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CDU 332.135
XIV Congresso Internacional do Fórum Universitário Mercosul - FoMerco
De 23 a 25 de outubro de 2013.
Universidade Federal de Tocantins – Palmas – Brasil
O XIV Congresso Internacional do Fórum Universitário Mercosul - FoMerco foi viabilizado mediante
uma estreita cooperaçao institucional plurinacional. A Comissão Coordenadora foi formada por duas
Comissões Organizadoras, a geral e a local, composta pelos membros do Programa de Pós-graduação
em Desenvolvimento Regional da Universidade Federal de Tocantins – UFT. É também composta por
membros de notável saber presentes em uma Comissão Científica, uma Editorial e uma Financeira.
Conta ainda com a coordenação dos Eixos de Trabalho, responsável pela atividade de encontros de
grupos de pesquisa que ocorre a cada dois anos nos Congressos do FoMerco.
Comissão Coordenadora
Comissão Organizadora
Comissão Organizadora Local - UFT
Mestrado em Desenvolvimento Regional
Ingrid Sarti (UFRJ)
Beatriz Bissio (UFRJ) Mônica Aparecida da Rocha Silva
Emanuel Porcelli (UBA) Alex Pizzio da Silva
Franklin Trein (UFRJ) Cynthia Mara Miranda
Gizlene Neder (UFF) Temis Gomes Parente
Glauber Carvalho (UFRJ-Centro Celso Furtado) Waldecy Rodrigues
José Renato Vieira Martins (Unila) Thelma Lage
Mônica Leite Lessa (UERJ)
Raphael Padula (UFRJ)
Williams Gonçalves (UERJ)
(Gestão 2011-2013)
Presidenta
Ingrid Sarti (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ)
Vice-presidente
José Briceño-Ruiz (Universidad de Los Andes, Merida, Vnz)
Conselho Consultivo
Membros Efetivos
Frederico Katz (UFPE)
Karina P. Mariano (Unesp)
Maria Madalena Queiroz (PUC- Goiás)
Mariana Vázquez (UBA)
Mônica Leite Lessa (UERJ)
Suplentes
Alejandro Casas (UdelaR)
Filipe Reis Melo (UEPB)
Jamile Mata Diz (UFMG)
Liliana Bertoni (UBA)
Monica Aparecida Rocha (UFT)
Presidentes de Honra
Eixo I
Territórios, Fronteira e Infraestrutura de Integração
Coordenação:
Thomas Heye (UFF)
Susana Novick (UBA-Gino Germani)
ARTIGOS
RESUMO
Eixo II
Questão Agrária, Movimentos Sociais e Matrizes de Sustentabilidade no
Desenvolvimento Regional
Coordenação:
Edvaldo C. Moretti (UFGD)
Waldecy Rodrigues (UFT)
ARTIGOS
RESUMOS
Eixo III
Integração e Cooperação Econômica Regional
Coordenação:
Hugo Agudelo (UEM)
Frederico J. Katz (UFPE)
ARTIGOS
Claudeci da Silva
Hugo Agudelo
Os impactos das crises europeia e americana nos indicadores de vulnerabilidade do Brasil e
da Argentina
RESUMOS
Rosana Curzel
Rodada de Doha: como teria sido para o Mercosul?
Eixo IV
Regionalismos e Relações entre Blocos
Coordenação:
Flávio Bezerra de Farias (UFMA)
Jamile B. Matta Diz (UFMG)
ARTIGOS
RESUMOS
Geronimo de Sierra
Complejidades y perspectivas en la relación Mercosur, Pacto del Pacífico, Pacto Andino,
Unasur, Celac
Eixo V
Desafios Teóricos para a Integração Regional
Coordenação:
Emanuel Porcelli (UBA)
Flávia Guerra Cavalcanti (UFRJ)
ARTIGOS
RESUMO
Emanuel Porcelli
Autonomía, desarrollo e integración regional: conceptos constantes en contextos variables.
Eixo VI
Estado e Atores Institucionais de Integração Regional
Coordenação:
Karina Pasquariello Mariano (Unesp)
Regiane Bressan (Unifesp)
ARTIGOS
RESUMOS
Eixo VII
Desenvolvimento, Inovação e Produção do Conhecimento
Coordenação:
Hernán Thomas (UNQ)
Rafael Dias (Unicamp)
ARTIGOS
Eixo VIII
Comunicação, Informação e Poder na América do Sul
Coordenação:
Filipe Reis Melo (UEPB)
Leonardo Valente (UFRJ)
ARTIGOS
Dalva Silveira
Ditadura militar, comunicação e informação: representações sobre o compositor Geraldo
Vandré na imprensa brasileira
RESUMOS
Eixo IX
Identidade e Direitos na América do Sul
Coordenação:
Jayme Benvenuto (Unila)
Vera Cepêda (UFSCar)
ARTIGOS
Aloisio Krohling
Moara Ferreira Lacerda
As jornadas de junho no Brasil: novos atores políticos e reforma política
Felipe Fontana
Carla Cristina Wrbieta Ferezin
As contribuições de Oliveira Vianna para a análise dos partidos políticos brasileiros
Wilson Vieira
Aproximações do pensamento de Celso Furtado com a Teoria da Dependência
RESUMOS
Eixo X
Políticas Sociais para a Integração Regional
Coordenação:
Alejandro Pablo Casas Gorgal (UdelaR)
Juan Retana Jimenes (UFF)
ARTIGOS
Márcio Eckardt
Rafael Gualberto de Ávila
Yolanda Vieira de Abreu
Programa Compra Direta do governo federal para a agricultura familiar: caso da cidade de
Paraíso do Tocantins (TO) e cidades vizinhas
Eixo XI
O Mercosul Educacional
Coordenação:
Maria Madalena Queiroz (PUC-GO)
Mônica Aparecida Rocha Silva (UFT)
ARTIGOS
Anelisa Maradei
Reinventando a educação pela comunicação
Ellen da Silva
Edmar Antonio Brostulim
Análise comparada da formação na área de Ciências Sociais na América Latina: uma
experiência de pesquisa na UFPR e na Udelar
RESUMOS
Coordenação:
Mônica Leite Lessa (UERJ)
Ana E. Wortman (UBA/IGG)
ARTIGOS
Carolina Barnes
Aída Quintar
La producción audiovisual comunitaria: innovación tecnológica y espacio de producción
alternativa para la inclusión social
RESUMO
O FoMerco
A
trajetória recente da América do Sul revela um continente que, em plena crise do
capitalismo global, se converteu em um dos pilares da autonomia e do revigoramento das
instituições democráticas, do desenvolvimento econômico e da diminuição da pobreza. A
integração foi a estratégia política adotada em concepção simultaneamente, econômica,
política, social e cultural, que busca enfrentar e superar as assimetrias que constrangem o continente.
Afirma-se a relevância das políticas sociais e se busca promover o avanço da educação, da ciência e da
tecnologia em novas formas de produção do conhecimento.
Contudo, a integração sul-americana, tal como concebida neste milênio, é um processo em construção
e imensos desafios permanecem nesse continente ainda marcado por profundas desigualdades sociais.
No âmbito do Mercosul, a despeito de uma vasta produção analítica, anda não dispomos de uma
sistematização do conhecimento que permita o levantamento dos recursos naturais, industriais,
científicos e culturais de nosso continente e propicie o diagnóstico de gargalos existentes. Embora
ainda incipiente, a formação de redes como o Fórum Universitário Mercosul – FoMerco, é uma
pequena demonstração de que é possível refletir e propor alternativas às políticas que visam
efetivamente às mudanças profundas e que requerem o avanço da integração de nossos Estados, nossos
povos e culturas. O que aqui se destaca, portanto, é o imperativo de uma reflexão aprofundada sobre as
políticas de integração na América do Sul, cuja especificidade é chave para o debate político, público e
democrático.
O FoMerco publica em seus Anais os trabalhos apresentados e debatidos em torno de 12 Eixos em seu
XIV Congresso Internacional, realizado na Universidade Federal de Tocantins (Palmas), de 23 a 25 de
outubro de 2013.
Ingrid Sarti
Presidenta
Fórum Universitário Mercosul - FoMerco
A
criação do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco) obedeceu à demanda crescente dos
pesquisadores ligados ao tema de integração regional por um espaço próprio para a troca
de conhecimento, informações e pesquisas que refletissem o “estado da arte” do
pensamento acadêmico sobre o processo de integração e a evolução dos diferentes
arranjos institucionais criados a partir da aparente consolidação do Mercosul.
Nos primeiros Encontros do FoMerco os debates estavam restritos a grupos de trabalho (GT’s) criados
a partir do tema geral do evento e cujas áreas temáticas contemplavam primordialmente os resultados
das pesquisas ligadas diretamente ao processo integrador e seus atores, nas suas dimensões política,
econômica, educacional e cultural num cenário de globalização crescente.
O descolamento dos trabalhos dos GT's do tema principal do evento permitiu a institucionalização de
grupos com temáticas próprias, mas sempre incorporando a perspectiva da integração regional em suas
atividades. Com isso, os eventos promovidos pelo FoMerco assumiram uma diversidade muito maior e
permitiram uma maior interdisciplinaridade.
Contudo, o desenvolvimento desse projeto levou a um aumento no número de GT's (que chegaram a
27 em atividade em 2013) e a uma tendência de maior especialização nas discussões, e em alguns casos
a sobreposições temáticas. Diante desta nova realidade e visando manter o espírito original do FoMerco
- de promover o intercâmbio acadêmico entre as diferentes áreas do conhecimento -, a coordenação do
FoMerco propôs uma reestruturação institucional em 2009.
O primeiro passo nessa proposta de reestruturação se deu com a montagem de uma Comissão para
avaliar a atuação dos GT's e propôr alterações em seu funcionamento, visando evitar a dispersão
temática e garantir o debate interdisciplinar. Como resultado desse trabalho, o XIV Congresso do
FoMerco – que deu origem a este livro- organizou-se não mais a partir dos GT's, mas de Eixos
Temáticos que congregaram os antigos grupos, buscando agregar afinidades antes dispersas.
Territórios, Fronteira e
Infraestrutura de Integração
Introdução
D
esde o advento da Constituição, em 1988, além da já tão propalada frase “a saúde é um
direito de todos e o dever do Estado”, está prevista também a observância aos princípios
da universalidade, integralidade, equidade, descentralização e participação popular na
condução do Sistema Único de Saúde (SUS). Do século passado até então, se tem experimentado a
transferência de programas e ações em saúde do âmbito federal para Estados e Municípios, alguns de
adesão compulsória – a exemplo das vigilâncias em saúde, outros elegíveis de acordo com critérios
populacionais ou epidemiológicos (equipamentos e atenção à saúde nos vários níveis de complexidade).
Embora se possa perceber esse movimento de descentralização das ações, o mesmo não se
verifica quando se trata do aporte de recursos. Sancionada recentemente a Lei 141/2012, que
regulamenta a Emenda Constitucional 29, garantindo que os percentuais mínimos de recursos próprios
para aplicação em saúde fossem fixados e cumpridos pelos gestores do Sistema Único de Saúde. Dispõe
também que dentre os investimentos em saúde a serem realizados pelos Municípios, Estados e União
sejam efetivamente computados gastos em saúde, excluindo dos percentuais a serem alocados com
aposentadorias, pensões e saneamento básico – embora este último contribua em muito para a melhoria
da saúde da população. Dentre os percentuais fixados, Municípios continuariam a investir 15%, os
Estados 12% e a União o valor empenhado no ano anterior, acrescido de, no mínimo, a variação
nominal do Produto Interno Bruto (PIB) ocorrida no ano anterior ao da lei orçamentária anual.
Tratando dessa descentralização de ações, mas não de recursos financeiros, o “colocar em
prática” os princípios do SUS acaba não sendo efetivado a contento, empurrando os gestores a um
cotidiano de utilizar os parcos recursos a saldar os passivos de utilização maciça (como transporte para
atendimento em outros municípios de referência, aquisição de exames e medicamentos) em detrimento
às satisfações de necessidades individuais e mais específicas. Considerando ainda que o financiamento
da atenção básica na saúde pública é per capita, cidades localizadas na fronteira com outros países do
Mercosul acabam por realizar atendimentos também aos estrangeiros, sobrecarregando o sistema.
1 Professora de Direito Constitucional e História do Direito na Universidade Católica de Pelotas – UCPel, mestre em
Política Social pela Universidade Católica de Pelotas. Coordenadora do Grupo de Pesquisa em Políticas Migratórias e
Direitos Humanos da Universidade Católica de Pelotas.
2 Administradora, mestre em Política Social da Universidade Católica de Pelotas, doutoranda em Serviço Social na
Diante do panorama exposto, há também outro fator que afeta sobremaneira a prestação de
serviços em saúde: a falta de recursos humanos, sobretudo de profissionais médicos, que tem causado
um duplo colapso nesses municípios: um que impacta diretamente na falta de prestação de serviços à
população por conta da ausência desses profissionais; outro é que ainda gera problemas de ordem
financeira, tanto pelo agravamento dos casos não atendidos – que resulta em maior dispêndio de
recursos para restabelecer a saúde, como pelos valores pagos a esses profissionais, muitas vezes em
disparidade com outros da mesma área. Para tentar equacionar a questão, municípios brasileiros na
fronteira com o Uruguai têm se valido de um acordo celebrado entre os dois países para atrair médicos
para atuar em suas equipes, sendo os incorporando em suas equipes de Estratégia Saúde da Família, seja
em seus hospitais.
O artigo em questão aborda esse contexto de uma forma teórico-empírica, não com o intuito de
esgotar a discussão, mas de suscitar elementos para uma análise desse tema atual, passando pelo
processo de descentralização do sistema de saúde, em seguida indicando alguns gargalos do sistema,
culminando com uma caracterização da demanda judicial, que acabam apontando as principais
urgências – e em que nível de atenção elas estão situadas.
A descentralização do sistema de saúde brasileiro vem ocorrendo desde a década de 1990 com o
advento da Constituição, em que estados e municípios se tornaram politicamente autônomos e
soberanos, cabendo a eles incorporarem as políticas sociais propostas pelo governo federal que
atenderiam as demandas da população de determinada circunscrição. A adesão ao SUS foi alicerçada
em outras variáveis
[…] envolve(ndo) o custo político e financeiro de arcar com a responsabilidade
pública pela oferta universal de serviços de saúde em condições de elevada incerteza
quanto ao fato de que o governo federal venha efetivamente a cumprir com a sua
função de financiamento do sistema. Paralelamente, supõe que o município disponha
de uma capacidade técnica instalada que o habilite a desempenhar as funções previstas
em cada uma das condições de gestão (ARRETCHE, 1999, p. 121).
Segundo Yunes (1999), o modelo de descentralização adotado teve como eixo a relação entre a
União e os municípios, prejudicando o papel dos estados como articuladores do processo de
regionalização dos serviços, favorecendo um cenário que “acentua as distorções regionais e que acaba
desequilibrando a redistribuição dos recursos destinados à saúde” (p. 68). Já Cohn (1994, p. 94) enfatiza
que os aspectos econômicos sobrepuseram os políticos nesse movimento, e que a descentralização foi
forjada de maneira nebulosa
[…] sendo implantada com um volume crescente de recursos dos municípios, como
também a baixa definição das competências de cada nível de poder impõe limites
estreitos à autonomia dos municípios na definição de suas políticas de saúde. Acresce
Passada mais de uma década do início desse movimento, a necessidade de implantação de uma
forma mais eficaz e profunda de conduzir esse processo é verificada pelos gestores do Sistema Único
de Saúde, por perceberem que há várias fragilidades no processo de implantação do SUS. O
instrumento proposto para favorecer a organização dos serviços através de uma rede regionalizada de
atenção aos principais agravos à população, fortalecer o controle social e assim melhorar a gestão dos
recursos é a adesão por estados e municípios ao Pacto pela Saúde.
O Pacto pela Saúde está dividido em três esferas (CONASS, 2006):
Pacto pela vida – elege prioridades e metas a serem alcançadas na atenção em saúde (saúde
do idoso, da mulher, redução da mortalidade infantil e materna, saúde do trabalhador, saúde do
homem, saúde mental...);
Pacto em defesa do SUS – consiste em regulamentar a Emenda Constitucional nº 29, e
definir o compromisso das três esferas de gestão do SUS (municípios, estados e governo federal)
quanto ao financiamento das ações em saúde;
Pacto de gestão – este eixo contempla a organização administrativa da saúde, estabelecendo
responsabilidades e, inclusive, novos ordenamentos regionais e territoriais com o intuito de
descentralizar a gestão e desburocratizar processos, qualificar o controle social e o trabalho em saúde,
regulação do acesso aos serviços.
A partir de então os Estados brasileiros e seus municípios começaram a assinar o Termo de
Compromisso de Gestão, estruturado de forma que cada gestor visualizasse os serviços oferecidos e
ações a serem realizadas, informando se realiza, não realiza e prazo estipulado para cada implantação
determinadas ações e as atividades descritas, elencadas em responsabilidades gerais na gestão do SUS;
responsabilidades na regionalização; responsabilidades no planejamento e programação;
responsabilidades na regulação; controle, avaliação e auditoria; responsabilidades na gestão do trabalho;
responsabilidades da educação na saúde; responsabilidades na participação e controle social (BRASIL,
2007).
Porém, o que parece complexo pode se configurar ainda mais complicado se levarmos em conta
a pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde e Organização Pan-Americana da Saúde, que aponta
como fatores restritivos ao planejamento em saúde a deficiência na capacitação dos recursos humanos
que foram designados para tal função, infra-estrutura deficitária (equipamentos de informática e de
acesso à informação), e insuficiência de pessoal para atuação exclusiva e contínua (BRASIL, 2009, p.
233).
Para avaliar o acesso e a efetividade do sistema foi criado o Índice de Desenvolvimento do SUS
(IDSUS), que conceitua acesso como a “capacidade do sistema de saúde em garantir o cuidado
necessário em tempo oportuno e com recursos adequados” (BRASIL, 2011, p. 7), tendo como
indicadores número de proporção de atendimentos realizados por ano por habitante, e oferta de
serviços, como cobertura por equipes de saúde. Já efetividade é caracterizada pelo “grau com que
serviços e ações atingem resultados esperados” (BRASIL, 2011, p. 7), como diminuição de internações
por causas evitáveis, óbitos por hipertensão arterial, cobertura vacinal alta. Em suma, o IDSUS
[…] é um indicador síntese, que faz uma aferição contextualizada do desempenho do
Sistema de Único de Saúde (SUS) quanto ao acesso (potencial ou obtido) e
à efetividade da Atenção Básica, das Atenções Ambulatorial e Hospitalar e das
Urgências e Emergências [grifos do autor] (BRASIL, 2012).
Esses indicadores são expressos em números de 0 a 10, que se refere à situação atual do
município e a situação objetivo. De acordo com a tabela a seguir, segundo dados do IDSUS, as cidades-
gêmeas do Brasil com o Uruguai têm um grau de desenvolvimento semelhante entre si, algumas abaixo
até do índice global da regional de saúde a que pertencem.
Por se tratar de um sistema regionalizado, o acesso aos diferentes níveis de atenção (básica,
média e alta complexidade) nem sempre se dá no mesmo município em que a população reside, tendo
que buscar por atendimentos em outros locais, sendo essa movimentação chamada de Tratamento Fora
de Domicílio (TFD). Esse é um caso emblemático sobre a relação descentralização do sistema e baixo
financiamento do mesmo, pois tomando exemplo a região sul do Rio Grande do Sul, mais
especificamente municípios que compõem a 3ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS) e que têm em
Pelotas e Rio Grande as principais referências para atendimento em especialidades médicas
(traumatologia, oncologia, gastroenterologia e outras), é fácil supor que todos os municípios teriam
direito ao recebimento de recursos para TFD. Porém, na tabela atualizada em (BRASIL, 2008), é de R$
4,95 a cada 50 quilômetros de distância, e nem toda a produção desse serviço pode ser faturada, pois os
municípios têm um teto, um limite, e o que for realizado a mais é custeado pelos recursos municipais.
O problema do custeio de serviços por valores considerados baixos reflete na falta de
profissionais – em geral médicos especialistas, que se credenciem a realizar atendimentos pelo SUS.
Além desses profissionais ficarem concentrados em grandes centros – principalmente os que contam
com hospitais universitários ou locais que disponibilizem residências médicas, os mesmos atuam mais
na rede privada de saúde.
Como podemos perceber no desenrolar desse artigo, mesmo que a saúde seja “direito de todos
e dever do Estado”, o acesso ao sistema de saúde pode não ocorrer por diversos fatores. Porém,
mesmo que a saúde esteja contemplada na segunda geração de direitos humanos, que prima pela “ideia
de uma igualdade meramente formal para atingir a igualdade material ou real” (FURTADO, MENDES,
2008, p. 6973), por vezes esse direito acaba sendo negado, e acabam se restringindo
[…] à chamada reserva do possível (Vorbehalt dês Möglichen). Uma vez oponíveis ao
Estado, só podem ser exigidos se existir verba pública para tanto. Daí se concluir que
Em suma, para satisfazer as necessidades em saúde, é possível que as pessoas lancem mão de
processos administrativos ou judiciais para a garantia de seus direitos. Processos administrativos já são
realidade na obtenção de medicamentos especiais e especializados pela Secretaria Estadual de Saúde
gaúcha, responsável pela dispensação dos mesmos. Porém, quando o quê se necessita não está
disponível, ou tutelado por algum ente público, a busca judicial é a que se faz eficaz no atendimento ao
pleito. Tomemos o exemplo um fato verídico, ocorrido em um município do interior do Rio Grande
do Sul, em que uma criança de 11 anos, portadora de Síndrome de Down, refluxo gastroencefálico e
alergia alimentar, através de sua genitora requisita 90 fraldas mensais porque a família não tinha
condições para custeá-las. Na sentença é possível verificar que o Município alegou que a autora não
havia feito o pedido administrativamente e que deveria figurar no polo passivo da ação, e o Estado que
fraldas são consideradas produtos de higiene pessoal.
Não se pode olvidar que vivemos em um Estado Democrático de Direito que, por
exigir de seus cidadãos uma enorme contribuição por intermédio de uma das mais
elevadas cargas tributárias do planeta, tem o dever de assegurar a devida
contraprestação social, garantindo à população uma gama de direitos individuais,
sociais e transindividuais, precipuamente, no caso dos autos, aqueles elencados direitos
sociais no art. 6º da Constituição Federal, entre os quais se encontra o direito à saúde,
combinado com o art. 196 da Carta Magna. […]
O legislador constituinte estadual, nesta mesma esteira, concedeu a este direito
fundamental grande importância ao prescrever que o Estado deverá aplicar em ações e
serviços de saúde, no mínimo, 10% (dez por cento) da sua Receita Tributária Líquida, excluídos os
repasses federais oriundos do Sistema Único de Saúde, considerando ações e serviços de saúde os
Programas Saúde no Orçamento do Estado (art. 244, §3º, da Constituição do Estado do Rio
Grande do Sul). […]
Destarte, cabe ao Estado organizar suas finanças, dentro das diretrizes legais, a fim de
possibilitar a prestação de ações e serviços públicos de saúde, atendendo de forma
adequada às necessidades da população. No entanto, mesmo que o ente público
comprovasse o esgotamento de seus recursos, o que, se gize, não é o caso dos autos,
persistiria a obrigação de prestação do serviço de saúde, uma vez que o valor vida
encontra-se em patamar superior ao interesse econômico estatal. […]
Os serviços de saúde pública são de relevância pública e de responsabilidade do poder
público em face da necessidade de se preservar o bem jurídico maior que está em jogo
– a vida. É um direito de o cidadão exigir – e dever do Estado fornecer – o
medicamento ou material indispensável àquele que necessitar quando não puder
prover o sustento próprio sem privações (PIRES, 2010, p. 1-16).
A sentença acima espelha, na prática, o quê ASENSI (2012, p. 18) afirma sobre a concepção do
papel de um Estado na gestão da prestação de serviços em saúde
O direito como prática social enseja o debate sobre concepções, valores, leituras e
interpretações diversas sobre um mesmo fenômeno, o que implica debruçar as
reflexões sobre a realidade social e estudar empiricamente este mundo vivido. Seja o
direito visto como fato, como norma ou como valor, a estratégia tem sido pensar o
direito enquanto prática […]. Isso permite a discussão, que tem sido travada no
No caso relatado, fica evidente que a busca por acesso à saúde via justiça foi necessária e
imperativa na resolução do pleito, posto que nem Município, nem Estado se responsabilizariam
administrativamente para fornecimento do material em questão. Agora, tomemos para análise uma
outra forma de judicialização na saúde, que tem ocorrido nos municípios fronteiriços ao Uruguai,
devido a possibilidade de contratação de profissionais na área de saúde uruguaios, sobretudo de
médicos, pois os mesmos não se interessam em atuar em municípios distantes dos grandes centros, e os
municípios não conseguem reter esses profissionais, e quando o fazem, os remuneram com os valores
acima de mercado (ASSEDISA, 2010). Essa ação é assegurada pelo Ajuste Complementar ao Acordo
para Permissão de Residência, Estudo e Trabalho a Nacionais Fronteiriços Brasileiros e Uruguaios, para
Prestação de Serviços de Saúde, firmado no Rio de Janeiro, em 28 de novembro de 2008, aprovado
pelo Decreto Legislativo nº 933/2009 e promulgado pelo Decreto nº 7239/2010 em que também estão
previstas contratações de
Alguns municípios já se beneficiam desse dispositivo, como Santa Vitória do Palmar, que foi o
precursor, integrando inicialmente uma médica uruguaia a uma equipe de Estratégia de Saúde da
Família. Devido a esta integração de profissionais uruguaios, o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul
(SIMERS) se manifestou juridicamente, conseguindo inclusive suspender o atendimento
temporariamente (ASSEDISA, 2010, p. 9). Jaguarão aderiu também às contratações de médicos para
atuação no Pronto Socorro; Quaraí já conta com seis médicos e dois enfermeiros em sua equipe
(MAZUI, 2010); a Santa Casa de Santana do Livramento também conquistou, na justiça, a possibilidade
de ter profissionais especializados de forma a garantir a continuidade do atendimento à população
Inexorável é que esse AJUSTE COMPLEMENTAR AO ACORDO PARA
PERMISSÃO DE RESIDÊNCIA, ESTUDO E TRABALHO A NACIONAIS
FRONTEIRIÇOS BRASILEIROS E URUGUAIOS, PARA PRESTAÇÃO DE
SERVIÇOS DE SAÚDE trouxe profunda inovação em nosso sistema jurídico,
permitindo que 'estrangeiro uruguaio fronteiriço', devidamente habilitado para o
exercício de sua profissão em seu país, possa prestar serviços de saúde humana no
Brasil, nos limites da pertinente localidade vinculada, desde que contratado nos termos
dessa norma e seja portador do pertinente documento especial de fronteiriço […]
(p.10).
[…] tenho que é legítimo, na excepcional situação de configurar-se a cessação da
prestação de serviços por médicos brasileiros, a Santa Casa de Misericórdia de Santana
do Livramento valer-se de profissionais de saúde uruguaios (aí incluídos os médicos)
para a prestação de serviços de saúde à comunidade fronteiriça integrante do
Município de Santana do Livramento, RS, independentemente de revalidação de
diplomas em universidades brasileiras e inscrição no Conselho Regional de Medicina
(KRIGER, 2011b, p.12).
médicos uruguaios em suas equipes, praticamente todas as decisões são favoráveis à manutenção desses
profissionais, sob a alegação de que não há profissionais brasileiros interessados em prestar serviços na
fronteira.
Mas o presente acordo não está sendo apenas utilizado de forma a contornar a situação da
falta de recursos humanos nas cidades gêmeas, e sim para contratar também serviços em saúde do
outro lado da fronteira. Na vanguarda deste movimento figura o município de Barra do Quaraí, que
firmou convênio com Bella Unión para prestação de serviços hospitalares em urgência e emergência
(INSTITUTO SURAMERICANO DE GOBIERNO EM SALUD, 2011), posto que o hospital mais
próximo fica localizado na cidade de Uruguaiana, a 70 quilômetros de distância.
Considerações finais
Embora a descentralização do sistema de saúde brasileiro tenha sido iniciada há algum tempo,
pode-se perceber que os gargalos na implantação de uma rede de serviços que contribua para a
melhoria do atendimento à população e programação de ações ainda não foram transpostos. A partir
dos dados apresentados, pode-se inferir que por conta do número de municípios que aderiram ao pacto
e pelo pouco tempo de adesão dos mesmos, que atualmente ele ainda não se configura como uma
forma de melhorar e racionalizar a descentralização da gestão do SUS entre os municípios gaúchos,
sendo eles fronteiriços ou não, posto que apenas três municípios fronteiriços ao Uruguai assinaram o
documento se comprometendo a efetivar as modificações propostas.
Em um sistema de saúde subfinanciado e ainda em vias de organização de seus fluxos e
responsabilidades, em que o direito à saúde não consegue ser alcançado em patamares que garantam o
acesso e a efetividade de ações, caminha-se, inevitavelmente, para a busca dos mesmos pela via judicial.
Pode-se verificar também que a judicialização da saúde tem duas facetas: a garantia de direitos
(como no caso de materiais que não têm previsão de disponibilização por nenhum dos gestores do
SUS), mas também na defesa de interesses de classe, como no caso da contratação de médicos
uruguaios para atendimento da população fronteiriça.
Ainda que Sindicato e Conselhos de Classe estejam promovendo ações judiciais contra
prefeituras e hospitais que seguem incorporando ou mantendo médicos uruguaios em suas equipes,
praticamente todas as decisões são favoráveis à manutenção desses profissionais, sob a alegação de que
não há profissionais brasileiros interessados em prestar serviços na fronteira. Diante do exposto,
observa-se o embate entre governos municipais, sindicatos e conselhos de classe na defesa de seus
interesses, dinamizando ainda mais essa região dos países em questão.
Referências
ARRETCHE, Marta T. S. Políticas sociais no Brasil: descentralização em um Estado federativo. Revista Brasileira
de Ciências Sociais, São Paulo, v. 14, n. 40, Jun 1999. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091999000200009&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em 08 jun. 2011.
ASENSI, Felipe Dutra. O direito à saúde no Brasil. In: ASENSI, Felipe; PINHEIRO, Roseni. Direito sanitário.
São Paulo: Elsevier, 2012. p. 2-26.
ASSOCIAÇÃO DOS SECRETÁRIOS E DIRIGENTES MUNICIPAIS DE SAÚDE DO RIO GRANDE
DO SUL. Revista Assedisa. Ano 1, nº 1, maio 2010. TJ suspende liminar que impedia trabalho de médica uruguaia.
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<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LCP/Lcp141.htm>. Acesso em: 10 mar. 2012.
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1. Introdução
A
integração da infraestrutura de transportes, energia e comunicações – levando-se em
consideração os impactos socioambientais – devem ser tratadas com prioridade nas
conferências de cúpula do Mercosul, englobando inclusive outros países sul-americanos além
dos membros e associados do bloco, uma vez que a redução das barreiras comerciais por si só não é
suficiente para a verificação de um aumento nos fluxos comerciais entre os países.
Os governos devem assumir a direção do processo e intensificar as obras orientadas para a
efetiva integração regional sob critérios políticos e estratégicos, e não mais pelo simples estímulo do
mercado ou das empresas privadas, articulando a integração física com os esforços de ampliar o
comércio intrarregional e de expandir a complementação das cadeias produtivas. Neste contexto, um
estudo do Conselho Sul-americano de Infraestrutura e Planejamento, Cosiplan, serve como base para
possíveis projetos de integração física no Mercosul.
Desta maneira, realizar-se-á um esforço teórico a fim de que os objetivos a serem alcançados
pelo Mercosul possam ser traçados para os próximos anos. As seções serão dividas em quatro partes:
uma análise da integração de transportes, da integração energética e da integração das comunicações
entre os países do Mercosul, assim como entre os demais países sul-americanos, uma vez que pleiteia-se
que a integração seja realizada por toda a região. Na última parte, balanços e perspectivas para um
projeto de integração comercial – mas que necessita abranger muitos outros aspectos – serão realizados
a fim de que intensifiquem os fluxos intracomerciais, diminuam as assimetrias regionais e aumente o
poder de persuasão do Mercosul frente aos desafios internacionais.
2. A integração estrutural
aumentando a competitividade dos setores que deles se beneficiam, dentre muitos outros, a difusão do
desenvolvimento depende de como estes ganhos são distribuídos aos demais setores, isto é, dependem
de aspectos associados à propriedade dos ativos e à política de desenvolvimento posta em prática.
(MEDEIROS, 2006, p.103-105)
A integração estrutural não depende somente de uma maior capacidade de coordenação dos
Estados, mas concomitantemente da existência de poder de persuasão no tocante a políticas de
infraestrutura dos mesmos, uma vez que se supõe que a partir de uma visão estratégica conjunta dos
Estados – como atores centrais –, estes devem possuir a capacidade estratégica de realizar a integração
pela via política e econômica.
Desta maneira, um ponto crucial que deve ser levado em consideração numa análise da
integração infraestrutural é que no plano regional,
[…] uno de los efectos más relevantes es la superación del síndrome colonial. Uno de los legados más
perversos del colonialismo es la preponderancia, aún después de la independencia formal, de los
vínculos verticales con las ex-metrópolis, en detrimento de los lazos horizontales entre países de una
misma región. (LIMA; COUTINHO, 2006, p.112)
Desta maneira, a integração deve ser planejada para os países da região de forma a superar os
desafios que são impostos e permitir um desenvolvimento sócio-econômico soberano. Neste contexto,
o Mercosul – que fora constituído inicialmente como uma iniciativa comercialista,enquadrada na
perspectiva neoliberal do regionalismo aberto, lançada nos anos 1990, mas que vem mudando sua
perspectiva nos anos 2000 – busca contribuir neste processo, a partir da criação do Instituto Social do
Mercosul em 2007 e do Plano Estratégico de Ação Social o Mercosul em 2008, colocando em pauta o
tema social; a criação do Fundo para Convergência Estrutural e Fortalecimento Institucional do
Mercosul (Focem), em 2006, colocando em pauta a dimensão produtiva e das assimetrias; e o Programa
de Integração Produtiva (PIP), criado em 2008, buscando contribuir para o fortalecimento da
complementaridade produtiva da região e especialmente das cadeias produtivas das Pequenas e Médias
Empresas (PME) regionais.
herança histórica, no qual as comunicações viárias foram e estão predominantemente articuladas para
os portos.
Assim, a região atualmente é caracterizada como
[...] um vasto arquipélago com escassas conexões, realizadas através de longas rodovias (modal que
participa com mais de 50% do comércio intra-regional), resultando em fluxos de longa distância com
elevadíssimos custos ao comércio intrarregional. Os modais ferroviário e aquaviário (hidroviário e de
cabotagem), mais baratos e característicos para transportes de grandes cargas a longa distância, além
de serem ambientalmente mais favoráveis, não são adequadamente utilizados e apresentam mau
desempenho. (FIORI, PADULA, VATER; 2012)
Um projeto de integração pautada na interconexão de redes dos países da América do Sul seria
de suma importância para evitar que informações enviadas a um país vizinho tenham de cruzar todo
continente, até os Estados Unidos, para depois chegar de volta ao destino, como ocorre atualmente,
além de aumentar a segurança e o sigilo dos dados trafegados na região, expandindo o acesso à rede
mundial de computadores e barateando os custos de conexão aos provedores e ao consumidor.
Outro ponto fundamental e que retomou um debate – tanto das comunicações como da defesa
– foi o caso de espionagem do governo norte-americano no Brasil, tanto de seus representantes do
mais alto escalão – como a presidenta Dilma Rousseff – como de uma das maiores empresas do mundo
– a Petrobras –, que vem ratificar a imensa diferença e defasagem dos sistemas de comunicação,
segurança e defesa entre os países da região e os Estados Unidos. Uma vez que qualquer
monitoramento realizado sem autorização e conhecimento dos países membros engendra uma violação
à soberania das nações, ao princípio da não intervenção nos assuntos internos dos Estados, aos tratados
e convenções internacionais, aos direitos humanos fundamentais e ao direito à privacidade dos
cidadãos, tal ação deve ser inclusive rebatida com algum tipo de retaliação.
Desta maneira, a consolidação de planejamentos estratégicos que culminem numa maior
autonomia tecnológica nessas áreas é primordial, onde há a necessidade de que as redes de transmissão
– todas elas controladas por empresas internacionais – contem com tecnologia e serviço da região, uma
vez que os interesses externos nas inúmeras potencialidades do território – sejam das reservas de
petróleo, da biodiversidade, do lítio, do nióbio, da água, etc – sempre existiram e continuarão a existir.
Assim, a necessidade primordial de tal planejamento seria buscar reduzir a dependência tecnológica dos
países da região, restringindo o “apartheid tecnológico” que lhe é imposto.
Tal debate deve ser ensejado nas futuras cúpulas do Mercosul em caráter de urgência, uma vez
que o gap existente atualmente somente será revertido através de uma articulação conjunta entre os
Estados da região, demandando recursos abundantes dos mais diferenciados fundos existentes,
abrangendo investimentos em comunicações, ciência, tecnologia e inovação, defesa e segurança. Tal
ação é imperativa para que seja ao menos amenizada tal discrepância e enseje uma maior soberania dos
meios de comunicação na região.
Ações que buscam certa autonomia e soberania tecnológica e das comunicações em escala
mundial – pela via de satélites – começam a ser realizadas no continente: na Venezuela, o satélite Simón
Bolívar foi lançado em 2008, permitindo certa independência tecnológica a fim de democratizar o
acesso a tecnologia. Em 2012, o primeiro satélite venezuelano de observação foi lançado, denominado
Miranda, que permitirá ter um inventário completo do país e acesso a informação precisa do território
nacional em áreas estratégicas como segurança e defesa, mineração, petróleo, agricultura, alimentação,
saúde e ambiente; no Equador, em abril de 2013, foi lançado o primeiro nano-satélite, denominado
NEE-01 Pegaso, focado na área científica e educativa, sendo capaz de transmitir em vídeo e em tempo
real o que ocorre no espaço. Além disso, estreitou relações de cooperação com o governo brasileiro, em
2013, através de seus institutos espaciais com o objetivo de promover a transferência de conhecimentos
e uma participação conjunta em projetos de pesquisa espacial; na Bolívia, com o projeto de satélite
boliviano Túpac Katari, que compreende um satélite de comunicações, iniciado no final de 2012,
permitirá ampliar a cobertura de internet, telefonia móvel e televisão e se encontra atualmente em fase
de simulação espacial na China, com previsão de lançamento para dezembro de 2013; no Brasil, com as
recentes descobertas de espionagem dos Estados Unidos, haverá o lançamento em 2015 de seu próprio
satélite com a finalidade de não mais depender de satélites norte-americanos, assim como desenvolve
um sistema de comunicações por cabo que se conectará à Europa e África, com o mesmo fim de se
emancipação no campo das comunicações a nível mundial.
Tais ações orquestradas pelos países membros e associados do bloco são necessárias, mas deve-
se atentar que se um projeto conjunto entre esses países fosse realizado, com uma integração das ações
voltadas para a independência das comunicações mundiais, os custos operacionais e os benefícios
coletivos seriam muito maiores e melhor aproveitados por esses países, fortalecendo sua posição de
independência tecnológica e das comunicações. Tal exemplo pode ser constatado com o satélite
venezuelano de observação Miranda, que buscará fortalecer o processo de integração sul-americano,
uma vez que outros países da região poderão se beneficiar a partir de acordos de cooperação com a
Venezuela, incluindo uma complementaridade no âmbito científico-espacial.
3. Balanços e perspectivas
Em suma, buscou-se realizar um pequeno balanço das ações realizadas e das perspectivas para
que uma integração da infra-estrutura do Mercosul e dos demais países sul-americanos fosse viável. Os
desafios postos são inúmeros, tanto endógenos como exógenos, no qual uma articulação político-
estratégico conjunta de todos os países e de suas respectivas sociedades será mais do que necessário,
através de um processo de integração que priorize as economias e os fluxos comerciais entre os países
da região para um desenvolvimento conjunto e soberano.
Assim, para Maria Regina Soares de Lima Marcelo Vasconcelos Coutinho (2006),
[…] la concepción de región acoplada a la idea de integración física y energética es distinta de la noción de
regionalismo abierto, más cercana a la idea de un espacio de flujos no territoriales. Al contrario, la región como
integración física y productiva supone un concepto de espacio de lugares nacionales. La vinculación entre Estados
en una misma región supone territorialidad y contigüidad.
governos e dar maior respaldo político aos projetos de infraestrutura, ganhando maior capacidade de
mobilização e alavancagem de recursos, incluindo a variável político-estratégica, buscando privilegiar
projetos de maior impacto regional, estruturantes (não projetos fragmentados e dispersos); articular os
projetos com a integração produtiva e com o combate às assimetrias regionais; buscar o diálogo com
comunidades envolvidas, uma maior aproximação e apoio das sociedades dos países, e considerar
variáveis socioambientais. Assim, a iniciativa do Cosiplan de caráter político estratégico é essencial para
uma integração física autônoma na região; basta somente que o discurso seja efetivado na prática,
devendo inclusive os formuladores de políticas do Mercosul atentar para as possíveis críticas e
sugestões oriundas da implementação do Cosiplan, a fim de que possam realizar empreendimentos da
mesma envergadura entre seus países membros.
Deve-se criar modelos de integração que contemplem as especificidades da região e as
necessidades que precisam ser superadas para que haja um maior fluxo comercial, de pessoas, de
informações tanto entre os seus respectivos países membros como entre a própria população em si. A
cópia pura e simples de modelos de integração consideradas a priori como modelos universais e que
poderiam ser aplicados de modo eficiente em qualquer lugar não condiz com as idiossincrasias dos
países sul-americanos e principalmente dos membros do Mercosul. Tais modelos no passado se
mostraram aquém das necessidades reais que se apresentam cada dia mais complexas na região, que
precisam ser debatidas a partir de uma articulação de seus problemas infraestruturais endógenos e que
somente poderão ser superadas com o diálogo, disposição política e complementaridade simétrica e
igualitária entre os países membros.
Busca-se uma forma de integração industrializante, baseada no comércio entre bens industriais
de alto valor agregado e intensidade tecnológica, em ganhos de escala e de produtividade, com um
amplo mercado ao seu dispor, promovendo a industrialização e a convergência produtiva e tecnológica
nos países da região, de acordo com as suas idiossincrasias históricas, políticas, econômicas, culturais e
geográficas.
A busca pela redução das assimetrias produtivas, econômicas, sociais e tecnológicas entre os
países do Mercosul deve ser o objetivo a ser alcançado. Para isso, é necessário prover uma integração
da infraestrutura adequada a estes objetivos.
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PADULA, Raphael; BARBOSA, Thiago Varanda. A economia política da União Européia: breves reflexões para
a Integração Sul-Americana. Oikos: Revista de Economia Heterodoxa, Ano VI, nº7, 2007. Rio de Janeiro.
Introdução
D
iálogos bilíngues não são raros em salas de aula localizadas nas fronteiras brasileiras. Para
estudantes e professores dessas regiões, o encontro de culturas torna-se uma importante
fonte de conhecimento e de recursos didáticos. O fato de Sant’ana do Livramento e Rivera
serem separados por uma rua — um lado da calçada é brasileiro e o outro é uruguaio — torna exemplar
a situação dos moradores e, em especial, dos alunos, que se habituam as informações geográficas,
históricas e culturais de ambas as nações.
As duas culturas se fundem em uma só fazendo com que as pessoas convivam com los hermanos
como se fossem todos pertencentes a uma só na nação. A questão fronteiriça é tratada frequentemente
com indiferença. De acordo com ela, muitas crianças que vivem em Sant’ana do Livramento não são
sequer "apresentadas" ao obelisco que divide as duas cidades (NOVA ESCOLA, 2004).
Desta forma, esta pesquisa buscou saber quais as dificuldades enfrentadas por estes alunos que
vivem nesta situação de dualidades. Assim, o objetivo da pesquisa foi Analisar as dificuldades
enfrentadas pelos alunos das escolas primárias na fronteira de Sant’Ana do Livramento – Rivera.
Quando se discorre sobre a fronteira Sant’Ana do Livramento (Br) e Rivera (Uy), de 240km de
fronteira seca, o significado da palavra fronteira toma proporções maiores do que a divisão entre dois
países, considerando que não existe nada além de uma linha imaginária cortando estas duas nações.
Golin (2002, p. 14), se manifesta da seguinte forma quanto ao conceito de fronteira:
Definido o limite como a linha político-territorial extrema do Estado-Nação, inscrita na
natureza, a mesma objetividade não se pode utilizar para o conceito de fronteira. Apenas
como uma referência facilitadora, a fronteira é interpretada como uma faixa ou uma zona
existente nos dois lados de uma linha divisória e de difícil precisão [...] administrativa e
politicamente, o Brasil adotou como dimensão de sua faixa de fronteira o espaço interno de
150 km da linha, em uma concepção claramente de defesa nacional, ou seja, como área
estratégica do Estado. Entretanto, a zona de fronteira é real e depende das relações sociais
em diferentes tempos históricos.
A divisão territorial dessa região se caracteriza de maneira peculiar, conforme Maria Helena
Martins:
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 44
O marco divisório geopolítico corre ao longo de uma rua, sinalizado por pequenas estruturas
de concreto ou por um muro baixo, feito de colunas e (...) Este traço divisório tem como
espaço privilegiado a praça internacional, cortada pela linha limítrofe entre as duas cidades.
Neste passeio público, as pessoas transitam naturalmente sem que a separação seja
contundente, muito embora se façam presentes, em cada um dos lados da praça, policiais
brasileiros e uruguaios. (MARTINS, 2002, p. 225)
Segundo o site da República Federativa do Brasil (2010), o sistema educacional para o ensino
fundamental no país funciona da seguinte forma: é obrigatório para crianças com idade entre 6 e 14
anos. Nesta etapa, é desenvolvida a capacidade de aprendizado do aluno, através do domínio da leitura,
escrita e do cálculo. O estudante também deve ser capaz de compreender e ter uma análise crítica do
ambiente natural e social, o sistema político, a tecnologia, as artes e os valores básicos da sociedade e da
família. Desde 2005, com a aprovação da lei nº 11.114, o ensino fundamental tem duração de nove
anos. Sendo assim, a criança entra na escola com 6 anos de idade e não mais com 7, e conclui aos 14
anos.
O sistema educacional no Uruguai não é muito diverso do brasileiro. A educação primaria é
gratuita e obrigatória com duração de 6 anos. Em 1996, o índice de matrículas na escola primária de
crianças com idade recomendada era de 93%, com homens e mulheres tendo o mesmo índice de
matrículas. Uma das características mais importantes no ensino no país é o alto índice de alfabetização
já que, segundo estimativas para 2003, o índice se encontrava em 98%, o mais alto da América Latina.
Segundo dados do INEP, a média da taxa de atendimento da população com idades entre 7 e
14 anos nos países do Mercosul era, em 2000, de 96%. Entre os países do Mercosul, a Argentina e o
Uruguai já tinham 100% de seus estudantes desta faixa etária na escola em 1996. Em 2000, o Brasil
possuía 96,4% de escolarização nesta idade.
municípios, IDH inferior ao do estado em 2010 (0,746), confome PNUD – Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, e também renda per capita inferior ao mesmo em 2003 (12.071). Um
fato marcante nesta região é sua desindustrialização. O setor secundário era responsável por quase um
quarto do PIB regional em 1990 e caiu para cerca de 16% em 2002. O que também pode ser percebido
em sua ocupação entre 1991 e 2001, como é descrito em seu relatório final do Planejamento
Estratégico (2010 - 2020). “O número de trabalhadores com carteira assinada na indústria com a taxa
de 4,5% a.a. (compensada, em parte, pelo aumento da informalidade no setor)” (COREDE-FO, 2010,
p. 11)
Corroborando com esta informação, Dorfman (2007) verifica que a atividade mesmo ilegítima,
faz parte do cotidiano desta população seja, para a própria subsistência ou até mesmo para a geração de
renda e que a palavra contrabando, quando empregada em Sant’Ana do Livramento e Rivera, equivalia
a uma declaração de “ignorância do ethos fronteiriço”: “Além de revelar-se como estranho ao lugar,
significava não compactua com a compreensão local sobre a atividade, já que a designação
‘contrabando’ se origina em parâmetros extra locais de legalidade, trazendo em si uma condenação
velada. (DORFMAN, 2007, p. 82). Sánchez (2002, p. 61) descreve o uso da fronteira para fins de
subsistência ou de comércio como prático:
Esta fronteira apresenta, para sua população, uma série de oportunidades e recursos novos e
estratégicos, e é neste sentido que falamos de um sentido prático da fronteira. Se
considerarmos uma prática como o contrabando, esta prática revela uma estratégia cotidiana
ou um sentido prático da fronteira para comprar a melhor preço, melhorar a rentabilidade ou
adquirir produtos diversos. Porém, a população fronteiriça, pratica o contrabando
cotidianamente, o faz em função de determinadas suposições sobre qual é o melhor fiambre
[...], onde se conseguem os melhores lençóis e toalhas de banho [...], onde comprar os
medicamentos mais confiáveis [..], etc., etc. Isto é, não é conveniente falar de sentidos
práticos da fronteira sem considerar as ideias, estereótipos ou representações que riverenses e
santanenses têm desta fronteira e de si mesmos, porque para os atores fronteiriços o mundo
da fronteira não só se divide em dois (antes e depois da linha, cá ou lá ou deste lado e do
outro lado), também se carrega de uma série de valores que determinam que coisas são
melhores, desde as escolas, ou os serviços públicos até a aspirina, as linguiças, os biscoitos ou
os cachorros. (QUADRELLI-SÁNCHEZ, 2002, p. 61).
Segundo o INE, a taxa de pessoas empregadas no departamento de Rivera (Uy) em 2008 era de
54,7%, a renda mensal média dessa população era de 14.991 pesos uruguaios , sendo que o limite de
renda para os 20% mais pobres eram de 6.300 pesos, de acordo com o INE. A taxa de desemprego no
país em 2002 era de 16,9, em 2008 esse índice diminuiu para 7,6.
Os números divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística Uruguaio (INE) informam que
para cada 10 crianças uruguaias, 6,7 nascem abaixo da linha da pobreza. A maioria destas crianças são
filhas de mães adolescentes, que representam, segundo o último Censo, 14,76% do total de mães. Essas
mães, por sua vez, são filhas de mulheres que ficaram grávidas na adolescência e abandonaram seus
estudos básicos.
O fato de a pobreza extrema incidir na população infantil, e dentro desta, na faixa de 0 a 5 anos,
já não é um tema novo no Uruguai, a crise econômica de 2002 agravou a situação das famílias pobres e
especialmente a das crianças indigentes. Estudos sobre a exclusão sociocultural desta população
indicam que estas crianças constituem a terceira geração de excluídos do sistema. (Relatório Alternativo
do CLADEM URUGUAI para o Comitê de Especialistas da CDN de maio de 2007).
Segundo Rivoir apud Veiga e Rivoir (2004) o Departamento de Rivera (Uy) obteve um aumento
na desigualdade social nos anos de 1996 a 2001. Conforme a autora, a maior porcentagem de população
pobre no Uruguai se concentra ao norte do Rio Negro, onde se localiza o Departamento de Rivera, não
excluindo o sul deste dado. É possível afirmar que na metade dos departamentos, pelo menos uma
quarta parte de sua população vive em condições de pobreza.
De acordo com a autora esse quadro transmite um perfil migratório indocumentado, em ambos
os lados da fronteira; logo, não é possível encontrar dados estatísticos que expressem a presença dos
migrantes das duas nacionalidades. Outro quadro recorrente em fronteiras e vem sendo estudado com
interesse é a questão da saúde nessas regiões.
Em um estudo publicado nos Cadernos de Saúde Pública em 2007, em 84% dos municípios de
fronteira estudados ocorre algum tipo de fluxo no atendimento médico a estrangeiros e brasileiros não
residentes. De acordo com o estudo realizado entre
Os diversos tipos de fluxo e trânsitos transfronteiriço apontados pelos secretários
municipais de saúde, os de maior intensidade são aqueles de pessoas com familiares
residentes do ouro lado da fronteira considerados frequentes ou muito frequentes por
64% dos secretários municipais de saúde. (GIOVANELLA et al., p.5, 2007)
Essa busca por atendimento traz consigo uma dificuldade na distribuição de recursos para estes
municípios, conforme Giovanella et al.,(2007):
A busca dos estrangeiros por atenção à saúde traz dificuldades para a gestão do SUS
com repercussões sobre o financiamento das ações e serviços de saúde, uma vez que
parte dos repasses federais é alocada na modalidade per capita, não sendo contabilizada
a população itineirante. Essa foi a principal dificuldade apontada por 74% dos
secretários municipais de saúde. (GIOVANELLA et al., 2007, p.10)
A criação de políticas públicas para a saúde nessas regiões a fim de garantir o atendimento
médico à população fronteiriça foi levantada por Nogueira, Dal Prá e Ferminiano (2007, p.231) ao
analisarem a demanda e o atendimento médico entre os países do Mercosul afirmam que “...no que se
refere à integração das políticas, em geral, a maior parte dos profissionais que estão no atendimento
direto com a população desconhece quaisquer medidas, acordos ou pactos que digam respeito a essa
integração...”. As autoras também identificam que os gestores tentam solucionar problemas de escassez
e de atendimento através de acordos informais com gestores locais dos países vizinhos.
Existem problemas ou situações de determinadas regiões que são muito complexas e vem
recaindo cada vez mais aos seus responsáveis diretos. Uma proposta para a solução de problemas
complexos no que tange a administração pública e se aplicam a regiões fronteiriças são as políticas
públicas.
Políticas públicas são conjuntos de ações desencadeadas pelo Estado que visam o bem-estar
comum. Podem ser realizadas em parceria com organizações não governamentais, e até mesmo com
empresas privadas. Schmidt (2008) define que políticas públicas
Configuram decisões de caráter geral que apontam rumos e linhas estratégicas de
atuação governamental, reduzindo os efeitos da descontinuidade administrativa e
potencializando os recursos disponíveis ao tornarem públicas , expressas e acessíveis à
população e aos formadores de opinião as intenções do governo no planejamento de
programas, projetos e atividades. (SCHMIDT, 2008, p. 2312)
Esta definição, diz o que a política pública deve ser, as políticas orientam a ação estatal,
reduzindo o problema da descontinuidade. Sendo assim, é possível que a sociedade acompanhe todas
as fases de sua implementação, desde sua criação até a análise de resultados.
Metodologia
objeto de pesquisa, este tipo de entrevista é ideal permitindo liberdade de modificações no roteiro e
principalmente liberdade de resposta aos entrevistados.
Para a coleta de dados junto aos alunos o método escolhido foi a dinâmica da construção
coletiva de imagens. A técnica permite à criança a liberdade de se expressar da forma que achar mais
conveniente, sem que haja indução de resposta por parte do entrevistador. Entre os alunos de 05 a 10
anos que foram objetos da pesquisa, foram selecionados cinco alunos de cada escola para a realização da
dinâmica da construção coletiva de imagens.
De acordo com Vergara (2006) a coleta de dados por meio da construção de imagens pode
ocorrer das seguintes formas: (1) não-estruturada, quando o entrevistado tem liberdade para escolher o
que quer desenhar; (2) semiestruturada, quando o entrevistador sugere algum tipo de representação.
Utilizou-se de coleta semiestruturada por se tratar de um tema específico e pelo fato de o grupo ser de
pouca idade e necessitar de instrução.
Porém, como Vergara afirma, a técnica por si só nem sempre é suficiente para uma análise
ampla, por este motivo, durante a pesquisa surgiu à necessidade de mais uma forma de coleta de dados e
optou-se pela observação (SAMPIERI et al., 2006, p. 383).
De acordo com A., diretora da Escola Estadual de Ensino Médio Júlio de Castilhos: Através do
histórico escolar é feita uma análise do nível de aprendizado dos alunos, para que seja possível o encaminhamento para a
série correspondente.
Segundo M. E. A., vice-diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saldanha
Marinho: Os alunos que estudam na escola nunca estudaram no Uruguai, são alunos que iniciam seus estudos na
instituição ou já pertencem a ela.
A segunda pergunta foi: Quais as maiores dificuldades enfrentadas por estes alunos? As
respostas estão elencadas abaixo:
Conforme G. L.: A escola encontra-se em uma região extremamente carente, com famílias desestruturadas
(...). Uma região onde a dificuldade financeira e social é explícita. (...) O Uruguai tem um forte controle de frequência
escolar e assistência a famílias carentes, dando inclusive incentivos financeiros para que estas mantenham seus filhos na
escola. Quando o aluno falta três vezes consecutivas sem justificativa a escola entra em contato com a família para saber o
motivo, em seguida as inspeções escolares e juizado de menores... caso este aluno não volte a escola os benefícios das famílias
são suspensos. (...). Mas esta supervisão só é possível em famílias Uruguaias e que residem no Uruguai.
De acordo com C. P.: A linguagem é a maior dificuldade enfrentada pelos alunos, pois a escola não é
bilíngue, já houve alunos com problemas de assistência, mas não estão mais na escola.
Segundo A.: Não há muitas dificuldades enfrentadas no âmbito educacional, esses alunos tem um domínio
satisfatório do português, portanto não há muitas dificuldades nesse sentido.
Conforme M. E. A.: Mesmo os alunos sendo estudantes no Brasil desde sua iniciação escolar, a linguagem é
um problema no sentido de que em casa estes alunos falam espanhol.
A terceira pergunta foi: há alguma entrevista ou período de adaptação para com estes alunos e
suas famílias? Seguem as respostas:
De acordo com G. L.: Há uma entrevista com os pais destes alunos após a prova, para explicar o resultado e
para qual ano o aluno será destinado. Como a escola é bilíngue o período de adaptação é inexistente.
Segundo C. P.: Há uma entrevista com os pais, os professores levam aos alunos até a classe, é feita uma
apresentação. De acordo com o resultado das provas são identificadas as principais dificuldades destes alunos e estas são
trabalhadas por cada professor em busca da nivelação.
Conforme A.: Não há nenhuma entrevista com familiares ou alunos, apenas o estudo do histórico escolar. Não
há nenhum período de adaptação, somente se há a necessidade.
De acordo com M. E. A.: Não.
A quarta questão foi: quais são as principais carências percebidas pelos professores destes
alunos? Seguem as respostas:
Segundo G. L.: A questão foi incluída na questão número 2 e as respostas se fundiram.
De acordo com C. P.: Basicamente é a linguagem e o processo lento de acompanhamento, pois as aulas são
em espanhol. A respeito de carências sociais, estas existem em todo o lugar, há uma dificuldade de assistência a estes
alunos, porém é questionado qual o motivo de estes alunos frequentarem escolas uruguaias e não brasileiras, onde residem.
Conforme A.: A escola é muito heterogênea, assim como há alunos que vão à escola somente pelas refeições (a
escola oferece café da manhã e almoço para os alunos) também há alunos cujas famílias têm condições. (...) Existem
famílias que mantém os alunos na escola para garantir os benefícios dados pelo governo.
Segundo M. E. A.: Os alunos da escola são carentes em todos os aspectos (alimentares, afetivo, materiais...)
são pertencentes, muitas vezes a famílias com 8 irmãos, onde falta tudo (...) A Patrulha Escolar, projeto da Brigada
Militar, atua na escola, e também nas famílias, porém, nessas famílias a atuação fica quase impossível pois “trancamos”
na fronteira. Há alunos que a única refeição que fazem é na escola (oferece café da manhã e almoço). As famílias mantém
os filhos na escola pelos benefícios recebidos do governo. É a chance que a escola agarra para prender o aluno. Os
professores são incentivados a prepararem aulas que entretenham as crianças pois caso contrário, a desmotivação é grande.
A quinta e última pergunta foi: Existe alguma “troca” de informações com as escolas do outro
país? Seguem as respostas:
De acordo com G. L.: Há uma troca de informações quando há alunos que vão do Uruguai para o Brasil e
vice-versa. De vez em quando também há eventos que envolvem professores de ambos os países, mas são raros. Com os
alunos é inexistente.
Conforme C. P.: Não há troca de informações. Está faltando integração entre as escolas na fronteira, o que
seria necessário para a melhora na educação destes alunos.
Segundo A.: Não há troca, mas seria muito importante que houvesse.
Conforme M. E. A.: Houve há alguns anos um encontro com troca de experiências, mas depois disso não
mais.
Tendo como base o referencial teórico utilizado para a pesquisa nota-se uma diferença
significativa dos dois sistemas de ensino no que tange a recepção de alunos estrangeiros ou que residem
no outro país. Enquanto o Uruguai realiza um estudo do histórico do aluno, realiza uma prova de
aptidão escolar para delimitar o ano em que este ingressará e faz entrevistas também com familiares
para que o aluno tenha o melhor desempenho possível na escola, o Brasil apenas estuda o histórico
destes alunos, realizando alguma entrevista ou período de adaptação apenas se necessário.
Essas diferenças educacionais são perceptíveis nas próprias leis que gerem a educação nos dois
países: enquanto logo no primeiro parágrafo da LDB (1996) “A educação, dever da família e do Estado,
[...] tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”; o artigo 1º. Das Definições, Multas e Orientações da
Educação do Uruguai diz que “... o Estado deve promover e assegurar uma educação de qualidade para
todos os seus habitantes, ao longo da vida, dando continuidade educativa.”
Existe uma diferença nestas duas declarações, enquanto um país pensa em sua educação para o
desenvolvimento da cidadania, e para a qualificação para o trabalho, o outro pensa a educação como
um dever do Estado que assegura qualidade a todos e continuidade a mesma.
Embora seja fato que a fronteira Sant’Ana do Livramento – Rivera seja uma fronteira irmã,
onde os dois países se fundem em um só, separados apenas por uma rua, é nítida a separação no que
tange a estrutura. As relações entre os habitantes do local são claras e rotineiras, porém quando o
assunto é legislação, saúde, governabilidade, e educação, nota-se que há uma separação. Mesmo com a
integração entre os povos os governos não pensam nos assuntos de fronteira de forma conjunta.
Como as entrevistas mostram, não há integração escolar entre os dois países, ambos possuem
alunos advindos do país vizinho, mas não compartilham de informação sobre este, não há troca de
experiências entre eles ou até mesmo com alunos.
De acordo com as entrevistas realizadas, chegamos pode-se concluir que a criação de uma
política pública que regulamente a educação na fronteira é uma necessidade urgente da região. A criação
de uma política pública que regule a educação na fronteira, proporcionaria um acesso muito melhor aos
alunos. Permitiria a plena assistência aos alunos e suas famílias pelas escolas e órgão públicos
competentes de ambos os países. Nem escolas, nem famílias se sentiriam desamparados perante a lei ao
esbarrarem na fronteira com o país vizinho.
Durante a confecção dos desenhos na escola 88 notou-se amizade entre as crianças, sem
importar a nacionalidade, cor, classe de seus colegas. O interesse pelos desenhos de seus colegas com o
intuito de ajudar. Uma menina que não tinha lápis para poder fazer o desenho conseguiu imediatamente
emprestado com sua coleguinha.
Na escola 08 as observações já tiveram um resultado distinto. Estas crianças também
apresentaram uma necessidade de atenção para com o observador, porém não por motivos de carência
mas sim pelo desejo de se destacarem umas das outras. As crianças pediram notas para seus desenhos,
quiseram pintá-los, coisa que não foi pedida no enunciado da atividade. É importante ressaltar que essa
escola localiza-se no centro da cidade de Rivera, uma região favorecida economicamente.
Nas escolas brasileiras as observações foram semelhantes entre si. Um fato interessante é que
nestas escolas o observador foi permitido ficar sozinho com as crianças, fato que não ocorreu no
Uruguai, já que lá a atividade só foi permitida com a presença de um professor.
Na escola Júlio de Castilhos também foram percebidas carências afetivas e materiais. Nesta
escola também foi percebida a falta de estrutura e planejamento familiar. Um dos alunos participantes
tinha 11 anos e está cursando o segundo ano. Este mesmo aluno tem seis irmãos e também tem
sobrinhos. Este aluno reside perto da Escola 88, longe de onde situa-se a escola em que estuda e
também em uma região extremamente carente. Foi percebida também uma amizade genuína entre esses
alunos, não que sejam efetivamente amigos, mas um coleguismo muito sincero existe, uma preocupação
para que o desenho do colega também fique bom.
Na escola Saldanha Marinho foi notado um certo amadurecimento das crianças não percebido
nas escolas anteriores. Nesta escola um dos alunos participantes também tem 11 anos e encontra-se no
quarto ano. Aqui foi percebida uma competição para o término da atividade, para ver quem terminava
primeiro.
Todas essas observações remetem ao referencial teórico no que tange a educação quando o
próprio MEC nos apresenta o dado de que a distorção idade-série aumenta à medida que se avança nos
níveis de ensino, onde 25,2% dos alunos estão. Outro fator que pode contribuir para esta situação é
que, segundo o Ministério da Educação, a distorção idade-série aumenta à medida que se avança nos
níveis de ensino. Entre os alunos de ensino fundamental, 25,2 % estão com idade superior a
recomendada, chegando a 41% de diferença entre alunos do ensino médio.
Estas observações corroboram com as informações obtidas sobre a situação socioeconômica da
região, onde o IDH é inferior ao do estado (0,814), segundo o Corede (2009). Dorfman quando estuda
o contrabando na fronteira de Sant’Ana do Livramento – Rivera, propõe que falar em contrabando
seria desconhecer o Ethos fronteiriço.
O mesmo se diz do Uruguai, onde os índices de pobreza são altos, como informa o INE, para
cada 10 crianças uruguaias, 6,7 nascem abaixo da linha da pobreza. A região onde se situa a escola 88,
por exemplo, é visivelmente pobre e de acordo com a conversa tida com a diretora, as crianças
demonstram uma carência afetiva e material muito grande. Muitas dessas crianças fazem todas as
refeições na própria escola (a escola oferece café, almoço e janta). Nas duas escolas brasileiras este fato
também é observado e afirmado pela direção da escola.
Conforme Rivoir apud Veiga (2004) o Uruguai obteve um aumento em sua desigualdade social
nos últimos anos, o que pode ser observado claramente na pesquisa. Enquanto a escola 08 dispõe de
toda a estrutura muito adequada, aulas de italiano, uma localização muito boa, em um bairro muito
bom, a escola 88 está visivelmente localizada em uma região desfavorecida economicamente, dispõe
sim, dos recursos necessários para sua administração, mas o ambiente é precário. O Uruguai possui
fatores muito pobres. O ônibus para se chegar à escola é muito antigo, o sistema de transporte é
precário.
A observação do transporte foi realizada em um horário de movimento de estudantes, por volta
das 13h, horário de início das aulas. Os estudantes recebem passe livre, porém quando um passageiro
pagante embarca, as crianças devem ceder o assento para este. Fazem a viagem até a escola a pé. O
cobrador do ônibus não possui um local fixo para seu transporte, o mesmo transita pelo ônibus durante
toda a viagem. O motorista, ao mesmo tempo em que conduz passageiros, incluindo crianças, fuma
cigarro, toma chimarrão e até faz seu lanche enquanto dirige.
Considerações Finais
Versar sobre a qualidade da educação em qualquer país e em qualquer lugar é algo que deve ser
prioridade de uma nação. Só através da educação é possível construir, é possível planejar, sem esta, a
sociedade permanece igual, sem mudanças e ao mesmo tempo sem perspectivas. Não somente de
educação didática, que ensina que 2 + 2 são 4, mas sim de educação para a vida, educação que permita
o cidadão escolher seu próprio destino, e não que este seja escolhido por determinada situação ou
pessoa.
É possível perceber através desta pesquisa que os países não têm essa prioridade em sua lista,
muito menos a possibilidade de discussão da educação dos pequenos cidadãos fronteiriços é algo
existente. É como se o país vivesse isolado do mundo, sem nenhuma fronteira, fato este que é
totalmente ignorado. O fenômeno objeto da pesquisa acontece, é frequente, gera problemas
assistenciais, autoridades locais tem vago conhecimento do fato. É como se houvesse uma pedra no
meio do caminho e simplesmente olhassem para ela e dissessem “a pedra está aí, vamos passar por
cima”.
Iniciou-se a pesquisa imaginando encontrar problemas de linguagem entre as crianças, ou trocas
frequentes de escolas, de um país para o outro. O que se encontrou foi um problema estrutural. Há sim
certa dificuldade de linguagem, contornável pelos professores. Percebeu-se que não há uma troca
frequente de escolas, logo esta situação quase não existe. Há um problema no sistema dos dois países,
não isoladamente, pois a pesquisa não se ateve a questões curriculares dos países, mas um problema
conjunto de gestão de fronteira. É urgente que comece a se pensar não só a educação, mas a saúde, o
policiamento, o comércio dessas regiões ligadas uma à outra de forma conjunta. É necessário que os
dois países se harmonizem para que estas regiões, quase sempre tão desfavorecidas, se desenvolvam.
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FGV, 2006.
Resumo
E
ste artigo analisa a violência expressiva e a violência cotidiana na América do Sul decorrente
do narcotráfico e seus reflexos no processo democrático de formulação de políticas públicas
de segurança. Para tanto, será analisada o contexto vivenciado pela Colômbia como a
construção da paz entre o governo colombiano e a Farc e assim estabelecendo uma comparação com as
políticas de segurança adotadas pelos países sul-americanas e a participação do Mercosul.
1. Introdução
E
m 2008 foi anunciado o processo de instalação do projeto da Refinaria de Petróleo Premium
I (RPRE I) no Maranhão. Orçado inicialmente em US$ 20 bilhões, o projeto foi concebido
para entrar em funcionamento em 2013 e atender às demandas de derivados de petróleo nos
mercados nacional e internacional (PETROBRÁS, 2009). Para garantir a sua instalação, o poder público
de Bacabeira aprovou o Plano Diretor Municipal, Lei Nº 205/2007, definindo 21 zonas diferenciadas
quanto ao uso. Foram criadas duas Zonas Especiais de Negócios Industriais (ZEN – Industriais) e o
Polo Modal. Por meio dos Decretos 24.680 e 24.681 de 24 de outubro de 2008, o Governo Estadual
criou o Distrito Industrial de Bacabeira (DIBAC), com área de total 26.116,971 m2, dos quais 20 km2
foram reservados para a instalação do empreendimento (BACABEIRA, 2013).
A decisão de instalar o projeto no município foi tomada com base nos Estudos de Impacto
Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), elaborados em 2009, que avaliaram
mínimos impactos socioambientais para as comunidades locais, pois para a empresa donatária do
projeto e os governos estadual e municipal trata-se de uma área rural comportando poucas
comunidades (PETROBRÁS, 2009). Mas de acordo com o próprio EIA/RIMA do empreendimento,
duas comunidades viviam dentro da área destinada ao projeto: Baixa do Tiririca e Salvaterra. O recurso
utilizado para a remoção das comunidades foi a desapropriação forçada ou amigável conforme
assegurado pelo citado Decreto Estadual 24.680/08.
Os argumentos utilizados pela empresa donatária do projeto para convencimento de remoção
das comunidades vincularam-se às precárias condições socioeconômicas e sanitárias nas quais estavam
inseridas. Dessa forma, argumentou-se que a instalação do empreendimento seria o elo entre o
desenvolvimento econômico regional/local, a geração de emprego e renda, e a melhoria da qualidade
de vida das comunidades. Melhoria propiciada pela construção de novas moradias (de alvenaria) e de
estruturas de saneamento básico inexistentes no local.
Essas contradições representam aquilo que Marx (2011) denominou dialéticas do capitalismo.
Ao mesmo tempo em que se argumenta em favor do crescimento econômico e da melhoria da
qualidade de vida das populações, os serviços de saneamento básico não abrangem todos os domicílios.
Com base nesses dados, a empresa donatária do projeto da Refinaria Premium I justificou as suas ações
na localidade. Mas ao mesmo tempo em que propôs a melhoria da qualidade de vida das comunidades
atingidas, contribuiu para a desarticulação de seus modos de vida tipicamente rurais.
O objetivo deste artigo é analisar as modificações ocorridas na comunidade rural e ribeirinha
Salvaterra onde a população desenvolvia, antes do anúncio do projeto da RPRE I, um modo de vida
rural baseado na agricultura de subsistência. Esse estudo tem por base a teoria marxista e se justifica na
medida em que a referida comunidade foi uma das mais atingidas pela desapropriação fundiária durante
a primeira fase de instalação do projeto que compreendeu a delimitação e terraplenagem da área.
2. Materiais e métodos
3. Resultados e discussão
construção e aquisição de novas refinarias, e pelo aumento de investimentos no setor. Estas ações
estiveram vinculadas à tentativa de reduzir a sensibilidade e a vulnerabilidade do Brasil, e transformar o
seu status de país importador para autossuficiente e energeticamente seguro (PIRES DO RIO, 2012).
Os fatores impulsionadores foram os choques do petróleo da década de 1970. Por duas vezes,
1973-1974 e 1979-1980, os países membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo
(Opep) aumentaram o preço do produto em represália à política econômica adotada pelos Estados
Unidos para a efetivação de seus interesses geopolíticos (BRITO et al, 2012).
Para o Brasil, manter uma política de importação se tornou inviável já que o país vivenciava
uma rápida expansão econômica, denominada de “milagre econômico”, com elevada produtividade
industrial. O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND – 1974/1979) incorporou diretrizes para
a produção do petróleo e redução da dependência externa. A tabela 01, extraída de Brito et al (2012, p.
35), demonstra a evolução da oferta interna de energia, de 1945 a 2010, segundo as principais fontes.
Tabela 01: Evolução da oferta interna de energia por fonte de energia (em %) e dependência externa de petróleo
(em %).
1945 1950 1970 1975 1980 1985 1990 2000 2010
Petróleo e gás natural 5,5 12,9 38,8 48,5 49,2 39,8 43,7 50,9 48,0
Carvão mineral e derivados 5,0 4,8 3,6 3,5 5,1 7,6 6,8 7,1 5,0
Hidráulica (eletricidade) 1,6 1,6 5,1 6,8 9,6 11,8 14,1 15,7 14,0
Lenha e carvão vegetal 85,7 78,1 47,6 36,3 27,1 25,1 20,1 12,1 10,0
Produtos de cana 2,2 2,7 5,4 4,6 8,0 13,6 13,4 10,9 18,0
Outras ( 1 ) ND ND 0,3 0,4 0,9 1,9 1,9 3,3 5,0
Dependência externa de petróleo ND ND 67,6 79,8 83,0 43,1 43,4 27,1 - 1,3
( 1 ) Inclui outras fontes primárias renováveis e urânio.
Fonte: Brito et al (2012, p. 35).
Relacionando os dados às leituras de Marx (2011), pode-se afirmar que, dialeticamente, criou-se
uma produção consumidora e um consumo produtivo do petróleo no Brasil. Mas em vez de haver um
nivelamento entre as três fases – a produção, o refino e o consumo – aumentou o desequilíbrio dessa
relação. Essa é uma das características do sistema capitalista que não visa à satisfação total das
necessidades sociais, mas antes a sua autoprodução e valorização (MARX, 2011).
2 Pires do Rio (2012, p. 106) caracteriza a dimensão geoinstitucional como aquela que “permite a análise das ações e
processos enraizados no domínio das instituições e que são multilocalizados, organizados em redes transfronteiriças e que
incluem quadro normativo e legal”.
3 A Região de Planejamento do Baixo Munim é constituída por sete municípios: Axixá, Bacabeira, Cachoeira Grande, Icatu,
contradição presente no desenvolvimento do capitalismo que resulta dos interesses dos diversos atores
em questão.
Pela análise do decreto estadual e da Lei Municipal 205/2007, observa-se uma articulação dos
poderes estadual e local para garantir a instalação do empreendimento no município de Bacabeira sem
considerar os interesses das populações locais atingidas. Criou-se, então, um duplo choque de
territorialidade para os moradores da comunidade na medida em que suas terras foram transformadas e
postas como terreno público destinado a fins alheios aos seus interesses.
O primeiro choque representa uma quebra de relações normativas com a cidade de Rosário haja
vista que o mapeamento realizado pelos governos estadual e municipal de Bacabeira, com o auxílio da
Petrobrás, projetou a área dentro dos limites da cidade. O segundo choque remete à desapropriação da
área original por meio da compra das terras. Os moradores foram deslocados para uma nova área
próxima do núcleo urbano da cidade de Rosário, mas ainda sofrem com disputas jurisdicionais entre os
poderes públicos do município e da cidade de Bacabeira.
A área do núcleo Salvaterra possuía cerca de 800 hectares de terras atravessadas por vários
tributários do rio Itapecuru, como os igarapés Rabo de Porco, Presa de Porco, e o rio Precaú, sendo
propícia ao desenvolvimento da agricultura de subsistência. Durante o processo de desapropriação, o
Governo Estadual delimitou e fixou a área do Salvaterra em 450 hectares.
Os valores pagos aos moradores variaram entre R$ 2.205,00 por hectare de terra cultivada, e
R$ 2.000,00 por hectare não cultivado. Pelos valores do mercado imobiliário, a Associação Comunitária
afirma que o valor da terra, entre 2009 e 2011, período de desapropriação, era da ordem de R$ 2.500,00
por hectare não cultivado. Já o preço da terra cultivada variava de acordo com a cultura predominante e
o valor do produto no mercado. Contudo, nunca estava abaixo do valor de R$ 3.000,00.
Para justificar a instalação do empreendimento, foram destacadas as precárias condições
socioeconômicas e sanitárias nas quais as comunidades estavam inseridas. Dessa forma, argumentou-se
que a instalação do empreendimento seria o elo entre o desenvolvimento econômico regional/local, a
geração de emprego e renda, e a melhoria da qualidade de vida das comunidades, melhoria propiciada
pela construção de novas moradias (de alvenaria) e de estruturas de saneamento básico inexistentes no
local.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Censo
Demográfico 2010, somente 15,65% dos domicílios maranhenses são servidos por rede geral coletora
de esgotos, enquanto 45,14% utilizam a fossa rudimentar. Na zona urbana esses percentuais decaem
para 11,27% e 32,27% respectivamente. Na zona rural a rede geral coletora de esgotos cobre somente
0,38% dos domicílios, e o uso da fossa rudimentar é realizado em 12,87% dos domicílios pesquisados
(IBGE, 2010).
Em Bacabeira, os indicadores são mais incipientes. A rede geral coletora de esgotos cobre
apenas 0,68% dos domicílios, e o uso da fossa rudimentar abrange 25,29% dos domicílios (IBGE,
2010). Adicionem-se a esses resultados a precariedade de outros serviços de saneamento (abastecimento
de água e coleta de lixo) que também colocam em risco a saúde das comunidades e favorecem os
processos vinculados aos grandes empreendimentos.
Com base nos dados do Censo Demográfico 2000 (IBGE, 2000), que apontam a mesma
precariedade dos serviços de saneamento no Maranhão e na Região do Baixo Munim, foi possível
remanejar a comunidade. A área atual onde se localiza a comunidade Salvaterra possui menos de 400
hectares e foi adquirida pelo governo estadual em acordo com a Petrobrás - responsável por promover
compensações socioambientais para as comunidades atingidas pelo projeto - e fazia parte de uma
fazenda localizada entre os limites das cidades de Bacabeira e Rosário.
De acordo com associação de moradores da comunidade, que hoje somam 30 famílias e não
mais 404, a área atual ainda não está propícia ao desenvolvimento da agricultura, pois o solo é pouco
fértil e há pouca disponibilidade de água. As atividades desenvolvidas pela comunidade para
complementação da renda são a criação de animais, a caça e a pesca. Em razão das atuais dificuldades
produtivas enfrentadas pela comunidade, boa parte de seus membros se associou à Cooperativa de
Pescadores de Rosário para receber auxílio financeiro. Quase todos os membros são também
beneficiários do Bolsa Família, programa de transferência de renda do Governo Federal.
As melhorias promovidas após a remoção da comunidade, segundo os seus membros, foram
apenas das estruturas das edificações (casas, escola, associação comunitária, e posto de saúde), que
passaram a ser de alvenaria, e a construção de novas estruturas sanitárias. As fossas rudimentares foram
substituídas por fossas sépticas, e o abastecimento realizado diretamente por água de rio foi substituído
por poços localizados nas residências, pois estão mais distantes dos rios que as abasteciam. As figuras
01 e 02 destacam as estruturas das edificações na nova localização.
Figura 01: Padrão das novas residências. Figura 02: Vista em perspectiva da futura escola.
4 Conforme entrevista realizada com os representantes da Associação Comunitária no dia 07/07/2013, durante o processo
de desapropriação fundiária, cerca de 10 famílias venderam suas terras por valores não condizentes com os exigidos pela
associação e se dispersaram em outras localidades dos municípios de Bacabeira e Rosário.
4. Considerações finais
Referências
AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO. Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.
Rio de Janeiro: ANP, 2012. Disponível em <http://www.anp.gov.br>. Acesso em 25 jul. 2013.
_______. Anuário Estatístico Brasileiro do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Rio de Janeiro: ANP, 2011.
Disponível em <http://www.anp.gov.br>. Acesso em 25 jul. 2013.
BACABEIRA. Plano Diretor do Município. Lei Municipal 205/2007. Disponível em:
<http://www.sousandrade.org.br/concursos/1165_bacabeira2012geral/docgerais/leis>. Acesso em 17 jan.
2013.
A
s dificuldades encontradas durante o processo de legitimação dos movimentos sociais
contextualizam uma série de conflitos que vão além da territorialidade e da crise de
construção da identidade, expondo grave ameaça ao modo de vida, tradições, costumes e à
evolução histórica de determinados grupos.
Por sua vez, a situação aqui identificada propõe uma visão concreta acerca da similaridade dos
problemas relacionados à questão agrária, que tem como importante premissa a existência de países
onde as grandes propriedades privadas são, também, constituidoras de verdadeiros impérios capitalistas,
caracterizada pela produção em grande escala destinada à exportação e a agroindústria alimentícia.
Atualmente, um dos maiores celeiros de grãos dos estados brasileiros é o Mato Grosso, cujo
agronegócio instalou-se promovendo a riqueza de famílias de grandes produtores, fomentando o
mercado local das cidades, nas proximidades onde as propriedades foram instaladas. Entretanto, o que
pode ser observado nada mais é que existência de um mecanismo perverso de exclusão social,
desmatamento de áreas verdes, contaminação por agrotóxicos, uso intensivo da água, criação de
bolsões de empregados sazonais e concentração de renda e terra.
Com resultados recordes na produção agrícola, prevalece a incontestável preferência do
governo pela promoção de políticas públicas voltadas a expansão da balança comercial à tratar de
assuntos relacionados a reforma agrária. Estes são questionamentos que os movimentos sociais buscam
reverter junto ao mesmo, mas sem sucesso e progresso, pois o Estado prefere ignorar sua existência e
legitimidade, já que as medidas adotadas são, na sua maioria, paliativas e não eficazes na resolução de
problemas relacionados à questão agrária no país. Outrossim, no cenário mato-grossense não é
diferente, no que diz respeito à visibilidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST,
que busca mudanças para o quadro atual do uso das terras. Da mesma forma, os quilombolas ou
remanescentes de quilombos buscam, através da reconstrução da identidade, um novo marco para sua
territorialidade, a superação dos conflitos fundiários e a participação nas decisões políticas, direito este
que atualmente encontra-se cerceado pelos vários produtores rurais que ocupam destaque, não só nas
produções estrondosas, mas também, em cadeiras de plenários do Senado Federal e Assembleias
Legislativas Estaduais.
Para Oliveira (1994) a origem dos conflitos sociais no Brasil se deu através do processo de
ocupação e colonização, onde a luta entre desiguais demonstraram os primeiros impactos da expansão
da acumulação do modelo capitalista primitivo, ocorridas mediante a exploração e invasão de terras
indígenas. Por sua vez, da mesma luta pelo território nasceram às disputas entre escravos negros e a
figura dos antigos colonizadores, fazendeiros rentistas latifundiários. Segue carona neste processo, os
posseiros e a sua luta contra a expropriação, da sua expulsão pelo latifundiário especulador.
As crises ocorridas no nordeste brasileiro durante as décadas de 50 e 60 e o golpe militar de 64
retiraram parte da liberdade dos posseiros que foram violentamente expropriados do latifúndio armado.
As disposições do Estatuto da Terra ficaram comprometidas pela imobilidade e falta de planejamento
do governo na época. Da mesma maneira, a visão democrática estabelecida pelo novo governo
democrático apenas deu continuidade à sua inércia proposital em face das alianças e vertentes da
expansão capitalista mundial. Segundo Oliveira (1994), o referido estatuto dispunha sobre a
implementação da reforma agrária no país, cujo plano teve sua proposta firmada vinte anos depois, em
virtude dos acordos entre governo e latifundiários que impediam a sua execução.
Neste contexto, o entendimento acerca da legitimidade dos movimentos dos trabalhadores
rurais, em específico, no caso do MST, pode ser evidenciado a partir da constante busca pela
recuperação da perda do espaço/tempo em relação à evolução histórica da expropriação no Brasil.
Assim, diante das tentativas de inibição da luta dos trabalhadores rurais, a expansão da negação à
referida expropriação deixou de ser exclusividade do posseiro distante, passando a estar presente,
articulada e organizada dentro das cidades. Na defesa dessa realidade, o arcabouço jurídico pátrio
estabeleceu que a legitimidade dos acampamentos e assentamentos parte de princípios e garantias
constitucionais que dão suporte a luta pela terra livre e ao trabalho liberto, bem como, vislumbra a
doutrina atual que a reforma agrária e o direito a terra “permite aos trabalhadores – donos do tempo
que o capital não conseguiu reter à bala ou por pressão – reporem-se reproduzirem-se, no seio do
território da reprodução geral capitalista”. (OLIVEIRA, 1988, p.18)
Por outro lado, ressalte-se que a luta dos movimentos sociais trouxeram mudanças significativas
na legislação brasileira. É o caso do reconhecimento do direito de propriedade das terras
tradicionalmente ocupadas através do Art.11 da Convenção n° 107/57 da Organização Internacional
do Trabalho - OIT, ratificado pelo Decreto n° 5.051/94. Os direitos e garantias fundamentais,
expressos na Constituição Federal de 1988, encontram-se respaldados na liberdade individual,
consolidada nos direitos civis e políticos, assim como, na igualdade presente nos direitos sociais,
econômicos, coletivos e culturais, tendo em vista assegurar a existência digna, livre e igual, conforme
dispõe Figueiredo (2006).
Da mesma maneira, Figueiredo (2006) propõe ao discurso quatro características referentes à
natureza dos Direitos e Garantias Fundamentais expresso na Constituição Federal de 1988, ou seja,
através da liberdade política e civil do cidadão em face da supremacia do Estado como órgão autônomo
e absolutista; da igualdade como representante de uma prerrogativa relacionada aos direitos sociais,
culturais, econômicos e coletivos onde o Estado participaria como agente distribuidor da Justiça Social;
da organização da sociedade através do desenvolvimento, direito à paz, ao meio ambiente, comunicação
e a propriedade comum da humanidade, consolidando, por sua vez, os ideais de solidariedade e
fraternidade para o bem estar social e, por último, do direito a democracia, a informação e aos avanços
tecnológicos corresponderiam à fase de institucionalização do Estado Social.
No que diz respeito à legitimação dos movimentos sociais, Figueiredo (2006) explica que o
direito à propriedade dos remanescentes de quilombos decorre da Justiça Social, que se constitui
historicamente como parte do processo inacabado de abolição com vistas à reparação dos danos
históricos sofridos.
Outro fator que caracteriza a legitimidade seria o reconhecimento da identidade étnica como
direito legal amparado pela Convenção n° 169, da Organização Internacional do Trabalho, ratificadas
pelo Decreto Legislativo n° 143/2002 e Decreto n° 5.051/2004.
Nesse sentido, o discurso antropológico de Barth (1969, apud, Oliveira, 1976) explica que os
grupos éticos podem ser definidos como uma organização social que designa as características de uma
determinada população através da perpetuação biológica, do compartilhamento de valores culturais
fundamentais, composta por um campo de comunicação e interação próprio e consolidada por
membros identificáveis de forma interna e externa no referido grupo como de categoria distinguível das
demais.
De acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA (2013), um
dos reconhecimentos do Estado acerca da legitimidade dos movimentos sociais quilombolas fora
consolidado por meio do Decreto n° 4.887/2003 que dispõe acerca dos procedimentos para
regulamentação dos procedimentos de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras das comunidades dos quilombos tratadas através do Art. 68, do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias - ADCT. O mesmo dispositivo determina a competência do INCRA para
titulação dos territórios, e distribui a competência comum e concorrente aos demais entes federativos
para promoção e execução dos procedimentos de regularização fundiária.
A desigualdade regional já pode ser deflagrada quando observamos uma única região
recebendo atenção, onde houve a concentração de investimentos durante a industrialização do país. A
região sudeste, segundo Sader (2013, apud, Araújo, 2012), concentrou cerca de 80% do valor da
transformação industrial, sendo que quase 45% da indústria foi instalada na atual região metropolitana
de São Paulo, fato que não foi registrado em nenhum local no mundo durante a década de 1970, por
mais que a oportunidade da logística da proximidade com os grandes portos marítimos pudesse
oferecer, não seria a única razão para tamanha desigualdade em aplicação desenvolvimentista de
recursos para uma determinada região.
Em contraponto àquela realidade, ressalte-se o cenário atual e a atenção dada pelo governo
através dos investimentos concedidos ao agronegócio na região Centro-Oeste, cujo modo de produção
baseia-se no caráter patronal, na grande propriedade e na plantation voltada para a exportação. Segundo
Guilhoto (2003), os estados dessa região utilizam insumos de ponta e tecnologia de última geração. A
maior parte do PIB do setor concentra-se na produção de grãos, que é responsável por mais de 50% do
PIB do Mato Grosso e de Goiás.
No que diz respeito à agricultura familiar, o PRONAF – Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar, implantado no segundo mandato do presidente Fernando
Henrique, pode ser chamado de política de base territorial clara, tendo como base a municipalização –
tendência cara aos localistas, que parecem desconhecer a fragilidade do ente municipal no país. Segundo
Sader (2013, apud, Araújo, 2012), no governo Lula, a abordagem territorial mudou com a identificação
dos chamados “territórios rurais” resultantes da aglomeração de municípios com realidades
semelhantes.
Tal abordagem mobilizou os entes estaduais e, no final do mandato do presidente Lula, havia se
transformado no programa Territórios da Cidadania. Lançado em 2008, o referido programa tem como
objetivo promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de cidadania por
meio de uma estratégia de desenvolvimento territorial sustentável. A participação social e a integração
de ações entre Governo Federal, Estados e Municípios são fundamentais para a construção dessa
estratégia. Eram cerca de 120 territórios, onde as políticas de vários ministérios buscavam interagir sob
a coordenação da Casa Civil. Neles predominavam produtores familiares e assentados da reforma
agrária, que exibiam indicadores sociais preocupantes. Faziam parte, portanto, da herança de
desigualdade construída entre o Brasil industrial e urbano e o Brasil rural. E, por isso, tal iniciativa
recursos empregados na agropecuária e com a riqueza produzida e que recebem também parte da
riqueza produzida pelo campesinato, por meio da renda capitalizada da terra, pois é o agronegócio que
comercializa a maior parte da produção camponesa.
Segundo Montaño e Durigueto (2011), o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra –
MST é o movimento social de maior expressão na realidade brasileira e um dos de maior relevância na
América Latina.
Behring (2003) explica que as forças contrárias aos movimentos pela reforma agrária
compuseram aliança, mesmo tensa, que deu sustentação ao então Governo Fernando Henrique
Cardoso. Em contraposição, o MST pressionou a base de liderança do antigo governo e foi alvo de
ataques da elite, desqualificando e buscando torná-lo ilegítimo. Por sua vez, a elite classista tentou criar
uma visão perversa da essência deste movimento para o de uma organização composta por desordeiros,
usurpadores, integrantes da indústria de grilagem, desmistificando e obscurecendo a visão dos
agricultores de subsistência, de famílias de origem rural com habilidades especializadas para o cultivo no
campo, isto é, os verdadeiros interessados na luta por um pedaço de terra.
A oposição à reforma agrária sempre enfrentou a questão através de articulações políticas e
principalmente da mídia vendável, interesseira e descompromissada com qualquer assunto que interfira
nos interesses de seus maiores patrocinadores, que na sua maioria são os grandes proprietários de
terras, objeto da lide em questão. Diante desses elementos, tudo indica que essa característica da
modernização conservadora é uma espécie de eterno retorno, enquanto os trabalhadores não
constituem um movimento contra-hegemônico radicalmente democrático, socialista e fundado numa
vontade nacional popular, profunda de mudanças, conclui Behring (2003).
No Mato Grosso a questão agrária é deflagrada em consonância com a mudança das políticas
econômicas do Governo Federal, cujo caráter principal evidencia a predominância em relação à
hegemonia do agronegócio, que nos últimos 10 anos vêm se se constituindo como “celeiro do mundo”,
para justificar o avanço do agronegócio. A análise da curva de elevação dos investimentos nos últimos
anos, mediante a implementação dos “Planos Safra”, identificou um aumento substancial do capital
público investido em âmbito nacional no agronegócio, amplamente direcionado ao abastecimento da
produção em escala, nesse sentido, apropriando-se de dois vieses de investimento: financiamento dos
insumos da produção (insumos, semente, maquinários) bem como, da infraestrutura que beneficia o
escoamento, como estradas, pontes, portos, etc.,
Conforme depoimento de Lucinéia Freitas (2013), Coordenadora do MST no Mato Grosso, as
conquistas de 2005 para o presente ano, quanto ao número de desapropriações e de famílias assentadas,
foram reduzidas drasticamente. O MST-MT não assenta uma família há aproximadamente 03 anos. No
mês de outubro do ano corrente haverá o sorteio de lotes referente a uma portaria expedida em 2010.
No âmbito nacional, os próprios dados do Incra demonstram que no último ano nenhuma família fora
assentada.
Freitas (2013) afirma que em Mato Grosso ainda tem o problema da logística do assentamento,
causando um prejuízo para o próprio processo. Quando assentadas, as famílias tomam o financiamento
PRONAF-A e, concomitantemente deveriam obter a assistência técnica da Empresa Matogrossense de
Pesquisa, Assistência e Extensão Rural S/A – Empaer por dois anos, mas isso não ocorre de fato,
fragilizando ainda mais o processo de assentamento, devido a diversos problemas de localização,
existência de água, tipo de solo, estradas de acesso, pontes, proximidade aos municípios para
comercialização, entre outros aspectos de infraestrutura. Ela cita que em Rosário Oeste, município
próximo a capital, existe um assentamento há cinco anos e até hoje não foram abertas estradas. As
famílias são obrigadas a usarem os antigos caminhos existentes na fazenda que demandam tempo e
custo. Existe um rio que corta o assentamento e na época das cheias ambos os lados ficam isolados.
Um lado tem saída para Nobres, outro município de MT e o outro por Cuiabá, onde a realização do
percurso levam duas horas. O Poder Municipal permanece inerte e não articula políticas de
infraestrutura, causando transtorno e criando obstáculo até mesmo de permanência no local.
Um caso diferente ocorre em Campo Verde, onde de acordo com informações de Freitas
(2013), o antigo prefeito mantinha-se articulado junto às cooperativas de trabalhadores rurais,
comprometendo-se na comprar de até 30 % da produção alimentícia para a merenda escolar. A
pavimentação de estradas na região contribui com o acesso e diminui o custo da produção para esses
pequenos produtores.
Resta claro que estabelecer assentamentos em lugares ermos, sem condições de plantação,
irrigação, tão pouco infraestrutura favorável ao plantio é como decretar a falência do processo
imediatamente, sem o mesmo ter saído do papel. Freitas (2013) relata sobre a existência de um
assentamento localizado a 150 km da pequena cidade de Nova Brasilândia no interior de MT. O
município já é carente na oferta de insumos, dentre outros e a estrada até o assentamento ainda não é
asfaltada, sendo que no período das chuvas se torna intransitável. Assim, é visível o interesse do Poder
Público em desqualificar o processo, comprovando a inviabilidade dos investimentos para este público,
atacando indiretamente o MST.
A retórica do Governo consiste na concepção de que a reforma agrária reflete um custo muito
alto aos cofres públicos e trás a miséria para o campo. Todavia, Freitas (2013) esclarece a existência de
um paradigma entre a concepção de que a referida reforma seja a grande vilã do contexto agrícola, uma
vez que a matriz de desenvolvimento regional, em termos de sustentabilidade social e ambiental, seria
degradada continuamente pela atuação do Estado de Mato Grosso e a sua omissão quanto à liberação
do uso abusivo de agrotóxico em lavouras, funcionando entre os líderes do desmatamento, além de
estar presente entre os principais Estados em incidência de trabalho escravo no campo.
Atualmente o Estado de Mato Grosso conta com a Associação dos Amigos do Centro de
Formação e Pesquisa Olga Benário, administrado pelo MST, como espaço de referência em formação
técnica e política para jovens e adultos camponeses e, também, movimentos sociais do campo e da
cidade. Está localizado no Assentamento Dorcelina Folador, a menos de 10 quilômetros da capital
matogrossense. Conforme dispõe Freitas (2013), o Centro Olga Benário é ligado à Escola Nacional
Florestan Fernandes do MST que fica em São Paulo. “Seguimos toda a linha política e pedagógica de
lá”. (FREITAS, 2013)
Segundo Carlos Duarte (2013), a essência desse tipo de associação funda-se através da
divulgação nas atividades da escola nacional, apoiando e incentivando projetos de educação e
escolarização de crianças, jovens e adultos, motivando o pensamento crítico, bem como, estimulando
intercâmbios de formação ente o Brasil e os países da América Latina e de outros continentes.
direitos, obtendo apoio institucional e técnico para desenvolver suas habilidades e viver com mais
dignidade.
Considerações finais
O trabalho busca deixar evidente a existência da base legal que legitima a questão agrária como
uma das reformas necessárias ao progresso do país e da democracia, na luta pela diminuição da
desigualdade social, desenvolvimento da sociedade e alcance da economia sustentável no processo de
produção que possa beneficiar o maior número possível de brasileiros que vivem da terra. Essa luta
deve ser em conjunto, toda sociedade, junto com os estudantes, militantes de sindicatos, entidades e
organismos de defesa dos direitos humanos, para reivindicar a demarcação das terras indígenas,
titulação e demarcação dos territórios quilombolas e exigir a reforma agrária de forma a agregar os
produtores familiares sem terra.
Além disso, um movimento não deve deixar de ter caráter político. Pois os movimentos sociais
no Estado de Mato Grosso têm avançado num processo unitário importante, valorizando a unidade
entre indígenas, camponeses e quilombolas, diretamente enfrentando o agronegócio e latifúndio, a
violência e a desterritorialização provocada pelo agrocapital, sendo as principais vítimas os legítimos
donos das terras nesta parte do país.
Por fim, identificou-se mais de quinhentos anos de desrespeito a cultura de outros povos em
prol do desenvolvimento. É chegada a hora de identificar a real necessidade desse tipo de avanço e a
carência desses povos em integração à economia nacional, à modernização, a máscara do discurso do
desenvolvimento econômico, social e cultural, enquanto que na verdade esconde a usurpação,
expropriação e domínio de terras, haja vista que dentro das matrizes de sustentabilidade, o convívio
com a cultura de outros povos e sua territorialidade deve ser valorizado de forma a cumprir as
premissas de um desenvolvimento regional que tenha sustentabilidade em suas ações alcançando o
avanço da sociedade em todas suas vertentes evolutivas.
Referências
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Souza. Cuiabá, 2013. Gravação eletrônica (13: 53 mim). Entrevista concedida para elaboração de artigo científico
do entrevistador.
Introdução
E
ste artigo tem como objetivo analisar a relação existente entre capital social e o
financiamento rural no Tocantins. Considerando as características rurais do Estado e o
baixo índice de participação nos recursos disponíveis ao desenvolvimento rural pelo
governo federal, é interessante verificar como o PRONAF tem contribuído para formação ou aumento
de capital social no Estado, em particular em dois municípios, Araguaína e Gurupi.
A relevância deste estudo se mostra na medida em que o desenvolvimento econômico e social
do Brasil, em grande parte, depende de suas características fortemente agrárias. Sendo assim, o bom
desempenho dos programas e políticas públicas para o desenvolvimento rural, com a participação dos
governos, agricultores, das organizações e movimentos sociais podem desenvolver o capital social e
ajudar a efetivação e eficácia das políticas implantadas.
“Capital Social” refere-se ao valor implícito de conexões internas e externas de uma rede social.
É comum encontrarmos uma grande variedade de definições do termo, contudo grande parte partilha a
idéia de que da mesma maneira que outras formas de capital como capital físico e humano podem
aumentar a produtividade de indivíduos e organizações, o capital social entendido como um conjunto
de recursos tais como: contratos sociais, cooperação, confiança mútua e civismo também são fatores
que podem desencadear o desenvolvimento de regiões e países.
Nesse artigo é utilizado o conceito de capital social desenvolvido por Woolcock (1998), que
classifica o capital social em três dimensões conforme o tipo de posição que descrevem as relações
sociais: 1) Capital social institucional, descreve as relações sociais existentes entre a sociedade civil e o
Estado; 2) Capital social extracomunitário, são as relações que determinada comunidade estabelece com
grupos sociais e econômicos externos; e 3) Capital social comunitário, que pode ser entendido como
aquele que corresponde às relações sociais comunitárias entre os indivíduos, referindo-se a capacidade
que essas comunidades possuem de se relacionar com reciprocidade e confiança, além do potencial
organizativo que possuem.
A Hipótese desse artigo é que não existe nos municípios de Araguaína e Gurupi, como na
grande parte dos municípios menos desenvolvidos do Brasil, um nível de institucionalidade que permita
Referencial Teórico
O termo “Capital Social” começou a ser discutido mais fortemente a partir dos anos 1990 pelas
Organizações não Governamentais, Governo e entidades internacionais. Este capital, ao lado de outros
tipos de capital como o físico e o humano, busca dar uma noção de qualidade das relações sociais para
a promoção do desenvolvimento.
Robert Putnam iniciou na década de 1970 uma extensa e inovadora pesquisa sobre democracia
e comunidade na Itália, constatando a influência do capital social sobre o desenvolvimento regional
como um conjunto de associações horizontais entre pessoas que cooperam para o benefício mútuo de
uma comunidade (PUTMAN, 2002). Pode-se depreender que sua ótica é determinista e culturalista,
pois acredita que o capital social se constrói a partir de uma característica de confiança e cooperação
intrínsecas a uma determinada comunidade.
Outro importante nome relacionado ao desenvolvimento do conceito sobre capital social é
Pierre Bourdieu que o definiu em 1980 como sendo "o conjunto de recursos, efetivos ou potenciais,
relacionados com a posse de uma rede durável de relações, mais ou menos institucionalizadas, de
interconhecimento e de reconhecimento” (BOURDIEU,1980).
Conforme o autor, o capital social surge a partir do “empoderamento” dos seus atores sociais e
do estabelecimento de relações de confiança que se traduzem na formação de uma rede de troca de
informações e cooperação que gera melhores resultados do que para aqueles atores sociais que estão
fora da rede.
Druston (2002) acredita que o capital social é o resultado de um cálculo racional, onde as
normas de convivência e as condutas de cooperação resultam do esforço individual de maximização de
lucros. Essa cooperação, associada à confiança e aos vínculos de reciprocidade, resulta da interação
freqüente entre diversas estratégias individuais, institucionais e entre os interesses comunitários.
Fukuyama (1996) entende o capital social como fruto de uma cultura da confiança, onde os
princípios de cooperação fazem parte da sociedade e suas normas e leis são pautadas sob esse
parâmetro. Nessa linha, o autor esclarece que o sucesso das políticas públicas é determinado pelo o
contexto político, histórico e cultural de uma nação e que, portanto em sociedades onde há um alto
grau de civismo, confiança e princípios éticos por parte de seus cidadãos a probabilidade de uma
política ser bem sucedida é maior do que nas sociedades onde não há presença de confiança e
reciprocidade.
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Woolcock (1998) agregou significado ao modelo estático determinista proposto por Putnam
formulando teorias que permitiram incorporar uma visão multidimensional e dinâmica sobre o termo
Capital Social, classificando-as em: i) “Capital social institucional”, descreve as relações sociais
existentes entre a sociedade civil e o Estado; ii) “Capital social extra-comunitário”, demonstra relações
sociais que determinadas comunidades estabelecem com grupos sociais e econômicos externos e iii)
“Capital social comunitário” que corresponde as relações sociais comunitárias dos indivíduos que são
traduzidos na capacidade organizativa da comunidade, na cooperação recíproca e participação nas
decisões comuns. Quando esses três tipos de relações sociais se estabelecem, cria-se o ambiente
favorável para a constituição do Capital Social, onde as relações entre os agentes envolvidos passam a
estar culturalmente enraizadas na realidade da comunidade favorecendo o desenvolvimento sócio
econômico da região de forma eficiente e eficaz.
Essa integração e inserção dos agentes nas relações sociais são definidas por Woocock (1998)
como a “dimensão enraizamento”. Outra dimensão definida pelo mesmo autor é a “dimensão
autonomia” que se refere a capacidade dos agentes agirem em prol dos interesses coletivos e públicos
em detrimento dos seus interesses individuais. Nesta concepção os vários tipos e dimensões possuem
um caráter dinâmico e interdependente para a formação do capital social.
Metodologia
Este artigo tem como objetivo analisar a relação existente entre capital social e o financiamento
rural no Tocantins, verificando se o Pronaf tem contribuído para formação ou aumento de capital
social no Estado, em particular em dois municípios, Araguaína e Gurupi.
Para tanto, primeiramente é realizado um diagnóstico dos municípios analisados baseados em
informações do IBGE 2013, visando a caracterização da área de estudo. Além dos dados secundários
oriundos do IBGE foram utilizados dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Secretaria
da Agricultura Familiar, Banco Central do Brasil e Secretaria da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
do Estado do Tocantins.
Conjuntamente à coleta e análise dos dados secundários foram realizadas três entrevistas
semiestruturadas com o Gerente de Atendimento da Agência do Banco do Brasil de Gurupi; Gerente
de Agronegócio do Banco do Brasil de Araguaína e Superintendente de Agricultura Familiar e
Assentamentos da Secretaria de Agricultura do Estado do Tocantins. Buscou-se com essas entrevistas
coletar dados primários e informações subjetivas a respeito das relações existentes entre os
demandantes dos projetos (agricultores familiares) o Estado e as agências financiadoras.
Para a mensuração dos níveis de organização e a existência ou não de capital social foram construídos
três indicadores de capital social baseados na classificação de Woolcock (1998). Esses indicadores são
escalonados qualitativamente entre: BOM, REGULAR e RUIM com base na comparação entre os
municípios analisados, médias de outros municípios do Tocantins e médias de municípios do Rio
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Grande do Sul e Paraná, que podem ser considerados estados brasileiros que apresentam melhores
índices de capital social conforme diversos estudos (CASTILHOS, 2002; GALVÃO et al 2010).
Indicador 1: Visa quantificar as relações existentes entre os agricultores familiares, demandantes dos
recursos do Pronaf e as Instituições, nesse caso o Estado do Tocantins (Capital Social Institucional). As
variáveis analisadas são: existência ou não de Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Rural
Sustentável (CEDRS) e Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS) nos
dois municípios analisados e qualidade das relações entre os agentes com base na entrevista do
Superintendente da Agricultura Familiar do Estado do Tocantins;
Indicador 2: Tem como objetivo medir as relações entre os agricultores familiares e grupos
sociais e econômicos externos, nesse caso, analisa-se o relacionamento dos agricultores com as
instituições bancárias responsáveis pelo financiamento dos projetos (Capital Extra Comunitário) e
outras instituições de assistência técnica. O índice foi construído com base no volume de
financiamentos concedidos a produtores e cooperativas no ano de 2012, número de Declarações de
Aptidão ao Pronaf- DAPs ativas e inativas nos municípios, comparação desses dados às médias dos
municípios do Tocantins, Rio Grande do Sul e Paraná e qualidade das relações entre os agentes com
base nas entrevistas dos gerentes bancários;
Indicador 3: Quantifica as relações entre os próprios agricultores (Capital Social Comunitário)
com base no número de associados por associações, porcentagem da população rural associada,
qualidade das relações entre agentes baseadas nas entrevistas dos agentes bancários e comparação dos
municípios com as médias dos estados do Tocantins, Rio Grande do Sul e Paraná.
Resultados e Discussões
Portanto verifica-se que não existe uma integração entre a sociedade civil e o poder público na
definição e implantação dos projetos municipais.
A abordagem participativa mediante conselhos começou a ser implantada a partir de 1996 em
diversas políticas inclusive para agricultura familiar, contudo a eficiência e eficácia dessas políticas no
que tange a geração de desenvolvimento local ainda não ocorrem principalmente devido ao grau de
“civismo” ainda baixo e falta de informações, treinamento e qualificação dos pequenos produtores
rurais. O Superintendente se refere ao exercício da cidadania ainda incipiente no Tocantins “os
trabalhadores rurais ainda têm muita dificuldade de entender o que é discutir a política de
5 Ibid, 2013, p 6.
6 Informação concedida por LOPES, M.mai, 2012. Agência Banco do Brasil Gurupi. Gurupi -TO
Conforme dados, verifica-se que os agricultores de Gurupi têm mais dificuldade em obter crédito ou
maior dificuldade em se manterem adimplentes, além de terem menor acesso aos recursos.
Com relação ao terceiro indicador percebe-se que, em média os projetos financiados em
Araguaína têm valores mais altos. Araguaína possui 335 projetos financiados com valor total de R$
46.332.530,79. Gurupi possui 235 projetos, um total de R$ 24.833.021,45. Esse dado poderia indicar
que em Araguaína ocorre concentração de recursos e uma pior distribuição de recursos entre os
agricultores, fato, contudo incorreto, pois o quarto indicador demonstra uma melhor distribuição de
recursos por agricultor para o município de Araguaína. Provavelmente esse resultado deve-se a
existência de financiamento concedido diretamente às cooperativas em Araguaína.
Grande do Sul cada município recebe R$ 33.945.126,00 repartidos em 974 projetos. Essa informação
sugere que nos municípios de Araguaína e Gurupi que apresentam características similares a média dos
municípios do Tocantins os níveis de Capital Social Extra Comunitário são baixos, pois pequena parte
dos Agricultores conseguem acessar os recursos do Pronaf.
Apesar de chegarmos a conclusão de que tanto em Araguaína quanto em Gurupi os níveis de
Capital Social Extra Comunitário são baixos comparativamente a média dos municípios sulinos,
analisando-se somente os dois municípios Araguaína está em melhor situação do que Gurupi. Quer
dizer, o nível de capital social extra comunitário em Araguaína é superior ao de Gurupi. As informações
das entrevistas com os gerentes dos bancos dos respectivos municípios comprovam esse argumento.
Com relação a troca de Informações e parcerias efetuadas para maior esclarecimento e
conscientização dos agricultores quanto a todo o processo de acesso e execução dos recursos desde a
emissão das DAPs, orientação para projetos e acompanhamento da execução evitando-se a
inadimplência dos mesmos, foi-nos informado que em Araguaína,
[...] além de folders e cartilhas disponibilizadas pelo banco, são realizadas reuniões
periódica do comitê gestor do Banco do Brasil com as associações e outras entidades
envolvidas no processo de desenvolvimento rural sustentável, além da participação de
estudantes universitários e pesquisadores da UFT, UNITINS e técnicos do SEBRAE.
(informação verbal)7.
7 Informação concedida por FURTADO, E.L.abr, 2012. Agência Banco do Brasil Araguaína. Araguaína- TO
8 Informação concedida por LOPES, M.mai, 2012. Agência Banco do Brasil Gurupi. Gurupi -TO
9 Informação concedida por LOPES, M.mai, 2012. Agência Banco do Brasil Gurupi. Gurupi -TO
Verificamos que Gurupi apresenta-se com maior participação da população rural representada
por associações (30%), o que poderia demonstrar que seu nível de capital social comunitário é superior
ao de Araguaína, contudo não podemos extrair desses dados conclusões a respeito da qualidade das
atividades das associações e participação de seus associados.
As entrevistas realizadas com os responsáveis pela gestão dos recursos do Pronaf nos
respectivos bancos dos municípios analisados descrevem resultados diversos aos dados da secretaria da
Agricultura. Para esses, o município de Araguaína possui Cadeias Produtivas desenvolvidas que contam
com algum grau de interação entre seus membros, pois estão conseguindo adquirir os financiamentos
mediante cooperativas. Em Gurupi a articulação entre os agricultores é baixa, visto que os recursos são
disponibilizados individualmente, pois conforme relato “não há cooperativa com condições de acessar
tais recursos” (informação verbal)10
Portanto a concentração de financiamentos verificado no indicador de Capital social
extracomunitário descreve a seguinte situação: Gurupi não possui nenhum financiamento do Pronaf
mediante cooperativas conforme relato do gerente do Banco do Brasil, portanto nesse município vem
ocorrendo concentração de financiamento para poucos agricultores o que pode ser depreendido com
baixo nível de capital social, pois não há articulação suficiente dos membros das cooperativas e
associações que permitam aos mesmos obterem o financiamento em cooperação.
Já em Araguaína, provavelmente a concentração de recursos entre as famílias é relativamente
menor, pois alguns dos financiamentos são realizados a cooperativas facilitando a participação dos
agricultores e demonstrando que os mesmos possuem certa articulação e cooperação entre seus
membros e possivelmente algum grau de capital social nas suas relações principalmente em se tratando
de cadeias produtivas organizadas na região.
Baseados nos dados e nas entrevistas classificamos Araguaína com nível de Capital Social
Comunitário REGULAR no que se refere a cooperação entre seus membros para obtenção de
10 Informação concedida por LOPES, M.mai, 2012. Agência Banco do Brasil Gurupi. Gurupi -TO
financiamento do Pronaf via cooperativas ( somente 5 no estado) e Gurupi com nível de Capital Social
Comunitário RUIM, pois apesar de apresentar grande número de associações, segundo as entrevistas, as
mesmas tem pouca capacidade de se organizar para acessar o financiamento em cooperativas.
Verificamos anteriormente no cálculo do indicador de Capital Social Extra-Comunitário que o
acesso a financiamentos mediante cooperativas indica a existência de alguma cooperação e interação
dos agricultores, no Tocantins existem apenas 5 projetos financiados via cooperativas, provavelmente
entre 1 a 3 situados em Araguaína e nenhum em Gurupi. No Rio Grande do Sul existem 778 em todo
estado com uma média de 1,6 por município, no Paraná esse número é de 1005 projetos sendo 2,5 em
média por município. Araguaína situa-se próxima dessa média, portanto a classificação REGULAR de
Capital Social Comunitário.
Considerações Finais
Verificamos nesse trabalho a partir da análise de dados e entrevistas que a hipótese inicial do
trabalho foi confirmada. Os municípios de Araguaína e Gurupi possuem baixo nível de
institucionalidade capaz de formar e desenvolver os projetos de agricultura familiar oriundos do Pronaf.
A agricultura familiar no Tocantins é ainda incipiente e o Capital Social ainda se encontra em fase de
formação.
Seguindo a classificação de Woocock (1998) observou-se que o “capital social institucional” é
baixo ou Ruim nos dois municípios analisados, que apesar de existirem os conselhos, tanto estadual
quanto municipais, eles ainda são incipientes existindo predominantemente para o recebimento dos
recursos. A articulação com o Estado é pequena, ainda não existe um Plano Estadual para Agricultura
Familiar e as políticas do Pronaf são implantadas seguindo determinações federais. Existindo, pois
grandes dificuldades na adequação dessas políticas às características e demandas sociais de Estados e
Municípios.
Com relação aos níveis de “capital social extracomunitário” verificou-se certa divergência entre
os municípios. Em Araguaína foi possível perceber a presença de alguns canais de comunicação
alternativos entre associações e agência bancária. Em Gurupi não constatamos a presença de
associações de produtores e movimentos sociais se relacionando de forma efetiva e dinâmica com a
agência gestora dos recursos do Pronaf, nem com outras entidades como universidades. Apesar de
concluirmos que Araguaína possui maior nível de Capital Social Extra Comunitário comparativamente
à Gurupi, comparando-os as médias dos municípios sulinos foi verificado baixo nível de Capital Social.
Portanto classificamos Araguaína com nível REGULAR de Capital Social Extra Comunitário e Gurupi
com RUIM.
Araguaína possui certo nível de cooperação entre os agricultores, pois conseguem acessar o
crédito do Pronaf via cooperativa, situação não verificada em Gurupi aonde vem ocorrendo
concentração de financiamento para poucos agricultores o que pode ser depreendido com baixo nível
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de capital social comunitário, pois não há articulação suficiente dos membros das cooperativas e
associações que permitam aos mesmos obterem o financiamento em cooperação. Portanto
classificamos Araguaína com nível de Capital Social Comunitário REGULAR e Gurupi com nível de
Capital Social Comunitário RUIM.
Portanto, apesar de Araguaína apresentar-se em melhor situação quanto ao nível de capital
social existente (estoque) e estar mais bem preparada para acessar e executar os recursos do Pronaf
(geração de capital social) não foi possível afirmar que esse município, nem tampouco Gurupi, possuem
nível de capital social suficiente e capaz de cumprir alguns objetivos do Pronaf, dentre eles: gerar
desenvolvimento econômico, social, com valorização e dos atores sociais fortalecendo a dinamização
econômica dos espaços rurais, potencializando as relações de proximidade, e as formas associativistas e
cooperativistas de organização social.
Sabe-se que a participação política atrelada a uma tradição cívica que inclui cooperação e confiança
entre representantes e representados são aspectos indispensáveis para geração de Capital Social e
conseqüentemente o desenvolvimento sócio econômico de regiões e países. Cabe ao Estado, portanto
assumir uma postura proativa que contribua com a formação do capital social, através da
descentralização de poder e de políticas públicas, valorizando o conhecimento e realidades locais.
Referências
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CALDEIRA, M.G: depoimento 22 de janeiro de 2013. Palmas –TO. Entrevista concedida a Marcela Ottomar.
CASTILHOS,D.S.B. Capital Social e políticas públicas: um estudo da linha de infra-estrutura e serviços aos municípios do
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.2002. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Rural)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, 2002.
DURSTON.J. El capital social campesino en la gestión Del desarrollo rural. Díadas, equipos, puentes e escaleras.
Comissión Económica para América Latina y El Caribe. Naciones Unidas. Chile, 2002.
FUKUYAMA, F. Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rocco. Rio de Janeiro, 1996.
FURTADO, E.L: depoimento 25 de abril de 2012. Araguaína –TO. Entrevista concedida a Marcela Ottomar.
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ABASTECIMENTO. Relação de Associações e Entidades Cadastradas. Tocantins –TO, Dez.2012.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Cidades 2013. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/cidadesat/index.php. Acesso em 20 de maio de 2013.
LIMA, R.A.S. Informação, capital social e mercado de crédito rural. 2003. Tese (Doutorado em Economia aplicada) –
Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2003.
Introdução
D
etentora de aproximadamente 7,5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia3 é uma
região compartilhada por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Venezuela,
Suriname e pelo território da Guiana Francesa (SOUZA, 2001, p. 15). Além de ser uma
unidade geográfica, a Amazônia é o berço de uma extraordinária diversidade de plantas e animais.
“Trata-se, provavelmente, da maior “fronteira de recursos naturais” do planeta, devido ao seu imenso
potencial energético e mineral e à sua incalculável riqueza biológica”. (ARAÚJO, 2007, p. 133)
Em nível mundial, a bacia amazônica tem a seguinte importância: representa 40% do continente
sul-americano e 5% da superfície terrestre; possui 20% da água doce disponível no mundo, é a terceira
parte das florestas latifoliadas4, e detêm 1% da biota e o maior banco genético do planeta. (OTCA,
2007, p. 29)
Fenzl (2007) afirma que:
Os limites da Amazônia estão ainda longe de serem claramente definidos. Atualmente
se trabalha com três maneiras de aproximação: a) a mais simples é a definição dos
limites hidrográficos da Bacia. Por este ponto de vista, somente pequenas partes da
Guiana e do Suriname pertencem de fato a Amazônia; b) do ponto de vista do bioma
amazônico a Guiana e Suriname poderão ser considerados 100% amazônicos; e
finalmente; c) do ponto de vista político, cada pais define sua região amazônica
através de critérios de políticas internas. (FENZL, 2007, p. 02)
1 Mestrando em Ciência Política e graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG).
Graduado em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás/2010).
tavaresgyn@gmail.com
2 Graduanda em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Goiás (UFG). marizeliaribeiro@yahoo.com.br
3 O nome Amazonas foi dado inicialmente ao rio que corta a planície. Porém, tantas são as peculiaridades, diferenças e
semelhanças entre as diversas conformações regionais, que o vale banhado pelo rio-mar acabou recebendo o nome de
Amazônia, território multinacional e pluricultural. (SOUZA, 2001. p. 15)
4 Florestas dotadas de folhas largas. FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª
É importante ressaltar que a Bacia Amazônica representa uma imagem geográfica particular
para cada Estado portador de parcela desta região natural. Dessa forma, como analisa Mattos (1980):
A Amazônia não simboliza o mesmo espaço geográfico para todos os povos, pois
quando o brasileiro, venezuelano, colombiano, peruano, boliviano, ou outro que
pertença a um dos países amazônicos se refere à Amazônia, está falando na sua
Amazônia nacional. (MATTOS, 1980, p. 84)
Estimativas atuais da biota5 do planeta apontam para a existência de cerca de 1,75 milhão de
espécies, que incluem, entre outras, 4.500 de mamíferos, 10.000 de aves, 1.500 de répteis e anfíbios,
22.000 de peixes, 270.000 de plantas e mais de 900.000 de insetos. (FILHO, 2006, p. 70)
O Rio Amazonas drena mais de sete milhões de quilômetros quadrados, despejando no mar
uma média de 200.000 metros cúbicos de água por segundo (FILHO, 2006, p. 51). Em volume de água,
é o mais caudaloso da terra, quatro vezes mais que o rio Congo (segundo) e dez vezes o rio Mississipi.
Na época das chuvas, 300.000 metros cúbicos de água por segundo deságuam no oceano Atlântico. A
complexa rede hidrográfica do rio Amazonas constitui uma importante ligação entre os países da bacia
e destes com os outros países sul-americanos que não fazem parte da bacia. (BECKER, 2007, p. 43)
Dizer Amazônia é falar sobre potencialidades diversas, entre as quais se mencionam
as riquezas que contém, tanto aquelas que abundam em seu solo, como a qualidade
de seu ar, o verdor da floresta, que quase parece infinita, mas que sabemos frágil, ante
o mau uso que costumamos dar-lhe. (SERRANO, 2006, p. 87 – 88)
Em se tratando de seus recursos naturais, ao longo dos séculos, sobretudo a partir do final do
século XIX, a Amazônia forneceu a matéria prima vegetal indispensável a inúmeras aplicações
5 Conjunto de seres vivos de um ecossistema, o que inclui a flora, a fauna, os fungos e outros grupos de organismos.
farmacêuticas, abasteceu a indústria da borracha natural e “supriu a indústria do couro com milhões de
peles de felinos, crocodilídeos e nutrias” (OTCA, 2007, p. 33). Atualmente, peixes, madeiras, ouro,
petróleo, gás natural, energia elétrica, ferro e outros minerais são extraídos da bacia do Amazonas para
abastecer os mercados internos de seus países e para comercializar globalmente.
De acordo com Becker (1998):
Espaço e posições da Amazônia, historicamente, tornaram-na extremamente atraente
e ao mesmo tempo inacessível. Seu valor econômico e estratégico é transparente na
tese da sua internacionalização que surge ciclicamente com diferentes projetos. Só
recentemente, contudo, se desencadeou a ocupação rápida e sistemática da região,
por forças nacionais e internacionais. (BECKER, 1998, p. 09)
A Amazônia é um exemplo vivo dessa geopolítica, pois nela se encontram todos esses
elementos. Constitui um desafio para o presente, não mais um desafio para o futuro.
Seu povoamento e desenvolvimento foram fundados de acordo com o paradigma de
relação sociedade-natureza, que Kenneth Boulding denomina de economia de
fronteira, significando com isso que o crescimento econômico é visto como linear e
infinito, e baseado na contínua incorporação de terra e de recursos naturais, que são
também percebidos como infinitos. Esse paradigma da economia de fronteira
realmente caracteriza toda a formação latino-americana. (BECKER, 2007, p. 02)
Hoje, o imperativo é modificar esse padrão de desenvolvimento que alcançou o auge nas
décadas de 1960 a 1980. É necessário o uso controlado das fabulosas riquezas naturais que a Amazônia
contém e também do saber das suas populações tradicionais que possuem um secular conhecimento
acumulado para lidar com o trópico úmido. Já há na região resistências à apropriação indiscriminada de
seus recursos e atores que lutam pelos seus direitos. Esse é um fato novo porque, até então, as forças
exógenas ocupavam a região livremente, embora com sérios conflitos. (BECKER, 2007, p. 72).
Com as resistências regionais, os conflitos na região alcançam um patamar mais elevado. Não se
trata mais apenas de conflito pela terra, é o conflito de uma região em relação às demandas externas.
Esses conflitos de interesse, assim como as ações deles decorrentes, contribuem para manter imagens
obsoletas sobre a região, dificultando a elaboração de políticas públicas adequadas ao seu
desenvolvimento.
Para que se possa mudar esse padrão de desenvolvimento é necessário entender os diferentes
projetos geopolíticos e seus atores, que estão na base dos conflitos, para tentar encontrar modos de
compatibilizar o crescimento econômico com a conservação dos recursos naturais e a inclusão social.
Segundo Becker (2007):
Em nível global, a Amazônia é uma fronteira percebida como espaço a ser
preservado para a sobrevivência do planeta. Coexistem nessa percepção interesses
ambientalistas legítimos, e também interesses econômicos e geopolíticos, expressos
respectivamente num processo de mercantilização da natureza e de apropriação do
poder de decisão dos Estados sobre o uso do território. (BECKER, 2007, p. 21)
6 A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (Iirsa) corresponde a uma iniciativa dos doze
países sul-americanos, que tem por finalidade a promoção do desenvolvimento da infraestrutura de transporte, energia e
comunicações, de forma sustentável e equitativa, através da integração física destes países. A Iirsa surgiu efetivamente a
partir de uma reunião dos doze Chefes de Estado, ocorrida em agosto de 2000, na cidade de Brasília. Nesta ocasião,
aprovou-se a realização de ações conjuntas para se impulsionar o processo de integração política, econômica e social da
América do Sul, incluindo a modernização da infraestrutura regional e ações específicas para estimular a integração e o
desenvolvimento de sub-regiões isoladas.
desenvolvimento, além de alegarem que a pobreza é uma das principais causas da degradação
ambiental, de forma que a preocupação ambiental deveria levar a uma real contribuição com o combate
às desigualdades no plano global (LE PRESTE, 2000, p. 274).
Os países amazônicos, em sua maioria, estavam empenhados em programas de
desenvolvimento das respectivas Amazônias. O discurso adotado por eles era de que “a defesa da
preservação ambiental era uma forma de impedir o crescimento econômico dos países menos
desenvolvidos, mantendo assim a estrutura econômica global” (ANTIQUERA, 2006, p. 54).
Outro ponto de divisão de interesses foi sobre o alcance e os limites da soberania nacional. De
um lado, os países mais desenvolvidos sustentavam que a exploração da natureza em um país pode
gerar efeitos para outros, de forma que a soberania nacional não deveria impedir certo controle
internacional das políticas internas que tenham possíveis consequências ecológicas. Essa concepção
permitiu o surgimento da idéia de que algumas áreas deveriam ficar sob controle internacional. Os
países menos desenvolvidos se opõem a qualquer limitação da soberania e defendem o direito exclusivo
de exploração dos respectivos recursos naturais. Uma derivação da controvérsia está materializada na
discussão sobre o princípio da consulta prévia, segundo o qual um país não poderia agir unilateralmente
na exploração de recursos que envolvem outros países (como no caso de rios transfronteiriços, por
exemplo). Seria necessário um entendimento com o vizinho envolvido, ainda que as iniciativas fossem
exclusivamente nacionais. Nesse contexto, “a Amazônia ganha grande importância no debate
internacional, e há, inclusive, participantes da conferência que propõem a internacionalização da região”
(ROMÁN, 1998 apud ANTIQUERA, 2006, p.55).
Outro fator determinante da conjuntura latino-americana na década de 1980 é a crise da dívida
externa. Os grandes projetos desenvolvimentistas tiveram um alto custo, e foram financiados por
empréstimos com taxas de juros flutuantes. Com a política de Reagan de elevar a taxa de juros, a dívida
multiplicou-se drasticamente.
Por volta de 1989, o total da dívida latino-americana já alcançava 420 bilhões de
dólares e somente o serviço da dívida, já tinha transferido para o exterior 150 bilhões
de dólares entre 1982-1987. Cerca de 40% dos ganhos latino-americanos no comércio
exterior se destinavam ao serviço da dívida, isto é, ao manter o principal da dívida nos
patamares atuais. Ocorrendo exatamente num momento em que declinavam os preços
dos produtos de exportação da região e caíam as taxas de investimento produtivo, o
crescimento astronômico da dívida passou a constituir um dos mais graves elementos
de perturbação social do continente. (MOURA, 1992, p. 136-137).
A grave situação econômica também levou os países a voltarem-se para seus problemas
internos, além de ter gerado certo questionamento sobre a utilidade de articulação entre parceiros
enfraquecidos e com economias bastante parecidas. O que os latino-americanos precisavam de fato era
de um apoio substancial dos países desenvolvidos, notadamente dos maiores credores. (ANTIQUERA,
2006, p. 104)
Considerações finais
Referências
ANTIQUERA, Daniel. A Amazônia e a Política Externa Brasileira: análise do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e
sua transformação em organização Internacional (1978 – 2002). Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, 2006.
Introdução
O
s oito anos do governo Lula trouxeram algum avanço no que diz respeito à reforma
agrária. Vemos em todo o País experiências diversas de assentamentos, a maioria bem-
sucedidos. Na região sul e sudeste do estado do Pará o governo federal, através do Incra,
adotou um modelo de assentamento em que os assentados receberam uma gleba de 5,0 ha em média
assim como uma casa popular em uma vila criada dentro do assentamento. Cada assentamento teve a
sua vila criada. Hoje, a maioria dos municípios do sudeste paraense conta com inúmeros assentamentos
e núcleos urbanos em suas zonas rurais, com realidades urbanas complexas.
Observações sistemáticas destes e de outros assentamentos revelam que estes núcleos exercem
um papel fundamental na economia não só do município em que está implantado, mas também de toda
a região e que sua formação nem sempre contempla aspectos importantes da estrutura social e
econômica e revela a importância que o mesmo tem para o município e para a região em que se insere.
Este ensaio se propõe a contribuir com questionamentos para esclarecer os principais impactos
sociais, econômicos e ambientais causados pelo surgimento de núcleos urbanos em municípios da
região Amazônica esperando contribuir para a definição de parâmetros para a elaboração de políticas de
desenvolvimento urbano/rural para o Norte do país.
Assim, este ensaio pretende não fornecer dados empíricos mas traçar uma linha de pesquisa
para o objeto apontado. Pretende-se propor questões para os estudos acerca da formação de núcleos
urbanos no contexto da Amazônia Legal, especialmente aqueles surgidos a partir dos assentamentos
rurais, a partir de reflexões sobre os conceitos de urbano e de cidade, da complexa dinâmica urbano-
rural e da paisagem como elemento que abrange natureza e cultura.
O trabalho apresenta como elementos teórico-metodológicos as linhas de concepção do urbano
de Manuel Castells e a chamada Nova Geografia Cultural. Uma das ferramentas para o estudo é a
percepção ambiental. Segundo Anne Whyte (1977, tradução nossa), “as decisões humanas e ações
relacionadas ao seu ambiente são baseadas não apenas em fatores objetivos, mas também subjetivos:
esse é o princípio básico da pesquisa em percepção ambiental”, a qual incluem linhas de pesquisa como
percepção do ambiente em áreas ecológicas isoladas ou periféricas, percepção de paisagens típicas
construídas de importância ecológica, histórica ou estética e percepção da qualidade de ambientes
urbanos.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 103
Como bem introduz Manuel Castells (2009, p. 35), “toda forma de matéria possui uma
história”, e por isso a história do processo de formação das cidades constitui o primeiro passo para se
estudar as redes urbanas e a organização social do espaço. Inclui, portanto, pensar o processo de
urbanização a partir de lógicas evolucionistas, o que consideramos apenas uma parte da questão, mas
inserir as situações históricas de cada lugar com ênfase nas forças presentes em cada fenômeno que
contribuem para a organização do proprio espaço urbano estudado.
Explicar o processo social que está na base da organização do espaço não se reduz a
situar o fenômeno urbano no seu contexto. Uma problemática sociológica da
urbanização deve considerá-la enquanto processo de organização e de
desenvolvimento, e, por conseguinte, partir da relação entre forças produtivas, classes
sociais e formas culturais (dentre as quais o espaço) (CASTELLS, 2009, p. 36).
formas urbanas ao termo urbanização (id. Ibidem. Grifo do autor). O entendimento do que abarca os
conceitos de urbano e de cidade, portanto, são essenciais para os estudos sobre as formações das
cidades e propostas de intervenção urbana, regularização fundiária, urbanização de favelas
(RODRIGUES, 2009) e no que concerne à formação de núcleos urbanos em assentamentos no
contexto da Amazônia Legal brasileira.
Diante destas complexidades e contradições, a começar pela definição do conceito de urbano,
que no contexto da Amazônia aparece bastante agregado ao rural na sua dimensão produtiva, mas
também no que estas atividades produtivas influenciam nos modos de vida e nas relações sociais,
particularmente, o estudo da paisagem é especialmente importante. Na região Amazônica existe um
forte apelo à relação sociedade/natureza, incluindo referências culturais e ideológicas de cada lugar.
Assim, a paisagem como “fruto da história”, representa além da expressão de referências culturais, as
formas de poder e dominação social (MIRANDA, 2009, p. 335), mas também agrega a construção de
novas identidades e referenciais daquela comunidade.
Um planejamento para a ocupação de territórios que contemple tais questões é cada vez mais
importante no mundo globalizado e competitivo em que vivemos, e para que se alcance sucesso com
um plano, deve-se entender o princípio básico de que as cidades modificam o meio-ambiente em que se
inserem e influenciam as relações entre os seres humanos que nelas habitam.
Alguns questionamentos precisam ser levados em consideração:
Como enfrentar o mercado imobiliário altamente especulativo e excludente garantindo
o direito a cidade para todos? Como implementar a função social da propriedade
contra os interesses da valorização imobiliária?
Que fazer com áreas ambientalmente frágeis, ocupadas pela moradia pobre? Quando
remover ou quando consolidar ocupações ilegais? Quais são os padrões mínimos para
a urbanização dessas áreas ocupadas ilegalmente?
Como fazer, objetivamente, o controle do uso do solo (um dos setores mais corruptos
das gestões municipais na AL) protegendo áreas ambientalmente frágeis e ampliando
o acesso a moradia legal? (MARICATO, 2007).
Esses questionamentos nos ajudam a entender como novas cidades devem ser pensadas e como
as formas de ocupação modificam os contextos urbanos e rurais e suas complexas relações.
Nessa perspectiva, aderimos ao conceito de cultura mais amplo vinculado ao de
desenvolvimento como
[...] um processo complexo, holístico e multidimensional, que vai além do crescimento
econômico e integra todas as energias da comunidade (...) deve ser fundado no desejo
de cada sociedade de expressar sua profunda identidade... (WERTHEIN, 2003, p. 14).
Assim, como pensar políticas de inclusão e desenvolvimento sem levar em conta esses fatores: o
político-econômico e o cultural? Pensamos que a percepção ambiental, nesse sentido, surge como uma
alternativa ao menos para definições de ações que, para além de aplicações irreais, possam tentar
construir um mínimo de dignidade nas políticas de urbanismo nessas regiões. Consequentemente,
pensar nas dinâmicas urbano-regionais e nos seus conceitos fundantes: homogeneidade e polaridade,
para construir políticas de ocupação que favoreçam o desenvolvimento regional, principalmente que
sejam apoiadas, aderidas pelos habitantes desses setores.
da cultura amazônica ligada a atividades extrativistas, com formas peculiares de organização, identidade
e condições de vida).
São realidades distintas no qual o processo de urbanização verificado nas últimas décadas
“precisa ser entendido no bojo da complexidade das relações produtivas, econômicas e sociais vigentes
na dinâmica fronteira ocupacional” (HIGA, 2011, p. 114) a partir de dois momentos: o da formação da
cidade e o de sua expansão.
Segundo a autora, no primeiro momento o núcleo urbano surge vinculado a um processo de
colonização e formação de vilas que dão suporte á atividades como mineração e comércio em
entroncamentos rodoviários. O segundo momento, posterior, contempla o nível de expansão, definido
a partir da infraestrutura urbana e disponibilidade de serviços essenciais, da distância com outros
centros urbanos, da estrutura vigente no meio rural e do sucesso das atividades econômicas
implantadas.
Vivemos um momento de pleno crescimento econômico no qual programas federais de
distribuição de renda impulsionam o surgimento de novos assentamentos e loteamentos em todas as
regiões do País. As novas propostas desenvolvimentistas encontradas no Norte são pressionadas pela
modernização da indústria e da agricultura da região Sudeste (PINHEIRO et. al.,2011, p. 148).
Nas grandes cidades brasileiras vemos que a falta de planejamento tem levado a uma situação de
caos, acarretando graves problemas sociais como o aumento constante da criminalidade e desastres
ambientais. Por todos os lados vemos cidades surgindo sem planejamento algum, e o que é pior,
quando existe um plano de ocupação, o mesmo é feito para atender necessidades de investidores.
Este panorama tem sido objeto de estudo de inúmeros pesquisadores das mais variadas áreas,
de forma que questões ligadas à ocupação de territórios e impactos ambientais são amplamente
discutidas nos mais diversos setores da sociedade. Mas os projetos continuam sendo desenvolvidos,
loteamentos sendo implantados e as cidades continuam crescendo muitas vezes sem incluir o próprio
discurso desenvolvimentista pregado pelos governos.
Nesse contexto de desenvolvimento econômico e de novos fluxos migratórios, especialmenteo
sul e sudeste do Pará tem experiementado na última década o surgimento de cidades médias e pequenas
e consequente complexização de suas funções para a região. Segundo Santos (apud Pinheiro et. al.
2011, p. 160. Grifos dos autores) o que tem ocorrido nao é apenas a urbanização da população e da
sociedade, mas, principalmente, a urbanização do território.
Nesse ínterim, mais um conceito proveniente desse contexto, o de ruralização, proposto por
Machado (apud PINHEIRO et. al., 2011, p. 160. Grifo dos autores) que é evidenciado pelo surgimento
e de novas dinâmicas conferidas a pequenas cidades nessa região, nos apresenta uma perspectiva
interessante de analisar o surgimento destes núcleos urbanos. Esse conceito nos permite questionar, ou
melhor, dinamizar o próprio conceito do urbano e inserir aspectos socioculturais e mesmo ambientais
no estudo destas cidades e dos problemas sociais enfrentados.
Na região Norte do país vemos outra situação peculiar: núcleos urbanos precários formados a
partir de uma política de Estado de redistribuição de terras e renda. A formação de núcleos urbanos na
região Norte, especialmente no Norte do Tocantins e sul e sudeste do Pará, deve ser pensada a partir
dos seus aspectos sociais, ambientais e culturais, através da percepção dos agentes envolvidos na
construção e modificação deste espaço. Por outro lado, vemos crescer, mesmo em pequenas cidades do
interior, quadros das violências e problemas sociais como em qualquer cidade grande.
Mas, além disso, se a perspectiva é o desenvolvimento, outros aspectos entram em jogo. As
desigualdades decorrentes dos novos setores urbanos englobam também o conceito maior de Cultura.
Boa parte das intervenções e projetos de urbanização encontrada no norte do Tocantins e Sul do Pará
não contempla a realidade com a qual nos deparamos nessa região. Assim, cultura, desenvolvimento e
indicadores culturais devem ser conceituados e melhor explicitados nos programas de planejamento de
setores urbanos.
