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CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
CURSO DE HISTÓRIA
FORTALEZA
2017
RACHEL XIMENES AGUIAR
AMÉRICA DO SUL EM FORMAÇÃO: CONTEXTOS E CONCEITOS DA
CONSTRUÇÃO DA UNASUL ENTRE 2000 E 2008.
FORTALEZA
2017
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Ricardo e Ana Claudia Aguiar pelo apoio e suporte durante a
construção desta pesquisa.
Ao meu orientador, Prof. Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho, pela paciência e
coragem de entrar no processo de escrita deste trabalho.
Ao meu namorado, Isac do Vale, pelas horas de leitura e revisão do conteúdo aqui
presente.
Aos professores participantes da Banca, Prof. Jailson Pereira da Silva e Prof.
Jawdat Abu-El-Haj, pela sua disponibilidade e colaboração.
À equipe da Coordenação de História da UFC, em especial a Dona Joana, sempre
paciente para tirar minhas dúvidas sobre datas e documentos.
Aos amigos que durante o tempo de realização deste trabalho ouviram com
paciência minhas dificuldades.
“A política trata da convivência entre
diferentes. Os homens se organizam
politicamente para certas coisas em comum,
essenciais num caos absoluto, ou a partir do
caos absoluto das diferenças.” (Hannah
Arendt)
RESUMO
La consolidación de la América del Sur como medio de protagonismo internacional para sus
miembros tiene relación inherente con el proceso de integración política de la región,
representado actualmente sobre todo por la Unión de Naciones Suramericanas (UNASUR).
La comprensión de la forma en la que se va consolidando esa organización internacional
proporciona un mejor entendimiento de su importancia como ámbito privilegiado donde se
ejerce la autonomía política, se refina las relaciones regionales y se encuentra posibilidad para
el protagonismo internacional brasileño. El objetivo de la presente investigación es analizar el
proceso de creación de la UNASUR considerando el contexto múltiplo en el cual ella es
esbozada mientras se subraya su uso potencial para la política exterior de Brasil. Para hacerlo,
los documentos normativos acordados en los encuentros de los Jefes de Estado desde la
inédita I Reunión de Presidentes de América del Sur en 2000 hasta la firma del Tratado
Constitutivo en 2008 son confrontados entre si y con el contexto histórico, político y
económico en el que fueron producidos. Ambos panoramas internacional y regional generaran
un entorno propicio para la creación de un ámbito exclusivamente sudamericano de consulta
política que discute y consolida conceptos y valores comunes que influyen en la formulación
de políticas de integración de nuestra región.
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................12
2 UMA BREVE RETOMADA DOS PROCESSOS DE INTEGRAÇÃO NA AMÉRICA
...................................................................................................................................................31
3 COMÉRCIO E INSERÇÃO INTERNACIONAL: ESTABILIDADE E
INVESTIMENTO...................................................................................................................48
3.1 As Reuniões de Presidentes e o Início de uma Inserção Internacional Conjunta em Meio à
Instabilidade..............................................................................................................................48
3.2 O Boom Das Commodities e a Criação da Comunidade Sul-americana de Nações (CASA)
de 2005 a 2007...................................................................................................................................62
4 DEMOCRACIA, PAZ E INTEGRAÇÃO: ENTRE PROJEÇÃO INTERNACIONAL
E DESENVOLVIMENTO.....................................................................................................79
4.1 A democracia entre a história e o documento.....................................................................90
5 CONCLUSÃO....................................................................................................................100
LISTA DE FONTES.............................................................................................................108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFIACAS.............................................................................114
12
1 INTRODUÇÃO
1
A sigla CASA não é um acrônimo do nome da Comunidade, é um apelido carinhoso que foi dado e utilizado
para se referir à iniciativa.
2
Esses processos de integração serão discutidos com mais detalhes na próxima parte deste trabalho.
13
Regional Sul-Americana de 2000 (motivo pelo qual houve a “Reunião de Presidentes que deu
início à possibilidade de uma integração sul-americana) foram mencionadas.
A CASA é mencionada a partir de seus documentos: “INSPIRADAS nas
Declarações de Cusco (8 de dezembro de 2004), Brasília (30 de setembro de 2005 e
Cochabamba (9 de dezembro de 2006)” (UNASUL, 2008, parágrafo 2, p.1)3.
Parece-me então que houve necessidade de delimitar que esse é um novo projeto,
mesmo quando as bases da UNASUL, inclusive do próprio Tratado Constitutivo, são forjadas
no interior das discussões sobre a continuidade da CASA, a diferenciação entre as duas
iniciativas fica nas entrelinhas.
O objetivo desse trabalho é, por meio da interpretação dos documentos
normativos produzidos pelos encontros dos presidentes desses doze países ao longo de oito
anos (2000-2008), analisar o processo de modelagem da UNASUL enquanto projeto principal
de integração política da América do Sul. Pretendo mostrar como a consolidação desse espaço
de integração configura uma expressão de certa bonança econômica revertida em concertação
política que gera espaço para expressar maior autonomia do grupo na tomada de decisões
referente a problemáticas de interesse desses países4.
Nesse sentido parto da crescente ênfase que, ao longo do período de oito anos o
grupo de 12 países vai construindo sobre como atuar e decidir sobre questões do seu território.
Considero que o Banco do Sul, proposta de integração financeira pensada ainda no ainda no
âmbito da CASA, em 2005; a UNASUL, enquanto projeto de integração política com
personalidade jurídica e o Conselho de Defesa, proposto enquanto órgão da UNASUL, ainda
em 2008, são três exemplos de uma autonomia que vai se desenrolando nesse período. Tal
autonomia, em especial a financeira, encontra-se enquadrada em um contexto histórico de
aumento no preço das commodities e alta do preço do petróleo. A UNASUL, mesmo
consolidada nesse momento de abundancia de recursos para os países da América do SUL e
da crise financeira de 2008 que atingia os EUA e a Europa (ocasionando certa ausência das
potencias mundiais nos países periféricos), ainda persiste atualmente enquanto um mecanismo
de integração5 mesmo que a realidade econômica tenha mudado consideravelmente.
3
No sitio eletrônico da UNASUL, a continuidade com a CASA é reconhecida na página que se propõe explicar
como a União de Nações Sul-americanas surgiu. Isso implica que a continuidade do projeto de integração foi
reconhecida em algum momento após o Tratado Constitutivo da UNASUL ser concluído. Por isso a questão da
não referencia à CASA nesse documento fundante é intrigante, fazendo-se necessária sua contextualização.
4
É importante ressaltar a importância de autogestão em termos internacionais para países que por muito tempo
direcionaram sua politica internacional para o alinhamento com as potências da Europa ou os EUA. Tema que
será discutido mais profundamente ao longo deste trabalho.
5
O Conselho de Defesa, mecanismo concretizado, tem caráter inovador: pela primeira vez, a América do Sul
pensa em conjunto sobre seu território comum e como defendê-lo, não apenas a defesa das Nações e muito
menos uma defesa pensada em um conflito entre elas (o que era comum, dada, por exemplo, as rivalidades
14
“eles”, partindo de um grupo politicamente coeso em torno daquilo que Ricoeur chamou de
“pertencimento participativo” e sobre o qual Prost escreve:
O nós dos atores serve de fundamento implícito à entidade coletiva utilizada pelo
historiador. Para legitimar essa transferência da psicologia individual para as
entidades coletivas. P. Ricoeur propõe a noção de ‘pertencimento participativo’: os
grupos em questão são constituídos por indivíduos que os integram e que têm uma
consciência mais ou menos confusa desse pertencimento. Essa referência, oblíqua e
implícita, permite tratar o grupo como um ator coletivo (PROST, 2008, p. 128).
esforço dos países com a criação de uma cidadania sul-americana, conceito que é criado
dentro do processo de formação da UNASUL e que gerou iniciativas na instituição.
Foram consultados de forma prioritária os documentos gerados nas reuniões de
cúpula (dos presidentes) desses organismos porque em tais papeis se concentram a regras
normativas. Neles trata-se dos aspectos mais políticos da integração e faz-se um apanhado
geral do que vem sendo alcançado10. É necessária a percepção de que para o surgimento e
efetivação da UNASUL existiu todo um processo, não apenas burocrático, mas temporal e
conjuntural que perpassa contextos múltiplos.
Internacionalmente, temos o aumento da crença no multilateralismo na década de
1990 (pós Guerra-Fria), uma multilateralidade significativamente mais auto representativa e
que se desvinculava da lógica bilateral EUA x URSS, fazendo com que os discursos e as
políticas externas se colocassem em novos espaços de atuação por meio da aceitação de novos
atores e do aumento de espaços de discussões e de temas a serem discutidos 11. A
consolidação dos processos de independência no continente Africano12 e a reestruturação dos
países do Leste Europeu que saiam da influencia da Rússia para se integrar ao sistema
internacional são exemplos de novos agentes na cena internacional.
Em relação ao aumento de mecanismos multilaterais nesse período, no âmbito de
Cooperação Sul-Sul (atuais países em desenvolvimento), temos o Grupo de Apoio a
Contadora, de 198413, e a tentativa de formar um grupo de países do Sul (hoje reconhecidos
como “países em desenvolvimento”) para contrapor ao G-8, iniciativa do Congresso Nacional
Africano (ANC) em 199414. Era a “emergência de uma grande diplomacia voltada para a
regional, seriam utilizados os mecanismos da Carta Democrática Interamericana de 2001 firmada no âmbito da
OEA ou os mecanismos da ONU. Ambos espaços políticos mais abrangentes com possibilidade de impor suas
próprias interpretações sobre o assunto.
10
Tais documentos foram adquiridos em espanhol no sitio eletrônico da IIRSA, com exceção do Tratado
Constitutivo da UNASUL que foi adquirido no sitio eletrônico da mesma. Além deles também foi consultado o
Tratado de Assunção, fundador do Mercosul, também disponível na internet para download em pdf.
11
A OMC, criada em 1995, é um exemplo de uma Organização Internacional nascida nesse período e a
Conferência Pequim+20, também de 1995 que discutiu a discriminação contra mulheres. No último caso, mais
importante foi a declaração resultante do evento, a chamada Declaração e Plataforma de Ação de Pequim que
“listou 12 pontos prioritários de trabalho, além de ações detalhadas para alcançar seus objetivos estratégicos. Em
suma, trata-se de um roteiro para o avanço da igualdade e do empoderamento das mulheres nos países”
(http://www.onumulheres.org.br/pequim20/). O Brasil também foi palco de um desses encontros: a Rio 92 que
discutiu o tema do Meio-Ambiente. Lindgren Alves, em seu livro “Relações Internacionais e Temas Sociais: a
década das conferencias” se debruça sobre as particularidades desses encontros
12
A Namíbia termina sua independência em 1991 e a Eritreia foi um dos derradeiros com início no mesmo ano.
13
O Grupo da Contadora foi uma junção de países Latino-americanos (Colômbia, México, Paraguai e
Venezuela) liderados pelo México que surgiu em 1983 com o intuito de propor uma resolução pacífica para as
guerras que aconteciam na América Central desde a década de 1960 em países como El Salvador, Nicarágua e
Guatemala. Argentina, Brasil, Peru e Uruguai formaram o Grupo de Apoio à Contadora em 1985
14
Segundo Visentini (2013) os problemas com o primeiro governo democrático de Nelson Mandela na Pretória
acabaram por tornar o projeto irrealizável. Novamente em 2000, Thabo Mbeki, sucessor de Mandela, propõe um
G-8 do Sul. O fórum desse grupo nunca se realiza por causa dos ataques do 11 de setembro aos Estados Unidos.
17
A tendência rumo à democracia era fenômeno real, que se espraiava por todos os
continentes, a começar pela América Latina. Com algumas exceções importantes,
uma espécie de euforia, temperada com apreensões, predominava na maioria das
sociedades. Em países previamente submetidos a regimes autoritários e totalitários,
os segmentos políticos e entidades não-governamentais antes asfixiados ou
inexistentes fruíam da liberdade conquistada numa movimentação inusitada,
frequentemente interativa. O clima internacional desanuviado do temos de uma
guerra nuclear com o qual havia convivido, era, em geral, de compreensível
otimismo (Alves, 2001, p.31).
Em 2003 se realiza o primeiro Forum IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) cujo embrião se encontrava no
primeiro encontro proposto pela ANC.
18
maneira especial nas diretrizes estabelecidas durante os oito anos de Governo Luiz
Inácio Lula da Silva (2003 – 2010). Ainda é preciso frisar que, para seus vizinhos
essa dimensão também se tornou irremediável e incontestável no alvorecer do século
XXI. No período em questão, caracterizado por turbulências na contestação da
ordem global cristalizada na Pax Americana – do 11 de setembro às guerras da era
Bush II no Iraque e Afeganistão, com o consequente endividamento estadounidense
que contribuiu para a crise financeira de 2008 –, notou-se o aprofundamento radical
dessa estratégia de consolidação da presença brasileira no mundo a partir da
plataforma continental sul-americana (CHAVES, 2013, p. 308).
Dada a natureza das fontes que escolhi trabalhar, deve ser levado em consideração
que Declarações, Comunicados e Consensos Internacionais de organismos multilaterais, como
toda fonte historiográfica, trazem aspectos particulares a serem apontados. Nesse caso são,
além do que os próprios nomes literalmente nos propõem, projeções, maneiras de demonstrar
pontos de vista, projetos futuros, metas concluídas e linhas de ações sobre determinado
assunto, constituindo-se também em formas de afirmar ou negar pretensões perante o sistema
internacional. Tais projeções partem tanto de cada país individualmente como do conjunto.
Buscarei comparar esses documentos atentando para sua inserção na conjuntura
internacional, regional e nacional que se desenrolam na época da produção dessas fontes. Não
podemos esquecer que o contexto específico acaba dando certo sentido às diretrizes
escolhidas, aos anseios expressos e às ações tomadas. Podemos observar então, que:
Com o passar do tempo, a palavra pode manter sua forma, entretanto seu conteúdo
pode alterar-se substancialmente. Ou seja, a despeito do significante manter se
manter o mesmo, a gama de significados atribuídos a ele pode se modificar
completamente. A recepção desses conceitos possui uma história empiricamente
reconstituível. É justamente a alteração dos significados e não propriamente a
alteração da palavra em si que interessa à História dos Conceitos (MIRANDA, 2013,
p 215).
17
A partir de Koselleck, Prost demonstra os dois níveis dos conceitos. O primeiro seria como as pessoas criam
conceitos no seu dia-a-dia, a partir de suas realidades, “é designar com seu próprio nome, determinadas
realidades que, atualmente, não tem equivalente. Verifica-se uma hesitação em considerar esses termos como
conceitos porque eles possuem um indiscutível conteúdo concreto” (PROST, 2008, p.116). Já o segundo nível se
mostra em momentos que “[...] o historiador venha a recorrer a conceitos estrangeiros à época, por lhe parecerem
mais bem adaptados.” (Ibid, p.117). O autor ainda adverte do cuidado com a ocorrência de anacronismos para o
segundo nível de conceitos, ou seja, de colocar padrões atuais para o passado sem haver qualquer cuidado com a
contextualização dos conceitos utilizados.
20
utilizados, mesmo que mantenham o mesmo significado ao longo do recorte, tem uma
pretensão política envolvida;
18
Muitos objetivos, como a ascensão econômica, podem ser buscados em conjunto, seja fazendo acordos de
complementariedade produtiva ou defendendo interesses comuns em instancias internacionais, como é o caso do
fim das tarifas alfandegárias para produtos agrícolas.
21
como exemplo, não apenas de comércio, mas de política internacional que influenciam no dia
a dia da população. Boas relações abrem mercados; e, geralmente, o primeiro passo para uma
expansão comercial se dá por meio de missões, para tratar de relações entre os países,
normalmente elas tem em seu corpo de funcionários diplomatas, mesmo que não seja
chefiadas por um – como foi o caso da abertura dos mercados chineses para o Brasil na
missão empresarial Horácio de Coimbra em 197219.
