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História & Luta de Classes, Nº 9 - Junho de 2010 (61-65) - 61

Haiti: holocaustos coloniais e o capitalismo da piedade

Nazira Correia Camely1

O cupação militar e “terremoto de classe”


Haiti, a nação mais próspera da América
O governo brasileiro cumpre um papel central
na ocupação do Haiti a serviço e mando dos interesses
Central no século XVII, na época conhecida como imperialistas estadunidenses. O Brasil enviou 1.600
“Pérola do Caribe”, foi o primeiro país latino- soldados e chegou a comandar no Haiti mais de 7.000
americano a tornar-se independente, em 1804. Hoje, o soldados. Atualmente o total de soldados e policiais
país mais pobre da América Latina possui um PIB de pertencentes à Minustah alcança o número de 12.000.
US$ 7 bilhões, uma população de 10 milhões de Após o terremoto de janeiro os EUA, sob o
pessoas, e uma renda média de menos de US$ 2 por dia, pretexto da ajuda humanitária, enviaram ao Haiti mais
uma das piores do mundo. O terremoto de 12 de janeiro de 16.000 soldados. Sobre este processo o jornalista
de 2010, um “terremoto de classe”2, acarretou a morte Alberto Cruz5 explica o que denomina da simbiose
de 300 mil haitianos, mais de uma centena de milhares existente entre a ajuda humanitária e a ocupação
de feridos e um milhão de desabrigados. Entretanto, o militar em vários países, tendo à frente as
aspecto principal do terremoto é que esta tragédia Organizações Não-Governamentais (ONGS), as quais
levou os EUA a ocupar militarmente o país sob o véu da ele denomina de Cavalo de Tróia do imperialismo.
“ajuda humanitária” e não mais indiretamente via A ocupação do Haiti pelas tropas militares
ONU. estadunidenses é o expoente mais recente da estratégia
O Haiti foi ocupado pelas tropas da ONU, traçada pelo imperialismo de ligar a “ajuda
desde 20043, depois do golpe de Estado patrocinado humanitária”, o “apoio ao desenvolvimento” e a
pelo EUA, na denominada missão Minustah (Missão 'cooperação' para fins de ocupação militar em vários
de Estabilização das Nações Unidas no Haiti)4. países. Esta estratégia foi iniciada pela Organização
das Nações Unidas (ONU) ao redesenhar o “direito à
1
ingerência” que, na realidade, é uma forma de
Professora do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais Aplicadas legitimar a ocupação que foi concebida por Mario
da Universidade Federal do Acre (CCJSA / UFAC). Contato: Bedatti (professor de Direito Internacional Público da
naziracorreia@gmail.com
2
Expressão do inglês, classquake, denominação do geógrafo
Universidade de Paris II) e por Bernard Koucher,
norteamericano Kenneth Hewitt, a partir de estudo que ele fundador dos Médicos Sem-Fronteira e atualmente
realizou sobre o terremoto na Guatemala em 1976. Termo que Ministro de Assuntos Exteriores do governo do
expressa muito bem o caráter de serem os pobres maiores direitista francês Nicolás Sarkozy6. Em nome deste
atingidos por este fenômeno da natureza, cabe- nos perguntar “direito de ingerência”, Cruz (op.cit.) elenca as
por que um terremoto em um país imperialista como o Japão estratégias traçadas pelo imperialismo na invasão a
não tem a proporção do que ocorreu com a população pobre do
diversos países: 1) Em 1991, a Guerra contra o Iraque
Haiti.
3
O presidente Aristides, deposto em 2004 pelo imperialismo sob a desculpa de proteger os Curdos, aplicação pelo
francês e estadunidense, tinha sido reeleito em 2001, ocasião imperialismo do modelo de “intervenção
em que reclamou da França o pagamento da indenização que o humanitária”; 2) Em 1992, invasão da Somália com a
Haiti tinha pago àquele país por sua independência, valores desculpa de “por fim à anarquia” e “restabelecer
estimados em US$ 16 bilhões. Aristides tinha sido o primeiro condições mínimas de existência”; 3) Após o fracasso
presidente eleito do Haiti, em 1991, quando tentou aumentar o da invasão da Somália o imperialismo começa a usar a
salário mínimo de US$ 1,76 por dia para US$ 2,99 diários,
estratégia de “combate ao genocídio” para justificar
medida duramente reprimida pelo imperialismo por ir contra os
interesses econômicos das multinacionais instaladas no Haiti. sua invasão em diversos países com as tropas da ONU.
