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Da comunicação

crítica
à educação:
a importância dos
estudos de recepção1
Maria Aparecida Baccega
Coordenadora adjunta do Programa de Mestrado Comunicação e Práticas de Consumo,
da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo. Professora Livre-Docente
aposentada do Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP.
E-mail: mabga@usp.br
Margaret de Oliveira Guimarães
Diretora Pedagógica da Escola de Educação Infantil e
Ensino Fundamental Albert Sabin, em Ribeirão Preto.
E-mail: guimapitta@hotmail.com

As pesquisas sistemáticas de comunicação iniciaram-se na década de 1920,


nos Estados Unidos, e têm desde então se desenvolvido celeremente, tendo
em vista a complexidade e a importância do fenômeno. O pólo da emissão foi
largamente privilegiado na maior parte desse trajeto.
A concepção segundo a qual o receptor era um vaso onde se despejavam
regras, que redundavam em comportamento adequado às mensagens emitidas,
vigorou durante décadas.
Sobretudo a partir dos anos 1970, no entanto, a recepção começa a ser
concebida como ativa, admitindo-se a participação dos sujeitos na reconstrução
dos significados das mensagens. Se antes os estudos e pesquisas de comunicação
já interessavam à escola, na atualidade essa nova perspectiva abriu caminhos
importantes para os que trabalham com educação.
Que pretende o professor senão comunicar-se? E de que modo ele concebe
o aluno: como um receptor passivo, vaso onde se depositam regras que lhe
serão cobradas como únicas possíveis, ou como um receptor ativo, que é capaz
de reelaborar, de ser co-autor dos significados das mensagens?
A opção por uma dessas duas concepções estrutura caminhos díspares para
o processo educacional. No caso da primeira – o receptor passivo –, temos a
educação autoritária que ainda vige em grande parte das escolas; no caso da 1. Crítica do livro de Ana
Carolina Escosteguy e
segunda – o receptor ativo –, há o processo educacional permeado pelo diálogo, Nilda Jacks, Comunicação
pelo construir juntos de professores e alunos, o que resulta numa educação de- e recepção, São Paulo:
Hacker Editores, 2005,
mocrática, aberta, e que possibilita ao aluno reconstruir o mundo em que vive. 128 p.

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Quando falamos em comunicação, não estamos tratando apenas daquela


veiculada pelos suportes tecnológicos (chamados meios de comunicação, mídia),
embora os consideremos de extrema importância na atualidade, configurando-
se, inclusive, como destacados editores de realidades. Comunicação é interação
entre sujeitos que, para tanto, podem utilizar-se predominantemente – e às vezes
tão-somente – do mais democrático de todos os suportes: o aparelho fonador.
As feiras, a literatura de cordel, o circo, o teatro, o folhetim, o carnaval, entre
muitas outros, configuram-se como comunicação e constituem as matrizes histó-
ricas dos produtos dos meios de comunicação, tal qual os conhecemos hoje.
Para que haja comunicação, é preciso que os interlocutores tenham uma
memória comum, participem de uma mesma cultura, pois são as referências
que vão traçando percursos de leitura. Por isso dizemos que a comunicação
está imersa na cultura. É uma prática cultural que produz significados, ou
seja, a partir do que está e já é naquela cultura, ressemantizam-se os significados
em cada ato de comunicação. Implica sempre emissão e recepção, resultando
na construção de sentidos novos, renovados – ou sentidos reconfigurados –,
produzidos nesse encontro. Cada produto, cada programa dos meios de co-
municação, será produzido e interpretado, entendido a partir dessa memória
comum, dessas referências culturais.
O receptor–sujeito vai ressignificar o que ouve, vê ou lê, apropriar-se
daquilo a partir de sua cultura, do universo de sua classe, para incorporar ou
não a suas práticas.
Hoje se sabe que os receptores se tornam co-produtores do produto cul-
tural. São eles que o (re)vestem de significado, possibilitando a atualização de
leituras, o rompimento de caminhos preestabelecidos de significados, a abertura
de trilhas que poderão desaguar em reformulações culturais.
A recepção, como ato cultural, desempenha importante papel na construção
da realidade social. Daí a importância de seu estudo. Através desses estudos
podemos descobrir quais são os processos reais que resultam do encontro dos
discursos dos meios de comunicação apropriados (transitoriamente) ou incor-
porados (com permanência na cultura) pelos sujeitos–receptores imersos em
suas práticas culturais.
Os estudos de recepção estão preocupados com as características sociocul-
turais dos receptores. Desse modo, o foco se desloca para as práticas sociais e
culturais mais amplas, nas quais eles estão integrados. É nesse espaço que se
estudará a ressignificação que os receptores produzem com relação aos produtos
dos meios de comunicação, ao entendimento das mensagens. É nesse espaço que
ocorre o processo educacional.

