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Veja VIDA DIGITAL 4

O dilúvio da informação

Para o autor de O Nome da Rosa, a mesma internet


que dá acesso ao melhor do conhecimento humano também entope as pessoas com tanto
lixo cultural que, no final, tudo pode acabar em "puro silêncio"

Tania Menai, em Bolonha

Umberto Eco é um intelectual que transita com rara habilidade por áreas do pensamento
que não se bicam. Ele é um teórico respeitado no campo da semiótica e um literato de
mão-cheia. Ganhou o público e as telas de cinema com seu primeiro romance, O Nome
da Rosa. O autor italiano, de 68 anos, também viaja com facilidade pelo tempo. Tem
fascínio pela Idade Média, o ambiente preferido para as intrigas de suas novelas. Na vida
real, porém, está preocupado com o que será da sociedade e da cultura na era da internet.
Na Universidade de Bolonha, onde leciona, Eco recebeu Vida Digital para a seguinte
entrevista.

Veja – Na sua opinião, que impacto a internet vai ter na cultura?


Eco – Pela primeira vez, a humanidade dispõe de uma enorme quantidade de informação
a um baixo custo. No passado essa informação era custosa, implicava comprar livros,
explorar bibliotecas. Hoje, do centro da África, se você estiver conectado, poderá ter
acesso a textos filosóficos em latim. É uma mudança e tanto.

Veja – E na política, o que vai acontecer?


Eco – O governo chinês está filtrando informação on-line. Programas bloqueiam o acesso
ao site B e só permitem acesso ao site A. Mas há truques para chegar ao site B por meio
do site A. O governo não pode controlar todos os sites existentes. A internet é como uma
enchente, não há como parar a invasão de informação. Em situações críticas, esse excesso
de informação é muito positivo. Durante uma conferência em Bolonha, um palestrante
disse que se a internet existisse nos anos 40 Auschwitz não teria sido possível, porque
todos teriam sido informados do que estava acontecendo. Eles não poderiam dizer, como
dizem até hoje, "ah, eu não sabia". A internet nos obriga a saber. Você não pode parar a
informação.

Veja – Qual é o aspecto negativo?


Eco – A abundância de informação. Uma boa quantidade de informação é benéfica e o
excesso pode ser péssimo, porque não se consegue encará-lo e escolher o que presta.
Brinco dizendo que não há diferença entre o jornal stalinista Pravda e o New York Times
dominical. O primeiro não possui notícia alguma e o outro tem 600 páginas de
informação. Uma semana não é suficiente para ler essas 600 páginas.

Veja – No meio de tanta informação, como encontrar os sites de qualidade?


Eco – Hoje podemos encontrar na internet todos os textos de filósofos medievais. O
problema é saber como vou adivinhar que eles estão lá. Esbarrei com esses textos durante
uma pesquisa. Mas sou profissionalmente envolvido com esse tipo de estudo. Para uma
pessoa mais jovem, a internet pode ser uma floresta: se você decidir virar para a esquerda
em vez de ir para a direita, talvez deixe de achar o tesouro que está buscando. Existem
muitos sites interessantes, mas há também muito lixo. Fiz uma experiência. Escolhi o
tema Holy Grail (em inglês, cálice sagrado, no qual, segundo lendas medievais, Cristo
teria bebido durante a Última Ceia). Sei que é um assunto que envolve bastante gente
louca, que desperta fantasias inacreditáveis. Na primeira busca encontrei 78 sites. Dois
continham boas informações enciclopédicas, dois forneciam dados de nível universitário,
cinco misturavam informação enciclopédica com informação sem nenhum controle. O
resto era lixo. Como podemos garantir que um jovem iniciante consiga distinguir entre a
informação verdadeira e a falsa?

Veja – Boa pergunta...


Eco – Isso é algo que deveria ser ensinado nas escolas do futuro, mas ainda não sabemos
em que cadeira. Estou cada vez mais pensando em criar grupos universitários que
monitorem sites. Por exemplo, em filosofia. Eles selecionariam os sites interessantes.
Então, se um jovem iniciar uma pesquisa sobre um assunto, poderá receber um
aconselhamento razoável. Esse poderia ser um serviço de grande sucesso, até em termos
econômicos. Hoje você aperta um botão e recebe 10 000 títulos sobre um tema. Só que
você não tem tempo nem de ler os 10 000 títulos, sem falar nos livros – isso ilustra como
o excesso de informação pode transformar-se em puro silêncio.

Veja – Certa vez, o senhor disse que "quando a internet se tornasse um meio de
implementar comunidades reais, por intermédio de comunidades virtuais, teríamos uma
grande mudança". O que queria dizer com isso?
Eco – Na primeira fase, a internet implementou a solidão. As pessoas passaram a
trabalhar em casa, a se comunicar virtualmente. Como transformar essa solidão em
ocasiões sociais? Aqui, em Bolonha, estamos inaugurando em dezembro um enorme
espaço público cheio de computadores e livros. A Itália tem população de 58 milhões de
habitantes e uma minoria de 5 milhões conectada à internet. Nesses espaços, as pessoas
terão acesso à internet, poderão escrever suas teses, receber cursos de treinamento, todo
tipo de informação. Tem gente que usa a internet uma vez por semana, então para que
comprar um computador? Cinqüenta pessoas usando computadores numa sala podem
trocar informação. Assim se utiliza um instrumento de solidão para criar uma pequena
comunidade.