4
Criada em 30/04/2004 pelo Conselho de Segurança da ONU, Foi com esta desculpa que interveio em Ruanda, em
sob o pretexto de combater a proliferação de bandos armados,
realizou verdadeiros massacres em Cité Soleil, bairro mais 5
pobre de Puerto Príncipe e principal local dos adeptos do Alberto Cruz é analista do Centro de Estudos Políticos Para as
presidente Aristides. TEITELBAUM, Alejandro. Ocupación Relações Internacionais e o Desenvolvimento (CEPRID):
militar, varios siglos de pillaje y superexplotación y algunas http://www.nodo50.org/ceprid/.
6
semanas de migajas humanitárias. Disponível em: CRUZ, Alberto. Haiti como el expoente de la simbiosis
http://www.vientosur.info/articulosweb/noticia/?x=2739 militares-cooperantes. Rebelion, 15/02/2010, disponível em:
(01/02/20010). http://www.rebelion.org/noticia.php?id=100486.
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1994, executou operações militares no Haiti, em1995, Estes dados comprovam os interesses
na Bósnia e Herzegovina em 1994-1995, na Albânia, imperialistas sobre o território caribenho e
em 1997 e em Kosovo, em 1999. Sob a estratégia de demonstram os reais interesses do EUA sobre o Haiti,
“guerra preventiva” e a desculpa de combate ao e, portanto a invasão do país sob o pretexto da ajuda
terrorismo, os EUA lideram a invasão do Afeganistão humanitária. Nesta estratégia têm atuação destacada as
em 2001, e do Iraque em 2003, sob a desculpa de que ONGs12 que funcionam realizando a abertura do
este país detinha armas de destruição em massa. Em terreno para a ocupação militar imperialista sob a
todos os exemplos citados aparece o discurso da consigna da ajuda humanitária, da cooperação e da
necessidade de “intervenção humanitária”.7 ajuda ao desenvolvimento. Estes três aspectos são
Os EUA têm hoje no Haiti mais de 16 mil analisados por Hancock (1991)13 no que este autor
soldados, alegando ajuda humanitária após os denomina de “capitalismo da piedade”, demonstrando
acontecimentos de 12 de janeiro. Como alerta Alberto em seu estudo o que está por trás da ajuda humanitária
Cruz8, um soldado com um rifle ou com 1 kg de dos países imperialistas aos países dominados.
alimentos é sempre um soldado. Para isto o autor os As situações de catástrofes ambientais como
denomina de “soldados diplomáticos”, esclarecendo secas, inundações, terremotos são analisados por
que esta é uma categoria que esconde os reais Davis14 na perspectiva do entendimento de que estes
interesses econômicos dos países imperialistas que problemas não podem ser analisados como eventos
ocupam países em guerra, declarada ou não. Esta climáticos isolados e revelam as diferenças de classe
modalidade de ocupação está encoberta pelo véu da nos países atingidos por catástrofes e entre as nações, a
ajuda humanitária que nada tem de humano, porque partir do advento do imperialismo, analisando a
assassina o povo, estupra suas mulheres, mata capacidade dos países atingidos de protegerem sua
crianças, prende e tortura sob a jocosa desculpa de população dos “holocaustos coloniais”. Sobre o
combate ao terrorismo. Assim ocorre no Iraque, no aspecto do “capitalismo da piedade” e dos
Afeganistão, na Palestina e em outros países. A guerra “holocaustos coloniais”, nos baseamos, para a
do Iraque e do Afeganistão custa ao imperialismo, até compreensão da atual situação que assola o Haiti, na
2010, a quantia de US$ 1 trilhão9. perspectiva de entendermos que a invasão militar sobre
O fotógrafo e documentarista haitiano, Jean o país, a ajuda humanitária das ONGs15 e os efeitos
Lavalasse10, denomina de IFAC (Imperialismo nefastos do terremoto de janeiro sobre a população
Francês, Norte-Americano e Canadense) os enormes haitiana são reflexo do saque, espoliação e pilhagem
interesses geopolíticos sobre o território haitiano. que secularmente o imperialismo tem exercido sobre
Entre estes se destacam a grande quantidade de este país.
