscando controles mais estritos sobre a atuação dos gestores nessa
área.
89
SOUTO, Marcos Juruena Villela. Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 193, 194.
50
Manifestações do esporte brasileiro
As linhas básicas de ordenação do esporte brasileiro são fechadas no art. 3º da Lei Pelé, nos
seguintes termos:
Como se vê, tal artigo dispõe sobre as manifestações esportivas, originalmente escalonadas
em três níveis: educacional, participação e rendimento. A primeira, como já visto, conta com a
prioridade no financiamento público das suas atividades e prepara o indivíduo para a prática do
esporte, o autoconhecimento corporal e a imersão nos valores morais e comunitários cuja apreensão
pode ser catalisada pela prática atlética.
51
O avanço no desporto educacional gera o público que se engajará voluntariamente, em
diferentes graus, no chamado desporto de participação, entendido como expressão do direito ao
lazer e fator de integração comunitária e promoção de hábitos de saúde.
Tanto uma manifestação esportiva quanto outra deságuam no desporto de rendimento, para
onde são naturalmente direcionados os indivíduos mais talentosos, que integrarão equipes
profissionais e representarão o País em competições internacionais, cumprindo o objetivo de fazer
o esporte um fator ainda mais ostensivo de fortalecimento de laços comunitários e divulgação de
imagem positiva do País na comunidade internacional.
Não bastasse tanto, as cifras cada vez mais expressivas do esporte como negócio também
justificam o reconhecimento e o incentivo à organização do desporto de rendimento, como setor
vibrante e relevante da economia nacional.
Por fim, o destaque individual obtido pelos atletas de alto rendimento serve como atrativo
para novos praticantes, que pela admiração aos seus ídolos e feitos, buscam emulá-los no
engajamento e na prática das respectivas modalidades esportivas.
Já o desporto de formação é um acréscimo feito pela Lei nº 13.155, de 4 de agosto de 2015,
a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal do Esporte (LRFE), diploma com notório objetivo
modernizador da estrutura esportiva, e parece ser uma distinção útil e importante do desporto
educacional, visto que o objetivo, nessa manifestação, é explicitamente preparar um atleta,
afastando-se da instrumentalização da atividade esportiva para fins educacionais. Nesse caso, não
será tão grande a mitigação da competitividade ínsita ao esporte, mas exigida pela pauta singular do
desporto educacional.
Por fim, o mesmo artigo também define o desporto profissional e o não profissional,
afastando a noção de amadorismo absoluto deste último, permitindo o “recebimento de incentivos
materiais e patrocínio”, o que muitas vezes pode ser utilizado como método de burla, gerando
alguma insegurança na remuneração de atletas de alto rendimento, como será visto mais adiante
neste trabalho.
52
O financiamento público do esporte, como fruto do dever constitucional e legal de fomento
a esta atividade, também foi objeto de disciplina específica, primeiro pela chamada Lei Agnelo-Piva
(Lei nº 10.264, de 16 de julho de 2001), que garantiu o repasse de recursos das loterias federais
para diversas entidades esportivas. Nesse mesmo contexto, a Lei Federal de Incentivo ao Esporte
(Lei nº 11.438, de 29 de dezembro de 2006) estabeleceu as condições para a canalização de recursos
privados para o esporte por meio de renúncia fiscal da União.
Por fim, a ordem desportiva é objeto de regramento quase integral pelo Código Brasileiro de
Justiça Desportiva, instituído pela Resolução nº 29, de 10 de dezembro de 2009, do Conselho
Nacional do Esporte (CNE), órgão do Ministério do Esporte, cuja competência normativa neste
caso foi explicitamente fixada no art. 11, VI, da Lei Pelé.
53
O CNE “é o órgão colegiado de normatização, deliberação e assessoramento, diretamente
vinculado ao Ministro de Estado do Esporte” (art. 11, caput, da Lei Pelé). Tem competências
relevantes entre os oito incisos do referido art.11, tais como aprovar os Códigos de Justiça
Desportiva e o Código Brasileiro Antidopagem, assim como oferecer subsídios técnicos ao Plano
Nacional do Desporto, que deveria ser o documento a nortear as políticas públicas na área.
Entretanto, o órgão, que deveria ser uma instância de composição plural e polo de atração
social para o debate a respeito do esporte nacional, fica a reboque da vontade pessoal do ministro
do Esporte, uma vez que é composto de “vinte e dois membros indicados pelo ministro do Esporte”
(art. 12-A). Um processo mais amplo de escolha e mais independente da linha política do ocasional
titular do ministério incrementaria em legitimidade a sua composição e atrairia mais atenção
pública às suas funções.
Já o SND é formado pelas entidades que efetivamente organizam, promovem e executam as
atividades esportivas no País. Previsto no art. 13 da Lei Pelé, tem uma previsão genérica de
composição, bem como indica explicitamente as entidades de atuação mais destacada na área:
54
Dessa forma, o “gancho” que sempre se buscou utilizar nesse esforço de modernização da gestão
esportiva foi o renitente estado falimentar de clubes e federações, que formou, ao longo dos anos,
passivos das mais diferentes naturezas, mas especialmente de índole fiscal, conferindo à União a
possibilidade de atrair adesão às suas iniciativas por meio da estabilização financeira de tais entidades,
ou mesmo da disponibilização de recursos públicos para a expansão das suas atividades finalísticas.
Nesse sentido, foram instituídos, não só na Lei Pelé, mas também na LRFE, requisitos para o
acesso ao custeio público das atividades esportivas, que podem ser divididos em seis grandes grupos:
55
Outro aspecto importante é o estabelecimento de garantias mínimas no processo eleitoral,
tal como previsto no art. 22 da Lei Pelé:
56
A estreita via em que a legislação pode perseguir as transformações necessárias no panorama
da gestão desportiva é aquela, como visto, da indução, tendo a autonomia desportiva sido
reiteradamente invocada como escudo para manter a impermeabilidade da estrutura da governança
esportiva a uma já muito tardia modernidade.
Outro instrumento que controla o acesso a recursos públicos é o chamado contrato de
desempenho, instituído para vincular os Comitês Olímpico e Paralímpico Brasileiros e as entidades
de administração – federações e confederações esportivas – a parâmetros objetivos de avaliação e
controle. Eis a sua definição legal:
57
A fiscalização do cumprimento dos requisitos para a permanência de um clube no Profut foi
atribuída à Autoridade Pública de Governança do Futebol (Apfut), instituída pelo art. 19 da LRFE:
Como se vê, “pegando os clubes pelo bolso”, a Administração Federal investe na tentativa de
criar um ambiente de modernidade, havendo exigências detalhadas e rigorosas para a manutenção
dos clubes no programa de parcelamento de dívidas fiscais em questão, tendo-se instituído um
colegiado com uma pretensão plural, em que se garantiria a efetividade das previsões da LRFE.
Contudo, mais uma vez, concentra-se muito poder na própria Administração Federal, na
medida em que, havendo 10 integrantes na Apfut, cinco são oriundos da própria União – três
representantes do Ministério do Esporte, um do Ministério da Fazenda e um da Casa Civil (art. 2º,
I a III, e § 2º, do Decreto nº 8.642, de 19 de janeiro de 2016), e oito são indicados pelo próprio
ministro do Esporte, sendo os outros dois indicados pelos titulares das duas outras pastas
ministeriais mencionadas acima (art. 2º, §§ 4º e 6º, do Decreto nº 8.642/16).
Como mérito, a Apfut, se conduzida com seriedade de propósitos pela Administração
Federal, poderá constituir-se em um órgão de controle estrito sobre a governança das entidades
aderentes ao Profut, assegurando o desenvolvimento da cultura de transparência, responsabilidade
e eficiência muitas vezes ignoradas pela cartolagem nacional.
58
MÓDULO III – DIREITO EMPRESARIAL
DO ESPORTE
Apresentação
Traçado um panorama geral sobre o regramento global e nacional do esporte nos dois
primeiros módulos deste trabalho, cumpre agora iniciar a análise do seu papel como verdadeira
indústria, setor econômico de crescente relevância e que demanda a instituição de instrumentos
jurídicos compatíveis com as suas especificidades. Nesse sentido, é útil a remissão às considerações
de Mark James sobre a natureza cambiante das relações jurídico-desportivas:
90
JAMES, Mark. op. cit. p. 233.
Neste módulo, serão apresentadas as singularidades das formas societárias desportivas, o aparato
jurídico existente em torno da organização de eventos desta natureza, assim como as peculiaridades
das relações de trabalho firmadas entre as entidades de prática desportiva e os seus atletas.
91
Aqui entendida a liga como a entidade que organiza um determinado torneio, tal como explicitado no item 1.4 deste trabalho.
92
Funcionando no sistema de franquias, em que os times se alocam em uma cidade específica, de acordo com os
interesses econômicos da liga, as localidades mencionadas na citação se referem justamente às cidades-sede das
grandes ligas norte-americanas.
93
No original, pennants, literalmente traduzido por galhardetes, remetendo à tradição das equipes norte-americanas de
ostentar, nos seus respectivos estádios, galhardetes indicativos de cada título de divisão, conferência ou da própria liga,
conquistados pelos seus times. Importante assinalar que as ligas norte-americanas usualmente se dividem em duas
conferências, e cada conferência se compõe de algumas divisões. A conquista de cada uma delas é celebrada em maior
ou menor escala, dependendo da modalidade considerada, como um título.
60
jogos da pós-temporada. 94 Como constantemente lembrado pelo Comissário
Pete Rozelle aos proprietários dos times da NFL, “se você não pertencesse a
uma liga e só tivesse times disputando scrimmages95 uns contra os outros, você
não poderia esperar muitas pessoas querendo assisti-los.”96
Portanto, embora o esporte se calque na disputa entre as diversas equipes, o esporte profissional,
atividade que se constitui na grande parcela da chamada indústria esportiva, demanda que os adversários
em campo sejam parceiros, sócios, fora dele, como bem destaca Andrew Zimbalist:
Diante disto, impõe-se analisar dois graus de organização societária no esporte: aquele referente
às equipes – entidades de prática desportiva –, e o relativo às chamadas entidades de administração
desportiva – ligas, federações, associações e confederações.