EXPLORANDO A ROTA DOS ESTUDOS


DE COMUNICAÇÃO/RECEPÇÃO
Buscando conhecer quem é, qual o lugar e qual a ação do sujeito–receptor
no processo comunicacional, surge o trabalho de Nilda Jacks e Ana Carolina

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Escosteguy (Comunicação e recepção, São Paulo, Hacker Editores, 2005, 128 p.), que
oferece a pesquisadores da área, a educadores e a todos aqueles que se interessam
pelo tema uma reconstrução histórica do espaço conceitual e metodológico da
recepção, a partir de um mapeamento teórico capaz de organizar, respeitando
uma ordem cronológica, os paradigmas que nortearam os estudos da comu-
nicação que marcaram o século XX.
As autoras abrem a reflexão sobre
o tema sugerindo, logo na introdução
do trabalho, a superposição dos dois
campos de estudo que nomeiam o
trabalho: a comunicação e a recepção.
Para Jacks e Escosteguy, pensar a comu-
nicação e a recepção é estabelecer uma
relação de dois diferentes fenômenos
que compõem um mesmo processo, já
que a recepção é parte intrínseca da
comunicação.
Ainda que se considere essa re-
lação indissociável, as pesquisadoras
se dispõem a discutir outro problema
teórico: a adequação do termo recep-
ção para nomear as relações que os
indivíduos mantêm com os meios de
comunicação, sobretudo no âmbito
das pesquisas desenvolvidas nos meios
acadêmicos que ainda conservam mo-
delos teóricos para os quais os consumidores das mensagens mediáticas são
receptáculos passivos.
Nesse sentido é que o corpo de todo o trabalho de Jacks e Escosteguy
compõe uma estrutura na qual se apresenta um mapeamento de perspectivas
teóricas e metodológicas que possibilita a compreensão das formas como as
pesquisas em comunicação nasceram e evoluíram.
Abrindo o primeiro capítulo, o texto apresenta, de forma criteriosa e abran-
gente, a classificação teórica adotada pela tradição internacional, a partir das
contribuições de Jensen e Rosengren2, a qual teve forte divulgação no contexto
latino-americano. Nessa classificação, inclui-se a teoria dos efeitos – geradora
das primeiras pesquisas em comunicação, na década de 1920: cenário em que a
maior preocupação era a propaganda política, a opinião pública e as campanhas
publicitárias. Ao lado desse postulado teórico, discute-se outra perspectiva, a dos 2. JENSEN, K. B.; ROSEN-
usos e gratificações, segundo a qual os membros da audiência eram conscientes GREN, E. Five traditions
in search of the audience
de necessidades relacionadas aos meios de comunicação; pressupunha-se, a partir (Cinco tradições em busca
de uma audiência). Euro-
de então, a existência de uma audiência ativa. Tal questão é bem esclarecida pean Journal of Commu-
pelas autoras adiante, à página 56 do referido livro. nication, v. 5, 1990.

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Ainda nesse primeiro capítulo, Jacks e Escosteguy apresentam a corrente


dos estudos literários – um olhar sobre a audiência inscrita no texto –, em que
se encontra a estética da recepção. Jauss, Iser e Gumbrecht são os estudiosos
que se destacam.
Jauss tem entre suas principais teses
[...] a de que o fato primordial da história da literatura é a relação dialógica entre
leitor e obra, ou seja, o leitor de cada época é quem atualiza a historicidade da
obra, a qual de certa maneira predetermina a recepção, oferecendo orientações
a seu destinatário, porque ela evoca “o horizonte de expectativas” e as regras do
jogo familiares ao leitor. Cada leitor pode reagir individualmente a um texto,
mas a recepção é um fato social, uma medida comum localizada entre essas
reações particulares; portanto, nessa perspectiva, a inclusão do contexto passa a
ser central3.