petróleo existente no Haiti, os interesses de utilização
da ampla e barata força de trabalho no emprego de
empresas maquiladoras, privilegiadas com
baixíssimos custos do trabalho e de transporte ao EUA,
pois o Haiti está apenas a 30 minutos da Flórida. De
acordo com um relatório da U.S. Geological Survey, de
2000, as Grandes Antilhas, que incluem Cuba, Haiti, 12
Um estudo sobre a geopolítica das ONGs como agentes do
República Dominicana, Jamaica e Porto Rico, têm pelo imperialismo na Amazônia, ver: CAMELY, Nazira Correia. A
menos 142 milhões de barris de petróleo e 159 bilhões geopolítica do ambientalismo ongueiro na Amazônia
de pés cúbicos de gás11. brasileira: um estudo sobre o estado do Acre. Tese de
Doutorado em Geografia, (Programa de Pós Graduação em
Geografia da Universidade Federal Fluminense / PPGEO /
UFF), Niterói, 2009. Disponível em:
7
Stuart Bowen (inspetor geral para a reconstrução do Iraque) http://www.scribd.com/doc/26582934/Tese-da-Profª-Nazira-
tinha claro que “a ajuda de emergência e a reconstrução são Camely-UFAC-A-geopolitica-do-ambientalismo-ongueiro-
uma extensão das estratégias políticas, econômicas e na-Amazonia-um-estudo-brasileira-um-estudo-sobre-o-
militares”. CRUZ, op. cit., p. 2-3. estado-do-Acre.
8 13
Alberto Cruz denomina de “soldado diplomático” como a HANCOCK, Graham. Les nababs de la pauvreté. Paris:
estratégia política e militar dos EUA para o Haiti e outros Éditions Robert Leffont, 1991.
14
países ocupados. Entrevista disponível em : DAVIS, Mike. Holocaustos coloniais. Clima, fome e
http://www.masvoces.org/El-soldado-diplomatico-la. imperialismo na formação do Terceiro Mundo. Rio de Janeiro:
9
Fonte: http://www.nationalpriorities.org/costofwar_home , Record, 2002.
15
acesso em 17/02/2010. Segundo Jean Lavalasse o Haiti possui um dos maiores
10
Entrevista disponível em: índices de ONG por habitante no mundo, em entrevista
http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&vie disponível em:
w=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea- http://michelcollon.info/index.php?option=com_content&vie
muchas-cuestionesr&catid=1:articles&Itemid=2, w=article&id=2517:lel-papel-de-las-ong-en-haiti-plantea-
acesso 01/02/2010. muchas-cuestionesr&catid=1:articles&Itemid=2,
11
Jornal O Estado de São Paulo, 31/01/2010. acesso 01/02/2010.
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O capitalismo da piedade e os holocaustos O exemplo dos desperdícios do “capitalismo


coloniais da piedade” envolve também fortes emoções. No fim
de 1984 um canal de TV francesa organizou a
Os países imperialistas, principalmente desde
“caravana da esperança”, que faria uma espécie de rali
o pós II Guerra, desenvolveram uma verdadeira
para levar aos países pobres do oeste africano
“indústria da piedade” e da “cooperação”16. Nos países medicamentos, alimentação e equipamentos. Foi gasto
da Organização para Cooperação e Desenvolvimento na aquisição destas doações quase o mesmo montante
Econômico – OCDE, quase todas as administrações do que custou a comunicação por satélite com a França
possuem ministérios, secretarias ou escritórios de durante a viagem. Devido à alta velocidade da
“Solidariedade e Cooperação Internacional”. Hancock caravana a maioria da doação foi perdida no caminho
demonstra que nos países onde ocorrem seca, (HANCOCK, op.cit, p. 43-44).