Cabe também pensarmos na questão de como as Relações Internacionais se
encontram na nossa espacialidade. Thales Castro, em seu livro "Teoria das Relações
Internacionais" (2012, p.68) ressalta que:
19
Até na nossa alimentação percebemos a influência dessa política. Os produtos que estão a disposição no
supermercado e o preço de cada um deles servem como exemplo: o Brasil é um grande exportador de lagosta,
mas poucos brasileiros tem a lagosta na sua dieta em função do alto preço, definido pelo mercado internacional e
cuja taxação e regulamentação são até certo ponto controladas pelo governo.
20
No seu livro acima citado, Castro define o sujeito (termo geral) como aquele que atua nas Relações
Internacionais excluindo o pesquisador desse processo cognitivo e excluindo também as pessoas que não atuam
na área.
23
21
Primavera Árabe é o nome que se dá à leva de protestos, revoltas e revoluções que se espalhou no Oriente
Médio e norte do continente africano iniciados na Tunísia em fins de 2010. Em alguns lugares, como na Síria,
esse movimento social ocasionou uma situação de guerra civil que se alastra até hoje. Outros países que
presenciaram essas manifestações foram Líbia, Egito, Argélia, Iêmen, Marrocos, Bahrein, Jordânia e Omã.
22
Nesse sentido me refiro à pressão internacional, por exemplo, de valores como democracia, pacifismo, direitos
iguais e direitos humanos sobre Estados, que por motivos internos e muitas vezes por motivos de interferência
externa não seguem esses modelos. O caso da Palestina, divindade entre Estado palestino e Israel em 1947, é um
exemplo dessa imposição, um dos mais críticos eu diria. Mas isso também se reflete em outros pontos: países,
como Ruanda, onde a homossexualidade é crime, ou o tratamento da mulher em alguns países de religião árabe,
como o Iêmen, são muitas vezes focos de discursos que tentam desvaloriza-los no ambiente político
internacional. Não é que eu me posicione contra ações humanitárias ou não defenda direitos iguais, mas o fato de
esses valores precisarem ser defendidos mostra que eles não são tão universais quanto se propõem e que os
países que hoje os defendem passaram por seus próprios processos violentos para reconhecê-los e implementá-
los. Então até que ponto tais interferências afetam o direito de autodeterminação dos povos? A partir de que
momento a intervenção é uma defesa de valores ou um jogo de interesses políticos, econômicos e militares?
(acredito que seja um pouco dos dois com um peso maior do segundo). A questão da interferência e noção de
valores universais geram pontos de discussão, conflitos e resoluções, que vale a pena ter em mente no quadro da
dinâmica internacional.
23
Certamente um país que presenciou mais invasões e bombardeios terá uma população com uma defesa da
resolução pacífica mais forte que outro que não tenha sofrido essas circunstâncias.
24
Por personalidade políticas me refiro a intelectuais de prestígio especializados no estudo de política
internacional, seja com viés sociológico como Z. Bauman ou histórico como E. Hobsbawm, políticos
proeminentes dentro da comunidade internacional, como Kofi Annan e Ban Ki-Moon, respectivamente ex e atual
Secretários Gerais da ONU.
24
escalas menores, nem sempre se joga o jogo pelas regras pretendidas: na prática a teoria
muitas vezes é outra.
A ONU é um exemplo dessas contradições: defende o caráter de isonomia dos
Estados25, mas acabou sendo fundada como uma instituição de cúpula (Conselho de
Segurança das Nações Unidas - CSNU), e passa, desde 1956, por propostas de reforma
(Marchioro, 2014) dentre as quais foram aceitas apenas o aumento de assentos não
permanentes, fato que não muda a essência do Conselho: um órgão de cúpula que tem como
epicentro das suas decisões os cinco países com poder de veto (Rússia, China, Inglaterra,
França e Estados Unidos). Porém, não fazer parte da ONU, mesmo com todas essas questões
a serem resolvidas, torna muito difícil uma projeção internacional consistente e dificulta o
direito de se posicionar com relação a questões importantes no âmbito universal. Como o caso
da Palestina que não é reconhecida como Estado membro da ONU e por isso não tem direito a
voto e tem acesso limitado aos comitês internacionais que compõem as Nações Unidas26.
Mesmo com essas controvérsias a ONU não se torna um organismo descreditado,
pelo menos não até o momento, para garantir um grau de convivência específico entre os
Estados. Ela institucionalizou uma série de práticas que tornou a diplomacia mais aberta e
mais abrangente, como a publicidade das discussões e tratados diplomáticos que até pouco
antes de sua criação aconteciam em segredo (SEITENFUS, 2012).
Não devemos esquecer também que certos valores podem ser inseridos por meio
de rituais que muitas vezes parecem banais, como a capacidade de fala igualitária na
Assembleia Geral da ONU e a votação mais aberta dentro do mesmo órgão. Dessa forma vale
a pena entender que as instituições internacionais, ao atuar no mundo por meio de valores que
vão desde sua constituição (normas jurídicas) passam pela a forma como se organiza e
aparecem no ritual de encontro, têm a capacidade de se reinventar. Elas surgem de influências
de valores e por eles são influenciadas e modificadas, de forma que:
25
Artigo 2o, Paragrafo 1o: “A Organização é baseada no principio de igualdade de todos os seus membros”.
(Carta da ONU e Estatuto da Corte Internacional de Justiça – Centro de Informações das Nações Unidas Rio de
janeiro).
26
Somente em 2012 a palestina foi reconhecida como Estado observador não-membro e só a partir dessa data
teve acesso, por exemplo a Corte Internacional de Justiça, o tribunal da ONU.
25
Instituições têm então um caráter ativo como fator modificador das Relações
Internacionais, seja pela disseminação de valores (muitas vezes imposição desses), seja pela
criação de normas de conduta (o próprio modelo de participação por meio de um Estado) ou
pela utilização de um linguajar discursivo específico.
Já que estamos falando de uma relação Estado-Instituição internacional-ambiente
internacional vale a pena delimitar teoricamente o poder de ação desses três participantes.
Para o presente trabalho, será utilizada a noção de sistema internacional. Tal conceito
pressupõe certo nível de controlabilidade dos atores internacionais (Estado, de preferencia)
por instituições de valor jurídico, como a ONU, havendo assim uma delimitação da atuação
dos dois atores que esbarram na questão de Capitais de força, poder e interesse (K fpi) dos
Estados com relação a determinados assuntos27 (CASTRO, 2012).
Resumidamente há uma análise de valor de relevância do tema em destaque: se
interessa ao Estado, ele pondera entre aceitar a mediação ou interferência dos organismos
internacionais ou agir por conta própria e lidar com as consequências. O fator de
diferenciação é se o Estado tem Capital de força e poder para agir segundo seu interesse, caso
esse seja relevante, e ter capacidade de lidar com a reação do sistema internacional, ou seja,
estar uma situação que os outros países são incapazes de criar sanções, ou ter sanções que
serão irrelevantes se comparadas com os benefícios alcançados por sua ação. Um exemplo
disso foi a investida estadounidense em 2001 no Afeganistão, que agiu contra a decisão do
Conselho de Segurança da ONU6. Ou seja, quando foi julgado necessário pelo país ele saiu da
regra comum, sem receber nenhuma punição real, já que os EUA são a grande potência da
ONU, dificilmente uma sanção econômica teria efeito benéfico de coerção, pois
desestruturaria a economia mundial, por exemplo. O país tinha capitais de força poder e
interesse (KFPI) e agiu como achou necessário nesse assunto específico, mas em outros agiu e
age conforme as regras estabelecidas.
Desse modo as regras internacionais e os valores a elas vinculados tem eficiência
e dominam até certo ponto a relação entre os Estados, da mesma maneira que o Estado tem
um poder de ação, baseado do seu KFPI (um Estado que não fosse os EUA não poderia agir da
forma como agiu sem sofrer penalizações que normalmente o desencorajaria a agir
27
Outro termo bastante utilizado para retratar o ambiente internacional é “comunidade internacional”. É a noção
de que no macroambiente internacional os países são iguais e há um alto grau de institucionalização que regula
as relações entre os Estados no seu total. Também existe um conceito que se opõe ao de comunidade: cenário
internacional. Nesse há anarquia internacional e heteronomia completa em todas as instancias de relacionamento
dos Estados. Os conceitos de “sociedade” e “sistema” se encontram no meio desses extremos, o primeiro pende
para a noção de “comunidade” e o segundo para a de “cenário”.
26
belicosamente) que também é limitado, até certo ponto, pelos valores defendidos na
sociedade.
Considerando que o poder de sanções da instituição é proporcional à força que ela
tem e que no período de que trata o trabalho (de 2000 a 2008) a UNASUL está em
constituição, a relação Estado-instituição aqui estudada é aquela que procura apreender o
processo de construção e conformação de valores que serão propagados (MEUNIER;
MEDEIROS, 2013) pela organização sul-americana, levando também em consideração a
influência sensível dos valores internacionais já estabelecidos e o contexto em que se escolhe
sedimentar determinado conceito.
Com isso devemos perceber que as instituições não se opõem ao Estado em
termos de atuação internacional, elas funcionam como espaço de discussão de temas, de
exposição e defesa de opiniões e de decisões de impasses. As características são múltiplas,
assim como o caráter das instituições e suas funções para os Estados-membros, elas só
funcionam como controladoras parciais da cena internacional por causa dessas atribuições
múltiplas e da participação mesma dos Estados, sem esses aquelas deixam de existir.
Percebendo essa analise complexa das relações entre Estado e Instituição, recorro à teoria
sistêmica de analise das Relações Internacionais para tentar explicar a relação entre
Sociedade-Intituição-Estado; porém ao analisar a importância da integração regional para o
Brasil por meio da UNASUL, creio que a teoria realista demonstra uma percepção mais
estratégica do que essa Organização Internacional pode representar para a PEB.
Parece-me necessário trazer o ponto de vista histórico para as Relações
Internacionais e perceber que as mudanças em valores e ideias afetam sim o ator político, pois
o Estado, enquanto constituído por pessoas também tem a sua temporalidade específica, e
com ela uma linguagem, um conjunto de ações e um complexo de crenças que posicionam
indivíduo e Estado em determinado espaço e tempo. São os conceitos, no seu momento de
utilização,28 que dão sentido ao sistema de crença comum e a existência de um grupo, no caso
de Estados, em torno delas:
A partir de interlocuções com Marx Weber e Kant, Prost (2008, p. 121) coloca o
conceito com uma concepção que não precisa necessariamente ser real, é uma ferramenta
analítica para ser comparada com a realidade, “convém descrevê-los, desenrolá-los [...]
explica-los é sempre explicitá-lo” podendo assim haver uma comparação entre conceitos,
entre conceito e realidade, tendo suas diferenças e similitudes discutidas.
Então, se conceitos são utilizados como padrões de autodefinição do grupo de
Estados sul-americanos, como podemos entender por qual meio e de que forma se dá esse
uso? Não me parece exagero abranger a relação que Isabel Meunier e Marcelo de Almeida
Medeiros (2013, p. 685) estabelecem entre instituição, identidade e discurso para todo o
complexo de valores das Relações Internacionais pós Segunda Grande Guerra29:
Os autores definem que a relação entre essas três instancias se dá a partir de três
lógicas: a da consequência, que vê a utilização da identidade apenas como mecanismo
estratégico numa relação de custo benefício voltada para a legitimação da instituição, por
exemplo. A lógica da apropriação que seria “a internalização das normas pelos agentes” que
“engendraria seu cumprimento continuado” (MEUNIER; MEDEIROS, 2013, p. 685) como
uma absorção da norma que é imposta em primeira instância e, posteriormente apropriada
como forma de auto-expressão do Estado. A terceira é a lógica do dia-a-dia, a lógica do
mimetismo, que seria a cópia de um padrão de ação, práticas e significados que seriam
replicados sem serem pensados, como uma reprodução mecânica relacionada ao momento
inicial de inserção de um Estado dentro de determinada instituição (MEUNIER; MEDEIROS,
2013).
Essas três logicas definem bem três dimensões da relação valores/ideias-
instituições-Estado se levarmos em conta também o discurso como meio de atuação desses
sujeitos atores: a dimensão de utilidade, a de internalização e a de primeiro contato. Isso é
29
Considero essa cronologia do pós-Segunda Guerra porque é quando os atores internacionais de maior peso
(Inglaterra, França, Estados Unidos, China e Rússia – o chamado P5 do CS) se juntam em torno de ideais
internacionais comuns. A criação da ONU pode ser entendida como o início dessa relação de maior peso entre
instituição internacional, valores/ideias e atores estatais (as próprias instituições e os Estados).
28
percebido nos primeiros documentos (os das Reuniões de Presidentes entre 2000 e 2004)
especialmente quando vemos necessidade do grupo de países reunidos em definir certos
estatutos como importantes, é o caso da democracia, da paz e da estabilidade, pois eles são
fundamentais para o Sistema Internacional e para a ONU. O modelo de instituição de cúpula
que vai se conformando com a criação da CASA, a defesa da igualdade entre os países
membros e a necessidade de definir que esses países seguem os preceitos da ONU
demonstram como essas logicas se integram em processo de (re)criação de padrões
amplamente aceitos mesmo quando a reunião não se insere dentro de um local vinculado ao
órgão criador de tais padrões30, demonstrando o peso que teve a criação da ONU para a
diplomacia.
Tendo em vista a dimensão de Relações internacionais na vida social
influenciando em várias instâncias, a maneira como Instituição e Estado atuam no sistema
internacional, a relação instituições-valores/ideias-Estados e a nova conjuntura internacional
pós Guerra-Fria, mecanismos multilaterais de interação regional entram como uma pauta de
discussão importante: eles poderão ser o futuro das RI. Mas, nesse caso, serão também o devir
de milhares de pessoas envolvidas nesse processo que é intencionalmente lançado para a
população por seus Estados, mas que é ao mesmo tempo uma resposta à conjuntura histórica
no qual se desenvolve, sendo imprescindível uma análise conjunta do processo normativo e
do desenrolar conjuntural, proposta desse trabalho para a criação da UNASUL.
Dentro desse quadro do que Elói Martins Senhoras (2010) explica como “novo
regionalismo” iniciado na década de 1990 e que encontrou entre 2000 e 2010 uma
complexidade de integração cada vez maior no âmbito regional-internacional da América do
Sul, a UNASUL tem sua importância como meio de diálogo entre os países e como local no
qual os Estados podem pensar a região a partir de suas semelhanças e diferenças, buscando
um objetivo comum e criando laços políticos que podem ser fundamentais para se pensar uma
identidade sul-americana. Ela é representativa de um processo de mudança de um
regionalismo mais preocupado com a inserção internacional no molde de blocos comerciais e
fixado na discussão de tarifas de comércio (regionalismo aberto) para um regionalismo que
dialoga com a ideia de integração pensada como um meio de superação da condição de baixo
desenvolvimento social em comum entre os países sul-americanos (regionalismo pós-liberal
30
Isso não quer dizer que esse seja o único motivo pelo qual o grupo de países atua dessa forma, trabalharemos
essa problemática na segunda parte do primeiro capítulo, porém é representativo como certos aspectos são
assimilados no aparato burocrático, comportamental ou ideológico de um grupo de atores, no caso, políticos. Isso
importa porque o alcance dessas instituições muitas vezes ultrapassa o político e se envolve no tecido social e
muitas vezes quando isso não ocorre, tais instituições não perseveram (VIGEVANI; FAVARON; RAMANZINI
Jr; CORREIA, 2008).
29
31
Refiro-me a tal acontecimento como golpe porque o próprio MERCOSUL considerou o impeachment do Ex-
Presidente Fernando Lugo uma quebra de constitucionalidade, fato que gerou a suspenção do Paraguai na
organização até a realização de novas eleições.