94
A pós-temporada, nas grandes ligas norte-americanas, é o primeiro objetivo a ser alcançado em cada ano de
competição, já que representa a passagem, após a temporada regular, onde se joga em um sistema similar aos chamados
pontos corridos, para a etapa de jogos eliminatórios que levarão à disputa do título da liga respectiva.
95
Referindo-se a um discurso do Comissário da Liga de futebol americano (National Football League), a menção às
scrimmages denota um elemento básico do esporte: a chamada linha de scrimmage é o traço fictício que atravessa o
campo no seu eixo longitudinal, separando as equipes em disputa. É sobre ela que a bola é repousada antes do início da
jogada e é ela que serve de referência para a contagem das jardas necessárias à manutenção da posse de bola. Sendo o
futebol americano um esporte de disputa essencialmente territorial, a disputa pelo avanço ou não da linha de scrimmage
é um elemento crucial na determinação da vitória. Portanto, o Comissário busca contextualizar a potencialização que a
organização de uma liga proporciona: se não houvesse tal produto coletivo – a liga –, o esporte se reduziria a aleatórias
disputas pela linha de scrimmage, e não por um prêmio singular: o título representado pela conquista de uma Divisão, da
Conferência ou mesmo pelo êxito no Superbowl.
96
DANIELSON, Micheal. Overview of the professional model. In: ROSNER, Scott R.; SHROPSHIRE, Kenneth L. The business of
sports. Sudbury: Jones & Bartlett, 2011, p. 53.
97
ZIMBALIST, Andrew. Sport as a business. In: ROSNER, Scott R.; SHROPSHIRE, Kenneth L. op. cit. p. 12.
61
especialmente disseminado na Inglaterra, que tem usufruído de gigantescos aportes de recursos
financeiros pela pura e simples compra do controle das empresas em que se transformaram os clubes
tradicionais daquele país.
Aliás, esse sistema de controle individual sobre uma determinada equipe também é muito comum
nos Estados Unidos, em que as franquias das grandes ligas muitas vezes se identificam com o seu próprio
“dono”.
Neste sentido, tais equipes se constituiriam no que poderia ser qualificado no Brasil como uma
empresa familiar, normalmente organizada sob a forma de uma sociedade por quotas de
responsabilidade limitada, ou ainda uma sociedade anônima de capital fechado, em que o controle da
quase totalidade das quotas pertenceria a um só indivíduo ou, no máximo, a um grupo familiar restrito.
Uma exceção relevante nesse quadro é o caso do Green Bay Packers, tradicionalíssima equipe de
futebol americano, um dos maiores vencedores do Superbowl e identificado com o técnico que dá nome
ao próprio troféu principal da NFL, Vince Lombardi. Ao contrário dos demais times da liga em questão,
o Green Bay Packers, embora seja uma sociedade empresarial, tem o seu controle pulverizado por
milhares de indivíduos, quase sempre residentes da pequena cidade de Green Bay, que mantêm a sua
participação societária como uma demonstração de vínculo com a comunidade, que tem na equipe um
dos seus maiores – senão o maior – orgulhos.
Na outra ponta do espectro, encontra-se a estrutura societária tradicional no Brasil, e também
existente em alguns países da Europa: a organização sob a forma de associação civil sem fins lucrativos.
Amplamente prevalente no Brasil, tal modelo também se faz presente, por exemplo, nos dois gigantes
do futebol espanhol, Real Madrid FC e FC Barcelona.
Nesse caso, as equipes se constituem como clubes, cuja natureza jurídica é justamente a de
associação civil, tendo um quadro de associados que periodicamente elegem um corpo dirigente não
remunerado, que exerce o poder de administração do clube por um mandato pré-determinado.
Tal modelo de organização societária é muito propenso à politização da gestão interna dos clubes,
confundindo a administração do esporte profissional com as demandas de cunho social dos seus
associados, muitas vezes preocupados com a limpeza da piscina ou com a “necessidade imperiosa” de se
reforçar a equipe de bocha da mesma agremiação.
Nesse sentido, é emblemática a perplexidade externada por Pedro Trengrouse:
62
[...] Por que o diminuto quadro social dos clubes ainda dá as cartas na gestão
do patrimônio das suas torcidas? Pode o presidente do Flamengo, que
representa 40 milhões de torcedores e administra quase R$ 400 milhões/ano,
ser eleito com apenas 1.414 votos?98
Diante disto, indaga-se: qual é o modelo societário mais adequado? A presença de Real
Madrid e Barcelona do mesmo lado em que estão os falidos clubes brasileiros mostra que não há
resposta correta. A estrutura societária de uma equipe depende das suas finalidades e do seu modelo
de financiamento.
A adoção de modelos de capital fechado se mostra eficiente quando a organização tem, nos
seus associados ou no seu controlador, uma grande fonte de recursos. Os “donos” de clubes ingleses
ou das franquias das ligas norte-americanas são as garantias de suporte financeiro, ainda que se
provido em bases pouco racionais do ponto de vista econômico, como novamente destaca a lição
de Andrew Zimbalist:
Esses aspectos singulares das ligas esportivas levam aos proprietários dos
times a se comportar diferentemente dos donos de outros negócios? O
preeminente cronista esportivo Leonard Koppett (1973, p. 11),
escrevendo 30 anos atrás na New York Times Magazine, sugere que sim:
“Proprietários de times não são empresários comuns. Para começar, lucro
não é o motivo primário para tal proprietário. Qualquer homem com os
recursos para adquirir um time das grandes ligas pode encontrar meios de
fazer melhores investimentos por dólar. Seu retorno em termos de prestígio
social [...] Um homem que toca um negócio de $ 100 milhões anuais é
geralmente anônimo aos olhos do grande público; um homem que detém
até mesmo uma parcela de um clube esportivo que arrecade $ 5 milhões
num ano é uma celebridade. Sua foto e seus comentários são
repetidamente publicados em jornais, conhecidos em cada canto de sua
comunidade [...] Isto não significa, obviamente, que clubes esportivos não
busquem lucros [...] mas o mote principal é ter um time popular e
vencedor [...] e aquela motivação acarreta importantes diferenças do
comportamento empresarial ‘normal’”.
98
TRENGROUSE, Pedro. Novos modelos para um novo futebol. Prefácio na obra de MARTINS, Fernando Barbalho. Futebol:
manual de (re)montagem. op. cit. p. 26.
63
Para confirmar, muitos economistas concordam com esta perspectiva.
Peter Sloane, no seu conhecido artigo sobre o futebol inglês, afirma: “É
bastante evidente que diretores e cotistas investem dinheiro em clubes de
futebol não por causa de expectativas de ganhos pecuniários, mas por
razões psicológicas como a ânsia de poder, o desejo de prestígio, à
propensão à identificação com o grupo e ao sentimento de lealdade de
grupo que lhe é relacionada” (SLOANE, 1971, p. 134). 99
99
ZIMBALIST, Andrew. op. cit. p. 12.
100
É emblemático o episódio do Baltimore Colts, que pretendendo que a prefeitura lhe estendesse favores fiscais para a
construção de um novo estádio, chantageou a cidade com a ameaça de mudança de sede. Como a municipalidade não
cedeu à chantagem, o proprietário do time, de um dia para o outro, mudou toda a sua estrutura para Indianápolis,
levando até mesmo as traves do campo de jogo!
64
II - constituir sociedade comercial com finalidade desportiva, controlando
a maioria de seu capital com direito a voto;
III - contratar sociedade comercial para gerir suas atividades desportivas.
Em que pese ao ímpeto reformador daquela iniciativa legislativa, o efeito concreto de tal
comando normativo foi quase nulo. Revogada pela Lei Pelé, a atual norma geral do desporto
brasileiro, além de reproduzir previsão semelhante (art. 27, § 9º), 101 cria mecanismos que, embora
não obriguem a conversão das agremiações esportivas em sociedades empresárias, estendem o
regime próprio destas àqueles clubes e entidades que atuem profissionalmente.
De fato, ainda que o art. 26 afirme que “atletas e entidades de prática desportiva são livres
para organizar a atividade profissional, qualquer que seja sua modalidade”, o artigo seguinte estatui
claramente no seu § 13:
101
É facultado às entidades desportivas profissionais constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo
um dos tipos regulados nos arts.1.039 a 1.092 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.
65
c) representação de atletas nos órgãos e conselhos competentes para a aprovação de
regulamentos de competições (art. 18-A, V, da Lei Pelé);
d) representação de atletas na direção da entidade (art. 18-A, VII, “g”, da Lei Pelé) e
e) participação dos atletas na eleição para os cargos da entidade (art. 18-A, VII, “g”, da Lei Pelé).
Mecanismos de transparência
Além do dever genérico de divulgação de dados econômicos e financeiros (art. 18-A, IV, da
Lei Pelé), as entidades desportivas deverão instituir procedimentos e mecanismos que assegurem o
acesso de todos os associados às informações relativas à sua prestação de contas, assim como a
publicação dos seus dados gerenciais em sítio eletrônico (art. 18-A, VIII, da Lei Pelé).
Sistemas de controle interno
A legislação institui a obrigação de existência de conselho fiscal autônomo (art. 18-A, VI, da
Lei Pelé) e instrumentos de controle social (art. 18-A, VII, “b”, da Lei Pelé), além do dever de
sujeição das contas da entidade à apreciação do referido conselho fiscal e à aprovação de conselho
de direção (art. 18-A, VII, “f”, da Lei Pelé).
No âmbito específico do futebol, o esforço legislativo de aprimoramento da governança
societária das entidades desportivas traduz-se, no momento em que esta apostila está sendo revisada,
na tramitação de dois projetos de lei perante o Congresso Nacional, um já aprovado pela Câmara
dos Deputados (o PL nº 5.082/2016) e aguardando apreciação pelo Senado Federal, e o outro (o
PL 5.516/2019) originado no mesmo Senado Federal e que, provavelmente, será discutido em
conjunto com aquele proveniente da Câmara dos Deputados.
Importante assinalar que o PL 5.082/2016 foi substancialmente alterado na sua tramitação,
tendo o seu substitutivo muito pouco da concepção original, sendo grande parte das suas previsões
reeditadas no PL 5.516/2019.
