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A Batalha de Aljubarrota (Canto IV)

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"Deu sinal a trombeta Castelhana, A batalha começou ao sinal dado pela trombeta
Horrendo, fero, ingente e temeroso; do exército castelhano. Era um som terrível, que
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana meteu medo à própria natureza (o monte Artabro
Atrás tornou as ondas de medroso; estremeceu, o rio Guadiana, cheio de medo, fez
Ouviu-o o Douro e a terra Transtagana; recuar as suas águas, o rio Tejo correu para o
Correu ao mar o Tejo duvidoso; mar). O som foi ouvido por todo o país, desde o
E as mães, que o som terríbil escutaram, Rio Douro, a norte, até às terras para além do
Aos peitos os filhinhos apertaram. Tejo, «transtaganas» (o Alentejo). Também as
mães, com medo do som da trombeta, abraçaram
29 os filhos.

"Quantos rostos ali se vêem sem cor, O rosto dos combatentes encontra-se pálido, pois
Que ao coração acode o sangue amigo! o sangue afluiu todo ao coração. Muitas vezes,
Que, nos perigos grandes, o temor nos perigos grandes, o medo é maior do que o
É maior muitas vezes que o perigo; perigo em si; e, se não é maior, pelo menos
E se o não é, parece-o; que o furor parece sê-lo; porque a vontade de ofender ou
De ofender ou vencer o duro amigo vencer o inimigo faz com seja esquecido o risco
Faz não sentir que é perda grande e rara, de ser ferido («perder os membros corporais») ou
Dos membros corporais, da vida cara. mesmo de perder a vida.

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"Começa-se a travar a incerta guerra; Começa-se a travar a batalha.


De ambas partes se move a primeira ala; Tanto do lado dos portugueses como do lado dos
Uns leva a defensão da própria terra, castelhanos avança a primeira ala. Os portugueses
Outros as esperanças de ganhá-la; querem defender a sua terra; os castelhanos querem
conquistar Portugal para a coroa espanhola.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Logo se chega à frente Nuno Álvares Pereira,
Todo o valor, primeiro se assinala: guerreiro cheio de valor; derruba os castelhanos,
Derriba, e encontra, e a terra enfim semeia enfrenta-os, e semeia a terra dos corpos daqueles que
Dos que a tanto desejam, sendo alheia. tanto queriam conquistar Portugal.

"Já pelo espesso ar os estridentes Pelo ar voam lanças, setas; a terra treme sob os cascos
Farpões, setas e vários tiros voam; dos cavalos, soam pelos vales os terríveis sons da
Debaixo dos pés duros dos ardentes batalha; as lanças despedaçam-se e o som dos
Cavalos treme a terra, os vales soam; soldados a cair com as armas é estrondoso.
Os inimigos, mais numerosos que as tropas de Nuno
Espedaçam-se as lanças; e as frequentes
Álvares Pereira, crescem sobre as tropas portuguesas
Quedas coas duras armas, tudo atroam; que, contudo, se batem bravamente e conseguem
Recrescem os imigos sobre a pouca travar os seus ímpetos.
Gente do fero Nuno, que os apouca.
Os irmãos de D. Nuno Álvares Pereira batem-se pelos
32 castelhanos, no campo contrário; tal facto é «feio e
"Eis ali seus irmãos contra ele vão, cruel», mas não é de espantar, pois para quem é capaz
(Caso feio e cruel!) mas não se espanta, de lutar contra o Rei e a Pátria, também é capaz de
Que menos é querer matar o irmão, lutar contra os próprios irmãos («menos é querer
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta: matar o irmão/Quem contra o Rei e a Pátria se
Destes arrenegados muitos são alevanta»):
No primeiro esquadrão dos castelhanos há muitos
No primeiro esquadrão, que se adianta
destes «arrenegados» que se voltaram contra a Pátria
Contra irmãos e parentes (caso estranho!) e agora atacam os irmãos e parentes que lutam do lado
Quais nas guerras civis de Júlio e Magno. dos Portugueses, como aconteceu nas guerras civis da
Antiguidade.
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Ó Sertório, ó Coriolano, ó Catilina, e todos os
"Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano, outros que traístes as vossas pátrias e vos fizestes
Catilina, e vós outros dos antigos, inimigos delas, se estais no Inferno a ser
Que contra vossas pátrias, com profano castigados por isso, dizei por lá que também entre
Coração, vos fizestes inimigos, os Portugueses houve traidores.
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algumas vezes.