30
32
Até o momento de redação deste trabalho, Reino Unido, Irlanda, Chipre, Romênia, Bulgária e Croácia fazem
parte da UE, mas não são fronteiras de livre transição, pois não fazem parte do Espaço Schengen ou Acordo
Shengen. Esse documento foi assinado em 1985 entre Holanda, Bélgica, Alemanha, Luxemburgo e Holanda e
ratificado pelos mesmos em 1995, quando passou a funcionar. Foi um acordo criado fora do âmbito da UE,
porém introduzido na mesma em 1997 no Tratado de Amsterdã. O fato de o acordo ser estrangeiro a União faz
com que nem todo país pertencente à UE seja parte do Espaço Shengen ou que o pertencimento à UE seja
clausula obrigatória: Suiça, Islândia e Noruega fazem parte do Acordo Shengen, mas não são Membros da União
Europeia.
33
Mesmo que o momento atual de crise econômica faça com que se questione a funcionalidade de acordos
regionais como o MERCOSUL, até o momento alguns estudiosos da área, como Matias Spector e Andres
Cisneiros, em entrevista recente ao programa “Sem Fronteiras” (19/05/2016), ainda acreditam na manutenção e
na pertinência dessas instituições.
31
34
Congresso Anfictiónico do Panamá em 1826 pretendia tratar de uma união dos países americanos recém-
independentes, como antiga Grande Colômbia, México, Peru, Bolívia e Guatemala. O encontro pretendia a união
dos países para resistir a potencias, em especial as europeias, mas, sem a presença dos Estados Unidos, não tinha
uma força real de aplicação e ficou sem efetivação. O Império Brasileiro se omitiu da presença, segundo José
Carlos Brandi Aleixo, por razões diversas como o não comparecimento da Argentina, a recém transição para um
regime de Monarquia Constitucional e a dificuldade de acesso ao Panamá na época: “O grande prócer Pedro
Gual, um dos dois representantes da Colômbia, demorou um mês, só de Bogotá a Cartagena” (ALEIXO, 2000)
35
No que tange ao tema reuniões entre Estados da América Latina no século XIX, houve mais quatro reuniões
derivadas dos ideais bolivarianos. Duas delas foram promovidas pelo Peru: As conferências de Lima de 1847-
1848 e de 1864-1865 e a Conferencia de Santiago em 1856 no Chile. Edmundo A. Heredia (2015), chama a
atenção para o papel do Peru nesse movimento de aproximação entre as nações a partir de congressos
internacionais: as duas movimentações de independência (a de San Martin do sul e a de Bolívar vinda do norte
da América do Sul) convergem-se nesse país e deixam um ideário escorado em normas jurídicas que viam a
vantagem e necessidade de uma relação com bases normativas entre todos os Estados recém independentes.
32
36
Entende-se aqui um alinhamento denominado pragmático com os EUA porque tal posicionamento era uma
estratégia de inserção internacional do Brasil, uma maneira pragmática de obter vantagens (proteção contra
possível invasão europeia e bons acordos comerciais) colocando-se sob a tutela dos EUA. O caráter ideológico
da relação fica assim amenizado e as decisões são tomadas mais porque servem a interesses nacionais do que
para demonstrar afinidade ideológica (PINHEIRO, 2004).
37
A troca da missão que representava o Brasil no I Congresso Pan-Americano de 1888 é muito simbólica dessa
mudança. Os diplomatas que respondiam ao imperador mantiveram, durante sua estadia, a neutralidade e falta de
apoio às medidas dos EUA (Criação de uma tarifa única para a América, criação de um Tribunal Unificado
Americano para arbitragem e a unificação de pesos e medidas). Após a substituição dos diplomatas da missão
Lafayette pelos representantes da delegação Salvador de Mendonça, o espírito republicano solidário entra na
mesa de negociações e o Brasil passa a apoiar as propostas estadounidenses (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014).
38
Para listar as Conferencias desse período teríamos: II Conferencia Pan-Americana na Cidade do México em
1901, III Conferencia Pan-Americana na Cidade do Rio de Janeiro em 1906, a IV Conferencia Pan-Americana
na Cidade de Buenos Aires em 1910, a V Conferencia Pan-Americana em Santiago em 1923, a VI Conferencia
Pan-Americana em Havana em 1928 e a VII Conferencia Pan-Americana em Montevideo em 1933.
39
para citar as mediações que o Brasil entrou como parte interessada na disputa territorial temos: Questão de
Palmas (1895) com a Argentina, Questão do Amapá (1900) com a França, a Questão com a Colômbia em 1904 e
1909, a Questão do Acre (1903) com a Bolívia e a Questão do Pirara (1904) com a Inglaterra.
33
inclusive com frases de efeito como “América para a humanidade” declarada pelo
representante argentino na I Conferência Pan-Americana de Washington em 1888.
Essa situação de apoio aos EUA e de fortalecimento da Política Externa Brasileira
no período do Barão do Rio Branco como chanceler (1902-1912) gerou um clima de tensão na
relação com a Argentina, escalonando em 1908 com o caso do telegrama 9, no qual o então
Ministro das Relações Exteriores da Argentina, Estanislao Zeballos, forjou um telegrama
brasileiro que conteria intenções hostis contra a o país portenho. O caso terminou com a
demissão de Zeballos e um esforço dos dois países de procurar algum entendimento (Bueno,
2012).
É nesse contexto que o Barão delineia, em 1909, o Pacto ABC. Ele só será
assinado em 1915 por Argentina Brasil e Chile como um acordo para arbitragem de conflitos
e não como um projeto de hegemonia coletiva, como era o contorno original em 1909 40.
(CONDURU, 1998). O pacto acabou por ser rejeitado na Câmara dos Deputados da
Argentina, porém os três países em conjunto, no âmbito de negociação e da assinatura do
Pacto ABC, tiveram um papel importante na arbitragem em 1914 do conflito entre EUA e
México pela ocasião da invasão estadounidense do porto de Veracruz ocorrida durante a
Revolução Mexicana (1910 - 1920) (VIDIGAL; DORATIOTO, 2014).
Na década de 1920 o Brasil se afasta da Europa, em um período que Clodoaldo
Bueno e Amado Cervo descrevem como “ilusão de poder”, no qual o Brasil, em posição auto-
nominada de representante da América insiste na sua inclusão enquanto membro permanente
do Conselho Executivo da Liga das Nações. Quando seu pleito não é atendido, o Brasil sai da
organização (1924 com confirmação em 1926) e retorna seu foco para o continente
americano, especialmente para a sua relação alinhada com relação aos EUA.
Durante o governo de Vargas (1930-1945), em termos de interação com a
América Latina, temos em 1933 a assinatura do Pacto Saavedra Lamas de não agressão,
antibelicismo e conciliação entre Argentina, Brasil, Chile, México, Paraguai e Uruguai. O
Brasil também atuou como mediador nos seguintes conflitos: a Guerra do Chaco ocorrida de
1932 a 1938 entre o Paraguai e a Bolívia e a Questão Leticia (1932 a 1933) entre Colômbia e
Peru, nesse último caso, agiu auxiliando a Liga das Nações (VISSENTINI, 2013). Apesar das
mediações, as relações com os países Latino-americanos ainda se dava muito no plano
40
Existem duas vertentes que analisam o Pacto ABC de 1915, uma delas entende o tratado como uma resistência
ao pan-americanismo estadounidense e ao imperialismo europeu, defendida por Moniz Bandeira, Celso Lafer e
Bredforf Burns. A segunda, defendida por Clodoaldo Bueno e Rubens Ricupero não encontra nenhuma
contradição ou resistência regional ao contexto internacional de imperialismo (CONDURU, 1998)
34
benefícios para todos os outros países41. O caráter nacionalista das Ditaduras Militares, além
de levar a certas rixas políticas ligadas à discursos de pretensa declarada superioridade de
cada nação, levavam a um protecionismo de mercado para valorizar as industrias nacionais.
O início da década de 1960, ainda no espirito da ALALC, das teorias cepalinas e
dos estudos do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) 42, a Política Externa
Independente43 de Jânio Quadros e de seu chanceler Afonso Arinos buscou maior
proximidade com a Argentina, país com o qual o Brasil vinha tendo boas relações já desde o
governo JK, com Arturo Frondizi na presidência da república platina entre 1958-1962. Temos
então o Encontro de Uruguaiana em abril de 1961, ponto alto da dimensão sul-americana da
PEI, que combinava com o governo desenvolvimentista de Frondizi.
A ideia era separar a América do Sul dos problemas do Caribe, visto que os EUA
tendiam a analisar os problemas latino-americanos como um conjunto e sob a ótica
do contexto caribenho. Todo o raciocínio do presidente argentino baseava-se na
constatação de que não era vantajoso opor-se à política estadounidense para a
região. O posicionamento brasileiro, tendente ao neutralismo, devia-se às condições
internas do país (VIDIGAL, in: A América do sul e a integração regional, 2012 p
67).
41
O princípio da nação mais favorecida foi o princípio que inicialmente se fixou no GATT (General Agreement
on Tariffs and Trade – Acordo Geral sobre tarifas e comércio) criado em 1947. Esse acordo seria a base para a
criação da OMC (Organização Mundial do Comércio) em 1995.
42
Outro local de formulação teórica sobre os problemas políticos e econômicos do Brasil foi o ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros). Dentre os teóricos isebianos, Hélio Jaguaribe publicou seu livro “O
nacionalismo na atualidade Brasileira” em 1958. Esse estudo coloca como ponto crucial para a neutralização do
poder estadounidense a união da América Latina, cuja base seria a articulação entre Brasil e Argentina. Sem
avanços nessa parceria, que deveria impulsionar uma integração economica regional, dificilmente seria possível
ter poder e influencia suficientes para inverter as regras na América do Sul. (VIDIGAL, in: A América do sul e a
integração regional, 2012)
43
A PEI é considerada por estudiosos, como Visentini, um primeiro passo da multilateralidade internacional
brasileira. Esse autor interpreta essa política multilateral como o início do terceiro grande período das relações
internacionais brasileiras chamado: multilateralidade, na fase da crise hegemônica no sistema mundial, em
oposição ao “americanismo” pautado pelo alinhamento aos EUA (VISENTINI, 2013). A Política Externa
Independente, nomeada assim pelo próprio Presidente, teve como seu principal promovedor o Chanceler Afonso
Arinos, responsável pela Reforma do Ministério das Relações Exteriores (Conhecida como Reforma Arinos) de
1961. Tivemos novas aberturas de embaixadas em Senegal, na Costa do Marfim, na Nigéria e na Etiópia, como
parte de um novo direcionamento político para a África, o primeiro direcionamento sistemático para o continente
africano da história da PEB, que incluiu a nomeação do escritor negro Raimundo de Souza Dantas como
embaixador do Brasil em Gana. Tivemos também a elevação à Embaixada das Legações do Brasil na Polônia e
no Irã, como parte de um estreitamento de relações entre esses países. Para o Leste europeu temos a Missão
diplomática de João Dantas após o reestabelecimento de relações diplomáticas com a Hungria e com a Romênia,
rompidas desde a Segunda Guerra Mundial. No contexto latino americano tivemos a declaração de “profunda
apreensão” com relação ao episódio do Ataque à Baía dos Porcos em Cuba em 1961, declaração muito diferente
do apoio durante o Governo civil de Vargas quando houve a intervenção na Guatemala em 1954. Vale ressaltar
que o Governo de Jânio Quadros foi curto e tumultuado para a PEI ser corretamente implantada. O estudo da PEI
normalmente se dá pela influencia das suas diretrizes em governos posteriores como o de Geisel, e até mesmo de
Costa e Silva e Médici.
37
“I Declaração de Alta Gracia: em que são expostas a situação dos países em desenvolvimento no quadro do
intercâmbio mundial, a necessidade de reestruturação do comércio internacional e os princípios a serem
defendidos pelos países da América Latina, a fim de que esta reestruturação transforme o comércio em
instrumento eficaz para o desenvolvimento. Esta declaração contém igualmente a manifestação do desejo latino-
americano de coordenar suas posições com as dos países em desenvolvimento de outroscontinentes.
II Princípios gerais: onde estão explicitadas as diretrizes que, a juízo dos países latino-americanos, devem reger a
nova estruturação do comércio internacional a fim de adequá-lo às necessidades de desenvolvimento dos países
subdesenvolvidos e, conseqüentemente, contribuir para diminuir a diferença hoje crescente entre os níveis de
renda, que os separa dos países industrializados.
III Conclusões gerais: em que se definem as normas e medidas correspondentes aos produtos primários,
manufaturados, invisíveis, financiamento, diversificação geográfica do comércio, agrupamentos econômicos de
países em desenvolvimento e estrutura institucional.
Essas conclusões são as de Brasília que receberam agora confirmação política por parte dos governos latino-
america”. (Resumo noticioso, distribuído à imprensa, acerca dos objetivos e resultados da reunião da Comissão
Especial de Coordenação Latino-Americana, realizada em Alta Gracia, de 24 de fevereiro a 6 de março de
1964 Circular n. 5.078, de 11 de março de 1964 – FRANCO, 2008)
47
A Venezuela é, juntamente com a Colômbia, um dos países que não entra em ditadura nesse período. Em 1959
instaura-se a fase do Punto fixismo, que, ao alternar dois partidos no poder, põe fim a uma ditadura anterior que
durou de 1948-1958 (ELLNER, 1996).
48
O Governo Castela Branco é normalmente reconhecido pelos estudiosos como um desvio na continuidade
universalista que a PEI havia instaurado, isso porque os governos militares posteriores a esse buscariam uma
diversificação de parcerias e mais autonomia política concernente às suas decisões e aos seus posicionamentos
internacionais. Exemplo disso foi o caso da participação como liderança do Brasil na II UNCTAD em 1968, os
desacordos com os EUA sobre Direitos Humanos no Governo Geisel e a não assinatura do TNP (Tratado de não
proliferação) também em 1968. Amado Cervo chama o governo de Castelo Branco de “um passo fora da
cadência” (CERVO; BUENO, 1992). Porém em termos de integração, Vidigal e Visentini diferem do
direcionamento que esse governo deu a esse processo. Para Carlos Vidigal a integração regional fazia parte de
“um projeto maior modificado pelo novo regime, mas que conservou importantes elementos das propostas
integracionistas da PEI. A diferença era que, em vez de um processo de integração vinculado à conciliação
histórica entre o regime democrático representativo e uma reforma social capaz de suprimir a opressão da classe
trabalhadora pela classe proprietária, como proposto por San Tiago Dantas para a PEI, nessa nova fase o projeto
de integração da América do Sul respondia a valores geopolíticos dos militares e a interesses da classe
proprietária, ou seja, dos grupos empresariais hegemônicos no país.” (VIDIGAL, 2012, p 69). Para Visentini, a
39
dimensão da política hemisférica do Brasil se voltou inteiramente para os EUA, os princípios da PEI e os
ideários da OPA foram desmantelados e o bilateralismo se tornou o novo enfoque da política externa brasileira
(Visentini, 2013). As integrações regionais só teriam valor se efetuadas na “ótica das relações prioritárias com
os EUA” (VICENTINI, 1998, p. 48 apud: VIDIGAL, 2012, p. 70).
49
A Bolívia ganha em termos de números de golpes com grande instabilidade entre 1964 e 1971. No caso do
Peru em1992, o então presidente Alberto Fujimori declara um autogolpe em nome do combate ao terrorismo. O
mesmo aconteceu no Uruguai em 1971 com o autogolpe de Bordaberry (SILVA, 2013).