Tanto a redação original do PL 5.082/2016 quanto o PL 5.516/2019 concentram os seus
esforços na criação da Sociedade Anônima do Futebol (SAF), espécie societária que induziria
requisitos ainda mais rigorosos de transparência e profissionalização da gestão das entidades de
prática de futebol profissional.
Com efeito, das quatro formas de constituição de uma SAF, três envolvem a participação
efetiva de um clube na sua forma tradicional de associação civil, seja pela sua transformação integral
em SAF, seja pela transferência dos seus ativos e direitos relacionados à prática do futebol
profissional para a nova SAF, ou ainda pelo estabelecimento de uma parceria com terceiro (pessoa
natural ou jurídica) e a consequente criação de SAF que formalize e concretize tal parceria. No PL
5.516/2019, de origem no Senado Federal, esta última possibilidade não foi contemplada.
66
Na esteira dessas premissas, que revelam o principal objetivo dos PLs, justamente a
modernização da estrutura societária dos clubes tradicionais de futebol profissional, os textos
legislativos buscam disciplinar a sucessão e a distinção de obrigações entre clubes e SAFs, o
compartilhamento de propriedade intelectual relativa à prática do futebol e a forma de utilização
das instalações esportivas do clube pela SAF, caso tais bens não tenham sido empenhados na
subscrição do capital social da nova sociedade.
A preservação da identidade social, cultural e esportiva de associações centenárias é preservada
pela instituição de Golden share, a chamada “ação ordinária classe A”, detida pelo clube que deu
origem à SAF e que lhe confere direitos especiais de veto na deliberação das seguintes matérias:
a) negociação de bens imóveis ou de propriedades intelectuais do clube ou por ele utilizados
para integralização do capital social;
b) reorganização societária ou cessão de ativos relacionados à gestão do futebol;
c) dissolução, liquidação ou extinção da SAF;
d) falência ou recuperação judicial da SAF;
e) alteração do nome da agremiação esportiva;
f) modificação de símbolos, escudos, marca, alcunha, hino ou cores da agremiação esportiva e
g) mudança de estádio ou de sede territorial da agremiação esportiva.
Os dois PLs também instituem salvaguardas à lisura das competições e à integridade das
próprias SAFs, estabelecendo:
os deveres de informação para quem detenha participação relevante no capital de social
de SAF;
a obrigatoriedade de ações nominativas, para coibir ocultação de investidores e lavagem
de dinheiro; e
a proibição de duplo controle de SAF’s que participem da mesma competição.
67
Como estímulo à conversão dos clubes ao novo modelo, mais uma vez a legislação busca
incentivos financeiros, normalmente atrelados à redução do passivo monumental acumulado pelos
clubes ao longo dos anos.
Neste caso, são três as medidas: a instituição de um programa de refinanciamento fiscal
(REFUT), a possibilidade de dedução no imposto de renda pela adesão a Programas de
Desenvolvimento Educacional e Social (PDEs), em que as despesas comprovadamente realizadas
em projetos de tal natureza podem ter o triplo do seu valor deduzido do lucro tributável apurado,
e, finalmente, a instituição da chamada Debênture-Fut, título mobiliário com tratamento tributário
favorecido no imposto de renda, para captação de recursos no mercado.
A grande convergência entre a redação original do PL 5.082/2016 e o PL 5.516/2019 se deve,
como foi antecipado, à amplíssima revisão do texto do primeiro projeto, na sua discussão na Câmara
dos Deputados, que se transformou numa peça com grande ênfase em favores fiscais para os clubes.
Com efeito, a discussão do chamado clube-empresa restringe-se a quatro artigos, onde se abre
todo o leque de espécies societárias para a conversão, afrouxando-se de forma expressiva os requisitos
de governança, tanto pelo menor detalhamento do funcionamento do clube-empresa quanto pelo
abrandamento ou pura e simples supressão de diversas exigências de transparência e
profissionalismo da sua gestão.
Para além de tais quatro artigos, o substitutivo do PL 5.082/2016 cria um regime de
tributação simplificada para o futebol (Simples-Fut), que ainda permite dedução dos custos com o
futebol feminino e com projetos sociais do valor dos tributos devidos; institui novo programa de
refinanciamento fiscal; e cria vantagens trabalhistas para os clubes-empresa.
Também permite uma automática recuperação judicial dos clubes que se converterem ao
regime empresarial e, ao mesmo tempo, exclui a penhorabilidade das propriedades intelectuais dos
clubes, excluindo talvez os ativos mais valiosos de tais agremiações de qualquer negociação atinente
aos seus gigantescos passivos.
Como estão ainda em tramitação ambos os PLs destacados, é importante relembrar o que já
foi afirmado acima: a adoção de uma ou outra forma societária não é garantia de sucesso.
Endossando tal entendimento, impõe-se a remissão à abalizada avaliação de César Grafietti, autor
de alentado estudo sobre os modelos de clube-empresa em discussão no Brasil:
68
No caso dos instrumentos de controle social, a regulamentação da Lei Pelé positivou tal
exigência na instituição de representação, em órgãos consultivos da entidade, da comunidade ou
grupo social envolvido nos projetos financiados por recursos públicos.
Organização de eventos
As diversas competições esportivas, desde os torneios mais simples até os megaeventos que o
mundo testemunha a cada dois anos, como os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo de Futebol,
são, ao mesmo tempo, plataformas comerciais e meios de difusão do esporte.
Uma síntese adequada da importância dos eventos esportivos para o desenvolvimento dessa
indústria é dada pela Ciência da Administração:
69
O consumidor de esportes contrata um serviço ou compra um produto
com base naquilo que lhe foi prometido e nas expectativas que lhe foram
criadas. Sendo assim, é preciso ficar continuamente atento sobre se o que
lhe está sendo entregue corresponde exatamente às expectativas criadas.
Além das questões de comercialização dos ingressos em si, aspecto que durante muito tempo
era – e ainda o é em certa medida – crucial para o sucesso financeiro de uma competição, há
inúmeros elementos que cercam a realização de qualquer evento esportivo, desde a segurança das
instalações até a contratação de patrocínios e de direitos de transmissão.
A organização de eventos esportivos, sob o ponto de vista jurídico, se calca em duas frentes
distintas: a primeira é de natureza obrigacional privada, materializando-se em um feixe considerável
de contratos; enquanto a segunda interage de forma intensa com os ramos do Direito
Administrativo, na medida em que inúmeros licenciamentos são necessários, em especial naqueles
eventos de grande porte.
Analisando a estrutura jurídica dos eventos esportivos, David Becker lista diversas espécies de
contratos que podem ser firmados para a organização de uma competição atlética que tenha
repercussões públicas:
contratos de gestão de evento;
contratos de transmissão;
contratos de merchandising;
contratos de participação;
contratos de programas de souvenir;
contratos de aluguel de instalação esportiva;
contratos de bilhetagem;
contratos de patrocínio;
contratos de hospitalidade e
contratos de sede de evento. 103
102
BLANCO, Lucio da Silva. Gestão de eventos esportivos. In: MATTAR, Michel Fauze; MATTAR, Fauze Najib (Orgs.). Gestão
de negócios esportivos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013, p. 257.
103
BECKER, David. The essential legal guide to events. Cape Town: Dynamic Publishing, 2007.
70
Tais contratos podem envolver partes estrangeiras ou se sujeitarem a padrões preestabelecidos
pelas entidades internacionais de administração do desporto envolvido no evento, gerando questões de
Direito Internacional Privado, quanto à aplicação de regras de outros ordenamentos jurídicos.
A miríade contratual que sempre está por trás de eventos esportivos traduz, em larga medida, a
multiplicidade de atores neles envolvidos: clubes, entidades de administração desportiva,
patrocinadores, redes de comunicação detentoras dos direitos de transmissão, jornalistas credenciados,
público, atletas, pessoal de apoio, administradores e operadores da arena esportiva, e outro sem-número
de prestadores de serviços e fornecedores de produtos relacionados ao evento em si, aos clubes e às
demais entidades envolvidas no espetáculo.
Do outro lado, quanto maior o público, maior a necessidade de segurança e maior o impacto do
evento na cidade que o sedia. Nesse sentido, são diversas as licenças, permissões e autorizações a serem
obtidas para a regular realização de uma competição pública, havendo enorme variação de órgãos
públicos envolvidos, dependendo da legislação local sobre a realização de eventos.
Essa intrincada teia de vínculos jurídicos e obrigações públicas e privadas assumidas pelos diversos
agentes envolvidos na realização de um evento esportivo se desdobram em três esferas de
responsabilidade: cível, criminal e administrativa, demandando um intenso trabalho preventivo tanto
no âmbito jurídico, quanto naquele operacional.
A atuação preventiva em eventos dessa natureza se consolida na atividade de gerenciamento de
risco, assim definido pela doutrina:
104
NAIDOO, André. Event management. Londres: Informa Professional Academy, 2015. p. 48. Tradução livre.
71
Nesse sentido, uma cuidadosa redação dos contratos é crucial, mas também é imperiosa a
atenção, no Brasil, ao rigoroso regime estabelecido pelo EDT, instituído pela Lei nº 10.671/03.
Com efeito, o EDT se constitui em reconhecimento do impacto econômico detido pelo
esporte, e da incontornável necessidade de sujeição dos clubes e das federações aos ditames que
disciplinavam a oferta em massa de serviços e produtos em outros setores comerciais. É na esteira
desta premissa que o EDT entrou em vigor, sendo editado claramente com base na competência
do art. 24, V, da Constituição da República, que confere à União a prerrogativa de disciplinar o
consumo e a defesa do consumidor, consolidando o esporte de desempenho – em especial, mas não
exclusivamente o futebol – como importante ferramenta econômica, a merecer consistente
disciplina jurídica, que permita o resguardo da sua possibilidade de desenvolvimento, com frutos
para toda a sociedade.
Analisando-se o âmbito de incidência do EDT, verifica-se que o art. 2º estabelece:
Tal dispositivo legal apressa-se em dar a mais larga definição do sujeito da defesa preconizada
pelo EDT, identificando como torcedor qualquer pessoal que se insira em uma das três atividades
descritas pelo tipo legal: apreciação, apoio e associação, meios de filiação que externam grau
crescente de comprometimento individual com a entidade desportiva, configurado nas esferas
emocional, material e jurídica.