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Um enorme número de inimigos atacam a
"Rompem-se aqui dos nossos os primeiros, primeira fila dos nossos soldados, e estes não
Tantos dos inimigos a eles vão! resistem e tombam.
Está ali Nuno, qual pelos outeiros Está ali Nuno Álvares Pereira que é comparável a
De Ceita está o fortíssimo leão, um bravo leão de Ceuta que se vê cercado pelos
Que cercado se vê dos cavaleiros cavaleiros que percorrem os campos de Tetuão,
Que os campos vão correr de Tetuão: no norte de África; os cavaleiros perseguem-no
Perseguem-no com as lanças, e ele iroso, com lanças, e ele, furioso, está inquieto, mas não
Torvado um pouco está, mas não medroso. tem medo.

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Não os consegue ver bem, mas o seu carácter
"Com torva vista os vê, mas a natura valente e a fúria fazem com que ele não fuja, mas
Ferina e a ira não lhe compadecem sim que se atire para o meio das lanças inimigas,
Que as costas dê, mas antes na espessura que são muitas e parecem ser cada vez mais (que
Das lanças se arremessa, que recrescem. recrescem); assim está o cavaleiro Nuno, que vai
Tal está o cavaleiro, que a verdura matando e ferindo os inimigos; estes, quando
Tinge co'o sangue alheio; ali perecem caem, vão colorindo o solo verde de sangue; ali
Alguns dos seus, que o ânimo valente morrem também alguns dos portugueses, pois,
Perde a virtude contra tanta gente. apesar de serem valentes, não conseguiram
resistir a tantos inimigos.
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D. João, Mestre de Avis, apercebeu-se das dif
"Sentiu Joane a afronta que passava iculdades por que estava a passar Nuno Álvares –
Nuno, que, como sábio capitão, este, como capitão, via tudo o que se estava a passar e
Tudo corria e via, e a todos dava, dava coragem - «coração»- às tropas com a sua
presença e as suas palavras.
Com presença e palavras, coração.
D. João fazia lembrar uma leoa que, tendo tido
Qual parida leoa, fera e brava, leõezinhos recentemente, quando sente que um pastor
Que os filhos que no ninho sós estão, lhe roubava os filhos enquanto procurava comida para
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara, lhes dar, fica feroz e brava;
O pastor de Massília lhos furtara;

37 E corre raivosa, tremendo, e os seus rugidos abalam


os Montes Sete irmãos:
"Corre raivosa, e freme, e com bramidos Assim faz D.João, que com alguns soldados
Os montes Sete Irmãos atroa e abala: escolhidos de entre as suas tropas, corre até à primeira
Tal Joane, com outros escolhidos ala (isto é, à primeira fileira de homens); e diz:
Dos seus, correndo acode à primeira ala: «- Ó fortes companheiros, ó ilustres Cavaleiros, a
quem ninguém se pode comparar, defendei as vossas
-"Ó fortes companheiros, ó subidos
terras, defendei Portugal, pois esperança de ficarmos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala, livres do domínio castelhano está na vossa lança e nas
Defendei vossas terras, que a esperança vossas mãos.
Da liberdade está na vossa lança.

«-Aqui estou eu, vosso Rei e vosso companheiro


38 de armas, que corro entre as lanças, as setas e os
escudos dos inimigos e sou o primeiro a avançar
-"Vedes-me aqui, Rei vosso, e companheiro, contra o inimigo; e faço-vos um apelo: lutai,
Que entre as lanças, e setas, e os arneses verdadeiros Portugueses!»-
Dos inimigos corro e vou primeiro: Isto disse o bom guerreiro e, depois de avaliar o
Pelejai, verdadeiros Portugueses!"- peso da sua lança quatro vezes, atira-a com força;
Isto disse o magnânimo guerreiro, e, com este único tiro, consegue matar muitos
E, sopesando a lança quatro vezes, inimigos («único tiro, /Muitos lançaram o último
Com força tira; e, deste único tiro, suspiro.»)
Muitos lançaram o último suspiro.