50
A essência do Tratado era somar esforços com o fim de promover o desenvolvimento equilibrado e a
integração física na região da Bacia do Prata. Os mecanismos utilizados seriam a realização de estudos para
facilitar a navegação e utilização racional da água (por meio do aproveitamento equitativo dos recursos naturais
da região), a complementação econômica regional, mediante a radicação de indústrias para desenvolvimento da
Bacia do Prata, e a elaboração de projetos, principalmente aqueles de interesse comum. É importante mencionar
que o governo brasileiro não via este acordo com “bons olhos”, já que sua ideia era não contrair obrigações com
terceiros que pudessem restringir-lhe a liberdade de construir obras dentro de suas fronteiras ou de realizar
projetos bilaterais com países vizinhos (FERRES, 2004).
40
TCA também representa a abertura de um novo foco para a diplomacia brasileira, é a primeira
vez que o Brasil se coloca como ator político internacional de maneira mais representativa na
área setentrional da América do Sul55.
A década de 1980 marca o início de um período de crises para os países em
desenvolvimento, tanto uma crise econômica internacional quanto uma interna. É um período
em que os Estados da América Latina buscam opções em conjunto. Em 1980, temos a
assinatura do II Tratado de Montevideo entre Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Chile,
México, Bolívia, Colômbia, Peru, Equador, Venezuela, substituindo a ALALC pela
Associação Latino-Americana De Integração (ALADI). O objetivo continua sendo o mesmo:
criar um mercado comum latino-americano, porém com mudanças cruciais: não existe mais o
princípio de nação mais favorecida, permitindo acordos entre quaisquer países (são os acordos
conhecidos como ACE – Acordo de Complementação Econômica) e a ausência de prazo para
formação do mercado comum. Essas mudanças dão uma flexibilidade, dinamismo e
resistência à Organização, que mesmo em momentos de crise nos seus membros, não se vê em
perigo de extinção56.
Instabilidades econômicas normalmente precedem ou são concomitantes a
instabilidades políticas, nesse período não foi diferente. Os governos em processo de
redemocratização tiveram que lidar com a desestruturação das ditaduras e a reorganização de
um novo regime político. Tal reestruturação não ocorreu sem conflitos, mesmo que em alguns
lugares, como no Brasil, tenha sido feita de forma ordenada pelo próprio governo.
No panorama latino-americano o Brasil esboçou preocupação de inserir-se nos
assuntos políticos com um viés mais amistoso e sem projetar fortemente uma política de
interesse nacionalista, como ocorria no período anterior. Isso passa a ser mais coerente a partir
no novo governo civil com o Presidente Sarney (1985-1990), quando se começa a construção
de uma imagem de parceria na América Latina. Esse novo comportamento é exemplo de um
movimento mais amplo da PEB o qual Gelson Fonseca Jr. (1998) deu o nome de “Renovação
desenvolvimento. Essa relação entre meio-ambiente e desenvolvimento deu espaço para a criação do conceito de
Desenvolvimento Sustentável, debatido e defendido por vários países em desenvolvimento, como o Brasil.
Lembrando que desenvolver-se de forma sustentável é crescer economicamente hoje, garantindo reservas que
proporcione o crescimento futuro.
55
Impulsionando ainda essa diplomacia na região temos em 1998 a criação da Organização do Tratado de
Cooperação Amazônico (OTCA) com sede em Brasília. As outras iniciativas de âmbito multilateral que
englobarão a região amazônica, mesmo que não tratem exclusivamente dela, serão a IIRSA em 2000 e a
UNASUL, em 2008, ambas discutidas posteriormente no presente trabalho.
56
Na ALADI, todos os países partícipes têm que ter seus acordos publicados pela organização. O MERCOSUL,
enquanto Tratado de Assunção assinado em 1991 por países membros da ALADI está nela registrado como o
ACE 18.
43
de credenciais”, ou seja, ruptura com algumas políticas da década de 1970 que acarretavam
uma imagem negativa estigmatizada do Brasil em áreas internacionalmente importantes,
como direitos humanos e tecnologia nuclear, nas quais o Governo brasileiro não abria mão de
sua soberania.
Em 1983, os governos de Colômbia, México, Panamá e Venezuela impulsionados
pelo pedido de ganhadores do Premio Nobel Gabriel García Márquez, Alfonso García Robles
e Alva Myrdal, que atendiam ao chamado do Primeiro Ministro Sueco, traçaram um plano de
ação para a mediação nos conflitos que ocorriam a cerca de três décadas na América Central,
em especial para El Salvador, Nicarágua e Guatemala. Os quatro países mediadores se
intitularam Grupo de Contadora (Cidade panamenha sede da primeira reunião) e tiveram seu
projeto de paz apoiado pela Assembleia Geral da ONU, pelo Conselho de Segurança e pela
maioria dos países latino-americanos, não contou com o apoio dos EUA. Em 1986, Argentina,
Brasil, Peru e Uruguai, demonstraram interesse nas questões de instabilidade política regional
ao fundar o Grupo de Apoio a Contadora, porém a paz na região foi alcançada por meio do
Acordo de Paz de Esquípulas, cujas discussões se iniciaram em 1986 e se estenderam a 1987,
com apoio dos Estados Unidos57.
Esses dois grupos (o de Contadora e o de Apoio) resolvem se reunir no Grupo dos
Oito e, posteriormente, no Grupo Rio; com reuniões a partir de 1987, que passara a discutir
temas como divida externa e desenvolvimento tecnológico da região. O Grupo Rio se mostra
um espaço onde os países mais influentes da América Latina conseguem dialogar sobre
assuntos pertinentes à sua realidade. Vale ressalta o caráter mais político desse bloco. O
Brasil, mesmo durante a ditadura civil-militar, não deixou de integrar discussões multilaterais
sobre comércio e desenvolvimento ao lado dos países latino-americanos.
Também no Governo Sarney houve direcionamento para maior participação nas
questões políticas regionais e para fomentar um relacionamento mais íntimo com a Argentina,
construindo confiança e fortalecendo bases para o processo de integração que viria na década
seguinte. O interesse do presidente argentino Raul Alfonsín, no poder desde 1983, também
converge para uma aproximação regional, buscando estabilidade e caminhos para Diversos
acordos e declarações são assinados nesse período.
No ano de 1985 temos a assinatura da Declaração de Iguaçu, um documento de
conteúdo político que declara o compromisso de aprofundar as relações econômicas entre os
dois países sul-americanos. Mesmo não sendo um compromisso vinculante, é considerado um
57
O Grupo de Contadora gerou a da Ata de paz da Contadora para América Central, em 1984, projeto de
mediação não aceito, mas que lançou bases para o processo de paz de Esquípulas.
44
marco da integração entre os dois países, demonstra esforço dos novos regimes em fomentar
uma parceria entre eles.
Em 1986 temos a assinatura do Programa de Integração e Cooperação Econômica
(PICE) entre Brasil e Argentina, focando na integração de setores de ambas as economias 58. E,
em 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, esse sim de caráter
vinculante, coloca prazo de 10 anos para a integração completa das duas economias. Era o
início burocrático para as negociações que delineariam o MERCOSUL.
A década de 1990 presenciou uma multiplicação de blocos econômicos em vários
continentes, em quantidade e ritmo sem precedentes até então. Entra-se na “Segunda Onda de
Integração Regional” (SENHORAS, 2010) partindo do incremento comercial, iniciou-se uma
nova dinâmica internacional que viria a gerar o que Paulo Visentini coloca como “O crescente
desequilíbrio entre a ordem econômica (crescentemente multipolar) e a ordem político-militar
(que permanece dominada pela superpotência remanescente, os Estados Unidos)” e que
“elevam as incertezas deste cenário” em época de crise (VISENTINI, 2013, p. 120).
Em 1989 tivemos a Asia Pacific Economic Coperation – Cooperação Economica
Ásia-Pacífico (APEC), em 1990 a IPA (Iniciativa Para as Américas), em 1992 a União
Europeia, em 1994 o NAFTA (North America Free Trade Treaty – Acordo de Livre Comércio
da América no Norte). Em 1992 a ASEAN (Association of Southeast Asian Nations -
Associação de Nações do Sudeste Asiático) que existe de 1967 assinou seu tratado para se
tornar uma área de livre comércio.
O Brasil entra a nova década firmando com a Argentina a Ata de Buenos Aires em
1990, antecipando o prazo do tratado de 1988 para dezembro de 1994. É nesse encontro que
Paraguai e Uruguai integram as negociações para o Mercado Comum do Sul, que ganha
textualidade no Tratado de Assunção de 1991, no governo Collor, e funcionamento político
em 1994, com o Protocolo de Ouro Preto, já no governo de Itamar. O MERCOSUL marca a
consolidação de uma novas fase de interação do Brasil com a Argentina, a de “Estabilidade
Estrutural pela Integração” iniciada em 1988 segundo o recorte de Matias Spektor
58
Para Joaquim Cadete, esse acordo tem um lado político: maior integração econômica significa uma parceria
mais intima entre os dois governos com a finalidade de evitar o reestabelecimento de regimes autoritários. Isso
significaria também mais estabilidade na região do prata, deixando a política externa brasileira com mais
recursos para focar na questão amazônica (CADETE, 2015 p. 44). Não me parece que a política brasileira para a
região ganhou grandes benefícios para dedicar-se à questão amazônica, especificamente, já que não houve
tratados significativos sobre essa área. Um interesse político mais plausível para o Brasil me parece ser a
construção de uma imagem de parceria na América Latina que respaldaria os esforços de ruptura com algumas
políticas da década de 1970 e da imagem do Brasil como um com estigma de soberania em áreas
internacionalmente importantes como direitos humanos e tecnologia nuclear resultando na política que Gelson
Fonseca JR. (1998) Chamou de “Renovação de credenciais”, como já foi mencionado anteriormente neste
trabalho.
45
(SPEKTOR, 2002). Esse Mercado Comum Também contribui para sedimentar a projeção
política brasileira na América Latina como liderança e parceria.
O bloco que surge com a assinatura do Tratado de Assunção é um acontecimento
de peso para a região. Ele representa uma Organização Internacional advinda de uma
aproximação autônoma, sem presença de potências mundiais, e com base sólida e constante
que permite sua continuidade; diferente de iniciativas como a OPA ou o Convênio de
Amizade e Consulta. É a consolidação da ruptura com uma política de integração a partir da
lógica geopolítica do interesse nacional, como Vidigal coloca a visão integracionista do
regime civil-militar (VIDIGAL, 2012). O MERCOSUL abre espaço para mostrar as
possibilidades benéficas de uma integração e permitindo uma forma mais íntima de o cone-sul
interagir em suas questões econômicas. É nesse momento que um assunto que sempre foi
motivo de rixas ou concorrência – o controle da interação entre mercado regional e
internacional – passa a ser um fator de integração (CERVO, 2015). O Mercosul é o marco
positivo da participação pouco efetiva, porém constante do Brasil na história da integração
regional (SILVA, 2013) e sem dúvida é um abrir de portas para o concerto político da região,
para a resistência a políticas de fora e para outras iniciativas de integração.
Também da década de 1990 temos o projeto pouco desenvolvido da ALCSA
(Área de Livre Comércio Sul-Americana) em 1993/1994, durante o governo de Itamar
Franco, e a proposta da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) de 1994, ambas não
chegaram a ser acordadas, porém tiveram influencia na política de integração que se
desenrolou no fim do século XX e início do XXI.
A ALCSA, para Visentini (2013) é uma clara reação à iniciativa do NAFTA que
incluiu o México ao Canada e aos EUA, concretizada em 1994. Já para Adilson Santana de
Carvalho (2009), a ALCSA é um projeto que se opõe mais diretamente à ALCA, já que o
Brasil vinha agindo com cautela desde 1990 com a Iniciativa para as Américas (IPA), lançada
pelo governo do primeiro presidente Bush, e que “incluía o estabelecimento de uma área de
livre comércio com pretensões de abarcar do Alasca à Patagônia” (ibid., p. 35).
Interpretações a parte, foi uma iniciativa brasileira que claramente se opôs às iniciativas
estadounidenses para a integração regional.59 A AlCSA, e posteriormente a União de Nações
Sul-americanas se tornam maneiras de regionalizar a Política Externa Brasileira, fazendo
frente à crise da noção de América Latina e inserindo o Brasil no contexto de mega-blocos
(VILAFAÑE, 2014). A AlCSA (apresentada na VII Cúpula do Grupo Rio em 1993) também
59
A inclusão do México no NAFTA, segundo Cláudio Villafañe (2014), serviu para degradar lentamente o
conceito de América, sendo a UNASUL uma reação a essa erosão.
46
foi “a primeira aproximação ao conceito de América do Sul tal como ele é expresso hoje no
discurso diplomático brasileiro” (CARVALHO, 2009, p. 37).
No início do Governo de FHC, há um emparelhamento maior com as políticas dos
EUA e um abrandamento no discurso de regionalização que o governo de Itamar Franco
assumiu (incluindo o próprio FHC enquanto Ministro). O projeto da ALCSA é arquivado,
porém o Brasil não se mostra entusiasmado com o projeto estadunidense. A Área de Livre
Comercio das Américas tiraria o Mercosul da existência e diminuiria a zona de influencia
brasileira na região. Começa então um jogo de não apoiar, mas também não rechaçar
abertamente o plano político econômico de uma zona americana de livre comércio
(VISENTINI, 2013).
FHC só se volta mais firmemente para a América do Sul durante a metade do seu
segundo mandato. Ainda para Visentini (2013), os fatores conjunturais de mudança que
favoreceram a aproximação brasileira com os países sul americanos foram as crises asiática
(1997) e russa (1998) que, ao desestabilizarem o mercado financeiro, levaram os países
desenvolvidos e os em desenvolvimento a tomarem medidas mais protecionistas. No quadro
nacional o Real começa a desvalorizar e o Mercosul cessou sua fase inicial de lucros fáceis o
que dificultava a situação para os países participantes. Para atrair investimentos, a América
do Sul precisava mostrar estabilidade: esse foi o tom da I Reunião de Presidentes Sul
Americanos que, por iniciativa do governo brasileiro, voltado agora para a realidade sul-
americana como alternativa à crise do Real e à impopularidade crescente do liberalismo
figurado na proposta da ALCA, reuniu os chefes de governo em Brasília entre 31 de agosto e
primeiro de setembro de 2000.
Por último gostaria de terminar o texto com um pensamento interessante de Carlos
Vidigal (2011). O autor entende que não foram as teorias cepalinas, as isebianas ou a ideia de
um renascimento do bolivarismo que levou ao que conhecemos hoje como integração sul-
americana. Existe, para ele, um acumulado histórico bilateral em torno desse tema: projetos
anteriores, políticas em comum e aproximação diplomática. As dificuldades econômicas
sofridas pela América Latina no pós Segunda Guerra levaram à existência de iniciativas como
a OPA e, em especial o congresso de Uruguaiana, que colocou de maneira inédita integração
regional como diretriz. A ideia era combater a dependência econômica e tecnológica da região
para com os países desenvolvidos. Na década de 1970, com a mudança do discurso
diplomático brasileiro60, as iniciativas de boas relações com a Argentina tiveram frutos e
permitiu a crescente aproximação entre os dois países e a consolidação de uma confiança
60
Vidigal (2011) entende que essa mudança se iniciou no Governo Geisel.
47
61
Venezuela só entra para o Mercosul em 2006 e a Bolívia em 2012. Mas esses Estados são associados ao
Mercosul desde 2004 e 1996 respectivamente.
62
Tais documentos não geram, porém obrigações jurídicas para fins de Direito internacional Eles são o que o
próprio nome propõe: comunicados, declarações e consensos. Apenas os tratados ou acordos geram obrigações
63
Outros temas podem ser discutidos e chegam ao público em forma de anexos e notas. Ao fim do trabalho, na
discriminação de todas as fontes utilizadas para o presente texto, consta uma lista com os Anexos de cada
reunião presidencial dos referidos encontros. Os documentos anexos e as notas serão tratados ao longo do
presente trabalho de acordo com sua pertinência para o tema discutido.
64
“Esta Iniciativa se constituiu como um mecanismo institucional de coordenação de ações intergovernamentais
dos doze países sul-americanos com o objetivo de construir una agenda comum para impulsar projetos de
integração de infraestrutura nas áreas de transportes, de energia e de comunicação.