A primeira delas traduz a grande parte da torcida nacional, expressando a identificação
subjetiva, de conteúdo emocional ou estético com determinada entidade de prática desportiva,
revelada pela admiração e a contemplação das suas realizações, sem maiores repercussões de
natureza material.
No outro extremo, ao prever a associação como meio de identificar o torcedor, o EDT
estende a sua tutela não só àqueles que compõem o quadro social da entidade de prática desportiva,
mas também a uma categoria de associados recentemente introduzida na realidade dos clubes
brasileiros: o sócio-torcedor, normalmente caracterizada por uma filiação com direitos restritos,
normalmente, em troca de contribuição pecuniária, a preços diferenciados ou preferência para
aquisição de ingressos.
No ponto médio dessas duas caracterizações está o chamado apoio, que exige a exteriorização
de algum ato concreto, objetivamente aferível, no sentido de contribuir para o desenvolvimento das
ações da entidade desportiva, não sendo necessário, entretanto, que tal ato tenha natureza econômica.
72
Nada obstante, o ato mais frequentemente aferível de apoio é justamente a aquisição de ingresso
para o comparecimento a algum evento esportivo envolvendo a sua agremiação de preferência, ou
seja, tanto no que diz respeito ao referido apoio, quanto à própria associação, o ato mais comum de
exteriorização de tal enquadramento como torcedor é o comparecimento ao estádio.
Embora não só esse tipo de atividade seja enquadrável como torcida para os fins legais, é o
mais relevante para a análise encetada neste tópico, na medida em que se busca apreciar a incidência
do EDT sobre a gestão dos eventos esportivos.
Ao lado da qualidade do espetáculo e dos serviços a ele associados, um ponto central da
atuação de um gestor de eventos esportivos deve ser a garantia da segurança de cada um dos
torcedores presentes ao equipamento em que estes vierem a ocorrer, estendendo-se a
responsabilidade a um amplo feixe de destinatários, como deixa bem claro o art.1º-A do EDT:
A partir desta premissa, percebe-se que os responsáveis pelo evento esportivo devem tomar
todas as providências para salvaguardar a segurança dos torcedores que a ele comparecerem. Tal
dever de cuidado é positivado com mais detalhes no art. 14 do EDT, que atribui ao mandante da
partida – agremiação que detém o controle da sede em que se realizará a competição –, 105 as
seguintes obrigações:
solicitação prévia de presença de forças públicas de segurança dentro e fora do local de
realização do evento (inc. I);
105
O EDT estabelece um critério até mais abrangente, como se percebe do art.15 do referido diploma legal: “O detentor
do mando de jogo será uma das entidades de prática desportiva envolvidas na partida, de acordo com os critérios
definidos no regulamento da competição”.
73
comunicação às autoridades públicas a respeito dos detalhes do evento pretendido – local,
horário de abertura, capacidade e expectativa de público (inc. II) e
alocação de orientadores e serviço de atendimento ao público (inc. III).
74
Além da preocupação elementar, relativa à segurança, o EDT ainda busca o aprimoramento
das condições de assistência a eventos esportivos, criando um arcabouço jurídico que tenta induzir
um padrão mais elevado de serviços na indústria desportiva, criando a obrigação de venda
antecipada de ingressos (art. 20) com lugar marcado (art. 22) e preço impresso no respectivo tíquete
(art. 24). Também institui obrigações relativas a esquemas especiais e condições mínimas de
oferecimento de serviços de transporte (arts. 26 e 27) e de alimentação e higiene (arts. 28 e 29).
Importante assinalar que, enquadrada como uma relação de consumo, a presença a um evento
esportivo deve ocorrer isenta de danos ou vícios no serviço ali oferecido, sob pena da instituição de
responsabilidade solidária entre o mandante do jogo, a entidade responsável pela organização da
competição e os seus respectivos dirigentes (art. 19 do EDT).
Em meio a esse cenário, os atletas profissionais passaram a contar com maior poder de
negociação, resultando em uma escalada dos ganhos, tanto dos seus empregadores, os clubes,
quanto derivada de premiação em esportes individuais ou de publicidade associada às suas
respectivas imagens.
106
GRAY, Andy. Representing the athlete/player. Londres: Informa Professional Academy, 2014, p. 12. Tradução livre.
75
No Brasil, esse processo foi reforçado pela edição da já citada Lei Pelé, que extinguiu a figura
do “passe”, vínculo desportivo que prendia o atleta ao clube, como se aquele fosse efetiva
“propriedade” deste último, restringindo a sua liberdade profissional.
Anteriormente visto como uma relação trabalhista absolutamente sui generis, o contrato de
trabalho desportivo passou a contar com uma regulamentação legal mais próxima da realidade dos
demais trabalhadores brasileiros e, por que não dizer, mais consentânea com as balizas
constitucionais das relações de emprego.
Por outro lado, enquanto o futebol apresenta uma longa e consolidada trilha na
profissionalização das suas atividades, as demais modalidades não contam com a mesma estrutura
econômica e operacional, o que demandava a distinção entre dois mundos quase que absolutamente
distintos, ao menos no Brasil.
Nesse sentido, a Lei Pelé buscou definir os limites da competição profissional, para estabelecer
os limites dentro dos quais haverá uma incidência mais aguda da legislação trabalhista:
Art. 26. Atletas e entidades de prática desportiva são livres para organizar
a atividade profissional, qualquer que seja sua modalidade, respeitados os
termos desta Lei.
Parágrafo único. Considera-se competição profissional para os efeitos desta
Lei aquela promovida para obter renda e disputada por atletas profissionais
cuja remuneração decorra de contrato de trabalho desportivo.
76
Ainda hoje, em muitas modalidades, não são registrados contratos, mas
fichas de cadastro. O próprio ato de registro leva diferentes nomes, como
inscrição, vínculo ou filiação, e é feito de diferentes formas por sistema on-
line ou mero carimbo e assinatura. 107
107
CAÚS, Cristiano; GÓES, Marcelo. Direito aplicado à gestão do esporte. São Paulo: Trevisan, 2013, p. 73.
77
férias anuais coincidentes com o recesso das atividades desportivas da respectiva
modalidade (art. 28, § 4º, V);
possibilidade de suspensão do contrato de trabalho em virtude de impossibilidade de
atuação do atleta por ato da sua própria responsabilidade (art. 28, § 7º) e
prazo determinado para contratação – mínimo de três meses e máximo de cinco anos
(art. 30).
Além de tais derrogações específicas, a Lei Pelé também institui explicitamente um rol de
deveres para o clube e o atleta, nos seus arts. 34 e 35. Para o primeiro, o art. 34 lista como
obrigações:
registro do contrato de trabalho desportivo na entidade de administração da modalidade
desportiva em questão (inc. I);
oferecimento de condições necessárias à participação nas competições, incluindo
treinamento (inc. II) e
submissão dos atletas a exames médicos necessários à prática desportiva (inc. III).
78
A definição dessa parcela está bem delineada na obra já citada de Caús e Góes:
108
Idem. p. 213.
79
Em que pesem os propósitos identificados e a manutenção da atribuição de natureza civil à
rubrica em questão, há questões relevantes a serem observadas caso a caso, tais como a necessária
observância de acordos e de convenções coletivas já firmadas e em vigor, atos jurídicos perfeitos que
não poderiam ser alcançados pela nova norma, além do risco de formação de passivo trabalhista, na
medida em que a distribuição de recursos diretamente por parte do empregador dos atletas pode
descaracterizar a referida natureza civil preconizada pela MP.
Por fim, outra peculiaridade do regime trabalhista desportivo é o reconhecimento explícito
da legislação ao papel de formação profissional exercido pelos clubes, que muitas vezes investem
largas somas em dinheiro para o desenvolvimento de atletas desde a mais tenra idade.
Com o fim do chamado “passe”, constatou-se a possibilidade de se criar um incentivo
negativo nesta área, desestimulando-se clubes menores, tradicionalmente formadores de talentos
que “abastecem” os clubes de primeira linha. Mais do que isso, considerando-se o atual papel de
“fornecedor de mão de obra” – ou “pé de obra”, como já destacado por alguns setores da imprensa
especializada – detido pelo Brasil, a Lei Pelé evoluiu para garantir direitos aos clubes formadores de
atletas, a fim de que obtenham alguma compensação pela contratação cada vez mais precoce dos
seus atletas das categorias de base ou apenas recém-promovidos à equipe profissional.
Nesse contexto, o art. 29 outorga ao clube formador o direito a firmar o primeiro contrato,
assim como, nos seus §§ 7º a 11, o direito de preferência na sua primeira renovação contratual.
Adicionalmente, o art. 29-A institui o chamado mecanismo de solidariedade, assim disciplinado:
Como se vê, a condição de clube formador deve ser atestada pela entidade de administração
do desporto, sujeitando-se as agremiações que gerem categorias de base ao enquadramento
obrigatório às exigências baixadas pela mesma Lei Pelé, no § 2º do seu art. 29:
80
fornecimento de treinamento esportivo e complementação educacional aos atletas (inc. I);
vínculo desportivo entre atleta e agremiação igual ou maior que um ano (inc. II, “a”);
inscrição do atleta em competições oficiais (inc. II, “b”);
provimento de assistência educacional, psicológica, médica e odontológica (inc. II, “c”);
provimento de alimentação, transporte (inc. II, “c”);
garantia de convivência familiar (inc. II, “c”);
manutenção de alojamento e instalações desportivas adequadas (inc. II, “d”);
manutenção de corpo de profissionais especializados (inc. II, “e”);
compatibilidade entre a formação atlética e o programa de escolaridade (inc. II, “f” e “i”);
gratuidade da formação para o atleta (inc. II, “g”);
assunção dos custos de formação por parte da agremiação formadora (inc. II, “g”) e
participação anual em competições de pelo menos duas categorias organizadas pela
respectiva entidade de administração do desporto (inc. II, “h”);
Como se vê, a lista de requisitos é extensa e de complexo atendimento, sendo ainda muito
reduzido o número de clubes que logram atendê-la integralmente.