Também para os estudos culturais, campo de cruzamento de diversas


disciplinas que permitiram a combinação da pesquisa textual com a social, a
pesquisa de comunicação não deve se restringir aos meios, mas buscar as rela-
ções entre textos, grupos sociais e contexto, ou seja, “entre práticas simbólicas
e estruturas de poder”4, diferindo dos estudos literários pela relevância que dá
aos usos dos meios e à posição social ocupada pelos leitores.
Nesse contexto, apontam as autoras, era possível assistir a dois movimentos
relevantes na evolução das pesquisas de campo: por um lado, a comunicação
de massa passa a ser vista como parte integrante das demais práticas da vida
diária; por outro, dá-se ênfase maior à posição ocupada pelos receptores. Sur-
gem, assim, as primeiras perspectivas dos estudos de recepção com os contornos
que conhecemos hoje.
No capítulo 2, Jacks e Escosteguy esboçam as configurações das pro-
duções teóricas da América Latina que se voltavam para sua própria rea-
lidade. A partir dos anos 1980, no cenário latino-americano, enfatizam as
autoras, as pesquisas em comunicação começam a revelar sinais de mu-
dança, explicados tanto pelas reflexões pertinentes ao próprio campo da
comunicação como às ciências sociais em geral. Há de se acrescentar a isso
que a proposta da recepção ativa encontra seu desenho na concepção do
receptor como produtor de sentido. Ou seja: ele é também autor da obra.
Ao conceber os usos dos meios como inalienáveis da situação sociocultural
dos receptores que “reelaboram, ressignificam e ressemantizam os conteúdos mas-
sivos”5, Jacks e Escosteguy retomam o debate de Martín-Barbero responsável pela
difusão do conceito de mediação: outra abordagem do processo comunicativo.
Sobreleva-se a dobradinha Martín-Barbero & García Canclini, além de Oro-
zco Gómez, cujas contribuições são bastante elucidadas pelas autoras, incluindo
a distinção entre estudos dos efeitos e estudos de recepção6.
3. ESCOSTEGUY e JACKS
op. cit., p. 36.
Dizem as autoras:
4. Ibid., p. 39. No entanto, para a pesquisa latino-americana chegar a essa posição de destaque,
5. Ibid., p. 66. Guillermo Orozco avalia que ela passou por “um parto longo e difícil. Longo
6. Ibid., p. 56. porque foram necessários vários anos para desvincular-se da racionalidade própria

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dos estudos dos efeitos [...]”. Difícil, porque os estudos de recepção tiveram que
construir uma legitimidade científica a “ferro e fogo” e sobreviver em um “campo
minado” por outras correntes de pensamento7.

O capítulo subdivide-se em Consumo cultural, destacando a contribuição de


García Canclini; Frentes culturais, que trata da colaboração de Jorge Gonzalez;
Recepção ativa, retomando as propostas do CENECA (Centro de Indagación y
Expressión Cultural y Artística, do Chile), liderado por Valério Fuenzalida e
Maria Elena Hermosilla, entre outros; Uso social dos meios,
[...] uma concepção de Martín-Barbero para entender a relação entre receptores e
meios, que parte dos estudos das articulações entre as práticas de comunicação e
os movimentos sociais, observando as diferentes temporalidades e as pluralidades
de matrizes culturais, constituindo-se, portanto, num possível desenvolvimento de
sua formulação maior, a perspectiva das mediações8,

