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gil vicente

auto da barca
do inferno
A estrutura narrativa e dramática
Cena I – Anjo, Diabo, Companheiro (vv. 1-22)
O Diabo dialoga com o Companheiro, ordenando-lhe que apronte a barca para a

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partida. Esta é festivamente embandeirada porque Satanás prevê o transporte de
grande número de condenados.

Cena II – Os mesmos, Fidalgo, Pajem (vv. 23-182)


Entra o Fidalgo, D. Anrique, seguido de um pajem que lhe segura a cauda do
manto e lhe transporta uma cadeira de espaldas. Entende que não pode ir para o
Inferno não só pela sua nobreza mas porque sabe que a esposa e a amante muito
hão de rezar pela salvação da sua alma. Perante a insistência do Diabo, que entende
o contrário, aproxima-se da barca do Paraíso, mas o Anjo repele-o por ter sido vai-
doso, tirano e ter desprezado o povo. O Fidalgo regressa então à barca do Inferno,
onde o Diabo lhe revela que tanto a amante como a mulher o atraiçoaram em vida e
sentiam-se agora imensamente felizes nos braços dos seus amantes. O Fidalgo,
cabisbaixo e acabrunhado, entra na barca infernal e o moço, simples elemento
ornamental e distintivo, abandona o estrado.

Cena III – Os mesmos (exceto o Pajem), Onzeneiro (vv. 183-249)


Surge um Onzeneiro (usurário), que o Diabo imediatamente convida a entrar na
sua barca. Aquele recusa o convite e dirige-se para a barca da Glória, onde o Anjo o
não acolhe por ter passado toda a vida a amealhar dinheiro. O Onzeneiro ainda roga
ao Diabo que o deixe voltar de novo à vida para ir buscar os cruzados que deixou
escondidos no fundo de uma arca, mas o Diabo fá-lo embarcar, indo assim fazer
companhia ao Fidalgo.

Cena IV – Os mesmos, Joane (Parvo) (vv. 250-309)


Segue-se um Parvo, Joane, que, após ter dialogado e insultado o Diabo, é aco-
lhido pelo Anjo que se compromete a levá-lo para o Paraíso, atendendo à sua irres-
ponsabilidade. Entretanto, fica no cais à espera de companheiros.

Cena V – Os mesmos, Sapateiro (vv. 310-369)


Apresenta-se no cais João Antão, um Sapateiro carregado de formas, a quem o
Diabo condena à barca do Inferno por ter roubado o povo. Aquele dirige-se à barca
do Paraíso, onde o Anjo não o deixa entrar pelo mesmo motivo. Sem qualquer outra
alternativa, o Sapateiro instala-se na caravela diabólica.

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Cena VI – Os mesmos, Frade, Moça (vv. 370-485)
Surge um Frade, Frei Babriel, a bailar e a dançar, que traz a amante pela mão. O
Diabo convida-o a entrar na sua barca por viver amancebado, mas o Frade não se
convence, pois confia na sua condição sacerdotal. Seguidamente, para demonstrar
ao Diabo que é bom esgrimista, faz uma demonstração. Finda a lição de esgrima, o
Frade e a sua amásia Florença dirigem-se à embarcação angelical onde não são
admitidos. Convencem-se, finalmente, de que o lugar de ambos é na barca dos
danados.

Cena VII – Os mesmos, Alcoviteira, Moças (vv. 486-565)


Sobrevém Brízida Vaz, uma Alcoviteira, que, apesar de ter passado a vida a pros-
tituir moças, ainda pretende ir para o Céu, como recompensa dos muitos açoites
que a Justiça lhe infligiu. Tenta penetrar na embarcação celestial sob a alegação de
ter praticado muitos atos religiosos, mas acaba por ter a mesma sorte dos restan-
tes: sentar-se num dos bancos da barca da perdição.

Cena VIII – Os mesmos, Judeu (vv. 566-613)


Aparece um Judeu com um bode às costas e, após renhida discussão sobre o
embarque do animal, tenta instalar-se no batel demoníaco. Contudo, irão ambos à
toa (a reboque), conforme decidiu o Diabo.

Cena IX – Os mesmos, Corregedor, Procurador (vv. 614-762)


Um Corregedor, carregado de processos, dialoga com o Diabo em latim macar-
rónico e é acusado por este de se ter deixado subornar com vários presentes e de
ter enriquecido à custa do suor dos lavradores. Junta-se-lhe um Procurador, que
vem carregado de livros e que faleceu sem se ter confessado. Pedem ambos acolhi-
mento na barca dos eleitos, mas acabam por se acomodar na embarcação dos con-
denados, onde o Corregedor tem um breve diálogo azedo com Brízida Vaz, a quem
julgou e condenou em vida.