Em paralelo aos ajustes estritamente trabalhistas firmados entre clubes e atletas, é largamente
disseminada no meio desportivo a remuneração destes últimos por meio de contratos de
licenciamento de direitos ao uso de imagem, lastreados nos arts. 87 e 87-A da Lei Pelé:
Art. 87-A. O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido
ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação
de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de
trabalho desportivo.
Nesse caso, é cada vez mais comum o acesso à fonte de receitas extracampo. Clubes podem
fazer uso da imagem de atletas para obterem patrocínios ou realizarem campanhas de divulgação
das suas próprias marcas, disciplinando as circunstâncias em que a imagem ou o nome do atleta
poderão ser veiculados para tais fins.
81
De acordo com critérios de planejamento tributário, é quase unânime a utilização de pessoas
jurídicas controladas pelos próprios atletas como licenciada original dos direitos de uso da sua imagem,
cabendo a essa empresa o sublicenciamento para clubes ou mesmo patrocinadores individuais.
Sendo essa prática disseminada não só no Brasil, os diversos entes fiscais nacionais fecharam,
ao longo do tempo, o cerco para os eventuais abusos em tal planejamento tributário, limitando o
alcance de tais ajustes, o que resultou, por exemplo, na emenda à Lei Pelé, feita pela Lei nº
13.155/15, que inseriu parágrafo único ao mencionado art. 87-A, nos seguintes termos:
82
MÓDULO IV – DIREITO ADMINISTRATIVO
DESPORTIVO
Apresentação
Como já destacado na unidade 1.4 desta apostila, o monopólio de fato – e, segundo o modelo
europeu de governança desportiva, de direito – conferido às entidades internacionais de
administração do desporto, acaba qualificando o Direito Desportivo como uma disciplina
transadministrativa, recaindo na definição já transcrita, da lavra de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto: “a disciplina jurídica das relações assimétricas de poder, que se institucionaliza
consensualmente fora e além do Estado”. 109
Em outras palavras, o Direito Desportivo revela uma faceta publicista, constituindo-se em
uma expressão de Direito Administrativo, na medida em que sujeita entidades privadas e indivíduos
aos ditames emanados das entidades de administração desportiva de hierarquia territorial mais
elevada, nos moldes descritos na unidade 1.5 desta apostila. Nesse sentido, é elucidativa a lição de
Guilherme Campos de Moraes:
109
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao transadministrativismo. Op. cit. p. 339.
ampla defesa, tanto nos regulamentos desportivos, quanto nas sentenças do
CAS, em seu aspecto processual; e os mecanismos de controle e revisão da
administração pública, em seu aspecto jurisdicional. 110
110
MORAES, Guilherme Campos de. Lex sportiva: entre a esfera a pública, a autonomia privada e a necessidade de
accountability. Rio de Janeiro: Multifoco, 2016, p. 126.
111
TUBINO, Manoel José Gomes. Dimensões sociais do esporte. São Paulo: Cortez, 2011, p. 35-42.
112
Ibid. p. 36, 37.
113
Ibid. p. 39, 40.
114
Ibid. p. 40, 41.
84
Pelas diversas abordagens propostas acima por uma das maiores referências doutrinárias do
esporte brasileiro, constata-se que a atividade desportiva sempre aponta para balizas de
autocontenção pessoal, observância de padrões de conduta e inserção comunitária dentro de regras
preestabelecidas. Em outras palavras, o signo da disciplina é algo que perpassa o próprio
fundamento do esporte.
Nesse sentido, calcado o esporte na ideia de disputa agonística segundo regras iguais para
todos os participantes, é impositiva a existência de um sistema de repressão às eventuais infrações a
tais regras, tanto pela inerente tendência individual à transgressão, quanto pela crescente
mercantilização da atividade esportiva, especialmente aquela de alto desempenho, em que as
recompensas materiais são enormes incentivos à burla das normas de conduta dentro e fora do
campo de jogo.
A intensa comercialização dos eventos esportivos e a monetização dos diversos aspectos de cada
modalidade, transformando cada atleta em uma potencial superestrela de projeção mundial magnífica
a necessidade de um sistema disciplinar que sirva de contrapeso aos incentivos à burla, preservando a
essência do movimento que reviveu o esporte como uma atividade socialmente relevante.
Essa contextualização histórica é importante para situar os valores protegidos pelo sistema
disciplinar esportivo:
115
FACHADA, Rafael Terreiro. Direito desportivo: uma disciplina autônoma. Rio de Janeiro: Autografia, 2017, p. 77, 78.
85
A indeclinável obrigação de preservar os valores essenciais do esporte por meio de um sistema
que imponha o cumprimento das regras de cada modalidade, assim como o espírito de fair play,
que é base ideológica de qualquer disputa esportiva, associa-se, neste caso, às aspirações de
autonomia e autorregulação já referidas no Módulo 1 desta apostila, induzindo a formação de um
sistema jurisdicional especializado, a chamada Justiça Desportiva.
O que se vê, portanto, é a instituição de um corpo de normas e instituições que imporão o
cumprimento de regras estabelecidas como condição essencial para a adesão a uma determinada
atividade desportiva, revelando mais uma vez a natureza tipicamente publicista desta face do Direito
Desportivo, estabelecendo relações de sujeição aos praticantes e demais sujeitos e entidades
vinculados a qualquer modalidade atlética.
A Justiça Desportiva, como meio de efetivação das sanções disciplinares aos indivíduos e
agremiações que infrinjam as regras do jogo, ou mesmo as normas que viabilizam a própria prática
do desporto nos seus diferentes níveis, pode apresentar-se, segundo o mesmo autor citado acima,
em dois modelos distintos: o arbitral e o administrativo, 116 sendo o primeiro constituído por
tribunais formados ou indicados segundo a autonomia contratual das partes envolvidas em
determinada atividade esportiva, enquanto que o segundo “apresenta-se pelos órgãos criados pelas
federações nacionais ou internacionais a partir de seus estatutos ou outro ato jurídico”. 117
No Brasil, a Justiça Desportiva acabou ganhando estatura constitucional, com a promulgação
da Carta de 1988:
Como se vê, a jurisdição esportiva foi explicitamente salvaguardada pela ordem constitucional
atualmente vigente, excepcionando até mesmo a cláusula de inafastabilidade do controle judicial.
No plano infraconstitucional, a Justiça Desportiva é disciplinada em dois pontos da Lei Pelé.
O primeiro, no art. 23, quando institui como requisito mínimo de estatuto de entidade de
administração do desporto a previsão de um Tribunal de Justiça Desportiva (inc. I); e, no segundo,
mais extenso, todo um capítulo do referido diploma legal (Capítulo VII, compreendendo os arts.
49 a 55-C).
116
Idem. p. 109.
117
Idem. p. 110.
86
Nada obstante às linhas gerais de estruturação e funcionamento da Justiça Desportiva
estabelecidas no referido Capítulo VII da Lei Pelé, o diploma de maior relevância para a
administração diária da jurisdição desportiva é o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD),
norma única que estabelece padrão de organização dos órgãos julgadores, processamento de
demandas e tipos infracionais para todos os esportes.
Mais peculiar que a uniformidade absoluta materializada no CBJD é o fato de que ele é
instituído por meio de uma Resolução do CNE, órgão colegiado do Ministério do Esporte (Resolução
CNE nº 29, de 10 de dezembro de 2009). Em outras palavras, é um ato normativo de terceiro grau,
inferior à lei e a um decreto, que estabelece as infrações imponíveis a particulares e o procedimento a
ser observado para a apuração da responsabilidade disciplinar de entidades e pessoas privadas.
Trata-se de exemplo claro do que o Professor Wladimyr Camargos chama de colonização da
Justiça Desportiva, que pressupõe a autonomia do esporte como uma concessão do Estado. 118 Ainda
assim, é interessante constatar que há doutrina que defende a Justiça Desportiva brasileira como
hipótese de sistema jurisdicional desportivo sui generis, afastado, obviamente, do modelo arbitral,
mas também não plenamente subsumido ao padrão administrativo:
Vemos, desde já que, apesar da Lei Pelé garantir que o órgão é autônomo
e independente, este posicionamento não está completamente correto. O
Tribunal de Justiça Desportiva é dependente da entidade de administração
do desporto; contudo, apresenta-se realmente autônomo em relação a esta,
uma vez que sua criação não deriva da vontade da entidade e não se
caracteriza como órgão interno, não podendo, ainda, sofrer em suas
decisões qualquer tipo de influência. Resumamos da seguinte forma: caso
não existisse a entidade de administração do desporto, não existiria o
Tribunal, mas uma vez que existe a primeira, existe o segundo
obrigatoriamente, e não há possibilidade de ingerência sobre suas decisões.
Tendo em vista todos os pontos apresentados, não nos parece crível ter a
Justiça Desportiva brasileira uma natureza arbitral ou administrativa;
sustentamos, pois, sua natureza sui generis. 119
Feita essa breve digressão, o CBJD estabelece os princípios gerais de interpretação das normas
disciplinares, organiza a Justiça Desportiva propriamente dita, regula o processo disciplinar
desportivo e tipifica as infrações em espécie. Veja-se cada um desses aspectos.
118
CAMARGOS, Wladimyr. Pela descolonização da justiça esportiva: o anteprojeto de lei geral do esporte e o fim da
“autonomia tutelada no esporte”. In: VARGAS, Angelo (Coord.). Direito desportivo: temas transversais. Rio de Janeiro:
Autografia, 2017.
119
FACHADA, Rafael Terreiro. op. cit. p. 112.
87
Princípios do processo disciplinar desportivo
O art. 2º do CBJD arrola 18 diferentes princípios a reger a interpretação e a aplicação do
próprio diploma em questão. Muitos deles são a reprodução de princípios gerais de Direito
Processual ou Direito Público, por exemplo, a ampla defesa (inc. I), o contraditório (inc. III), a
impessoalidade (inc. V), a moralidade (inc. VIII) e o devido processo legal (inc. XV).
Para esta análise, cumpre destacar sete de tais princípios:
Mais do que isso, abalizada doutrina aponta o próprio CBJD como esteio para assegurar
a referida independência da Justiça Desportiva:
88
Muito se questiona acerca da independência e autonomia da Justiça
Desportiva, estando a mesma sob a dependência financeira das Federações
e Confederações.