39 Os Portugueses envergonham-se por estarem a


fraquejar e enchem-se de uma nova força,
"Porque eis os seus acesos novamente competindo entre si para ver qual conseguirá
Duma nobre vergonha e honroso fogo, enfrentar mais perigos da guerra («Márcio
Sobre qual mais com ânimo valente jogo»), qual será o mais valente: o sangue tinge
Perigos vencerá do Márcio jogo, as lanças, que rompem as malhas e rasgam os
Porfiam: tinge o ferro o sangue ardente; peitos: tanto ferem como são feridos, e não ligam,
Rompem malhas primeiro, e peitos logo: parecem pessoas que já não têm medo de morrer.
Assim recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.

40 Os Portugueses matam muitos ( « A muitos


mandam ver o Estígio lago»): de entre os
"A muitos mandam ver o Estígio lago, castelhanos, morre o Mestre(chefe) da Ordem de
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava: Santiago, que lutava bravamente; morre também
O Mestre morre ali de Santiago, o cruel Mestre da Ordem de Calatrava, e a sua
Que fortíssimamente pelejava; morte afecta muito as tropas inimigas; morrem
Morre também, fazendo grande estrago, também os irmãos de Nuno Álvares Pereira,
Outro Mestre cruel de Calatrava; amaldiçoando o Céu e o destino.
Os Pereiras também arrenegados
Morrem, arrenegando o Céu e os fados.

41 Morrem também muitos soldados do Povo, e


também muitos nobres.
"Muitos também do vulgo vil sem nome
Vão, e também dos nobres, ao profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome E assim, foi derrotada a vaidade («soberba») dos
Tem das almas que passam deste mundo. castelhanos; e a grandiosa bandeira Castelhana
E porque mais aqui se amanse e dome caiu aos pés da bandeira Portuguesa.
A soberba do amigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derribada aos pés da Lusitana.

42 Neste momento, torna-se mais cruel a feroz


batalha, com mortes, gritos, sangue e golpes de
"Aqui a fera batalha se encruece espada; a multidão de gente que morre tem as
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas; faces pálidas; alguns fogem («as costas dão»),
A multidão da gente que perece outros morrem; começa a fraquejar a fúria e e é
Tem as flores da própria cor mudadas; demasiado o esforço; o rei de Castela vê-se
Já as costas dão e as vidas; já falece vencido, e vê desaparecer as suas hipóteses de ser
O furor e sobejam as lançadas; Rei de Portugal.
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê, e de seu propósito mudado.
43 A pouco e pouco, o Rei de Castela manda as suas
tropas dispersar, contente por não ter morrido.
"O campo vai deixando ao vencedor, Seguem-no os que sobreviveram e o medo faz
Contente de lhe não deixar a vida. com que fujam muito depressa, parecendo que
Seguem-no os que ficaram, e o temor têm asas nos pés. Sofrem muito pelos que
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida. morreram, pelo dinheiro gasto, pela tristeza,
Encobrem no profundo peito a dor desonra e pelo desgosto de serem vencidos.
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra, e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.

44 Alguns vão dizendo mal da primeira pessoa que


se lembrou de fazer a guerra, outros vão culpando
"Alguns vão maldizendo e blasfemando por aquela desgraça a ambição de conquistar o
Do primeiro que guerra fez no mundo; que é de outras pessoas; essa ambição é a culpada
Outros a sede dura vão culpando de se ter arriscado o Povo à morte
Do peito cobiçoso e sitibundo, e de tantas mães e esposas terem perdido o seu
Que, por tomar o alheio, o miserando maridos e os seus filhos.
Povo aventura às penas do profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas
Sem filhos, sem maridos, desditosas.

45 D, João, Mestre de Avis, seguiu os costumes e


esteve muitos dias no local da batalha a festejar e
"O vencedor Joane esteve os dias a agradecer a Deus a sua vitória.
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas depois, e romarias, D. Nuno Álvares Pereira só quer ser recordado
As graças deu a quem lhe deu vitória. pelas pessoas por causa dos seus feitos guerreiros
Mas Nuno, que não quer por outras vias e por isso parte para o Alentejo
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas,
Para as terras se passa Transtaganas.

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