Veja – No mundo virtual, a anarquia parece prevalecer. Mas existem ferramentas de


controle, como softwares e cookies. Quem vai vencer: a anarquia ou a burocracia?
Eco – Esse é um problema que não tem a ver apenas com a internet. Neste mundo,
estamos perdendo a privacidade. Somos filmados quando adquirimos uísque no
supermercado, nossas compras, sejam de Bíblias ou de livros pornôs com cartão de
crédito, são registradas, assim como nossa hospedagem em hotéis. Com a internet,
podemos chegar ao paroxismo. Somos registrados em certos sites, e isso significa que
alguém pode ter seguido minhas pesquisas nos últimos seis meses e visto que entrei no
site tal buscando informações sobre o filósofo Emmanuel Kant. Isso levará,
provavelmente, ao desaparecimento do segredo. Somos cheios de segredos, mas eles não
são tão dramáticos assim. Quero comprar um presente de aniversário para minha filha e
manter sigilo até lá. É um pequeno segredo, mas segredos estão cada vez mais difíceis de
guardar. Vamos viver como na época da confissão pública, quando todos revelavam seus
pecados.

Veja – Como driblar essa perseguição?


Eco – Digamos que eu queira ler sobre Emmanuel Kant na internet. Em um site que não
tenha nada de proibido, mas que, por razões pessoais, eu não queira ser monitorado. O
que fazer? Faço cinqüenta buscas em alguns filósofos, incluindo Aristóteles, Descartes e
Kant. No final, ninguém vai saber em qual filósofo estou interessado. É uma forma
artificial de proteção, que toma tempo. Estaremos criando formas de proteção para nossos
segredos legítimos, ou então deveremos ter uma atitude diferente perante eles. Como
dizer "Sim, tenho uma amante. Sim, comprei a revista Playboy. E daí?" Caso contrário,
teremos de inventar formas de autoproteção, novos modelos de hipocrisia pública.

Veja – O inglês está se transformando na língua franca da internet?


Eco – O inglês é o esperanto da internet. Não é a primeira vez que um idioma se
transforma num veículo do mundo. Antes era o grego, depois foi o latim. Para algumas
pessoas, a rede pode ser a oportunidade de descobrir outras línguas. Existem ferramentas,
horríveis por sinal, de tradução, mas talvez um americano traduzindo algo do francês e
comparando as traduções passe a entender um pouco de francês.

Veja – O senhor acredita que a internet vá mudar o idioma inglês, pela disseminação de
seu uso entre pessoas que não o dominam muito bem?
Eco – Sim, mas esse idioma já vinha mudando bem antes da internet. A existência da
América mudou o inglês usado em Oxford e, à medida que o idioma circula, ele está em
constante mutação. O que aconteceu com o grego clássico quando ele passou a ser falado
na região mediterrânea, pelos egípcios e até pelos romanos? Surgiu uma espécie de novo
grego elementar chamado coiné. Era polido, em comparação ao grego de Homero. Mas
Aristóteles escreveu naquele idioma. Então, mesmo com um idioma universal
simplificado, você pode fazer excelentes coisas.

Veja – A internet ainda é um privilégio da elite?


Eco – Hoje é. E, francamente, não acredito que a humanidade toda vá usar a internet. A
rede vai acabar criando novas formas de divisão de classes. As classes não serão mais
baseadas em dinheiro, mas sim em quem tem acesso à informação. Teremos aqueles que
vão acessar, manipular e interagir, aqueles que usarão a rede apenas passivamente e
aqueles que serão excluídos, os proletários. Quando a divisão de classes se fazia de
acordo com a riqueza, era difícil dizer para milhões de pessoas pobres "vou doar milhões
de dólares e vocês enriquecerão". Agora seria mais fácil dar às pessoas analfabetas acesso
gratuito à internet.

Veja – Como podemos acelerar a democratização da rede?


Eco – Por meio da educação. Cada criança no mundo deve ter acesso à internet. Se elas
não tiverem dinheiro para comprar um computador, pelo menos devem ter espaços
públicos onde possam acessar a rede.
Veja – O que o senhor acha do e-book, o livro eletrônico para computador?
Eco – Os e-books podem mudar parcialmente o panorama. A enciclopédia italiana
Treccani deve ter uns quinze volumes grandes. Além de custar caro, ocupa um enorme
espaço. Você pode colocar tudo isso num disquete. Uma criança pode ir para a escola
levando apenas um e-book. Só não acredito que seja prazeroso ler um romance dessa
forma.

Veja – O senhor publicaria seus livros dessa forma?


Eco – Ainda não.

Veja – Com que freqüência o senhor usa a internet?


Eco – Uso a internet como uso o carro, quando preciso. Não passo minha vida dirigindo
em auto-estradas. Se não tiver de me locomover, não pego o carro. Não passo
madrugadas on-line. Tenho coisa melhor para fazer.

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