Vários núcleos de assentamentos, após alguns anos de implantação, apresentam alguma
complexidade, assim como uma série de deficiências no que diz respeito à infraestrutura e oferta de
serviços públicos básicos, o que causa problemas sociais e impactos ambientais significativos. Contudo,
mesmo dentro deste panorama de precariedade estes núcleos urbanos apresentam um papel importante
no desenvolvimento econômico dos municípios em que estão inseridos.
Após alguns anos de implantação, percebemos que estes assentamentos apresentam alguma
complexidade, assim como uma série de deficiências no que diz respeito à infraestrutura e oferta de
serviços públicos básicos, o que causa problemas sociais e impactos ambientais significativos. Contudo,
mesmo dentro deste panorama de precariedade estes núcleos urbanos apresentam um papel importante
no desenvolvimento econômico dos municípios em que estão inseridos.
É especialmente nesses contextos que generalizações e soluções “salvadoras” podem surgir,
principalmente quando dentro desses núcleos surge a violência. “É necessário distinguir entre diversas
práticas sociais e culturais. [...] Um dos objetivos dos indicadores culturais para a relação violência-
cultura é precisamente poder construir categorizações que ajudem a esclarecer o mundo caótico da
violência” (GAUTIER, 2003, p. 69).
Diante disto, investigar essas formações urbano-rurais assim como compreender como estes
núcleos se inserem ou modificam a paisagem e o meio-ambiente da região em que está inserido é
fundamental para que possamos estabelecer bons parâmetros de ocupação para a Região Norte do País,
de forma a manter-nos afastados dos erros cometidos no passado, nas grandes cidades brasileiras. Uma
das ferramentas para esse entendimento é a percepção ambiental, linha ainda recente em fase de
construção de procedimentos metodológicos mais aceitos.
Pelo exposto, a observação destes núcleos urbanos propõe algumas ações para o
estabelecimento da formação do espaço urbano, entre outras:
Considerações finais
Segundo Hofling (2001, p. 31), “políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão
de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio, para a redistribuição dos
benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento
socioeconômico”. Este ensaio não defende simplesmente a implantação de consideração a exploração
de novas fronteiras econômicas e produtivas mas também a complexidade socioambiental deste pedaço
da Amazônia Legal em vista a criar espaços urbanos que atendam também a interesses menos
imediatistas, visando a relação da sociedade com o ambiente, tanto da população nativa como dos
grupos migrantes.
Investigar o surgimento de um núcleo urbano assim como a compreensão de como este núcleo
se insere ou modifica a região em que está inserido é fundamental para que possamos estabelecer bons
parâmetros para a Região Norte do País, de forma a manter-nos afastados dos erros cometidos no
passado, nas grandes cidades brasileiras.
Dada a complexidade urbana destes núcleos e paralelamente à sua heterogeneidade cultural, no
que se incluem relações intrínsecas dentro das delimitações do urbano e do rural, os estudos sobre estes
complexos urbanos devem ser menos negligenciados, pois contam uma importante parcela da história
do desenvolvimento ocupacional do Norte do Brasil, reforçado pela emergência de centros urbanos
importantes, como as capitais e cidades de apoio ou de fronteira de povoamento.
Mas não só, novos aspectos socioculturais são demarcados e o planejamento urbano nesse
contexto não pode simplesmente refletir ou replicar projetos já implementados em outras regiões, quer
tenham sido bem ou mal sucedidos.
Referências
Introdução
A
Amazônia brasileira necessita urgentemente de um padrão de desenvolvimento regional que
possa alterar a dinâmica econômica dominante baseada na exploração predatória de recursos
naturais e fornecer aos seus habitantes os benefícios e as inúmeras possibilidades de
utilização de seu patrimônio natural de uma maneira autônoma e integrando processos políticos
comuns através da inauguração de uma escala de ação nacional-continental.
A utilização dos recursos naturais por meio de métodos racionais, a valorização de cadeias
produtivas das populações tradicionais e a formação de novos processos econômicos que levem em
conta as especificidades naturais da Amazônia podem, por um lado, garantir a sustentabilidade da
floresta e, por outro, evitar ingerências externas sobre a região sob um discurso amplamente
contraditório. A contradição se instala através da promulgação de padrões de desenvolvimento pré-
concebidos em fóruns globais pelos principais agentes político-econômicos do sistema interestatal
capitalista que visam à mercantilização dos elementos da natureza e à ‘solução’ dos problemas
ecológicos, sobretudo nos resquícios de biodiversidade global presentes nos países periféricos e
semiperiféricos, pelo domínio de tecnologias ‘verdes’, da imobilização de grandes espaços naturais e da
possibilidade de apropriação do patrimônio genético regional pelas grandes corporações econômicas
dentro de um contexto capitalista de ‘neoliberalismo ambiental’.
A imobilização do patrimônio natural não corresponderá à ‘solução’ dos problemas ecológicos
da região. A criação de parques e reservas naturais pode ser um meio fundamental para a manutenção
de pontos da biodiversidade, mas não solucionam a questão socioeconômica e ambiental que atinge a
Amazônia e seus habitantes. Faz-se necessário implantar modelos produtivos que aproveitem as
vantagens naturais e o conhecimento das populações tradicionais e criar mecanismos políticos que
modifiquem a histórica estrutura produtiva conservadora e ‘ecoagressiva’ da região.
A simples imobilização de grandes reservas florestais reduzirá as possibilidades de utilização da
grande biodiversidade regional, que se constitui como um dos grandes trunfos de um sistema capitalista
‘esverdeado’, e não trará benefícios profundos aos amazônidas e ao bioma. A região precisa de uma
base econômica que sustente a floresta em pé, agregue valor aos seus produtos e distribua os benefícios
de sua utilização à população regional (BECKER, 2011).
1Professor de Geografia do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Mestre em Economia
Política Internacional pelo Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional, do Instituto de Economia, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/IE/UFRJ).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 111
A integração regional é uma tentativa antiga de nações com processos históricos de colonização
exploratória e repressão econômica similares para tentar vencer o subdesenvolvimento. Num
continente marcado pela supremacia política, econômica, cultural e militar dos EUA, a integração
massiva dos países latino-americanos esbarra na dicotomia ideológica daqueles que apoiam a liderança
dos EUA e aqueles que vêm a sua presença como entrave ao desenvolvimento independente da região
(MEDEIROS, 2009).
Os empreendimentos de integração subcontinental em andamento colocam a Amazônia como a
força impulsionadora de ligação entre os vizinhos, mudando o eixo da bacia do rio da Prata e dos
Andes, para a floresta transfronteiriça. No entanto, a complexidade ambiental ainda não conhecida e
mal utilizada, as hostilidades naturais e geográficas da região, e a própria história de incorporação e
posterior isolamento secular da floresta nos Estados nacionais, além da matriz extremamente
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 112
economicista e agroexportadora dos projetos, muitos concluídos, suscitam cada vez mais debates entre
ambientalistas e diversos segmentos sociais sobre a escolha deste modelo de desenvolvimento que se
pretende na Amazônia. A região é mal integrada internamente e também externamente entre os nove
territórios do continente que a compõem.
A integração entre Estados nacionais representa um processo de inter-relacionamento e
interdependência multidimensional dentro de um contexto contemporâneo de globalização e de
regionalização da economia-mundo. Ianni (1999) aponta que a regionalização econômica pode ser vista
como um processo por meio do qual a globalização recria a nação, de modo a inseri-la na dinâmica da
economia-mundo transnacional. A regionalização econômica é estimulada porque, ao se integrarem as
economias nacionais, redefine fronteiras e políticas econômicas, além de rearticular as forças
produtivas. Tal processo se constitui como parte integrante de um novo parâmetro para a articulação
das nações e do desenvolvimento do capitalismo.
Os impactos da globalização e da regionalização concomitantes ao avanço tecnológico da
informática, do incremento da conectividade global através de múltiplas redes e dos meios de
telecomunicação, informação e transportes, reduziram as distâncias e a compressão da relação espaço-
tempo. A multiplicação dos tratados bilaterais e de acordos regionais visando a incrementar as relações
políticas e socioeconômicas são parte do fenômeno da globalização e da revolução científico-
tecnológica.
A integração da América do Sul pode consolidar a hegemonia do Brasil no contexto regional e
definir o subcontinente como sua área de influência. A Amazônia poderia ser parte importante nesse
processo e o seu desenvolvimento pautado no conhecimento da natureza seria fundamental para o
futuro da região e também para uma nova colocação geopolítica do Brasil na no sistema interestatal
capitalista.
Com diferenças entre o discurso de 1990, o do regionalismo aberto, e o atual, embora não tenha
havido uma guinada de 360º, especialmente no campo da infraestrutura, a estratégia do Estado
brasileiro é a de assumir sua liderança natural na América do Sul com ações visando à articulação
regional. Todavia, a integração, para ser de fato consolidada, deve vencer a matriz exclusivamente
comercialista e financeira, mas abarcar sociedade e a cultura e, até mesmo, alcançar a
multidimensionalidade da integração. O processo de buscar uma identidade econômica continental
deveria englobar aspectos sociais, culturais e políticos, levando-se em conta as especificidades naturais
da Amazônia. A região deve ser vista como um trunfo político e a sua natureza como uma vantagem
competitiva, não podendo ser compreendida em sua totalidade como uma gigantesca barreira
geográfica exportadora de commodities.
Becker e Egler (1992) já colocavam no início da década de 1990 os diferentes interesses
externos e a dificuldade nacional em definir uma agenda autônoma para a Amazônia.
2 Conceito de Becker (2010) para salientar um contínuo florestal relativamente preservado e com elevadíssima taxa de
biodiversidade.
conectados, mas não da área situada ao longo do eixo. Hirschmann (Op. Cit.) afirma que a imposição de
uma estrutura uniforme e autoritária, que não leva em consideração as especificidades locais, induz às
desigualdades econômicas. Portanto, é preciso discutir a forma de integração em andamento e que tipo
de desenvolvimento se pretende na Amazônia sul-americana.
Na Amazônia, como visto em experiências a partir da segunda metade do século XX, o
desenvolvimento ocorreu nas pontas do processo, favorecendo o lucro de pessoas e cadeias produtivas
exógenas à região e incentivando o ciclo rodovia–migração–desflorestamento–pasto–pecuária e/ou
grãos. Inegavelmente é preciso a integração da Amazônia, mas como salienta Huntington (1997),
divorciada da cultura, a proximidade não gera por si só aspectos em comum, mas pode induzir
exatamente o oposto.
Porém, há iniciativas internas e externas que se chocam com os interesses e a estabilidade da
região. Cresce o número de bases dos EUA ao redor da Amazônia, especialmente na Colômbia e no
Peru. Governos de ideologias políticas diferenciadas entram constantemente em choque de colisão e a
(des)ordem institucional de governos democráticos ameaça a estabilidade subcontinental, criando
sucessivas crises nas relações internacionais. O futuro da Amazônia deve ultrapassar o jogo político.
Com o pós-II Guerra Mundial, a posição da América Latina nas questões globais pouco se
alterou, exceção a Cuba, grande ator nas relações internacionais na época da Guerra Fria, e ao Brasil,
neste século. Continuamos a ser um emaranhado de Estados nacionais com pouca representatividade e
força política, extremamente dependentes dos países centrais e com territórios abertos para o capital
internacionalizado. Com a globalização, contudo, dois importantes aspectos surgem com força: i) o
regionalismo econômico internacional3; ii) e a globalização dos mercados. Nos últimos trinta anos
proliferaram acordos políticos e comerciais bilaterais e multilaterais no continente. O Pacto Andino, o
Mercosul, a Unasul, a Aladi e a Iirsa foram algumas das iniciativas propostas de maior integração,
sobretudo econômica do continente.
A Iirsa, por exemplo, surge em 2000, e tem grande impulso a partir do primeiro governo Lula
(2003-06). Com objetivos estritamente econômicos de integração regional, a estratégia dos doze
governos signatários da América do Sul, sob a liderança e maciços investimentos do Brasil, é equipar o
continente com infraestrutura energética, de transportes e de comunicações e informação.
Grandes empreendimentos que vêm sendo implementados por iniciativa da Iirsa e da União de
Nações Sul-Americanas (Unasul) podem levar ao avanço da fronteira agropecuária para a floresta
ombrófila densa e, assim, perderemos a biodiversidade que a natureza levou milhões de anos para
constituir. Reduziremos nossas chances de reivindicar e assumir nossa soberania política e econômica
3 O processo de regionalização econômica tem forte impulso no pós-Segunda Guerra Mundial na Europa. A necessidade de
reconstrução de economias arrasadas pelo conflito de 31 anos – 1914/45 –, como afirma Hobsbawm (1995), aproximou
mercados com acordos multilaterais e redução de barreiras tarifárias. Nos últimos cinquenta anos multiplicaram-se os
acordos comerciais em diversas partes do mundo, em especial, citam-se a União Europeia, o NAFTA e a ASEAN.
frente à cobiça internacional a partir de uma estratégia de defesa baseada em um novo modelo de
desenvolvimento. A própria colocação geopolítica do Brasil como uma liderança regional fica ameaçada
no sistema interestatal capitalista.
Urge a necessidade de um salto de qualidade na apropriação da natureza. Reproduzir esquemas
exógenos não significa agregar valor à economia da região, mas torná-la refém de modelos que
perpetuam nossa condição na divisão internacional do trabalho, devastam a terra e desvalorizam o
conhecimento e a população regional.
A Iirsa foi idealizada como estratégia para a integração econômica sul-americana perseguida por
diferentes segmentos defensores da lógica da globalização capitalista, como governos, empresas
transnacionais e instituições financeiras multilaterais. Seus projetos vêm promovendo uma
modernização conservadora. Os eixos rodoviários que já cruzam e/ou cruzarão territórios protegidos,
terras indígenas e zonas importantes para a conservação da biodiversidade, já provocam reações de
ONGs e movimentos sociais, com destaque para a Madre de Dios-Acre-Pando (MAP), na fronteira
Peru-Bolívia-Brasil, área de influência da Rodovia Transoceânica4(Becker, 2004).
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)5, proposto no primeiro ano do segundo
governo Lula, em 2007, e o PAC 2, lançado em março de 2010, são políticas intrinsecamente associadas
à estratégia da Iirsa de equipar o continente sul-americano, em especial, a região Amazônica, com
infraestrutura voltada para as estratégias comerciais com base em investimentos em transportes (em sua
maioria, modelos convencionais) e de energia.
Ações concretas da Iirsa e dos governos sul-americanos a partir da primeira década do século
XXI obedecem a realização de projetos e políticas de maior integração entre os Estados nacionais do
continente. A expansão do Mercosul e de outros acordos multilaterais, a criação da Unasul, em 2007, da
Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), de 2009, sediada em Foz do Iguaçú,
foram medidas que podem favorecer o intercâmbio sociocultural entre os países.
A Amazônia – verdadeiro coração geográfico da América do Sul – pode e deve ser incentivada
como o polo de integração e articulação regional, fortalecendo a soberania dos Estados nacionais que
fazem parte da bacia amazônica, mas também daqueles que compartilham de um passado colonial de
exploração, submissão e subdesenvolvimento?
A Amazônia pode contribuir para o desenvolvimento regional através de um novo modelo de
desenvolvimento, de autonomia e de defesa da floresta que valorize o patrimônio natural e
4 A rodovia Transoceânica, por exemplo, é um dos eixos de interligação proposto pela Iirsa que tem como objetivo
conectar o oceano Atlântico ao oceano Pacífico, constituindo um corredor bioceânico que cruza a Amazônia Ocidental,
parte dos Andes até chegar aos portos peruanos.
5 As obras de construção de hidrelétricas atualmente em voga no país, especialmente na Amazônia, como as de Santo
Antônio e Jirau, no rio Madeira (RO), e Belo Monte, no rio Xingu (PA), são parte integrante do contexto proposto pela
Iirsa, na esfera continental, e pelo Programa de Aceleração do Crescimento – PAC –, em nível nacional.
sociocultural. A chave deste processo vai depender de nossa capacidade de reorganizar e articular o
subcontinente – uma das mais antigas periferias do sistema-mundial capitalista (BECKER, 2009B)?
Trata-se de uma região que sofre os efeitos não apenas do passado colonial e ingerências
externas dos hegemon globais, mas de uma enorme historiografia de preconceito do dominador. Embora
com problemas, perspectivas e contextos internos diferenciados entre os Estados nacionais, aspectos
comuns unem a região. Uma questão pouco debatida nos grandes fóruns econômicos e socioambientais
globais sobre a região é a defesa da natureza e a soberania do território num contexto que não seja
utópico (o sonho dos ambientalistas primeiro-mundistas) e nem predatório (o desejo dos grandes
conglomerados internacionais).
Um novo modelo de desenvolvimento urge para contrapor a pressão ambientalista que reina
sobre a região e a devastação patrocinada pelos Estados nacionais sul-americanos. Mais do que
aumentar a taxa de exportação baseada em commodities, trata-se de se apropriar do que o território tem
de melhor, agregando valor às trocas, modificando estruturas internas arcaicas e passando de um
modelo econômico produtivo fordista para um pós-moderno pautado no conhecimento da natureza e
com base em ciência, tecnologia e inovação (CT/I). Porque exportar commodities e minerais e não
investir em CT/I visando à industrialização e inaugurando uma revolução industrial pautada no
conhecimento sobre a natureza? (BECKER, 2009A).
Como alternativa de desenvolvimento socioeconômico e ambiental viável é preciso atribuir
valor à floresta em pé e valorizar a biodiversidade e os produtos da região como forma de impedir o
desmatamento e o esgotamento dos recursos (BECKER E STENNER, 2008).
Precisamos nos apropriar desta riqueza como forma de ultrapassar a condição de periferia
mundial e afirmar a nossa soberania. Iniciativas de integração regional além das em andamento, isto é, a
implementação de infraestrutura física de transportes, energia e telecomunicações, com capital maciço
dos governos nacionais, surgem com a crítica que podem favorecer somente os grandes conglomerados
internacionais e tornar a Amazônia um imenso corredor primário-exportador do coração da América
em direção aos mercados emergentes do Pacífico, principalmente em direção à China.
Os benefícios da preservação ambiental e tampouco da integração em andamento para a
população regional ainda não estão claros e nem sendo vistos. Constata-se que há mais do que
interesses econômicos e políticos, mas também estratégias de apropriação geoeconômica de atores.
Movimentos sociais, ONGs e membros da academia levantam-se contra esse modelo autoritário e de
degradação ambiental mas, na maior parte da vezes, não se posicionam com clareza e tampouco
criticam a essência mercadológica do sistema capitalista.
Valorizar a cultura latino-americana, resgatar e reescrever nossa historiografia também são
formas de iniciar a integração dos países que estão, na maioria das vezes, voltados mais para o ‘Norte’ e
de ‘costas’ para os vizinhos. Reivindicar uma história cultural diferenciada não quer dizer que somos
inferiores. Pelo contrário, apesar de presos a uma dominação histórica dos tempos coloniais até os dias
atuais, temos autonomia e não somos produtos de uma artificialidade do dominador.
Como aproximar países que estão de costas uns para os outros? O aspecto econômico deve
complementar a integração desses países. A integração entre os Estados nacionais implica um processo
de inter-relacionamento e interdependência multidimensional perpassando aspectos socioculturais e
políticos, isto é, os aspectos econômicos devem ser parte da integração, e não a integração em si
(BARBIERO; CHALOULT, 2001). Conciliar a natureza, a cultura e a economia é uma premissa
imposta pela integração. A Amazônia também é o território que une os países, os diversos povos
originários, e onde a floresta e a bacia hidrográfica ultrapassam as fronteiras nacionais - do Atlântico ao
Pacífico, chegando ao Caribe, aos Andes, ao Pantanal e ao Cerrado. A Amazônia é a grande riqueza e é
a região transfronteiriça sul-americana. Além do aspecto natural e fisiográfico, a variedade étnica e
linguística é uma vantagem competitiva regional.
Este milênio promete ser o do conhecimento daqueles que se apropriarem do melhor
aproveitamento da tecnologia, da natureza e da biodiversidade. Os países que agirem neste modelo de
desenvolvimento, em consonância com a sustentabilidade do meio e das próximas gerações, serão os
líderes de um novo momento histórico e de uma nova geopolítica das nações. Assim, a revolução do
pensar e do agir sobre a natureza, inclusive com o valor econômico dos serviços ambientais, pode levar
os Estados amazônicos ao topo da inovação de patentes.
Pensar a Amazônia apenas como fronteira agropecuária ou mineral é desvalorizar os milhões de
anos da construção da biodiversidade. Os países centrais já sabem do valor estratégico da natureza e
começam a expandir seus domínios sobre os hotspots6 globais. A utopia sobre o conservacionismo
ambiental impede o melhor aproveitamento da natureza e, ao contrário, não controla o avanço da
degradação.
Algumas ações devem ser colocadas como agenda dos Estados-nacionais: i) a recuperação de
áreas degradadas aliada às pesquisas visando ao aumento da produtividade agrícola e da pecuária
intensiva; ii) a regularização de leis severas contra o desflorestamento; iii) equipar melhor o Estado nas
regiões amazônicas; iv) apoiar os instrumentos de certificação de produtos sustentáveis; v) e no caso
brasileiro, modificar o viés mercadológico e ruralista do Código Florestal e repensar o papel das
commodities na Balança Comercial. Sawyer (2009) afirma que a iniciativa mais ousada seria uma moratória
privada e pública, no Brasil e no exterior, contra a compra de produtos provenientes de áreas de
desmatamento novo, não apenas para a soja na Amazônia, mas também incluindo o Cerrado e outros
biomas ao redor do mundo.
6O conceito de hotspot foi criado pelo ecólogo inglês Norman Myers, em 1988. Para Myers, hotspots seriam as regiões que
concentram os mais altos níveis de biodiversidade e onde as ações de conservação seriam prioritárias. São consideradas
hotspots áreas com pelo menos 1500 espécies endêmicas de plantas e que tenham perdido mais de três quartos de sua
vegetação original.
À agenda devem ser incluídas a união e a integração. Antes de tudo os países amazônicos têm
que agir de maneira complementar e ter posições comuns no mercado internacional de commodities, e
não serem competidores ferrenhos. Daí a necessidade do Brasil, como a maior economia, território e
população do subcontinente, assumir a liderança natural na região.
A competição é uma característica do capitalismo, mas que pode levar aos conflitos e às crises
diplomáticas. Desse modo, neste início de século, ao que parece, nota-se a mera reprodução de
modelos esgotados de desenvolvimento pautados na degradação do patrimônio natural e no
esgotamento dos recursos naturais por parte dos próprios países sul-americanos, colaborando com a
crítica do discurso utópico ambientalista global.
A Amazônia Legal ocupa 2/3 do território nacional, e a bacia hidrográfica da Amazônia cerca
de 3/5 do continente sul-americano. Atravessa nove países, no entanto, sua frágil integração dentro dos
países e entre os países fronteiriços constitui uma das dificuldades encontradas na tomada de decisões e
na defesa e melhor utilização do patrimônio natural e cultural. Uma outra característica comum acerca
da soberania da Amazônia refere-se justamente à questão interna, isto é, a face interna da soberania. Os
países sul-americanos têm em comum a marginalidade do território amazônico e a fragmentação
socioespacial da Amazônia ao tecido econômico nacional; a baixa densidade demográfica, conflitos de
terra, isolamento secular, tráfico internacional de drogas e armas, a ameaça da biopirataria etc.
Sobre a Amazônia perduram imagens obsoletas e mitos que dificultam a tomada de decisão nas
políticas públicas e, além disso, complicadas por fortes conflitos de interesses quanto ao uso do
território regional. Acerca disso, Becker (2004) afirma que a regionalização pode ser um instrumento de
planejamento para o desenvolvimento e para a sustentabilidade quando as políticas estão adequadas às
diferentes realidades regionais. Um macrozoneamento da Amazônia sul-americana seria uma boa ação?
Os discursos da crítica ambientalista baseada em uma consciência-ecológica legítima e da lógica
integracionista devem atuar juntos na promoção do desenvolvimento voltados para a valorização do
patrimônio natural, para o intercâmbio socioeconômico e cultural dos amazônidas.
A forma de integração em andamento pode corroborar o discurso ecológico primeiro-mundista
e tornar a região um cenário imobilizado e utilizado pelos principais atores do sistema interestatal
capitalista com a política institucionalizada do ‘pagamento pelo direito de poluir’. É preciso repensar
também que tipo de desenvolvimento se pretende na Amazônia sul-americana, e como um novo
modelo de desenvolvimento autônomo pautado no conhecimento da natureza pode favorecer uma
estratégia de defesa e afirmação dos Estados nacionais na atual conjuntura do sistema interestatal
capitalista.
Nas últimas décadas, a disputa por recursos naturais travadas por grandes conglomerados
internacionais e nacionais, a demanda por commodities e a utopia ecológica polarizam a discussão sobre o
futuro da região.
Na passagem do milênio e com a emergência da ameaça das mudanças climáticas, introduziram-
se a biodiversidade e os serviços ambientais como elementos de um novo modelo (BECKER, 2007).
Trata-se de uma novidade histórica que valoriza as funções dos ecossistemas e não mais apenas sua
estrutura, sinalizando para o novo modo de produzir baseado na informação e no conhecimento como
fonte de riqueza, capaz de utilizar sem vilipendiar o patrimônio natural (BECKER, 2009A).
Becker (2001;2005) resgata Polanyi (1944/1980) e aponta a mercantilização da natureza como a
novidade histórica e a grande transformação do nosso tempo. Os serviços que a natureza pode oferecer
são colocados no mercado (mercado do carbono, mercado do ar, mercado da água etc.,) como
mercadorias fictícias buscando, principalmente, a redução de emissões de gases do efeito estufa, a
regulação climática e a manutenção da biodiversidade e da função das florestas tropicais.
Na visão deste trabalho, tal discussão encabeçada, sobretudo pelo mecanismo REDD e pelo
mercado do carbono, não pode ser desprezada, mas não seria a melhor e nem a única solução para os
amazônidas, que são os verdadeiros protetores do bioma. Ambos se mostram incapazes de alavancar o
desenvolvimento regional autônomo e de garantir a defesa do patrimônio natural. Além disso, corre-se
o risco de ingerência externa e privatização (e imobilização) de grandes áreas florestais.
A população tradicional da Amazônia – nações indígenas, ribeirinhos, pequenos agricultores –
ficaria à margem do processo de acumulação de riqueza. O pagamento pelo direito de poluir manteria
as históricas desigualdades fundiárias na região. Isto é, seria uma premiação ao modelo latifundiário.
A valoração econômica pode ser uma estratégia de defesa do capital natural (MOTA, 2006),
mas é preciso conciliar também o aproveitamento de cadeias produtivas a partir do conhecimento
tradicional dos diferentes grupos culturais da região, além de inserir a população nesse processo,
buscando a promoção do bem-estar e de justiça socioambiental.
Buscar um modelo que utilize a natureza como estratégia de defesa e desenvolvimento aliado à
manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos é uma das formas de modificar as pressões
mercantilistas, ideológicas e utópicas sobre a região. Os Estados nacionais que estão inseridos na Bacia
Amazônica devem ter o controle deste território e serem os principais agentes de transformação. O
conhecimento e o inventário dos bens e serviços que a natureza pode oferecer têm que ser uma política
pública de Estado, independentemente da natureza do governo. O patrimônio natural, hoje, é um valor
estratégico e, por isso, deve ser parte do interesse nacional-continental, já que o desenvolvimento
regional depende de ações conjuntas e complementares dos Estados nacionais.
A estratégia pode ser a de tornar a floresta um ‘laboratório vivo’ e CT/I, com foco na cura nas
próprias doenças e enfermidades que afligem a população regional, nos tratamentos preventivos
naturais e na produção de fitoterápicos, inclusive com a criação de uma empresa pública plurinacional
sul-americana no setor farmacêutico.
Como uma importante inovação institucional, a criação de empresas interestatais de gestão
conjunta dos países amazônicos para a questão do desenvolvimento do patrimônio natural é uma das
alternativas viáveis a serem discutidas na atual conjuntura global ambientalista com foco e pressões
sobre a Amazônia. Uma das premissas para isso seria a criação de universidades em áreas de fronteira
para formar mão de obra qualificada numa região continental tão carente de infraestrutura física e de
pessoal. A criação de tecnopolos, company towns e empresas estratégicas incentivaria a vinda de outras
que aproveitariam as vantagens locacionais e naturais do território.
O conhecimento regional deveria ser preservado e explorado pela ciência e tecnologia (dos
Estados nacionais) na criação de produtos extrativistas para produção de fármacos, fitoterápicos,
cosméticos, alta gastronomia, artesanato, arte etc., agregando valor à produção regional e formando
cadeias produtivas locais competitivas, inclusive com a distribuição de royalties pela utilização desse
conhecimento.
Qualquer que seja o resultado do debate sobre o modelo de desenvolvimento e/ou de
preservação em andamento, sabe-se, que hoje, os custos ecológicos e socioeconômicos do modelo atual
recaem sobre grupos populacionais que não participam dos benefícios decorrentes da imensa
acumulação de riquezas do modelo exportador de commodities agrícolas e minerais e tampouco da
privatização de milhões de hectares de florestas em proveito de grandes conglomerados empresariais
externos à região e de especuladores do mercado financeiro.
O desenvolvimento deve ser entendido como algo além de um representativo crescimento de
determinados setores da economia. Precisaria ser um desenvolvimento econômico aliado às melhorias
sociais e baseado na universalidade da saúde, que envolve o também acesso à cultura e à representação
política inclusiva e, em consonância e harmonia com o meio ambiente.
Para isso, a sustentabilidade deve estar aliada a um imperativo ético reformista. O sistema
interestatal capitalista necessita se reinventar para evitar sua autodestruição, tanto do meio ambiente
quanto dos homens!
Historicamente o capitalismo se recicla e se reconfigura. Em seu estágio atual, os rumos que as
biotecnologias seguirão podem determinar a perpetuação ou a solução de alguns dos problemas da
relação do homem com a natureza. A partir de um enfoque amazônico, a questão climática, da saúde
humana, do acesso a bens e serviços, além da promoção da justiça socioambiental são os principais
pontos que se colocam neste início de milênio.
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em 12/12/2011
1. Introdução
A
expansão da monocultura destinada à exportação é um estigma do dito “desenvolvimento
da agricultura” no Brasil e no mundo. Decorrente da inserção do capital produtivo no
contexto agropecuário, a expansão das fronteiras agrícolas produziu disparidades frementes
ao ambiente rural, sobretudo a desarticulação da chamada agricultura familiar. De um lado, grande
sucesso comercial das culturas de exportação e, de outro, escassez relativa de gêneros alimentícios,
exploração predatória da natureza, escravização da mão-de-obra (ROMEIRO, 1998). A degradação da
natureza e a ociosidade da força de trabalho são recorrentes na geração de desequilíbrios climáticos e
urbanos, nessa ordem. Acrescenta-se a isso uma dose de escassez de alimento e tem-se a composição
“perfeita” para as piores mazelas e conflitos sociais.
Torna-se maçante dizer que o êxodo rural decorrente desse processo induziu o inchaço dos
grandes centros urbanos, ao mesmo tempo em que afastava o agricultor de seu território. Território
este responsável por produção de alimentos necessária à subsistência do homem do campo assim como
do homem urbano. Esse era o cenário antes da intromissão do capital produtivo e acumulativo.
Certamente a busca da produtividade necessária a atender o interesse consumista do atual
sistema econômico, é que tem provocado tais disparidades. Principalmente porque a produtividade dos
empreendimentos agroindustriais supera em grande montante o rendimento dos empreendimentos
familiares. De modo que, para ser competitivo e sobreviver, é preciso adotar pacote tecnológico que
exige elevados investimentos, bem como possuir uma área mínima relativamente grande ou ocupar um
nicho de mercado (BUAINAIN et al 2003).
A resultante desse processo é quase obvia, forte migração de pequenos produtores para áreas
urbanas e uma intensa desapropriação da cultura produtiva que outrora vigorava. Houve uma
expropriação involuntária desses campesinos que passaram, a partir desse momento, ocupar novos
espaços. Todavia, a falta de atributos compatíveis com o novo espaço de atuação, sobretudo o urbano,
estes acabaram por ficar à margem do processo de consumo, logo depois de serem excluídos do
produtivo.
Mais recentemente tem-se debatido a volta do homem do campo ao ambiente rural como
forma de reduzir conflitos urbanos assim como para fomentar a produção de alimentos que é
insuficiente. Buainain et al (2003) coloca como condição necessária para eliminação da pobreza e de
suporte essencial a um processo de redistribuição de renda, um projeto de desenvolvimento rural
apoiado na produção familiar. Nesse sentido torna-se trivial levantar a seguinte questão: Quão salutar é
o modelo de desenvolvimento rural brasileiro, em especial os programas para a agricultura familiar, ao
propor um retorno do homem do campo ao campo, para “produzir para outros aquilo de que não tem
necessidade ou que não tem os meios de utilizar” (SANTOS, 2003). Este artigo propõe-se a discutir as
modificações ocorridas no contexto rural brasileiro e as políticas destinadas a esse setor, em especial o
Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), com o intuito de contribuir com a
discussão e prerrogativas que permeiam o novo contorno do rural no Brasil.
É consenso que o pós-segunda guerra mundial marcou mudança de paradigma para a sociedade
em geral, sobretudo os contextos associados à possibilidade de desenvolvimento econômico. Entrou
em curso um período em que o padrão civilizatório dominante3, impulsionado justamente pela idéia de
“desenvolvimento”, forneceu subsídio para a implantação de um sistema que concentra e acentua as
diferenças socioeconômicas dos países.
Nesse ínterim, as nações desenvolvidas reduziram gradualmente a parte da população envolvida
no ambiente rural, enquanto que na maioria dos demais países essa parcela ainda significava grande
proporção. Além disso, a agricultura tinha papel importante nas economias e concentrava sua produção
baseada na subsistência. Logo após um longo período de dominação estatal, e antecedido por uma lenta
acumulação de inovações anteriores, constituiu-se uma nova e acabada “compreensão de agricultura”
que gradualmente se tornou hegemônica em todo o mundo (NAVARRO, 2001).
A intromissão de capital transnacional como meio planejado de “desenvolver” as economias
subdesenvolvimento tem fomentado o fracasso das mesmas, inclusive da agricultura familiar, sobretudo
a camponesa voltada para a subsistência. Esse é, certamente, um modelo de produção aprimorado para
efetivação do capital no ambiente produtivo.
No meio Científico tal modelo é conhecido como “o modelo euro-americano de modernização
agrícola”, que segundo Bonny apud Dufumier e Couto (2003), enquanto sistema de produção difundiu,
em termos mundiais, a chamada “revolução verde”. Que nada mais é do que “o passaporte de ingresso
do capital produtivo no mundo rural dos países subdesenvolvidos”. Após um longo período libertando-
se da dominação estatal, ter-se-ia agora que libertar-se da dominação do capital. Navarro (2001)
descreve que este processo intitulado como revolução, teve forte característica tecnológica, fazendo
com que houvesse o processo de produção rural ficasse subjugado a novos interesses, este coincidiu
Definitivamente, não se pode mais confundir ou interpretar como sinônimos o espaço rural e as
atividades produtivas ali desempenhadas (SCHNEIDER, 2003).
O intuito não é renegar as inovações impostas à agricultura, sobretudo a melhoria dos
rendimentos físicos da terra, além do mais, os ganhos de produtividade do trabalho. Contrapõe-se ao
paradoxo que esse modelo desconhece, exploração e superexploração de mão-de-obra cada vez mais
temporária, o aumento do desemprego, do subocupação (DUFUMIER E COUTO, 2003), e, em
decorrência disso, o êxodo rural cada vez mais intenso.
Acrescenta-se a isso, a problemática ambiental que é, talvez, uma das únicas resistências
encontrada por esse modo de produção, visto que em longo prazo sua base produtiva estaria
comprometida. A ineficiência poderá vir à tona à medida que a capacidade de rendimentos físicos da
terra começar a decrescer. Todavia, é evidente que, para esta nova agricultura, é trivial considerar as
conseqüências dos impactos ambientais decorrentes de práticas agrícolas, já que estas estão diretamente
ligadas ao nível de rentabilidade, mesmo que, quase sempre, “maquiados” a partir do uso de
componentes químicos.
Ao problema agrário nos termos aí propostos, propõe-se uma estratégia explícita de reforma
agrária que contém duas vertentes principais, para atacar simultaneamente as variadas relações de
trabalho injustas e também às iniqüidades da estrutura agrária (DELGADO, 2001). Já que, aos moldes
atuais, cada vez mais a agricultura não vai atuar no sentido da transformação dos latifundiários em
empresários capitalistas, mas, ao contrário, transformou os capitalistas industriais e urbanos em
proprietário de terra, latifundiários (OLIVEIRA, 2001).
Verifica-se o monopólio da terra pelo capitalista, expulsando e/ou subordinando o camponês
aos interesses do capital. Trata-se da territorialização das relações capitalistas de produção no campo
(SANTOS, 2007). Essa também é a resultante no caso do Brasil, concentração fundiária e de renda
caracterizam o campo.
migração de campesinos para outros espaços territoriais. Mais de 10 anos de abertura comercial da
economia significaram perda de renda para a agricultura nacional e não contribuiu na superação da
fome e da insuficiência alimentar no país (Deser, 2002).
oposto ao que justifica tal comportamento rural como sendo um fenômeno natural decorrente da
aproximação dos atributos da agricultura brasileira da agricultura de países capitalistas desenvolvidos.
De fato, as políticas públicas voltadas para o desenvolvimento rural brasileiro que surgiram a
partir dessa ideologia buscam incessantemente o “mito do desenvolvimento de uma nova agricultura”.
Mesmo que as evidências incorrem em sentido contrário, mostrando, na vida real, que há uma
interiorização de políticas públicas desapropriadas ao homem do campo.
Portanto, esse contexto analítico resulta numa única conclusiva, quase sempre, as políticas rurais
brasileiras andaram na contramão das necessidades do campo, pois além de priorizarem a agricultura
patronal em detrimento da agricultura familiar, conseguiram o “fascínio” de expelir, mais e mais, a
população rural para as grandes e médias cidades.
Em decorrência disso, o êxodo rural prevaleceu chegando a atingir na metade da década de 90,
5,6 milhões de indivíduos (ABRAMOVAY; VEIGA, 1999). Esse mesmo autor afirma que se mantida
essas taxas de crescimento, até o final da década ter-se-ia migrado cerca de 29,3% da população
residente no início do período.
Essa constância nacional reafirma-se a partir da análise das estimativas dos sensos
agropecuários. Os dados referentes a 1992, divulgados pelo Incra, mostravam que havia no Brasil
3.114.898 imóveis rurais e, entre eles, 43,956 (2,4%) com área acima de mil hectares, ocupando
165.756.665 hectares. Enquanto isso, outros 2.628.819 imóveis (84,4%), com área inferior a 100
hectares (EVANGELISTA, 2000). Ainda de acordo com esse autor, os estabelecimentos agropecuários
com área de até 100 hectares cresceram de 1940 (1.929.995) até 1985 (5.252.265), porém conheceram
uma redução no censo de 1995/96 (4.318.861). Esses estabelecimentos rurais ocupam uma área de
353,6 milhões de hectares. Desse total de estabelecimentos, subsistem cerca de 4.139.369 que são
considerados como familiares, representando 85,2% do total, mas que só dispõem 30,5% das áreas
ocupadas, enquanto que a patronal ostenta 67,9% e representa somente uma proporção de 11,4%
estabelecimentos.
A má distribuição da propriedade da terra é o traço mais marcante e, ao mesmo tempo, a
principal distorção da estruturação fundiária no Brasil (BUAINAIN et al, 2003).
A participação da agricultura familiar no Valor Bruto da Produção (VBP) é de R$18.117.725, ou
seja, 37,9%. Já os estabelecimentos patronais representam 61% do valor total. Estabelecendo-se uma
proporção entre VBP e áreas ocupadas por agricultores familiares e patronais, conclui-se que a
utilização das terras pela agricultura familiar é mais eficiente em 38,48% quanto à distribuição de renda
comparado com a agricultura patronal. Quanto à Renda Total (RT) agropecuária, a agricultura familiar
responde por 50,9% do total de 22 bilhões.
Portanto, é evidente a importância desse setor agropecuário para a produção de distribuição de
riqueza de um país. Buainain et al (2003) argumenta que os agricultores familiares são mais eficientes na
utilização dos recursos do que os produtores não-familiares, e defende isso com o argumento de que os
primeiros empregam e produzem mais do que os outros.
Denardi (2001) fala que as politicas públicas destinadas a agricultura família foram basicamente
as politicas agrícolas, dado que as agrarias tenderam a não existir. A propósito, o dito “mundo rural
brasileiro” quase sempre não obteve real atenção das políticas públicas, houve de fato, ao longo de todo
esse tempo, muito discurso e pouca prática.
Esse fato germinou inúmeras mobilizações de organismos não governamentais e sindicatos pelo
Brasil “a fora”, as quais assumiram, muitas das vezes, formas radicais e violentas. Como escreve
Oliveira (2001), a história que marca a Longa Marcha do campesinato brasileiro está escrita nas lutas
muitas vezes (ou quase sempre) sangrentas desta classe social.
Em 1996, após total reformulação do Programa de Valorização da Pequena Produção Rural
(Provap) instituído em 1994 pelo então presidente Itamar Franco e a criação do programa nacional de
fortalecimento da agricultura familiar – Pronaf (nesse sentido ver MATTEI, 2001), surge um princípio
de deslocamento do discurso rumo à prática. Alguns críticos da área concernem o Pronaf como sendo a
primeira política federal de abrangência nacional voltada exclusivamente para a produção familiar
Alfafin (2007).
No manual operacional do Pronaf define-se como objetivo geral do programa, propiciar
condições para aumentar a capacidade produtiva, a geração de emprego e de renda, de tal forma a
melhorar a qualidade de vida dos agricultores familiares. Para tanto, dever-se-ia incorrer em alguns
objetivos específicos, tais como: i) ajustar as políticas públicas de acordo com a realidade dos
agricultores familiares; ii) viabilizar a infra-estrutura necessária à melhoria do desempenho produtivo
dos agricultores familiares; iii) elevar o nível de profissionalização dos agricultores familiares através do
acesso aos novos padrões de tecnologia e de gestão social; iv) estimular o acesso desses agricultores aos
mercados de insumos e produtos.
O Pronaf – Investimento dispõe como objetivo financiar as atividades agropecuárias e não
agropecuárias exploradas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor rural e de sua
família. Entende-se por atividades não agropecuárias os serviços relacionados com o turismo rural, que
sejam compatíveis com a natureza da exploração rural e com o melhor emprego da mão-de-obra
familiar.
O programa estabelece classificação para os agricultores familiares a partir da renda familiar
originária da atividade agropecuária, renda máxima, quantidade de módulos fiscais, status de exploração
da terra, utilização de mão-de-obra e por fim, residir ou não no imóvel. Quando a operacionalidade,
este se divide em Crédito Rural para custeio e investimento, Infra-estrutura e Serviços Municipais e
Capacitação.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 130
Tabela 01. Distribuição da Quantidade produzida por tipo de produção segundo tipo de agricultura
para o ano de 2006
Tipo de Produção/Produto Agricultura Familiar Agricultura não-familiar
Produção Vegetal 40 60
Arroz em Casca 33,9 66,1
Feijão Preto 76,8 23,2
Feijão de Cor 53,9 46,1
Através da Tabela 02, pode-se perceber que o financiamento do Pronaf está destinado a
produção agroindustria. Tal perspectiva é notada com a verificação dos valores destinados aos itens de
produção Soja, Café, Cana-de-açúcar, algodão, Fumo e milho, que representam mais de 31% do valor
total financiado pelo programa à lavoura, isto para o ano de 2006. Proporção que teve aumento de 7%
para o ano de 2010, atingindo aproximadamente 38% do valor financiado. Ainda percebe-se que trigo
foi o que obteve o maior aumento nos valores de financiamento, sendo de mais de 200% em relação ao
período, seguido por Café (aproximadamente 89%) e Soja (67%). Ainda, apresentam-se os valores
destinados ao investimento agrícola, assim de tal investimento, mais de 34% são destinados para a
aquisição de Maquinas e Equipamentos e apenas, aproximadamente, 4% destinados a investimento em
animais de serviços.
Nota-se, portanto, o caráter contraditório de uma política que aposta no desenvolvimento local
e em potencializar atividades diversificadas (via industrialização, turismo, lazer, etc), mas,
paradoxalmente, insiste na ênfase à profissionalização e apoio ao verdadeiro agricultor (Carneiro apud
Anjos et al, 2004). O próprio Denardi (2001) chama a atenção para o caráter dos financiamentos
efetuados na região sul do país. Segundo ele quase só milho, soja, fumo e, para alguns municípios,
feijão, ou seja, monoculturas destinadas à exportação, recebem recursos. Além de não haver interesse
de modificar o sitemas de produção, para reconversão produtiva e para atividades não-agrícolas no
meio rural. E ainda, a maioria dos bancos não estão dispostos a financiar sistemas diversificados e
sustentáveis, ou produtores orgânicos e diferenciados.
Têm-se, dessa forma, uma versão disfarçada do interesse produtivista incorporado em políticas
públicas a fim de enraizar-se no ambiente rural.
Guanziroli (2007) alerta para constante avaliação que deve-se fazer a este programa por se tratar
de uma política pública que envolve altos custos e subsídios.
6. Cosiderações finais
Referências
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Possível. V Encontro da Agricultura Familiar Chapecó. Oficina: agricultura familiar, ALCA e OMC. Curitiba, jul
2002.
DIEESE. Estatísticas do Meio. Disponível em: http://www.dieese.org.br/anu/anuarioRural/anuarioRural10-
11.pdf. Acesso em: 15 de agosto de 2012.
Introdução
D
urante o período de modernização da agropecuária brasileira, principalmente da
agricultura, compreendido entre as décadas de 1950 e 1980, às políticas de caráter
nacionalistas adotadas pelo governo brasileiro somaram-se a outras ações específicas que
fomentaram o desenvolvimento regional do Centro-Oeste, sobretudo, nas décadas de 1970 e 1980.
Com a crescente demanda por alimentos, matérias primas e agroenergia, buscou-se expandir as
fronteiras agrícolas do país, com a presença, principalmente, de grandes empresas nacionais e
estrangeiras.
Este estudo teve como meta estudar a evolução da agricultura no Brasil, tendo como estudo de
caso a Região Centro-Oeste. A escolha desta região justifica-se pelo fato da mesma ter sido moldada
para ser um centro produtor de grãos do país. Esses grãos podem ser comercializados como commodities
e, também, destinados à produção agroindustrial e de agroenergia, como é o caso da soja. A região
ainda possui uma área significativa ocupada pelo plantio de cana-de-açúcar, que pode ser destinada
tanto para a produção de açúcar, quanto para a de etanol. Não se pretende exaurir o tema, mas
contribuir para a discussão sobre o mesmo. Os dados analisados de comercialização, crédito, projetos
agrícolas, posse e uso da terra e outros foram coletados em instituições renomadas como Banco Central
do Brasil, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
Companhia Nacional de Abastecimento e Ministério de Minas e Energia, além de outros.
Questão agrícola
1 Mestrando em Agroenergia, Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil - Email:
rafaelavila@uft.edu.br
2 Profª Drª do Mestrado em Agroenergia, Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil - Email:
yolanda@uft.edu.br
3 São grandes empresas que atuam na intermediação do comércio de produtos entre países (STEFFEN; MORINI, 2006).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 136
especificamente a partir de 1985, e foi marcada pela transferência de grandes conglomerados da região
Centro-Sul para o Centro-Oeste e pela consolidação do complexo grãos-carne).
No Estado de Mato Grosso, a dinâmica da cadeia produtiva do agronegócio envolve atividades
como a comercialização da produção, o fornecimento de sementes, insumos, tecnologias, créditos,
logística e venda de commodities. Todo processo produtivo e de logística gerenciado por grandes grupos
econômicos nacionais e internacionais, podendo citar: ADM, Cargil, Fiagril, Amaggi, Sadia, Perdigão,
Dreifus, Bunge e Coimbra (DÉ CARLI; TOCANTINS, 2009).
Políticas governamentais
4O período de vigência foi alterado para 1975-1978 por dificuldades em sua implementação (EMBRATER, 1977 apud
GONZALEZ, 2006, p. 57).
Figura 1 – Evolução dos recursos destinados ao Sistema Nacional de Crédito Agrícola no Brasil (valores
reais em Bilhões de reais). Centro-Oeste, 1970-1995.
Fonte: Anuário Estatístico de Crédito Rural, Banco Central do Brasil (1996) apud Teixeira e Hespanhol (2006, p. 62).
O uso de tecnologias como trator e terra irrigada também sinalizam os níveis de modernização
verificados no Centro-Oeste (Figura 2).
Terras irrigadas;
1995; 260.953
Terras irrigadas;
Terras irrigadas; 1985; 63.221
Terras irrigadas; 1980; 47.215 Tratores; 1995;
Terras irrigadas; 1975; 35.490 Tratores; 1985;
Tratores; 1980; 114.684
1970; 14.358 86.233
Tratores; 1970; Tratores; 1975; 60.363
10.283 28.482
Analisando a Figura 2 percebe-se que houve aumentos sistemáticos ao longo de toda a série.
Em 1970, o total de tratores que era de 10,3 mil unidades passou para 114,7 mil unidades em 1995, um
crescimento superior a dez vezes. No mesmo período, as terras irrigadas partiram de 14,4, mil para 261
mil hectares, um aumento de mais de dezessete vezes. A modernização do campo (tratores) não se deu
com a mesma intensidade em toda a região e foi mais presente nas áreas de lavouras temporárias e de
commodities, sobretudo soja e trigo. Segundo Ipea (2006) apud Almeida et al. (2006), a maior concentração
do uso de máquinas se deu no Sul da região, em áreas pertencentes ao Mato Grosso do Sul e Goiás.
Em 1995 estes dois Estados foram responsáveis por 68,9% ou 70 mil do total de 114,7 mil tratores,
enquanto o Mato Grosso obteve 28,6% ou 32,8 mil unidades e o Distrito Federal obteve 1,9% ou 2,2
mil unidades.
A Tabela 1 traz algumas características dos estabelecimentos agropecuários, como Pessoal
Ocupado, número de Tratores e Pessoal Ocupado/Trator, que ajudam a entender os níveis de
desenvolvimento do agronegócio no Centro-Oeste. Através da mesma, nota-se uma queda no número
de Pessoal ocupado em todas as Unidades Federativas do Centro-Oeste, entre 1970 e 2006, variando
apenas as proporções. A exceção ocorreu no Distrito Federal, onde o aumento pode estar relacionado
com a elevação do número de moradias temporárias (sítios e chácaras), locais estes que demandam
trabalhadores para manutenção diária dos imóveis.
Por outro lado, o número de tratores se eleva continuamente e independente da região, ao
comparar os períodos inicial e final. Quanto à interação Pessoal ocupado/Trator, nota-se que em 2006
foram registrados as menores taxas, isso significa dizer que o nível de mecanização no campo
aumentou em todas as regiões do Centro-Oeste, principalmente no Goiás. Em geral, os índices indicam
que os moldes do sistema capitalista estão plenamente assentados e consolidados na maioria das
Unidades Federativas do Centro-Oeste.
Tabela 1 – Dados do Censo sobre Pessoal Ocupado, Quantidade de Tratores e a relação Pessoal
ocupado por Trator nos estabelecimentos agropecuários. Unidades Federativas do Centro-Oeste –
1970-2006.
Censos
UF
1970 1975 1980 1985 1995/96* 2006
Pessoal ocupado
MT 373.039 263.179 318.570 359.221 326.767 358.336
MS -** 257.132 230.983 253.993 202.709 211.193
GO 547.647 688.033 780.749 616.336 471.657 418.071
DF 7.284 8.582 14.628 17.178 14.307 22.324
Tratores
MT 4.386 2.643 11.156 19.534 32.752 42.330
MS -** 12.291 23.162 31.076 36.387 37.900
GO 5.692 13.634 27.600 33.548 43.313 44.832
DF 262 464 1.473 2.075 2.232 2.424
Pessoal ocupado / Trator
MT 85,05 99,58 28,56 18,39 9,98 9,47
MS -** 20,92 9,97 8,17 5,57 5,57
GO 96,21 50,46 28,29 18,37 10,89 9,33
DF 27,80 18,50 9,93 8,28 6,41 9,21
Fonte: elaboração própria. Dados IBGE, Censo Agropecuário.
NOTA: * Segundo IBGE (2006) e Hoffmann e Ney (2010), a pesquisa de realizada em 1995/1996 considerou o ano agrícola de 1º de
agosto de 1995 a 31 de julho de 1996, tendo a coleta de dados sido iniciada em agosto de 1996. ** A ausência de dados do Censo
Agropecuário de 1970 para o Mato Grosso do Sul se deve ao fato da região ter sido desmembrada do Mato Grosso e criada em 1977 e,
portanto, não foram levantados de forma isolada pela pesquisa do IBGE.
Questão produtiva
No que se refere às culturas agrícolas que mais vem se destacando no Centro-Oeste nas últimas
décadas, a Tabela 2 mostra a evolução da área total colhida para cada região do Centro-Oeste. É
possível afirmar que a área colhida aumentou de forma generalizada em todas as regiões variando
apenas as proporções. Se no período inicial, o milho foi a cultura mais importante, dentre as
relacionadas, a partir de 1985 a soja passou a ser a espécie mais impactante. Na região Centro-Oeste,
enquanto o milho diminuiu a sua participação de 84,85% em 1970 para 21,21% em 2011, a soja saltou
de apenas 3,18% para 66,01%. No Mato Grosso do Sul, a liderança da soja foi unânime, sua
participação aumentou de 48,24% para 53,32% em 2011, enquanto o milho caiu de 41,25% para
29,60%.
Há que se destacar ainda sobre o Centro-Oeste, a produção da cana-de-açúcar, até 1975 foi a
cultura de menor expressão, registrando inclusive queda de 1970 para 1975, e a partir deste mesmo
período, com a implementação do PROALCOOL, que sua produção cresceu na Região.
Avaliando a evolução da área colhida no Centro-Oeste, ao final da série a soja foi quem mais se
destacou com um aumento de 40.357% ou 10,78 milhões de hectares colhidos, a cana-de-açúcar
aparece em segundo com 10.033% ou 1,41 milhões de hectares, na sequência surge o algodão com
932% ou 805,51 mil hectares e o milho com 445% ou 3,17 mil hectares.
O desempenho superior da soja, também pode ser percebido nas demais Unidades, com
exceção do Mato Grosso do Sul, onde esteve na segunda colocação, perdendo para a cana-de-açúcar.
Mesmo assim, a soja alcançou a marca de 1.327% ou 1,62 mil hectares. Em termos percentuais, o maior
crescimento do grão ocorreu no Distrito Federal atingindo a marca de 1.371.250%, porém em valores
absolutos partiu de apenas 4 hectares para 54.854 hectares, a menor área de soja de todo o Centro-
Oeste. Já no Mato Grosso a taxa foi de 42.374% ou 6,44 milhões de hectares, superando em termos
percentuais a marca do próprio Centro-Oeste, mas não em valores absolutos. Para Goiás, o salto foi de
22.138% ou 2,55 milhões de hectares. Logo, as informações devem ser analisadas minuciosamente, para
que os dados absolutos e porcentuais sejam decifrados de forma mais próxima da realidade.
Ainda em relação à Tabela 2, no Mato Grosso, a cultura mais importante, após a soja, foi a
cana-de-açúcar, com um aumento da área colhida de 5.720% ou 223,09 mil hectares. O algodão aparece
na terceira colocação com 1.288% ou 667,74 mil hectares e, por fim, o milho com 803% ou 1,71
milhões de hectares. Em relação ao Mato Grosso do Sul, a cana-de-açúcar surge com maior destaque e
95.803% ou 495,30 mil hectares colhidos. Em segundo aparece a soja, conforme já mencionado, na
sequência, o milho com 826% ou 860,75 mil hectares e o algodão com 134% ou 34,89 mil hectares.
Goiás tem a cana-de-açúcar com aumento de 7.000% ou 687, 72 mil hectares em relação a 1970, na
segunda posição, o algodão com 220% ou 76,18 mil hectares, em terceiro, e o milho com 93% ou
463,74 mil hectares. A última região, o Distrito Federal, apresentou o algodão na segunda posição com
33.800% ou 676 mil hectares, seguido do milho com 1.259% ou 30,14 mil hectares e da cana-de-açúcar
com 191% ou 580 mil hectares.
Em relação à área plantada (AP) por 1000ha e a produção (Pr) por 1000ton., das principais
lavouras podem ser observadas através da Tabela 3, que trata da evolução das safras mais recentes.
Ao comparar os dados da Tabela 3 sobre área plantada e produção nas safras de 2009/10 com
2012/13, nota-se que apesar das oscilações ao longo da série, a área plantada e a produção de cada
cultura agrícola evoluíram de forma positiva em todas as regiões variando apenas as proporções. A
exceção ocorreu no Estado do Goiás onde a área plantada caiu de 57 para 50 mil hectares e,
consequente, a produção sofreu uma queda de 225 para 209 mil toneladas.
Entre as safras de 2009/10 da região Centro-Oeste, a maior área correspondeu à soja com 10,54
milhões de hectares e uma produção de 31,59 milhões de toneladas, já a cana-de-açúcar, obteve a
segunda menor área com 940,4 mil hectares e a maior produção com 77,44 milhões de toneladas. A
contradição é explicada pela diferença de produtividade, que segundo a CONAB (2011) foi de 3
ton./ha para a soja e de pouco mais de 82,35 ton./ha para a cana-de-açúcar. No último período de
safras, os destaques persistiram e a soja apresentou a maior área com 12,78 milhões de hectares e a
cana-de-açúcar a maior produção com 106,26 milhões de toneladas.
Neste caso, as produtividades estimadas são de 3,05 ton./ha para a soja e 70,65 ton./ha para a
cana-de-açúcar. Ainda em relação ao Centro-Oeste, a área que mais se expandiu entre 2009/10 e
2012/13 foi a de cana-de-açúcar com 60% de incremento, seguida do milho com 54%. Já a produção, o
milho que teve o maior aumento de produção com uma taxa de 80%, seguida da cana-de-açúcar com
37%. Suas Unidades Federativas, com exceção do Mato Grosso, apresentaram as mesmas tendências de
superioridade do Centro-Oeste para soja e cana-de-açúcar. Porém, neste Estado, e em todas as safras, a
soja liderou em ambas as variáveis, com uma área total plantada de 6,22 milhões de hectares e uma
Produção de 18,77 milhões de toneladas. Continuando a análise para o Mato Grosso, observa-se que o
milho obteve um aumento de 173% para área e 104% para produção, já a cana-de-açúcar, teve os
desempenhos mais tímidos, sendo de 16% para a área e 15% para a produção. No Mato Grosso do Sul,
a cana-de-açúcar despontou com 105% de área e o milho um ganho de produção de 66%, ao passo que
o algodão foi que menos se expandiu sua área, com menos de 3%, sendo que a soja apresentou a taxa
mais baixa de crescimento de 8%. Em relação ao Goiás, os maiores valores percentuais foram para a
área de cana-de-açúcar e para a produção de milho, ambos com 54%, sendo que nesta região, o algodão
apresentou comportamento negativo de 12% para área e 7% para produção. Quanto ao Distrito
Federal, os registros da CONAB foram contabilizados somente para as duas últimas culturas. O milho
aparece com um ganho de área de 33% e uma produção em 38%, já a soja apresentou 4%, tanto para o
incremento de área quanto de produção. Em relação à cana-de-açúcar, a Figura 3 apresenta as 10
maiores áreas ocupadas pela cana-de-açúcar, na safra 2012/13.
Figura 3 – 10 maiores áreas ocupadas pela cana-de-açúcar (em 1.000ha), por Região. Safra 2012/13.
Através da Figura 3, nota-se que os Estados de São Paulo e Minas Gerais juntos figuram o
Sudeste como a Região brasileira com maior área ocupada pela cana-de-açúcar, com 60,34% do total.
Na sequência aparecem o Centro-Oeste com 17,64%, representado pelos Estados de Goiás, Mato
Grosso do Sul e Mato Grosso; o Nordeste com 11,24% onde destaca-se os Estados de Alagoas,
Pernambuco, Paraíba, e Rio Grande do Norte; e o Sul com 7,17 tendo como destaque o Estado do
Paraná. O desempenho recente da estrutura produtiva do Centro-Oeste, ainda pode ser comparado
com o de outras regiões, como pode ser verificado pela Figura 4.
Os números da Figura 4 mostram que em 2013, o Mato Grosso lidera como maior produtor
nacional de grãos, com 23,4%. Esta Região somada ao Paraná e ao Rio grande do Sul responde por
58,6% da produção nacional. Em relação às demais Regiões do Centro-Oeste, Goiás surge na quarta
posição com 9,6%, o Mato Grosso do Sul na sexta posição com 6,0% e o Distrito Federal vem na
décima sétima colocação com apenas 0,3%. Somando todos os Estados, que compõe a Região do
Centro-Oeste, respondem pela maior parte dos cereais, leguminosas e oleaginosas produzidas no país,
com 39,3%, seguindo de perto pelo Sul com 38,8%. Juntos, Sudeste, Nordeste e Norte totalizam uma
participação de 21,9% da produção nacional.
Figura 4 – Participação na produção nacional de Cereais, leguminosas e oleaginosas (em %).5 Grandes
Regiões e Unidades da Federação, 2013.
Segundo o IBGE (2013, p. VII), o Centro-Oeste também lidera em valores absolutos, com uma
produção total de 72 milhões de toneladas. Em seguida aparece o Sul com 71,2 milhões, o Sudeste com
19,2 milhões, o Nordeste com 16,7 milhões e o Norte com 4,3 milhões. No Mato Grosso, municípios
como Sorriso, Sapezal, Campo Verde, Diamantino, Primavera do Leste, Campo Novo do Parecis,
Nova Mutum e Lucas do Rio Verde foram aqueles que mais se especializaram na produção intensiva de
soja (em grão), milho e algodão herbáceo (em caroço), e na pecuária, destaca-se a bovinocultura de
corte, predominantemente extensiva (IBGE, 2010). Portanto, o titulo de maior produtor de grãos se
torna verdadeiro diante dos números apresentados.
5 Segundo IBGE (2013, p. VII), incluem-se os seguintes produtos: algodão herbáceo (caroço de algodão), amendoim (em
casca), arroz (em casca), feijão (em grão), mamona (em baga), milho (em grão), soja (em grão), aveia (em grão), centeio (em
grão), cevada (em grão), girassol (em grão), sorgo (em grão), trigo (em grão) e triticale (em grão).
Tabela 4 – Distribuição das unidades produtoras de biodiesel, por Grande Região. Posição em
31/12/2012.6
Capacidade Instalada
Região Nº Usinas
mil m3/ano %
Norte 4 202 3
Nordeste 6 741 11
Sudeste 11 890 13
Sul 9 1.948 28
Centro-Oeste 27 3.072 45
Brasil 57 6.853 100
Fonte: adaptado de MME (2013).
Considerações finais
A questão agrícola na Região Centro-Oeste seguiu contornos, principalmente a partir das
décadas de 1970 e 1980, que influenciaram decisivamente o seu perfil produtivo. As ações políticas,
tanto em nível nacional quanto outras específicas voltadas para a região, tiveram um papel relevante em
seu desenvolvimento assumido nas últimas décadas. Dentre as Grandes Regiões brasileiras, o Centro-
Oeste representa o centro produtor de commodities e matérias primas para a agroenergia, com destaque
para a soja e a cana-de-açúcar. Além destas, o milho e o algodão são as espécies agrícolas com maior
área colhida, dentre as demais relacionadas pelo IBGE.
A indústria de agroenergia desenvolvida na região, nos últimos anos, reafirma seu potencial
produtivo e a importância para o equilíbrio das finanças do país. Para dar continuidade a este
movimento é fundamental, portanto, que as políticas continuem apoiando o setor agrícola de forma a
atrair os investimentos externos e contribuir com o desenvolvimento sustentável do país.
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A
temática ambiental tangencia os acordos multilaterais internacionais de forma mais presente
a partir do Século XX, apesar destes não serem considerados como marcos da inserção do
tema “meio ambiente” no cenário mundial. (RIBEIRO, 2008)
O caminhar do pensamento ambiental antes das grandes Conferências Internacionais centradas
no tema, a iniciar pela Conferência de Estocolmo em 1970, é por muitas vezes desconsiderado no
âmbito doutrinário.
Apesar do ostracismo didático dispensando a tais situações anteriores à Estocolmo, não se pode
desconsiderar os tratados firmados no início e meados século XX como, por exemplo, a Convenção
para a Preservação de Animais, Pássaros e Peixes da África 4, a Convenção para a Proteção dos Pássaros
Úteis à Agricultura5, a Convenção para a Preservação da Fauna e da Flora em seu Estado Natural 6, o I
Congresso Internacional para a Proteção da Natureza7, e outros acordos até se chegar ao Tratado
Antártico8. Malgrado não se vislumbre o cumprimento e efetivos efeitos de tais tratados internacionais,
a inserção do tema ambiental na órbita internacional, ainda que de forma isolada, pode ser considerada
um avanço na área. (RIBEIRO, 2008)
Dentro dessa perspectiva embrionária de discussão de temas ambientais em âmbito
internacional é que aos poucos se pode verificar a inserção da temática nas pautas da ONU.
A Organização das Nações Unidas teve sua criação posterior à Segunda Guerra Mundial com a
finalidade precípua de evitar novos conflitos dessa natureza. Foi criada e desenvolveu-se em clima de
preservação de ambientes naturais na forma de parques, conforme o modelo adotado nos Estados Unidos. RIBEIRO,
2008, p.54)
7 Discussão ambiental a nível global, porém, sem resultados práticos. RIBEIRO, 2008, p.55)
8 Assegura a proteção do meio ambiente na Antártica, em todas as atividades humanas desenvolvidas no continente,
pessimismo já que o mundo estava na iminência de nova guerra entre as duas potências mundiais à
época: Estados Unidos e URSS. (VARELLA, 2012)
Tendo por escopo a minimização de conflitos entre os países, foi criada a FAO (Food and
Agriculture Organization- Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), em
1945, que tinha por foco a discussão sobre a falta de alimento, além da escassez e distribuição dos
recursos naturais, fatores ensejadores de conflitos internacionais. A FAO foi considerada como setor
responsável pelo início da discussão de temas ambientais no âmbito da ONU. (ONU, on line)
No Brasil, o cenário anterior às grandes Conferências Internacionais, é marcado pelo
aparecimento tímido e tardio da questão ambiental. O início da normatização se dá na década de 30, no
governo de Getúlio Vargas, tendo por foco principal a política de centralização do poder e estatização
de setores da economia, e não propriamente a preservação ambiental. (GRANZIERA, 2012)
A publicação do Código de Águas, de Minas e de Florestas foi em 1934, com vistas à
exploração imediata de recursos e políticas essencialmente nacionalistas. (GRANZIERA, 2012)
O governo brasileiro tinha receio que possível preservação ambiental freasse o crescimento
econômico, numa ideia manifestamente equivocada de desenvolvimento, a qual refletia o pensamento
vigente à época.
O Brasil possuía preocupações que não perpassavam diretamente nas questões ambientais, o
que ensejou em poluição e destruição dos recursos naturais em busca do crescimento econômico.
(GUERRA, 2009)
Nesse mesmo diapasão, o governo militar manteve os pressupostos da era varguista e o
“milagre econômico” pressupunha a devastação ambiental. Tal fato foi alvo de críticas e criou um
cenário de desconforto para o Brasil que passou a ser taxado como poluidor e teve de, apressadamente,
criar políticas que pudessem ser apresentadas em Estocolmo e fossem capazes de amenizar tal
estereótipo. (GUERRA, 2009)
O Clube de Roma surgiu em 1968 e trouxe notícias catastróficas sobre o futuro do planeta
tendo por base a população mundial, consumo dos recursos naturais e crescimento econômico dos
países, sugerindo uma política de “crescimento zero” muito criticada pelos países em desenvolvimento.
(CUSTÓDIO, on line).
A crítica deve-se ao fato que os países em desenvolvimento acreditavam que tal tese era fruto de
uma tentativa de obstaculizar o crescimento dos países que, à época, mantinham altas e contínuas taxas
de crescimento econômico. (CUSTÓDIO, on line).
O contexto internacional era marcado pelo antagonismo claro entre países norte x sul e
desenvolvidos x em desenvolvimento, além do questionamento do modelo ocidental de produção
industrial. A ONU, assim, possuía um problema ideológico para compor antes de qualquer tentativa de
negociação multilateral.
Dessa forma, as reuniões preparatórias eram de fundamental importância para a possibilidade
de tratados entre os países participantes que tinham situações e posições ideológicas tão heterogêneas.
Tendo em vista tais discrepâncias, foi realizada a Reunião de Founex entre os dias 04 e 12 de junho de
1971. (ACCIOLY; CASELLA, DO NASCIMENTO, 2012)
A relevância da reunião é inegável para as futuras conferências internacionais, posto que
estabeleceu o foco que teria a Conferência de Estocolmo e deixou claro que os países em
desenvolvimento seriam ouvidos de igual forma daqueles ditos desenvolvidos. (ACCIOLY; CASELLA,
DO NASCIMENTO, 2012) O relatório proveniente da Founex explicita a ideia de que a pobreza e o
modelo de desenvolvimento adotado estariam inseridos no contexto ambiental, principalmente em uma
época que as indústrias migravam de países saturados para países em desenvolvimento, levando
consigo, consequentemente, poluição.
Ademais, verifica-se, no referido relatório, o nascimento da noção de desenvolvimento
sustentável e a ampliação de matérias que são intimamente ligadas às questões ambientais e deveriam
ser objeto de debates em sede internacional.
A reunião de Founex foi a base para as reuniões preparatórias tendo seu espírito incorporado
pela Resolução 2849 sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente, durante a XXVI Sessão da Assembleia
Geral, a qual orientou os trabalhos e discussões em Estocolmo. (CETESB-SP, on line)
Alguns temas que foram discutidos e ganharam destaque nas comissões preparatórias e na
Conferência de Estocolmo foram: a poluição atmosférica, a poluição da água e a poluição do solo;
todos tendo por base de existência o processo de crescente industrialização.
Na oportunidade de finalização do texto dos dois documentos provenientes da Conferência – a
Declaração sobre o Meio Ambiente Humano (com 26 princípios ao final), e o Plano de Ação para o
Meio Ambiente Humano (109 recomendações em texto final)- os debates e discrepâncias entre os
países desenvolvidos e em desenvolvimento continuaram, tendo existido diversos impasses em temas
III. A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento –Rio-92
Tigres Asiáticos em 1997 ou da crise Argentina em 2001. Nesse cenário, os países estavam mais
preocupados com a implantação de políticas internas que protegessem ou reestruturassem o país da
crise, do que propriamente com um espaço destinado à discussão ambiental. (COELHO, on line)
A escolha da cidade de Johanesburgo localizada no continente africano já trouxe um clima de
desconfiança de que tal conferência se restringiria ao eixo temático da “pobreza”, posto que durante as
reuniões preparatórias, até pelo menos a PrepCom 3, os debates centralizavam-se no tema. (LAGO,
2006)
Porém, na realidade, o objetivo central da Conferência de Johanesburgo era estabelecer medidas
de implementação do que já havia sido acordado na Rio-92. Além disso, criou-se uma grande
expectativa quanto à discussão sobre o acesso à energia limpa e renovável, discussão esta que cedeu às
pressões econômicas dos países desenvolvidos.
A proposta de mudança da matriz energética mundial, argumenta Goldemberg (2002, [S.p]), foi
proposta pessoalmente pelo Presidente do Brasil Fernando Henrique Cardoso, tendo recebido forte
repulsa de países como Estados Unidos, Japão e outros membros da OPEP (Organização dos Países
Exportadores de Petróleo). Em suma, objetivava-se a substituição até 2010 de cerca de 10% da
produção de energia pelas fontes renováveis e menos poluentes, a exemplo da eólica, solar,
hidroelétrica e etc.
Os produtos da Rio+10, a Declaração de Johanesburgo sobre Desenvolvimento Sustentável e o
Plano de Implementação ou Plano de Ação, são apontados como documentos que reafirmam o que já
havia sido acordado em 1992, não havendo determinação de metas, prazos ou medidas sancionatórias
que pudessem viabilizar a implementação efetiva dos compromissos já outrora firmados. (RIBEIRO,
2008)
Ademais, critica-se tal conferência por não ter enfrentado o tema com maior força impactante
na questão ambiental: a questão energética. Tal omissão nos documentos oficiais trouxe a sensação de
superioridade dos interesses econômicos em detrimento de qualquer outro interesse social ou
ambiental, causando clima de desconfiança aos tratados internacionais provindos das Conferências de
temática ambiental.
V. Rio+20
A realização da Rio +20 foi definida pela Resolução 64/236 e visava, principalmente, a análise
dos comprometimentos políticos outrora firmados. Ainda, esperava-se da Conferência uma reafirmação
do que já havia sido acordado nas cúpulas anteriores, porém com metas e prazos claros, definindo as
medidas de implementação do desenvolvimento sustentável nos países. (ONU, online)
Nesse sentido, os principais temas abordados na Conferência das Nações Unidas sobre
Desenvolvimento Sustentável (UNCSD ou Rio+20) foram: “A economia verde no contexto do
nos dias 20 a 22 de junho de 2012 com o inequívoco propósito de mudar a dinâmica de cunho
principiológico, que se extrai dos documentos assinados desde Estocolmo para atribuição de valor
normativo político efetivo aos tratados firmados em tais Conferências.
Como produto da Rio+20, destaca-se o documento intitulado “O Futuro que Queremos”,
resultado da proposta inicial “rascunho zero” que foi se amoldando aos interesses dos 188 Estados-
membros participantes até sua versão final.
Tal documento foi alvo de críticas, pois foi um meio para reafirmar os princípios e o já
acordado em reuniões anteriores, sem qualquer inovação política quanto ao nível de comprometimento
firmado, além de não enfrentar temas de maiores divergências desde a Rio-92, como a mudança da
matriz energética mundial.
Impende destacar que, apesar das críticas ao evento, a participação da sociedade civil, ONG’s e
empresas foi um passo essencial à busca do desenvolvimento sustentável. Dentro dessa perspectiva,
“705 compromissos voluntários para o desenvolvimento sustentável registrados por governos,
empresas, grupos da sociedade civil, universidades e outros“. Tal fato demonstra que a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável ultrapassou as barreiras de participação apenas dos
sujeitos internacionais para integrar estes aos atores internacionais, sendo um notável avanço já que
qualquer ação que tenha por escopo o desenvolvimento sustentável coteja a consciência ambiental da
população. (ONU, online).
A participação do Brasil na Rio+20 perpassa a relevância da sua condição de sede do evento.
Assim, desde a elaboração do Rascunho Zero até o encerramento do evento com a finalização do “O
Futuro que Queremos”, o país esteve como coordenador das discussões em busca do consenso entre
os participantes. (BRASIL, online).
Ressalta-se que a apresentação das políticas públicas já efetivadas pelo Brasil, a exemplo do
Programa “Brasil sem Miséria”, que corrobora os 3 pilares do desenvolvimento sustentável e está ligado
diretamente aos Objetivos do Milênio das Nações Unidas, estabelecido nos anos 2000 e praticamente
incorporado no documento final da Rio+20. (BRASIL, online).
A evolução mais latente resultante da Rio+20 foi a expansão do discurso ambiental
(principalmente no que concerne à extensão do conceito de “desenvolvimento sustentável” que abarca
questões ambientais, sociais e econômicas) e a participação da sociedade civil, a qual se mostra não
apenas mais simples “simpatizante” do tema, mas inserte à dinâmica das ações propulsoras da
sustentabilidade.
Iniciando por Estocolmo em 1972, Rio de Janeiro em 1992, Johanesburgo em 2002 até a Rio
+20 em 2012, os relatórios antecedentes de cada conferência demonstram, em geral, que o meio
ambiente sofre ações antrópicas negativas, mesmo com uma vasta quantidade de compromissos
firmados entre os Estados em áreas como a de mudanças climáticas, preservação florestal, erradicação
da pobreza, entre outras.
O desenvolvimento sustentável visto sob o enfoque da harmonização de seus 3 eixos
(econômico, ambiental e social), muitas vezes aparenta objetivo utópico frente a assuntos polêmicos
que se arrastam desde 1972, como a questão energética, que sofrem pressões políticas frente os ditames
dos padrões de consumo e crescimento econômico.
Não obstante tal constatação, diante de um lapso temporal de aproximadamente 40 anos,
percebe-se a maturidade do discurso ambiental e a participação da sociedade civil desde os debates
locais até as conferências internacionais, a exemplo da participação em massa da sociedade, empresas,
ONG’s e movimentos diversos na Rio+20.
Dessa forma, tendo em vista um quadro internacional de cooperação marcado por reuniões
internacionais que debatem acerca de sustentabilidade e seus eixos, faz-se mister que se tenha
compromissos que se extraiam meios de implementação das medidas já acordadas, pois muitos tratados
de cunho principiológico já foram firmados, porém sem as necessárias medidas que atribuam
efetividade prática a estes, o que gera incertezas e desconfianças no que concerne aos discursos
proferidos pelos países participantes das cúpulas mundiais.
Referências
ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G.E.; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito
internacional público. 20 ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
BEHRENDS, Laura Romeu. O movimento ambientalista como fonte material do direito ambiental [recurso eletrônico] / Laura
Romeu Behrends. - Dados eletrônicos. - Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011.
BRASIL. RIO +20: Boas Práticas Brasileiras no Contexto do Desenvolvimento Sustentável e da Erradicação da Pobreza.
Disponível em: <http://www.rio20.gov.br/clientes/rio20/rio20/brasil/boas-praticas.html> Acesso em:
26/ago/2013.
BRASIL. Rio +20, Comitê Nacional de Organização: Conferência das Nações Unidas Sobre Desenvolvimento Sustentável.
Disponível em: <http://www.juventude.gov.br/rio20/documentos-e-publicacoes/rio-20-como-chegamos-ate-
aqui> Acesso em: 26/ago/2013.
CETESB-SP. Relatório da Delegação do Brasil à Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente, Vol I. Disponível
em:
<http://www.cetesb.sp.gov.br/userfiles/file/mudancasclimaticas/proclima/file/publicacoes/conferencia_intern
acional_c_e_p/estocolmo_72_Volume_I.pdf> Acesso em: 26/ago/2013.
COELHO, Marcelo. As grandes crises econômicas mundiais. Disponível em: <https://www.investbolsa.com.br/
Acoes/post/2008/09/29/historico-de-crises-mund. aspx> Acesso em: 03/jul/2013.
CUSTÓDIO, Cláudio. Texto: A Evolução da Questão Ambiental. Disponível em:
http://www.espacogeografia.com.br/wp-content/uploads/2012/04/A-evolu%C3%A7%C3%A3o-da-
quest%C3%A3o-ambiental-site.pdf> Acesso em: 26/ago/2013.
N
os movimentos sociais os sujeitos aprendem a se organizar, a se reconhecer, a se fazer
reconhecer, a se posicionar diante das forças sociais, passando a vivenciar um processo
educativo. O caráter educativo implícito nos movimentos sociais se apresenta em várias
dimensões. Com base em Gohn (2007), as extensões do educativo são as seguintes: i) da organização
política; ii) da cultura política, em que o exercício da prática cotidiana leva a experiências e ajuda a
elaborar discursos e práticas políticas; iii) da dimensão espaço-temporal, cuja consciência gerada no
processo de participação num movimento social conduz ao conhecimento e reconhecimento das
condições de vida de parcelas da população no presente e no passado.
Assim, o movimento social pode significar espaço educativo, situações de aprendizagens, o
que para Gohn (2007), não se restringe ao aprendizado de conteúdos específicos transmitidos por
meio de instrumentos pedagógicos. Constrói-se de várias formas, em planos e dimensões variados que
se articulam e não determinam nenhum grau de prioridade. Nesse sentido, o processo educativo tem
uma dimensão cultural, respondendo às necessidades gerais do sujeito e da sociedade. Afora isso, o
processo educativo elabora também uma dimensão política, de luta social, carregada de prática política
pedagógica e da relação dos movimentos com os camponeses na luta. Trata-se, indubitavelmente, de
uma relação político-pedagógica.
Por conseguinte, a luta social e dos movimentos passa a ser educativo. As práticas educativas
espelham as ações políticas num contexto histórico-social ligado diretamente às condições objetivas
dos sujeitos, cujas ações organizativas e as concepções de mundo são gestadas a partir delas (CRUZ,
2004). Busca-se refletir criticamente a respeito da contribuição da organização social e política dos
movimentos na disputa pela terra, mediada por uma prática pedagógica de ocupação, uma vez que,
historicamente, essa região constitui fronteira agrícola e de interesse de expansão do capital.
Hoje, o contexto dos conflitos está diretamente ligado à expansão do agronegócio na
Amazônia. Aliás, o processo de articulação, constituição e territorialização dos movimentos sociais no
Estado do Tocantins responde ao modelo de desenvolvimento capitalista da agricultura, implementada
e reproduzida em todo o Estado. A partir dessa conjuntura, observa-se o enfrentamento ao modelo
agroexportador, em que os movimentos sociais têm desenvolvido ações políticas que propiciam
ocupações em latifúndios, tomam temporariamente a Assembléia Legislativa do Estado do Tocantins,
exigem da Seduc ação educativa para os acampados e do Incra resolução para demarcação e
assentamentos das famílias acampadas nas terras. Além disso, mobilizam outros espaços públicos que
signifiquem poder e presença forte do Estado.
Os movimentos sociais passam a constituir uma práxis de caráter educativo que nasce da
participação política dos processos de interação, das negociações com representantes políticos, das
relações com os mediadores, isto é, o movimento amplia-se no espaço de socialização política. Esse
espaço, caracterizado pela comunicação, interação, luta e resistência, define-se como o espaço de
comunicabilidade do lugar. Aí as pessoas se conhecem, constroem conhecimento, debatem temas do
cotidiano, relembram suas trajetórias. Torna-se espaço de leitura e releitura da realidade vivenciada,
alavancando conhecimentos críticos, mobilizando um espaço de luta e de resistência. Enfim, trata-se de
manifestação pública dos sujeitos e de seus objetivos.
O objeto desta pesquisa são as práticas educativas nas ações políticas desenvolvidas pelos
sujeitos na luta pela terra. Desdobra-se na problemática da formação das ações políticas constitutivas da
realidade social, apontando para a reflexão crítica sobre o pensamento que imprime a prática educativa
no sentido de autonomia de homens e mulheres do campo. Parte-se da territorialização do movimento
social, no cotidiano da luta dos Sem Terra no Estado do Tocantins.
A questão que se coloca é a seguinte: de que forma as lutas sociais podem constituir novas
práticas educativas na formação política dos sujeitos envolvidos no processo da luta pela terra e
contribuir no processo de territorialização de ocupação no Bico do Papagaio?
Nessa perspectiva, esta pesquisa tem como lócus o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra-
MST, que atua no Estado do Tocantins, em especial na Mesorregião do Bico do Papagaio.
Quanto a metodologia empregada trata-se de momento indispensável ao contato inicial com as
comunidades do Assentamento Primeiro de Janeiro. Destaca-se, nesse sentido, o modo dessa
abordagem como um primeiro instrumento promovido pelas vozes dos entrevistados, como
produtores de relações sociais, possibilitando focalizar de forma concreta o enredo existente nas
contradições das relações sociais, tecidas pelas vidas entrecruzadas das histórias de ocupação no
território em questão.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas e observações-participantes no Assentamento que
teve importância política a partir dos anos de 1990 (Primeiro Assentamento do MST – Primeiro de
Janeiro). Tais observações e entrevistas terão como enfoque as implicações que as ações políticas têm
ou tiveram na construção de práticas educativas desenvolvidas por meio das ações coletivas.
Trata-se, pois, de uma pesquisa sobre as práticas educativas geradas a partir da organização
política dos movimentos sociais. A compreensão dessas práticas, da forma organizacional dos homens
e mulheres nos movimentos sociais no Bico do Papagaio, trará esclarecimentos sobre a construção de
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 161
práticas educativas desses (as) camponeses (as). A pesquisa é etnográfica, com observação participante.
Esse tipo de investigação é assim explicado por Brandão (1999, p. 12-13):
Quando o outro se transforma em uma convivência, a relação obriga a que o
pesquisador participe da vida, de sua cultura. Quando o outro me transforma em um
compromisso, a relação obriga a que o pesquisador participe de sua história [...] difícil
quando o pesquisador convive com pessoas reais e, através delas, com outras culturas,
grupos sociais e classes populares. Então a observação participante, a entrevista livre e
a história de vida se impõem. [...] a relação de participação da prática científica no
trabalho político das classes populares desafia o pesquisador a repensar a ver e
compreender tais classes, seus sujeitos e seus mundos, tanto através se suas pessoas
nominadas, quanto a partir de um trabalho social e político de classe que, constituindo
a razão da prática, constitui igualmente a razão da pesquisa. Está inventada a pesquisa
participante. [...] Porque uma pesquisa coletiva participa organicamente de momentos
do trabalho de classe, quando ela precisa se reconhecer no conhecimento da ciência.
3.Território e territorialização
2 A mesorregião do Bico do Papagaio compreende 66 municípios, sendo 25 no Estado do Pará, 16 no Estado do Maranhão
e 25 na porção norte do Estado do Tocantins.
terras desse Estado pertencem a um número muito reduzido de fazendeiros, que acumulam grandes
extensões territoriais, onde hoje existe um número elevado de assentamentos. Acompanhar as
lideranças e os trabalhadores Sem Terra, em suas ocupações e nas atividades que desenvolvem, leva a
perceber que os trabalhadores, em suas ações políticas, desenvolvem novas atitudes na sua relação com
a política, com seus companheiros, em defesa de uma identidade na sociedade.
Essa relação com a política, em busca de identidade, de novas formas de viver, é relevante para
esta pesquisa. Busca-se, assim, descortinar uma nova cultura política. Por essa razão, há de se identificar
o sentido das práticas educativas gestadas no processo de ocupação, organização e coletividade da luta
pela terra. Conhecer o movimento que os trabalhadores Sem Terra desenvolvem em função do direito
pela terra, além de sua organização e luta, permite revelar as práticas educativas aí inseridas.
Compreende-se que o desenvolvimento econômico e social é marcado por uma linha de
desigualdade e ao mesmo tempo de contradição. Na prática, o que se vê é o exercício do poder político,
econômico e social servindo para apropriação do espaço físico e material, privilegiando alguns
indivíduos da sociedade no Bico do Papagaio. Isso implica, sobretudo, centralidade na produção do
capital e reprodução ampliada. No entanto, a espacialização da luta, a conquista da terra e a
territorialização dos assentamentos rurais são partes constituintes do pertencimento dos sujeitos Sem
Terra. Nesse sentido, ocorre um processo de construção dos territórios como forma de retorno ao
campo. Nos últimos vinte anos, resultou na conquista de diversos latifúndios, originando 24 mil
famílias assentadas em 364 projetos de assentamentos, presentes em mais de 92 municípios do
Tocantins, desde a conquista do primeiro assentamento de reforma agrária – o PA Primeiro de Janeiro
–, em 1998.
Um conceito importante para a discussão do objeto em estudo é o de território, entendido por
Fernandes (2010) como um tipo de espaço geográfico. O território é um espaço apropriado por uma
determinada relação social que o produz e o mantém a partir de uma forma de poder. Esse poder é
concedido pela receptividade: o território é, ao mesmo tempo, uma convenção e uma confrontação.
Exatamente porque o território possui limites, fronteiras, é um espaço de conflitualidades.
Os territórios se movimentam e se fixam sobre o espaço geográfico. Logo, são as relações
sociais que transformam o espaço em território e este naquelas (Fernandes, 2010). Os territórios são
formados, sobretudo, no espaço geográfico a partir de diferentes relações sociais. Essa premissa
conceitual de território permite avançar, no sentido de problematizá-lo. O espaço e o território são
fundamentais para a realização das relações sociais, uma vez que estas últimas produzem continuamente
espaços e territórios de formas contraditórias, solidárias e conflitivas.
O território, na proposição de Santos (2011, p. 248), constitui as ações passadas, cristalizadas e
também presentes, materializadas nas ações: “as configurações territoriais são o conjunto dos sistemas
naturais, herdados por uma determinada sociedade”. São, nesse sentido, objetos, técnicas e cultura
constituídos historicamente. Isso implica o sentido e o significado real que surgem das atividades
realizadas por um conjunto de ações. Conclui-se daí que o espaço é eminentemente histórico e sua
historicidade parte da constituição da materialidade territorial e das características das ações sociais.
Os autores evidenciados atestam fundamentos importantes para a reflexão crítica deste projeto
de pesquisa, contribuindo sobremaneira para o entendimento de território, territorialização dos
movimentos sociais e as práticas educativas nas ações políticas.
O processo de territorialização é compreendido pelas ocupações de terra e conquista de
assentamentos rurais. Para Fernandes (2010), esses territórios constituem-se em novos espaços. É onde
os trabalhadores rurais se recriam e onde reproduzem a luta pela terra, mediante a formação de um
movimento camponês. Essa leitura da terra permite compreender que a forma de organização social e o
território são partes indissociáveis da luta camponesa.
A territorialização é um processo permanente na história dos movimentos sociais, em especial
para o MST. Isso porque a luta camponesa pela terra, a conquista de um latifúndio e sua transformação
em assentamento rural promovem mudanças na estrutura fundiária. A divisão da terra aumenta
significativamente o número de pessoas nesse território. Essa nova realidade altera as formas de
organização do espaço e do trabalho e, por conseguinte, as relações sociais e políticas. O acesso à terra
é condição essencial para o campesinato, para assegurar seu meio de existência, construir sua identidade
e reproduzir seu trabalho familiar.
Para Fernandes (2010), a territorialização dos movimentos sociais por meio da ocupação da
terra é uma forma de enfrentamento, resistência e recriação do campesinato. As lutas realizadas
proporcionaram a ressocialização de trabalhadores que nunca tiveram terra. Nessa luta entrecruzam-se
diversas motivações: indignação, necessidade, interesse, consciência política, identidade camponesa,
concepções de economia moral da terra e a expectativa de superação forjada na dinâmica coletiva de
luta.
Além de ser uma luta territorial, é uma luta de família, já que envolve o conjunto de seus
membros em diversas atividades. Mesmo nos casos em que apenas alguns de seus membros fazem
parte da ocupação de um latifúndio, a família toda se envolve na mobilização pela terra cuidando de
várias outras necessidades básicas. As famílias sem terra criam comissões, núcleos ou setores que
cuidam da saúde, alimentação, educação, negociação política, divulgação e animação da luta. A luta
camponesa dos movimentos sociais é indissociável de sua organização social.
Maranhão. As 420 famílias organizadas pelo MST ocuparam no dia Primeiro de Janeiro de 1998, os
imóveis improdutivos denominado de Bom Sucesso, Olho d’água e Mucambo, com área total de 6.262
hectares, segundos dados cartoriais. Essa mobilização fez com que forças políticas locais interviessem
na tentativa de conflitos para o impedimento da ocupação, gerando perseguições políticas num clima de
tensão. A fala de um Trabalhador Sem Terra mostra como foi a ocupação
O ônibus passou às duas horas da manhã. Esse acampamento foi num curral. Eita
movimento bom. Era hora de assembléia, eu nunca tinha visto isso. Eu perguntei o
que era assembléia? Então me responderam: É uma reunião, uma prosa sobre a
organização do movimento. Fiquei na turma dos mais sabidos e aprendi muita coisa.
A linguagem das pessoas e o significado daquilo. Viver em grupo era a minha primeira
vez. Aquilo me trazia curiosidade eu era participativo. A palavra solidariedade era nova
e tinha dificuldade de falar. Aprendi a falar, entendi o significado do debate. Fui
participar dos estudos: o que significava os princípios dos movimentos, como se dava
a organização. Eu estudava os livros. Você tem uma arma poderosa que é a
informação (Entrevistado, 43 anos, assentamento Primeiro de Janeiro, 2012).
uma grande produção. Depois da colheita, dividiram a produção com as famílias de acordo com os dias
de trabalho realizado na produção.
No período do acampamento as mulheres se organizaram em grupos e realizavam trabalhos
artesanais e de horta, principalmente plantios para amenizar os problemas de saúde, as mulheres
também participavam ativamente das atividades políticas, no tocante a debates, reuniões, palestras e
cursos, contribuindo assim de forma efetiva com o processo político organizativo do acampamento.
A participação das mulheres cumpriu com um papel fundamental, principalmente na resistência
para permanecer na terra, quando o homem queria desistir as mulheres resistiam se juntavam para
organizar o acampamento, lutando pela Escola. Pelo atendimento a saúde, realizando trabalhos
produtivos na tentativa de garantir a sobrevivência. Essas ações se constituem como um elemento
importantíssimo para a resistência na terra.
As mulheres compreendiam que a Educação era essencial para mantê-los firmes no
acampamento, principalmente as crianças e os jovens, que no inicio participavam ativamente das
atividades de lazer, mesmo organizadas de forma precária, no entanto, o futebol e as oficinas de
capoeira, garantiam a animação da juventude e a permanência na luta.
Muitos conflitos internos e externos ocorreram , em 1998 , ocuparam a prefeitura de Palmeiras,
reivindicando Escola, material escolar e estrada. Conseguiram o atendimento da pauta referente à
educação e dando continuidade aos processos de negociação ocuparam a Unidade Avançada do Incra
de Araguaina
O chefe da Unidade Anatório relatou que já tinha feito a vistoria das fazendas, mas que
o INCRA estava encaminhando uma nova vistoria das áreas e posteriormente o
processo de desapropriação, já que o proprietário estava endividado com o Banco do
Brasil e Banco da Amazônia e tinha interesse que o conflito tivesse uma rápida
solução. (Entrevistado. 43 anos, 2011).
Na fala de uma trabalhadora camponesa é possível perceber como as práticas políticas podem
contribuir para formar homens e mulheres como sujeitos sociais.
As experiências que me move até hoje é o movimento Sem Terra: acordei, aprendi no
acampamento buscar o mundo, as místicas mexiam muito comigo, me fez despertar o
sentimento para poesia, contos, a história do meu povo. Eu estava adormecida e
acordei, a partir do movimento. Para pode construir outra formação humana. Convivi
com pessoas fabulosas, me ensinaram a ser gente. Ensinei para os meus filhos o
sentido da organização política. Eles hoje não estão na militância do movimento mais
são homens bem formados e sabem dos seus direitos (Entrevistada, Assentamento
Primeiro de Janeiro, 53 anos, 2012).
As famílias de trabalhadores rurais Sem Terra foram de alguma maneira na sua trajetória de
vida, exploradas pelos latifundiários e expropriadas de suas terras e das condições de produção, que
mobilizadas pelo MST integraram o processo de luta pela reforma agrária, se constituindo em uma base
orgânica do MST- Tocantins. Essas famílias, como tantas outras no Tocantins, encontravam-se no
momento de decidir se participavam da ocupação, se engajando na luta pela terra e enfrentar o
latifúndio que concentra terra e poder econômico e político resistindo a ofensiva da oligarquia rural
tocantinense, buscando na luta construir possibilidades de organização e resistência.
Os meus vizinhos diziam, não vão não, vocês vão morrer. Eu disse, nós não vamos
morrer não, nós não vamos fazer briga não, nós queremos terra e paz, mas se for
necessário nós briga”. (Entrevistada, 62 anos, 2011).
Decididos a romper com uma historia de espoliação e miséria que compõe a realidade do
campo no Tocantins, formando uma massa de camponeses sem terra vivendo agregados nas fazendas
ou nas cidades, sem condições dignas de trabalho e moradia.
Fui expulso da terra por não conseguir pagar a renda pro fazendeiro, era muito alta,
vim pra cá atrás de um lugar pra trabalhar sossegado, ter uma terra para trabalhar
(Entrevistado, 76 anos organizações, 2011).
Referências
ARENDT, Hannah. A condição humana. Trad. Roberto Raposa. Rio de janeiro: Forense Universitária.
São Paulo: Cortez, 2007.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. São Paulo: Brasiliense, 1999.
CRUZ, José Adelson da. Luta pela terra, práticas educativas e saberes no médio Araguaia- Tocantins. 2000.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, 2000.
CRUZ, José Adelson da. Movimentos sociais e práticas educativas. Inter-Ação: revista da Faculdade de
Educação, Goiânia: UFG, v. 29, p. 175-185, jul.-dez. 2004.
FERNANDES, Bernardo Mançano. Formação e territorialização do MST no Brasil. In: CARTER,
Miguel (Org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no Brasil. São Paulo: Ed.
Unesp, 2010.
GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais contemporâneos. São Paulo: Cortez, 2007.
GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos movimentos sociais no campo. Petropólis: Vozes, 1987.
PESSOA, Jadir de Morais. Aprender e ensinar no cotidiano de assentamentos rurais em Goiás. Revista
da ANPED, São Paulo, n.10, jan.-abr. 1999.
SANTOS, Milton; Silveira, Maria Laura. O Brasil: territórios e sociedade no início do século XXI. Rio
de Janeiro: Record, 2011.
Introdução
A
temática ambiental aparece hoje como um dos temas de maior relevância deste século,
estando incorporada às preocupações gerais da opinião pública, na medida em que se torna
cada vez mais evidente que o crescimento econômico, a garantia da qualidade de vida às
futuras gerações e, sobretudo, a sobrevivência da espécie humana não podem ser pensados sem a
perspectiva de um meio ambiente equilibrado.
Os doutrinadores de Direito Ambiental são pacíficos ao tratar do meio ambiente como um
direito humano fundamental, assim como o direito à vida, interessado em proteger os valores
fundamentais da pessoa humana e necessário a toda população (TRENNEPOHL, 2010).
Ao se falar sobre o meio ambiente, não se pode deixar de mencionar o princípio n° 1, da
Declaração do Meio Ambiente, adotado na Conferência da ONU, em 1972 na cidade de Estocolmo,
que elevou o meio ambiente à qualidade de direito fundamental do ser humano. Segundo Milaré (1999),
houve a consagração do Princípio da Participação, pois de acordo com este princípio, a resolução dos
problemas ambientais deve ser buscada por meio da integração da sociedade com o Estado, por meio
da participação dos diversos grupos sociais na formulação e execução da política ambiental.
A solidariedade entre gerações, bem como o compartilhamento da responsabilidade ambiental
combinados com outras disposições normativas oferecem as bases para a construção de uma nova
realidade político-jurídica pautada num Estado Democrático e Ecológico de Direito.
O Mercado Comum do Sul (Mercosul) tem por objetivo principal a integração econômica,
política e social dos Estados-parte. Com desenvolvimento econômico trazido pela formação do bloco,
sobretudo pelas práticas agrícolas e industriais, em virtude do modelo de produção vigente ocorrem
danos ambientais, por vezes transfronteiriços.
O Mercosul representa hoje aproximadamente 56% da área ambiental da América do Sul, e em
todas as Constituições dos Estados-parte existe a previsão do meio ambiente como direito fundamental
(art. 5° CNA, art. 225 CRFB, art. 7° CRP, art. 47 CROU, art. 127 CRBV).
1 Mestrando em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos. Professor de Direito da Universidade Federal do Tocantins
(UFT), Faculdade de Ciências Jurídicas de Paraíso do Tocantins (FCJP) e da Faculdade de Palmas (FAPAL). E-mail:
viniciusmarques@uft.edu.br
2 Doutoranda em Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal (Rede Bionorte). Professora de Direito na
Universidade Federal do Tocantins (UFT) e no Centro Universitário Luterano de Palmas (CEULP/ULBRA). E-mail:
suyenerocha@uft.edu.br
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 171
A Constitución de la Nación Argentina (CNA) prescreve em seu art. 41 que todos os habitantes tem
o direito de um ambiente saudável e equilibrado, apto a proporcionar o desenvolvimento humano.
Assim como existe o direito, também existe o dever de cuidar e reparar.
Artículo 41 - Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el
desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin
comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo. El daño ambiental
generará prioritariamente la obligación de recomponer, según lo establezca la ley.
Las autoridades proveeran a la proteccion de este derecho, a la utilizacion racional de los recursos
naturales, a la preservacion del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biologica, y a la
informacion y educacion ambientales.
Corresponde a la Nacion dictar las normas que contengan lós presupuestos minimos de proteccion, y a
las provincias, lãs necesarias para complementarias, sin que aquellas alteren lãs jurisdicciones locales.
Se prohibe el ingreso al territorio nacional de residuos actual o potencialmente peligrosos, y de los
radiactivos.
Conforme assevera Cabanillas (2009) o supracitado artigo trouxe uma noção antropocêntrica do
direito ambiental, este como sendo um direito das pessoas. Ademais, percebe-se ainda o ambiente
como limite de trabalhar das pessoas. Neste ponto, não se trata da norma de ocupar-se unicamente
com o atuar do ser humano sobre a natureza para modificá-la tanto quanto seja possível no sentido
mais vantajoso para a espécie humana. Pelo contrário, a natureza é uma realidade da qual a humanidade
depende e, por isso, deve cuidar (CABANILLAS, 1993). Desta forma, fica evidente o direito ambiental
como um direito de solidariedade na medida em que existe preocupação com as atividades produtivas
satisfaçam as necessidades presentes sem comprometer as gerações futuras.
Por oportuno, depreende-se do texto normativo da constituição argentina que não se deve
proteger qualquer tipo de habitat, mas sim um ambiente sadio e equilibrado, ou seja, deve tutelar um
ambiente em que a pessoa pode desenvolver uma qualidade de vida. Não se trata de “viver”, mas de
“bem viver”, ideia esta recuperada na Conferência de Estocolmo de 1972.
A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), quanto à matéria ambiental, assegura
no seu art. 225, caput, que
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações.
Segundo entendimento doutrinário pátrio (SILVA, 2007; BARROSO, 1992; FIORILLO, 2009;
FIORILO, RODRIGUES, 1999; FREITAS, 2002), a carta magna brasileira ostenta um dos mais
completos e avançados arcabouço normativo de tutela ambiental composto pelos fundamentais art. 225
e art. 170, inciso VI, as disposições relativas à competência concorrente e comum em matéria ambiental
(arts. 24, VI e 23, VI, VII).
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está intimamente relacionado à
dignidade da pessoa humana, este enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito, e a sua
efetividade dependerá a sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações.
[...] o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental,
voltado a assegurar a vida e a dignidade da pessoa humana, preservando a saúde, a
segurança, o sossego, o bem-estar da coletividade, entre outros bens e valores, sem os
quais não se pode falar em vida humana digna. (YOSHIDA, 2009, p. 74)
Depreende-se então que, com esta constituição, o Paraguai reconheceu novos direitos que, à
época, a nível internacional estavam ganhando força e que a nível nacional exigiam uma urgente tutela
para reduzir as desigualdades sociais existentes naquela nação.
A seção II do Capítulo I da CRP está dedicada exclusivamente ao ambiente. O art. 7º reconhece
o direito ao ambiente, a necessidade de se estabelecer políticas públicas ambientais e de garantir ampla
proteção.
Artículo 7 - DEL DERECHO A UN AMBIENTE SALUDABLE
Conforme destaca Abed et Poletti (2009) o direito ao ambiente foi reconhecido segundo as
posturas antropocêntricas da proteção ambiental, sendo inclusive o equilíbrio ecológico como conceito
que estabelece a obrigação estatal de gerar políticas que não só conservem o meio ambiente, como
também que recomponham e melhorem em caso de ser necessário.
A Constitución de la República Oriental Del Uruguay (CROU) estabelece que “Artículo 47.- La protección
del medio ambiente es de interés general. Las personas deberán abstenerse de cualquier acto que cause depredación, destrucción o
contaminación graves al medio ambiente. La ley reglamentará esta disposición y podrá prever sanciones para los transgresores.”
Ferreira (2009) leciona que tal artigo foi incorporado com a reforma constitucional de 1997
ocorrida nesse país, declarando o meio ambiente como sendo de interesse geral. Não obstante a essa
garantia constitucional, o referido autor também destaca que já em 1989 já havia comando normativo
na lei processual de 1989 que já concedia ao Ministério Público a legitimidade ativa para atuar em causa
do meio ambiente.
A Constitución de la República Bolivariana de Venezuela (CRBV) dentro do título III, de los Derechos
Humanos y Garantías, y de los Deberes, se consagra o direito ao ambiente saudável, seguro e ecologicamente
equilibrado.
Artículo 127. Es un derecho y un deber de cada generación proteger y mantener el ambiente en
beneficio de sí misma y del mundo futuro. Toda persona tiene derecho individual y colectivamente a
disfrutar de una vida y de un ambiente seguro, sano y ecológicamente equilibrado. El Estado
protegerá el ambiente, la diversidad biológica, los recursos genéticos, los procesos ecológicos, los parques
nacionales y monumentos naturales y demás áreas de especial importancia ecológica. El genoma de los
seres vivos no podrá ser patentado, y la ley que se refiera a los principios bioéticos regulará la materia.
Es una obligación fundamental del Estado, con la activa participación de la sociedad, garantizar que
la población se desenvuelva en un ambiente libre de contaminación, en donde el aire, el agua, los
suelos, las costas, el clima, la capa de ozono, las especies vivas, sean especialmente protegidos, de
conformidad con la ley.
Gorender (1997) analisa que o último terço do século XX é marcado por transformações de
grande importância no sistema capitalista mundial. Essa mudança de paradigma não debilitou a essência
do modo de produção capitalista, na verdade, reforçou-a, uma vez que acentuou sua característica
mundial. Nesse sentido, as mudanças sociais oriundas da globalização da economia anularam
importantes conquistas das classes subalternas em sua secular luta pela conquista de direitos.
Segundo Bobbio (2004, p. 229)
A luta pelos direitos teve como primeiro adversário o poder religioso; depois, o poder
político; e por fim, o poder econômico. Hoje as ameaças à vida, à liberdade e à
segurança podem vir do poder sempre maior que esta em condição de usá-las.
Entramos na era que é chamada de pós-moderna e é caracterizada pelo enorme
progresso, vertiginoso e irresistível, da transformação tecnológica e,
consequentemente também tecnocrática do mundo.
Adentrando o século XXI, Miranda, Castilho, Cardoso (2009) identificam que os movimentos
sociais e a participação popular se reconfiguram em face da globalização, inclusive por meio das
Organizações Não-Governamentais (ONG’s). Estas, enquanto associações de cidadãos que se organiza
na defesa de direitos, se apresentam como nova forma de resistência.
A reversão dos estragos dos anos 1990, que foram econômicos, políticos, sociais e
culturais, portanto, é possível, mas vai exigir muita coragem e vontade política dos
novos dirigentes do país, e muita mobilização popular, para além do voto.
(BEHRING, 2003, p. 287)
O processo de transformação social, onde os cidadãos passam de uma situação passiva para
uma situação ativa e reivindicatória, é decorrente do contexto socioeconômico e histórico de cada
sociedade. Quem participa das lutas, é o homem, o homem real; não é a “História” que utiliza o
homem como meio para realizar os seus fins, pois a História não é senão a atividade do homem que
persegue seus objetivos. (MARX; ENGELS; 2003)
A expressão acesso à justiça é reconhecidamente de difícil definição, mas serve para determinar
duas finalidades básicas do sistema jurídico (este entendido como o sistema pelo qual as pessoas podem
reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Estado). Primeiro, o sistema
deve igualmente ser acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individualmente
e socialmente justos (CAPPELLETTI; GARTH, 1988).
O crescimento dos danos ambientais, sobretudo por não se saber conjugar desenvolvimento
econômico e preservação, faz a sociedade emergir como grande protagonista na possibilidade de uma
efetiva tutela do meio ambiente. Assim, Guimarães (2009) afirma que cabe à população buscar a
proteção jurisdicional dos direitos difusos de ordem ambiental diante de dano ou ameaça de lesão ao
meio ambiente, enquanto ao Estado incumbe proporcionar os instrumentos adequados para a atuação
dos cidadãos nesta seara, propiciando o efetivo acesso à justiça em matéria ambiental.
O acesso à justiça em matéria ambiental é objeto de relevante discussão, diante das
peculiaridades inerentes aos conflitos ambientais, que incidem sobre interesses e direitos de natureza
difusa, o que traz dificuldades no que se refere à sua adequada organização, representação e defesa.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 175
Para Oliveira e Guimarães (2004) fica claro que todos, e não apenas o Estado, tem a
incumbência de preservar o meio ambiente. O Estado deve fornecer ao cidadão os meios necessários à
tutela do bem. O cidadão, por sua vez, deve, diante de tais meios, participar de todas as ações que se
destinam à preservação do meio ambiente saudável, exercendo assim a sua cidadania em matéria
ambiental.
Esaín (2006) indica que o processo constitucional é aquele cujo centro de ação se encontra em
determinada matérias para tutelar imediatamente os direitos fundamentais e o correto desempenho da
dinâmica dos Poderes do Estado Democrático. No caso da proteção ao meio ambiente, por meio de
ação de iniciativa popular, o referido autor destaca que na Argentina
La acción posee base en el artículo 43 primer y segundo párrafo de la Constitución y será entonces
una acción de protección inmediata del derecho reglado en el artículo 41. Por lo tanto estamos frente a
un proceso que tiene por objeto la protección expedita de un derecho humano fundamental
particularizado. Esto nos llevará a hablar de proceso constitucional ambiental, o amparo ambiental.
(ESAÍN, 2006, on line)
Conclusão
A ação de iniciativa popular para a tutela do ambiente passa a ser o instrumento por meio do
qual o cidadão vai exercer sua parcela de contribuição na defesa do patrimônio ambiental,
compartilhando essa tarefa com o Estado, uma vez que o direito a um ambiente saudável é um direito
de terceira dimensão ou direito de solidariedade, posto que não diz respeito apenas a um cidadão, mas a
todo gênero humano, impondo-lhe o exercício da cidadania em matéria ambiental, a fim de garanti-lo
hígido não apenas para as presentes, mas também para as futuras gerações.
Pode-se afirmar, portanto, que a ação de iniciativa popular para a tutela do ambiente qualifica-se
como instrumento processual de resgate às garantias constitucionais inerentes às sociedades e como
verdadeiros exercício de cidadania, sobretudo por representar um caráter democrático e de
transformação social.
Referências
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LOUBET, Luciano Furtado (org). O direito ambiental na América latina e a atuação do ministério público. Tomo I –
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Janeiro, v. 88, n. 317, p. 161-178, jan./mar. 1992.
BEHRING, Elaine Rossetti. Brasil em contra-reforma: desestruturação do Estado e perda de direitos. São Paulo:
Cortez, 2003.
BOBBIO, Noberto. A era dos Direitos. Tradução de Regina Lira, 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Elsevier,2004.
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com as alterações adotadas pelas emendas Constitucionais nº 1/1992 a 68/2011, pelo Decreto legislativo nº
186/2008 e pelas emendas Constitucionais de Revisão nº 1 a 6/1994. 35ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados,
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CABANILLAS, Renato Rabbi-Baldi. El derecho ambietal en la república argentina. In: STEIGLEDER, Annelise
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CAMPOS, Germán Bidart. El derecho de la Constitución y su fuerza Normativa. Buenos Aires: Ed. Ediar, 1995.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
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CORTE SUPREMA DE JUSTIÇA DE LA NACIÓN. Constitución de la Nación Argentina: publicación del
Bicentenario. 1ª ed. Buenos Aires: Biblioteca del Congreso de la Nación / Biblioteca Nacional, 2010.
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DEMO, Pedro. Participação é conquista. São Paulo: Cortez, 1993.
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FERREIRA, Enrique Viana. El Ministerio Publico y el derecho ambiental en El Uruguay. In: STEIGLEDER,
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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Manual de direito ambiental e legislação
aplicável. 2ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Max Limonad, 1999.
FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2ª ed. São Paulo: RT, 2002.
GORENDER, Jacob. Globalização, tecnologia e relações de trabalho. Estudos avançados. vol.11, nº.29, São
Paulo, Jan./Apr. 1997.
Resumo
N
o Brasil e no Maranhão, são inúmeros os casos de conflitos socioambientias envolvendo
empresas, Estado e grupos ditos tradicionais, que resultam em importantes impactos na
economia, nos sistemas ecológicos e na vida cotidiana das comunidades. Utilizando-se
como plano para análise empírica a Usina Termelétrica Itaqui, em São Luís, e da Refinaria Premium I
da Petrobrás, em Bacabeira e com o auxílio da teoria sociológica disponível este artigo busca apresentar
e analisar os processos de deslocamentos compulsórios combinados com os conflitos socioambientais
resultantes da instalação de projetos de desenvolvimento. O estudo demonstra como se deram os
arranjos e rearranjos dos modos de vida dos grupos deslocados compulsoriamente em razão desses
projetos, servindo de pistas para compreender as reações dos atores e instituições envolvidos e inferir
resultados mais ou menos gerais sobre situações de conflitos decorrentes de situações de
deslocamentos compulsórios.
Resumo
O
presente estudo é resultado de uma visita técnica ao Quilombo de Ivaporanduva
localizado no Estado de São Paulo, no Município de Eldorado na Região conhecida como
Vale do Riberia. Essa pesquisa é resultado de um projeto Interdisciplinar que envolveu
alunos da graduação das áreas de Pedagogia, História, Artes e Serviço Social. Para compreendermos a
relação entre território, identidade e sustentabilidade, buscou-se respaldo na legislação que instituiu os
Referencias da Educação Quilombola, lei aprovada em novembro de 2012 de alcance nacional e que é
resultado da luta do próprio movimento social quilombola e de intelectuais que discutem a questão.
Foram aplicados questionários aos membros da comunidade e aos professores, buscando compreender
em que medida a legislação é conhecida e qual a trajetória dessa educação quilombola que tem como
base estrutural a manutenção da identidade vinculada ao território. A presente comunicação apresentará
parte do resultado dessa pesquisa.
Integração e
Cooperação Econômica Regional
ARTIGOS
O Mercosul e a crise: a integração da América do Sul
e o aparente paradoxo europeu
Introdução
D
iante de tantas mudanças globais – recentemente a crise nos EUA e na Europa, além da
instabilidade no mundo Árabe - nunca foi tão necessário discutir o aprofundamento das
relações de cooperação no projeto de integração dos Estados da América do Sul e América
Latina.
A situação econômica dos vizinhos do Norte repete em muito a tragédia do ano de 2008 e a
diferença é que, dessa vez, o enredo contempla um novo e relevante personagem: o Velho Mundo.
Enquanto os Estados Unidos cogitam rever estratégias no seu sistema financeiro, a Europa amarga o
seu próprio drama, arrastando consigo países como Portugal, Grécia, Espanha e até a Itália.
Esses episódios não devem ofuscar o rompante de democracia vivido nos últimos meses pelo
Mundo Árabe. Inaugurados pela Tunísia e favorecidos pelas redes sociais da internet, os movimentos
populares disseminaram-se por países como Egito, Líbia e Síria, exigindo respeito à liberdade e
profundas reformas sociais contra a tendência repressora das teocracias absolutistas que há décadas
perpetuam-se no poder.
Desde o século XIX, outros dois fenômenos proporcionaram profundas transformações nas
relações internacionais, com repercussão direta sob a organização interna dos Estados. A globalização e
a diminuição das fronteiras entre os Estados, e posteriormente, a abertura das economias, possibilitou a
formação de compartimentos regionais de integração, os denominados blocos econômicos.
Há algum tempo, a tendência para o regionalismo acentuou-se, na sequência dos processos de
descolonização, resultando na elaboração de projetos de integração política e econômica para os
Estados. Grandes potências, especificamente europeias, foram as primeiras a despertar para a
necessidade de se preparar para os desafios da regionalização, recorrendo ao aprofundamento dos laços
de cooperação como táctica defensiva.
É aí que reside o grande paradoxo. Embora pioneira e visionária, a Europa integracionista não
foi capaz de evitar a crise de 2011. Ao contrário, após a disseminação dos efeitos da crise, a União
1 Professor Universitário. Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Email: professor.alex@yahoo.com.br
2 Professora Universitária. Doutoranda em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Mestra em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Email:
professoracristianelima@yahoo.com.br
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 185
Europeia passou a conviver com a antiga sombra da desconfiança dos mais céticos em relação à
chamada Zona Euro.
Como conseqüência, velhos questionamentos ressoaram impondo novos desafios à
comunidade internacional. Até que ponto a Europa pode servir de paradigma para modelos
integracionistas neonatos como o Mercosul? A integração, até então tida como um grande trunfo
europeu, ainda pode ser considerada uma alternativa confiável para os Estados da América do Sul?
Antes de pormenorizarmos a questão da integração, esboçando suas conseqüências e aferindo
suas potencialidades para o futuro, cumpre aqui registrar alguns conceitos relevantes a esse respeito.
3 Cfr. BALASSA, Bela. The theory of economic integration, trad. Clássica editor. Londres: George Allen e Unwin;
4 Cfr. QUADROS, Fausto de. Direito da União Européia. Coimbra: Almedina, 2004..
Passados nada menos que sessenta anos desde então, a União Europeia experimentou
sucessivos alargamentos e diversos tratados – incluindo do Ato Único Europeu, que entrou em vigor
no dia 1º de julho de 1987– até o mais recente documento, assinado em Lisboa em dezembro de 2007.
Atualmente, a União Europeia conta com um sofisticado quadro institucional. Para atender aos
princípios democráticos, o processo de tomada de decisões funciona conforme um complexo esquema
de atribuições e competências envolvendo quatro instituições fundamentais: o Conselho Europeu, o
Conselho de Ministros, a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu.
Além dessa base institucional fundamental, há ainda o Tribunal de Justiça, com atribuição de
garantir o cumprimento da legislação europeia, o Tribunal de Contas, que fiscaliza o financiamento das
atividades da União; o Comitê Econômico e Social, representativo da sociedade civil, empregados e
empregadores, o Banco Central Europeu, responsável pela política monetária, além outros muitos
órgãos e agências com funções específicas nos quadros da União Europeia.
Inobstante a crise quem tem atravessado, o projeto europeu ainda pode considerado como
paradigma significativo de integração. Por outro lado, o projeto da América do Sul, core deste trabalho,
impõe que se analise a construção sulamericana, suas instituições e desafios para esse novo contexto
mundial.
6 Cfr. ARNAUD, Vicente Guillhermo. MERCOSUR, Unión Europea, Nafta Y Los Procesos de Integración Regional.
Segunda Edición Ampliada y atualizada. Abeledo-Perrot. Buenos Aires, 1999.
O tratamento diferenciado entre países com desenvolvimento médio, maior ou menor, dava
prosseguimento a um processo de integração a “longo prazo”, com o intuito de estabelecer “de forma
gradual e progressiva” um “mercado comum latino-americano”7.
Foi diante do permissivo da Aladi sobre o estabelecimento de acordos bilaterais que Argentina e
Brasil firmaram, em 1986, o Programa de Integração Comercial e Econômica (PICE), substituído de
fato em 1991, pelo Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul.
Juridicamente, o Mercosul é o resultado do encontro de vontades da República Argentina, da
República Federativa do Brasil, da República do Paraguai e da República Oriental do Uruguai que, aos
26 dias do mês de março do ano de 1991, assinaram em o Tratado de Assunção, com vistas à criação
do Mercado Comum do Sul.
O objetivo primordial do Tratado de Assunção é a integração dos Estados Partes através da
livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, do estabelecimento de uma Tarifa Externa
Comum (TEC), da adoção de uma política comercial comum, da coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais, e da harmonização de legislações nas áreas pertinentes.
Situado dentro da integração Latino-Americana, o acordo intentava expressamente a formação
de um mercado comum. Todavia, na concretização de tais objetivos esteve sempre esbarrando nas
divergências internas dos Estados Membros, mormente no que tange aos aspectos institucionais.
Após Assunção, em dezembro de 1994, reuniram-se na Cúpula de Ouro Preto os Presidentes
dos Estados Partes do Mercosul. Naquele momento foi aprovado o Protocolo Adicional ao Tratado de
Assunção - o Protocolo de Ouro Preto – com o fito de estabelecer a estrutura institucional do Mercosul
e consagrar a sua personalidade jurídica internacional.
A mais recente iniciativa de integração da América do Sul deu-se em 8 de dezembro do ano de
2004, com a assinatura da Declaração de Cuzco.
Inspirados nos mesmo ideais de Simon Bolívar, chefes de Estado e de Governo de doze países
da América do Sul – Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, Guiana, Paraguai, Peru,
Suriname, Uruguai e Venezuela - decidiram lançar mão de um novo espaço regional de integração
política, social, econômica e ambiental.
O tratado constitutivo da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) foi aprovado em maio de
2008 em Brasília, durante reunião extraordinária de chefes de Estado e de governo.
Cercado de entusiasmo e contando com o otimismo dos integracionistas, a Unasul persegue a
convergência entre o Mercosul e a Comunidade Andina e o Chile, através do aperfeiçoamento da Zona
de Livre Comércio, na esteira da Resolução 59 do XIII Conselho de Ministros da Aladi, de 18 de
outubro de 2004.
8Cfr. BAPTISTA, Luis Olavo. O Mercosul Após o Protocolo de Ouro Preto. Estudos Avançados. Vol. 10, nº.27. São
Paulo, 1996, p.185.
9 TRINDADE, Otávio A. D. Cançado. O Mercosul no Direito Brasileiro. Incorporação de normas e Segurança Jurídica.
Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p. 03.
10 MELLO, Celso de Albuquerque. Direito Internacional de Integração. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 306/307. p.
306/307.
A nosso ver, isso tem relação com o significado que o conceito de soberania ainda possui nos
quadros do Mercosul, alinhado aos paradigmas clássicos de soberania absoluta da Carta da ONU de
1948.
Conforme ensina Quintão Soares, “(…) não se admitia, nos limiares do século XX, que o
Estado, no contexto internacional, apesar das obrigações impostas pelo DIP, se submetesse a um poder
superior”11.
Todavia, ao contrário do que se pensa, não há uma contradição entre a soberania dos Estados e
os processos de integração12. Tampouco há que se cogitar desgaste substancial que indique uma crise do
Estado ou do conceito de soberania como um todo.
Daí a Teoria da Soberania Partilhada, que, como o próprio nome sugere, explica a transferência
das competências estatais mediante um esquema de partilha entre os órgãos supranacionais e os Estados
membros.
Os adeptos dessa teoria sustentam que, mediante a assinatura de tratados internacionais,
determinados Estados firmaram compromissos de tal modo que a titularidade da soberania passou a ser
partilhada entre os Estados e os órgãos supranacionais.
É o que ocorre com os Estados Membros da União Europeia, cujo exercício das competências
concorrentes entre Estados membros e União foi definitivamente disciplinado pelo Tratado de Lisboa
em dezembro de 2007.
Diferencia-se fundamentalmente de outra teoria, para a qual não se trata de uma questão de
partilha da titularidade, e sim de uma verdadeira limitação que se impõe contemporaneamente à própria
soberania, no conceito mais clássico.
Segundo a Teoria da Soberania Limitada, fica evidente, sobretudo nos processos de integração,
que a própria noção de soberania se modificou. Em razão das transformações mundiais, os Estados já
se apresentam sob uma visão cada vez mais limitada de soberania.
Existem nos espaços de integração limites intransponíveis à transferência de competências
originárias do Estado para as instituições comunitárias. O Direito é todo ele elaborado e promulgado
pelo Estado, o único capaz de lhe emprestar a força coativa necessária para a sua existência.
E, se todo o direito emana do Estado, é de se concluir que o poder político do Estado não
reconhece tal limitação, ao contrário, goza de proteção pelas mesmas normas que lhes autorizam nos
tratados.
Assim, o Direito Internacional é, antes de mais nada, um direito aplicável a entidades soberanas
e a soberania do Estado não se choca com qualquer outra. Mesmo assim, são os exatos limites que o
Direito Internacional impõe aos Estados soberanos que os colocam em patamar de igualdade no plano
11 QUINTÃO SOARES, Mário Lúcio. Teoria do Estado. 2 ed. rev. atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 108.
12 Cfr. PINTO, Marcio Morena. La Dimensión de La Soberanía En El Mercosur. Curitiba: Juruá Editora, 2010, p. 128.
internacional. Daí resulta, inclusive, a sua obrigatoriedade, como fundamento da igualdade soberana entre os
Estados13.
Além dos limites impostos pelo Direito Internacional ao Estado soberano há ainda a questão do
conflito entre as normas internacionais e a ordem jurídica interna dos Estados, suscitando debates à luz
das teorias dualista e monista14.
Sustenta que não há intersecção entre a ordem internacional e a ordem interna, inexistindo
assim qualquer possibilidade de conflito entre ambas.
Isso porque, enquanto que as normas de direito internacional disciplinam as relações entre os
Estados e entre estes e os demais entes da sociedade internacional, o direito interno rege tão somente as
relações intraestatais, sem conexão com elementos externos.
Segundo os dualistas há profundas diferenças no esquema das fontes, que no Direito Interno é
a vontade dos Estados e no Direito Internacional é a vontade de vários Estados. E também quanto aos
sujeitos, que no Direito Interno são pessoas singulares e coletivas, e no Direito Internacional são os
Estados15.
Em sentido contrário caminha o monismo jurídico, que assevera que o direito constitui uma
unidade, um sistema integrado, ao mesmo tempo, por normas de direito internacional e normas de
direito interno16.
Assim, podem preponderar ou a ordem internacional – denominado monismo com primazia do
Direito Internacional (ou monismo internacionalista), ou a ordem interna – monismo com primazia do
direito interno (ou monismo nacionalista).
Nos quadros do regime europeu de partilha de poder questão relevante diz respeito à
reversibilidade das competências partilhadas entre a União e os Estados Membros.
A questão está atrelada a outra, relativa à origem das competências comunitárias, no que tange à
qualificação do ato voluntário expresso dos Estados membros que conferiu tais competências
inicialmente à Comunidade, e, em seguida, à União.
Aqui, duas posturas colimam ideias distintas.
A primeira sustenta que os Estados membros efetivamente transferiram para a Comunidade
parcelas da sua soberania, tendo como conseqüência a perda de todo e qualquer poder de intervenção
em favor da União, que passaria a ostentar competência exclusiva dali em diante.
13 Cfr. DINH, Nguyen Quoc, DAILLIER, Patrick e PELLET, Alain. Direito internacional público. trad. Vítor Marques
Coelho. 2 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
14 Cfr. TRIEPEL, H. Les Rapports entre le Droit Interne et le Droit International, in Recueil de Cours de L’Academy de
Droit International, tomo I, 1925. No Brasil, SILVA, Roberto Luiz. Direito Internacional Público. 3 ed. Belo Horizonte:
Editora Del Rey, 2008, p. 156; Cfr. CASTRO, Amilcar de. Direito Internacional privado, 5 ed. aum e atual. Por Osiris
Rocha. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 249; ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G.E. do Nascimento; , CASELLA, Paulo
Borba. Manual de Direito Internacional Público. 16 ed. reformulada. São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
15 Cfr. PEREIRA, André Gonçalves; QUADROS, Fausto de. Op cit., p. 84.
16 Cfr. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Editora RT, p. 75;
MELLO, Celso D. de Albuquerque. Direito internacional da integração. Rio de Janeiro: Editora Renovar.
Por outro lado, outros defendem que a transferência ocorreria tão somente na esfera do
exercício das competências, jamais da titularidade. Segundo esse entender, haveria tão somente a mera
delegação de poderes dos Estados à Comunidade17.
Nesse mister faz-se necessário mencionar decisão do Tribunal de Justiça no famoso acórdão
COSTA/ENEL de 31 de março de 1971, que referiu-se à Comunidade como uma entidade “dotada de
poderes reais resultantes de uma limitação de competência ou de uma transferência de atribuições dos Estados para a
Comunidade (…)18”
Contrario sensu à corrente da transferência, a leitura dessa parte do julgado indica a possibilidade
de reversão dos poderes concedidos pelos Estados partes estaria adstrita à sua expressa disposição no
texto do Tratado, prevalecendo a ideia de delegação.
Assim, parece-nos cediço – sobretudo com os novos contornos do sistema de atribuição de
competências da União Europeia ratificado pelo Tratado de Lisboa – que, se apenas o próprio Estado é
quem pode transferir parcela de sua soberania, então é perfeitamente legítimo imaginar que ele próprio
possa reverter tal concessão, se assim o desejar. Daí, esse limite aparecer expressamente no texto dos
tratados de cooperação.
Atualmente, após o Tratado de Lisboa que regulamentou definitivamente as competências,
conforme o princípio da subsidiariedade, restaram superadas as eventuais controvérsias a respeito o
sistema europeu de atribuição de competências.
Podemos afirmar que o mundo se depara com uma terceira versão de regionalismo, que vem na
sequência daquela segunda tendência, pós-Segunda Guerra Mundial, responsável pela formação dos
primeiros blocos regionais.
A comunidade internacional que outrora teve a construção européia como inspiração para o
nascimento seqüencial de novos projetos de integração, hoje assiste ao exemplo europeu com mais
ponderação. Por ali, os problemas enfrentados conjuntamente pelos Estados suscitam diversos
questionamentos a respeito das conseqüências do aprofundamento das relações entre os Estados.
É tarefa complexa apontar exatamente onde estão os principais focos da crise, bem como pode
ser precipitado atribuir à integração a culpa por todas as mazelas contemporâneas.
É preciso também enaltecer o fortalecimento da capacidade individual de superação cada
Estado na União Europeia, e reconhecer-lhe méritos, sem recorrer para a tendência reacionária do
retrocesso.
17 Cfr. QUADROS, Fausto de. Direito da União Européia. Almedina. Coimbra, 2004.
18 VILHENA, Maria do Rosário. O Princípio da Subsidiariedade no Direito Comunitário. Almedina, 2002, Coimbra, p. 103.
Caso contrário, seria negar uma série de conquistas e avanços, a exemplo do que se deu no que
se refere aos sistemas regionais de proteção aos direitos do homem.
O cidadão europeu que outrora estava entregue exclusivamente ao inepto e problemático
sistema global da ONU, passou a acumular proteção própria, conferida num quadro institucional-
normativo de referência na questão da proteção internacional dos direitos do homem.
Funcionando em co-existência com o sistema da ONU - a inspiração da Declaração Universal
dos Direitos Humanos e a proteção do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e do Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - as etapas da União Europeia conduziram ao
mais completo e respeitado modelo contemporâneo de proteção aos Direitos Humanos.
Além da Convenção Européia dos Direitos do Homem e da Carta dos Direitos Fundamentais
da União Européia, o sistema europeu ainda conta com a e da existência de um tribunal próprio para os
litígios que digam respeito aos Direitos do Homem.
A lição que a crise pode ter trazido é a de que não há que se pregar a simples imitação do
projeto de integração como estratégia de salvação dos Estados endividados. Inclusive porque um
período de crise sempre exigirá uma política nacional de austeridade e um esforço individual de
responsabilidade dos Estados, sem o qual nenhuma solução se afigurará viável.
As iniciativas de integração são válidas uma vez que ao se agruparem os países conseguem
alavancar as suas economias já que há uma abertura do seu mercado para todos os países,
especialmente com a eliminação de barreiras comercias e alfandegárias.
Ao que parece, a América do Sul já demonstrou essa intenção através dos doze países que
compõem a Unasul, sinalizando ações coordenadas para enfrentar a nova etapa da crise financeira
internacional.
Entre as principais medidas, destacam-se o comércio intrabloco e a criação de um fundo
financeiro.
Os países da América do Sul planejam ainda adotar medidas para reforçar o comércio regional
em moedas locais, impondo restrições ao dólar. O intuito é proteger as reservas e incrementar o
comércio entre os países da região, que atualmente equivale a cerca de US$ 120 bilhões por ano.
Para que se renovem as esperanças quanto ao futuro da integração da América do Sul é
imperativo que se proceda, primeiro, uma revisão do paradigma de soberania no bloco. Impõe-se uma
reconstrução ideológica do Estado, conjugando-se os ideais de Simon Bolívar com os desafios que
atualmente se impõem aos Estados Mercosulinos e à comunidade internacional com um todo.
O momento é, portanto, de avançar e não de retrair-se. Perante a crise, cada vez mais impõe-se
que as iniciativas de integração deixem de ser vistas com desconfiança pelos Estados envolvidos. Em
tempos de crise, o receio histórico que sempre limitou América do Sul e América Latina deve ser visto
como uma reverência leviana ao regresso.
Contrario sensu, é preciso resgatar-se no espírito bolivariano a vocação histórica dos Estados da
América do Sul como alternativa de superação dos problemas regionais. Recorrer à estratégia
integracionista nada mais é do que adotar iniciativas coletivas para problemas comuns.
Ora, se construções como o Mercosul e a Unasul podem, por um lado, significar uma redenção
para os Estados menos desenvolvidos, para as economias mais fortes a integração tem se demonstrado
um recurso extremamente útil e bem sucedido na superação das adversidades globais.
Primeiro porque não implica perda de autonomia nem de poderes exclusivos por parte do
Estado, mas sim uma cessão voluntária. Conforme se apontou, até mesmo no modelo supranacional
europeu é possível a cláusula de reversibilidade das competências, embora adstrita à expressa disposição
no texto dos Tratados.
Além disso, o procedimento também pode ser revisto caso a possibilidade de retirada esteja
prevista no Tratado de integração e à medida que não mais interessar ao Estado participar daquele
processo de integração.
E, ao tempo em que se afirma a cessão de soberania dos Estados nos domínios comerciais e
ambientais, por exemplo, o poder exclusivo do Estado continua a ser exercido nos limites de seu
território. Parece modificada – isso sim - a ideia do Estado provedor, embora se conserve soberana a
respectiva ordem constitucional.
Referências
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Revista Mensal do INTAL no. 40 In: PINTO, BRAGA, Hugo Eduardo Meza e Márcio Bobik. A lógica do
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www.usp.br/prolam/downloads/versao3.doc . Acesso em 04 de abril de 2013
MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 3 ed. São Paulo: Editora RT.
MELLO, Celso de Albuquerque. Direito Internacional de Integração. Rio de Janeiro: Renovar, 1996.
1. Introdução
O
presente trabalho resulta de pesquisas realizadas desde 2009, com a participação sucessiva
de três estudantes de Iniciação Científica no Departamento de Economia da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro: Caio Peixoto Chain, Larissa Helena Pitzer Jacob (bolsistas
pelo CNPq) e Ana Cláudia Bertolino (bolsista pela Faperj) sob a orientação do Professor Cezar
Augusto Miranda Guedes. O objetivo da pesquisa é a descrição e análise do comercio bilateral Brasil
– Argentina nos primeiros vinte anos do Mercosul (1991/2011).
Além desta introdução o artigo está constituído de uma segunda seção onde consideramos o
comercio brasileiro em geral, para na terceira seção abordarmos especificamente o comercio bilateral
Brasil – Argentina. Por fim, na quarta seção, temos os comentários finais e as conclusões.
Desde as últimas décadas do século passado, vivemos um cenário marcado pelo
aprofundamento de três processos que produziu mudanças substanciais na dinâmica social e econômica
em escala global: um novo ciclo de inovações radicais, a difusão de variadas formas de integração
regional e a intensificação da internacionalização da produção (GUEDES, 2009). Na perspectiva do
processo de internacionalização da produção, ou seja, comércio, investimento externo direto e relações
contratuais (DUNNING, 1977), nossa ênfase está colocada sobre as relações bilaterais do comercio do
Brasil com a Argentina.
Segundo Gonçalves (2005), o comércio significa que a mercadoria, bem ou serviço, é produzida
no país de origem e exportada cruzando a fronteira nacional, enquanto o investimento direto externo
(IDE) representa o deslocamento de pessoa jurídica, a empresa. Desse modo, sempre que um não
residente realiza investimento direto com o objetivo de controlar a empresa receptora do capital há
IDE (filial subsidiária ou joint venture). Ainda segundo a mesma classificação, as relações contratuais,
construídas por meio de franquias, licenciamentos ou contratos, regulam as transferências de ativos,
como tecnologias referentes a processos produtivos ou a produtos específicos.
A Argentina figura em terceiro lugar tanto na pauta das importações quanto na das exportações
brasileiras e os dois países cumprem papel decisivo na dinâmica regional. Argentina e Brasil são os
maiores países sul-americanos e têm recursos naturais disponíveis como em poucos lugares do mundo.
Talvez sejam os únicos países no mundo que podem aumentar no curto prazo e simultaneamente a
produção de alimentos e da agroenergia, fonte renovável por definição em que se destacam o biodiesel
e etanol. (GUEDES, SILVA, 2011)
Para uma visão mais abrangente do comercio exterior brasileiro, apresentamos uma análise de
seu quadro mais geral e de algumas de suas características.
Em 2011 o Brasil se apresentou como a 6ª maior economia do mundo, ultrapassando o Reino
Unido e tendo à frente Estados Unidos, China, Japão, Alemanha e França. No mesmo ano ainda
figurou como um dos maiores importadores e exportadores mundiais, embora sem o mesmo peso
relativo nestes ranking, respondendo por cerca de 1,3% do volume transacionado em importações e
1,4% em exportações. Os dados referidos podem ser visualizados nas tabelas 1 e 2 abaixo em bilhões
de dólares:
Tabela 1
19 Austrália 244
20 Turquia 241
21 Brasil 237
22 Tailândia 228
23 Suíça 208
24 Polônia 208
25 Emirados Árabes Unidos 205
26 Áustria 192
27 Malásia 188
28 Indonésia 176
29 Suécia 175
30 República Tcheca 151
Total acima 15.207
Total mundial 18.381
Fonte: SECEX, 2012
Tabela 2
22 Brasil 256
23 Suíça 235
24 Tailândia 229
25 Malásia 227
26 Indonésia 201
27 Polônia 187
28 Suécia 187
29 Áustria 179
30 República Tcheca 162
Total acima 14.859
Total mundial 18.217
Fonte: SECEX, 2012
Seguindo ainda na caracterização do comércio brasileiro, observa-se a presença da Ásia como
maior mercado fornecedor do país em 2011, respondendo por aproximadamente 31% do fluxo
comercial, logo seguida pela União Européia (20,5%) e América Latina e Caribe (16,7%). Do mesmo
modo, quando se trata dos principais mercados de destino das exportações brasileiras, aparecem Ásia,
América Latina e Caribe e União Europeia, respondendo cada uma, respectivamente por 30%, 22,4% e
20,7%. Esses dados podem ser visualizados por meio dos gráficos abaixo:
Gráfico 1
África 6,8
Ásia 31
Gráfico 2
Europa Oriental 2
África 4,8
Ásia 30
Numa análise mais profunda a respeito da relação comercial do Brasil com o mundo, partindo
da visualização por país, há forte presença da Argentina, 3ª maior economia da América Latina
(superada apenas por Brasil e México), tanto na pauta das importações quanto na das exportações,
razão pela qual o relacionamento com esse país deve ser mais detalhado no que tange a seus processos
de internacionalização. Em 2011, o mercado argentino figurou em terceiro lugar em ambos os fluxos:
Tabela 3
Tabela 4
Do mesmo modo, a relação entre Brasil e Argentina não pode se basear na premissa de ser
entendida apenas bilateralmente, mas deve ser encarada na perspectiva mais ampla das relações
mundiais de poder. (MONIZ BANDEIRA, 2010)
Segundo Moniz Bandeira (2010), o tipo de pensamento que leva em consideração as relações de
um país com os demais de forma apenas individual é artificial e falso, e freqüentemente resulta em
sérios desentendimentos. Para tanto, busca-se ancorar a relação bilateral Brasil – Argentina, foco deste
trabalho, às oscilações inerentes aos movimentos mundiais. É o que se objetiva fazer, ao analisar
brevemente as características históricas dos dois países em questão e, em alguma medida, associá-las à
dinâmica internacional.
importante para sua sobrevivência em períodos de crises internas e externas. Averbug (1998) explica
que, nesse caso, as tarifas elevadas são cobradas sobre produtos mais sensíveis à concorrência externa,
ao passo que taxas reduzidas são aplicadas sobre certos bens estratégicos como, por exemplo, bens de
capital usados na fabricação de produtos de exportação, bens não produzidos no mercado interno, etc.