A Iniciativa IIRSA é criada com o objetivo de promover o desenvolvimento da infraestrutura regional em um
contexto de competitividade y sustentabilidade crescentes. Dessa forma se pretende gerar as condições
necessárias para alcançar, na região, um padrão de desenvolvimento estável, eficiente e equitativo, identificando
os requisitos de tipo físico, normativos e institucionais necessários e procurando mecanismos de implementação
que fomentem a integração física a nível continental.
A coordenação técnica da IIRSA foi delegada a três bancos multilaterais de desenvolvimento: o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Corporação Andina de Fomento (CAF) e o Fundo Financeiro para
o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA). Estes bancos produziram, conjuntamente, um Plano de
Ação com um horizonte de trabalho de dez anos” (IIRSA, tradução própria).
49
Iniciativa de Infraestrura Regional Sul-Americana (IIRSA). Esse tema não será o principal
abordado no trabalho, mas estará presente sempre que for pertinente.
O Comunicado de Brasília, documento principal para este estudo, oriundo dessa
reunião, discute uma multiplicidade de assuntos: democracia, comércio, infraestrutura de
integração, drogas ilícitas e tecnologia (conhecimento e informação). Porém, pesar de trazer
essa gama de assuntos em forma de tópicos, a fonte parece estar centrada em discutir a
situação da América do Sul dentro do processo de novas conformações internacionais
presentes no início do século XXI. Vê-se o interesse de discutir uma situação comum aos
países participantes, motivação que não é inovadora como vimos na história da política
externa da região.
Na virada do século o tom do sistema internacional era a inserção na realidade
globalizada e neoliberal e a busca de projetos para desenvolvimento que permitiriam a entrada
dos países dentro do mercado mundial, assunto que já vinha da década passada. Ciente dessa
conjuntura, o grupo não estava desatento para a falta de equilíbrio e de simetria entre os países
sul-americanos e outros participantes mais fortes economicamente, como EUA, Japão, e a
nascente União Europeia.
Partindo desse parágrafo vemos que os presidentes estão seguros na sua posição
de apoio à globalização e ao comércio. Isso pode parecer banal, mas indica consciência do
posicionamento internacional que a região assume em uma realidade comum que, em menos
de dez anos, presenciou a queda do muro de Berlim, passou por um processo de
redemocratização e tem proximidade espacial com a Cuba socialista e ditatorial. Definir sua
posição é um ponto que demonstra como o grupo pretende se inserir no sistema internacional.
Essa adesão ao mundo globalizado, porém, não se dá sem a noção de que esse
modelo econômico apresenta suas falhas. Os países sul-americanos estão cientes do desafio de
distribuir os benefícios e conscientes de que a realidade internacional não opera sintonia. Dois
parágrafos são muito emblemáticos sobre essa questão:
50
65
A Rodada do Uruguai foi uma das rodadas de negociações de regulação do livre comércio no modelo do
GATT (General Agreement on Tariffs and Trades – Acordo Geral de Tarifas e Comércio) mais longas da
história. Ela tem sua agenda de discussão preparada em 1982 e termina em 1994. Entre os assuntos estavam a
regulamentação de tarifas alfandegárias, incluindo a taxação de produtos agrícolas e a reforma do sistema do
GATT que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). O GATT era a regulamentação do
livre comércio no Pós-Segunda Guerra Mundial, oriundo de uma seção da Carta de Havana de 1948 (PEREIRA,
2005).
66
A maneira mais usual de se calcular o PIB é por meio da lógica da demanda: a soma do Consumo das
Famílias, dos Investimentos Privados, dos Gastos Governamentais, e da diferença entre exportação e importação.
Essa forma consiste na soma das despesas de um país: a quantidade que o núcleo familiar, o setor privado e o
Governo gastam (MANKIW, 2010).
51
69
Macroambiente é a expressão usada por Thales Castro (2012, p.68) para definir o “canal base por onde os atos
e fatos são apresentados e assimilados pelo sujeito cognoscente por meio de um processo anterior de simetria,
direcionalidade e pertinência (pre-ordem)”, ou seja, é o conceito utilizado pelo autor para explicar o ambiente
internacional sem juízo de valor.
53
Uma característica que me chamou a atenção foi que, ao pedir ajuda, os países de
certa forma se excluem enquanto possíveis criadores de mecanismos próprios para lidar com o
problema do desequilíbrio. O trecho acima expõe o dever, de acordo com o grupo de países
sul-americanos, da “comunidade financeira internacional” de gerar um ambiente de
estabilidade propício ao desenvolvimento e de ajudar os países em dificuldades, tendo em
contrapartida, claro, a adequação dos mesmos ao sistema comercial liberal. Isso sendo o uso
da teoria assistencialista para o desenvolvimento.
Vale lembrar que a necessidade de investimento financeiro como fator importante
para o desenvolvimento de um país não é nova. Essa política assistencialista está presente na
base de criação da ONU, como fica claro pelo já mencionado ECOSOC, e se desenvolve com
mais peso na década de 1950 e 1960, sem deixar de ter peso dentro do panorama internacional
(como vimos no caso da AOD). Grande influenciadora desse discurso assistencialista foi a
teoria do crescimento econômico de Robert Solow, que, segundo Joaquim Cadete (2015), em
1956, coloca como papel do investimento e da ajuda internacional potencializar as “condições
intrínsecas ao crescimento econômico nas sociedades menos desenvolvidas” no caso dessas
não terem poupança doméstica ou capacidade de atrair investimento estrangeiro (SOLOW,
1956 apud CADETE, 2015, p. 26). Essa teoria ganha adeptos em um contexto de Guerra Fria
como um projeto anti-comunista de desenvolvimento, que ganha grande repercursão dentro da
implementação e do sucesso do Plano Marshall para a Europa e da teoria dos estágios do
crescimento de Rostow (1960 apud CADETE, 2015), na qual o subdesenvolvimento é um
estágio para o desenvolvimento. Essa forma de desenvolver um Estado se torna a principal no
ocidente graças ao posicionamento capitalista dos EUA, mas não foi a única aceita ou válida
durante o período. Vale relembrar que paralelamente a essa teoria de Solow, pregando a
importância da assistência para o desenvolvimento, temos os EUA em uma política de
distanciamento financeiro com relação à América Latina. A CEPAL também diverge
enquanto teoria de desenvolvimento, pregando certo protecionismo de mercado para o
desenvolvimento de uma indústria nacional competitiva e investimentos estatais para o
71
Nesse momento é feito referência à crise da Argentina de 2001, quando o governo desse país declarou
moratória diante da incapacidade de manter a paridade dólar-peso prometida para o pagamento de suas dívidas.
55
72
A questão dos impactos da exploração econômica sobre o meio ambiente que teve como marco a Conferência
de Estocolmo para o Meio Ambiente Humano de 1972 começa a modificar o pensamento entre desenvolvimento
e sustentabilidade da flora e da fauna mundial. Porém, apenas em 1983, a partir do relatório “Nosso Futuro
Comum”, seria difundida a ideia de “desenvolvimento sustentável” que iria se tornar argumento de articulação
dos países em desenvolvimento para combater a teoria de desenvolvimento zero, ou seja, preservação ambiental
acima da industrialização para evitar poluição e desgaste maior dos recursos naturais do planeta. Dessa forma
temos a lenta incorporação do termo “sustentável” ao termo “desenvolvimento”, reforçada também pela noção
de assistencialismo já que o aperfeiçoamento tecnológico permite menos poluição, então ajudar a desenvolver
um país é poluir menos. A questão de direitos humanos também influencia a noção de desenvolvimento. A
incorporação oficial de direitos econômicos, sociais e culturais juntamente com direitos civis e políticos ao rol de
direitos humanos, a partir de 1993 pela ONU põe fim a uma discussão existente no sistema internacional sobre
como definir ao que o indivíduo deve ter acesso para se confirmar o cumprimento dos direitos humanos. Ao
adicionar direitos sociais, como acesso à educação, a um ideário tão importante para os países ocidentais após a
segunda Guerra Mundial a ONU abre espaço para se pensar a que setores da sociedade esse desenvolvimento
deve ser dirigido e quais devem ser seus objetivos. Desenvolver-se então tem um caráter mais humano, assim
como o assistencialismo que propicia tal desenvolvimento.
56
América Latina. Ao aderir ao Plano Brady, o país deveria então abrir o mercado, realizar
privatizações, aderir ao livre fluxo de capitais e praticar uma política fiscal e monetária mais
disciplinada, envolvendo diminuição de gastos do governo. As medidas variavam de acordo
com o caso específico do país, porém seguiam esses preceitos base, que ficaram conhecido
como o Consenso de Washington, já que os EUA de fato acordou com instituições financeiras
internacionais e com economistas conceituados defendendo que o desenvolvimento passaria
por uma redução do papel do Estado na economia (KESSLER, 2001).
O México adere ao Plano Brady no início dos anos 90, praticando todo o pacote
de medidas. As privatizações foram efetivadas, inclusive a do seu sistema bancário e da
TELMEX (monopólio da telefonia no país); a abertura comercial foi efetuada de maneira bem
sucedida, transformando em o déficit em superávit; e a liberalização do fluxo de capitais e a
manutenção do câmbio fixo e valorizado com uma pequena margem de desvio – conhecida
como crawling peg – ajudou a controlar a inflação (ibid.). Essas medidas, porém, fizeram a
economia mexicana dependente cada vez mais da sua balança comercial para a manutenção
do superávit e aquela por sua vez dependente da manutenção da crawling peg que acabava
incentivando importações e saída de dólares, levando ao endividamento crescente do governo
para manter a taxa de cambio.73 Para compensar a saída de dólares e manter a taxa fixa, o
governo mexicano precisaria comprar mais dólares: a administração Salinas (1989-1994)
esvaziou as reservas internacionais do México de U$$ 30 bilhões para U$$ 6 bilhões no final
de 1994 (ibid.). A situação se tornou insustentável quando o FED aumentou sua taxa de juros,
tornando os títulos estadounidenses mais rentáveis que os mexicanos, e quando uma série de
assassinatos políticos ocorreu no mesmo ano que o Levante de Chiapas, aumentando a
percepção de instabilidade do México. Além disso, a incerteza política da continuidade das
medidas econômicas com a mudança de governo levou os investidores internacionais a
preferir os EUA como aporte do seu capital e investir menos no país latino-americano. A
constante fuga de capitais levou o governo seguinte de Ponce de León (1994-2000) a ampliar
a crawling peg para um desvio de 15,3%, o que só concretizou os receios dos investidores
internacionais e consolidou a crise: o sistema financeiro entrou em colapso, o desemprego e a
73
Para entender porque um país gasta para manter seu cambio fixo é necessário pensar na cotação cambial como
representação de um mercado das diferentes moedas nacionais, ou seja, um espaço de troca de uma moeda por
outra regulamentada pela lei da oferta e da procura, de modo que quanto mais se procura por uma moeda, mais
seu valor aumenta. Esse mercado normalmente é medido a partir da taxa de juros da venda de títulos dos países,
a taxa Selic no caso do Brasil. Então, na prática o governo que quer manter sua taxa de cambio fixa paga pela
diferença de preço entre o valor de cotação que ele está impondo e o valor atual do mercado internacional. Assim
se no mercado internacional 1 dólar vale 2 moedas x, mas o governo deseja igualar na proporção 1x1 ele deve
comprar dólares dos EUA a 2x e vender dentro do país a 1x, arcando com a diferença. Manter a taxa de cambio
fixa ajuda a atrair investimentos porque diminui o grau de incerteza relativo à flutuação do financeiro que
diariamente muda os valores monetários.
57
74
O cambio flutuante é uma aplicação de livre mercado ao sistema cambial internacional, ou seja, temos a lei da
oferta e da procura imperando na cotação de uma moeda em relação a outra. O sistema de cambio flutuante
permite também a comparação do real com qualquer moeda.
75
A mentalidade de reajuste era um comportamento do setor de oferta que modificava seus preços (normalmente
para cima) de acordo com qualquer aumento na demanda agregada (mais procura). Essa mentalidade refletia a
época de grande instabilidade econômica gerada pela alta inflação que aumentava com o maior do consumo,
impulsionado pela mentalidade de estoque (consumidores compravam mais que o necessário com medo de faltar
produto ou com receio de grande aumento), e pouca oferta (ocasionada pelo desabastecimento). Mesmo quando
houve a abertura de mercado no governo Collor, que melhorou o problema do desabastecimento, as medidas
tomadas não conseguiram conter o aumento da demanda agregada (sequestrar a poupança individual na verdade
estimula o consumo: se não é possível guardar, a opção é gastar) e a inflação continuou a subir impulsionando as
mentalidades de estoque e de reajuste. Um dos grandes motivos do plano real ter dado certo foi que a moeda
indexada (Unidade Real de Valor com o preço fluido de acordo com o dólar) junto com a economia aberta
funcionou como um estabilizador dos preços: o aumento da competitividade ocasionada pela entrada de novas
marcas e produtos no país funcionava como um controle de preços para os setores de venda (não adiantava um
produtor aumentar seu preço se o concorrente vende mais barato – o mesmo era válido para distribuidores) e a
atualização diária do URV por alguns meses mostrava a estabilização desses preços: a cada dia a era mais
constante o valor e a indexação quase constante (isso foi importante porque ia gerando crença na estabilização da
economia, diminuindo a mentalidade de estoque e controlando a mentalidade de reajuste). Para controlar o
consumo, houve a diminuição de crédito e a diminuição da emissão de moeda. Quando o real é lançado, a taxa
de cambio por flutuação em bandas mantém o real valorizado justamente para impedir o retorno a esses
comportamentos, o receio era que uma desvalorização cambial significasse um aumento de preço que reativasse
a mentalidade de estoque e o ciclo inflacionário.
59
segundo Governo FHC seria então, ambíguo: “de um lado o crescimento permaneceu baixo e
o país continuou amargando taxas de juros reais elevadas; de outro houve melhora sistemática
da balança comercial e do resultado em conta-corrente” (ibid., p. 181), além disso, o difícil
ajuste fiscal das metas de superávit primário, a política cambial da taxa de cambio flutuante, e
a política monetária das metas de inflação foram implantados com sucesso. De outro, o Brasil
termina 2002 com a relação dívida PIB a 60%, ou seja, as dívidas públicas internacionais
contam 60% do PIB brasileiro para aquele ano (ibid.).
Na Argentina a adesão do país ao Consenso de Washington se deu no governo de
Carlos Menem (1989-1999) e se vinculou a um alinhamento político aos EUA: a gestão
Guido di Tella (1991-1999) como chanceler argentino foi conhecida como a busca de
relaciones carnales (relações carnais) com os Estados Unidos. Essa aproximação ocorre em
concordância com a teoria de Realismo periférico: a ausência de excedente de poder dos
países periféricos faria com que esses para obter vantagens no sistema internacional se
alinhassem a uma potência para a defesa de seus interesses.
Em 1991, a Argentina adere ao Consenso de Washington por meio do Plano de
Conversibilidade, que ficou conhecido como Plano Caballo, o qual regulava as privatizações,
a liberalização do mercado e dos fluxos de capitais, a disciplina fiscal e a manutenção da taxa
de cambio valorizada por meio da conversibilidade total. A Argentina, a partir daquele
momento, se responsabilizava constitucionalmente por manter a paridade entre o peso e o
dólar, ou seja, o cambio fixo de 1x1 entre peso e dólar, além de permitir o uso do dólar como
moeda corrente nacional e a abertura de contas em dólares nos bancos Argentinos.