120
FERRARO, Leonardo. A independência da justiça desportiva. In: VARGAS, Angelo (Coord.). op. cit. p. 164.
89
aa) Princípio da oralidade – a fim de atender à celeridade constitucionalmente imposta ao
processo desportivo, os processos na Justiça Desportiva se desenvolvem de forma oral,
especialmente no primeiro grau, em que os atos de defesa são concentrados na sessão de
julgamento, apresentando-se defesa verbal, junto com a exposição das provas admitidas
pelo Tribunal.
dd) Princípio do fair play – traduzido como “jogo limpo”, trata-se de princípio fundamental
não só da Justiça Desportiva, mas do esporte em si mesmo, sendo magistralmente
definido por Rafael Terreiro Fachada:
121
CAÚS, Cristiano; GÓES, Marcelo. op. cit. p. 121.
122
Op. cit. p. 78, 79.
90
Organização da Justiça Desportiva brasileira
Objeto do Capítulo I do CBJD, a Justiça Desportiva brasileira se organiza em órgãos
instalados em cada uma das entidades de administração do desporto. Em outras palavras, em cada
uma das federações estaduais de cada uma das modalidades esportivas, há um Tribunal de Justiça
Desportiva (TJD).
Além de tais órgãos em âmbito estadual, as competições regionais – interestaduais – e nacionais
se sujeitam à jurisdição da entidade nacional de administração do desporto, razão pela qual cada uma
das confederações nacionais ostenta um Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD).
Em ambos os níveis jurisdicionais, os tribunais se organizam de modo similar: têm um Pleno
com competência predominantemente recursal, e Comissões Disciplinares compostas de cinco
auditores (os “juízes” da Justiça Desportiva), que funcionam como primeira instância de julgamento.
Tanto no STJD, quanto no TJD, o Pleno é composto de nove membros dotados de mandato
determinado e indicados pela respectiva entidade de administração de desporto, pelas agremiações
que participem de competições da primeira entidade; pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
por representantes dos árbitros e por representantes dos atletas (arts. 4º e 5º).
Já os auditores das Comissões Disciplinares, também detentores de mandato, são nomeados pela
votação majoritária de cada respectivo Pleno, a partir de indicação dos integrantes deste último órgão.
Processo desportivo
Regido pelo Título III do CBJD, o processo desportivo compreende um procedimento
sumário, que é a regra geral para a apuração da responsabilidade disciplinar de indivíduos e
entidades sujeitas à jurisdição de determinado Tribunal Desportivo (arts. 73 a 79), assim como
procedimentos especiais, por exemplo, transação disciplinar desportiva; inquérito; impugnação de
partida, prova ou equivalente; mandado de garantia, que exerce a função análoga à de um mandado
de segurança; reabilitação e revisão (arts. 80 a 119-A).
O processo sumário, hipótese mais comum de atuação na Justiça Desportiva, inicia-se com a
denúncia, usualmente apresentada pela Procuradoria da Justiça Desportiva, que se calca quase
sempre na súmula da partida ou da prova, embora seja cada vez mais comum a formulação de
denúncias com base em veiculação de imagens que atestem a ocorrência de infração, apesar de a
súmula não se referir ao episódio.
Apresentada a denúncia, o processo é distribuído ao auditor relator, e é designada sessão de
julgamento, para a qual o denunciado é intimado a comparecer e lá realizar a sua defesa, de modo
oral, produzindo, também naquele mesmo ato, todas as provas necessárias à instrução da sua tese.
O julgamento é proferido no mesmo ato, por votos motivados dos auditores integrantes da
Comissão Disciplinar. As razões de decidir só serão consignadas em voto escrito caso haja
requerimento de alguma das partes.
91
Infrações em espécie
Por fim, o CBJD tipifica as infrações que sujeitam atletas, árbitros, membros de comissão
técnica e agremiações às penas disciplinares, dividindo-as em cinco grandes grupos:
a) Infrações relativas à administração desportiva, às competições e à Justiça Desportiva
(arts. 191 a 219) – tratam de cumprimento de obrigações legais e regulamentares
impostas especialmente às entidades de prática desportiva, aí incluído o dever de
efetivamente disputar partidas e provas da competição em que está inscrita (arts. 203 e
204). Também abarcam os tumultos e desordens de torcedores no local da partida
(art. 213), assim como alcançam atletas, especialmente no art. 216, que apena a formação
de vínculo simultâneo com mais de uma entidade de prática desportiva
b) Infrações referentes à Justiça Desportiva (arts. 220 a 231) – visam a garantir a
efetividade das decisões e o próprio desenvolvimento dos processos desportivos,
compreendendo aí o descumprimento de decisões da Justiça Desportiva (art. 223) e o
recurso à Justiça Comum (art. 231), entre outros tipos infracionais.
c) Infrações contra a ética desportiva (arts. 234 a 243-G) – aqui, trata-se de falsidades
de todo gênero (arts. 234 a 236); atos de corrupção em geral (arts. 237 a 239, 241 e
242); aliciamento de atletas (art. 240); influência indevida em resultado de partida (arts.
243 e 243-A); constrangimento, incitação à violência e prática de atos infamantes (arts.
243-B a 243-G).
d) Infrações relativas à disputa de partidas, provas ou equivalentes (arts. 249-A a 258-
D) – dizem respeito a atos que infrinjam de modo mais severo as regras do jogo.
Normalmente, traduzem atos desleais ou violentos na disputa agonística, ou conduta
desrespeitosa em relação a adversário, à arbitragem ou ao público assistente.
e) Infrações relativas à arbitragem (arts. 259 a 273) – visam à disciplina das equipes de
arbitragem, exigindo o cumprimento de deveres de apuro técnico ou disciplinar (arts. 259,
260, 261-A, V e 267), de compromisso profissional (art. 261-A, I a III), de registro formal
de ocorrências (arts. 261-A, IV, 263, 266) e de condução da partida (arts. 269 e 273).
Combate ao doping
Como decorrência da hipercomercialização do esporte, os incentivos existentes para a burla
às regras do jogo são cada vez maiores, sendo talvez a utilização de substâncias e métodos
incompatíveis com a igualdade que deve permear a disputa agonística, a maior chaga a ameaçar a
integridade do esporte no mundo.
A alteração cada vez mais frequente de resultados testemunhados por milhões de
telespectadores em todo o mundo é o sinal mais eloquente do risco que o doping traz para a
integridade do esporte e a tradução mais acabada da quebra do princípio fundamental do fair play.
92
Nesse sentido, a doutrina mais uma vez apreende de forma precisa o fundamento para o
combate ao doping:
O prejuízo provocado pela prática do doping atingiu níveis tão drásticos que culminaram na
criação da Agência Mundial Antidoping – World Anti-Doping Agency (Wada) –, com o papel de
coordenar o combate internacional ao doping, constituindo-se tal entidade em singular exemplo de
organização que congrega entidades desportivas privadas e autoridades públicas nacionais, de modo
a assegurar o poder de polícia necessário à implantação de medidas preventivas relativamente a
práticas cuja proscrição é pretendida pelo mundo do esporte.
Com o desenvolvimento da Wada, fundada em 1999, foi possível a adoção de um Código
Mundial Antidoping em 2004, cuja adoção passou a ser requisito de adesão a federações
internacionais que pretendam manter-se ou ingressar no Movimento Olímpico, exigindo-se de
atletas e agremiações o compromisso de observância dos seus termos, que estabelece, em linhas
gerais, cinco padrões para a atuação no combate ao doping:
normatização e padronização de testes antidoping;
credenciamento de laboratórios capacitados para realização de tais testes;
listagem de substâncias e métodos proibidos;
fixação de isenções terapêuticas às proibições listadas e
proteção à privacidade dos atletas. 124
123
GRAY, Andy. The sports regulatory regime and sports rights. op. cit. p. 30, 31.
124
MORAES, Guilherme Campos de. op. cit. p. 112.
93
Dos cinco padrões acima arrolados, o de maior destaque é a listagem de substâncias proibidas,
atualizada anualmente, a qual busca a identificação de produtos que: (i) influenciem diretamente
na performance atlética; (ii) influenciem indiretamente na performance atlética; (iii) mascarem a
utilização de outras substâncias proibidas; e (iv) reflitam a utilização ilegal de drogas sociais. Este
último ponto ainda é muito controvertido nas análises das normas antidoping. 125
A imposição de sanções quando da verificação de alguma de tais substâncias proibidas se calca
em três fundamentos: (i) integridade da competição, já descrita acima; (ii) saúde do atleta, buscando
a Wada a preservação da integridade física, psicológica e social do atleta exposto ao uso eventual ou
permanente desse tipo de substâncias; e (iii) legalidade, sendo inadmissível que o modelo de
comportamento estabelecido por atletas de alto desempenho possa ser conspurcado pela utilização
de substâncias proscritas nas legislações nacionais. 126
Importante assinalar que a evolução da legislação antidoping tem-se aproximado cada vez
mais da responsabilidade objetiva integral, prescindindo, há muito tempo, da prova de culpa do
atleta denunciado e afastando, de forma crescente, as hipóteses de excludente de ilicitude,
admitindo erros ou omissões involuntárias no controle do consumo de substâncias proibidas tão
somente como atenuantes, jamais como exculpantes em tais casos.
125
GRAY, Andy. op. cit. p. 71.
126
Idem. p. 70.
127
FREITAS, Daniela Bandeira de; e VALLE, Vanice Regina Lírio do (Coords.). Direito administrativo e democracia econômica.
Belo Horizonte: Fórum, 2012.
128
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um [...].
129
Op. cit. p. 12.
94
Reforça essa constatação a remissão do § 3º do mesmo artigo ao lazer, 130 já previsto como um
dos direitos sociais arrolados no art. 6º da Carta da República. 131
Entretanto, ao lado do caráter social, tem-se constatado a cada ano, desde a promulgação do
atual texto constitucional, uma crescente expressão econômica associada às atividades desportivas.