O acordo, mesmo em sua fase inicial, intensificou o fluxo comercial e conseqüentemente, a
interdependência econômica entre os países, e mais precisamente entre Argentina e Brasil, graças ao
significativo grau de liberalização de barreiras tarifárias e a proximidade geográfica. Alternou períodos
de avanços com outros de certa paralisia, de acordo com as conjunturas econômicas e contextos
políticos. Hoje, importadores e exportadores desses países podem realizar transações com suas
respectivas moedas por meio do Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML), além de poderem
contar com facilidades no que diz respeito à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, ao
estabelecimento da TEC, à adoção de uma política comercial comum, à coordenação de políticas
macroeconômicas e setoriais, e à harmonização de legislações nas áreas pertinentes.
O SML citado acima é um sistema de pagamentos informatizado que permite a remetentes e
destinatários, nos países que integram o sistema, fazer e receber pagamentos referentes a transações
comerciais em suas respectivas moedas, aumentando, dessa forma, o nível de acesso dos pequenos e
médios agentes, possibilitando o comércio exterior em moedas locais e reduzindo custos de transação.
Em março de 2011, o Tratado de Assunção celebrou 20 anos desde sua assinatura em 1991. Sua
trajetória permitiu avanços tanto no plano econômico quanto político, desempenhando importante
papel na inserção internacional dos países integrantes do acordo. O papel econômico, a despeito dos
percalços provocados por crises financeiras, é significativo: desde a sua criação, o Mercosul tem sido
um dos principais destinos das exportações do Brasil e um dos seus principais fornecedores. Vale
ressaltar que o comércio entre os parceiros regionais se elevou de US$ 4,5 bilhões em 1991 para US$ 45
bilhões em 2010. No plano político, o acordo foi importante para a superação de diferenças e para que
o Brasil se transformasse em um líder respeitado regionalmente. A diminuição dos entraves ao
comércio internacional vem para fortalecer ainda mais a dinâmica desse bloco.
Os aspectos positivos da integração econômica podem ser visualizados por meio do gráfico
abaixo, que evidencia o fluxo comercial brasileiro com o Mercosul, desde 1991, ano da assinatura do
Tratado de Assunção, até dezembro de 2011.
Gráfico 3
30.000
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
91
92
93
94
95
96
97
98
99
00
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
-5.000
19
19
19
19
19
19
19
19
19
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
Exportações Importações Saldo
3.2.2. Quantum
O tema do quantum trata da quantidade (mensurada de diversas formas) dos produtos
comercializados internacionalmente por cada país. Aqui, são utilizados como medidas os valores
monetários em US$ através da balança comercial entre os dois países. Além disso, estes são
considerados em termos FOB (do inglês free on board), ou seja, o valor das exportações e importações
exclui os gastos com fretes e seguros.
Para a avaliação do comércio bilateral Brasil - Argentina, uma breve análise histórica deve ser
apresentada em relação a esse fluxo. Se o intercâmbio comercial entre os dois países após a constituição
do Mercosul fosse dividido em fases distintas, podemos identificar três momentos:
A primeira etapa, compreendida entre 1991 e 1998, foi positiva, pois a relação Brasil - Argentina
se estreita com a constituição do Mercosul e por meio da redução sistemática das tarifas aduaneiras
entre os dois países – excluindo certos produtos. O comercio bilateral se torna mais expressivo para
ambos. A participação argentina nas exportações brasileiras que inicia 1991 respondendo por 4,67% do
total exportado pelo Brasil chega em 1998 com a porcentagem de 13,2% do total. O mesmo ocorre
com as importações brasileiras oriundas do país vizinho que de 7,65% passam a corresponder por
13,9% do total.
Na segunda etapa, que compreende os anos de 1998 a 2002, essa relação pode ser considerada
negativa, pois a América Latina foi afetada por uma crise internacional, culminando na adoção brasileira
do câmbio flutuante frente ao câmbio fixo da Argentina (vigente desde 1991), que se inviabilizou na
própria Argentina e desestabilizou a dimensão macroeconômica da integração. Mesmo nesse período
de crise, os produtos brasileiros entraram mais no mercado argentino, chegando ao ponto de que em
2002, mais de ¼ das importações da Argentina foram provenientes do Brasil. A participação argentina
nas exportações brasileiras que respondia por 13,2% do total exportado pelo Brasil despenca em 2002
para a porcentagem de 3,88% do total. A mesma situação ocorre com as importações brasileiras
oriundas do país vizinho que, embora em menor proporção, de 13,9% passam a corresponder por
10,04% do total no mesmo período.
Na terceira e última etapa, a partir de 2002, houve a retomada do crescimento, através da
adoção de um novo perfil comercial extrabloco. Após o ano de 2002, a América Latina começa a se
recuperar das crises econômicas do México, da Ásia e da Rússia, que assolaram a região na década de
1990. O fluxo comercial Brasil - Argentina voltou a crescer, sinalizando a retomada da integração
comercial. Esse novo fôlego na relação comercial tem crescimento sucessivo e seu ápice acontece em
2008 quando as exportações brasileiras em direção ao mercado argentino atingem a cifra de US$ 17,6
bilhões. Em 2009, esse fluxo é abalado em virtude da crise deflagrada nos Estados Unidos ao final de
2008. As exportações brasileiras destinadas ao comércio com a Argentina caem 27,4%, enquanto as
importações argentinas no Brasil caem 14,9% em relação a 2008. Esse comércio já é restabelecido em
2010 e apresenta tendência crescente, apesar de algumas barreiras protecionistas impostas pela
Argentina a importações de produtos brasileiros em setores como de calçados, têxteis e vestuário,
autopeças (freios, embreagens, baterias), tornos, móveis de madeira, linha branca (geladeiras, TVs, entre
outros) e celulose e papel. (MACADAR, 2008). A evolução dos fluxos entre os dois países pode ser
visualizada no gráfico 4, no período de 1991 até fins de 2011:
Gráfico 4
25.000
20.000
15.000
10.000
5.000
0
91
92
93
94
95
96
97
98
99
00
01
02
03
04
05
06
07
08
09
10
11
-5.000
19
19
19
19
19
19
19
19
19
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
20
Exportação Importação Saldo
No que tange às empresas de presença predominante na relação brasileira com o mundo e nesta
relação bilateral em particular, percebe-se que os fluxos são dominados por grandes empresas, em
especial as empresas transnacionais (ETs) que ao longo dos anos foram aumentando exponencialmente
suas fatias de mercado, mostrando um comércio cada vez mais aquecido e protagonizado por grandes
empresas.
No comércio internacional dominado pelas transnacionais, a lógica é a fragmentação das cadeias
produtivas, fazendo que o comércio intraindústrias cresça consideravelmente, estando cada vez mais
presente na economia global devido à intensificação do processo de internacionalização das grandes
corporações. Esse comércio ocorre entre a matriz e suas filiais e/ou entre os segmentos industriais da
mesma cadeia produtiva. Esse é o caso da indústria automotiva, onde algumas ETs do oligopólio
internacional têm produção realizada na Argentina e no Brasil. O destaque é a Fiat e suas unidades em
Betim (Minas Gerais) e Córdoba (Argentina), assim como das grandes ETs do agronegócio (Bunge,
Cargil, Danone, Monsanto, Parmalat).
Gráfico 5
70
60
50
40
30
20
10
0
1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011
Gráfico 6
80
70
60
50
40
30
20
10
0
1992 1994 1996 1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010
4. Considerações finais
De acordo com Moniz Bandeira (2010), apenas Brasil, Estados Unidos e China estão, ao
mesmo tempo, na relação dos dez países de maior território, maior população e maior PIB do mundo.
Nos últimos 100 anos, o PIB brasileiro foi o que apresentou o maior crescimento no mundo, o que
significa expressiva acumulação de capital, capacidade tecnológica adquirida por empresários,
engenheiros e operários e, portanto, a possibilidade de se expandir e diversificar. A maior aproximação
com seu principal parceiro comercial sul americano, a Argentina, implicando na construção de vínculos
de cooperação política e econômica, com o objetivo de fortalecimento tecnológico, político, militar e
econômico e de redução de sua dependência externa, criará, com o tempo, um centro de poder na
América do Sul que terá peso crescente na dinâmica mundial.
A relação bilateral Brasil – Argentina sempre apresentou certas peculiaridades que não se
verificam no intercâmbio desses países com o resto do mundo. Há neste espaço certa
complementaridade.
Discutir passado recente para superar dificuldades e a necessidade de ampliar os vínculos na
área da energia e das infraestruturas, que tem implicações estratégicas.
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http://www.mdic.gov.br//sitio/interna/interna.php?area=5&menu=3287&refr=608 Acesso em maio de 2012.
Claudeci da Silva1
Hugo Agudelo2
Introdução
A
globalização tem amplificado o impacto que problemas macroeconômicos originados em
qualquer economia têm sobre as economias dos outros países independentemente do grau
relação existente entre elas.
Embora o cenário macroeconômico seja importante para determinar os efeitos das crises nos
outros países, não existem duvidas que as economias afetadas possam aumentar seu grau de
vulnerabilidade externa dependendo das medidas de política econômica adotadas pelos governos e o
espaço temporal decorrido entre a deflagração da crise e o momento da adoção das medidas
anticíclicas. O objetivo do artigo é analisar os indicadores de vulnerabilidade de Argentina e Brasil e sua
evolução frente às crises europeia e norte-americana, assim como as medidas econômicas adotadas
pelos governos com o objetivo de reduzir os impactos gerados pelo contagio.
Assim, com estes objetivos, o artigo esta dividido em cinco partes alem desta breve introdução.
Na primeira parte é apresentado o conceito de vulnerabilidade externa. Na segunda, é realizada uma
breve apresentação das crises aqui consideradas. Na terceira parte, são analisados os indicadores de
vulnerabilidade externa para a Argentina. Na quarta parte são apresentados estes indicadores para o
Brasil. O por fim, temos a conclusão deste trabalho.
1. Vulnerabilidade externa
1SILVA, C. Departamento de economia, Universidade Estadual de Maringá, UEM – Brasil. Email: chardeci@bol.com.br.
2 AGUDELO, H. Departamento de economia, Universidade Estadual de Maringá, UEM – Brasil. Email:
hamurillo@uem.br.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 215
A crise norte-americana (também chamada de crise do subprime) e a crise europeia têm suas
origens nas instabilidades dentro do setor imobiliário da economia norte-americana.
Durante os primeiros anos do século XXI as medidas de política econômica americana
estiveram voltadas para a sua recuperação abalada pelos efeitos da quebra das empresas ponto com e
dos atentados terroristas de onze de setembro. Após sucessivos cortes de taxa de juros e redução do
nível de impostos houve uma recuperação da dinâmica econômica centrada no setor imobiliário, devido
ao elevado poder multiplicador do setor da construção civil que resultou na recuperação da economia
americana.
Após atender o mercado prime as instituições financeiras começaram a se arriscar nas suas
concessões de financiamentos passando a atender também um setor de segunda linha caracterizado por
famílias com histórico de inadimplência e sem trabalho comprovado, o denominado setor subprime.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 216
Como resultado houve uma valorização do preço dos imóveis, que começaram a apresentar retornos
maiores do que os ativos financeiros, se mostrando uma ótima opção de investimento desenvolvendo
uma bolha no mercado imobiliário americano.
A valorização dos preços no mercado imobiliário contribuiu com a escalada inflacionaria
levando o governo americano a adotar políticas restritivas que aumentaram as taxas de juros e elevaram
o índice de inadimplência no setor imobiliário.
Aparentemente a instabilidade era especifica do setor imobiliário americano, mas o fato das
instituições financeiras terem obtido recursos para financiar o setor de alto risco por meio de processo
de securitização, levou a uma disseminação da instabilidade para outros setores. A crise na economia
real havia contaminado o sistema financeiro.
Em setembro de 2008 um dos principais bancos americano, o Lehman Brothers, após divulgar o
montante de seu prejuízo com o mercado imobiliário entrou com pedido de falência. Vários outros
importantes bancos americanos com problemas de liquidez fecharam suas portas ou foram
incorporados por outros, havendo uma reestruturação no sistema financeiro americano.
A falta de liquidez, gerada pela inadimplência do setor imobiliário, fez com que os bancos
restringissem o crédito que reduziu o consumo das famílias comprometendo o crescimento da
economia interna e, consequentemente, outras economias mundiais que tinham nos Estados Unidos o
seu principal mercado comprador ou que possuíam fundos de investimentos com uma grande
quantidade de papéis atrelado ao setor imobiliário americano, configurando o efeito contágio.
Nos últimos anos uma característica importante das crises iniciada em uma economia é a sua
capacidade de atingir mais rapidamente outras economias, mesmo que esta apresente fundamentos
macroeconômicos sólidos, esta dinâmica ficou conhecida na literatura como “efeito contágio”. A maior
globalização da economia nos anos 1990 foi o grande propulsor de tal efeito, de modo que o processo
de integração deixou os países mais expostos a influências externas (LOBÃO, 2007; MIRA, 2006).
A economia europeia foi contagiada pela crise norte-americana. A crise na economia norte-
americana expôs as fragilidades da política fiscal dos chamados piigs: Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e
Espanha. Estes países não têm conseguido gerar crescimento econômico suficiente para fazer frente às
dívidas adquiridas ao longo dos anos.
O crescimento dessas economias foi realizado com recursos emprestados, resultando em
endividamento público elevado, a falta de liquidez instaurada pela crise norte-americana interrompeu
seus ciclos de crescimentos, deixando-os em dificuldades. A queda do PIB decorrente da crise
provocou um aumento do déficit fiscal e da relação dívida/PIB, elevando os prêmios de risco e as taxas
de juros cobradas pelos bancos para refinanciar o déficit. O aumento dos juros tornou mais caro o
refinanciamento das dívidas, elevando ainda mais a relação dívida/PIB, aumentando novamente o risco
e os juros, reduzindo o crescimento e aumentando o desemprego.
Saldo em transações correntes/PIB (%) -3,15 -1,41 8,44 6,36 2,11 2,90 3,65 2,82 2,07 3,58 0,37 -0,53 0,02
Dívida externa total/PIB (%) 45,00 53,69 164,97 139,46 127,03 87,13 76,46 67,10 58,52 58,70 49,10 44,20 43,27
Divida externa liquida / PIB (%) 44,60 51,66 141,47 122,57 114,38 63,37 55,46 49,56 43,49 44,06 41,94 39,19 42,74
Dívida externa total/exportações - Razão 5,88 6,26 6,11 5,50 4,95 2,82 2,34 2,22 1,78 2,08 1,90 1,67 1,75
Dívida de curto prazo/dívida externa total (%) 19,27 13,36 10,14 13,85 16,05 27,34 23,90 16,00 16,39 15,66 12,43 14,53 n.d.
Dívida de curto prazo/reservas
internacionais (%) 112,62 137,43 140,78 157,57 134,61 124,08 88,39 41,76 43,08 41,34 26,61 36,03 n.d.
Serviços total da dívida /exportações de bens
e serviços (%) 63,96 49,17 16,55 38,19 29,60 19,61 36,39 11,97 8,95 21,00 17,11 15,31 n.d.
Serviços total da dívida /PIB (%) 8,95 6,88 5,63 11,79 8,95 5,67 10,47 3,41 2,46 4,94 4,00 3,57 n.d.
Exportações de bens e serviços /PIB (%) 10,89 11,53 27,69 24,97 25,26 25,07 24,76 24,63 24,48 21,35 21,71 21,82 19,12
Reservas internacionais/dívida externa total (%) 18,23 11,06 6,68 8,58 11,48 24,67 29,44 37,08 37,13 41,51 40,35 32,97 30,64
Reservas internacionais/Importações (razão) 1,18 0,96 1,24 1,07 0,92 1,03 0,98 1,09 0,85 1,29 0,97 0,65 0,66
Coeficiente de vulnerabilidade 4,81 5,57 5,70 5,03 4,38 2,12 1,65 1,40 1,12 1,21 1,13 1,12 1,21
Fonte: MECON; WORLD BANK; e MERCOSUR (elaboração própria).
O primeiro indicador mostra a relação saldo em transações correntes como proporção do PIB,
que expressa à necessidade de financiamento externo caso haja déficit em transações correntes. Como
se pode verificar em 2000 a necessidade de financiamento externo da economia argentina equivalia a
3,15% de seu PIB, neste ano a Argentina começa a sofrer os impactos da desvalorização cambial
brasileira, houve um agravamento das contas externas da Argentina o que acelerou a necessidade de
desvalorização cambial em sua economia também. Em 2002 o saldo da conta de transações correntes
foi superavitário em 8,44% maior que o volume de PIB, mas a melhora na relação foi resultado da
retração do mercado consumidor pelo acesso restrito ao dinheiro e com o câmbio desfavorável que
contraíram o volume importado.
A partir de 2002 o índice vai se deteriorando até que em 2010 o saldo em transações correntes
represente apenas 0,37% do PIB e no ano seguinte volta a mostrar necessidade de financiamento
externo. A crise econômica internacional atingiu os países da América do Sul tanto via redução dos
preços das commodities quanto pela redução da demanda de produtos da região, o que resultou em
uma necessidade de financiamento na ordem de 0,53% do PIB.
A relação dívida total/PIB mostra quanto essa dívida representa para a economia de um país.
Em 2000 a relação mostrava que a dívida externa total representava 45% do PIB argentino, com o
baixo nível da atividade econômica nos anos seguinte, grande parte explicado pelos efeitos da
desvalorização cambial do Brasil, o indicador começou a se deteriorar. Já em 2001 era necessário mais
que 50% da produção interna bruta para fazer frente ao pagamento da dívida externa, situação que fica
ainda mais complica em 2002 quando passa a representar mais de 100% da dívida.
A recuperação do nível da atividade econômica contribui com a queda do indicador nos anos
seguintes. A partir de 2012 o indicador reduz as proporções de sua queda, a explicação para sua
deterioração é o crescimento da dívida externa, a partir de 2011, e não o baixo crescimento do produto
argentino. O aumento da dívida externa foi resultado da venda de títulos para a troca de papéis
remanescentes da reestruturação de 2005, relacionado à moratória de 2001, e de maior endividamento
do setor privado com fornecedores, devido à alta de importações, de modo que, outro fator que
contribuiu com o aumento da dívida, também, foi o aumento do dólar.
Alternativamente ao indicador anterior temos proporção dívida externa líquida/PIB. A dívida
externa líquida desconta os valores das reservas internacionais e haveres no exterior. Observa-se a
necessidade de geração de recursos para quitar a dívida, uma vez que o volume de reservas não é
suficiente para quita-la. O que pode ser comprovado pelo indicador reservas internacionais como
proporção da dívida externa, que mostra que o volume de reservas na economia representa apenas
25,5%, em média, da dívida externa.
As relações dívida externa total como relação das exportações é um indicador tradicional do
desequilíbrio de estoque causado pelo endividamento externo, quanto mais elevado este indicador
maior é a vulnerabilidade da economia. Assim, os anos de maior vulnerabilidade na economia argentina
foram em 2001 e 2002, ano em que a economia passava por problemas internos, o índice mostra uma
tendência de melhora até 2009, diante as incertezas na economia mundial, volta a apresentar uma piora.
A dívida externa de curto prazo se refere à dívida com vencimento inferior a um ano, e podem
ser proveniente de investimentos estrangeiros autônomos (não são influenciados por políticas ou
condições das contas externas), compensatórios (representa a contra partida de outra conta com o
exterior, ex: recursos para importação e exportação), induzido (quando o fluxo depende das variações
na taxa de juros) ou especulativo (relacionada à mudança efetiva ou esperada na taxa de câmbio) na
economia brasileira. O impacto que este tipo de capital tem sobre uma economia depende das políticas
monetária e cambial do governo, mas em síntese pode-se afirmar que os capitais de curto prazo são
mais voláteis e podem agravar a vulnerabilidade financeira externa de uma economia com problemas no
balanço de pagamentos.
A relação dívida externa de curto prazo em relação a dívida externa total apresentou maior valor
em 2005 e 2006 em função da reestruturação da dívida externa argentina que trocou títulos por novos
bônus que reduziu o estoque da dívida externa do país.
Segundo Freitas (2005), em 12 de janeiro de 2005 o então presidente em exercício, Nestor
Kirchner, anunciou um plano para por fim a moratória, onde os credores da Argentina poderiam trocar
títulos em moratória por novos títulos com data de emissão para 1 de abril, como resultado 76,07% dos
credores aderiram a renegociação, correspondente a US$62 bilhões dos US$81,8 bilhões em default, em
março de 2005 Kirchner anuncia ao congresso o fim da moratória.
Desse modo a relação foi maior em função da redução da dívida externa total, nos demais anos
a relação apresentou queda mostrando uma nova tendência a partir de 2011, quando passou a crescer
juntamente com o crescimento da dívida externa total. Isso indica que a economia esta aumentando o
volume de capital de curto prazo na economia.
Na mesma lógica observa-se o comportamento do indicador dívida externa de curto prazo em
relação às reservas internacionais, ele mostra a capacidade de uma economia quitar suas dividas de curto
prazo utilizando suas reservas internacionais. O volume da dívida externa de curto prazo até 2005 era
mais de 100% superior o volume de reservas internacionais da economia, de modo que não eram
suficientes para socorrer a economia diante uma saída brusca destes capitais. O indicador passa a
apresentar melhores resultados nos anos seguintes em resposta ao aumento das reservas internacionais,
mas em 2011 a ruptura no crescimento destas reservas leva a deterioração do indicador.
O serviço da dívida externa diz respeito ao pagamento dos juros mais as amortizações da dívida
externa total. O indicador serviços da dívida em relação às exportações mostra a proporção das
exportações comprometida com a o pagamento dos serviços da dívida externa. A queda do indicador
em 2002 foi resultado da moratória decreta em dezembro de 2001, de modo que no ano de 2002 foram
pagos apenas US$192 milhões em juros da dívida.
Com o fim da moratória em 2005 os pagamentos aos juros da dívida em 2006 retornaram para
casa dos bilhões, registrando pagamentos na ordem de US$1,04 bilhões. Mas diante do bom
desempenho das exportações o indicador mostrou tendência de queda sofrendo reversão em 2009
quando a crise no mercado internacional reduziu o nível de exportações do país.
A mesma lógica seguiu o indicador serviços da dívida externa como proporção do PIB. Ao
longo dos últimos anos, após o ápice da crise interna em 2001, a economia argentina vem passando por
um processo de recuperação. Fato que permitiu uma melhora no indicador. Em 2009 o índice
interrompeu a trajetória em função da queda da atividade econômica do país que sentia os efeitos da
crise mundial. A economia Argentina apresentou um baixo desempenho em 2012, não apenas pela crise
europeia, mas também pela desaceleração da China.
Diante a crise norte-americana e europeia, as medidas argentinas de enfrentamento da crise
internacional têm provocado efeitos negativos na economia. As medidas protecionistas adotadas pelo
governo argentino, principalmente em 2012, provocaram uma retração no comercio internacional do
país. A presença de barreiras somada à retração da demanda mundial influenciaram para a deterioração
comercial argentina.
A retração na economia asiática, somada a redução das compras dos chineses ocasionou a
acomodação dos preços das commodities. Com o objetivo de proteger a indústria local da concorrência
estrangeira, em julho de 2012, o governo passou a cobrar uma tarifa de 14% para as importações de
bens manufaturados em países que não fazem parte do Mercosul. Outra medida adotada foi a exigência
de declaração antecipada de importação visando aumentar o controle governamental no processo de
importações de produtos. Desse modo, a relação exportações/PIB, que mostra quanto da produção
interna é direcionada às exportações, apresentou uma deterioração a partir de 2009.
A relação reservas internacionais/importações representa quantos anos de importações é
possível realizar com o volume de reservas internacionais da economia. O indicador mostra que o
volume de reservas é suficiente para pagar, em média, um ano de importações.
Até 2007 o comportamento das reservas internacionais era acompanhado pelo comportamento
na conta de importações argentina, em 2008 enquanto as importações apresentavam sinal de
crescimento as reservas se mantinha no mesmo nível fato que levou o índice ao valor de 0,85,
correspondente à dez meses e 6 dias de importações. Em 2009, diante as instabilidades na economia
mundial, as importações sofreram uma queda brusca, enquanto as reservas permaneceram estáveis, o
que levou o indicador para 1,29 anos, ou um ano três meses e quatorze dias de importações. A fuga de
reservas a partir de 2010 diante uma importação crescente novamente colocou o indicador em uma
trajetória de declínio.
Por último, o coeficiente de vulnerabilidade externa que é um indicador do grau de solvência
externa de uma economia, e mostra a relação da dívida externa líquida com o valor das exportações. O
indicador mostra quantos anos de exportações são necessários para quitar a dívida externa. De acordo
com os dados precisaria em média dois anos nove meses e 18 dias para o volume de exportações
conseguirem quitar a dívida liquida da economia. Analisando ano a ano observa-se que a partir de 2005,
após a reestruturação da dívida externa, o indicador vem apresentando uma melhora, indicando valores
menores de dois anos de exportações para quitar a dívida o que contou fortemente, também, com o
bom desempenho das exportações no período.
Assim, diante do comportamento destes indicadores observa-se que a economia argentina
aumentou seu grau de vulnerabilidade externa diante de cenários externos negativos, no entanto, as
medidas de política econômica adotadas para superar o fraco desempenho da economia, afetaram
também esses indicadores.
Assim como a Argentina, o Brasil vem sofrendo os impactos das crises internacionais. O país já
gastou cerca de R$ 830 bilhões, ou 16,5% do PIB para suavizar os impactos da crise na economia desde
2008, quando a crise começou a mostrar seu caráter mais perverso sobre outras economias. As ações
do governo abrangeram a área fiscal, monetária, creditícia e cambial. Entre as políticas utilizadas para
contrapor-se a estes efeitos estão: a utilização de bancos públicos para garantir a oferta de crédito;
redução da taxa de juros; e a isenção de tributos (assim, o governo abriu mão dessa fonte de receita)
(BECK; OLIVEIRA, 2013).
No campo da política monetária foi realizado um aumento da liquidez, via redução dos
depósitos compulsórios, extensão dos créditos ao setor bancário, atuação no mercado cambial e de
comércio exterior, juntamente a redução da taxa básica de juros da economia, a SELIC. No âmbito
fiscal, foi realizada a redução de impostos indiretos em alguns setores. Para controlar o câmbio o Banco
Central do Brasil realizou intervenções de compra e venda no mercado cambial (ALMEIDA, 2009).
Se restringindo aos impactos da crise europeia no Brasil verifica-se que a estagnação da Europa,
que resultou em um excedente de produção, provocou queda das exportações brasileiras para lá. Os
impactos foram sentidos também no comércio Brasil e países asiáticos, uma vez que os preços das
commodities agrícolas e minerais foram afetados. E por fim, houve um aumento da guerra comercial
entre países europeus e asiáticos que tentavam vender seus excedentes nos países emergentes, que
apesar da desvalorização do real, os produtos destas economias se mostravam competitivo dentro do
Brasil uma vez que seus preços em dólar estavam sendo reduzido na disputa de mercado (NASSIF,
2012).
Para analisar outros efeitos das crises internacionais na economia brasileira a Tabela 2 contém
os indicadores de vulnerabilidade externa para a economia entre os anos de 2000 – 2012.
Saldo em transações correntes/PIB (%) -3,76 -4,19 -1,51 0,75 1,76 1,58 1,25 0,11 -1,71 -1,49 -2,20 -2,12 -2,41
Dívida externa total/PIB (%) 36,60 37,90 41,80 38,80 30,30 19,20 15,90 14,10 12,00 12,20 12,00 12,00 13,90
Divida externa liquida / PIB (%) 29,50 29,40 32,70 27,30 20,40 11,50 6,90 -0,90 -1,70 -3,80 -2,40 -2,90 -4,00
Dívida de curto prazo/dívida externa total (%) 11,61 12,23 10,28 8,58 8,51 9,99 10,19 16,18 13,86 11,16 16,28 9,93 7,38
Dívida externa total/exportações - Razão 4,30 3,60 3,50 2,90 2,10 1,40 1,30 1,20 1,00 1,30 1,30 1,20 1,30
Dívida de curto prazo/reservas internacionais (%) 83,06 77,11 61,86 40,96 35,41 34,90 23,68 21,57 18,81 12,99 19,86 11,41 8,73
Serviços total da dívida /PIB (%) 7,60 8,90 9,90 9,60 7,80 7,50 5,20 3,80 2,30 2,70 2,20 2,10 2,40
Serviços total da dívida /exportações de bens e
serviços (%) 88,60 84,90 82,70 72,50 53,70 55,80 41,30 32,40 19,00 28,50 22,90 20,50 22,30
Exportações de bens e serviços /PIB (%) 4,67 4,48 4,09 4,31 4,98 5,52 5,82 6,04 6,53 4,72 5,36 6,18 5,51
Reservas internacionais/dívida externa total (%) 14,00 17,10 18,00 22,90 26,30 31,70 49,70 93,30 104,30 120,60 112,40 118,00 121,00
Reservas internacionais/Importações (razão) 0,59 0,65 0,80 1,02 0,84 0,73 0,94 1,50 1,12 1,87 1,59 1,56 1,67
Coeficiente de vulnerabilidade 3,45 2,79 2,73 2,07 1,41 0,85 0,54 -0,07 -0,14 -0,40 -0,25 -0,28 -0,37
Fonte: BACEN, IPEADATA, WORLD BANK (Elaboração Própria).
A relação dívida externa de curto prazo em relação a dívida externa total apresentou seu pior
resultado em 2010, o saldo da dívida externa de curto prazo expôs um aumento neste período devido
ao crescimento das obrigações em moedas estrangeiras dos bancos comerciais e da elevação na saldo de
empréstimos diretos em moeda. Assim, neste período a dívida de curto prazo passou a representar
16,28% da divida total. Mas, já no ano seguinte entrou novamente em trajetória de queda, o que é bom
para a economia que não fica tão vulnerável ao capital de curto prazo. Seguindo a mesma lógica temos
o indicador dívida externa de curto prazo em proporção das reservas internacionais, após apresentar
uma trajetória de queda o indicador apresentou uma reversão em 2010, passando a se reduzir
novamente nos anos seguintes.
O serviço da dívida externa em relação ao PIB seguiu o comportamento do desempenho do
PIB brasileiro, enquanto o PIB estava em uma trajetória de crescimento sustentado, a relação vinha
apresentando uma trajetória de queda, mas, quando os efeitos da crise internacional passaram a
comprometer o desempenho da economia, a relação passou a mostrar sinais de deterioração, como
pode ser observado nos anos de 2009 e 2012.
A mesma lógica seguiu o indicador serviços da dívida externa como proporção das exportações
de bens e serviços, que começou a apresentar uma piora a partir de 2009, quando os efeitos da crise
norte-americana no mundo, resultou na retração dos mercados consumidores brasileiros, e consequente
queda no volume de exportações, justificando o desempenho do indicador.
A relação exportações/PIB apresentou uma inflexão em 2009 em função da retração das
exportações brasileira. Nos anos seguintes o comportamento do indicador passou a seguir a dinâmica
das exportações e do PIB, de modo que a melhora observada no indicador a partir de 2010, é mais
resultado do fraco desempenho da atividade econômica do país, uma vez que as exportações agora
sentiam os efeitos da crise europeia.
As reservas internacionais como proporção da divida externa total, a partir de 2008 passou
apresentar uma relação de acima de 100%, em resultado da entrada recorde de capitais estrangeiro na
economia que possibilitou a acumulação de um nível de reservas mais que suficiente para a quitação da
dívida externa brasileira. O governo não pego o volume de reservas e quita de fato a divida existente
porque isso representaria um aumento de vulnerabilidade da economia, que sem moedas estrangeiras
não pode fazer frente as mudanças abruptas no fluxo de capital na economia neutralizando os impactos
sobre o câmbio.
Em relação o indicador reservas internacionais/importações este começou a apresentar, a partir
de 2007, uma razão acima de 1,00 mostrando que o volume de reservas internacionais era suficiente
para quitar mais de um ano de importações caso acontecesse algum imprevisto que dificultasse a
geração de moedas estrangeiras para este fim. Em 2012 o volume recorde de reservas permitia a
quitação de cerca de um ano e meio de importações.
Considerações finais
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Introdução
O
anúncio da formação da Aliança do Pacífico, constituída por Chile, Colômbia, México e
Peru despertou um caloroso debate sobre os efeitos que essa nova iniciativa poderia trazer
para o Mercosul. Alguns especialistas2 apontam que essa nova aliança poderá enfraquecer
o Mercosul e dificultar seus anseios de expansão na região. Por outro lado, integrantes do governo
brasileiro3 tem afirmado que o bloco não representa uma grande ameaça ao Mercosul, tendo em vista o
pouco dinamismo e o menor grau de profundidade do seu processo.
Na verdade, o pano de fundo do debate está em confrontar os modelos de desenvolvimento
adotados pelos dois blocos, um mais conservador e fechado, que é o caso do Mercosul, e outro mais
aberto e liberal que é o caso da Aliança do Pacífico. Diante disso, é importante estabelecer um olhar
mais criterioso sobre os dois blocos e verificar os possíveis efeitos dessa nova aliança sobre o Mercosul.
Uma forma de verificarmos isso esta na capacidade desses blocos atraírem Investimentos
Estrangeiros Diretos (IED). A questão que se dá é se a formação da Aliança do Pacífico irá concorrer
com os fluxos de investimentos recebidos pelos países integrantes do Mercosul, ou se ocorrerá uma
complementariedade entre eles. Portanto, nos propusemos a analisar os efeitos sobre os fluxos de IED
recebidos pelos dois blocos, e tentar identificar possíveis mudanças de padrão, dado esse novo Acordo
de Integração Econômica (AIE).
1 Doutor em Ciências pelo Programa de Pós Graduação em Integração da América Latina – PROLAM/USP. Professor,
pesquisador e coordenador do curso de Administração com Linha de Formação Específica em Comércio Exterior do
Centro Universitário Senac-SP.
2 Segundo a Professora de Relações Internacionais das Faculdades Rio Branco, Regiane Bressan: “A evolução da Aliança
deve afundar ainda mais o Mercosul. Caso continue apresentando a unidade inicial, o novo bloco pode despachar o
Mercosul para uma derrocada histórica”. Já o professor de economia da ESPM do Rio, Roberto Simonard, destaca os
possíveis efeitos negativos para o Brasil: "A Aliança permitirá que os Estados Unidos retomem sondagens mais firmes à
região e o Brasil tem grande desvantagem em relação aos americanos por ser menos competitivo. Alguns mercados que
entraram para a Aliança, como Colômbia e Chile, eram consumidores tradicionais de produtos brasileiros. Avalio que nosso
país terá de rever sua posição na política externa". (em www.brasileconomico.ig.com.br consultado em 01/09/13).
3 De acordo com o assessor especial da presidente Dilma Russef para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia: “A
Aliança do Pacífico não deve tirar o nosso sono de maneira nenhuma. O PIB regional que ela envolve é muito menor que o
do Mercosul [US$ 2 trilhões contra US$ 3,3 trilhões]. O bloco não me parece ser formado por países com dinamismo
econômico e surgiu de um sistema de reduções tarifárias existente há muito tempo. A Aliança do Pacífico teve efeito
publicitário muito forte, mas contribui muito pouco, a não ser para aqueles que já se sentem convencidos por ela antes
mesmo da criação”. (em http://www.rodrigovianna.com.br consultado em 01/09/13).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 227
A análise dos impactos dos Acordos de Integração Econômica (AIE) sobre os fluxos de
Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) requer uma abordagem que envolve a inter-relação entre as
teorias do comércio, da integração econômica e dos fluxos de IED, o que torna a compreensão desse
fenômeno bastante complexa. Além do que, é necessário que se leve em consideração as motivações
por parte dos investidores, os fatores determinantes por parte dos países receptores e as mudanças que
poderão ocorrer nos países, devido sua participação neste tipo de acordo.
Diante dessa complexidade, Blomstrom & Kokko (1997) sugerem que a análise seja feita de
forma individualizada, por país, levando em consideração às possíveis mudanças que ocorrerão no
ambiente dos países envolvidos no AIE; o tipo de IED que tende a ser promovido; o tipo de parceiro
envolvido no acordo; bem como se o investidor e receptor fazem, ou não, parte do acordo.
4 “The main impact of dynamic benefits of integration is to make the integrating region a more attractive investment location, which should
stimulate intra-regional FDI flows as well as inflows from the rest of the world.” (BLOMSTROM; KOKKO, 1997, p.13).
empresa, o que poderia resultar também numa maior interligação das estruturas produtivas dos países
membros do acordo.
Outro efeito dinâmico esperado é o crescimento do mercado, ou seja, a possibilidade de, no
médio e longo prazo, a região apresentar aumento nas taxas de crescimento econômico, de crescimento
da demanda e de avanço tecnológico. Neste caso o investidor tende a responder com uma estratégia de
investimento que tenha como característica o investimento ofensivo substitutivo de importações, que
visa explorar as vantagens de operar num mercado mais dinâmico.
Markusen (2004) observa ainda que a empresa pode adotar uma estratégia do tipo plataforma de
exportação, onde a empresa investidora tende a explorar as vantagens decorrentes das mudanças no
ambiente dos países participantes do AIE para atender, não somente o mercado interno, mas também o
mercado externo via exportação.
É importante destacar que todas as mudanças no ambiente e as respostas dos fluxos de
investimentos também dependem de outros fatores tais como: o nível de barreiras tarifárias e não
tarifárias existentes nos países, antes e depois da integração (REILJAN, 2001); as condições de
atratividade do IDE que os parceiros de integração apresentam; a inclusão de cláusulas no acordo sobre
o tratamento ao IED, bem como se prevê a harmonização das legislações e se estabelece algum tipo de
mecanismo para solução de controvérsias (BID, 2003).
5 No caso do NAFTA, que envolve um acordo Norte-Sul, Waldkirch (2001) encontra evidências de aumento do IDE no
México, em sua maioria, provenientes de seus parceiros do acordo (EUA e Canadá) e sugere a predominância do
investimento do tipo vertical.
6 Em estudo sobre a integração européia (acordo Norte-Norte) Dunning (2000) observa que o Programa de Mercado
Interno estimulou o investimento intra e extra-regional, os quais apresentaram crescimento nas atividades intensivas em
conhecimento e complementar ao crescimento do comércio.
7 Nos acordos Sul-Sul Chudnovsky and López (2002) observam que o Mercosul estimulou principalmente investimento
existentes nos países do Sul pode levar a predominância do investimento do tipo horizontal, para
“pular” as barreiras, ao invés do investimento vertical9.
9 O autor cita como exemplo a instalação da indústria automobilística na América Latina durante o processo de substituição
de importações.
10 “Quando o Brasil entrou no Mercosul, por exemplo, pode ter passado a ser visto como um hospedeiro mais atraente por
fontes de IDE externas. Os investidores estrangeiros passam a achar mais compensador “saltar” a tarifa externa comum e
instalar fábricas no Brasil para atender a todo o Mercosul, quando antes atendiam a cada um dos países individualmente
mediante exportações.” (BID, 2003, p. 247).
alguns países continuem recebendo em virtude do investidor decidir centralizar a produção no país
mais eficiente e atender os demais países via exportação.
O AIE pode fazer ainda com que os países participantes tornem-se mais atraentes do que os
países de fora da integração, em virtude da inexistência de barreiras comerciais entre o país investidor e
o país receptor. Neste caso, o país que anteriormente recebia IED do país investidor, e que não faz
parte do acordo, tende a perder investimentos para os países participantes da integração, tendo que
vista que o investidor e receptor fazem parte do AIE. Desta forma, tende a ocorrer um desvio de
investimento de um país mais eficiente (de fora do acordo) para outro menos eficiente (de dentro do
acordo), e tende a ocorrer principalmente quando o investimento for do tipo vertical. (BID, 2003)
Um exemplo de desvio de IDE é o caso dos investimentos que eram recebidos pelas empresas
de corte e costura do Caribe e que passaram a ser feitos nas empresas mexicanas nos anos 90, quando o
Nafta possibilitou ao México ter acesso preferencial ao mercado norte-americano. (BID INTAL, 2007).
Outro efeito que pode resultar do AIE em relação ao IED é o efeito diluição do investimento.
A ampliação do número de membros no acordo pode gerar um efeito de diluição dos investimentos
entre seus integrantes. Para entendermos este efeito basta imaginarmos o que ocorreria com os
investimentos recebidos pelo México dos EUA caso fosse estabelecido a Alca, ou seja, poderia causar
uma diluição dos investimentos norte-americanos, que a priori vão para o México, para os outros países
da região. (YEYATI et al, 2003).
É importante observar também que a integração pode levar a uma reestruturação produtiva que
beneficia a formação de clusters ou aglomerações. Neste caso, o AIE pode encorajar a concentração
geográfica de determinadas indústrias, o que poderia melhorar as condições de competitividade dessas
empresas em relação às empresas que estão fora deste pólo. (DUNNING, 1997).
Alguns dados preliminares podem nos ajudar na discussão sobre os impactos da formação da
Aliança do Pacífico sobre os fluxos de IED recebidos pelo Mercosul. De acordo com os dados da
tabela 1, o Mercosul apresenta-se à frente da Aliança do Pacífico nos três indicadores destacados, com
um PIB 74% maior, uma população 38% maior e recebendo 27% à mais de IED no ano em referência.
O Brasil aparece como o grande destaque do Mercosul, representando 74% do PIB, 69% da
população e 79% dos fluxos de IED para o bloco. Isso sugere que o bloco depende muito do
dinamismo e do potencial da economia brasileira para a atração dos investimentos.
Já no caso da Aliança do Pacífico, embora o México seja o grande protagonista nos quesitos
PIB e população (60% e 55% respectivamente), na questão dos fluxos de IED o país representa 33%
do total recebido pelo bloco (Chile – 35%; Colombia – 20%; Peru – 12%), o que demonstra que os
fluxos de IED na Aliança do Pacífico estão mais diluídos, enquanto que no Mercosul concentrados.
2011
PIB US$ População IED US$
País milhões Mil milhões
Argentina 446.044,1 40.764,6 9.881,6
Bolivia 23.948,7 10.088,1 858,9
Brasil 2.476.652,2 196.655,0 66.660,1
Paraguai 23.836,8 6.568,3 214,9
Uruguai 46.709,8 3.368,6 2.504,8
Venezuela 316.482,2 29.278,0 3.778,0
Mercosul 3.333.673,8 286.722,6 83.898,4
Ao voltamos nosso olhar para os fluxos de IED (gráfico 1) verificamos que apesar das
oscilações apresentadas ao longo do tempo, a entrada de IED tem se comportado de forma similar
tanto no caso do Mercosul quanto da Aliança do Pacífico.
2002
2003
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2012
Os fluxos apresentam uma clara tendência de crescimento desde os anos 90 para os dois blocos.
Isso sugere que, até então, não tem havido uma substituição de investimentos de um bloco para outro.
Até porque, os investimentos que tem prevalecido no Mercosul são destinados ao setor de manufaturas
e serviços, enquanto que na Aliança do Pacífico estão concentrados nos recursos naturais e serviços,
com exceção do México, onde os investimentos são predominantes em manufaturas, mas estão em
queda.
Na maior parte do tempo o conjunto de países que integram a Aliança do Pacífico tem recebido
mais investimentos do que o Mercosul, entretanto, a partir de 2010 o Mercosul passou a receber mais
investimentos do que os países da Aliança. Mas é importante observarmos como esses fluxos se
comportaram dentro de cada bloco (gráfico 2).
2006
1990
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2009
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2011
2012
Uruguai Venezuela Paraguai
Bolivia Argentina Brasil
Dos fluxos em direção ao Mercosul verificamos que o Brasil e a Argentina são os dois
principais receptores do bloco, representando em média 60% e 28%, respectivamente dos
investimentos recebidos. Isso sugere que apesar do bloco não ter avançado de forma desejável, fatores
internos a cada um dos países é que podem estar sendo determinantes para a atração do IED.
No caso da Aliança do Pacífico (gráfico 3), o México tem sido o grande receptor dos fluxos de
investimentos do bloco, muito embora sua participação venha diminuindo desde 2001, de 79% para
18% em 2012. Por outro lado Chile, Colômbia e Peru vêm aumentando sua participação desde 2002,
com destaque para o Chile que a partir de 2011 passou a ser o grande receptor do bloco, representando
43% dos investimentos recebidos.
2012
1990
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1992
1994
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1996
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1998
1999
2000
2001
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2007
2008
2009
2010
2011
Chile Colombia Peru Mexico
Quando analisamos a origem dos investimentos verificamos que em sua maioria os recursos são
provenientes de países de fora dos blocos. Em comum, os dois blocos apresentam como principais
investidores os Estados Unidos, Países Baixos, Espanha, Japão e Suíça. No caso da Argentina, em
particular, se destacam ainda os investimentos provenientes do Brasil e Chile, e no México e Chile a
presença dos investimentos canadenses. Ou seja, prevalecem os investimentos extra-bloco.
Já quanto ao destino dos investimentos, no Mercosul (gráfico 4) prevalecem os investimentos
no setor de manufaturas e serviços11, o que sugere que as estratégias das empresas estejam mais voltadas
à busca de mercados e de eficiência produtiva.
11 Nos anos de 2008 e 2010 o Brasil recebeu um montante considerável de investimentos em recursos naturais,
principalmente voltados ao setor de petróleo e gás, e a mineração.
Nos países da Aliança do Pacífico (gráfico 5), temos a prevalência dos fluxos nos setores de
recursos naturais e serviços para o Chile, Colômbia e Peru, e nos setores de manufaturas e serviços no
caso do México. Isso sugere uma estratégia de busca de recursos e mercados por parte dos investidores,
o que pode estar mais associado às vantagens comparativas de cada país. Já os investimentos em
manufaturas no México estão associados às maquiladoras e sua participação no Nafta.
Uma questão interessante que ocorre na Aliança do Pacífico é que a queda nos investimentos
em manufaturas do México não tem sido absorvida pelos seus parceiros de bloco, uma vez que o
aumento nos fluxos dos demais países tem se dado nos segmentos de recursos naturais e de serviços, e
não em manufaturas.
Outra forma de tentarmos identificar os efeitos da formação da Aliança do Pacífico sobre os
fluxos de IED é observando os possíveis impactos que o AIE pode trazer na redução tarifária entre
seus membros e, por conseguinte, no aumento dos fluxos de comércio. É de se esperar que quanto
maior for o grau de proteção entre os países antes do acordo, maiores serão os ganhos após a
eliminação das barreiras e, portanto, maiores as chances de atrair investidores.
Tabela 2 - Países da Aliança do Pacífico - Acordos de Livre Comércio
Conforme podemos observar na tabela 2, a grande novidade talvez esteja nas relações
envolvendo o Peru e a Colômbia, uma vez que os demais países já possuem acordos de livre comércio
entre si, ou seja, o potencial de mudanças nos fluxos comerciais com o estabelecimento da Aliança do
Pacífico não sugere grandes alterações12, que por sua vez não interferem tanto nos fluxos de IED.
Da mesma forma, se observarmos os principais parceiros comerciais dos países da Aliança
(tabela 3) iremos constatar que, apesar dos acordos de livre comércio entre os membros do bloco, os
fluxos de comércio se dão basicamente com outros países de fora do acordo, principalmente com a
China, Estados Unidos e União Europeia. Apenas nos casos das exportações da Colômbia para o Chile,
e do México para a Colômbia, que surge alguma relevância nos fluxos entre os países participantes da
Aliança do Pacífico. Isso demonstra que a formação do bloco não trará grandes mudanças no padrão
de comércio entre os países do acordo, haja vista a centralização das exportações em países de fora do
bloco.
País China USA EU Japão Brasil Chile Panamá Canada Colômbia Suíça
Chile 22,8 17,7 11,2 11,1 5,5
Colômbia 3,5 38,5 15,6 3,9 3,4
México 1,7 78,7 5,5 3,1 1,6
Peru 15,3 13,3 18,2 9,2 12,9
Fonte: World Trade Organization
É importante destacar ainda que, com exceção das exportações do México para os Estados
Unidos, que são basicamente de manufaturas, nos demais países da aliança as exportações estão
baseadas em recursos naturais ou produtos de baixo valor agregado, o que compactua com as
estratégias dos investidores que buscam ter acesso aos recursos naturais desses países.
Considerações finais
12 De acordo com memorando do Itamaraty: "Ao menos 97% do fluxo de comércio entre quaisquer dois países entre os
quatro é realizado com tarifa zero, à exceção apenas do intercâmbio Peru-México, cujo grau de liberalização é, ainda assim,
bastante amplo: 83% das importações peruanas provenientes do México são realizadas em base "duty-free, quota-free"
[livre de taxas e cotas], e quase 90% das importações mexicanas gozam do mesmo benefício" (em
https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br , consultado em 10/09/13).
dinâmica. Neste caso, talvez o México pudesse exercer o papel que catalisador dessa reestruturação,
mas como verificamos os fluxos para o México não tem tido um bom desempenho e dependem em
demasia dos investimentos dos Estados Unidos.
Outra questão que fica evidente é que fatores internos a cada país têm sido mais importantes do
que o bloco como um todo, isso fica claro quando verificamos a participação individual de cada país
integrante no seu respectivo bloco. No caso do Mercosul, por exemplo, o bom desempenho em atrair
IED deve ser creditado ao Brasil. Já no caso da Aliança do Pacífico, enquanto o México reduz
investimentos, os demais integrantes aumentam, e não é por haver uma substituição entre eles.
Essa constatação demonstra que os fluxos de IED são determinados muito mais pelas
condições de cada país do que pelo bloco como um todo e que, portanto, a constituição da Aliança do
Pacífico não trará grandes mudanças para os países do Mercosul. Por outro lado, isso demonstra
também que a região ainda é percebida de forma fragmentada, o que dificulta seu processo de
integração.
De qualquer forma para que possamos enriquecer o debate é necessário ampliarmos os estudos
sobre os dois blocos e buscarmos identificar pontos de convergência entre eles, que permitam
promover a integração da região.
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Introdução
O
progresso tecnológico ocorrido, durante o Século XX, provocou importantes e profundas
mudanças no processo industrial, que teve como principal fonte energética: o petróleo. A
dependência da fonte energética petróleo, suscitou a necessidade de intensificar a pesquisa,
objetivando a inclusão de novas fontes alternativas de energias; como foi o caso da utilização do gás
natural em substituição aos derivados petrolíferos, a exemplo do diesel enquanto matéria-prima para a
produção de energia elétrica, de uso industrial e/ou doméstico, que em seu lugar, tem como alternativa
a energia termoelétrica; o biocombustível, a energia eólica; e, desta forma, ampliando a matriz
energética. Essas transformações ocorreram a partir do final do Século XX e início do Século XXI, e,
redefinem uma nova estrutura para o setor petrolífero, provocando uma maior inter-relação entre as
atividades industriais, criando novas perspectivas de um avanço no progresso de desenvolvimento
econômico e social, da sociedade capitalista.
Ocorreu no início dos anos 2000, a reestruturação das atividades administrativas e produtivas da
Petrobrás, sob a ótica da governança corporativa. A Holding Petrobrás iniciou a adoção de novas
políticas de ampliação das atividades produtivas e tinha como meta se tornar uma Empresa de Energia.
Para concretizar a meta da Política de Negócios da Petrobrás, foi criada a Petrobrás Comercializadora
de Energia Ltda. Empresa que teria o papel de investir e diversificar novas fontes de energia renováveis
(eólica, solar, hídrica, geotermia, biomassa e biocombustível), a fim de dotar o país de alternativas na
sua matriz energética, sempre com o intuito de obter uma maior eficácia, eficiência e integração de suas
atividades.
A função principal da Petrobrás Comercializadora de Energia Ltda., seria a realização de
pesquisas de novas fontes energéticas (exemplo: do biodiesel); Compra e vende energia elétrica; energia
termoelétrica com utilização de gás natural. O principal objetivo da empresa está centrado na geração
de uma maior rentabilidade para acionistas, clientes, empregados, investidores, provedores e
comunidades, onde desenvolve suas atividades. Por ser uma empresa integrada de energia, tem uma
liderança na América Latina e uma projeção internacional.
1Professor Associado IV, Departamento de Economia, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
Doutor em Economia Aplicada pelo Instituto de Economia da UNICAMP-SP. E-mail: joroneto@ufrnet.br
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 239
subsidiária Braspetro, que era responsável pelas atividades da Petrobrás na área internacional,
negociando parcerias comerciais e acordos para treinamento de técnicos para o acompanhamento das
atividades dos operadores estrangeiros.
Como resultado da criação Petrobrás Comercializadora de Energia Ltda., adquiriu 58% do
controle acionário, do capital total, da Perez Companc S.A., em 22.07.2006. Com a denominação de
Petrobrás Energia Participaciones S. A., a empresa atua com as seguintes subsidiárias: Petrobrás Energia
Peru S. A., Petrobrás Energia Venezuela S. A. e Petrobrás Energia Ecuador S. A. A área de atuação
dessas empresas, nesses países, envolve a produção de óleo e gás, refino, marketing e transporte,
petroquímica, geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.
O fundamento do papel do Estado, nessa nova concepção de internacionalização e de gestão
compartilhada, pode ser entendido em dois momentos distintos: no primeiro, o Estado está voltado
para as questões nacionais, ou seja, uma visão política onde os interesses estão centrados na gestão
governamental, e, no segundo, o Estado passa da política para a gestão, isto é, passa a ser gestor e não
definidor de políticas, em razão da questão nacional que se esvazia, além da redefinição do seu papel no
novo arranjo internacional. O Estado substitui a lógica do nacional (do desenvolvimento), do papel da
Petrobrás, pela lógica do mercado.
O Brasil destaca-se na produção de energia renovável por apresentar vasto território (produtivo)
que permite ampliar a produção da biomassa da cana de açúcar e das oleaginosas e pelo seu potencial
de aproveitamento hídrico, uma vez que possui extensos rios de planaltos que alimentam as
hidrelétricas na geração de energia.
Segundo a Empresa de Pesquisa energética (2011), “O percentual de participação do conjunto
das fontes renováveis de energia (hidráulica, eólica, etanol, biomassa, entre outras) vai aumentar na
matriz energética brasileira nos próximos dez anos”. Adiante, informa que: “A priorização das usinas
hidrelétricas e das fontes alternativas no horizonte de planejamento depende principalmente da
obtenção de Licenças Ambientais Prévias, um dos documentos exigidos em lei para que usinas
indicadas possam participar dos leilões de energia nova”.
Consideram-se como fontes de energia renovável aquelas em que os recursos naturais são
inesgotáveis e com possibilidades de inclusão na matriz energética para utilização em atividades
industriais e comerciais, bem como, residencial. Segundo a Petrobrás. “As vantagens proporcionadas
pelas energias renováveis variam de acordo com as condições e prioridades locais, destacando-se: a
minimização da ameaça das mudanças climáticas do planeta decorrentes da queima de combustíveis
fósseis; o crescimento econômico; a ampliação do acesso à energia para cerca de um terço da população
mundial; a geração de empregos e a fixação do homem no campo; a redução dos níveis de pobreza; a
diminuição da desigualdade social; e a diversificação da matriz energética” (Petrobrás, 2005). Por outro
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 241
lado, Rodrigues Neto (2011) destaca as investigações, das principais fontes de energia renováveis,
impulsionadas pela Petrobrás, suas vantagens e desvantagens e uma consideração sobre o crescimento
da indústria brasileira nos próximos anos:
● A Energia Solar
A energia solar é aquela emitida pelo sol, sendo convertida em energia química, através de uma
reação de fotossíntese, base dos processos biológicos de todos os seres vivos, ou seja, é a energia
utilizada pela humanidade desde sua formação.
● A Energia Eólica
A energia eólica, também chamada de energia dos ventos, é considera uma fonte de energia
renovável, limpa e disponível, onde as correntes de ventos são abundantes e possibilitem a geração de
energia, a partir da utilização da moderna tecnologia de aerogeradores (turbinas eólicas). A energia
eólica é definida como a energia cinética contida nas massas de ar em movimento (ventos).
Vantagens: a possibilidade de instalação de parques eólicos em áreas populacionais isoladas,
eliminando, dessa forma, os custos com transmissão e distribuição. Outros fatores positivos são: a) o
impacto ambiental, com a implementação de parques eólicos é considerado muito baixo; b) a geração
de empregos diretos e indiretos nas regiões onde aportam investimentos para construção dos parques
eólicos; e, c) a utilização de terras para instalação de parques eólicos não trarão problemas para outras
atividades econômicas, com o uso simultâneo.
Desvantagem: como o uso da fonte eólica para geração de energia tem um componente
importante: o vento. Desta forma, sua disponibilidade é imprevisível e inconstante, o que poderá afetar
a quantidade de oferta de energia planejada.
a emissão de gases de efeito estufa. Na comparação com o diesel de petróleo, o biodiesel também tem
significativas vantagens ambientais. O País já produz álcool (etanol) automotivo, da cana-de-açúcar,
desde 1975, com um excelente resultado e em escala crescente. O que explica essa tendência é a
produção, em crescimento, da frota de veículos flex-fuel, ou seja, que possibilita a opção de consumir
gasolina ou álcool (etanol). Essa decisão de consumo depende da competitividade do preço do etanol
hidratado em relação ao preço da gasolina. Também, destacam-se as vantagens competitivas, em
virtude da diversidade de matérias-primas para a produção do etanol que além da cana de açúcar,
podem utilizar o sorgo sacarino e a mandioca e na produção de biodiesel utilizando os biocombustíveis,
para a extração de óleo vegetal, temos: a mamona, a soja, coco de babaçu, algodão, as palmáceas e o
girassol.
Uma vantagem importante, dessa atividade, é a possibilidade da geração de novos empregos, em
regiões carentes do país, exemplo do Nordeste brasileiro, onde a dinâmica atividade agrícola não tem
um desempenho e produtividade adequada ao crescimento da agricultura regional.
Desvantagem: o aumento do processo de exploração de novas fontes de energia está
acarretando uma interferência no meio ambiente e o desequilíbrio ecológico, como consequência da
interferência humana.
Ao comentar sobre normas desta atividade, Rodrigues (2008) destaca as principais diretrizes do
Programa Nacional de Produção e uso do Biodiesel que podem ser assim resumidas:
a) Introdução do biodiesel na matriz energética nacional de forma sustentável, permitindo
a diversificação das fontes de energia, o crescimento da participação das fontes renováveis e a
segurança energética;
b) Geração de emprego e renda, especialmente no campo, para a agricultura familiar, na
produção de matérias-primas oleaginosas;
c) Redução de disparidades regionais, permitindo o desenvolvimento das regiões mais
carentes do País: Norte, Nordeste e Semi-Árido;
d) Diminuição das emissões de poluentes e dos gastos relacionados ao combate aos
chamados males da poluição, especialmente nos grandes centros urbanos;
e) Economia de divisas com a redução de importações de diesel;
f) Concessão de incentivos fiscais e implementação de políticas públicas direcionadas a
regiões e produtores carentes, propiciando financiamento e assistência técnica e conferindo
sustentabilidade econômica, social e ambiental à produção do biodiesel;
g) Regulamentação flexível, permitindo uso de distintas matérias-primas oleaginosas e rotas
tecnológicas (transesterificação etílica ou metílica, craqueamento, etc.).
● Proálcool
O Programa Nacional do Álcool ou Proálcool foi criado em 14 de novembro de 1975 pelo
decreto nº 76.593 e tinha como objetivo o atendimento das necessidades do mercado interno e externo
e da política de combustíveis automotivos. A produção do álcool oriundo da cana-de-açúcar, da
mandioca ou de qualquer outro insumo será incentivada através da expansão da oferta de matérias-
primas, com especial ênfase no aumento da produção agrícola, da modernização e ampliação das
destilarias existentes e da instalação de novas unidades produtoras, anexas a usinas ou autônomas, e de
unidades armazenadoras e sua implantação será atribuída: ao Ministério da Fazenda;
ao Ministério da Agricultura; ao Ministério da Indústria e do Comércio; ao Ministério das Minas e
Energia; ao Ministério do Interior e à Secretaria de Planejamento da Presidência da República.
Na década de 1990, o Governo redirecionou suas prioridades para outros setores energéticos e
o Proálcool foi descontinuado. Somente em 2003, a indústria automobilística voltou a produzir carros
padronizados, modelos e motores movidos a álcool e gasolina, os chamados bicombustíveis ou flex fuel,
decisão tomada em virtude do aumento do preço do barril de petróleo e da retomada do Programa do
Álcool.
O surgimento de novos tipos de motores e veículos flex fuel tem gerado grandes mudanças na
indústria automobilística, fato que contribuiu para a elevação do consumo do álcool que, somado ao
momento favorável das exportações de açúcar proporcionou um crescimento sem precedentes para o
setor sucroalcooleiro. Alguns fatores são determinantes na oferta do etanol e do açúcar, dentre eles,
destacam-se os preços internacionais no mercado do açúcar e a produtividade da cana de açúcar por
hectare de terra, que definem as vantagens de exportar o açúcar ou aumentar a produção do álcool para
o mercado interno e para as exportações.
Segundo dados da EPE – Empresa de Pesquisa Energética, “o Brasil e os Estados Unidos
foram, em 2010, os principais produtores mundiais de etanol. O Brasil, que atualmente é o principal
exportador, deverá manter-se na liderança das vendas internacionais”.
● Energia Hidráulica
A energia hidráulica resulta da irradiação solar e da energia potencial gravitacional, que
provocam a evaporação, condensação e precipitação da água sobre a superfície terrestre. Ao contrário
das demais fontes renováveis, representa uma parcela significativa da matriz energética mundial e
possui tecnologias de aproveitamento devidamente consolidadas. Atualmente, é a principal fonte
geradora de energia elétrica para diversos países e responde por cerca de 17% de toda a eletricidade
gerada no mundo.
A contribuição da energia hidráulica na matriz energética nacional, segundo o Balanço
Energético Nacional (2003), é da ordem de 14%, participando com quase 83% de toda a energia elétrica
gerada no País. Apesar da tendência de aumento de outras fontes, devido a restrições socioeconômicas
e ambientais de projetos hidrelétricos e aos avanços tecnológicos no aproveitamento de fontes não-
convencionais, tudo indica que a energia hidráulica continuará sendo, por muitos anos, a principal fonte
geradora de energia elétrica do Brasil.
Destacam-se as principais fontes energética não-renováveis, que respondem pela maior parcela
de oferta energética no mundo capitalista:
● Gás Natural - O gás natural é um combustível fóssil com origem muito semelhante à do
petróleo bruto, ou seja, formou-se durante milhões de anos a partir dos sedimentos de animais e
plantas. Tal como o petróleo, encontra-se em jazidas subterrâneas, de onde é extraído. A principal
diferença prende-se com a possibilidade de ser usado tal como é extraído na origem, sem necessidade
de refinação.
● Carvão - O carvão é uma rocha orgânica com propriedades combustíveis, constituída
maioritariamente por carbono. A exploração de jazidas de carvão é feita em mais de 50 países, o que
demonstra a sua abundância. Esta situação contribui, em grande parte, para que este combustível seja
também o mais barato.
● Petróleo - O petróleo é um óleo mineral, de cor escura e cheiro forte, constituído
basicamente por hidrocarbonetos. A refinação do petróleo bruto (ou cru) consiste na sua separação em
diversos componentes e permite obter os mais variados combustíveis e matérias-primas.
● Energia Nuclear - Urânio - A energia nuclear é produzida através das reações de fissão ou
fusão dos átomos, durante as quais são libertadas grandes quantidades de energia que podem ser
utilizadas para produzir energia elétrica. A fissão nuclear utiliza o urânio, um mineral presente na Terra
em quantidades finitas, como combustível e consiste na partição de um núcleo pesado em dois núcleos
de massa aproximadamente igual.
Considerando que o processo de industrialização brasileira irá demandar, nos próximos anos,
uma quantidade maior, de energias originadas de fontes não renováveis (poluentes), como o petróleo e
carvão vegetal, em virtude da previsão de crescimento da produção industrial (em diversas atividades), a
Empresa de Pesquisa Energética (2011), elaborou estudo da perspectiva da oferta interna de energia,
para o ano de 2019, em relação à oferta de 2010, conforme Gráfico abaixo:
2010 2019
Outras Outras
Derivados Derivados
renováveis; renováveis
da cana- Petróleo e da cana-de-
3,2% 3,7%
de-açúcar; derivados açúcar;
Petróleo e 20,3% 21,5%
31%
derivados
35%
Gás
Gás Natural;
Natural; Hidráulica Hidráulica; Lenha e
Urânio e 12,2% Urânio e
9,8% Carvão 14% 12,7% carvão
derivados; derivados;
Mineral e Lenha e Carvão vegetal;
1,4% 1,5%
derivados; carvão Mineral e 9,9%
5,5% vegetal; derivados;
10,8% 7,4%
Essa previsão da oferta de energia, no Brasil, deve-se a expansão na produção de petróleo e gás
natural, que ocorrerá com a exploração na camada do pré-sal, nos próximos dez anos. Segundo o IPEA
(2008), “Além do desenvolvimento econômico, outra variável que determina o consumo de energia é o
crescimento da população – indicador obtido tanto pela comparação entre as taxas de natalidade e
mortalidade quanto pela medição de fluxos migratórios. No Brasil, entre 2000 e 2005, essa taxa teve
uma tendência de queda relativa, registrando variação média anual de 1,46%, segundo relata o estudo
Análise Retrospectiva constante do Plano Nacional de Energia 2030, produzido pela Empresa de
Pesquisa Energética”.
Um contínuo crescimento na demanda, por fontes energéticas, tem gerado preocupação e tem
mobilizado esforços para aumentar a produção de energia e diversificação da matriz energética mundial
para suprir a demanda por energia. Desta forma, a formação ou criação de uma empresa energética
multinacional, que possibilite a geração de energia e que atenda as necessidades das atividades
produtivas, nos diversos setores da economia dos países que congregam o Mercosul, poderá promover
uma maior integração comercial da região.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 247
O novo contexto em que se insere o setor petrolífero brasileiro, tendo a Petrobrás como grande
responsável por essa atividade e sendo uma empresa integrada de Energia com atuação nos seguintes
setores: exploração e produção, refino, comercialização e transporte de óleo e gás natural, petroquímica,
distribuição de derivados, energia elétrica, biocombustíveis e outras fontes renováveis de energia,
poderá assumir o papel principal de veículo integrador dos países do Mercado Comum do Sul.
Portanto, a exploração e produção de petróleo e gás natural na camada do pré-sal constituem o novo
marco histórico da Petrobrás, que a destaca como a maior empresa da América do Sul, facilitando a
integração do bloco do Mercosul, inclusive, incorporando os demais países que não participam do
bloco.
Essa temática tem provocado discussão sobre a importância do fortalecimento dos países que
formam o bloco do hemisfério Sul. Bagattoli & Theis (2005) afirmam que, existe forte correlação entre
crescimento econômico e o consumo de energia para países periféricos, como o Brasil, cujos níveis de
consumo não correspondem às necessidades da população. Os mesmos autores destacam os quatro
níveis de cooperação econômica na formação de blocos regionais:
a) Livre comércio – redução ou eliminação de taxas aduaneiras e restrições ao intercâmbio
comercial.
b) União aduaneira – livre comércio e estabelecimento de uma tarifa externa comum,
estágio em que se encontra o Mercosul, atualmente.
c) Mercado comum – Livre comércio e União Aduaneira, somados à livre circulação de
pessoas, serviços, bens e capitais.
d) União política e econômica – mercado e sistema monetário unificado.
Por outro lado, Leite (1997) destaca que “A interligação energética já vem sendo tema de
entendimentos entre Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia, pelo menos vinte anos antes da formalização
do Mercosul, criado pelo Tratado de Assunção, em março de 1991, envolvendo exploração de quedas
d’água e importação de energia elétrica (Paraguai e Argentina) e gás natural (Bolívia e Argentina)”.
Adiante, Leite (1997) destaca que, “a integração energética do Mercosul implicou na inserção do gás
boliviano e argentino na matriz energética brasileira, sendo a finalidade principal a liberação da pressão
sobre o consumo de energia elétrica e dos derivados do petróleo”.
Um ponto estratégico para consolidar a integração energética regional, seria a diversificação ou
o desenvolvimento da agroenergia, visando sempre à diminuição dos impactos ambientais. O Brasil,
por se tratar de um país tropical e de vasta extensão territorial, tem largas possibilidades para se tornar
uma grande potência, no que concerne ao desenvolvimento da agroenergia e desponta como um
potencial produtor de combustíveis provenientes da biomassa como o biodiesel e o Proálcool. No
cenário atual essa questão tem sido bastante discutida uma vez que a atual matriz energética provém de
fontes não-renováveis, como é o caso dos combustíveis de origem fóssil.
Considerando como alternativa a inserção do biodiesel ou biocombustível na matriz energética
brasileira e a socialização das tecnologias adotadas com os países membros do Mercosul, a Empresa de
Pesquisas Energéticas destaca a importância dessa fonte energética, como alternativa para suprir
possíveis deficiências energéticas no Hemisfério Sul.
O biodiesel vem apresentando no mercado brasileiro, nos últimos anos, um crescimento
considerável no consumo de biodiesel, que objetiva reduzir a dependência do petróleo ou das fontes
energéticas não-renováveis, bem como, conservação do meio ambiente, associados aos programas de
incentivo ao consumo e à produção de biocombustíveis pelo Governo brasileiro.
Considerações finais
Dentro da perspectiva de promover uma maior integração dos mercados energéticos, entre os
países que formam o bloco do Mercosul: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Uruguai e
Venezuela, a partir da ampliação do comércio internacional de energia com a formação de um
consórcio multinacional para concretizar a criação de uma empresa de energia, e, para tal, deve-se
considerar alguns efeitos positivos para essa integração, que apontam para:
A ampliação da base de recursos e da diversificação da matriz energética, um notável
incremento da eficiência do conjunto;
O funcionamento de um mercado energético integrado e competitivo, dentro do próprio
Mercosul, considerando que ocorreu uma reestruturação do setor elétrico brasileiro;
Nos últimos 30 anos, também de acordo com levantamentos da IEA – International
Energy Agency, a oferta de energia hidrelétrica aumentou em apenas dois locais do mundo:
Ásia, em particular na China, e América Latina, em função do Brasil, país em que a
hidroeletricidade responde pela maior parte da produção da energia elétrica;
A ampliação da matriz energética brasileira, voltada para pesquisas e/ou continuação de
projetos de energia renováveis;
A inclusão da Venezuela, no Mercosul, incrementará a oferta de energia, bem como, sua
importância na participação em um Consórcio Multinacional, por ser detentor das maiores
reservas de petróleo do Hemisfério Sul;
A Argentina com seu parque energético consolidado e maduro, podendo contribuir
ativamente para a integração, considerando ser produtor de gás natural;
A Bolívia destaca-se como grande detentor de grandes reservas de gás natural, com
capacidade de influenciar o processo de integração regional, por ser um grande exportador
daquela fonte energética; e,
O Chile ainda se apresenta como um país que tem um mercado elétrico pouco competitivo,
devido ás regulamentações restritivas das atividades energéticas.
Referências
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Acesso em: 03 de setembro de 2013.
ANP - Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e dos Biocombustíveis (2010). ANUÁRIO ESTATÍSTICO.
Disponível em: http://www.anp.gov.br. Acesso em: 04 de abril de 2013.
BAGATTOLI, Sandro G. & THEIS, Ivo M. RDE - Revista de Desenvolvimento Econômico, Ano VII Nº 11 • Janeiro
de 2005 • Salvador, BA.
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EMPRESA DE PESQUISA ENERGÉTICA (EPE) 2011 – Disponível em www.epe.gov.br Acesso em: 30 de
agosto de 2013.
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2013.
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Acesso em: 05 de agosto de 2013.
LEITE, A. D. A energia do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
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RODRIGUES, Rodrigo Augusto. Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel: uma referência para a
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Governamental, vol. 06, nº1, ANESP, 2008.
RODRIGUES NETO, João. A Petrobrás: da quebra do monopólio às perspectivas de produção na camada do pré-sal – 1997-
2009. Artigo apresentado no IX Congresso Brasileiro de História Econômica e 10ª Conferência Internacional de
História de Empresas, da ABPHE, na Universidade Federal do Paraná – Curitiba – PR. Setembro de 2011.
PETROBRÁS (2010 e 2013). Uma empresa integrada de energia. http://www.petrobras.com.br/PT/quem-
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_______. Disponível em www2.petrobras.gov.br Acesso em: 30 de julho de 2013.
Introdução
U
ma das grandes dificuldades encontradas pelos países da América Latina foram suas
condições de viabilização de uma poupança interna que respondesse de maneira eficiente às
necessidades da dinâmica de suas economias (PREBISCH, 2011).
No final do século XIX e começo do século XX, os fluxos financeiros internacionais circulam
livremente sem nenhuma barreira, condição essa que estabelece uma relação direta entre as economias
periféricas e centrais, configurando um processo de integração sem precedentes (GRIFFITH-
DAWSON, 1998)
É nesse contexto que se constroem as condições de dependência, e ao mesmo tempo de
exposição cada vez maior ao capital financeiro.
A autonomia financeira torna se uma questão relevante, uma vez que quem controla o crédito
controla o comércio, quem controla os fluxos financeiros ou tem maior incidência sobre esses controla
a pauta política (Griffith- Dawson, 1998)
A criação de uma instituição de fomento regional não significa apenas a construção de um
banco que possa financiar as condições do desenvolvimento, é mais do que isso, significa construir uma
política regional autônoma, independente em relação aos ciclos dos fluxos financeiros internacionais
capitais.
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma discussão sobre o financiamento do
desenvolvimento regional da América Latina, considerando o histórico de dependência financeira. Para
isso o artigo se dividirá em 4 seções mais a conclusão.
A primeira seção tratará de uma abordagem histórica da construção de uma instituição de
fomento, a segunda sobre as próprias condições de criação do BID, a terceira sobre o propósito de
construir uma instituição desse perfil e a quarta algumas diretrizes para seu funcionamento e por último
a conclusão do artigo.
1 Doutorando pelo Programa de Integração da América Latina/ PROLAM da Universidade de São Paulo/USP.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 251
O capital externo esteve presente de maneira objetiva desde a segunda metade do século XIX.
Desde então esses capitais mantem um fluxo erradico (ciclo) que expõe esses países às dinâmicas
cíclicas desses fluxos, com pouca margem de manobra frente a essas condições externas, isso representa
uma alta vulnerabilidade a esses capitais. Já no final do século XIX chama atenção no fato desses
capitais circularem “isentos quase completamente de restrição formal”. (GLADE, 2009)
De acordo com Glade (2009, p. 66)
[...] foi esse fluxo de capital, dos mercados de capitais relativamente bem organizados
do centro capitalista para os mercados de capital quase inexistentes da América Latina,
que deu à região condições de reagir como fez às novas oportunidades de venda nos
mercados de produtos de exportação.
A integração da economia local a esses mercados internacionais, por meio dos fluxos
financeiros internacionais, foi um passo importante para consolidar, dentro das economias latino-
americanas, o processo de integração ao capital monopolista financeiro. Essa integração constituiu,
assim, uma forma de organização dos capitais estrangeiros e os capitais nacionais dentro de um modelo
de desenvolvimento econômico regional, no qual se cristalizam as divisões entre os capitais nacionais e
internacionais (GLADE, 2009)
Esses fluxos nas economias latino-americanas decorrem diretamente do grau de
desenvolvimento que as economias centrais atingiram no final do século XIX (financeiramente e
tecnologicamente) e de sua necessidade de reprodução desses capitais, impactando diretamente nessas
economias.
Essa relação com o capital externo apresentou vários complicadores e expos as economias
latino-americanas a ciclos de euforia e depressão (GRIFFITH-DAWSON, 1998). Essa situação
repercutiu não apenas no centro econômico mundial, mas também na política e nas relações
internacionais construídas com base nesse quadro. Há, ainda, outras variáveis importantes nesse
quadro, considerando que “[...] a dependência financeira constituirá o ponto de partida para um início
de dependência política e militar direta” (DONGHI, 2011, p. 203).
A vulnerabilidade às dinâmicas desses capitais se evidencia, repercutindo no próprio
desenvolvimento dos países latino-americanos. Essa vulnerabilidade deriva da incapacidade de
formação de poupança interna para financiamento do desenvolvimento e sua dependência aos capitais
externos e a exposição sistemática aos fluxos financeiros ao longo do século XX, e, ao mesmo tempo,
das condições em relação à baixa autonomia dos países latinos americanos a fluxo financeiro ainda no
século XXI.
De esta manera es posible afirmar que el gran problema que persigue a América Latina
es la dificultad que sus países tienen en consolidar mecanismos autónomos de
financiamiento para subdesarrollo. Eso se refleja en la falta de ahorro interno a lo
largo del tiempo que fuese capaz de financiar el desarrollo, constituyéndose en una
constancia casi ininterrumpidade los países la necesidad de búsqueda de
O economista Stephany Grifftith-Jones (1984) sugere que a falta de uma instituição financeira
internacional pública capaz de centralizar, coordenar e direcionar os fluxos financeiros internacionais
para os países em desenvolvimento, em particular os da América Latina, expõe esses países aos ciclos
financeiros internacionais de maneira crítica.
Nesse sentido, a criação do BID não significa uma relação direta e imediata com a nova ordem
internacional e seu fortalecimento, mas sim de um processo histórico que se trava desde o início do
século XX, uma demanda antiga dos países da América Latina. Existia um forte descontentamento
sobre os mecanismos de cooperação internacional que emergiram ao fim da guerra, tanto de caráter
multilateral quanto bilateral (HERRERA,1974).
A participação dos países da América Latina na criação das várias instituições internacionais foi
explícita. O fato de que na época da criação das instituições do pós guerra o peso relativo dos países da
América Latina era elevado: de um total de 51 países envolvidos no debate, 21 pertenciam à América
Latina. Esse peso relativo, contudo, não se configurava em uma maior participação no volume de ajuda
financeira.
Os Estados Unidos, que proporcionaram elevado montante de recursos à Europa, por meio do
Plano Marshall, não contemplavam a criação de um banco de fomento regional, já que na visão norte-
americana, o que faltava era a maximização das condições oferecidas, tanto pelo capital privado como
pelo próprio Eximbank e pelo Banco Mundial (HERRERA, 1977).
A política externa desse país para a América Latina era de manter um canal descentralizado, por
meio do qual cada país tivesse que negociar em separado no mercado ou diretamente, fragilizando
assim o poder de negociação dos países.
Com a criação de um fundo centralizado e com participação de todos os países, as condições
políticas e de gestão poderiam ser alternadas, mudando a correlação de força. A urgência de estabelecer
uma instituição bancária regional foi colocada pela primeira vez na I Conferência Internacional
Americana 1889-1890 (HERRERA, 1977).
No período de 1931 e 1939, houve uma nova perspectiva da construção de uma instituição,
semelhante de um banco central. Na VII Conferência Internacional Americana, foi aprovada a
constituição de um tipo de organismo de cooperação econômica. Em 1939, em outra rodada de
negociação, obteve-se uma ação mais ousada que garantiu uma série de acúmulos e novos desafios para
financiamentos da região como bem destaca (HERRERA, 1970).
Em 1940, foi recomendada, Comissão Consultiva Econômica e Financeira Interamericana junto
aos países membros da União Pan-americana, a constituição de um Banco de Desenvolvimento, que
teria a função de atuar como um banco central, banco comercial, banco de investimentos e instituição
de pesquisa técnicas e econômicas. A iniciativa de 1940 é uma proposta altamente ousada e, ao mesmo
tempo, constitui uma série de pilares para o futuro de um banco de desenvolvimento.
Com o advento do Plano Marshall, criou-se muita expectativa entre os países latinos e
concretamente houve pouco avanço, resultando assim, em 1948, na IX Conferência Internacional
Americana. Foi gerado um volume significativo de insatisfação, em particular relacionada ao volume de
recursos.
Em 1954, na Conferência Econômica Especializada, foram apresentadas pela primeira vez as
ideias concretas sobre como se constituir a cooperação econômica interamericana.
Em 1955, dando continuidade a discussão de 1954, apresentou-se um projeto de estatuto que
mais tarde veio ser debatido de maneira bem mais consistente. No ano de 1957, dentro do contexto de
avanços e retrocessos, ocorrem alterações importantes que deflagraram a Operação Pan-Americana, a
partir da qual o Presidente Juscelino Kubitschek propõe a criação de um banco regional. Esse processo
resultou em reflexos na política dos Estados Unidos para com a América Latina, ainda mais depois que
Estados Unidos haviam aceitado anteriormente a criação de uma Agência de Desenvolvimento
Regional para o Oriente Médio (HERRERA, 1977).
Em função desse longo processo histórico e de negociação e pelas próprias mudanças na
conjuntura internacional, em especial o caso do Líbano, finalmente os Estados Unidos acabaram
cedendo, o que tornou possível criar uma agência de fomento para a região (HERRERA, 1970).
A política dos Estados Unidos para com a América Latina está intimamente ligada aos seus
interesses específicos e, nesse caso em particular, podemos entender que nunca foi de fato prioridade
para os Estados Unidos constituir um Banco de Desenvolvimento para a América Latina.
Num ambiente de grandes tensões que se apresentavam em função da guerra fria naquele
momento (final dos anos cinquenta), e a relação com a grande potência econômica mundial (Estados
Unidos).
Herrera sinaliza em seus escritos (HERRERA, 1970, 1977) que esse foi um longo processo
histórico para a constituição de um banco comum da América Latina.
Ao final desse longo caminho, quando não tinha mais como segurar a consolidação de uma
instituição de fomento para América Latina, os Estados Unidos atuaram na linha de frente e se
consolidaram como o principal acionista com 30,1% das cotas, mantendo de maneira imperiosa sua
influência nos rumos do financiamento do desenvolvimento regional.
A relevância de um Banco regional de desenvolvimento continua presente, não existe uma
contradição entre as estruturas atuais e uma instituição construída de forma mais independente. A seção
três trabalhará esse ponto.
A literatura tem demonstrado que não existe uma contraposição de instituições financeiras
regionais mas que, pelo contrário, são complementares.
OCampo destaca:
Ante la falta de instituciones supranacionales, los bancos regionales y subregionales de
desarrollo juegan um papel importante em resolver problemas que exigem medidas de
ación colectiva em los procesos regionales. Estos bancos pueden ofrecer mecanismos
de coordinación que permitan a los países miembros planificar y financiar la
infraestrutuctura regional (OCAMPO, 2007, p. 33).
Fica evidente que esse foco seria a “cooperação regional para o financiamento do desenvolvimento”, dadas
as próprias condições de pouco liquidez de crédito do setor privado, que exige um bom tempo de
maturação dos investimentos em função da taxa de retorno que se tem. Em suas conclusões,
(OCAMPO, 2006, p. 50) destaca que a algumas modalidades de instituições regional de
desenvolvimento que poderiam adotar a cooperação financeira regional em direção ao financiamento
do desenvolvimento regional (BONIFAZ,2006).
Sagasti; Prada chamam atenção ainda para o fato de que:
El `modelo` de los bancos multilaterales de desarrollo es quizás uma de las inovaciones institucionales
más valiosas surgidas en el campo del financiamiento para el desarrollo en los últimos seis decenios
han tenido una trayectoria razonablemente positiva. Ni las fuentes Del sector privado ni los
organismos bilaterales podrían haber movilizados recursos financieros con tanta eficiencia
(SAGASTI; PRADA, 2006, p. 92).
Desde o final da Segunda Guerra Mundial foram criadas, cerca de trinta instituições entre
bancos multilaterais e de desenvolvimento, isso apenas para ilustrar o grau de complexidade do
processo de integração regional. Portanto, vemos a necessidade de olhar a constituição dessas políticas.
Os bancos regionais são concepções que se afloram desde os anos 1950 e 1960 e que se
baseiam na percepção de alavancar o desenvolvimento regional e integração.
A criação do Bansul pode trazer um conjunto de sinergias para alavancar o desenvolvimento
regional, com base na própria experiência regional de seus atores, e suas demandas, rompendo os
vínculos de financiamento entre centro-periferia.
Sugerimos que uma alternativa seria a própria criação do Bansul, se o mesmo for gerido de
forma a focar nessa estratégia. Em outras palavras, faz-se necessária uma instituição que nasce da
própria constatação da necessidade de se construir uma instituição independente das influências
políticas de países externos ao continente e mesmo de outras instituições internacionais.
Essa instituição poderia ser um grande laboratório de debate sobre o desenvolvimento da região
e suas prioridades, chamando para si essa responsabilidade, apesar de todos os problemas políticos,
livre do peso de uma disputa com uma grande potência, e sua quase necessidade de interferência
sistemática nos rumos da região.
Uma instituição que se propõe a liderar essas ações no âmbito da integração regional e no
desenvolvimento, via de regra sempre passa por problemas básicos relacionados ao financiamento dos
projetos.
Uma alternativa a essa questão é dar um papel às reservas internacionais que se encontram nas
mãos dos países do latino-americano vindo a cumprir assim uma tarefa muito importante.
A proposta que se coloca pode ser entendida como uma alternativa prática para utilização de
parte das reservas internacionais, sem comprometer as mesmas no longo prazo.
A evolução constante das reservas de 2002 até 2011 (2011 é o último ano disponível dos dados
das reservas). Do volume de reservas internacionais, salta de US$ de 162 bilhões de dólares para US$
776 bilhões, um aumento de mais de quadro vez no período das reservas, propiciando um colchão de
recursos até então inédito para grande maioria dos países da América Latina.
A utilização de parte desses recursos de forma objetiva seria uma maneira de fugir da
financeirização desses recursos e disponibilizar na forma de financiamentos, ajudando assim a
consolidar uma base material das economias latino-americanas, com base em recursos próprios. Ou
seja, aproveitando a janela de oportunidade que se tem nesse momento, esquivando-se da aquisição de
recursos externos e aproveitando o bom momento das economias locais.
Esse aumento das reservas internacionais se dá em função do próprio ciclo positivo das
exportações das exportações de commodities e o ambiente favorável de financiamento externo
(OCAMPO, 2007).
A utilização das reservas abre um importante espaço para o debate da política macroeconômica,
como a própria história da América Latina tem demostrado nesses últimos 60 anos esse ambiente de
bonança macroeconômica não tende ser perene.
Sobre o comportamento dos fluxos financeiros para América Latina e alguns países do
continente, vemos claramente que de 2006 até 2012 houve um crescimento de 6,70% na entrada de
capitais. Na América do Sul esse crescimento é de 12% e Caribe chega a 39%.
O importante desse quadro não é em si o comportamento de 2006 para 2012, mas sim a
vulnerabilidade de ele nos apresenta. Nos anos de 2008 para 2009 percebe-se nitidamente essa situação.
A crise de 2008 que afetou as principais economias capitalistas repercutiu no comportamento dos
fluxos em 2009, ocorrendo uma queda significativa na entrada desses capitais. No total, foi de 67% de
um ano para outro. Em países como Brasil, Argentina e México foram quedas significativas, sendo o
Chile a exceção que teve uma queda mais suave. Isso demonstra a exposição e pouca autonomia sobre
esses capitais.
A formação de capitais para uma instituição como essa poderia ser construção de um mercado
regional de bônus organizado e vinculado a essa instituição de fomento. A constituição de um mercado
regional poderia sinalizar para o conjunto dos países da região uma resposta aos mercados globais de
capitais, dando assim mais segurança e opção as ações para romper essa dependência ou minimizar a
exposição a esses capitais (OCAMPO, 2007).
É uma forma de minimizar a dependência dos recursos externos e a própria exposição aos
ciclos externos.
5. Conclusão
A falta de uma instituição financeira internacional autônoma na América Latina, expõe os países
aos ciclos financeiros internacionais de maneira crítica, acentuando sua dependência na construção de
políticas que visem ao desenvolvimento autônomo.
A necessidade de se criar condições de mecanismos de financiamentos internos próprios é um
campo muito vasto para se analisar, tendo vasto um grande leque de questões para de debater. Nesse
sentido, a última proposta sobre esse ponto, a criação do Banco do Sul, é importante mas não
suficiente, já que é necessário instrumentalizá-lo para sua atuação como agente dinamizador dessa
tarefa.
Outra questão relevante é a constituição de uma moeda local para as transações entre os países
da região ou efetivação de fato de um sistema de pagamentos que seja capaz minimizar os custos de
transação entre os países da região.
O papel do multilateralismo e a integração regional, e nesse ponto muito mais do que qualquer
outro, pode ser orquestrado por uma instituição de fomento e sua capacidade de financiamento da
integração regional.
Os dados revelam a necessidade de criação de um fundo de desenvolvimento regional que
disponibilizaria as reservas internacionais dos países da América Latina para setores que sejam capazes
de gerar alto valor agregado, construindo sinergias em áreas comuns entre os diversos países, tornando
os complementares e não concorrentes entre si.
Apesar das fragilidades, as condições atuais da América Latina são confortáveis, comparadas a
outros momentos históricos. Contudo, esse cenário pode mudar rapidamente, ainda mais em países que
são vulneráveis aos movimentos ciclos das economias centrais. Portanto, temáticas como
financiamento autônomo do desenvolvimento, integração regional e multilateralismo continuam
presentes na pauta de nossa sociedade.
Referências
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ROXBOROUGH, I (orgs). Entre a segunda Guerra mundial e a Guerra fria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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Cinqüenta Anos de Pensamento na Cepal. Volume I, Rio de Janeiro: Record, 2000.
1. Introdução
C
om a globalização as nações são pressionadas a diminuir seus custos e a produzirem em
escala aumentando a sua vantagem competitiva. Logo, surge uma tendência à cooperação
entre os Estados, por meio de acordos nos quais as nações se uniriam em blocos econômicos
visando a obtenção de ganhos econômicos. Na América do Sul o principal bloco econômico é o
Mercosul, criado por meio da assinatura do Tratado de Assunção em 1991, pelos os países membros
(Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai e Venezuela)1, com o objetivo de se estabelecer uma zona de livre
comércio e posteriormente uma união aduaneira.
O Mercosul já possibilitou o aumento de comércio entre os países membros por meio de
política de liberalização que visa a redução tarifária, porém esta liberalização do comércio não é sempre
positiva para todos os setores envolvidos. Esse fato pode gerar a criação de barreiras não tarifárias, tais
como: regulamentações sanitárias e de padrões de qualidade, regulamentação de embalagem e etiquetas,
procedimentos alfandegários, subsídios, quotas de importação/exportação etc.
A queda da balança comercial do setor calçadista dentro do Mercosul durante o período de
crise de 1998 e 2001 é um exemplo dessa política hostil no Bloco. Para entender quais foram os
incentivos que levaram os atores em tomar decisões auto-interessadas dentro do setor calçadista do
Mercosul e como as políticas comerciais restritivas do período da crise ainda impactam nas relações
entre os países nesse setor, esse trabalho buscou estudar o processo de tomada de decisão na
determinação da política comercial de aplicação de barreiras não-tarifárias, na Argentina e no Brasil, no
período de 1990 a 2011, e o seu impacto na balança comercial desses países .
Para atingir estes objetivos, foi realizada uma pesquisa exploratória em artigos científicos, livros
e demais publicações na área, visando o melhor entendimento dos problemas ocorridos com a indústria
calçadista brasileira e argentina, além do levantamento de dados descritivos do comércio intra-regional,
entre o período de 1990 a 2011. A partir do levantamento, observou-se que durante um período o
Mercosul atingiu o objetivo proposto no Tratado de Assunção, promovendo crescimento comercial
para os países membros, porém passado este período os interesses próprios de cada país começaram a
1 A Venezuela se tornou membro a partir da suspensão do Paraguai em 2013. O Paraguai era o único membro que não
tinha aprovado em Congresso a entrada da Venezuela. O Bloco conta também com Bolívia, Chile, Peru, Colômbia e
Equador como países associados, que são aqueles que buscam a criação de uma zona de preferência com países do
Mercosul podendo evoluir para uma zona de livre comércio. (Mercadante, Junior e Araújo 2006)
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 261
prejudicar o aprofundamento do bloco. Decisões visando o bem estar próprio e imposição de barreiras
não tarifárias causaram além de desconfortos um impacto negativo na balança comercial e são
observados até os dias de hoje.
2. Enquadramento Teórico
Observa-se que cada nível recebe e distribui influência sobre o nível seguinte. Segundo Almond
(1950; apud Vigevani, 1997), no círculo central encontra-se a “Liderança”, composta pelos principais
atores que participam efetivamente de todo o processo decisório. No segundo círculo, estão as “Elites
Relacionadas” ao tema e que assumem o papel de formadores de opinião, agindo conforme as pressões
domésticas, que a princípio buscam aumentar seus ganhos individuais absolutos. O círculo seguinte é
composto pelo “Público Interessado” no assunto abordado, que buscam informações e discutem sobre
o mesmo, podendo também ser nomeados como platéia das discussões realizadas pelas elites. O último
círculo é formado pelo “Público Geral”, que em sua maioria é alheio ao que está sendo tratado no
âmbito da política externa, interessando-se somente quanto o assunto ganha maior destaque nos meios
de comunicação ou quando suas consequências influenciam seu cotidiano.
No nível internacional os governos nacionais procuram aumentar suas habilidades de atender as
demandas e pressões domésticas, ao mesmo tempo em que buscam diminuir as consequências das
evoluções internacionais (PUTNAM, 2010).
A formulação das negociações internacionais é tomada por dois ou mais representantes
políticos de cada país que se organizam em um tabuleiro, como descreve Putnam (2010). Em cada
ponta do tabuleiro posiciona-se uma contraparte estrangeira, na frente o representante político que está
participando da negociação e atrás os assessores e diplomatas, parlamentares, figuras partidárias, porta-
vozes das agências domésticas e representantes de grupos importantes.
Conforme delineia Vigevani (1997), as situações de conflito e cooperação na esfera
internacional são desenvolvidas em duas etapas. Na primeira, cabe aos governos definir quais são os
interesses nacionais a partir de uma análise dos demais atores domésticos. Na segunda etapa, os
governos estão hábeis para realizar as negociações com os demais países.
Toda a negociação é cautelosa visto que uma decisão simples tomada no âmbito nacional não
surte o mesmo efeito no âmbito internacional, podendo desagradar o outro negociador desorganizando
o jogo. E se a parte desagradada for do seu próprio território nacional o negociador pode ser facilmente
destituído do cargo que ocupa e ser retirado das negociações. Desta forma, o líder deve ser sagaz,
usufruindo das mudanças no cenário nacional e internacional para beneficio próprio (PUTNAM, 2010).
As decisões tomadas dentro do Mercosul passam pelos mesmos processos, porém com suas
peculiaridades que serão explicadas à seguir.
estabelecer algumas políticas de proteção a sua indústria nacional, impondo cotas a importação de
calçados advindos de todos os países, exceto àqueles membros do Mercosul.
Com isso, o governo brasileiro vislumbrou a oportunidade de exportar ainda mais calçados para
a região, estipulando um aumento de 74,3%, passando de 10,9 milhões de pares em 1998 para 17
milhões de pares em 1999. (ANDERSON, 2001). A partir de então a Argentina passou a impor
barreiras conforme abaixo:
De forma geral, dentro do Mercosul, o processo de tomada de decisão deve levar em conta o
que fora previamente estabelecido no Tratado de Assunção e complementado pelo Protocolo de Ouro
Preto (1994). As decisões que impactam os países membros e o bloco em si devem ser tomadas em
conjunto, com a participação dos governos e os órgãos responsáveis do bloco.
Durante o processo de decisão há uma série de reuniões com os governos até que seja definido
o procedimento para instauração das normas, dando ao sistema de tomada de decisões do Mercosul um
caráter intergovernamental, ou seja, elas acontecem com um consenso de todos os governos dos
Estados (AMARO, 2007). Porém, segundo o autor, os Estados se articulam internamente para que as
decisões tomadas em conjunto sejam postas em prática de acordo com os próprios interesses e suas
próprias políticas.
O processo de decisão no que tange a exportação de calçados brasileiros para a Argentina
analisado por meio dos níveis de Almond (1950; apud VIGEVANI, 1997) são divididos em Lideranças,
Elite Relacionada, Público Alvo e público relacionado:
O quadro abaixo apresenta os atores envolvidos em cada nível no caso dos calçados Brasil-
Argentina.
Brasil Argentina
Poder Executivo, Legislativo, Câmara de Poder Executivo, Ministério da
Comércio Exterior (CAMEX), Ministério de Indústria (MIND) e a Comissão
Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior Nacional de Comércio Exterior
(MDIC) e Ministério das Relações Exteriores (CNCE), o Ministério da Indústria
Liderança (MRE), Secretarias de Comércio Exterior (MIND), a Comissão Nacional de
(SECEX), Secretaria de Desenvolvimento da comercio exterior (CNCE) e o
Produção (SDP), Secretaria de Desenvolvimento Instituto Nacional de Tecnologia
Industrial (STI). Industrial (INTI).
De maneira geral a liderança brasileira visa os interesses da nação, porém não age de forma
extremamente protecionista na indústria calçadista, ao contrário do que ocorre em outros ramos da
indústria como o automotivo, por exemplo, no qual o governo atua de forma fortemente protecionista.
A elite relacionada posiciona-se sempre em favor da indústria nacional sendo extremamente
protecionista e visando somente a maximização dos lucros e das qualidades dos produtos das indústrias
brasileiras.
A liderança Argentina, segundo os círculos de influência de Almond (1950; apud VIGEVANI,
1997), age de forma protecionista, com o propósito de diminuir as importações e aumentar as
exportações, por meio de barreiras comerciais e incentivos governamentais. A elite relacionada
argentina sempre visa o seu próprio interesse, pois são afetadas diretamente pelo assunto abordado.
Os públicos interessados de ambos os países são responsáveis por analisar e divulgar ao público
geral os acontecimentos agindo como formadores de opinião,
Embora o público geral argentino não tenha tido participação efetiva nessa crise agindo apenas
como expectadores, observa-se um histórico de maior participação em fatos passados, como por
exemplo durante o governo Menem (1988 a 1999), quando os acadêmicos do país ganharam
notoriedade opinando sobre o pensamento político e processo de tomada de decisões internas e
externas. (SILVA, 2009)
O Brasil tem uma história que marca certo desinteresse quanto a opinião pública nas questões
de política externa. Uma forma de se identificar este desinteresse, conforme Lima (2005) é o fato de
não haver disputas entre forças partidárias com o posto de Ministro das Relações Exteriores.
Apresentaremos as decisões tomadas e seus impactos nas relações comerciais entre Brasil e
Argentina na época da crise no setor calçadista, para posteriormente averiguarmos os impactos que
estão causando atualmente na comercialização.
2003
1990
1991
1992
1993
1994
1995
1996
1997
1998
1999
2000
2001
2002
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
Gráfico 2 – Intercâmbio Comercial Brasil-Mercosul
Fonte: MDIC (2012) adaptado
Analisando então o comércio de calçados entre Brasil e Argentina no período de 2002 a 2011,
observamos períodos de queda de comércio principalmente em 2007, 2009 e 2011. De acordo com
reportagens da imprensa brasileira divulgados nos jornais de grande circulação no país como: Folha de
São Paulo, Estado de São Paulo e jornais online como g1.com.br e economia.uol.com entre outros, o
ano de 2007 foi marcado por uma série de novas barreiras impostas pela Argentina para a entrada de
calçados brasileiros; a queda de 2009 refere-se principalmente a crise econômica que abalou o mundo
como um todo e a nova queda em 2011 é marcada por novos problemas com barreiras não tarifárias.
Uma reportagem do jornal Folha de São Paulo aponta em 2007 que o Brasil estava perdendo
mercado para os novos entrantes Uruguai, China e Vietnã. Sobre 2009, além da crise econômica que
abalou o mundo como um todo, pudemos observar uma grande quantidade de reportagens tratando do
assunto das barreiras comerciais impostas pela Argentina para importação de diversos produtos, dentre
eles os calçados.
Embora os gráficos nos mostrem um pequeno crescimento no comércio de calçados em 2011,
conforme Ogliari (2001) para o jornal Estado de São Paulo, a quantidade de calçados barrados em 2011
chegou a 3,3 milhões de pares a espera de licenças não automáticas. A liberação destes calçados podia
chegar a 60 dias, o que causou transtornos aos produtores brasileiros e também aos lojistas argentinos
que estavam a espera dos calçados.
O gráfico 6 abaixo apresenta o valor total de exportação de calçados brasileiros para a
Argentina. Observa-se que em 2012 houve uma queda de 22% no total de exportações com relação a
2011:
20.000
10.000 Exportação
-
2011 2012
Gráfico 5 – Calçados brasileiros exportados para Argentina
Fonte: MDIC (2012) adaptado
Tendo em vista os dados obtidos e aqui demonstrados por meio de gráficos, podemos chegar a
uma resposta à pergunta central deste problema e a contestação que há uma constante política
comercial de proteção do setor calçadista argentino que se inicia com a crise do Mercosul em meados
de 1998 e continua até os dias de hoje. A postura argentina de protecionismo não está relacionada
diretamente a uma crise interna grave como a de 1998-2001 que abalou o Mercosul, mas sim a uma
falta de investimento no setor por parte da elite protecionista, que o torna não competitivo, nesse caso,
perante o setor calçadista brasileiro que investe constantemente em novas tecnologias para atingir um
melhor custo-benefício.
Este resultado reforça o que autores como Camargo (2006) e Ruiz (2007) afirmam, o Mercosul
não está seguindo o que foi estabelecido no Tratado de Assunção com relação a integração e
cooperação entre os países membro e se continuar desta forma, não poderemos ter grandes
expectativas de desenvolvimento entre os países.
Estudos feitos pela CNI (Confederação Nacional da Indústria) em 2009 apontavam que naquele
período as medidas argentinas impactavam negativamente 13,5% das exportações brasileiras,
ocasionando numa perda de market share brasileiro de cerca de 10% passando de 42% no grupo de
produtos atingidos pelo protecionismo argentino (brinquedos, calçados, tecidos, linha branca,
automóveis, papel etc) para 31,5% entre 2008 e 2009. Enquanto isso foi observado um crescimento da
participação de produtos chineses de 21,5% para 30,5% neste mesmo período.
A estratégia adotada pela elite brasileira durante o período estudado foi trabalhar na solução
destes impasses com flexibilidade e tolerância com as demandas argentinas. Porém de acordo com o
estudo da CNI (Confederação Nacional da Indústria) (2009) e também com base nos dados obtidos
dos anos seguintes, esta forma de trabalho não está sendo benéfica.
Constata-se que as lideranças e elites relacionadas, argentinas e brasileiras, não possuem um
bom relacionamento, pois demonstram possuir dificuldade para comercializar. Essa falta de
entendimento prejudica ambos os países, o Brasil não consegue exportar seus calçados para a Argentina
prejudicando assim seus ganhos comerciais e prazos de entrega, refletindo na geração de empregos,
renda e consequentemente na economia. Enquanto a Argentina precisa impor medidas para proteger a
indústria interna e não vislumbra os ganhos que a economia do país poderia ter com uma maior
abertura comercial.
A sugestão de alguns autores, elite empresarial brasileira e também da CNI é que o governo
brasileiro abra um painel na OMC para tentar solucionar essa questão (não apenas do setor calçadista,
uma vez que as medidas afetam também outros produtos), antes que a Argentina crie mais entraves
dentro do Mercosul.
3. Considerações finais
de que forma um painel na OMC poderia ajudar ou não a solução desta controvérsia e até que ponto
ela é realmente necessária.
Referências
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VIGEVANI, Tullo; MARIANO, Karina L. Pasquariello. A burocracia na integração regional (e no Mercosul): influência
no processo decisório, 46p, 1997.
Introdução
C
onforme a evolução histórica da economia latino-americana, a Bolívia tem desenvolvido uma
série de acordos e tratados com os demais países da América Latina, bem como esta faz parte
de uma série de processos de integração regional, onde podemos destacar seu papel na
Comunidade Andina de Nações (CAN), bem como sua posição como membro-associado5 ao Mercado
Comum do Sul (Mercosul), ressaltando que o país está próximo de ser transformado em Estado-
membro do bloco do Cone Sul-Americano6.
Internamente na Bolívia, várias discussões têm sido levantadas sobre os riscos e problemas que
poderão ocorrer caso o país efetive a adesão, como a possível fragilização dos vínculos comerciais desta
com os países da Comunidade Andina e da própria CAN como processo de integração, a forte
concorrência da produção dos países do Mercosul, sobretudo no que diz respeito à questão tecnológica
(dada a baixa competitividade boliviana nesse setor em relação aos países do Mercosul, sobretudo Brasil
e Argentina) e produção agrícola semelhante, principalmente da soja, bem como o protecionismo que
ocorre no bloco a alguns setores da economia, o que dificultaria o ingresso de produtos bolivianos nos
mercados do Mercosul. Outro ponto levantado é que a entrada da Bolívia no Mercosul tem como um
de seus fatores a busca pelo desenvolvimento econômico, dados os acordos já firmados entre o país e o
bloco e as possibilidades que os novos mercados oferecem. Leva-se ainda em conta que o processo,
que está em negociação, não deve restringir a Bolívia, enquanto Estado soberano.
Partiremos da prerrogativa de que o processo de adesão boliviano é parte da estratégia do
Mercosul de expandir a zona comercial do bloco, ampliando o destino das exportações dos países
1 Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista CAPES – Demanda Social. E-mail:
mma_filho@hotmail.com.
2 Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás. Bolsista da Fundação de Amparo a Pesquisa do
anapcristal@gmail.com.
4 Graduando em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás. E-mail: icarofelipe@hotmail.com
5 Os Estados Associados possuem uma série de acordos econômicos e de outras ordens firmados com os membros do
Mercosul.
6 Excetua-se o Chile, que mesmo sendo um país parte do Cone Sul-Americano, Estado-associado do Mercosul, com o qual
mantém acordos de livre-comércio e de outras naturezas, não é, entretanto, um membro pleno do bloco.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 273
deste, bem como a Bolívia tem intenção parecida para com o bloco, dado que atualmente o sistema
internacional se encontra em recessão.
A relevância da seguinte pesquisa reside no fato de a integração regional ser um tema das
Relações Internacionais contemporâneas que está em evidência, onde as interações entre países
economicamente integrados têm se mostrado uma fonte farta de estudos, dado o dinamismo e a
complexidade que estes processos possuem. O tema é ainda complementar a outros objetos de estudos
importantes das Relações Internacionais, como a globalização, a interdependência entre as Nações e a
liberalização econômica a nível mundial. Além disto, a importância energética, política e estratégica da
Bolívia para a América Latina, sendo produtora de petróleo, gás natural e também possuir potenciais
recursos hídricos que permitem a produção de energia através de usinas hidrelétricas, bem como a ação
política do governo Evo Morales tem chamado a atenção do mundo todo, gerando uma série de
polêmicas e de mudanças sociais, conjunto de motivos que tem levantado a curiosidade de
pesquisadores do mundo todo.
Buscando enriquecer a discussão sobre a possível inclusão da Bolívia ao Mercosul como seu
membro pleno, o presente escrito será desenvolvido com base em números oficiais, artigos científicos
relevantes ao tema, textos diversos referentes, entre outros, sendo de natureza qualitativa. Para efeito
desta, partiremos da análise da economia e da política boliviana, realizando uma breve análise histórica,
que enfatizará alguns momentos importantes para a economia do país, ao nível de contextualização.
Corridos vários anos após sua independência, a Bolívia acabou se tornando um dos países mais
pobres da América, com sérios indícios de desigualdade social, havendo ainda uma série de disputas de
cunho étnico-sociais e regionais, que tem se abrandado com o tempo. Historicamente construída, essa
pobreza foi agravada com a Guerra do Pacífico contra o Chile (1879), onde o país perdeu a saída para o
mar e territórios fonte de guano7 e salitre (onde o Chile descobriu cobre e uma série de outros minerais
posteriormente), com a Guerra do Chaco contra o Paraguai (1932-1935), onde perdeu uma gama de
territórios e a venda da região do atual estado do Acre ao Brasil, diminuindo ainda mais suas dimensões
territoriais (PIEDRAS, 2008).
A Bolívia por muito tempo foi caracterizada como um país politicamente instável, dados os
quase 200 golpes de Estado durante sua fase republicana. Entretanto, com a Revolução de 1952, uma
insurreição armada dos trabalhadores urbanos e dos operários mineiros do país, colocou Victor Paz
Estenssoro no poder, o qual aumentou a participação do Estado na economia, aplicando a reforma
agrária, a criação de empresas estatais e nacionalização da exploração de alguns setores da economia, a
garantia de alguns direitos básicos à população e a implantação do sufrágio universal. No período que
7 Fezes de pássaros marinhos altamente ricas em minerais, utilizados para a fertilização do solo.
vigorou após a Revolução de 1952, foi permitido ao país aproveitar um desenvolvimento econômico
mais aprofundado que ainda não havia sido visto na história do país, um considerável desenvolvimento
industrial e melhorias na situação da mineração. Houve considerável progresso no sentido de se
estabilizar politicamente o país durante o período que se correu, até o golpe militar de 1964 (MARTINS
VIANNA, 2010).
De acordo com o historiador Marcus Vinícius Martin Vianna, a Bolívia após o período
revolucionário viveu a fase de ditadura civil-militar, que se estendeu de 1964 a 1982, sendo que neste
período se sucederam no poder uma série de governos de curta duração, que levaram a cabo políticas
de reformas econômicas conservadoras. Por outro lado, a resistência ao regime em forma de guerrilha
que estava começando a ter mais força (com o apoio de Cuba), em 1967, após a captura de Ernesto
Che Guevara na selva boliviana, toma um duro golpe e começa a enfraquecer. Em 1971 aumenta a
repressão e o regime se endurece ainda mais, liderado pelo Coronel Hugo Banzer. No início da década
de 1980 começa a reabertura democrática no país, sendo consagrada com a eleição de Hernán Siles
Zuazo em 1982.
Após a queda do regime militar boliviano, o governo Zuazo (1982-1985), primeiro governo da
redemocratização, teve que enfrentar sérios problemas da conjuntura internacional advindos da Crise
da Dívida Externa8, o que gerou hiperinflação no país e a contração da renda real per capita nacional, em
um cenário de descontrole das contas públicas, o que gerou instabilidade no sistema democrático
recém-retomado, piorado pelo fato de o presidente não conseguir o apoio da maioria no Congresso, o
que fez com que as eleições fossem convocadas antecipadamente. É reeleito Paz Estenssoro (1985-
1989), responsável por implementar a “Nova Política Econômica” (NPE), programa dotado de
medidas liberalizantes iniciais, com o intuito de modernizar a economia e retirar o Estado boliviano do
papel de “promotor do desenvolvimento”, típico do Estado desenvolvimentista. O plano econômico
buscou a atração de investimentos estrangeiros no país, a exploração das vantagens comparativas do
país pelo setor privado exportador, liberalização do mercado (de bens, fatores de produção, entre
outros), bem como a geração de um ambiente macroeconômico estável (CUNHA, 2004).
Após o fim do mandato de Estenssoro, Paz Zamora (1989-1993) passou a governar o país.
Mesmo ficando em terceiro lugar, uma singularidade do sistema eleitoral boliviano (o presidente deve
ser eleito por maioria absoluta, ou seja, 50% dos votos válidos mais 1%) permitiu que o presidente
subisse ao poder, respaldado pelo Parlamento, já que os dois outros candidatos não atingiram maioria
absoluta nas urnas, o que gerou a sensação de falta de respaldo popular durante seu governo. Verificou-
se pouco avanço no processo de privatização das empresas nacionais mais importantes durante esse
período. O próximo governo foi o de Gonzalo Sanchéz de Lozada (1993-1997 e 1997-2002), onde o
8Crises econômicas e financeiras que recaíram sobre o Terceiro Mundo na metade dos anos 80, deflagradas pela declaração
de moratória da Dívida Mexicana em 1982.
processo de liberalização da NPE atingiu seu ápice (CUNHA, 2004). Durante o governo Lozada, um
grande desafio enfrentado foi a forte retração da economia boliviana, que até então atingia números
positivos após a adoção do PNE.
Ricardo Piedras (2008), economista e técnico da Petrobrás, pontua que mais uma série de
medidas liberalizantes começaram a ser tomadas durante o governo Lozada, o que incluiu a privatização
de empresas estatais nas áreas ferroviária, de telecomunicações, de transporte aéreo, energéticas
(petróleo, gás e energia elétrica), ampliação das reformas liberais e a busca por modernizar o país, não
gerando ganhos sociais consideráveis, entretanto. O mesmo presidente chegou a ser reeleito em 2002
(derrotando inclusive Evo Morales), quase mergulhando o país em uma situação de guerra civil9, em
2003. Após Sanchéz Lozada fugir do país (em 2003), o vice-presidente Carlos Mesa10 passou a
administrar o país, até o momento em que a falta de apoio político fez com que este renunciasse, em
2005. Assume, então, Eduardo Rodríguez, presidente do poder judiciário, que convocou as eleições que
aconteceram no final de 2005, tendo como vitorioso o atual presidente Evo Morales, por ampla maioria
(PIEDRAS, 2008).
Após a assinatura dos acordos com o Brasil (ao qual derivaram a construção do gasoduto Brasil-
Bolívia (GASBOL)) e da celebração do contrato entre YPFB e Petrobras, e também após este processo
de privatização-capitalização, a atividade petrolífera na Bolívia teve um desenvolvimento muito grande.
Três campos gigantes de gás natural foram descobertos: San Alberto (SAL), San Antonio (SAN) e
Margarita, em ordem cronológica. Os dois primeiros campos foram descobertos pelo consórcio
formado por Andina, Petrobras e a francesa Total, o terceiro campo foi descoberto pelo consórcio
formado por Repsol, a inglesa BG e a argentina PAE (PIEDRAS, 2008). De acordo com Barros (2010)
Essas alterações aumentaram consideravelmente a arrecadação do Estado, o que
permitiu ao governo a execução de uma série de novas ações sociais e econômicas,
garantindo a superação dos efeitos da crise de 2009 sem causar déficit fiscal ou
comprometer o combate às pressões inflacionárias. Houve um aumento de US$ 5
bilhões nas receitas fiscais devido à “nacionalização”. Historicamente, a Bolívia sofria
demasiadamente com os choques externos, em particular os que derrubaram os preços
dos minérios e do petróleo (que, indiretamente, definem o preço do gás natural). Em
2009, porém, isto não ocorreu, devido à menor vulnerabilidade externa e ao maior
dinamismo do mercado interno.
9 As revoltas começaram com o anúncio de um novo projeto de aplicação de impostos sobre os salários e com a
privatização dos serviços de fornecimento de água na região de Cochabamba, tendo chegado ao ápice após a divulgação do
projeto de exportar gás natural liquefeito através de portos chilenos (PIEDRAS, 2008).
10 [...] Nos últimos dias do governo de Carlos Mesa, vice de Sánchez de Lozada, foi promulgada a Nova Lei de
Hidrocarbonetos, que promoveu uma reforma ‘anti-neoliberal’, aumentando a participação do governo na renda petrolífera
e prometendo uma reestruturação do setor, com a volta da ação governamental através da YPFB, mantida até então como
empresa de gestão de contratos [...] (PIEDRAS, 2008).
rurais do país, as mais pobres. As medidas contra a produção da coca acabaram por gerar o aumento do
êxodo rural no país.
As relações com o Brasil no ramo petroleiro se tornaram estremecidas após a nacionalização de
postos de alguns postos de exploração de hidrocarbonetos (petróleo, gás natural e derivados) pelo
governo boliviano em 2006, o que incluíram algumas unidades produtivas da Petrobrás, onde o
governo boliviano utilizou-se inclusive de força militar. Este impasse acabou sendo resolvido por jogo
diplomático, mas houve a formação de algumas “ressalvas” por parte das empresas brasileiras (e do
mundo todo) sobre questões de novos investimentos na Bolívia, ao menos nos próximos anos que se
seguiram (PIEDRAS, 2008).
De acordo com a economista Mylena Soares de Araújo (2010), a balança comercial boliviana
após um período de déficits que compreendem o prazo de 2000 a 2004, começou a apresentar
superávits e tem mostrado sinais de que vem se equilibrando. Apresentando dados de avanços, Araújo
(2010) coloca que
Um dado positivo é a redução da porcentagem da população que se encontra abaixo
do nível de pobreza, de cerca de 70% em 2000, para cerca de 60% em 2008. A taxa de
desemprego no mesmo ano foi estimada em 7,5%.
Em 2008 o pais produziu ainda mais de 5 bilhões e meio de kWh (estimativa), sendo
54% oriunda de hidroelétricas. O consumo no mesmo ano foi estimado em 5,092
bilhões de kWh.
Isto representa avanços nas questões sociais do país e também tem mostrado que houveram
investimentos na área energética, o que não retira o país da lista dos mais pobres do mundo.
Podemos constatar que tem havido mudanças no quadro socioeconômico do país. Segundo
Barros (2010), houve aumento progressivo da arrecadação no setor público decorrentes das mudanças
na tributação dos hidrocarbonetos e também pelo crescimento econômico ocorrido nos quatro
primeiros anos do governo Morales através de uma série de programas sociais, bem como houve
melhoria no sistema de arrecadação. O país tem apresentado superávits fiscais nominais
constantemente, mesmo com o considerável aumento dos gastos públicos. Em outras palavras, ao
passo que o país se preparava para uma eventual futura crise econômica, houve o melhoramento e a
criação de uma série de incentivos (políticas públicas) ao crescimento dos setores sociais e econômicos
do país, mantendo a austeridade fiscal nas contas do governo.
Após os 3 primeiros anos do governo de Evo Morales, o PIB do país cresceu à taxa média de
5,2%, fechando o ano de 2009 em 3,5%, a maior taxa da América Latina em meio ao auge da crise
internacional. Nesse mesmo período, a formação bruta de capital fixo aumentou de 13% para 17%,
superando os anos 1990, mas que ainda é um índice baixo, mesmo se comparado aos índices
internacionais. Nesse contexto, houve considerável transferência de renda à população, através de
programas específicos desenvolvidos pelo governo. Em 2009, estes programas já alcançavam 27% da
população boliviana, ajudando a formar o conjunto de ações que definiram o crescimento positivo do
PIB (BARROS, 2010).
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 277
Conforme o economista Pedro Barros (2010), a inflação foi controlada durante todo o governo
Morales, sofrendo alta apenas nos anos de 2007 e 2008 (em torno de 11%), devido, sobretudo, ao
aumento dos preços internacionais das commodities no período, iniciando processo de reversão já em
2009, quando os preços internacionais dos alimentos recuaram, tornando a taxa de inflação boliviana
praticamente nula nesse ano. De acordo com o autor, o investimento público, que era de US$ 630
milhões em 2005, passou a ser de US$ 1, 85 bilhão (próximo a 10% do PIB) em 2009, sendo que
grande parte deste tem sido aplicado na modernização do país, sendo que cerca de 35% do
investimento público em 2009 foram destinados para a construção de estradas e rodovias e 20% para a
infraestrutura do setor de hidrocarbonetos, ocorrendo também uma importante mudança na
composição da origem destes investimentos. Houve ainda a expansão do crédito produtivo,
principalmente através do Banco de Desenvolvimento Produtivo (BDP) que emprestou mais de B$1
bilhão (ou US$ 142 milhões) a taxas de juros de 6% ao ano, com vista a combater a crise e aquecer a
economia, o que o governo considera ter sido responsável pela geração de 128 mil empregos, mesmo
em um período de recessão internacional (BARROS, 2010).
As empresas públicas bolivianas também desempenharam importante papel no crescimento da
economia boliviana e na contenção dos efeitos da atual recessão mundial no país, onde a capacidade
produtiva destas foram ampliadas, sendo que o investimento governamental e os fomentos industriais
foram destinados a todos os departamentos (províncias, estados) do país, descentralizando o repasse de
verbas. Este investimento nas empresas públicas, que em 2005 era de 37% de financiamento
doméstico, passou a ser de 70% em 2009. A pauta produtiva do país também tem se diversificado,
passando o país a produzir e exportar, açúcar, castanha, embalagens, papel e celulose, cimento,
produtos laticínios, energia elétrica ferro, minérios diversos, e, certamente, de hidrocarbonetos e
derivados (BARROS, 2010).
Outro importante ponto da economia e das diretrizes políticas bolivianas são a importância
conferida aos processos de integração regional, sobretudo à Comunidade Andina (CAN) e ao Mercado
Comum do Sul (Mercosul). Estes processos surgem como possibilidades de abertura de mercado,
fortalecimento do poder de barganha política no meio internacional, oportunidades de negócios, bem
como promove a aproximação das Nações americanas e através destes busca-se diminuir os riscos
internacionais.
parte do Mercosul, sem que deixasse de ser membro pleno da CAN. Do ponto de vista concreto, a
maior parte do comércio exterior boliviano já é com países do Mercosul, o que justifica sua pretensão
em fazer parte do bloco, sendo o Brasil o maior comprador de produtos bolivianos e o maior
fornecedor de importações, desde 200111. Em 2008, o Brasil e a Argentina já se caracterizavam como os
maiores parceiros comerciais bolivianos, onde a importação de hidrocarbonetos por estes representava
a metade das receitas de exportação boliviana. A Argentina também recebe uma parcela de produtos
manufaturados advindos da Bolívia. Outros parceiros comerciais importantes do país são os EUA,
Japão, Chile, China, Peru, Colômbia e Venezuela (ZUCCO JR., 2008).
É consenso que o Mercosul aprofundou o processo de abertura comercial entre os países do
bloco, o que tem sido promovido de forma gradual e se encontra em vias de evolução. Ao passo que o
Mercosul se consolida e evolui, uma série de acordos e tratados com outros blocos foram sendo
criados.
Na América Latina, a Comunidade Andina (CAN) é um dos blocos que mais se inter-
relacionam com o Mercosul, sendo a totalidade de seus países constituintes Estados associados do
Mercosul. Os Acordos de Complementação Econômica nº. 39, 56 e 59 são algumas das principais
diretrizes dessa relação, havendo ainda uma série de acordos em diversas áreas, sobretudo de integração
física, energética, outros. Conforme o economista e internacionalista José Ultermarda Silva (2006), a
Comunidade Andina tem por objetivo o desenvolvimento balanceado de seus membros, através da
integração e da cooperação econômica e social, buscando a aceleração do crescimento nesses países,
gerando empregos, a participação popular no processo e se transformando gradualmente em um
mercado comum latino-americano, bem como,
Reduzir a vulnerabilidade externa dos países-membros e impor sua posição no
contexto econômico internacional, reforçar a solidariedade regional e reduzir as
diferenças no desenvolvimento que existem entre os países e, por fim, definir metas
sociais orientadas para a melhoria da qualidade de vida dos diferentes grupos, com o
fito de promover o desenvolvimento comum (SILVA, 2006).
Dessa forma, a CAN tem atuado em prol da constituição de parcerias e associações para
promover o progresso comum, buscando a liberalização comercial entre seus membros como objetivo
do desenvolvimento econômico e social dos países andinos e de seus parceiros, objetivando ainda a
demonstração de sua importância nos negócios latino-americanos e no cenário internacional (SILVA,
2006).
Uma consideração sobre a Comunidade Andina é que assim como o Mercosul, sofre com o
problema da divergência decorrente da formação histórica entre os países latino-americanos, que
11 O Brasil passou a ser o maior país em volume de exportações para a Bolívia a partir de 2002. Desde 2003, a Bolívia vem
apresentando um superávit comercial com o Brasil, passando a representar 47% da balança comercial do país em 2006 (o
Brasil foi a origem de cerca de 20% das importações e o destino de aproximadamente 40% das exportações bolivianas).
Brasil e Argentina juntos compraram cerca de 45% das exportações e forneceram 35% das importações no período e o
fluxo comercial entre estes países tem crescido progressivamente (ZUCCO JR., 2008).
mesmo após anos de história e constantes avanços e conciliações, não foram totalmente superados, o
que emperra um maior aprofundamento das relações entre os Estados da região.
A Comunidade Andina firmou acordos constantes com o Mercosul, visando à formação de
convênios de financiamento para a dinamização do processo de integração regional e cooperação
econômica dentro do bloco, tendo em vista a amplificação do seu desenvolvimento. Os acordos
regulamentam as relações comerciais, abrangendo as previsões de integração física, de promoção
comercial e cooperação técnico-científica (SILVA, 2006).
Após a assinatura do Protocolo de Adesão formal ao Mercado Comum do Sul em dezembro de
2012, na figura de seu presidente Evo Morales, o Estado boliviano tem se deparado com alguns
empecilhos e dilemas sobre a adesão ao bloco e, conseguinte, das negociações do termo de sua inserção
e dos acordos que serão firmados. A maioria deles parte da própria sociedade boliviana e estão
relacionados aos possíveis problemas que serão causados pela entrada do país no Mercosul à economia
nacional. A Bolívia pretende ainda entrar para o Mercosul sem renunciar ao seu posto como membro
pleno da CAN, da qual faz parte desde sua fundação há mais de quatro décadas, o que foi anunciado
pela autoridade responsável pela negociação de convênios comerciais bolivianos (QUIROGA, 2012).
Segundo o jornalista Carlos A. Quiroga (2012), a incorporação da Bolívia ao Mercosul já era
esperada na capital La Paz, desde que o presidente Evo Morales anunciou que “aceitava um convite
oficial para que seu país se convertesse em membro pleno do grupo, ao qual está ligado atualmente
como associado”. Houve, entretanto, uma série de advertências empresariais no país, bem como se
gerou apreensão sobre os possíveis prejuízos que uma possível ruptura com a CAN representaria para a
Bolívia e para o povo boliviano, o que foi endossado pelos pareceres de analistas. O bloco que também
é integrado por Colômbia, Equador e Peru é um dos responsáveis por absorver a maior parte das
exportações da produção agrícola do país.
De acordo com o vice-ministro de Comércio Exterior do país, Pablo Guzmán, o governo
considera que o convite para pertencer ao Mercosul não é necessariamente um chamado para que o
país se retire da Comunidade Andina, mas sim um convite para que a Bolívia faça parte dos dois, visto
as boas relações comerciais entre o Mercosul e a CAN e que estes são os termos pelos quais o país foi
convidado a fazer parte do bloco. Segundo ele, o país já possui alguns benefícios e facilidades por ser
membro associado, mas espera manter e melhorar estes ao se tornar membro pleno do bloco. O vice-
ministro liderou a equipe da chancelaria boliviana que esteve negociando rapidamente os acordos
iniciais de ingresso da Bolívia ao Mercosul, o que foram revisados e eventualmente assinados durante a
cúpula do grupo em dezembro de 2012 no Brasil. A presente reunião foi a primeira da Venezuela como
membro pleno e contava ainda com a sanção política ao Paraguai, em cumprimento da cláusula
democrática expressa no Protocolo de Ushuaia. O presidente Evo Morales, em ocasião, disse que
mesmo ao aceitar o convite do Mercosul, manteria a relação com a Comunidade Andina, garantindo a
continuidade dos privilégios comerciais, nos moldes da Venezuela, só que sem renunciar ao seu posto
de membro-pleno (QUIROGA, 2012).
O mesmo documento conta com a recomendação de que os países do Mercosul devem se
esforçar pela superação da crise econômica mundial e a consequente recuperação econômica mundial e
da geração de emprego e renda, bem como os países devem estimular a complementação produtiva de
seus respectivos modelos econômicos. Os líderes afirmaram ainda que deve haver expressivos esforços
em prol do combate à pobreza e à miséria, contra a exclusão social e que os países devem se lançar em
busca do pleno desenvolvimento, com vistas à consolidar a democracia na região (QUIROGA, 2012).
Apesar da assinatura do protocolo de adesão ao Mercado Comum do Sul, a Bolívia tem se
deparado com a crítica de diversos setores da sociedade à possível adesão ao bloco. O Instituto
Boliviano de Comércio Exterior (IBCE) afirmou em nota que espera que a entrada do país como
membro pleno no Mercosul não caracterize um impedimento às negociações unilaterais e bilaterais do
país e que não prejudique as manobras comerciais bolivianas com outras regiões e blocos, ou seja, que a
Bolívia seja capaz de manter de forma autônoma e soberana suas diretrizes de política externa. Segundo
o gerente do IBCE, Gary Rodriguez (2012 apud AGÊNCIA EFE, 2012), a assinatura do protocolo de
adesão é um passo que “não acarretará novas possibilidades de comércio”.
Também pediu que o ingresso no bloco não afete às vendas da Bolívia na Comunidade Andina
(CAN), da qual é membro pleno, e que também não se imponha uma alta de tarifas para favorecer à
produção do Mercosul em detrimento das taxas da Ásia, dos Estados Unidos e da Europa, se referindo
ao caráter protecionista que o Mercosul tem assumido em algumas áreas. O Instituto de Comércio
Exterior boliviano apontou ainda a questão das barreiras para-tarifárias e não tarifárias que limitam de
forma concisa o acesso de produtos manufaturados aos mercados do Brasil e da Argentina, o que tem
prejudicado a produção boliviana pela falta de acesso a esses mercados, pedindo a sua suspensão. Uma
das visões que se tem é de que os mercados dos países do Mercosul, sobretudo do Brasil e Argentina
são extremamente competitivos (devido ao poder econômico dos dois países, bem como por seu
desenvolvimento tecnológico e científico estar bem mais avançado que no país), o que pode acarretar o
sufocamento da economia boliviana, com a invasão desordenada de produtos destes dois países ao
território do país, competindo fortemente com a produção local e freando a entrada dos produtos
bolivianos aos seus mercados, justamente através destes e de outros mecanismos (AGÊNCIA EFE,
2012).
Para o especialista, embora o livre acesso dos produtos bolivianos ao bloco esteja supostamente
garantido, produtos manufaturados e com valor agregado “encontram sistematicamente obstáculos
alfandegários, financeiros, burocráticos e legais que impossibilitam suas exportações” (Rodriguez, 2012
apud AGÊNCIA EFE, 2012). Pelo uso de tecnologias de ponta na produção e pelas vantagens no nível
de desenvolvimento, os países do Mercosul se mostram muito mais competitivos que os da Bolívia e
são fortes concorrentes comerciais, ao passo que a relação do país com a CAN assume um caráter de
complementaridade em relação às exportações e a produção.
Houveram ainda reservas por parte de alguns setores importantes da agricultura. Demétrio
Pérez (2012 apud AGÊNCIA EFE, 2012), presidente da Associação Nacional de Produtores de
Oleaginosas, levantou preocupação do setor, sobretudo sobre a situação da produção de soja e
derivados no país com a entrada no Mercosul, já que historicamente o principal mercado da soja
boliviana sempre foi a Comunidade Andina, já que a Bolívia é o único membro pleno produtor de soja
no bloco. O setor tem feito pressão ao governo para que este produto seja considerado nas negociações
das preferências tarifárias. O dirigente ressalta ainda que a produção de soja nos países do Mercosul
oferece risco à produção boliviana, dado que os países membros do bloco se utilizam de tecnologias
que ainda não foram nem aprovadas na Bolívia, o que otimiza consideravelmente as produções dos
países do Mercosul.
Considerações finais
Referências
AGÊNCIA EFE. Instituto Boliviano de Comércio Exterior critica entrada do país no MERCOSUL. Disponível em:
<http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI6363552-EI294,00-Instituto+Boliviano+de+Comercio+
Exterior+critica+entrada+do+pais+no+MercosMe.html>. Acesso em: 20 abr. 2013.
ARAUJO, Mylena Soares de. Percepções dos Sul-Americanos Sobre Dimensões Ligadas ao Empreendedorismo: os Casos do
Brasil, do Chile, da Venezuela, da Bolívia e do Uruguai (Dissertação). Disponível em:
<http://www.feac.ufal.br/mestrado/economia/sites/default/files/dissertacoes/dissertacao-MYLENA.pdf >.
Acesso em: 10 maio 2013.
BARROS, Pedro Silva. O Êxito Boliviano durante a Crise Mundial de 2008-2009. In. IPEA. Boletim de Economia e
Política Internacional, Nº. 2 Abr./Jun. 2010.
1. Introdução
O
Mercosul conta hoje com cinco Estados Partes, Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e
Venezuela, e mais cinco Estados Associados, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru.
No momento da sua criação em 26 de março de 1991, prevalecia a visão liberal do
regionalismo em que o Mercosul faria parte de um processo de liberalização mais abrangente
(GONÇALVES et al, 1998, p.89). No começo dos anos 2000 com a chegada ao poder de governos de
esquerda e centro-esquerda, o Mercosul passou a buscar novos rumos que pretendiam ir além dos
objetivos meramente econômicos de integração (VADELL ET AL, 2009; VEIGA; RÍOS, 2007).
Nesse sentido, a cooperação monetária e financeira cumpre um papel fundamental, não
somente econômico, mas também político. Conforme a Cepal (2012), os sistemas de pagamento são o
mecanismo mais antigo de cooperação financeira da América Latina. Em setembro de 2008 começou a
funcionar um acordo bilateral entre os bancos centrais de Brasil e Argentina que envolvia um Sistema
de Pagamentos em Moeda Local (SML). No ano seguinte foi criado o Sistema Único de Compensação
Regional de Pagamentos (Sucre) entre os países que compõe a Alternativa Bolivariana para os Povos da
Nossa América - Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP).2 Ainda que o Sucre tenha se realizado
depois, é notório que o acordo vem avançando mais rapidamente que o SML do Mercosul.
O objetivo deste artigo é analisar as possibilidades de cooperação monetária no Mercosul que
envolva a criação de um sistema de pagamentos regional (SPR). Para isso, faremos uma análise a
respeito do Sucre levantando quais características desse sistema podem servir de exemplo ao SML.
Além desta introdução o artigo está dividido em mais quatro seções. Na segunda seção serão
demonstradas as principais características dos sistemas de pagamentos regionais; na terceira será
analisada será analisada a formação do SML do Mercosul e do Sucre da Alba. Conforme veremos, a
experiência da Alba vem conseguindo resultados mais visíveis, apesar de se tratar de uma iniciativa
bastante ambiciosa. Na quarta, faremos uma breve avaliação sobre as vantagens em termos de
economia de divisas caso os países do Mercosul adotassem o SPR. Por fim, as considerações finais.
1Professores doutores do Departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)
1A Alba-TCP é atualmente integrada pela República Bolivariana da Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba, Nicarágua, São
Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda e Dominica. Mas apenas os cinco primeiros utilizam o Sucre.
2A Alba-TCP é atualmente integrada pela República Bolivariana da Venezuela, Bolívia, Equador, Cuba, Nicarágua, São
Vicente e Granadinas, Antígua e Barbuda e Dominica. Mas apenas os cinco primeiros utilizam o Sucre.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 284
Os Sistemas de Pagamento Regionais (doravante, SPR) são tidos como um primeiro passo na
direção de uma cooperação monetária mais profunda. São vistos comumentemente como arranjos
monetários que facilitam o comércio regional, na medida em que reduzem os custos de transação
através da liquidação de pagamentos em moedas locais. Também, deve-se enfocar seu impacto sobre o
uso de reservas internacionais nestas operações possibilitando uma redução de seu montante e
liberando seu uso para possíveis ajustes no balanço de pagamentos, protegendo a economia nacional de
choques externos que possam exigir ajustes recessivos (FRITZ ET AL, 2010, p.23; UNCTAD, 2011).
O seu modo de operação, sob a ótica dos usuários, é simples: caso uma firma peruana deseje
importar uma mercadoria e/ou contratar um serviço de uma firma colombiana, ela deve utilizar-se de
meios de pagamento aceitos na Colômbia. Ela pode adquirir o montante diretamente em pesos
colombianos ou, mais comum, em uma divisa, como o dólar para depois convertê-la na moeda
colombiana. Os custos relacionados com a conversão das moedas encarecem a transação – podendo até
inviabilizá-la, dependo do montante da operação.
Uma forma de evitá-los seria a criação de um SPR no qual, a partir de um acordo entre os
Bancos Centrais dos dois países, a firma peruana pagasse pelo serviço em novo-sol e a firma
colombiana recebesse em pesos colombianos. A transação ocorreria com uso apenas de moedas locais
sem a necessidade de operar com uma terceira moeda. A conversão das moedas ficaria sob
responsabilidade dos Bancos Centrais.
A redução no uso de moeda estrangeira no comércio intra-regional não é a única forma de
reduzir os custos deste comércio. É possível reduzir o número final de transações efetuadas pelo SPR
ao necessário para compensar os saldos líquidos entre os países. Estipula-se um período de tempo
durante o qual as operações, efetivadas diariamente, são contabilizadas através de uma Câmara de
Compensação criada pelos Bancos Centrais.
Ao fim do período, as transações de mesmo montante são canceladas e o volume final de cada
compensação refletiria somente a diferença entre vendas e compras acumuladas durante o período
estipulado. Logo, créditos e débitos são cancelados sem a necessidade de uso de divisas, restando
apenas o saldo final a ser liquidado. Caso cada transação seja liquidada individualmente, como num
sistema descentralizado, todas as compras e vendas envolveriam o uso de alguma moeda internacional.
Vejamos o quadro abaixo:
Essa vontade política é que fará que o SPR torne-se viável no longo-prazo, e possa servir como
passo inicial de uma cooperação monetária e financeira mais profunda.
A formação de um SRP no Mercosul teve seus primeiros passos com o acordo de Cooperação
mútua entre os bancos nacionais dos Estados Partes acordado em novembro de 1994. O acordo
ocorreu entre o Banco do Brasil, Banco da Nação Argentina, Banco da República Oriental do Uruguai
3 Na realidade no Tratado de Assunção que criou o MERCOSUL já estaca previsto à coordenação progressiva das políticas
macroeconômicas entre os Estados Partes. Cf. http://www.mercosul.gov.br/normativa/decisoes/2007/mercosul-cmc-dec-
no-25-07-1/mercosul-cmc-dec-no-25-07/
4 O Brasil sofreu uma fuga de capitais em janeiro de 1999 que levou a maxidesvalorização do câmbio. Em 2001 a Argentina
sofreu a pior crise econômica da sua história que terminou com o Plano de Conversibilidade que já durava 10 anos.
janeiro de 2010 e, ao contrario do SML no Mercosul, desde o inicio incorporou as principais economias
que integram a Alba5. De acordo com as autoridades dos países que constituem a Alba, a crise
financeira de 2008 reafirmou a necessidade de se construir uma nova arquitetura financeira regional que
reduza a vulnerabilidade externa e as assimetrias estruturais dos seus países, além de estimular a
capacidade produtiva e o comércio na região (CONSEJO, 2011; PUÑAL, 2009, p.80).
Conforme expresso pelo informe das autoridades do Sucre (Consejo, 2010), podemos citar pelo
menos sete objetivos do sistema: i) dissociar a utilização progressiva do dólar no comércio intra-
regional; ii) diminuir o uso de divisas para realização de pagamentos internacionais; iii) incoporar novos
atores aos fluxos de comércio exterior; iv) incentivar o equilibrio comercial entre os países
participantes, como um mecanismo para reduzir as assimetrias, gerar novos mecanismos estabilizadores
e fortalecer o próprio sistema; v) promover a expansão do comércio entre os países participantes, com
base em complementaridade produtiva; vi) proteger ante os impactos negativos das crises financeiras
globais; vii) estabelecer as bases para o aprofundamento de novos mecanismos de integração regional
nos ambitos politicos e sociais.
O Sucre vem obtendo resultados importantes. Embora a magnitude das transações efetuadas
via Sucre seja uma parcela pequena do comércio entre os países, deve-se levar em conta sua tendência
de crescimento desde que o sistema entrou em vigor, e o fato que encontra-se ainda na etapa de
implantação. Em 2010 o volume de comércio canalizado pelo Sucre foi de XSU 10.107.642,51; e, em
2012 foi de XSU 852.066.603,84.
Desde que entrou em funcionamento o SML também tem crescido substancialmente. Porém,
assim como o Sucre, ainda é uma parte muito pequena do comércio total entre Brasil e Argentina
(CEPAL, 2012, p.104).
Por outro lado, tanto o SML quanto o Sucre são bastante assimétricos. Segundo o BCB, de
janeiro a junho de 2013 o Brasil exportou para Argentina R$ 588.297.020,13 e importou somente R$
4.502.147,47 dentro do SML6. O mesmo padrão pode ser observado em relação ao Sucre: em 2012,
83,64% das importações dentro do sistema foram realizadas pela Venezuela, enquanto 81,41% das
exportações saíram do Equador (CONSEJO, 2012). Como reduzir essas assimetrias, é um desafio
considerável.