inundação, terremotos e toda sorte de catástrofes estão
sempre aqueles da ajuda humanitária. Em diversos Hancock (1991) compara os fluxos de ajuda
exemplos, o desperdício, a corrupção, a ineficácia e pública realizados por dezoito países industrializados
burocracia, a espionagem e contra-insurgência estão que alcançou o montante de 45 a 60 bilhões de dólares
presentes no que Hancock denomina da “indústria da por ano na década de 1980. O autor relativiza esta cifra
piedade” do capitalismo. ao compará-la com outros dados: a) os EUA e a então
URSS gastavam US$ 1,5 bilhões por dia com gastos
Hancock (1991) descreve os casos de militares para suas defesas, ou seja, o total da ajuda
inoperância, desperdícios e descaso em países em mundial equivalia a um mês dos gastos dos países com
situação de catástrofes em que a ajuda humanitária despesas militares; b) cinqüenta mísseis “Peacekeeper
coloca em risco a vida de milhares de pessoas muito MX” custavam US$ 4,5 bilhões, mais que a APD da
pobres. Para a Somália foram enviadas grandes Alemanha; c) o custo de um ano da “Guerra nas
quantidades de remédios que as autoridades sanitárias estrelas” foi de US$ 3,9 bilhões, mais do que a APD do
desse país consideraram lixo. O Sudão, um dos países Reino Unido e do Canadá; d) em 1962 os EUA
mais quentes do mundo, recebeu doações inúteis como gastaram quase US$ 300 milhões para treinamento de
cremes para rachaduras nos pés e cobertores elétricos. golfinhos com fins militares, mais do que o orçamento
Países que têm na fome seu principal problema de ajuda anual da Áustria e Nova Zelândia juntos; e)
recebem sopas e chocolates dietéticos em grandes em 1988 a Grã Bretanha gastou quatorze vezes mais
quantidades (HANCOCK, op.cit. p. 37-38). A com sua defesa do que com doações (US$ 1,8 bilhão).
Comunidade Econômica Européia (CEE) enviou As mulheres britânicas gastaram US$ 480 milhões em
toneladas de trigo radioativo, (idem p.39). A Food for perfumes e cosméticos, mais do que toda a ajuda da
Hungry (norte-americana) enviou ao Camboja Suíça de US$ 429 milhões; f) os free shops faturaram
dezenove toneladas de alimentos que, por estarem tão mais de US$ 5,5 bilhões, mais do que a França
velhos, tinham sido recusados pelo jardim zoológico despendeu em ajuda; g) os norte-americanos gastaram
de São Francisco, e os remédios enviados estavam US$ 22 bilhões com cigarros, mais do que as doações
vencidos há mais de quinze anos (idem, p.39). Os dos três maiores doadores juntos (EUA, Japão e
laxantes e remédios para indigestão estão entre os França); h) Michael David Weill, da sociedade
produtos favoritos das listas de doações. americana Lazaid Frères, ganhou anualmente como
Em algumas situações a caridade coloca em salário o equivalente aos orçamentos de ajuda da Nova
risco a vida dos pobres. A Map International Inc. Zelânia e Irlanda (US$ 128 milhões), i) os dez bilhões
(Illinois) recebeu de doação estimuladores cardíacos de dólares que os EUA destinavam à ajuda estrangeira
no valor de US$ 17 milhões do American Hospital representaram menos da metade da fortuna de Yoshiaki
Supply Corporation (AHS). Com essa doação o AHS Tsutsumi, dono do Grupo SEIBU e um dos homens
teria um substancial abatimento fiscal para um setor mais ricos do mundo (HANCOCK, idem, p.82-84).
que de qualquer forma ele havia decidido suprimir. No ramo do “capitalismo da piedade” Hancock
Esses equipamentos chegaram aos países pobres e aponta para uma estreita vinculação entre o aumento da
constatou-se que seus marca-passos e estimuladores arrecadação das receitas dos organismos da caridade e
possuíam graves problemas que colocariam em risco a a ocorrência das catástrofes da fome, seca e inundações
vida dos pacientes (HANCOCK, op.cit, p. 43). nos países pobres. A World Vision britânica doou US$
25 mil ao documentarista que realizou um curta em
16
1984 chamado “Calvário Africano” sobre a fome na
Sobre este tema nos baseamos inteiramente na pesquisa de Etiópia. No final do documetário há um apelo aos
Hancock (1991). O autor é jornalista e realizou extensa e telespectadores para doarem recursos a World Vision
corajosa pesquisa sobre o significado da ajuda e cooperação
internacional, e atinge seus objetivos ao elucidar o significado
para amenizar a fome africana. O montante de recursos
em si da ajuda aos países pobres. Trabalho de fundamental da organização era de tal vulto que eles possuíam uma
importância já que a grande maioria dos estudos voltados a esse frota de cinco aviões. Outras organizações como
objetivo é fortemente desencorajada e os poucos que seguem, Cristian AID, Oxfam, Save The Children organizaram
trabalham com os dados permitidos pelas agências de ajuda.
