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29 December, 2022 | created using PDF Newspaper from FiveFilters.org

As Marias pobres deste Santo António. Um pacote de manteiga. Na mesa para quatro
pessoas está um napperon antigo. Solitário. Na parede, bem junto

mundo ao tecto, uma moldura de Maria com o marido. Sorridentes.


Pareciam felizes. O fotógrafo quase de certeza que lhe exigiu um
sorriso. Forçado, mas é sempre um sorriso. Maria não tinha rugas.
Oct 6, 2019 07:18AM
A pele era lisa e brilhante. Ainda era o tempo que achava que era
possível. Era. Mas não foi. Maria já nem olha para a fotografia.
Está no alto. Esquecida. A água das batatas já ferve.

Pela janela da cozinha entra o sol. Maria rega as batatas com um


fino fio de azeite. Estão boas as batatas. Maria parece feliz.
Sabem-lhe bem. Sempre admirou a sua vizinha. Sabe que é uma
pessoa de coração cheio. Só bateria à sua janela. Nunca
conseguiria bater à janela de mais nenhum vizinho. Uns
ignorariam e outros olhariam de lado. Aquela vizinha não. Olha
nos olhos. De igual para igual. É solidária. Maria dá graças a Deus
e à sua vizinha por ter aquelas batatas no prato. Sabe que naquele
momento haverá muitos a comer caviar e lagosta. E muitos, muitos
mais a morrer de fome. Maria ainda tem as batatas e o fio de
Maria bateu à janela. Um toque tímido. Um toque envergonhado. azeite. Maria nunca comerá lagosta, mas um dia poderá morrer de
Vestida de negro da cabeça aos pés, deixava adivinhar um rosto fome. Está cansada. Esgotada. Aprendeu a ouvir que o mundo
velho. Um rosto que não coincidia com a idade. Maria ainda era sempre foi assim. Ricos e pobres. A riqueza tornou-se um desejo e
nova, mas a vida marcou-lhe o corpo. E continua a marcar. Maria a miséria uma banalidade. Mas Maria também sabe que se pode
pediu à vizinha umas batatinhas. Maria nunca tinha pedido nada. mudar. Ela já não consegue. Mas, quem sabe, se os seus netos
Maria tem agora o frigorífico vazio. Maria tem de pedir. Maria está terão força. Os netos de todo o mundo.
envergonhada e a vizinha arrasada. A Maria. Um ser humano
extraordinário com fome. Num saco de plástico a vizinha oferece o Na cozinha estão três cadeiras vazias. Maria vive sozinha. O
aconchego para o estômago de Maria. Maria retira do bolso uma marido morreu. As filhas emigraram. Faz contas aos dias que
pequena garrafa de plástico. Necessita de um fio de azeite para faltam para receber a magra reforma. Irá comprar asas de frango
dar sabor às batatas. Maria olha para baixo. A vizinha pede-lhe e fazer um arroz de sangue. Depois irá bater à janela da vizinha.
que levante a cabeça. Maria tem os olhos húmidos. A vizinha
Sentadas as duas, riem-se das histórias passadas na rua do bairro.
também.
O arroz de sangue está uma delícia. Maria está feliz. A vizinha
Um obrigado sentido sai do coração de Maria. Caminha pela rua levou leite-crème. O café está ao lume.
vergada pela vergonha e pela vida. A vizinha fica ao portão a ver
Dona Emília, diga-me uma coisa, o mundo tem de mudar, não tem?
Maria. O que se poderá fazer para mudar isto? Que força é esta
Acabar com a pobreza é possível, não é? Claro que é possível,
tão estranha que nos esmaga, nós, seres humanos, que nos ofende,
Maria, serão os netos deste mundo a mudar o mundo.
que nos humilha? Nas horas felizes das dores mais desejadas, as
do parto, nascemos todos para o mundo de igual forma. Choramos
e sentimos pela primeira vez os pulmões a receberem ar. Ficamos
ligados à vida. E logo ali começamos a esboçar o destino. Maria
era uma bebé bonita. Olhos azuis. Brincos de ouro. Maria sonhou
com a felicidade. Correu sempre atrás dela. Teimosa. Lutadora.
Mas a pobreza foi mais forte. Nasceu pobre. Continua pobre.

A pobreza é como o ácido sulfúrico. Corrói e deixa marcas.


Destrói. E Maria, que tão bem aprendeu a respirar, percebe agora
que talvez tivesse sido melhor que os seus tenros pulmões
rejeitassem o ar que ela pensava ser puro. Para todos. Igual para
todos. Maria era inocente. Agora, com as rugas a mapearem-lhe o
corpo, Maria sonha deitar-se pelo fresco da noite e já não ver o
nascer do dia.

As batatas mergulhadas em água quente esperam pela fervura. A


cozinha tem um ar desbotado. O amarelo das paredes está sujo.
Uma pequena bancada tem uma jarra de flores de plástico. O pó
quase não deixa adivinhar a cor. Uma torradeira. Pratos. Sacos
com medicamentos. Cartas da EDP. Um porta-moedas. Facas. Um

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