O Sucre possui alguns mecanismos que podem servir de parâmetro ao SML, inclusive com o
intuito de reduzir as assimetrias. Em primeiro lugar o Sucre possui uma Cámara Central de
Compensación de Pagos (CCC), no qual todas as operações realizadas entre os países participantes são
registradas. Apenas são autorizadas as transações que estejam diretamente ligadas ao comércio de bens
e serviços excluindo qualquer operação de caráter puramente financeiro (BCV, 2009, p.9).
5 Inicialmente com a Venezuela, Equador, Cuba e Bolívia, e depois com a entrada da Nicarágua que realizou sua primeira
operação com em fevereiro de 2013. Em março de 2013 o Uruguai também assinou sua adesão ao Sucre.
6 Cf. www.bcb.org.br
Atualmente o sistema oferece aos países deficitários formas alternativas de liquidarem seu saldo
negativo. É possível utilizar-se de crédito bilaterais entre os Bancos Centrais participantes ou efetuar
operações comerciais de venda futura – através de pagamento antecipado de exportações - ou ainda
utilizar-se do sobregiro intradiário através do Fondo de Reservas y Convergencia Comercial (FRCC)
(Consejo, 2013, p. 14).
Operado a partir do Banco de Desarrollo Económico y Social de Venezuela (BANDES), o
FRCC apresenta dois objetivos. Primeiramente, o Fundo contribui para o funcionamento da CCC,
fazendo a intermediação de recursos em sucres dos países com superávit até os países com déficit
comercial dentro do sistema, permitindo aos países deficitário financiamento durante (intradiário) e
após (interperíodo) o período de compensação (CONSEJO, 2013, p.19).
Em segundo lugar, o Fundo também provê financiamento de projetos dirigidos ao
desenvolvimento de atividades econômicas que impulsionem as exportações em benefício dos países
com déficits crônicos no comércio com os demais países membros, além de financiar políticas
anticíclicas em momentos de crises (CONSEJO, 2011, p.11). Os projetos de investimento devem ser
efetuados em território dos países signatários cujo capital também deve ter origem nos mesmos. A
possibilidade de que firmas tenham origem em mais de um país participante, estimula a formação de
cadeias produtivas regionais.
Portanto, o FRCC pode ser um instrumento relevante para reduzir as assimetrias comerciais,
evitando ajustes recessivos por parte dos países deficitários, o que o torna uma importante inovação do
sistema.
A criação de uma moeda virtual é a principal característica que distingue o Sucre de outras
iniciativas regionais de sistema de pagamentos na América Latina (BCE, 2012). A princípio o sucre
(XSU) não circulará como moeda de curso forçado, sendo utilizada exclusivamente como unidade de
conta e meio de pagamento pelos bancos centrais dos países membros. O seu valor é calculado usando
duas cestas de moedas: i) uma cesta de moedas intraregional, na qual abrange as taxas de câmbio das
moedas nacionais dos países membros do Sucre, sendo que cada moeda na formação da cesta
corresponde ao peso relativo das economias e, ii) uma cesta de moedas extraregional com as principais
moedas conversíveis; são elas: o dólar, o euro, a libra esterlina, o iene e o franco suíço. As flutuações
nas duas cestas de moedas têm impacto no valor do sucre (TRUJILLO, 2012). Deste modo, espera-se
que a evolução do sucre seja estável e que as diferenças entre as taxas de câmbio entre os países
participantes sejam reduzidas, incentivando o comércio.
Deste modo, ainda que o SPR seja frequentemente entendido apenas como um sistema de
pagamento direcionado para reduzir custos de transação, o Sucre é uma ação mais ousada: faz parte de
um plano com o objetivo de avançar na integração produtiva das economias participantes. A adoção de
uma unidade de conta, que exige certa coordenação cambial, permite que seja um passo inicial para a
criação de uma nova arquitetura financeira regional, essencial para que os projetos de desenvolvimento
e as estratégias de integração política e econômica da região possam evoluir.
É possível, ainda que de forma inicial7, procurar avaliar o quanto que os países do Mercosul
economizariam caso adotassem um mecanismo de pagamentos regionais de maneira a efetuar todo o
comércio intra-bloco em moedas locais, sem a necessidade do uso de dólares.
Isso pode ser feito considerando o funcionamento de um acordo semelhante ao descrito na
parte 2 deste artigo. Analisando apenas os últimos cinco anos, a Argentina exportou para o Mercosul
um total de US$87.639 milhões e importou um total de US$ 92.653 milhões (ver tabela abaixo8).
7 Cada país do Mercosul possui uma legislação própria sobre o acesso aos mercados de câmbio de forma que os custos
envolvidos nestas operações são diferenciados em cada país. Uma análise que englobe todos estes custos foge do escopo
deste trabalho.
8 Todos os números desta seção foram obtidos no Sistema de Información de Comercio Exterior da ALADI. <
http://consultaweb.aladi.org/sicoex/jsf/home.seam>
5. Considerações finais
O poder crescente adquirido pelo mercado financeiro internacional nas últimas três décadas tem
desafiado de forma permanente os bancos centrais em todo mundo, com a única provável exceção do
Fed, banco central norte-americano. Nessa conjuntura a cooperação monetária ganha uma importância
enorme.
Em relação aos países periféricos, a cooperação monetária ganha uma dimensão ainda maior
por se tratar de economias que não emitem moeda conversível, portanto por serem mais propensas ao
efeito contágio de crises financeiras e a excessiva volatilidade da taxa de câmbio. A cooperação
monetária, não necessariamente deve terminar em união monetária. Porém, se o objetivo for o
aprofundamento das relações financeiras é indispensável à adoção de uma unidade de conta, já que
neste caso a relação envolveria a emissão de títulos.
Conforme destacamos, o Sucre ao adotar uma unidade de conta e mecanismos com o objetivo
de reduzir as assimetrias dos países envolvidos transformou-se numa forma de cooperação mais
avançada. Neste caso, não há como deixar de considerar o papel de liderança que Venezuela vem
cumprindo na promoção do sistema. Esse é um papel que evidentemente cabe ao Brasil no caso do
SML do Mercosul.
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1. Introdução
T
anto em perspectiva histórica, quanto numa análise mais contemporânea do processo de
desenvolvimento econômico latino-americano, as commodities energéticas possuem
importante papel na esfera macroeconômica, assim como nas políticas industriais e de
desenvolvimento regional, tendo em vista o potencial da região em relação ao setor energético. A
dependência das commodities e a abundância de recursos naturais podem ser entendidas como
“maldição” e o modelo de vantagens comparativas pode falhar nestas circunstâncias. Por outro lado,
existem exemplos de resultados positivos derivados de boa governança; e de uma combinação entre
condições naturais, estrutura produtiva, instituições e relações político-econômicas. No contexto da
América do Sul vemos Brasil e Venezuela como principais produtores das commodities energéticas.
Assim, este trabalho objetiva esclarecer alguns conceitos, objetivos, resultados e perspectivas
relacionadas à produção das commodities energéticas na região, tendo em conta as peculiariadades
econômicas, sociais e diplomáticas da região como um todo e principalmente dos países citados.
As commodities, segundo Sinott et al (2010), se caracterizam por serem produtos com baixo
processamento industrial e elevado conteúdo de recursos naturais. Em estudo do Banco Mundial (2010,
p.3) são definidas “como produtos comercializados a granel, sem marca, com pouco processamento,
cujas qualidades e características podem ser especificadas objetivamente e que são fornecidas sem
diferenciação qualitativa em certo mercado”. Assim, as commodities energéticas são aquelas que se
destinam à oferta de energia, conforme o conceito acima.
As commodities energéticas apresentam características diferenciadas de outros produtos no que
tange as implicações econômicas, sociais e políticas. Inicialmente, as altas rendas econômicas deixariam
os países suscetíveis à doença holandesa2. Por outro lado, a exploração de recursos minerais exige
investimentos iniciais altos e prazos maiores de retornos incertos, desincentivando investimentos
privados. Outro ponto, é que a maioria dos recursos naturais não é renovável, embora os avanços
numa determinada região ou país. Estes novos recursos com preço de mercado superior ao custo marginal de produção,
gerariam uma apreciação da taxa de câmbio real, produzindo uma externalidade negativa sobre o setor industrial, segundo
Bresser-Pereira (2008).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 293
Nesta última década, como visto no gráfico acima, ocorre um ciclo de preços em alta, peculiar
pela duração e abrangência de produtos; com destaque para as commodities energéticas. Isso se explica
pelo deslocamento da produção para áreas de custos mais elevados, progresso técnico, pelo cartel da
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e produção monopolizada. A OECD
destaca,
[...] como fator básico de aumento de preços as mudanças ocorridas no âmbito da
oferta e, mais precisamente, aos custos crescentes da produção de energia e sua
propagação direta e indireta para as demais commodities. Assim, teríamos o
encarecimento da produção de energéticos, sobretudo petróleo, com o deslocamento
da exploração para áreas com custos mais elevados, com destaque para os campos de
águas profundas. Este aumento de preços torna competitiva a produção de
biocombustíveis que por sua vez disputam terras agricultáveis com os alimentos e
matérias-primas, restringindo a sua produção e pressionando preços. (OECD, 2011
apud CARNEIRO, 2012; pp.21)
Até a década de 1940, o setor energético na América Latina operava através de concessões a
empresas estrangeiras em seus sistemas de geração, transporte e distribuição. A partir daí o
desenvolvimento do setor energético na América Latina foi constituído através do modelo europeu que
encarregava às empresas estatais de abastecer a crescente demanda de produtos energéticos. As
empresas públicas de eletricidade, petróleo e de gás estabeleceram planos de negócios, muitas vezes
coordenados pelo Estado, com o objetivo de ofertar os níveis adequados das demandas impulsionadas
pela urbanização e modernização das sociedades.
Conforme Kozulj (2008), durante os anos de 1950 até 1970, as empresas públicas buscaram
manter seus investimentos com apenas rendas geradas a partir de seu fluxo de caixa e com aportes do
Estado. Nos anos 1980, muitas sofreram com desequilíbrios financeiros e somado a isso, a alta taxa de
juros tornou custoso o crédito para obras de infraestrutura. Paralelo ao processo de reprimarização na
região, que ganhou força nos anos 1990, se produz novamente os regimes de concessões, licenças e
participação das empresas estrangeiras. As reformas econômicas tiveram efeitos na área energética
havendo a criação de marcos regulatório e legislação das atividades. Este último estabeleceu uma
separação entre as atividades de produção de gás, geração de energia elétrica, distribuição e
comercialização de gás e eletricidade.
A comparação da América Latina aos países desenvolvidos com abundância de recursos
naturais, mostra segundo Sinott et al (2010) uma dependência da primeira em relação ao produto,
exportação e arrecadação fiscal nesses recursos devido à baixa diversificação econômica. Carneiro
(2012) cita que a região optou por uma estratégia de rápida abertura e integração que conduziu a uma
re-especialização da estrutura produtiva em setores baseados em recursos naturais.
Conforme o Sinott et al (2010), a produção de commodities energéticas geralmente se associa a
grandes rendas com consideráveis entradas de moeda estrangeira. Porém, caso ocorra concentração das
exportações em poucos produtos, o crescimento econômico em longo prazo tende a reduzir. A doença
holandesa teria relação negativa com o crescimento, mas estudos recentes constataram que a
abundância de commodities ou exerce efeito positivo ou não exerce efeito algum. O que se questiona é
como se aloca com eficiência as rendas, sem que haja fundos desperdiçados. Isso depende da qualidade
institucional do governo podendo variar os retornos sociais dos gastos das receitas.
É importante garantir que o setor energético contribua com todo seu potencial para o
crescimento econômico. A necessidade de grandes investimentos iniciais acaba por direcionar esses
projetos a propriedade pública e existem na região empresas deste tipo dirigidas com eficiência. A
propriedade privada tende a limitar as políticas redistributivas, pois se associa a uma apropriação fiscal
mais baixa do governo. Em geral, as estatizações e privatizações do setor de recursos naturais são
fenômenos cíclicos e se manifestam em ondas que envolvem vários países.
A geração elétrica fica em grande parte com a energia hidrelétrica e o gás. Na indústria e nas
residências, o consumo de energia fica dividido entre biocombustíveis, derivados de petróleo, gás e
eletricidade. No transporte os biocombustíveis já detém maior parte que o gás.
2003, aproximam os valores de ambos na produção petrolífera. Por outro lado, a Argentina perdeu a
posição de terceira maior produtora para a Colômbia a partir de 2010. Cabe destacar que o México,
também considerado um país latino americano, apresenta produção semelhante a da Venezuela.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da BP Statistical Review of World Energy 2013
A América Latina possui alguns pontos positivos na área energética. Dentre eles, o controle de
certa capacidade tecnológica, boa capacidade de investimento, experiência de intercâmbio energético
via acordos de cooperação e gasodutos, interesse dos governos em superar as limitações do setor e a
coordenação e estudos da Organização Latino-Americana de Energia (Olade).
Segundo Hernández-Barbarito (2009), o panorama presente condicionou a integração regional
em busca de melhores condições e satisfação da demanda regional. A Aliança Bolivariana para as
Américas (Alba) destaca a solidariedade social e complementariedade econômica para alcançar a
segurança alimentar e energética em moldes justos, além de investimentos em infraestrutura na região.
Além disso, existe a tentativa de independência financeira com o Banco do Sul e Banco da Alba
substituindo o FMI e o BM. A proposta de integração energética partiu da Venezuela e desde 2005 vem
avançando.
Kozulj (2008) alerta que a integração se faz mais necessária, mas também é incerta frente às
várias opções e variações que estão sendo analisadas. A entrada das reservas da Venezuela no cenário
do abastecimento da região pode ser o mais conveniente com o cenário mundial incerto e complexo. A
construção do gasoduto latino americano equilibraria o balanço energético da região assegurando gás
em longo prazo. Mas a questão é se o Brasil aceitará isso e se os EUA permitirão a liderança do
governo Venezuelano. O balanço energético da região mostra a disponibilidade de recursos para a
autossuficiência dos países.
Quanto ao caso brasileiro, no período pós 1980, a variação da renda devido aos programas de
estabilização e redução da inflação, gerou aumentos na demanda. A crise da dívida que assolou o
continente abriu caminho para os experimentos liberais a partir de três vetores segundo Carneiro
(2008): a abertura comercial, a abertura financeira e redução da pobreza. Neste contexto, Coutinho
(1997) apud Carneiro (2008) coloca que o impacto da abertura posta e da apreciação da moeda levou a
uma especialização regressiva da indústria, com queda da participação no PIB e redução do peso de
setores intensivos em tecnologia. Palma (2005) sugere para o caso brasileiro, uma forma particular de
doença holandesa3, onde o setor de serviços tende a ganhar maior peso.
Após 1999, indústrias importantes estagnaram como transformação e construção civil. A
melhora deve-se a segmentos como telecomunicações e indústria extrativa. Carneiro (2008) observa que
de 1996 a 2006 o único segmento que conseguiu adensar as cadeias produtivas foi o de recursos
naturais, explicada pelo crescimento do segmento de Petróleo. Quanto à indústria intensiva em
tecnologia ocorre perda de relevância. Segmento de notória especialização e importância é a indústria
intensiva em escala4, isso devido à produção das chamadas commodities industriais baseadas em
recursos naturais.
A inserção externa da indústria brasileira confirma o padrão de especialização, uma pauta
exportadora concentrada em commodities. Porém, segundo Vidal (2008), as exportações têm crescido e
há saldo comercial positivo, com aumento em recursos naturais e algumas manufatureiras. O
crescimento e diversificação das exportações é uma realidade única na região, devido as transnacionais
com matriz no Brasil.
3 Conforme o autor, a doença holandesa teria sido causada pela mudança súbita do regime de política econômica. Não
sendo originada pela descoberta de recursos naturais ou pelo desenvolvimento do setor de exportação de serviços. Além
disso, as políticas neoliberais levaram a um cenário de re-especialização da estrutura produtiva e reprimarização.
4 Apresenta ampla economia de escala de processo, learning e organizacionais, bem como uma elevada complexidade nas
atividades de engenharia. Destaque para segmentos como: metalurgia, papel, petroquímica e material de transporte.
Segundo a Fiesp (2010), o Brasil, é o décimo maior consumidor mundial de energia sendo o
maior produtor e demandante da região. As novas descobertas na camada pré-sal, permitirão que o país
se torne um exportador líquido.
O desenvolvimento do setor energético e da economia do país esteve atrelado à Petrobrás. Esta
apresenta influência internacional, buscando liderar o setor energético na região, com notória evolução
em inovações e detenção de alta tecnologia na produção de energias tradicionais e em energias
renováveis.
Em 2011, José Gabrielli5, em reunião sobre o setor de petróleo e gás na Federação das
Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) apresentou suas perspectivas para o setor energético, dizendo que
nos próximos anos a demanda aumentará mais que a mundial e será puxada pelos países emergentes.
Completou mostrando boas perspectivas em razão das descobertas, e que resta como solução para a
Petrobrás, construir novas refinarias. A infraestrutura energética alcançou boas taxas de investimento se
comparadas aos demais setores. Porém, a divisão das rendas petrolíferas6 com os governos
subnacionais tem causado discussões.
Fonte: IEA
5 PhD em economia pela Boston University e presidente da Petrobrás entre 2005 e 2012.
6 Conforme Caselli e Michaels (2009) apud Sinnott et al (2010), “aumentos nas receitas municipais, oriundas da exploração
do petróleo, e o crescimento das despesas não foram acompanhados por melhoria correspondente no fornecimento de
bens e serviços públicos”. Outros pesquisadores encontraram evidências de que as grandes transferências para os
municípios brasileiros elevaram o grau de corrupção política. Essa seria mais uma “maldição”, porém Perry e Oliveira
(2009) apud Sinnott et al (2010) advertem que os efeitos negativos são evitáveis dependendo de qualidade institucional,
capacidade administrativa e políticas públicas.
O consumo de gás natural foi mais da metade importado da Bolívia, mas especialistas indicam
reservas gigantescas e com isso a oferta pode aumentar. É prevista a autossuficiência do produto dentro
de alguns anos. Nas exportações, destacam-se biocombustíveis, petróleo e seus derivados. A geração
elétrica se concentra em hidrelétricas.
Os biocombustíveis possuem grande participação, com destaque em setores como indústria e
transportes. O Brasil é líder no cenário internacional de biocombustíveis, sendo o maior exportador e
segundo maior produtor mundial de etanol conforme Fiesp (2010). A experiência da utilização de
etanol remonta da década de 1970 com o Pró-Álcool.
Vidal (2008) sugere que as exportações tendem a crescer com os altos preços do petróleo, o
aumento das reservas e sua boa capacidade de produção. O saldo da conta corrente é positivo e
equivale a mais de 10% do PIB, desde 2003, mesmo com o crescimento das importações. Em 2005, o
governo anunciou que as empresas onde operavam convênios deveriam transformar-se em mistas.
Baruco (2011) nota a participação do petróleo do setor público nas exportações totais que passaram de
78,3% em 1999 para 94,7% em 2010.
O país é o maior produtor e exportador de petróleo da região e pertence a Organização dos
Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Como Furtado analisou, a sobrevalorização da moeda
constitui um mecanismo de distribuição dos benefícios da alta produtividade do setor petroleiro e a
forma como o governo participa dos lucros da indústria petrolífera é o fator dinâmico da economia
venezuelana.
Tabela 3: Venezuela: Balanço dos Principais
Produtos Energéticos em ktep (2009)
Derivados de
Carvão Petróleo Gás Natural Hidrelétrica Biocombustível Eletricidade Total
Petróleo
Produção 6418 168164 0 20680 7728 541 0 203531
Importação 0 0 0 1717 0 0 22 1739
Exportação -6188 -90364 -34354 0 0 0 -54 -130960
Oferta Total de Energia Primária 52 68717 -32504 22397 7728 541 -32 66898
Plantas de eletricidade 0 0 -4338 -4703 -7728 0 10616 -6152
Refinarias de Petróleo 0 -62287 60959 0 0 0 0 -1328
Uso Próprio na Indústria Energética 0 0 -6280 -4567 0 0 -266 -11114
Consumo Final por setor 52 0 25313 12035 0 525 6955 44879
Indústria 52 0 5403 10529 0 331 3067 19382
Transporte 0 0 17759 10 0 0 25 17794
Residencial 0 0 1496 1151 0 194 1980 4821
Comercial e Serviços Públicos 0 0 17 345 0 0 1843 2205
Agricultura 0 0 0 0 0 0 39 39
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da IEA
Conforme Kozulj (2008), o setor petroleiro conviveu com concessões de exploração a empresas
estrangeiras, mas houve a nacionalização e mudanças de legislação a partir da primeira crise petroleira
mundial. A presença estatal acabou por promover as reservas dos recursos petroleiros. O consumo de
energia aumenta gradativamente para suprir a demanda interna advinda dos setores que se encontram
em crescimento. O país cresceu entre 2003 e 2008 em média 7%, mostrando o impacto positivo das
exportações de petróleo e destas no mercado interno.
5. Conclusão
A doença holandesa teria relação negativa com o crescimento, mas estudos recentes
constataram que a abundância de commodities ou exerce efeito positivo ou não exerce efeito algum. O
que se questiona é como se aloca com eficiência as rendas, sem que haja fundos desperdiçados. Isso
depende da qualidade institucional do governo, podendo haver variações dos retornos sociais com os
gastos. O balanço energético da região mostra a disponibilidade de recursos para a autossuficiência dos
países. A região possui o controle de certa capacidade tecnológica, capacidade de investimento,
experiência de intercâmbio energético e interesse dos governos. A integração energética deve focar na
luta contra a pobreza, na criação de empregos produtivos e construção de um desenvolvimento
sustentável. Assim as perspectivas são positivas quanto às commodities, com boas tendências de
produtividade tanto quanto se comparado a outros setores. Além de gerar externalidades positivas na
produção, semelhantes ao setor de manufaturas.
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1. Introdução
O
Mercado Comum do Sul, ou Mercosul, foi constituído por meio do Tratado de Assunção,
em 26 de março de 1991, formado inicialmente por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Sua instituição veio de encontro às demandas de ampliação dos mercados dos Estados
Partes, a partir do entendimento de que a integração poderia lograr a tais países melhor inserção
internacional. Hoje, o bloco já conta com a incorporação da Venezuela, da Bolívia (em fase de adesão)
e com a associação de outros países como Chile, Colômbia, Peru, Equador, Guiana e Suriname
(MERCOSUL, 2013a).
Além dos objetivos descritos no Tratado de Assunção diretamente relacionados ao propósito de
dinamizar a economia dos países da região, a necessidade de promoção do desenvolvimento científico e
tecnológico e da modernização das economias dos países do bloco também foi descrito como um dos
objetivos do Mercosul (MERCOSUL, 1991a).
A integração pode ser considerada como uma forma de cooperação entre Estados, sendo mais
complexa e ampla do que a cooperação internacional, uma vez que pode resultar em novas unidades
políticas. Assim, abandonar um processo de integração pode gerar altos custos para os governos, em
especial quando o processo já gerou um alto grau de interação entre os atores envolvidos (MARIANO,
2007).
Para Keohane (1984), a cooperação internacional é um processo de coordenação de políticas
por meio da qual os atores ajustam seu comportamento às preferências reais ou esperadas dos outros
atores. De modo mais específico, no Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA)
define cooperação internacional como um mecanismo por meio do qual um país ou uma instituição
pode promover o intercâmbio de experiência e de conhecimento técnico, científico, tecnológico e
cultural. Tal cooperação se daria por meio da implantação de programas e projetos em parceria com
outros países ou instituições (ANVISA, 2013).
1Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: santosmichelle1784@gmail.com
2 Doutora em Relações Internacionais (política internacional comparada) pela Universidade de Brasília. Professora da
graduação em Ciências Econômicas e do mestrado em Ciência Política da Universidade Federal de Goiás (UFG). Atua nas
seguintes linhas de pesquisa: regime e política comercial, avaliação de políticas públicas. E-mail: andrealucena@face.ufg.br
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 304
Enquanto isso, cooperação técnica, de acordo com a Agência Brasileira de Cooperação (ABC),
é operacionalizada por meio de programas que permitam transferir ou compartilhar conhecimentos,
experiências e boas práticas. Tal compartilhamento se daria por meio do desenvolvimento das
capacidades humanas e institucionais a fim de promover benefícios duradouros (ABC, 2013a).
descrição da cooperação entre agências e órgãos de cooperação dos Estados Partes. Esta pode servir
para a aproximação dos Estados Partes em matéria de cooperação, por meio do intercâmbio de
informações e do aprofundamento das relações de cooperação. Ademais, a referida aproximação pode
contribuir com a definição dos mecanismos comuns de cooperação entre os estados, e com o
planejamento, monitoramento e avaliação das iniciativas de cooperação do bloco em todas as suas
modalidades (MERCOSUL, 2012a).
Além da definição das modalidades de cooperação, as novas diretrizes trouxeram o
entendimento do bloco acerca dos princípios que devem nortear os processos de cooperação. Os
princípios gerais estabeleceram que a cooperação deve ser utilizada como instrumento para aprofundar
as relações externas do Mercosul, que os mecanismos de prestação de contas da cooperação devem ser
aperfeiçoados, pois a transparência deve ser compreendida como um elemento fundamental na política
de cooperação do bloco, e, por fim, que os projetos devem ser geridos de modo a alcançar os objetivos
definidos em seu planejamento (MERCOSUL, 2012a).
Também foram definidos princípios para nortear a cooperação recebida pelo bloco. Assim, a
cooperação recebida deve ser definida pelo Mercosul, ou seja, é o bloco quem deve identificar suas
próprias necessidades, deve contribuir para o processo de integração e deve estar de acordo com os
interesses do bloco. A destinação de recursos deve dar prioridade à formação de atores locais, a fim de
fortalecer as capacidades institucionais do bloco, e o envio dos recursos deve ser otimizado, reduzindo
custos desnecessários e aumentando o alcance dos resultados da cooperação (MERCOSUL, 2012a).
Em consonância com a inclusão inédita de objetivos relacionados à promoção e ao
desenvolvimento de terceiros países e de outros processos de integração, foram descritos, nas diretrizes,
os princípios da cooperação oferecida pelo Mercosul. Assim, a cooperação prestada pelo bloco deverá
ser pautada pelos princípios de: Solidariedade, em especial no relacionamento com países em
desenvolvimento; Horizontalidade, devendo a cooperação ser estabelecida de forma voluntária por
ambas as partes; Consenso, a execução da cooperação deve ser de comum acordo entre as partes;
Equidade, uma vez que os benefícios da cooperação devem ser distribuídos de forma equitativa entre
todos os participantes, e os custos, por sua vez, devem ser assumidos conforme a possibilidades de
cada parceiro (MERCOSUL, 2012a).
Na mesma data da aprovação da “Política de Cooperação Internacional do Mercosul”, o CMC
aprovou a decisão n° 10/12, que instituiu o Grupo de Cooperação Internacional (GCI), formado por
um coordenador titular e um alterno designados por cada Estado Parte. Ele foi criado considerando a
conveniência da existência de um único órgão que centralizasse as ações de cooperação do bloco e o
interesse de ampliar o papel do Mercosul como um ator envolvido em ações de cooperação horizontal
(MERCOSUL, 2012b).
O GCI passou a ser o único órgão competente para tratar toda a cooperação técnica do bloco,
tornando o Comitê de Cooperação Técnica inexistente. O GCI foi encarregado de aplicar e atualizar a
4. Considerações finais
Cooperação Técnica (CCT), que a partir de então guiaria as ações de cooperação do bloco, sob as
orientações do GMC. A resolução 77/97, cuja aprovação foi justificada devido ao aumento das
demandas de cooperação técnica, estabeleceu as regras para a ação do comitê e os procedimentos que
ele deveria adotar, atualizados pela resolução 57/05.
Relacionadas à aprovação das novas diretrizes, também existiram outras normativas que
alteraram a ordem das responsabilidades pela cooperação técnica do bloco. Por meio da decisão n°
10/12 foi criado o Grupo de Cooperação Internacional (GCI), com o objetivo de centralizar as ações
de cooperação internacional. Com sua criação, foi extinto o Comitê de Cooperação Internacional, que
havia sido criado pela resolução 26/92. A resolução 37/12 criou a Unidade Técnica e Cooperação
Internacional (UTCI), como auxiliar do GCI.
Ainda que as diretrizes tenham incluído as modalidades de cooperação horizontal, triangular e
intra-Mercosul, no que se refere à cooperação horizontal, o bloco ainda não firmou nenhum acordo
para prestar cooperação a outros países ou processos de integração. Enquanto isso, as modalidades de
cooperação triangular e intra-Mercosul já tiveram convênios firmados mesmo antes da aprovação das
novas diretrizes (ABC, 2013b). Assim, vê-se que as novas diretrizes vieram normatizar e atualizar
processos de cooperação já existentes e, ao mesmo tempo, promover o ordenamento inicial para
possíveis acordos de cooperação horizontal.
Referências
Introdução
O
financiamento da integração será aqui entendido como sendo todos os instrumentos
financeiros utilizados sob acordos ou convênios firmados entre as economias regionais
para respaldar movimentos característicos tais como intensificação dos fluxos de
comércio, complementaridade produtiva, crescimento equitativo entre os países-parte e amparar seus
balanços de pagamentos. Dessa forma, instituições financeiras regionais datadas do pós- Segunda
Guerra Mundial têm em sua base fornecer recursos para aprofundar a integração econômica regional
facilitando o comércio e financiando investimentos. Banco Regional de Desenvolvimento da América
Latina (CAF, 1968) e Fonplata (1976) serão aqui tratadas como instituições que outorgam empréstimos
a seus países membros – no caso da CAF são acionistas – para investimentos em diferentes setores,
bem como se valem de uma dinâmica específica de funding. O papel do Estado no financiamento da
integração sul-americana será, portanto, analisado a partir de ambas essas instituições, do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), dada a sua mais expressiva participação na integração sul-
americana a partir de 2000s. O objetivo deste trabalho é expor os esquemas de financiamento da
integração econômica sul-americana. Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) e
BNDES serão apresentados como parâmetro de comparação.
Na primeira seção as necessidades da integração serão analisadas e na segunda, as ações
principais e a estrutura das principais instituições financeiras regionais.
O panorama da integração latino-americana nos anos 1990 não se mostrou promissor até
mesmo quanto à intensificação dos fluxos de comércio entre os países-parte. Veiga e Ríos (2007)
destacam que Mercosul e CAN seriam aqueles esquemas de integração regional que mais avançaram em
termos de liberalização comercial, sendo que no Mercosul, as exceções aos produtos automotivos e ao
açúcar, em 2006, teriam sido de 93% e em termos de linhas, 80%, enquanto que na CAN, a
liberalização teria sido integral dois acordos sub-regionais que explicitamente optaram pelo modelo de
união aduaneira e por projetos de integração mais profundos foram capazes de estabelecer, nos últimos
quinze anos, áreas de livre comércio com cobertura expressiva – objetivo que [...] é apenas uma meta
intermediária” (VEIGA e RÍOS:2007:10).
No início dos anos 2000, o movimento de ‘virada à esquerda’ (FIORI, 2011) dos países sul-
americanos representou a criação de fundamentos que permitiriam o resgate de idéias
desenvolvimentistas. Um dos aspectos mais notáveis deste novo contexto é a Unasul (União Sul-
Americana de Nações) cujo início se deu com a criação – sob a liderança brasileira –, em 2000, da Iirsa
(Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana). A incorporação dos projetos da
Iniciativa para Integração de Infraestrutura Regional Sul-Americana (Iirsa) pelo Conselho de
Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan), o que de acordo com TEIXEIRA e DESIDERÁ (2012) seria
um meio para abandonar a perspectiva de criação de corredores de exportação (SARTI e HIRATUKA,
2010; GUDYNAS, 2008) e, com vistas à integração de cadeias produtivas entre os países sul-
americanos, promover a integração física entre os países do continente.
Em 2009, os países membros da Unasul criaram o Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e
Planejamento (Cosiplan) com vistas a conferir maior complexidade política e estratégica para as
atividades de integração de infraestrutura física regional. Dessa forma, pretende-se fazer com que a
gestão dos recursos para o financiamento do investimento em infraestrutura não esteja à margem da
promoção da integração econômica e do desenvolvimento (CALIXTRE e BARROS, 2010). O relativo
descolamento das propostas de integração financeira e da criação da moeda única são aspectos
relevantes nessa retomada do regionalismo desenvolvimentista. A Nova Arquitetura Financeira
Regional (NAFR) objetiva reduzir a dependência dos países sul-americanos em relação ao dólar, bem
como custos do comércio, bem como financiar o desenvolvimento econômico da América do Sul
autonomamente em relação a instituições como BID e Banco Mundial (FURTADO, 2008). Desse
modo, no horizonte da NAFR, está a proposta do Banco do Sul que buscaria a concessão de
empréstimos além dos critérios de rentabilidade dos investimentos (FURTADO, 2008; CIA, 2012).
Foram estabelecidos nove eixos de integração e desenvolvimento (EID) para o território sul-
americano, os quais contemplam porções relativamente próximas em termos geográficos,
sócioeconômicos e produtivos para estabelecer os investimentos necessários para energia,
telecomunicações e transportes que deverão conectar os países sul-americanos em prol de uma inserção
competitiva nos mercados internacionais, bem como deverão impulsionar ligações de cadeias
produtivas. Assim, ao todo são 587 projetos estimados em US$ 157 bilhões dos quais apenas 85 estão
concluídos e que representam em torno de 10% do investimento total estimado e 176 estão em
execução, o equivalente a 48% do montante estimado (tabela 1).
Tesouro Nacional segue sendo a principal fonte de recursos da carteira Cosiplan. São 355
projetos ou US$ 100 bilhões, dos quais 307 sob respaldo público (US$ 63 bilhões); trinta e nove estão
sob público-privado para investimento estimado de US$ 35 bilhões e nove projetos são de alçada
privada, perfazendo US$ 3 bilhões. Banco Regional de Desenvolvimento da América Latina (CAF), por
sua vez, consta em vinte e oito projetos apenas cujo investimento total previsto é de US$ 6,4 bilhões e a
ela cabem US$ 3,3 bilhões, sobretudo em caráter público, são 24 projetos; BID e Grupo Banco
Mundial tem participação ainda mais modesta. Em 2000, quando efetivamente teve início a Iirsa, o
setor privado era visto como agente capaz de dinamizar investimentos em infraestrutura, dado que
setores como telecomunicações, energético e de transportes vinham sendo privatizados ou postos em
regime de concessão. Todavia, não é peremptório que os investimentos privados nestes setores tenham
sido expressivos, afinal, em muito foi uma transferência de propriedade, sem implicar em formação
bruta de capital fixo, exceto para telecomunicações3: “la mayoría de las veces el destino de los recursos
que generó la venta de tales empresas fue el financiamiento del gasto corriente de los gobiernos y no el
incremento de la infraestructura del sector.” (ROZAS, 2010, p. 71). O financiamento multilateral – leia-
se BID, Banco Mundial e CAF – direcionou-se para o setor privado, ou melhor, as políticas foram
desenhadas de maneira a multiplicar os fluxos de investimento privado em infraestrutura.
Além de estabelecer, em 2012, da Agenda de Projetos Prioritários para a Integração (API) –
construída por meio dos planos nacionais de desenvolvimento, além das estratégias e políticas setoriais
– o Cosiplan busca atrelar o financiamento da conexão física regional a necessidades de
desenvolvimento dos governos da Unasul. Deste modo, não caberia a instituições financeiras decidir
sobre o caráter dos investimentos. A primeira carteira de investimentos, desenhada em 2004 no âmbito
da Iirsa, tinha 335 projetos de infraestrutura com US$ 37 bilhões; em 2010, ela foi atualizada para 524
projetos a US$ 96 bilhões. Em 2011, sob o Cosiplan, a atualização da carteira ocorreu com base na
identificação pelos governos dos países de projetos necessários para a integração: passou-se a 531
projetos com investimento de US$ 116 bilhões.
Tomada a carteira Cosiplan como parâmetro, em termos de atendimento da necessidade de
integração entre os países sul-americanos, é iminente a atuação dos Tesouros nacionais, bem como do
financiamento público em relação a instituições financeiras regionais e ao setor privado. Todos os
países da região enfrentam certo grau de deficiência em infraestrutura, a qual se aprofundou entre 1980
e 1990, dada a sua dificuldade em manter o volume adequado de investimentos sobretudo, no caso do
gasto público, em função das restrições financeiras impostas pela crise da dívida, bem como do
3 De acordo com dados de Calderón e Servén (2004) e do Banco Mundial, Rozas (2010) mostra que em telecomunicações,
o gasto privado em relação ao PIB saiu de 0,15% entre 1980-85 para 0,47% entre 2002-06, enquanto o público, caiu de
0,30% para 0,01%, respectivamente.
4Rozas (2010) com base em dados para Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, México e Peru, mostra que entre 1980-
85 os gastos, relação ao PIB, com investimento em infraestrutura representaram 3,71%, entre 1996 e 2001, esses gastos
caíram para 2,24% do PIB, mantendo a tendência de queda de fins de 1980, sendo que entre 2002 e 2006, 1,46%. De
acordo com Perrotti e Sánchez (2011), entre 2007-08, nesses países o investimento em infraestrutura representou 2,0% do
PIB.
2.1 Fundo Financeiro para o Desenvolvimento dos Países da Bacia do Prata (Fonplata)
O seu objetivo é financiar a realização de estudos, projetos, programas e demais obras que
promovam o desenvolvimento harmonioso e a integração física entre os países da Bacia do Rio da
Prata, com base no disposto no Tratado da Bacia do Prata, assinado entre Argentina, Bolívia, Brasil,
Paraguai e Uruguai em 1969, que estabelecia a elaboração e implementação de grandes projetos de
construção de hidrelétricas, sobretudo, aproveitar o potencial hidrelétrico da usina de Itaipu. Esse
desenho do Tratado da bacia do Prata é condizente com os objetivos contemporâneos da integração via
infraestrutura, que para Zugaib (2006) pode ser descrito como ‘precursor’. Trata-se de uma área
potencialmente estratégica, estando o potencialmente associado, aqui, à navegabilidade com vistas à
circulação de mercadorias e à saída do continente e aos recursos energéticos e minerais. São 5.800 Km
de rios navegáveis, reservas de 1,2 bilhão toneladas de ferro, 100 milhões de toneladas de manganês,
além de extensões de terras agriculturáveis.
Argentina e Brasil, com maior participação de capital, possuem as maiores participações, na
carteira de crédito5, ano a ano desde 2005, com destaque para o Brasil que em 2005 detinha 32% dos
empréstimos e, em 2012, passou para 45%. Enquanto que Paraguai e Uruguai diminuíram, no período
em tela, a tomada de crédito junto ao Fundo em 9% e 13%, aproximadamente, tornando-se as
economias que menos recorrem a essa instituição. Em simultâneo, Paraguai e Uruguai aumentaram suas
participações na carteira da CAF: de 0,73% em 2005, para 0,82% em 2012 e 0,28%, em 2005 para
2,01%, em 2012, respectivamente.
Em abril de 2010, na Assembleia de Governadores, resolveu-se pelo capital autorizado de US$
489,2 milhões, sendo integralizados US$ 449,2 milhões6 e em junho de 2013 foi aprovada a triplicação
de capital, que passaria a US$ 1.600 milhões, sendo que os países membros aportam US$ 160 milhões,
de acordo com a seguinte distribuição: Argentina e Brasil, 33% cada e Bolívia, Paraguai e Uruguai, 11%
cada7. Assim, entre 2005 e 2012, houve expansão considerável do patrimônio desta instituição: o ativo
total foi sucessivamente crescente com variação, em 2012, de 25% em relação a 2005, além do
5 Os critérios adotados pelo Fundo para aprovar empréstimos se baseiam na análise do projeto quanto aos seguintes
aspectos: solidez técnico-administrativa, segurança financeira, adequado marco institucional e licença ambiental
(FONPLATA, 2013).
6 De acordo com Resolução da Assembleia de Governadores 112/2010.
7 No artigo I do Tratado da Bacia do Prata, a expressão “zona de influência direta e ponderável” faz com que a distribuição
geográfica dos países signatários na bacia do Prata adquira outra perspectiva: Brasil menor parte do seu território sob
influência da bacia (17%), em seguida está a Bolívia (18,5%) e, então, a Argentina (37%). Enquanto que Paraguai e Uruguai
apresentam boa parte de seu território pertencente à bacia; 100% e 79,3%, respectivamente (Zugaib, 2006).
patrimônio líquido e passivo total, que aumentaram em 24%. Também a carteira de empréstimos foi
ampliada (36% entre 2012 e 2005), passando a representar 52% do ativo total, em 20128.
A partir de 2011, a Assembleia de Governadores decidiu por alteração da política de aplicações
financeiras do Fonplata, autorizando-o a comprar títulos da dívida da CAF e do BID, além da
tradicional alocação de recursos em títulos do Tesouro Nacional dos EUA. Assim, se em 2011, as
aplicações financeiras9 mantidas (bônus) em títulos do tesouro americano foram de US$ 106 milhões;
US$ 13 milhões em bônus do BID e US$ 9,4 milhões, da CAF, em 2012, aquelas se reduziram para
US$ 75 milhões, enquanto a alocação de recursos em bônus do BID e da CAF aumentaram para US$
17 milhões e 34 milhões, respectivamente. É válido observar que essa mudança de estratégia de
aplicações financeiras é consetânea ao aumento de carteira de empréstimos, de patrimônio líquido e de
ativo.
Sua participação na carteira de integração física sul-americana se insere em uma estratégia
representada em três grupos básicos que, de modo geral, buscam promover o desenvolvimento
intrarregional entendendo-o como facilitação do escoamento de produtos agropecuários tanto para os
países da América do Sul, quanto via Pacífico e Atlântico, além de vincular territórios na região. Dessa
forma, o projeto “Otimização do cruzamento Ponte Ñeembucú-Rio Bermej” pertence, dentro do eixo
Capricórnio, ao projeto da Agenda Prioritária de Integração (API), qual seja, Corredor Ferroviário
Bioceânico Paranaguá-Antofagasta – entre Argentina, Brasil, Chile e Paraguai – com investimento total
estimado em US$ 2,7 bilhões. Ambos os projetos do eixo de Capricórnio possuem caráter determinante
de vinculação de mercados de países sul-americanos com fins de facilitação de comércio internacional,
sendo que o projeto “Otimização do Nodo Clorinda-Assunção”10 prevê somente a modernização de
postos de fronteira entre Argentina e Paraguai.
Há outro ponto relevante da atuação do Fonplata que merece destaque: aprovações de
empréstimos para municípios. Os projetos financiados se distribuem em áreas com objetivos
específicos, ou melhor, entre programas que não se relacionam com a promoção da integração
propriamente dita, mas sim, com necessidades de municípios ou regiões de países membros. Vale
ressaltar que se identificou o direcionamento específico de empréstimos para programas municipais
e/ou específicos às necessidades de províncias dos países membros, haja vista os países não contarem
com empréstimos em todos os setores, que em 2012, somaram US$ 282 bilhões. Um expediente de
análise da proposta em termos das áreas prioritárias de atuação do Fundo, quais sejam: infraestrutura
que complemente sistemas regionais existentes, educação, saúde, infraestrutura básica, fornecimento de
8 Utiliza-se de recursos próprios e de outras fontes de financiamento, que basicamente têm origem na obtenção de
empréstimos externos sob a responsabilidade solidária dos seus países membros, estando livre de quaisquer obrigações.
9 Registra-se, para aplicações financeiras, o valor nominal dos títulos inicial sob critério da taxa de juros efetiva, sendo que a
diferença entre o valor pago e aquele valor nominal é amortizado durante a sua vigência. O uso de títulos para aplicações
financeiras obedece à política de controle de riscos, especialmente o de liquidez. Também em atenção a esse risco, os
empréstimos são outorgados somente sob risco soberano.
10 É projeto da API, que é Conexão viária Foz – Cidade do Leste – Assunção – Clorinde.
água potável, bem como promoção da agropecuária, indústria e das exportações. Essas áreas podem
explicar a outorga de crédito para os programas, sobretudo municipais ou estaduais, que tem sido uma
das suas principais atuações na região.
68,5% dos seus recursos administrados e a colocação de outros papéis de curto prazo representou
24,4%11.
A carteira de projetos mantida pelo BID, em julho de 2013, totalizava US$ 10.219 milhões, em
2008, US$ 1.295 milhões – sem incluir garantias. Severo (2012) aponta que o total financiado pelo
banco, em 2011, era de US$ 2.900 milhões referente a 28 projetos – uma variação positiva, entre 2011 e
2013, de 252%. Ao passo que a base de dados Iirsa indica que em julho de 2013, a instituição financiava
aproximadamente US$ 3.771 milhões de US$ 9.252 milhões de 35 projetos de investimentos. O
financiamento de caráter público é a base das operações: 26 projetos com inversões estimadas em US$
8.262 milhões dos quais US$ 3.492 milhões são financiados pelo BID e US$ 4.770 milhões por recursos
próprios dos governos (Tesouro Nacional e Estadual).
Cumpre destacar que a natureza do processo decisório desse Banco ou a sua atuação não
regionalizada apenas para a América do Sul representam obstáculos para um alinhamento do BID com
a Unasul. No entanto, ele tem sido a principal fonte de financiamentos de longo prazo na América do
Sul e dentre os bancos que participam do Comitê de Coordenação Técnica – quais sejam: CAF,
Fonplata e BID – é aquele que possui maior capacidade financeira e maior poder de atração de
investimentos, além da sua experiência no cofinanciamento de projetos (CASTRO, 2011).
Dessa forma, o BID se constituiu um desafio para a integração sul-americana. A fluida
participação da América do Sul em seu processo decisório, bem como a contundente participação dos
Estados Unidos no mesmo faz com que sua atuação na região fique a mercê de um jogo de forças de
grupos de interesse específicos. E sobre a sua importância para o financiamento de longo prazo na
região.
11 Constituir-se como uma instituição supranacional lhe permite privilégios nos mercados internacionais de modo que a
emissão de bonos pela CAF aumentou a partir de meados de 2000 conforme o aumento das suas qualificações de risco por
agências internacionais. Nesse sentido, vale ressaltar, que em 2011, o capital subscrito dessa instituição foi aumentado em
US$ 2.000 milhões, a ser pago entre 2013-2016 junto com os outros aportes de capital de US$ 4.000 milhões, anteriormente
aprovados. Em 2005, sua qualificação de risco na Standard & Poor’s era AA-1; em 2011 A+A-1, isto é, baixo risco de
crédito. Em 2011, a CAF consolidou sua posição nos mercados de capitais de países desenvolvidos, com a emissão de US$
1.400 milhões nos mercados suíço, europeu, japonês e estadunidense.
em 1968. No ano seguinte, foi estabelecida, por meio do Acordo de Cartagena, a conexão entre essa
instituição financeira e a Associação Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc).
Nas suas duas primeiras décadas de existência, a CAF deu prioridade para o financiamento do
comércio internacional de seus países acionistas, sobretudo os andinos, de forma que sua carteira teve
grande participação de linhas de curto prazo para o setor bancário privado para fomentar as
exportações e apoiar o comércio. Em 1970, seu capital autorizado era de US$ 100 milhões, o qual foi
aumentado para US$ 1.000 milhões, em 1985 para funcionar como fonte de capitalização para os países
andinos, ante seu contexto de crise. As aprovações dessa instituição de 1970 a 1990 somaram US$
3.466 milhões; os desembolsos foram de US$ 2.250 milhões. Em 1970, quando de fato a CAF passou a
operar, a carteira de empréstimos12 foi de US$ 20 milhões, em 1985, passou para US$ 169 milhões
chegando a US$ 2.363 milhões, em 1995, quando o financiamento da infraestrutura adquiriu maior
projeção nessa instituição. Por outro lado, em cada um dos seus três primeiros quinquênios de
existência – 1970-75; 1976-80 e 1981-85 – essa instituição financeira aprovou menos de US$ 2.000
milhões para a infraestrutura de seus países acionistas (CAF, 2005). Portanto, até a década de 1990, a
infraestrutura detinha participação relativamente menor.
Em 2007, foi aprovada em Assembleia da CAF modificação no seu Convênio Constitutivo para
a inclusão dos países do Mercosul mais o Panamá como acionistas série “A”, além da inclusão de
outros países da região nas séries “B” e “C”. Consolida-se, assim, como instituição essencialmente
latino-americana – ou melhor, assume características de um banco regional de desenvolvimento –,
transição que também se comprova pelo aumento da participação dos acionistas de série “C” nas suas
aprovações com mais de 30% do total aprovado, US$ 6.607 milhões, em 2007. Os aportes seguiram
sendo destinados para infraestrutura (US$ 1.675 milhões), desenvolvimento social (US$ 1.300 milhões),
bem como passaram a responder a maior demanda por recursos do setor privado.
Concessão de empréstimos está, portanto, desde a sua origem atrelada principalmente aos
setores de infraestrutura, bem como de integração. Além deles, o financiamento estruturado é usado
especificamente para obras de infraestrutura, petróleo e gás natural que tenham demanda – ou
contratação de governos nacionais. É institucionalmente diversificada quanto aos instrumentos que
oferece aos acionistas, isto é, mesmo que as operações de empréstimos sejam mais expressivas, também
são oferecidas garantais e avais cujo objetivo é desenvolver o mercado de capitais na região e também
modalidades mais robustas com financiamento sindicado e estruturado.
Os empréstimos concedidos podem ser para financiar projetos, capital e trabalho, atividades de
comércio, bem como para elaborar estudos de factibilidade e pré-inversão. A outorga de créditos
ocorre de acordo com riscos soberanos – sob garantia de governos nacionais – e não soberanos – para
setores empresariais e financeiros, sem garantia de governos nacionais. As aprovações por risco
12 Inclui carteira gestionada pela CAF, bem como operações de garantias parciais de crédito.
soberano superam aquelas por risco não soberano, menos em 2007, 2008 e 2001 – quando as
aprovações por risco não soberano foram 21%, 38% e 22% maiores, respectivamente. Em 2012, foram
ao todo aprovados US$ 13.230 milhões de crédito, sendo US$ 4,5 milhões aquelas com risco soberano,
US$ 3.273 milhões para o setor privado, sem risco soberano e o restante para programas de
infraestrutura. Ao longo do período considerado, as aprovações por risco não soberano foram
crescentes, indicando ganho de capacidade por essa instituição de financiar projetos de seus países
acionistas.
Países andinos são os principais tomadores de empréstimos, ainda que a partir de 2006, a
participação do Brasil na carteira total venha aumentando significativamente mais do que dos demais
países do Mercosul (tabela 2). Considerando-se apenas os países acionistas sul-americanos – isto é,
excluídos Guiana, Suriname e Chile – é possível observar que são os principais tomadores de recursos
dessa instituição, bem como que a conversão de países do bloco econômico do Cone Sul para
acionistas “A” não implicou em aumento da carteira dos países sul-americanos de modo geral. Porém,
sua carteira é majoritariamente destinada a seus acionistas do sub-continente.
Tabela 2. CAF: carteira de empréstimos por país (2004-2012) (US$ milhões)
Países 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012
Argentina 34 98 421 693 1.157 1.395 1.913 2.117
Bolívia 989 1.031 1.048 1.110 1.166 1.309 1.426 1.605
Brasil 245 323 807 825 1.034 1.116 992 1.258
Colômbia 1.901 1.620 1.633 1.707 1.695 1.974 1.829 1.850
Costa Rica 11 25 22 107 126 121 118 110
Equador 1.231 1.371 2.150 2.018 2.052 2.437 2.509 2.649
Panamá 25 38 63 72 76 90 246 479
Paraguai 48 41 39 37 28 66 100 135
Peru 1.722 1.806 1.809 1.774 1.869 2.186 2.578 2.670
República
Dominicana -- -- -- 55 75 120 158 176
Uruguai 24 31 62 232 582 657 352 332
Venezuela 1.135 1.724 1.470 1.535 1.765 2.228 2.652 2.816
Outros Países 96 84 98 94 148 181 218 306
Total 7.462 8.191 9.622 10.259 11.772 13.878 15.093 16.502
Demais Países 1,8% 1,8% 1,9% 3,2% 3,6% 3,7% 4,9% 6,5%
MERCOSUL 4,7% 6,0% 13,8% 17,4% 23,8% 23,3% 22,2% 23,3%
UNASUL* 93,51% 92,20% 84,29% 79,38% 72,60% 73,02% 72,84% 70,23%
UNASUL 98,2% 98,2% 98,1% 96,8% 96,4% 96,3% 95,1% 93,5%
Fonte: Relatórios anuais CAF (2008-2012)
Da Agenda Prioritária para a integração, financia US$ 455 milhões de quatro projetos com
investimento total de US$ 866 milhões. Ao passo que o financiamento total – incluindo API – em
setembro de 2013, somava US$ 3,3 bilhões de vinte e oito projetos cujo investimento total é de US$ 6,4
bilhões, constituindo, assim, a instituição financeira regional com maior aporte de recursos. Desses,
somente três são de abrangência binacional e um trinacional – sendo todos em setor de transportes –
com investimento estimado em US$ 818 milhões, cabendo à CAF financiar US$ 482 milhões. Apenas
quatro projetos, todos de abrangência nacional – na Argentina –, estão concluídos e US$ 649 milhões
do investimento total de US$ 1.120 foram assumidos. De modo geral, os projetos que ela financia
pertencem a grupos que prevêem vinculação entre territórios de países diferentes com vistas a
incrementar os níveis de comércio regional e da região com os mercados internacionais – por meio da
construção de corredores com saída para o Pacífico e Atlântico, além de grupos que detêm a visão
estratégica de fomento da articulação e desenvolvimento de cadeias produtivas regionais. No eixo
Mercosul-Chile, sete projetos são financiados – em torno de 28%, ou US$ 898 milhões, do total que
financia da carteira Cosiplan – dos quais três se enquadram no grupo energético, ou melhor, devem
potencializar a qualidade, a eficiência e, também, o intercâmbio de energia elétrica entre os países.
13Mercosul/CMC/Dec. no 19/04.
14A UTF deverá comunicar a Comissão de Representantes Permanentes do Mercosul (CRPM) que o desembolso não foi
efetivado.
estabeleceu dez ‘projetos-piloto’ em função da sua viabilidade técnica e financeira, dos quais oito15 são
apresentados, a seguir: Mercosul-Habitat de promoção social, fortalecimento do capital humano e social
em assentamentos em condições de pobreza (US$ 13 milhões); Mercosul-ROGA (US$ 10 milhões);
reconstrução e melhoramento de rodovias de acesso a Grande Assunção (US$ 5 milhões); – programa
de apoio integral a microempresas (US$ 5 milhões); laboratório de biossegurança e fortalecimento do
laboratório de controle de alimentos, no Paraguai (US$ 4,8 milhões); a chamada ‘Rodovia 26’ entre
Melo e Arroyo Sarandi de Barceló, no Uruguai (US$ 7,9 milhões); internacionalização da especialização
produtiva via desenvolvimento e capacitação tecnológica dos setores de software, de biotecnologia e
eletrônica e cadeias de valor correlatas, apresentado pelo Uruguai (US$ 1,5 milhão); economia social de
fronteira, pelo Uruguai (US$ 1,6 milhão); “Mercosul livre de aftosa”, pelo Comitê específico (US$ 16, 3
milhões).
É prevista pelo bloco uma atuação voltada para objetivos considerados estratégicos para o
aprofundamento da integração entre os países do Mercosul em termos de inserção competitiva em
cadeias globais de valor. O projeto em execução no âmbito do programa de desenvolvimento e
competitividade que objetiva desenvolver cadeias produtivas em setores dinâmicos entre os países do
Mercosul. O automotriz é um exemplo. Especialmente porque financiará16 - pequenos fornecedores de
autopeças, sendo o caráter de melhoria da inserção nos mercados internacionais evidente, pois se
pretende substituir importações e aumentar exportações por meio da capacitação tecnológica das
empresas. Petróleo e gás, dentro do eixo de representarem setores regionais dinâmicos, são objeto de
financiamento17 do Fundo nos seguintes aspectos: desenvolvimento e crescimento de empresas
fornecedoras através da produção gestão de informação sobre condições de negócio no setor;
desenvolvimento de competências administrativas e inovação tecnológica daquelas empresas
fornecedoras; abrir mercados para essas empresas dentro da cadeia dos países do bloco e promover
acompanhamento e avaliação do projeto, tendo em vista articulação e integração enre as empresas,
promoção do comércio entre as empresas, promoção de transferência de tecnologia e aumento do
volume de comércio de intermediários deste setor. Ambos os projetos abarcam temas cruciais para a
integração entre os países do bloco, embora não estejam concluídos e, por isso, não se possa estimar os
seus impactos sobre a articulação entre essas cadeias produtivas, são questionáveis pelo reduzido
montante financiado, tendo em vista a complexidade dos setores em relação ao que se propõem os
projetos.
Financia oito projetos de seus países membros da carteira Cosiplan de investimento total
previsto em US$ 1.412 milhões dos quais US$ 676 milhões – o equivalente a 48% - cabem ao Focem.
15 Constam dois projetos direcionados ao fortalecimento institucional da secretaria do Mercosul (US$ 50 mil) e para base de
dados jurisprudenciais do bloco, também com investimento de US$ 50 mil.
16 O investimento total é de US$ 3,9 milhões, dos quais o Focemfinancia 75% e o restante está sob rubrica local.
17 Investimento total de US$ 3,7 milhões, dos quais o Focem aporta 78%, sendo o restante sob rubrica local.
São projetos que objetivam promover a conexão física por meio da melhoria do serviço e da oferta de
energia elétrica, bem como da renovação e construção de rodovias nacionais e internacionais, caso do
corredor Mercosul-Chile. O projeto de interconexão elétrica entre Uruguai e Brasil, por exemplo, busca
diversificar o comércio internacional de energia elétrica, além de habilitar mercados para exportação de
eventuais excedentes das centrais do mercado uruguaio, enquanto que Adequação do corredor Rio
Branco – Montevidéu – Colônia – Nueva Palmira se enquadra na estratégia de constuir um corredor
viário desde São Paulo (Brasil) até o Chile.
O projeto Sistema de 500kV, entre Brasil e Paraguai, pertence à Itaipu Nacional foi aprovado
em julho de 2010 pelo Conselho do Mercosul – após aprovação da Unidade Técnica e do Grupo
Mercado Comum –, sobretudo, como forma de incorporar os entendimentos firmados, em maio de
2010, entre os chefes de Estado da Unasul é o mais significativo dos projetos que financia no Cosiplan.
Itaipu Binacional foi criada por esses países em 1973, quando eles concordaram, via Tratado
Internacional, realizar o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do rio Paraná, desde Salto
Grande de Sete Quedas até Foz do rio Iguaçu. Foi criada sob igualdade de direitos e de obrigações,
cabendo participação igualitária entre a empresa estatal brasileira Eletrobrás (Centrais Elétricas
Brasileiras S.A.) e ANDE (Administración Nacional de Eletricidad), bem como um Conselho de
Administração comum, sem ‘prevalência hierárquica’.
Ao passo que na carteira Cosiplan, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
(BNDES) mantém participação em três projetos18, todos no setor de transportes/rodoviário e de
execução na Bolívia, país com o qual o Brasil não possui linha de crédito recíproca de monta (US$ 1
milhão, somente). Por outro lado, as informações obtidas permitem afirmar que o BNDES ainda não
desembolsou recursos para projetos de integração específicos da carteira Cosiplan.
3. Considerações finais
A discussão apresentada expõe um sinuoso caminho para a consolidação de um esquema
alternativo – ou inovador como é apontado em textos técnicos do BID – para o financiamento da
integração física. A estrutura institucional usada no financiamento de projetos da carteira Cosiplan –
isto é, CAF, BID, Fonplata, Focem, além do Grupo Banco Mundial – tanto em fontes públicas, quanto
privadas e público-privadas não tem demonstrado efetividade mensurável em termos de financiamento
de longo prazo. Afinal, como demonstrado na terceira seção, boa parte dos financiamentos dessas
instituições e fundos está em fase de solicitação ou de aprovação; poucos estão finalizados. Ao setor
privado tem participação bastante modesta, enfatizada em projetos estruturados em eixos de maior
desenvolvimento econômico relativo.
18Projeto Rodovia Cobija – El Choro – Riberalta, no eixo Andino; Pavimentação Potosí-Tupiza-Villazón, nos eixos
Capricórnio e Interoceânico Central e Pavimentação de culminação Potosí-Tarija, no eixo Peru-Brasil-Bolívia. Ao total, o
BNDES financiaria US$ 201 milhões, nos três projetos.
Referências
Resumo
O
ensaio examina a experiência da integração regional nas Américas a partir do processo
histórico do Mercosul. A trajetória do bloco e seu lugar na paisagem política de integração
do continente, particularmente da América do Sul, coloca-se no cerne da análise. As
mudanças no cenário internacional e regional, de alteração do processo de globalização e integração sob
parâmetros do regionalismo aberto para um “reviver” de marcos protecionistas do Estado-nação, são
aspectos, também enfocados. A implantação e distorções das propostas inicias do Mercosul - ampla
integração econômica sob os preceitos do regionalismo aberto -; assim como as crises, notadamente a
institucional, na dinâmica do processo de seu alargamento (particularmente o geográfico, com a entrada
da Venezuela) e aprofundamento pautam a linha norteadora da abordagem temática.
Resumo
E
ste artigo investiga o problema se a adopção da moeda comum europeia por um grupo de
países da União Europeia representa um falido projeto político que precisa ser abandonado
em frente da atual “crise do euro”. A crise da dívida da Grécia junto com a profunda
fraqueza econômica em vários países da periferia da Área do euro alertou sobre o possível colapso do
sistema monetário europeu. Diferente da tese do fiasco da moeda comum se argumenta neste artigo
que a instalação do euro era uma necessidade para manter e aprofundar a integração econômica
europeia. A origem do problema não é a união monetária com o euro, mas a má alocação de recursos
pelos mercados financeiros em cooperação com as autoridades da política econômica dos países em
crise. O artigo chega à conclusão que a crise vai ter benefícios no fim porque incentivou a implantação
de novas instituições que ajudam agora de segurar a estabilidade da moeda comum.
Resumo
Rosana Curzel
P
retende-se dimensionar custos e benefícios do fracasso da Rodada de Doha para o Mercosul.
É utilizado um modelo de equilíbrio geral multirregional e multissetorial (GTAP -Global
Trade Analysis Project), em que está associada uma base de dados de 113 países e/ou regiões
e 57 setores da atividade econômica. A agregação explicita os países das Américas e os restantes estão
agregados em União Européia e Restante do mundo. Simula-se a eliminação dos subsídios à produção
agrícola, às exportações e as tarifas às exportações, em conformidade com as fórmulas de redução
estabelecidas pela OMC e que não obtiveram consenso na Rodada de Doha. Pretende-se avaliar os
possíveis impactos por setores e países do Mercosul. Embora a utilização do modelo GTAP sem um
tratamento específico da base de dados tarifária não seja recomendada, trata-se de uma simulação com
o objetivo de comparar seus resultados com os de outros trabalhos já publicados, de modo a verificar a
consistência do modelo.
Regionalismos e
Relações entre Blocos
ARTIGOS
O Estado e o “combate” à pobreza via Programas de
Transferência de Renda no contexto da
América Latina
1. Introdução
N
o presente trabalho, parte-se da premissa segundo a qual, na sociedade capitalista, existe
uma relação orgânica entre as necessidades dos trabalhadores, a produção de mercadorias e
o consumo.
Nesse contexto, o Estado atua como um mediador das relações entre capital e trabalho, através,
inclusive, da implementação de Políticas Sociais, as quais, em sua essência, buscam satisfazer
necessidades contraditórias entre si: como, por exemplo, aquelas inerentes prevalentemente ao mercado
e a classe que vive do trabalho.
A partir de um contexto de crise do Estado de Bem Estar Social e de influência dos ideais
neoliberais, as políticas sociais de alguns países passaram a contemplar Programas de Transferência de
Renda, os quais são caracterizados por seu elevado nível de seletividade, além de sua focalização na
redução de um determinado tipo de pobreza; são exatamente sobre estes pontos que o trabalho a seguir
debruça suas reflexões.
2. Contextualizando a pobreza
A fim de discutir a relação estabelecida pelo Estado no combate à pobreza nos países, é
necessário que se reflita inicialmente sobre o conceito de pobreza.
Netto (2012) afirma que, embora a pobreza não seja exclusivamente ligada a fatores
econômicos, mas também de acesso a bens e serviços essenciais como transporte, saúde, lazer,
educação, não há como negligenciar a “elementariedade econômica” da sua definição.
Salama (2012, p. 15), ao diferenciar a pobreza absoluta da pobreza relativa, diz que a primeira se
dá “quando a pessoa não dispõe de recursos monetários em quantidade suficiente para se reproduzir”,
ou seja, não satisfaz nem a necessidade básica da alimentação, e a segunda “quando a pessoa dispõe de
um rendimento monetário abaixo de 50% do rendimento mediano.” Assim, diz ser impossível erradicar
a pobreza relativa visto que esta se associa ao conceito de distribuição de renda.
Vê-se, ainda, que a construção da linha de pobreza, que permite diferenciar pobres de
indigentes, baseia-se em um determinado conjunto de necessidades consideradas básicas para
reprodução da população.
A partir da enquete, estabelece-se qual é a composição de uma cesta de bens de
consumo que permita adquirir um certo nível de calorias. Convertida em preço, esta
cesta indica o nível de renda de estrita reprodução que define a pobreza extrema
(indigência). Multiplicada por um coeficiente, chamado de coeficiente de Engel, para
que se possa ter em conta as necessidades de moradia, transporte, etc., obtém-se uma
renda que corresponde à linha de pobreza. (Ibid., p. 16)
Conforme o autor, esta definição difere da do Banco Mundial para o qual indigente é o
indivíduo que não recebe pelo menos um dólar diariamente e pobre o que não recebe pelo menos dois
dólares ao dia.
Ao fazer um resgate histórico da pobreza, Williams et al. (2012), afirmam que já na
contemporaneidade, o pobre ainda era visto como responsável por sua condição, porém, graças a
organização e pressão da classe trabalhadora, o Estado passou a ofertar políticas sociais que se
propunham a satisfazer as necessidades da população beneficiada.
Com a crise de 1929, alguns países da Europa instituíram um Estado Providência, também
conhecido como Welfare State ou Estado de Bem Estar Social, em que, influenciado pelas ideias
keynesianas e pelo modelo fordista de produção, passou a intervir através de medidas econômicas e
sociais.
Porém, por volta da década de 70, devido ao crescente endividamento público e privado, o
Estado Providência passa a ser questionado e ressurgem com grande força as ideias liberais, agora
instituído o neoliberalismo, que “favorece a acumulação e o crescimento apenas dos países
dominantes”. (WILLIAMS ET AL, 2012, p. 68)
Netto (2012, p.97) destaca que a “América Latina é a região do planeta onde existem as maiores
desigualdades e onde os mais ricos recebem uma proporção maior de renda.”
A pobreza não se restringiu, porém, aos países subdesenvolvidos e a partir dos anos 80 os
efeitos da reestruturação produtiva, com o aumento do desemprego e da concorrência, passaram a ser
sentidos também pelos trabalhadores dos países desenvolvidos. (WILLIAMS ET AL, 2012)
O´Connor (1997 apud FALEIROS, 2009) afirma que o Estado capitalista cumpre duas funções
básicas: a acumulação do capital e a legitimação da ordem social. Sendo assim, as políticas sociais
seriam, conforme Draibe (1990 apud SCHONS, 2008), ofertadas de maneira residual, complementares
àquilo que não pode ser solucionado através do mercado ou de recursos da família e da comunidade.
Faleiros (2009, p.46) lembra, porém, que as políticas sociais implementadas pelo Estado
capitalista são fruto das lutas de classes e “contribuem para a reprodução das classes sociais.”
O Estado cumpre, assim, seu papel mediador. Farias (2001, p. 40) diz que o Estado “participa
da resolução das contradições entre os indivíduos mercantis simples, bem como entre capitalistas e
trabalhadores assalariados.”
Embora a visão liberal defenda a não intervenção estatal, Rein (1970 apud FALEIROS, 2009)
afirma que as políticas sociais se caracterizam como intervenções provenientes de um âmbito fora do
mercado, mas que cada vez mais se tornam ligadas aos interesses deste.
“O Estado intervém no mercado pelo apoio que dá às empresas ou aos indivíduos para
produzir ou ascender aos bens e serviços existentes no mercado.” (FALEIROS, 2009, p.47)
O mencionado autor, baseado nas ideias de Poulantzas (1974), afirma que o Estado é
caracterizado pelas relações sociais que o compõem e, por assim ser, é um “campo de batalhas” no qual
as classes dominantes e dominadas disputam seus interesses.
Mas as concessões feitas pelo Estado se inscrevem num contexto de produção
capitalista, onde devem por um lado assegurar a garantia da propriedade privada e a
acumulação de capital e por outro lado, garantirem o clima social necessário a esta
acumulação. (FALEIROS, 2009, p.53)
O Estado, longe de ser neutro, objetiva com suas ações proteger o mercado, o consumo e a
produção; após os anos 80, com a adoção do neoliberalismo como modelo que orienta os programas e
políticas na maior parte do mundo, inclusive na América Latina, houve uma “ruptura com o contrato
social democrata tão caro ao desenvolvimento e expansão da seguridade social.” (BOSCHETTI, 2009,
p. 175)
Isso porque, ainda segundo Boschetti (2009), os momentos de crise do capital iniciados a partir
do final da década de 70 e início dos anos 80 levaram a uma contra-reforma na seguridade social,
atingindo o desenvolvimento de políticas sociais e levando a um remodelamento do Estado no que diz
respeito às suas funções típicas, às políticas públicas e ao setor de serviços.
Nesse contexto, houve um avanço dos ideais neoliberais e uma consequente submissão dos
Estados Nacionais “aos ditames dos organismos internacionais como ONU, Banco Mundial, FMI,
OMC”. (Ibid., p. 181) que viam como prejudiciais ao desenvolvimento econômico o desenvolvimento
de políticas redistributivas, como as da seguridade social, e defendiam a contenção de gastos na área
social e o desenvolvimento de reformas fiscais e das políticas públicas.
Diante dos efeitos das reformas realizadas no setor previdenciário houve, por sua vez, segundo
a mencionada autora, “a expansão de benefícios não contributivos, de natureza assistencial, focalizados
em situação de extrema pobreza.” (Ibid., p. 190)
Assim, a partir da década de 80, há a introdução dos programas de transferência de renda em
países da América Latina e Caribe, época em que iniciaram também as reformas da previdência nos
respectivos países.
Em relação ao atraso estrutural das nações periféricas consideradas, o nível de assimetria entre a
América Latina e a União Europeia na distribuição dos recursos econômicos entre as diferentes faixas
de renda pode ser considerado um indicador de tal situação (Fig. 1); em 2012, enquanto a concentração
de renda na faixa Q14, ou seja, a mais pobre, era de 8,2% na União Europeia, na América Latina, tal
participação era de somente 3,8%. Isso, apesar da mesma ter apresentado reduções na UE (devido,
inclusive, aos efeitos da recente crise) e aumentos na AL no período 2000-2012.
Consideramos oportuno recordar a importância da distribuição dos recursos gerados para a
configuração socioeconômica das nações, enquanto é um dos principais fatores à base das lutas de
classe e da interrelação entre estrutura e superestrutura.
3 “No tocante a transformação do “pobre” em consumidor para atender a lógica do mercado, é notória que a intenção do
governo [brasileiro através do PBF] é responsabilizar o individuo pela situação social que vivencia, esquecendo que ela é
fruto de uma relação antagônica entre Capital e Trabalho.” (SANTOS et al, 2012, p.19)
4 O quintil de renda é calculado através da divisão em cinco partes iguais da população, ordenando-as dos mais pobres aos
mais ricos, com isso, o primeiro quintil (Q1) representa a parcela da renda concentrada na faixa mais pobre e o quinto
quintil (Q5) naquela mais rica.
Nesse contexto, é importante destacar o fato que o peso dos mencionados programas de
transferência na renda total nacional de países como Brasil, Chile e México “é bastante modesto, indo
de quase zero, no caso do Chile Solidario, a mais ou menos 0,5%, no caso do Oportunidades (México)
e do Bolsa Família (Brasil)” (SOARES et al, 2007, p.25). Por conta da atual configuração:
[...] eses programas de transferência de renda, além de ineficazes do ponto de vista do
enfrentamento à pobreza, sobretudo porque não combatem as raízes da desigualdade
na região, ainda acabam por reforçar o estigma da subalternidade, visto que a pobreza
permanece tratada à margem das políticas sociais, portanto, relegada ao campo do não
direito. (NASCIMENTO; REIS, 2009, p.191)
Independente da nobreza que possa existir por trás destas metas, um dos aspectos importantes
a serem questionados é se estas emergiram realmente das necessidades dos países em desenvolvimento
ou se são somente mais um instrumento do processo de acumulação do grande capital. A significância
de tal aspecto se deve, inclusive, a sua relevância na definição das estratégias a serem seguidas pelos
Estados para o cumprimento dos ODM
[...] a realização destes objetivos depende de uma boa governação no plano
internacional e da transparência dos sistemas financeiros, monetários e comerciais.
Propugnamos um sistema comercial e financeiro multilateral aberto, equitativo,
baseado em normas, previsível e não discriminatório. (ONU, 2000, p.7)
De acordo com Jimenez & Segundo (2007, p. 119), esta e outras concepções, como
[...] a relação traçada entre educação e pobreza [pelos organismos internacionais],
traduz uma retórica mistificadora, representando um instrumento de ajuste ao projeto
de reprodução do capital, diante do agravamento das dificuldades de acumulação do
lucro postas pela crise estrutural contemporânea.
6Caso consideremos que o câmbio entre as moedas real e dólar seja 2,3 e multiplicarmos tal valor por 31 (dias) teremos um
ponto cut-off, segundo os ODM, de R$ 71,2.
Tabela 1: Proporção e variação da população com renda inferior a um dólar por dia na América
Latina, entre 1990 e o último dado disponível.
Fonte: Cepalstat
Assim, os primeiros programas desenvolvidos foram, segundo Stein (2009), o Programa Beca
Alimentaria, na Venezuela, em 1989; o Programa de Auxílio à Família, em Honduras, em 1990; o
Programa de Educação, Saúde e Alimentação, no México, em 1997; o Bono Solidario, no Equador, em
1998 e as experiências nos municípios de Distrito Federal, Campinas e Ribeirão Preto, em 1995, no
Brasil.
A partir dos anos 2000 tais experiências foram multiplicadas e os demais países da América
Latina passaram a desenvolver programas de transferência de renda com características semelhantes.
Dentre as características dos programas de transferência de renda implementados vê-se que são
todos categoriais, focalizados em categorias específicas ou em situações específicas ligadas à miséria
e/ou vulnerabilidade extrema. São concedidos mediante o cumprimento de condicionalidades, têm
valores reduzidos e “não asseguram a satisfação das necessidades básicas”. (BOSCHETTI, 2009, p.
193)
Embora os países apresentem particularidades na operacionalização de tais programas, estes
apresentam, de maneira geral, as seguintes características: são “a última rede de segurança econômica ou
de assistência social” no caso dos países europeus e “a primeira e única possibilidade de acesso na
América Latina e consistiriam em transferências monetárias do Estado às famílias.” (STEIN, 2012, p.
197)
Mesmo sendo destinados a todos, uma vez que não carecem de contribuição prévia a nenhum
outro sistema, apresentam, segundo Stein (2009), um caráter condicional já que o direito à renda é
condicionado à situação de renda familiar do beneficiário.
Os Programas de Transferência de Renda constituem, no caso brasileiro, um forte eixo da
proteção social desenvolvida no país, contribuindo para a redução de suas taxas de miséria e pobreza.
Segundo a definição da NOB/SUAS (2005, p.20) são de transferência de renda
[...] os programas que visam o repasse direto de recursos do fundo de Assistência
Social aos beneficiários, como forma de acesso à renda, visando o combate à fome, à
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 339
pobreza e outras formas de privação de direitos, que levam à situação de
vulnerabilidade social, criando possibilidades para a expansão, o exercício da
autonomia das famílias e indivíduos atendidos e o desenvolvimento local.
7 As condicionalidades são os compromissos assumidos pelas famílias beneficiárias do Bolsa Família para receber o
benefício. Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia/condicionalidades> Acesso em: set de 2013.
Além dessas características, utiliza ainda o Cadastro único para acesso aos programas sociais
governamentais como forma de identificação dos beneficiários e realiza o monitoramento e avaliação
das atividades a partir da Secretaria de Avaliação e Gestão do Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada- IPEA.
É importante ressaltar, porém, que apesar da grande abrangência do programa e da sua
importância na diminuição da pobreza e alívio das dificuldades dos mais pobres, as transferências
sociais não são, segundo Salama (2012) a solução para suprimir a pobreza absoluta.
Williams et al (2012, p.76) afirmam que “as políticas e programas sociais não têm modificado a
situação de pobreza de milhões de famílias, pois são insuficientes para atender suas necessidades.”
Tratam-se, assim, de políticas focalizadas e centradas sobre a indigência que operam com a
minimização do Estado e seu papel interventivo e, embora sejam operacionalizadas visando combater a
pobreza e a miséria, não interferem no quadro de desigualdade social e concentração de renda dos
países. (NETTO, 2012)
5. Considerações finais
Segundo Farias (2001, p.40), uma das principais funções do Estado é mediar o processo de
resoluçao de contradições entre os atores da sociedade. Ainda segundo o autor, a forma através da qual
o Estado intervem é historicamente determinada por aspectos relacionados, inclusive, ao seu próprio
papel de mediador nos diferentes espaços e períodos em que ele esteve presente.
Concernente ao processo histórico que levou à atual configuração (periférica) da América
Latina, a sua relevância para as análises relativas às políticas socioeconômicas ali implementadas, como
as de transferência de renda, está no fato que, entre outras coisas, revela as contradições presentes entre
os diferentes atores da sociedade tanto a nível nacional como internacional.
A aceitação por muitos dos países latino-americanos de certos padrões de políticas de
“combate” a pobreza “sugeridos” por organismo internacionais pode ser considerado um exemplo
neste sentido, ao determinar não só quem e como seriam contemplados, mas, principalmente, quem e
como não seriam contemplados.
A redução da pobreza denominada extrema e o aumento de certos índices de educação e saúde
podem ser considerados aspectos positivos para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores.
Todavia, é importante nos questionarmos o quanto tais medidas têm um fim em si mesmas e o quanto
são somente instrumentos do grande capital, ou seja, de dominação política, social e econômica.
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(orgs.) A questão social e as políticas sociais no contexto latino- americano. Vitória: EDUFES, 2012.
P
ara compreender a importância processo de integração e de formação de bloco latino-
americano é pertinente destacar a relevância do chamado Novo Mundo para as potências
europeias. A expansão marítima, a assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), o
mercantilismo e o colonialismo estabeleceram um novo quadro na recém descoberta América,
partilhada por Portugal e Espanha, sendo depois território disputado pela Coroa Britânica, Holanda e
França.
Após a Era das Revoluções2, marcada pelo avanço industrial e necessidade de novos mercados
consumidores, inaugurava-se o Neocolonialismo ou Imperialismo, momento de novo expansionismo
europeu à procura de mercado consumidor. As consequências foram além dos elementos econômicos,
ocasionando disputas entre as colônias (algumas já independentes), além de divisões fronteiriças,
períodos de ingerência governamental estrangeira e instabilidade democrática não apenas em nações
sul-americanas, mas também caribenhas.
Embora contem com histórico comum, características econômica e culturalmente similares, os
33 Estados soberanos que compõem a América Latina e o Caribe têm buscado firmar alianças para
alcançar certo grau de independência e eficiência econômica3.
Neste ponto a formação de blocos regionais atende ao proposto, visto tentar aproximar países
vizinhos, centrando no aspecto econômico e nas relações comerciais o mote do acercamento.
Entretanto, economias subdesenvolvidas e em desenvolvimento necessitam de maior cautela quando se
pretende a formação de zonas econômicas.
Os efeitos nocivos de uma integração não comprometida com o desenvolvimento interno do
projeto integracionista que não pretenda a elevação de níveis sociais e que submeta as economias dos
estados às variações do mercado (GALEANO, 2009, P.327). É o que também entendeu a Comissão
Econômica para América Latina (Cepal), que por meio de principais expoentes, Celso Furtado e Raúl
El Salvador, Equador, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru,
República Dominicana, Santa Lúcia, São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago,
Uruguai, Venezuela.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 343
2. Mersocul/Alba-TCP
A integração sul-americana nos remonta às primeiras décadas do século XIX quando Símon
Bolívar tentou, pioneiramente, reunir no Congresso do Panamá, de Julho de 1826, governos de
diferentes Estados a fim de promover a assinatura do Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua.
O destaque histórico apenas ressalta a intenção no processo, mas em termos objetivos a
integração deve ser datada quando da criação da Comissão Econômica para América-Latina (Cepal),
agência vinculada às Nações Unidas que realizou estudos de viabilidade e sugeriu algumas alternativas,
sendo diretamente responsável pelas diversas experiências integracionistas.
Um exemplo disto é o Tratado de Montevidéu de 1960, estabelecendo a Associação Latino-
Americana de Livre-Comércio (Alalc), cujo objetivo era firmar uma zona de livre-comércio com fins de
estruturar um Mercado Comum Regional no prazo de 12 anos. Eram membros: Argentina, Brasil,
Bolívia, Colômbia, Chile Equador, México, Paraguai, Uruguai, Peru e Venezuela.
O fracasso deste projeto deveu-se a própria brevidade do prazo estabelecido e dos desafios
políticos (ditaduras militares) e econômicos (mercado interno com reduzido fluxo de intercâmbio)
enfrentados pelos países signatários.
Vinte anos depois, o projeto de integração foi revisto com a assinatura do Tratado de
Montevidéu de 1980, criando a criação da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi). A
premissa para o projeto foi a necessidade de homogeneização dos países-membros, continuidade ao
processo de integração com vistas ao desenvolvimento econômico e social, harmônico e equilibrado.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 344
Neste sentido a Aladi objetivava a criação de um Mercado Comum através da promoção do comércio
intra-regional, entretanto, a condução deste projeto esteve centrada somente nos atores Estatais, cujos
alicerces foram prejudicados diante do endividamento externo no início dos anos 80 e da concorrência
com outros tipos de associações consideradas Blocos Econômicos (NAFTA, CEE, CAN, etc.)
organizados pelo mundo.
Com os movimentos de redemocratização4 países da América do Sul em meados da década de
80 também visaram expandir as relações com seus vizinhos, época em que José Sarney e Raúl Alfonsín,
em 1985, assinaram a Declaração de Iguaçu, documento base para a construção de um Mercado
Comum no Sul.
Os anos seguintes trouxeram a criação do Programa de Integração e Cooperação Econômica
em 1986 (PICE) cuja proposta era aproximar o eixo Brasil-Argentina e revelou-se uma articulação
estatal-burocrática bilateral que passou a promover a conformação de uma estrutura institucional
intergovernamental com estabelecimento de órgãos para levar adiante o processo de integração
regional.
Em seguida, assinou-se o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento de 1988
(TICD), significou a absorção de ideias neoliberais pelos países signatários, previa a conformação de
um espaço econômico comum num prazo de 10 anos, além de eliminar parcialmente barreiras
alfandegárias e não-alfandegárias e organizar uma liberalização de comércio gradual.
Não obstante o exíguo prazo e todos os desafios pelo qual todo processo de integração
econômica enfrenta, as presidências de Fernando Collor de Mello e de Carlos Menem ávidos por maior
inserção mundial e abertura de mercados, firmaram em 1990 a Ata de Buenos Aires antecipando a
conformação do espaço comum para 1994.
Finalmente, em novembro de 1991, Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai organizaram-se em
bloco a partir do Tratado de Assunção5. Este dividiu claramente o processo integracionista em duas
etapas: a primeira, provisória com prazo para dezembro de 1994, significaria o início mais dedicado à
formação do Mercado Comum; a segunda, iniciada a partir de janeiro de 1995 seria uma etapa definitiva
com a consolidação de uma “União Aduaneira imperfeita”6 (ACCIOLY, 2003, p. 71)
Já se avançou substancialmente no sentido da integração econômica com a adoção de políticas
comerciais externas comuns, consectário da aceitação da Tarifa Externa Comum (TEC). Quanto à
inserção global, o Protocolo de Ouro Preto de 1994 (POP) em seus artigos 34 e 35 conferiu
personalidade jurídica de Direito Internacional ao Mercosul.
implicava uma Tarifa Externa Comum (TEC), a qual não chegou a alcançar sua forma plena porque ainda não engloba
todos os produtos da região.” (FERNANDES, 2003, p. 74)
7 O Estado Plurinacional da Bolívia faz parte do Mercosul desde 1996, quando ocupava status de Estado Associado, desde
7 de Dezembro de 2012 firmou-se Protocolo de Adesão que ainda depende de análise pelos outros Estados Membros.
8 A Guiana e o Suriname integram o Bloco enquanto Estados Associados depois de firmarem Acordos Quadro com a
2009 quando os Estados-membros inauguraram uma fase mais dinâmica no processo de integração.
11 Área de Livre Comércio Sul-Americano foi proposta pelo então presidente brasileiro Itamar Franco por ocasião da VII
Princípios e Planos de Ação para toda América12 temendo que a organização dos países sul-americanos
significasse perda de mercado.
A pressão do EUA sobre os países sul-americanos para que acordassem na formação da ALCA
foi tão incisiva que acabou por incentivar verdadeiros movimentos de rechaço à proposta do Norte.
As negociações que deveriam estender-se até 2005 quando da criação deste espaço econômico,
fracassaram. O bloco revelou-se uma tentativa de fixação da hegemonia estadunidense na América
Latina e o projeto fora abandonado desde a última reunião, a Quarta Cúpula das Américas.
Para Victor Hugo Jijón (2010), as obrigações de pagamento dos serviços da dívida externa, as
pressões estadunidenses para que se criasse a ALCA ou se firmassem Tratados de Livre Comércio
bilaterais e a vulnerabilidade do setor externo foram os três fenômenos regionais que marcaram a
conjuntura latino americana nos últimos anos.
Foi, então, que no III Fórum de Chefes de Estado e Governo da Associação dos Estados do
Caribe celebrado na Ilha de Margarita, em Dezembro de 2001, o Presidente Hugo Chávez da República
Bolivariana da Venezuela propôs a criação da Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América
(Alba-TCP), cujo projeto foi inicialmente aprofundado por Cuba e Venezuela.
A Alternativa Bolivariana pretendia fazer oposição ao avanço da ALCA, a Área de Livre-
Comércio das Américas, proposta liderada pelos Estados Unidos comprometida com um modelo a
serviço do capital transnacional que almejava a liberalização absoluta do comércio, serviços e
investimentos no continente americano que, ademais, configurava-se num verdadeiro instrumento
político de estabelecimento da hegemonia dos Estados Unidos na América Latina (JIJÓN, 2010).
A experiência Alba formou-se em 2004 quando da assinatura da Declaração Conjunta de
Criação da Alba-TCP entre o presidente Hugo Chávez e o primeiro ministro Fidel Castro. O
documento faz referência direta à oposição do avanço hegemônico da ALCA13.
Apoiados em princípios de cooperação e solidariedade, direcionados a partir da vontade comum
de implementação dos níveis de desenvolvimento dos países latino-americanos e caribenhos, iniciou-se
um processo de integração que corresponde aos objetivos de desenvolvimento independente e
complementariedade econômica regional a partir da assinatura do Acordo para Aplicação da Alternativa
Bolivariana para os Povos da Nossa América e do Tratado de Comércio dos Povos.
A interpretação que a Alba-TCP faz dos processos integracionistas experimentados pela
América latina é centrada em análises de conjuntura, destacando a dificuldade de alcançar o
12 À exceção de Cuba, contra quem o EUA mantém bloqueio comercial, financeiro e econômico. Ademais, a mesma
proibição de negociar com o Estado Cubano estender-se-ia aos países que porventura compusessem a ALCA, razão que
justificou severos impasses nas negociações deste bloco.
13 Portanto rechaçamos veementemente o conteúdo e as intenções da ALCA, e compartilhamos a convicção de que a
chamada Integração fundada em bases neoliberais, que ela representa, consolidaria o panorama descrito, e nos conduziria à
desunião ainda maior dos países latino americanos, à maior pobreza e desespero dos setores majoritários dos nossos países,
à desnacionalização das economias da região e à subordinação absoluta aos ditames do exterior. Tradução livre do original.
desenvolvimento independente, sem dependência externa, além de criticar a atuação das empresas
transnacionais14
As razões repetem-se em quase todos os documentos oficiais da Alba-TCP, pode-se citar mais
recentemente parte do discurso15 de Carlos Lage Dávila, Vice-presidente do Conselho de Estado, por
ocasião da adesão de Honduras16.
É por meio do desenvolvimento endógeno do espaço regional que se pretende a criação de
mecanismos que fomentem a criação de vantagens cooperativas entre as nações. Desta maneira,
permitindo a compensação das assimetrias que existem entre os países sul-americanos e o combate à
pobreza e a desigualdade.
Atualmente o bloco conta com os seguintes membros: Cuba (14/12/2004), Venezuela
(14/12/2004), Bolívia (29/04/2006), Nicarágua (23/02/2007), Honduras (09/10/2008-13/01/2010)17,
Dominica (20/01/2008), São Vicente e Granadinas (24/06/2009), Antígua e Barbuda (24/06/2009),
Equador (24/06/2009) e Santa Lúcia (20/07/2013). Compõem o bloco enquanto Estados
observadores o Haiti, Granada, Paraguai, Uruguai e Suriname.
A Alba-TCP, portanto, é um bloco ainda muito recente cujo alcance dos objetivos dependerá
sobremaneira da representatividade e influência política e econômica em âmbito mundial, tendo em
vista que seus membros possuem majoritariamente economias subdesenvolvidas. Chama-se atenção,
entretanto, para o alinhamento político dos governos dos Estados-membros, eis que o laço que os une
não parece ser estritamente comercial, mas sobretudo reconhecedor de uma identidade sociocultural
latino-americana.
Mercosul e Alba-TCP são duas experiências importantes para a América Latina, não
excludentes, antes complementares, pois o ânimo político de mobilização e união dos países latino
americanos é renovado e tira proveito de todo arcabouço estrutural já desenvolvido desde o Tratado de
Assunção.
14 Analisamos historicamente o processo de integração da América Latina e do Caribe, e constatamos que este, longe de
atender aos objetivos do desenvolvimento independente e da complementariedade econômica regional, tem servido como
um mecanismo de aprofundamento da dependência e da dominação externa.
Constatamos também que os benefícios obtidos durante as últimas cinco décadas pelas grandes empresas transnacionais, o
esgotamento do modelo de substituição das importações, a crise da dívida externa e, mais recentemente, a difusão dos
políticos neoliberais, com uma maior transnacionalização das economias latino-americanas e caribenhas e com a
proliferação das negociações para a conclusão dos acordos de livre-comércio de natureza igual à ALCA, criam bases que
distinguem o panorama de subordinação e atraso do qual sofre nossa região. Tradução livre do original: Declaración
Conjunta entre El Presidente de La República Bolivariana de Venezuela y el Presidente Del Conselho de Estado de la
República de Cuba para la creación dela Alba-TCP, La Habana, 14 de diciembre de 2004.
15 Discurso: “El Alba-TCP fue uma inspiración, luego um proyecto, hoy es uma esperanza”.
16 A Alba-TCP é o verdadeiro modelo de integração latino-americano. Integração dos povos, não somente dos mercados, a
da denúncia do acordo Alba-TCP-TCP pelo Congresso em Dezembro de 2009. A brevidade da associação deste país é
conseqüência do golpe de estado ocorrido em 2009 que empossou enquanto presidente interino Roberto Micheletti, então
líder do Congresso Hondurenho e principal opositor ao governo deposto.
Neste ser assim, é conveniente avaliar quais caminhos o processo de integração mercosulino
vem trilhando e perceber de que forma a Alba-TCP pode contribuir na formação de uma zona
econômica mais fortalecida.
20 Por motivos de fidelidade textual e com receio de que a tradução livre não signifique o que o termo pretende, prefiro
mantê-lo no idioma original e expor as razões da Alba-TCP para justificar a expressão: “El concepto grannacional puede
asimilarse al de mega estado, en el sentido de la definición conjunta de grandes líneas de acción política común entre
estados que comparten una misma visión del ejercicio de la soberanía nacional y regional, desarrollando y desplegando cada
uno su propia identidad social y política, sin que ello implique en el momento actual la construcción de estructuras
supranacionales.
Posee también un fundamento socio–económico, basado en la constatación de que la estrategia de desarrollo de las
economías de nuestros países hasta el grado de producir la satisfacción de las necesidades sociales de las grandes mayorías,
no puede limitarse al ámbito local. En esencia, se trata de superar las barreras nacionales para fortalecer las capacidades
locales fundiéndolas en un todo para ser capaces de enfrentar los retos de la realidad mundial. Cada día se hace más patético
el hecho de que nuestra realidad local es nuestra realidad regional.
Por último, este concepto posee un fundamento ideológico que viene dado por la afinidad conceptual de quienes
integramos al Alba-TCP, en cuanto a la concepción crítica acerca de la globalización neoliberal, el desarrollo sustentable
con justicia social, la soberanía de nuestras naciones y el derecho a su autodeterminación, generando un bloque en la
perspectiva de estructurar políticas regionales soberanas.
En consecuencia, lo grannacional es el proceso que experimentamos hoy bajo los principios del Alba-TCP, en la
perspectiva de alcanzar la unión política de nuestras repúblicas para construir la gran nación que soñaron nuestros próceres,
y hacia la cual nos empuja la dinámica del mundo actual dominado por las grandes potencias industrializadas y los bloques
económicos hegemônicos”.
Não obstante tantas propostas e encaminhamentos, nada ainda se concretizou, por isso a
opinião de que, por enquanto, a representatividade da Alba-TCP limita-se ao alinhamento político, a
colocação em pauta da integração latino-americana e a homogeneização das economias dos Estados-
membros.
De fato o que existe entre os países do Mercosul é uma união aduaneira que ainda possui
muitos produtos em listas de exceção, por isso imperfeita. Os mercados nacionais ainda são bastante
dependentes das exportações para países terceiros e o mercado intrazonal é majoritariamente
controlado pelo Brasil.
A Aliança Bolivariana contribui na medida das articulações políticas que estabelece com os
países da América Latina e do Caribe, esse tem sido o seu principal papel, chamar atenção para esta
região do planeta e sensibilizar políticas de modo convergente à sua pauta integracionista.
É verdade ainda que estas experiências associativistas tenham atraído maiores investimentos
para a região. Seja pelo aporte de capital público no âmbito da Alba-TCP, seja de capitais transnacionais
no caso do Mercosul. De uma forma ou de outra, o capital tem flutuado menos de forma centrífuga.
Outrossim, no que diz respeito à atuação em fóruns e organizações internacionais tem sido
fundamental o espaço prévio de concertação política. A defesa de um mundo multipolarizado tem
conquistado suporte entre os países membros de ambas as experiências e propicia o desiderato da
inserção global. Observe o respaldo do discurso do presidente Lula na Cúpula da ONU sobre mudança
climática e o recente repúdio ao bloqueio do espaço aéreo de alguns Estados Europeus para a passagem
da aeronave presidencial de Evo Morales, por exemplo.
Considerações finais
Entretanto, qualquer trabalho que tente unificar as duas experiências será levado à exaustão.
Apesar de convergirem internacionalmente em algumas pautas de reivindicação, os blocos encontram-
se em momentos diferentes. A Alba-TCP engatinha na construção do seu projeto, enquanto o
Mercosul acomodou-se na formação de uma união aduaneira imperfeita.
Cabe ao primeiro refletir acerca da experiência do Tratado de Assunção a fim de traçar a sua
própria história, e, ao segundo, desenvolver ânimo e vontade política de aprofundar as relações entre
seus Estados-membros.
A Venezuela que agora compõe o Mercosul na qualidade de Estado-membro e é a locomotiva
da Aliança Bolivariana pode servir de ponte para o intercâmbio dessas experiências. Neste diapasão
têm-se formado acordos de integração energética regional21, de coordenação política internacional22 e de
aproximação comercial e política com o Brasil23.
É uma oportunidade de coordenar as atividades dos blocos para, talvez, no futuro possibilitar a
formação de uma zona econômica a partir da fusão entre os dois blocos e concretizar a atuação
unificada de toda América Latina e do Caribe.
Referências
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1996.
Alba-TCP. Disponível em http://www.Alba-TCP-tcp.org/. Acessado em 10.07.2013.
ALENCAR, Maria Luiza de. A Constituição Brasileira e a Integração Latino-Americana – soberania e supranacionalidade.
João Pessoa: Editora Universitária, UFPB, 2001.
ALMEIDA, José Gabriel Assis de. Mercosul: manual de direito de integração. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001.
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul e comunidade econômica européia- aspectos políticos dos processos de integração em sua
dimensão institucional comparada. In Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional, a 45, n. 77/78,
jan/mar. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Direito Internacional, 1992.
BALASSA, Bela. Teoria da integração econômica. Tradução de Maria Felipa Gonçalves e Maria Elisa Ferreira. Lisboa:
Livraria Clássica, 1961.
BASSO, Maristela & ESTRELLA, Angela Teresa Gobbi. “Aprimoramento jurídico e institucional do Mercosul”.
Grupo de Reflexão Prospectiva sobre o Mercosul. Brasília: Coleção Países e Regiões, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1999.
CASELLA, Paulo Borba (organizador). Mercosul: integração e globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
CHEREN, Giselda da Silveira. Organização mundial do comércio: economia, direito e subsídios. Curitiba: Juruá, 2003.
21 Declaración de Puerto Iguazú, de 4 de Maio de 2006, articula Argentina, Brasil, Bolívia e Venezuela no debate acerca das
fontes de energia, em especial quanto ao abastecimento gás, procurando estabelecer o diálogo bilateral e coordenar políticas
de estabelecimento de preços.
22 Declaración de Ciudade de Guayana, de 28 de Março de 2005, feita por Brasil, Colômbia, Espanha e Venezuela, trabalha
temas como terrorismo, segurança e integração. Aproveitou para declarar apoio à candidatura do Brasil à vaga permanente
no Conselho de Segurança da ONU.
23 Formação da Aliança estratégica Venezuela- Brasil, em 14 de Fevereiro de 2005, quando os governos decidiram trabalhar
para promover o reforço das relações bilaterais e unir esforços na consolidação da integração regional.
Introdução
D
iante da grave crise imperialista e da guerra, os bolcheviques experimentaram “o critério
especificamente socialista seguinte: a única via conduzindo à gênese de uma melhor
organização da Europa e do mundo é de colocar a questão social e de resolvê-la pela luta
de classes.” (BORDIGA, 1975, p. 76). Na Rússia, em 1917, os opositores vulgares do socialismo e os
intelectuais orgânicos “da ordem estabelecida sentem a terra estremecer sob seus pés”, pois “a revolução
está na ordem do dia da História.” (Ibidem, p. 78). Na Alemanha, em 1915, Luxemburg (2009, p. 272-273),
afirmara que a luta classista “nos limites dos Estados burgueses contra as classes dirigentes e a
solidariedade internacional dos proletários de todos os países são as duas regras de vida inseparáveis da
classe operária no combate, de uma importância histórica mundial, que ela conduz para a sua
emancipação.”
As antinomias fetichistas reforma-revolução e oriente-ocidente dos socialistas vulgares e
superficiais foram contestadas, sobretudo na análise gramsciana dos conselhos russos e italianos (DIAS,
2000, 2006), derivados de uma atitude proletária firmemente anticapitalista e antirreformista, contra a
guerra e contra o imperialismo. As reificações reformistas tornam-se inócuas na “nova ordem” –
[...] na base da qual se torne impossível a existência da sociedade de classes, e cuja
evolução sistemática tenda, por isso, a coincidir com o processo de desaparecimento
do poder do Estado, com a dissolução sistemática da organização política de defesa da
classe operária, que se dissolve como classe para se tornar humanidade. (GRAMSCI,
1976, p. 123-124).
Sobre a permanência do imperialismo e o fortalecimento da forma de Estado fordista, não basta
apenas de retomar as teses marxistas contra a estratégia de organização pacífica da economia mundial
do ultra imperialismo (LÊNIN, 1975) e de integração operária do capitalismo organizado (MATTICK,
1972a,b). Para além da crise do pós-fordismo e da globalização neoliberal, não se configura um retorno
mecânico, pendular de categorias pretéritas, como numa utopia socialista vulgar e superficial. Contra a
repetição da história,
[...] a estrutura dialética da teoria marxista implica que seus conceitos mudam na
medida em que se transformam as relações de classes fundamentais na direção das
quais tendem – mas, de tal maneira que o conteúdo novo é obtido pelo
desenvolvimento dos elementos inerentes ao conceito original, preservando assim a
coerência teórica e até mesmo a identidade do conceito. Tudo isto está igualmente
ligado à noção onde culmina a teoria marxista da transição para o socialismo – noção
de coincidência histórica objetiva entre o progresso da civilização e a ação
revolucionária do proletariado industrial. (MARCUSE, 1971, p. 13).
Marx (1975), Engels (1977) e Lênin (1975) foram opositores radicais da realpolik burocrática do
socialismo estatista. Porém, este realismo político foi posto em prática pelos stalinistas no império
soviético, inclusive nas experiências decorrentes da “adaptação seguida pelos países os mais diversos,
com justificativas ideológicas as mais variadas” (LUKÁCS, 1989, p. 81), conforme os interesses
reformistas ora centrais (ocidentais), ora periféricos (orientais). Na tentativa socialista bolchevique de
extinção do sistema estatal, “Lênin nos prova, na política prática, com o testemunho irrecusável de uma
revolução, que o marxismo é o único meio de prosseguir e superar Marx.” (MARIÁTEGUI, 2007, p.
88).
No fim do século XIX, Lênin (1980) apreendera a natureza revolucionária da crítica da economia
política, no seu objetivo principal de combinar a compreensão e a transformação do estado de coisas
presente, pois assumiu a tarefa “de evidenciar todas as formas do antagonismo e da exploração na
2Sem qualquer “revisionismo”, pois “não cabe aqui readaptar uma filosofia viva ao curso do mundo; aquela se adapta a este
por ela mesma através de inúmeras iniciativas, inúmeras pesquisas particulares, porque ela está inserida no movimento da
sociedade.” (SARTRE, 2005, p. 12).
sociedade contemporânea, de acompanhar sua evolução, de demonstrar seu caráter transitório, sua
transformação inevitável num outra forma e, por isso mesmo, de ajudar o proletariado a acabar tão rápido e tão
facilmente quanto possível com toda exploração.” (Ibidem, p. 318).
Ao longo de cinco anos após a revolução de 1917, antes mesmo da última luta de Lênin (1997, p.
103 et seq.), a experiência soviética foi marcada por um estado de guerra permanente, sob a pressão da
guerra civil (inclusive da fome decorrente das guerras) e do imperialismo (inclusive buscando a
precarização da indústria pesada por recusa de financiamento), sem esquecer a herança da burocracia
czarista, do baixo nível de educação e do subdesenvolvimento econômico, depois de experimentar o
comunismo de guerra, adotou a tática de uma nova política econômica (1921-1928), orientou-se para um
transitório capitalismo de Estado e, sobretudo depois da morte de Lênin (em 1924), fixou-se em definitivo
como um regime ditatorial, que descartou da estratégia de construção do comunismo, tornando-se um
socialismo de Estado, em que foi vitoriosa a brutal reação estatista (autoritária, burocrática e planista),
sobretudo a partir de 1928 e, com a Constituição de 1936, marchando contra a superação do estado de
coisas presente através de uma democracia proletária (LÊNIN, 1975). Evidentemente, este processo
não é a mesma coisa que o socialismo real – marcado pela herança stalinista de exaltação e apreço para
com a ditadura da burocracia, o qual se sustentou, aos trancos e barrancos até o fim da guerra fria, no
término dos anos 1980. Para Jean-Marie Vincent (in RIOT-SARCEY et alii, 2001, p. 173), até mesmo o
“projeto originário” de Lênin “estava contaminado e minado pelo economicismo (os sovietes mais
eletrificação, a imitação do capitalismo de Estado alemão e do taylorismo), e que empregou meios em
contradição com toda emancipação (a coerção em vez da democratização).” Como disse Lênin (1997,
p. 114), uma vez adquirido que “conquistamos o poder para os operários, e que nosso objetivo reside
em estabelecer o sistema socialista com a ajuda de dito poder..., o mais importante para nós era assentar
as bases econômicas da economia socialista. Isto é algo que não podíamos fazer de forma direta, mas
que nos vimos obrigados a recorrer a alguns rodeios.” Porém, já estava se consolidando a “verdadeira
alternativa”, a saber: “stalinismo ou democracia socialista” (LUKÁCS, 1989, p. 45). Em vez da
democracia proletária, de rodeio em rodeio, de tática em tática, foi instaurada a ditadura stalinista, no
quadro do socialismo real e de seu poderoso Estado soviético, elevado sobre os escombros do
desmonte da estrutura dos sovietes (ibidem, p. 102). Nesta situação concreta, uma burocracia
socialmente específica empreendeu “a transformação do método de Lênin e – através dele – do de
Marx” e, em última instância, “implicou em fazer dele algo de diametralmente oposto, quando
aparentemente se tinha grande cuidado de insistir sobre a mais absoluta continuidade, a manutenção
escrupulosa da integralidade.” (p. 97). Porém, “as diferenças entre os primeiros anos da revolução
bolchevique e o Estado stalinista plenamente desenvolvido são evidentes...” (MARCUSE, 1971, p. 94),
do mesmo modo que as abordagens marxianas, engelsianas e leninistas diferem das estalinistas; de sorte
que “estes mesmos que se creem os porta-vozes os mais fiéis de seus predecessores, apesar de sua boa
sociedade historicamente determinada cuja divisa, no seu estádio superior, será “de cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!” (MARX, 1975, p. 16).
Em vez de aceitar que se leve “ao extremo uma forma de naturalização do poder em detrimento
da historicidade constitutiva da vida social e de suas instituições” (BENSAÏD, 2008, p. 54), cabe realizar
a utopia concreta de um mundo melhor, superando a era da barbárie por meio do socialismo, que
somente
[...] acontece por intermédio de práticas e lutas, de um novo ciclo de experiências, de
uma atenção paciente aos esgarçamentos da dominação de onde pode surgir uma
possibilidade intempestiva, pela preparação a « esta decisão excepcional que não
pertence a nenhum continuum histórico », e que é próprio da razão estratégica. (Ibidem,
p. 357).
Nesse processo social e histórico, seriam superadas as condições objetivas que fazem com que a
humilhação, a dominação e a exploração do homem pelo homem continuem existindo. A URSS, ao
contrário, se tornou in fine
[...] uma sociedade pós-capitalista, congelada numa etapa de transição entre o
capitalismo e o socialismo, como resultado de seu isolamento internacional
relativamente aos países industriais mais avançados, de um lado; e, do outro dos
efeitos negativos da ditadura burocrática em todos os campos da vida social. Poderia
ter havido uma regressão ao capitalismo. Caso o poder da burocracia tivesse sido
derrubado através de uma revolução política, teria feito avanços significativos para o
socialismo. (MANDEL, 1992, p. 3).
Como alternativa eficaz à barbárie capitalista, o socialismo como fenômeno historicamente
determinado exige uma estratégia relacionando a situação da formação socioeconômica atual com o
passado e, também, com o futuro. Seja na resposta concreta à problemática de um progressivo período de
transição (BOUKHARINE, 1976) e de uma acumulação socialista primitiva (PRÉOBRAJENSKY, 1972),
imposta pela realpolik burocrático-planista, visando superar os problemas econômicos do socialismo na URSS
(STÁLIN, 1985), seja na problemática geográfica recente do novo imperialismo dos países centrais baseado
na acumulação por despossessão (HARVEY, 2010), todas essas reificações econômicas e espaciais, além de
fazerem prospectivas positivistas sobre o desenvolvimento do imperialismo (seja como socialismo real,
seja como socialdemocracia, ambos na escala global), fazem abstração da dialética entre a base e a
superestrutura, na riqueza das suas determinações formais e funcionais.
Contra o isolamento estrutural e economicista, evidenciou-se que a ideologia de combinar sem
luta a base e a superestrutura serve de premissa tanto para a práxis ditatorial stalinista, para superar os
problemas econômicos na experiência de socialismo real (MARCUSE, 1971), quanto para a práxis libertária
habermasiana, para superar a colonização interna do mundo vital pelo sistema, na proposta de
socialdemocracia radical (FARIAS, 2001), em favor da razão dualista e da razão antinômica,
respectivamente, mas ambas em prejuízo do materialismo dialético e histórico. Ambas fazem abstrações
hipostasiadas reunindo sem antagonismo a base e a superestrutura, onde esta é metódica e
sistematicamente assimilada àquela, no primeiro caso; e, no segundo caso, lhe é paralelizada numa simples
taxinomia funcionalista (HABERMAS, 2000).
Para além da perestroika (MANDEL, 1989), a crise do socialismo real, cuja resolução levou à
democracia de tipo ocidental e à restauração da primazia do mercado, no quadro da unificação do
mercado mundial sob o neoliberalismo, já em curso desde o início dos anos 1980, não deixou de
contribuir para o pessimismo da vontade de superação da sociedade burguesa, embora a crise estrutural
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do capitalismo global persista em recriar elementos objetivos para aquela ultrapassagem. Porém,
subjetivamente, o impulso marxista de superação das formas estatais capitalistas seria absurdo se
fundado seja num “medíocre e passivo sentimento determinista.” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 46), seja
numa “utopia reacionária” (MANDEL, 1992, p. 4) de construção do socialismo do século XXI, num
contexto nacional e isolado. Com efeito, “é uma utopia reacionária o fato de querer criar no quadro
nacional um sistema harmonioso e suficiente composto de todos os ramos econômicos sem levar em
conta condições geográficas, históricas e culturais do país que faz parte da unidade mundial.”
(TROTSKY, 1976, A revolução permanente, prefácio, p. 249). De início, isso é decisivo para observar
radicalmente os elementos das formas estatais capitalistas enquanto totalidade realmente existente na
escala global, como parte de vastas realidades capitalistas; em seguida, para se inserir na dinâmica de
suas potencialidades, suas tendências e suas mutações recentes; enfim, para se engajar na fronte das
suas transformações sociais e históricas, quando a base técnica e econômica, no mesmo diapasão e
correspondente às formas superestruturais globalizadas, depois de adquirir uma relativa coerência,
ampliou e aprofundou sua crise estrutural, cujas mediações estatais sejam reificadas, sejam eternizadas
somente lhe trazem soluções provisórias. De fato, enquanto o modo de produção capitalista for apenas
“abalado, e não transtornado radicalmente pela luta revolucionária do proletariado, as formas do
intelecto, com raízes sociais profundas, da época burguesa só podem ser criticadas, mas não
definitivamente suplantadas pela teoria revolucionária do proletariado.” (KORSCH, 1971, p. 169). Para
tanto, não se deve ignorar, omitir ou abstrair as fontes e as partes constitutivas do pensamento crítico e
revolucionário, arraigado inclusive para além dos próprios marxistas. Com efeito, para Engels (1976,
1977), como para Lênin (1973, 1975), “a importância do marxismo consiste precisamente em se
mostrar capaz de utilizar a totalidade das conquistas importantes adquiridas até hoje pelo
desenvolvimento da civilização...” (LUKÁCS, 1989, p. 99).
Constata-se que “em certas circunstâncias bem definidas, uma filosofia se constitui para dar sua
expressão ao movimento geral da sociedade; e, enquanto ela vive, é ela que serve de ambiente cultural
aos contemporâneos”, por um lado; que, do outro lado, “este objeto desconcertante se apresenta ao
mesmo tempo sob aspectos profundamente distintos, cuja unificação é operada constantemente por
ele.” (SARTRE, 2005, p. 9). Seus ideólogos são intelectuais que se dedicam “à teoria das funções
práticas”, enquanto “homens relativos”, herdeiros do “pensamento vivo dos grandes mortos.” (Ibidem, p.
13).
Atualmente, na situação real da crise estrutural global, com aumento da exploração, da
superpopulação relativa, etc. entre a consciência de classe proletária e as ideologias burguesas de
unificação, ou melhor, de integração por meio da controlabilidade do capital, da empregabilidade, das
regulações reformistas e compensatórias, etc., existe uma grande ruptura que deve ser evidenciada pelos
marxistas, de sorte que sublinhar esta ruptura
3 O reformismo financeiro neokeynesiano é também herdeiro do socialismo “superficial” ou “vulgar”. MARX, 1972,
anexos, p. 189; 1976b, tomo III, anexos, p. 535 et seq.
estrutural global. Neste quadro, “Lênin não está superado, mas o socialismo nacional, mas a «
construção do socialismo num só país » o estão.” (p. 311).
No pressuposto de totalidade concreta, numa perspectiva materialista, dialética e histórica, será
que o desenvolvimento das formas estatais capitalistas planetárias (que se manifestam como OTAN,
FMI, Banco Mundial, G20...) e regionais (que aparecem nas construções da União Europeia, da
Unasul...), assim como a expansão do globalismo jurídico e militar provocaria uma tendência à extinção
do Estado-nação e à sua exclusão do todo orgânico em constituição? O advento da configuração estatal
coletiva ideal planetária poderia se realizar sem causar mudanças formais e funcionais nas categorias
estatais nacionais e regionais? A emancipação através de uma democracia proletária deveria ser centrada
no modo estatal global, sem estabelecer qualquer primazia no seio das formas estatais nacionais,
regionais e planetária?
As formas estatais capitalistas contemporâneas estão configurando um grande silogismo (HEGEL,
1976, 1981, 1993; MARX, 1976a, 1977), no sentido de que suas existências reais se tornam universais
(forma de existência coletiva ideal planetária), particulares (formas de existência regionais) e singulares
(formas de existência nacionais). Cada totalidade concreta, complexa e contraditória constitui um
pequeno silogismo, que implica homogeneização, diferenciação e hierarquização (LEFEBVRE, 1980,
1975, 1978). No contexto desse grande silogismo estatal, de acordo com a lei do desenvolvimento
desigual, sua coexistência conflitiva engendra uma nova totalização concreta, complexa e contraditória
– cuja expressão através da categoria sistema de Estados-nações, num quadro de “influências”
recíprocas entre seus componentes, permanece parcial, inadequada, insuficiente, etc., sendo abstraídas,
“simultaneamente, a unidade do capitalismo e sua diversidade, portanto suas contradições.”
(LEFEBVRE, 2000b, p. 17). Como expressão da ideologia pequeno-burguesa, “certos espíritos
sistemáticos oscilam entre as imprecações contra o capitalismo, a burguesia, suas instituições
repressivas, e a fascinação, a admiração apaixonadas.” (Ibidem, p. 18). Ao se renderem a um “sistema”
pretensamente insuperável, buscam “a coesão que lhe falta, fazendo da sociedade « o objeto » de uma
sistematização dando-lhe uma forma acabada para fecha-la.” (Ibidem). Assim, no novo imperialismo,4 na
sua configuração de guerra fria,
[...] as circunstâncias e a luta da atividade econômica, política e militar levaram a uma
situação a partir da qual os EUA podem dominar o mundo capitalista. Na ausência de
uma redistribuição do poder entre os interesses imperialistas ou de uma mudança no
equilíbrio do poder entre o mundo imperialista e o não imperialista, os EUA podem
dar as cartas, como maior protetor e organizador da rede imperialista. (MAGDOFF,
1978, p. 190).
4 Sobre esta categoria, Callinicos (2009, p. 72) se mostrou muito próximo de Harvey (2010), apesar da identificação de
certas ambiguidades presentes no texto do geógrafo marxista. Na realidade, existe uma verdadeira divergência entre os dois
autores, inicialmente, porque o primeiro não aceita a tese kautskista do ultra imperialismo, retomada pelo segundo; em
seguida, por causa tanto da confusão feita por Harvey entre condições estatais prévias e permanentes da expansão do
capital, quanto à sua centralização regulacionista estreita ao duplo molinete que assegura a permanência do assalariamento e,
portanto, em razão de seu socialismo vulgar e superficial e de sua ideia confusa e limitada do conceito de capital, de seu
movimento e das contradições intercapitalistas.
Conclusão
A concepção materialista e dialética das formas sociais e históricas foi enriquecida e atualizada
pela ontologia dos marxistas do século XX. Certos princípios desta atualização metodológica, que
foram explicitados nas investigações anteriores, já serviram tanto para uma análise concreta das formas
estatais capitalistas atuais, quanto para a crítica da filosofia política correspondente, articulando e
contextualizando duas categorias inéditas, a saber, o modo estatal global (2013b), no quadro mais amplo do
imperialismo global (2013a). As formas de existência historicamente mais avançadas incorporam e
conservam as suas formas precursoras lógicas e históricas mais simples, que se reconfiguram como
elementos de toda a formação socioeconômica global.
A natureza de classe e as bases capitalistas do Estado, com seus aparelhos fenomênicos de
legitimação e burocracia, atualmente estruturam-se na escala mundial, como potência nacional,
superpotência continental e hiperpotência planetária. O desafio do pensamento crítico e revolucionário
no início do século XX residia na simples extinção do Estado nas suas formas nacionais, constitutivas de
um sistema de Estados; no início do século XXI, reside na complexa extinção do modo estatal global. A
antecipação concreta de extinção da totalidade estatal se projeta na via “de uma luta multiforme,
polivalente, mais do que política exclusivamente, ou econômica, ou ideológica e teórica simplesmente.”
(LEFEBVRE, 1975, p. 105-106). No sentido marxiano, “a revolução total”, contra a ordem capitalista,
se distingue das grandes transformações da realpolitik, pela realização de reformas sociais, que
mantenham a ordem capitalista, “pela promoção ou ascensão do social contra o político e o
econômico.” (Ibidem, p. 134).
Enfim, de acordo com o materialismo dialético, a realização prática da tática da extinção anti-
sistêmica das formas estatais específicas não deve negar, mas se combinar com a estratégia da sua
superação como totalidade concreta universal. A situação atual de imperialismo global imprime um relevo
socialista internacionalista à questão da luta de classes e, portanto, do Estado capitalista como um todo,
cuja análise envolve a unidade e a luta das formas estatais concretas (nacionais, continentais e
planetárias), especialmente quando uma grande crise representa uma ameaça ampla e profunda ao
capitalismo. Em suma, a problemática da extinção de suas formas estatais assume uma escala
efetivamente global.
Referências
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Introdução
C
om o fim da Guerra Fria, a emergência da nova ordem internacional transformou as relações
internacionais dos países latino-americanos. Ainda na década de 1980, estes países
recuperaram gradativamente a democracia, ao mesmo tempo em que abandonaram
completamente a política de substituição de importações e o modelo de supremacia do Estado na
economia implantado nas décadas anteriores. A debilidade das economias latino-americanas e a
persistente instabilidade macroeconômica na região facilitaram a adesão completa às receitas
neoliberais, propostas pelas agências multilaterais e pelos Estados Unidos. Assim, durante os anos 1990,
a política econômica dos Estados latino-americanos caminhou para abertura comercial e liberalização
econômica. Era o neoliberalismo instalando-se na região por meio do “Consenso de Washington”, o
qual propunha reformas econômicas estruturais, incluindo privatizações, desregulamentação financeira
e disciplina fiscal.
Embora a adesão ao neoliberalismo tenha sido generalizada, os países adotaram estratégias
nacionais diversificadas no que tange à liberalização comercial. Enquanto o Chile privilegiou a abertura
unilateral com acordos bilaterais, outros países, como o México, firmaram acordos preferenciais com os
países desenvolvidos, e muitos se aproximaram dos países vizinhos, estabelecendo acordos aduaneiros e
formando projetos de integração, como foi entre Brasil e Argentina.
Neste contexto, vislumbraram os processos de integração na região da segunda fase. O
regionalismo aberto denotou um novo momento do sistema internacional contemporâneo. Esse
movimento visou estreitar as relações comerciais entre países de uma região, aumentando as condições
de competitividade e fortalecendo-se diante da intensificação da globalização, a qual propunha maior
liberalização comercial. As iniciativas regionalistas variavam entre a proposta hemisférica da ALCA
pelos Estados Unidos, e propostas regionais, como o Mercosul, marco do regionalismo aberto na
América do Sul.
Não obstante, na década de 2000, cresceu o desencanto da sociedade sul-americana com as
reformas neoliberais da década de 1990. As críticas às políticas econômicas adotadas na região na
década anterior agravaram-se, sobretudo a partir da sucessão de crises econômicas na virada do século,
como a crise da desvalorização do real no Brasil em 1999, e crise argentina em 2001. Além disso, a
1ProfessoraAdjunta do curso de Relações Internacionais, Escola Paulista de Política, Economia e Negócios (EPPEN),
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Doutora e Mestre em Integração da América Latina, Universidade de São
Paulo (PROLAM/USP). Email: regiane.bressan@unifesp.br
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2Ainda que sua definição exata seja bastante controversa e complexa, o neopopulismo é considerado um modelo político
pós-moderno (TRAINE, 2004).
pelos países da região, redefiniu-se a estratégia de inserção internacional dos países latino-americanos. A
convergência de abertura comercial regional esmaeceu em detrimento de estratégias diversas adotadas
por esses países de inserção internacional.
Alguns Estados buscaram ampliar sua inserção na economia internacional, através de políticas
de abertura comercial para bens e serviços e proteção aos investimentos estrangeiros, como Peru e
Colômbia. Outros grupos de Estados firmaram acordos comerciais com os Estados Unidos, como o
Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e República Dominicana. Por sua
vez, perante os obstáculos comerciais impostos pelos países desenvolvidos, como os subsídios agrícolas
e medidas antidumping, acordos com os países em desenvolvimento foram firmados, especialmente pelo
Brasil, que assim o fez com a África do Sul e Índia (TUSSIE, 2010).
No âmbito do Mercosul, Argentina e Brasil firmaram o Consenso de Buenos Aires, em alusão
ao Consenso de Washington. A intenção do documento foi balizar as ações dos dois países,
abrangendo vários temas de interesse comum. O Consenso de Buenos Aires apresentou forte ênfase
política e social, reafirmando os princípios da democracia, da justiça e da equidade, em detrimento do
tema econômico. Neste pacto, Brasil e Argentina prometeram coordenar objetivos comuns, reforçando
a integração regional para lograr interesses nacionais e atingir resultados equilibrados nas negociações
multilaterais (ALMEIDA, 2003).
Passado alguns anos, o cenário internacional intensificou crítica do projeto liberal de abertura
dos mercados e desregulamentação econômica e exacerbou os novos rumos latino-americanos. A crise
econômica de 2008 agravou a sensação dos riscos da interdependência e provocou novas tensões e
conflitos econômicos, dificultando a cooperação internacional. Assim, nos países em desenvolvimento,
revigorou o ideal do Estado forte na economia, com instrumentos de provisão da segurança e coesão
social, ameaçadas pelas incertezas e instabilidade econômicas internacionais (VIGEVANI;
RAMANZINI JÚNIOR, 2010; VEIGA; RIOS, 2011).
Desta forma, um grupo de países mostrou-se cada vez mais resistente à maior abertura
comercial, assumindo, em contrapartida, compromissos de outras naturezas no âmbito dos processos
de integração regional, como Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela (VEIGA; RIOS, 2011).
Inclusive, alguns deles provocaram fortes alterações em suas políticas econômicas ao enrijecer o
protecionismo comercial e expropriarem ativos estrangeiros, como aconteceu na Venezuela e Bolívia,
além do posicionamento intensificado, após a crise econômica mundial de 2008, quando se iniciou um
processo global de revisão de paradigmas de política econômica.
Em resposta à crise da liberalização comercial por meio de iniciativas heterogêneas, surgiram
outros projetos de integração como a Unasul e a Alba, desenvolvidos no marco do “regionalismo pós-
liberal” (VEIGA; RIOS, 2007), pós-comercial ou pós-hegemônico (SERBÍN, 2011). Este novo
conceito expressa uma nova ordem de prioridades regionais, e uma agenda deslocada à esquerda do
eixo do poder político. A principal característica é a crítica ao paradigma liberal, em que se basearam
tanto as iniciativas de integração latino-americana nos anos 1990, quanto às políticas econômicas
domésticas dos países da região.
Segundo seus precursores, no regionalismo aberto, os processos de integração ignoraram temas
relacionados às assimetrias estruturais entre os países-membros, bem como desprezaram preocupações
com as dimensões produtivas e de desenvolvimento. Portanto, esse fenômeno decorreu do
ressurgimento do nacionalismo econômico e politização das agendas econômicas externas de vários
países da região. Tal fenômeno se insere em um marco internacional amplo, que favorece o
protecionismo e o nacionalismo econômico, inclusive nos países desenvolvidos.
O regionalismo pós-liberal é composto tanto por uma agenda integrativa de cunho
desenvolvimentista, resistente à abertura comercial, quanto por uma agenda antiliberal, que propicia a
formação de coalizões entre países afins ideologicamente. A hipótese primordial é que a liberalização
dos fluxos de comércio e os investimentos nos acordos comerciais, não são capazes de promover o
desenvolvimento no interior do processo, reduzem o espaço para implantação de políticas nacionais
desenvolvimentistas e dificultam a adoção de uma agenda de integração voltada aos temas de
desenvolvimento e equidade social.
Por conseguinte, a segunda proposta desse paradigma é a ampliação temática da agenda de
integração, abrangendo assuntos econômicos não comerciais e temas não econômicos. Os novos temas
são selecionados segundo critérios diversificados, mas sempre relacionados com os ideais do novo
paradigma, como necessidade pelo desenvolvimento e pela busca da equidade social, superação da
pobreza e desigualdade, bem como a incorporação de grupos sociais que foram excluídos dos modelos
liberais de integração (VEIGA; RIOS, 2007).
Embora os projetos que despontaram neste período revelem diferenças entre suas intenções e
estrutura, eles compartilham traços característicos deste período que inferem também os caminhos
atuais das relações regionais.
1. Agenda Desenvolvimentista
O retorno da agenda desenvolvimentista, balizada pelo movimento do pós-liberalismo, afastou
a região dos objetivos do neoliberalismo, do regionalismo aberto, do Consenso de Washington e de
suas fórmulas em função de um impulso neo-desenvolvimentista, aproximando-os dos temas sociais e
políticos. É percebido o impulso gerado pelos governos progressistas à consolidação da democracia, da
defesa dos direitos humanos, da inclusão e construção da cidadania, através da maior participação do
Estado na economia e esforços eminentes ao desenvolvimento e redução de desigualdade. Por
conseguinte as nações da região também buscam maior autonomia frente ao mercado, no campo da
política de desenvolvimento e frente à política exterior dos Estados Unidos
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 372
Além disso, foi construído um vínculo entre os ideais da integração regional e os esforços
sociais, como a redução da pobreza e desigualdade, em um contexto político em que a justiça social
adquiriu um novo e maior peso na agenda política da região (SERBÍN, 2011).
2. Estado Forte
O primeiro ponto constitui no retorno do Estado forte e eficiente na política, nas relações
internacionais e no desenvolvimento econômico e social, implicando maior atuação do Estado frente
aos atores privados e forças da economia de mercado. Esta estratégia visa contrapor os Estados ao
fantasma da ameaça e do poder tradicional hegemônico hemisférico dos Estados Unidos pois, na
prática, estes projetos regionais que se conformam são reativos e defensivos à potência estadunidense
(SERBIN, 2011).
Além disso, na ideologia pós-liberal, nacionalismo e regionalismo não se contrapõem. O
regionalismo se fortaleceu perante discursos e políticas neonacionalistas, em conformidade com a
reavaliação dos princípios de soberania nacional. O neonacionalismo intenta construir marcos
regulatórios e instituições regionais e multilaterais efetivas, afastando-se do entendimento que processos
regionais e multilaterais serviriam para fomentar a globalização (SANAHUJA, 2013).
3. Intergovernamentalismo
Ainda que exista a vontade da criação de instituições mais sólidas no âmbito regional, no
concerto pós-liberal, a soberania nacional é legitimada, e o Estado permanece o principal promotor das
iniciativas de integração. Predominam os acordos intergovernamentais, os quais não comprometem a
autonomia ou independência dos Estados.
Contudo, a construção de instituições estritamente intergovernamentais, como instrumento
para a tomada de decisão regional em um contexto altamente politizado, pode impedir o
aprofundamento da arquitetura e de regulamentos regionais mais institucionalizados (SERBIN, 2011).
5. Cooperação sul-sul
Nos últimos anos, presenciou-se também uma crescente atenção à cooperação sul-sul, como
estratégia também para exercer alguma liderança regional e global, como nos casos de Venezuela e
Brasil. Ambos os países, iniciaram diversas iniciativas de cooperação com países do hemisfério sul,
almejando uma vinculação extra-regional e projeção global (SERBÍN, 2011).
7. Desenvolvimento e Infraestrutura
Concomitante à agenda positiva de integração e às novas temáticas somadas aos projetos
regionais, é possível identificar na nova agenda, as crescentes preocupações com os gargalos do
desenvolvimento que assolam os países da região, como a falta de infraestrutura regional. O empenho e
cooperação nesta área, através de projetos como a Iirsa, objetivam melhorar a articulação dos mercados
regionais e, ao mesmo tempo, facilitar o acesso a mercados externos.
8. Demanda social
O último item concerne à busca de fórmulas para promover maior participação de atores não
estatais e legitimação social dos processos integração. Na última década foi possível identificar novas
demandas sociais por maior participação política em decorrência da própria evolução da democracia,
estimulando tanto o aprofundamento e consolidação de estruturas institucionais dos sistemas
democráticos. Ademais, tais movimentos pressionaram pela implementação de políticas adequadas para
superar profundas desigualdades sociais, econômicas e étnicas que caracterizaram a região, no intuito de
aprofundar tanto os direitos políticos e civis, como os direitos econômicos, sociais e culturais.
A integração na América Latina percorreu diversas fases sendo permeada por distintos projetos
regionais e sub-regionais. Destes, alguns fracassaram, outros sobreviveram enfrentando às alterações
políticas e econômicas de cada época. O desafio atual é contemplar e se adequar às novas características
e demandas determinadas pelo momento “pós-liberal”.
A Comunidade Andina, projeto pioneiro no esquema sub-regional, debilitou-se diante à saída da
Venezuela e ao enfraquecimento institucional, com uma possível dissolução do Parlamento Andino,
aconselhada pelos seus respectivos chanceleres e pelo próprio Congresso Nacional da Colômbia. O
bloco parece enfrentar sérias divergências internas em razão dos diferentes intentos políticos de seus
governantes. Colômbia e Peru, com o acordo bilateral com os Estados Unidos, estão mais inclinados à
Aliança do Pacífico, perseguindo os antigos objetivos de abertura comercial. Bolívia e Equador
conformam a Alba e se alinham ao protagonismo venezuelano e aos ideais pós-liberais. A rachadura
criada no seio do bloco demonstra as direções diferentes em que caminham, desmantelando dia após
dia a CAN.
Por sua vez, a entrada abrupta da Venezuela ao Mercosul, conjugada com a suspensão paraguaia
em 2012, não contribuíram para maior institucionalidade deste bloco, tampouco para avançar a uma
arquitetura regional mais desenvolvida e comprometida. Ainda assim, o Mercosul parece acompanhar
os objetivos “pós-liberais”.
Com o fracassado projeto da ALCA, vários os acordos bilaterais foram firmados com os
Estados Unidos: alguns países, como o próprio Brasil, mantém uma relação estável com a grande
potência, outros firmaram acordos de segurança, que não somente incluem os aliados como Colômbia,
mas também Brasil. Ou seja, a exclusão deste país do projeto da Unasul não constitui um indicador de
afastamento entre as nações sul-americanas e os Estados Unidos.
Quanto aos projetos criados no marco pós-liberal, a Alba avança baseada em um esboço
inovador e ambicioso, mantendo sua postura contra os Estados Unidos e preceitos neoliberais.
Todavia, a própria força ideológica que move este processo, parece não favorecer a materialização de
seus objetivos, o aprofundamento de sua estrutura, bem como o alargamento do bloco. A retórica de
suas cúpulas e fóruns demonstra limitada vontade política e efetividade em sua implantação.
A Unasul avança na tentativa de convergência do Mercosul e Comunidade Andina, com adesão
de outros países, como Chile, Guiana e Suriname. O seu destino perpassa os modelos contrastantes do
Mercosul e da Alba, em torno dos fatores que articulam diferentes temas: produção industrial e
inserção no mercado internacional, como os temas energéticos, financeiros e de infraestrutura e
cooperação sul-sul.
A dimensão econômica e comercial provoca dúvida se a Unasul e o Mercosul são processos
claramente pós-liberais, dado a manutenção dos acordos comerciais que configuram sua base de
mãos, perpetuando um amplo déficit democrático, apenas parcialmente legitimado pelos processos
eleitorais.
Assim, além da criação de mais canais democráticos institucionalizados, a renovação da agenda
regional e o interesse pelo neo-desenvolvimentismo, devem desocupar a retórica dos representantes
regionais e passar ao plano de ação efetivo dos projetos regionais. Contudo, as tensões entre alguns
países da região, somados às divergências políticas e ideológicas, e interesses distintos, complicam a
consecução destes objetivos.
Com a criação de novos blocos tão politizados, a região parece causar maior fragmentação. Cabe às
lideranças proponentes destes projetos, superarem este cenário, calçarem-se das possíveis afinidades
“pós-liberais”, no intuito de efetivar o ideal da integração na região.
Referências
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Nós precisamos levar a integração da América do Sul e Latina mais a sério. Nós temos o
chinês nos comendo de um lado, o americano, com o tal do Pacto do Pacífico, nos comendo de outro, e se
a gente não tomar cuidado, a gente vai ficar isolado, ‘solito’
Lula da Silva, Valor Econômico, 14.05.2013
A
criação da Aliança do Pacífico com forte viés comercial recolocou o debate acerca dos rumos da
integração na América Latina e, em especial, na América do Sul. Fundada por Chile, Colômbia, Peru e
México, ela surge como uma via rápida para países que buscam ampliar a liberalização comercial e
facilitar a circulação de mercadorias, pessoas e capitais entre os países membros e as demais regiões do globo,
com destaque para a Ásia-Pacífico.
Na Cúpula de Cali (maio de 2013), o anúncio ambicioso de se eliminar as tarifas aduaneiras de 90% dos
produtos comercializados entre os membros assim que o acordo de livre comércio entrar em vigor, induz a
comparações com a “lenta construção” do Mercosul, “desafiando” assim o ritmo, o escopo, os objetivos e a
concepção da integração liderada pelo Brasil para a América do Sul.
Ao buscar transmitir um ar de que não há mais tempo a perder com encontros, burocracias, concepções
teóricas de integração, os membros fundadores da Aliança do Pacífico imprimem um ritmo pragmático as
negociações. Entre o lançamento da ideia em 2010, pelo então presidente do Peru, Alan García e a sua
formalização em Cali (2013), foram realizadas sete cúpulas, sendo uma delas via teleconferência. O número de
países observadores aumentou e o Paraguai e Uruguai estão entre eles.
Este trabalho analisa as implicações geopolíticas, comerciais e econômicas representadas pelo
surgimento da Aliança do pacífico na estratégia de integração sul americana do Brasil. Argumenta-se que essa
nova associação poderá impor diversas dificuldades para a consecução da conformação de um espaço sul
americano integrado comercialmente, bem como limitar as opções estratégicas do País na região. O desenho
atual da integração regional parece indicar o reforço da fragmentação ao invés da cooperação regional, com a
ênfase dos Estados Unidos na retomada da sua agenda comercial para a região.
Por quase uma década Área de Livre Comércio das Américas (Alca) pairou sobre os processos de
integração da região. Entre as Cúpulas de Miami (2003) e Mar Del Plata (2005), ela naufragou. Desde o começo
das negociações, esse ambicioso projeto dos Estados Unidos para amarrar as economias da região despertou
resistências e desconfianças em parte dos países negociadores, sobretudo do Brasil, Venezuela e Argentina. O
Nessa mesma linha de argumentação Fiori (2013), trata a Aliança do Pacífico como um projeto liderado
pelos Estados Unidos e que busca conformar um “novo eixo político-diplomático e econômico dentro do
continente” e que tem “mais importância ideológica do que econômica, porque sua força decorre diretamente da
sua aliança com os EUA” (p. 38).
O espectro da Alca reforçou a formulação e execução de uma agenda brasileira mais pró-América do Sul
no primeiro governo Lula da Silva. Com a renovação das lideranças políticas sul-americanas e a rejeição da Alca
esperava-se uma nova dinâmica na lógica dos processos de integração. Afastada a ameaça da estratégia dos
Estados Unidos, uma nova oportunidade se abria para a revisão, ampliação e o aprofundamento do tão sonhado
e suado projeto integracionista regional. Apesar da proximidade de identidades ideológicas essa expectativa não
se consumou como o esperado. A nova fase da integração regional vive uma “situação paradoxal” (GARCIA,
2008) e a liderança brasileira deparou-se com novos desafios no processo de integração no subsistema sul-
americano. A razão maior desse paradoxo está no fato de que apesar dos governos de esquerdas se mostrarem
mais inclinados a apoiar o regionalismo, isso não tem sido suficiente para fazer avançar a integração na região.
2 Discurso de transmissão de cargo para Luiz F. Lampreia em 02/01/1995. Resenha de política exterior do Brasil, n. 76, n.
1, 1995, p. 14.
Os objetivos que norteiam a criação da Aliança para o Pacífico estão na Declaração Presidencial sobre a
Aliança do Pacífico firmada em Lima em 28 de abril de 2011 e na Declaração de Cali de 2013. Ainda que os
objetivos arrolados como a livre circulação de pessoas, bem, serviços e capitais, a melhora do bem estar de suas
3 Do total de viagens realizadas ao exterior pelo presidente Lula da Silva, 30% delas foram para a América do Sul, o que
somou 145 dias. A Europa com 32% e 137 dias, África com 11% e 51 dias e a América do Norte com 10% e 47 dias. Folha
de S. Paulo, 10. Set. 2010.
Conclusão
A crise financeira internacional de 2008 incidiu fortemente sobre a agenda regional. Entre seus principais
efeitos, a região apresentou redução no crescimento das economias, aumento do protecionismo, retração nas
exportações e queda dos investimentos. Apesar das adversidades e dos entraves mencionados acima a integração
segue no horizonte.
A Aliança do Pacífico apresenta-se como uma radical liberalização comercial entre os seus integrantes e
com a possível incorporação da Costa Rica e do Panamá, representa a retomada da concepção de integração nos
moldes do regionalismo aberto. Esse “novo eixo político-diplomático e econômico” no continente traz fortes
ecos da estratégia dos Estados Unidos presente na proposta da Alca e do ponto de vista geopolítico, pode
representar uma reversão na busca de autonomia da região frente as políticas econômicas, comerciais e de
segurança de Washington.A agenda pós-liberal inaugurada há uma década tem diante de si um desafio imenso.
O contraponto da Aliança a concepção de uma integração multidimensional para além dos aspectos
econômicos comerciais, na qual as dimensões produtiva, energética e física são agregadas ao processo parece real.
Assim a epígrafe que abre esse trabalho, na qual o ex-presidente Lula da Silva manifesta preocupação de um
Referências
Resumo
Geronimo de Sierra
E
n la larga historia de los proyectos integracionistas en América del Sur, nunca antes se dieron
tantos avances y consolidaciones como en estos años. Sin embargo hay lecturas -entre
académicos y actores políticos- que fundan su "optimismo" (o pesimismo) en
simplificaciones que ocultan los diversos niveles de contradicciones -actuales o potenciales- existentes
en la relación de los sub bloques entre sí y con Europa, Estados Unidos y China. Se analizan los
avances realizados por cada bloque, sus tensiones internas y entre sub bloques, y algunas perspectivas
del desarrollo posible en el próximo y el mediano plazo. También se presenta la naturaleza diversa -
política y jurídica- de los distintos niveles de acuerdos integracionistas, así como su articulación con los
cambios recientes en las relaciones de China con Estados Unidos, Europa y América Latina.