Cena X – Os mesmos, Enforcado (vv. 763-834)


Segue-se um ladrão, condenado à forca e a quem Garcia Moniz (tesoureiro da
casa da Moeda de Lisboa) convencera de que iria direito ao Paraíso por já se ter pu-
rificado dos seus crimes no purgatório do Limoeiro (prisão). Convencido e desiludido
pelo Diabo, não tem outro remédio senão tomar o transporte destinado ao Inferno.

Cena XI – Os mesmos, quatro Cavaleiros (vv. 835-871)


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Apresentam-se quatro cavaleiros da Ordem de Cristo, mortos a combater os


Mouros no Norte de África e que, por esse motivo, ocupam triunfalmente o seu
lugar na barca da Glória.

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Cena I
Anjo, Diabo, Companheiro. (vv. 1-22)

O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um

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Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e ~
ua cadeira de espal-
das. E começa o Arrais do Inferno desta maneira ante que o
Fidalgo venha;

À barca, à barca, oulá!,


que temos gentil maré!
Ora venha o carro à ré!
Comp. Feito, feito!

Arrais do Inferno – Numa edição castelhana, traduzida, aumentada e refundida pelo próprio Gil Vicente, im-
pressa em Burgos, em 1539, o Companheiro do Diabo chama-se Caronte: "Entran el Diablo y el barquero del
infierno, llamado Caron" (Ed. cit. de Paulo Quintela, p. 203).
v. 2 – "porque temos boa maré" (Marques Braga).
v. 3 – Para a compreensão deste verso leia-se a seguinte explicação de Henrique Lopes de Mendonça: "Se são
caravelas portuguesas autênticas, devem ter velas triangulares envergadas numa antena, a qual tem movi-
mento em torno do ponto onde se achega ao mastro, como sobre um fulcro (evito quanto possível os termos
técnicos, para melhor compreensão dos profanos). A parte anterior e inferior desta antena mais curta e mais
grossa do que a parte posterior e superior é que se denomina o carro. Este carro desloca-se para ré, ou para
vante, conforme a inclinação que se deseja dar à antena. Vindo para ré, aproxima mais a antena da vertical do
mastro, e eleva por conseguinte a extremidade superior, o lais, onde se fixa o vértice da vela. É a manobra que
o arrais infernal manda fazer ao companheiro, e cuja execução completa ele próprio certifica mais abaixo (v.
22), exclamando: "Verga alta, âncora a pique" e indicando assim que a caravela fica pronta a sarpar." (Revista
Lusitana, vol. XV, 1912, p. 275). Mas a manobra de fazer vir o carro à ré não era só utilizada para virar o barco:
"Também conviria executar esta manobra de fazer o carro, como preparativo de viagem, estando o barco atra-
cado a terra, ou fundeado, caso se verificasse que o vento, na derrota a empreender, exigia a mareação da
verga noutra amurada, antes da vela ser caçada. É o que supôs Gil Vicente, estabelecendo, para melhor efeito
cénico, as manobras a executar, e fazendo que o Diabo enunciasse as respetivas ordens." (Quirino da Fonseca,
Gil Vicente, Vida e Obra, Lisboa, 1939, p. 510).

Variantes
v. 3 – “ora venha a caro a ré”, B, C.
v. 4 – “Feito, feito, bem está”, B, C.

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Dia. Bem está!
Vai tu, muitieramá, 5
atesa aquele palanco
e despeja aquele banco,
pera a gente que virá.

À barca, à barca, hu!


Asinha, que se quer ir! 10
Ó que tempo de partir,
louvores a Berzebu!
Ora, sus!, que fazes tu?
Despeja todo esse leito.
Comp. Em bonora: logo é feito. 15
Dia. Abaixa aramá esse cu!

Faze aquela poja lesta

v. 5 – muitieramá: em hora má, muito na má hora.


v. 6 – atesar: esticar, esticar o que estava froixo; palanco: corda presa na vela e que serve para a içar.
v. 10 – asinha: depressa.
v. 11 – "ó que magnífica monção!" (Marques Braga).
v. 12 – Berzebu: "sem atribuições definidas, talvez como porteiro do reino de Lúcifer" (Carolina Michaëlis, obr.
e ed. cits., p. 384).
v. 13 – sus! (interj.) eia! "interjeição de incitamento, própria para fazer erguer o ânimo ou o corpo" (Costa
Pimpão): Eia! Coragem! Ânimo! Avante! Acima!
v. 14 – leito: "o espaço compreendido entre o mastro grande e a popa" (Marques Braga).
v. 15 – bonora: boa hora.
v. 16 – aramá!: em hora má. Todo este verso significa, segundo Marques Braga, "trabalha com cuidado!".
v. 17 – poja: "cabo para fixar o 'carro' na verga. Esticava-se ou folgava-se conforme os ventos" (A. J. Saraiva);
lesto: aliviado, desembaraçado, frouxo.

Variantes
v. 5 – “Vai ali muitieramá”, B, C.
v. 15 – “Em boa hora! Feito, feito!”, A.
v. 16 – “Abaxa má-hora esse cu!”, A.
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