Com efeito, lendo-se obra publicada em 1995, constata-se que a arrecadação de US$ 700 mil com
a primeira ação consistente de marketing esportivo em uma final de campeonato brasileiro de
futebol era saudada como um marco relevante ocorrido 11 anos antes:
A disparidade de cifras que se percebe pela simples memória do noticiário recente chega a ser
constrangedora. Os valores que envolvem não só a transferência de grandes estrelas do desporto
mundial – como Neymar, que gerou o pagamento de mais de R$ 1 bilhão do Paris Saint Germain
ao Barcelona –, mas também os montantes pagos pelos direitos de transmissão, também na casa dos
bilhões, mas de dólares, para o caso da National Football League, entidade que gere a competição
mais conhecida de futebol americano, ou mesmo os acordos de patrocínio, que também geram
milhões para as agremiações que associam as suas imagens a marcas comerciais.
130
Art. 217. […] § 3º O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social.
131
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.” (grifos aditados)
132
MELO NETO, Francisco Paulo. Marketing esportivo. Rio de Janeiro: Record, 1995, p. 18.
95
A quantidade de recursos e o potencial gerador de empregos diretos e indiretos do mercado
desportivo são celebrados como cada vez mais promissores, circunstância atestada diariamente por
simples vista-d’olhos, leitura apressada ou audição descompromissada de qualquer veículo de
imprensa, 133 como se vê em passagem de artigo jornalístico veiculado em 2002:
Uma política de esportes para o Brasil não deveria vê-lo apenas como meio
de integração social, como no governo passado. Deveria ter como objetivo
principal integrar o Brasil, que tem 175 milhões de habitantes, nesse
negócio mundial de mais de US$ 400 bilhões por ano, capaz de criar
milhões de empregos e de juntar a 11ª economia mundial ao desempenho
de Cuba, que tem 11 milhões de habitantes. [...] O uso do dinheiro
público para a promoção do esporte deveria ter uma justificação básica: a
criação de riquezas e de um importante mercado de trabalho. 134
A efetiva relevância econômica do esporte acabou consagrada em sede legal, como apontam
o novo texto da multicitada Lei Pelé (Lei nº 9.615/98) e o EDT (Lei nº 10.671/03), uníssonos em
caracterizar o esporte como atividade econômica. 135
A duplicidade que passa a caracterizar o esporte – elemento poderoso de promoção tanto
social, quanto econômica – impõe, especialmente na atual quadra histórica do Brasil, ainda maiores
cautelas na apreciação da atuação estatal no meio desportivo, já que, enquanto em um campo a
intervenção do Estado pode ser muito bem-vinda, na outra há preceitos constitucionais explícitos
contendo a liberdade de ação administrativa.
133
Embora a crença seja séria e fundamentadamente questionada por significativa corrente de economistas, como
relatam Simon Kuper e Stefan Szymanski em instigante livro recém-publicado no Brasil (Soccernomics. Rio de Janeiro:
Tinta Negra, 2010, p. 227-244 – Capítulo 12: Felicidade. Por que sediar uma Copa do Mundo é bom para você?).
134
RAMOS, Jorge apud MOREIRA ALVES, Marcio. Esporte e emprego. In: O Globo: Rio de Janeiro, 19 nov. 2002, p. 4.
135
O parágrafo único do art. 2º da Lei Pelé afirma textualmente: “A exploração e a gestão do desporto profissional
constituem exercício de atividade econômica”, enquanto que o art. 3º do EDT registra que, “para todos os efeitos legais,
equiparam-se a fornecedor [...] a entidade responsável pela organização da competição, bem como a entidade de prática
desportiva detentora do mando de campo”.
96
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto
educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não
profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
A segmentação acima apontada não é aleatória, como demonstra José Ricardo Rezende:
97
esportes, ou seja, conhecer seus fundamentos e, mais que isso, seu próprio
corpo (possibilidades e limitações), contribuindo para sua formação
integral, desenvolvimento motor e sensorial, e, logicamente, para a
utilização do esporte como meio de lazer.
Os distintos propósitos de cada atividade esportiva específica acabam por suscitar diferentes
abordagens por parte da Administração Pública e sinalizar os valores a serem privilegiados quando da
intervenção estatal no esporte, especialmente à luz das prioridades fixadas na Constituição de 1988.
136
REZENDE, José Ricardo. Nova legislação de direito desportivo: preparando o Brasil para a Copa 2014 e Olimpíadas 2016.
São Paulo: All Print, 2010, p. 49, 50.
98
Formas de atuação estatal na área esportiva
Sendo a função executiva uma “atividade estatal remanescente”, 137 residual, há um “vasto
campo de competências” 138 que podem ser genericamente agrupadas em quatro categorias de
atuação estatal, 139 tal como definido na obra de Marcos Juruena Villela Souto: “A função de
administrar comporta, basicamente, a polícia administrativa, a responsabilidade pela prestação dos
serviços públicos, o ordenamento econômico e o ordenamento social”. 140
O exercício de poder de polícia e a prestação de serviços públicos se ligam de forma menos
intensa com a atuação estatal no esporte, razão pela qual esta exposição se concentrará
principalmente nas atividades de ordenamento social e econômico.
137
Curso de direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 24.
138
Idem.
139
Destacando que o Professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto ainda acrescenta a estas categorias o Fomento, que
trata autonomamente na sua obra já citada acima.
140
Direito administrativo regulatório. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 5.
141
Op. cit. p. 480.
142
Idem.
143
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. op. cit. p. 514.
99
A primeira de tais funções de fomento é o planejamento, assim definido na obra do
professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
A primeira figura mencionada acima determina, nos termos do citado art. 5º da Lei
Pelé, 147 a aplicação dos recursos do Ministério do Esporte, conforme dispuser o PND.
Embora ainda não regulamentado, o referido plano poderá estabelecer diretrizes objetivas
para o dispêndio de recursos federais na área desportiva.
144
Op. cit. p. 516.
145
Neste sentido afirma o autor já citado acima, na mesma, p. 516.
146
O mencionado trabalho foi consolidado em obra de título similar, capitaneada por Carla Tavares, Vice-Presidente
Executiva de Esporte: Índice de desenvolvimento do esporte: mapeamento e gestão no estado do Rio de Janeiro, 2010.
Rio de Janeiro: LGN Editora, 2010.
147
Art. 5º Os recursos do Ministério do Esporte serão aplicados conforme dispuser o Plano Nacional do Desporto,
observado o disposto nesta Seção.
100
representam a distribuição espacial de fenômenos diretamente envolvidos
com a sua manifestação. Contudo, este recorte encontra limites no sentido
de organizar ações prioritárias, considerando que para melhor se conhecer
e planejar o local onde se vive a dimensão analítica que esta etapa nos
permite, embora fundamental, é insuficiente.
148
Op. cit. p. 9.
149
O referido artigo arrola, em oito incisos, os seguintes objetos de aplicação de fomento federal: desporto educacional
(inc. I); desporto de rendimento, quando da representação do país em competições internacionais (inc. II); desporto de
criação nacional (inc. III); capacitação de cientistas e técnicos esportivos e de professores de educação física (inc. IV);
apoio à pesquisa, documentação e informação (inc. V); instalações esportivas (inc. VI); assistência à adaptação do ex-
atleta profissional ao mercado de trabalho (inc. VII); e desporto para pessoas portadoras de deficiência (inc. VIII).
101
Especificamente na área da administração pública, a revolução da ciência
e da tecnologia e, em especial, o desenvolvimento da comunicação, estão
abrindo novos canais de participação da sociedade, que, por sua vez, se
torna cada vez mais consciente e demandante. [...]
Para que o futebol não pare no tempo, os seus dirigentes devem procurar
uma agência de publicidade para cuidar do “produto” e fornecer o
diagnóstico do problema com base em pesquisas de opinião pública. Para
organizar o futebol e o transformar em produto top de linha, devemos
conduzi-lo profissionalmente em todas as áreas. 151
150
Op. cit. p. 537, 538 e 541.
151
BRUNORO, José Carlos; AFIF, Antonio. Futebol 100% profissional. São Paulo: Gente, 1997. p. 21.
102
Embora o foco da análise fosse o futebol, vê-se a menção a outras modalidades esportivas –
automobilismo e basquete, sintomaticamente referidos pelas suas marcas –, ficando clara a
abordagem que trata tais atividades como um “produto” a ser “vendido” a uma clientela
ávida por novidades.
Essa nova cultura de gestão do esporte o levou, de modo inarredável, ao meio econômico,
tornando-o um dos braços da indústria que mais cresce no planeta: aquela do entretenimento. Ao
travar contato com essa nova realidade, a atuação estatal pode pautar-se segundo uma de três
categorias propostas por Luís Roberto Barroso, que sintetiza as diversas classificações aventadas por
inúmeros administrativistas na seguinte tríade: disciplina, fomento e atuação direta. 152
O primeiro campo de atuação econômica se traduz pela edição de leis, que, no caso do
esporte, são as já citadas Lei Pelé e EDT, que disciplinam de modo incisivo o desempenho de
atividades esportivas de cunho profissional.
Já o fomento é assim definido pelo referido professor:
Não é difícil encontrar exemplo de iniciativas esportivas que bebem de cada uma das fontes
listadas no escólio acima transcrito.
A última modalidade de intervenção estatal no esporte como atividade econômica se traduz
na atuação direta, seja pela prestação de serviços públicos – normalmente traduzida na operação de
instalações desportivas, majoritariamente públicas, quando tomado o quadro daquelas de maior
capacidade –, seja pela atuação direta, por meio da constituição de inúmeras equipes que disputam
competições de primeira linha das principais modalidades esportivas nacionais.
152
Modalidades de intervenção do Estado na ordem econômica. Regime jurídica das sociedades de economia mista.
Inocorrência de abuso de poder econômico. In: BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 395. t. 1.
153
BARROSO, Luís Roberto. op. cit. p. 396.
103
Subsidiariedade no esporte
O princípio da subsidiariedade encontra três locais privilegiados para a sua consagração na
ordem constitucional brasileira: a preservação da autonomia federativa, o respeito à livre iniciativa
econômica e a preservação das formas participativas de exercício democrático, como bem atesta o
articulado trabalho de Marianna Montebello Willeman, que delimita a figura desta forma:
À luz de tal desenho é que se podem propor limites e vetores de atuação estatal no esporte.