Resumo
O
cerne do problema a se investigar será o impacto de políticas sociais erigidas pelo Direito
da Integração latino-americano como forma de legitimação social. Não se pretende
discutir o objetivo da legitimação, mas o que foi, em verdade, alcançado. Ora, em que
medida a organização e a gestão de atores não-governamentais se beneficiam dessa alta
institucionalização que marca o processo integrador latino-americano? Em que medida os agentes
particulares, no âmbito de suas relações sociais e jurídicas privadas, estão vinculados aos programas de
cooperação internacional e às normas editadas por esses órgãos? Como a sociedade civil enxerga essa
tentativa de legitimação social e em que medida corresponde às políticas implementadas? Em que pese
a constatação dessa nova direção, os estudos internacionais tendem a colocar em relevo o processo
legitimação social da alta institucionalização, com raras discussões sobre os reflexos e os impactos
sociais das disposições jurídicas dessasorganizaçoes.
Introdução
A
guerra do Paraguai foi um importante acontecimento da história americana. Na época da
guerra, o Brasil que ainda era império estava em fase de consolidação territorial e também
estava lidando com uma serie de revoltas internas, que foram duramente reprimidas. A
Argentina também se encontrava na mesma situação brasileira, pois não tinha consolidado suas
fronteiras e ainda tinha a pretensão de criar um grande Estado hispânico (que envolvia várias Nações
do antigo Vice-Reino do Prata) no continente Americano, com faces a fazer frente ao Brasil.
Inicialmente as relações entre Brasil e Argentina, eram temperadas por uma grande rivalidade e
por uma acirrada competição, pois estavam em jogo a liderança regional, interesses diversos, questões
geopolíticas, a consolidação nacional de ambas as partes, bem como as Nações representavam uma para
a outra como potenciais inimigos. O Brasil atuou nesse período com um ágil e estratégico jogo de
diplomacia e acabou por “domesticar” o rival, visto que interferiu na política argentina através do apoio
de grupos rebeldes que tomaram o poder, bem como fez alianças estratégicas com outros vizinhos a
fim de enjaular o leão argentino (por exemplo, o Chile e a Bolívia). As relações vizinhas, onde
divergiam as atitudes conflitivas e cooperativas, culminaram na Guerra do Paraguai, onde pela primeira
vez na história essas Nações cessaram as situações conflitivas entre eles e lutaram do mesmo lado
contra um inimigo comum (CERVO; BUENO, 2002).
Posterior a esse evento, o Brasil e a Argentina passaram a ter uma relação que hora os
aproximava, hora os afastava. Estas relações eram calcadas em suas diretrizes de política externa e
dependiam seriamente do perfil político dos chefes de Estado das duas Nações. No período militar, a
partir do governo Geisel, essas relações passaram a melhorar e posteriormente, com a retomada da
democracia nos dois países, a integração entre os dois países cresceram consideravelmente, culminando,
futuramente na criação do Mercosul, que institucionalizou a cooperação e integração entre os dois
países, somando ao processo o Uruguai e o Paraguai.
Esse estudo se mostra importante para as Relações Internacionais e para as Ciências Humanas e
Sociais, sobretudo quanto às relações internacionais americanas, pois a Guerra do Paraguai foi um
conflito que marcou duramente a história americana e envolveu também agentes de outras partes do
globo (Inglaterra, por exemplo), contando com a participação de um número expressivo de países, o
que envolve suas respectivas populações e uma série de fatores. As relações entre Brasil e Argentina
também é algo importante, por se tratar de duas Nações que divergiam bastante no passado, se
tornaram parceiras ao longo da história e juntas formaram o alicerce do processo integracionista que
deu origem ao Mercado Comum do Sul (Mercosul) e são países que vem evoluindo constantemente no
cenário internacional, adquirindo pouco a pouco “seu lugar ao sol”. A boa relação entre vizinhos no
continente também serve de exemplo para as outras Nações americanas, exaltando a cooperação
regional, assim mesmo não deixam essas relações de ser competitivas, dadas a realidade internacional
(CERVO; BUENO, 2002).
Durante a realização deste, levanta-se a hipótese de que essas relações inicialmente foram de
rivalidade e de certa forma conflitivas, sendo amenizadas durante o passar dos anos, quando a
cooperação sul-americana começou a avançar, passando essas relações a ser de parceria e
competitividade. Essa hipótese busca responder o problema levantado: as relações entre Brasil e
Argentina são ou não conflituosas?
A fim de se testar a hipótese e se responder o problema, avaliaremos o comportamento
desenvolvido por estas Nações em suas inter-relações desde a independência destas até os atuais dias.
Com essa perspectiva, será utilizado nesse artigo o método qualitativo, através de pesquisa e
revisão bibliográfica, que fará uma análise histórica da relação entre essas duas Nações, com ênfase na
participação brasileira, bem como se fará um breve histórico das relações que antecederam essas
relações, tendo como ponto de partida a primeira onda de independência americana. Posteriormente,
analisar-se-á as relações entre as duas Nações no período militar e por fim, o processo de integração
entre as duas Nações, como consolidadora da parceria entre os dois países.
Esta análise abordará inicialmente parte dos fatores históricos regionais que antecederam a
guerra do Paraguai e como essa se desenrolou.
independência de Simón Bolívar, previa-se a criação de uma grande Nação, derivada do Vice-Reino da
Prata, que compreendia vários dos atuais países hispano-americanos, como a Argentina, o Paraguai e o
Uruguai. Entretanto, ondas separatistas e a formação de fortes grupos regionais ocasionaram a
separação entre as regiões e com isso, o sonho da República Bolivariana das Américas parece ter
chegado a um fim (CERVO; BUENO, 2002).
Posterior ao processo de independência, a delimitação das fronteiras, o desenvolvimento e
comércio, bem como a liderança regional passaram a guiar as relações sul-americanas. O Brasil de certa
forma saiu na frente, dado a unidade nacional que se manteve e das relações comerciais mais
favorecidas pela propicidade do território brasileiro para a produção nacional. Assim, o Brasil passou a
influenciar nas decisões dos países vizinhos, desestabilizando governos e interferindo em assuntos de
política externa, tendo também inserido fortes aliados dentro dos países da América do Sul. Outra
Nação ameaçava forte mente a hegemonia brasileira na Bacia da Prata, pois apresentava um elevado
índice de desenvolvimento e independência, bem como possuía alguns territórios que eram de interesse
brasileiro: o Paraguai. Não obstante, a Argentina, que até então via o Brasil como um sério e poderoso
rival, almejava reconstituir o território do Vice-Reino da Prata em uma mega Nação que pudesse fazer
frente ao império brasileiro. O Uruguai, após a independência, iniciou seu próprio ritmo de
desenvolvimento e ao que parece, simpatizava com o projeto bolivariano e com os planos da Argentina.
O Brasil frustrou esses planos intervindo para que os governos nacionais desses países caíssem,
apoiando grupos revoltosos. As relações entre esses países, que foram discordantes em vários pontos
acabou por culminar na Guerra do Paraguai (CERVO; BUENO, 2002).
A Guerra do Paraguai foi um desastroso acontecimento que envolveu a América do Sul, tendo
como protagonistas, de um lado, Brasil, Argentina e Uruguai e do outro o Paraguai. A guerra em
questão arrasou as estruturas do Paraguai e com isso prejudicou seu desenvolvimento, o que permanece
até os dias atuais. Essa guerra causou milhares de mortes e também trouxe muitos danos às partes
envolvidas, sobretudo ao Paraguai, como já dito, causando ainda um grande endividamento externo aos
países envolvidos. Não é a intenção deste trabalho se aprofundar na Guerra do Paraguai. Apenas
utilizamos esta como referência de um importante ponto da relação Brasil-Argentina.
O Brasil passou a ser visto pelos países da América do Sul como imperialista e aspirante a
hegemonia regional a partir da guerra do Paraguai e dos acontecimentos que a sucederiam, sobretudo
pela Argentina, e com a hábil atitude diplomática que permitiu ao Estado brasileiro a consolidação
territorial nacional, bem como a aproximação com os Estados Unidos colocaram o Brasil em uma
posição de isolamento e de temerosidade, o que será referido a seguir (CERVO; BUENO, 2002).
Mesmo após a vitória da guerra por parte dos três aliados, esses ainda divergiram sobre os
termos do fim da guerra. No fim da Guerra do Paraguai, as Nações aliadas tinham se comprometido a
negociar o Tratado de Paz com o Paraguai em conjunto. Entretanto, devido a divergências entre os
auto-representantes do Brasil (que contava com o apoio do auto representante uruguaio e tinha boas
relações com o governo provisório paraguaio) e da Argentina, os países envolvidos na Guerra
negociaram separadamente os acordos de paz com o Paraguai. O primeiro país a negociar o acordo de
paz com o Paraguai foi o Brasil, causando um sério mal-estar com a Argentina. De ânimos exaltados,
essa atitude brasileira foi considerada pelos argentinos como uma atitude baixa e desleal da coroa e
assim uma séria tensão começou a surgir entre as duas Nações, que começaram a se rearmar para uma
possível guerra entre as duas Nações. Esse conflito só foi evitado, pois ambos os países estavam com
suas condições financeiras e militares seriamente prejudicadas pela Guerra com o vizinho paraguaio,
tendo Bartolomé Mitre resolvido esse contencioso com o governo brasileiro através de diplomacia, em
junho de 1872 (SALES, 2011. Online.).
Entretanto, devido à política externa desempenhada pelo governo brasileiro dos períodos
seguintes, que previam um direcionamento de prioridades para outros países do globo, como os
Estados Unidos e outras potências desenvolvidas, em detrimento das relações com a América Latina, o
Brasil passou a ser visto como um país com intenções hegemônicas no continente, tendo sua imagem
atrelada à imagem negativa dos Estados Unidos no Continente Americano. Esta visão negativa do
Brasil perdurou por um longo período de tempo.
Nos anos que se seguiram, as divergências de política externa entre as duas Nações eram
consideráveis, estando à Argentina mais alinhada à Grã-Bretanha e o Brasil mais aproximado com os
Estados Unidos. Entretanto, as relações entre os dois países melhoraram com a proclamação da
República no Brasil, sendo ainda resolvido um contencioso fronteiriço importante sobre a região de
Palmas/Missões. Firmou-se, em 1898 o Tratado de Fronteiras entre os dois países, assinado pelo
presidente argentino Julio A. Roca e pelo presidente brasileiro Campos Sales. Buscou-se por esses
governos evitar as tensões correntes entre os dois países (CANDEAS, 2004. Online).
O Brasil, sobre influencia de alguns postulados da Doutrina Monroe começa a se rearmar e
reconstituir sua marinha, o que é visto com apreensão pelos argentinos, que também passam a se
rearmar, com vistas a fazer frente ao Brasil. Como reflexo, na América Latina, ocorre o aumento da
percepção do Brasil como um instrumento de controle dos Estados Unidos na região, onde a Nação
brasileira passa a ser vista como um país-chave nas mãos dos estadunidenses4.
4[...]
São as teorias do subimperialismo, do imperialismo por procuração que entram em voga não só junto às esquerdas
latino-americanas. Oscar Camilión, por exemplo, representante do desenvolvimentismo argentino, populariza a versão do
país chave, que toma emprestada dos escritos sobre a política dos EUA em outras regiões. Segundo esta interpretação,
As visões de política externa entre Brasil e Argentina continuaram divergindo pelos anos que se
seguiram. No período da Primeira Guerra Mundial, por exemplo, o Brasil se alinhou aos países da
Tríplice Entente, enquanto a Argentina se manteve como país neutro. Conseguinte, na Grande
Depressão de 1929, manteve-se aliada à Grã-Bretanha, mesmo que esta não a favorecesse com a
Commonwealth, enquanto o Brasil estreitou cada vez mais os laços com os Estados Unidos, buscando
obter vantagens para se desenvolver e visualizando o declínio da Europa. Segundo o diplomata
Alessandro Warley Candeas,
A Argentina insistiu em permanecer atrelada a uma potência mundial em
declínio – o Reino Unido14 – pois acreditavam que, cessados os efeitos da
Grande Depressão, tudo voltaria à normalidade. A dirigência argentina não
tinha clara a decadência da Europa, sobretudo da Grã-Bretanha, como centro
econômico e financeiro do mundo, e a ascensão dos Estados Unidos aos status
de potência mundial. Com isso, perde a chance de redefinir a estratégia de
inserção mundial e de atualizar sua política econômica, incorporando valor
agregado aos produtos primários e lançando a industrialização (CANDEAS,
2004. Online).
Washington delegaria a um key-country em cada área, o mandato de manter a ordem e a estabilidade da Pax Americana,
sendo o Brasil o escolhido para esse papel na América do Sul. (RICUPERO 2002 apud, ABDENUR, 2007, p. 197)
de combate ao comunismo, prevendo ainda a relação comercial com os países do bloco socialista como
uma das formas de favorecer a balança comercial brasileira (CERVO; BUENO, 2002).
Na Argentina, no mesmo período, surgem também governos populistas, sendo os de maior
expressividade política o de Juan Domingo Perón, que junto de sua mulher Maria Eva Duarte Perón
(ou Evita Perón) criaram uma série de importantes diretivas que aumentaram constantemente a
presença do Estado argentino na promoção do desenvolvimento e Arturo Frondizi, que é considerado
o JK argentino, em termos de desenvolvimento nacional baseado na substituição de importações
(CANDEAS, 2004 in. Scielo, 2011).
Posteriormente, caem os governos populistas e em toda a América Latina ocorrem golpes
militares, formando-se uma série de ditaduras, apoiadas pelos Estados Unidos. Como desvio da política
regional brasileira, pode-se citar que o Brasil apoiou golpes de Estado contra movimentos de esquerda
nos países vizinhos, em ações paralelas das forças armadas.
As pautas para todos os países da América Latina, principalmente para o Brasil, continuam a ser
o desenvolvimento regional e a busca de investimentos dos Estados Unidos para que esse aconteça.
Durante o governo Costa e Silva, o segundo governo militar, mais precisamente em 1969, reuniram-se
19 ministros de Relações Exteriores latino-americanos, que apresentaram ao então presidente Richard
Nixon, através da Cecla (Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana) o Consenso de Viña
Del Mar, documento que continha as reivindicações dos latinos, esperançosos em converter a OEA em
instrumento efetivo de cooperação entre as Nações americanas, através da atuação da Aliança para o
Progresso5, criada pelo presidente estadunidense John Kennedy.
Também em 1969, no dia 23 de Abril, foi firmado o Tratado da Bacia do Prata entre Brasil,
Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia, para promover um desenvolvimento harmônico e a integração
física da Bacia do Prata e suas áreas de influência. Ainda nesse ano, apareciam as primeiras divergências
com a Argentina sobre o aproveitamento dos rios e o sequestro de aeronaves brasileiras, enviadas para
Cuba (CERVO; BUENO, 2002).
Ainda no governo Médici, o Brasil tentou novamente, junto à Alalc, adquirir preferência na
zona de livre comércio para seus produtos industrializados, mas não obteve êxito. Mas mesmo com
estas últimas investidas que apresentaram pouco sucesso, o Brasil continuou com seu processo de
inserção regional, fazendo com que essa tomasse uma forma mais ousada, se encontrando neste
período a elaboração de grandes projetos de cooperação com o Paraguai (hidroelétrica de Itaipu), com a
Bolívia, para compra do gás natural e complementação industrial, através da Ata de Cooperação de
1973, com a Colômbia, onde promoveu estudos para a criação de uma empresa binacional do carvão e
5A Aliança para o Progresso foi uma das respostas do governo estadunidense para o Pacto de Varsóvia e as medidas que a
URSS tomavam para favorecer os países do bloco. Nisto estava incluso investimentos de grande porte, que ao contrário do
que esperavam os países da América Latina, foram direcionados majoritariamente para a reconstrução europeia, no pós-
guerra.
com o Uruguai, elaborando projetos de desenvolvimento para as bacias da lagoa Mirim e do rio
Jaguarão, todos os projetos firmados em 1973 (BARBOSA; PANELLI CÉSAR 2004 apud
ABDENUR, 2001).
O Brasil ainda negocia e assina o Tratado de Itaipu com o Paraguai, em 1973, antes de resolver
seus problemas com a Argentina, referentes ao aproveitamento hidroelétrico do Rio Paraná, o que
amplia a sensação de ameaça que o Brasil emanava. Nesta situação, o Brasil, impôs a Argentina o ajuste
de seus interesses para corroborarem com os desígnios brasileiros. Acontece que o Brasil fora capaz de
impor custos à Argentina e esta não dispunha de poder e meios de retaliação, não se fazendo necessária
a negociação com a mesma, do ponto de vista da diplomacia da época. A Argentina passou, então, a
fazer oposição aos esforços de integração que estavam sendo desenvolvido, temerosa às visões
geopolíticas do General Golbery do Couto e Silva, que de fato não influenciaram significativamente a
política externa brasileira. No entanto, a Argentina, mesmo com seus receios, cooperou
harmoniosamente com o Brasil através dos mecanismos do Tratado da Bacia da Prata, que
proporcionaram o surgimento das primeiras resoluções da disputa acerca da construção das
hidroelétricas nos rios platinos. A diplomacia brasileira, sabendo da fragilidade que essa relação
apresentava, foi forçada a reiterar seu total desinteresse e abominação por hegemonias e que estas não
faziam parte das pretensões nacionais, bem como a afirmação do interesse no avanço das negociações e
resoluções dos problemas e divergências existentes, mesmo que fosse necessária a diminuição da
projeção real que o Brasil possuía, tanto frente à América Latina, quanto à que era visível no cenário
internacional (CERVO; BUENO, 2002).
Mesmo com o reconhecimento dos países latino-americanos sobre o fato de o Brasil seguir sua
política externa baseada em seus interesses nacionais e não como interlocutor da vontade
estadunidense, ainda eram necessárias outras ações para uma mudança ainda mais expressiva da visão
destes sobre o Brasil. Além das medidas desenvolvidas, a conciliação com a Argentina sobre a utilização
dos recursos hidrelétricos na Prata, através do Acordo Tripartite (Argentina, Brasil, Paraguai) em
outubro de 1979, foi a que apresentou maior representatividade para a desconstrução da imagem de
novo país hegemônico ou de defensor dos interesses estadunidenses que pairava sobre a sociedade
brasileira. Soma-se a isso também a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em julho
de 78 e a participação brasileira no processo de negociação dos contenciosos entre o Peru e Equador e
Argentina e Chile, o que conferiu um progresso significativo quanto à confiança conferida ao Brasil na
América Latina.
Foram ainda assinados uma série de acordos, dentre eles os acordos de desenvolvimento com o
Uruguai (1974, 1975, 1977 e 1978), infindáveis acordos com o Paraguai, em complemento ao tratado de
Itaipu (1974, 1975 e 1978) e os tratados com a Bolívia (1974 e 1977), que reforçavam a posição
brasileira na Bacia do Prata, fora a recusa de uma proposta nuclear, considerada desinteressante após a
conclusão do acordo com a Alemanha, mas que foi revista posteriormente. Segundo Cervo e Bueno
(2002), as transações comerciais e cooperativas foram fatores fundamentais para a mudança na imagem
do Brasil na América Latina, de inimigo a ser temido a parceiro a ser respeitado. As relações com a
América Latina foram amarradas por uma teia de contratos, por vezes verdadeiros pacotes econômicos,
firmados com todos os países importadores, à exceção da Argentina e do Chile. Somavam-se a estes
dezenas de projetos de cooperação implementados pelo Brasil, com recursos do PNUD (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento), na América Latina e na África. (CERVO; BUENO, 2002)
Posteriormente ocorreria uma série de Acordos com a Argentina, rompendo os desafetos que
haviam surgido pela não participação inicial desta nas negociações para a construção da Usina de Itaipu,
pois a Argentina temia uma postura de potência hegemônica brasileira e de subordinação aos Estados
Unidos, fora o fato de esta não dispor de poder repressivo para fazer com que o Brasil entrasse em
negociação, pois esta questão também se situava fora da área de interesse brasileira.
Geisel assumia o governo brasileiro em 1974 e em sua atuação manteve a mesma estratégia de
relacionamento com a América Latina que já vinha sendo desenvolvida pelo governo Médici, marcada
por ações em diversos âmbitos como nos órgãos multilaterais regionais, particularmente no SELA
(Sistema Econômico Latino Americano, criado em 1975 por meio de tratado), na OEA (Organização
dos Estados Americanos), na Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio, que
posteriormente se transformaria na Aladi – Associação Latino-Americana de Integração), vendendo
uma imagem de país não hegemônico, adepto à integração regional (buscando a eliminação das
pejoratividades pelo qual era visto), por intermédio da diplomacia presidencial personalista, que teve um
grande incremento, sendo alguns deles o afinamento da posição em política internacional, a dissuasão
de consensos de grupos, a demonstração de força quando fosse necessário e promovendo projetos de
intercâmbio e no âmbito bilateral, o reforço dos programas que já se encontravam em andamento e a
ampliação da cooperação, no plano das intenções em volume considerável (CERVO; BUENO, 2002).
Neste mesmo período, a Argentina se tornava o terceiro maior importador dos produtos
brasileiros, perdendo apenas para EUA e Alemanha, mas era o primeiro em importação de produtos
manufaturados. Mas este bom relacionamento se restringia ao campo do comércio, pois o
relacionamento com este país sempre foi delicado. No entanto, em 1975 a Argentina propôs ao Brasil
um acordo de cooperação nuclear, que o Brasil achou por bem não assinar, e como desculpa à recusa,
usou os recentes tratados com o Paraguai e Bolívia, que, segundo o governo nacional, estavam
concentrando os esforços e recursos brasileiros, que já utilizava recursos advindos do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
A par destes acontecimentos, na década de 80, sobretudo em seu início, ocorreram dois eventos
que influenciaram fortemente o retorno do interesse brasileiro na retomada do processo de cooperação
e articulação política com os demais países latinos, sendo eles a concretização do Acordo Nuclear com
a Argentina (1980), restrito à utilização deste como fonte energética, com fins pacíficos, acontecimento
que marcou o processo de construção de confiança mútua entre as duas Nações, de característica
estratégico-militar e o apoio brasileiro à Argentina na Guerra das Malvinas (1982) contra o Reino
Unido.
Assim, as relações entre Brasil e Argentina, que antes eram afetadas seriamente por corridas
armamentistas e uma forte rivalidade, começa a rumar principalmente pela cooperação e integração,
tendo como pontos fundamentais a questão nuclear e o intercâmbio comercial (OLIVEIRA, 1998.
Online).
Segundo Brum (1997), a volta dos interesses nacionais para a região latino-americana aconteceu
por conta das dificuldades encontradas pela diplomacia brasileira na inserção em outros espaços
econômicos e também pela deteriorização da imagem negativa que encobria o Brasil aos olhos da
América Latina. Houve, portanto, o crescimento político brasileiro na região, visíveis nos efeitos do
crescimento brasileiro em relação ao continente sul-americano, no aumento da participação do Brasil
nos mecanismos regionais, os investimentos e projetos de cooperação desenvolvida, dentre vários
outros aspectos e, no plano econômico, o crescimento das trocas comerciais crescentes, que
proporcionaram ao Brasil um balanço favorável neste período. Ressalta-se ainda a ação da diplomacia
brasileira em destruir os estereótipos criados acerca do Brasil na América Latina e no reatamento das
relações com a Argentina, que não deveria ter sido excluída em momento algum da integração platina e
sim constituir-se como outra peça chave no êxito desta.
A partir dos anos 80, torna-se evidente o enfraquecimento dos instrumentos de liberalização do
comércio regional na América Latina, dada a vontade política limitada quanto à integração, como pode
ser notada na crise do endividamento externo (1982). Surge então uma corrente de pensamento que
sugere um projeto de integração mais realista e adequado à nova realidade mundial. Dado o perigo de
uma marginalização ainda maior da América do Sul e as constantes mudanças do sistema internacional,
a pauta de integração regional passa a circular em torno da valorização da interdependência ativa entre
os países da região, propiciando um contexto de crescente abertura internacional e de liberalização
econômica interna (BRUM, 1997).
Começa a florescer na América Latina os primeiros sinais de que os regimes ditatoriais estavam
enfraquecendo e que estes cederiam lugar à governanças democráticas. Posterior à esses regimes
ditatoriais, a onda democrática invade a América e começam os movimentos de derrubada das
ditaduras por toda a parte.
No Brasil, a liberalização comercial foi feita gradualmente, ao passo que se mudavam as ideias
sobre os perigos da interdependência e crescia a necessidade de se integrar aos acontecimentos
internacionais da modernidade. Os primeiros esforços concretos da parte brasileira aconteceram no
governo Sarney, tendo como parceiro a Argentina. Em 1986, os presidentes José Sarney e Raúl
Alfonsín finalizam as negociações que instituiriam o acordo de cooperação e de comercio bilateral entre
Brasil e Argentina, ao qual mais tarde viriam se juntar o Uruguai e o Paraguai, respectivamente.
Nesse contexto, superadas, de uma parte, décadas de receios recíprocos e desconfianças mútuas
(e com o advento da redemocratização – é sempre vital recordar), e, de outra, um modelo econômico
que consagrara a substituição de importações como matriz para a industrialização, a partir de 1985, os
Presidentes da Argentina e do Brasil – democraticamente eleitos – decidem tomar a decisão política de
iniciar um processo real de integração econômica, que não mais estaria subordinado ao ritmo dos
esforços multilaterais regionais, mas seria condicionado pela própria vontade e determinação dos dois
países em fazer avançar no terreno prático a relativa complementaridade já existente entre as duas
economias (BARBOSA; PANELLI CÉSAR 2004 apud ABDENUR, 2001)
Decorrente deste acontecimento, em 1985, os presidentes Sarney e Alfonsin assinaram a Ata de
Iguaçu, que no ano seguinte passou a ser denominada como Programa de Integração e Cooperação
Econômica Brasil-Argentina, com protocolos complexos e institucionalizados. Este programa se
fundamentava nos princípios de gradualidade, flexibilização, equilíbrio e assimetria, que passou a adotar
uma estratégia de integração crescente, gradual, pelos setores industriais, onde a complementaridade
econômica dinâmica se tornava o núcleo deste processo de integração. Os resultados foram
satisfatórios para ambos os lados, sobretudo no que diz respeito às trocas bilaterais, pois estas vinham
de um declínio na primeira metade dos anos 80, aumentando progressivamente após os atos
integracionais, crescendo em torno de 12% ao ano.
Na sequência do processo, em 1988 é conferida nova dinâmica ao processo de integração
bilateral, através da assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, que previa a
criação de um espaço econômico comum no prazo de uma década, que contaria com a eliminação de
todos os obstáculos alfandegários e não alfandegários (que aconteceria gradualmente) e o
aprofundamento da liberalização comercial bilateral (BRUM, 1997).
Após a restauração da democracia nos diversos países latino-americanos, nos anos 1990, a onda
neoliberal toma conta da região. As políticas promovidas abrangiam diversos setores, mas influenciava
principalmente os planos político e econômico. Em 1990, os presidentes Fernando Collor de Melo e
Carlos Menem decidem acelerar ainda mais o processo de integração que vinha se desenrolando,
antecipando o estabelecimento do mercado comum bilateral para 31 de dezembro de 1994. Esses
passos desenhavam os primeiros contornos do que viria a ser o Mercosul. No mesmo ano, após
intensas negociações, em ato contínuo, os representantes de Brasil e Argentina, junto à Aladi, puderam
firmar um Acordo de Complementação Econômica, que passou a reger as relações econômico-
comerciais entre os dois países entre 1991 e 94. (BARBOSA; PANELLI CÉSAR, 2004 apud
ABDENUR, 2001)
O Brasil conseguiu atingir a cifra de 2,2 bilhões de dólares no comércio com a Argentina em
1990, o que demonstrou a alta lucratividade que o acordo Brasil-Argentina representou, estando à
Argentina em posição ainda mais privilegiada, já que esta duplicou suas vendas para o Brasil, que se
tornou seu principal destino de exportação (superando os Estados Unidos) e passou a acumular saldos
comerciais favoráveis desde então.
Convém ainda citar a Iniciativa Amazônica, projeto lançado pelo presidente Itamar Franco em
Buenos Aires (1992), no encontro do Grupo do Rio. Consistia na demonstração do interesse nacional
em aumentar as relações comerciais e econômicas para com os países amazônicos (Peru, Bolívia,
Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana e Suriname), logrando ganhos enumeráveis para todos os
envolvidos. Nesse momento, o Mercosul já demonstrava que constituiria um novo agrupamento sub-
regional no Cone Sul e assim, o Brasil passou a entender como necessária a aproximação com os países
do Norte da América do Sul, visando explorar os potenciais econômicos e comerciais que esta oferecia,
utilizando-se da cooperação política que era proporcionado pelo Tratado de Cooperação Amazônica,
que possuía ao mesmo tempo uma moldura estável e ao mesmo tempo flexível, para possibilitar a
cooperação entre seus membros constituintes (BRUM, 1997).
Esses acontecimentos repercutiram amplamente no contexto regional, onde o Uruguai,
preocupado em ser isolado economicamente pelo desenvolvimento que o processo de integração
proporcionava, engatou as negociações para aderir ao processo de integração corrente. Em um curto
espaço de tempo, o Paraguai também adere ao ato integracionista. Ocorre então uma mudança, no
espaço de poucos meses, na geografia econômica do Cone Sul, que viria a culminar em uma nova
entidade comunitária, que causaria impacto em todos os sentidos na vida econômica, tanto regional,
quanto mundial. Surge então, através da modificação dos mecanismos de integração regional e da
mudança de percepção sobre a interdependência ativa, o Mercosul – Mercado Comum do Sul, um
projeto de união aduaneira entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, pelo tratado de Assunção de
1994, notadamente o processo de integração latino americano que mais prosperou, mesmo com déficits
estruturais evidentes, que precisam ser melhorados, uma iniciativa de zona aduaneira (zona de livre
comércio de uma série de produtos, somada a uma tarifa externa de importação e exportação comum)
que busca atingir o status de zona de mercado comum (economia completamente integrada, com
legislação comercial comum, como na União Europeia).
A diplomacia presidencial, meio pelo qual a figura do governante de Estado toma frente do
corpo diplomático e através da personificação que lhe é conferida, busca fechar negócios de toda a
sorte com outros países foi fator fundamental nesses processos de integração.
Considerações finais
De acordo com a análise histórica e com os fatos que marcaram as relações Brasil-Argentina,
confirmou-se a hipótese de que as primeiras relações entre os países foram conflituosas e de alto teor
de rivalidade, sendo alterada essa situação ao longo da história, onde os países pouco a pouco e
timidamente passaram a se aproximar, divergindo ainda em alguns pontos e por fim, consagrando
através do processo de integração regional e parceria estratégica boas relações nos dias atuais.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 402
Referências
ABDENUR, Roberto. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. 2ª Ed. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2001.
BRUM, Argemiro J. Desenvolvimento Econômico Brasileiro. 17ª Ed. Petrópolis. Editora Vozes, 1997.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 2º Ed. Brasília. Editora UNB.
2002.
CANDEAS, Alessandro Warley. Relações Brasil-Argentina: uma análise dos avanços e recuos. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v48n1/v48n1a07.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2011.
OLIVEIRA, Odete Maria de. A integração bilateral Brasil-Argentina: tecnologia nuclear e MERCOSUL Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v41n1/v41n1a01.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2011.
SALES, Thiago Rabelo. AS Relações entre o Brasil e o Paraguai no Contexto do pós-guerra (1870-1876). Disponível em:
<http://pt.scribd.com/doc/48756081/AS-RELACOES-ENTRE-O-BRASIL-E-O-PARAGUAI-NO-
CONTEXTO-DO-POS-GUERRA-1870-1876>. Acesso em: 10 jun. 2011.
Introdução
A
difusão de ideias liberais, a partir do último quartel do século passado, resgatou a crença de
que o espectro de atuação do Estado deveria se restringir às forças do mercado. Retomava-
se, assim, alguns princípios do liberalismo como estratégia de desenvolvimento econômico e
como justificativa política à intensa internacionalização da produção e à desregulamentação financeira.
Nesta visão neoliberal2, os Estados, sobretudo os da periferia, deveriam ser ajustar às exigências do
mercado e das grandes potências, que patrocinavam a difusão da globalização. Suas prerrogativas se
limitariam a função de fornecedor dos serviços sociais e públicos essenciais a realização plena do capital
internacional, com eficiência e com o mínimo possível de custos.
Na América do Sul, os anos noventa foram marcados pela realização de um conjunto de
reformas administrativas, fiscais e financeiras de corte neoliberal e sob a tutela política do Consenso de
Washington. A superação do atraso e a busca pela integração competitiva nas cadeias globais de
produção pautaram a agenda de política estratégica do Estado e os parâmetros de integração regional.
Entretanto, como idealizado nos discursos da globalização, a ampliação do processo de
internacionalização dos fluxos econômicos não eliminou as bases nacionais do capital privado. Neste
sentido, enquanto os fluxos da economia se internacionalizavam, ampliava-se a histórica tendência de
acumulação de poder e centralização da riqueza em algumas nações. Uma tendência que o
neoliberalismo e a globalização não anularam, pelo contrário, reforçaram.
Desse modo, como defendido por Fiori (2007), os fracassos dos discursos e das políticas em
favor da globalização reafirmaram o retorno da “velha geopolítica das nações”, com o reconhecimento
e fortalecimento das fronteiras nacionais, com o aumento da competição econômica com forte apoio
estatal e com o acirramento das disputas pelas hegemonias regionais.
Para além das explicações essencialmente econômicas, uma estratégia de desenvolvimento
nacional e de inserção externa não prescinde de uma compreensão sobre a lógica do poder, sobre a
1 Aluno de doutorado do Programa de Pós Graduação em Economia Política Internacional do Instituto de Economia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI – UFRJ).
2 De acordo com Harvey (2006), o neoliberalismo seria, em primeira instância, uma teoria sobre práticas de política
econômica. O pressuposto básico é que o bem-estar humano poderia ser alcançado por meio da criação de um quadro
normativo-institucional que garantisse as liberdades de mercado. Entretanto, o termo neoliberalismo acaba por ser
superficial para explicar o tropel teórico, político e ideológico de políticas que valorizam a proeminência da perspectiva de
mercado frente à intervenção estatal nos desígnios da organização da sociedade, da economia e do território. Chang (2002:
103), afortunadamente, argumenta que o “discurso neoliberal acerca do papel do Estado contém algumas sérias tensões
internas e, por esse motivo, só pode ser sustentado mediante a contorção intelectual e o compromisso político”.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 404
geopolítica das nações. O debate sobre o desenvolvimento das nações e sobre a integração regional
evidencia a necessidade de uma inserção diferenciada do Brasil e dos demais países da América do Sul
no sistema hierárquico de poder e riqueza existente no mundo. Um projeto de inserção que reduza as
vulnerabilidades, que elenque prioridades e que seja coerente com uma perspectiva de conquista de
maior autonomia no jogo das disputas de poder do sistema interestatal moderno.
Nos últimos anos, sobretudo a partir da década de 2000, o Brasil vem ampliando as relações de
cooperação política e econômica com os países do Sul, isto é, aquele conjunto de Estados situados na
zona periférica e na semiperiferia do sistema mundial, como proposto por Arrighi (2007)3,
especialmente com os países da América do Sul e da África.
O objetivo deste texto é fazer um breve resgate da literatura sobre o papel dos bancos (em
países que se industrializaram tardiamente) na criação dos mecanismos de direcionamento ao crédito
como respostas nacionais aos desafios da industrialização, do desenvolvimento econômico e, por
conseguinte, da redução das assimetrias de poder em relação às grandes potências mundiais.
Posteriormente, buscar-se-á demonstrar como, no Brasil e nos demais países da América do Sul, os
sistemas de financiamento público são os principais responsáveis pelos projetos de integração regional
e de ampliação das relações econômicas e comerciais. Espera-se, ao longo deste texto, esboçar algumas
ideias que levem a uma aproximação teórica sobre o tema da expansão externa como um elemento
constitutivo de um projeto nacional, que, a um só tempo, busca uma forma de inserção externa que
reforce e desenvolva os efeitos de complementaridade do sistema produtivo nacional.
Quando o atraso pode ser uma virtude. É assim que o trabalho de Alexander Gerschenkron
sobre a industrialização dos países atrasados europeus pode ser sintetizado, Analisando as experiências
de industrialização da Alemanha e da Rússia, Gerschenkron explica como as políticas do Estado, e o
papel dos bancos, partiram de estratégias distintas da Inglaterra.
No século XIX, a associação entre as políticas dos Estados, os bancos e as empresas deu uma
nova dimensão ao desenvolvimento industrial dos países da Europa continental. No pós Segunda
Guerra Mundial, retoma-se, em grande medida, a experiência destes países europeus de industrialização
atrasada (latecommers) para a criação de instituições, sobretudo de bancos de investimentos de longo
3 Para Giovanni Arrighi (1997), a estrutura dos Estados no sistema interestatal moderno está dividida em três zonas
principais: o núcleo orgânico, a zona periférica e a zona semiperiférica. O núcleo orgânico seria composto por países que
comandam atividades produtivas e econômicas do sistema e que recebem os bônus da divisão mundial do trabalho. São os
países que estão no topo da hierarquia de Estados. A zona periférica, formada por países que comandam atividades que
incorporam pouco ou nenhum benefício da divisão mundial do trabalho, localizados, portanto, no ponto mais baixo da
hierarquia. A zona semiperiférica seria formada pelo conjunto dos Estados que apresentam uma combinação entre as
atividades de núcleo orgânico e da periferia, são os Estados situados em uma posição intermediária na hierarquia de
Estados.
prazo, no intuito de recuperar as economias destruídas pela guerra. Como sugere Gerschenkron (1970),
quanto mais complexo o desafio, o campo de tensão entre o atraso e a modernidade, mais precisa e
eficiente deve ser a política e as instituições criadas. Sendo assim, o autor identifica nesta “inovação
institucional” um dos elementos mais relevantes para se reduzir o atraso econômico dos países da
Europa continental diante à industrialização inglesa.
Com uma preocupação semelhante, John Zysman (1983) evidencia a dimensão do atraso nos
mesmos países de industrialização tardia, focando o papel das instituições e dos mecanismos pelos
quais se cria um ambiente favorável para a decisão política de superar os entraves da industrialização.
Zysman (1983) propõe uma divisão dos sistemas financeiros em três tipos, cada um respondendo a
graus diferentes de articulação e autonomia entre bancos, indústrias e financiamentos, assim como na
orientação de políticas de industrialização. O primeiro compreende a existência de um sistema baseado
sobre mercado de capitais com recursos alocados por preços estabelecidos em mercados competitivos.
O segundo previa um sistema baseado em crédito com os preços básicos administrados pelo governo.
E, por fim, o terceiro pautava-se em um sistema baseado no crédito dominado por instituições
financeiras4.
Os três modelos de sistemas financeiros resultam das relações entre as condições políticas e as
características específicas de mercado. Desse modo, deduz-se que o papel do Estado oscila, nos três
casos, entre o regulador, o administrador e o ator (agente principal). Entretanto, os Estados,
independente das características e dos graus distintos de atuação, realizam políticas econômicas que
impactam diretamente no sistema financeiro (oferta da moeda, crédito, taxa de juros etc.). No primeiro
caso dos sistemas financeiros, destaca-se a dimensão do mercado na criação de recursos voltados para o
investimento, distinguindo os sistemas baseados em mercado de capitais e os sistemas fundamentados
no crédito. No segundo, ganha relevância a forma pela qual os preços são fixados pelas instituições
privadas e pelo governo. E, por fim, no terceiro caso, destaca-se a centralidade do Estado no
direcionamento do crédito.
Apesar de serem identificáveis alguns elementos da classificação de Zysman (1983) no sistema
de crédito brasileiro, não é possível compreender a especificidade do país a partir desses modelos
retirados da experiência dos países desenvolvidos, como EUA, Inglaterra, França, Japão e Alemanha.
Não existe, no Brasil, um sistema de financiamento baseado no mercado de capitais e nem um sistema
de crédito essencialmente comandado por bancos universais (TORRES, 2009). Como semelhante a
outros países da periferia, a experiência do Brasil foi distinta e coube aos bancos de desenvolvimento
controlados pelo Estado um papel central.
4 Nas palavras do autor “The three types are: (1) a system based on capital markets with resources allocated by prices
established in competitive marked, (2) a credit-based system with critical prices administered by government, (3) a credit-
based systems dominated by financial institutions” (ZYSMAN:1983, p. 55).
5 Apenas em 1982, com a incorporação dos recursos do Fundo de Investimento Social (Finsocial), o então BNDE agregou
a letra “S” em sua sigla e passou, portanto, a se chamar BNDES.
6 O termo funding denomina o provimento de recursos financeiros a longo prazo, ou seja, de mais de dois anos, e o termo
As políticas de inserção internacional das empresas estão, na maioria dos casos, dependentes de
instituições de apoio ao crédito. O intuito dessas instituições é o de aumentar a capacidade exportadora
de empresas incapazes de realizarem por meios próprios, ao mesmo tempo em que incentiva, mediante
ao acesso de mercados no exterior, ganhos de competitividade às empresas nacionais.
O aumento das exportações, além de ser um elemento que contribui para reduzir a
vulnerabilidade externa, é um fator que interfere positivamente na elevação do emprego, da renda, da
produtividade e do nível de produção. Trata-se, desse modo, de um fator capaz de elevar o saldo
positivo do balanço de pagamentos de um projeto estratégico de inserção externa.
Desde a década de 1960, existem, no Brasil, iniciativas governamentais de apoio às exportações
e a inserção externa de empresas brasileiras. Entretanto, lograram pouco sucesso, pois até os anos 1990
ficaram quase que circunscritas aos instrumentos de isenção tributária e, de maneira geral, à política
cambial, tendo pouca relevância os mecanismo de direcionamento de crédito7. Na década de 1990, o
contexto de internacionalização do sistema produtivo e a crescente necessidade de aumentar a
7 O Brasil lançou tardiamente seu sistema de apoio às exportações, só na década de 1960, com o Seguro de Crédito às
Exportações (SCE) e com o Fundo de Financiamento às Exportações (Finex). Posteriormente, coube ao Banco do Brasil,
por meio de sua carteira de crédito à exportação, administrar e operar o sistema. Um dado fundamental do sistema
brasileiro é que não foi criada nenhuma agência específica de comércio exterior, sua gestão se deu através da utilização de
instituições já existentes, como o Banco do Brasil, o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional. Outro ponto, é que
os recursos de operação da Finex eram exclusivamente públicos. Na década de 1990, o Finex foi extinto, sendo substituído
pelo Proex (Programa de Financiamento às Exportações).
participação brasileira no mercado internacional fez com que o BNDES e o Banco do Brasil 8 criassem
linhas específicas de apoio às exportações.
O BNDES é a principal fonte de financiamento de longo prazo às exportações brasileiras.
Dentro dos instrumentos de política do Estado, é o mais estratégico mecanismo de apoio e de
direcionamento de crédito existente no Brasil. Busca-se, com esse apoio governamental, reduzir as
incertezas da atuação externa das empresas e dar robustez ao sistema produtivo do país.
As linhas de financiamento à exportação do BNDES surgiram na década de 1990, tendo em seu
portfólio uma gama ampla e diversificada de setores industriais. Os destaques ficavam nos setores
exportadores de bens de capital. Só recentemente o Banco passou a apoiar a exportação de serviços nas
áreas de engenharia, construção, informática, além de bens de consumo, como calçados, têxteis,
alimentos e móveis. Em 1998, o valor desembolsado pelo BNDES foi de R$ 2,1 bilhões, teve uma
evolução gradual de 2003 a 2010, passando de R$ 4 bilhões para R$ 11,2 bilhões. Nos dois últimos
anos, houve uma retração, em 2011 o banco desembolsou R$ 6,7bilhões e, em 2012, o valor ficou na
ordem de R$ 5,4 bilhões. (BNDES, 2013).
Como descreve Catermol (2008), o apoio às exportações necessita de diversos instrumentos,
que vão desde os financiamentos à produção e à comercialização, às linhas de crédito, seguros,
participação acionária, capital de risco, até operações mais precisas, através do financiamento a estudos
de viabilidade de projetos, serviços de inteligência de mercado, garantias de performance9 e bid bonds10.
Cada empresa, de acordo com o seu potencial e fase de inserção internacional, necessita de tipos
diferentes de auxílio.
O BNDES Exim é tido como um dos maiores programas de incentivo e financiamento de
exportações do mundo. Tem crescido em praticamente em todas as suas modalidades de crédito ao
longo dos últimos anos. Os recursos para o programa derivam do Fundo de Amparo ao Trabalhador
(FAT)11. O BNDES Exim tem duas linhas de financiamento à exportação: Pré-Embarque e Pós-
Embarque.
8 O Banco do Brasil é o braço operacional do Programa de Financiamento às Exportações (Proex), em vigor desde 1991,
entretanto o Proex padece dos mesmos problemas de seu predecessor, o Finex, uma multiplicidade de órgãos públicos
definindo sua normatização e operação. Este problema se agrava quando se considera a escassez de recursos disponíveis, o
que limita a atuação do Programa e dificuldade a elaboração de uma estratégia sólida e duradoura de inserção internacional.
O Proex, enquanto estrutura de financiamento, destina, quase que exclusivamente, seus recursos para as pequenas e médias
empresas.
9 A performance, segundo Torres e Carvalho (2010, p. 298) diz respeito aos “diversos riscos relacionados ao cumprimento,
contrato pertinente, caso a empresa vença a concorrência pública aberta no exterior para fornecimento de bens e/ou
serviços. É utilizado para manter firmes as propostas pré-estabelecidas, garantindo a indenização se o Tomador deixar de
assinar o contrato de execução ou de fornecimento previsto no Edital ou Carta-Convite.
11 Segundo Torres e Carvalho (2010, p. 243) a “diferença é que o montante destinado à aplicação em comércio exterior,
como remuneração igual à variação cambial da Libor mais spread, tem como fonte uma parcela do FAT, cuja remuneração
está denominada em moeda estrangeira (FAT cambial)”. E prosseguem os autores, afirmando que “essa é uma das
vantagens do BNDES-exim, uma vez que esses recursos, além de relativamente abundantes, são mais estáveis que os
provenientes do Tesouro Nacional e permitem grande agilidade operacional, pois sua aplicação não exige constante
monitoramento e um complexo sistema de normas e procedimentos operacionais. Em outras palavras, a alçada decisória do
BNDES com relação a aplicação dos recursos do FAT faz com que o BNDES-exim possa atender ao exportador de forma
ágil e na medida de sua necessidade”.
12 Informações retiradas do site do BNDES em julho de 2013.
13 Catermol (2010:170) explica que a Embraer detinha as melhores condições técnicas, mas quando disputava mercados
com os concorrentes internacionais, perdia suas vantagens. A partir do surgimento de uma linha específica de apoio do
BNDES, a empresa passou a ganhar licitações internacionais, como, por exemplo: “Na Feira de Farnborough, na Inglaterra,
ainda em 1996, foram vendidos 25 aviões para a norte-americana Continental Express e opções de mais 175 aeronaves. Em
1997, no Salão de Le Bourget, na França, foi conquistado o maior contrato de fornecimento de toda a história da empresa,
com a encomenda no valor de US$ 1,1 bilhão para a American Eagle, subsidiária de transporte aéreo regional da American
Airlines. As encomendas da American Eagle geraram forte efeito expansivo na estrutura da Embraer. Para atender o
contrato, a empresa brasileira teve de contratar mais de 1.400 funcionários.”.
É bastante ilustrativa a metáfora da sopa de letrinhas utilizada por Martins (2010) para descrever
a quantidade de siglas referentes às organizações internacionais, tratados e acordos visando promover a
14 Dos Produtos tem-se a seguinte descrição: a) BNDES Exim: especializado no financiamento à produção de bens e de
serviços brasileiros destinados à exportação e à comercialização destes itens no exterior; b) BNDES Finem: visando o
financiamento, de valor superior a R$ 10 milhões, a projetos de implantação, expansão e modernização de
empreendimentos. Neste âmbito, as linhas de financiamento dividem-se em: i) internacionalização de empresas: com o
apoio à formação de capital de giro ou investimento de empresas de capital nacional no mercado internacional; ii) aquisição
de bens de capital: com o apoio à aquisição de bens de capital associada a planos de investimentos; c) BNDES Automático:
especializado no financiamento de até R$ 20 milhões a projetos de implantação, expansão e modernização de
empreendimentos.
15 Cada Programa tem os seguintes objetivos: i) BNDES Pró-Aeronáutica: voltado ao financiamento à produção de bens e
serviços destinados à exportação, por parte de MPMEs integrantes da cadeia produtiva da indústria aeronáutica brasileira,
nas fases pré-embarque e pós-embarque; ii) BNDES Profarma: destinado ao financiamento à exportação de bens e serviços
nacionais, inseridos no complexo industrial da saúde, nas fases pré-embarque e pós-embarque; iii) BNDES Proplástico:
voltado ao fortalecimento das empresas, por meio do apoio à internacionalização de empresas de capital nacional da cadeia
produtiva do plástico; iv) BNDES Prosoft: destinado ao financiamento à exportação de software e serviços de tecnologias
da informação nacionais, nas fases pré-embarque e pós-embarque; v) BNDES PSI: destinado ao financiamento, na fase
pré-embarque, à produção de bens de capital destinados à exportação; vi) BNDES Revitaliza: voltado ao financiamento à
revitalização de empresas brasileiras que atuam em setores afetados negativamente pela conjuntura econômica
internacional, apoiando, inclusive, a maior inserção de bens e serviços brasileiros no mercado internacional.
integração latino-americana. Com o objetivo comum de proporcionar uma maior aproximação entre os
países, as diversas iniciativas invariavelmente esbarram em problemas de ordem financeira ou em
questões de conjuntura política.
A história registra que a maioria das iniciativas pautava-se numa concepção de integração
orientada pelo mercado. O que, em se tratando de economias com fortes estruturas produtivas
primário-exportadoras, apresenta dificuldades dado o baixo grau de complementaridade produtiva e
comercial dos países16. Portanto, a integração passa, necessariamente, por um projeto de Estado. Por
uma concepção de política externa que priorize uma integração estratégica das nações periféricas frente
ao desafio posto pela desigual distribuição de poder e riqueza do sistema interestatal moderno.
Da miríade de siglas existentes, uma parte considerável surgiu nas décadas de 1960 e 1970 e
respondiam aos anseios de integração, por meio da superação dos principais obstáculos ao processo de
industrialização. Surgiram neste período: o Banco Centro-Americano de Integração Econômica, em
1961; o Acordo de Pagamentos e Créditos Recíprocos, em 1965; o Banco de Desenvolvimento do
Caribe, em 1969; a Corporação Andina de Fomento, em 1971; o Banco Latino-americano de
Exportações, em 1972; e o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento dos Países da Bacia do Prata,
em 1976. Entretanto, como demonstram Deos & Wegner (2010), até a década de 1990, essas
instituições mantiveram-se subutilizadas, sem políticas consistentes e duradouras de fomento financeiro
a integração.
Nos anos 2000, outra gama de instituições foram criadas, com destaque, no âmbito do
Mercosul, para o Fundo para a Convergência Estrutural e Fortalecimento da Estrutura Institucional do
Mercosul (Focem), em funcionamento desde 2007, e para o Sistema de Pagamentos em Moeda Local
(SML), criado em 2008. No âmbito da Unasul, as negociações levaram a criação do Banco do Sul, que
previsão de iniciar seus trabalhos ainda neste ano de 2013.
A partir de 2000, os investimentos em infraestrutura aumentaram concomitante ao
aprofundamento das relações comerciais e produtivas. Ressalta-se que a abertura financeira realizada na
década de 1990, em aderência aos ditames do neoliberalismo, não solucionou os problemas crônicos de
falta de recursos privados para o funding dos investimentos.
A experiência internacional, com foco nos países ricos, demonstra que os bancos passaram a
atuação em diferentes frentes nos mercados de capitais, não se trata apenas de gerenciar as
intermediações financeiras dos créditos, incluindo, os de longo prazo. Os bancos – mediante inovações
financeiras – tornaram-se originadores e distribuidores de operação de empréstimos junto ao mercado
de capitais, ampliando o processo de securitização de suas carteiras (COSTA & TORRES, 2012).
16Deos & Wegner (2010: p. 77) colocam essa discussão nos seguintes termos: “deixar que um processo de integração entre
economias periféricas seja conduzido pelos ditames da liberalização de mercados equivale a não sustentar um projeto de
integração que estimule melhorias nas debilidades apresentadas pelos países envolvidos.”.
600.000
Obras de infraestrutura -
400.000 Demais da América
200.000 Latina
0 Obras de infraestrutura -
África
2.680.441
1.351.798
Nas três regiões, os financiamentos para área de infraestrutura estão vinculados aos serviços de
engenharia e de construção executados por empresas brasileiras. Apesar de bastante atuante, os
desembolsos do BNDES para a América do Sul respondem pouco às demandas de projetos levantados
pela Iirsa17. Em 2010, a carteira de projetos da iniciativa apresentava um custo estimado de US$ 95
bilhões, enquanto o BNDES financiou um valor aproximado de US$ 300 milhões (DEOS &
WEGNER, 2010).
Entretanto, é importante ressaltar que os setores de bens e serviços financiados pelo BNDES
respondem a uma demanda de integração regional com projetos de longo prazo e, assim, menos
susceptível às oscilações típicas do mercado.
Considerações finais
17 A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (Iirsa) surgiu em 2000, num programa conjunto
envolvendo 12 países da América do Sul, visando à modernização da infraestrutura de transporte, energia e
telecomunicações da região. Em 2009, a Iirsa foi substituída pelo Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e
Planejamento (Cosiplan), um órgão vinculado a União das Nações Sul-Americanas (Unasul).
inserção externa do Brasil necessitam de objetivos claros e duradouros para que os esforços atuais
durem e, de fato, constituam uma estratégia própria em favor da distribuição do poder e da riqueza
internacionais.
Têm-se, como ponto de partida, que os mecanismos de financiamento público são instrumentos
que dão solidez a uma estratégia de inserção externa, ao mesmo tempo em que constituem meios para a
superação da dependência em relação aos países do Norte e para a criação de novas parcerias
econômicas com os países do Sul. Desse modo, a própria atuação do BNDES constitui um mecanismo
que torna possível a inserção ativa (e autônoma) dos interesses estratégicos do país no exterior, através
do incentivo a setores exportadores específicos e do apoio aos investimentos estrangeiros diretos.
Com a crise internacional de 2008, houve uma significativa contração da oferta de créditos às
empresas exportadoras no mundo. No Brasil, os efeitos da crise foram menores em virtude da
ampliação do escopo de atuação do BNDES, tendo um papel proativo e seguindo as orientações de
política do Estado. Como principal instrumento de direcionamento de crédito para as exportações, o
BNDES tem linhas de financiamento que apresentam grande relevância para o surgimento e a
expansão de diversos segmentos da indústria brasileira nos últimos anos, com destaque aos setores de
bens e serviços intensivos em conhecimento, como no caso do setor de aeronaves. Apesar de relevante
em alguns segmentos, a participação total dos produtos industrializados brasileiros no comércio
mundial ainda bastante modesta.
Uma estratégia de desenvolvimento nacional e de inserção externa não prescinde de uma
compreensão sobre a lógica do poder, sobre a geopolítica das nações. Neste sentido, evidencia-se a
necessidade de uma estratégia brasileira de integração regional e global, que reduza as vulnerabilidades,
que elenque as prioridades e que seja coerente com uma perspectiva de conquista de maior autonomia
no jogo das disputas de poder do sistema interestatal moderno. Uma estratégia sólida, que se sustente
ao longo do tempo e que supere as oscilações fomentadas pelas alternâncias de governos ou pelas
“vontades” do mercado, sempre ansioso pelas oportunidades imediatas de lucro.
Referências
ARRIGHI, Giovanni. A ilusão do desenvolvimento. Vozes. Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis, RJ. 1997.
BANCO MUNDIAL. Relatório Anual de 2012. Banco Mundial: Washington, 2012.
BNDES (2013). Estatísticas Operacionais: apoio à exportação. Consulta ao site em julho de 2013.
CATERMOL, Fabrício. Agências de crédito à exportação: o papel de instituições oficiais no apoio à inserção
internacional de empresas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, v. 15, n. 30, 2008, p. 5-38.
CATERMOL, Fabrício. O BNDES e o apoio às exportações. In: ALÉM, Ana Cláudia (org.). O BNDES em um
Brasil em transição. Rio de Janeiro: BNDES, 2010.
CHANG, Ha-Joon. “Rompendo o modelo: Uma economia política institucionalista alternativa à teoria neoliberal
do mercado e do Estado”. In: ARBIX, Glauco et al (Orgs). Brasil, México, África do Sul, Índia e China: diálogo entre os
que chegaram depois. São Paulo: UNESP, 2002.
Resumo
Emanuel Porcelli
L
os conceptos de autonomía y desarrollo resultan omnipresentes en la literatura vinculada a la
integración regional latinoamericana desde la década de los años 60 hasta nuestros días. Sin
embargo, la utilización y/o la interpretación de estos conceptos se han modificado en la
medida que el contexto político ideológico se ha venido transformando a lo largo del tiempo. Por lo
tanto, el objetivo de este trabajo es comparar y contraponer los modos y usos en que se han utilizado
los conceptos de autonomía y desarrollo en el período delimitado para indagar de qué manera pueden
ser reconceptualizados en el marco de las actuales experiencias de integración que se formulan en
América Latina.
VI
Introdução
S
ucessor da antiga Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul, o Parlamento do Mercosul,
criado em 2006, foi idealizado como um espaço institucional para a introdução de valores
democráticos e pluralistas a um processo de integração regional marcado pelo protagonismo
dos Chefes de Estados em todo seu desenvolvimento. Uma das grandes novidades inseridas com a
constituição do Parlasul foi a introdução de bancadas nacionais proporcionais às assimetrias
populacionais dos Estados-Membros e de eleições diretas para a escolha de seus representantes, como
meios de redução do déficit democrático na integração do Mercosul. O ano de 2014 é a data limite para
a realização das eleições diretas para o Parlasul em todos os Estados-Membros do Mercosul, de acordo
com o Protocolo Constitutivo do Parlamento Regional. Embora, desde 2008, as eleições para o Parlasul
já tenham sido realizadas pelo Paraguai, os demais países do bloco ainda se encontram em fase de
proposição e aprovação das legislações referentes ao seu primeiro pleito regional.
O presente estudo pretende analisar o andamento das propostas legislativas para eleições dos
parlamentares do Mercosul em todos os Estados-Membros do bloco. Será apresentada a situação das
discussões sobre as eleições diretas nos Estados que ainda não aprovaram as diretrizes para as eleições
mercosulinas, bem como a já aprovada e aplicada legislação eleitoral paraguaia. Discute-se se as
legislações aprovadas ou em tramitação nos países do Mercosul seguem a lógica dos sistemas eleitorais
domésticos ou se trazem inovações políticas a esse pleito de natureza regional.
Enquanto os projetos apresentados na Argentina e no Brasil trazem inovações político-eleitorais
para a eleição dos parlamentares do Mercosul em seus países, as resoluções paraguaias não utilizaram
novos sistemas eleitorais nas eleições dos membros do Parlasul, reproduzindo o mesmo modelo
eleitoral adotado nas eleições para o Senado. Ademais, é visto no caso brasileiro o transbordamento da
reforma política brasileira para o plano regional, com a possibilidade de que as eleições para o Parlasul
no Brasil tornem-se um experimento político nacional.
Inspirado na evolução institucional do Parlamento Europeu, foi inserido na composição das bancadas
nacionais do Parlasul, de modo gradual, o critério da representação cidadã, análogo ao princípio de
representação atenuada utilizado no âmbito da integração europeia (Drummond, 2009).
a. Argentina
Desde 2008, diversos projetos de lei já foram apresentados no Senado e na Câmara dos
Deputados da Argentina a respeito das primeiras eleições diretas para o Parlasul no país. “En Argentina,
se debatieron diferentes proyectos de ley pero nunca se llegó a ningún acuerdo” (LUCCI, 2012).
Um segundo sistema eleitoral encontrado nos projetos argentinos de eleições para o Parlasul é
adoção de um sistema eleitoral de distrito único, em que os candidatos serão selecionados pelas listas
partidárias (S-1994-08, S-1572-09, S-530-11, 5453-D-2010, 7120-D-2010, 8196-D-2010, 1790-D-2011).
A presença de diversidade geográfica por províncias e de cotas femininas, com variações entre os
projetos, estariam incluída dentro de cada lista partidária apresentada.
[…] la opción de distrito único representa mejor el espíritu del acuerdo firmado por la Argentina
porque prioriza la representación directa de los ciudadanos en el Parlamento y no la mediación de la
unidad administrativa sub-nacional que invierte el sentido y el espíritu del Parlamento del Mercosur que
tiende a la supranacionalidad. (CÁMARA DE DIPUTADOS, 2010) (1790-D-2010).
Outros modelos eleitorais, diferentes dos dois sistemas mais presentes entre os projetos de lei
para o Parlasul, também são encontrados no Congreso de la Nación Argentina (S-3839-10, 3804-D-2011,
3491-D-2012). Essas demais proposições apresentam um sistema distinto dos modelos anteriores ao
incluir a distribuição de vagas por cinco Regiões nacionais, somatório de Províncias vizinhas, e não por
cada Província argentina e Cidade Autônoma.
Pero nos queda una opción que contiene en sí misma el principio de representación soberana, el
federalismo, y la promoción de las regiones que promueve la Constitución Nacional. Y nos permite
garantizar la representación diversa en las listas.
2 Levantamento realizado pelo autor no sítio eletrônico < http://www.congreso.gov.ar/>, fevereiro, 2013.
b. Brasil
O debate acerca da inserção de eleições diretas para os representantes brasileiros no Parlamento
do Mercosul tem se centrado em dois projetos de lei, um da Câmara dos Deputados e outro do Senado
Federal, em tramitação simultânea no Congresso Nacional.
O Projeto de Lei da Câmara dos Deputados (PLC) nº 5.279 de 2009, de autoria do deputado
Carlos Zaratini (PT-SP), foi inicialmente previsto para regulamentar as eleições do Parlasul para o ano
de 2010, mas devido a não-conclusão de sua aprovação em tempo hábil, foi incluído o Substitutivo do
mesmo, prevendo a realização das primeiras eleições para o Parlasul no Brasil em 2014, em conjunto às
eleições para Presidente, Governadores, Senadores e Deputados.
O Projeto de Lei do Senado Federal (PLS) nº 126 de 2011, de autoria do Senador Lindbergh
Farias (PT-RJ), tinha o intuito de estabelecer as eleições para o Parlasul ainda em 2012, em conjunto às
eleições municipais. Não tendo sido aprovado no prazo de um ano antes das eleições de outubro de
2012 - conforme determina a regulamentação para a inclusão e/ou modificação da regra eleitoral -, o
citado PLS recebeu substitutivo prevendo a realização do pleito também para 2014, conjuntamente às
eleições de natureza federal e estadual.
Analisando-se comparativamente as proposições da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, encontramos um eixo de pressupostos compartilhados entre os projetos, relacionados aos
princípios eleitorais seguidos durante o pleito para o Mercosul e às disposições vinculadas à propaganda
eleitoral e ao modo de financiamento das campanhas eleitorais.
3Argumentos retirados de entrevista de funcionários do Congresso de la Nación, realizada por Felipe Bueno (UNESP-
Araraquara), Buenos Aires, 2012.
prática, o projeto do Senado produz uma sobre-representação de regiões do país com menor densidade
populacional (somados Representantes Estaduais e Federais, a região Nordeste receberia 31% das vagas
para o Parlasul, enquanto o Sudeste, com menor número de Estados, mas com maior população,
contaria com 27% dos representantes brasileiros no Parlasul).
Quanto à distribuição de vagas por gênero, o PLC prevê que dois em cada cinco nomes das
listas partidárias sejam de sexos distintos (mínimo de 40%, resultando em 30 vagas), enquanto no PLS
um dos gêneros deverá ter no mínimo 30% das vagas para Representantes Federais (14 de 47 lugares).
A priori, a proposta da Câmara dos Deputados garante maior diversidade de gênero na Representação
Brasileira no Parlasul. No entanto, o projeto do Senado favorece a representação de todos os Estados
brasileiros no Parlasul, não somente pela distribuição entre os Estados das vagas federais, mas também
por meio dos Representantes Estaduais (1 de cada Estado Federal e do Distrito Federal).
A liberdade de coalizões partidárias é garantida pelo PLS nas vagas para Representantes
Estaduais. Na proposição da Câmara, as coalizões são suprimidas, em detrimento das listas partidárias
preordenadas. Enquanto os suplentes do PLC são os próximos das listas partidárias, mantendo as vagas
vinculadas aos partidos políticos, o PLS, nas vagas de Representantes Estaduais, explicita que os
suplentes dos candidatos eleitos são necessariamente os segundos colocados nos Estados,
independentemente do partido político ao qual o mesmo é vinculado. A convenção partidária
responsável pela escolha dos candidatos deve ser de natureza nacional para o PLC. Já no PLS, essas
convenções devem ser realizadas em âmbito estadual. Essas comparações indicam que a proposta do
Senado favorece as coalizões e alianças partidárias, além da organização partidária no âmbito estadual,
enquanto o PLC se distancia das coalizões e fortalece a dimensão nacional dos partidos políticos
brasileiros. Essa divergência de proposições segue as distintas naturezas de cada Casa Legislativa, já que
o Senado, por exemplo, é a esfera por excelência do pensamento baseado na lógica estadual.
Por fim, o PLC destina 5 minutos em cada interrupção para horário eleitoral obrigatório, tanto
de rádio e TV, para os candidatos a Parlamentares do Mercosul, além do tempo destinado ao próprio
TSE, enquanto o PLS estabelece o dobro do tempo (10 minutos) para essas interrupções destinadas às
eleições do Mercosul.
Em suma, enquanto o PLC representa a implantação de listas preordenadas nacionais nas
eleições para o Parlasul, o modelo adotado no PLS, segundo o Relatório da Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional do Senado, do Sen. Antonio Carlos Valadares, é: “(...) um sistema misto
de voto, combinando a eleição majoritária, de forma a garantir a representação de todos os Estados e
do Distrito Federal no Parlamento do Mercosul, com a lista partidária fechada e
preordenada.”(SENADO FEDERAL, 2011).
Em setembro de 2013 foi apresentado pelo Senador Roberto Requião (PMDB-PR) um novo
projeto de lei (PLS 358-2013) o qual também procura regulamentar as primeiras eleições diretas para o
Parlasul no Brasil. Diferentemente dos demais, de acordo com esse projeto “Os parlamentares do
Mercosul serão eleitos pelo sistema majoritário, com a utilização de listas abertas de candidatos
registrados pelos respectivos partidos” (SENADO FEDERAL, 2013). A distribuição das vagas se dará
proporcionalmente pelos Estados da Federação. Distrito Federal, Acre, Amapá, Mato Grosso do Sul,
Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins elegerão 1 parlamentar cada Estado; Alagoas, Amazonas,
Espírito Santo, Mato Grosso, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte 2 deputados; Ceará, Goiás,
Maranhão, Pará, Pernambuco e Santa Catarina 3 representantes; Paraná e Rio Grande do Sul 4
parlamentares; Bahia 5 deputados; Minas Gerais e Rio de Janeiro 6 parlamentares; e São Paulo 9
representantes para o Mercosul.
c. Paraguai
No caso paraguaio, as eleições diretas para parlamentares no Mercosul têm sido realizadas desde
2008, quando o país passou a eleger diretamente 18 representantes para o Parlasul.
Os critérios de eleição dos 18 representantes paraguaios para o Parlamento do Mercosul estão
regulamentados na resolução eleitoral paraguaia no 55 de 2007, referente ao pleito de 2008, e na
resolução no 65 de 2012, acerca das eleições realizadas no ano de 2013. Para ambas as regulamentações,
de eleição de 18 parlamentares titulares e 18 parlamentares suplentes do Mercosul, o país se constitui
em colégio eleitoral único, mesmo critério adotado na escolha de Senadores, Presidente e Vice-
Presidente (PARAGUAY, 2007; PARAGUAY, 2012). Nas duas eleições realizadas, o sistema eleitoral
adotado foi o de listas partidárias preordenadas para as vagas de titulares e suplentes, modelo
igualmente utilizado também na eleição de Senadores do país.
Entre os representantes do Parlasul escolhidos no pleito de 2008, 6 são da Asociación Nacional
Republicana (Partido Colorado), 6 do Partido Liberal Radical Autêntico (partido do atual presidente
Federico Franco), 4 da Unión Nacional de Ciudadanos Éticos (UNACE), 1 do Movimento Popular
Tekojoja (base partidária do ex-presidente Fernando Lugo) e 1 representante do Partido Patria
Querida.4 Nesse sentido, os membros paraguaios desde 2008 são diretamente eleitos para um mandato
exclusivamente regional, ainda que essas eleições tenham sido categorizadas como eleições de segunda
ordem, nos termos de Schmitt (2005), haja vista a preponderância de temas nacionais e não regionais na
campanha eleitoral ocorrida no Paraguai em 2008 (MARIANO, 2011).
d. Uruguai e Venezuela
Tanto no Uruguai como na Venezuela não foram identificadas até o momento nenhuma
regulamentação ou proposição para eleição direta dos representantes dos países no Parlamento do
Mercosul.
Embora o Uruguai seja a sede da maioria das instituições mercosulinas (inclusive do Parlasul) e
um dos membros fundadores do Mercosul, o legislativo uruguaio ainda não apresentou nenhuma
proposta de regulamentação das primeiras eleições de seus representantes para o Parlasul.
Em 8 de novembro de 2011, na Câmara dos Senadores do Uruguai, a questão de inclusão de
eleições diretas foi mencionada em discurso do Senador Carlos Gamou:
Por lo tanto, nada impediría que en octubre de 2014 -si fuera necesario y se alcanzaran los dos quintos
del total de componentes de la Asamblea General-, se hiciera una reforma constitucional en la que se
propusiera la elección directa de los miembros del Parlasur, es decir, para que junto con esa papeleta se
pudiera votar en forma directa -me parece muy importante que así se haga- a los distintos miembros del
Parlamento del Mercosur. (URUGUAY, 2011)
Por serem eleições voltadas para uma representação política regional, em uma esfera mais ampla
que a do Estado-nação, as proposições nacionais referentes aos primeiros pleitos regionais podem ser
carregadas de inovações político-eleitorais em relação ao sistema de escolha dos representantes do
Parlasul.
Nas propostas encontradas no Congresso Argentino, foram identificadas tanto proposições que
somente copiam os sistemas eleitorais utilizados nacionalmente para a escolha de senados e deputados
argentinos, quanto projetos de lei que introduzem modelos inéditos de escolha dos representantes do
Parlasul, com a sugestão de divisão das vagas em cinco regiões subnacionais.
Os projetos S-2555-10 e 1790-D-2010 ilustram as proposições argentinas que replicam os
princípios eleitorais nacionais em uso para as eleições regionais. Enquanto o primeiro projeto, de
origem do Senado, apresenta um sistema misto de vagas igualitárias por Províncias e Cidade Autônoma
com o sistema de distrito único por meio de listas partidárias proporcionais para o restante de vagas
disponíveis; o segundo, apresentado na Câmara, somente faz referência ao segundo modelo, a ser
adotado integralmente para as eleições do Parlasul.
A proposta 3491-D-2012, da Câmara dos Deputados, representa esse aspecto inovador trazido
em algumas proposições encontradas no legislativo argentino para as futuras eleições diretas dos
membros do Parlasul. Nessa e em outras proposições, as vagas para o parlamento regional são
distribuídas entre cinco seções eleitorais (Norte Grande, Región Centro, Patagonia, Cuyo, y Buenos
Aires), com o intuito de equilibrar a representação geográfica com a representação populacional. As
propostas dessa natureza são vistas como uma terceira via na escolha dos representantes do Parlasul.
No caso do Brasil, o debate acerca das primeiras eleições diretas para o Parlasul apresenta
aspectos de inovação política para o pleito regional, com a identificação de elementos relacionados à
reforma política brasileira. Tanto o projeto apresentado pela Câmara dos Deputados, quanto a
proposição do Senado Federal representam o transbordamento da reforma política para o plano
regional (MARIANO e LUCIANO, 2012).
Em ambas as propostas, podem ser encontrados elementos característicos da reforma política
nacional, tais como: financiamento público de campanhas políticas; listas preordenadas partidárias;
mudança de escolha de suplentes e fim de coalizões eleitorais para cargos proporcionalmente eleitos.
Todas essas propostas de reforma política incluídas nos projetos para eleições do Parlasul ainda estão
em fase de discussão e debate no Congresso Nacional, todavia foram incorporadas nas propostas de
pleitos para o Mercosul como forma de inovação ou experimento político-eleitoral.
A discussão realizada em sessão plenária da Câmara dos Deputados, em 21 de março de 2012, a
respeito do Projeto de Lei proposto pela mesma Casa Legislativa é mais um indicativo da importância
da inserção de aspectos da Reforma Político-Eleitoral nas eleições para o Parlamento do Mercosul
(DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2012). Os discursos e votos dos deputados e dos
partidos políticos em plenário comprovam que é possível verificar um transbordamento da reforma
política para as eleições do Parlasul no Brasil.
As dificuldades em aprovação e tramitação do PLC não parecem decorrer da falta de consenso
em realizar eleições diretas para os representantes do Parlasul, mas da ausência de acordo nos pontos
específicos incluídos no projeto de lei que são inspirados na reforma política nacional. Nenhum dos
discursos proferidos em plenário foi contrário à realização e à importância das eleições para o Mercosul.
Tanto oposição quanto governo manifestaram-se em plenário favoravelmente ao papel do Parlasul e da
eleição de seus representantes no âmbito da integração regional:
Sr. Presidente, o PSOL entende que as regras para as eleições do Mercosul são
importantes. O Mercosul, que tem de ser um órgão não apenas econômico, mas
também político e cultural – sobretudo neste mundo em que blocos regionais vão se
afirmando, mundo que tenta não ser mais hegemonizado por um modelo, já que não é
mais bipolar –, tem a sua importância e o seu relevo. (Dep. Chico Alencar, PSOL –
RJ);
Enquanto parte dos deputados e dos partidos políticos evitaram votar a matéria em virtude dos
elementos de reforma política existentes no seio do projeto de lei em questão, partidos favoráveis à
estrutura do projeto e à reforma política veem as eleições para o Parlasul como um experimento e uma
inovação política, que pode ser modificada caso não se adapte a realidade ou não obtenha êxito:
[...] chamo a atenção do Líder do PR para o fato de que se trata de uma única eleição,
em 2014, que será um teste, uma experiência. Caso essa experiência não funcione, não
dê certo, esta Casa, o Congresso Nacional, terá a possibilidade de rever as regras.
(Dep. Dr. Rosinha, PT-PR);
Sr. Presidente, a ousadia é necessária. O argumento aqui para o adiamento da votação
é rigorosamente conservador, como se a instância do Mercosul fosse da enorme
tradição brasileira, o voto nominal, pessoal. Não! É uma experiência interessante,
nova. (Dep. Chico Alencar, PSOL – RJ).
O projeto de lei apresentando mais recentemente pelo senador Requião ser uma alternativa às
dificuldades políticas nacionais em se aprovar as propostas apresentadas anteriormente, em virtude dos
elementos de reforma política nacional ainda não aprovados nacionalmente. Essa proposição projeta,
para as eleições mercosulinas, o sistema de listas abertas e voto majoritário, usualmente utilizado nas
eleições nacionais, no sentido de facilitar a aprovação da escolha dos parlamentares do Mercosul nas
próximas eleições, em 2014.
Os regulamentos paraguaios referentes à escolha dos representantes do país no Parlasul,
utilizados em 2008 e 2013, diferentemente das propostas encontradas nos demais países do Mercosul,
não apresentam nenhum aspecto de inovação política e eleitoral. As resoluções eleitorais paraguaias,
conforme exposto, equivalem o modo de escolha dos membros do Parlasul ao sistema eleitoral
utilizado na seleção dos senadores paraguaios, de listas partidárias fechadas em distrito nacional único.
A introdução das eleições para o Parlasul na resolução eleitoral paraguaia ocorreu de forma
muito rápida, sem a aprovação e discussão de projeto de lei pelo legislativo paraguaio, ainda em um
contexto de estabelecimento das proporcionais das bancadas nacionais, no âmbito da representação
cidadã.
A rápida adoção da escolha dos representantes paraguaios do Parlasul pode ter impedido uma
discussão mais aprofundada acerca das primeiras eleições paraguaias para o Parlasul, evitando, por
exemplo, o surgimento de propostas inovadoras para a seleção das vagas regionais. Esse fato pode ter
levado ao mero mimetismo do modelo eleitoral do Senado para a escolha dos representantes do
Parlasul no país.
Conclusão
Referências
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http://www.parlamento.gub.uy/htmlstat/sesiones/pdfs/senado/20111109s0048.pdf
Introdução
C
riado em 1991, através do Tratado de Assunção, o Mercado Comum do Cone Sul
(Mercosul), ainda incipiente, não logrou superar a fase de união aduaneira, sendo composto,
inicialmente, por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. No seu primeiro alargamento,
Equador, Bolívia e Chile assinaram tratados, para figurarem como membros associados, e, em 2009, a
Venezuela ingressou, de forma definitiva, neste bloco econômico, despertando polêmica por sua práxis
democrática.
Seguindo o modelo de integração da União Europeia, o Mercosul ambicionou, em seu tratado
instituidor, alcançar a fase de mercado comum, em um prazo de quatro anos, pautado no sistema
intergovernamental.
O Mercosul consiste em resultado da conquista de maturidade dos Estados do Cone Sul, ao
criar mecanismos pragmáticos para a superação do subdesenvolvimento, através de processo de
integração, matizado de justiça social.
Devido aos esforços empregados na consolidação e busca de superação de sua fase de união
aduaneira, o Mercosul assumiu identidade internacional própria, ao demonstrar que tem potencial para
se tornar um dos grandes atores das relações internacionais do século XXI. Mas para que esse bloco
ganhe de fato projeção no cenário mundial, deve adaptar-se à realidade que ora se apresenta.
Nessa linha de reflexão, percebendo-se a necessidade de maior legitimidade para o bloco
econômico, em 2005, foi aprovado o Tratado Constitutivo do Parlamento do Mercosul (Parlasul),
objeto de discussão no presente artigo.
As decisões e os tratados que constituíram o Parlasul merecem críticas, em face da postura
conservadora adotada pelo Mercosul, para a concretização da participação popular, via parlamento do
Estados membros..
Acredita-se que o desenvolvimento e aprimoramento do bloco de integração do Cone Sul só
será possível, caso a participação popular seja efetiva, para legitimar suas decisões, ao ensejar a mudança
na mentalidade dos governantes que estão por trás do Mercosul.
1 Mestre em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professor Universitário.
2 Doutoranda em Direito Público Internacional pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Mestre em Ciências
Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Professora Universitária
3 Bacharel, Mestre e Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor Universitário
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 435
4 Cfr. MERCOSUR/CPC/DEC. Nº 02/00. Veja também a Declaração de Santa Fé, publicada através da decisão
MERCOSUR/CPC/DEC. Nº 03/00 que também reafirma, no seu item (1) o compromisso dos países do Mercosul com a
democracia representativa, a promoção dos seus valores e a defesa de suas instituições, em particular com realização de
eleições periódicas, transparentes e supervisionadas com órgãos estatais independentes. FUNDACIÓN KONRAD
ADENAUER; COMISIÓN PARLAMENTARIA CONJUNTA DEL MERCOSUR. Hacia el parlamento del Mercosur –
una recopilación de documentos. 2 ed. Uruguai: Konrad Adenauer Stiftung. pp.124-128. Tradução livre da autora.
5 Cfr. Agenda para Criação do Parlamento do Mercosul. FUNDACIÓN KONRAD ADENAUER; COMISIÓN
PARLAMENTARIA CONJUNTA DEL MERCOSUR. Hacia el parlamento del Mercosur. Op cit. pp. 141-144. Esses
ideais foram reforçados na reunião dos quatros Presidentes, em Assunção, em 2003, com a assinatura de um documento
que demonstrava a necessidade de fortalecer a CPC e a conseqüente possibilidade de eleições diretas para os seus membros.
6 Cfr. MERCOSUR/XXV CMC/DEC Nº 26/03. FUNDACIÓN KONRAD ADENAUER; COMISIÓN
PARLAMENTARIA CONJUNTA DEL MERCOSUR. Hacia el parlamento del Mercosur. cit. pp. 272
O Parlasul, com sede no Uruguai, passou a funcionar, formalmente, como órgão independente
e autônomo, responsável pela representação dos seus cidadãos e não mais dos Estados que o compõem
em substituição à Comissão Parlamentar Conjunta7.
Consolidou-se, assim, mais uma etapa do lento processo de integração do cone Sul, qual seja, a
integração política, pois os Estados membros começaram a almejar um sistema que privilegie a
representação política e cidadã, com vistas a atingir o mercado comum.8.
O texto do Protocolo Constitutivo do Parlasul, aprovado em 2006, entrou em vigor em 2007,
em sessão solene, no Congresso Nacional, em Brasília, trazendo como novidade a possibilidade de
eleições diretas pelos nacionais, à semelhança do processo de integração europeu, onde os cidadãos
elegem, democraticamente, os seus representantes.
O Parlasul também pretende impulsionar o processo de recepção e internalização das normas
produzidas pelo Mercosul, superando os limites impostos pelos mecanismos de recepção dos Estados
Membros.
No que tange à proporcionalidade da representação no Parlasul, na atualidade, está
condicionada aos vinte e seis indicados para a Argentina; trinta e sete, para o Brasil; e, dezoito, para o
Paraguai; dezoito para o Uruguai; e dezoito, para a Venezuela.
Na segunda etapa de transição, entre 2011 e 2014, de estabelecimento do Parlasul, existe a
previsão de que os representantes devem ser sufragados, em eleições diretas, pelos nacionais, sem
indicação dos congressos e/ou assembleias legislativas de cada Estado.
Como última etapa de transição, serão eleitos para o Parlasul, setenta e quatro representantes
brasileiros, quarenta e três argentinos, enquanto Venezuela, Paraguai e Uruguai continuarão com o
número atual de dezoito.
legitimidad democrática, la seguridad jurídica y la representatividad cuidadana del proceso de integración Cfr. Nota de
entrega del texto del Proyecto de Protocolo del Parlamento del Mercosur. FUNDACIÓN KONRAD ADENAUER;
COMISIÓN PARLAMENTARIA CONJUNTA DEL MERCOSUR. Hacia el parlamento del Mercosur. Op cit. pp. 59-60
9 Cfr. MERCOSUL. Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul. FUNDACIÓN KONRAD ADENAUER;
COMISIÓN PARLAMENTARIA CONJUNTA DEL MERCOSUR. Hacia el parlamento del Mercosur. Op cit. pp. 21-32
ordenamentos jurídicos dos países membros, gerando insegurança jurídica entre os operados econômicos (...) Pode-se
afirmar, assim, que o déficit de qualidade normativa do Mercosul deriva diretamente de seu déficit de democracia”. Cfr:
DRUMMOND, Maria Cláudia. A democracia desconstituída – o déficit democrático nas relações internacionais e os
parlamentos da integração. Tese de doutorado. Relações Internacionais: Universidade de Brasília – UNB, 2005. p. 327. Cfr
também: TRINDADE, Otávio A. D. Cançado. O Mercosul no direito brasileiro. Belo Horizonte: Livraria Del Rey, 2007
A criação de normas do Mercosul, geralmente, sofre pressões de grupos ligados aos setores
econômicos, sem que haja um verdadeiro espaço de debates e discussões com a participação de todos
os personagens do processo.
Isso é um reflexo do modelo intergovernamental, adotado pelo bloco, que não é capaz de
produzir o seu próprio arcabouço jurídico, ficando à mercê das questões internas de cada um dos
Estados Membros14.
A devida institucionalização do Parlasul há de permitir a sua participação no processo de criação
das normas mercosulinas, principalmente com a elaboração de relatórios acerca da internalização por
cada Estado Membro, ao possibilitar uma rápida incorporação no direito interno deste.
O Parlasul poderia exercer severa fiscalização da incorporação das normas pelos Estados
Membros, mediante levantamento estatístico real relativo ao processo de internalização.
Isso é relevante uma vez que, segundo dados da Representação Brasileira do Parlamento do
Mercosul, há um defícit de cinquenta por cento das normas, assinadas e negociadas, e que carecem de
apreciação por parte do Congresso Nacional.
O Executivo brasileiro, inseguro em relação ao Mercosul, compartilha responsabilidades, pois
sente a necessidade das referidas normas serem novamente analisadas, ocasionando a morosidade na
sua internalização.
Apesar disso, é imprescindível que haja um alargamento maior da competência do Parlasul, no
intuito de que deixe de ser apenas um órgão consultivo, onde os seus deliberações não tenham qualquer
forma vinculativa. Ou seja, devem ser feitas modificações no tratado instituidor do Mercosul, em busca
de uma maior legitimidade das suas decisões e atuações.
É necessário que o Parlasul seja capaz de produzir direito comunitário e se torne uma
instituição supranacional, com competências que não sejam meramente consultivas.
Ao conseguir efetivar essas modificações, o Parlasul permitirá que os outros órgãos
institucionais do Mercosul se aprimorem, modificando de modo substancial a sua tomada de decisões,
possibilitando que haja uma consolidação institucional de todo o bloco econômico.
14 O intergovernamentalismo é um exemplo clássico das nações demasiadamente nacionalistas e que encontram inúmeras
barreiras em abdicarem de parte de sua soberania em prol de uma organização internacional que seja capaz de emitir
decisões que irão desenvolver todo o bloco econômico. Cfr os dizeres de Jorge Fontoura: “A opção política
intergovernamental adotada para a criação do Mercosul e de todo seu arcabouço jurídico, sob medida para a realidade
latino-americana sempre presidencialista e ciosa de suas conquistas soberanas, não contempla a possibilidade de instituições
supranacionais; supranacionalidade, vale dizer, em que as decisões deixam de ser tomadas por consenso e unanimidade,
direito internacional público clássico, passando a valer a decisão da maioria dos países-sócios, com a transferência ou cessão
da soberania à “alta-autoridade”, expressão cunhada pelo direito comunitário europeu. In: Limites constitucionais a
parlamentos regionais e à supranacionalidade: o dilema dos blocos econômicos intergovernamentais. Revista de
Informação Legislativa, Brasília, a. 40, n. 159, pp-219-224, jul/set, 2003. Disponível em:
<http://www2.senado.gov.br/bdsf/item/id/886>. Acesso em 20 de maio de 2013 cit. p. 223
Considerações finais
Apesar de dotado de grande expectativa e carregar a responsabilidade de modificar a atual
estrutura jurídico-política-institucional do Mercosul, o Protocolo Constitutivo do Parlasul não foi
ousado o suficiente, ao lhe conferir competências que não fossem meramente consultivas.
15A criação de um Tribunal de Justiça também é essencial para efetivar essa supranacionalidade. Porém, ele só será possível
se o Mercosul possuir um Parlamento que seja forte e consiga efetivar as suas competências.
Percebe-se que o Parlamento do Mercosul é uma utopia, pois, com a indicação de seus
representantes pelos congressos ou assembleias legislativas dos Estados Membros, carece de
legitimidade democrática para exercer plenamente suas funções.
O Parlasul, criado sem qualquer referência as suas atribuições legislativa, orçamentárias e de
controle, opera tão somente como um órgão consultivo, na emissão de relatórios, que têm o condão de
auxiliar a internalização da norma mercosulina perante os Estados Membros.
Um Parlamento supranacional, com características comunitárias, só será institucionalizado se
lhe forem conferidas competências exclusivas, relativamente à elaboração de normas do direito
derivado e transplantando o modelo europeu, com a instituição da co-decisão, em conjunto com o
CMC e o GMC na elaboração das normas de direito originário.
Alterações na estrutura orgânica do CMC e do GMC também seriam importantes para que
houvesse uma verdadeira separação de competências, com a delimitação das funções de cada um dos
órgãos, de modo a se evitar que exista uma sobreposição na atuação atribuída a cada uma das
instituições.
No entanto, o saída do Mercosul do atual estado de letargia deve ser pautada numa ação
conjunta de toda a sociedade civil do Estados Membros, em busca de eleições diretas para o Parlasul e
ampliação de competências para seus órgãos decisórios supranacionais.
Apenas assim, é que uma nova estruturação do bloco poderá ser proposta, com até mesmo a
instituição de uma supranacionalidade limitada, onde os órgãos com capacidade decisória adotariam as
normas via maioria (absoluta, especial, dentre outras) e estas terão aplicabilidade imediata (para tanto, é
necessário reformas nos textos constitucionais destes Estados, especialmente no Brasil e Uruguai) e
ainda a criação de um Tribunal de Justiça autônomo e independente, responsável pela análise
jurisdicional de toda a controvérsia existente no que tange à aplicabilidade de cumprimento da
normativa mercosulina.
Referências
ACCIOLY, Elisabeth. Mercosul e união européia – estrutura juridico-institucional. 3 ed. Curitiba: Juruá Editora, 2003.
BASSO, Maristela. In: PIMENTEL, Luiz Otávio Pimentel (org). Direito da Integração – estudos em homenagem de
Werter R. Faria. vol II. Mercosul: dez anos de construção de seu arcabouço jurídico. Curitiba: Juruá Editora, 2001.
pp 129-141.
BRASIL. Decreto n. 6105, de 30 de Abril de 2007. Protocolo constitutivo do parlamento do mercosul. Promulga
o protocolo constitutivo do Parlamento do Mercosul, aprovado pela Decisão nº 23/05, do Conselho do
Mercado Comum, assinado pelos Governos da República Federativa do Brasil, da República Argentina, da
República do Paraguai e da República Oriental do Uruguai, em Montividéu. Brasília, 30 de Abril de 2007.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6105.htm>. Acesso
em 20 de dezembro de 2009.
BRASIL. Projeto de Lei nº 5279/2009. Estabelece normas para as eleições, em 3 de Outubro de 2010, de
parlamentares do Mercosul. <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=435878< e
<http://www2.camara.gov.br/agencia/noticias/137172.html>. Acesso em 20 de dezembro de 2009.
D
esde que iniciei os estudos sobre o direito supranacional, seus fundamentos e limites, o
princípio jurídico da subsidiariedade, que regula a distribuição de competências entre os
entes supraestatais e estatais, determinando restrições impostas à ingerência do ente
público de maior instância, quando o ente público menor, puder realizá-lo de forma adequada e eficaz.
Sob outro ângulo, mas com o mesmo objetivo, a subsidiariedade é entendida como a função de auxílio,
de subsídio, do ente maior em relação ao menor quando este não puder promover, de maneira
satisfatória, os objetivos do organismo de integração ou do Estado (QUADROS 1995; BARACHO
1995.
A função de subsidiar, inerente aos organismos internacionais voltados à promoção da integração
econômica e do desenvolvimento em relação aos seus Estados-Membros, em pleno sistema mundial
vigente traz aspectos bastante interessantes, principalmente pelo fato de que o princípio da subsidiariedade,
originariamente, se aplica à estrutura jurídico-administrativa do Estado, determinando a
descentralização institucional e inibindo, juridicamente, a atuação do ente federativo maior em relação
ao menor, justamente uma das reformas estruturantes propostas pelo Consenso de Washington.
Pois este princípio jurídico carrega elementos que me parecem verdadeiramente revolucionários,
na acepção marxiana do termo, ou seja, são contraditórios em relação à funcionalidade do sistema-
mundo capitalista e, portanto, capaz de estabelecer brechas disruptivas com potencial suficiente para
modificá-lo em suas bases, enfim, à partir dos Estados, pois promove mudanças significativas em
elementos que lhe são essenciais: na forma como exercem sua soberania externa e na forma como são
estruturados internamente, pela centralização e burocratização das instituições políticas e jurídicas
(MARX, 2005 ; ABENSOUR, 1997)
A subsidiariedade jurídico-administrativa representa a inversão radical da lógica governamental
do Estado Nacional moderno. Ao invés da concentração das instituições e enfraquecimento do poder
local, processo em curso desde a transição do modelo feudal para o capitalista, a descentralização e
transferência de competências estatais para unidades regionais menores, estabelecendo como parâmetro
para a extensão de sua competência, os limites para uma atuação eficaz, isto é, capaz de dar respostas
1Professora doutora de Direito Internacional e Direito da Integração no Departamento de Direito Público da Faculdade de
Direito de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FDRP/USP).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 445
rápidas às demandas públicas, e adequada, ou seja, deve atender satisfatoriamente a essas demandas
(QUADROS 1995; BARACHO 1995).
O sentido jurídico do princípio de subsidiariedade somente adquiriu expressão normativa em
face da criação dos órgãos supranacionais da União Europeia, que, em seu processo de
desenvolvimento, encontrou-se na contingência de regular os limites de sua atuação em relação aos
Estados-Membros para respaldar sua soberania2. Entretanto, sua exteriorização jurídica tem também
promovido reformas na arquitetura institucional dos Estados, ao redistribuir competências antes
concentradas em órgãos da União, nos Estados Federados, ou nos órgãos nacionais, nos Estados
unitários, competências, estas, que passam a ser exercidas por entes sub-regionais e/ou municipais.
Este fenômeno tem alcançado o mundo todo, posto que o direito comunitário-supranacional,
nos moldes como foi instituído na União Europeia, em maior ou menor grau, tem sido transplantado
para as diversas regiões do globo por meio dos oito organismos de integração regional existentes. Isto é
o que podemos observar nos organismos de integração sul-americanos, e, neste sentido, especialmente
pela Comunidade Andina, composta por Estados que possuem os menores índices de desenvolvimento
da região.
Sob a perspectiva marxiana de que as revoluções estruturais são de longa duração, posto que em
seu processo desconstruam bases institucionais estabelecidas e consolidadas, sob a perspectiva histórica
de que o Direito moderno registra, em movimentos de avanços e retrocessos, consensos políticos mais
ou menos democráticos que, uma vez positivados, ou seja, revestidos de força jurídica, passam a
constituir um comando institucional que determina, segundo o princípio da legalidade estrita as ações
governamentais, e, nos termos da legalidade e anterioridade da lei, orienta as da sociedade civil, parto
do pressuposto que o princípio da subsidiaridade, ou função de subsidiariedade, configura-se como um
mecanismo jurídico que aperfeiçoa a democracia ao identificar o estado formal, estabelecido pela
Constituição, como o estado real, a população que o compõe (MARX 2005), ao transferir competências e
responsabilidades para entidades mais próximas dos cidadãos, estimulados a se organizarem em
conselhos administrativos, legislativos e de fiscalização das atividades de caráter e interesse público. Sob
esta perspectiva, o tema merece ser estudado.
Entretanto, são obstáculos concretos à efetivação da dimensão democrática e do potencial
revolucionário do princípio da subsidiariedade, justamente a racionalidade e funcionalidade do sistema
mundial de mercados, que modela e sustenta a estrutura econômica capitalista desde suas origens, ainda
no século XVI (WALLERSTEIN 2001).
2 Na Versão consolidada do Tratado da União Europeia (Tratado de Lisboa), o princípio da subsidiariedade esta expresso
no seu art. 3º, n. 3: “Em virtude do princípio da subsidiariedade, nos domínios que não sejam da sua competência exclusiva,
a União intervém apenas se e na medida em que os objectivos da acção considerada não possam ser suficientemente
alcançados pelos Estados-Membros, tanto ao nível central como ao nível regional e local, podendo, contudo, devido às
dimensões ou aos efeitos da acção considerada, ser mais bem alcançados ao nível da União”. Disponível em: http://eur-
lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2010:083:0013:0046:PT:PDF. Acesso em 30.jul.2013.
O fato, inclusive, do direito e das instituições comunitárias europeias terem sido, ao menos
formalmente, transplantadas para os demais organismos de integração regional existentes é uma
evidência de que, institucionalmente, superestruturalmente, os Estados Nacionais modernos, desde o
momento em que se estabelecem, permanecem vinculados a uma rede de relações político-econômicas
que os inserem à sociedade internacional, relações estas estabelecidas segundo uma
racionalidade/funcionalidade hierárquica, colonial, posto que pressupõe centros e periferias,
expressando-se na divisão internacional/local da produção e do trabalho, o que cristaliza e perpetua a
concentração/má distribuição de renda, tanto em âmbito local como planetário.
Neste sentido, a questão fundamental a orientar meus estudos sobre integração comunitária é a
análise crítica e permanente sobre os beneficiários dos processos comunitários. A quem interessa e
quem diretamente se beneficia dos sistemas de integração sul-americanos? Uma vez estabelecida
segundo parâmetros comuns ao sistema-mundial de mercados, como se manifestam as instituições
transplantadas do modelo europeu em um ambiente comunitário completamente diverso e de herança
colonial?
A todos deve parecer evidente que uma integração sul-americana baseada em um modelo assim
concebido estaria fadada ao fracasso. Os objetivos institucionalmente declarados provavelmente jamais
seriam atingidos. No entanto, nas últimas décadas, tanto da CAN como o Mercosul aumentaram
consideravelmente sua atuação, o que pode ser dimensionado pela prodigiosa produção do Tribunal de
Justiça Andino, o terceiro mais atuante, dentre os tribunais internacionais existentes (HELFER, 2009;
ALTER 2011).
Neste aspecto, o Mercosul, muito criticado, desde suas origens, por não seguir à risca, como fez
a Comunidade Andina, o desenho e procedimentos dos órgãos comunitários europeus, representaria
melhor um modelo alternativo àqueles organismos de integração?
comunitário europeu para a América do Sul. Além disso, conforme mencionado, o TJA é um dos três
tribunais supranacionais mais ativos, dentre os oito existentes no mundo (ALTER, 2001, HELFER
2009). A quantidade de decisões judiciais proferidas pelo Tribunal desde a sua criação é, realmente,
impressionante, principalmente por se tratar de um tribunal comunitário sul-americano, cujos Estados-
Membros sempre tiveram que lidar com as dificuldades impostas ao seu projeto de integração e à
incipiência de suas instituições, não apenas as regionais, também as internas.
O propósito inicial da pesquisa era o de averiguar e contabilizar o objeto de pedir nas
Interpretações Prejudiciais emanadas do Tribunal de Justiça da Comunidade Andino, e exclusivamente
nesta espécie de decisão, justamente por se tratar, em espécie, de cooperação jurídica vertical
geralmente estabelecida entre juízes nacionais e comunitários, tal como ocorre no Tribunal de Justiça da
União Europeia e suas decisões essenciais para a construção e consolidação do direito comunitário
europeu.
Buscava-se, portanto, avaliar a contribuição do Tribunal de Justiça Andino ao desenvolvimento
de um direito regional e se este direito teria, em face das especificidades da região colonial, caracteres
próprios, mesmo tendo sido constituído sobre as bases fornecidas pela União Europeia. Além disso, o
procedimento do reenvio prejudicial, permitiria dimensionar a natureza das demandas dos juízes
nacionais e o desenvolvimento da cooperação jurídica internacional na região andina.
As Interpretações Prejudiciais foram estabelecidas como mecanismo processual próprio do
direito processual comunitário europeu, e prevê a obrigatoriedade da consulta ao tribunal comunitário
quando o fundamento jurídico do pedido da parte, na ação ajuizada perante juiz ou tribunal nacional,
versar sobre normas comunitárias. Para assegurar que a interpretação e aplicação do direito comunitário
seja uniforme em todo espaço de integração, os juízes, facultativamente, ou os Tribunais de única ou
última instância, obrigatoriamente, deveriam remeter a questão ao Tribunal de Justiça comunitário,
único competente para indicar, por sentença, a forma adequada de interpretação do direito.
As consultas prejudiciais também estão previstas no Mercosul, e são chamadas de Opiniões
Consultivas. Elas são exatamente isto, uma consulta facultativa feita pelo juiz original da causa quando,
remetida ao Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul (TPRM), o juiz nacional tiver qualquer
dúvida, e somente em casos de dúvida, sobre a aplicação de normas do direito de integração
mercosulino. A decisão proferida pelo TPR, diferentemente do reenvio prejudicial europeu e andino,
não vincula a interpretação que posteriormente será dada pelo juiz local, embora podemos pressupor
que aquele que facultativamente consulta está predisposto a atender o que foi estabelecido pelo tribunal
consultado. Até esta data foram submetidas ao TPRM apenas três Opiniões Consultivas.3
O estudo das Interpretações Prejudiciais do Tribunal de Justiça Andina parecia promissor, pois,
tendo como base os debates estabelecidos por ocasião da Primeira Opinião Consultiva suscitada
perante o Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul, em 2007, esperávamos encontrar aspectos
relevantes acerca do desenvolvimento do direito da integração na América do Sul e suas possíveis
contribuições, igualmente significativas, para o desenvolvimento da sistemática de cooperação jurídica
entre juízes nacionais, reciprocamente, e entre estes juízes e os Tribunais Comunitários.
Naquela decisão, o voto do Árbitro Relator Wilfrido Fernández de Brix e as divergências
levantadas pelos demais árbitros na mesma decisão remetem, justamente, a questões relativas à
cooperação jurídica internacional vertical, isto é, entre juízes nacionais e juízes comunitários, que, no
caso do Mercosul são árbitros, o que, talvez, explique os limites estabelecidos a sua atuação em relação
ao Poder Judiciário estatal. Na OP n. 01/2007 também são discutidos aspectos relativos a cooperação
horizontal, ou seja, entre os próprios juízes nacionais que atuam no processo originário, cuja
sistemática, na América do Sul, é regulado por procedimentos e princípios que remontam há quase um
século e meio, desde as Conferências de Montevidéu e de Havana.
A Opinião Consultiva n. 01/20007 menciona decisões clássicas do Tribunal de Justiça da União
Européia e também do Tribunal da Comunidade Andina, quando discorre sobre a relação do direito
comunitário como o direito nacional, sobre a propriedade da obrigação ou faculdade do juiz nacional
de submeter aos tribunais comunitários toda e qualquer questão relativa ao direito de integração.4 Sobre
este aspecto especial o voto discorre sobre a teoria do ato claro e do ato esclarecido e suas diferenças no
sistema europeu e no sistema andino (CARNEIRO 2007).5
O direito comunitário andino consagrou, sem exceções, o reenvio prejudicial obrigatório,
independentemente do objeto da decisão já ter sido consolidada pelo Tribunal Comunitário. Esta
exigência, entretanto, gera um grande número de decisões que possuem teor idêntico e 90% delas sobre
disputas relativas ao direito de marcas e patentes (HELFER 2009). No pólo ativo, quase que
invariavelmente, temos uma empresa estrangeira, multinacional, que atua na região andina – temos que
lembrar que a Comunidade Andina adotou o modelo de integração comercial aberta, ampliando o livre-
comércio aos seus tradicionais parceiros comerciais estrangeiros. No pólo passivo, comparecem, como
réus na disputa ou como interessado na decisão do órgão executivo, quase que invariavelmente
pequenas e médias empresas locais. 6
4 TJCE, sentença de 15 de julho de 1964, Costa/ENEL e TJCA, sentença proferida no processo 1-IP-87 e 2-IP-90, que
tratam da relação entre direito comunitário e direito interno, declarando a primazia do primeiro em relação ao segundo.
Todas estas decisões estão disponíveis para consulta no sítio oficial da União Europeia e da Comunidade Andina.
5 A OP n. 07/2007 está disponível em: [http://www.mercosur.int./innovaportal/file/PrimeraOpinionConsultiva-
Versionfinal.pdf?contentid=377&version=1&filename=PrimeraOpinionConsultiva-Versionfinal.pdf]. Acesso em
30.jul.2013.
6 Sobre este aspecto material das decisões, Alter e Helfer mencionam: “The ATJ has been given great preemptive forcees to
Andean intellectual property rules than to other areas of Andean Law. The Tribunal has relied on the extensive and detail
secondary legilslation on patests, trademarks, and copyrighs as an indication that the member states had ‘sovereigny
trasferred’ their ‘exclusive authority’over intellectual property issues to community level. See 1-IP-96: section III (holding
that, in the area of intellectual property, member state cannot deviate from ‘the common interests’ of the community except
by acting through Andean institutions’.) (2011, 22)
7 O relator da OP n. 01/2007 argumenta que o sistema adotado pelo TJA é melhor e mais adequado “à realidade latino-
americana” do que aquele definido pelo TJE, nos seguintes termos: “No nosso entender, o sistema vigente na Comunidade
Andina é mais adequado, não apenas para nossa realidade do Mercosul, senão para a nossa realidade latino-americana em
geral. Primeiro, porque a nossa realidade coadjuva melhor com a conscientização dos órgãos judiciais nacionais sobre a
importaância da intepretação prejudicial no marco do Direito Comunitário (ou Direito de Integração) e segundo porque
com o risco de ser desnecessariamente repetitiva, proporciona ao Tribunal Comunitário a oportunidade de evolucionar e
modificar seus próprio critérios anteriores. O direito é e deve ser sempre evolutivo. (Ver nota anterior)
constam em tabela apenas as decisões proferidas de 1991 a 2010, mas as demais podem ser encontradas pelo sistema de
busca pelo número. Disponível em: [http://www.comunidadandina.org/
Solcontroversias.aspx?fr=0&codProc=218&codpadre=16&tipoProc=2]. Acesso em 30.jul.2013.
Unasul, para depreendermos sua real racionalidade, a sua funcionalidade materializada, para determinar
até que ponto são manifestações institucionais reflexivas do sistema-mundo moderno e, portanto,
instrumentos para sua estabilidade, ou se poderiam se constituir como ferramentas institucionais que
podem levar à desconstrução desta funcionalidade histórica.
Ao invés de encontrar matérias relacionadas com o objeto característico de uma zona de
integração comercial, como demandas relativas a contratos firmados entre empresas originárias da
região andina ou questões relacionadas aos tributos preferenciais incidentes sobre as atividades
mercantis interrregional, ou ainda questões reguladas pelo Direito Comercial, tais como o
estabelecimento de empresas de um Estado em território de outro Estado-Membro, a quebra de
empresas locais com repercussão nos demais Estados, e até questões relativas à contratação de
trabalhadores originários de diferentes Estados do bloco de integração, ou relativas ao direito do
consumidor.
Neste caso, teríamos farto material para avaliar a dinâmica integracionista e os avanços e
dificuldades das autoridades com poder de jurisdição em enfrentar esta nova realidade jurídica regional,
que, justamente por estabelecer normas e instâncias de decisões supranacionais exige que os juízes e
tribunais nacionais tenham uma nova perspectiva do direito. Decisões desta natureza retratariam a
consolidação de um espaço de integração na América Andina, o que seria a consagração da histórica
retórica integracionista dessa região da América do Sul.
No entanto, o quadro que encontramos evidencia que a integração aberta acordada pelos
Estados-Membros da Comunidade Andina com Estados da União Europeia e como os Estados Unidos
corrobora a tese de que o regionalismo sul-americano continua vinculado às relações sócio-econômicas
que perduram na região em longa duração e que vão ao encontro, invariavelmente, dos interesses de
empresas que se situam em Estados centrais do sistema-mundo/colonial, companhias que, no caso das
multinacionais originárias de países europeus, estão, inclusive, familiarizadas com os procedimentos
judiciais dos quais podem se servir para alcançar seus interesses e que, por transplante, correspondem
exatamente àqueles que poderiam manejar no âmbito de incidência do direito comunitário europeu.
3. Direito comunitário andino e direito comunitário europeu: uma história colonial de longa
duração
Uma integração regional estabelecida segundo os mesmos paradigmas que levaram à criação da
União Europeia trata-se de um arranjo institucional para a readequação de condições essenciais ao
sistema-mundo, ou seja, a configuração de um centro econômico formado por países centrais, quase
todos europeus, e a condição original de periferia subalterna aos interesses comerciais de empresas
situadas neste centro,. Um arranjo histórico que tem condicionado o desenvolvimento dos países sul-
americanos, neste caso específico de análise, dos países andinos.
Neste sentido, para um projeto de integração alternativo ao estabelecido pela União Europeia é
imprescindível uma efetiva reconfiguração institucional e procedimental dos órgãos supranacionais
andinos, especialmente de seu Tribunal de Justiça, objeto deste estudo.
No entanto, uma mudança institucional estaria longe de configurar, por si só, uma opção
alternativa à funcionalidade clássica do sistema-mundo/colonial, posto que não basta instituir órgãos
supranacionais ou mesmo priorizar o desenvolvimento de relações sócio-econômicas em detrimento
das relações meramente comerciais, que, invariavelmente, atendem aos interesses do capital privado. O
essencial é que estas relações socioeconômicas se pautem por princípios da solidariedade e cooperação
comunitária, para a correção de assimetrias e desenvolvimento equitativo, princípios declarados em
todos os tratados institutivos de organismos regionais americanos. Somente pelo cumprimento dos
princípios e objetivos declarados nestes instrumentos jurídicos a racionalidade sistêmica e sua lógica de
centro e periferia, que leva à divisão internacional da produção e do trabalho, poderia ser superada na
região.
Um indicativo de que um sistema de integração desenvolve-se de forma alternativa ao modelo
europeu é a prioridade que o organismo regional dá à efetivação de políticas públicas voltadas às
pessoas arrebatadas pelo processo integracionista, seja na condição de trabalhador, de consumidor, de
estudante interregional ou na condição daqueles que sofrem direta ou indiretamente os efeitos das
intervenções comunitárias, como é o caso das populações afetadas pelas obras de infra-estrutura
energética e de comunicação que tem sido realizadas na região por parcerias firmadas entre Bancos de
fomento situados nos Estados sul-americanos. No âmbito da América do Sul, estas ações têm sido
implantadas, principalmente, pela União das Nações Sulamericanas (Unasul) por intermédio de sua Iniciativa
para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (Iirsa)10, que, futuramente, pode se tornar um
organismo de convergência entre Mercosul e Comunidade Andina. Estamos caminhando para isso, daí
a necessidade imperiosa de debater o modelo de integração desejado pela população destes Estados.
O contexto no qual foram negociados, entre os Estados sul-americanos, os antigos e os mais
recentes arranjos institucionais integracionistas, demonstra, entretanto, que, desde suas origens, um
bloco de integração tem sido a expressão mais bem acabada do centralismo e da concentração
institucional, elementos característicos e fundamentais à funcionalidade do sistema-mundo capitalista.
Os últimos acordos, firmados na década de 1990, já sob influência dos paradigmas econômicos
debatidos durante a Rodada do Uruguai do GATT - que resultou na OMC - foram responsáveis pela
efetiva implantação, na América do Sul, dos sistemas de integração regional vigentes, especialmente o
Sistema de Integração Andino (SAI), transplantado da União Europeia, e o Mercosul, que, embora com
10 Para maiores informações sobre o programa consultar sua página oficial na internet. Disponível em:
http://worldnews.nbcnews.com/_news/2013/07/05/19311803-american-mom-daughter-6-stuck-in-brazil-in-child-
custody-battle. Acesso em 11.jul.2013.
características mais específicas, foi igualmente inspirado no projeto de criação de um mercado comum
dentro dos paradigmas clássicos do livre-mercado.
Este movimento regional integracionista da década de 1990 foi impulsionado pelos Planos de
Ajuste Estrutural (PAE) firmados, na mesma década, pelos Estados sul-americanos com o Fundo
Monetário Internacional em parceria com o Banco Mundial. Para a execução das metas estabelecidas
pelos PAE, os governos locais teriam acesso a empréstimos disponibilizados pelo Banco Mundial e
teriam, inclusive, a assessoria de técnicos estrangeiros para a elaboração dos projetos de infraestrutura e
das reformas institucionais que lhes assegurariam o acesso ao crédito prometido.
Na década de 1990 foram ratificados diversos protocolos adicionais ao Acordo de Integração
Subregional Andino, conhecido como Acordo de Cartagena, este, negociado no âmbito da Associação
Latino-Americana de Livre Comércio (Alalc) e vigente desde 26 de maio de 1969.
O Pacto Andino, como ficou mais conhecido, recepcionou as ideias consagradas pelo
desenvolvimentismo cepalino, formulado por intelectuais sul-americanos. Esta tese foi promovida em fóruns
internacionais realizados a partir do final da década de 1950, sob a tutela e patrocínio das Nações
Unidas e seu objetivo era a formulação e o planejamento de políticas públicas. A Comissão Especial
para a América Latina (Cepal) tributa a promoção do desenvolvimento às instituições públicas, que
seriam capazes de substituir a ação dos atores sociais em Estados subdesenvolvidos, presumindo que
estes Estados possuem reduzido capital social. Raúl Prebisch, argentino, e Celso Furtado, brasileiro, são
expoentes deste grupo (COLISTETE, 2001) 11.
Dos organismos de integração econômica criados na América do Sul sob os auspícios das
organizações internacionais de Bretton Woods, instituídas a partir da década de 1940, o Pacto Andino
foi o que mais avançou no seu processo de institucionalização. Este progrediu, embora timidamente,
durante parte das décadas de 1970 e 1980. No entanto, e justamente em face de não ser objeto de
interesse social e por não ser capaz de formular ideias ou incorporar aspectos regionais específicos,
permaneceu praticamente inalterado até 1996, quando, do ponto de vista de sua arquitetura
institucional, ocorreram as mudanças mais significativas. Da mesma forma que ocorrera na década de
1960, a reforma foi promovida em face do que era preceituado e viabilizado pelas organizações
internacionais globais, embora, recentemente, a Cepal, abrigada no Conselho Econômico e Social das
Nações Unidas (ECOSOC), tenha dado lugar ao FMI e Banco Mundial.
Com a vigência do Protocolo Modificatorio del Acuerdo de Integración Subregional Andino (Acuerdo de
Cartagena), aprovado em Trujillo, Perú, em 10 de março de 1996,12 por isso conhecido como Protocolo de
Trujillo, foi instituído o Sistema Andino de Integração e adotado o nome Comunidade Andina. À estrutura
institucional já estabelecida juntou-se o Conselho Presidencial Andino (equivalente ao Conselho
de comunicação entre os Estados sul-americanos, quanto aspectos de ordem histórica, como os graves
problemas socioeconômicos de seus países, que vão da extrema vulnerabilidade econômica e pobreza
de suas populações à insuficiência de desenvolvimento capitalista. Uma realidade, portanto, bastante
diferente da européia, mesmo depois da destruição promovida pelas guerras mundiais, fator que
justificou, no pós-guerra, a criação de estruturas supranacionais e um mercado comum entre os Estados
que sofreram os efeitos das disputas coloniais travadas entre eles.
Naquele momento, em 1950, e depois, em 1990, o sistema-mundo precisava ser reorganizado,
pois os Estados hegemônicos tradicionais perceberam o risco de serem superados pelas novas
hegemonias globais. Nestes momentos de crise, os projetos de integração entre Estados sul-americanos
voltam a ser suscitados e encorajados (CARNEIRO, 2010).
13Alter e Helfer (2011) também mencionam processo ajuizado perante a Corte Constitucional da Colômbia no qual o autor
requer que seja declarada a inaplicabilidade de normativas colombianas relativas à produção e comercio do álcool por serem
contrárias ao direito comunitário. A Corte negou o pedido do autor sob o argumento de que apenas as normas relativas aos
direitos humanos têm hierarquia superior às leis, o que não é o caso das normativas comerciais comunitárias, que seriam
equivalentes e não superiores às normas internas. Os autores comentam: “The Colombian Court adopted somewhat
abstruse reasoning, stating that community Law has ‘primacy’over conflicting national law, but suggesting that primacy
means that community law ‘displaces but does not abrogate o render non-executable’ confliticting national legislation’.” (p.
23)
Apesar da decisão intergovernamental, no sentido de instituir uma Corte Comunitária, ter sido
definida em 1972, o Tribunal somente iniciou seus trabalhos em 1984.
Posteriormente, com o Protocolo de Cochabamba, de 1996, o Tribunal também foi
reestruturado conformando-se, definitivamente, com modelo europeu. O Protocolo de Cochabamba
foi regulamentado pela Decisão n. 500 do Conselho da Comunidade Andina, que instituiu o Estatuto do
Tribunal de Justiça da Comunidade Andina e seus ritos processuais.
A arquitetura institucional e processual do órgão judiciário supranacional sul-americano
transplantou para a região andina princípios e procedimentos que levaram tempo para ser concebidos
pela jurisprudência e pela doutrina européia. Seu surgimento tardio, em relação ao europeu, possibilitou
a consolidação, nos tratados da Comunidade Andina, destes institutos que, na Europa, foram
delineados com o tempo. Estes fundamentos jurídicos, portanto, também foram recepcionados pelos
órgãos comunitários andinos.
A jurisprudência do TJA ratifica os princípios do Direito Comunitário europeu e classifica as
fontes de direito comunitário em duas espécies: os tratados e protocolos, negociados e firmados em
conferências de cúpula, e incorporados segundo disposições constitucionais cada Estado; e as Decisões,
normas exaradas pelos órgãos comunitários aos quais o tratado constitutivo atribui competência
normativa, que a exercerá segundo os princípios e limites também estabelecidos pelo tratado
constitucional. Daí se falar de sua natureza fundamental, porém fundamental apenas na esfera do
organismo regional denominado União Europeia e aos seus Estados-Membros, mas não à Europa,
como às vezes pode parecer.
As Comunidades Europeias, de fato, deram origem a uma nova forma de elaboração e
incorporação de normas internacionais ao ordenamento jurídico dos Estados-Membros. Até então,
apenas a disciplina de elaboração e internalização dos tratados internacionais tinha sido objeto de
estudos e elaborações normativas, em face de sua prática costumeira nas relações entre povos e
Estados. No entanto, até então ainda não se havia conferido efeito coercitivo direto e imediato de
normas internacionais no ordenamento jurídico interno, o que suscitou, até poucos anos atrás, muitos
debates acerca de uma possível relativização da soberania estatal.
Por se tratarem de normas de natureza diferente, e provenientes de fontes diferentes, o
procedimento para a elaboração de cada espécie também poderá ser diferente e é o que ficou
estabelecido pelos tratados originários das Comunidades Europeias.
A forma de incorporação dos tratados ao ordenamento jurídico interno é previsto nas
Constituições de todos os Estados da América do Sul, e a forma, em todos eles, se assemelha em
grande medida, exigindo-se, em praticamente todas as matérias, a autorização prévia dos parlamentos
para sua ratificação presidencial.
Quanto às normas derivadas dos órgãos comunitários, a forma e o momento de sua vigência
junto aos Estados-Membros são previstos pelo tratado constitutivo, que se antecipou às previsões
constitucionais neste sentido. Os Estados da Comunidade Andina, posteriormente, reformaram suas
constituições e incorporaram ao seu texto clausulas de abertura e reconhecimento do direito comunitário
secundário. São estas normas que dimensionam a participação, ou não, de órgãos públicos internos no
processo de internalização do direito da integração secundário.
Justamente em face dos eventos já mencionados, outro princípio comunitário europeu
recepcionado textualmente pelo direito de integração andino é o da sua primazia em relação ao direito
nacional, quando ambos tratarem da mesma matéria. Ficou firmado, portanto, que a lei interna apenas
prevalece sobre uma norma comunitária na falta de sua regulamentação pelos próprios órgãos
comunitários, ou seja, apenas quando, sendo necessária, não houver disposição comunitária aplicável à
questão. Na Comunidade Andina, este entendimento é possível até mesmo quando a matéria for de
competência exclusiva dos órgãos andinos, na sua ausência, aplica-se a lei nacional, pois nenhum
dispositivo do direito comunitário deverá ser interpretado no sentido de limitar a soberania do Estado
desconsiderando seu poder jurisdicional interno quando estas normativas são compatíveis com os
objetivos e princípios da integração regional.14
O princípio da aplicação direta do direito comunitário pelo juiz nacional também foi ratificado
pela jurisprudência andina, e, no caso concreto, percebendo-se o conflito entre uma norma comunitária
e uma interna, como já afirmado, prevalece a primeira.
Em face da aplicação do direito comunitário pelo juiz nacional, que conhecerá originariamente
da demanda, a Decisão 500 determina que toda ação fundamentada em normas do direito comunitário
andino devem ser, antes de definitivamente julgada a ação, previamente interpretadas pelo juiz
comunitário. Esta providência visa, conforme o direito europeu, criar um entendimento uniforme das
normativas comunitárias. Esta consulta do juiz ao TJA será facultativa, quando o processo ainda estiver
sujeito a recurso, mas será obrigatória, quando já estiver em último grau de jurisdição ou quando o caso
for de competência originária dos órgãos jurisdicionais superiores. Na consulta obrigatória o processo
original é suspenso. Daí no nome do incidente: Interpretação Prejudicial, isto é, ocorrida antes do
julgamento definitivo.15
5. Interpretações Prejudiciais e o principio da subsidiariedade
Se a partir de meados da década de 1970 até 1990 parecia haver bastante entusiasmo acerca das
instituições e, especialmente, dos tribunais supranacionais. Atualmente, a convicção sobre sua
necessidade e importância encontra-se abalada. De fato, o desenvolvimento das comunidades europeias
e do próprio direito europeu, na sua primeira década de existência, prescindiram da atuação do Tribunal
de Justiça Europeu. No entanto, acreditava-se que sua atuação seria essencial para que o direito
comunitário fosse respeitado pelos Estados e para que, uma vez aplicado pelo juiz nacional, sua
interpretação fosse uniforme em todos os Estados que compunham as Comunidades Europeias
(ALTER 2011, 3).
Para a primeira situação, as normas processuais comunitárias prevêem a Ação de
Incumprimento, e para a segunda, as Interpretação Prejudiciais, que são incidentes processuais
provocados quando normativas do direito comunitário são suscitadas perante o juiz nacional. Neste
caso, o juiz local ou o Tribunal nacional devem reenviar a matéria à manifestação do Tribunal de Justiça
Europeu, que deverá orientar o juiz da causa sobre a melhor interpretação e melhor forma de aplicação
da normativa em questão.
De início, entendia-se que, havendo qualquer pedido, feito no processo original, que fosse
fundamentado no direito comunitário, o reenvio da questão ao TJE seria obrigatória, que, sem entrar
no mérito do litígio, deveria proferir a interpretação e sugerir a aplicação mais adequada para a
normativa suscitada. Em razão do volume de questões que passaram a ser levadas ao TJE e,
principalmente, em razão da repetição freqüente das mesmas questões, o TJE decidiu, no
paradigmático caso CILFIT, de 198216, que quando o dispositivo comunitário for suficientemente claro,
ou no caso da questão já ter sido objeto de interpretação anterior e já estivesse, portanto,
suficientemente esclarecida, os tribunais nacionais não estavam obrigados a promover o incidente de
interpretação prejudicial, o que evitaria o retardamento da decisão definitiva em prejuízo da
15 Decisão 500 Conselho Andino. Artículo 121.- Objeto y finalidad. Corresponde al Tribunal interpretar las normas que
conforman el ordenamiento jurídico de la Comunidad Andina, con el fin de asegurar su aplicación uniforme en el territorio
de los Países Miembros. Artículo 122.- Consulta facultativa. Los jueces nacionales que conozcan de un proceso en el que
deba aplicarse o se controvierta alguna de las normas que conforman el ordenamiento jurídico de la Comunidad Andina,
podrán solicitar, directamente y mediante simple oficio, la interpretación del Tribunal acerca de dichas normas, siempre que
la sentencia sea susceptible de recursos en derecho interno. Si llegare la oportunidad de dictar sentencia sin que hubiere
recibido la interpretación del Tribunal, el juez deberá decidir el proceso. Artículo 123.- Consulta obligatoria De oficio o a
petición de parte, el juez nacional que conozca de un proceso en el cual la sentencia fuera de única o última instancia, que
no fuere susceptible de recursos en derecho interno, en el que deba aplicarse o se controvierta alguna de las normas que
conforman el ordenamiento jurídico de la Comunidad Andina, deberá suspender el procedimiento y solicitar directamente y
mediante simple oficio, la interpretación del Tribunal.
16Disponível em: [http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=CELEX:61981CJ0283:EN:HTML] Acesso em
20.jul.2013
administração da Justiça. Esta nova disposição, trazida pela jurisprudência comunitária, ficou conhecida
como “teoria do ato claro” e “teoria do ato esclarecido” (CARNEIRO 2007).
A questão da obrigação ou da faculdade do juiz local em submeter a questão ao Tribunal
Comunitário foi o principal debate travado durante a decisão proferida na Opinião Consultiva n.
1/2007 pelo Tribunal de Revisão do Mercosul, o que se justifica pelo fato do Mercosul ter optado por
uma sistemática diferente daquela adotada pela União Europeia e pela CAN, posto que, como o nome
indica, a Opinião Consultiva mercosulina, segundo a sistemática adotada pelo Protocolo de Olivos,
além do juiz não estar obrigado a submeter a norma à interpretação do TPRM, a sentença proferida é
insuscetível de vincular o juiz que a suscita17.
A análise das Interpretações Prejudiciais proferidas pelo TJA permite-nos avaliar que,
indubitavelmente, o procedimento de reenvio ao tribunal comunitário deveria recepcionar também o
princípio do ato claro e esclarecido, o que evitaria a profusão de decisões praticamente idênticas como
as que têm sido proferidas pelo Tribunal no procedimento de Interpretações Prejudiciais.
A constatação permite-nos, inclusive, ponderar sobre o papel dos tribunais supranacionais nos
organismos de integração regional: os tribunais permanentes seriam, mesmo, necessários ao
desenvolvimento do bloco ou os tribunais deveriam ser uma conseqüência, uma necessidade a ser
demandada pelo próprio processo de integração? O reenvio necessário, imposto antes mesmo da
consolidação de um direito comunitário, não contrariaria o princípio da subsidiariedade, relativo aos
órgãos supranacionais? O princípio determina que a interveniência do órgão comunitário seja feita
apenas nos casos em que as instituições nacionais ou locais não possam fazê-lo de forma mais adequada
e eficaz. Ora, os juízes e tribunais nacionais devem ser presumidamente aptos à compreensão e
aplicação do direito de integração sem que seja necessária e obrigatória a suspensão do processo
original para a apreciação da questpelos juízes comunitários.
Neste aspecto, o Mercosul encontrou uma solução, acredito, mais adequada e eficaz: a criação
do Fórum de Cortes Supremas do Mercosul, que, em encontros regulares, tem debatido a melhor forma de
cooperação jurídica entre os Estados e também contribuído para a harmonização do entendimento e
cumprimento do novo direito de integração regional, principalmente no que concerne à cooperação
jurídica horizontal, ou seja, aquela que se dá entre órgãos administrativos e judiciais dos Estados-
membros do bloco comunitário, mecanismo que atende mais adequadamente ao preceituado pelo
princípio da subsidiariedade.
17 O Relator da OC n, 1/2007, Dr. Wilfrido Brix justifica, em seu voto, sua opinião a este respeito, combatendo a mera
faculdade do juiz. Afirma, inclusive, que prefere o sistema da CAN, que não recepcionou a tese do ato claro e esclarecido.
Disponível em: [http://www.mercosur.int/innovaportal/file/PrimeraOpinionConsultiva-
Versionfinal.pdf?contentid=377&version=1&filename=PrimeraOpinionConsultiva-Versionfinal.pdf]
18 Decisión 24/1970 da Comisión Andina sobre Régimen común de tratamiento a los capitales extranjeros y sobre marcas,
patentes, licencias y regalías; Decisión 85/74 sobre Propiedad Industrial (ver especialmente os seus arts. 4º e 5º). Após 1991
são editadas Decisões que flexibilizam o rigor das primeiras: Decisión 291/1991 e Decisión. 311/199, que revogam a
Decisión 24/70 e Decisión. 85/74, seguidas pela a Decisión 344/1994, que estabelece o Regime Común sobre Propiedad
Industrial, detalhado pelas Decisões n. 486/2000, 632/2005 e 689/2008. Todas estas normativas estão disponíveis no sítio
oficial da Comunidade Andina: [http://www.comunidadandina.org/Normativa.aspx#] Acesso em 30.jul.2013.
19 O Peru instituiu, em 1992, o Instituto Nacional de Defensia de La Competencia y de La Protección de la Propiedad
Industrial (INDECOP), que conta com um Tribunal com competência para litígios envolvendo direito de concorrência,
propriedade industrial e proteção do consumidor; no mesmo ano de 1992, a Colômbia instituiu a Superintendência de
Industria e Comércio (SIC). Em 1996, a Bolívia criou o Servicio Nacional de Propiedad Intelectual; em 1997, a Venezuela
criou o Serviço Autônomo de Propriedade Intelectual (SAPI); em 1998, o Equador instituiu o Instituto Equatoriano de
Propriedade Intelelectual (EIIP). (PEREZ 1998)
TJA são, quase que invariavelmente, multinacionais com sede nos países centrais, principalmente em
países europeus, que buscam o reconhecimento de direitos que, anteriormente, lhes eram, ao menos,
formalmente negados pelas Decisões comunitárias andinas. Este aspecto também é levado em
consideração pelo Professor Laurence Helfer, da Duke University e pela Professora Karen Alter, da
Northwestern University, ambas nos Estados Unidos (HELFER 2009, 9-12).20
Apenas para exemplificação, mencionamos alguns dos sujeitos requerentes no ano de 2009: a
indústria farmacêutica Lilly (81-IP-2009), Kraft Foods Holding (104-IP-2009); Hard Rock Café (78-IP-
2009), The Prudential Insurence Company of America (61-IP-2009), Kellog (4-IP-2009), Pfizer Ireland
Farmacêutica (70-IP-2009); Helena Rubinstein (72-IP-2009), Philips Morris Products S.A (80-IP-2009);
Smith Kline Beechan Biological S.A (83-IP-2009), Nestlé Societé dês Produits S.A (79-IP-2009),
Pharmabrands S.A e Soc. Merck and Co. (49-IP-2009), Laboratório Byly S.A (138-IP-2009), Sociedade
Fujisawa Farmaceutical (139-IP-2009), Soc. Abbot (94-IP-2009), Alcon (141-IP-2009). Temos muitos
outros exemplos que não serão aqui relacionados e sequer detalhados por fugir do escopo deste artigo.
Sobre este aspecto, a reforma no Acordo de Cartagena, em 1996, instituiu uma zona de
integração aberta e não propriamente protetiva como previa, originalmente, o Pacto Andino. Logo na
primeira alínea do seu art. 3º estabelece como seu objetivo fundamental a “profundización de la
integración con los demás bloques económicos regionales y de relacionamiento con esquemas
extrarregionales en los ámbitos político, social y económico-comercial”. Este mecanismo permite à
Comunidade Andina realizar acordos que ampliam a zona de livre-comércio para Estados ou
organizações comunitárias de fora da América do Sul, consolidando os tradicionais fluxos comerciais
que ligam a região preferencialmente a Europa e aos Estados Unidos em detrimento de seus parceiros
andinos ou mercosulinos. Esta opção foi condicionada em razão da forte ingerência de Estados
hegemônicos e dos organismos internacionais econômicos que formularam o denominado Consenso
de Washington sobre os Estados andinos, contribuindo para a readequação do sistema-mundo/colonial
e a manutenção dos seus desvios.21
20 Foi uma grata surpresa descobrir que as questões que levaram a esta pesquisa são muito similares aquelas que já tinham
sido objeto de problematização e investigação pelo Profesor Helfer e Profesor Karen, os quais tive a oportunidade de
conhecer no Encontro entre Cortes Comunitárias sul-americanas realizadas na Universidade de Buenos Aires, em 2011.
Dentre as questões que seus trabalhos procuram responder encontramos: “Why have Andeans judges and officials been
able to induce widespread respect for Andean rules in intellectual property but not in other areas of regional integration?
(…) We inquire, first, into the creation and protection of IP rights for private parties under the Andean legal system;
second, into whether national actors – in particular administrative agency officials – habitually implement Andean IP rules
as interpreted by Andean judges; and third, into whether individual member countries comply with ATJ rulings in the face
of contrary pressure by foreing interests (principally the United States and American pharmaceutical companies”.
(HELFER 2009, 3)
21 Sobre este aspecto, aponta Helfer: “By the late 1980s, a prevaisve crisis in Latin America had pushed the Andean Pact to
the brink os falilure. Using the substantial economic leverage that crisis engendered, the World Bank, the Inter-American
Development Bank, and Internactional Monetary Fund (IMF) pressed Andean governments to adopt a broad array of
liberalizing and deregulatory reforms. These reformsm known as the ‘Washington Consensus’ engendered fundamental
changes in how Andean countries regulated their economies. National governments – acting on their own and through
Andean institutions – adopted major policy reforms to achieve open, market-bases economies and creadted nes institutions
staffed by Western-educated professionals who endorsed these goals”. (HELFER, 209, 7-8). Mais adiante: “In the early
7. Conclusão
Após a análise das Interpretações Prejudiciais proferidas pelo TJA, pudemos, finalmente,
enfrentar as questões que inicialmente justificaram este trabalho de pesquisa pois, originariamente, o
objetivo era dimensionar o desenvolvimento do direito de integração nos blocos comunitários sul-
americanos pela atuação dos seus tribunais justamente para detectar sua contribuição teórica ao
desenvolvimento do direito da integração e dos procedimentos de cooperação jurídica na América do
Sul.
A resposta a estas perguntas é que nos impõe repensar qual a arquitetura institucional necessária
à efetivação dos blocos de integração, em face da evidência que os tribunais permanentes são
dispensáveis a esta meta. Além disso, o reenvio necessário, conforme foi concebido e tem sido utilizado
não traduz uma prestação jurisdicional mais eficiente e adequada às partes litigantes em relação àquela
provida pelo juiz originário da causa, inclusive atrasa a prestação jurisdicional, pois, estando em último
grau de jurisdição, suspende o processo.
O reenvio necessário, no TJA, da forma como é tratado, leva a uma profusão de decisões com,
praticamente, o mesmo conteúdo, que, conforme mencionamos referem-se quase que exclusivamente
ao direito de marcas e patentes não traduzindo, de fato, inovações significativas ao processo jurídico
interno e comunitário em face do direito da integração, novo ramo do Direito.
Quanto ao aprofundamento da integração jurídica entre órgãos judiciais dos Estados-Membros
da CAN e seu Tribunal de Justiça, ou mesmo em relação à contribuição do TJA ao desenvolvimento de
institutos próprios ao direito comunitário sul-americano, o resultado também foi frustrante.
Pela atuação do Tribunal podia-se esperar que, tal como ocorreu nas Comunidades Europeias,
cuja Corte proferiu decisões prejudiciais paradigmáticas22, o TJA, ao interpretar e esclarecer o direito
andino, pudesse, inclusive, inová-lo, conferindo-lhe um caráter próprio, diferente daquele
desenvolvimento na Europa. No entanto, as Interpretações Prejudiciais demonstraram, neste sentido,
ser quase que completamente inócuas, pois tratam, essencialmente, de questões pacificadas pela
doutrina e jurisrprudência européia e confirmadas, com pequenas nuances de diferença, pelos juízes da
1990s, member states shifted course and adopted four Decisions that mandated progressively higher levels os IP
protection, These new regional laws refleted the market liberalization goals of the later phases of the Washington
Consensus. But other factors reinforced the impetus for change: the inclusion of IP rules in the Uruguay Round of
multilateral trade negotiations and threats of trade sanctions by the United States.” (HELFER, 2009, 10) (…) “As of 1994,
although Andean IP rules were consistent with TRIPS, they fell short of the demands of U.S IP rights holders for more
capacious IP protection. The United States and its IP industries responded by pressuring individual Andean countries to
negociate bilateral treaties and to enact domestic laws containing enhanced IP rules. These strategies caused some national
executives to defect from Andean rules, but (…) the ATJ and the General Secretariat proved to be hospitable forums for
the region’s generic drug industry to challenge these defections as violations of Andean Law. However, compliance with the
ATJ rulings upholding these challenges would not have occurred without the support of domestics IP agenciese, whose
restructuring was also a product of the Washington Consensus reforms. (HELFER, 2009, 10-11).
22 Por exemplo, o caso Van Gend em Loos, no qual o TJE proclamou o princípio da aplicação imediata do Tratado de
Roma e das regras de livre-mercado no ordenamento jurídico de cada Estado-Membro da CEE; e o caso Simenthal, no qual
foi fixado o princípio da aplicação direta e imediata do direito comunitário pelo juiz nacional, são clássicos.
CAN. Não há, portanto, qualquer construção de institutos novos e específicos, próprios do direito da
integração regional.
Quanto à sua contribuição ao desenvolvimento da cooperação judicial vertical e horizontal,
esclarecendo questões processuais relativas ao processo internacional ou comunitário, apesar da
previsão do seu Estatuto, esta cooperação simplesmente não existe. Enfim, nada do que se poderia
esperar, tendo em vista um ambiente de integração, o que impõe repensar sua estrutura, processo e
composição.
Nestes aspectos, que poderiam ser relevantes ao desenvolvimento do direito da integração na
América do Sul, os Tribunais Comunitários da região, TJA e TPRM, não cumprem o papel que deles se
poderia esperar, que é de, ao menos, contribuir para o desenvolvimento do direito da integração sul-
americano.
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WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo histórico e civilização capitalista. SP: Contraponto, 2001.
O
estreitamento das relações internacionais pode ter como uma de suas consequências a
criação dos blocos econômicos de integração regional e, geralmente por questões
geográficas, há a formação de blocos regionais que se dispõem a seguir o Direito da
Integração Regional e estabelecer as suas regras regionais para promover a circulação, proteção e
manutenção das riquezas e investimentos políticos entre os membros do bloco para potencializar as
suas economias e o comércio em função de maior visibilidade no âmbito do sistema internacional.
O Mercosul é um dos blocos de integração regional de importante visibilidade no âmbito da
dinâmica das relações internacionais. Criado em 1991 com intuito de impulsionar as economias dos
seus membros bem como para reduzir as desigualdades sociais que assolam sua sociedade verifica-se
que o desenvolvimento da integração regional no bloco depende de uma dinâmica não apenas política,
mas também normativa e democrática e, neste sentido, o bloco instituiu o compromisso democrático
em 1998 através do Protocolo de Ushuaia.
Neste sentido, sobre a democracia na integração regional tem-se que a partir da década de 90 do
século passado os Estados da América do Sul apresentavam instabilidade política muitos países
passaram por um processo de redemocratização pós-ditaduras que assolaram a maioria dos governos
latinos (períodos de práticas nacionalistas e por vezes protecionistas em razão do déficit econômico-
financeiro dos países periféricos frente às práticas liberais dos países centrais), assim, percebe-se que a
maioria dos processos de integração regional ocorreu em concomitância às mudanças políticas, crises
econômicas e sociais.
Assim, o presente artigo visa analisar o processo de expansão da atuação representativa no
Mercosul através do Parlamento do Mercosul (Parlasul), como o órgão capaz de aproximar a sociedade
civil da dinâmica da integração, vez que aquele é o órgão responsável por difundir a discussão de
demandas econômicas, sociais, culturais e políticas através do diálogo entre os diversos atores
envolvidos.
Na segunda metade do século XX, insta salientar que as novas tecnologias surgidas como o
rádio, televisões e outros aparelhos de comunicação favoreceram a troca de informações entre os
Estados e suas sociedades. Assim, o ambiente tornou-se propício para a formação de grupos de
interesses e organizações não governamentais na sociedade civil propondo o debate entre governo e
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 466
cidadãos sobre diversos temas como relação de trabalho; meio ambiente; participação política; entre
outros.
Ressalta-se que a discussão sobre a expansão da democracia na segunda metade do século XX
estava fundamentada na sua configuração estrutural e sua relação com cidadãos (voto, participação).
Neste passo estava presente a tensão no debate entre a estrutura do capitalismo e da democracia no que
se refere à capacidade distributiva da democracia frente aos aspectos individualistas e liberais do
capitalismo.
Haveria, portanto, uma tensão entre capitalismo e democracia, tensão essa que, uma vez
resolvida a favor da democracia, colocaria limites à propriedade e implicaria em ganhos distributivos
para os setores sociais desfavorecidos. Os marxistas, por seu lado, entendiam que essa solução exigia a
descaracterização total da democracia uma vez que, nas sociedades capitalistas, não era possível
democratizar a relação fundamental em que se assentava a produção material, a relação entre o trabalho
e o capital. Daí que, no âmbito desse debate, se discutissem modelos de democracia alternativas ao
modelo liberal: a democracia participativa (...). (SANTOS; AVRITZER, 2002, p.3 introdução).
A importante questão levanta sobre a participação dos cidadãos na vida política de seu país seria
um novo desafio e ao mesmo tempo o novo desenho para o avanço da democracia, principalmente nos
países em desenvolvimento em que as demandas da sociedade devem ser expostas e encaminhadas
pelas sociedades locais aos seus governos a fim de reduzir as desigualdades existentes.