De acordo com Andrés Haines (1998), a adoção dessas medidas deve ser colocada
em dois contextos: o de grande crise de hiperinflação que o país vivenciava ao final dos anos
80 e início dos 90, quando a inflação acumulou mais de 1.300% nos preços ao consumidor, e
o de falta de credibilidade do governo Menem diante dos empresários tanto internacionais
como nacionais. Tal fato levou o presidente argentino a passar o controle do ministério da
fazenda para um alto executivo da multinacional Bunge & Boom, que priorizou o caráter de
longo prazo das reformas, não conseguindo, durante os seis meses em que liderou esse
ministério resolver o problema da hiperinflação.
A adoção do Plano Caballo consegue junto ao FMI recuperar certa credibilidade,
especialmente por meio da não atuação do Estado na economia e da inclusão do plano
econômico em lei. Esse plano e suas medidas devem então ser colocados em perspectiva de
um processo de reformas que precisava ganhar credibilidade perante a população e resolver
60
problemas do curto prazo, para então trabalhar o longo prazo com a mentalidade e apoio do
povo para a aplicação de mudanças econômicas. Nesse quesito ele foi bem sucedido:
No caso da Argentina, porém, além das crises russa e asiática, de 1998 e 1997
respectivamente; em 1999, a desvalorização cambial do Brasil contribui para a diminuição das
reservas internacionais do país de língua espanhola. Em função do comércio bilateral entre os
dois países ter crescido por causa do MERCOSUL, a desvalorização do real causa um
aumento de importação dos produtos brasileiros que pesa no equilíbrio da balança de
pagamento por meio da compra de dólares. A confiança na capacidade do governo de manter
a situação foi deteriorando nos anos 2000 e 2001, nesse ultimo ano “a recessão prolongada
gerou inadimplência dos devedores privados e queda na qualidade dos ativos bancários,
abalada também pelas já referidas dificuldades de pagamento do setor público” (BATISTA
JR, 2002, p. 90). A crise teve seu estopim em 2001 depois que uma corrida de saques
bancários em novembro levou o presidente Fernando de La Rua (1999-2001) a decretar
bloqueio dos depósitos públicos, moratória da dívida externa e esgotamento das reservas
internacionais do país em dezembro do mesmo ano (BATISTA JR, 2002). A crise econômica
gerou uma crise política refletida na inconstante ocupação do cargo de Presidente que passou
por Adolfo Rodríguez Sá, Eduardo Camaño e Eduardo Duhalde entre 2001 e 2003,
estabilizando-se apenas com a eleição de Nestor Kirchner (2003 - 2007).
Paraguai e Uruguai também sofreram dificuldades econômicas na segunda metade
da década de 1990, para demonstrar que os efeitos da crise não se restringiram às duas
economias mais diversificadas do cone sul:
Os efeitos das duas décadas anteriores ainda estavam presentes na economia sul-
americana durante essa primeira fase de encontros (2000-2004), de fato, os governos tinham
62
poucos capitais para investir e estavam, em sua maioria, lidando com o ajuste a uma nova
realidade econômica. A crise da Argentina, deflagrada em meio ao período inicial de
reuniões, ainda piorava a situação em função da crise política e incerteza em um país
importantíssimo para a dinâmica política e econômica da região.
Essa espera por um assistencialismo não significa ausência de propostas em outras
áreas que influenciam no desenvolvimento da região, demonstrando um interesse para além
da integração física. Tecnologia e energia são os temas mais recorrentes em termos de
medidas ativas: no Comunicado de Brasília (2000), há o reconhecimento de que o
conhecimento científico e tecnológico é “base de produção da riqueza nacional em todos os
planos”, e da necessidade de um esforço conjunto para superar os obstáculos tecnológicos.
Por último, há a proposta brasileira da criação de um Fundo Sul-americano de estimulo às
atividades de cooperação científica e tecnológica da região, que será o PROSUL, citado na II
Reunião dos Presidentes Sul-americanos. A energia só é discutida mais amplamente no
Consenso de Guayaquil (2002), ganhando o montante de nove parágrafos e uma sugestão
sobre possibilidade de uma Carta Energética Sul-americana.
Vale ressaltar que de 2000 para 2002 houve um pequeno pulo léxico com relação
ao desenvolvimento. Se no Comunicado de Brasília há o reconhecimento da sua importância
para a estabilidade governamental dos países sul-americanos76, no Consenso de Guayaquil
(2002, p. 03, parágrafo 2“c”) há o “direito universal e inalienável ao desenvolvimento”. Pode
parecer um detalhe, mas classificar o desenvolvimento como um “direito”, não algo que
acontece naturalmente dadas condições internas e externas, mas algo que se respalda pela lei,
algo que é inerente ao Estado; é dar uma carga de significado mais seguro e mais ativo ao
desenvolvimento, definindo, também um campo de luta específico: o desenvolvimento é
agora assunto legal, ou seja, pertinente a uma legislação. Com o advento da CASA, a
integração regional vai ganhando um molde mais consistente e o discurso proativo ganha mais
espaço.
76
Não é a toa que há o documento traz o tom de “fizemos nossa parte, agora é com vocês” com relação à
abertura neoliberal das economias sul-americanas na década de 1990, como vimos nos parágrafos 14 e 15 acima.
63
A História compartida e solidária das nossas nações, que, desde as façanhas das
independências; têm enfrentado desafios internos e externos comuns, demonstra que
nossos países possuem potencialidades ainda não aproveitadas tanto para utilizar
melhor suas aptidões regionais, como para fortalecer as capacidades de negociação
e projeção internacional.
[...]
A convergência de seus interesses políticos, econômicos, sociais, culturais e de
segurança como um fator potencial de fortalecimento e desenvolvimento de suas
capacidades internas para sua melhor inserção internacional (DECLARACIÓN de
Cusco, 2004, p. 01, parágrafos primeiro e terceiro, tradução própria e destaque
próprio).
77
Considero o ano de 2005 como ano inicial da CASA porque, apesar de surgir em 2004, nesse ano os
Presidentes não se reúnem como Presidentes da CASA e sim como Cúpula de Presidentes Sul-americanos, ou
Reunião de Presidentes sul-americanos, termo que utilizo neste trabalho.
78
Elói Martins Senhoras (2010), geralmente se refere aos processos de integração entre nações como “regionais
transnacionais” para diferenciar de processos regionais internos e deixar mais específico que a que tipo de
regionalização está se referindo.
64
Se o MERCOSUL foi uma forma diferente dos países do Cone Sul se relacionarem
e a Reunião de Presidentes deu uma definição espacial mais coesa ao projeto de integração
sul-americano, a CASA tem a importância de ser o começo da difícil tarefa de juntar países
com legislação, situação político-economica, realidades sociais, línguas e cultura distintas sob
o mesmo aspecto político e institucional. Outro fator que demonstra essa intencionalidade de
mais autonomia e inserção internacional é que a partir da CASA o grupo de presidentes
começa a relacionar-se com outros grupos trans-regionais: em 2005, na I Reunião de
Presidentes da Comunidade Sul-americana de Nações, órgão de decisões da instituição, são
publicados duas declarações sobre as relações de cúpula (de presidentes) entre a CASA e duas
outras organizações, a União Africana e os Países Árabes 79. Tais declarações não foram feitas
enquanto o grupo se reunia sob o nome de Reunião Presidencial, o que reafirma a posição da
recém criada comunidade como um organismo mais autônomo para representar a região sul-
americana. Isso quer dizer que, enquanto uma Organização Internacional, a CASA, por meio
das reuniões de Chefes de Estado irá se pronunciar como uma frente única sobre os assuntos
pertinentes, fato que permite um relacionamento direto entre essa comunidade e outras
organizações ou países, valorizando o âmbito multilateral de relações internacionais. Também
integram a construção de um grupo mais coeso o linguajar com tom autônomo, a recorrência a
um passado comum e o esboço de instituições próprias para a CASA.
Tanto em 2000 como em 2002, a identidade sul-americana se fortalece diante de
outros processos de regionalização, na resistência à ALCA, por exemplo, e o passado comum
aparece para mostrar as vantagens que a integração possibilita para a inserção na economia
globalizada. Seu papel aqui é completamente secundário. No Consenso de Guayaquil (2002,
p. 03, parágrafo 5, tradução própria e grifo próprio):
ambientes de integração que precisam ter uma história em comum, pois agora o grupo age em
um patamar mais unitário. Há no mínimo a pretensão de se formar, ou tomar como já
formada, uma identidade sul-americana, composta de valores comuns intrínsecos com a
finalidade de solidificar e respaldar a Comunidade de Nações Sul-Americanas recém-
constituída. Como disse antes, pensar em uma Comunidade pressupõe uma identificação com
o outro em um nível mais essencial.
Já no preambulo80 da Declaración de Cusco (2004, p. 01), que funda Comunidade
Sul-americana de Nações, a questão do passado e da integração são bem claras: partindo do
exemplo dos libertadores, heróis da independência, e “interpretando as aspirações e anseios
dos seus povos a favor da integração, da unidade e da construção de um futuro comum” é que
os Presidentes decidem fundar a CASA. O linguajar, a data, os heróis de independência e
idealizadores de uma América Latina integrada 81 são colocados em conjunto com as
aspirações e os anseios dos povos para que a Comunidade se conforme.
Nota-se que esse parágrafo é construído como se mantivesse uma continuidade
entre o passado e o presente, como se os anseios daqueles defensores da integração, fossem os
mesmo dos povos (tanto à época dos heróis, quanto agora) e tivessem resultando na
integração regional nascedoura. A sensação que se tem é de uma busca de legitimidade no
passado para proporcionar maior respaldo no presente, excluindo-se da equação o meio que
liga esse passado específico ao agora.
O passado não é contínuo, a obviedade disso é que se assim o fosse não haveriam
se passado mais de 200 anos entre as independências e a constituição da CASA. Se, como nos
diz Joaquim Cadete, a Operação Pan-americana (OPA) de 1958 marca para a noção brasileira
de desenvolvimento nacional “uma ruptura com o passado, dado que assume que o
desenvolvimento regional será impossível sem um elevado nível de cooperação regional, ao
invés de um Brasil independente e autônomo” (CADETE, 2015, p. 28) demorou ainda 46
anos entre a proposta da OPA fracassar e os países sul-americanos conformarem de fato uma
organização internacional que, apesar das suas falhas, teve continuidade.
Dessa forma, entendo que retomar um passado comum e uma história
compartilhada fundamenta a integração, dá mais coesão ao grupo e, por isso, mais autonomia.
É o uso do passado para dar força de união ao grupo, criando laços de similitude que
fortalecem a instituição internamente e externamente, já que quanto mais coeso é um grupo,
80
Preambulo é a parte de introdução de um documento normativo, ou seja, um relatório ou introdução a
determinada legislação ou norma.
81
Particularmente Simon Bolívar foi quem lutou pela integração da América latina, De fato, Venezuela,
Colômbia e Equador já constituíam a República da Grande Colômbia, sob a presidência de
Bolívar.
66
mas decisivamente ele consegue atuar internacionalmente. Retomar um passado mais distante
no qual ideais de integração eram discutidos também faz a integração atual parecer um
movimento mais longo e por isso mais confiável.
Depois desse retorno à época da independência, seria esperada alguma definição
de como a CASA operaria, já que finalmente o sonho integrador de Bolívar se via em vias de
concretude, mas em três parágrafos a organização da Comunidade Sul-Americana de Nações
é resumida:
Pode até dar a impressão de que essa é uma condição inicial já que esse
documento apenas cria a CASA e não é de fato sua institucionalização, porém na Declaración
Presidencial y Agenda Prioritaria (2005, p. 02, parágrafo 7, tradução própria), apesar de
algumas implementações como a Reunião de Ministros das Relações Exteriores e a Reunião
de Ministros Setoriais, a CASA aparece sempre com o direcionamento para a utilização dos
espaços das organizações internacionais de integração regional já existentes, no lugar de fixar
um espaço próprio:
da justiça social, e as telecomunicações (ibid., p. 02, parágrafo 9). Parece uma sobrecarga de
funções tanto para o aparato diplomático quanto governamental dos setores ministeriais
específicos que teriam que lidar com a Agenda Prioritária e com as suas funções anteriores
dos outros grupos de integração (MERCOSUL e CAN):
85
Ao falarmos da ALADI é importante perceber que essa ausência de prazos e liberdade na interação entre os
Estados membros vem do caráter dificultoso de juntar uma região social e economicamente diversa –
demonstrado no fracasso da ALAC. Ela cumpre o papel de abrir caminhos para integrações mais específicas na
esperança que a multiplicidade dos processos um dia abarque todo o território que compõe a ALADI e, assim,
aos poucos a região possa se integrar.
86
Documento final da Comissão Estratégica de Reflexão – Um Novo Modelo de Integração da América do Sul
Em Direção à União Sul-Americana de Nações.
70
O último boom nos preços dos produtos energéticos e industriais brutos, incluindo
materiais brutos da agricultura e da metalurgia, foi particularmente notável; o preço
de comidas e bebidas também aumentou, mas de maneira menos dramática. De
acordo com padrões históricos, o ultimo boom do preço das comodities teve uma
base larga de bens e foi sustável por um período de tempo considerável, com o preço
de muitas comodities – petróleo, metais, a maioria das colheitas de comidas e
algumas bebidas – subindo rapidamente (SPATAFORA; TYTEL, 2009,p. 03)91 .
Porém o aumento do preço das commodities não reflete diretamente uma melhora
na balança comercial, a relação entre importação e exportação (therms of trade – termos de
troca) desses mesmos bens deve ser levada em conta, pois se um país exportar determinado
commoditie e importar um que ficou mais caro, seu saldo final poderá ser negativo, como foi
o caso de El-Salvador nos anos de 2002 a 2007 (JENKINS, 2011).
Além disso, Spatafora e Tytel (2009) trazem uma perspectiva interessante de que
a participação desses termos de trocas no PIB de um país ajuda a estimar o quanto esse o
aumento das commodities de fato impacta a economia de um Estado que tem esses termos de
troca positivos, ou seja, exporta em valor monetário maior do que importa commodities.
Dessa forma temos no gráfico a seguir uma comparação da influencia cambiante
da relação entre termos de troca de commodities e o PIB. Note que para o caso da América
Latina, desde a década de 1970 constitui uma queda da importância das commodities no PIB
90
Devemos perceber que, para se concretizar, uma Organização Internacional depende de investimentos diretos e
constantes, envolve gastos com espaço físico, funcionários e manutenção de projetos. Tudo isso necessário para
a continuidade da instituição, portanto são despesas constantes.
91
The latest boom in the price of energy and industrial inputs, including agricultural raw materials and metals,
was particularly notable; the prices of food and beverages also increased, but less dramatically. By historical
standards, the latest commodity-price boom was broad-based and sustained, with the prices of many
commodities—oil, metals, major food crops, and some beverages— rising sharply
73
da região em especial entre a segunda metade da década de 90 até meados dos 2000, havendo
então um crescimento da parcela. No caso do Brasil esse movimento é representativo de uma
re-primarização da economia, ou seja, um crescente investimento em setores de produção de
matérias primas (commodities) paralela a uma perda de participação dos manufaturados na
pauta de exportação: de 55% em 1985, mantendo-se com poucas oscilações até 2002 e em
queda até chegar a 39% em 2010 (GIAMBIAGI, 2011).
Também devemos ter em mente que nem todas as commodities sofreram aumento
no período de 2002 a 2007. Das 15 principais vendidas pela América do Sul, os metais
(minério de ferro, zinco e cobre) foram os que tiveram maiores altas entre 2002 e 2007:
184.1%, 316.5% e 356.5%, respectivamente. O aumento do petróleo, do café (125.6%), do
grão e do óleo de soja (80.6% e 85.1%), dos pescados (83.6%) e da madeira (63.6%) também
foi notável (JENKINS, 2011). O aumento exponencial do preço, em especial dos minérios, se
relaciona tanto ao aumento da demanda pelo crescimento da China no período, quanto à
limitação das reservas naturais e à demora em ter retorno após aplicar investimentos no setor
de extração (ibid.). O paralelo pode ser melhor representado pelo seguinte gráfico que
relaciona o crescimento de países sul-americanos com a China:
75
Jenkins divide a América do Sul em quatro grupos: os que tiveram o ganho entre
20% e 50% (Peru, Chile e Bolívia) majoritariamente os exportadores de metais e os que
tiveram o ganho entre 7% e 20% (Venezuela, Mexico, Equador, Argentina e Brasil) os três
primeiros são grandes exportadores de petróleo e os dois últimos, as economias mais
diversificadas da região. O terceiro grupo ficou com ganhos menores que 10% (Colombia e
Paraguai) e o quarto e último grupo foram os que ficaram com impacto negativo (El Salvador,
Costa Rica, Nicarágua, Panamá e Uruguai) (JENKINS, 2011).