trazendo à boca de cena o livro Dos meios


às mediações 9, de Jesús Martín-Barbero, sem
dúvida um marco nas pesquisas de comuni-
cação em todo o mundo.
Modelo das multimediações é outra subdivi-
são do capítulo 2. Aí se destaca, sobretudo,
Guillermo Orozco Gómez, sendo também ava-
liadas as contribuições de Maria Immacolata
Vassalo de Lopes e de Guillermo Sunkel; e,
finalmente, a última subdivisão – Outras contri-
buições –, que as autoras reservaram para os vá-
rios aportes da América Latina, entre os quais
Rosário Sanchez Vilela, Maria Teresa Quiróz,
Florência Saintout, Beatriz Sarlo, Maria Cristi-
7. OROZCO GÓMEZ,
na da Mata, Alejandro Grimson, Marta Vilela. Guillermo. Recepción y
A trajetória brasileira, que ocupa as reflexões apresentadas no terceiro mediaciones. Casos de
investigación en comuni-
capítulo, é marcada pelo interesse voltado para o sujeito–receptor e fecha o cación en América Latina
(Recepção e mediação.
debate apresentado, reiterando a idéia de que a importância da cultura deriva Casos de investigação em
do fato de que ela constitui a estrutura e a história. Assim, de acordo com as comunicação na Améri-
ca Latina). Buenos Aires:
autoras, “não se escolhe entre o fator econômico ou o ideológico, mas se deve Norma, 2002. p. 15. Ci-
construir uma proposta dialética e flexível de análise das práticas culturais”10. tado em ESCOSTEGUY &
JACKS, op. cit., p. 56.
Nessa concepção dialética é que entendemos poder encontrar as respostas
8. ESCOSTEGUY e JACKS,
aos questionamentos iniciais, buscando a recepção como lugar do sujeito da op. cit., p. 65.
sociedade global. 9. MARTÍN-BARBERO,
São apresentadas as várias contribuições de pesquisadores brasileiros, entre Jesús. Dos meios às me-
diações: comunicação, cul-
os quais Maria Immacolata Vassalo de Lopes, Mauro Wilton de Sousa, Eclea tura e hegemonia. 2. ed.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2003.
Bosi, Ondina Fachel, Elza Dias Pacheco, Rosa Maria Bueno Fischer, em varia- 369 p.
dos momentos. Além das próprias autoras do livro, que se têm destacado pela 10. ESCOSTEGUY e JA-
contribuição oferecida a esses estudos. CKS, op. cit., p. 94.

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Ao final do capítulo 3, afirmam as autoras:


Retomando os ensinamentos de Martín-Barbero, estudar a recepção implica o
questionamento do modelo comportamental que centraliza a ação no emissor;
dessa forma, pesquisá-la é posicionar-se num lugar a partir do qual se deve re-
pensar o processo inteiro da comunicação, inclusive repercutindo na reflexão de
uma epistemologia da comunicação11.

Comunicação e recepção é leitura obrigatória àqueles que se aventuram a


alinhavar os contornos da cultura contemporânea e dos processos identitários
dos cidadãos do mundo global que, como sabemos, têm na comunicação um
dos mais importantes pilares de sustentação. Também, para todos os que traba-
lhamos com educação, pois possibilita-nos conhecer melhor o caminho que nos
leva a perceber que o conteúdo de nossas aulas só significa no território que se
forma no encontro com o universo cultural do aluno. E que ele é, sobretudo,
um sujeito–receptor, bastante ativo.

Resumo: O artigo analisa o livro de Nilda Abstract: The article analyses the book
Jacks e Ana Carolina Escosteguy – Co- written by Nilda Jacks and Ana Carolina Es-
municação e recepção – que, buscando costeguy – Comunicação e recepção (Com-
conhecer quem é, qual o lugar e qual munications and reception). In search for the
a ação do sujeito–receptor no processo identity, the place and action of the recep-
comunicacional, oferecem a pesquisadores tor subject in the communication process,
da área, a educadores e a todos aqueles Jacks and Escosteguy offer to researchers,
que se interessam pelo tema uma recons- educators and to all people interested on
trução histórica do espaço conceitual e this issue a historical reconstruction of the
metodológico da recepção, a partir de um conceptual and methodological spaces
mapeamento teórico capaz de organizar, of reception. From a theoretical analysis,
respeitando uma ordem cronológica, os always respecting chronological order,
paradigmas que nortearam os estudos they organize the paradigms that guided
da comunicação que marcaram o século main communication studies in the XXth
XX. São apresentadas também as várias century. Several contributions of Brazilian
contribuições de pesquisadores brasileiros, researchers – Maria Immacolata Vassalo de
entre os quais Maria Immacolata Vassalo de Lopes, Mauro Wilton de Sousa, Eclea Bosi,
Lopes, Mauro Wilton de Sousa, Eclea Bosi, Ondina Fachel, Elza Dias Pacheco, Rosa
Ondina Fachel, Elza Dias Pacheco, Rosa Ma- Maria Bueno Fischer –, are also presented
ria Bueno Fischer, em variados momentos. in various moments.
Palavras-chave: crítica, mediações, estudos Keywords: criticism, mediations, media
de recepção, comunicação de massa, reception studies, mass communication,
educação. education.

11. Ibid., p. 96.

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