Ao fim da Guerra Fria houve uma intensificação dos processos democráticos nos governos,
mas, principalmente na forma da democracia de baixa intensidade, ou democracia apenas
representativa. Assim, a prática democrática restringia-se no exercício do direito ao voto em um
representante candidato a algum cargo no governo seguindo a ideologia de uma legenda ou coligação
política. A grande barreira a ser superada para que o poder fosse exercido pelo povo soberano era o
pensamento político de que a democracia é o voto e nada mais além. Juntando isto ao fato de que as
corrupções e falta de transparência dos governos neste período desacreditava os cidadãos de que
estariam sendo representados por alguém no governo de seu país.
Em meio às discussões sobre a democracia e suas implicações nas estruturas governamentais
tem-se o seu grande trunfo, pois aquela permite a criação de espaços onde se podem problematizar em
público às condições de desigualdade da esfera privada e assim permite-se aos indivíduos questionar sua
exclusão das ações governamentais (SANTOS; AVRITZER, 2002). Assim, defende-se a ideia de
participação dos cidadãos num discurso racional para a formação de normas-ações (HABERMAS,
1995) favorecendo a construção do pluralismo político no qual o exercício do poder emana dos
métodos de argumentação, mobilização social e participação coletiva da sociedade envolvida.
O diálogo entre a representação e a participação local faz da democracia um instrumento de
aproximação entre as demandas culturais, sociais, econômicas e políticas existentes na vida dos
indivíduos e o seus governantes, numa estrutura crescente que vai desde os governos locais, passando
pelos estados até alcançar o âmbito do governo federal. Exemplos dessa ação comunicativa percebem-
se na formação de conselhos da sociedade civil e fóruns de discussão entre governados e governos.
Ressalta-se que a organização dos indivíduos por direitos civis, manifestações contra as guerras,
movimentos pela paz, pela saúde do meio ambiente e por Direitos Humanos, em prol de cidade, seu
estado e seu país amplia as condições de melhoria das situações de desigualdades sociais e déficits
econômicos que assolam a maioria dos governos, principalmente os governos da América Latina.
Verifica-se a ampliação da participação popular no ambiente político da América Latina,
principalmente, após o movimento de redemocratização em vários países ocorrido no final dos anos 80
e início dos anos 90 do século XX em que houve maior conscientização das populações sobre a
necessidade do diálogo e participação dos cidadãos para que suas demandas fossem objeto de análise
pelos governos e, desta forma, atuarem de modo a expandir a prática democrática para além do voto
eleitoral.
As práticas de participação da sociedade civil no âmbito latino-americano são percebidas nos
países como o Brasil, na criação de conselhos, e mecanismos de orçamento participativo, assim como
estes foram criados pelos governos da Argentina, Peru e Venezuela.
Assim, tem-se a inserção de novos atores no cenário político contemporâneo que participam,
questionam e exigem medidas eficientes e esclarecedoras para sua população, deste modo a cidadania se
faz presente no processo de construção do diálogo entre Estado e sociedade tal participação ampliada
nos processos decisórios representa um ganho político e social. Tais pontos positivos e favoráveis ao
avanço da democracia são reconhecidos por Boaventura de Sousa Santos e Leonardo Avritzer ao
afirmarem que “em geral, estes processos implicam a inclusão de temáticas até então ignoradas pelo
sistema político, a redefinição de identidades e vínculos e o aumento de participação, especialmente no
nível local” (SANTOS; AVRITZER, 2002, p. 26 introdução).
Sobre a democracia na integração regional tem-se que a partir da década de 90 do século
passado os Estados da América do Sul apresentavam instabilidade política muitos países passaram por
um processo de redemocratização pós-ditaduras que assolaram a maioria dos governos latinos
(períodos de práticas nacionalistas e por vezes protecionistas em razão do déficit econômico-financeiro
dos países periféricos frente às práticas liberais dos países centrais), assim, percebe-se que a maioria dos
processos de integração regional ocorreu em concomitância às mudanças políticas, crises econômicas e
sociais.
Em 1988, Brasil e Argentina formalizaram uma Comissão Parlamentar Conjunta de Integração
para promover a democracia junto à atuação executiva além de agilizar os processos de integração dos
Tratados firmados em favor da cooperação regional incipiente. Após negociações instituiu-se o
Mercado Comum do Sul (Mercosul) em 1991, com vistas ao desenvolvimento econômico e político
internacional dos Estados Membros. Criou-se a Comissão Parlamentar Conjunta (CPC) para promover
a cooperação normativa entre os parlamentos nacionais e promover discussões sobre Direitos
Humanos, Meio Ambiente, Cultura, Democracia, regulamentando essas áreas para instituir garantias e
obrigações no processo de integração.
Apesar dos esforços a CPC não logrou êxito em suas atividades tampouco agilizou os
procedimentos de integralização das normas, sendo necessário seu remanejamento funcional para dar
prosseguimento às ações do bloco. Para a promoção e defesa da democracia no âmbito do Mercosul,
foi assinado em julho de 1998 o Protocolo de Ushuaia sobre Compromisso Democrático no Mercosul,
Bolívia e Chile, favorecendo, assim, a expansão dos propósitos delineados posteriormente ao Parlasul.
O Protocolo Constitutivo do referido parlamento foi aprovado pela Decisão nº 23 de 09 de
dezembro de 2005 do CMC, que prevê as funções do PARLASUL, sendo estas: o fortalecimento da
cooperação entre os parlamentos dos Estados Membros; agilizar a incorporação das normas do
Mercosul ao ordenamento jurídico interno dos Estados Membros; propor projetos de normas ao CMC,
elaborar estudos e anteprojetos de normas nacionais; a representação dos interesses dos cidadãos do
bloco; zelar pela democracia no bloco (SECRETARIA-GERAL DA PRESIDÊNCIA DA
REPÚBLICA, 2007). Verifica-se, assim, que não há no Parlasul a função legislativa, atuando este sob o
crivo do posicionamento dos chefes de governo (MALAMUD e SOUSA, 2005).
Os parlamentares são indicados para assentos permanentes proporcionais à população dos
Estados representados do Mercosul e, o artigo 6º do Protocolo Constitutivo do Parlasul dispõe que
haverá eleições diretas, universais e secretas, para que os cidadãos elejam seus representantes que
atuarão durante um mandato de quatro anos, e poderão ser reeleitos (MAZZUOLI, 2009).
Sobre a participação de grupos políticos, conforme o Regimento Interno (PARLAMENTO
DO Mercosul, 2007) do Parlasul, um grupo político deve ser integrado por pelo menos 10% de todo os
parlamentares, se todos são da mesma nacionalidade; ou apresentar no mínimo cinco parlamentares,
caso mais de um Estado-membro esteja representado.
Ressalta-se que o Parlasul encontra-se na fase final de transição (de 1º de janeiro de 2011 até 31
de dezembro de 2014) e, conforme seu Protocolo Constitutivo (MAZZUOLI, 2009) está previsto que
até 2014 os Estados Membros devem promover suas atividades eleitorais com vistas a possibilitar que
os parlamentares destinados aos mandatos no Parlasul sejam eleitos de forma direta pelos cidadãos.
Discute-se sobre quais as implicações dessas eleições diretas ou até mesmo sua funcionalidade
no âmbito dos Estados Membros por possuírem tradição democrática recente, assim, afirma Dabène
(2004): “A ausência de tradição parlamentar na região, e o descrédito profundo que atinge as classes
políticas, fazem duvidar do poder de legitimação do Parlamento.” (DABÈNE, 2004, p. 127, tradução
nossa).
O Parlasul possui comissões permanentes especializadas em temas diversos relacionados à
demanda da sociedade mercosulina. Tal órgão atua, ainda, em parceria com outros do Mercosul. Neste
sentido, o Tribunal Permanente de Revisão (TPR) possui função consultiva junto ao Parlasul,
possibilitando um equilíbrio processual entre os órgãos, salientando que o TPR deverá seguir suas
O Parlasul deve refletir uma atitude positiva até configurar um ordenamento jurídico próprio,
ajustado nos valores do Estado democrático de Direito e os princípios fundamentais para a convivência
humana.
Para a concretização do Parlamento do Mercosul deve considerar algumas questões levantadas
pelos sistemas internos dos Estados-Membros, especialmente no Brasil e no Uruguai, que não
reconhecem a possibilidade de alcançar um processo com características supranacionais. Além disso, a
composição do Parlamento é muito dificultada por assimetrias territoriais e as populações dos Estados
Partes, o que resultou em grandes esforços para obter a aprovação de um sistema de votação
ponderada. Estas questões, somado à inércia governamental, fazem um projeto Mercosul parlamentar
considerado elemento de segunda classe favorecendo a debilidade do processo de integração na região.
Note-se que a responsabilidade de promover o projeto de integração do Cone Sul não é a única
tarefa dos governos, mas também dos atores sociais envolvidos no processo. Portanto, os parlamentos
nacionais, em consonância com o Parlasul devem assumir uma posição mais ativa para os interesses
mercosulistas.
A carência de uma efetiva participação social e generalizada e, as questões parlamentares de
cooperação e integração entre os Estados podem ser considerado como um elemento presente no
sistema político do Mercosul, criando uma "cultura" de indiferença em relação a problemas na sub-
região.
A consolidação do Parlamento do Mercosul, como legislador e como instituição de controle,
permitem que o sistema institucional conheça um maior grau de interdependência com os governos
nacionais, o que resultará,ainda a longo prazo, na criação de um espaço comunitário cujas normas serão
preponderantes sobre os ordenamentos nacionais.
Gerardo Caetano (2004), relata
[…] la urge necesidad de instituir una agenda social en el bloque del MERCOSUR. << debe
reconocerse que la inexistencia de una << agenda social>> constituye una de las grandes carencias
del MERCOSUR hasta el presente. Parece necesario dotar a la participación de la sociedad civil de
<< más MERCOSUR>>, es decir, propiciar foros y otros espacios de interrelación que involucren
a los más diversos sectores y actores sociales de los países del bloque, ampliando los niveles de
información y participación en los distintos temas (políticos, económicos, sociales, culturales) que
atañen al proceso de integración en sus núcleos más sensibles.
Referências
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Jorge Grandi; in Integración y comercio, Año 1, nº 3 (Septiembre - Diciembre 1997). p.43.
CAETANO,Gerardo. Los retos de uma nueva institucionalidad para el Mercosur,Fesur, Uruguay,2004.
DABÈNE, O. “La reativación del Mercosur: Ouro Preto II o el tiempo de las reformas políticas” in Oasis, n 10.
Bogotá, p. 119-127, 2004.
A
articulação de diferentes atores sociais e de Estado é fundamental à integração regional. Na
região da tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai o Parque Tecnológico Itaipu
(PTI) tem desenvolvido uma série de parcerias e projetos para aprofundar a integração e
promover o desenvolvimento. A relação entre integração regional e desenvolvimento está no centro
dessa questão debate.
O PTI é uma instituição manifestadamente voltada para o desenvolvimento, principalmente o
desenvolvimento da região na qual está inserida. Aliado a isso, o parque está instalado no terreno
pertencente à margem brasileira da Usina Hidrelétrica de Itaipu. O PTI, necessariamente, pela região na
qual está inserido, e pelo caráter plural e inovador das suas iniciativas acaba por extrapolar as limitações
das fronteiras nacionais.
A pergunta a qual o presente artigo busca responder, entretanto, não pode ser respondida
apenas pelo evidente caráter transnacional e transfronteiriço das atividades do parque. Ao extrapolar as
limitações das fronteiras nacionais os projetos desenvolvidos pelo parque, ou por ele apoiados,
contribuem para a integração regional sul-americana? O presente artigo contribui com o debate acerca
da importância desse ator no sentido de apontar que sua contribuição chega a tanto. Sendo assim,
poderíamos classificar o PTI como um ator da integração regional, como um daqueles normalmente
apontados como “novos atores”.
Uma das explicações para que os chamados novos atores ganhem espaço no plano internacional
é a perspectiva de que essas novas agendas só poderiam ser tratadas por estruturas mais modernas e
flexíveis que os velhos Estados-nação. No caso que analisamos, o desafio do desenvolvimento regional
e suas múltiplas facetas e temáticas. Podemos chamar essa concepção como característica dos
chamados por Held e McGrew (2001) como “Globalistas”, em seu estudo acerca dos prós e contras da
globalização.
De acordo com a definição dos autores, a nossa pesquisa poderia ser classificada como “Cética”
em relação aos efeitos e abrangência da globalização contemporânea, pois, apesar de reconhecer a
relevância e influência das perspectivas globalistas, vê com cautela e ceticismo a percepção de que o
Estado-nação seja uma instituição decadente. A vital dependência e ligação do PTI com empresas e
instituições de Estado nas suas atividades seria uma demonstração dessa tendência. Como temos
1Professor de Relações Internacionais da Faculdade Anglo Americano de Foz do Iguaçu, Mestre pela Instituto de Relações
Internacionais da Universidade de Brasília.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 474
demonstrado, essa instituição modernizou-se. Ao tratar de novas agendas no plano internacional, tratou
de aliar-se com outros atores da sociedade e níveis de governo, adaptando-se às demandas referentes às
necessidades do desenvolvimento e da integração.
A valorização da questão do desenvolvimento, e, das diversas temáticas ligadas a ele, deram-se
no momento no qual as relações internacionais passaram a ser entendidas como espaço para o
tratamento das mais diversas questões por um maior número e diversidade de atores. Segundo Barbé
(2007) esses diversos atores seriam empresas públicas e privadas, organizações não-governamentais,
governos subnacionais, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, instituições de pesquisa e
ensino etc. O Parque Tecnológico Itaipu e seu caráter jurídico de Fundação estaria inserido nesse
processo.
O objetivo da pesquisa desenvolvida foi apontar se o PTI tem contribuído para a integração na
tríplice fronteira e na América do Sul. Sendo assim, investigamos suas as atividades como articulador e
promotor de esforços de diferentes atores da sociedade civil e níveis de governo da tríplice fronteira e
de outras regiões sul-americanas para o desenvolvimento. As parcerias articuladas pelo parque possuem
capacidade de promover interdependências e desenvolvimento regional. Dentre esses parceiros
podemos citar governos subnacionais, universidades, organizações não-governamentais, agências
governamentais, associações empresariais, ente outros.
A contribuição do presente artigo só foi possível graças a um conjunto de entrevistas e visitas
realizadas pelo autor ao parque e a três setores de relevante atuação internacional do PTI: educação,
empreendedorismo e turismo. A escolha por iniciar a nossa incursão às atividades do parque pela área
da educação é a sua íntima ligação com as origens da instituição e principais parceiros. A própria
concepção de que a educação e a formação de mão de obra altamente qualificada estariam intimamente
ligadas ao desenvolvimento regional é muito cara ao parque, segundo os entrevistados.
Atualmente a cidade de Foz do Iguaçu caminha para se tornar um dos mais importantes polos
universitários da região sul to país e conta com importantes iniciativas de pesquisa que tem como base
profissionais formados nas instituições da região. Esse processo de formação de um importante parque
universitário consolidou-se por meio da expansão da Unioeste, a criação e vertiginoso crescimento da
Unila, a abertura do IFPR e da UAB, bem como, complementado pelas instituições privadas abertas,
principalmente, nos anos 2000. Excetuadas as instituições privadas, todas as demais surgiram com
suporte ativo do PTI, bem como possuem importantes atividades nas instalações do parque
(laboratórios, salas de aula, visitas técnicas, estágios).
Os recursos para as atividades da área de educação do PTI têm duas grandes fontes: em
primeiro lugar os recursos próprios do PTI, em especial em forma de material e de estrutura física; e em
segundo lugar, os recursos obtidos via financiamento público para os projetos diversos desenvolvidos.
Um importante aspecto destacado pelos técnicos da área de educação é que os recursos materiais e
humanos disponibilizados por meio dos projetos em seus financiamentos e parcerias atuam de maneira
conjunta de forma a criar uma sinergia entre esses, reduzindo custos e gerando eficiência em todos.
Segundo a gerente e técnicos da área, a atuação estaria atualmente atrelada à busca pela
articulação de diferentes atores locais, regionais, nacionais e estrangeiros no desenvolvimento de
projetos de educação que sejam de interesse ao desenvolvimento local de Foz do Iguaçu e institucional
do PTI. O suporte logístico e técnico-administrativo seria o principal ativo da instituição em suas
parcerias, devido à reconhecida expertise da área de educação em projetos inovadores. A marca PTI e
Itaipu é relacionada como outro importante ativo na atração e incentivo de atores da sociedade civil e
do Estado na mobilização de projetos de interesse do parque.
A área de educação do PTI, portanto, teria um papel de facilitadora e de suporte aos projetos
variados nos quais se envolve, atuando de maneira mais importante no processo de criação e
consolidação desses projetos, atuando posteriormente como um parceiro de suporte e articulação entre
atores. Essa tendência é presente até mesmo em projetos de sua iniciativa como Núcleo Técnico
Municipal (NTM) e a Universidade Aberta do Brasil (UAB), campus Darcy Ribeiro, com sede no
próprio PTI.
As suas atividades possuem importante capacidade de agrupar e articular atores da área da
educação da região na qual o parque está instalado, bem como de outras regiões da América Latina. Os
seus projetos possuem importantes parcerias com universidades estrangeiras latino-americanas na
promoção de projetos conjuntos e intercâmbio, fundamentais ao desenvolvimento regional e à
integração.
cultura empreendedora bem como propostas de negócio inovadoras com capacidade de gerar
desenvolvimento sustentável. Para isso desenvolve duas formas de atividades distintas.
A primeira delas, e, provavelmente uma das atividades de maior visibilidade do PTI, é a
incubadora de empresas. São selecionadas propostas de negócio de alto potencial de geração de renda e
desenvolvimento regional para vaga na incubadora de empresas do parque.
As empresas incubadas recebem ajuda técnica e administrativa da área de empreendedorismo.
Esse suporte é dado, principalmente, no planejamento e estruturação de negócio via práticas
contemporâneas da administração e direito, de maneira a conterem ênfase de inovação e pensamento
estratégico.
O PTI apresenta preferência em negócios ligados ao desenvolvimento de novas tecnologias e
economia criativa, em especial nas áreas de interesse de Itaipu: Tecnologia da Informação,
Sustentabilidade, Água, Energia, Administração e Turismo. Apesar disso, não há impeditivos à presença
de negócios de outros setores e áreas na incubadora, desde que sejam boas ideias de negócios
inovadores. A incubadora já graduou sete empresas com a qual tem contato permanente, entretanto, já
teve outras quatorze empresas em sua incubadora.
Como importante incubadora, o PTI participa da Rede de Incubadoras de Empresas do Cone
Sul (RePABI) que possui como centro a cidade de Posadas (Província de Missiones na Argentina, por
volta de 200km distante de Foz do Iguaçu) e reúne incubadoras em um raio de mil quilômetros de
distância dessa cidade. A expectativa é aproximar as incubadoras para a troca de experiências e
contribuir para a criação e consolidação de novas incubadoras de empresas, bem como promover os
contatos e as oportunidades de negócios entre as empresas incubadas. A rede conta com incubadoras
de quatro países mercosulinos: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai.
Importante destacar a importância da atuação integrada e complementar das diversas áreas do
PTI, já que em seu nascedouro, poucos negócios de caráter inovador eram possíveis devido à baixa
qualificação profissional da mão de obra da região. Cenário esse, diferente do atual de profunda
transformação nos níveis educacionais na região, em parte consequência da atuação do próprio PTI.
Ou seja, diferentemente de outros parques tecnológicos que surgem em regiões de alta concentração de
profissionais qualificados, o PTI foi criado em uma região de baixos índices educacionais nos anos
1990. Atualmente, a cidade de Foz do Iguaçu, além de concentrar um número crescente de projetos
universitários (podendo-se destacar a Universidade da Integração Latino-americana), possui alguns dos
melhores índices de educacionais de nível básico.
Diante da transformação recente no panorama educacional, bem como transformações
importantes na economia regional, os técnicos da área de empreendedorismo esperam um crescente
número de iniciativas empreendedoras de tecnologia e inovação.
De acordo com essas expectativas, a área de empreendedorismo desenvolve uma série de
atividades com instituições públicas e privadas no sentido de promover a cultura empreendedora e de
inovação. Essa atuação externa ao PTI é a segunda forma de atividades da área de empreendedorismo
do parque.
A área de empreendedorismo desenvolve seminários, palestras, capacitações e programas de
formação e atualização de empreendedores com o objetivo de sensibilizar a população da região em
relação à cultura empreendedora. Esse trabalho tem como parceiras instituições públicas e privadas de
ensino na região, o SEBRAE-PR, as associações comerciais e industriais locais, a Prefeitura Municipal
de Foz do Iguaçu e o Movimento Empresa Júnior.
Os técnicos afirmaram que um dos primeiros desafios foi sensibilizar esses parceiros em relação
à necessidade de promover-se uma cultura de empreendedorismo na área de inovação e tecnologia.
Esse desafio tem como razão o fato desses parceiros estarem acostumados a lidar com os problemas do
empresariado tradicional da cidade e da região, de perfil majoritariamente menos inovador.
As atividades externas ao PTI de maior interesse na área empreendedorismo do parque são as
iniciativas em parceria com o SEBRAR-PR. A parceria tem entre seus objetivos desenvolver a cultura
empreendedora na tríplice fronteira. Realizaram-se eventos de intercâmbio entre consultores e analistas
empresariais e empreendedores da região da tríplice fronteira com suporte do PTI e SEBRAE-PR, bem
como instituições argentinas e paraguaias, como o PTI da margem paraguaia da Itaipu Binacional.
Sendo assim, as atividades centraram-se principalmente no estímulo á cultura empreendedora e na
capacitação e atualização desses empreendedores da tríplice fronteira por meio do intercâmbio entre
eles e as instituições envolvidas.
Outra iniciativa de grande importância foi a realização de dez cursos de formação para
empresários da região de Foz do Iguaçu, diante de um diagnóstico de suas maiores dificuldades e da
identificação das oportunidades diante da perspectiva de Arranjos Produtivos Locais (APLs). A parceria
SEBRAE-PR/PTI também desenvolveu um projeto para o suporte aos empresários locais na criação
de novos produtos de acordo com as possibilidades apresentadas pelo estudo de formação de cadeias
produtivas na região da tríplice fronteira, de olhos voltados às oportunidades da integração produtiva
transfronteiriça.
Importante destacar as iniciativas por parte do PTI da margem paraguaia de Itaipu em replicar
essas iniciativas desenvolvidas pela área de empreendedorismo do PTI da margem brasileira da usina
binacional. Iniciativas de contato e cooperação para a replicação dessas iniciativas fazem parte das
atividades das áreas do PTI, bem como da área de empreendedorismo.
As atividades de empreendedorismo do PTI, bem como no caso das atividades de Turismo e
Educação, passam por um processo de transformação e adaptação às novas condições educacionais e
sociais na cidade de Foz de Iguaçu e região. Isso se dá devido ao fato de a região começar a reunir as
condições de mão de obra necessárias para o Empreendedorismo de Inovação e Sustentável, objetivo
principal da área de empreendedorismo e um dos mais caros ao parque.
O programa de atividades e projetos ligados à área de turismo desenvolvido pelo PTI tem
origem na própria concepção por parte da margem brasileira da empresa binacional de valorizar a usina
como destino turístico. Ou seja, o primeiro desafio no campo do turismo estabelecido aos gestores da
usina, e, posteriormente, ao PTI, foi a de administrar e promover o turismo na usina e suas atrações.
Na década de 2000, um estudo externo a pedido da Itaipu Binacional concluiu que o melhor
modelo jurídico-administrativo, para transformar a margem esquerda da usina em um atrativo turístico,
seria delegá-la a uma organização civil sem fins lucrativos que a gerenciasse. A direção brasileira da
usina então resolveu delegá-la ao nascente PTI.
O PTI teria como objetivo administrar e profissionalizar a área territorial correspondente à
margem brasileira da usina como destino turístico economicamente viável, tendo como base o princípio
da sustentabilidade. A partir de 2007, o PTI passou a gerenciar o Complexo Turístico de Itaipu (que
compreende o conjunto de atrativos turísticos desenvolvidos no terreno da empresa na margem
esquerda), convertendo a antes onerosa abertura da usina aos visitantes em uma atividade altamente
rentável. O PTI passou então, a modernizar as estruturas turísticas e a converter seus projetos de
ciência e educação em atrativos turísticos, como a Estação Ciência e o Polo Astronômico do parque.
Além desses atrativos, a própria estrutura técnica da usina (como a sala de comando, e parte de
turbinas), bem como compensações ambientais (como o canal da piracema) passaram a ser exploradas
como atrativos turísticos pelo parque.
A grande quantidade de projetos que passaram a ser desenvolvidos no PTI, em paralelo à
profissionalização e sofisticação de suas estruturas e atrativos turísticos, gerou uma demanda da
participação da equipe de turismo do parque em outros projetos e atividades de desenvolvimento. Esse
processo fez com que os projetos desenvolvidos pelo PTI em torno da noção de Turismo Sustentável
passassem a superar os limites do Complexo Turístico Itaipu (CTI).
O Programa de Turismo Sustentável, antigo Programa de Desenvolvimento Turístico, hoje é
responsável por uma série de projetos no sentido de promover o turismo sustentável na tríplice
fronteira, com prioridade nas áreas lindeiras ao lago de Itaipu. Esse programa tem como antecedente o
projeto desenvolvido pelo Instituto de Tecnologia Aplicada e Inovação (ITAI) - organização sem fins
lucrativos instalada na margem esquerda de Itaipu Binacional, antes mesmo do PTI. O Projeto de
Integração Turística Trinacional, do começo dos anos 2000, tinha como objetivo difundir a cultura do
turismo sustentável na educação básica e na sociedade da tríplice fronteira. O projeto foi realizado
mediante acordo específico do Mercosul, no qual o turismo faria parte do currículo da educação básica
pública da região. Atualmente, apenas o Paraguai mantém o turismo em parte dos currículos de
educação básica. O principal objetivo era transformar a região em um Polo Internacional Turístico,
utilizando-se do turismo como ferramenta para a integração regional.
O PTI passa então a ser um importante ator na governança das atrações e dos projetos
turísticos da região da tríplice fronteira, participando de conselhos e comitês diretivos e consultivos de
desenvolvimento, como o Conselho de Desenvolvimento de Foz do Iguaçu (CODEFOZ), e de
importantes ativos turísticos da região, como o Parque Nacional do Iguaçu.
As principais atividades externas ao CTI desenvolvidos pelo Programa Turismo Sustentável do
PTI foram:
a) Projeto de Turismo Social: Pretende transformar a região da tríplice fronteira como um destino
turístico inclusivo, no qual famílias e indivíduos que estão fora das prioridades das grandes
empresas do setor possam visitar os atrativos turísticos da região. O projeto, ainda em fase de
busca de parceiros, pretende combinar os pequenos empresários da área de turismo em baixa
temporada e grandes agentes públicos e privados de financiamento;
b) Projeto Ñandeva: um dos mais importantes e famosos projetos de iniciativa do PTI reuniu
instituições dos três países da tríplice fronteira. Mais especificamente, uma fundação de
artesanato da Província de Missiones (Argentina) e o PTI Paraguaio. O projeto tinha como
objetivo revitalizar, viabilizar e dar visibilidade ao artesanato tradicional da região da tríplice
fronteira como atividade econômica. A iniciativa contou com a consultoria de designers
italianos trazidos pelo PTI para fazer um levantamento de imagens e símbolos que
representassem a vida, cultura, música, dança, arquitetura, natureza e história da região. O
resultado foi a criação de ícones a serem utilizados pelos artesãos da tríplice fronteira. O projeto
incentiva a manutenção das técnicas tradicionais de artesanato regionais, aproveitando-se
apenas os ícones captados pelos designers italianos para atender ao mercado. O projeto é um
importante fator de desenvolvimento e geração de renda para famílias mais pobres devido à
demanda importante por esses produtos, de razoável valor de mercado. Ao mesmo tempo em
que garante a sobrevivência da tradição do artesanato regional.
c) Diagnósticos das potencialidades turísticas e de desenvolvimento regionais: o programa
desenvolve projetos de análise de diferentes oportunidades de desenvolvimento sustentável por
meio do turismo. Uma importante iniciativa foi o levantamento em torno das potencialidades
do lago de Itaipu. O projeto foi feito em parceria com comunidades, instituições e governos
locais das margens paraguaia e brasileira. Os resultados apontaram para muitos possíveis usos
como as praias, navegação de lazer e esportiva, pesca esportiva entre outros. Entretanto, o
projeto também apontou para uma série entraves institucionais: a sobreposição de
competências regulatórias sobre o uso das águas do lago entre diversas instituições públicas dos
três níveis de governo brasileiros, bem como a inexatidão quanto às suas respectivas
responsabilidades e autoridades; o crime organizado transnacional que vê na utilização
econômica legal do lago uma ameaça ao intenso tráfego de mercadorias ilegais que domina as
águas do lago após o anoitecer; e, por último, os entraves legais e institucionais presentes na
formalização de parcerias e entre Brasil e Paraguai, por conta da falta de arcabouço jurídico
necessário no Mercosul.
d) Palestras, eventos e cursos de formação para pequenos empresários e empreendedores para
que esses possam aproveitar-se do fluxo de turistas e promover o desenvolvimento sustentável.
As ações do programa de turismo do PTI têm como base uma perspectiva ampla de turismo, e
de sua utilidade como gerador de desenvolvimento sustentável. A preocupação com a inclusão das
comunidades e dos empreendedores menores excluídos das oportunidades promovidas pelo turismo na
região está presente em todas as suas atividades. Os membros da equipe têm como objetivo promover
o desenvolvimento sustentável na região da tríplice fronteira por meio das atividades turísticas,
permitindo com que toda a sociedade seja beneficiada e possa impactar beneficamente nessas
atividades.
Há resultados importantes como a mobilização de instituições e comunidades em torno dessa
concepção de desenvolvimento sustentável por meio do turismo na tríplice fronteira, podendo-se
destacar o projeto Ñandeva. Segundo os técnicos envolvidos, o Projeto Ñandeva é uma das principais
experiências de região de integração regional na tríplice fronteira, tendo como base os laços culturais
entre os povos que ocupam a região.
Considerações finais
Diante das atividades desenvolvidas pelo PTI apresentadas no presente artigo podemos apontar
que o parque possui relevante papel no aprofundamento da integração regional, em especial na região
da tríplice fronteira. Seus valores de inovação, sustentabilidade e desenvolvimento são fundamentais
para que os seus projetos abarquem instituições não só brasileiras, mas como dos demais países da
tríplice fronteira, e, em não poucos casos de outros países também.
As atividades do PTI e seus projetos não possuem como diretriz a promoção da integração
regional, mas devido à sua vocação à promoção da inovação e do desenvolvimento regional, suas
atividades transcendem as fronteiras nacionais e promovem o aprofundamento de interdependências e
de laços econômicos e sociais.
Sendo assim, podemos apontar que o PTI possui relevante papel na integração regional e no
desenvolvimento da região fronteiriça, podendo ser encarado como um importante modelo a inspirar
outras iniciativas de desenvolvimento pelo país. Em especial, nas regiões de fronteira, carentes de
projetos de desenvolvimento bem sucedidos.
Referência
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VIGEVANI, T., e.a., A dimensao subnacional e as relações internacionais, Sao Paulo:
EDUC/UNESP/EDUSC/FAPESP, 2004.
VAZ, Alcides. Cooperação, Integração e o processo negociador: a construção do Mercosul. Brasília. IBRI, 2002.
I. Introdução
O
Mercado Comum do Sul, criado em 1991 pelo Tratado de Assunção, passou por vários
desafios neste processo de consolidação ao longo das duas primeiras décadas.
A primeira década (1991-2000) caracterizou-se pelos avanços na intensificação
comercial, o que possibilitou uma maior dinâmica nas exportações e importações intra e extra bloco,
conforme apontam estatísticas de órgãos oficiais de cada país. Esta época foi influenciada pelo modelo
neoliberal adotado por Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que priorizou a atividade de comércio
como política a ser adotada pelo bloco.
A segunda década (2001-2010) foi influenciada pelas mudanças que ocorreram no início deste
século que aprofundaram a falência do modelo neoliberal, com a necessidade de adoção de políticas
sociais, pelos governos, e o reconhecimento da maior necessidade de uma intervenção do Estado,
inclusive, na atividade econômica e nos investimentos.
Este período a nível global caracterizou-se pela perda de influência dos Estados Unidos no
mundo, mas, concomitantemente, pela ascendência de outros atores no cenário geopolítico
internacional, incluindo-se países como China, Índia, Rússia, Brasil, Turquia, África do Sul, Indonésia,
Coréia do Sul, Nigéria, México, Malásia, Argentina, dentre outros países.
No âmbito do Mercosul, essas transformações do segundo decênio possibilitaram uma
ampliação da tradicional visão comercial para se avançar em um modelo de processo de integração,
incluindo a dimensão política, econômica, social e cultural. Nesta perspectiva, intensificou-se uma visão
de cunho institucional com a criação do Parlamento do Mercosul, a criação de um Tribunal para
Solução de Controvérsias e inúmeras estruturas e órgãos com a participação e comprometimento dos
seus Estados-Membros.
Neste terceiro decênio do Mercosul, a partir de 2011, um dos desafios que estão inseridos para
o debate é o de se pensar como este processo de integração vai atingir, de forma direta, ao pleno
conhecimento dos cidadãos dos Estados integrantes, objetivando possibilitar avanços mais concretos
que não dependam exclusivamente da iniciativa de governantes que estão atuando, de uma maneira
geral, de forma articulada e com pensamentos comuns.
Uma das possibilidades concretas de aprofundamento do sistema democrático do Mercosul
deverá ser através da democracia representativa, ou seja através das eleições diretas para a representação
1 Doutor em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense, Professor da Universidade Cândido Mendes e
Procurador Federal
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Nestas cerca de três décadas de retomada da democracia na América do Sul, inúmeros avanços
foram conquistados na consolidação da democracia representativa.
Tivemos a eleição de um líder metalúrgico no Brasil, a eleição de representante indígena na
Bolívia, a eleição de mulheres no Chile, na Argentina e no Brasil, além de uma maior convergência na
orientação política e na compreensão acerca da necessidade de avanços na consolidação do processo
democrático.
Nos momentos de dificuldades, várias superações ocorreram como no caso do impedimento do
Presidente na Venezuela e no Brasil, a tentativa de reversão de um golpe militar em curso na Venezuela,
bem como tentativas de soluções diplomáticas em conflitos com países vizinhos, aliando o peso das
instituições, o comprometimento da sociedade e o respeito às Constituições desses países.
Entretanto, sob o ponto de vista político reiteradas denúncias de corrupção vêm ocasionando
reflexões acerca dos inúmeros problemas do processo eleitoral nestes países, principalmente a partir da
inclusão do instituto da reeleição, iniciada no período de autoritarismo no Perú e incluída pelos
governos neoliberais na Argentina, no Brasil, dentre outros países.
Concentrando-se na análise do caso brasileiro, verifica-se que temos um sistema eleitoral e
partidário que encontra-se em processo de questionamento e de representatividade que ficou bastante
claro nas manifestações ocorridas a partir de junho de 2013 por todo o país.
Iniciada com uma pauta reduzida e limitada a se contrapor aos aumentos das passagens de
ônibus, em contrapartida a um serviço monopolizado, péssimo e que se beneficia de uma série de
vantagens porque participa do financiamento privado de campanhas eleitorais, as convocações para
manifestações de contrariedade, principalmente em São Paulo, em seguida Rio de Janeiro e, finalmente,
se ampliando para cidades grandes, médias e pequenas de todo o Brasil, verificou-se um processo de
revolta acumulada que levou milhões de pessoas para as ruas, com uma ampliação significativa da
pauta.
Defesa de hospitais públicos; luta pela educação, escola pública de qualidade e valorização dos
professores; defesa de segurança pública; luta contra a corrupção e a impunidade e a ampliação da
pauta, associada ao que ficou convencionado como padrão FIFA, acabou estimulando a participação
popular nas ruas e praças públicas.
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Importante ressaltar alguns aspectos desse processo de catarse que não estava sendo esperado
pelos governantes.
O primeiro aspecto é que a convocação dessas manifestações foi feita, de forma intensa, pelas
redes sociais da internet, incluindo facebook, twitter e correios eletrônicos. Popularmente se dizia que a
manifestação não havia uma cara, ou melhor, uma entidade ou instituição que estava convocando para
as passeatas, mas toda a população.
Um segundo aspecto pode ser observado como conseqüência, a saber a total falta de
credibilidade dos partidos políticos e instituições como sindicatos, a própria União Nacional dos
Estudantes (UNE), associações e organizações não governamentais que ficaram a reboque do
movimento de massas.
Ao tentar se inserir em alguns movimentos de rua, através de militantes com camisas e
bandeiras, os integrantes desses movimentos, muito em especial os dos partidos políticos, eram
rechaçados por alguns manifestantes, o que foi objeto de críticas e acusações de fascismo, por parte de
outros manifestantes e grupos organizados.
Embora um movimento de massas tenha participantes de todas as ideologias e tendências, a
acusação pura e simples da rejeição acima citada ser um ato fascista, principalmente porque os partidos
políticos que estavam indo para as ruas eram de esquerda e de centro-esquerda, parece ser inadequada
ao caso em questão, até porque os meios de comunicação jogaram pesado ao longo dos últimos três ou
quatro anos com a questão do mensalão que, em síntese, simboliza esta falência do modelo partidário e
eleitoral que admite o financiamento privado de campanhas políticas.
Um terceiro aspecto a ser incluído no contexto de reflexão, foi a rejeição da mídia num primeiro
momento que buscou “descredenciar” a legitimidade do movimento. Entretanto, na medida em que os
protestos avançavam, se tornavam cada vez mais intensos e não tinham previsão de término, a mídia
foi obrigada a acompanhar e reconhecer a sua intensidade em posicionamentos contrários aos pleitos
em questão.
Um quarto aspecto a ser destacado é que os protestos tinham um contingente muito maior de
jovens, estudantes universitários e secundaristas e estabelecia um patamar de ampla participação de
integrantes da classe média, ao passo que integrantes do operariado e da nova classe média emergente,
oriundo dos programas sociais do governo, embora tivessem suas demandas, não estavam participando
dessas passeatas de forma mais efetiva e através de um maior comprometimento.
Um quinto aspecto muito utilizado pela mídia para diminuir os movimentos populares era o
fato de que ao final das manifestações, determinados grupos denominados black bocs e setores da policia
entravam em confronto, produzindo inúmeras cenas de dilapidação de patrimônio público e privado,
além de cenas de violência. Importante destacar que muitas passeatas se encerravam em sede de
Governo do Poder Executivo, em especial de Estados e Municípios, além de sedes do Poder
Legislativo, neste caso Câmara Federal, Senado da República, Assembléias Legislativas e Câmara de
Vereadores, numa clara situação de protestos aos poderes constituídos e cobrança de políticas públicas
ou mesmo a falta dessas políticas, aliado à corrupção.
Um sexto aspecto e último aspecto é a total inoperância e despreparo dos órgãos de segurança
pública do Estado, em especial os setores da Polícia Militar, em lidar com estes movimentos de massa,
utilizando-se de comportamento violento ao invés de atuar com inteligência e com o auxílio da
tecnologia. A utilização de spray de pimenta, bombas de efeito moral e armas não letais, aliado a armas
letais, em algumas situações mais radicalizadas, acabou dando a tônica do fim das passeatas.
Estes movimentos tiveram grande repercussão porque ocorreram durante um evento
preparatório da FIFA chamado Copa das Confederações e produziu uma manifestação com proposta
concreta da Presidenta da República no sentido de reconhecer a legitimidade do movimento e acenar
com uma Assembléia Nacional Constituinte para uma reforma política.
A proposta foi contestada por vários setores, em particular na área dos especialistas de Direito
Constitucional, setores políticos liderados pelo próprio Vice-Presidente da República Michel Temer,
além de setores da sociedade, obrigando a Presidente a recuar desta proposta para uma convocação de
plebiscito para a população se manifestar sobre temas da reforma política.
A proposta de estímulo à democracia participativa, embora fosse excelente em dois
fundamentos, ou seja, a efetiva participação popular e a cobrança ao Congresso Nacional que sinaliza
com pouco interesse em mudanças neste tema sensível, acabou sendo desestimulada pelo Tribunal
Superior Eleitoral que sinalizou pelo reduzido prazo para a convocação do plebiscito, após aprovação
pelo Congresso Nacional, em virtude da obediência ao princípio constitucional da anualidade para a
aplicação das novas regras para a eleição seguinte.
Sendo assim, a proposta não evoluiu e não houve mudança concreta decorrente dos protestos
populares para as próximas eleições presidenciais a serem realizadas no ano de 2014, que incluem os
parlamentares do Senado Federal, Câmara dos Deputados, Assembléias Legislativas, Câmara Distrital e
os governadores de Estado e Distrito Federal.
No que tange aos instrumentos de democracia representativa, conclui-se que existe uma crise,
materializada nos protestos populares, questionando a classe política, tanto a do Poder Executivo
quanto a do Legislativo, que não produziu mudanças que pudessem evidenciar uma relação mais
democrática de representatividade, ou seja na próxima eleição o sistema político eleitoral e partidário
corre sério risco de ter o maior quantitativo histórico de votos brancos, nulos e declarações de que não
puderam votar, seguindo a tendência crescente das últimas eleições.
Deve ser registrado que o Congresso Nacional tem debatido um conjunto de propostas de
reforma política que engloba os seguintes pontos: o financiamento público de campanha com o fim do
financiamento privado, pelo menos limitando valores de pessoas físicas e extinguindo o de pessoas
jurídicas; a limitação do número de partidos políticos com instrumentos como a cláusula de
desempenho, na qual o partido político deverá atingir uma votação mínima total em determinado
número de estados da federação; a adoção do sistema distrital, podendo ser o modelo alemão
compartilhando parte do voto em distritos e parte no sistema proporcional; mudança da data da posse,
em virtude das dificuldades de posse em 01 de janeiro; fim dos senadores suplentes; possibilidade de
adoção do recall, no qual seria possível o referendo revogatório ao longo do mandato e mediante
critérios a serem estabelecidos; fim da reeleição para os cargos do Poder Executivo com a possibilidade
de ampliação do mandato de quatro anos para cinco anos, embora reduzido grupo defenda o prazo de
seis anos; dentre outras inúmeras propostas que tramitam, mas não avançam nas Casas Legislativas
Federais brasileiras.
As inúmeras denúncias de corrupção e envolvimento de membros do Poder Executivo e do
Poder Legislativo criou uma lacuna no sistema de representatividade que está quebrando a relação de
confiança do eleitor com o seu representante político, atingindo a todos os Partidos Políticos e o
Parlamento, principalmente, o que acaba sendo prejudicial para o avanço da democracia.
Neste quadro complexo de perda de confiança do cidadão brasileiro junto aos representantes
para o Parlamento, surge uma questão central que é a convocação dos eleitores brasileiros para
elegerem os seus representantes pelo voto direto, universal e secreto para compor o Parlamento do
Mercosul.
A questão democrática e da representação parlamentar vem evoluindo lentamente desde a
assinatura do Tratado de Assunção.
No que tange ao aspecto legislativo e das instituições democráticas, o Tratado de Assunção
previu uma Comissão Parlamentar Conjunta, com participação de representantes dos Parlamentos
Nacionais dos Estados-Partes, que acabou fortalecida pelo Protocolo de Ouro Preto, assinado em 1994,
através do seu estabelecimento. Esta Comissão exerceu suas atividades de 1994 até o mês de dezembro
do ano de 2005, com a assinatura do Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul.
No que concerne à consolidação democrática, em 27 de junho de 1992 já havia sido adotada
pelos governantes dos Estados Partes do Mercosul, a Declaração Presidencial de Las Leñas, que
estipulava que a plena vigência das instituições democráticas seria condição indispensável para a
existência e o desenvolvimento do Mercosul, República da Bolívia e República do Chile, o que
comprometia os Estados-membros que passassem a integrar o Tratado de Assunção em direitos e
obrigações para as Partes signatárias.
A aprovação da Cláusula Democrática através da assinatura do Protocolo de Ushuaia, em 24 de
julho de 1998, se consolidou como um efetivo compromisso com os princípios democráticos no
espaço territorial e geopolítico do bloco e posição firme contra eventuais rupturas institucionais,
conforme estava ocorrendo no Paraguai naquele ano, onde o General Lino Oviedo ameaçava a ordem
constitucional representada pelo Presidente Juan Carlos Wasmosy.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 488
incluindo o Poder Executivo e toda a classe política, vem sofrendo e que explodiu nas manifestações de
junho de 2013?
A eleição do Parlamento do Mercosul surge como mais uma oportunidade de estreitar a
importância do processo de integração e a compreensão da sociedade sobre o que o processo significa.
Neste contexto, o primeiro grande problema enfrentado no âmbito do Parlamento do Mercosul
foi provocado pelo Paraguai, que questionou a quantidade de Parlamentares brasileiros, o que retrata
ser um ponto de receio de países menores, situação esta que dificultou a decisão definitiva sobre a
proporcionalidade das bancadas, já incluída a da Venezuela.
O segundo grande problema encontra-se em curso em sede do Parlamento brasileiro, onde
existem propostas distintas que não estão dialogando e que estão dificultando que no dia 01 de janeiro
de 2015, 75 representantes do povo brasileiro estejam tomando posse naquele órgão legislativo.
Ressalta-se que existe um Projeto de Lei do Deputado Federal Carlos Zarattini (PT-SP)
propondo eleições diretas em 2010, e depois em 2012, que em virtude de dois pareceres contrários do
Deputado Dr. Rosinha (PT-PR), acabou impedindo a continuidade do aludido Projeto.
Existe outro Projeto de Lei do Senador Lindemberg Faria (PT-RJ), com Parecer e Emenda
favorável do Senador Antonio Carlos Valladares (PSB-SE) propondo eleições diretas dos 75
parlamentares em 2014, que encontra-se em tramitação.
O fato concreto é que não existe um consenso ainda no Parlamento brasileiro sobre o processo
de instrumentalização da representação no Parlasul, o que poderá dificultar de forma efetiva que este
processo se consolide já para as eleições parlamentares de 2014, o que seria uma grande contradição,
principalmente porque o único país que teve eleições foi o Paraguai em duas oportunidades.
A questão concreta é que se o processo de eleição para o Parlamento brasileiro está sendo
questionado, a eleição para o Parlamento do Mercosul deveria reproduzir o mesmo sistema que está
sendo rechaçado pela população?
Seria possível imaginar um processo de participação popular através do sufrágio em
candidaturas avulsas ou vinculadas aos movimentos sociais ou continuaria o sistema de eleição através
de candidatos amparados pelos partidos políticos?
Não deveria haver um debate mais consistente sobre a importância deste Parlamento com
regras igualitárias para todos os candidatos, ou seriam criadas regras que submetessem os candidatos
através do sistema partidária e eleitoral atual?
Se é possível estabelecer um consenso de que é importante a participação popular para
sacramentar a participação no Parlasul, é também razoável supor que as atuais regras eleitorais e que
viabilizam os sistema político, partidário e eleitoral brasileiro encontram-se em processo de
questionamento pela opinião pública e não tem mais respaldo popular, o que consolida a necessidade
de avanços neste processo de legitimação, principalmente em virtude da existência de trinta e quatro
partidos políticos oficialmente existentes neste país, aliado aos critérios eleitorais em vigência.
V. Conclusão
Diante do quadro acima, existe um paradoxo que merece ser objeto de ampla reflexão e não
está sendo tratado com a gravidade que merece.
O primeiro ponto é que o Estado Democrático de Direito deve ser comemorado como o
modelo político mais adequado para o Brasil e os países membros do Mercosul, concretizando-se o
processo de diminuição de cidadãos da pobreza absoluta até a sua total extinção, sem prejuízo de que
uma reforma política e partidária séria se constitua num instrumento prioritário para se restabelecer um
canal entre a população e a classe política dirigente, incluindo Legislativo e Executivo, sob pena de
ampliação das revoltas em 2014, ano de Copa do Mundo e de eleições gerais no Brasil, bem como a
possibilidade efetiva de ampliação dos votos em branco, nulo e justificativa de voto para não exercer o
direito ao sufrágio.
O aprofundamento da democracia brasileira é fundamental nesse processo de evolução
histórica, até porque 2014 é um ano emblemático em virtude dos 50 anos do golpe militar no Brasil, o
que deverá suscitar tensões, inclusive pelos trabalhos desenvolvidos pela Comissão da Verdade a nível
federal e as inúmeras Comissões da Verdade que foram criadas no âmbito federal, estadual e municipal.
O segundo ponto é a necessidade de se avançar no espaço político brasileiro dos instrumentos
de democracia participativa, em especial o plebiscito, o referendo e a iniciativa legislativa popular,
possibilitando um maior senso de consciência política e de legitimação de decisões pelo Estado.
Com a democracia representativa brasileira necessitando de uma reforma política e partidária
profunda e a democracia participativa ainda incipiente, penso que as eleições do Parlamento do
Mercosul, embora não devam ficar paralisadas, deveriam ser objeto de um debate mais amplo e
democrático da sua importância, dos temas a serem debatidos e dos possíveis candidatos a um mandato
parlamentar com as regras claras do processo de sufrágio popular.
Num momento em que grandes temas no âmbito do Mercosul e da Unasul vem sendo objeto
de discussão como Integração da Região; Defesa das Riquezas Naturais e Minerais; Defesa dos Direitos
Humanos; Obras de Infra-Estrutura, dentre outros temas, é fundamental que o Parlamento possa atuar
na perspectiva de intensificar e representar os legítimos interesses dos seus respectivos países e seus
povos, dentro do processo de integração.
O processo de debate da representação deveria incluir financiamento público de campanha;
candidaturas oriundas dos movimentos sociais sem obrigatória vinculação partidária e critérios de
representatividade populacional, aliado à possibilidade de contemplar a participação de todos os
Estados da Federação neste Parlamento, dentre outros temas a serem aprofundados.
Referências
E
ntende-se que a construção da democracia exige uma nova doutrina militar, baseada em
valores como o direito à participação e expressão política e a necessária integração de
esforços cooperativos no âmbito da defesa. O objetivo da pesquisa é avaliar como a
educação dos militares funciona como mecanismo de construção de uma “cultura interna” à
corporação que valoriza comportamentos próprios da democracia, como são exemplos a tolerância e a
cooperação. Sem a incorporação de tais valores, as democracias recém (re)construídas tendem a se
bloquear, o mesmo acontecendo nas relações com os vizinhos.
Ao longo dos três anos da pesquisa, desenvolvemos diferentes trabalhos, a maioria dos quais
publicados, que girava em torno do tema geral que move nossas preocupações, ou seja, a compreensão
da educação militar como fator determinante para a constituição do regime político democrático. O
eixo geográfico desta pesquisa é a America do Sul, região na qual a participação das forças armadas no
processo político sempre foi corriqueiro, ainda que às vezes encarado como excepcional. Por isso,
definiu-se como objetivo aqui analisar os valores embutidos no sistema educativo das Forças Armadas
sobre os quais se assenta a formação dos profissionais de armas. Para tanto, estudamos a estrutura
educativa que forma os oficiais da América do Sul, tentando entender a “mentalidade” que se procura
estabelecer com a educação (ensino e formação).
Em outras palavras, para que a democracia ganhe consistência, ultrapassando seus limites
formais eleitorais, é preciso que os valores democráticos, particularmente a tolerância relativamente aos
diferentes e a aceitação do dissenso como parte das disputas políticas na democracia, seja introjetado
como parte essencial da cidadania. É necessário que todos os atores sejam encarados como cidadãos, cujo
direito de reivindicar, se manifestar e se opor à situação vigente é parte intrínseca do processo de
cidadania. Se há vários atores que não estão preparados para assumir tais valores, porque os militares,
que são educados para obedecer e não divergir, estariam? É isso que justifica enfatizar a educação como
estratégica para a construção da democracia, pois é por meio dela, em particular por sua manifestação
formal, o ensino, que se pode reformar o individuo e, no caso específico, o militar.
Constatar até que ponto as Forças Armadas aceitam o regime democrático ao custo da sua
autonomia dentro do Estado; empiricamente, por meio da analise do seu comportamento frente ao
exercício de comando e controle civil; teoricamente, avaliando a visão que elas têm de si próprias, do
Estado e da sociedade. O objetivo que procuramos com este teste é compreender as formas e reformas
1Resultados parciais da pesquisa desenvolvida com bolsa PQ-C/CNPq. A síntese aqui apresentada é parte de texto em
processamento, razão pela qual pede-se não citar.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 494
do ensino militar que poderão acolher como princípios a participação civil no comando e controle das
Forças Armadas e na deliberação, formulação, implementação e controle da política de Defesa
Nacional.
Esse objetivo mais geral, de compreender como a educação dos militares funciona como
mecanismo de construção de uma “cultura interna” às forças armadas que tem nos valores próprios da
democracia – respeito pela certeza das regras do jogo e pela incerteza dos resultados – seus pilares, se
traduziu nos seguintes objetivos específicos:
1. Construir um modelo de análise que permita a comparação entre os diversos casos
conhecidos na America do Sul ;
Por meio da aplicação do mencionado modelo,
2. Estudar a estrutura, os fundamentos e o funcionamento da educação formal oferecida às
Forças Armadas Sul-Americanas ao longo da construção do regime democrático;
3. Avaliar se é possível reconhecer uma nova doutrina a nortear as ações das Forças Armadas
da região.
Esses três objeticos se traduziram nas seguintes perguntas, a serem respondidas para cada um
dos países em análise:
a) Qual a relação entre consolidação democrática e educação militar?
b) Como a educação funciona como modeladora da doutrina militar?
c) As Forças Armadas sul-americanas são educadas para a cooperação em defesa?
d) Em que medida os sistemas educativos das Forças Armadas da região contribuem para a
democracia?
2 O tema da profissionalização é central em HUNTINGTON, S.: El soldado y el Estado (Buenos Aires, Circulo Militar
Argentino, 1964), mas também trabalhado pelo autor em Ordem política nas sociedades em mudança (São Paulo, Edusp,
1975).
3 Para Finer a introjeção de valores é fundamental para a constituição do que ele nomeia como mood, que podemos
traduzir como “cultura interna” à corporação. É ela a responsável por comportamentos menos ou mais integrados ao meio
social. FINER, S. The Man on Horseback. London, Pall Mal Press, 1975.
com as exigências de dedicação que uma análise do conjunto dos países sulamericanos. Iniciamos,
então, este estudo pelos países que compõem o Mercosul, quais sejam: Argentina, Brasil, Paraguai,
Uruguai e Venezuela. Cabe lembrar que como informado no projeto, o Brasil não é propriamente um
caso a ser avaliado, sua presença funcionando como uma espécie de padrão comparativo, ainda que
tenhamos na Espanha o paradigma que permitiu a construção do modelo de análise.
Assim, ao longo da pesquisa, buscamos avaliar as seguintes hipóteses:
1) A educação militar é essencial para a superação da autonomia e construção da subordinação
militar aos civis, mas o é também para formar um profissional coerente com as exigências
que as novas ameaças impostas pelo momento atual, ambos os fatores imprescindíveis para
a consolidação da democracia;
2) A autonomia da educação militar dificulta a consolidação da democracia e a política de
cooperação em Defesa;
3) A menor diferença entre os sistemas educativos, facilita as políticas de cooperação em
defesa e alimenta valores próprios da vida democrática.
4 O conceito aqui utilizado é proposto por Guillermo O’DONNELL, em particular em Análise do autoritarismo burocrático,
op. cit.. Acrescentamos a expressão “de base militar” para enfatizar que é a burocracia fardada que contola o poder político.
5 A despeito da falta de consenso nas análises globais, há convergência entre os analistas em dois pontos: quanto à
sazonalidade das crises no MERCOSUL e relativamente ao voluntarismo como motor permanente do bloco. Dentre os
inúmeros trabalhos a respeito, lembramos de: VIGEVANI, T. et. al., 2005, op. cit.; DUPAS, G. e VIGEVANI, T. (Orgs.) .
O Brasil e as novas dimensões da segurança internacional. São Paulo: Alfa-Omega/FAPESP, 1999.; MALAMUD, Carlos.
“Potenciais focos de conflicto en América del Sur”. ARI, nº 27, Real Instituto Elcano, março de 2008; MALAMUD,
Marina. “Opinión publica y Fuerzas Armadas en el Cono Sur”. ARI, nº 05, Real Instituto Elcano, janeiro de 2008;
SEPÚLVEDA, Isidro y ALDA Sonia (eds.). La administración de la defensa en América Latina (3 vol.). Madri, IUGM,
2008.
comum;6 há propostas, como as de Hugo Chaves (2007) e do Brasil, que se realizaram na criação da
Unasul e, para o que aqui interessa, seu Conselho de Segurança. Nessa mesma linha, há também que se
considerar que os laços entre Argentina, Brasil e Chile estreitam-se cada vez mais, estreitamento este
que representa, a uma só vez, a superação da antiga divergência que tomava tais países como inimigos
(incorporação de novos valores?) e um novo padrão para a profissão militar: o soldado deixa de
aprender a combater inimigos e passa a ser formado para construir a paz.7
Considerando cada um dos países objeto de análise, bem como o caso que nos serviu de
paradigma para a composição do modelo, a Espanha, a pesquisa se compôs de um número razoável de
trabalhos, dentre os quais alguns artigos, dos quais três já foram publicados, dois estão em fase de
análise por periódicos e dois outros estão em processamento. A seguir, sumariamos cada um dos
artigos publicados ou em andamento:
No primeiro artigo, sob o título “Apontamentos à análise da reforma militar na transição
espanhola”,8 revisitamos o processo político espanhol recente, enfatizando as questões relativas às
Forças Armadas (FFAA), buscando compreender desde a formação destas Forças antes da ditadura de
Francisco Franco, passando por esta e chegando aos dias de hoje, quando parece que as reformas
promovidas ao longo dos últimos 30 anos, resultaram na incorporação definitiva das FFAA à
democracia.
A construção do instrumento metodológico é nosso interesse central no segundo texto, no qual
se apresenta o que chamamos de Matriz Educação Militar. Nele, discutimos cada uma das variáveis de
forma a mostrar o comportamento do ensino militar em regimes burocrático autoritários e em
governos democráticos. Tal modelo, isto é, sua apresentação como mecanismo de compreensão de
cada um dos países estudados, fez parte de todos os textos publicados ou enviados para publicação. A
figura abaixo sumariza o modelo:
Um dos primeiros casos individuais que estudamos foi o uruguaio, que, resumidamente
significou informar que desde muito cedo, ainda no século XIX, o Uruguai vem desenvolvendo uma
política democrática baseada na educação, ao que pode ser creditado o afastamento das suas Forças
Armadas da participação política. Entretanto, o sistema partidário, essencial para o desenvolvimento da
democracia, não foi suficientemente forte para manter os militares completamente afastados do
6 CEPIK, Marco “Segurança na America do Sul: traços estruturais e dinâmica conjuntural. Análise de Conjuntura OPSA nº
9, IUPERJ, 2005.
7 Há quem defenda que os atuais ministérios de Defesa, até pouco tempo atrás chamados ministérios da Guerra, deveriam
denominar-se ministérios da Paz. Segundo seus defensores, embora o efeito prático pareça ser mínimo, não o é em termos
de demonstração do comprometimento dos países com a paz, sendo um modo a mais de aderir ao programa da UNESCO
“2001-2011: década da cultura da paz”. Um resumo de tais posições é encontrado em Adams, D. Relatório da Sociedade
Civil sobre a Década da Cultura da Paz. Comitê Paulista para a década da Cultura da Paz, UNESCO, 2005. Disponível em:
www.comitepaz.org.br/reldec3.htm, consultado em 12/05/2008.
8 Publicado na revista História (São Paulo), vol. 28, n. 2. Franca, 2009 [http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
90742009000200026]
9 Publicado sob o título “O militarismo no Uruguai”, na revista História (São Paulo). v.29, p.50 - 70, 2010.
[http://www.redalyc.org/src/inicio/ArtPdfRed.jsp?iCve=221019007004]. Artigo escrito em conjunto com Tiago Pedro
Vales, que concluiu seu mestrado em História sob nossa orientação.
10 Trabalho apresentado no V Encontro Nacional da ABED “Democracia, Defesa e Forças Armada”, ST 06: Educação e
Formação Militar sob o titulo Considerações sobre Ensino Militar e Democracia: estudo exploratório sobre a realidade
uruguaia. Fortaleza, 08-10/08/2011, 8pp.
11 Publicado como o capítulo “Modelos educativos comparados en Iberoamerica”, no livro organizado por Sonia Alda,
Sistemas de Enseñanza Militar y Educación para la Defensa en Iberoamérica. Madrid: IUGM, 2010, p. 109-131.
história do país.12
O estudo da educação militar desdobrou-se em um novo foco de interesse, aquele que relaciona
defesa com política externa, e vê as forças armadas como instrumento de ambas as políticas a serem
levadas a cabo pelo governo dos países. Também mostrou que a integração em defesa tem sido um dos
pilares de experiências regionais como o Mercosul e Unasul. De fato, nossos estudos vêm mostrando
que é no âmbito dos entendimentos na área de defesa, e mais amplamente, de segurança, que os
avanços nesses mecanismos regionais de cooperação têm apresentado grandes avanços, contrariando
análises correntes que insistem em dizer que tanto o Mercosul quanto a Unasul têm resultados
retóricos, senão ficcionais.
Em contrapartida, as diferenças nacionais dos países que compõem o Mercosul, mormente com
a inclusão da Venezuela, como já mencionado, impuseram limites ao modelo de análise desenvolvido
para avaliar a educação militar, exigindo desta pesquisadora estudos mais aprofundados no campo da
metodologia comparativa. Todavia, os elementos novos com os quais nos deparamos, deram maior
fôlego para empreender novas investigações sob o mesmo tema de análise, qual seja, a relação entre
educação – tomada particulamente pelo ensino – militar e implementação de políticas públicas (defesa e
diplomacia) sob regimes democráticos.
12Condensado no artigo escrito com Adriana Suzart de Pádua (mestre em História sob nossa orientação), “Venezuela: qual
democracia?” Cadernos PROLAM/USP, v.02, p.69 - 88, 2011.
Resumo
O
estimulo a colaboração entre países e regiões (nacionais ou subcontinentais), tem sido um
elemento importante para a promoção de políticas territoriais de inclusão social, que
possibilitam o desenvolvimento em multiescalas. Entretanto existem muitos obstáculos
que os processos de integração regional ainda não conseguiram superar. Este trabalho busca entender
as articulações construídas entre as diferentes escalas, em particular as regiões transnacionais nas
experiências de integração regional na América do sul. Tratar –se de investigar os processos de
integração regional no cone sul a partir das cooperações entre países, regiões, estados, províncias e
municípios.
Resumo
A
idealização do Banco do Sul no âmbito da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e sua
entrada em atividade no último mês de junho sugerem uma reflexão sobre os paradigmas
sobre os quais se edificou, de um lado, e sobre seus objetivos e desafios à sua efetivação, de
outro. Inicialmente, o trabalho pretende discutir o contexto político e econômico da América Latina
que justificou o projeto dessa agência–com o que se pretendeu romper e o que não se pretende
reproduzir. Em contraste a esse debate, propõe-se analisar em que medida certos parâmetros de
organizações internacionais já existentes são repetidos, notadamente o FMI e o Banco Mundial.
Propõe-se, pois, um paralelo, construído a partir das ideias de Grannacionalidad e emancipação que
pautaram a nova onda integracionista latina. Finalmente, o artigo discutirá os maiores óbices a essa
ruptura/desconstrução, sobretudo considerando o modelo intergovernamental que norteia a estrutura e
o funcionamento dos órgãos de integração na região.
Resumo
O
ptou-se por trabalhar o papel do Estado no fenômeno de internacionalização da vida,
abordando o princípio da soberania e a necessidade de sua mitigação e revaloração como
forma primária de promover a integração regional, esmaecendo as fronteiras de fato e de
Direito entre os países componentes do Mercosul. É a questão: qual o novo papel da soberania na
integração entre os países do Mercosul? A escolha se justifica pela importância histórica que tal
soberania possui, razão pela qual sua mitigação é a primeira característica que se busca num processo de
integração, que de outra forma não ocorreria. Para tanto, se faz uso da metodologia dedutiva, sem abrir
mão do método dialético. Simultaneamente a análise será fenomenológica, considerando os fenômenos
jurídicos a partir da vida própria que adquirem depois de saltarem à luz. Esperamos compreender o
novo papel do princípio da soberania a partir da internacionalização que lhe foi imposta, tendo por
objeto a política de bloco do Mercosul.
Desenvolvimento, Inovação e
Produção do Conhecimento
ARTIGOS
Inovação e conhecimento como requisitos para o
desenvolvimento local e sustentável
Introdução
O
desenvolvimento de uma região ou país é realizado por meio de processos e estratégias e
está de forma muito intrínseca ligado ao sistema dinâmico de conhecimento, aprendizado
e inovação. Esse tem sido o norte para agenda de pesquisa acadêmica nas diversas áreas do
conhecimento, bem como nas empresas e nas organizações e instituições nas diversas esferas do
Estado.
A utilização da inovação e do conhecimento produzido nas instituições de ensino e empresas
deve resultar em mudanças nas estruturas e estratégias da organização da sociedade. Segundo
Quintairos (2012), busca-se o conhecimento científico com pessoas altamente capacitadas, com
condição para inovar e ir ao encontro do desenvolvimento de forma contínua e sustentável.
Para Gil (1995, p. 36), a pesquisa no sentido econômico “é o processo de descobrir respostas
aos problemas referentes à produção, distribuição, acumulação e consumo de bens materiais mediante
o emprego de procedimentos científicos.”
Assim, o conceito de pesquisa aponta para o desenvolvimento econômico. Neste sentido, na
busca da realização deste processo, introduz-se a inovação, que segundo Sandroni (1999, p. 303), é a
“introdução de novos produtos ou serviços, ou de novas técnicas para sua produção, ou
funcionamento”. Ainda de acordo com o mesmo autor, a inovação consiste em aplicação prática de
uma invenção ou na forma de comercialização de um produto ou serviço, resultando em menores
custos ou maiores faturamentos.
O presente estudo tem como proposta discutir a contribuição da inovação e do conhecimento
compartilhado, como item indispensável ao desenvolvimento local e sustentável, atingido através da
utilização dos recursos endógenos existentes. Como exemplo de recurso natural que ao ser
desenvolvido pode trazer desenvolvimento para a comunidade local, escolhe-se a Macaúba, fruto do
Cerrado, que pode ser utilizado como matéria-prima na cadeia de produção de biodiesel.
A escolha da Macaúba como estudo de caso, se justifica por se tratar de uma fonte oleaginosa
renovável, que pode ser utilizada para produção de óleo vegetal puro e destiná-lo a produção de
biodiesel local e regional. Pode-se ainda, aproveitar seus resíduos para produção de outros bens, sendo
possível vendê-los e, todos estes produtos ao serem comercializados geram renda e emprego para o
agricultor familiar. Neste contexto, o governo federal ao criar o Selo Combustível Social no PNPB
(Programa Nacional de Produção e uso de Biodiesel), incentiva e subsidia a produção de biodiesel para
as usinas que compram oleaginosas ou o óleo vegetal puro de agricultores familiares, com a intenção de
promover o desenvolvimento local e endógeno.
Material e métodos
Os dados utilizados neste estudo foram obtidos a partir de fontes secundárias, que trabalhados
produzem informações novas sobre a macaúba e, do uso de áreas degradas de pastagens no Cerrado
brasileiro e, no Brasil de modo geral. O estudo é exploratório por utilizar da pesquisa bibliográfica e
documental. É descritivo porque estabelece relações entre variáveis pesquisadas e, é explicativo por
tratar das relações que exigem conhecimento científico que se assenta nos resultados oferecidos pelo
estudo, apontando a macaúba como alternativa para atingir o desenvolvimento local sustentável.
Desenvolvimento em questão
Ainda que, o tema desenvolvimento econômico tenha tido muito destaque no século passado e,
de contínuos debates durante o início deste, a preocupação é mais antiga quando se trata de
crescimento econômico. Tinha-se por objetivo aumentar o poder econômico e militar do soberano,
sem considerar a melhoria de vida da população. O surgimento do processo de industrialização ocorreu
em algumas partes do Planeta e, dentro de cada país ficou concentrado em grandes centros. Fato que se
fez acentuar as desigualdades econômicas entre países e regiões. (SOUZA, 1995).
Segundo Altvater (1995), o processo de desenvolvimento acontece no espaço global, porém de
forma extremamente interrompida e não simultânea nas regiões e nações do mundo. A construção de
um modo eficaz apropriado ao sistema de produção industrial num país pressupõe o respeito às
interferências globais, pois um sistema industrial nacional se torna economicamente parte do mercado
mundial.
De acordo com Schumpeter (1997), entende-se por desenvolvimento econômico as mudanças
de vida econômica que surjam de dentro, por sua própria iniciativa. A economia sem desenvolvimento
é aquela que se arrasta e simplesmente se adapta as mudanças do mundo à sua volta.
Sob a ótica econômica, “desenvolvimento é, basicamente, aumento do fluxo de renda real, isto
é, incremento na quantidade de bens e serviços por unidade de tempo à disposição de determinada
coletividade” (FURTADO, 1961, p.115-116).
De acordo com Comitê (1995, apud MARTINS, 2002), se idealiza como desenvolvimento local
o processo de reativação econômica e a dinâmica da sociedade local, tendo como base o
aproveitamento dos recursos endógenos, com o objetivo de fazer a economia crescer, criar empregos e
melhorar a qualidade de vida.
Neste sentido Albuquerque (1998), nas estratégias de desenvolvimento econômico local, estima-
se o interesse e a preocupação pela melhoria da qualidade de vida através da geração de emprego e
renda, mantendo-se a base dos recursos naturais e do meio ambiente territoriais. Destacando-se o
esforço endógeno por uma articulação da base produtiva empresarial local, potencializando os recursos
próprios, adaptando as inovações na base territorial com maior controle do processo de
desenvolvimento por parte dos agentes econômicos locais. A capacidade local empresarial e inovadora
é talvez, o fator mais decisivo para liderar o processo de desenvolvimento e mobilização dos recursos
disponíveis.
Todavia, tratar de desenvolvimento econômico na atualidade é imprescindível envolver o termo
sustentabilidade, que de acordo com Vecchia (2010), a sustentabilidade tem ganhado espaço como uma
nova visão de mundo. Por ser algo novo gera ainda certas controvérsias, o certo é que o tema é
abrangente, envolvendo quase todas as áreas das ciências humanas. Pode ser definida como a criação e
a disponibilização de firmamentos econômicos, sociais e ambientais permanentes, com possibilidade de
serem usufruídos de forma igual pelas gerações atuais e posteriores, independente de qualquer classe
social, crença religiosa ou cultural.
Para Daly (2002), sustentabilidade para ter sentido, deve requerer dependência crescente da
parte renovável no processo de transformação da economia. Para Vecchia (2010), o desenvolvimento
econômico deve contemplar três pontos fundamentais para tal reconhecimento, para não incorrer em
conceito inadequado. O enfoque é para ter o simultaneamente o equilíbrio entre o econômico, o social
e ambiental, que constitui o desenvolvimento sustentável pleno.
O tema desenvolvimento exposto, reflete a realidade quando se busca melhorias na qualidade
de vida. O processo parte da mudança da estrutura econômica como forma de poder e soberania,
avança para a distribuição de melhorias para toda a comunidade por meio da iniciativa transformadora
local, abordando a preocupação com o meio ambiente, no sentido da exploração dos recursos naturais
com sustentabilidade.
As inovações no sistema econômico surgem, via de regra, pelo produtor, que inicia a mudança
econômica, os consumidores são ensinados a querer coisas novas ou coisas que se diferenciam em um
ou outro aspecto daquelas que tinham hábito de usar. (SCHUMPETER, 1997).
Neste sentido Lemos (1999), afirma que as rápidas mudanças de curso exigem dos indivíduos,
empresas, regiões e países que aprendam e transforme o aprendizado em novas capacidades e
conhecimento em fator de competitividade para os mesmos.
A inovação requer iniciativa, esta parte do produtor, tanto de conhecimento como de produtos
e serviços, que visa a conquista de seus objetivos através de novos produtos ou serviços, que atendam
as necessidades do mercado. Neste sentido, é necessário que as organizações se adaptem a inovar e
produzir o novo para não perder espaço. O processo de inovação pode ter diversos caminhos como:
um novo produto, um novo método de produzir, um novo mercado conquistado, uma nova matéria
prima descoberta, ou um novo domínio, como estrutura de mercado.
Tipos de conhecimento
comercialização o distingue do conhecimento tácito, que possui caráter espontâneo e localmente mais
enraizado. (FERRÃO, 2002). De acordo com Tigre (1998), os conhecimentos tácitos são mais difíceis
de serem adquiridos e transferidos, são um ativo específico da firma, e assim constitui a base
diferenciada e competitiva das empresas.
Para Albagli (2006), o conhecimento codificado é descrito e disseminado com muito mais
facilidade, principalmente via tecnologias de informação e comunicação. Contudo, fazer uso de toda a
informação ou conhecimento codificado, se faz necessário os conhecimentos tácitos. Que por sua vez,
são considerados o diferencial básico de competitividade.Segundo Ferrão (2002), ao cruzar o
conhecimento tácito versus codificado e conhecimento interno versus externo, identifica-se quatro
principais fontes de novos conhecimentos, que seguem:
1º Conhecimento tácito externo, visto como a socialização de conhecimentos, que contém todo
tipo de associação de redes de natureza profissional, que produzem e propagam conhecimentos
especialmente a nível local pelas empresas.
2º Conhecimento tácito interno, considerado a criação espontânea de conhecimentos, surge da
base empírica que promove pequenas alterações e melhorias, que são posteriormente
incorporadas no funcionamento das organizações.
3º Conhecimento codificado interno, visto como atividades internas de I&D (inovação e
desenvolvimento) traduz a concepção convencional de inovação, é onde existe um forte
investimento em recursos físicos, humanos e organizacionais feitos de forma direta em
atividades bem definidas de investigação e desenvolvimento.
4º Conhecimento codificado externo, considerado como a troca e aquisição de conhecimentos,
condiz com o conjunto de mecanismos que possuem como objetivo garantir o acesso aos
conhecimentos de natureza cientifica e tecnológica que não existe dentro da organização, quer
seja no âmbito do mercado quer seja nas universidades, nos laboratórios de investigação ou em
empresas.
A interação dos dois tipos de conhecimento é fundamental para que a sociedade possa se
inovar, podendo atingir o desenvolvimento, partindo da divulgação do conhecimento tanto das
empresas como das instituições de ensino.
Resultados
A análise das atividades de pesquisa e desenvolvimento no mundo e no Brasil, pode ser feito
utilizando pedidos de patentes como indicadores, isto, para as mais diversas áreas de pesquisas, feito
tanto por empresas privadas quanto por universidades. De acordo com Mendes (2008a), os
depositantes de pedidos de patentes relacionados ao biodiesel no mundo no período entre 1996 a 2006,
as universidades foram responsáveis por 22,67% dos pedidos e as empresas por 77,33%. Segundo
Mendes (2008b), no Brasil no mesmo período as empresas foram responsáveis por 68,97% dos pedidos
de patentes e, as universidades por 31,03%. A tabela 1 trata de pedidos de patentes em biodiesel no
Brasil, (documentos publicados entre 1996-2006), com diversas bases de dados.
Depositantes Nº de pedidos
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ [BR] 5
Rohmax Additives GMBH [DE] 4
Afton Chemical Corporation [US] 4
The Lubrizol Corporation [US] 4
IFP - Institut Francais du Petrole [FR] 4
O2diesel Corp (EX - AAE TECH. INT.) [US] 4
Cognis [DE] 3
Monsanto [US] 3
Cargill INC [US] 3
Renessen LLC [US] 3
Ethyl Corporation [US] 3
Petroleo Brasileiro S.A.- PETROBRAS [BR] 3
Siegfried, Peter [DE] 3
Stepan Company [US] 3
Fonte: adaptado de Mendes (2008b)
161
73 69
61
51 51
33 35
18 15 18 18 16
9 3 3
Nota-se que o comportamento de patenteamento por indivíduos, tem evoluído de maneira mais
tímida, quando comparado com as patentes institucionais. Ambos têm um crescimento mais expressivo
no ano de 2005.
Na tabela 2, são identificados os países dos depositantes e o número de pedidos de patente
publicados no ano de 2011. A coleta dos dados deu-se na base de dados no Escritório Europeu de
patentes.
Observa-se que a China liderou os pedidos de patentes em 2011, seguido pelos Estados Unidos.
Nota-se também a presença do Brasil entre os depositantes no ano de 2011.
O registro do conhecimento e da inovação que promovem mudanças e melhorias na produção
de biodiesel, resultando em desenvolvimento econômico.
Tabela 2, países dos depositantes de pedidos de patentes com tecnologias relativas a biodiesel,
2011.
País do depositante Nº de pedidos de patente
China 22
Estados Unidos 19
Reino Unido 6
República da Coréia 3
Brasil 3
Índia 3
Alemanha 3
Fonte: elaboração própria com base em Mendes (2011); Mendes (2012)
No caso do Brasil, é válido destacar o incentivo das políticas públicas, como por exemplo, o
PNPB (Programa Nacional de Produção e uso de Biodiesel), que desde seu lançamento, em 2004,
apresenta como principais diretrizes a promoção da inclusão social e a redução das disparidades
regionais, estimulando a produção de biodiesel através de matéria prima endógena existente, sendo o
principal agente motivador para o desenvolvimento de diversas culturas oleaginosas e, insere o pequeno
produtor na cadeia produtiva, promovendo a descentralização e o aumento da produção de oleaginosas,
fatores estruturantes para o desenvolvimento local e regional. Deste modo, ocorre paralelamente o
incentivo a pesquisa para descobrir e desenvolver novas fontes e tecnologias para a produção de
biodiesel.
Como fonte de energia renovável e fator de desenvolvimento local e regional sustentável e,
resultado de pesquisas com base em conhecimento tácito e científico, se tem a macaúba, cultura
oleaginosa, fonte de matéria prima na produção de biodiesel, que tem potencial produtivo para atender
a demanda de mercado e promover o desenvolvimento sustentável.
A palmeira macaúba pertence a família palmae, seu nome científico é Acrocomia aculeata. A
macaúba é originária do Brasil, e encontra-se em quase todo o país, estendendo-se de São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e por todo o Centro Oeste, Norte e Nordeste. Encontra-se também no Paraná,
porém em proporção bem menor (ARISTONE; LEME, 2006). De acordo com Cargnin; Junqueira;
Fogaça (2008), esta palmeira encontra-se distribuída ao longo da América tropical e subtropical, a partir
do sul do México e Antilhas até a Região Sul, abrangendo o Brasil, o Paraguai e a Argentina, ocorre
com maior profusão na região do bioma Cerrado.
Um hectare de área pode comportar até 200 palmeiras, atingindo uma produção de até 25
toneladas de cocos por ano. (SILVA, 2007). De acordo com Wandeck e Justos, (1988 apud MOTA,
2011), a macaúba produz cerca de 6.200 kg/ha por ano de óleo. Os estudos de laboratório executados
por Melo (2012), a produção de biodiesel a partir do óleo de macaúba através da transesterificação
chega a 98%.
Com 6.200 kg/ha por ano de óleo convertidos em biodiesel em 98%, obtém-se 6.076 kg/ha por
ano de biodiesel com o óleo de macaúba. De acordo com Ocanha; Ferrari (2011), a densidade para o
biodiesel do óleo de macaúba, é de 0,8745 g/litro. Portanto, seria possível produzir cerca de 6.948
litros/ha/ano do combustível renovável.
De acordo com a ANP (2012), no Estado do Tocantins, em 2012, ocorreu um total de vendas
pelas distribuidoras de 770.600.662 litros de diesel.
Segundo Silva Neto (2013), a área de pastagens no cerrado brasileiro (base censo agropecuário
2006), é de 45.274.463 hectares, destes 4.284.712 hectares são de pastagens degradadas. Utilizando-se
estes dados, seria possível atender a demanda de biodiesel no Estado do Tocantins com 0,13% desta
área. A demanda no Brasil seria atendida com 9,39% da área de pastagens degradadas do cerrado
brasileiro, conforme tabela 3.
Tabela 3, área de pastagem degradada do cerrado brasileiro, usando óleo de macaúba para
produzir biodiesel.
Localidade Demanda de Área necessária Área de pastagem % de área de
biodiesel (litros) para produzir (ha). degradada do pastagem
cerrado (ha) degradada para
atender a demanda
Tocantins 38.530.033 5.545 4.284.712 0,13
Brasil 2.795.018.796 402.277 4.284.712 9,39
Fonte: elaboração própria a partir de dados coletados
Utilizando-se os dados de Silva Neto (2013), a área de pastagens no Brasil (base censo
agropecuário 2006), é de 101.437.409 hectares, destes 9.842.925 hectares são de pastagens degradadas.
Utilizando-se estes dados, relacionando-os com a demanda de biodiesel por localidade e a capacidade
de produzir biodiesel da macaúba, se obtém os resultados apresentados na tabela 4.
Tabela 4, área de pastagem degradada do Brasil, usando óleo de macaúba para produzir
biodiesel por localidade.
Tocantins e Demanda de Área necessária Área de pastagem % de área de pastagem
Outras Regiões biodiesel para produzir degradada do degradada para
Em 2012 (litros) (ha). Brasil atender a demanda
(ha)
Tocantins 38.530.033 5.545 9.842.925 0,06
Norte 284.532.432 40.952 9.842.925 0,42
Nordeste 456.683.871 65.729 9.842.925 0,67
Centro Oeste 339.434.928 48.854 9.842.925 0,50
Sudeste 1.190.811.604 171.389 9.842.925 1,74
Sul 523.555.961 75.353 9.842.925 0,77
Fonte: elaboração própria a partir de dados coletados
Deve-se observar que existem cálculos referentes a todas as regiões do país, pois de acordo com
(ARISTONE e LEME, 2006), existe a presença da palmeira macaúba de Norte a Sul do Brasil, o que
abre a possibilidade de atender a demanda em cada localidade.
A demanda nacional de biodiesel apresentada para 2012, é dado consolidado obtido com base
no consumo de diesel com a mistura de 5% (B5), para o ano. De acordo com Brasil (2007), o PNE
2030 (Plano Nacional de Energia 2030), visualiza um cenário no mercado que chegará a mistura B7 em
2020 e B12 em 2030.
A tabela 5 resume os dados considerados da demanda nacional em 2012 e da projeção para
2020 e para 2030, relacionando com a área necessária para produzir e atender a demanda e, o
percentual que esta área representa em relação a área de pastagem degradada no Brasil.
Tabela 5, área de pastagem degradada do Brasil, usando óleo de macaúba para produzir
biodiesel atendendo a demanda em 2012, 2020 e 2030.
Demanda de Biodiesel Área necessária Área de pastagem % de área de pastagem
para produzir (ha). degrada no Brasil (ha). degrada para atender a
demanda (ha).
Em 2012 (litros). 402.277 9.842.925 4,09
2.795.018.796
Projetada para 2020 (litros). 696.041 9.842.925 7,07
4.836.090.000
Projetada para 2030 (litros). 1.690.432 9.842.925 17,17
11.745.120.000
Fonte: elaboração própria a partir de dados coletados
Constata-se que, mesmo na demanda projetada, a área necessária para atendê-la é sempre
inferior a área atual de pastagem degradada e, seus valores relativos são considerado baixos, aponta-se
com isso o possível atendimento da demanda de biodiesel no país através da produção com óleo de
macaúba, sem desmatamento e abertura de novas áreas.
Segundo Dias et al (2011), do ponto de vista ambiental, o processo de degradação de pastagens
contribui negativamente para o processo hidrológico de microbacias. As características botânicas e
morfológicas da macaúba favorecem a captação da água de maneira eficiente e, o sistema radicular do
tipo fasciculado pode ter o funcionamento de uma esponja, que após a água escoada pelo tronco a
absorve, armazena e a disponibiliza, também promove a infiltração e redução do escoamento
superficial. A macaúba pode se constituir em barreira física contra o escoamento superficial da água
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 514
livre e, protege o solo com suas folhas arcadas. O seu cultivo em consórcio com pasto pode trazer
ganhos ambientais.
Considerações finais
Referências
A
maioria das Universidades Federais da região Norte foram criadas durante as décadas de
1960 e 1970, com exceção da Universidade Federal do Tocantins, criada em 2003, e da
Universidade Federal do Oeste do Pará, criada em 2009. As Universidades Estaduais e a
conseqüente “interiorização” e descentralização do ensino superior na região ocorreu somente a partir
da década de 1990. Atualmente a região conta com oito universidades federais e cinco estaduais, as
quais possuem sedes nas capitais, campis e pólos pedagógicos distribuídos pelo interior dos estados,
conforme os mapas 1 e 2. As sedes concentram a maior parte dos cursos universitários, além de
extensão e pós-graduação, enquanto os núcleos pedagógicos possuem no máximo dois cursos
universitários.
1 Geógrafa, doutora em Política Científica e Tecnológica, Analista de Gestão, Planejamento e Infra-estrutura do IBGE –
Tocantins.
2 Estatístico, mestrando em Agroenergia na Universidade Federal do Tocantins e Analista Estatístico da Defensoria Pública
do Tocantins.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 518
Em 1993 foi criada a Universidades Estadual do Pará e somente após o ano 2000 foram criadas
as demais. Assim, em 2001 foi criada a Universidade Estadual do Amazonas, em 2005 a Estadual de
Roraima e a Estadual do Amapá foi criada em 2006. Nos estados do Acre, Rondônia e Tocantins ainda
não há Universidades Estaduais públicas3.
De acordo com dados do CNPq e da CAPES, o total de docentes nos estados da região Norte
em 2012 era de 3.142, sendo que 81% estavam alocados nos estados do Amazonas e do Pará.4
Com relação aos programas de pós-graduação, em 2012 havia 3.342 programas em todo o Brasil
e a região Norte apresentava 5% desse total (172 programas). Tocantins, Roraima e Amapá foram os
últimos estados a criarem programas de pós-graduação, em 2002, 2003 e 2006 respectivamente.
Estudos do CGEE (2010a) apresentam que no período de 1996 a 2000 ocorreu uma significativa
desconcentração espacial dos programas de doutorado que privilegiou as regiões menos desenvolvidas
no Brasil. Enquanto a média de crescimento nacional foi de 69%, a região Norte registrou o
crescimento de 218%. Apesar desse crescimento, a região ainda apresenta o menor número de
programas de pós-graduação (CGEE, 2010a e 2010b).
3 Especificamente no Tocantins, a universidade estadual criada em 1990 foi extinta em 1996. Em seu lugar foi criada a
Fundação Universidade do Tocantins (UNITINS) no formato de Fundação Pública de Direito Privado. Com a criação da
Universidade Federal do Tocantins, em 2003, parte do patrimônio da UNITINS foi transferido para a Federal. A partir de
2003, a UNITINS passou a atuar com cursos telepresenciais de graduação e 2009 esses cursos foram descredenciados pelo
Ministério da Educação.
4 Dados do CNPq, disponíveis em www.cnpq.br/estatisticas/index.htm, agosto de 2013 e dados da CAPES disponíveis em:
O crescimento dos programas de pós-graduação da região Norte ocorreu mais nos estados do
Amazonas e Pará, ou seja, ainda existe, um “espaço quase vazio” em relação à pós-graduação nos
demais estados da região, conforme pode ser notado no mapa 3. Até o ano de 2008 ainda não havia
nenhum doutor titulado em instituições dos estados do Acre, Roraima, Amapá e Rondônia (CGEE,
2010).
No período de 1996 a 2008, o total de 639 doutores foram titulados na região, dos quais apenas
um no estado de Rondônia e os demais nos estados do Amazonas e Pará. De acordo com dados do
CGEE (2010a), nesse mesmo período, as instituições da região Sudeste do Brasil titularam 67.626
doutores, o que corresponde a 77,7% dos doutores titulados em todo o país. No entanto, entre 2000 e
2008 houve um crescimento de 400% de pesquisadores-doutores alocados em instituições de ensino
superior e/ou de pesquisa na região norte, de acordo com dados do CNPq (no ano 2000 havia 705
pesquisadores-doutores e em 2008 havia 2.863). Os estados mais carentes de doutores em relação à
densidade populacional são Rondônia e Maranhão, conforme mapa 4.
(Elaboração própria. Fonte de dados: doutores cadastrados no CNPq e estimativa populacional de 2009 segundo o IBGE)
2. Os Institutos de Pesquisa
Entre as ciências biológicas, os grupos de pesquisa em Ecologia, Zoologia e Genética têm maior
representatividade. Essas são justamente as áreas mais relacionadas à prospecção da biodiversidade e à
conservação dos recursos naturais, temáticas de grande interesse e atração de recursos para a
comunidade acadêmica no período atual.
Com relação aos investimentos do CNPq em bolsas e no fomento direto às pesquisas, apesar do
maior número de grupos em Ciências Humanas, essa grande área recebeu menos recursos que as
Ciências Biológicas, Agrárias e as Exatas (gráfico 3). Esses dados convergem com o alto índice de
especialização em Ciências Biológicas na região Norte, conforme a análise do CGEE (2010a).
Gráfico 3 - Investimentos realizados pelo CNPq em bolsas e no fomento à pesquisa por grande área do
conhecimento na região Norte (2009)*
4. As Organizações Não-Governamentais
A inserção das ONGs na Amazônia brasileira ganhou expressão a partir da década de 1980,
vinculadas ao movimento ambientalista. Conforme Porto-Gonçalves (2001), a atuação dessas
organizações na região Norte iniciaram já na década de 1960 em função dos conflitos de terra entre as
comunidades tradicionais locais (indígenas, seringueiros, caboclos, entre outros) e as ações relacionadas
aos projetos governamentais desenvolvimentistas. Inicialmente destacaram-se as entidades criadas por
setores ligados à Igreja Católica, como a Teologia da Libertação, mas também entidades ligadas a
partidos políticos clandestinos. Durante as décadas de 1980 e 1990 o cenário se ampliou e se
diversificou a partir de entidades vinculadas a empresas e fundações, que se especializaram e passaram a
vender pacotes de serviços.
As ONGs contribuíram para a maior visibilidade dos movimentos sociais da Amazônia. Na
esteira de Chico Mendes e diversos movimentos indígenas, ao quebrar as mediações tradicionais com o
poder público, essas organizações abriram outras possibilidades de ação para esses sujeitos sociais se
constituírem com personalidade política própria. A conservação ambiental, de uma forma ou de outra,
é o tema que catalisou a relação entre os movimentos locais e as ONGs. O movimento indígena
também ganhou apoio de ONGs a partir do momento em que também se aliou ao discurso da defesa
do meio ambiente e, principalmente, que pesquisas científicas demonstraram as influências das práticas
tradicionais na conformação da biodiversidade amazônica (PORTO-GONÇALVES, 2001).
Diversas ONGs, segundo Jacobi (2000), apóiam e assessoram as comunidades indígenas na
construção de alternativas sócio-econômicas afirmativas de seus valores culturais. A ênfase, segundo o
autor, está na geração de conhecimento sobre a conservação, a preservação e o manejo sustentável dos
recursos naturais com o fortalecimento institucional e gerencial das comunidades. Por outro lado, o viés
científico de preservação radical adotado por algumas ONGs também é contrário aos interesses de
muitas populações locais em função da pressão pela delimitação de áreas de preservação e à proibição
de manejo de recursos nessas áreas.
As ONGs atuantes na Amazônia desenvolvem atividades de formação e capacitação; pesquisas
sobre alternativas de desenvolvimento econômico para as populações locais, incluindo a transferência
de tecnologia e inovações para as populações locais; e, principalmente, projetos de conservação e
recuperação ambiental. Entre essas práticas, têm se destacado os financiamentos destinados à
identificação de áreas prioritárias para a criação de áreas de preservação ou conservação e à gestão das
mesmas através de programas financiados por agências multilaterais. De acordo com os estudos de
Paulino (2006) e de Nonato (2012), há muitas parcerias entre instituições públicas de pesquisa da região
Norte com ONGs.
Então, além das tradicionais universidades e institutos públicos ou privados de pesquisa,
destacam-se as grandes ONGs na dinâmica da produção científica regional. Essas organizações
articulam complexas redes de financiamento nacionais e internacionais que lhes garantem força para o
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 525
desenvolvimento de seus projetos. De acordo com as entrevistas realizadas por Nonato (2012) com
pesquisadores da região, diversos cientistas ou grupos de pesquisa consolidados na região em distintas
áreas de conhecimento têm estabelecido parcerias com as grandes ONGs para garantir respaldo técnico
e financeiro às suas áreas de pesquisa. Há casos de pesquisadores consolidados que também criaram
suas próprias organizações fora das universidades.
Em 2008 havia 41 ONGs de pesquisa na região, de acordo com dados do CNPq. Esse valor é
maior ao considerar a quantidade de ONGs não certificadas e que estão executando pesquisas na
Amazônia. Dados do CNPq sobre investimentos em bolsas e fomento à pesquisa por instituição
apresentam 16 ONGs, no período de 2001 a 2008. Não obstante, ainda faltam estatísticas precisas
sobre ONGs criadas ou mantidas por cientistas vinculados às universidades ou institutos de pesquisa.
Atualmente, as ONGs de maior expressão na região são: Fundação Vitória Amazônica,
Instituto Socioambiental - ISA, Sociedade Civil Mamirauá, Instituto do Homem e Meio Ambiente da
Amazônia, Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola, SOS Amazônia, Amigos da Terra e
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia.
Entretanto, é importante explicitar que algumas instituições de pesquisa têm maior habilidade
científica e política de captar recursos que outras. O montante de recursos direcionado “para a
Amazônia” não abrange de forma igualitária todos os estados que conformam a região (NONATO,
2012). O Amazonas e o Pará possuem maior aporte de instituições, grupos de pesquisa, pesquisadores-
doutores e, conseqüentemente, maior acesso às fontes de financiamento nacionais e internacionais.
Enquanto os demais estados da região ainda recebem muito pouco dos crescentes financiamentos
direcionados à região.
7 São passíveis de apoio todos os itens financiáveis pelo FNDCT: custeio de passagens, diárias, material de consumo,
serviços de terceiros, investimento em obras civis, instalações, equipamentos e bolsas de desenvolvimento tecnológico
(através de acordo firmado com o CNPq).
8 Valores extraídos do Portal Transparência Pública (www.portaldatransparencia.gov.br, janeiro de 2010).
recursos do governo federal para projetos na região Norte, com 65% do total. O gráfico 4 apresenta os
investimentos dos fundos entre os estados da região Norte no período de 2008 a 2009, com exceção do
fundo CT-Amazônia.
As FAPs se constituem como fundações de direito público vinculadas aos governos estaduais,
mas com autonomia administrativa e financeira para a execução do auxílio à produção científica e à
formação de nível superior. Atuam mediante o financiamento de bolsas de estudo em todos os níveis
acadêmicos (Iniciação Científica, Mestrado, Doutorado, Pós-doutorado e intercâmbios fora do país);
concessão de recursos para a produção das pesquisas (material de laboratório, apoio técnico, campo,
eventos científicos, entre outros); programas temáticos de fluxo contínuo e/ou editais de específicos,
para todas as áreas de conhecimento. Também podem estabelecer parcerias com instituições de outros
estados e/ou outros países para obter financiamentos. Apenas os estados de Rondônia e Roraima ainda
não possuem Fundações próprias.9
Então, as FAPs são fontes importantes de investimento no desenvolvimento científico e
tecnológico descentralizado no Brasil. A criação dessas fundações na região Norte é uma decorrência
da descentralização administrativa promovida pela Constituição federal de 1988 e do rebatimento de
seus preceitos nas constituições estaduais elaboradas a partir de 1989 (CGEE, 2010b).
Atualmente as FAPs da região Norte são: no Acre, com a FUNTAC (criada em 1989); o
Amazonas, com a FAPEAM (criada em 2007); o Pará, com a FAPESPA (criada 2007); o Tocantins,
com a FAPTO e a FAPT (criadas em 2004 e 2011) e o Amapá, com a FAPAP (criada em 2010). 10
Todas as FAPs citadas assumiram como missão a produção de pesquisas direcionadas para o
desenvolvimento social e econômico de seus estados de origem.
A FAPTO, diferentemente das demais, ainda não concede bolsas de mestrado ou doutorado.
Apenas agencia a captação de recursos para pesquisas através de parcerias com instituições públicas e
privadas, promove cursos de especialização e apóia eventos científicos. Em 2011 também foi criada
uma nova fundação, a Fundação de Amparo à Pesquisa do Tocantins (FAPT) com maior escopo de
atuação, ou seja, para a concessão de bolsas de iniciação científica e de pós-graduação e a delimitação de
programas próprios de pesquisa.
9 Dados do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa, disponíveis em: www.confap.org.br,
janeiro de 2012.
10 A FAPAP também é denominada “Fundação Tumucumaque” em referência ao Parque Nacional Montanha
Tumucumaque. Trata-se da maior área protegida de floresta tropical do mundo (38.821,20 km²), localizada entre os estados
do Amapá e do Pará. Nesse caso, é clara a força que a temática da conservação ambiental exerce na agenda de pesquisa do
estado.
dos parceiros estrangeiros sobre o controle da agenda de pesquisa, sobre os recursos disponíveis e na
apropriação dos resultados gerados, principalmente das publicações.
O estudo de Gama & Velho (2005) também evidenciou que os programas de cooperação
internacional têm pouca convergência com os objetivos estratégicos dos centros de pesquisa regionais e
estão ainda mais distantes das necessidades das populações locais. Entre as razões, os autores explicam
que as dificuldades financeiras enfrentadas pelas instituições locais, assim como a falta de capacitação
científica das mesmas, colocam-nas em uma posição frágil no processo de negociação dos projetos,
principalmente nos estados do Amapá, Roraima, Acre e Rondônia. Por outro lado, segundo os autores,
o Estado brasileiro também falha no controle e monitoração dessas cooperações internacionais para
que atendam efetivamente os interesses nacionais.
Conforme Becker (2006), as tecnologias avançadas são desenvolvidas nos centros de poder e as
reservas naturais estão localizadas nos países periféricos ou em áreas não regulamentadas juridicamente.
Essa distribuição geográfica desigual de recursos naturais e de capacidade técnico-científica conforma
uma disputa geopolítica entre os países centrais e periféricos na competitividade exigida pela economia
mundial. A autora considera fundamental a cooperação internacional para o fortalecimento da ciência e
da tecnologia no Brasil, mas, em certos casos, essa cooperação tem um excesso de autonomia dos
países ricos. A questão crucial, então, é o controle da informação porque frequentemente os
pesquisadores brasileiros conhecem apenas o subprojeto ligado à sua parceria, mas não o projeto como
um todo, ou seja, não conhecem todos os desdobramentos previamente planejados nas demais
conexões das redes.
Porto-Gonçalves (2006) também chama a atenção para a formação de um verdadeiro
“complexo industrial-científico” de caráter dúbio ao analisar grandes programas internacionais com
apelo científico em prol da conservação na Amazônia. Para o autor, na esteira desse complexo também
têm sido embutidas práticas não só de biopirataria, mas de “etnobiopirataria”, pois o que se recolhe em
campo são milhares de informações sistematizadas pelas comunidades tradicionais locais e a proteção
jurídica de tais conhecimentos ainda é muito conflitiva e lenta.
Os programas e redes formadas após a década de 1990 que financiam pesquisas na região Norte
com foco na Amazônia brasileira podem ser divididos em dois grupos: programas que produzem
conhecimento especificamente para a Amazônia (ação exclusiva) e programas independentes da
Amazônia, mas que são meios importantes de financiamento à pesquisa na região Norte atualmente
(ação ampla), conforme o quadro 2.
Conclusões
Referências
BECKER, B. K. Amazônia: Geopolítica na virada do III milênio. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.
CGEE. Doutores 2010: estudos da demografia da base técnico-científica brasileira. Brasília: CGEE, 2010a.
____. Descentralização do fomento à ciência, tecnologia e inovação no Brasil. Brasília: CGEE, 2010b.
GAMA, W. & VELHO, l. “A cooperação científica internacional na Amazônia” In: Revista Estudos Avançados,
vol. 19, n. 54, p. 205-225, 2005.
NONATO, J. M. D. A comunidade de pesquisa da região norte do Brasil: perspectivas sobre o papel da ciência na construção do
desenvolvimento sustentável. Tese de Doutorado, DPCT-IG-UNICAMP, 2012.
PAULINO, S. R. (org.) Relatório Diretório da Pesquisa Privada ONGs - Meio Ambiente. São Paulo:
FINEP/FUNDUNESP, 2003.
(Disponível em: www.itsbrasil.org.br/infoteca/finep/diretorio-da-pesquisa-privada-ongs-area-tematica-meio-
ambiente, Janeiro de 2010).
Considerações iniciais
C
ompreender o que vem a ser política pública nem sempre se torna uma ação simples, pois o
“desenvolvimento de uma sociedade resulta de decisões formuladas e implementadas pelos
governos dos Estados Nacionais, subnacionais e supranacionais em conjunto com as demais
forças vivas da sociedade, sobretudo as forças de mercado em seu sentido lato” (HEIDMANN &
SALM, 2009, p. 28). Neste sentido, pode se afirmar que a finalidade da política publica é o bem estar da
coletividade, estabelecendo um conjunto de ações, programas ou planos do governo e/ou dos atores
sociais que estejam envolvidos no processo de decisão.
Tem se que em seus diversos matizes, a Política Pública pode ser traduzida em um “processo de
elaboração e implantação e, sobretudo, em seus resultados, formas de exercício do poder político,
envolvendo a distribuição e redistribuição de poder, o papel do conflito social nos processos de
decisão, a repartição de custos e benefícios sociais” (TEIXEIRA, 2002, p.02).
No Brasil, o estudo sobre política públicas é recente, há um caminho significante a se construir
ante as divergências conceituais (LIMA, 2012; HEIDMANN & SALM, 2009) sendo necessário
construir um espaço de discussão e reflexão a cerca do tema.
Se a construção de cenários se torna complexo em terrenos mais conhecidos, na esfera da
gestão pública, como nas áreas de educação, saúde, cultura, no tocante a temática de biotecnologia e
inovação, o traçado se mostra mais denso, tendo em vista ser esse um diálogo recente em âmbito
governamental; “até os anos de 1950 não se podia afirmar que havia um apoio institucional em prol da
ciência e tecnologia no Brasil” (AUCELIO & SANT’ANA, 2006).
Conde e Araujo-Jorge (2003, p.734) afirmam que,
A preocupação com as políticas científicas e tecnológicas na América Latina surgiu
poucos anos depois que os países industrializados tomaram consciência de sua
importância. Com a definição do crescimento como prioridade estratégica
fundamental e com a implementação das políticas de industrialização por substituição
de importações, a maioria dos países da região criou instituições destinadas à
formulação de políticas, planejamento e promoção da ciência e tecnologia neste marco
já na década de 1950, como foi o caso do Brasil.
Doutoranda em Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal (Rede Bionorte). Docente na Universidade Federal do
Tocantins e no Centro Universitário Luterano de Palmas. suyenerocha@uft.edu.br.
Doutorando em Biodiversidade e Biotecnologia da Amazônia Legal (Rede Bionorte). Analista ambiental do IBAMA.
flaveira@yahoo.com
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 535
Entretanto, devemos observar que o referencial adotado pelos autores é diverso; Conde e
Araujo-Jorge partem de um olhar contrastivo entre o Brasil e a América Latina, já Mendonça, observa o
Brasil de forma particularizada, o que torna os pontos de vista e o marco cronológico diferente, pois o
prisma é verificado por ângulos dispares.
Em que pese a discussão do marco temporal do inicio da política de incentivo à tecnologia no
Brasil, a verdade é que a efetividade de suas políticas governamentais tem sido foco de constantes
discussões, as estruturas criadas, por vezes, demonstram certa carga de inoperância.
Se na esfera governamental maior, o que se observa é uma dificuldade em articular os gestores
e suas pastas para que possam, de forma conjunta, desenvolver ações que possibilitem a eficácia da
política criada, e considerando que entrelaçar temáticas densas como inovação e biotecnologia tem se
mostrado um desafio significativo. Na esfera estadual, a temática ainda nem está na pauta do “dia”.
Necessário se faz compreender os mecanismos de incorporação das diretrizes da Política
Nacional de Inovação pelo Gestor Público com vista à inserção do ente federativo no cenário nacional
e internacional, uma vez que o tema requer esforço de corpo técnico interdisciplinar, para que se possa
obter resultados positivos para as ações planejadas.
Necessário ressaltar que uma política pública quando editada pelo governo Federal tem a
função de trazer normas de caráter geral, texto com espectro mais amplo, para que cada ente federativo
a posteriori edite, de forma suplementar, normas que venham a atender as peculiaridades da região em
que estão inseridos.
Lei nº. 10.973, de 2 de dezembro de 20041, conhecida como a Lei de Inovação, que foi acompanhada
de uma série de normas em âmbito federal, com objetivo central de traçar “medidas de incentivo à
inovação e a pesquisa cientifica e tecnológica no ambiente produtivo, com vista a capacitação e ao
alcance da autonomia e ao desenvolvimento industrial do País. (art. 1º)”.
O ano de 2004 deve ser considerado um “divisor de águas”, pois finalmente o Estado resolveu
adotar posturas de ousadia a fim de instaurar a independência econômica e social do Brasil.
(VETTORATO, 2008, p. 62)
Ressalta-se que edição da Lei 10.973/2004 tem o condão de regulamentar as disposições
da Carta Constitucional de 1988 em seu capitulo IV - Da Ciência e Tecnologia, artigos 218 e 219.
A Lei de Inovação possui três vertentes, I - Constituição de ambiente propicio às parcerias
estratégicas entre as universidades, institutos tecnológicos e empresas; II - Estimulo à participação de
instituições de ciência e tecnologia no processo de inovação, III - Incentivo à inovação na empresa.
De forma concisa, na primeira vertente tem se a cooperação com o eixo central, como
mecanismo de apoio e estímulo à constituição de alianças estratégicas e ao desenvolvimento de projetos
cooperativos universidades, institutos tecnológicos e empresas nacionais. A segunda vertente se
estrutura na formulação de contratos de transferência de tecnologia e de licenciamento de patentes de
sua propriedade, na possibilidade de prestação serviços de consultoria especializada em atividades
desenvolvidas no âmbito do setor produtivo. E a terceira vertente busca estimular uma maior
contribuição do setor produtivo em relação à alocação de recurso financeiros na promoção da
inovação.(MCTI, on line)
Vettorato ao fazer um estudo reflexivo a cerca da lei de inovação estabelece que:
A primeira vertente disciplina e orienta os termos legais para a interação entre o setor
público e o privado a fim de constituir alianças estratégicas e projetos de cooperação
envolvendo empresas nacionais, ICT’s e organizações de direito privado sem fins
lucrativos com intuito de realizarem atividades de P&D, com a finalidade de
alcançarem à geração de produtos e processos inovadores. [...] No seu terceiro e
último eixo, a lei de inovação tecnológica propõe dois dispositivos legais que possuem
a finalidade de estimular à inovação de no âmbito das empresas (VETTORATO,
2008, p. 67/74)
A temática toma tamanho relevo que o governo estabelecera como lema “inovar e investir para
sustentar”. A exemplo, tem se a Política de Desenvolvimento Produtivo, o Plano de Ação de Ciência,
Tecnologia e Inovação - PACTI 2007-2011 ou PAC da Inovação (MARZANO, 2011) que “teve
investimentos na ordem de 40 bilhões para incentivar as pesquisas em ciência, tecnologia e inovação no
país”. (VETTORATO, 2008, p. 61)
A Lei 10.973/2004 regulamenta a construção de ambientes especializados e cooperativos a
produção inovativa, espaço em que empresas nacionais, instituição cientifica e tecnológica – ICT e
organizações de direito privado sem fins lucrativos possam desenvolver atividades de pesquisa e gerar
produtos e processos inovadores (art. 3º).
Os entes federativos de qualquer instância têm papel significante nesse processo, com suas
agencias de fomento.
Educação, meio ambiente e desenvolvimento são temáticas importantíssimas nos
contextos atuais para a nossa complexa sociedade e recebem atenção especial do
Estado e da própria sociedade. Muitas das principais ações com relação a estes temas
ocorrem a partir de políticas públicas (LIMA, 2012)
O quadro nos mostra que das 27 unidades federativas, computando o Distrito Federal somente
14 estados possuem normas regulamentando a inovação, que distribuídas por Região, nos apresentam o
seguinte cenário:
Essa relação evidencia que as Regiões Norte e Nordeste apresentam o menor índice de
organização normativa para o desenvolvimento de suas atividades relacionadas a inovação.
Considerando que constituem as regiões mais carentes do país, entende-se que este quadro
deveria ser revertido com urgência. Tendo em vista que as duas regiões tem particularidades ambientais
extremamente importantes para o desenvolvimento de atividades produtivas – presença da maior
floresta tropical do mundo, com altos índices pluviométricos e grande carência logística na região Norte
e da Caatinga e os baixos níveis de pluviometria do semiárido nordestino – entende-se particularmente
necessário o desenvolvimento de ações que incentivem a atividade inovativa específica para a realidade
da região, buscando melhor exploração sustentável do seu potencial e adequações necessárias as
carências socioambientais e logísticas. Para isso, é fundamental o desenvolvimento de normativos legais
desenvolvidos em cada estado.
Ressalta-se que os Estados membros que não possuem normas especificas, a disciplinarem as
suas estruturas internas em âmbito governamental, estão sujeitas as disposições da lei federal.
O Estado do Tocantins só veio a editar a política estadual de inovação sete anos depois da
publicação da política nacional, com a sanção da Lei nº 2.458/2011, estabelecendo medidas de
incentivo a inovação e a pesquisa cientifico-tecnologica nas atividades produtivas, com o objetivo de
obter autonomia capacitação e competitividade no processo de desenvolvimento industrial (art. 1º).
Assim, como na norma federal a lei tocantinense traz um glossário em sua estrutura, entretanto
este é mais extenso, contando com 16 incisos. Podemos ressaltar entre os conceitos os de agencia de
fomento, instituto de apoio, empresa de base tecnológica – EBT, parques tecnológicos, tecnologia
social, inventor independente, pesquisador público, entre outros.
O aumento da percepção da associação entre as ações de C, T & I e o desenvolvimento
econômico e social nos últimos anos, têm deixado o tema mais em evidência, não só pela sua
importância para as atividades relacionadas com inovação, como pelo próprio destaque que tem
recebido (OLIVEIRA, 2010, p. 27) e, no Estado do Tocantins, não seria diferente o tratamento dado a
temática com a edição da Lei nº 2.458/2011, que institui o Sistema de Ciência, Tecnologia e Inovação.
Cria se no âmbito da Secretaria Estadual de Ciência, Tecnologia e Indústria a Fundação de
Amparo à pesquisa do Estado do Tocantins – FAPT – Lei Complementar 71/2011, sendo esta uma
agência de fomento à pesquisa e inovação.
Dentre as 13 competências elencadas nos incisos do artigo 3º na lei complementar nº71/2011
evidencia se que a FAPT deve
I - incentivar pesquisas científicas e tecnológicas, mediante apoio técnico e financeiro
a projetos de difusão tecnológica, extensão, inovação e investigação desenvolvidos
individualmente ou por instituições públicas e privadas sediadas no Estado.
No ano de 2012, publicou 11 editais, tais como, apoio a eventos científicos, bolsas de
doutorado, bolsa de mestrado, publicação de periódicos e artigos científicos, financiamento de
pesquisas científicas no ensino superior e médio. (FAPT, on line).
Além disso, destacam-se dois editais específicos voltados para a inovação científica e
tecnológica de processos produtivos e aproveitamento de resíduos de mineração de calcário, fruto de
uma cooperação entre a FAPT e um grupo empresarial do ramo.
Dentre outros acordos de cooperação desenvolvidos pela FAPT, destaca-se com a
Eletronorte/Eletrobrás, com a Secretaria de Educação que tem diversos objetivos na área de pesquisa,
densenvolvimento tecnoógico e ambiental.No universo proposto pelo decreto, a Secretaria Estadual de
Ciência do Estado, passa ser nominada Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia em 2011, incluindo
a Indústria também como uma pasta de atuação governamental.
2 Concessão de recursos financeiros não-reembolsável para empresas públicas ou privadas que desenvolvem projetos de
inovação estratégicos para o país. Essa modalidade de apoio está sendo realizada no país à partir da aprovação e
regulamentação da Lei de Inovação e da Lei do Bem.
empresas no intuito de desenvolver novos produtos, serviços e agregar valor aos negócios. (FAPT, on
line)
O Parque tecnológico a ser implementado no Estado tem como função reunir num mesmo
espaço instituições de ensino, incubadoras de empresas, centros de pesquisa e laboratórios criando um
ambiente favorável à inovação tecnológica. A convivência destas instituições num espaço comum
propicia o dialogo e a interface dos saberes, gerando tecnologia e inovação, promovendo o
desenvolvimento socioeconômico.
O Sistema Brasileiro de Tecnologia (SIBRATEC), operado pela Financiadora de Estudos e
Projetos (FINEP), constitui em um instrumento de articulação e aproximação da academia com
empresas, e tem como objetivo o apoio ao desenvolvimento tecnológico das empresas brasileiras,
gerando condições para o aumento da taxa de inovação, contribuindo para o processo de inserção do
Brasil no cenário internacional.
Instituído pelo Decreto 6.259 de 20 de novembro de 2007, o Sibratec atende aos objetivos do
Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PACTI 2007–
2010) e as prioridades da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP). (MCTI, on line). O sistema está
organizado em três tipos de redes: Centros de Inovação, Serviços Tecnológicos e Extensão
Tecnológica.
No estado do Tocantins o SIBRATEC entrou em funcionamento em agosto de 2011, por meio
de convênio assinado entre a Sedecti, o IEL/TO - Instituto EuvaldoLodi e o Senai/TO – Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial.
Para o desenvolvimento do projeto foram liberados R$ 2.450.963,63, desse valor, R$
1.924.663,63, foram financiados pela Finep – Agência Brasileira de Inovação e R$ 526.300,00, pela
Sedecti. São parceiros na execução deste projeto a Universidade Federal do Tocantins - UFT e a
Universidade Estadual do Tocantins - UNITINS. (TOCANTINS,on line)
O comitê Gestor foi implementado com a finalidade de aproximar empresa e academia,
realizando reuniões para discutir e elaborar ações que vão ao encontro das necessidades dos
empresários.
Por meio da Extensão Tecnológica, o projeto Sibratec objetiva atender 94 empresas
tocantinenses, sendo que em cada atendimento poderão ser investidos de R$ 10.000,00 a R$ 30.000,00,
a depender da modalidade de atendimento (TOCANTINS, on line)
A implantação de um Parque Tecnológico do Tocantins teve inicio em 2012, quando o CDE -
Conselho de Desenvolvimento Econômico do Tocantins aprovou a liberação de recursos no valor de
R$ 279.020,00 destinados à contratação da Fundação Certi, a mais conceituada empresa do Brasil em
projetos de viabilidade de implantação de parques tecnológicos. Informa a Secretaria Estadual de
Ciência, Tecnologia e Indústria que 85% do serviço já foi executado (TOCANTINS, on line)
Considerações finais
Referências
AUCÉLIO, José Gilberto; SANT’ANA, Paulo José Péret de. Trinta anos de políticas públicas no Brasil para a área de
biotecnologia. Disponível em:< www.cgee.org.br/atividades/redirKori/3053> Acesso em: 17.jun.2013
1. Introdução
A
dam Smith, em “A Riqueza das Nações” (1988), observou que as principais fontes de
inovação e aprimoramento tecnológico partiam dos homens que trabalhavam diretamente
com as máquinas, o que os permitiam descobrir maneiras engenhosas de melhorá-las. O
mesmo ocorria com seus fabricantes, que desenvolviam melhoramentos em seus produtos para agilizar,
facilitar e abreviar o trabalho através do uso de maquinário mais adequado. Ainda observou que as
pessoas têm maiores chances de descobrir novos métodos para atingir um objetivo quando toda a sua
atenção está dirigida para esse objeto único, do que quando ocupado com uma variedade de coisas.
Ainda de acordo com sua literatura, essas inovações eram obras engenhosas dos “filósofos ou
pesquisadores”, quando estas passaram a constituir profissão específica, cujo ofício consistia
inicialmente em observar coisas e/ou processos, e que por essa razão, eram capazes de combinar entre
si as forças e características dos objetos mais distantes e diferentes com o desígnio de criar e melhorar, e
que conseqüentemente acabariam por agregar valor à sua produção (SMITH, 1988).
Segundo o Dicionário Aurélio (2010), Ciência é o conjunto organizado de conhecimentos
relativos a um determinado objeto mediante observação, a experiência dos fatos (por método próprio
através do desvendamento das leis objetivas que os regem), e sua explicação. Já a Tecnologia é o estudo
dos instrumentos, processos e métodos empregados nos diversos ramos industriais.
Portanto, Ciência constitui-se parte pura do processo de criação, geradora de conhecimento,
sem definição de propriedade ou comercialização e com possibilidade de acesso irrestrito. Porém, a
Tecnologia, é comercializável, particular, passível de venda, troca ou omissão. Logo, a junção destas
ocorre quando a Ciência se torna pesquisa, e esta transforma-se em Tecnologia (Ciência e Tecnologia,
C&T) (HOLLANDA, 2003).
Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, um país que atende as necessidades
de sua indústria e que pode proporcionar qualidade e agilidade à sua produção através da otimização de
setores mais específicos de uma cadeia produtiva, dificilmente terá de competir com países que não
atendem aos mesmos requisitos.
Assim, pode-se afirmar que a evolução da Ciência é inseparável da sua aplicação no mundo
desenvolvido. O conhecimento científico (definido pela aquisição intencional, consciente e sistemática,
chegando ao ápice de seu desenvolvimento com a aplicação do método cientifico), um dos principais
insumos para a geração de riqueza e bem estar social, destaca-se por seus avanços tecnológicos que
permitem que setores operem com maior produtividade, podendo facilmente ser definido como a
aplicação de teorias, métodos e processos para a solução de problemas da técnica, Tecnologia (CRUZ,
2000).
A Tecnologia, portanto, pode ser entendida como a face econômica da Ciência.
Assim, como causa da grande Revolução Industrial, a Tecnologia vem buscando na
Ciência novas formas para a geração do conhecimento técnico. (MACEDO E
BARBOSA, 2000, pág. 14).
2. Resultados e discussão
Para a realização deste trabalho, utilizou-se das informações e dados disponíveis do Tesouro
Nacional (FINBRA), Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT), GeoCapes Dados Estatísticos,
Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (INPI), Instituto Brasileiro de Propriedade Industrial
(IBPI), Pesquisa de Inovação Tecnológica (PINTEC), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP),
Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (DGP) e dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE).
Na Tabela 2 segue informações sobre a distribuição de pessoal envolvido com C&T no Brasil,
por setor de atividade. Nesta, percebe-se a forte concentração (e constante crescimento) de C&E nas
universidades e escolas de ensino superior, enquanto que no setor empresarial observa-se número quase
cinco vezes menor, além de considerável decréscimo a partir de 2005.
4 É importante salientar que estudantes de graduação e pós-graduação não se dedicam integralmente à pesquisa, por isso
justifica-se à relação apenas com concluintes. Porém nem todos os concluintes, após suas respectivas formações, continuam
envolvidos com P&D, logo, a relação tem importância apenas para observação dimensional dos dados.
A proteção dos direitos relativos à propriedade destas pesquisas, atividades inventivas e/ou seus
resultados, se dá por meio da concessão de patentes (título de propriedade sobre uma invenção ou
modelo de utilidade, outorgado pelo Estado aos inventores, autores ou detentores sobre sua criação,
pela lei nº 9.279 de 14/05/1996, além da designação de distribuição dos ganhos monetários oriundos
da criação intelectual). Mecanismo este que também impede que terceiros, sem seu consentimento,
possam explorar ou comercializar o produto objeto da patente, sob pena de cometer crime contra a
parte detentora do direito (BRASIL, 2013b).
A Tabela 5 apresenta os valores de concessões de patentes para residente e não residentes junto
ao Escritório Americano de Marcas e Patentes (USPTO) e junto ao Instituto Nacional de Propriedade
Industrial Brasileiro (INPI). Para as disparidades dos valores apresentados, acredita-se que estes podem
ser justificados pela magnitude do mercado consumidor americano (em que seus parceiros comerciais
ao lhe exportar bens, registram suas patentes no local de destino), por meio de seus constantes
incentivos governamentais ou pela qualidade dos resultados de seu investimento em pesquisa.
5000
4500
4000
3500
3000
2500
2000
1500
1000
500
0
1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2012
Uma vez que os resultados de pesquisas são passíveis de proteção intelectual e obtenção de
ganhos monetários por meio de seu uso, verifica-se um conflito de interesse entre os agentes geradores
de tecnologia.
Enquanto que as universidades, em sua maioria, prezam pela liberdade de investigação, pelo
livre fluxo de informações e sem necessariamente estar sujeita a suprir as demandas de mercado, as
empresas objetivam o lucro, qualidade, segurança, o preço de seus produtos e a manutenção do sigilo
em torno de suas atividades tecnológicas (SCHOLZE e CHAMAS, 2000). Assim, por associação, tem-
se que o setor empresarial possui maiores interesses por meios de ganhos monetários em gerar
patentes.
Portanto, de acordo com os dados expostos nas tabelas que se seguiram, é possível verificar as
distintas realidades da concentração de pesquisa nos países selecionados, como também da importância
do registro de patentes e inovação. Enquanto que na Alemanha, China, Coréia e Rússia a universidade
começa a ganhar importância em suas economias mesmo com tímidos índices de participação em
pesquisas, a indústria é a principal engrenagem geradora de tecnologias. Nota-se situação inversa em
países com o Brasil, Argentina e México (onde a pesquisa está fortemente enraizada no âmbito
acadêmico).
A falta de integração entre esses setores ou maior desenvolvimento de um em detrimento a
outro, tende a influenciar gravemente nos índices de inovação tecnológica do mercado, na
competitividade internacional entre os países e na descoberta e registro de novas tecnologias
patenteáveis. Em síntese, por conta do caráter e finalidade da instituição concentradora de maiores
investimentos em pesquisa, pois como dito acima, as universidades geralmente não buscam lucros e sim
o livre fluxo de informações, enquanto que as empresas têm o lucro seu principal objetivo.
Devido à pressões inflacionária nos preços para cima a cada ano, considera-se duas formas de
se calcular o PIB. Na primeira, utilizam-se os preços reais de mercado para aquele ano, que é o
chamado PIB nominal, ou PIB a preços correntes. Na segunda, utilizam-se preços fixos ou inalteráveis,
que são multiplicados pela quantidade de bens e serviços produzidos, ou seja, PIB real ou PIB a preços
constantes. A diferença entre os dois é que a primeiro é calculado a preços do ano em que o produto
foi produzido e comercializado e já o segundo é calculado a preços constantes, onde é escolhido um
ano-base para eliminar o efeito da inflação. Todavia o PIB real é o mais indicado para análises
macroeconômicas (VASCONCELOS E GARCIA, 2008).
A Tabela 6 demonstra os valores absolutos reais, o acumulado e a média do Produto Interno
Bruto Brasileiro de 2002 a 2011 conforme divulgação das Contas Nacionais do IBGE.
Tabela 6: Valores absolutos, acumulado e média do PIB brasileiro para o período de 2002 a
2011.
Ano PIB absoluto do Brasil
2002 R$ 410.632.377.279.535,00
2003 R$ 404.586.478.467.403,00
2004 R$ 422.849.171.413.301,00
2005 R$ 412.638.694.869.961,00
2006 R$ 415.828.140.237.686,00
2007 R$ 424.365.642.646.247,00
2008 R$ 420.686.389.726.136,00
2009 R$ 398.681.089.889.191,00
2010 R$ 430.134.751.957.500,00
2011 R$ 410.931.220.966.953,00
Acumulado R$ 4.151.333.957.453.910,00
Média do período R$ 415.133.395.745.391,00
Fonte: Contas Nacionais do IBGE.
430000000000000
420000000000000
410000000000000
400000000000000
390000000000000
380000000000000
2007
2002
2003
2004
2005
2006
2008
2009
2010
2011
PIB nacional
Gráfico 6:
Comportamento do PIB brasileiro de 2002 a 2011.
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados das Contas Nacionais IBGE.
Na próxima tabela (Tabela 7) podem-se verificar os gastos totais em C&T do governo brasileiro
para o mesmo período.
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
Valores em reais
3. Conclusão
Conclui-se que os gastos do governo com C&T cresceram de forma progressiva e contínua,
podendo inferir que a diferença do primeiro ano da série (2002) ao último (2011) aufere crescimento de
mais de 800%, enquanto que o PIB demonstrou oscilações irregulares. Utilizando da mesma
metodologia dos valores em C&T para os valores do PIB, têm-se que do primeiro ano da série (2002)
ao último (2011), aufere crescimento de apenas 7,27% para o mesmo período.
Portanto, percebe-se que os principais agentes responsáveis por P&D no Brasil não são os
mesmos responsáveis em países como a China, Alemanha ou a Coréia (exportadores de produtos de
alta intensidade tecnológica), que os investimentos feitos pelo governo tendem a continuar na esfera
pública através das universidades, escolas de ensino superior, órgãos e institutos públicos (maiores
concentradores de P&D no país) e que esses investimentos ainda são relativamente baixos, porém, ao
menos, com comportamento crescente.
Referências
BRASIL(a). Decreto-lei nº. 719, de 31 de julho de 1968. Dispõe sobre a criação do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico e dá outras providências. Disponível em:
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0719.htm>. Acesso em: 28 de ago de 2013.
BRASIL(b). Lei nº. 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm>. Acesso em: 28 de ago de 2013.
CENTRO DE ESTUDOS ESTRATEGICOS (CEE). Parcerias Estratégicas. Brasília, Ministério da Ciência e
Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, maio, 2000.
Comunicação, Informação e
Poder na América do Sul
ARTIGOS
Ditadura militar, comunicação e informação:
representações sobre o compositor Geraldo Vandré
na imprensa brasileira
Dalva Silveira1
Introdução
E
m 1968, no auge de sua carreira, com a consagração da música “Pra não dizer que não falei
das flores”, o compositor Geraldo Vandré torna-se um ícone daquele período histórico, mas
também alvo de perseguições políticas, e acaba por partir em exílio. Em 1973, ao retornar
para o Brasil, encerra prematuramente sua carreira musical. Com base na seleção e análise de 68
matérias sobre o cantor, publicadas em jornais e revistas brasileiras, de 1966 a 2009, este trabalho
propõe abordar algumas representações sobre o artista que foram veiculadas pela imprensa brasileira, o
que contribui para a construção de um enigma no imaginário social brasileiro.
Vandré é, ao mesmo tempo, uma figura exemplar e singular: é um caso típico do artista
envolvido com a contestação ao regime militar entre os anos de 1964 e 1968, perseguido, censurado,
exilado e repatriado. Mas, diferentemente de outros, como, por exemplo, Caetano Veloso e Gilberto
Gil, que, como ele, passaram pelo mesmo processo sócio-histórico, o compositor não retomou a
carreira artística e transformou-se em uma figura controversa. Sendo assim, torna-se compreensível a
opção da imprensa por explorar sua imagem e trajetória.
Desde o sucesso alcançado com a vitória de “Disparada”, no II Festival da TV Record, 2 em
outubro de 1966, a imprensa já dava mostras de sua percepção com relação à potencialidade do artista
como produto comercial. Mas foi após a sua marcante participação no III Festival Internacional da
Canção, em 29 de setembro de 1968, com a música “Pra não dizer que não falei das flores”, que
Geraldo Vandré foi se tornando pauta mais e mais interessante para a mídia impressa. 3 “Caminhando”,
ao ser lançada num momento de radicalização das ações da esquerda brasileira e do consequente
acirramento do autoritarismo do governo, conseguiu sintetizar o sentimento contido nos movimentos
de resistência à ditadura militar, provocando a sua censura e a perseguição ao seu compositor. A partir
de então, observa-se que a imprensa começa a representar Vandré como símbolo de resistência ao
regime ditatorial.
Após a promulgação do AI-5, ocorrida em 13 de dezembro de 1968, o artista passou a ser
efetivamente perseguido, encerrando, por isso, suas atividades artísticas e se escondendo até o dia 16 de
fevereiro de 1969, data de sua fuga do Brasil. Na pesquisa, não foi encontrada nenhuma matéria da
1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
2 Canção feita em parceria com Théo de Barros e interpretada, nesse festival, por Jair Rodrigues. Cf.: MELLO, 2003, p. 126.
3 Para mais detalhes sobre esse assunto, ver SILVEIRA, 2011.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 559
imprensa brasileira publicada durante esse período. Durante o seu exílio, que aconteceu de fevereiro de
1969 a julho de 1973, só foram encontradas duas matérias sobre o artista. Isso se justifica se
consideramos as dificuldades para a obtenção das notícias e o fato de a imprensa brasileira estar, então,
sujeita à censura imposta pelo governo militar e sob vigilância do DOPS, que, muitas vezes, extraía
informações sobre o compositor de publicações da imprensa.
Desde o seu retorno até a data em que vigorou o AI-5, foram encontradas apenas quatro
matérias sobre o compositor, o que corrobora o comentário da revista Veja, de 24 de março de 1982,
segundo o qual, em 1973, havia ocorrido a proibição, pela Polícia Federal, de qualquer comentário ou
notícia sobre Geraldo Vandré. Mas, a partir da revogação do AI-5, ocorrida em janeiro de 1979, bem
como da promulgação da Lei da Anistia, em agosto desse mesmo ano, a imprensa passa a publicar, com
maior frequência, reportagens sobre o artista; prova disso é o fato de terem sido encontradas nada
menos do que 43 matérias a seu respeito.
Em algumas publicações, nota-se, em momentos específicos da política brasileira, a apropriação
de sua obra, de sua história e de sua imagem, no sentido de reforçar e, por vezes, “vender” alguma
ideologia ou ideia do momento. Nesse sentido, torna-se necessário levar em consideração as datas em
que se publicaram matérias sobre Vandré, por exemplo, no intervalo entre a revogação do AI-5 e a
promulgação da Lei da Anistia; em 1985, início do governo civil; em 1998, em comemoração aos 30
anos da ocorrência do “Maio de 1968”; em 2005, aniversário de 20 anos de retorno, no Brasil, do
governo civil; e em 2008, ano da rememoração dos 40 anos da promulgação do AI-5.
Em grande parte das matérias analisadas sobre Vandré, ele é representado como mártir, como o
cantor de protesto que foi vítima da ditadura militar, o que contribui para o processo de mitificação do
compositor. Além desse aspecto, dentre as representações veiculadas sobre o artista, destacam-se uma
suposta loucura, sua relação com partidários da direita e, ainda, a contraposição entre o cantor e
compositor Geraldo Vandré e o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.
golpe parece ter afetado muito o estado psicológico de Vandré. De acordo com o jornalista Mylton
Severiano da Silva:
Gente que o viu lá e que também voltou conta que soube de Geraldo internado em
tratamento de calmantes para conseguir dormir [...]. Dizem uns que na França já o
haviam procurado, mas ele tinha recusado qualquer entendimento numa boa, com
certo emissário extra-oficial; mas nesse 1973, além do banzo, havia um Chile
convulsionado, onde começava a faltar comida, gasolina, onde havia toque de recolher
e portanto hora marcada para dormir. (Ex-, n. 12, jun. 1975, p. 31).
A família de Vandré fazia contatos para assegurar o seu retorno de maneira “tranquila” ao Brasil
e, segundo a revista Caros Amigos, alcançou seu intento: “uma amiga de sua mãe tinha um contato com
o general Taurino Rezende, que prometeu: se não houvesse nada de mais contra Vandré, ele poderia
voltar” (Caros Amigos, n. 10, 2007, p. 307). E, do ponto de vista jurídico, não havia nada contra ele.
Sendo assim, ao que tudo indica, o cantor, por meio de um acordo, foi autorizado a voltar ao Brasil.
Sobre essa negociação, pouco se sabe, mas seus termos parecem estar relacionados à polêmica chegada
de Vandré ao país.
Em julho de 1973, segundo a revista Ex-, embarcou em Santiago do Chile rumo ao Rio de
Janeiro, quando “no Chile a convulsão de direita estava por menos de dois meses, e antes que
cortassem as mãos do cantor e compositor chileno Vitor Jara e o matassem” (Ex-, n. 12, jun. 1975, p.
31). Desembarcou num Brasil governado por Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), num momento
em que a repressão, a tortura e a censura já haviam atingido seu ponto máximo.
Existem duas versões sobre o seu desembarque no Brasil. O verdadeiro desembarque teria
acontecido no dia 17 de julho de 1973. O Jornal do Brasil, um dia após o acontecimento, publicou uma
pequena nota sob o título “Vandré volta e é preso”:
Já o falso desembarque teria acontecido no dia 18 de agosto de 1973. O Jornal da Tarde dedicou-
lhe uma grande matéria intitulada “Geraldo Vandré volta ao Brasil, cheio de novas idéias e canções
(sem política)”. A matéria conta com uma descrição pormenorizada da “montagem de sua chegada” e
com a reprodução da “entrevista que Geraldo Vandré deu a uma rede de televisão e que foi transmitida,
a cores, via Embratel, para todo o Brasil” (Jornal da Tarde, 22/08/73). Nessa matéria, vê-se publicada
uma suposta retratação do compositor:
Olha, em primeiro lugar, eu acho que as minhas canções de hoje são mais anunciativas
do que denunciativas. E eu espero integrá-las à realidade nova do Brasil, que espero
encontrar em um clima de paz e tranqüilidade. Mesmo porque a vinculação do meu
trabalho, até hoje, com a utilização por qualquer grupo político, ocorreu sempre
contra a minha vontade. Eu tratei que esses trabalhos estivessem sempre vinculados à
Segundo a revista MPB Compositores (n. 31, 1997), após a retratação, começava o exílio de
Vandré no Brasil. Ele tentou reintegrar-se ao meio artístico, mas foi em vão, pois as duas aparições que
conseguiu gravar – uma para o Fantástico, da Rede Globo, e a outra para o programa de Flávio
Cavalcanti, da extinta TV Tupi – foram censuradas e, portanto, não foram ao ar. A partir de então,
Geraldo Vandré, que, assim como muitos artistas, tem o nome de batismo e o nome artístico, quando
procurado pela imprensa, passou a atender pelo nome de família, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias,
dizendo ser um advogado e negando a existência do compositor. Com esse comportamento, gerou a
representação da existência dos “dois Geraldos”. Podemos dizer que, de modo geral, a imprensa
incorporou essa representação, publicando matérias que salientam a contraposição entre o cantor e
compositor Geraldo Vandré, quase sempre apresentado e representado como um mito da esquerda
brasileira da década de 60, e o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, quase sempre apresentado e
representado como uma personalidade excêntrica, de hábitos poucos convencionais, que se nega a falar
do seu passado e que, às vezes, declara abertamente a morte de Geraldo Vandré. Vejamos alguns
exemplos.
No jornal Repórter, de março de 1978, encontramos os seguintes dizeres: “De volta ao Brasil, em
1973, não cantou mais em público. Não fala sobre Geraldo Vandré à imprensa. Hoje ele é Geraldo
Pedrosa de Araújo Dias, advogado de 42 anos: Vandré morreu, não existe mais para o público”. Outro
exemplo é uma publicação do jornal Folha de S. Paulo, que, ao noticiar um projeto que concedeu um
título a Geraldo Vandré, traz, também, a contraposição entre os “dois Geraldos” e a expectativa de que
Geraldo Pedrosa se comporte como Geraldo Vandré, outra representação recorrente na imprensa:
Como uma sombra de si mesmo, Geraldo Vandré passou a vagar pela cidade de São
Paulo. Fazia aparições esporádicas, às vezes, entrava numa redação de jornal, sentava-
se numa máquina e escrevia laudas e laudas, em silêncio. Ninguém tinha coragem de
perguntar o que ele estava fazendo ali. (Folha de S. Paulo, 12/09/1985).
Suas atitudes, atreladas ao seu silêncio e ao fato de o artista se apresentar como um advogado,
acabaram por provocar questionamentos e especulações relacionados às razões que levaram a essa
mudança de comportamento. Paulo César de Araújo (2005) nos lembra que, em 1974, o cantor Benito
di Paula, ao ver Geraldo Vandré dizendo um poema para um poste, fez um samba em sua homenagem,
Tributo a um rei esquecido.4 Nesse samba, Benito formula a pergunta: “O que foi que fizeram com ele?”.
Para Araújo, o mistério reside em torno do que teria acontecido com Vandré no intervalo dos 33 dias
que se passaram entre o primeiro e o segundo desembarque no Brasil, ocasião em que esteve em poder
dos militares. De acordo com o autor, “sabe-se que após aquele primeiro período incomunicável numa
unidade do I Exército, no Rio de Janeiro, o compositor também esteve preso numa carceragem da Polícia
Federal em Brasília” (ARAÚJO, 2005, p. 110).
Sendo assim, circularam várias notícias sobre o que teria acontecido com Vandré durante esse
intervalo de tempo, conforme nos relata a revista Vip Exame: “propagou-se que ele enlouquecera em
razão de torturas nos porões da repressão política. Circulou também a versão de que ele teria até
sofrido uma lavagem cerebral. E assim, como que lobotomizado, não conseguiria mais compor” (Vip
Exame, mar. 1995, p. 52). Uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo traz a negação desse fato já em seu
título, “Vandré nega tortura pelo regime militar”, e reproduz a justificativa do artista: “Eu não fui
torturado pela repressão. Mas a imprensa quis mitificar Vandré. Vandré seria uma invenção no período
agitado da vida cultural e política do meu país” (O Estado de S. Paulo, 01/02/1990). A imprensa, ciente
de que esses assuntos despertavam interesse, procurou obter respostas do compositor durante as
poucas entrevistas concedidas por ele, mas este se recusa a esclarecer a questão, irrita-se e, muitas vezes,
reclama da postura da imprensa. Exemplo disso é a resposta dada a esta pergunta da jornalista Brenda
4 Canção integrante do LP Benito di Paula gravado ao vivo – Copacabana. 1974 (Cf.: ARAÚJO, 2005, p. 423).
Fucuta: “Quando o senhor voltou, o que aconteceu exatamente? Especula-se que o senhor tenha sido
torturado” (Jornal do Brasil, 08/11/1994). Vandré aproveita a ocasião para criticar a imprensa: “O
sistema de informações que lida com estes conceitos é que é um terror, vive torturando as pessoas com
essas perguntas. A guerra entre meu ser brasileiro e as Forças Armadas nunca existiu [...]”. (Jornal do
Brasil, 08/11/1994).
O jornalista Thales Guaracy apresentou a seguinte fala com relação à notícia que se propagou,
relacionada à tortura física de Vandré: “Segundo o mito, Geraldo virou um mártir, como se para ser
vítima da ditadura, que em última análise destruiu sua vida, precisasse ainda passar pelo pau-de-arara”
(Vip Exame, mar. 1995, p. 54). Não se pode dizer, com certeza, que a ditadura destruiu sua vida, mas,
depois da promulgação do AI-5, Vandré não prosseguiu com sua carreira artística, o que representou a
“morte em vida” do artista. Se Vandré não se incomoda ou finge não se incomodar com isso, dizendo
que voltou a ser o advogado Geraldo Pedrosa, até hoje, essa volta à vida comum não foi aceita pela
imprensa, por escritores e outros formadores de opinião. Os anos passam e o fato continua pedindo
uma explicação, despertando interesses diversos e sendo especulado pela imprensa. É tamanha a
insistência em se fazer de Geraldo Vandré o “mártir da ditadura”, no campo da música, que podemos,
talvez, incluí-la entre as pressões psicológicas que o cantor teria sofrido no caminho de sua
desestruturação como artista.