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um comitê de urgência das catástrofes para evitar que a No aspecto da caridade estar associada ao
World Vision recebesse todas as doações sozinha por missionarismo religioso é esclarecedora a fala do ex-
ocasião da campanha contra a fome na Etiópia presidente da World Vision, Ted Engstrom:”Nós
(HANCOCK, op.cit. p. 45-46). O autor cita alguns analisamos cada projeto, cada programa que
exemplos de como algumas organizações têm suas estamos envolvidos, para nos assegurar de que a
receitas aumentadas em épocas de calamidade; ele evangelização é um componente significante. Nós
refere-se ao período da fome etíope de 1985: a) após não vamos alimentar os indivíduos para em seguida
anos de expansão lenta de suas receitas a Oxfam dobra os enviar o inferno”, citado em Hancock
suas arrecadações no período de 1978-1980. Isto foi (HANCOCK, op.cit, p. 33).
resultado da forte pressão exercida para levantamento
de fundos em favor das vítimas da fome e da guerra do Análogo ao sentido dos “terremotos de classe”
Camboja. Depois as doações permaneceram o geógrafo Mike Davis esclarece sobre o que denomina
estacionadas até 1985, quando os apelos em favor dos de “holocaustos coloniais” na análise que realiza sobre
famintos etíopes multiplicaram de novo as receitas da os impactos do fenômeno climático da seca, o El Niño
Oxfam alcançando a cifra de 51,1 milhões de libras, e El Niña, como catástrofes às quais os países
embora elas fossem inferiores a 20 milhões de libras dominados não poderiam mais responder de forma
em 1983-84; b) também em 1985 a Band Aid coleta 76 adequada, a partir do advento do imperialismo. Davis
milhões de libras para os famintos junto ao público (op.cit.) cita de Gonçalves Dias a definição de seca:
britânico; c) os norte-americanos enviaram 1 bilhão de “um elemento estratégico no processo de acumulação
dólares às organizações benevolentes privadas pelas grandes unidades de produção rural no
engajadas no Terceiro Mundo; d) as organizações War Nordeste.” Sobre isto Davis (idem) acertadamente
on Want, Oxfam, International Cristian AId, Care conclui que “cada seca global foi o sinal verde para
Incorporated, Project Hope, Médicos Sem- fronteira e uma corrida imperialista pela terra”, e cita vários
Médicos do Mundo receberam US$ 2,4 bilhões para exemplos. A seca sul-africana de 1877 foi a
financiarem seus projetos e programas nos países oportunidade de Carnarvon para atacar a
pobres. Em 1985 esta cifra chega a US$ 4 bilhões com independência zulu; a fome etíope de 1889-91 foi o
a campanha de combate à fome etíope (idem, p. 24) . aval de Crispi para construir um novo Império Romano
no Chifre da África. A Alemanha guilhermina explorou
Historicamente a perversa espoliação dos as inundações e a seca que devastaram Shandong
povos das Américas, África e Ásia foi acompanhada (China) no final da década de 1890; os EUA usaram a
por missões religiosas que produziram os nefastos fome e a doença causadas pela seca como armas para
efeitos que a história já conhece. As ONGs e esmagar a República das Filipinas de Aguinaldo.
organizações humanitárias têm também trabalhado
Davis (op.cit.) analisa baseado também nos
neste campo e são freqüentes as denúncias contra
historiadores indianos a fome na Índia antes e depois
elas também na ação de contra-insurgência e da colonização britânica. Chega à conclusão de que
espionagem. Hancock (op.cit.) cita a acusação havia poucos indícios de que a Índia rural passara por
contra a atuação da World Vision em Honduras no crises de subsistência na escala da catástrofe de
período em que de 1980-1981, seus funcionários se Bengala de 1770, sob o domínio da Companhia da
recusavam a dar alimentação aos refugiados que não Índia Oriental, ou o longo cerco de doenças e fome
participassem dos auxílios religiosos da missão dos entre 1875 e 1920 que diminuíram o ritmo do
protestantes. Os funcionários da Word Vision foram crescimento da população quase à paralisação. Davis
acusados de serem da polícia e de trabalharem para o cita um estudo de 1878 publicado no Journal of the
serviço secreto para entregarem a localização e o Statistical Society onde computaram 31 fomes graves
nome de ativistas políticos que estavam nos campos em 120 anos de governo britânico na Índia, contra
de refugiados por eles assistidos. A denúncia mais apenas 17 fomes registradas nos dois milênios
grave foi sobre episódio ocorrido na noite de 22 de anteriores. Os historiadores indianos mostraram que os
maio de 1981 quando dois refugiados salvadorenhos governantes, antes da colonização, contavam com
que estavam abrigados na cidade hondurenha de políticas de combate à fome; como os embargos às
Colomoncagua foram recolhidos pela World Vision exportações de alimentos, regulação de preços contra
e colocados em um veículo onde lhes disseram que especulação, taxa de socorro e distribuição de
estavam sendo levados ao campo de refugiados de alimentos gratuitos, e sem a exigência de trabalhos
Limones. No lugar disto eles foram entregues às forçados.