Será a preservação da iniciativa individual e dos entes sociais, no âmbito de cada localidade que
pautará cada intervenção administrativa, sempre se resguardando o verdadeiro valor cultural
espontânea e historicamente desenvolvido pelo esporte, tal como ilustra preciosa passagem literária:
154
WILLEMAN, Marianna Montebello. O princípio da subsidiariedade e a Constituição da República de 1988. In: PEIXINHO,
Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; NASCIMENTO FILHO, Firly. Os princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 483.
155
FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005, p. 9, 10.
104
A espontaneidade e a autonomia alcançadas pelo esporte em território nacional revelam a
necessária reverência do Estado à capacidade de auto-organização social neste campo, diretriz
antecipada no cotejo da Constituição com a já mencionada segmentação esportiva promovida pela
multicitada Lei Pelé.
Nesse caso, a atuação individual e a auto-organização das comunidades locais que darão
o tom da prática desportiva de participação, devendo o Estado se abster de intervir
diretamente ou fomentar a introdução de entidades privadas de maior parte no espaço do
lazer informal de cada sujeito. Aqui, quando muito, o papel do Estado se dará pela
construção e manutenção de instalações esportivas adequadas, e mesmo assim naqueles
locais em que o associativismo clubístico que caracteriza a história desportiva brasileira já
não tiver suprido tal necessidade. 157
156
REZENDE, José Ricardo. op. cit. p. 49.
157
Justamente na esteira da lição de Marianna Montebello Willeman, que só concebe um desdobramento positivo da
aplicação do princípio da subsidiariedade quando inexistente a capacidade da comunidade menor em prover às suas
necessidades em determinada área. Tal premissa pode até mesmo se revelar no inc. I do art. 217 da Carta Republicana,
que assegura a “autonomia das [...] associações, quanto a sua organização e funcionamento”.
105
O regramento constitucional mereceu reiteração e maior detalhamento em sede de lei
ordinária, na medida em que a Lei Pelé, em primeiro lugar, indica, logo no primeiro
inciso do seu art. 7º, o desporto educacional como destinação dos recursos federais
aplicados ao esporte, fazendo-o sem qualquer condicionamento.
O que se percebe é que, das quatro destinações possíveis para tais verbas federais, duas se
ligam diretamente à conjunção esporte-educação, ferramenta poderosa na construção de
um sistema de ensino forte e no desenvolvimento de um universo de seleção mais amplo
para os níveis mais elevados da prática atlética, nos moldes das maiores potências olímpicas
mundiais. Isso sem contar a possibilidade de que as aludidas instalações esportivas sejam
construídas ou ampliadas nas dependências de estabelecimentos de ensino.
106
Portanto, na esteira da prioridade constitucionalmente estabelecida, a ausência de
qualquer condicionamento na aplicação de recursos para o esporte no âmbito do seu
desenvolvimento em escolas ou outros estabelecimentos de índole educacional demonstra
claramente a opção por fomentar, de modo irrestrito, a potencialização da educação por
meio do esporte, indo até mesmo ao encontro da prioridade constitucional dada à
educação pela prioridade orçamentária consagrada no art. 212 da Carta Magna. 158
Outra forma bastante conhecida de atuação nesta vertente educacional é a colaboração com
as entidades extraestatais, as denominadas Organizações Não Governamentais (ONGs), que
se multiplicam todos os dias. Esse exemplo de fomento social se concretiza habitualmente
por meio da figura do convênio, o qual, infelizmente, tem-se prestado a reiteradas distorções
do verdadeiro papel do Estado e o seu parceiro privado em casos que tais.
O que se tem visto com frequência é a mera terceirização de recursos públicos para a
execução indireta de funções que eventualmente poderiam ser realizadas pelo próprio
Estado ou ao menos se sujeitariam à disputa por parte dos agentes econômicos que atuam
no florescente mercado desportivo.159
158
Art. 212. A União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios vinte
e cinco por cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na
manutenção e desenvolvimento do ensino.
159
Neste ponto, cabe rememorar advertência feita por este autor em obra conjunta com Flávio de Araújo Willeman
(Direito administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 118): “Como traços distintivos dos contratos administrativos,
os convênios administrativos se caracterizam por materializarem uma soma de esforços para a consecução de objetivos
comuns às partes convenentes. Em outras palavras, não há a contraposição de interesses comum aos contratos, em que
uma parte pretende a obtenção de recursos pecuniários e a outra o adimplemento de uma obrigação de fazer ou de dar
alguma coisa, havendo uma verdadeira troca entre as partes. Já no convênio, os interesses são convergentes, ambas as
partes buscam a realização de determinada finalidade concreta (ex.: educação de menores carentes, assistência social a
idosos, recuperação de dependentes químicos). Neste sentido, forma-se uma parceria para colaboração, não para mera
delegação da execução de um serviço de interesse público a um particular”.
107
Aqui, mais uma vez se vê a incidência do princípio da subsidiariedade, mas já na fronteira
entre o social e o econômico, na medida em que a malversação do fomento institucional
no âmbito social acaba por inviabilizar o pleno desenvolvimento autônomo da atividade
econômica encetada pelos agentes privados.
108
Já são categóricos os modelos de autonomia econômica das maiores confederações
esportivas, em especial a de futebol – CBF –, pela consolidação histórica da modalidade
como esporte profissional e, mais recentemente, a do voleibol – Confederação Brasileira
de Voleibol (CBV) –, que pelo paradigmático modelo de gestão acabou por adquirir
meios de receita e um equilíbrio administrativo-financeiro que serve de exemplo para os
demais esportes.
O Brasil desenvolveu o seu esporte com base na organização de clubes e associações, além
de contar com uma rede de estabelecimentos de ensino privados que podem
tranquilamente atender à demanda de criação e manutenção de equipes de alto
rendimento, usual e crescentemente compostas de atletas remunerados para o
desempenho exclusivo da atividade esportiva.
De outra banda, o recente momento nacional, que se pautou pelo esforço de estruturação
de condições para sediar os dois maiores eventos esportivos do planeta em sequência,
revela uma gama de ações de financiamento público a uma série de instalações urbanas e
esportivas relacionadas à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos.
Aqui, para invocar uma figura tipicamente esportiva – “a bola é dividida” –, de um lado,
há a corrente que defende essas oportunidades como meio de potencialização do
desenvolvimento social do país e das cidades que receberão tais eventos, assim como
relacionam tais investimentos à criação de condições para o florescimento de uma
indústria esportiva brasileira de relevo mundial.
109
Nesses casos, o fomento público estaria plenamente justificado, desde que o tal “legado”
tivesse efetivamente se concretizado, constatação sobre a qual pairam sérias dúvidas.
No sentido oposto, fica importante ponderação feita por autores já citados anteriormente
neste trabalho:
110
Nos Estados Unidos, donos de times esportivos normalmente exigem que
os contribuintes da cidade anfitriã banquem um estádio, com
estacionamentos lucrativos. Tudo isso é então repassado ao dono da
franquia, que também fica com o dinheiro que ganha vendendo ingressos.
Cerca de setenta novos estádios e arenas de ligas principais foram
construídos nos Estados Unidos nos últimos vinte anos. Custo total: 20
bilhões de dólares, dos quais cerca de metade com recursos públicos. Em
Nova Orleans, por exemplo, o contribuinte pagou pelo Superdome, mas
não por diques melhores. 160
Há, na esteira do que preconiza a referida obra literária, a necessidade de se terem dados
efetivamente comprováveis do retorno de tal financiamento público – direto e por meio
de incentivo – na forma de empregos, aquecimento da indústria esportiva e dos demais
setores direta e indiretamente envolvidos com as obras e as posteriores atividades
desenvolvidas em tais arenas, e – por que não? – no efetivo incremento do bem-estar
populacional em decorrência da oferta de espetáculos esportivos, pois, como contrapõem
os mesmos Kuper e Szymanski, mais adiante no seu interessante livro:
Portanto, sediar não o deixa rico, mas o deixa feliz. O que leva a uma
pergunta: se os países querem sediar torneios de futebol (e cidades norte-
americanas querem ser sedes de times das grandes ligas) como parte de sua
busca da felicidade, por que não dizem isso? Por que o trabalho de disfarçar
seus argumentos com economia falsa?
160
KUPER, Simon; SZYMANSKI, Stefan. op. cit. p. 227, 228.
111
Ele observou em março de 1968, três meses antes de ser assassinado, que o
produto interno bruto “mede tudo [...] exceto o que faz a vida valer a pena”.
[...]
Uma Copa do Mundo é um tipo de projeto comum que quase não existe
nas sociedades modernas. Vimos que o simples fato de acompanhar uma
seleção na Copa do Mundo impede algumas pessoas muito isoladas de
cometer suicídio. Se participar de um torneio cria coesão social, sediar
um cria ainda mais. Os habitantes do país anfitrião – e certamente os
homens – passam a se sentir mais ligados a todos ao seu redor. Ainda
mais, ser anfitrião pode aumentar a autoestima do país e fazer as pessoas
se sentirem melhor com elas mesmas. 161
Ora, se não servir para isto, coesão social e felicidade individual, valores ínsitos à essência
da prática desportiva, para que serve o Estado?
161
Idem. p. 239, 240.
112
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PROFESSOR-AUTOR
Fernando Barbalho Martins é mestre em Direito Público, pela Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, LLM em Direito Desportivo, pela De Monfort University (Leicester, Reino Unido),
e possui MBA em Gestão e Marketing Esportivo, pela Trevisan Escola de Negócios. Sócio fundador
de Caldas Barbalho Advogados (desde 2000), é Procurador do Estado do Rio de Janeiro também
desde 2000 e ex-Procurador Federal (1998 e 2000). É ainda autor de Futebol: manual de
(re)montagem (Aperj, 2015), Direito Administrativo, em coautoria com Flávio de Araújo Willeman
(Impetus, 2015) e Do direito à democracia (Lumen Juris, 2007). Fernando recebeu o Prêmio
Destaque Acadêmico (FGV/2010) pelo desempenho no Programa de Pós-Graduação em Direito.
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