Mas, como veremos a seguir, não é apenas a negativa em ser mártir da ditadura militar que
trouxe frustração. Em 1994, Vandré tornou pública uma composição que não correspondeu às
expectativas: “para desespero de seus grisalhos e engajados fãs, enfileirou-se com 200 cadetes da
Academia Militar de Pirassununga para apresentar [...] o poema sinfônico Fabiana composto em 1985
em ‘honra e louvor’ da Força Aérea Brasileira (FAB)” (O Estado de S. Paulo, 05/08/95).
sugeriam uma tentativa de levar Vandré a confirmar que sua relação com o poder fora bastante
significativa, como, por exemplo:
O ex-governador Abreu Sodré está preparando livro de memórias e nele conta que
você o visitou no Palácio dos Bandeirantes em 1º de maio de 1968. Que lhe foi
hipotecar solidariedade [...]. Isto aconteceu? [...] na qualidade de hóspede, dormiu nos
aposentos que, em novembro, seriam ocupados pela rainha Elizabeth, da Inglaterra
[...] você encontrou proteção no Palácio do Governo. [...] Mas você esteve no Palácio
Bandeirantes [...] na recepção à rainha Elizabeth, não? [...]. E passou uma temporada
no palácio? [...] E o governador Abreu Sodré o auxiliou no plano de retirada para levá-
lo ao exílio, no Uruguai? (O Estado de S. Paulo, 05/08/1995).
Pouco depois desses acontecimentos, fui procurado no Palácio dos Bandeirantes por
inúmeros jovens que vinham trazer a sua solidariedade. Entre eles, o compositor
Geraldo Vandré, cuja música Pra não dizer que não falei de flores [sic] acabara de obter um
sucesso estrondoso no III Festival Internacional da Canção. Por considerá-la
subversiva, o coronel Otávio Costa [sic] achou por bem exigir a prisão de seu autor.
Não tive dúvidas. Convidei Vandré a permanecer no Palácio dos Bandeirantes [...] Ele
aceitou de bom grado e lá permaneceu. Não foi um caso isolado. Várias outras
pessoas ameaçadas de prisão, embora nada tivessem feito para merecê-la, procuraram
e receberam abrigo no Palácio dos Bandeirantes. (SODRÉ, 1995, p. 158).
Como se vê, Sodré declara que, na época, sua proteção e oferta de abrigo, no Palácio dos
Bandeirantes, para pessoas ameaçadas de prisão, foi uma prática usual, mas a figura de Vandré e a
absoluta polarização política da época permitiram à imprensa gerar muita polêmica.
Em 1974, podemos observar outra tentativa, por parte da imprensa, de mostrar a relação de
Vandré com a direita política nacional, mas, agora, referindo-se ao seu relacionamento com os militares.
A matéria “O turismo de Vandré acabou na Delegacia de Mogi” registra o desentendimento entre o
cantor e um taxista em Mogi das Cruzes, porque o último se negou a fazer o estranho roteiro turístico
proposto por Vandré: “Queria dar umas voltas pela Central da Rádio-Patrulha e aos quartéis da cidade”
(Jornal da Tarde, 14/11/74). Na discussão, Vandré acabou por lhe dar uma cotovelada na barriga e,
como a polícia havia chegado ao local naquele momento, todos foram para a delegacia. Segundo a
matéria, após obter informações do DOPS, do DEIC5 e da Secretaria da Segurança Pública de São
Paulo de que Vandré não estava sendo “procurado”, acabaram por dispensá-lo. A matéria relata ainda
outros detalhes: que ele não quis dar informações para a imprensa e que, por se tratar de um “grande
nome da música nacional”, acabou sendo convidado para visitar a casa do delegado Murilo Pereira, do
5O DOPS era o Departamento de Ordem Política e Social, vinculado à Polícia Federal e, criado em 1924, era responsável
pelo controle e repressão política e também pela censura aos meios de comunicação, especialmente durante o regime
militar; ainda está em atividade, restrito ao nível estadual, em algumas unidades da federação. O DEIC é o Departamento
de Investigações sobre Crime Organizado, órgão da Polícia Civil do estado de São Paulo.
DOPS, e aceitou o convite. Como se vê, um acontecimento cotidiano de sua vida foi transformado em
matéria de jornal, de modo a salientar sua relação com a Polícia Militar.
No dia 16 de dezembro de 1987, no auditório da Biblioteca Mário de Andrade, foi apresentado
o recital A capitania de Wanmar, de autoria de Vandré. A revista IstoÉ registrou esse evento na matéria
“Reaparição erudita”. Essa publicação também não deixou de ressaltar aspectos que mostram sua
ligação com outro órgão das Forças Armadas, ao falar sobre uma peça do seu vestuário – “trajava uma
camiseta com o emblema da Marinha” (IstoÉ, 23/12/1987) – e ao encerrar o texto dizendo que “o
autor que outrora engajava platéias com o estribilho ‘Vem vamos embora’ plantou-se na porta para
impedir a entrada dos retardatários e, no final, saiu escoltado por quatro cadetes” (IstoÉ, 23/12/1987).
Observa-se, nessa expressão, uma nítida contraposição entre os “dois Geraldos”, o do passado,
cantando com a esquerda, o do presente, perfilando-se com a direita.
Mas foi sua participação no Concerto Sideral, evento integrante das comemorações da Semana
da Asa, promovido pelo Ministério da Aeronáutica, que, ao ser noticiada pela imprensa, gerou a maior
das polêmicas. Esse evento ocorreu no dia 20 de outubro de 1994, no Memorial da América Latina, e
contou com a apresentação de sua música “Fabiana”. As publicações da imprensa sobre o evento
também explicitaram a contraposição entre o mito da esquerda brasileira da década de 1960 e o amigo
dos militares, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Exemplo disso foi a publicação da matéria “Geraldo
Vandré homenageia Aeronáutica”, de Enor Paiano, no jornal O Estado de S. Paulo. Nela, toda a
programação da noite é anunciada, mas o grande destaque é a participação de Vandré: “O Concerto
Sideral [...] terá uma abertura inusitada: a música Fabiana [...] assinada por Geraldo Vandré. Isso mesmo.
O compositor que em 1969 precisou fugir do país, perseguido pelos militares [...] está cada vez mais
perto de seus antigos inimigos” (O Estado de S. Paulo, 20/10/1994). Sobre esse mesmo evento, é
relevante, também, a matéria “Marchando e cantando”, da jornalista Brenda Fucuta:
Não era uma canção de amor, não era uma platéia comum e não era o mesmo
Geraldo Vandré [...]. Fabiana, a primeira obra que apresenta desde Pra não dizer que não
falei de flores [sic] [...]. A cena no auditório do Memorial, com Vandré solenemente
postado diante de uma platéia de militares fazia lembrar o polêmico filme O porteiro da
noite [...], no qual a protagonista procura a companhia dos seus próprios algozes [...].
Foi quando se descobriu que um dos artistas mais odiados pelos militares na década
de 60 mantém há anos um estreito contato com a caserna (Jornal do Brasil,
08|11/1994).
Esse foi mais um episódio da vida de Vandré sobre o qual a imprensa soube especular.
da Anistia, foi publicada, a seu respeito, pela revista Veja, no dia 18 de abril de 1979, a matéria “Do
exílio”, em que o próprio título remete à questão que se fazia latente naquele momento, ou seja, era
preciso trazer à tona a questão dos exilados.
Em outubro de 1985, início do governo civil, acontece a reapresentação, no Colégio Pentágono,
da cidade de São Paulo, de seu auto religioso intitulado Paixão segundo Cristino, criado em 1968. Ao que
parece, o objetivo era reforçar a importância da liberdade conquistada com a Nova República e mostrar
todas as mazelas do período militar. A matéria “Cantando a antiga paixão”, da revista IstoÉ, do dia 16
de outubro de 1985, noticiou esse evento de forma a representá-lo como símbolo de resistência ao
autoritarismo militar.
O Jornal do Brasil do dia 3 de maio de 1998, em comemoração ao aniversário de 30 anos da
ocorrência do “Maio de 1968”, em Paris, publicou a reportagem “Protesto e convivências”. Seu texto
vem ilustrado com uma foto em que Vandré oferece, simbolicamente, o seu violão para a plateia do III
FIC; seu autor, o jornalista Tárik de Souza, refere-se à música “Caminhando” como o “pico da canção
de protesto”.
Ao se aproximar o aniversário de 20 anos de retorno do governo civil no Brasil, o jornal O
Estado de S. Paulo do dia 30 de janeiro de 2005 publicou a matéria “O que o país não pôde ver nem
ouvir, em 70 mil documentos”. O assunto diz respeito à abertura ao público do acervo da censura
prévia às produções culturais durante o regime militar. Sob o subtítulo “Nem ‘retratação’ de Vandré
escapou da tesoura”, a jornalista Luciana Nunes Leal ilustra a matéria citando a reprovação da música
“Pátria Amada, idolatrada, Salve, salve”.
A rememoração dos 40 anos da promulgação do AI-5 foi feita pelo jornal Estado de Minas do dia
13 de dezembro de 2008, através da publicação da matéria “Não tenho presidente”. Trata-se de uma
entrevista com o compositor em que se fala sobre as consequências do Ato para a sua vida,
evidenciando o entrelaçamento entre a sua história e a do país no período da ditadura militar.
Considerações finais
Pode-se dizer que as representações publicadas na mídia impressa brasileira tiveram como base
as atitudes do próprio artista, ou seja, Geraldo Vandré, ora calando-se, ora afirmando que Vandré
morrera, e abandonando a carreira artística, deu início à história da existência de “dois Geraldos”. A
imprensa, movida pelo desejo de vender o seu produto, apropriou-se dessa invenção. Ao que tudo
indica, essa postura da imprensa é uma tentativa de oferecer uma explicação para o “caso Geraldo
Vandré”, a fim de corresponder às expectativas de seus leitores. Mas o que aconteceu com Vandré
merece uma análise mais pormenorizada, pois parece ser resultado de vários fatores que precisam ser
considerados, entre os quais, a sua personalidade, que foge ao objeto de estudo das Ciências Sociais,
mas também de outros que interessam a esse campo de conhecimento, como, por exemplo, as
mudanças ocorridas no contexto cultural do Brasil nos anos de 1970, época do seu retorno do exílio,
bem como a forma como se deu a sua inserção no meio musical na década anterior.
Além disso, deve-se respeitar o direito de todo homem a calar-se diante de fatos que lhe diz
respeito e também de dar à sua vida o rumo que melhor lhe convier. Mas, ainda assim, principalmente
agora, com a proximidade do cinquentenário do Golpe Militar de 1964, é oportuno antecipar reflexões
acerca de suas consequências. Vandré é figura polêmica, enigmática e misteriosa, assim como
permanecem sendo os bastidores, ou “porões”, da ditadura militar, pois os crimes cometidos durante o
período não foram esclarecidos, não se sabe o que aconteceu com muitas de suas vítimas. O Brasil,
através da Lei da Anistia, não levou em conta a necessidade de que todos fossem responsabilizados por
seus crimes, tornando-se o único país latino-americano que vivenciou a experiência ditatorial das
décadas de 1960/70 em que os torturadores não foram julgados.
Sendo assim, parece válido encerrar este trabalho sobre Geraldo Vandré com uma fala do
compositor, inscrita na capa de seu LP Canto geral, de 1968, ainda muito atual: “os critérios de justiça do
mundo em que vivemos ainda estão muito longe de poder dar-nos uma certeza e uma garantia mínima
do que seja verdadeiramente justo ou injusto”.
Referências
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar. 5. ed. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
MELLO, Zuza Homem de. A Era dos Festivais: uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.
SILVEIRA, Dalva. Geraldo Vandré: a vida não se resume em festivais. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.
SODRÉ, Roberto de Abreu. No espelho do tempo: meio século de política. São Paulo: Best Seller, 1995.
VIDAL, Jeane. Vandré: tempo de repouso. 2007. 118f. Trabalho de Conclusão de Curso (Comunicação Social –
Jornalismo) – Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2007.
Periódicos citados
Vandré volta e é preso. Jornal do Brasil. Seção Cidade. 18/07/1973.
Geraldo Vandré volta ao Brasil, cheio de novas idéias e canções (sem política). Jornal da Tarde. Caderno Gente, p.
2. 22/08/1973.
O turismo de Vandré acabou na delegacia de Mogi. Jornal da Tarde. p. 11. 14/11/1974.
SILVA, Mylton Severiano da. Vandré pra quem quiser. Ex-. p. 29-31. jun. 1975.
SOLNIK, Alex. Ex-cantor não fala sobre seu passado: diz que já morreu! Repórter. n. 4. mar. 1978.
SOUZA, Tárik de. Do exílio. Veja. p. 103. 18/04/1979.
Vandré, agora cidadão paulistano. Folha de S. Paulo. 26/09/1980.
SOUZA, Okky de. Vandré espera acontecer. Veja. p. 84-85. 24/03/1982.
ECHEVERRIA, Regina. O crepúsculo de um ídolo. Folha de S. Paulo. 12/09/1985.
GLADSTONE, Alex. Cantando a antiga paixão. IstoÉ. p. 10. 16/10/1985.
Reaparição erudita. IstoÉ. p. 17. 23/12/1987.
Vandré nega tortura pelo regime militar. O Estado de S. Paulo. 01/02/1990.
Introdução
O
cenário político argentino tem sido polarizado, nos últimos anos, pela disputa ideológica
entre kirchneristas e os anti-K (termo usado pelo jornal Clarín para se referir à oposição).
O grupo Clarín, maior conglomerado de mídia argentina que edita o jornal Clarín, e o
governo de Néstor, primeiro, e Cristina Kirchner, depois, tem um histórico de relações complexas.
Declaradamente opositor ao governo, o grupo tem utilizado várias estratégias para minar a confiança da
opinião pública sobre o governo da atual presidente. Dentre as mais comuns, está o apelo à publicação
de matérias com denúncias de corrupção, improbidade, desmando e ineficiência, estratégias comuns no
jornalismo político. O inusitado, do ponto de vista editorial e político, é o jornal usar a imagem do
Brasil como país de economia forte e sistema político estável para confrontar o que o próprio Clarín
chama de “kirchnerismo”. Afinal, existe a percepção – mútua, aliás – de que Argentina e Brasil são,
ambiguamente, parceiros e rivais.
O jornal, deliberadamente, muda o foco dessa percepção, ao mostrar que o rival agora é o país a
ser copiado, e que a parceria pode ser comprometida graças às ações antipáticas do governo Kirchner
relativas ao comércio bilateral. Em meio a esse discurso brasilianófilo, é possível perceber a
intencionalidade latente: oferecer ao leitor uma comparação entre um país que, na construção
ideológica do jornal, “está dando certo” e outro que se afasta a cada dia da estabilidade e do
crescimento econômico e da confiança da comunidade internacional.
No artigo, que traz resultados iniciais de uma pesquisa empreendida pelo grupo Sociedade,
Integração Regional e Globalização, vinculado ao curso de Jornalismo da Universidade Federal do
Maranhão, traçamos um breve histórico da política argentina contemporânea, assim como uma análise
do relacionamento dos Kirchner com a imprensa, sem deixar de contemplar a aprovação da atual lei de
mídia do país e dos confrontos entre o grupo Clarín e o governo. A partir desse pano de fundo
contextual e estrutural, parte-se para uma análise conjuntural de reportagens e textos opinativos,
publicados entre 2011 e 2013, que tenham o Brasil como critério de noticiabilidade, atentando para o
1 Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília. Professora Assistente do curso de Jornalismo da Universidade
Federal do Maranhão. Email: lichangshuen@gmail.com
2 Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 570
valor-notícia “a maravilha que é o Brasil para os argentinos”. Esse valor-notícia tem sido recorrente nas
publicações sobre nosso país na imprensa argentina. Inclusive, tanto em telejornais da televisão aberta
quanto em noticiários dos canais de notícia 24 horas transmitidos via cabo é possível encontrar esse
tipo de enfoque, sintomático de uma realidade política fortemente polarizada entre governo e oposição
naquele país.
O objetivo da pesquisa é oferecer uma análise que possa vislumbrar o porquê de o Brasil passar
a constituir uma categoria comparativa positiva para um dos contendores na luta política argentina.
Uma hipótese é que a tendência a personalizar a ação político-governamental na imprensa portenha –
dando ênfase aos atores conjunturais e não ao complexo institucional – faz com que a luta entre os
grupos políticos precise incluir, no contexto específico do governo Cristina Kirchner, um fator externo
como forma de mobilização não apenas discursiva, mas principalmente ideológica. Afinal, a um dos
lados na contenda não bastaria mais apenas praticar o jornalismo de denúncia, elencando casos
irresolutos e repetidos de corrupção e escândalos, mas partir para uma confrontação na qual a realidade
do país é comparada com a de outro, com condições similares de partida e que conseguiu atingir, do
ponto de vista do jornal, uma maturidade política diferenciada, na figura de seus líderes, que o permitiu
lograr um patamar superior de estabilidade e desenvolvimento. A estratégia, então, seria mostrar que o
problema não são as instituições, mas quem as administra.
Discurso e poder
atingem o status de ‘senso comum’”. É a partir desta visão de que as ideologias estão embutidas no
discurso que é possível entender como o discurso e o poder estão relacionados. Dessa maneira, se a
ideologia está contida nas práticas de discurso, logo pode-se concluir que as significações dessas
práticas contribuem para o estabelecimento e propiciam para manter relações de poder. Concordando
com Fairclough (2001, p. 121): “Em princípio, as relações de poder podem ser afetadas pelas práticas
discursivas de qualquer tipo, mesmo as científicas e as teóricas.” Para estudar fenômenos como este e o
apresentado neste artigo, utiliza-se a Análise Crítica do Discurso no sentido de tentar esclarecer essas
ocorrências que afetam as relações sociais.
A nomenclatura Análise Crítica do Discurso surgiu pela primeira vez por intermédio do
britânico Norman Fairclough, da Universidade de Lancaster, que, com auxílio da publicação Language
and Power tornou a disciplina uma ciência crítica da linguagem. A Análise Crítica do Discurso tem
como objetivo, desde sua origem, contribuir para uma obtenção de consciência sobre os efeitos sociais
de textos como para mudanças sociais que superassem relações desiguais de poder (RESENDE, 2006).
A Análise do Discurso é responsável por um papel mediador que se constrói entre o homem e a
realidade que o cerca, seja esta natural ou social. A principal ocupação da Análise Discursiva repousa
sobre as relações de significação e re-significação e não com uma língua abstrata, mas sim com a
concretude de relacionamento com o mundo. O homem, seja enquanto sujeito ou membro de uma
sociedade, é levado em conta estando inserido em sua história.
O objeto de estudo em questão será refletido através do olhar da Análise Crítica do Discurso a
fim de que, por esse viés, seja possível perceber quais foram as relações discursivas que construíram o
conceito de “maravilha Brasil” tão desenhado nos discursos do jornal Clarín em contraposição ao
“desastre Kirchner”, evocado pelo mesmo jornal
Cristina Kirchner foi eleita para um primeiro mandato em 2007 (2007-2011) e, após a morte do
marido, de quem se tornou sucessora, reeleita para o período 2011-2015. O relacionamento entre o ex-
presidente Néstor Kirchner e a imprensa, em especial com o grupo Clarín, foi marcado por momentos
de tensão e distensão. Já no governo de Cristina, a tensão apenas aumentou, especialmente após a
edição do marco regulatório do sistema de radiodifusão. A lei n. 26.522/09 regulamenta os serviços de
comunicação audiovisual na Argentina e tem como objetivo declarado promover a desconcentração da
propriedade dos meios de comunicação naquele país. O grupo Clarín, que detém 237 licenças de
operação de tevê a cabo, nove emissoras de canais abertos, dez emissoras de rádio e o jornal impresso
de maior circulação do país, critica ferozmente a lei e tem conseguido vitórias parciais nos tribunais que
garantem a não desintegração do grupo como prevê a lei. Só o jornal Clarín detém 50% de participação
nas verbas publicitárias totais para o meio impresso em Buenos Aires.
Para o governo Kirchner, a lei é uma forma de democratizar o acesso aos meios de
comunicação no país. Para o Clarín, é uma forma de atacar e calar quem não concorda com o governo.
O acirramento dessas tensões tem marcado os últimos quatro anos da política argentina de tal forma
que uma leitura atenta do noticiário leva o leitor a imaginar uma situação de guerra ideológica declarada
em que o jornalismo assume um protagonismo exacerbado, seja a favor ou contra o governo. Nos
últimos quatro anos, o Clarín perdeu 60% da receita publicitária governamental, o que a empresa
credita a uma campanha de enfraquecimento e retaliação por seu posicionamento crítico.
O jornalismo argentino tem um perfil mais militante que o brasileiro (SHUEN, 2013), muito
mais opinativo que informativo. O jornalismo, é certo, nasceu opinativo – a interpretação do fato
ocupava mais espaço que o fato em si no berço do jornalismo moderno em todos os países ocidentais.
Até o século XIX, a grande matéria jornalística era a opinião impressa nas páginas de jornais caros,
lidos por poucos alfabetizados com capacidade financeira para investir em assinaturas, porque os
jornais não eram vendidos, eram assinados. Conforme nos ensina Pena (2005, p.41), “as reportagens
não escondiam a carga panfletária, defendendo as posições dos jornais (e de seus donos) sobre os mais
variados temas. As narrativas eram mais retóricas que informativas”.
A introdução da publicidade e com ela o barateamento dos jornais, ao lado da alfabetização em
massa nos países europeus durante os anos que se seguiram às revoluções Francesa e Industrial
contribuíram para o aumento da circulação e do consumo da informação. As classes populares
passaram a se interessar por jornais. Mais baratos, alguns chegando a custar poucos centavos, os jornais
necessitavam manter o interesse de seu público, sempre crescente. Foi então que o conceito de notícia,
tal como conhecemos hoje, foi forjado. A opinião passou a ser separada da informação. Nascia o
jornalismo contemporâneo (TRAQUINA, 2004).
A dinâmica do jornalismo e da própria sociedade no século XX levou a opinião para páginas e
formatos específicos dentro do jornal. Marques de Melo (2003) divide os gêneros jornalísticos em
informativo, opinativo, interpretativo, diversional e utilitário. No gênero opinativo encontramos o
editorial, o comentário, o artigo, a resenha, a caricatura, a carta, a crônica e a coluna, todos marcados
por forte independência em relação aos critérios de objetividade e imparcialidade que, teoricamente,
devem ser observados nas notícias. Afinal, opinar sobre algo é deixar aflorar toda a subjetividade
inerente ao sujeito que opina. Para marcar a separação entre fato e opinião, objetividade e subjetividade,
os jornais delimitam o espaço físico onde cada tipo de texto pode ser encontrado. A página de opinião
normalmente é a contra-capa do jornal.
A característica essencial do texto opinativo – aquela de oferecer um direcionamento
interpretativo e uma visão a ser defendida pela argumentação – não exclui desse tipo de texto sua faceta
informativa. Como salienta Marques de Melo (2003, p.74-75), “a expressão da opinião (...)
compreendida como mecanismo de direcionamento ideológico, corporifica-se nos processos
jornalísticos através da seleção das incidências observadas no organismo social e que atendem às
características de atual e de novo”. Dessa forma, a opinião nunca está desatrelada dos fatos. O jornal
não opina simplesmente. Ele informa, interpreta e oferece sua perspectiva para avaliação do leitor. No
caso do Clarín, essa separação entre informação e opinião nem sempre fica clara: mesmo textos
informativos, como os analisados neste trabalho, têm uma forte carga opinativa. O enfoque dado a cada
informação, com viés de crítica a seu governo escondida por trás do reconhecimento do sucesso
brasileiro, transforma a notícia das páginas do jornal em editoriais em formato noticioso. Garante-se,
assim, a aparência de imparcialidade e objetividade ao mesmo tempo em que o discurso praticado
implica uma contestação constante ao “kirchnerismo”.
Cabe, no entanto, ressaltar que a perspectiva oferecida ao leitor em geral encontra ressonância
justamente por ser algo próximo daquilo que o público de certa forma já acredita. O jornal, afinal, fala
para o seu público e o conhece. Por mais que a mensagem seja universal e que qualquer pessoa possa
adquirir um exemplar na banca mais próxima, o jornal fala para um público específico, mesmo que não
reconheça tal fato. O público leitor do Clarín não é apenas de oposicionistas, porém. Por ser o maior e
mais influente jornal portenho, kirchneristas e anti-K se encontram nas páginas do impresso, mesmo
que a partir de perspectivas diferentes.
Para elaborar seu discurso, informar e formar opiniões, a imprensa precisa selecionar fatos e
angulações para oferecer sua versão sobre o cotidiano e tecer suas observações sobre o mundo
representável. Conforme Marques de Melo (2003, p.75),
[...] a seleção da informação a ser divulgada através dos veículos jornalísticos é o
principal instrumento de que dispõe a instituição (empresa) para expressar a sua
opinião. É através da seleção que se aplica na prática a linha editorial. A seleção
significa, portanto, a ótica através da qual a empresa vê o mundo.
O Brasil disputa, mesmo implicitamente, a hegemonia com a Argentina, país que detém uma
grande influência na região platina. Historicamente, Argentina e Brasil já protagonizaram momentos de
crise aguda e desconfiança mútua em razão da própria constituição lingüístico-cultural e sócio-
econômica das suas sociedades, assim como dos modelos, nem sempre coincidentes, de inserção na
sociedade e economia internacionais (Bandeira: 2003; Fausto: 2004; Cervo: 2008). Torna-se, nesse
contexto, curiosa a abordagem de um jornal argentino promovendo o Brasil à categoria de país a ser
imitado, cujo sucesso deveria inspirar o governo. A chave ideológica aqui analisada é “a maravilha que o
Brasil é para nós, argentinos”. Dado o fato de a pesquisa ainda estar em andamento e dada a limitação
de espaço, analisaremos um corpus reduzido neste artigo, contemplando notícias publicadas entre
janeiro e abril de 2012.
A economia é a principal trincheira de atuação do discurso do Clarín nesse sentido, mas a
política também aparece de maneira contundente nas páginas do jornal, especialmente quando o tema é
o tratamento dado à corrupção, aqui e lá. No auge da crise ministerial enfrentada por Dilma Roussef,
em 2011-2012, a Argentina passava por problemas envolvendo o alto escalão do governo em casos de
corrupção. Para o Clarín, no entanto, Dilma – e portanto o Brasil – enfrentam a corrupção de forma
contundente, enquanto Cristina Kirchner fechava os olhos aos problemas causados por seus assessores.
Reportagem publicada no dia 11 de março de 2012, intitulada “Roussef echó a otro ministro”, o jornal faz
um elogio ao país e uma crítica velada ao seu próprio governo com uma construção discursiva simples,
porém eficaz no efeito de criar uma agenda de ação a ser imitada. Diz o texto:
La presidente brasileña Dilma Rousseff demostró que no tiene reparos ni dudas a la hora de tomar decisiones con
respecto a su Gabinete. En algo más de un año y dos meses de gobierno ya reemplazó a 12 ministros, la
mitad de ellos por corrupción . Este fin de semana destituyó a otro: Alfonso Florence, titular de
Desarrollo Agrario. En este caso, según la prensa local, la mandataria “estaba descontenta con el bajo
rendimiento” que tenía.
Ao destacar que a nossa presidente “não tem dúvidas ou reservas” para tomar decisões, o jornal
lembra que o mesmo não acontece no governo argentino. E não precisa dizer isso textualmente, porque
além desse texto contundente, a edição do jornal está repleta de notícias sobre corrupção não
investigada envolvendo os aliados de Kirchner. A construção de sentidos no jornalismo é uma simbiose
entre o dito e o não-dito. E o que não é dito muitas vezes é mais contundente do que aquilo que é dito.
É o contexto discursivo que dá forma ao sentido implícito na notícia.
Outro tema recorrente na imprensa argentina é a quebra de contrato por parte de governos
latinoamericanos em relação às empresas estrangeiras de energia. Em edição de 25 de abril de 2012, o
jornal publicou matéria intitulada “La presidenta de Petrobras llama a invertir en Brasil: "No
romperemos contratos como sucede en otros países”. O lead (primeiro parágrafo) da matéria diz
textualmente:
La presidente de Petrobras, María das Graças Foster, marcó hoy diferencias con la política energética de la
Argentina al asegurar, ante el Congreso de Brasil, que la empresa no romperá contratos "como sucede en otros
países".
O jornal lembrou que a Argentina fez alterações recentes em sua legislação energética, que
permite a nacionalização de ativos de empresas estrangeiras instaladas em seu país, reforçando a
atuação da estatal YPF. A editoria de Economia, aliás, está sempre repleta de comparações entre o
desempenho econômico do Brasil e da Argentina. Em 24 de abril, o jornal publicou notícia
comparando a projeção de crescimento para 2012 nos dois países – com tendência de crescimento
maior para o Brasil. Para o jornal, que cita dados de um relatório sobre a economia na região, um dos
maiores problemas enfrentados pelo país para alavancar o crescimento é a política cambial adotada pelo
governo. Nas palavras do jornal:
La publicación sostuvo que una de las grandes incógnitas de la economía argentina será lo que sucede con el tipo
de cambio: si el kirchnerismo dejará que se incremente la cotización para poder ganar más competitividad o si
avalará la existencia de un tipo de cambio desdoblado. “En nuestra opinión, los mayores riesgos no son
económicos, sino interpretaciones políticas erróneas y malas gestiones políticas”, agregó el informe, que citó como
ejemplo las medidas que anunció el Gobierno a fines del año pasado para controlar el tipo de cambio. En lugar
de incrementar la tasa de interés en algunos puntos o en dejar que el billete verde suba un par de centavos,
implementó nuevos mecanismos para la compra de divisas que perjudicaron principalmente a los pequeños y
medianos ahorristas, y no a los grandes jugadores que manejan los hilos del sistema financiero. La economía
chilena seguirá durante este año el mismo recorrido que la Argentina. La tendencia de Brasil será diferente. El
gigante del Mercosur creció en 2011 2,7% y este año el alza sería del 3,2% por el crecimiento de la demanda
interna, las inversiones por el Mundial del 2014 y las Olimpiadas del 2016 y las que realice Petrobrás.
O jornal critica, também, o que identifica como dependência da economia argentina à brasileira
em notícia sobre a redução do ritmo de nosso crescimento. O título da notícia de 8 de abril de 2012 é
representativo da crítica do Clarín a essa suposta dependência: “Un Brasil menos pujante enfría a
Argentina”.
Outra estratégia do jornal é comprar as duas presidentes. Em nota de 18 de abril de 2012 o
jornal informa que Dilma Roussef foi eleita pela revista Times como uma das cem personalidades mais
influentes do mundo e escreve que “Cristina se quedó afuera”. Ainda na linha de comparação de estilos,
o jornal usa a edição de 15 de janeiro de 2012 para noticiar que “Nos Estados Unidos e no Brasil, a
saúde do presidente não é nenhum segredo”, ao criticar a falta de informações oficiais sobre a saúde de
Cristina Kirchner. A mandatária realizou uma cirurgia para retirada de um tumor na tireóide, suspeito
de ser maligno. Para o jornal:
La pasión del kirchnerismo por el secretismo parece haberle jugado esta vez una mala pasada. El 27 de
diciembre, el vocero presidencial, Alfredo Soccimarro, anunció en un escueto comunicado que a la Presidenta “se
le detectó la existencia de un carcinoma papilar”. Categórico, definitivo, unidireccional, no hubo lugar para
preguntas al vocero ni a los médicos de Cristina Kirchner. La Casa Rosada exigió reserva absoluta también al
Hospital Austral y los periodistas debieron recurrir a otros médicos y a fuentes off the record del entorno
presidencial en busca de precisiones.
Comparar estilos pessoais é uma estratégia que agrega, ao contexto econômico e político, uma
postura de contestação global ao governo Kirchner, ora com críticas veladas, ora com críticas mais
explícitas. “A Maravilha Brasil” desponta como uma característica constituinte do discurso jornalístico
do maior jornal portenho e aponta para uma tendência de aprofundamento e de agudização da crise
entre jornalismo e governo na Argentina.
Analisando criticamente o discurso global que ecoa dos textos aqui citados, percebemos que
texto, contexto e prática discursiva se articulam de modo a transformar a página do jornal em um
espaço de contestação, não de debate sobre os problemas que a Argentina e seu governo enfrentam. A
postura é de contestação e de provocação. Construir uma crítica tendo o sucesso de outra entidade – no
caso, o Brasil – como referência é uma arma discursiva de consequências grandes. Cria-se,
discursivamente, a impressão de que tudo o que a Argentina precisa fazer é trocar a mandatária por
alguém que aproxime as práticas econômicas e políticas do país àquelas brasileiras.
Considerações finais
Entre janeiro e abril de 2012, o Brasil foi citado em 120 notícias na editoria de Economia. Isso
nos dá uma pista de como este referente é importante para o jornal em sua luta ideológica contra o
governo Kirchner. A pesquisa está agora em fase de catalogação e análise desses textos (e do ano
anterior) para confirmação da hipótese de que a chave ideológica “maravilha Brasil” é uma construção
simbólica destinada não a exaltar o nosso país, mas a imprimir ao leitor a ideia de que a Argentina não
“dá certo” devido ao estilo de governo adotado pelo chamado kirchnerismo, em um ataque ideológico
ao que o jornal classifica de populismo K.
Os textos aqui referidos são uma amostra de que o jornal Clarín adota uma estratégia de
confrontação não tradicional no jornalismo político: afinal, apenas denunciar o que o jornal acredita
serem medidas erradas por parte do governo não agrega credibilidade à oposição. O “denuncismo” está
dando lugar a uma outra abordagem: a promoção de um modelo a ser seguido. O Brasil tem sido esse
modelo para o jornal.
Referências
BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Conflito e Integração na América do Sul. Brasil, Argentina e Estados Unidos: da
Tríplice Aliança ao Mercosul. 2ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
CERVO, Amado Luiz. Inserção internacional: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008.
CORRÊA, Luiz Felipe de Seixas. Mercosul: a visão estratégica brasileira do processo de integração. Mimeo, s/d.
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e Mudança Social. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.
FAUSTO, Boris, DEVOTO, Fernando J. Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002). São
Paulo: Editora 34, 2004.
MELO, José Marques de. Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3ed. Campos do
Jordão: Mantiqueira,2003.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: princípios e procedimentos, Campinas. SP. Pontes, 6ª edição, 2005
RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
RESENDE, Viviane de Melo; RAMALHO, Viviane. Análise do discurso crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Vol. 1. Florianópolis: Insular, 2004.
Introdução
J á nos anos 1944, Karl Polanyi (2000) evidenciou as profundas mudanças pelas quais a sociedade
passava a partir dos anos 1920. Atualmente, pode-se falar de outra “grande transformação” em que
as tecnologias digitais assumiram inegável importância. Cada vez mais presente na vida social e
pessoal dos indivíduos, as constantes e significativas mudanças tecnológicas proporcionaram uma
grande revolução não só nos modos de produção mas também no comportamento, na cultura e na
maneira como interagimos com o mundo.
Neste contexto, após o início da informatização da sociedade na década de 70 e da
popularização da internet nos anos 1980-1990, as novas tecnologias da informação e comunicação se
efetivaram como um meio que articula inúmeras oportunidades e potencialidades ao modificar as
formas de organização humana e ao possibilitar um intenso processo de desconstrução e reconstrução.
É a expansão das TICs e, consequentemente, de seus recursos interativos que deu origem a uma nova
forma de sociedade “constituída por redes em todas as dimensões fundamentais da organização e da
prática social” (CASTELLS, 1999).
Essas inovações tecnológicas foram capazes de encurtar a distância efetiva entre as pessoas,
aproximando-as e dando a impressão de que vivemos em uma grande aldeia marcada por novos e mais
modernos processos de comunicação. A consolidação das TICs trouxe significativos impactos tanto
para as interações privadas como para as atividades do mercado globalizado que já não encontra
barreiras nas fronteiras geograficamente definidas.
Na era da globalização e para além do fordismo, da análise do capitalismo contemporâneo,
pode-se afirmar conforme Chesnais et al (2003) que estamos diante de uma nova fase do capitalismo,
cujo os principais aspectos ainda conforme estes autores são: “mudanças técnicas, rentabilidade do
capital e crescimento, poder da finança, papel do Estado; financeirização, bolha especulativa e capital
fictício; imperialismo e hegemonia dos Estados Unidos e superação da crise, ameaças de crise”.
Com esse entendimento, para um grupo de teóricos da sociedade pós-industrial, esse cenário
marcado pela relevância e impactos causados pelas novas tecnologias e pelo advento desse novo
capitalismo redunda na chegada do capitalismo do futuro ou do capitalismo cognitivo (FARIAS, 2003),
em que assumem papel de destaque as TICs, e consequentemente, um novo tipo de trabalho, o
imaterial.
Em linhas gerais,
Governo eletrônico
De acordo com Dujisin; Vigón (2004) o conceito de e-Gov começou a ser utilizado na segunda
metade dos anos 90 para dar conta das transformações ocasionadas pela incorporação das TICs nas
instituições públicas e como uma forte tendência internacional. Foi nesse sentido que os aspectos
essenciais que envolvem o governo eletrônico foram estabelecidos mundialmente pela Cúpula das
Nações Unidas sobre a Sociedade da Informação2, realizada em Genebra, Suíça, em 2003. Os princípios
fundamentais delineados na Declaração de Princípios foram traduzidos no Plano de Ação, que consta que
uma das aplicações das TICs deve ser voltada para o e-Gov. Em termos gerais e segundo o documento,
o governo eletrônico significa “implementar estratégias de governo eletrônico com foco em aplicações
que visam inovar e promover a transparência na administração pública e nos processos democráticos,
melhorando a eficiência e reforçando as relações com os cidadãos”3.
Dessa forma, o objetivo é que os governos formulem ações nacionais que compreendam
estratégias de governo eletrônico, para que a administração pública se torne mais transparente, eficaz e
democrática. Lemos (2007, p. 107) afirma que
As diretrizes básicas para o E-Gov em todo mundo podem se resumir a: promoção da
informatização da administração pública e do uso de padrões nos seus sistemas
aplicativos; concepção, prototipagem e fomento a aplicações em serviços do governo,
especialmente os que envolvem ampla disseminação de informação; fomento à
capacitação em gestão de tecnologia de informação e comunicação na administração
pública.
De acordo com Possamai (2011), diante a existência do governo eletrônico é possível identificar
suas três principais dimensões, a saber: os serviços eletrônicos (e-serviços), a participação eletrônica (e-
participação) e a administração eletrônica (e-administração).
Os e-serviços envolvem a prestação (total ou parcial) de serviços público através de
meios eletrônicos, como páginas na web, SMS, aplicativos de smartphones, aplicativos
de TV digital, quiosques eletrônicos, entre outros. A e-participação compreende o
emprego das TIC com vistas a ampliar a transparência das atividades governamentais,
bem como a possibilitar a participação da sociedade na elaboração de políticas
públicas [...]. Já a e-administração refere-se ao uso das TIC para apoiar a realização de
processos que sustentam as áreas finalísticas dos governos, envolvendo não só a
automatização de tarefas rotineiras em sistemas de informação, mas a reengenharia de
processos de governo a partir das possibilidades das TICs, de maneira a eliminar
etapas desnecessárias, dinamizar o processo e torná-lo mais eficaz (POSSAMAI, 2011,
p. 05).
A autora conclui que diante o debate sobre a reforma do Estado e de seu aparelho é possível
perceber que as estratégias de governo eletrônico “vêm a atender tanto as demandas por modernização,
quanto por democratização” (Ibid., p. 05). Neste caso, a modernização estaria relacionada diretamente à
reengenharia dos processos de governo, por meio da e-administração, e na democratização os governos
2 Com o objetivo de tratar das potencialidades e desafios das novas tecnologias de informação, a resolução da Assembleia
Geral das Nações Unidas 56/183 (21 de dezembro 2001) aprovou a realização da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da
Informação em duas fases. A primeira fase foi realizada em Genebra de 10 a 12 Dezembro de 2003 e a segunda fase
ocorreu em Tunis, de 16 a 18 Novembro de 2005.
3 Disponível em: <http://www.itu.int/wsis/docs/geneva/official/poa.html>. Acesso em: 11 set. 2013.
podem fazer uso das TICs para quatro finalidades principais: a prestação de serviços e informações à
comunidade; o apoio na organização de movimentos sociais e formação de redes na sociedade civil; a
implementação de mecanismos de democracia eletrônica; e a democratização do acesso à comunicação
eletrônica (EISENBERG, .1999).
Destarte, o uso político das novas tecnologias e em especial da internet se deu frente ao número
crescente de acesso à rede4 e também da expansão do e-Gov no mundo. Porém, mesmo com o
potencial de promover interação, de aproximar cidadão e governo por meio de um canal bidirecional,
de democratizar informações e de transformar a administração pública, o e-Gov acaba por seguir os
preceitos da cartinha neoliberal de “reinvenção" do Estado, como aponta Martinuzzo (2009, online)
O foco vai para a prestação de serviços e para a informação, geralmente de cunho
propagandístico, além da diminuição dos custos da máquina pública. [...] Além do
perigo de se reduzir a ação político-governamental a uma mera prestadora de
serviços, inclusive a partir de decisões alheias à participação social, com forte
enfoque técnico, deve-se estar atento aos efeitos colaterais da instrumentalização do
Estado em função de cidadãos-clientes.
Cabe aqui ressaltar, que tais usos do e-Gov vão de acordo com a estratégia de reengenharia
estatal patrocinada pelo capitalismo neoliberal no intuito de colaborar com a hegemonia das classes
dominantes imersa na ideologia da sociedade do trabalho e do mercado livre e eterno.
A Organização das Nações Unidas por meio do relatório intitulado United Nations e-Government
Survey5, se propõe a analisar o desenvolvimento do e-Gov no mundo ao assumir o discurso de que “as
novas e as poderosas tecnologias podem ser utilizadas para promover o desenvolvimento sustentável
para todas as pessoas ao redor do mundo”. Em relação aos países que consolidaram a formação do
Mercado Comum do Sul - Mercosul, quais sejam, Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, o relatório
correspondente a 2012 aponta o índice de desenvolvimento do e-gov na América do Sul, liderado pelo
Uruguai, seguido pela Argentina, Brasil e por fim Paraguai.
4 Segundo dados do website Internet World Stats, em junho de 2012, havia 2,4 bilhões de internautas no mundo, o que
representa 34,3% da população mundial. Na América do Sul 48,8% da população tem acesso à internet, e no Brasil o
número de internautas é de 88 milhões, ou seja, 45,6% da população. Disponível em:
<http://www.internetworldstats.com/>. Acesso em 11 set. 2013.
5 Disponível em: <http://unpan1.un.org/intradoc/groups/public/documents/un/unpan048065.pdf>. Acesso em: 25 set.
2013.
No Brasil, as políticas de governo eletrônico surgiram no ano 2000, quando foi criado um
Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de examinar e propor políticas, diretrizes e normas
relacionadas às novas formas eletrônicas de interação. Hoje, tais ações são desenvolvidas pelo
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.
De acordo com Martinuzzo (2008) foi no final dos anos 90 que as discussões sobre a sociedade
da informação se tornaram ainda mais eminentes, o que fez com que o governo Fernando Henrique
Cardoso institucionalizasse uma política de governo eletrônico para o país, essencialmente assentada em
bases neoliberais de reforma do Estado e atendimento a cidadãos/clientes.
Em 2003, quando do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, as políticas de governo
eletrônico ganharam uma nova reformulação discursiva e uma mudança nas suas diretrizes, como
consta nas Diretrizes de Governo Eletrônico, estabelecidas em maio de 2004. “Na sua primeira versão,
falava-se do e-Gov no contexto de uma nova sociedade em face da globalização, aqui se fala de e-
governo em uma sociedade com velhos problemas, como exclusão social, desigualdade e miséria”,
conclui Martinuzzo (2008).
Atualmente, o governo brasileiro adota uma política de e-Gov fundamentada em um conjunto
de diretrizes que levam em consideração a atuação junto ao cidadão, a melhoria da sua própria gestão
interna e a integração com parceiros e fornecedores, sendo que
O que se pretende com o Programa de Governo Eletrônico brasileiro é a
transformação das relações do Governo com os cidadãos, empresas e também entre
os órgãos do próprio governo de forma a aprimorar a qualidade dos serviços
A década de 1970 ficou marcada pela crise do modelo estatal que esteve diretamente associada
ao papel exercido pelo Estado e ao processo de globalização. Decorrente da falência dos modelos
implementados nos anos 50, quando se consolidou a perspectiva do Estado “com um papel estratégico
na promoção do progresso técnico e da acumulação do capital, com a responsabilidade de garantia da
distribuição de renda” (CHAHIN, 2004, p. 10), tal crise se manifestou na crise fiscal, no esgotamento
das formas de intervenção praticadas e na obsolescência da administração pública burocrática.
Na América Latina, a crise dos anos 80 fez com que esta ficasse conhecida como a década
perdida, em que a crise da dívida, somada ao descontrole das contas públicas e da inflação, levou à
estagnação econômica e ao aprofundamento das graves fissuras sociais existentes (POSSAMAI, 2011).
Frente a isto, diversos foram os diagnósticos dados à crise com propostas de reforma que variaram de
acordo com a linha ideológica, seja pela direita neoliberal apontando para a reestruturação do papel do
Estado, bem como da sua desconcentração e descentralização, seja pelo campo da esquerda em
ascensão.
Assim, analisando a implementação do governo eletrônico na América Latina, para Dujisin;
Vigón (2004, p. 17) é a partir dos anos 80 que começa a ser conhecida uma “nova gestão pública”
alicerçada na “mudança de ênfase do político para o gerencial, na descentralização, na redução de
custos e na flexibilização laboral”. Nos anos 90, os países latino-americanos foram submetidos à
cartilha do Consenso de Washington, que prescrevia políticas e reformas para que os Estados
funcionassem como espaços de fluxos para o capital transnacional, ou seja, com vistas a chamada
modernização do Estado.
É justamente inserido nesse contexto, que na segunda metade da década de 90 o governo
eletrônico ganha força e entra definitivamente nas agendas políticas com um caráter
Sendo um tema cuja centralidade não é nem casual e nem espontâneo (Dujisin; Vigón, 2004), o
governo eletrônico se inseriu em um meio marcado pela globalização econômica e sua pressão por
competitividade, além de ser diretamente relacionado à inércia e à reflexão global sobre o papel do
Estado. Destaca-se neste processo que “os governos que não são capazes de usar massiva e
estrategicamente tecnologias que lhes outorguem vantagens competitivas estão condenados a ser
perdedores”, como afirma Larraín (2004 apud MARTINUZZO, 2006, p. 147).
Assim, a aplicação do e-Gov pelo Estado não se dá de forma desinteressada e com intuito de
melhorar a prestação de serviços públicos para a população, mas sim se tornaram responsáveis pela
transmissão e inculcação da ideologia dominante, gerando duas tendências opostas, “uma social e
economicamente includente e outra social e economicamente excludente”, uma vez que a utilização das
“tecnologias não são neutras, mas podem ser reconfiguradas para gerar mais concentração ou mais
dispersão de riqueza e poder” (SILVEIRA, 2004, p. 97).
Partindo do pressuposto de que quem detém a comunicação, neste caso dos meios de
comunicação de massa digitais, detém o poder, o que se percebe é uma verdade parcial, alicerçada em
evidências e interesses partidários e classistas, e como consequência disto, a comunicação e a
informação recebida se transformam em expressões da relação de poder que daí decorrem. Guareschi
(1991, p. 19) aponta que “a posse da comunicação e da informação tornaram-se instrumento
privilegiado de dominação”, o que é possível depreender a partir da apropriação dos meios eletrônicos
como estratégia político-governamental e em favor do mercado.
Isto posto e com o entendimento de que “a ideologia está presente em qualquer programa
político e é uma característica de qualquer movimento político organizado” (THOMPSON, 2009, p.
14), a aplicação das TICs corresponderam aos intentos e uma solução efetiva às medidas neoliberais de
cortes de custos, estruturas, atribuições e pessoal para aumentar a eficácia e resolutividade do Estado. O
que de fato o programa neoliberal prega é um governo ajustado a sua causa, intervencionista, a favor do
mercado e da financeirização.
Segundo Farias (2001), na nova era do capitalismo pós-moderno e levando em consideração o
mito do mercado livre e eterno, percebe-se que a intromissão do Estado passou a ser um simples ator
das atividades mercantis, encarregado das funções de repressão e controle em detrimento da regulação
e do disciplinamento antes exercido. A intervenção do Estado está cada vez mais ligada aos interesses
mercantis e ele passa, assim, a cumprir seu papel de mediador ao participar “da resolução das
contradições entre os indivíduos mercantis simples, bem como entre capitalistas e trabalhadores
assalariados” (Ibid., p. 40).
Utilizando-se da tradição marxista, Althusser (1985, p. 62) esclarece que o Estado é concebido
como um aparelho repressivo, em que “o Estado é uma ‘máquina’ de repressão que permite às classes
dominantes assegurar a sua dominação sobre a classe operária”. Neste sentido, o autor faz a distinção
entre os Aparelhos Repressivos do Estado, que funcionam por meio da violência (polícia, tribunais,
prisões, etc), e os Aparelhos Ideológicos do Estado que funcionam com base nas ideologias.
Para Althusser (1985), os Aparelhos Ideológicos são múltiplos e são meios utilizados pelo
Estado para garantir a reprodução das relações de exploração capitalista através da disseminação
contínua da ideologia da classe dominante. Considera-se assim, mediante a classificação do autor, que
tais aparelhos ideológicos abrangem as igrejas, as escolas, a família, o sistema legal, o sistema político, os
sindicatos, o sistema de comunicação de massa e as atividades culturais. Aqui, as instituições da
comunicação de massa são, comumente, vistas como um mecanismo ou como um feixe de mecanismos
que corroboram com a ideologia do Estado e a compartilha e dissemina, como forma de manter seu
próprio poder.
A reprodução e difusão da ideologia dominante é uma das tarefas do estado, ou das
agências particulares e dos oficiais do estado. Ao desempenhar essa tarefa, o estado
age de acordo com os interesses de longo prazo da classe ou das classes que mais se
beneficiam das relações sociais existentes – isto é, ele age de acordo com os interesses
de longo prazo da classe ou das classes dominantes (THOMPSON, 2009, p. 117-118).
Dessa forma, é possível depreender que o papel e a natureza dos meios de comunicação de
massa, incluindo neste segmento as novas tecnologias da informação e comunicação, são caraterizadas
por essa ótica ao ser empregado como parte do sistema dos aparelhos ideológicos do estado.
Thompson (Ibid., p. 127) conclui que é por meio dessas instituições da comunicação de massa que a
“ideologia da classe dominante se concretiza e a reprodução das relações de produção é garantida”.
Ainda de acordo com o referido autor, as ideologias têm uma função mobilizadora e
legitimadora, e o desenvolvimento da comunicação de massa proporciona o aumento significativo do
raio de operação destas nas sociedades modernas, uma vez que “possibilita que as formas simbólicas
sejam transmitidas para audiências extensas e potencialmente amplas que estão dispersas no tempo e no
espaço”. Em relação aos meios eletrônicos, o autor conclui que eles
[...] possibilitam às formas simbólicas circularem numa escala sem precedentes,
alcançarem vastas audiências, invadirem o espaço de uma maneira mais ou menos
simultânea. Nunca, anteriormente, a capacidade de circulação das formas simbólicas
foi tão grande como na era da comunicação de massa mediada eletronicamente (Ibid.,
p. 344).
de mais alto valor, de reduzir as distâncias do mercado mundial e de virtualizar as relações humanas, fez
com que estes se efetivassem como um aparelho que para além de qualquer aspecto positivo que possa
haver, atua fundamentalmente pautado na ideologia das classes dominantes.
Considerações finais
Referências
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 2 ed. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1985.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Vol I. 14ª reimpressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
CHAIN, Ali, et al. E-gov.br: a próxima revolução brasileira. São Paulo: Prentice Hall, 2004.
CHESNAIS, François, et al. Uma nova fase do capitalismo? São Paulo: Xamã, 2003. (Seminário marxista: questões
contemporâneas).
DUJISIN, Rodrigo Araya; VIGÓN, Miguel A. Porrúa. América Latina Puntogob: casos y tendencias en gobierno
electrónico. Santiago (Chile): FLACSO, 2004.
EISENBERG, J. Internet Popular e Democracia nas Cidades. In: Revista IP –Internet Pública, Belo Horizonte, n. 1,
p. 7-24, jun. 1999.
FARIAS, Flávio Bezerra de. O Estado capitalista contemporâneo: para a crítica das visões regulacionistas. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2001.
______________. A Economia Política do Financeiro. Revista de Políticas Públicas, v. 7, n. 2, pp. 141-174, jul./dez.
2003.
GUARESCHI, Pedrinho A. (coord.), et al. Comunicação e controle social. Petrópolis: Editora Vozes, 1991.
Resumo
C
onceitua e caracteriza comunicação pública, apresenta seus princípios básicos e funções, e
relaciona-a aos conceitos de democracia e cidadania. Define e caracteriza o ciberespaço,
aborda as potencialidades deste meio de comunicação para as práticas democráticas,
chegando ao conceito de ciberdemocracia. Aborda as novas possibilidades apresentadas pela Internet
quanto à relação entre Estado e sociedade civil, considerando as redes sociais na Internet como
principais ferramentas neste novo cenário. Mostra como (e se) ocorre a apropriação destes espaços
comunicacionais pelo poder público e cidadãos no Tocantins, verificando se esta apropriação atende
aos princípios da comunicação pública. Através de visitas aos sites oficiais de três órgãos públicos,
sendo um representante de cada poder (Executivo, Legislativo e Judiciário), verifica se estas instituições
utilizam as redes sociais como ferramenta de comunicação pública e o tipo de interação apresentada.
Resumo
A
o longo da história política brasileira a população já protagonizou momentos decisivos no
país com grande repercussão midiática. Entretanto, pela primeira vez, as manifestações que
se espalharam pelo Brasil, tiveram o seu início nas redes sociais e não foram organizados por
partidos políticos ou sindicatos. O estopim da crise foi em São Paulo em razão do aumento da
passagem de ônibus se desdobrando em outras reivindicações como os gastos públicos com a
organização da Copa do Mundo, repúdio aos escândalos protagonizados pelos representantes políticos
até a reforma política. No primeiro momento, a mídia tratou as manifestações de maneira supérflua
atribuídas a um pequeno grupo de vândalos. Objetivou-se, pois, nesse artigo, analisar as manchetes de
capa de três jornais impressos de grande veiculação, a Folha de São Paulo, o Estadão e o Correio
Brasiliense e de dois estrangeiros, o Clarín (Argentina) e El Mercurio (Chile) dos dias 15,21 e
27/06/2013 sobre o foco deste evento no Brasil.
Resumo
N
esse trabalho articulamos análises políticas e antropológicas. Na primeira parte propomos
uma análise antropológica da necessidade das pessoas em constantemente obter novas
informações para o estabelecimento e a manutenção das relações sociais, posto que as
relações sociais deixariam de ser atrativas se as conversas tiverem sempre o mesmo conteúdo. A partir
disso, discutimos a mídia, focando principalmente nas questões políticas, como fonte das novas
informações, necessárias ao convívio social, e como promotora de excitações sociais. Na segunda etapa
do trabalho, a partir do campo da Ciência Política, propomos uma discussão do papel da mídia nos
regimes democráticos e, usando dados de surveys variados, objetivamos analisar a percepção das
populações do Mercosul sobre as mídias que eles consomem e como as questões políticas veiculadas
nas mídias influenciam no maior ou menor apoio das populações a democracia dos seus respectivos
países.
Identidade e Direitos na
América do Sul
ARTIGOS
As jornadas de junho no Brasil: novos atores
políticos e reforma política
Aloisio Krohling1
Moara Ferreira Lacerda2
Introdução
M
uito se está escrevendo e debatendo sobre as recentes manifestações de ruas no Brasil.
Alguns cientistas políticos se perguntam se não seria uma rebelião dos cidadãos não
representados ou uma crise da legitimidade do modelo da democracia representativa em
vigor. Como implantar ao lado da democracia representativa, mecanismos da democracia participativa?
Será viável uma democracia sem mediações e sem a política? Será que estamos presenciando um novo
tipo de anarquismo? Aponta-se a influência e importância das redes sociais, não só na mobilização e
chamadas para participação efetiva nas manifestações, mas na formação de novas identidades coletivas
e na tentativa de criar um novo conceito de cidadania que se mostra na visão horizontal de liderança
sem intermediários e sem chefes carismáticos.
As redes sociais são também o laboratório de novas lideranças e novos atores políticos,
privilegiando os jovens que participam intensamente da Internet. A novidade é tão recente que as
Ciências Sociais e a Sociologia Política ainda não encontraram um método para análise e diagnóstico
deste fenômeno social e político. Os sociológicos e políticos ainda estão buscando os parâmetros
científicos para definir o que aconteceu. Lincoln da USP, em entrevista concedida para Maretti da Rede
Brasil Atual, diz que ainda estamos diante de uma esfinge: “É um movimento de grande apelo de
juventude, no qual há uma linha divisória muito forte. É como se estivessem dizendo: ‘existe um
mundo velho, no qual não nos encaixamos, não nos sentimos respirando dentro dele’” (2013, p.01).
Não existem rumos ou ainda indícios evidentes para onde caminharão as manifestações de rua que
eclodiram em junho no Brasil.
Nas manifestações de Junho não se detectou uma organização que se possa chamar de rede
social ou movimento social, pois estiverem atuantes nas ruas várias frações de classes sociais. Ainda é
um movimento muito fragmentado. As reivindicações são também dispersas e múltiplas, sem
organicidade e bandeiras prioritárias.
Além disso, as manifestações pegaram os partidos políticos e outros atores sociais de surpresa.
A questão do aumento das tarifas do transporte coletivo nas grandes cidades e as inaugurações dos
milionários estádios de futebol por ocasião da Copa das Federações pareciam ser as motivações
1 Pós-doutor em Filosofia Política e Professor de Sociologia Política no programa de Mestrado em Sociologia Política da
UVV, krohling@gmail.com
2 Mestranda em Sociologia Política pela Universidade Vila Velha (UVV), bolsista da FAPES, moara.lacerda@gmail.com.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 594
principais, quando se criaram também símbolos do repúdio popular contra concessionárias de carro,
bancos e estádios de futebol padrão FIFA. A estratégia política dos Black Blocs, atores em geral vestidos
de preto e com máscaras, soube manipular esta escolha simbólica para atos de depredação.
Em vez de direitos individuais, as manifestações de rua mostraram ênfase nos direitos coletivos.
Parece estar claro, para a maioria dos novos atores sociais, a defesa do transporte coletivo no lugar dos
automóveis. Manifesta-se também uma criminalização da política, dos partidos, sindicatos e
movimentos sociais institucionalizados.
Contudo, contraditoriamente, estas manifestações, apesar de serem anti-ordem e anti-
instituições, apelam ao poder institucional do Estado para a solução dos seus problemas. Além disso, a
visão que predomina é que os problemas identificados deveriam ser resolvidos rapidamente como se
fosse um passo de mágica – o que mostra a falta de conhecimento dos mecanismos estatais ou
paraestatais.
Isto enseja algumas perguntas: estamos presenciando o embrião de um novo movimento de
massa e um novo tipo de movimento popular sem organização hierárquica? Pode-se chamar de
movimento social estas manifestações de ruas nas grandes cidades (com exceção do Movimento de
Passe Livre de São Paulo existente há oito anos e que foi o estopim para o crescimento das
manifestações em São Paulo e em muitas cidades pelo Brasil afora)?
Presenciou-se um pluralismo de temáticas e reivindicações nunca antes vistas. A contradição
apontada pelo institucional não negaria a tendência da característica anarquista ou autonomista da
maioria dos manifestantes deste movimento das ruas? Esta rebelião dos jovens representa a defesa dos
valores da classe média urbana?
Os Black Blocs, em geral mascarados, com os seus símbolos, chamados de vândalos pela Mídia,
não seriam um novo tipo de atores políticos que acreditam na violência como estratégia e ação política?
Será que a violência e a destruição provocada por esse grupo anarquista não teria fragilizado a
manifestação e a participação dos cidadãos que não se identificam com o grupo ou mesmo com essa
estratégia política?
Não podemos homogeneizar todos os manifestantes como jovens anarquistas, Black Blocs,
mascarados e vândalos. Houve uma instrumentalização destes termos na grande Mídia para demonizar
todo o movimento de rua assim. No entanto, é preciso distinguir: nem todo anarquista é mascarado e
nem todo mascarado é Black bloc. Segundo Marilena Chauí em conferência na Academia da Polícia
Militar do Rio de Janeiro, 2013, “Os Black Blocs são um elemento desruptor, mas não no sentido de que
trazem uma alternativa de organização ou ação, mas porque estão destruindo, por dentro, as formas
existentes de ação através do ataque à pessoa do outro” (REVISTA CULT, 2013).
Nota-se que a configuração identitária das manifestações não é simples. Tendo isso em vista,
questiona-se: é possível detectar as novas identidades e frentes de luta presentes nos atores das
manifestações de rua de junho de 2013? Manifestou-se um pluralismo de sujeitos e reivindicações que
não nos ajuda a desenhar claramente os novos perfis destes manifestantes, apesar de que aparecem as
lutas gerais por direitos da educação, saúde e segurança, mobilidade urbana e mais qualidade na vida nas
cidades. Ou seja, de forma geral, pedia-se o padrão FIFA para os direitos sociais da população.
Na maior manifestação da Avenida Paulista em junho despontaram neonazistas e anarquistas.
Constatou-se que muitos líderes de movimentos dos anos oitenta e noventa estiveram ausentes. Será
que foi por que a maioria está com cargos nos governos, sindicatos, conselhos municipais e estaduais,
assessoria de políticos ou técnicos de gabarito em altos escalões das empresas e nos poderes executivo,
judiciário e legislativo? Por que os representantes de partidos foram hostilizados? Apesar da clara
denúncia à corrupção e oposição à cultura política tradicional, a população nas ruas fez explicitamente
poucas indicações de Reforma Política.
Outras indagações se apresentam sobre os atores presentes na jornada de junho e como
nenhuma pesquisa ou estudo até agora respondeu claramente qual foi o papel dos milhões de atendidos
pelo programa do Bolsa Família nas manifestações de junho. Qual teria sido a participação dos milhões
que melhoraram de vida e conseguiram trabalho e educação, mas que ainda não conseguiram ascender
socialmente e em termos econômicos?
Existem várias outras questões que podem ser pesquisadas e debatidas na tentativa de
compreender a importância dessas manifestações para a democracia brasileira, a reforma política, a
conquista de direitos e o exercício da cidadania. São algumas dessas questões que se procurará analisar
adiante.
A ideia de rede sugere pluralidade de pessoas solidárias trocando ideias e produzindo novos
conhecimentos e novas práticas sociais. Vivemos na época dos conselhos, associações, trocas,
cooperação. Com o avanço das tecnologias digitais se multiplicam as comunidades virtuais como o
Orkut, o Tribe, o Linkedin e fóruns de debate e troca de ideias, listas de e-mails, blogs alternativos de
comunicação e muitas formas de networking. Um exemplo atual é o blog “Trezentos”. Existem
também as redes sociais online tais como o Facebook e o Twitter.
Castells (1999, p.385) refere-se à comunidade virtual como uma rede eletrônica de comunicação
interativa organizada em torno de objetivos compartilhados, embora algumas vezes a própria
comunicação se transforme em uma finalidade. Nesse processo, os grandes meios de comunicação de
massa perdem o controle ideológico que exerciam sobre as camadas sociais menos informadas e
educadas. Para Raquel Recuero
A rede social é gente, é interação, é troca social. É um grupo de pessoas,
compreendido através de uma metáfora de estrutura, a estrutura de rede. Os nós da
rede representam cada indivíduo e suas conexões, os laços sociais que compõem os
grupos. Esses laços são ampliados, complexificados e modificados a cada nova pessoa
que conhecemos e interagimos. Nas novas comunidades virtuais os internautas criam
territórios novos no ciberespaço. O número dos conectados cresce dia a dia. São,
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 596
assim, essas teias de conexões que espalham informações, dão voz às pessoas,
constroem valores diferentes e dão acesso a esse tipo de valor. Redes sociais, assim,
têm potencial para colaboração, para a difusão de informações e para a construção de
novos valores sociais. Uma rede social não é uma ferramenta, mas apropria-se delas
para expressar suas identidades, construir seus valores e operar de forma coletiva
(2009, p.25).
Portanto, a comunicação em rede dá voz ao povo que agora possuem acesso a informações não
necessariamente repassadas pelas grandes mídias tradicionais. Com isso, a comunicação em rede torna-
se a nova forma de concretizar a participação democrática. Além disso, também possibilita o
surgimento de movimentos organizados em rede no intuito de contestar fatos políticos, sociais e até
mesmo jurídicos – é uma mudança significativa para o exercício da democracia e cidadania.
As mudanças tecnológicas da nossa era digital avançam como a velocidade da luz e são
irreversíveis, apresentando armadilhas e oportunidades, avanços e contradições. Conforme lembra
Armand Mattelart, “as redes de comunicação em tempo real estão configurando o modo de
organização do planeta” (1998, p.07, tradução nossa).
O lado positivo da nova mídia digital é que ela rompe com a univocidade e unilateralidade dos
grandes monopólios da informação – como ocorre no Brasil hoje através da dominação midiática pela
Globo. A comunicação de massa das agências atuais da indústria cultural é uma comunicação
unidirecional. Em contraposição, a nova mídia digital é plural e ocupa o espaço público como desafio
ao Estado controlador e às empresas de comunicação privadas (DIZARD JR, 2000).
Nos dados apontados pela mídia tradicional, a maioria dos manifestantes de junho de 2013
foram convocados pelas redes sociais e a maioria esmagadora era composta de jovens, sendo que 71%
deles nunca haviam participado de uma manifestação antes. Isso apenas demonstra o poder de
mobilização e conscientização que a comunicação em rede promove na sociedade cada vez mais
conectada à internet.
Um exemplo da importância das redes sociais é o site Avaaz.org (http://avaaz.org). Trata-se de
uma rede de ativistas para mobilização social global através da internet. Existe em várias partes do
mundo, em 13 línguas distintas. Atualmente, a Avaaz está liderando a luta contra a corrupção no Brasil.
Em 2010, essa rede de mobilizaçao foram responsáveis pela coleta de dois milhões de assinaturas à
favor da aprovação da lei da Ficha Limpa no Brasil.
Como consequência desta nova realidade da presença da mídia digital, temos novas relações na
política, pois os cidadãos podem ter informações alternativas e isto pode despertar neles o desejo de
mudança e participação mais ativa no processo político. Podemos afirmar que a internet se transformou
num laboratório de novas lideranças e atores na política brasileira.
A democracia representativa foi uma invenção da burguesia inglesa em 1689 e até hoje não se
inventou algo permanente que a substituísse. Montesquieu fez a sua aplicação nas relações entre os três
poderes executivo, legislativo e judiciário. Na Inglaterra, a chamada revolução inglesa foi um acordo
amigável entre a monarquia absolutista e o genro do rei representando a burguesia e o seu porta-voz,
John Locke, para que não houvesse derramamento de sangue e se criasse o poder legislativo, isto é a
escolha de representantes políticos através do voto elitista dos burgueses que tivessem propriedade. O
mais votado entre legisladores exerceria o papel de primeiro ministro do governo. Consequentemente,
o rei ou a rainha seria apenas um símbolo político da tradição inglesa. A monarquia parlamentarista
inglesa existe até hoje.
Na Revolução Francesa esta representatividade da burguesia se fez presente num governo
republicano e não mais monárquico. Rousseau e Montesquieu influenciaram, com as suas ideias, um
novo tipo de representação política que tinha como fundamento a soberania popular através do voto
universal. Após dez anos de idas e vindas e muito conflito entre Jacobinos e Girondinos, optou-se por
um governo de consulado, colocando o General Napoleão como cônsul. Mas após quatro anos, o
General realizou um plebiscito (que foi fraudado) e autoproclamou-se Napoleão, o Imperador da
França. Este governo durou 15 anos e em 1815 foi substituído pela monarquia parlamentarista. Só em
torno de 1876 é que a França conseguiu implantar uma república democrática.
Esta é a origem europeia da nossa democracia representativa. Em Curitiba no prédio da
Assembleia Legislativa do Estado do Paraná está escrito no frontispício: “A Democracia representativa, por
pior que seja, até hoje, ninguém inventou coisa melhor”. O que temos no Brasil é esta mesma democracia
representativa. Daí que se afirma que não existe política sem mediação. O que se pode questionar é a
qualidade da representação dos nossos partidos políticos, dos senadores, dos deputados estaduais e
federais e dos nossos vereadores.
Os desvios da política através do patrimonialismo, da cultura do favor, da compra de votos, do
compadrio, do coronelismo, do financiamento privado de empresas são que maculam a prática política
da maioria dos nossos representantes, com honrosas exceções. O melhor remédio contra a cultura
política tradicional e os desvios da corrupção é o exercício da democracia direta, isto é com mais
participação popular no nível municipal, estadual e nacional.
Na emenda nº 21 da Constituição Federal sobre participação popular é que se consolidaram
alguns dos princípios fundamentais da democracia direta, como o plebiscito, a iniciativa popular de lei e
o referendo. Este seria o fundamento constitucional para a defesa da democracia participativa dos
cidadãos brasileiros. De fato, em várias áreas, já se avançou muito na esfera de participação popular,
como no caso das políticas públicas de saúde, no caso da Criança e do Adolescente, em políticas
sociais, e nos orçamentos municipais. Existem várias experiências exitosas em vários municípios pelo
Brasil afora.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
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As cidades brasileiras cresceram muito nos últimos anos, mas houve falta de planejamento
urbano. Nossos administradores municipais, estaduais e nacionais derem prioridade aos automóveis e
ao transporte individual e esqueceram-se do transporte coletivo e da mobilidade urbana.
Todo o indivíduo tem o direito de comprar carro, de ir e vir, mas não se pode esquecer que a
cidade precisa ter qualidade de vida e não se devia priorizar a indústria automobilística que serve apenas
aos proprietários individuais de carros. Nossos políticos priorizaram viadutos, vias expressas, e
esqueceram a construção de trens, metrôs e transporte coletivo de ônibus. No Brasil, predominou o
planejamento “rodoviarista” tendência capitalista que efetivou a prioridade do caminhão e do
automóvel sobre o trem, o ônibus urbano, o metrô, a bicicleta e o aquaviário ou barcos nas cidades
litorâneas. Quando os administradores públicos constroem mais um viaduto para melhorar o trânsito
dos carros individuais, está se deixando de construir uma escola ou um posto de saúde que representa
direitos coletivos.
Nas reclamações dos cidadãos que foram para as ruas, houve a queixa da falta de investimentos
na infraestrutura urbana e nos meios de transporte coletivo. A gratuidade do transporte público
coletivo urbano é um direito coletivo concretizando uma conquista social vista no mesmo nível dos
demais “direitos sociais” garantidos na Constituição Federal. Será relevante conceituar o que são
direitos humanos coletivos.
Num sentido marcadamente social, eis o conceito de direitos humanos segundo Joaquín
Herrera Flores
[...] direitos humanos são o resultado de lutas sociais e coletivas que tendem à
construção de espaços sociais, econômicos, políticos e jurídicos que permitam o
empoderamento de todas e todos para poder lutar plural e diferentemente por uma
vida digna de ser vivida (2009, p. 193).
Tal conceito pode ser resumido na seguinte frase, dita pelo próprio Herrera Flores, mais
adiante: "os direitos humanos são o conjunto de processos de luta pela dignidade humana” (2009,
p.213).
Em vez da coletividade se privilegiou a empresa privada com a construção dos shopping centers e
seus estacionamentos precários dentro da cidade, o que demonstra falta de planejamento, uma vez que
eles poderiam ser construídos nos arredores dos centros urbanos, como acontece na maioria dos países
da Europa e Estados Unidos. As prefeituras ouviram as empreiteiras e construtores e não consultaram
a opinião dos moradores das cidades.
ausência de representatividade pelos políticos e pelo próprio sistema, assim como a esperança de que a
mudanças seriam possíveis.
Manuel Castells (2013, p.12), ao analisar as grandes manifestações que ocorrem no mundo,
desde a chamada Primavera Árabe, e identificar a ocorrência desse desvanecimento destacou a
peculiaridade da ação horizontal em todas:
[...] em todos os casos, os movimentos ignoraram partidos políticos, desconfiaram da
Mídia, não reconheceram nenhuma liderança e rejeitaram toda organização formal,
sustentando-se na internet e em assembleias locais para o debate coletivo e a tomada
de decisões.
Reforma política
Os protestos para busca da qualidade de vida “tipo Padrão FIFA” nas grandes cidades logo
mostraram a importância da mobilidade urbana e as prioridades da saúde e educação públicas. As
exigências populares de uma profunda reforma política ficaram também patenteadas.
Uma pesquisa do IBOPE encomendada por 51 entidades de movimentos sociais
representativos no Brasil, entre 27 e 30 de Julho de 2013, demonstrou que entre as 1500 pessoas
entrevistas, 85% são a favor de uma reforma política para as eleições de 2014 e 78% dos entrevistados
se manifestaram contra o financiamento privado das empresas das campanhas eleitorais.
Na mesma perspectiva destas propostas, captou-se em outras pesquisas posteriores um
questionamento da importância do voto transparente com fidelidade programática e exigência de
criação de mecanismos de maior participação em projetos de iniciativa popular e da prática mais assídua
de plebiscitos e da democracia direta.
É preciso discutir sobre as vantagens ou desvantagens da abolição da reeleição, da extensão do
mandato de 4 anos para 5 ou 6 anos proposta para 2018, e da mudança de realizar todas as eleições do
país (para presidente, governador, prefeito, deputado estadual e federal, e para senador) coincidindo em
um mesmo ano. Muitos analistas consideram a reeleição em todos os níveis do executivo como fonte
de corrupção, mas outros acham necessária uma permanência mais longa no poder executivo para que
de fato se possa planejar e executar as metas dos governantes.
Se no Brasil tivéssemos partidos programáticos, como existem em muitos países democráticos,
a reeleição se daria pela escolha de programas partidários de governo e não por personalismos
populistas do candidato. Existem propostas também de dois turnos nas eleições legislativas: primeiro se
vota no partido e depois nos candidatos.
O fim das coligações de partidos na véspera de eleições, somente em busca de empreguismo e
favores prometidos pelo próximo governo, é visto como necessário, uma vez que as coligações são
citadas como fonte de desvios morais. As coligações entraram na lei eleitoral brasileira e se tornaram
um contrato pré-eleitoral para distribuir cargos e favores na máquina governamental em todos os
níveis.
Existem ainda várias propostas e projetos de representantes políticos da Câmara Federal e do
Senado para mudanças eleitorais e políticas. O fato é que o Congresso não quer fazer reformas e
mudanças profundas. Foi aprovado o voto secreto pelos deputados federais e o Senado tentou aprovar
a decisão da Câmara pela metade.
O Congresso está aprovando algumas mini-reformas eleitorais na tentativa de desaquecer o
fervor político deixado pelas manifestações, enquanto as reformas de maior escopo são deixadas de
lado. Acontece que, só no dia 05 de Outubro conseguiremos avaliar as mudanças feitas e as suas
possíveis repercussões nas eleições em 2014.
Considerações finais
Referências
ACAYABA, Cíntia. Pesquisa Ibope diz que 85% querem reforma política. Disponível em: <
http://g1.globo.com/politica/noticia/2013/08/pesquisa-ibope-diz-que-85-querem-reforma-politica.html >. Acesso em: 22 set.
2013.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
DEUSEN, David Van; MASSOT Xavier (Ed.). Black Bloc papers. Breaking Glass Press: Shawnee Mission, Kansas,
2010.
CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede - A era da informação: economia, sociedade e cultura; v. 1, 3a. Editora São
Paulo, Paz e Terra, 1999.
P
artindo do pressuposto de que as produções fílmicas são fontes privilegiadas para a
compreensão da realidade social, porque nelas existe uma infinidade de representações da
vivência individual e coletiva, a proposta do presente texto é analisar a representação da
violência policial urbana no filme Tropa de Elite: missão dada é missão cumprida (José Padilha, 2007).
O enredo do filme, de forma violenta e chocante, expõe como funciona a estrutura policial
internamente e a sua ligação com o crime, seja por meio da corrupção, da hierarquia, da burocracia, do
despreparo ou dos baixos soldos. Essa ligação é colocada de forma direta, contribuindo para a
manutenção da violência e não para a sua redução, porque isenta a responsabilidade do policial, sendo
colocada como de todo o sistema (corporação policial e sociedade). Assim, a polícia acaba não
cumprindo seu papel, enquanto principal instituição responsável pela garantia direta da segurança.
A inovação da película em estudo é que ela consegue nos fazer refletir sobre o tema da
violência urbana através do ponto de vista de setores da polícia, o que suscita e ratifica a necessidade de
reforma da mesma, culminando com a melhoria da segurança pública.
Anteriormente ao livro Elite da Tropa (2006) e ao filme Tropa de Elite não se tinha refletido na
questão da violência urbana como consequência da falta de estrutura (burocracia, hierarquia e
corrupção) e atuação da polícia militar. Ou ao menos não havia sido colocado para uma parcela tão
grande da sociedade, graças, é claro, à amplitude de público que o cinema abarca, principalmente num
país em que a cultura da leitura não é fortemente enraizada.
A história do filme conta a história de três policiais - os Aspirantes3 Neto (Caio Junqueira) e
André Matias (André Ramiro), e do Capitão Nascimento (Wagner Moura), do Batalhão de Operações
Especiais (BOPE) - lutando para sobreviverem em meio ao tráfico de drogas e à corrupção da Polícia
Militar, na cidade do Rio de Janeiro. A guerra particular desses três policiais detona uma série de
acontecimentos violentos.
1 Este texto é fruto da pesquisa de conclusão de bacharelado no curso de Ciências Sociais da UFBA. O título original da
monografia é Tropa de elite “osso duro de roer”: Representações da violência policial no filme Tropa de elite:
missão dada é missão cumprida defendida em maio de 2012.
2 Universidade Federal da Bahia, mestranda em Ciências Sociais.
3 Neto e Matias são Aspirantes a Oficial da PM e estão em estágio probatório supervisionado. Na hierarquia militar na
ordem crescente há os Círculo de Praças (Soldado, Cabo, Terceiro Sargento, Segundo Sargento, Primeiro Sargento,
Subtenente) e o Círculo de Oficiais (Aluno-Oficial, Aspirante a Oficial, Segundo Tenente, Primeiro Tenente, Capitão,
Major, Tenente-Coronel e Coronel). O Anexo II refere-se à Estrutura Hierárquica da Polícia Militar de forma completa.
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O filme destaca-se por seu ritmo acelerado e também pela forma como trata temas delicados da
sociedade brasileira, mesmo se referindo especificamente à cidade do Rio de Janeiro, e por uma ótica
específica, dos policiais. O cerne do filme gira em torno da descrição da realidade da estrutura policial
no Brasil e os problemas resultantes da corrupção. A descrição de vários policiais e suas respectivas
unidades (convencional e BOPE) ajudam na compreensão do cotidiano de uma sociedade dominada
pelo medo, pelo tráfico e pela hipocrisia. Há também como temática do filme, a questão do consumo
de drogas ilícitas pela classe média dentro e fora dos morros e toda e engrenagem do sistema policial.
Segundo o diretor, o filme fala sobre diferentes éticas sociais - dos universitários, dos policias
convencionais e policiais do BOPE, que convivem diariamente nos grandes centros urbanos.
O enredo perpassa e tem como um dos eixos centrais a história do Capitão Nascimento. Ele é
um trabalhador honesto, idealista, competente e determinado, que luta todos os dias pela manutenção
da ordem pública nos morros cariocas. Porém, está cansado de lutar em uma guerra que para ele é sem
fim, já que o trabalho que realiza é destruído pela própria polícia militar do Rio de Janeiro, que vende
armas para os traficantes. O filme mostra a busca incessante do Capitão por um substituto competente,
que possa ser capaz de realizar sua missão com presteza e também amor.
O filme utiliza-se de narrativa em off feita pelo próprio Capitão Nascimento, que narra todos os
acontecimentos de sua vida, tanto no BOPE quanto em sua vida particular. O narrador dá suas
impressões e auxilia no entendimento do público acerca do tema que ele quer discutir e apontar, ele
desabafa com o público. Assim como acontece na narrativa do filme Tropa de Elite: o inimigo agora é outro
(José Padilha, 2010) e do livro Elite da Tropa, os autores travam um diálogo com o leitor, o que causa
um efeito de proximidade e intimidade, resultando numa relação de empatia com o personagem e, até
mesmo, uma aceitação passiva de seu discurso.
A partir do final dos anos 1990 e da década de 2000, podemos sinalizar na produção
cinematográfica brasileira uma tendência à produção de filmes sobre violência, principalmente
associada a relações com o tráfico de drogas, revelando a importância da questão enquanto fenômeno
social.
A temática da violência surge, assim, como uma tendência na cinematografia brasileira, inserida
na lógica de reprodução em série de produtos que rendam lucros, que são apelativos e que mostra uma
visão bem verossímil do fenômeno em toda a sua extensão, mas com certo sarcasmo. Assim, geram-se
riquezas através de carências sociais, dentro de uma lógica do grande circuito do cinema internacional,
notadamente norte-americano, do qual o cinema brasileiro herdou várias características, desenvolvendo
outros tantos sem nada ficar a dever as melhores “escolas” cinematográficas do mundo.
A segurança pública, nos últimos dez anos, tornou-se um problema manifesto e também
principal “provocação” ao Estado de Direito no Brasil. A segurança ganhou enorme visibilidade
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 606
pública e jamais, em nossa história recente, esteve tão presente nos debates, tanto de especialistas como
do público em geral, assim como dos organismos internacionais que colocam o Brasil entre os estados-
nações mais violentos do planeta. A violência que age dentro e fora do aparelho do Estado e dos seus
órgãos repressivos e não apenas no tecido social degradado e nas favelas das cidades. A fanática
sistemática da tortura tem sido objeto de denúncias regulares por organismos como, por exemplo, a
Anistia Internacional. Como constata Misse (2005, 25):
África do Sul, Brasil e Colômbia têm hoje das mais altas taxas de criminalidade
violenta, especialmente homicídios, do mundo. Algumas de suas principais cidades
estão mergulhadas no que se poderia chamar uma difícil equação que reúne graves
problemas sociais com um forte sentimento de insegurança pública e de impunidade,
aliado a uma frequente demanda de resolução violenta de conflitos cotidianos.
A filmografia brasileira, entre 1999 e 2010, apresenta uma visão sobre a perpetuação das
mazelas e das desigualdades sociais, em uma sociedade que se intitula democrática e com estado de
direitos. Mas, uma pergunta se impõe: direitos para quem? O cinema, no Brasil, persiste no tema da
violência e dos problemas das instituições da segurança pública e muito mais a partir de um olhar
pessimista. Obras de ficção que mais parecem documentários com fins sociológicos que apresentam
fatos reais de uma realidade mais semelhante a uma obra de ficção científica, nas partes aparentemente
mais distantes da realidade. Como que repetindo o bordão de que a obra de arte imita uma realidade
cada vez mais surreal.
As questões pertinentes à violência nos grandes centros urbanos do Brasil é questão maior,
tanto em estudos acadêmicos quanto nos filmes produzidos, visto que ambos são influenciados pelos
acontecimentos de seu tempo. Dessa forma, o aumento da sensação de insegurança, o aumento das
taxas de criminalidade, a destruição do espaço público (que não é de todos, nem de ninguém), a falta de
competência de nossas instituições jurídicas, a violência policial, a corrupção, a superpopulação
carcerária (questão muito discutida pelo cinema brasileiro), entre tantos outros, representam desafios do
processo de consolidação política da democracia no país.
Em 1999 foi lançado o filme documentário de maior destaque no tocante à violência e o tráfico
de drogas. Trata-se de Notícias de uma Guerra Particular (1999) de João Moreira Sales e Kátia Lund,
enfocando a recorrência da violência do crime e da polícia. O documentário, que retrata a vida da
comunidade do Morro Dona Marta, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro, mostra o resultado da
repressão ao tráfico de drogas no morro, a vida em comunidade e a atuação dos policiais. O resultado
dessa trama é a alta mortalidade de jovens, nos dois lados da batalha, e a vida dos moradores sempre no
fio da navalha de tiroteios, além das ambiguidades de papéis e de valores. Este documentário pode ser
considerado como o primeiro inspirador da temática do filme Tropa de Elite.
Já em 2002, vários filmes foram lançados, sendo três os mais comentados: os ficcionais
Carandiru de Hector Babenco, Cidade de Deus de Fernando Meireles e o documentário Ônibus 174 de
José Padilha. Carandiru descreve a trajetória de detentos do então maior presídio da América Latina, que
não mais existe por haver sido implodido, formando o estado de degradação em que se encontrava e a
carga simbólica negativa que lhe havia sido acoplada. O ápice é o massacre em 1992, quando a Polícia
Militar, para conter uma rebelião, matou 111 detentos. A história se inicia quando um médico resolve
fazer um trabalho de prevenção à AIDS na Casa de Detenção de São Paulo, dando ênfase à
superpopulação do presídio, sem a mínima infraestrutura necessária para preservação da dignidade
humana. Já no filme Cidade de Deus a narrativa é embalada por uma montagem vertiginosa, sobre a
história da evolução do tráfico em Cidade de Deus (favela carioca conhecida por ser um dos locais mais
violentos da cidade) e das estreitas ligações entre traficantes, moradores e policiais corruptos.
No documentário Ônibus 174, que segundo seu diretor serviu de inspiração para a produção do
ficcional Tropa de Elite também de sua direção, verifica-se uma investigação cuidadosa, baseada em
imagens de arquivo, entrevistas e documentos oficiais sobre o sequestro de um ônibus em plena zona
sul do Rio de Janeiro. O incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000, foi filmado e transmitido ao
vivo por quatro horas, paralisando o país. No filme, a história do sequestro é contada paralelamente à
história de vida do sequestrador, intercalando imagens da ocorrência policial feitas pela televisão. É
revelado como um típico menino carioca, que cresce e vive nas ruas da cidade, transforma-se num
bandido. As duas narrativas dialogam, formando um discurso que transcende a ambas, mostrando ao
espectador porque o Brasil é um país tão violento.
Ainda existem muitos problemas para que os pesquisadores tenham acesso aos dados sobre
políticas de segurança pública no Brasil. Mesmo porque, muito se discute a esse respeito, mas ações
pontuais não são vislumbradas. Apesar dessas discussões que ocorreram na sociedade em relação ao
problema da segurança pública e das instituições criminais, é preciso verificar no documentário Atos dos
Homens (2006) de Kiko Goifman que nada realmente mudou. Assim, é representado no filme, um
massacre ocorrido na Baixada Fluminense. O que transformou o documentário sobre sobreviventes das
chacinas, em um filme sobre a violência no Rio de Janeiro. Em 31 de março de 2005, um mês antes do
início das filmagens, uma matança nas cidades de Nova Iguaçu e Queimados mudaria profundamente o
argumento do projeto. A realidade tão próxima fez com que o foco fosse direcionado ao cotidiano dos
moradores daquela região, mostrando a profunda desigualdade social e a banalização da morte, que se
transforma num modo corriqueiro de resolução de conflitos. A premissa detém-se no extermínio, nos
matadores e no desejo de viver dos moradores da região.
As organizações da sociedade civil, universidades e centros de estudos procuraram interferir na
análise, no controle da violência urbana e, principalmente, no acompanhamento de novas estratégias e
políticas. Assim, foi sendo gerada uma quantidade absurda de informações, estratégias, políticas, ações
que mereceram ampla divulgação e amplo conhecimento.
Em 2007, é lançado o filme Tropa de Elite: missão dada é missão cumprida, denunciando a violência
disseminada dentro da instituição da polícia e que se espalha por toda a sociedade e que é a responsável
pelo controle ou descontrole da violência urbana e da criminalidade. Mostrando assim que ações em
relação à segurança pública devem ser pensadas em conjunto, sociedade civil, policiais e estudiosos,
apesar de o filme não mostrar como seria possível essa articulação. O filme apenas enuncia o problema,
e não uma forma que possa permitir uma solução. Será que isso torna o filme fascista ou simplesmente
pessimista? Será que ao descrever e narrar a violência das polícias e dos traficantes consegue produzir
um quadro fidedigno desse fenômeno possibilitando sua explicação?
Em 2008, outro filho pródigo do documentário Ônibus 174 nasce, o filme ficcional Última parada
ônibus 174 (2008) de Bruno Barreto, que conta a história do garoto Sandro do Nascimento, inspirado
nos relatos do documentário. Documentário Território e Violência (2008) de Ruth Imanashi Rodrigues e
Patrícia S. Riviero, o documentário complementa a pesquisa "Indicadores de Proteção e Risco para a
instrumentação de Políticas Públicas em Favelas no Rio de Janeiro", realizada no IPEA com apóio da
FAPERJ no ano 2008. Neste mostram-se os principais locais onde estão concentradas as moradias das
vítimas de homicídio na cidade, assim como as características desses locais do ponto de vista da
estrutura urbana, social, econômica e ambiental. Através de depoimentos de especialistas em
urbanismo, em segurança pública e com moradores são analisadas as possíveis causas que fazem com
que as favelas concentrem a maior parte das vítimas de homicídio, assim como também as ações mais
letais e violentas da polícia. As entrevistas vão indicando também quais têm sido as políticas que
contribuíram para chegar a esta situação e quais políticas poderiam mudar o quadro de segregação
social urbana provocado pela violência.
No entanto, é persistente a continuação de um sistema que se baseia na repressão aos
comportamentos inadequados, sejam eles criminosos ou não. A questão é que indivíduos que não
cometem crimes necessariamente continuam sofrendo ações policiais ilegais, com base apenas em
julgamentos de valor e em critérios subjetivos, violando, assim, os direitos e os limites jurídicos e
constitucionais do país.
Em respostas a muitas questões e criticas suscitadas pelo tão discutido Tropa de Elite (2007), o
diretor consegue responder muitas destas questões com a produção do filme Tropa de Elite 2: o inimigo
agora é outro em que Padilha retorna em 2010 apontando para locais diferentes e atores diferentes
também responsáveis pela violência e corrupção nos grandes centros urbanos. Como diz o título, o
inimigo agora é outro. Na trama, o ator Wagner Moura, novamente como Nascimento, mas não mais
como capitão e, sim, coronel, troca a farda pelo terno e começa a lidar com a criminalidade carioca do
ponto-de-vista do “administrador”, o agente que trabalha em gabinetes. O violento capitão Nascimento
do primeiro filme agora se vê em situações em que ética e valores pessoais são o principal ponto. Ainda
assim, não deixando de ver uma ou outra sequência em que é possível recordar as cenas de violência
explícita protagonizadas por Moura, que, para o bem ou para o mal, constituem um dos motivos
responsáveis pela grande rentabilidade do filme.
O realismo de Padilha conquistou o público talvez mais pela brutalidade dos personagens, do
que pela noção de uma justiça igualitária representada pelo personagem do defensor dos direitos
humanos e isto leva a hipotetizar que uma grande parcela da população brasileira se acha massificada
pela indústria cultural da violência justaposta de Hollywood, mas também produzida aqui, inclusive por
programas de televisão, como Brasil Urgente com José Luiz Datena (Band TV), ou alimentada por
jornais “vermelhos de sangue”, como Massa! (Salvador-BA).
Neste novo contexto, com outra moral, o coronel Nascimento passa a utilizar como
equipamento, não as armas do primeiro filme, mas sua própria voz para denunciar as faces mais
latentes da corrupção. O Estado que deveria prover o bem-estar e garantir os direitos de cada cidadão,
encontra-se falido e a mercê não apenas do tráfico, mas de milícias e de um “sistema” corrupto. Seria
este uma espécie de autocrítica do diretor que terminou fazendo eco às vozes que criticaram numa dose
de apologia ao BOPE no primeiro filme?
No livro Elite da Tropa (2006), escrito pelos policiais André Batista e Rodrigo Pimentel e pelo
antropólogo Luiz Eduardo Soares, é possível identificar alguns dos personagens e das situações
apresentadas ao longo do filme. Porém, não é possível saber até que ponto o filme representa a
realidade abordada, mas claramente baseia-se em situações reais, que proporcionam validez na medida
em que propõe o debate sobre a questão da segurança pública.
O filme traz consigo um estudo, pela ótica de Padilha, acerca de temas de abordagens delicadas:
a violência, o tráfico de drogas, a corrupção e de maneira mais direta, a violência policial. Foi o primeiro
filme de ficção do diretor José Padilha e para tal realizou intensa pesquisa, fazendo entrevistas com
policiais militares (convencionais e BOPE) e psiquiatras da PM do Rio de Janeiro. E também contou
com a participação de pessoas que já participaram do tráfico de drogas e que vivenciaram essa
realidade.
Padilha entrevistou 20 policiais e também se norteou por seu documentário Ônibus 174, porque
segundo ele, tanto Sandro como o Capitão Nascimento são personagens de um mesmo drama. Para as
filmagens de Tropa de elite, os atores foram separados em grupos: o núcleo dos policiais convencionais, o
núcleo dos policiais do BOPE, o núcleo dos estudantes universitários e o núcleo dos traficantes. Os
atores foram preparados em lugares fisicamente diferentes e de modos diferentes, não ocorrendo a
interação desses núcleos. Os atores receberam apenas o roteiro do filme, sem os diálogos e a narrativa
se estruturou através da improvisação dos atores, porque eles foram preparados para se “tornarem” as
pessoas que eles iriam representar.
Para iniciar a análise do filme Tropa de Elite, cabe examinar seu argumento central. E o eixo
central da história perpassa a trajetória de Nascimento, Capitão do BOPE (Batalhão de Operações
Policiais Especiais da polícia militar), que está dividido entre sua família e seu trabalho. Ele opta por
deixar seu cargo tendo, entretanto, a missão de encontrar um substituto competente. Nesse meio
tempo, dois amigos e oficiais da polícia militar convencional se destacam por sua coragem-integridade e
acabam conhecendo o BOPE, iniciando sua jornada neste grupo.
No filme, o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) foi designado na missão de manter a
ordem e a paz no Morro do Turano, no Rio de Janeiro, para a visita do Papa em outubro de 1997. No
decorrer das cenas, percebe-se que há uma determinada forma de denúncia sobre as injustiças sociais e
o culto a contemporaneidade, ou seja, o que acontece atualmente cercado pela corrupção e violência
por parte da polícia.
O ambiente de desenvolvimento da película é em um país chamado Brasil, num estado
chamado Rio de Janeiro em 1997, mais precisamente temos os morros, o “asfalto”, principalmente
Zona Sul, e a universidade. É um filme sobre a corrupção policial e a violência urbana, que contém
cenas de agressão física, assassinato, consumo de drogas e tortura.
Há também informações e curiosidades sobre as filmagens. Em novembro de 2006, traficantes
do morro Chapéu Mangueira, onde as filmagens eram feitas, sequestraram parte da equipe que
trabalhava e roubaram as armas cenográficas, sendo que 59 delas eram réplicas e 31 verdadeiras,
adaptadas para tiros de festim. As filmagens foram paralisadas por cerca de duas semanas.
Após ter a equipe sequestrada e as armas cenográficas roubadas, Padilha ainda teve uma cópia
pirata do filme circulando antes de sua estreia nos cinemas. A cópia não era a edição definitiva do filme,
era apenas um rascunho e foi vendida em camelôs dois meses antes do lançamento. Sendo assim,
objeto de grande repercussão antes mesmo de seu lançamento, por ter sido o primeiro filme brasileiro
a, meses antes de chegar aos cinemas, entrar para o mercado pirata e a internet. Essa é uma questão que
causa polêmica, porque ninguém sabe ao certo se houve mesmo o roubo dessa cópia ou se foi uma
jogada de marketing de seus produtores.
Tropa de Elite é uma obra de ficção que expõe os problemas da polícia do Rio de Janeiro. A
película também mostra a hipocrisia e o fenômeno de uma ética ambígua, da classe média, representada
pelos estudantes universitários, que criticam a violência policial (durante a aula de Sociologia, que citam
sua indignação quanto ao papel da polícia na sociedade carioca). Contudo, os mesmos estudantes
cometem delitos, como o consumo e o tráfico de drogas. Fica claro um fenômeno contraditório, no
qual existe uma crítica moralista à polícia e à violência do tráfico e, ao mesmo tempo, um
comportamento consumista da droga, que estimula o desenvolvimento de um exército de traficantes.
Por essa razão, os estudantes são colocados como únicos responsáveis pela “guerra diária”. No filme há
bastante ação e tem como principal objetivo apresentar a realidade de muitos que vivem na favela,
mostrando também que os policiais, minuto a minuto, arriscam a sua vida exercendo tal profissão.
A decupagem que foi realizada como meio para a análise mostrou, entretanto, que o filme não
tinha a proposta de ser reflexivo. Para o cineasta Carlos Gerbase4, se o filme fosse reflexivo levaria a um
ritmo lento, o que não agradaria e encantaria o grande público, como também, não teria tido o sucesso
e a repercussão que conquistou com suas cenas de ações e suspense. Padilha impôs um ritmo acelerado
sobre o espectador. Esse questionamento foi levantado devido a certas simplificações como, por
exemplo, a cena em que o Coronel Otávio (Marcello Escorel) se encontra com um político (deputado)
numa mesa de bar. O Coronel quer a permissão para colocar uma pessoa de sua confiança para
comandar um Batalhão da Polícia Militar do Rio de Janeiro e o deputado se interessa em saber o quanto
vai ser lucrativo – a ideia da corrupção é posta de forma exageradamente estereotipada.
Há também generalizações. Todos os estudantes universitários presentes no filme são drogados
e egoístas. Verificamos essa ideia na cena da discussão em sala de aula, durante a apresentação do grupo
do aspirante André Matias (André Ramiro). Na discussão, os estudantes só reclamam da truculência da
polícia, mas continuam fumando maconha deliberadamente, sem perceber que para isso acontecer era
necessária a existência do tráfico de drogas. Caso similar na cena em que ocorre uma festa dos
estudantes, regada a drogas lícitas e ilícitas.
Segundo o roteirista, Rodrigo Pimental5, ao abordar tantos aspectos, o filme acabou em muitos
trechos deixando lacunas, simplificando extremamente alguns fatos que são expostos, como por
exemplo, em relação aos estudantes universitários. É possível constatar uma visão simplista e
reducionista que equaliza o problema da violência e do trafico de drogas e suas mazelas, como
resultando apenas dos estudantes usuários de drogas que financiam o tráfico. É possível notar essa
simplificação na cena em que o Capitão Nascimento pega um jovem com flagrante de drogas na favela
e diz: “é você que financia essa merda aqui”. Naquele momento, referia-se ao traficante morto, mas, de
forma latente, se referia ao tráfico de drogas e suas consequências, inclusive a necessidade do policial
subir a favela para matar.
Outro aspecto criticado do filme foi em relação ao papel das ONGs (Organizações Não-
Governamentais), colocada como local de palanque político e espaço livre para utilização de drogas por
estudantes. Quando Matias vai até a ONG, no Morro dos Prazeres, fazer um trabalho de faculdade,
Maria (Fernanda Machado), sua colega, apresenta-lhe o administrador que faz campanha abertamente
de um senador (que também é patrocinador da ONG) e depois, durante a discussão do trabalho, os
colegas acendem um “baseado” e oferecem para ele.
É preciso ver, no entanto, que a violência, e notadamente, a policial, tem raízes muito mais
amplas e profundas, não podendo ser reduzidas a um único denominador, apresentando também nesse
4 Tropa de Elite: uma (auto) crítica antiproibicionista, matéria postada no blog Princípio Ativo com base no debate
promovido pelos NPF (Núcleo Psiquiatras em Formação) da AMRIGS (Associação Médica do Rio Grande do Sul) sobre o
filme Tropa de Elite realizado em dezembro de 2007 com participação do cineasta e professor de cinema Carlos Gerbase,
Dr. Juarez Guedes Cruz, Dra. Olga Falceto e o roteirista Rodrigo Pimentel.
5 Tropa de Elite: uma (auto) crítica antiproibicionista.
Conclusão
Para a análise do filme Tropa de elite, fundamentamo-nos no pressuposto de que o cinema é uma
linguagem produtora de representações do social, que auxiliam no entendimento da realidade, como
também, a pensar em maneiras de como modificar essa realidade. Os filmes possibilitam o
conhecimento acerca do seu próprio tempo, pois estimula um distanciamento reflexivo, permitindo
perceber vivências, muitas vezes incompreensíveis, enquanto se está imerso nelas.
Os filmes também são veículos de informações, de discursos que podem reproduzir e estimular
a reprodução de uma determinada lógica social. Nesse sentido, percebe-se, por exemplo, como a
burguesia brasileira não tem nenhum interesse em desenvolver um projeto de desenvolvimento
nacional, nem incentivar e, até mesmo patrocinar, projetos que reduzam as distâncias entre a classe
dominante (cada vez mais rica e poderosa, encastelada em grandes condomínios fechados) e as classes
dominadas (cada vez mais carentes e sem acesso a condições essenciais de existência). E assim é
inevitável enfatizar que a violência policial, do tráfico de drogas e da corrupção se desenvolvem no
interior de uma violência estrutural ainda mais grave e duradoura – que é a da estrutura desigual na qual
se movem as classes sociais, e que terá a idade desse capitalismo que se degrada. Entretanto, existem
agentes dentro dessa sociedade que procuram modificar as relações existentes, como forma de reduzir
as desigualdades sociais. Mas o cinema, se não pode resolver esse problema, pode sim proporcionar
uma reflexão sobre ele e até mesmo incentivar comportamentos e ações para a sua solução.
Dessa forma, pode-se dizer que o filme Tropa de elite: missão dada é missão cumprida, num
movimento duplo, se apropria da estética da violência para destacar a violência policial, permitindo a
discussão de políticas de segurança pública. Nesse sentido, ao optar por um ritmo acelerado, que
envolve e muitas vezes angustia o espectador, o filme se aproxima da estética hollywoodiana mais
comum, adquirindo muitas características dos exemplares da indústria cultural. Porém, a forma como
aborda o tema da violência policial, numa perspectiva ainda não vista no cinema nacional, assume um
tom de crítica e de conscientização social.
Entretanto, no tocante ao aspecto dos policiais militares convencionais e do BOPE é
importante ter cuidado, porque uma representação maniqueísta da história é perigosa, porque quando
imaginamos uma corporação como representante do bem, não nos preocupamos em elaborar um
pensamento mais crítico. Simplesmente acreditamos em suas ações e palavras, mesmo que essas ações
representem perigo às pessoas. Mesmo que essa corporação conseguisse produzir e manter esse mar de
excelência em meio a um mundo de corrupção. Existe assim uma fragilidade no argumento do filme
Tropa de Elite que faz parecer que a dureza e a rigidez anti-corruptível diante de traficantes e a banda
podre da própria sociedade constituiria em si uma solução aos graves problemas da violência urbana
nas suas causas. Será que é razão suficiente para justificar a brutalidade empregada no combate ao
crime? A violência desmedida utilizada por essa corporação não seria uma forma de corrupção aos
princípios constitucionais e aos direitos humanos? Cabe então, ter uma visão crítica quanto a esse tipo
de representação que pode acabar ratificando um discurso da classe dominante, em que a violência é
imposta como sendo necessária, principalmente contra os marginalizados.
Mesmo corroborando com a estética da violência, é através dela que o filme tece sua critica
sobre a realidade social. Ou seja, ao mesmo tempo em que reproduz o discurso da violência, também
transforma esse discurso em protesto, chamando a atenção das pessoas sobre essa realidade violenta.
Ele não se pretende um receituário de soluções.
Ao utilizar e reproduzir uma estética da violência, o filme nos choca, pois por mais que
saibamos da existência da tortura, da extorsão, da propina, do arrego e da corrupção, ver isso plasmado
em imagens causa outro impacto, muito maior e mais duradouro, gerando inquietação e indignação.
Embora já sejam recorrentes imagens de violência, tanto na filmografia brasileira, como num discurso
imagético mais apelativo, praticado por programas e telejornais específicos, que só exibem problemas
relativos à questão da violência, notadamente a urbana e policial, diante do filme de Padilha ficamos
impactados para sempre.
Mesmo utilizando-se de uma linguagem violenta, o filme estimula uma visão crítica da realidade,
justamente por que denuncia as mazelas que ocorrem, e que muitos não têm coragem de mostrar e
muito menos de admitir. Dessa forma, num primeiro momento, parece que o filme é um discurso de
manutenção da ordem social, de um discurso que ratifica a ideia da classe dominante, que se reproduz
como coqueluche em revistas para esse público, qual seja, o uso da violência é o ideal para a repressão
das camadas ditas marginalizadas. Mas, quando analisamos mais detidamente as cenas, os aspectos
externos à produção, inclusive o que já foi produzido anteriormente por esse diretor, roteiristas e
produtores, verifica-se que se trata de um discurso sobre violência sob um ponto de vista diferente e
extremamente critico da forma como essa sociedade classifica os marginais e os marginalizados.
Vale destacar também que, o filme não trata da violência numa via de mão única. Não é apenas
a violência dos policiais sobre os favelados, traficantes e consumidores de drogas. O filme denuncia a
corrupção e a extorsão que ocorrem dentro da corporação policial, ou seja, entre os próprios policiais, e
a dos policiais para com a sociedade, notadamente sobre a população mais carente, a que deveria ser
mais respeitada e amparada. Denuncia também, como uma ONG e pessoas que fazem trabalhos
voluntários nas favelas, mesmo sem estarem conscientes, podem cometer violência contra as pessoas
que acreditam estar ajudando. Por fim, também denuncia a violência sofrida cotidianamente pela
população da favela, imposta pelos traficantes. E essa violência, que não é apenas física, é muito mais
violenta que a própria violência física praticada pelos policiais do BOPE quando sobem os morros.
É uma violência articulada à simbiose dos processos de reprodução ampliada do capital na sua
fase mais destrutiva em toda a história do capitalismo, vez que os meios produtivos de reproduzir
valores não conseguem fazer vias “normais” e “legais”, o lucro crescente, tão necessário para vivificar o
sistema como um todo.
Portanto, a importância do filme de José Padilha para um estudo sociológico é essencial. A
forma como representou a violência policial nos revela aspectos não abordados por outras formas de
expressões escritas e imagéticas. O filme, a priori, era para ser um documentário, mas o diretor optou
pelo ficcional devido a complicações que poderiam ocorrer com o testemunho de policiais, podendo
causar problemas para os mesmos. Apesar de se referir a uma conjuntura social específica, a do Rio de
Janeiro, o filme conseguiu representar de maneira geral os problemas das polícias no país. E os aspectos
que não foram contemplados ou devidamente abordados, Padilha tentou responder no filme Tropa de
elite 2: o inimigo agora é outro.
Os filmes foram sempre apropriados pela classe detentora dos meios de produção para
reprodução de suas ideologias, tanto em tempos ditatoriais quanto nos democráticos. Em sua grande
maioria, os filmes são produzidos para uma classe média que acha que pensa por si própria, que
acredita na neutralidade axiológica da ciência e quiçá das artes, contanto que reproduzam o discurso
que mantenha a ordem vigente. Entretanto, em se tratando de arte, devemos levar em consideração a
subjetividade do artista, e também o fato de que sempre haverá aspectos que escapam ao seu controle
de filtro. Uma obra de arte é totalizante e não excludente, independentemente do discurso que
reproduza.
O cinema possibilita vários questionamentos, impedindo um fechamento pleno das questões.
Há um mundo de possibilidades para o espectador. Há também um viveiro laboratorial para o cientista
social.
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O
presente artigo é resultado de um desconforto com a semântica sociológica do termo
atraso. Ao se fazer um percurso pelos principais autores do pensamento social brasileiro,
percebe-se a apresentação de um problema que poderia ser, de forma bastante sucinta,
resumido como “dilema brasileiro do atraso”. Desde Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha, ainda no
século XIX, perpassando pelo período do ensaísmo de padrões científicos de Sérgio Buarque de
Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre, até a constituição plena de uma sociologia institucional,
que se iniciou com a escola sociológica paulista cujo grande expoente foi Florestan Fernandes 2, a
questão que se coloca como pano de fundo a todas as análises sobre a vida social brasileira está
relacionada com nossa inserção incompleta e imperfeita no mundo moderno.
Homi Bhabha cunhou um termo que me parece apreender a essência daquilo que pretendo
explicitar ao mencionar uma ideia de inserção imperfeita na modernidade. Ele fala em povos, culturas,
nações situados em uma posição na qual se encontram otherwise than modernity3. Países periféricos como o
Brasil, tantas vezes referidos como atrasados ou de modernidade tardia, estariam, de certa forma,
aquém da modernidade ou e tendo-se constituído de outra forma que não a moderna. O atraso,
1 O autor é bacharel em direito pela Universidade Federal do Paraná e graduando em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Paraná. Bolsista CNPq atuando como estudante no grupo de pesquisa Epistemologias fronteiriças e conexões
Sul-Sul.
2 Julgo importante enfatizar que a compreensão do processo histórico de formação da sociologia no Brasil que emprego
aqui – a qual reconheço ser bastante generalizante – foi, grosso modo, informada por duas obras fundamentais: História
das Ciências Sociais no Brasil, vol. 1. Sérgio Miceli (org). São Paulo: Editora Sumaré, 2001 e A Sociologia no Brasil:
contribuição para o estudo de sua formação e desenvolvimento. Florestan Fernandes. Editora Vozes: Petrópolis, 1976.
Nesses dois livros apresenta-se a divisão do estabelecimento da sociologia no Brasil nos três momentos que menciono. O
ensaísmo da década de 30, o segundo deles, é apresentado como o momento disruptivo a partir do qual se lançam as bases
para o desenvolvimento de uma sociologia científica. A escola de sociologia da Usp, ainda que não o único, será o locus
privilegiado, segundo esses dois autores, no qual esse processo encontrará seu maior vigor.
3 Bhabha (1995), p.6: “…postcolonial critique bears witness to those countries and communities constituted, if I may coin a
portanto, seria um fato dado. Caberia-nos pensar formas de entendê-lo a fim de superá-lo. Foi o que a
sociologia brasileira se propôs a fazer ao longo de sua curta existência.
Nesse sentido, parece-me que aquilo que há de mais essencial no pensamento social brasileiro
está, de alguma maneira, relacionado com o problema da constituição de nossa modernidade. De certa
forma, todos os nossos intérpretes abordaram a questão de como ter-se-ia constituído o mundo
moderno em uma sociedade tão peculiar, tão perceptivelmente não clássica, tão ocidentalizada, mas ao
mesmo tempo não ocidental, tão influenciada pela civilização ibérica, mas ao mesmo tempo
renitentemente marcada pela conservação de fortes traços indígenas e negros.
Percebe-se, ademais, que atrelado ao nosso dilema do atraso está o problema da mestiçagem.
Havendo-se constituído no imaginário nacional como duas faces da mesma moeda, a reflexão sobre o
significado de ambas – modernidade imperfeita e mestiçagem – acompanha todo o percurso realizado
pelo pensamento social brasileiro desde fins do século XIX. Dada a necessidade de constituirmos uma
identidade nacional, dada a inexistência aqui de uma civilização própria e original aos moldes daquelas
que se desenvolveram no continente europeu, era preciso encontrar aquilo que nos caracterizaria mais
particularmente a fim de “inventar a nação”4. Essa procura mobilizou tanto intelectuais e escritores
quanto o Estado durante as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX.
Em um primeiro momento, a mistura que se processou em solo brasileiro era vista como um
problema a ser resolvido. Autores como Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Silvio Romero e Oliveira
Vianna apresentam a mestiçagem e o sincretismo a partir de uma perspectiva pessimista, algo que se
colocava como um entrave ao desenvolvimento intelectual, social e econômico do país. Essa geração de
intelectuais, da transição do século XIX para o XX, estava marcadamente influenciada pela
antropologia evolucionista e pelas concepções racialistas, que categorizavam as raças e as inseriam num
esquema histórico teleológico.
No que se refere à questão da identidade nacional, essas posições redundavam em um grave
problema. Como se poderia criar uma nação e um povo, algo que há décadas se desenhava, afirmando-
se que o elemento central que nos define é negativo? Em outras palavras, o problema da identidade era
que não tínhamos identidade. Nossa mestiçagem, aquilo que nos constitui, era justamente a razão de
nosso atraso. Como afirma Renato Ortiz, era preciso transformar a negatividade em positividade. Foi o
que Gilberto Freyre fez5.
A década de 30 é o período histórico no qual se consubstanciam as questões de identidade que
se desenhavam, pelo menos, desde os anos 1870. A mestiçagem brasileira, sempre vista até então como
um problema, transforma-se na obra de Gilberto Freyre em valor. O autor pernambucano faz de sua
4 Refiro-me aqui à definição de nação cunhada por Anderson (2006), p. 6: “In an anthropological spirit, then, I propose the
following definition of the nation: it is an imagined political community – and imagined as both inherently limited and
sovereign”. No mesmo trecho de seu livro em que cunha essa definição, Anderson cita Ernest Gellner: “Nationalism is not
the awakening of nations to self-consciousness: it invents nations where they did not exist”.
5 Ortiz (1986), p. 41
construção teórica um elogio da mestiçagem e dá voz ao mito das três raças que, antes dele, ainda era
uma espécie de sussurro discreto. O lançamento de Casa-grande & Senzala coincide, ainda, com o
período do Varguismo, momento institucional de valorização do nacional. Nesse momento, o Estado
estava intensamente comprometido com a fabricação de uma identidade para o Brasil.
Não cabe aqui neste trabalho adentrar na complexidade da discussão do mito das três raças e de
suas consquências para a forma como se pensam as relações raciais no Brasil. Obviamente essa
“fábula”, para utilizar a expressão de Roberto DaMatta6, impõe o sério problema, ainda persistente, da
invisibilidade do preconceito de cor. A dificuldade em se discutir o racismo no Brasil coloca-se em
razão da constatação de Florestan Fernandes de que o brasileiro tem preconceito de não ter
preconceito. A convivência harmoniosa entre raças no Brasil é ideal de conduta e, nesse sentido,
preconceito e democracia racial conciliam-se como prática e norma social7. O que me interessa por ora,
para este exercício de reflexão a que me proponho, é ter em mente que o elogio da mestiçagem
cumpriu um papel histórico, que foi o de dar os contornos para uma identidade nacional brasileira.
Antes de falarmos mais detalhadamente sobre o elogio da mestiçagem que constituiu o cerne da
imaginação nacional a partir da década de 30, vou retroceder algumas décadas para mostrar como um
certo imaginário sobre o negro – e, consequentemente, sobre a mestiçagem – se constituiu no Brasil a
partir da recepção e apropriação das ideias racistas e cientificistas da Europa de fins do século XIX.
Vou delimitar-me a discorrer, essencialmente, sobre os dois autores brasileiros mais importantes que se
dedicaram a estudar o negro brasileiro a partir de um referencial científico. Esses dois autores são Nina
Rodrigues e Arthur Ramos.
A constituição de um campo científico cuja proposta seria o estudo sistemático do negro
brasileiro iniciou-se com os empreendimentos de Nina Rodrigues que foi o primeiro a dedicar-se
metodicamente ao estudo do negro com base nos pressupostos da ciência vigentes em sua época8. Nina
foi professor de medicina legal na Bahia na transição do século XIX para o XX e sua obra permanece
como um reflexo do pensamento racialista de seu tempo. Seus estudos, que transitaram entre a
medicina e a etnologia, carregam em si a força de uma antropologia biologizante e evolucionista, que
procurava respostas para questões da humanidade “não ocidental” a partir de um olhar “científico”
sobre a alteridade, sobretudo sobre os negros.
O pensamento de Nina estava estruturado, essencialmente, em uma concepção de
determinismo racial amparada na tese da desigualdade das raças de Gobineau. Somavam-se a essa
noção determinista a utilização de argumentos poligenistas e uma vigorosa vinculação ao evolucionismo
como verdade inquestionável. Esses argumentos reunidos faziam com que ele acreditasse firmemente
que um indivíduo está necessariamente preso à herança racial que o molda. É a conclusão a que ele
chega ao fazer a análise do crânio de Antônio Conselheiro. Nina inferiu que se tratava de um “crânio de
mestiço” e que os caracteres que o informavam explicavam os comportamentos do líder espiritual de
Canudos9.
A adesão ao argumento evolucionista fazia com que Nina acreditasse que o desenvolvimento
humano estaria estruturado em distintas fases e que as diferentes raças humanas situar-se-iam,
historicamente, em cada uma dessas fases. Os negros seriam representantes de uma fase anterior à
moderna e estariam, nesse sentido, atrasados em relação aos brancos. A raça negra conservava certas
tendências inatas que não podiam ser apagadas nem mesmo com o contato com os brancos. Os negros
são, para Nina, inferiores e assim estão propensos a permanecer. Qualquer possibilidade de progressão
poderia ser mensurada apenas em uma escala temporal bastante longa10.
É nesse enquadramento teórico e temporal que se coloca a questão do “problema do negro”. O
atavismo da raça negra colocava um inconveniente fundamental a ser solucionado, a impossibilidade de
modernização de um país amplamente formado por negros, negroides e mestiços em geral. Trata-se,
portanto, de averiguar cuidadosamente o impacto e a influência da presença do negro na sociedade
brasileira com o objetivo de atenuar ambas. Nesse sentido, a composição do mestiço detinha papel
fundamental no processo de embranquecimento da população, o qual era visto como a única forma
possível de se alcançar o progresso.
Na década de 30, os argumentos de Nina Rodrigues são recuperados por Arthur Ramos e
reinterpretados a partir das concepções teóricas mais aceitas na época. Talvez as ideias que mais
influência tiveram sobre o médico alagoano foram as de Lévy-Bruhl, que se constituíram uma espécie
de filtro e lente por meio dos quais ele peneirou e releu os ensinamentos do maranhense Nina. A partir
da teoria do pensamento pré-lógico pensada e desenvolvida por Lévy-Bruhl, sobretudo, em suas obras
La mentalité primitive, de 1922, e L’âme primitive, de 1927, Ramos refuta o postulado da inferioridade do
negro e propõe a influência do pensamento mágico e pré-lógico como causa do seu atraso. Causas essas
que, importante ressaltar, podem se apresentar em qualquer grupo étnico. Com ele, as raízes do atraso
migram da raça para adentrar à esfera da psiquê. O necessário, portanto, não é embranquecer, mas sim
conduzir o negro a fases mais adiantadas do pensar11.
O estudo da religiosidade negra tornou-se um tema bastante profícuo no campo da investigação
“científica” do negro. Nina Rodrigues, por exemplo, enquadrou a pesquisa do sentimento religioso do
negro em uma moldura médico-antropológica que propunha uma compreensão ampla do estado
mental da raça12. Para ele, as práticas fetichistas e animistas afrobrasileiras resultavam de uma disfunção
mental atávica que deveria ser estudada como um fenômeno de ordem clínica. As danças e rituais
9 Ibid, p. 93
10 Ibid, p. 102.
11 Ramos (2001), p. 32
12 Souza, Ibid. p. 94
sagrados em que se engajavam os negros não seriam mais do que formas de se reviver fenômenos
perfeitamente normais em fases primitivas da evolução social. Novamente, soma-se aqui o argumento
de ordem evolucionista sempre presente nos estudos de Nina.
O desenho que Arthur Ramos deu aos estudos da religiosidade negra enquadrou-se em
diferente perspectiva uma vez que ele percebia os negros não como possuidores de uma disfunção
mental, mas sim como mentalmente atrasados. Eles estariam ainda em uma infância mental pré-lógica
que poderia ser revertida. Esse argumento explicaria, ainda, a forma particular que o sincretismo
desenvolveu no Brasil. Ramos afirma que a fusão das diferentes matrizes religiosas afrobrasileiras com
o catolicismo teria sido algo natural visto que, como é comum aos povos em sua infância, os negros
abraçavam a superstição e, por essa razão, buscaram também proteção em santos católicos como forma
de defenderem-se das moléstias da vida13. Ademais, a incapacidade psicológica de abstração fez com
que as populações africanas, por não compreenderem a lógica do monoteísmo, simplesmente
adptassem-no às suas próprias crenças14.
O problema da religiosidade afrobrasileira ganha densidade ao se inserir nessa reflexão as
contribuições teóricas de Roger Bastide. Há inúmeras nuances no pensamento desse autor francês que
suscitam uma série de importantes reflexões, mas teremos de nos ater a questões bastante pontuais, que
nos interessam mais, em razão da limitação deste pequeno ensaio. Bastide olha para a América Latina e
a percebe como um local em que houve a justaposição de espaços e épocas. Nesse sentido, a identidade
brasileira, para ele, tem de ser pensada a partir de uma dualidade entre o tradicional e o moderno 15. Em
nenhum outro lugar esse antagonismo revela-se mais do que na moral e na religião.
Roger Bastide aponta para o fato de que a principal forma de negros de classe média marcarem
sua “aculturação” aos valores brancos e modernos é o distanciamento da religiosidade negra,
considerada de classe baixa, e a adesão a valores puritanos. Ele percebe a existência de uma linha de cor
que, no entanto, poderia ser cruzada com o cultivo de condutas moralmente aceitáveis. Seria preciso,
portanto, tornar-se “um negro de alma branca”.
Ao se debruçar sobre esse tema, Roger Bastide foi influenciado pelo pensamento de Gilberto
Freyre e, sobretudo, pela noção de democracia racial. Em um primeiro momento, ao empreender sua
primeira viagem ao nordeste brasileiro, Bastide forma suas primeiras percepções sobre a realidade racial
do Brasil a partir da leitura de Gilberto Freyre. Posteriormente, especialmente após as pesquisas com
Florestan Fernandes, o francês irá complexificar a compreensão que tem do conceito de democracia
racial. Mais do que uma realidade social, essa convivência harmoniosa entre as raças é um ideal de
13 Essa forma de perceber o negro era comum entre as classes letradas. Mesmo um teórico da antropofagia como Oswald
de Andrade dela não pôde escapar. Em conferência realizada em Sorbonne e publicada em francês na Revue de l’Amerique
Latine, no ano de 1923, ele discorre sobre o encontro entre africano e colonizador: “...o negro, habituado a ver em tudo
manifestações sobrenaturais, deixou-se batizar com uma alegria de criança”. Excerto retirado de Andrade: (2011).
14 Ramos, Ibid, p. 122
15 Bastide (2006), p.
conduta de um brasileiro que tem preconceito de não ter preconceito. Nesse sentido, preconceito de
cor e democracia racial conciliam-se como prática e norma sociais e podem, dessa forma, coexistir.
Nesse momento também coloca-se a questão fundamental da nacionalidade, já discutida desde a
obra de Nina Rodrigues e que, como mencionei no início deste ensaio, parece colocar um ponto de
inflexão em todo o pensamento social brasileiro. Por mais que se possa dizer que as crenças e ritos
religiosos dos negros brasileiros são de origem africana, é preciso ter em mente que são especificamente
e essencialmente brasileiros. Sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, adaptação simboliza e sintetiza o
processo de miscigenação que caracterizou a formação da nacionalidade.
O sincretismo religioso brasileiro é filho de nossa mestiçagem, resultado dessa mistura entre
animismo fetichista africano que se mescla com a superstição branco-católica e que se refoça no
animismo incipiente indígena. É desse solo – fertilíssimo para o surgimento de toda sorte de
manifestações ocultistas, segundo Nina Rodrigues – que emerge a população brasileira. A mestiçagem e
o sincretismo, portanto, colocam um problema fundamental na vida moderna, o da antítese de mundos
contrários, de tempos distintos que se encontram e entrecruzam no mesmo espaço. Eis o dilema da
modernidade brasileira.
A mesma década de 30 em que Arthur Ramos escrevia era também um momento profícuo de
produção imaginária da nação. Gilberto Freyre publicou seu Casa-Grande & Senzala em 1933, apenas 3
anos após Ramos ter lançado O negro brasileiro. Essa proximidade nos dá a saber como teses distintas
sobre o valor da mistura que se processou nos trópicos brasileiros conviviam e enfrentavam-se. É
possível perceber, no entanto, um movimento parecido com aquele que a própria teoria antropológica
fez em sua progressiva mudança na forma de perceber a alteridade. Ramos estava, como já disse aqui,
influenciado pelas noções de teor evolucionista de Levy-Bruhl. Já Freire, que havia estudado com Franz
Boas na Universidade Columbia, propunha uma interpretação da miscigenação a partir da escola
culturalista norte-americana cuja grande contribuição, pelo menos para aquele momento histórico, foi a
concepção de relativismo cultural.
Para não ficar preso ao debate intelectual travado nesse momento no Brasil, prefiro pensar a
identidade nacional e o elogio da mestiçagem, que tão fortemente ocupa o imaginário da brasilidade, a
partir de uma reflexão sobre a umbanda, religião que surgiu no Brasil exatamente nesse momento
histórico de constituição de uma narrativa única e hegemônica sobre a nacionalidade16. A relação entre a
umbanda e a identidade nacional brasileira pode ser pensada, fundamentalmente, a partir da ideia de
sincretismo, que representa, no campo religioso, o que a mestiçagem significa no campo das raças.
16Ao invés de centrar-me aqui num debate entre autores e suas teses, preferi discorrer sobre a umbanda enquanto processo
concreto por meio do qual se pode perceber como o imaginário da homogeneidade mestiça do brasileiro toma forma e
passa a se constituir como ideia-força da nacionalidade. A década de 30 é, no Brasil, o momento histórico em que uma série
de processos de nacionalização de formas culturais convergem. Esse é o período em que o samba nacionaliza-se, a
umbanda consolida-se e todo um imaginário mestiço toma contornos visíveis e passa a dar uma face definida para a nação.
Para os fins deste artigo, parece-me ser mais profícuo discorrer sobre um desses processos do que apenas apresentar um
debate entre autores da época.
Ambas as noções remetem a uma concepção de mistura que seria constitutiva do gene brasileiro. A
marca específica de ser brasileiro seria, portanto, a mistura cultural que aqui se produziu. Mistura essa
que gerou uma simbiose de raças que ganha significados particulares em cada um dos diferentes níveis
da sociedade. Mestiçagem e sincretismo são, portanto, movimentos análogos.
O momento histórico em que se forja essa concepção do brasileiro é também o do nascimento
de uma nova religião: a Umbanda. Renato Ortiz nos lembra que não é possível precisar exatamente o
momento de origem dessa crença, pois ela está relacionada com todos os processos sócio-econômicos
que atravessaram o Brasil desde as últimas décadas do século XIX até as primeiras do século XX. Pode-
se dizer, portanto, que a Umbanda teve uma longa gestação e que seu aparecimento concreto ocorre
nos anos 30.
Se a identidade brasileira consistiria na mistura, a Umbanda seria, portanto, a cristalização da
brasilidade. Como afirma Renato Ortiz em excerto cuja citação na íntegra me parece importante para
deixar evidente o argumento que quero aqui apresentar: “A Umbanda é uma religião endógena que se
situa na encruzilhada de três raças que contribuíram para a formação do povo brasileiro: o negro, o
índio e o europeu. Neste sentido pode-se dizer que ela é uma religião nacional, isto é brasileira”17.
Assim, ela se situa exatamente na fronteira das três raças, contendo elementos característicos das
religiões de todas, mas não sendo nenhuma. Ortiz nos dá a saber que a desagregação da memória
coletiva negra produz um novo tipo de culto, a macumba. Com a consolidação de uma sociedade de
classes do tipo urbano-industrial estão dadas as condições para que da macumba floresça uma nova
religião: a Umbanda.
Faz-se importante destacar aqui como Ortiz entende que se agregaram os elementos que
forjaram a nova crença. Ele entende que a Umbanda se constitui a partir de uma reinterpretação que
uma camada de espíritas kardecistas dá às práticas afros, então em estado de desagregação na macumba.
O dogmatismo espírita os impedia de continuar com práticas comuns de recebimento de espíritos de
caboclos e pretos velhos. Os cultos negros, reinterpretados por esses espíritas, configuram novas
práticas que irão fornecer as bases para um novo cosmo religioso, o da Umbanda. Ortiz afirma que em
1941 essa nova prática já estará consagrada.
Nesse sentido, a Umbanda é uma religião essencialmente sincrética e, por essa razão,
essencialmente brasileira. Maria Isaura Pereira de Queiroz destaca que o fato de essa crença ter
conseguido se impor e ter adquirido fiéis em vários segmentos sociais e étnicos é indicador da
valorização unânime que se estabeleceu em torno da civilização sincrética brasileira. A mistura cultural
produzida no Brasil, portanto, é reconhecida por todas as camadas sociais, mesmo as hegemônicas,
como a marca específica da identidade nacional. A autora faz, ainda, um paralelo interessante sobre a
17 Ortiz (1986), p.
afirmação da individualidade brasileira, da especificidade que nos constitui e nos confere identidade, e a
difusão de uma consciência aguda da posição de inferioridade econômica ocupada pelo Brasil 18.
É importante destacar o percurso histórico que os cultos aborígenes e afrobrasileiros perfazem.
Maria Isaura nos lembra que, incialmente, eles representavam grupos parciais e não a sociedade
brasileira como um todo. Os brancos não estavam afetivamente ligados a esses cultos como os grupos
oprimidos. A noção de identidade daqueles passava por outros canais como, por exemplo, a ideia de
superioridade biológica e cultural da raça branca. Com a Umbanda, abre-se a possibilidade de superação
dessas divisões, uma vez que a própria mestiçagem havia alcançado o status de valor identitário. Dessa
forma, consolida-se um cosmo religioso que pode representar toda a “cultura nacional”. Esse
movimento histórico pode se fazer perceber também no pensamento de Bastide que, se inicialmente
pensava ser a umbanda uma especie de culto afro-brasileiro, posteriormente a concebeu como uma
religião nacional do Brasil.
É nesse sentido que Renato Ortiz afirma que mesmo a Umbanda estando relacionada com o
espiritismo, com o catolicismo, com os espíritos dos caboclos e com a tradição africana, ela não pode
ser considerada, essencialmente, nenhuma delas, mas todas ao mesmo tempo, ou seja, uma religião
tipicamente brasileira. A mistura cultural, portanto, processa-se no plano do sincretismo e da
mestiçagem. A ressignificação da mistura racial opera concomitantemente com a disseminação de uma
religião sincrética que passa a representar a identidade que resulta dessa mistura.
Como nos lembra Ortiz, toda identidade é uma construção simbólica. Não importa ao cientista
social, portanto, pensar sobre sua veracidade ou falsidade, mas sim as implicações que dela decorrem.
Aquela que nos parece mais fundamental para este artigo é a reflexão do povo enquanto identidade
coletiva moderna. Uma das preocupações centrais do pensamento social brasileiro refere-se à como
teria-se formado o povo brasileiro, esse sujeito coletivo que confere substância à nação. Octavio Ianni
atenta para o fato de que o que está em pauta nas discussões raciais travadas ao longo da história do
pensamento social brasileiro é justamente o problema da nação. As raças, a nação, o povo, a
mestiçagem, enfim, todos esses temas seriam uma permanente obsessão do pensamento brasileiro.
Nossa busca por uma identidade própria na modernidade passaria pela resolução dos problemas
relacionados à nossa mestiçagem.
Até este momento, tentei perfazer sucintamente um percurso por dois dos momentos históricos
fundamentais na definição do imaginário da brasilidade. Um primeiro momento em que a miscigenação
é vista, a partir de um racismo colonial tout court, como um entrave à modernização e um problema a ser
resolvido. Em um segundo momento, a hibridez destes trópicos torna-se um atributo civilizacional que
não apenas funda a nação brasileira, mas também lhe confere uma certa vantagem moral19. Acredito
que os estudos pós-coloniais podem contribuir de maneira fundamental para complexificar essa
discussão sobre a identidade brasileira.
Tomo aqui um trecho de artigo de Sérgio Costa cuja reprodução na íntegra parece-me ser
importante para explicitar a forma como entendo serem os estudos pós-coloniais fundamentais para
um repensar da identidade brasileira: “a releitura pós-colonial da história moderna busca reinserir,
reinscrever o colonizado na modernidade, não como o outro do Ocidente, sinônimo do atraso, do
tradicional, da falta, mas como parte constitutiva essencial daquilo que foi construído, discursivamente,
como moderno”20. Seja na sua versão depreciativa do miscigenado, seja na elogiosa, a identidade
nacional brasileira constituiu-se fundamentada no binarismo discursivo ocidental que impede a
composição de outra forma de ser senão aquela que a gramática da modernidade canônica permite
existir. O imaginário da brasilidade parece, nesse sentido, não conhecer outra forma de se ver senão
como um espelho imperfeito de uma Europa hiperreal21.
A modernidade é, para nós brasileiros, frequentemente pensada como algo que vem de fora e
que deve ser admirada e adotada. Partha Chatterjee aborda a questão de uma forma que me parece ter
relação com a forma como se constitui o imaginário do brasileiro sobre si próprio: “a modernidade é
para nós como um supermercado de bens importados, dispostos nas prateleiras: pegue e leve o que
você quiser. Ninguém aqui acredita que possamos ser produtores de modernidade. A verdade amarga
sobre nosso presente é a nossa sujeição, nossa inabilidade em sermos sujeitos de nosso próprio
direito”22.
Descolonizar a imaginação do nacional é, portanto, descolonizar o imaginário23 que nos prende
a uma necessidade de ser moderno segundo um padrão imposto pela modernidade canônica. Uma
proposta que coloque em questão a descolonização implica, portanto, numa abertura aos traços
culturais subalternizados em razão da necessidade de se construir uma identidade nacional única capaz
de inserir e situar o brasileiro no mundo moderno. Talvez apenas essa abertura possa nos ajudar a
pensar a continuidade do racismo, do imobilismo social baseado em relações sociais racializadas, como
parte de uma lógica moderna de segregação, na qual aquilo que é chamado de arcaico está intrincado ao
moderno de maneira indissociável, não se constituindo em um símbolo do atraso ou um impedimento
para que alcancemos uma ordem moderna igualitária, mas um fato concreto da própria ordem
19 Gilberto Freyre abordou recorrentemente a ideia de que a miscigenação lusotropical conferia ao homem dos trópicos
vantagens – entre as quais se destacaria a superação do racismo – que seriam a grande contribuição brasileira para a
civilização. Para uma leitura aprofundada sobre esse tema sugiro a leitura de Para além do apenas moderno e Mundo novo
nos trópicos, ambos da autoria de Freyre.
20 Costa (2006), p. 121
21 Costa, Ibid, p. 121
22 Chatterjee (2004), p. 64
23 Parece-me importante destacar aqui o sentido dado ao termo imaginário. Tomei como base o sentido conferido por
Cunha (2006), p. 14, no qual ela propõe, em sintonia com as postulações de Cornelius Castoriadis, o imaginário como o
lugar de produção de sentido, de inscrição incessantemente ativada e ativadora de significações e valores.
moderna. Fazer isso pode nos ajudar a compreender melhor a longa e detestável persistência do
preconceito de raça na sociedade brasileira.
Falta-nos no Brasil, parece-me, um esforço intelectual sistemático para recepcionar as críticas
dos estudos pós-coloniais dirigidos à episteme hegemônica das ciências sociais. Meu esforço no
presente artigo foi tentar apontar como a configuração da identidade nacional brasileira deu-se a partir
de movimentos que tomavam o binarismo atraso-modernidade como modelo. O pensamento social
brasileiro teve nesse processo uma dimensão tanto descritiva quanto prescritiva. Se a leitura que
intelectuais fizeram da sociedade estava baseada numa apreensão de categorias ocidentais a priori, as
propostas que decorreram dessa análise não poderiam, obviamente, escapar do engessamento que o uso
de tais categorias acarretava. Superar o atraso, portanto, era a única proposta que se poderia advir de
quem acreditava no atraso e se via nessa posição.
O autor Kabengele Munanga observou, com bastante clareza e lucidez, que “o exemplo de
alguns países ocidentais construídos segundo o modelo Estado-Nação, que passavam a imagem de que
havia uma unidade cultural conjugada com a unidade racial e onde ressurgem hoje os conflitos étnicos e
identitários, iluminaria o processo brasileiro e, sobretudo, a ideia de que existe uma identidade mestiça.
Uma tal identidade resultaria, a meu ver, das categorias objetivas da racionalidade intelectual e da
retórica política daqueles que não querem enfrentar os verdadeiros problemas brasileiros”24.
A dificuldade que os movimentos negros enfrentam para obter legitimidade no Brasil parece-me
ter uma relação bastante estreita com essa constatação feita por Munanga. Da mesma forma, o
problema do reconhecimento indígena perpassa por essa intrincada teia de significações em que
consiste a imaginação identitária brasileira. As resistências culturais existem, obviamente. As múltiplas
identidades brasileiras manifestam-se das mais variadas formas; no entanto, quando adentram a arena
do embate político, são sistematicamente inibidas por uma cultura nacional que, inteligentemente,
integrou e continua a integrar muitos símbolos dessa própria resistência.
O que gostaria de enfatizar, para concluir, é que o palco das relações étnico-raciais, no qual se
apresentam as ideias aqui elucidadas, constitui-se como material bastante rico para o pesquisador que
deseja estudar e entender o Brasil. Para além do debate político acerca da adoção ou não de medidas
concretas, como as ações afirmativas, para inclusão de negros e outros grupos étnicos subalternizados,
parece-me fundamental estudar e entender a maneira como esses grupos reivindicam seu pertencimento
à nação. Parece-me, no entanto, que a forma como apreendemos a identidade está embaçada por lentes
eurocêntricas, que não nos permitem enxergar para além dos binarismos da gramática da modernidade
canônica.
Elucidar essas questões é, sem dúvida, um desafio complexo e espinhoso, para o qual, no
entanto, acredito ser possível encontrar as melhores ferramentas numa conjugação entre pensamento
24 Munanga (2010), p.
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SOUZA, Ricardo Luiz. Pensamento social brasileiro. Uberlândia, EDUFU, 2011.
Introdução
D
esde o fim da segunda Guerra Mundial o mundo passa por diversas transformações,
interconexões e reconexões no sentido de tecer, ressignificar relações e ampliar a
compreensão de seu todo.
Essa tessitura foi impulsionada preponderantemente pelo desenvolvimento da tecnologia e pela
comunicação em suas diversas vertentes, que permitiram o questionamento e a ampliação da visão
sobre as dualidades, as fragmentárias e isoladas visões de mundo, permitindo a visualização e o
reconhecimento das interconexões entre eles.
Nesse sentido, os diversos ramos do conhecimento e as várias instituições sociais passaram e
ainda passam por revisões em suas estruturas valorativas justificadoras. Em âmbito jurídico
internacional os principais reflexos desse movimento foi a expansão dos direitos humanos, a ampliação
da compreensão da questão ambiental e a consciência de um necessário diálogo coletivo e cooperativo
entre os sujeitos internacionais em prol de uma organização solidária às necessidades da sociedade
internacional.
Aponta Celso Mello que a dominância dos Estados no território internacional tem sido reduzida
“O homem volta a ter direitos e deveres perante a ordem internacional. As organizações internacionais
entram no campo jurídico como um dos principais e mais atuantes sujeitos de direito”. (MELLO, 2001,
p. 331) Assim, é nesse contexto que o direito internacional vê-se obrigado a ressignificar seus entes,
suas relações e seu alcance para o século XXI.
O objetivo desse artigo é demonstrar como os direitos humanos contribuíram para o direito
ambiental internacional compor o núcleo de direito cogente internacional, e ainda, demonstrar que esse
entendimento já é tacitamente aceito pela Corte Internacional de Justiça.