forças armadas. Alguns dias mais tarde foram A extrema disparidade entre ricos e pobres no
encontrados mortos na fronteira. A World Vision mundo é o reflexo da política de dominação e saque
negou veemente todas as acusações de envolvimento efetuada pelos países imperialistas. Dados do relatório
com o caso (HANCOCK, idem, p.33-34). da ONU (2006) mostram que mais de metade da
riqueza mundial está nas mãos de apenas 2% dos
adultos do planeta, enquanto os 50% mais pobres têm
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só 1%. A riqueza está distribuída de forma haitiano e chama a todos para a dura tarefa de
extremamente desigual e também sua distribuição reconstrução do país sob o princípio de que a
geográfica: 90% do total da riqueza estão concentradas autonomia da nação não pode ser negociada com o
na América do Norte, na Europa e nos países de alta imperialismo e convoca o povo do Haiti a erguer a
renda da Ásia e do Pacífico. A grande concentração da cabeça e partir de suas próprias forças para a
riqueza nas mãos de tão poucos, aumentou reconstrução da nação, conclamando a solidariedade
enormemente nos últimos cinqüenta anos. Para termos internacional de todos os trabalhadores.
uma ideia o patrimônio per capita no Japão é de US$
181 mil, nos EUA de US$ 144 mil, enquanto no Congo
e na Etiópia é de menos de US$ 200.

Conclusão
Os meios de comunicação fizeram da tragédia
no Haiti o espetáculo recorrente com que demonstram
nos meios de desinformação de massas as tragédias
que ocorrem com as populações dos países dominados.
O jornalista espanhol Miguel Romero levanta os
aspectos desta espetacularização da pobreza
mostrando que as “imagens espetaculares” da tragédia
no Haiti têm por objetivo vender notícias para as
grandes redes de TV e meios de comunicação. Elas não
possuem nenhum caráter de informação e sim de
mercadoria, de “surpreender e não de informar”17 o
público com imagens devastadoras. E para isto seu
“espetáculo” consiste em submeter o povo haitiano a
uma situação de vandalismo, de casos isolados de
histórias individuais baseadas no período em que a
pessoa sobreviveu em escombros, e em nada informam
à população sobre a história social deste país, que
mesmo antes deste terremoto encontrava-se em uma
grave situação de pobreza e ocupação militar.
O terremoto de janeiro agravou a situação
social do Haiti e deu ao imperialismo estadunidense
uma desculpa de ocupação militar do país, agora não
por seus prepostos da ONU onde o EUA já conta com
23 navios, aviões e 18.000 soldados. Esta ação de
ocupação que visa interesses estratégicos nesta região,
relacionados aos recursos naturais e a reconstrução do
país com valores estimados pelo Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) em US$ 14
bilhões18.
A ajuda humanitária do imperialismo significa
ocupação militar, ingerência, perda de soberania e
estratégias de saque e pilhagem sobre o país. Neste
momento trágico na vida do povo do Haiti toda a
solidariedade é necessária para a reconstrução do país.
Entretanto, a ajuda e cooperação dos países
imperialistas não significam solidariedade porque
ferem toda a autonomia do povo e da nação.
A declaração da Batay Ouvriye19, de 12 de
fevereiro de 2010, analisa a dura situação do povo

17
Miguel Romero é editor da Revista Viento Sur
19
(http://www.vientosur.info/# ), sua entrevista está disponível em: Considerada a principal organização sindical do Haiti, a
http://www.masvoces.org/Miguel-Romero-vision-critica-de. declaração completa está disponível em:
18
Jornal Folha de São Paulo, 17/02/2010, A 11. http://www.lahaine.org/index.php?p=43225.

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