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VIDA DE MARIA

ESCRITO
POR
MAURICIO MACULAN

Pato Branco, 2017


TEXTO PARA SER ENCENADO EM PALCO. LUZ SOBRE ATOR OU ATRIZ DE
IDADE INDEFINIDA SENTADO EM UMA CADEIRA.

MARIA:
Vida de Maria, xingamentos a toda a
hora, trabalho pesado todo o dia, até
parece burro de carga, tapas, porradas,
murros é o que a move. No rosto, a
bochecha esfolada, a boca inchada, o
nariz arranhado, o dente partido, essa é
a vida de Maria. Não... assim não é
vida, não. Melhor seria se morresse.
Morrer é bom. Tudo acaba. Vale a pena
morrer... mas é a vida de mulher, e
mulher não tem o direito de morrer. Para
morrer, só se for louca, só se for
vadia, só se não valer nada, ai pode
morrer. Paciência, Deus tudo vê. Assim,
é o coração de Maria. Coração inchado no
peito, pesado na garganta, com um nó a
subir e descer. Lágrimas silenciosas que
secaram antes mesmo de correrem ao
rosto. Maria reprime qualquer insinuação
de revolta, veste a roupa batida, já sem
cor, e vai para o meio do roçado. Como
em um quadro a óleo, Maria aguenta os
chicotes do sol. Como que pilão, Maria
aguenta a força que se levanta em sua
direção.
(Silêncio)
O tapa no rosto a derruba no chão. Maria
rola e cala. Na quietude da roça, o pau-
de-pilão, faz tum, tum, tum. O pau-de-
pilão sobe e desce, o pau-de-pilão sobe
e desce. Maria também sobe e desce. Como
vara verde, ela enverga. E quando cai no
chão parece tomate maduro despencando do
pé, faz tum, e mancha de vermelho a
terra. O pau-de-pilão não perdoa, Maria
olha por baixo, cala e concente. Parece
máquina, a responder os comandos. O som
do pau-de-pilão é como trovão. E sobre
sua sombra, Maria é miuda. Os seios
pequenos na sombra são grandes, mas não
contentam. Maria pila. A sombra pila.
Maria para. A sombra também para. Como
criança marota a sombra imita Maria.
Na sombra da noite é ainda pior, o homem
de Maria sempre volta. A voz do trovão
assusta. A sombra cresce e abraça Maria.
(Em tom mais rápido)
(MORE)
2.
 (CONT'D)
É preciso temperar e botar no fogo a
galinha. Ferver a água, colocar um
punhado de farinha de milho, mexer,
colocar mais um punhado. Esperar um
pouquinho. Mexer até desgrudar da
panela. Servir a mesa. Tudo isso, sem
esquecer do copo d'água para beber. E
nem da bacia com água morna e toalha
limpa.
(Diminuir o rítmo)
O homem de Maria senta na cadeira, ela a
esfregar seus pés. Agora falta pouco,
ele puxa sua cabeça para junto de si.
Maria acompanha a dança. No balanço da
peneira Maria engole o choro, choro de
pássaro que não voa. Lamento calado de
bicho picado por cobra venenosa. Coração
de menina, sofrimento de mulher.
Mas lhe pergunto porquê, porquê está
vida Maria?
(Silêncio. Em tom de contação de história)

Maria era ainda criança quando foi por


sua mãe negociada. Um homem generoso
tirou sua família da miséria. Família
que Maria jamais voltou a ver. Maria não
queria. Mas mãe queria. Maria nunca
havia dormido com homens até aquele dia,
e nunca mais desejou dormir desde o dia
que o marido a possuiu. No entanto ele
queria todos os dias. Ela nada podia
fazer, ele era seu dono. Maria acordava
com dores na barriga, na cabeça, nas
ancas, no corpo inteiro. Não tinha o
direito de reclamar. Se pensava, logo
estavam as outras mulheres, a vizinha e
a cunhada a lhe falar: "boa mulher limpa
a casa, boa mulher deixa as roupas
engomadas, boa mulher faz comida boa sem
reclamar". Maria fazia tudo, mas o
marido ainda insatisfeito falava:
"preguiçosa, preguiçosa, preguiçosa,
fica em casa e nada faz". A sogra com
tudo concordava e ainda a maldita velha
acrescentava: "inútil, não vale o
dinheiro que foi gasto". Maria calava.
Um ano passou. O marido descontente
ficou. E culpava Maria pela falta de
filhos.
(Em tom conficional)
(MORE)
3.
 (CONT'D)
Maria nunca os desejou. Para que
desejar? Se fosse menino seria igual ao
pai, se fosse menina igual a Maria.
"Maria não é mulher". Maria não é mãe.
Então, o homem vinha como pau-de-pilão
e em Maria batia, por qualquer coisa,
ou por nada mesmo. Com cinto de couro,
com paus, com porrada, pontapés, com
que estava a sua frente. Maria miuda,
coitadinha, apanhava e calava. Em pouco
tempo Maria ficou velha. A vontade de
viver morreu.
A dor no corpo, não é nada perto da dor
no coração. Um coração inchado que não
cabe no peito.
Maria tu vai morrer. Maria... tu vai
morrer. É hora de tu descansar.
Naquele dia, o marido voltou do roçado,
com o suor no cabelo e o chapeu de palha
amaçado. Nos olhos o fogo do sol ardia.
A sogra como que por diverção. De Maria
fez queixa. Disse ter visto a nora, de
conversa fiada com homem no poço, onde
foi apanhar água. O fogo do sol
crepitou. O marido levantou.
Deus, aquilo não foi uma surra.
Os dentes de Maria, ele arrebentou.
"Puta" "Vadia" "Puta" "Vadia" "Puta"
"Vadia". Maria queria morrer. Faltou
pouco.
(Silêncio)
No outro dia, Maria acordou cedo, de uma
noite que não dormiu. Pegou a corda e um
machado. Parecia que ia partir lenha.
Caminhou na direção do roçado, passou
pelo capoirão, o sol, o sol da manhã a
encontrou no meio do caminho. Na beira
da estrada, uma bela cabreúva. Subiu.
Amarrou a ponta da corda no galho mais
grosso e na outra ponta o pescoço.
Depois, jogou-se. Maria ficou a
balançar. Maria morreu. Maria morreu com
uma corda tesa ao pescoço.

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