Os efeitos desses aumentos também devem levar em consideração que as
possibilidades de desenvolvimento para os países que lucram com esse boom das
commodities estão balizados por mais do que um simples aumento na balança comercial. O
crescimento nesse período também se deve a fatores específicos dos países que
experimentaram os benefícios econômicos do aumento do preço de seus produtos primários,
como a estabilidade política para direcionar os ganhos e investimentos, o nível de
desenvolvimento anterior ao boom e as possibilidades de aumento de produção vinculados a
infraestrutura de exploração de determinado recurso natural (SPATAFORA e TYTEL, 2009).
Dessa forma entende-se que o crescimento econômico presenciado no boom atual, por
exemplo, não foi impulsionado apenas por fatores globais, também foi influenciado pela
76
demanda interna dos países beneficiados, com Consumo e Gastos do governo mostrando
sinais de aumento; além, claro do aumento de Investimentos estrangeiros (ibid.). Esses fatores
influenciam, pois compõem variáveis do cálculo do PIB (Consumo familiar + Investimentos +
Gastos do Governo + (exportações – importações)). Dessa forma as políticas de aumento de
gastos dos governos e de impulso da demanda agregada – praticada em quase toda a América
do Sul– também refletem no crescimento medido pelo Produto Interno Bruto.
O período de grande crescimento mundial e liquidez do sistema financeiro
internacional que precedeu a crise de 2008 dos EUA também contribuiu para o crescimento
vivenciado na década de 2000 pela América do Sul, pois maior se liquidez significa mais
dinheiro disponível no sistema financeiro para investimentos. Com os gráficos a seguir
conseguimos ver a relação entre a receita fiscal com os comodities e o gasto dos governos,
note-se que, mesmo com a receita decrescente desde 2013, os gastos dos governos sul-
americanos não estabilizaram nem diminuíram. Outro fator interessante é notar o aumento de
no gasto governamental no período da crise de 2008/2009 novamente contrariando a receita.
intimista que o puramente comercial, voltado para a criação de uma identidade que define o
grupo de países enquanto um conjunto, (re)significando o espaço geográfico e (re)criando a
própria noção de regionalismo, que não mais pode ser definida por “aberto” na contemplação
de Riggiozi (2012). De fato, temos essa ruptura quando pensamos no processo de formação da
UNASUL, porém, não me parece que todos os elementos do regionalismo aberto não estão
mais presentes, a baixa institucionalização e o caráter intragovernamental continuam
presentes nas relações da América do Sul. Parece-me que a multiplicidade de projetos de
regionalismo mesmo dentro de um processo de integração é a melhor alternativa para
entendermos a UNASUL e a melhor opção para a sua continuidade.
Isso posto, dentro do contexto de maior autonomia econômica e de um discurso
político mais próximo e mais reconhecedor do seu entorno territorial, o espaço de concertação
política da América do Sul (UNASUL) se concretiza, porém em torno de que conceitos o
grupo se constrói? Quais os valores mais proclamados? Se o contexto econômico é importante
para gerar possibilidades de uma maior autonomia do projeto de integração, o de
convergência política também tem um forte peso na formação de um grupo. Esse caráter é
ainda mais definidor de como o grupo se identifica entre si e como ele se projeta para os
outros.
94
Por normas de Direito Internacional deve-se entender leis que regulam as relações dos Estados em âmbito
internacional, sendo tais normas advinda de tratados dos quais os países fazem parte ou do costume geral
internacional. Nesse caso os documentos que contam com obrigação jurídica são o Estatuto da Corte
Internacional de Justiça e a própria Carta da ONU que são documentos jurídicos. Os compromissos foram
firmados e estão sendo apenas reiterados nas Declarações e Comunicados, esses não tem poder jurídico.
80
E:
A década de 2000 faz parte de um contexto político maior que vinha surgindo na
região a partir do fim de da década 1990. Segundo a autora Maria Celina D`Araujo (2008, p.
324), esse momento se caracteriza por uma frustração de expectativas de melhores condições
de vida prometidas pelo retorno à democracia nas décadas de 1980-1990, tal
descontentamento estaria gerando uma grande novidade na América Latina: a quebra de
“monopólios tradicionais de representação política, em um contexto de escassez de recursos
econômicos”. Representativo disso seria:
questão democrática para a América Latina como um todo, optei por focar nesse aspecto 95.
Democracia e estado de direito não parecem, porém, ter o mesmo peso: inicialmente vemos
uma combinação desses dois elementos, nos primeiros anos (2000 a 2004) os dois termos
constam, porém a partir de 2005, não há menção ao “estado de direito” enquanto democracia
ou valores democráticos é uma constante até a confecção do Tratado Constitutivo da
UNASUL em 2008. Isso não significa que as práticas que caracterizam o conceito de “estado
de direito” não estejam presentes.
Aqui cabe discutir um pouco a noção desse conceito, ele foi materializado
concomitantemente com a confecção da constituição escrita: a Constituição dos Estados
Unidos da América é a primeira, criada em 1787 e ratificada no ano seguinte, e depois temos
a Constituição da França em 1791. Isso porque um Estado de Direito significa um Estado que
se submete às leis (constituição), ou seja, “os sujeitos incumbidos de exercer o poder político
deixarão de apenas impor normas aos outros, passando a dever obediência a certas normas
jurídicas, cuja finalidade é impor limites ao poder” (SUNFELD, 2009, p. 35). Dessa forma a
população não está exposta às flutuações de um indivíduo (Rei) que apenas a submete ao
poder das leis, sem que ele mesmo sofra qualquer restrição – Estado classificado como Estado
de Polícia (ibid.).
Dessa forma, o Estado de Direito, implementado com a Independência dos EUA e
a Revolução Francesa, também é o meio de despersonalização do Estado, já que agora os
cargos burocráticos se relacionam com a constituição, não com o monarca (SUNFELD, 2009;
HOBSBAWM, 2007; GRESPAN, 2003). Enquanto um Estado com poder limitado para
garantir certas liberdades ao indivíduo, o Estado de Direito não precisa necessariamente ser
democrático, ele controla o poder e com isso protege os direitos individuais, mas não garante
a participação política de todos. Não devemos nos esquecer de que tal Estado é associado ao
movimento liberal, que ao limitar o poder do rei garante a liberdade individual, sendo assim
fruto de uma desconfiança com relação ao poder público, buscando limitar e controlar a ação
dos seus governantes, como a divisão em Três Poderes. Assim o Estado deveria apenas
sancionar as infrações e prevenir suas repetições (REMOND, 1976).
O liberalismo, porém também é uma doutrina de conservação de poder, na qual a
sociedade burguesa impõe seus interesses, seus valores e suas crenças, uma sociedade na qual
95
Outros assuntos também são debatidos ao longo das três Reuniões presidenciais, temas como combate às
drogas, combate à pobreza, energia e tecnologia, como vimos, são constantes ao longo da documentação. São
assuntos que, dentro do desenvolvimento normativo, institucional e estrutural do grupo sul-americano vão tendo
seus locais de discussão mais definidos, aparecendo nos documentos como resultados alcançados ou planos para
serem executados. No entanto, o desenvolvimento desses temas específicos não é o enfoque do presente
trabalho, por isso eles não ganharão destaque na discussão.
85
o poder está reservado a uma elite que, por meio do sucesso pessoal – demonstrado pela posse
de dinheiro – se classificaria como apta a decidir os caminhos do Estado (REMOND, 1976) 96.
Para Carlos Ari Sunfeld (2009, p. 50), democracia e Estado de Direito vão, de forma gradual,
se complementando:
Renné Rémond (1976) entende que houve uma evolução gradual no papel do
Estado na sociedade, e que de fato, ele incorpora o ideal democrático, isso não se dá, porém,
sem conflito. A democracia é sim herdeira do liberalismo em função da apropriação de
instituições estabelecidas pela sociedade liberal, porém houve um processo conflituoso de
ampliação dessas instituições. Diferentes conceitos vão disputando em instancias variadas do
processo político e social do século XIX e início do XX, como o caso da concepção do
eleitorado, visto pelos democráticos como um direito natural, inerente à cidadania, mas que os
liberais encaravam como uma função, “uma espécie de serviço público, do qual a nação
decide investir nesta ou naquela categoria de cidadãos, introduzindo assim uma distinção
entre o país legal e o real.” (REMOND, 1976, p. 41). A sociedade também estava em
mudança, a Revolução Industrial, com sua revolução técnica e o desenvolvimento do setor
terciário, cria novas profissões, proporcionando o surgimento de novos segmentos sociais
intermediários entre a elite e o operário. Os representantes do antigo regime, ou seja, a
aristocracia, ainda estavam presentes, assim como a burguesia mais rica, tentando conservar
seu recente status de elite política. Eram sociedades diversas que coexistiam.
A década de 1830 presenciou uma série de revoluções na Europa oriundas de um
descontentamento urbano geral no Ocidente, como as guerras civis portuguesa e espanhola, o
aumento das barricadas em julho de 1830 em Paris e a defesa da Carta do Povo na Inglaterra
96
O critério censitário assim é uma libertação do imobilismo do Antigo Regime, no qual os bens não saíam das
famílias e a mobilidade social era dificilmente realizada. Porém tal critério também se demonstra opressor, já
que as pessoas não tem a mesma condição inicial para chegar a um objetivo comum. Assim, para quem não tem
dinheiro ou muita sorte, a possibilidade de mobilidade social pronunciada pela sociedade burguesa não acontece.
A mudança de um poder pessoal e assistencialista, que ligava os empregados aos seus empregadores de forma
mais íntima (o empregador quase sempre era responsável a alimentar e dar abrigo ao seu empregado) para um
poder impessoal, no qual o salário e a ideia de um homem que cresce socialmente por seus próprios méritos
desvincula responsabilidades entre essas duas partes, acaba gerando o aumento da miséria e limita a participação
popular na política mais do que antes (REMOND, 1976).
86
Assim, ora por uma necessidade inerente ao exercício efetivo da democracia, ora
pelo prolongamento natural de sua inspiração, a democracia modifica não apenas a
forma do regime, mas tende ainda para a harmonização das instituições políticas e
das instituições sociais (REMOND, 1976, p. 77).
É assim então que, por meio da influencia da democracia no Estado de Direito que
temos a produção de uma categoria diferenciada de direitos: os direitos políticos, ou seja, a
garantia imediata de participação no poder (SUNFELD, 2009). Ao definir essa prática
democrática, Carlos Ari Sunfeld (2009) a vincula ao segmento de uma norma pré-determinada
indispensável: regulamentação constitucional, ou seja, sem uma noção prévia de
97
O movimento de defesa da Carta do Povo, conhecido como Cartismo, merece aqui destaque como uma
revolução para mudança no sistema político por via constitucional. A troca entre operários e parlamento de
missivas que abrangiam desde questões eleitorais, como o voto universal, à questões trabalhistas, como a
regulamentação do trabalho infantil, alcança seu clímax na Carta do Povo entre 1839-1842. É considerado um
momento de amadurecimento político se comparado com os anteriores e, apesar da sua derrota e repressão,
mantém sua influencia até 1848 na Primavera dos Povos (HOBSBAWM, 2007).
87
Tal conceito é praticado hoje em questões como a do acesso dos cidadãos à justiça
e da perspectiva de aprimoramento do sistema judiciário, ou seja, também envolve a ideia de
que os órgãos de Estado estejam efetivamente ao alcance das demandas da população, no caso
88
da integração, prevê órgãos que estejam em contato com a sociedade civil. Em termos mais
democráticos, o acesso do cidadão ao voto em um processo eleitoral constitucionalmente
aprovado e seguido são cruciais para a definição desse Estado de Direito e da democracia,
além claro da noção de um chefe de Estado limitado por uma constituição.
Nesse sentido serão dirigidos grandes esforços para a garantia da pratica cidadã
indo além da garantia ao voto defendida pela obrigatoriedade da democracia. Tivemos na
cidade de Fortaleza em 2005 a Reunião dos Ministros de Justiça de Interior, Defesa e
Segurança Cidadã que discutiu o direito a segurança, a importância da atuação da sociedade
civil nesse âmbito e políticas comuns que poderiam ser tomadas pelos países da América do
Sul (tal encontro foi discutido na I Reunião de Cúpula da CASA). Em 2006 o MERCOSUL
também promoverá a Cúpula MERCOSUL Social, para tratar da interação entre prática
cidadã e a integração regional. Existe assim em esforço crescente no período estudado em
garantir esses direitos no âmbito da integração regional.
No preâmbulo do DECLARACIÓN de Seguridad Ciudadana en Sudamérica de
2005 (p. 01, tradução própria) temos que no âmbito da CASA os Estados membros
considerando: “QUE a participação cidadã é um elemento chave para avançar na consolidação
de valores e normas comunitárias, como o respeito e a solidariedade, que têm sido tradicionais
nas comunidades sul-americanmas”. E no corpo do documento o ponto três trata do:
Por mais que os “mecanismos inovadores” não sejam de fato criados no dado
momento, temos o reconhecimento da importância desse fator social para a integração. Fazer
a sociedade interagir com a proposta de integração dos governos é garantir solidez e
continuidade ao projeto, por essa questão também passa a apropriação de um passado e de
uma identidade comum, temas que entram em pauta a partir da criação da CASA98.
Esse fator de inclusão da sociedade civil aparece como garantia de uma sociedade
participativa dos projetos de Estado, além de ser representativo dos governos da região no
momento (2000 - 2008) quando existe uma valorização do papel social tanto do Estado
quanto da integração, vinculando-se com a noção de desenvolvimento social sustentável.
Então, inclusão da sociedade civil se conecta nos documentos ao Estado de Direito. Essa ideia
vai ao encontro da teoria funcionalista de integração regional, para a qual o “o parâmetro de
sucesso é sua capacidade de modificar a realidade anterior à constituição de um bloco
regional, produzindo novos comportamentos” (VIGEVANI, et al., 2008, p.12). Dessa forma:
98
A construção desses temas também se dá de forma muito própria do grupo de países, passando por fases até
uma consolidação no tratado constitutivo, porém por questão de escolha metodológica o presente trabalho não
aborda tal trajeto.
90
teoria neofuncionalista destaca no mesmo sentido o papel da elite nesse processo. Nesse caso
não seria a sociedade civil como um todo, mas apenas uma elite que deveria ver seus
interesses atendidos pela integração, efetivando assim o projeto e amortecendo ou abafando
outras camadas sociais cujos interesses ou vão de encontro à essa política, ou não são
atendidos por ela (ibid.).
Podemos concluir que, sempre presente, o tema da cidadania acaba se
entrelaçando com o do estado de direito e com o da democracia, porém a constância do termo
democracia é mais presente, e esse conceito tem uma relação bastante singular com a América
Latina.
dando às organizações comunitárias mais atuação política dentro de sua comunidade (como é
o caso dos Conselhos Comunais na Venezuela a partir de 2009) – só são entendidas como
totalitarismos ou ditaduras dentro do conceito fechado de democracia ocidental. A questão da
participação popular ainda gera outras apreciações:
Por fim ainda há o risco de que se proliferem análises que insistam na tese de
manipulação das massas, o que desqualifica a capacidade de compreensão da
participação política por parte dos cidadãos sul-americanos. Em última instância,
essa tese pode apontar para uma concepção elitista, em que o povo devera aprender
a votar de acordo com o entendimento das elites políticas, também muito presente na
cena sul-americana nos anos de 1950 e 1960 (ibid., p. 237).
também para criar a confiança que permitiu o início do processo de integração sul-americano,
identificado na aproximação entre Brasil e Argentina nos meados da década de 1980, além de
evitar conflitos bélicos na região, sendo assim, como já havia comentado, condição
indispensável para a estabilidade.
Para além da questão de desenvolvimento, as diretrizes definem o local político do
qual o grupo fala, locus que coloca o grupo dentro da norma ocidental e de certa forma
americana de política externa. Elas refletem o alinhamento político dos países e asseguram
sua participação conjunta e individual em fóruns internacionais específicos. A Carta da ONU,
por exemplo, prima pela manutenção da paz e da resolução de controvérsias por meio não
bélicos; caso um país desacorde com esse princípio, será expulso ou não aceito. Nesse
sentido, é importante ver que, em termos de política internacional a imagem de um país
deriva, em grande parte, dos compromissos que assume, do tipo de Governo que o representa
e de que trajetória de ação ele mantem.
Quando os Presidentes sul-americanos traçam em conjunto essas diretrizes, eles se
propõem a seguir determinada linha de atuação política internacional e nacional. Estabelecer
como pressupostos a Democracia e o respeito aos Direitos Humanos é trabalhar uma imagem
internacional específica. Dessa forma, dentro do contexto de inserção internacional não só da
América do Sul, mas também da América Latina, a democracia se torna uma moeda de troca
política e econômica, garantindo estabilidade e continuidade para ter acesso a negociações e
investimentos do sistema internacional (D`ARAUJO, 2008).
Podemos entender então que deriva dessa questão a grande preocupação com a
continuidade democrática dentro de períodos de crise política, havendo um real esforço para a
manutenção da legitimidade dos governos que os sucedem e para a não implantação de
regimes que possam ser considerados como de exceção (D`ARAUJO 2008; SPEKTOR,
2014). Tal paralelo pode ser feito não apenas para a ascensão da esquerda nos anos 2000
como também para a retomada as direitas liberais no momento em que esse trabalho está
sendo escrito, a crise na Venezuela e a o impedimento da ex-Presidente Dilma (2016) são
exemplos disso.
Assim, na década de 2000 temos:
Perceber essas diferentes palavras ligadas à ideia de democracia, nos passa uma
visão mais específica do que é a democracia para esse grupo de países, isso porque os
conceitos políticos podem ser compreendidos tanto pelos seus contraconceitos como pelos
seus conceitos associados, ou seja, palavras que ampliam o significado do conceito original,
mostrando as transformações políticas com as quais as palavras passam (KOSELEK apud
MIRANDA, 2013). No caso do trecho do documento de 2006, vemos claramente ditadura
como um contraconceito de democracia e de direitos humanos, uma realidade democrática
exclui a existência de um governo ditatorial.
Ao mesmo tempo vemos a associação de democracia com a coexistência da
diversidade social e com o reconhecimento dos direitos dessa, fato que consiste em um
direcionamento mais focado na sociedade e na sua participação na política para além do
simples voto. Mudança saliente se o trecho dor confrontadp com o Comunicado de Brasília
(2000, p. 04, parágrafo 21, tradução própria, grifo próprio):
Tal modus operandi não está restrito à comunidade sul-americana, essa concepção
vem se tornando “argumento aglutinador de opiniões na comunidade internacional, mesmo
99
Para Hartlyn a democracia seria composta de um pilar ou dimensão competitiva, marcada pela livre expressão
política dos partidos e na aceitação da legitimidade de oposições, outro pilar constitucional, definido pela
existência e respeito a uma constituição que “impõe limites à hegemonia das maiorias eleitorais e protege o
funcionamento das instituições democráticas” e por fim do pilar participativo, centrado na incorporação da
população adulta ao processo eleitoral (MIRANDA, 2013). Essas dimensões seguiriam essa ordem de
aprofundamento da democracia, de forma que a dimensão participativa dependeria do adensamento dos dois
pilares anteriores que criaria “uma densa rede de associações, organizações, e de oportunidades para a
participação voluntária” (HARTLYN, p. 60 apud MIRANDA, 2013, p. 257).
96
Então, os países sul-americanos não assumirão uma posição de impor por meio de
força uma democracia específica ou mesmo outras diretrizes. Na fase em que o grupo é
apenas uma Reunião de Presidentes os documentos intitulados consensos ou declarações tem
um peso bem menor que a assinatura de um tratado, pois não há obrigação jurídica de que se
siga as regras determinadas. Dessa forma os documentos das Reuniões de Presidentes (2000 -
2004) mostram entendimentos conjuntos sobre assuntos como democracia participativa,
direitos humanos e direito ao desenvolvimento que se tornarão temas de discussão dentro da
CASA (2005-2007) e finalmente diretrizes do Tratado Constitutivo da Unasul (2008), esse
sim vinculante.
Porém durante todo o processo o diálogo e o concerto político são os pontos
principais de concórdia e de relação entre os países, em especial porque esses são os objetivos
o projeto de integração vai adquirindo: a Unasul é uma integração política, com uma vertente
econômica, social, cultural e territorial, mas essencialmente um espaço de coordenação
política dos países da região. E as decisões buscadas por consenso, por meio do diálogo
político dentro do órgão:
Em seguida:
E, posteriormente:
especialmente porque os outros sujeitos de relações internacionais 100 estão vendo, analisando
e gerando opiniões.
A quantidade e a continuidade de redemocratizações na América do Sul nas
décadas 1980 e 1990 e as afirmações nesses documentos, pouco tempo depois, mostram a
importância de determinados posicionamentos para a prática política internacional: a
democracia é, sem dúvida, um consenso. Então, chegar a posicionamentos semelhantes com
relação a temas internacionais ou regionais de pertinência é o foco que essas reuniões vão
adquirindo, além da coordenação de iniciativas conjuntas como a IIRSA e proposta do Banco
do Sul.
Não é por impulso que o governo FHC convoca a I Reunião de Presidentes Sul-
Americanos (2000), é uma estratégia de desenvolvimento econômico conjunto, de integração
física e de concertação política que visa uma posição mais favorável internacionalmente para
o Brasil. As reuniões propiciam que pontos comuns sejam discutidos, metas comuns sejam
traçadas e ajuda, primeiramente extra-regional e posteriormente intra-regional, seja
conseguida. Esses encontros ao longo de oito anos foram se constituindo em um espaço de
autonomia política para os países, um local onde seus problemas podem ser discutidos sem
competir com outros assuntos extra-regionais.
Também, proporcionou um espaço institucional para afinar seus direcionamentos
políticos e promover uma cooperação mais harmoniosa e em sintonia que resultou em um
projeto de integração política. Tudo isso propicia mais autonomia política para a região,
mesmo que a UNASUL coexista com outros processos de integração tanto na América do Sul
como na América Latina.
5 CONCLUSÃO.
100
Vale aqui retomar a discussão de sujeito presente na introdução deste trabalho, no qual se entende sujeito de
relações internacionais como os Estados e seus planejadores da política externa e as Organizações
Internacionais; os acadêmicos que escrevem sobre o tema e a própria população.
100
Dado o processo, também não é tão surpreendente que a UNASUL nasça com
personalidade jurídica, ou seja, capacidade de negociar com outros países e organizações.
103
Deisy Ventura e Camila Braldi (2008?) fazem uma comparação entre a rápida aquisição de
personalidade jurídica da UNASUL e a adquirida após três anos pelo MERCOSUL (o tempo
decorrido entre o Tratado de Assunção em 1991 e o Tratado de Ouro Preto em 1994). De fato,
se não levarmos em consideração o processo de integração, que vai desde de 2000 ou pelo
menos desde a instituição da CASA em 2004/2007 tal atribuição pode parecer repentina.
Além disso, o MERCOSUL foi o primeiro ensaio de uma parceria comercial multilateral entre
os países sul-americanos, não surpreende que tenha havido uma maior cautela: os processos
que permitiriam a continuidade da integração ainda estavam sendo discutidos.
Levando em consideração o passado das Políticas Brasileiras para com a América
do Sul e até mesmo da América do Sul para com ela mesma, a criação e permanência da
UNASUL é um marco para a História das Políticas Externas da região, essa organização tem
a capacidade institucional de ser de fato uma instituição regional internacional. Isso não quer
dizer que a União não apresente dificuldades, como o descrédito internacional, a ausência de
spillover e a mudança político-econômica de meados da década de 2010.
A questão da falta de credibilidade internacional paira muito sobre a existente
retorica acerca do discurso integracionista sem de fato haver a prática da integração
(MEUNIER; MEDEIROS, 2013), sobre a pulverização de esforços integrativos gerado pela
participação conjunta e mútua de diversas organizações; e sobre o padrão sistêmico da
resolução nacional de problemas, ou seja, a questão da autonomia nacional. Christopher
Sabatini coloca esse descredito a partir da “incapacidade técnica e incredibilidade política”
para lidar com a possibilidade de fraude eleitoral na Venezuela. A comissão da UNASUL
teria sido apenas espectadora da eleição de Maduro em 2013 ignorando prováveis atentados
aos Direitos humanos e as vaias e reclames sobre o ganho eleitoral do referido presidente. O
autor continua defendendo que esses multilateralismos fracos colocam a estabilidade da
Democracia e a preservação dos Direitos Humanos em risco por criarem espaços de atuação
sem poder real de gerência, e defende a OEA enquanto uma organização mais forte, pelo
menos nesse sentido (SABATINI, 2014).
O caso da ausência de Spillover é discutido por Tullo Vigevani, Gustavo Favron,
Haroldo Ramanzini Junior e Rodrigo Correia (2004), em seu estudo sobre o MERCOSUL. Os
autores chamam a atenção de que o processo integrativo não é estático e que a maioria dos
processos ou espalha para o resto da sociedade, partindo de áreas políticas e econômicas (o
chamado spillover) ou ele cessa de existir, porém no caso do MERCOSUL eles analisam que
nem houve spillover nem o fim do bloco. Poderíamos trazer essa observação para o caso do
processo de integração sul-americano partindo da CASA e para a UNASUL e daí a
104
Para além dos limites topográficos, uma região é forjada por vínculos que os
indivíduos desenvolvem com um determinado território, o que deriva de uma
história coletiva mas também de interações presentes, inclusive por meio de
instituições. Estas instituições prescrevem normas de comportamento e regulam
atividades, bem como frame the discourse (Schmidt, 2008:314): definem os limites
dentro dos quais determinados repertórios de ideias e interações discursivas serão
mais ou menos aceitáveis (MEUNIER; MEDEIROS, 2013, p. 675).
isso a noção de Carr (1981) de que somos todos atores no campo da política externa, se esse
campo afeta a nossa vida, devemos fazer parte do seu processo de construção.
A validade da UNASUL está na sua existência política e burocrática, em ser um
espaço que discute o território sul-americano e sua integração, que propões estudos e gera
políticas, em ser um espaço de atuação, de inserção e de voz dos países que a compõem. Essa
instituição se constitui em um esforço de manter canais abertos sobre debates diversos e de
colocar em movimento uma identificação regional na política, na economia e nas questões
sociais, como cidadania, saúde, segurança e educação. A força da UNASUL nesse novo
cenário político econômico de incerteza quanto ao direcionamento dos processos de
integração é sem dúvida a multiplicidade dos seus temas, que poderia gerar direcionamento da
instituição para fins mais políticos que sociais, mas não o esvaziamento de seus projetos. Ela
é, então, um local importante de exercer, ou pelo menos procurar exercer dentro dos limites
da conjuntura econômica e política internacional, certo grau de autonomia política.
Conceitualmente, para a América Latina, autonomia “corresponde à capacidade de
definir uma política externa sem a imposição de restrições por parte dos mais poderosos”, de
forma que um Estado pode ou não possuí-la e essa condição levaria a total dependência (ou
alinhamento), ou a total autonomia (CADETE, 20015, p 10).
Para a região esse conceito vai se delineando desde a independência das colônias,
provavelmente pelo caráter de imposição das políticas coloniais. No século XIX temos os
EUA com suas políticas para a América Latina e a clara influência do país norte americano
em outros países independentes, em especial no caribe. Isso modifica para a América Latina o
significado tradicional do conceito de autonomia que se vincula ao de soberania, ou seja, ao
reconhecimento dos Estados como partes iguais na ordem internacional anárquica e assim
capazes de apenas eles terem gestão sobre seu próprio território, então o conceito de
autonomia tradicionalmente se vincula mais a uma capacidade interna dos Estados do que
necessariamente a posições e ações no âmbito internacional 103 (CADETE, 20015). Na década
de 1970, a questão da autonomia cresce em importância para a América Latina, foi um
período de ufanismos para a região, o que levava à visão de valorização da atuação e o
suposto poder nacional. Exemplo disso é a “diplomacia do Interesse Nacional” de Médici no
Brasil. A UNASUL, como outros processos de integração como o Mercosul e CAN, aparece
103
Vale lembrar que a questão da autonomia para política europeia se deu na Paz de Westefália em 1648. Foi um
consenso entre os países para concordar que em cada território mandava seu Rei ou Soberano e assim, dentro
desse espaço teriam eles, de forma independente, monopólio na criação de suas próprias leis, sendo cada lei
válida dentro do respectivo território. Dessa independência viria autonomia para escolher em que tratados seriam
parte, tornando as leis de tal acordo válidos nos reinos dele partícipe.
106
como esforço de exercício de autonomia, mesmo que com enfoques diferentes (comercial
versus o social), dentro de uma conjuntura internacional e nacional da região. Acredito que, a
UNASUL tenha um caráter inovador tanto no propósito, enquanto espaço de concerto político
e de esforço para ampliar a integração sul-americana, representativa do momento de
regionalismo pós-liberal, porém sua utilidade ultrapassa o desgaste desse modelo no momento
atual.
No caso particular do Brasil, a UNASUL se constitui em uma oportunidade de
atingir o potencial territorial da nossa política externa, historicamente direcionada para o
atlântico ou focada na região platina, mas que tem em comum todo o sub-continente. Esse
potencial de temas em comum com praticamente todos os países da América do sul é uma
singularidade brasileira na região, temos um território que permite atuação internacional
desde a bacia do rio da prata, até à Amazônia, uma economia diversificada com potencial para
se integrar à região. A UNISUL é um meio para realizar essa potencialidade.
Ela também é reflexo da geopolítica estratégica do governo brasileiro que depois
do governo FHC passou a “considerar a ‘América do Sul’ seu nicho estratégico, abrindo mão
de uma política ‘latino-americana’” (DA SILVA, 2014, p.167).
mecanismos multilaterais de diálogos foram criados na mesma época que a UNASUL (ibid.).
Nessa mesma esteira, ainda tivemos a escolha do Rio de Janeiro para sede dos Jogos
Olímpicos de 2016 e do Brasil como sede Copa do Mundo de Futebol em 2014; componentes
que atestaram o novo prestígio internacional do Brasil na busca de reconhecimento do país
como um Estado novo, eficiente e pacífico, (ibid.).
Francisco Doratioto e Carlos Vidigal (2015), porém, comparam esse momento, de
suposto reconhecimento internacional do Brasil, em especial seu pleito de se inserir como
membro permanente no CSNU, à política externa brasileira na década de 1920 intitulada de
“ilusão de poder” (CERVO; BUENO, 2008). Nessa década o Brasil iniciou o pleito de entrada
como membro permanente do Conselho Executivo da Liga das Nações que, recusada sua
entrada, levou, em 1926, à saída voluntária do Brasil e o veto do mesmo para a entrada da
Alemanha na posição almejada pelo nosso país.
O período da era Lula seria então uma ilusão da mudança do posicionamento
brasileiro no ambiente internacional:
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