Para realizar a pesquisa este artigo de revisão teórica e jurisprudencial partiu da análise de alguns
elementos da teoria da ordem jurídica internacional de Alfred Verdross na qual afirma a proximidade
1 Mestranda em Direitos Humanos (UFG), Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Direitos
Humanos (NDH – UFG), Membro do Grupo de Pesquisa “Memória, Cidadania e Direitos Humanos”, Linha de Pesquisa:
Direitos Econômicos, Sociais, Culturais e Justiça Ambiental (UFG - CNPq). Especialista Direito Público, Mediadora de
Conflitos pela Escola Nacional de Mediação (ENAM). Orientadora Acadêmica de Pós-graduação (UFG), Professora e
Pesquisadora em Direito Público, Direito Internacional, Direitos Humanos, Direitos Culturais, Justiça Restaurativa e
Métodos Apropriados de Resolução de Conflitos (Conciliação, Mediação e Arbitragem). Membro da Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) e da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP). Dupla formação e
atuação profissional, em Direito na área de Conciliação, Mediação e Arbitragem, Direito Internacional, Direito Ambiental
Internacional, Direitos Humanos e Direitos Culturais. (christianedeholanda@gmail.com)
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 628
em termos de responsabilidade e obrigações entre as esferas jurídicas internas e externas, relação esta
que tende a se aprofundar ao longo do século XXI, a partir da judicialização do direito internacional, do
reconhecimento de valores comuns entre as esferas internas e externas de todos os Estados,
consolidadas pela criação de institutos supranacionais como o jus cogens, consagrando assim proteção
inderrogável a qualquer pessoa e nação, a cerca dos direitos humanos e o direito ambiental
internacional inclusive na Corte Internacional de Justiça.
Para Verdross (1976, p. 15) a comunidade internacional será maior e mais forte, quanto maiores
e mais fortes, forem o número de valores comuns universalmente reconhecidos.
Infere-se nesse ponto o destaque dado pelo autor aos indivíduos e a influência que o Direito
Internacional Público possui sobre a vida deles, pois ao final, dentre as transformações percebidas neste
último século, observou-se que o D.I.P. além das relações entre Estados, interfere, por fim, das relações
entre os indivíduos.
A ordem jurídica internacional defendida por Verdross (1976, p. 112-113) deixa ao longe a
concepção de soberania absoluta de Vattel (2004) e propõe, à seu tempo, características necessárias a
essa ordem, 1) devido ao caráter provisório das normas jurídicas internacionais, há falta de órgãos
centrais (movimento contrário ao que ocorre hoje com a criação de cortes internacionais permanentes e
associações/comunidades transnacionais); 2) responsabilidade internacional (decidida pelas cortes
internacionais estabelecidas) 3) deveres comunitários; 4) presença do indivíduo no Direito Internacional
e formação de um direito internacional social, 5) diminuição da possibilidade de determinação de
sujeitos no direito internacional, mediatização do homem e, 6) normas jurídicas internacionais taxativas
e dispositivas com caráter de jus cogens (para esta pesquisa debruçar-se-á mais adiante no estudo desse
instituto e das contribuições que ele trouxe para o direito internacional geral).
Outros aspectos defendidos por Verdross, e relevantes para a discussão, tratam da relação entre
as ordens jurídicas internas e externas. Para o autor, há uma obrigação recíproca entre os Estados para
que respeitem a independência política e a ordem jurídica interna de cada país, todavia, cabe à ordem
jurídica internacional delimitar o âmbito de validade da ordem jurídica interna no caso de resolução de
conflitos. Aponta o autor que nenhum Estado poderá escusar-se de obrigação jurídica internacional
invocando o seu direito interno, ou ainda, que as leis, atos administrativos e decisões internas dos
tribunais dos Estados constituem-se em fatos que podem ser mensurados segundo o direito
internacional. (VERDROSS, 1976)
Satisfeito o intuito de trazer à discussão alguns elementos da teoria do ordenamento
internacional de Alfred Verdross, corrente seguida por Fausto Quadros & André Gonçalves Pereira
(2002) e Halajczuk (1978), observa-se que destas discussões elaboradas ainda no início do século XIX e
construídas ao longo do século XX, possuem aproximação concreta com o que se apresenta hoje nas
discussões sobre o direito internacional geral, que é o debate sobre as normas internacionais
imperativas (jus cogens), elemento presente para Verdross desde a Grundnorm, consolidado expressamente
na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (C.V.D.T. - 1969) e pela Corte Internacional de
Justiça (C.I.J.) em julgados que serão retomados posteriormente, mas, que, por ora, reabrem a discussão
sobre a hierarquia das fontes do direito internacional.
As fontes do Direito Internacional Público estão elencadas, não exaustivamente, no artigo 38
do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Nele não está estipulada qualquer hierarquia entre as
fontes, são elas: 1) convenções internacionais, sejam gerais ou particulares, que estabeleçam regras
expressamente reconhecidas pelos Estados litigantes; 2) costume internacional como prova de uma
prática generalizada aceita como direito; 3) princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações
civilizadas; e, ainda, 4) decisões judiciais e as doutrinas dos publicitários de maior competência das
diversas nações. (ONU, 1979).
No entanto, a partir da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados ratificada pelo Brasil
em 23 de maio de 1969 e promulgada pelo Decreto nº 7.030 de 14 de dezembro de 2009, de seu artigo
53 pode extrair-se a previsão expressa de jus cogens, ao dispor sobre "Tratados incompatíveis com uma
norma imperativa de direito internacional geral (jus cogens)”, serão nulos por serem incompatíveis com
uma "forma imperativa de direito internacional".
[...] uma norma dessa natureza é uma regra aceita e reconhecida pela comunidade
internacional dos Estados no seu conjunto enquanto lei à qual nenhuma derrogação é
permitida, e que não pode ser modificada, a não se por nova norma de Direito
Internacional geral da mesma natureza. (C.V.D.T., 1969)
Todavia, não se encontra na Convenção rol expresso e taxativo sobre quais sejam estas normas
imperativas que não são afetadas nem mesmo em situações de ruptura das relações diplomáticas ou
consulares entre os Estados, como aponta o artigo 63 do presente Tratado. (C.V.D.T., 1969)
Na origem desse conceito, as primeiras discussões sobre jus cogens situavam-se no âmbito do
direito privado no final do século XVII, quando se tratava do tema “doação”. No século seguinte,
passaram a se referir à normas que limitavam o direito privado e a supremacia das normas públicas
cogentes. “Corresponde ao jus strictum do Direito Romano, que se contrapunha ao jus dispositivum, isto é,
o Direito que nascia da vontade das partes”. (TOLEDO JÚNIOR, 2006, p. 45).
O jus cogens, ius cogens, direito cogente, norma peremptória ou imperativa corresponde a uma
norma de caráter impositivo que goza de status distinto na ordem jurídica internacional em virtude de
seu significado fundamental para a sociedade planetária. (PETERKE, 2009) Por isso, “[…] are
considered peremptory in the sense that they are mandatory, do not admit derogation, and can be
modified only by general international norms of equivalent authority”. (CRIDDLE, E. J. & FOX-
DECENT, 2012, p. 332)
Não obstante, em contraposição à essa imperatividade, a Convenção de Viena explica que existe
um caráter dinâmico e flexível do jus cogens previsto no final do artigo 53 e 64, sendo que este último
artigo, indica a possibilidade de surgimento de outras normas de jus cogens emanadas da historicidade
humana, das necessidades e valores a serem protegidos pela sociedade planetária.
Pelo exposto, percebe-se que a autoridade e imperatividade do jus cogens não deve
necessariamente decorrer de tratado, convenção ou constituição internacional estabelecida, e sim, dos
valores proclamados, aceitos e reconhecidos como de interesse comum, fundamentais em uma
determinada época para a coletividade mundial. "the criterion for these rules consist in the fact they do
not exist to satisfy the needs of the individual states but the interest of the whole international
community". (VERDROSS, 2012, p. 58).
Ainda que para muitos juristas a identificação de normas de jus cogens permaneça imprecisa, essa
é uma de suas características principais, estas normas precisam ser identificadas, reconhecidas dentre os
valores e anseios da sociedade planetária (atividade a que se destina este artigo), contudo, a sua
existência, adoção importância e repercussão são inegáveis.
Verdross (1976) à sua época já delineava tipos de normas de jus cogens, normas essas que são
pacificamente reconhecidas como tal, ou seja, a) todas as normas de caráter humanitário; b) todas as
previstas na Carta da ONU proibindo o uso da força. Antônio Augusto Cançado Trindade (1981)
lembra que durante as discussões da Comissão de Direito Internacional da ONU anteriores à
Convenção de Viena, vislumbrava-se como normas contrárias ao caráter peremptório aquelas que
abordassem o uso ilícito da força e crimes internacionais – tráfico, pirataria e genocídio. Em 1951 a
C.I.J. ressaltava o caráter obrigatório a todos os Estados dos princípios previstos na Convenção sobre
Genocídio. Lambert (2003, p. 115) lembra que à época da elaboração da Convenção de Viena eram
considerados contrários ao jus cogens, todas as práticas que incorressem “no uso ilícito da força [...];
execução de atos qualificados de crimes contra a humanidade; comércio de escravos, pirataria,
genocídio; ou violação dos princípios fundamentais de Direito Humanitário”. Além destas, Portela
(2011) aponta que compõe matéria de direito imperativo internacional, as que tratam de direitos
humanos, proteção do meio ambiente, desenvolvimento sustentável, paz, segurança internacional,
Direito de Guerra, proscrição de armas de destruição em massa e direitos e deveres fundamentais do
Estado.
Mazzuoli (2001, p. 88 - 89), estende este elenco de normas cogentes abarcando:
a) o costume internacional geral ou comum, a exemplo das normas protetoras dos próprios
fundamentos da ordem internacional, como a proibição do genocídio ou do uso da força fora
do quadro da legítima defesa; as normas sobre cooperação pacífica na proteção de interesses
comuns, como a liberdade dos mares; as normas que proíbem a escravatura, a pirataria, o
genocídio e a discriminação racial; as normas de direito humanitário, que protegem os civis em
tempo de guerra etc.; b) as normas convencionais pertencentes ao direito internacional geral, a
exemplo dos princípios constitucionais constantes da Carta das Nações Unidas, como os da
preservação da paz, da segurança e da justiça internacionais etc.; c) o direito internacional geral,
de fonte unilateral ou convencional sobre direitos e garantias fundamentais do homem, como a
Declaração Universal dos Direitos do Homem e os dois Pactos de 1966 (Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos e Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais).
Porém, há uma discussão necessária no que tange à aplicação de normas de jus cogens pela Corte
Internacional de Justiça. O artigo 59 do Estatuto da C.I.J. diz que as decisões proferidas pela Corte são
obrigatórias apenas para as partes em litígio. Nesse ponto, surge um conflito aparente, pois se há
constatação de que o jus cogens goza de status supralegal internacional, nas matérias que forem
identificadas como de jus cogens este deve prevalecer e seus efeitos, devido o caráter de interesse geral,
em tese, gerarão efeitos erga omnes. Há que se rediscutir a compatibilidade do artigo 59, com o artigo 60
do Estatuto da C.I.J. frente ao alcance das sentenças quando envolverem matéria de jus cogens.
A Corte Internacional de Justiça tem assim se pronunciado em diversos casos como o clássico
Barcelona Traction Light and Power Company, Limited (Bélgica v. Espanha), no qual a Corte lembra
que ao se considerar a relevância dos interesses em pauta, exemplificando-os como os que ofendem aos
direitos fundamentais, entre outros, as obrigações tratadas são erga omnes. (C.I.J., 1970)
Há outros casos nos quais se percebe o delineamento de decisões onde as obrigações
imperativas (jus cogens) com efeito erga omnes, são reconhecidas: observe-se o Caso do Pessoal
Diplomático e Consular dos Estados Unidos em Teerã, nesta discussão a Corte reconhece “obrigações
imperativas”; (C.I.J., 1979) no Caso sobre Atividades Militares e Paramilitares na Nicarágua fala-se
sobre a “proibição do uso de força”; (C.I.J., 1986) e ainda, no Caso sobre Testes Nucleares (Austrália e
Nova Zelândia v. França), a Nova Zelândia alegou que os experimentos nucleares realizados pelo
governo francês no Pacífico Sul incorriam em violação para além da área e dos direitos neozelandeses,
afetaria não só os direitos dos povos e o territórios do Pacífico, como também, de toda a comunidade
internacional. (C.I.J., 1973-1974)
Nesses e em outros casos, não só foram reconhecidos direitos cogentes, como direitos
fundamentais humanos e ao meio ambiente, cujo julgamento aponta a grande possibilidades de
extensão de danos ao ser humano e ao meio ambiente, possivelmente, o melhor meio protetivo estaria
com o reconhecimento do efeito erga omnes.
Cançado Trindade (2004) apresenta duas dimensões de alcance para as obrigações erga omnes
advindas do jus cogens, um delas horizontal, por atingir a todos os seres humanos pertencentes à
comunidade internacional (erga omnes partes), e outra vertical, por vincular todo o poder público e os
indivíduos.
A força do efeito erga omnes das obrigações de jus cogens compreendem obrigações vis-à-vis não
somente aos Estados como a toda comunidade internacional, decorre da autoridade dos valores
defendidos e da necessidade de sua manutenção, independente da figura do objetor persistente, ou ainda,
de regras de ordem interna dos países.
Cançado Trindade aponta em seus estudos que
The way will thus be paved for the consideration of the gradual expansion of the material content of
ius cogens in contemporary international case-law, (...) The fact that concepts both of the jus cogens,
and of the obligatinos (and rights) erga omnes, ensuing therefrom, already integrate the conceptual
universe of contemporary International Law, the new jus gentium of our days, discloses the reassuring
and necessary opening of this latter, in the last decades, to certain superior and fundamental values.
This significant evolution of the recognition and assertion of norms of jus cogens and obligations erga
omnes of protection is to be fostered, seeking to secure its full pratical application, to the benefit of all
human beings. In this way the universalist vision of the founding fathers of the 'droit de gens' is being
duly rescued. New conceptions of the kind impose themselves in our days, and, of their faithful
observance, will depend to a large extent the future evolution of contemporary International Law.
(CANÇADO TRINDADE, 2009, pg.29-30)
Outra reconexão necessária deste século diz respeito à vida, ou melhor, o direito à vida porque
este direito é múltiplo em suas manifestações e condições de existência, e os direitos humanos também
contribuíram com esse tópico proclamando o direito à vida digna (dignidade humana) e dividindo-o em
duas dimensões (PETERKE, 2009), uma vertical, que diz respeito ao direito à vida em seus vários
momentos de existência da fecundação à morte, e outro horizontal, que traduz a preocupação sobre as
condições que permitirão ao ser humano usufruir desse bem, ou seja, a qualidade de vida que só é
possível realizar-se a partir da congregação de diversos fatores como alimentação, saúde, educação,
meio ambiente equilibrado entre outros.
Sven Peterke aponta em um de seus estudos que
[...] a proteção à vida desdobra-se para abarcar os chamados riscos ambientais, que
afetam o direito à vida digna, consagrando o direito à vida sustentável. Utilizando o
mesmo raciocínio aplicado na exigência de uma vida em condições dignas, fica claro
que a vida do ser humano exige o respeito a um meio ambiente protegido e
equilibrado. Viver em um mundo poluído, desequilibrado abrevia a vida humana e
ainda põe em risco o planeta e o futuro da espécie. (PETERKE, 2009, p.247)
Demonstra o autor que esta não é uma discussão nem realidade jurídica tão distante ou
inaplicável pois
[...] Os melhores exemplos de proteção à vida sustentável encontram-se na
jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos, que analisou a vinculação
entre o direito à vida e os riscos ambientais no Caso Oneryldiz vs. Turquia. Neste
caso, nove membros de uma família morreram após um deslizamento de terras, fruto
das chuvas, erosão do solo e ocupação irregular de encostas. A Corte Europeia decidiu
que o Estado havia violado seus deveres de proteção à vida, uma vez que não havia
realizado obras ambientais preventivas nem alertado dos riscos de deslizamentos ou
retirado os moradores irregulares. (PETERKE, 2009, p. 247-248)
Celso Lafer (1988) sequencia uma série de direitos que surgiram concomitantemente com a
evolução dos direitos humanos, dentre eles o direito ao desenvolvimento pautado em uma nova ordem
econômica internacional, o direito à paz e o direito ao meio ambiente como espaço comum e de
preservação necessária para benefício da humanidade em geral, que não admite retrocessos na matéria.
Estes são os fatores, que interligados, representam boa parte dos problemas que afetam o meio
ambiente: a questão econômica que impõe determinado padrão de desenvolvimento, consumo e
circulação de riquezas, e, a questão ambiental, parte decorrente dos processos naturais do próprio meio,
e outras aceleradas ou impostas pela ação humana, estas últimas, também estão intrinsecamente
relacionadas ao desenvolvimento.
Lafer lembra que
O direito ao meio ambiente equilibrado é reconhecido como um direito fundamental
no âmbito internacional desde a Declaração de Estocolmo de 1972 e das conclusões
da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento”.
(LAFER, 1988, p. 31)
Situações que um pouco antes, na Conferência da Biosfera (Paris - 1968) foram resumidas em
três pontos principais de observância para a organização e planejamento do futuro dos países:
constataram-se as mudanças no meio ambiente com interferência humana, reconheceu-se como um
sistema toda a biosfera, determinou-se o trabalho interdisciplinar e a necessidade de pesquisas para
desenvolver soluções aos problemas ambientais.
Esse tópico retoma o que foi apontado por Castels (apud. RAMOS, 2011, p. 224), que
“‘environmental factors influence migrations and migrants alter environments’ and that this has always been part of the
human condition”, apesar do homem e das migrações sempre terem afetado o meio ambiente (vice-versa)
e serem parte da condição humana, esses fatores têm-se acirrado, inclusive com a possibilidade de
perda de territórios por diversos fatores. Um exemplo dessa situação é Estado da Polinésia chamado
Tuvalu, composto por um arquipélago de ilhas cujo ponto mais alto de seu território está acima do mar
a cerca de cinco metros de altura, fato preocupante devido a elevação do nível do mar. (ONU, 2012). O
país continuará a existir mesmo sem uma base territorial e terá representatividade internacional para
defender seus interesses? Para onde será deslocada a população? Qual país ou países cooperarão na
recepção dessas pessoas?
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) no ano de 2007 estimou que a
população migrante naquele ano era de 170 milhões com perspectiva de ser aproximadamente 700
milhões no ano de 2050. Observa-se o salto que essa estimativa teve em um curto período de tempo,
pois pouco tempo antes, em 1998, a previsão era de 150 milhões de deslocados ambientais em 2050.
(IPCC, 2007)
Cabe ressaltar que as migrações não ocorrem apenas por fatores climáticos, pois são
reconhecidamente elevados os números de deslocados/migrantes internacionais e inter-regionais,
devido a fatores econômicos, tome-se como exemplo a atual crise europeia, tudo isso, motivado pelos
termos e condições de desenvolvimento que promovem migrações e interferem na conjuntura
ambiental humana. Essas e outras situações precisarão ser enfrentadas pelo direito internacional e seus
tribunais em um futuro bem próximo.
O meio ambiente como parte do jus cogens poderia inclusive antecipar a solução dessas
discussões tornando a matéria ambiental humana como ponto de observância obrigatória de cada ato
jurídico ou administrativo.
A força da necessidade da afirmação do jus cogens em matéria ambiental já está reconhecida legal
e doutrinariamente. É fato notório que a cada afirmação sobre direito humano impõe-se uma obrigação
ambiental implícita ou explícita, por serem matérias indissociáveis. Deve-se agora buscar ampliar a
implementação do jus cogens em matéria ambiental humana nas decisões das cortes internacionais.
Dentre os principais documentos internacionais publicados, a Declaração sobre o Direito ao
Desenvolvimento (1986) em seus artigos segundo, terceiro, quarto e oitavo, reforça a necessidade da
cooperação internacional e da participação ativa e popular para a solução das questões sobre o
desenvolvimento. (ONU, 1986)
A cooperação internacional está prevista no artigo primeiro, cinquenta e cinco e cinquenta e seis
da Carta das Nações Unidas e compõe o Princípio vinte e quatro e sete da Declaração de Estocolmo
(1979) e do Rio de Janeiro (1992), respectivamente, apresentando o intuito principal de proteção
anterior do dano ambiental, ou seja, sua prevenção.
Apesar de todas as previsões legais, acrescenta-se que o princípio da cooperação deveria ser
guiado por outro princípio muito utilizado no direito comunitário, chamado princípio da
subsidiariedade. (TORRES, 2001) Este princípio organiza toda a comunidade em uma cadeia solidária,
coobrigando todos os seus entes segundo o seguinte raciocínio, aqueles que forem mais capacitados em
recursos, conhecimento ou tecnologia, auxiliarão os outros entes que são hipossuficientes nas
atividades que, visando o bem comum, se pretende empreender.
Dentre os textos legais internacionais cabe destacar três cuja matéria demonstra grande avanço
na discussão sobre a relevância do direito ambiental a partir da importância da compreensão sobre os
efeitos transfronteiriços da poluição e os mecanismos de proteção previstos, primeiramente
demonstrados na Convenção da Basileia (1989), segundo, a necessária prevenção por meio da avaliação
de impacto ambiental transfronteiriço previsto na Convenção de Espoo (1991), e por fim, os três
pilares protetivos estabelecidos pela Convenção de Aarhus (1998), o direito à informação, participação
pública nos processos de decisão e acesso à justiça, pois, apesar desta última convenção ter nascido em
âmbito comunitário europeu, pela relevância, deve assumir caráter geral, tanto em relação aos princípios
invocados quanto à estruturação da proteção do direito humano ao meio ambiente.
Após ampla demonstração legal e doutrinária que sustenta o direito ao meio ambiente como
direito fundamental, ou melhor, o direito ambiental humano, em razão da seriedade e premência do
tratamento da matéria ambiental, bem como de sua consolidação com jus cogens internacional passa-se à
fundamentação jurisprudencial que corrobora esse feito.
A crescente presença das discussões ambientais nos tribunais permite aos julgadores ampliar o
domínio técnico-jurídico sobre a temática e, por conseguinte, implementá-la na jurisdição dos tribunais
internacionais, inclusive destaca-se a possível aproximação de forma expressa do jus cogens em matéria
ambiental internacional, o que, por hora, pode ser apenas abstraído das sentenças por meio da análise
de dois casos peculiares, julgados no âmbito da Corte Internacional de Justiça.
O artigo trinta e seis do Estatuto de Haia elenca dentre as competências da Corte, a resolução
de questões de direito internacional, sobre a violação de obrigação internacional, questões de
interpretação de tratado e a discussão sobre a extensão ou natureza de reparação por quebra de
obrigação internacional.
A Corte já apreciou especificamente em matéria ambiental até 2012, três casos, o primeiro de
caráter consultivo em 1996 que arguia sobre a licitude da ameaça ou emprego de armas nucleares, e dois
outros litigiosos, um em 1997 e outro em 2010, envolvendo discussão sobre descumprimento de
obrigação internacional ambiental transfronteiriça.
No Caso Projeto Gabcíkovo-Nagymaros (Hungria x Eslováquia), em 1997, e no Caso das
usinas de celulose sobre o rio Uruguai (Uruguai x Argentina) em 2010, também conhecido com caso
“Fray Bentos” em razão das usinas se localizarem próximas a essa região, a base da discórdia entre os
países em seus respectivos casos são os possíveis impactos ambientais quanto aos rios fronteiriços, no
primeiro caso o rio Danúbio, no segundo o rio Uruguai, nas duas situações, os países alegam
descumprimento de obrigações internacionais ambientais, baseando suas argumentações em acordos
bilaterais firmados entre as partes. (C.I.J., 1997, 2010)
No Caso Hungria x Eslováquia (1997), a Corte demonstra clareza sobre a importância do meio
ambiente, a obediência aos princípios de direito ambiental internacional e a preocupação que os
Estados devem demonstrar ainda mais quando as ações de um país interferirem no meio ambiente de
outro. Destaca-se na sentença deste caso o parágrafo 140 onde lê-se:
It is clear that the Project's impact upon, and its implications for, the environment are of necessity a
key issue. The numerous scientific reports which have been presented to the Court by the Parties - even
if their conclusions are often contradictory - provide abundant evidence that this impact and these
implications are considerable. In order to evaluate the environmental risks, current standards must be
aken into consideration. This is not only allowed by the wording of la production Articles 15 and 19,
but even prescribed, to the extent that these articles impose a continuing - and thus necessarily evolving
– obligation on the parties to maintain the quality of the water of the Danube and to protect nature.
The Court is mindful that, in the field of environmental protection, vigilance and prevention are
required on account of the often irreversible character of damage to the environment and of the
O posicionamento da Corte nesse julgamento considera o meio ambiente como uma questão e
um direito fundamental. Os impactos no meio ambiente impõem a necessidade de avaliação dos riscos
ambientais em caráter preventivo da obra para prevenção e constante vigilância para manter a qualidade
do meio, no caso, o rio. A prevenção e a vigilância são os recursos necessários para se evitar danos
maiores à natureza, pois o histórico de degradação ambiental revela a imprudência no tratamento da
matéria dada até então. Uma situação que não justifica o prolongamento desta situação pois houve
grande avanço científico e tecnológico que permitem amenizar esses efeitos, e ainda, criadas normas de
grande relevância que regulamentam o tema e devem ser implementadas pelos Estados para regular
situações atuais e futuras ao conciliar o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental.
Quanto ao caso Uruguai x Argentina, a Corte avança apontando em sua sentença para a
necessidade de se equilibrar direitos e necessidades das partes (§175), reconhece a importância da
realização de avaliação de impacto ambiental transfronteiriço (§203) e ainda, a necessidade contínua de
discussão entre os países, de participação da população nas decisões e a obrigação conjunta das partes
sobre o princípio da prevenção e cooperação para prevenção (§§101, 102 e 187), pois são justamente as
obrigações de informar, notificar (§37) que criam as condições para a cooperação (§113) visando a
proteção do rio e dando continuidade à sua preservação por meio de um dos aspectos mais importantes
a sua contínua vigilância (§188), pois lembra que o objetivo do desenvolvimento sustentável é o
equilíbrio entre o uso e a proteção do meio ambiente (§§ 176 e 177). A decisão retoma ainda o artigo
vinte e sete da Convenção de Viena e os princípios sete e oito do PNUMA sobre a necessidade da
cooperação para efetivar a proteção ambiental.
Se de um lado a Corte Internacional de Justiça reconhece o “peso” da importância do meio
ambiente, de outro, falta em suas decisões, expressar claramente esse valor juridicamente protegido e
tacitamente delineado sob a forma de norma cogente.
De outro ponto, pode-se considerar que a Corte ao reconhecer o peso da importância do meio
ambiente e das novas normas e medidas implementadas considera-os como fruto de um crescente
aprimoramento do pensamento da sociedade internacional, demonstra que o meio ambiente necessita
de supremacia frente às decisões e não admite a retroatividade (PRIEUR, TIETZMANN E SILVA,
2012) sob condição de se incorrer em “involução”.
Já que a Corte delineou avanços sobre as questões da natureza não seria ela ou qualquer outro
Estado a advogar o seu retrocesso, pois isso representaria uma afronta não somente à comunidade
daquele Estado como também a toda comunidade internacional, visto que ao se reconhecer a
coobrigação entre Estados em razão do compartilhamento transfronteiriço do bem ambiental, isto só é
feito em razão de fronteiras políticas, pois esse patrimônio não reconhece fronteiras e o que for
realizado em determinado trecho sobrestará possivelmente a qualidade do aproveitamento desse
patrimônio por outras comunidades que também sirvam-se desse bem.
Assim, o exemplo do rio Danúbio e do rio Uruguai vem reforçar essa ilustração, pois pela
própria condição de existência dos leitos dos rios e da permeabilidade da água, a poluição empreendida
em um trecho, será transferida de um ponto a outro facilmente, assim, a questão da poluição
transfronteiriça deixa de obedecer a lei dos homens e segue seu curso pela lei da natureza, transferindo
os prejuízos para os demais entes da comunidade internacional, além das partes envolvidas no
processo. Observa-se que esta é ou não uma forma de reconhecimento do caráter de cogência das
normas ambientais?
Portanto, pode se considerar como evidente o impacto sobre a implementação dos direitos
ambientais humanos como normas de jus cogens, por conseguinte, “eventual ato normativo ou decisão
de órgão judicial de uma organização internacional de integração que pretensamente viole, por
exemplo, o direito fundamental ao meio ambiente, pode se considerado violador do jus cogens e com
isso, nulo.” (RAMOS, 2011, p.560)
Assim, a partir de seus últimos julgados supracitados a Corte Internacional de Justiça delineou
situações de cogência de normas ambientais, pois expressamente reafirmou princípios e normas de
direito ambiental internacional e de direitos humanos ao meio ambiente, que independem, ou seja, são
superiores aos tratados entre as partes.
Considerações finais
prescrições, há no jus cogens os elementos construtivo e reflexivo, histórico, social e político, que
emanam da sociedade para que lhe mantenha a unidade em determinada época.
Como na época atual, onde as noções de soberania, de fronteiras geográficas e políticas foram
tocadas como consequência da comunicação e da tecnologia que ampliaram as visões e possibilidades
de contato com outras realidades, onde o sujeito e as diversas organizações civis se empoderam e
ganham destaque no cenário internacional, e assim, possam se manifestar em prol não apenas da
garantia e sim da efetivação do direito ao meio ambiente e dos direitos humanos, como fundamento
para as relações internas e externas entre os Estados, já que são eles, além da paz, os primeiros a serem
destruídos nos conflitos de interesses entre as nações.
A nova ordem jurídica internacional do século XXI passa a reconhecer que toda obrigação de
direitos humanos impõe uma obrigação ambiental implícita ou explícita, consequência direta das
interações do ser humano no meio ambiente.
Legal e doutrinariamente a imprescindibilidade do meio ambiente para a realização dos direitos
humanos permite sua agregação dentro da referência biocêntrica, sob a denominação em direitos
ambientais humanos pela proeminência da questão.
A jurisprudência internacional por meio da Corte Internacional de Justiça, embora tímida ou
tácita, não está alheia a todo esse processo. Pois no delinear dos julgamentos apresentados, cujo o foco
da matéria tratada era o meio ambiente, a Corte passou a defender princípios e institutos jurídicos
(cooperação, solidariedade, não-retrocesso ambiental, acesso à informação, participação, avaliação de
impacto ambiental transfronteiriço) que segundo ela própria constituem-se obrigações
conjuntas/recíprocas (prevenção, conservação, preservação , vigilância contínua) internacionais entre os
Estados independente de outros documentos que possuam entre eles e a estas não podem se furtar.
Aponta-se no intuito de evitar maiores danos que o respeito à não-regressividade, um dos
princípios imprescindíveis ao direito ambiental humano, e portanto, deve se constituir como uma das
balizas de aplicação do jus cogens com permeabilidade jurídica/impositiva em qualquer ato ou decisão em
âmbito interno ou externo.
Desta forma, a partir da efetivação do meio ambiente como jus cogens internacional, como
demonstrou esse artigo, matéria sustentada em convenção, doutrina e agora jurisprudência
internacional, o jus cogens torna-se um instituto a ser respeitado e aplicado em âmbitos externos e
internos pelos diversos países.
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Introdução
A
juventude é uma temática de estudo complexa, portadora de múltiplos significados que
estão relacionados aos distintos pertencimentos que esses indivíduos têm nas sociedades. A
compreensão da categoria juventude implica em um exercício reflexivo que deve considerar
em primeiro lugar as juventudes uma vez que tratam-se de sujeitos múltiplos que não podem ser
categorizados de forma singular.
Ser jovem na zona rural não é uma experiência vivenciada da mesma forma para um jovem da
zona urbana; ser jovem de uma classe menos favorecida é diferente de ser jovem de uma classe mais
abastada assim como ser jovem mulher não resulta nas mesmas experiências de ser jovem homem.
Para Margulis e Urresti (1996) a juventude, como toda categoria socialmente constituída, que
alude a fenômenos existentes, possui uma dimensão simbólica, mas também precisa ser analisada em
outras dimensões que considerem os aspectos materiais, históricos e políticos nos quais toda produção
social se desenvolve na vida de um indivíduo.
Em tempos de uma sociedade que tem se modificado rapidamente, observa-se que a juventude
é um período de construção de identidades que constitui um universo social descontínuo e em
constante transformação. A noção de juventude varia de sociedade para sociedade e assim não pode ser
explicada por conceitos determinantes como, a transição entre a vida infantil e a vida adulta.
A imprecisão do conceito embora visualizada pelos pesquisadores desse campo de estudos no
Brasil apenas recentemente é reconhecida como um elemento que deve ser considerado na construção
de políticas públicas para juventude. Para organismos internacionais como a Organização das Nações
Unidas - ONU a juventude compreende a faixa etária que vai dos 15 anos até os 24 anos enquanto para
a legislação brasileira, jovens são aqueles que ocupam a faixa etária dos 15 aos 29 anos.
Além de partirem de princípios limitadores da juventude como a faixa etária e a condição
biológica, que possibilitavam uma compreensão “universal” das demandas juvenis, as primeiras
políticas de juventude no Brasil datadas dos anos 1980 foram fundamentadas em uma visão da
juventude como um ser vulnerável. Esta vulnerabilidade seria combatida com políticas de tutela que
1Doutora em Ciências Sociais pela UnB, Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento
Regional e do curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Tocantins.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 645
pudessem modelar o comportamento dos jovens e evitar que os mesmos pudessem cometer atos de
infração.
As políticas, dessa forma, eram direcionadas aos jovens pobres das periferias que precisavam ter
seu tempo livre ocupado para evitar que cometessem crimes. Esta visão reducionista e limitadora da
juventude pela política pública, não via o jovem como ator social, portador de múltiplas identidades e
que necessita de políticas que estejam atentas as suas especificidades e diversidades.
Além de uma visão universal da juventude notava-se a predominância de uma perspectiva
androcêntrica, na qual as jovens foram sendo invisibilizadas. Essa invisibilidade segundo Papa (2009)
afetou o campo das políticas públicas resultando em uma escassez de ações que incorporam questões
concernentes às especificidades dessas jovens mulheres.
A juventude para as mulheres é construída de forma distinta da juventude para os homens.
Desde a infância através dos processos de socialização que se dão em diferentes espaços como na
família, na escola e na igreja as mulheres têm sido educadas ao longo dos tempos para exercerem
atividades de cuidados relacionados à esfera privada e os homens para exercerem atividades laborais e
políticas na esfera pública.
Essa construção dos papéis de gênero iniciada na infância, perdura na juventude e segue sendo
reforçada na vida adulta com poucas alterações. Para Prá e Cheron (2011) abordagens feministas
identificam que o processo de atribuição de padrões de comportamento social ocorrido entre infância e
adolescência influenciam na formação da identidade das pessoas. As diferenças aí constituídas passam,
então, a orientar projetos e estilos de vida: daí o trabalho produtivo representar para os jovens a
possibilidade de ingresso na vida adulta; em sentido inverso, esse ingresso se dá para as jovens.
O gênero se manifesta dentro de uma variedade de situações que vão construindo os papeis
sociais dos homens e das mulheres na sociedade. A força, a proteção, a autoridade, entre outras coisas,
são atribuídas ao gênero masculino enquanto a sensibilidade, a fragilidade, a obediência, entre outras
coisas, são atribuídas ao gênero feminino.
Para Schwarz (2007) o gênero é uma categoria analítica que permite analisar as posições
relacionais dos sujeitos em uma estrutura hierárquica de poder que recorta, no jogo das diferenças, suas
identidades e espaços próprios de ação. O gênero vai sendo definido ao longo da vida e nunca é um
produto acabado, está permanentemente em processo.
Assim como existem linhas de conflito na divisão entre o que é público e o que é o privado, o
mesmo acontece entre o adulto e o jovem. A passagem para a vida adulta em uma sociedade patriarcal e
heterossexista para os meninos se dá pela saída para o mundo público enquanto para as mulheres a
saída se dá pelo começo da vida reprodutiva que reafirma a sua presença no mundo privado e
doméstico. As mulheres jovens ficam adultas mais cedo do que os homens jovens e a elas são atribuídas
várias responsabilidades como o cuidado com o lar, com a família e irmãos.
Por essa perspectiva, o presente artigo tem por objetivos num primeiro momento contextualizar
a atuação dos movimentos das jovens feministas. Em seguida buscamos compreender a construção da
pauta das jovens mulheres na Secretaria Nacional da Juventude com a criação do GT Jovens Mulheres.
Por fim, apresentamos algumas considerações sobre os resultados deste GT e os desafios impostos
para consolidação da desta pauta no governo federal.
As jovens feministas vão ampliando sua atuação e ganhando visibilidade. O Encontro Nacional
de Jovens Feministas ocorrido em 2008 reuniu mais de 100 jovens feministas de vários estados do país
para discutir a condição da jovem mulher e suas principais demandas em cada região.
No campo institucional a articulação das jovens mulheres também passa a ser notada e aos
poucos expande em direção a cobranças de demandas para o Estado. A criação da Secretaria Especial
de Políticas para as Mulheres – SPM em 2003 e a criação da Secretaria Nacional da Juventude – SNJ em
2005 simbolizou a abertura de novos espaços políticos para a apresentação de demandas deste
segmento. As conferências organizadas por tais pastas mobilizaram jovens mulheres na esfera local,
estadual e federal resultaram na construção de planos de políticas nacionais que expressam em suas
diretrizes as demandas de diversos atores sociais, entre eles, as das jovens mulheres.
As duas Conferências Nacionais de Políticas Públicas para Juventude ocorridas em 2008 e 2011
também demonstraram a força da mobilização das jovens mulheres. Como resultado da primeira
conferência foram elencadas vinte e duas prioridades de ação para a construção de uma política
nacional de juventude, entre elas destaca-se a necessidade de implementar políticas públicas de
promoção dos direitos sexuais e direitos reprodutivos das jovens mulheres, garantindo mecanismos que
evitem mortes maternas, aplicando a lei de planejamento familiar, garantindo o acesso a métodos
contraceptivos e a legalização do aborto.
A segunda conferência contou com a participação significativa das jovens mulheres que
conseguiram aprovar no Eixo 3 da conferência “Direito à experimentação e qualidade de vida”
propostas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos das jovens mulheres como a garantia do
acesso das mulheres jovens aos exames preventivos e vacina gratuita contra o vírus do papiloma
humano - HPV2, com atendimento humanizado, garantindo o acesso aos medicamentos e
2 Em julho de 2013 o Ministério da Saúde anunciou que a partir de março de 2014, a vacina contra o HPV será oferecida na
rede pública brasileira, inicialmente, para meninas de 11 a 13 anos e a partir de 2015 espera atender meninas de 9 e 10 anos.
Vírus do papiloma humano é responsável por cerca de 90% dos casos de câncer do colo de útero, o segundo tipo de câncer
mais frequente em mulheres. Ele é transmitido por meio do contato sexual.
descriminalização e legalização do aborto, situando-o como um grave problema de saúde pública e que
exige atendimento humanizado às mulheres jovens em situação de abortamento; promover os direitos
sexuais e reprodutivos da juventude, tais como a distribuição de preservativos femininos e da pílula do
dia seguinte no sistema único de saúde e nas farmácias populares.
No Eixo 5 “Direito à participação” uma das propostas aprovadas destaca que os Conselhos de
Juventude no Brasil devem se constituir garantindo a participação das mulheres.
Como é possível notar as jovens feministas brasileiras vão ganhando espaço para as suas
mobilizações, reivindicações e têm mostrado através da participação nos movimentos sociais e nos
espaços de governança descentralizada que as políticas para mulher e para a juventude não podem ser
pensadas de maneira universal, existem especificidades e vivências dessas jovens que precisam ser
consideradas nesse processo.
Tomando a participação social como elemento fundamental de seu trabalho, a SNJ instituiu, no
ano de 2011, um Grupo de Trabalho de Jovens Mulheres – GTJM que atuou até o ano de 2013.
O GTJM foi um espaço de discussão entre entidades da sociedade civil, da SPM, do Ministério
da Educação e da ONU Mulheres que teve entre seus objetivos construir o perfil das jovens mulheres
brasileiras e de discutir ações específicas para assegurar a inclusão e autonomia dessa parcela da
juventude brasileira.
Ana Laura Lobato3 consultora da ONU Mulheres que acompanhou as atividades do GTJM, a
juventude e as mulheres em toda a sua integridade avançaram no sentido de ter do governo o
reconhecimento que é preciso políticas públicas especificas para esses segmentos. Lobato destaca que
foi importante a criação desse espaço pois:
Ter um espaço em que as jovens possam não só colocar demandas mas de pensar o
processo de elaboração e se possível também acompanhar o monitoramento na
implementação da política é fundamental. Reconhecer o protagonismo delas como
agentes da transformação e não só como sujeitos passivos que devem receber um
retorno do governo. Considerando que o GT tenha sido formado por jovens
mulheres de diferentes regiões do país, de diferentes formações e trajetórias políticas
também bastante distintas eu acho que a gente pode alcançar um olhar amplo e
diverso sobre as principais problemáticas desse segmento para pautar políticas
públicas que de fato atendam as necessidades das jovens mulheres.
A diversidade agregada ao GTJM pode ser evidenciada como uma estratégia de reconhecimento
que as demandas das mulheres jovens além de serem influenciadas pelos fatores de classe social, etnia,
orientação sexual são influenciadas pelas regionalidades, dada a diversidade das regiões brasileiras. Para
3Entrevista concedida a pesquisadora em 8 de novembro de 2012 na Secretaria Nacional de Juventude, Brasília, Distrito
Federal.
a assessora da SNJ Gleidy Braga Ribeiro4 que acompanhou as atividades iniciais do GTJM, vários
segmentos juvenis apresentaram suas pautas e a secretaria trabalhou em cima dessas demandas de
forma a tentar dar uma resposta. Para a assessora:
As jovens mulheres não tiveram esse momento de apresentar, de construir embora o
movimento de jovens mulheres já vem atuando desde a construção do primeiro plano
de políticas para as mulheres. Então a ideia do GT é que a gente construa essa pauta
de forma coletiva. A SNJ tem até uma posição de quais os temas deveriam ser
priorizados nessa temática mas o diálogo com a sociedade civil, com pesquisadores,
com representantes de outros ministérios vem justamente para a gente construir uma
agenda de governo que possa contemplar as jovens mulheres em um espaço de
diálogo e de construção de políticas.
Adotar a transversalidade das questões de gênero para criação de políticas públicas para jovens
mulheres significa que essas políticas não ficarão restritas a um ministério ou secretaria temática, mas
que devem ser assimiladas por todas as políticas públicas propostas pelo Estado e desenvolvidas em
cada área governamental.
As atividades do GTJM foram encerradas com a realização do 1° Seminário Nacional de
Políticas Públicas para as Jovens Mulheres que ocorreu entre os dias 6 e 8 de junho de 2013 e reuniu
representantes de 22 estados do país.
O encontro organizado pela SNJ, em parceria com a SPM gerou um documento final com
propostas que contemplam as jovens mulheres nas áreas de educação e trabalho; saúde, direitos sexuais
e reprodutivos; desenvolvimento local e sustentável; cultura, lazer e comunicação; participação e
relações de poder, enfrentamento a violência, discriminações e preconceitos.
4Entrevista concedida a pesquisadora em 8 de novembro de 2012 na Secretaria Nacional de Juventude, Brasília, Distrito
Federal.
A próxima etapa é fazer com que esse documento final possa servir de subsídio para a
elaboração das ações, programas e políticas públicas para as jovens mulheres que não sejam restritas
apenas à SNJ e à SPM mas que o documento possa circular em outros ministérios e gerar ações
transversais.
Considerações Finais
Referências
MARGULIS, Mario & URRESTI, Marcelo. La juventud es más que uma palabra. In: La juventud es más que una
palabra – ensayos sobre cultura y juventud. Buenos Aires: Biblos, 1996.
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Friedrich Ebert, Ação Educativa, UNIFEM, 2009. v. 2000.
PRÁ, J. R.; EPPING, L. & CHERON, C. A Dicotomia Público-Privado e os Processos de Socialização de
Gênero entre a Juventude. Anais III Seminário Nacional Sociologia & Política, 26 a 28 de Setembro de 2011,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba.
SCHWARZ, Patricia. Prácticas, estratégias y percepciones de la maternidad em mujeres jóvenes de clase media
urbana. In: KORNBLIT, Ana Lía (org). Juventud y vida cotidiana. Buenos Aires: Editorial Biblos, 2007.
Introdução
A
temática da agricultura familiar tem ganhado força nos discursos brasileiros a partir dos
anos de 1990, como reflexo ao avanço do capitalismo rural. Esta discussão é resultado de
uma série de fatores, e dentre eles é importante destacar as implicações decorrentes as
grandes concentrações fundiárias que se originou nas organizações sócio-políticas e econômicas,
impostas pelos colonizadores e promovidas pelos governos, a fim de beneficiar os grandes fazendeiros.
Sinteticamente, a agricultura familiar se caracteriza pela forte correlação entre terra, trabalho, e
família. Onde cada família é detentora da terra que produz, de seus instrumentos e das técnicas
utilizadas para administrar o patrimônio. É importante destacar que a agricultura familiar tem um papel
relevante para a economia brasileira, pois além de produzir gêneros alimentícios para o mercado
consumidor interno, ainda supre as necessidades dos grupos familiares envolvidos na produção.
A consolidação do capitalismo no cenário agrícola do país tem seu inicio na década de 1960, a
partir de quando, tem experimentado uma forte modernização no setor, visando o aumento da
produtividade intensiva (aumento da produção utilizando a mesma área plantada), para isso acorrer
aumentou-se o grau de mecanização e a quimificação do processo produtivo.
A divisão das terras também sofreu alteração, partindo do êxodo rural, incentivado por
programas governamentais de industrialização do país, fazendo com que os agricultores deixassem suas
terras em busca de melhores condições de vida na cidade. Isso fez com que surgissem os grandes
produtores, ficando assim uma quantidade exorbitante de terras nas mãos de poucos, provocando a
desigualdade social no meio rural.
Neste sentido é importante destacar o reconhecimento dos agricultores familiares como sujeitos
de direitos, reconhecimento este que é recente na história brasileira. Pois a partir de 1990 que foram
criadas políticas públicas específicas para a agricultura familiar, alcançando assim o reconhecimento
legal.
As principais políticas públicas, voltadas para a categoria dos agricultores familiares foi o
Pronaf3, criado em 1996, e em 2006 foi criada a Lei da Agricultura Familiar4, esta é considerada o marco
1 Mestrando em Política Social pela Universidade Federal de Mato Grosso. Graduado em Administração – UFMT e
Ciências Contábeis – UNIC. Bolsista CAPES – DS. edirhenig@hotmail.com
2 Doutora em Desenvolvimento Sustentável – UnB. Professora do Programa de Pós-Graduação em Política Social
oficial que define a agricultura familiar como categoria produtiva e como profissão no mundo do
trabalho. Apesar destas importantes conquistas alcançadas pela categoria, a trajetória de lutas dos
trabalhadores rurais é longa e apresentam vários entraves e avanços.
E neste caminho, o presente artigo se objetiva a debater a agricultura familiar no Brasil como
sujeitos de direitos, oferecendo um referencial que permita entendê-la e dar a devida importância ao
tema.
No contexto deste trabalho, a justificativa apresentada é a de se somar aos debates anteriores
realizados por outros autores, para isso se utiliza de referenciais teóricos que destaquem a relevância
dos direitos sociais conquistados pelos agricultores familiares, ressaltando que a atividade é responsável
pela sustentação do trabalho e da renda de inúmeras pessoas que tem na atividade a possibilidade de
reprodução e sobrevivência.
O caminho metodológico trilhado para explorar a importante trajetória politicas e da
constituição dos direitos dos trabalhadores rurais no Brasil, e o surgimento dos agricultores familiares
como categoria e sujeitos de direitos, frutos de embate e disputas que culminaram na efetivação ou pelo
menos nos marcos legais das politicas a eles voltados.
Muitas conquistas foram alcançadas pela classe trabalhadora no decorrer do século XX, um
exemplo claro desta afirmação é a Consolidação dos Direitos Trabalhistas (CLT) instituída em 1943,
pelo então Presidente Getúlio Vargas. Figura forte das conquistas sociais, a CLT resistiu à
redemocratização de 1945, ao golpe militar e permanece até hoje. Em contra partida houve poucos
debates, ou, sequer houve debate em torno da constituição destes direitos civis, e neste sentido destaca
Carvalho, 2010:
O período de 1930 a 1945 foi o grande momento da legislação social. Mas foi uma
legislação introduzida em ambiente de baixa ou nula participação política e de precária
vigência dos direitos civis. Este pecado de origem e a maneira como foram
distribuídos os benefícios sociais tornaram duvidosas sua definição como a conquista
democrática e comprometeram em parte sua contribuição para o desenvolvimento de
uma cidadania ativa (CARVALHO, 2010, p. 110).
Entre os direitos reconhecidos pela então nova legislação estava o direito a sindicalização,
direitos previdenciários, salário mínimo, assistência dos sindicatos (Paoli, 1994). Mas estes direitos não
alcançavam os trabalhadores rurais na sua totalidade, forçando assim os trabalhadores rurais a
buscarem, nas décadas seguintes, mediante a luta a extensão dos direitos trabalhistas.
3 O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi criado pelo Decreto presidencial nº. 1.946,
de julho de 1996.
4 A denominação Lei da Agricultura Familiar refere-se à Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006.
Foi a partir dos anos de 1970 que os setores populares começaram a se organizar e passam a
atuar com relevância no cenário político brasileiro com a emergência de novos agentes, e a formação de
uma nova noção de cidadania ou cidadania ampliada.
Segundo Picolotto (2011), surgiram no período da ditadura militar os principais movimentos
sociais de classe que atuam até os dias de hoje, com maior ou menor representatividade, os sindicatos
se renovaram e fortaleceram e aspiravam por uma sociedade mais justa e igualitária, ganhando forma e
força nas reivindicações por direitos, deixando marcas profundas e positivas na Constituição Federal de
1988. E se traduziram em “espaços plurais de representação de atores coletivos” (Paoli e Telles, 2000,
p. 103).
Com quase trinta anos de ditadura militar, com uma configuração histórica de sociedade
autoritária, excludente e hierárquica, as lutas sociais que marcaram este período estabeleceram espaços
plurais por onde transitavam reivindicações e possibilidades diversas (Picolotto, 2011).
A reforma agraria ganha legalidade na Constituição de 1988, e passa a ser de responsabilidade
do Estado, conceituada por Carvalho Filho (2009), de caráter claramente compensatório e de corte
assistencialista, não apresentando condições para alterar o padrão de concentração fundiária que
sempre existiu no meio rural brasileiro.
O Brasil conta com possibilidades de gerar emprego no campo ao contrario de outros países,
mas os embates no campo dos direitos garantiram a população até então expropriada de direitos e
condições de sobrevivência, acesso a terra e garantia da segurança alimentar além de pontuar a favor da
economia local.
Foi nestes espaços criados que surgiu e se difundiu uma “consciência do direito a ter direitos”
(Paoli e Telles, 2000), onde a cidadania é buscada com lutas e conquistas e a reivindicação onde direitos
são postos como exigência negociável, a fim de alcançarem trabalho digno, vida mais decente e por
uma sociedade mais justa.
Não é exagero afirmar que as politicas agrarias, ou seja, este sistema oficial que atribui direitos
reais sobre terras agrícolas foi o principal norteador e organizador da sociedade brasileira ate meados do
século passado. E em razão destes direitos é que se desenvolveu toda a economia e a politica nacional,
influenciando diretamente na acumulação capitalista, e nos moldes das classes sociais que se encontram
no Brasil hoje.
No que tange a Constituição Federal de 1988, a grande novidade em relação à reforma agrária é
o direcionamento ao Estado o dever fundamental de fazê-lo. No sentido dos direitos sociais, Telles
2006 destaca que no descortinar destes tempos de crise e os desconcertos, o destino do país estão
sendo decididos em encruzilhadas de alternativas incertas e muitas delas pouco promissoras.
A trajetória da questão agrária no Brasil é traçada pela intensa concentração da terra,
expropriação e resistência dos trabalhadores rurais, e muitas discussões sobre o tema. Levando em
conta os pressupostos levantados por diversos autores, é possível verificar que essa questão é resultante
do processo histórico brasileiro, que originou as grandes extensões de terras e o inicio de um modelo de
desenvolvimento concentrador e excludente, que se arrasta através dos anos até nossos dias.
Resultando desta forma, em um problema estrutural da sociedade brasileira.
Isso quer dizer, que a questão agraria é histórica e também socialmente construída, ou
seja, assume diferentes significados e configurações ao longo do tempo e emerge na
luta de grupos sociais organizados, que expõem a realidade do campo e reivindica
cidadania por meio do acesso a terra (SOARES, 2009 p. 17).
Entende-se que as politicas agrarias, em destaque a reforma agraria, são vazias, mas precisam ser
de alguma forma tratada como conflitos no campo onde de um lado encontram-se os trabalhadores
expropriados de direitos e de condições de reprodução, e de outro as elites politicas nacionais e
internacionais, pactuando para preservar as politicas econômicas, e se favorecendo das mesmas,
neutralizando os movimentos sociais a fim de controlar os conflitos, isso tudo para cumprir acordos
realizados entre governo e Fundo Monetário Internacional, para redução de gastos, afetando
diretamente a distribuição de renda no campo.
Para Delgado e Cardozo Jr. 2009 houve substanciais mudanças no sistema de proteção social do
setor rural com a Constituição de 1988, sendo observadas ainda as mudanças ocorridas pelo fim da
modernização conservadora e o país então ingressa no processo contraditório de liberação das políticas
agrícolas.
É necessário destacar que outro avanço importante no campo dos direitos sociais
alcançados pelos agricultores familiares foi a promulgação da Lei nº 11326 de 24 de julho de 2006, que
Com a criação do Pronaf a categoria foi reconhecida como ator social em contraponto com as
características da devastadora agricultura convencional. Nesta perspectiva Wanderley destaca:
Antes vistos apenas como os pobres do campo, os produtores de baixa renda ou os
pequenos produtores, os agricultores familiares são hoje percebidos como portadores
de uma outra concepção de agricultura, diferente e alternativa à agricultura
latifundiária e patronal dominante no país (WANDERLEY, 2000, p. 36).
Considerações finais
O objetivo deste trabalho não é estabelecer aspectos conclusivos referentes ao tema proposto.
A revisão literária apresentada, seguida de conceituação e discussão sobre as melhores formas de definir
a agricultura familiar e suas conquistas no decorrer das ultimas décadas e no contexto da inclusão social
no campo, não pode ser encarada como receita ou indicações infalíveis.
Aflorando neste campo de estudo e dos debates em torno do caráter social da atividade e de
seus direitos, com geração de emprego, renda e a sustentabilidade ambiental que é referencia neste
modelo, pois se utiliza de métodos não nocivos aos ecossistemas onde está instalada a propriedade.
É importante destacar que o estudo das organizações familiares de trabalho e da produção não
se está levando em consideração que estejam delimitadas ao meio rural, pois existem varias outras
formas de atividades passíveis de observações, sendo que a ruralidade se firma como fenômeno social
relativamente novo e pouco desbravado que necessita de estudos e pesquisas, embora presente em
diversos tipos de ocupação, exercidos de varias formas, tendo no seio de cada família, inúmeras formas
de inserções no mercado de trabalho.
A luta pela terra hoje existente no país representa, na maioria dos casos, mais um capítulo da
história do campesinato brasileiro, movido pelo conflito e a busca pelos direitos entre a territorialidade
capitalista e a territorialidade camponesa.
Mas as novidades desse momento histórico são muitas. Dentre elas, destacam-se: a grande abrangência
da base social da categoria sem-terra, que envolve uma multiplicidade de sujeitos sociais, inclusive
trabalhadores residentes nas cidades, e o significado aí contido de negação do processo de
proletarização em curso, demonstrando que a possibilidade de recriação camponesa não se esgota com
o processo de expropriação nem com a passagem desses sujeitos pela cidade.
O custo de oportunidade da mão de obra assentada é evidentemente maior do que o da mão de
obra desempregada. O mesmo ocorre com favelas, cortiços e moradores de rua nos grandes centros.
Os assentamentos organizados, além de viabilizar a produção e a renda dos assentamentos pode inserir
o camponês na sociedade. Pode criar cidadãos.
Por fim é importante frisar que esta questão também se confunde com direitos básicos da
pessoa humana, a inclusão ao mercado e o acesso a direitos sociais mínimos, pois não há
desenvolvimento sem povo, e com o agravamento da pobreza rural, os expulsos do campo somam-se
aos excluídos das cidades.
Referências
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de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Brasília, 1999.
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SOARES, Maria da Graça de Oliveira. Do latifúndio a reforma agrária: a diversidade social na construção do território – o
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WANDERLEY, M. N. B. A valorização da agricultura familiar e a reivindicação da ruralidade no Brasil.
Desenvolvimento e meio ambiente, n. 2, 2000.
Introdução
P
ara a elaboração deste estudo, trabalha-se com autores/as nacionais e estrangeiros/as. As
referências estrangeiras de autores como: García Méndez (1993, 2005 e 2008 ); Gersão (1997);
Pedroso; Gersão et al. (1998); Pedroso e Branco (2008); Queloz (1991a e 1991b); Santos et
al.(1996); Trépanier (1989, 1999 e 2008); Vázquez González (s.d.), etc. Essas referências possibilitam-
nos: construir as categorias de análise deste estudo (modelo intervencionista de proteção e modelo
intervencionista de justiça ou responsabilidade)
Já autores/as nacionais como: Rizzini (1995, 1997 e 2000); Pilotti (1995); Faleiros (1995); Basílio
(2000), ajudou-nos a reconstruir a história sócio-política das crianças e adolescentes pobres
brasileiras/os e da sua relação com os tribunais de menores no Brasil, bem como analisar as influências
das ideologias dos países do norte nesta trajetória.
Os objetivos deste artigo são:
Verificar os reflexos das reformas dos tribunais dos países do norte em relação à justiça da
infância e juventude, em países do sul, como o Brasil, em especial, na evolução e na transformação da
legislação e da justiça de menores (SANTOS et al.,1996); Analisar, no teor do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), as influências das reformas dos tribunais dos países do norte, no processo de crise
do Estado-Providência, que advoga a desjudicialização e a descriminalização das questões relativas às
crianças e jovens em risco ou perigo (Pedroso, Gersão, et al., 1998).
Trata-se de uma pesquisa exploratória, do tipo documental e bibliográfica. O presente artigo
está organizado em três partes. A primeira, intitulada - “Contexto nacional e internacional das reformas
da justiça de menores”, apresenta brevemente a conjuntura interna e externa que possibilitaram as
reformas. A segunda, “O ECA e o modelo intervencionista de justiça ou responsabilidade”, busca-se
verificar os reflexos das reformas internacionais na legislação, na organização e na estruturação da
justiça das crianças e adolescentes no Brasil. Por fim, a terceira designada “O ECA e as sete mudanças
na legislação de menores Brasileira”, investiga-se as transformações provocadas com a promulgação do
Estatuto, na justiça da infância e juventude no Brasil.
1Doutoranda do Programa “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”, da Universidade de Coimbra/ Faculdade de
Economia/Faculdade de Direito/Centro de Estudos Sociais, professora da Universidade Federal do Tocantins, Campus
Araguaína, Mestre.
migrantes”. Nele, há recomendações sobre a “opção não repressiva, mas responsabilizante dos jovens
delinquentes”, a diversificação das medidas e a necessidade de uma política global que possibilite a
inserção social de todos os jovens (Ibid.).
Em relação às crianças e jovens em risco, Pedroso e Branco (2008, p.12), embasado nos estudos
de Commaille (2004), chamam-nos à atenção para a centralidade das políticas públicas, em fins do
século XX e princípio do século XXI, em que as crianças e jovens assumem prioridade absoluta em
“suas relações com a sua família e com a sociedade”, nos termos da Declaração Universal dos Direitos
da Criança. “Esta prioridade reflecte-se na disseminação acentuada dos direitos da criança (DUDH) e
na publicação de convenções internacionais e de leis, em cada Estado, de promoção dos direitos e
proteção das crianças em situação de risco” (Ibid.).
Para a aprovação do art. 227, da Constituinte de 1988, e do ECA, em 1990, contribuíram
movimentos sociais como o de Meninas e Meninos de Rua, que receberam apoio de entidades não-
governamentais, os representantes progressistas das políticas públicas, a vanguarda do mundo jurídico,
bem como setores sensíveis do empresariado (VOGEL, 1995, p. 317). A participação da sociedade civil
organizada, de setores do poder público e dos partidos políticos demonstra como o processo de
aprovação da Constituição Federal Brasileira de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, em
1990, foi politizada.
Esses dois textos legais foram frutos de embates e negociações, com forte participação da
sociedade. Entretanto, se o texto constitucional proporcionou o alargamento dos direitos sociais e
econômicos, provocou também, contraditoriamente, uma “reação dos setores conservadores e aliados
ao capital”, que, logo após sua aprovação, desferiram intensa campanha na mídia “pela imediata
reforma da Carta”. Uma vez que “fora aprovada em 1988 um texto inspirado em princípios da
socialdemocracia européia – ‘Constituição Cidadã2’ – para ser executada por governos que foram
posteriormente eleitos com compromissos (neo) liberais.” (BAZÍLIO, 2000, p.96)
Assim, a politização no processo de redação e aprovação do ECA foi intensa. Ele foi “debatido,
escrito e promulgado em clima de campanha cívica.” Buscou-se aqui reunir “todas as vozes que num
coro organizado se opusessem aos setores mais conservadores da sociedade que estavam alinhados ao
antigo Código de Menores de 1979 ou ainda defendiam propostas obscurantistas como, [...] a redução
da idade penal.” O movimento foi vitorioso e regulamentou, como princípios básicos gerais: “o
entendimento da criança e do adolescente com pessoas em condição particular de desenvolvimento; a garantia
– por meio de responsabilidades e mecanismos amplamente descritos - da condição de sujeitos de direitos
fundamentais e individuais”. Tais direitos deverão ser assegurados pelo Estado e a sociedade como absoluta
prioridade (Ibid., p. 96-97; grifo do autor).
Objetivo da lei
O Estatuto parte do princípio de que a criança e o adolescente são sujeito de direitos
fundamentais e de deveres; advoga, assim, a garantia desses direitos e a proteção integral desses agentes
sociais. Rompe, portanto, com a ideologia protecionista do Código de 1927 que os percebia como
menores: abandonados ou delinquentes, objeto de assistência e proteção, como também, a doutrina de
situação irregular do Código de 1979, que deu continuidade ao norte ideológico da Lei de 1927 e
percebia os menores em situação irregular enquanto objeto de proteção, assistência e vigilância.
O teor dos artigos do ECA demonstra a influência ideológica da Convenção sobre os Direitos
da Criança de 1989, que percebe a criança enquanto sujeito de direitos e coíbe qualquer tipo de
discriminação por: língua, raça/etnia, sexo, socioeconômica, entre outras, defendendo a garantia dos
3 A expressão pátrio poder foi substituída pelo termo poder familiar através da Lei nº12.010, de 2009.
direitos econômicos, sociais e culturais por parte dos Estados Partes a esses agentes sociais e aos seus
familiares(SARAIVA, (s.d.); GARCÍA MÉNDEZ (2005, 2008)).
A detenção de menores
O ECA, em seu art. 106, coíbe a prisão cautelar, que era referendada na legislação menorista de
1927 e de 1979.
Assim, hoje, o adolescente só será privado de sua liberdade mediante flagrante de ato infracional
ou por ordem escrita e fundamenta do magistrado competente. Trata-se da ratificação do art. 37, alínea
“b”, da Convenção sobre os Direitos da Criança, 1989 (RIZZINI, 1995, p.163-165; 2000, p.79-82).
Direito de defesa
O Estatuto rompe com a precariedade do direito de defesa presente no Código de 1927 e no
Código de 1979, em que, geralmente, a defesa era restrita ao curador (Ministério Público). O ECA
amplia a garantia do direito de defesa, podendo ser exercido por outros agentes durante o processo
legal (Ibid.).
O direito de defesa enunciado nestes artigos revela-nos a influência ideológica da Convenção
sobre os Direitos da Criança de 1989, em especial, o disposto em seu art. 37, alínea “d” (SARAIVA,
(s.d.); GARCÍA MÉNDEZ (2005, 2008))
Internação de menores
O ECA rompe com a internação por prazo indeterminado, adotada pelo modelo
intervencionista de proteção nos Códigos de Menores de 1927, 1979, respectivamente. Outra mudança
inaugurada pelo Estatuto é que a internação será breve e aplicada apenas aos adolescentes que cometam
atos infracionais graves, diferentemente das Leis de 1927 e 1979, que aplicava a internação de forma
genérica às crianças e aos adolescentes em perigo e aos que cometiam ato infracionais. (RIZZINI, 1995,
p.163-165; 2000, p.79-82).
Portanto, o ECA admite como prazo máximo de internação três anos, devendo o adolescente
ser liberado obrigatoriamente quando completar 21 anos de idade (Ibid.). Seguem assim as orientações
expostas na Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, em especial, em seu art. 37, alínea “b”,
como também, as Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (ONU,
1991, p.10) que: “1. Declara que a colocação de um jovem numa instituição deve ser sempre uma
decisão de último recurso e pelo mínimo período de tempo necessário.”
Posição do magistrado
O Estatuto rompe com a centralidade e a absoluta discricionariedade dos magistrados presente
na Lei de 1927 e no Código de 1979, respectivamente. Com o ECA, os poderes dos magistrados foram
limitados, “[...] à medida em que se estabeleceu a garantia do direito à defesa à criança e ao
adolescente”. (RIZZINI, 2000, p. 82). Durante o processo de aprovação do ECA, consoante Saraiva
([s.d], p.9), uma parcela significativa da magistratura brasileira se opunha a esta ruptura e apontavam
essa mudança como uma suposta mazela do Estatuto ao buscar instaurar o Direito Penal Juvenil no
Brasil. Essa era opinião do desembargador Alyrio Cavallieri4, “intransigente defensor da Doutrina da
Situação Irregular e opositor ferrenho do modelo de responsabilização juvenil adotada pelo Estatuto”
(SARAIVA, [s.d.], p.9]. Conforme destaca Konzen (2005, 57-58 apud SARAIVA [s.d.], p. 9):
[...] a pretexto de proporcionar ao adolescente os mesmos direitos e garantias do adulto,
impôs-lhe o sistema penal, notadamente pela adoção do critério da proporcionalidade, um
dos pecados mortais do Estatuto, e pela adoção da ritualística processual penal, submetendo
os principais operadores do sistema, Advogado - Promotor-Juiz, a relação rígida, ao
contrário do sistema destruído pelo Estatuto, onde o Curador de Menores e o Juiz eram
autoridades protetoras, tutelares, numa justiça tuitiva.’
Destarte, para Cavallieri, a garantia do direito de defesa ao adolescente era algo que
burocratizaria e obstacularia a justiça da infância e da adolescência brasileira, diferentemente do modelo
intervencionista de proteção, que garantia celeridade e discricionariedade absoluta do magistrado e do
ministério público.
Mecanismos de participação
As Leis de 1927 e 1979 limitavam os mecanismos de participação. Já o Estatuto ampliou os
mecanismos de participação da comunidade externa através dos “[...] Conselhos de Direitos/ Tutelares
(Conselhos paritários Estados-sociedade), nos níveis federal, estadual e municipal” (RIZZINI, 2000, p.
82)
Isso ocorreu porque a Lei nº 8069/90 “destacou os aspectos não jurídicos do problema, restringindo a
ação da autoridade judiciária e criando instâncias sócio-educativas de atendimento a crianças e
adolescentes, com a participação da sociedade civil” (Ibid.82).
Considerações finais
Ao longo deste estudo foi possível constatar que o Brasil, em seu processo de construção,
implantação, busca de consolidação e reformas da legislação e da justiça de menores recebeu influência
direta dos países do norte, em termos doutrinário, através de documentos internacionais como:
Declaração dos Direitos da Criança – 1959 (RIZZINI, 1995, 1997 e 2000); Convenção das Nações
Unidas sobre os Direitos da Criança – 1989; Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de
Medidas não Privativas de Liberdade (Regras de Tóquio). E, do debate em torno da elaboração das
Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riade) e das
Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade (GARCÍA MÉNDEZ
(2005, 2008); SARAIVA [s.d.:n.p.]).
Em relação aos modelos de intervenções da justiça de menores, o Brasil de 1927 aos dias atuais
adotou dois modelos de intervenções: proteção e justiça ou responsabilidade. O modelo de proteção
perdurou de 1927 a 1990, portanto, em torno de 63 anos de vigência. Durante esse período criou-se
duas leis embasada na ideologia protecional, o Código de Menores de 1927 e o Código de Menores de
1979 que vigorou até meados da década de 1990. Caracterizou-se pela criminalização e judicialização
das crianças e dos/as adolescentes em risco social e das em conflito com a lei, bem como, de seus
familiares. Já, o modelo de intervenção da justiça ou responsabilidade passou a vigorar no ordenamento
jurídico brasileiro, com a aprovação do Estatuto de 1990 aos dias atuais. Este modelo de intervenção
diferentemente da intervenção protecional separa as crianças em risco social ou perigo das que se
encontra em conflito com a lei. Descriminaliza e desjudicializa as crianças e os/as adolescentes em risco
social ou perigo e responsabiliza as em conflito com a lei, que deixam de ser objetos incapazes, e
passam a serem percebidas no plano ideológico como sujeito de direitos individuais e de deveres.
Constatou-se também, que o ECA deu continuidade uma das perspectivas do Código de
Menores de 1927 e do Código de Menores de 1979, a de tratar no mesmo instrumento normativo as
crianças e os/as adolescentes em risco social e as em conflito com a lei. Apesar de autores com García
Méndez (2005:[n.p.]) dizer que essa junção não afeta o conteúdo . Discorda-se por entender que essa
junção torna a lei genérica e obscura em alguns aspectos, tais como: dotações orçamentárias, atividades
realizadas pelos Conselhos Tutelares, etc. Porém, diferentemente das Leis de 1927 e de 1979, o ECA
trará soluções distintas para as crianças e adolescentes em perigo e as/os em conflito com a lei. As
primeiras serão desjudicializadas e descriminalizadas e passaram a ser atendidas pelas políticas sociais,
de instituições públicas governamentais e não-governamentais e pelos Conselhos Tutelares. Já, as em
conflito com a lei deixam de ser definidas com incapazes e passam a ser conceituadas como sujeito de
direitos em situação peculiar de desenvolvimento, e passam a responder pelos atos praticados através
da ideologia da justiça ou responsabilidade, ou direito penal mínimo, caracterizado pela garantia dos
direitos fundamentais de ampla defesa, garantia de comparecer em juízo e ser ouvido. Segundo essa
doutrina trata-se de responsabiliza na perspectiva educativa para que perceba o ato cometido (GARCÍA
MÉNDEZ (2005, 2008); SARAIVA [s.d.:n.p.]; VÁZQUEZ GONZÁLEZ [s.d.:n.p.]).
Identificou-se ainda, em autores/as nacionais como: Barboza (2000); Pereira (2000); Vogel
(1995) certo tom apologético e descritivo ao escrever sobre o ECA, em especial, a ênfase dada às
categorias: proteção integral, melhor interesse da criança e sujeito de direitos, no entanto não
aprofundam o que significam essas categorias para a sociedade brasileira, uma vez que essas ideologias
foram gestadas e construídas nos países do norte e utilizadas para as reformas legislativas da justiça
menorista brasileira. Já outros autores nacionais e estrangeiros que estudam a justiça da infância e
juventude no Brasil - é o caso de Saraiva (s.d.) e García Méndez (1993, 2005 e 2008) - centram seus
estudos para revelar que o ECA rompe com a doutrina de proteção e instaura no Brasil a doutrina de
justiça ou responsabilidade, o que provoca a descriminalização e desjudicialização das crianças e dos/as
adolescentes em risco social ou perigo e a responsabilização dos/as adolescentes em conflito com a lei.
Portanto, as considerações aqui levantadas são ainda de caráter preliminar e pretende-se
aprofundá-las ao prosseguir a revisão da literatura e ao concluir e analisar a pesquisa empírica.
Referências
BARBOZA, Heloisa Helena. “O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente” in PEREIRA,
Rodrigo da Cunha (coord.). Direito da Família: a família na travessia do milênio. Congresso Brasileiro de Direito da
Família. 2. Belo Horizonte - MG: IBDFAM: OAB-MG: Del Rey, 2000, p. 201-213.
BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. “Política pública de atendimento à criança e ao adolescente: uma experiência de
cooperação no estado do Rio de Janeiro” in Leila Maria Torraca de Brito (coord.), Jovens em conflito com a lei. 2. ed.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2000, p.93-106.
BRASIL. Decreto nº 17.943-A de 12 de Outubro de 1927. Consolida as leis de assistência e protecção a menores. Disponível
em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943A.htm>. Acesso em: 06 Mar. 2011,
19:00.
_____ . Lei nº 6.697, de 10 de Outubro de 1979. Institui o Código de Menores. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1970-1979/l6697.htm>.
Acesso em: 06 Mar. 2012, 19:20.
_____. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 06 Mar. 2012, 20:00.
______ . Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em: 06 Mar. 2012, 19:40.
COHEN, S. Vision of Social Control. Crime, Punishment and Classification. Cambridge . Polity Press, 1985, apud
QUELOZ, Nicolas. “Abordagem comunitária e delinquência dos jovens: a justiça de menores à procura da
comunidade perdida?” Infância e Juventude: Justiça – Os Caminhos de Mudança. Revisa da Direcção-Geral dos Serviços
Tutelares de Menores. Lisboa, 1991ª, p.249-262, Número Especial.
COMMAILLE, Jacques (2004). “L’enfant européen?” in GADBIN, Daniel; KERNALEGUEN, Francis (dir.).
Le statut juridique de l’enfant dans l’ espace européen. Bruxelles: Bruylant, XXIII-XXX.
COSTA, 1990 apud VOGEL. “Do Estado ao estatuto: propostas e vicissitudes da política de atendimento à
infância e adolescência no Brasil contemporâneo” in PILOTTI, Francisco; RIZZINI, Irene (orgs.). A arte de
governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del
Niño, Editora Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995, p. 300:346.
Felipe Fontana1
Carla Cristina Wrbieta Ferezin2
Introdução
C
ompreender o sentido da formação dos partidos políticos brasileiros foi uma tarefa realizada
por diferentes intelectuais de nosso país. Entram nesse registro a leitura e interpretação de
importantes pensadores, tais como Victor Nunes Leal, José Murilo de Carvalho, Rachel
Meneguello e Bolivar Lamounier e Maria do Carmo Campello de Souza. No entanto, se as
problematizações destes estudiosos acerca da formação dos partidos políticos no Brasil são amplamente
discutidas, o mesmo não ocorre quando temos por horizonte as teorizações de Oliveira Vianna sobre
este tema. A questão fica ainda mais interessante quando verificamos alinhamentos significativos entre
as definições do intelectual fluminense sobre “a gênese dos partidos políticos” e as conceitualizações
dos autores supracitados, que dedicaram a compreensão desta temática.
Levando em consideração essa nossa percepção, este artigo, em um primeiro momento, versará
sobre as teorizações de Oliveira Vianna que estão vinculadas à constituição dos partidos políticos
brasileiros para, em uma segunda oportunidade, abordar algumas posições consagradas sobre esse tema
e compará-las com as elaborações teóricas do pensador niteroiense. Nesse sentido, discutiremos nesse
tópico a formação dos partidos políticos segundo a ótica de Oliveira Vianna. Para isso, abordaremos
duas obras clássicas do autor, Populações Meridionais do Brasil (1920) e Instituições Políticas Brasileiras (1949),
as quais nos permitirão captar a essência do pensamento de Vianna acerca da nossa constituição
cultural, social e política e a gênese do sistema político-partidário brasileiro.
A leitura de Oliveira Vianna sobre o Brasil: considerações sobre a formação do Brasil e seus
partidos políticos em Populações Meridionais do Brasil e Instituições Políticas Brasileiras
Populações Meridionais do Brasil é o estudo clássico de Oliveira Vianna que claramente possui a
intenção de deflagrar e constituir uma interpretação acerca da formação da sociedade brasileira e,
consequentemente, dos caracteres que a marcaram indelevelmente como um povo sui generis. Nesta
obra, o autor busca no Brasil Colônia as raízes e as razões pelas quais somos incapazes de atuar de
maneira impessoal no espaço público. Além disso, vemos neste estudo uma das primeiras utilizações da
1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (PPG-
Pol/UFSCar). e-mail: buthjaum@yahoo.com.br.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (PPG-
noção de patriarcalismo no Brasil. Tal noção perpassou e, discretamente, ainda perpassa uma gama
significativa de estudos brasileiros que buscam compreender a nossa formação, nossas especificidades
como povo, as peculiaridades de nossa vida pública e a lógica operante de nossas instituições políticas.
Um traço marcante do pensamento de Oliveira Vianna nessa obra é a necessidade de explicar o Brasil
não só por dimensões culturais, sociais e políticas. Para o autor, é de extrema importância compreender
o povo brasileiro levando em consideração a terra, a natureza, a morfologia e a geografia do espaço no
qual ele primeiramente habitou e se constituiu. Vianna demonstra o quão coercitivo se apresentou as
determinações morfológicas e geográficas no desenvolvimento da sociedade brasileira e,
principalmente, na formação de um tipo individual que carrega consigo algumas especificidades morais
e culturais.
Expondo sua leitura acerca da edificação da sociedade brasileira, Oliveira Vianna revela: “De
um modo geral, contemplando em conjunto a nossa vasta sociedade rural, o traço mais impressionante
a fixar, e que nos fere mais de pronto a retina, é a desmedida amplitude territorial dos domínios
agrícolas e pastoris” (VIANNA, 1938, p. 147). A análise do Brasil Colônia feita pelo sociólogo
brasileiro nos ajuda a perceber uma relação de continuidade existente entre as formas morfológicas
brasileiras e o tipo de atividade econômica presente na colônia: “Essa excessiva latitude dos domínios
rurais é, em parte, imposta pela natureza das culturas. O pastoreio, a lavoura de cana e a lavoura de café
exigem, para serem eficientes, grandes extensões de terrenos” (VIANNA, 1938, p. 148). Dessa forma,
para o autor, cria-se no Brasil um tipo específico de sociedade, a qual tem como eixo condutor o
latifúndio: “Dispersos e isolados na sua desmedida enormidade territorial, os domínios fazendeiros são
forçados a viver por si mesmos, de si mesmos e para si mesmos” (VIANNA, 1938, p. 150). A questão
do latifúndio é central no pensamento de Vianna, tanto que em Instituições Políticas Brasileiras, o autor
retoma esta temática, ressaltando o quanto a distribuição de terras em sesmarias nos inclinou a um
antiurbanismo. Pode-se dizer, segundo Vianna, que o absenteísmo urbano é uma lógica da formação
social brasileira.
No Brasil Colonial, segundo Oliveira Vianna, há uma autonomia exagerada do latifúndio que,
por sua vez, impede que o país caminhe rumo à urbanização, modernidade e ao desenvolvimento. Aqui,
em um dado momento da colonização, diferentemente de outras colônias, a retirada de riquezas feita
pela Metrópole era efetivada através da exploração da terra, dessa maneira, os investimentos nacionais
ligavam-se exclusivamente com o desenvolvimento dos latifúndios e das atividades rurais. Assim, a
sociedade colonial brasileira é caracterizada por ter profundas raízes rurais, as quais dificultaram
fortemente a edificação de nossos conglomerados citadinos, zonas urbanas ou cidades3. Desta forma,
3 Na obra Instituições Políticas Brasileiras, Vianna nos remete ao fato de que os núcleos urbanos eram criados mediante
ordem da Metrópole e o povo não tinha participação no movimento de criação destes espaços. Nestas vilas urbanas eram
“convocados” a viver sob o jugo de um capitão povoador todos aqueles que vivessem errantes, que não tivessem domicílio
e que não fossem úteis à República (VIANNA, 1999). Vivendo sob a coação de castigos severos, os indivíduos evadiam-se
adverti-nos o autor, os grupos sociais presentes nas cidades estariam presos ao poder dos latifundiários,
não possuindo assim, um “espírito corporativo”, o que constitui uma problemática, pois, não há a
construção de corporações com uma “solidariedade moral”.
Em Instituições Políticas Brasileiras, Vianna prossegue sua análise sobre como o tipo de
colonização portuguesa (a qual estimulava a dispersão da massa colonizadora) projetou a população
brasileira para o sertão, criando o que pensador fluminense denominou como “complexo sertanejo”, o
qual pode ser explicado como o gosto do brasileiro pelo insulamento. O “homo colonialis”, amante da
solidão e do deserto, é consequentemente predisposto ao individualismo, não senti a necessidade de
vivência em comunidade, não é um homem “socializado” ou “solidarista”. Neste ponto, surge uma
indagação: como esta formação social e econômica do nosso povo – imposta pela Coroa Portuguesa –
baseada em um extremo individualismo familiar, poderia formar as estruturas de uma solidariedade
social? Oliveira Vianna, em seu diagnóstico realista da sociedade brasileira, aponta-nos uma resposta:
Não se poderia preparar condições mais desfavoráveis à gênese dos grêmios locais e
ao florescimento do espírito municipal. No ponto de vista culturalístico, o nosso povo
é, por isso, sob o aspecto de solidariedade social, absolutamente negativo. Os
pequenos traços de solidarismo local, que nele encontramos, são tenuíssimos, sem
nenhuma significação geral: práticas de “mutirão”, “rodeio” – e quase nada mais. Isto
no que toca com as relações sociais privadas (VIANNA, 1999, p. 141).
O diagnóstico de Oliveira Vianna é relevante para entendermos aquilo que o autor denomina
espírito de clã4. Conceito que sintetiza um modo de agir por parte dos brasileiros, modo esse que se
vincula a uma desobediência e infidelidade para com as leis e regimentos inerentes à vida pública em
detrimento de relações de compadrio oriundas da vida particular e privada5:
destas povoações, na ausência do capitão fundador, e regressavam aos seus locais de origem. Aqui se pode notar mais um
motivo para que se formasse um “complexo sertanejo” na sociedade brasileira.
4 O espírito de clã é uma ideia essencial para compreender a formação dos partidos políticos brasileiros. Deter-nos-emos
O regime de clã, como base da nossa organização social, é um fato inevitável entre
nós, como se vê, dada a inexistência, ou a insuficiência de instituições sociais tutelares
e a extrema miserabilidade de nossas classes inferiores (...). O espírito de clã torna-se
assim um dos atributos mais característicos das nossas classes populares [...] O nosso
homem do povo, o nosso campônio é essencialmente o homem de clã, o homem da
caravana, o homem que procura um chefe [...] (VIANNA, 2005, p. 225-226).
Para Vianna, o espírito de clã só se constituiu graças ao desmedido poder exercido pelo senhor
de terras e patriarca no interior dos latifúndios. Levando isso em consideração, o intelectual brasileiro
explica como se estabeleceu o exacerbado poder do senhor de terras, e é nesse momento que ele
articula aos seus escritos, em Populações Meridionais do Brasil, o conceito de patriarcalismo6. Tal conceito
tem como objetivo deflagrar a formação familiar, ou, o tipo familiar que predominou no Brasil Colônia.
Em História Social da Economia Capitalista no Brasil (1952) – obra na qual Oliveira Vianna retoma
importantes questões de seu primeiro e mais relevante estudo – o autor nota que tal traço marcante da
cultura brasileira é recorrente e visivelmente perceptível em nossa nação:
O patriarcalismo pan-agrário do período colonial e imperial ainda está muito
entranhado na mentalidade do homem paulista, para que pudesse ser eliminado por
uma simples ação seletiva destes apenas trinta anos de supercapitalismo industrial,
ainda sem grande generalização, nem penetração. Estes velhos traços pré-capitalistas
subsistem visivelmente neste grande centro do nosso industrialismo, que é São Paulo
(VIANNA, 1987b, p. 138).
A exposição destas ideias inerentes à obra Populações Meridionais do Brasil é relevante para
compreendermos o paradigma analítico e interpretativo cunhado por Oliveira Vianna acerca da
realidade brasileira e de sua formação. O que notamos nessas leituras de Vianna é que elas convergem
para o entendimento da problemática inerente a nossa vida pública, ou seja, é por motivos específicos
(herança rural, espírito de clã e patriarcalismo) que possuímos uma extrema dificuldade de respeitar leis
abstratas e atuar de modo impessoal em meio aos espaços públicos e a vida pública. Em Instituições
Políticas Brasileiras, última obra publicada em vida por Oliveira Vianna, o pensador brasileiro recupera
boa parte de suas argumentações, presentes em Populações Meridionais do Brasil. A partir deste momento,
interessa-nos vincular o “diagnóstico do Brasil” realizado por Vianna em Populações Meridionais do Brasil à
gênese dos partidos políticos de nosso país, relatada em Instituições Políticas Brasileiras. Tentaremos
demonstrar como a “herança colonial” brasileira influenciou sobremaneira na criação e
desenvolvimento dos partidos políticos aqui existentes.
6 Em Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Vianna articula em diversos momentos o conceito de patriarcado às suas
explicações sobre a formação da sociedade brasileira. Como veremos na próxima citação, para Vianna, a figura do patriarca
determina diversas dimensões da vida social na Colônia: “É imensa a ação educadora do pater-famílias sobre os filhos,
parentes e agregados, adscritos ao seu poder. É o pater-famílias que, por exemplo, dá noivo às filhas, escolhendo-o segundo
as conveniências da posição e da fortuna. Ele é quem consente no casamento do filho, embora já em maioridade. Ele é
quem lhe determina a profissão, ou lhe destina uma função na economia da fazenda. Ele é quem instala na sua vizinhança os
domínios dos filhos casados, e nunca deixa de exercer sobre eles a sua absoluta ascendência patriarcal” (VIANNA, 2005, p.
100).
Antes de tratarmos essencialmente sobre a gênese dos partidos políticos brasileiros, na visão de
Oliveira Vianna, cabe uma ressalva. Como é sabido, o estudioso niteroiense possui uma importante
obra que trata do período no qual nossos primeiros partidos políticos se edificaram e se formalizaram,
tal estudo é denominado O Ocaso do Império (1925). Neste trabalho encontramos uma análise profunda
do pensador fluminense sobre o Brasil Imperial, no qual evidenciou a dinâmica social e política desse
momento da História brasileira e as principais causas que excitaram a queda do Império Brasileiro.
Contudo, não há nesse trabalho, assim como há em Instituições Políticas Brasileiras, um capítulo dedicado
exclusivamente ao entendimento da gênese de nossos partidos políticos. De acordo com nossa leitura,
o intelectual brasileiro trabalhou com uma interpretação pronta acerca da composição social de nossos
primeiros partidos políticos, sem se preocupar necessariamente com a especificidade da formação dos
mesmos. Esta preocupação, como nós vimos, só foi resolvida em 1949, com a confecção e publicação
de Instituições Políticas Brasileiras. No entanto, algumas passagens de O Ocaso do Império já adiantavam, em
grande medida, a leitura de Oliveira Vianna a respeito da constituição dos primeiros partidos políticos
brasileiros. É o que vemos, por exemplos, na seguinte passagem:
Porque os partidos políticos do Império, imponentes embora pela sua massa, não
tinham propriamente uma opinião; eram simples agregados de clãs, organizados para a
exploração em comum das vantagens do poder. Certo, houve aqui uma fase em que os
partidos tiveram verdadeiramente uma opinião: foi o período da Independência, do 1º
Reinado e da Regência. Depois dessa grande fase histórica, pode-se afirmar com
fundamento que os partidos políticos não representavam realmente correntes de
opinião; os programas que ostentavam eram, na verdade, simples rótulos, sem outra
significação que a de rótulos (VIANNA, 2004, p. 34).
E ainda:
Em nosso País, com efeito, os partidos não disputam o poder para realizar idéias; o
poder é disputado pelos proventos que concede aos políticos e aos seus clãs. Há os
proventos morais, que sempre dá a posse da autoridade; mas há também os proventos
materiais, que essa posse também dá. Entre nós a política é, antes de tudo, um meio
de vida: vive-se do Estado, como se vive da lavoura, do comércio e da indústria – e
todos acham infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa
(VIANNA, 2004, p. 45).
Compreender a formação dos partidos políticos no Brasil, para Vianna, requer uma análise
meticulosa do regime municipalista da Colônia, a partir da qual possamos entender o que significava
povo e delimitar o seu papel como força democrática e governante (VIANNA, 1999). Nesta apreciação,
Vianna explicita veementemente que havia uma ausência completa do povo-massa nas frágeis
instituições municipais criadas pela Metrópole. No período colonial, só uma pequena parcela da
população participava da vida política do país, os “homens bons” (nobres de linhagem) e os “homens
novos” (burgueses que enriqueceram através do comércio). Era esta pequena aristocracia (composta,
sobretudo, por proprietários rurais e comerciantes ricos) que governava no período colonial do Brasil.
O povo-massa não tinha nenhum tipo de expressão no jogo político daqueles tempos, não tinha direito
de eleitor e muito menos de representante. Ou seja, o povo não tinha significado e papel no Brasil
Colônia. Tal constatação é elucidada por um fator aqui já debatido e que devemos considerar essencial
no pensamento de Oliveira Vianna: a questão do poder centralizador condicionado pelo latifúndio.
A colonização portuguesa fundamentada na distribuição de terras em sesmarias individualistas
(ao contrário da colonização espanhola, a qual pressupunha propriedade comunitária da terra e uma
economia coletiva da produção baseado, principalmente, na agricultura e pastoreio) não permitiu que se
forjasse no Brasil um espírito público e uma aptidão à vida democrática, visto nas aldeias primitivas (pueblo), à
maneira ibérica (VIANNA, 1999). Ao se pautar na interpretação de Vianna, percebemos que
diferentemente de alguns países da Europa, no Brasil, as raízes culturais de nossa vida pública são
outras e excluem radicalmente uma vida política pautada em princípios democráticos (não tivemos
registrado em nossa história ou memória, por exemplo, uma experiência de participação tal qual a dos
Estados-aldeias). Para Oliveira Vianna, a Europa passou por uma formação e desenvolvimento dos
Estados, com quatro fases distintas e, ao mesmo tempo, semelhantes entre si. No Brasil, no entanto,
desconhecemos as primeiras fases (Estados-aldeias e Estados-cidades), as quais seriam responsáveis por
incutir no povo um ideal democrático. Abaixo, dispomos um quadro explicativo com as evoluções do
Estado.
7 Segundo Vianna, o Direito Público Costumeiro pode ser classificado, em suas diversas manifestações, em três ordens de
fenômenos ou fatos: tipos sociais, instituições sociais e usos e costumes: “Como quer que sejam, instituições, e tipos, e usos,
e costumes, tudo isso constitui, no seu todo, uma trama de fatos interdependentes que tem uma explicação histórica e uma
razão científica de ser” (VIANNA, 1999, p. 192).
8 Vianna destaca que se fizéssemos uma análise minuciosa da estrutura dos grandes partidos existentes no Império e na
República, notaríamos que os mesmos carregam em suas raízes várias características dos clãs eleitorais: “Este grandes
partidos – se porventura os submetermos a uma análise sociométrica da sua estrutura, decompondo-o nos seus elementos
celulares – verificamos que todos eles se reduzem a estas unidades primárias. Microorganizações de tipo exclusivamente
personalista, nelas vemos agrupada e arregimentada a população rural ou um importante comerciante, hoje, e, na Monarquia,
Do século I até o século III podemos analisar o poder e a influência do senhor de terras através
de dois organismos centrais: o clã feudal e o clã parental. O primeiro tipo de clã é constituído por
determinada parcela da população, vivente sob o domínio do senhor-de-engenho, a qual esteve
agregada para dois fins distintos9: defender materialmente o feudo de ameaças externas e garantir o
prestígio de seu senhor na vida pública, tornando-o, desta forma, extremamente importante e atuante
diante das instituições políticas locais. Ou seja, o clã feudal era uma “peça” fundamental da estrutura do
“complexo do feudo”, pois por meio de uma aparelhagem eficiente de defesa e ataque em prol da
manutenção dos latifúndios, proporcionava, ainda, ao senhor-de-engenho e sua família uma autoridade
sem igual perante até mesmo os comandos da Coroa. Neste momento e nesta organização notamos o
desenvolvimento dos primeiros elementos (tipos sociais, instituições sociais e usos e costumes) de
nosso Direito Público Costumeiro, os quais posteriormente alastraram-se por nossas instituições
políticas. Cabe, no entanto, destacar que o Direito Costumeiro do clã feudal está vinculado,
primordialmente, ao povo-massa e as condições existenciais impostas pelo latifúndio. Relacionado a
isto, também se destaca o tipo de solidariedade criada pela elite rural: o clã parental que, por sua vez,
congrega uma série de valores e modos de agir que influem diretamente em nosso Direito Costumeiro e
em nossa vida pública.
O clã parental é uma organização aristocrática, própria da família senhorial brasileira. Os clãs
parentais se reuniram e desenvolveram a partir da necessidade de defesa da propriedade territorial,
contra os índios, os quilombolas, outras famílias senhoriais e, posteriormente, em lutas eleitorais. Como
o clã parental não possuía uma organização legal e nem religiosa, só era possível observar a sua unidade
moral e sua solidariedade parental nestas situações adversas, no entanto, isso não significa dizer que tal
organismo não era assaz influente (VIANNA, 1999)10. Oliveira Vianna, nota em sua análise sobre os
clãs parentais, a importância desta associação enquanto agente ativo do nosso Direito Público
Costumeiro, visto que “em torno deste grupo desde o século I, instituições sociais se constituíram
composta dos elementos mais combativos ou mais leais ao proprietário, todos residentes dentro das suas demarcações; é,
em suma, a sua população masculina, em idade viril e dotada de capacidade de luta, que vamos estudar. Uma pequena
fração, que representa talvez um quinto ou um décimo da população dos seus moradores – uma manipula apenas, mas ativa,
varonil, combativa, dotada do sentimento da sua pequena comunidade territorial e, principalmente, do espírito de fidelidade
ao senhor do feudo, e por ele disciplinada e armada – primeiro, para fins de guerra material com o senhor vizinho, ou o
índio rebelde, ou o quilombola minaz, ou o flibusteiro improviso – e isto nos séculos I, II e III; depois, para fins de luta
política eleitoral – e isto já século IV, com a formação dos partidos e o advento do regime democrático” (VIANNA, 1999,
p. 200-201).
10 Segue uma descrição resumida do clã parental, nas palavras de Vianna, para que possamos ter ideia da estrutura deste
grupo e seus principais elementos formadores: “Esses clãs familiares tinham uma base de consanguinidade, no início.
Consanguinidade pura e exclusiva. Depois, ampliaram-se com outros elementos, advindos do parentesco religioso –
contribuição fatal e inevitável, trazida pela tradição católica – do batismo, da crisma e do casamento. Esta tradição gerou a
importante instituição do ‘compadrio’, donde saiu o tipo social do ‘padrinho’: – padrinho de casamento, padrinho de crisma,
padrinho de batismo. Constitui uma sorte de agnação, de base religiosa: – e é a fonte que mais elementos traz aos clãs
parentais. Os ‘compadres’ e ‘afilhados’ formam uma classe adjetiva, de cuja importância enorme nos disse Burton, numa
página notável de observação dos nossos costumes rurais; e também Koster e Eschwege” (VIANNA, 1999, p. 243).
11 O clã eleitoral possui a mesma estrutura, composição e finalidade dos clãs feudais e parentais. Possuíam, no entanto, uma
base geográfica mais ampla, visto que compreendia todo o município. Acerca da constituição dos clãs eleitorais pautada na
união dos clãs feudais e parentais, Oliveira Vianna afirma: “Houve então qualquer cousa de novo: houve evidentemente um
sincretismo. Estes clãs feudais e parentais – até então dissociados – foram levados, claramente, à solidariedade e à
cooperação. Uma força, um motivo poderoso os arrancou da sua tradicional insolidariedade e os unificou em dois grandes
grupos, em duas grandes associações. [Conservadores e Liberais] Este movimento, que levou estes clãs à solidariedade, de
que natureza é? (...) Era de ordem política, essa solidarização, este entendimento, esta associação, este sincretismo, que se
processara entre eles, era puramente político – porque tinha fins exclusivamente eleitorais” (VIANNA, 1999, p. 258).
As organizações (clãs feudais e parentais) que deram origem aos clãs eleitorais não se
conformaram através de um sentimento de solidariedade social e cooperação entre os homens, mas sim
com fins exclusivamente políticos e eleitorais. Com o Código do Processo de 1832, os senhores rurais
viram-se obrigados a eleger as autoridades locais e, tais cargos eram relevantes para a manutenção do
prestígio dos proprietários de terras. Portanto, os senhores de terra uniram-se, constituindo pequenas
organizações locais, de âmbito municipal, os partidos (VIANNA, 1999). Mas, já em 1889, obervamos a
concentração nacional dos clãs eleitorais. A partir deste momento, notamos a ânsia do Centro para
congregar os clãs eleitorais sob o poder de um dos grandes partidos nacionais, os mencionados
Conservadores e Liberais. Aqui se destaca a figura do Governador, o qual era o mediador das relações
entre o município e o Centro, e também um protetor dos senhores rurais mais ricos e importantes12. Na
análise de Vianna:
Jogando com estes poderes invencíveis que o Centro lhes concedia, os Governadores
adquiriram sobre os clãs senhoriais um poder de aliciamento enorme e os iam
enquadrando dentro das grandes formações dos Partidos Nacionais, que se haviam
constituído na Corte. Eram as autoridades policiais, saídas da designação do
Governador (delegados, subdelegados, inspetores de quarteirão) que realizavam, em
obediência às ordens dele, esse trabalho de aliciamento e compressão nas localidades,
termos e distritos (VIANNA, 1999, p. 260-261).
Notamos que a construção de um aparelhamento partidário das massas rurais – ideia oriunda da
instalação do regime democrático no Brasil – era uma concepção não proveniente dos meios
municipais, mas sim uma implicação exógena, a qual buscava somente atender a um imperativo
político-administrativo: necessidade de conceber, por via eletiva, o Governo provincial e o Governo
nacional (VIANNA, 1999)13. Diante deste cenário, observamos o povo-massa surgir como um fator
determinante, mediante o critério majoritário posto nas eleições. Contudo, não idealizemos que o povo-
massa teve a partir de então uma participação efetiva na vida política do Brasil. Ao contrário, houve
uma exclusão total do povo-massa dessa nova experiência política, dada pela inserção do regime
democrático e do Estado-Nação. Pode-se dizer que o povo-massa passou a ser “massa de manobra”
12 O Governador era também o responsável por indicar os nomes dos beneficiários para os postos da Guarda Nacional,
instituição ímpar quanto à constituição dos clãs eleitorais. A Guarda Nacional reunia uma massa de indivíduos mais ou
menos influentes na vida pública, os quais se agrupavam, em regra, no partido do comandante, acrescendo o clã eleitoral
deste. Vianna nos destaca que era esta a função política da Guarda Nacional: “permitir ao senhor mais rico ou mais
poderoso (pela proteção que lhe dispensava o Governador, concedendo-lhe o recrutamento, a polícia civil e a militar, a
câmara municipal com os seus almotacéis) impor-se aos demais clãs feudais e senhoriais pelo princípio da disciplina e
obediência militar e também por esse aliciamento espontâneo, que o comando militarizado naturalmente suscita”
(VIANNA, 1999, p. 262-263). Retomaremos a importância desta instituição durante a análise acerca do pensamento de
Victor Nunes Leal.
13 Oliveira Vianna ressalta que o movimento de organização partidária surgiu a partir do Centro, em razão de uma ideologia
que não era nossa, mas que havia sido importada da Europa. Sobre isso, o autor afirma: “Este é o mecanismo do
funcionamento dos partidos no Brasil, considerados do ângulo da sua significação local. Como se vê, o movimento
sincretista, que observamos, depois de 1822, da parte dos nossos clãs senhoriais, em que vemos a nossa população rural
aparecer toda dividida em dois partidos nacionais; esse movimento sincretista não teve nenhuma razão de ser local: era de
pura proveniência exógena. Partiu do Centro, em obediência a uma ideologia que, por sua vez, não era nossa - que nos vinha
da Europa. Refletiu-se na sociedade rural pela criação de uma nova instituição social, que o período colonial não conheceu: -
o clã eleitoral” (VIANNA, 1999, p. 268).
para os poderosos latifundiários e outros integrantes da elite brasileira, como nos demonstra Vianna:
“... o povo-massa só acorria às urnas tangido – como um rebanho de ovelhas – pelos grandes senhores
de clãs parentais, pelos poderosos latifundiários do café e do açúcar, associados aos ricos magnatas que
faziam, nas cidades, o grande comércio” (VIANNA, 1999, p. 165).
Arremetidos de modo repentino a um novo sistema político – ao qual nunca haviam tido
contato– os clãs rurais arrastaram as particularidades de sua formação social para a vida pública. Mais
um episódio pode comprovar esta afirmação, segundo Vianna, o comportamento do povo-massa nos
comícios eleitorais, nas eleições. No período imperial, distintamente do período colonial, os comícios
passaram a ter um traço de violência, pois os “capangas” senhoriais, antes protetores dos domínios
feudais, passam a ter o dever de proteger os interesses de seus senhores nas eleições, provocando
diversos tumultos e quebramentos de urnas. Ou seja, os comícios eleitorais e o exercício do sufrágio
colocavam em evidência as raízes clânicas de nossa sociedade, e ao mesmo tempo, introduziam um
novo espaço para o confronto de desavenças entre os senhores de terra. Em relação a tal questão,
Oliveira Vianna afirma:
Ora, é desta massa que se fez - e se faz - o eleitorado rural brasileiro, que é o eleitorado
que elege de fato, porque é a maioria. O "eleitor de cabresto" está logicamente
enquadrado dentro desta tradição cultural do nosso direito público costumeiro: sai dela
como o fruto de uma flor. Nem é de surpreender que ele surgisse no IV século: é o
mesmo membro componente do clã feudal que vemos se constituir nos três
primeiros séculos coloniais, servindo ao domínio noutra função. Deriva, como vimos
em capítulo anterior, da proteção que as nossas populações rurais, os homens-sem-terra,
recebiam da parte dos grandes senhores latifundiários, no correr do período colonial:
proteção contra o assalto do índio, ou do flibusteiro, ou do quilombola, ou do senhor
convizinho, "potentado" ou "régulo"; ou, no Império, contra o "delegado nosso", isto é,
a polícia partidarizada ou clanificada. Esta proteção dispensada aos moradores do seu
domínio pelo senhor territorial, perdeu decerto, mais tarde, a urgência primitiva e
esta materialidade que, nos tempos coloniais, mais desguarnecidos e
desamparados, revela; mas, o seu traço ficou nos costumes: -- e se foi transmitindo pela
hereditariedade social (cultura). E, ainda hoje, o encontramos vivo e atuante, embora já
sem aquele caráter imperativo e generalizado que exibia nos antigos tempos (VIANNA,
1999, p. 283).
formação cultural, social e política. Destaca-se em meio a estas peculiaridades, a nossa não
predisposição para lidar com dadas instituições democráticas e determinados tipos de participação, os
quais, necessariamente, primam pelos interesses coletivos em detrimento das vontades e dos benefícios
privados.
Até o momento apresentamos uma visão geral da leitura de Oliveira Vianna acerca da formação
dos partidos políticos brasileiros. Ao realizar tal tarefa, notamos que as teorizações do intelectual
fluminense se alinham, de maneira discreta ou contundente, a outras interpretações que tratam da
emergência dos partidos políticos no Brasil. Desta forma, realizaremos, no próximo tópico deste
trabalho, algumas comparações entre as ideias de Oliveira Vianna e as exposições de Victor Nunes Leal,
José Murilo de Carvalho, Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier e Maria do Carmo Campello de
Souza sobre a temática supracitada. O objetivo principal dessa atividade é verificar se há possíveis
continuidades das concepções de Oliveira Vianna acerca da constituição dos partidos políticos
brasileiros nos escritos destes importantes autores de nosso pensamento social e político.
Um balanço das distintas interpretações sobre a formação dos partidos políticos no Brasil:
uma pequena excursão em nosso pensamento social e político
Nesta parte do artigo estabeleceremos um diálogo entre as leituras de alguns importantes
estudiosos de nosso pensamento social e político acerca da emergência dos partidos políticos no Brasil,
cotejando-as com as interpretações de Oliveira Vianna sobre esse tema, aquelas já debatidas na primeira
parte deste trabalho. Para tanto, algumas ressalvas devem ser feitas para a compreensão do foco
analítico aqui adotado. A primeira vincula-se a especificidade do objeto pesquisado. Nesse sentido, é
válido ressaltar, mais uma vez, que nos interessa, sobretudo, as leituras de Victor Nunes Leal, José
Murilo de Carvalho, Maria do Carmo Campello de Souza, Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier, os
quais tratam diretamente da constituição dos partidos políticos brasileiros. Desta forma, não é nosso
foco as explicações dadas por esses pensadores acerca, por exemplo, da dinâmica social, cultural,
política e econômica na qual nossos primeiros partidos (o Partido Conservador e o Partido Liberal)
estavam inseridos durante o período do Império Brasileiro (1822-1889).
Vinculada de maneira profunda a essa questão, nossa outra ressalva liga-se às características dos
textos consultados. Segundo nossa percepção, é extremamente difícil apreender em meio aos trabalhos
dos autores selecionados uma leitura direta a respeito da gênese dos partidos políticos brasileiros. O
primeiro motivo para isso está no fato de que nem sempre esse tema se configura como o foco de
análise desses pensadores. Exceções à parte, notamos que para esses intelectuais a questão dos partidos
políticos é submetida a uma abordagem específica14: a necessidade de compreender as peculiaridades
14 Como é o caso de Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier no capítulo intitulado Esboço de Um Modelo, presente no
estudo Partidos Políticos e Consolidação Democrática: o Caso Brasileiro, onde encontramos um exame preciso e crítico de
uma dada literatura que versa sobre as origens de nossos partidos políticos.
resultantes da interação de nossos partidos políticos com contextos específicos localizados na História
do Brasil15.
Por fim, é importante evidenciar que, em algumas de nossas leituras, verificamos que boa parte
da interpretação sobre a concepção dos partidos políticos brasileiros pode ser melhor entendida quando
revista a partir das ideias de alguns estudiosos atentos às dinâmicas eleitorais existentes no Brasil
Império e no Brasil República. Por vezes, ao passo que tratam das permissivas formas de recrutamento
eleitoral existentes no Brasil, tais pesquisadores, como Victor Nunes Leal, retomam dinâmicas sociais,
culturais, políticas e econômicas perceptíveis no Brasil Colonial/Latifundiário, para assim,
compreenderem profundamente tal fenômeno. Tais dinâmicas, ao passo que são remontadas nas
explicações desses autores se alinham, em nossa opinião, a elementos importantes informados por
Oliveira Vianna em sua análise da formação do Brasil e de seus partidos políticos.
15 Os textos por nós selecionados de José Murilo de Carvalho e de Maria do Carmo Campello de Souza são, por exemplo,
trabalhos com focos analíticos bem específicos. Nessa direção, é importante para Carvalho compreender a especificidade da
atuação e composição do Partido Conservador e do Partido Liberal durante o Império Brasileiro. Já a análise de Campello
de Souza tem como finalidade o entendimento do processo político partidário na Primeira República. No entanto, ambos os
autores fazem, nestes estudos, um recuo para compreender as origens sociais, políticas e econômicas de nossos partidos
políticos em períodos anteriores a Independência do Brasil (1822). E é justamente no momento em que fazem esse recuo
que nossa leitura se detém com mais afinco. Não para desconsiderar a importância do todo abordado por eles, mas sim para
comparar efetivamente o objeto por nós estudado à leitura que tais autores fazem do mesmo, ou seja, cotejar a interpretação
fornecida por Oliveira Vianna acerca da formação de nossos partidos políticos com os escritos desses importantes autores
de nosso pensamento social e político.
remonta a leitura que ratifica a ideia de que no Brasil Colonial, agroexportador e com latifúndios
autossuficientes, a dinâmica existente impossibilitava a edificação de laços profundos que unissem o
país como um todo.
O Brasil, marcado pelas características de seu desenvolvimento como colônia
exportadora de matérias-primas, apresentava-se como um ajuntado de unidades
primário-exportadoras em vários estágios de evolução, dependente cada uma dos
embalos da demanda externa para a determinação de seu peso e importância na
economia do país. Cada unidade produtora atrelava-se ao mercado internacional,
indiferente à sorte das demais e independente delas. Quando o elo que as ligava – o
mercado nacional de escravos – se desfez, resultou o país composto de pequenas seções
justapostas, que conversavam entre si alguns frágeis vínculos, suficientes apenas para
que a nação não se desintegrasse totalmente. A Carta Constitucional Republicana parece
ter vindo propiciar os meios jurídicos para o funcionamento de uma estrutura que a
precedera historicamente (SOUZA, 1968, p. 164).
Na passagem acima, mesmo que a pensadora não cite Oliveira Vianna, e é valido lembrar que
no texto em si ela não referencia nenhum outro autor para respaldar tal afirmação, não podemos negar
que a interpretação posta resguarda importantes alinhamentos com as já debatidas ideias do pensador
fluminense acerca da formação do Brasil e, especificamente, de seus partidos políticos. O mais
interessante é notarmos que, para Maria do Carmo Campello de Souza, essa permissiva forma
organizacional da economia dada pelo latifúndio no Brasil Colônia se prolongará e proporcionará
reflexos negativos no Brasil Republicano. Ou seja, a dinâmica econômica do latifúndio e do Brasil
Colonial determinou, em certa medida, a condição de país exportador de matérias primas e produtos
agrícolas. Destaca-se, em meio a essa questão, segundo Campello de Souza, o problema da
diferenciação ideológica dos líderes dos partidos políticos que, na sua maioria, era composta pela elite
agrária existente no país:
Como a evolução do sistema industrial se fez nitidamente vinculada à economia
exportadora, surge como problema o estabelecimento de eventual diferenciação
ideológica entre os representantes. A análise da política republicana se torna mais
frutífera na medida em que se questiona a natureza e o significado dos laços de
solidariedade existentes entre a estrutura agrária e a urbana nascente (SOUZA, 1968, p.
165).
16Segundo a intelectual brasileira, notamos: “A força da oligarquia estadual advinda do controle exercido sobre os grandes
coronéis municipais, condutores da massa eleitoral incapacidade e impotente para participar do processo político que lhes
fora aberto com o regime representativo imposto pela Constituição de 1891” (SOUZA, 1968, p. 185).
Em Coronelismo, Enxada e Voto, Victor Nunes Leal dedicou ampla análise sobre a situação
política brasileira na ocasião da Primeira República. Mais especificamente, Leal estava interessado em
compreender a dinâmica política e social do interior brasileiro, a qual estava baseada, sobretudo, em um
fenômeno que envolve um “complexo de características da política municipal”, o coronelismo17.
Acreditamos que a definição deste elemento típico da república oligárquica brasileira será mais fiel se
elucidada através das próprias palavras de Leal:
[...] concebemos o coronelismo como resultado da superposição de formas
desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada.
Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno
típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder
privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e
exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa
base representativa (LEAL, 1997, p. 40-41).
O coronelismo nada mais é do que uma troca de proveitos entre o poder público cada vez mais
fortalecido e, os chefes locais que experimentavam progressivamente o declínio de seu controle social
(LEAL, 1997)18. É essencial observar, no entanto, que o coronelismo não pode ser compreendido caso
não façamos menção a nossa estrutura agrária, pois é esta que ainda provê a manutenção do poder
privado no interior do Brasil. Os coronéis sustentam o seu poder devido a sua distinta posição de
proprietário rural, a qual a delega automaticamente a um posto superior entre a massa do interior. Estes
17 Em uma nota escrita pelo historiador Basílio de Magalhães a pedido de Victor Nunes Leal, Magalhães destacou a
importância da Guarda Nacional no processo de construção do coronelismo. Neste trabalho já havíamos apontado a
centralidade da Guarda Nacional para a formação dos clãs eleitorais, aqui constataremos a relevância desta instituição para a
constituição e desenvolvimento do sistema coronelista. Nos trechos selecionados abarcamos a análise de Magalhães sobre a
Guarda Nacional e o coronelismo: [...] A Guarda Nacional nasceu a 18 de agosto de 1831, tendo tido o Padre Diogo
Antônio Feijó por pai espiritual. Determinou a lei ficasse ela sujeita ao ministro da Justiça (cargo então desempenhado pelo
imortal paulista), declarando-se extintos os corpos de milícias e de ordenanças (assim como os mais recentes guardas
municipais), que dependiam do ministro da Guerra [...] Durante quase um século, em cada um dos nossos municípios existia
um regimento da Guarda Nacional. O posto de “coronel” era geralmente concedido ao chefe político da comuna. Ele e os
outros oficiais uma vez inteirados das respectivas nomeações, tratavam logo de obter as patentes, pagando-lhes os
emolumentos e averbações, para que pudessem elas produzir os seus efeitos legais [...] Eram, de ordinários, os mais
opulentos fazendeiros ou comerciantes e industriais mais abastados, os que exerciam, em cada município, o comando-em-
chefe da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que a direção política, quase ditatorial, senão patriarcal, que lhes confiava o
governo provincial. Tal estado de coisas passou da Monarquia para a República, até ser declarada extinta a criação de Feijó.
Mas o sistema ficou arraigado de tal modo na mentalidade sertaneja, que até hoje recebem popularmente o tratamento de
“coronéis” os que têm em mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partidos de maior influência na
comuna, isto é, os mandões dos corrilhos de campanário (LEAL, 1997, p. 290-291-292).
18 O coronel ocupa lugar de destaque na liderança municipal/local. Mas, cabe ressalvar que nem todos os chefes políticos do
município eram os verdadeiros coronéis (senhor de terras), às vezes, quem exercia o poder eram figuras próximas ao
coronel: parentes ou afins, ou aliados políticos do senhor de terras.
senhores de terras podem até não possuir uma fortuna vultosa, mas comparando-se ao restante da
massa, que vive num estado de pobreza, ignorância e abandono, o coronel é considerado “homem
rico” (LEAL, 1997). Afora tal fato, os subsídios financeiros concedidos por bancos são feitos somente
aos donos de terra, o que contribui sobremaneira para o seu prestígio político. Nesta situação, o senhor
de terra é visto como o benfeitor do trabalhador rural, aquele que permite a sua sobrevivência. Por
meio de uma intricada manipulação social e econômica da massa, o coronel preserva o seu domínio
político, ancorado, sobretudo, na capacidade de dirigir os votos destes trabalhadores rurais, de chefiar
uma porção considerável de votos de cabresto (LEAL, 1997). Não é de surpreender que um povo que
tirava sua subsistência da terra – definitivamente dependente do senhor de terras – consentisse em ser
dominado politicamente pelo coronel.
[...] Sem dinheiro e sem interesse direto, o roceiro não faria o menor sacrifício nesse
sentido. Documentos, transporte, alojamento, refeições, dias de trabalho perdidos, e até
roupa, calçado, chapéu para o dia da eleição, tudo é pago pelos mentores políticos
empenhados na sua qualificação e comparecimento... [...] Os novos códigos, ampliando
o corpo eleitoral e reclamando a presença efetiva dos votantes, aumentam os gastos. É,
portanto, perfeitamente compreensível que o eleitor da roça obedeça à orientação de
quem tudo lhe paga, e com insistência, para praticar um ato que lhe é completamente
indiferente [...] (LEAL, 1999, p. 56-57).
A ausência do Estado nas municipalidades propiciava a forte atuação dos coronéis, ou seja, o
coronelismo só era possível devido ao não alcance do sistema representativo brasileiro em locais que
simplesmente estavam à margem da República e do sufrágio universal. Não obstante, realça Victor
Nunes Leal, a omissão do poder público nas localidades rurais era condição indispensável para o
funcionamento da república oligárquica, pois, era através do poder do coronel que o governador
avalizaria a sua eleição. Como a estrutura agrária brasileira conservava a dependência do elemento rural
ao senhor de terras, o partido do governo estadual não podia repudiar certo tipo de união, ou melhor,
uma troca de favores com os coronéis. Aí está determinado mais um aspecto essencial do coronelismo,
o sistema de reciprocidade, o qual nos define Leal:
[...] de um lado, os chefes municipais e os “coronéis”, que conduzem magotes de
eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante
no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que
possui, em suma, o cofre das graças e o poder da desgraça [...] (LEAL, 1997, p. 63-64).
Por meio do sistema de reciprocidade, Leal acentuou a ideia de que o coronelismo é um sistema
político nacional baseado em barganhas entre o poder público e os coronéis. Na figura abaixo,
procuramos evidenciar mais minuciosamente o ciclo de funcionamento do coronelismo, destacando
que há também a participação do governo federal neste processo de trocas de favores que move o
sistema coronelista.
Leal assinala a falta de autonomia legal nos municípios como um fator importante para a
vitalidade do sistema coronelista no Brasil. Contudo, o autor observa que os chefes locais governistas
gozam de uma autonomia extralegal, concedida através do sistema de reciprocidade com o governo do
estado. Mas, cabe notar que a autoridade extralegal beneficia exclusivamente os chefes locais amigos do
situacionista estadual. Neste caso, o município pode até sair favorecido, através da realização de alguns
serviços públicos essenciais. Caso contrário, se uma corrente política oposicionista estiver no poder, o
dirigente local não terá outorgada a autonomia extralegal e, desta forma, deverá basear-se somente nos
quadros de sua autonomia legal, a qual reserva “uma receita pública insuficiente para atender aos
encargos locais mais elementares” (LEAL, 1997, p. 72). Ou seja, se o município por um lado tem
autonomia legal, por outro lado, praticamente não possui meios de se manter no poder, por não ter
oportunidade de fazer uma administração proveitosa. Tudo depende da aliança entre os coronéis e o
poder público, que acaba sendo fator decisivo no apoio de grande número de eleitores ao partido local
governista. Desta forma, conclui Leal, “mesmo as eleições municipais mais livres e regulares
funcionarão, frequentemente, como simples chancela de prévias nomeações governamentais. Autêntica
mistificação do regime representativo” (LEAL, 1997, p. 73).
A Constituição brasileira de 1891 deve ser entendida como um marco para a concretização do
sistema coronelista, pois quando se outorgou o direito de voto a todos os cidadãos alfabetizados,
aumentou, expressivamente, o número de eleitores rurais que iriam às urnas garantir a vitória do
governador de estado aliado ao coronel. A função do coronel no cenário político nacional passa a ser
visivelmente uma: aliciar, a qualquer custo, o maior número de votos para o seu governador.
Controlador dos trabalhadores rurais, os coronéis conduziam as massas locais às cabines de votação,
por meio da opressão e violência. Nesta ocasião se faz presente o jagunço, colocado ao lado do eleitor
como forma de impedir um possível voto de protesto. Somado a esta manipulação da massa eleitoral
rural, víamos ainda no processo eleitoral brasileiro da Primeira República atos de corrupção, como o
bico de pena e a degola, ações constantemente citadas por Victor Nunes Leal em sua obra aqui
analisada. Destacamos uma citação do autor que nos permite compreender como eram realizadas tais
falsificações eleitorais:
[...] o bico de pena e a degola ou depuração. A primeira era praticada pelas mesas
eleitorais, com funções de junta apuradora: inventavam-se nomes, eram ressuscitados os
mortos, e os ausentes compareciam; na feitura das atas, a pena toda poderosa dos
mesários realizava milagres portentosos. A segunda metamorfose era obra das câmaras
legislativas no reconhecimento de poderes: muitos dos que escapavam das ordálias
preliminares tinham seus diplomas cassados na provação final [...] (LEAL, 1997, p. 255).
Para Victor Nunes Leal, a corrupção eleitoral era uma das maiores adversidades do sistema
representativo no Brasil, um mal que se viu passar do período colonial até o republicano. Várias
reformas eleitoras teriam sido realizadas com o intuito de sanar as falhas do nosso sistema, mas “não
tardavam a penetrar a malícia e a truculência” (LEAL, 1997, p. 266). No entanto, prossegue Leal, até
mesmo em tempos que o processo eleitoral se mostrou menos corrompido por violência ou fraude,
“sempre impressionou aos espíritos mais lúcidos o artificialismo da representação, que era de modo
quase invariável maciçamente governista” (LEAL, 1997, p. 267). Leal destaca que muitos queriam
atribuir o insucesso do regime representativo exclusivamente a fatores políticos, no entanto, a falha da
representatividade no Brasil estaria intrinsecamente vinculada aos fatores econômicos e sociais. No
entanto, assinala o autor, “a atenção dos observadores quase sempre se desviava dos fatores
econômicos e sociais, mais profundos, que eram e ainda são os maiores responsáveis pelo governismo
e, portanto, pelo falseamento intrínseco da nossa representação” (LEAL, 1997, p. 267-268).
Neste panorama de violência, fraudes e manipulações, interessa-nos compreender a ação dos
partidos políticos brasileiros na dinâmica complexa do sistema coronelista. Para Leal, a realidade do
coronelismo acabara “agravando os embaraços que lhes advém da organização federativa do Brasil”
(LEAL, 1997, p. 270-271). O campo de atuação dos partidos brasileiros no período da Primeira
República era restrito, tinha exclusivamente o propósito de servir firmemente as lógicas impostas pelo
coronelismo19:
[...] Quem observa a multiplicidade de alianças, que se fizeram nas últimas eleições
estaduais e municipais, não pode deixar de verificar que os nossos partidos são pouco
mais que legendas ou rótulos destinados a atender às exigências técnico-jurídicas do
processo eleitoral [...] (LEAL, 1997, p. 271).
Ou seja, podemos ver o coronelismo como uma “herança colonial” que se conservou ao longo
do tempo devido à estrutura agrária do Brasil. Mas, o coronel descrito por Leal não é mais aquele
poderoso patriarca, o mandão, o grande senhor de terras, de escravos e de engenho, figura central na
direção dos rumos políticos, sociais e econômicos do Brasil Colônia e também do Brasil Império, como
assinalado por Oliveira Vianna21. Ao contrário, o coronel analisado por Victor Nunes Leal apenas se
mantém devido à troca realizada com o poder público e com a perda de sua autonomia no município.
Mas, então, o que mantém vigoroso o coronelismo? Na visão de Leal, determinados fatores propiciam
a sobrevivência do sistema coronelista, a saber: fraqueza do dono de terras e a fraqueza dos
trabalhadores rurais, “fraqueza do dono de terras, que se ilude com o prestígio do poder obtido à custa
da submissão política; fraqueza desamparada e desiludida dos seres quase sub-humanos que arrastam a
existência no trato das suas propriedades” (LEAL, 1997, p. 78). Encerrando sua convicção de uma
fragilidade do senhor de terras para a manutenção do coronelismo de seu tempo, Leal destaca: “A
melhor prova de que o ‘coronelismo’ é antes sintoma de decadência do que manifestação de vitalidade
19 José Murilo de Carvalho (2005) também destaca o domínio dos coronéis sobre os partidos políticos neste período: [...] O
resto do mundo rural era o reino dos coronéis que dominavam os partidos republicanos estaduais e davam sustentação ao
governo federal e estabilidade à república oligárquica. Este mundo, assim como essa república, da qual estavam excluídos
95% dos cidadãos, nada tinham de moderno. Era um mundo de analfabetismo, de trabalho semi-servil, de ausência de
direitos, de paternalismo (CARVALHO, 2005, p. 116).
20 José Murilo de Carvalho defendeu a ideia de que o poder do coronel já podia ser encontrado em tempos anteriores ao da
Primeira República e procura apontar as transformações do “coronel” ao longo do tempo, ver Carvalho (2001).
21 Como debatemos na primeira parte deste trabalho, para Oliveira Vianna, a figura do senhor de terras perdura ao longo de
nossa História e sua presença é identificável nos diferentes ciclos econômicos pelos quais o Brasil percorreu, pelo menos até
a Primeira República: latifúndio pastoril, canavieiro e cafeeiro. Neste sentido, a presença do grande proprietário de terras
mantém-se, inclusive, no período republicano. Ver Oliveira Vianna, Instituições Políticas Brasileiras, 1999, p. 158-159; 200.
dos senhores rurais, nós a temos neste fato: é do sacrifício da autonomia municipal que ele se tem
alimentado para sobreviver” (LEAL, 1997, p. 78).
Apesar da diferença marcante entre Oliveira Vianna e Victor Nunes Leal a respeito da
persistência da influência do senhor de terras até a Primeira República, notamos alguns alinhamentos
significativos em relação às interpretações que estes autores possuem sobre a constituição dos partidos
políticos no Brasil e a sua dinâmica eleitoral. Neste sentido, ambos os pensadores ao passo que
interpretam as nossas origens agrárias destacam o latifúndio como o elemento central para
compreender as especificidades de nossa formação social, econômica e política. Desta forma, segundo
os autores, o latifúndio e sua dimensão autossuficiente exerceu uma função centralizadora na nossa
História, determinando assim, o fortalecimento da figura do senhor de terras e a dependência do
“povo-massa” ou “trabalhadores rurais” em relação ao grande proprietário rural22. Além disso, não é
errado afirmar que para Vianna e Leal há em nossa dinâmica eleitoral uma relação entre o povo e o
senhor de terras que é marcada, por um lado, pela necessidade dos grandes proprietários rurais
acessarem o poder através do recrutamento de votos e, por outro, pela condição de inferioridade
material e cultural na qual está inserido o eleitor que vive em um determinado domínio rural. Ainda é
valido ressaltar que, segundo os dois intelectuais, reside neste complexo arranjo político-eleitoral a forte
marca da violência, tanto no processo de eleição, quanto nos comícios eleitorais.
Para Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier esta consolidada interpretação, além de ratificar
uma série de ideias acerca da formação do Brasil, detém um profundo vínculo com a busca da
22Victor Nunes Leal destaca que o Brasil ainda na Primeira República vivia sob o binômio “senhor de terras e seus
dependentes”. Já Oliveira Vianna cria os conceitos de clã feudal, clã parental e clã eleitoral para especificar os vínculos de
dependência advindos da formação social, econômica e política brasileira calcada no sistema latifundiário.
23 No texto em si, após essa passagem, os autores evidenciam, em nota de rodapé, a seguinte afirmação: “Os grandes
‘construtos’ a que nos referimos acham-se em obras paradigmáticas como as de Leal (1948), Oliveira Vianna (1951),
Holanda (1936), Faoro (1958) e Schwartzman (1982). Salienta-se que estamos imputando a qualquer desses autores o
referido simplismo na análise dos partidos” (LAMOUNIER & MENEGUELLO, 1986, p. 22). Aqui, podemos notar que os
autores acreditam que essa consolidada interpretação acerca da formação do Brasil que de alguma forma repercute no
entendimento da constituição de nossos partidos políticos está atrelada a uma gama significativa de autores e estudos. Nesse
sentido, nos é pertinente compreender quais as dimensões, ou quais questões, apresentadas na interpretação de Rachel
Meneguello e Bolivar Lamounier que possuem um efetivo alinhamento com a leitura oferecida por Oliveira Vianna sobre
esse tema.
24 Aqui consideramos permissivos justamento porque tais reflexos influenciam diretamente no aprofundamento, segundo
Oliveira Vianna sobre a formação do Brasil e de nossos partidos políticos. Nessa direção, ao passo que
os intelectuais trabalham com a ideia de familismo clânico; com a percepção de que nossos partidos
políticos possuem uma precária coesão organizacional; com a proposição que ressalta a debilidade dos
partidos políticos brasileiros como agregadores de interesses efetivamente coletivos e representativos;
com as hipóteses fundadas no diagnóstico sobre a formação colonial do país; ou ainda, com as leituras
determinadas pelo padrão histórico de ocupação da terra, “baseado no latifúndio e na exacerbação do
mandonismo local”, observamos que ambos os estudiosos estão lidando com concepções muito
próximas das teorizações de Oliveira Vianna já evidenciadas na primeira parte deste artigo.
Retomando a análise dos pensadores, verificamos que Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier,
após rever o conteúdo dessa consolidada interpretação sobre a formação do Brasil, passam a
problematizar os limites da mesma no que se refere ao entendimento dos partidos políticos e da
debilidade partidária existentes no Brasil até o ano de 1986. Para os autores, o Brasil sofreu profundas
mudanças, sobretudo políticas, no decorrer dos anos situados entre a nossa Independência até as
eleições gerais no Brasil (1986). Nesse sentido, seria necessário, no mínimo, tratar com cuidado e
cautela a transposição desse arcabouço interpretativo para a realidade mais recente do Brasil.
A dificuldade, porém, é que não podemos ficar com uma constante – a debilidade
partidária – explicada por outra constante – o “caráter nacional”, ou o caráter geral da
sociedade brasileira. Estamos falando, afinal de contas, de um país de 150 anos de
história independente. Nesse período, não tivemos apenas uma sucessão de sete
sistemas partidários. Tivemos também uma monarquia parlamentarista e uma
república presidencialista; passamos de um Estado Unitário a federação e voltamos a
um alto grau de centralização (embora preservando a forma federativa) sob o regime
militar; deixamos de ser colônia agroexportadora para nos tornarmos uma das dez
maiores economias do mundo, com importante base industrial e altíssimo índice de
urbanização (LAMOUNIER & MENEGUELLO, 1986, p. 24).
25Segundo os autores: “Não se trata aqui, é claro, de passar ao outro extremo e ignorar por completo este quadro clássico
de referência a respeito da formação social e estatal do Brasil. O tema do privatismo, por exemplo, aponta para uma
dimensão fundamental que é a hipertrofia do poder privado: sua tendência a absorver as funções públicas ali aonde não
chega realmente o poder do Estado e a dificultar o desenvolvimento de formas mais amplas de associação, sem as quais não
se concebe a agregação de interesses realizada por partidos modernos. Da mesma forma, a organização centralizada e
patrimonialista do Estado transforma-se no prêmio praticamente único da disputa política: ‘na fortaleza que é preciso,
primeiro tomar e, em seguida, reconstruir sob outra forma’. No século XIX, quando a rigor não havia esta noção de
reconstruir o Estado, ele era mesmo assim o grande dispensador de favores, empregos e honrarias; e, sobretudo, era a
e Bolivar Lamounier salientam que este “modelo” interpretativo deve ser sensível às novas dinâmicas
sociais e históricas, possibilitando assim o resgate de alguns de seus aspectos que, ainda hoje, possuem
um efetivo respaldo na realidade.
O “modelo” interpretativo a que nos referimos anteriormente deve ser sensível a essa
variedade de tempos históricos – alguns dos quais nos impressionam por sua
constância, outros pela magnitude das transformações. Num primeiro esboço, a ser
enriquecido pela análise, trata-se pois de demonstrar: primeiro, que um dos aspectos da
formação do Estado, no Brasil, foi uma política deliberada no sentido de impedir o
fortalecimento dos partidos nacionais, ou que de alguma forma pudesse competir com
o poder central. Este processo é perfeitamente identificável no império, na Primeira
República e no Estado Novo; segundo, que essa política levou à fragmentação e à
atrofia não apenas dos partidos classistas, ideológicos e religiosos, mas também de
partidos “tradicionais”, baseados nas próprias oligarquias ou em parentelas
semimilitarizadas (LAMOUNIER & MENEGUELLO, 1986, p. 24-25) (Grifos dos
Autores).
A posição adotada por Rachel Meneguello e Bolivar Lamounier a respeito da pertinência desse
modelo interpretativo nos pareceu a mais adequada até o momento. Afinal, os autores nos lembram
sobre a necessidade de cuidado no momento de transpor para o entendimento de uma dada realidade o
conteúdo de uma determinada teoria ou interpretação. Nesse movimento de cautela analítica, os
intelectuais ainda nos recomendam um olhar atento para com as novas dinâmicas históricas, para
justamente apreendermos possíveis quebras ou continuidades em relação a uma já consolidada leitura
clássica sobre a sociedade brasileira e suas características sociais, culturais, políticas e econômicas.
José Murilo de Carvalho, na obra A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial & Teatro de
Sombras: A Política Imperial – mais especificamente no Capítulo 8 da Parte I, denominado Os Partidos
Políticos Imperiais: Composição e Ideologia – nos traz uma análise dos arranjos organizacionais e da atuação
dos partidos políticos brasileiros durante o Brasil Império. Levando em consideração tal objeto, o
pensador brasileiro propõe uma leitura mais crítica, densa e, em certa medida, inovadora em relação as
já existentes interpretações e teorias a respeito dos partidos políticos imperiais26. A pertinência desse
debate é relativa para nosso artigo, afinal, nos interessa muito mais a leitura que o pensador faz acerca
da constituição desses partidos do que a especificidade da interação deles com as condições históricas
existentes no Período Imperial. Nesse sentido, os recuos feitos por José Murilo de Carvalho para
compreender a gênese de nossos partidos políticos são extremamente importantes para os objetivos
deste artigo.
nascente força militar e policial que os grandes senhores se empenhavam em neutralizar e aliciar” (LAMOUNIER &
MENEGUELLO, 1986, p. 22-23).
26 Neste trabalho, José Murilo de Carvalho afirma que sua leitura sobre a constituição social e ideológica dos partidos
políticos é inovadora justamente por conservar maior respaldo na realidade existente no período imperial. Na parte final
deste tópico nos deteremos com mais afinco nessa questão.
Fazendo um balanço da literatura que versa sobre a “origem social e ideológica nos partidos
imperiais”, José Murilo de Carvalho faz a seguinte afirmação em relação à leitura de Oliveira Vianna
acerca desta questão:
Já Azevedo de Amaral vê nos conservadores os representantes dos interesses rurais e
nos liberais a voz de grupos intelectuais e de outros grupos marginais ao processo
produtivo, tais como os mestiços urbanos. (...) Próximo da posição de Azevedo
Amaral está a formulação anterior de Oliveira Vianna que, embora não distinga
socialmente os dois partidos monárquicos, vê certa distinção ideológica entre ambos.
O “idealismo utópico” de que fala este autor, de acordo com seus próprios exemplos,
seria mais próprio dos liberais, posteriormente dos republicanos. Como exemplo de
idealismo utópico, Oliveira Vianna cita Tavares Bastos, Teófilo Ottoni, Tito Franco,
Joaquin Nabuco, Rui Barbosa e outros, todos corifeus do liberalismo. O “idealismo
orgânico”, por outro lado, seria representado por Vasconcelos, o fundador do Partido
Conservador. Mas Oliveira Vianna não formulou esta diferença claramente em termos
de partidos políticos. E as diferenças ideológicas, segundo ele, não se prenderiam
também a diferenças de origem social (CARVALHO, 2008, p. 203).
Esta leitura do intelectual mineiro nos parece pertinente em relação à interpretação de Oliveira
Vianna sobre a formação de nossos partidos políticos. Nesse sentido, quando José Murilo de Carvalho
afirma que o intelectual fluminense não faz distinção entre a origem social dos dois partidos
monárquicos e que as diferenças ideológicas “não se prenderiam também a diferenças de origem
social”, ele parece refletir sobre a explicação de Oliveira Vianna que engloba a ideia de que os partidos
políticos brasileiros são, sobretudo, determinados pela lógica organizacional clânica oriunda, por sua
vez, da dinâmica social, cultural, política e econômica experimentada pelo Brasil durante o seu período
Colonial/Latifundiário.
Ao realizar um balanço das interpretações brasileiras preocupadas com a “composição social”
dos partidos políticos no Brasil Império, José Murilo de Carvalho faz a seguinte constatação:
Além de variarem radicalmente as afirmações sobre a composição social dos partidos,
esta variação tem por base concepções totalmente diversas sobre a estrutura social e o
sistema de poder vigentes no Império. Estas concepções vão desde o Império Burguês
de Caio Prado Júnior, incluindo setores reacionários e progressistas, à sociedade
patriarcal de Nestor Duarte, ao domínio do latifúndio de Maria Isaura, à
preponderância do estamento burocrático de Faoro, à sociedade escravista de Vicente
Licínio Cardoso, à sociedade quase feudal de Oliveira Vianna. Os partidos são
forçados a refletir estas variadas concepções assumindo também as mais diversas
fisionomias, como acabamos de ver (CARVALHO, 2008, p. 203).
Aqui, não podemos deixar de ressaltar a simplificação feita por José Murilo de Carvalho em
relação às possibilidades analíticas e interpretativas oferecidas pela leitura de Oliveira Vianna a respeito
da constituição dos partidos políticos brasileiros, ou, da composição social dos partidos políticos no
Império. A primeira parte deste trabalho é, nesse sentido, exemplo da envergadura das teorizações de
Oliveira Vianna. Desta forma, colocar em termos tais como “sociedade quase feudal de Oliveira
Vianna” é simplificar demasiadamente as proposições do intelectual fluminense sobre tal tema. É válido
observar que, de fato, nessa passagem o estudioso está fazendo um esforço de síntese para concluir
uma importante hipótese de seu trabalho. Todavia, a leitura de Oliveira Vianna sobre a gênese dos
partidos políticos no Brasil não reflete apenas algumas de suas percepções sobre as dimensões feudais
da sociedade brasileira. Em nossa opinião, ela é mais profunda e sofisticada do que esta formulação.
Nas conclusões de seu texto, após uma exposição contundente de dados e informações voltadas
para as diversas características da composição político-partidária no Brasil Imperial, José Murilo de
Carvalho define então, com maior clareza, qual o arranjo dos partidos políticos imperiais segundo sua
interpretação:
A análise dos partidos confirmou a posição típica dos magistrados como os principais
construtores do estado por via do Partido Conservador, e confirmou também a
posição divergente do clero, engajado, sobretudo, no Partido Liberal. Os militantes
como grupo não se envolviam nas lutas partidárias e vários de seus representantes no
Ministério eram partidariamente neutros. Apareceu como novidade a divisão em
proporções iguais dos donos de terra entre os dois partidos monárquicos, mas com
importantes distinções. O Partido Conservador abrigava principalmente os
representantes da grande agricultura de exportação, enquanto o Partido Liberal era
dominado pelos produtores do mercado interno. E surgiram também os profissionais
liberais como grupo ascendente formando a ala ideológica do Parto Liberal e o núcleo
do Partido Republicano do Rio de Janeiro (CARVALHO, 2008, p. 225).
27 No artigo denominado Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual, José Murilo de Carvalho
afirma: “Os partidos políticos imperiais eram coalizões. O liberal reunia proprietários e profissionais liberais, o conservador
compunha-se de proprietários e magistrados. Em todas as questões que diziam respeito aos interesses dos proprietários,
como a da abolição da escravidão, os dois partidos se dividiam internamente” (CARVALHO, 1997, p. 11). Aqui o
intelectual ratifica que em ambos os partidos a classe de proprietários rurais se fazia presente efetivamente. Percepção da
qual Oliveira Vianna não abre mão para compreender a formação dos partidos políticos brasileiros.
28 Raymundo Faoro, Maria Isaura Pereira de Queiros, Sérgio Buarque de Holanda, Victor Nunes Leal, Maria do Carmo
mineiro acerca da pertinência analítica das já existentes teorizações vinculadas com a edificação dos
partidos políticos no Brasil. Nesse sentido, para José Murilo de Carvalho, sua leitura sobre o tema dos
partidos no Império seria mais densa justamente porque é pautada em dados e fatos empíricos antes
não disponíveis para outros intelectuais interessados na dinâmica político-partidária e eleitoral existente
no Brasil Imperial. É também mais densa e realista precisamente por ter na realidade histórica de nosso
país um maior respaldo, não permitindo assim, fugas interpretativas ou suposições analíticas (erros
frequentes apontados pelo pensador mineiro em uma vasta literatura, a qual, por sua vez, engloba as
interpretações de intelectuais, tais como, Oliveira Vianna e Raymundo Faoro):
Na ausência de pesquisa, as afirmações não passam de simples deduções feitas a partir
da concepção geral do autor a respeito da sociedade e da política imperial, quando não
de sua visão da natureza da sociedade em geral. Isto é, atribuem-se aos partidos aquela
composição e aquela ideologia que venham confirmar a visão preconcebida da
sociedade. Embora não se negue que daí possa surgir hipóteses interessantes, já é
tempo de ir um pouco além em termos de conhecimento da realidade (CARVALHO,
2008, p. 201).
Aqui reside uma diferença clara entre as posições de José Murilo de Carvalho e as de Rachel
Meneguello e Bolivar Lamounier sobre as interpretações clássicas que tratam da constituição dos
partidos políticos no Brasil. Se para os dois autores não é necessário desconsiderar as já existentes
leituras canônicas, mas sim revisitá-las ou revê-las considerando os contextos específicos e
contemporâneos da sociedade brasileira, para José Murilo de Carvalho, é imprescindível se afastar
definitivamente desses modelos interpretativos, buscando assim, explicações novas, sem “premissas
teóricas inadequadas” e com um maior “embasamento empírico das afirmações”. Dessa forma, para o
pesquisador brasileiro, o resultado de seus estudos sobre a composição social e ideológica dos partidos
políticos no Brasil Império,
[...] veio assim mostrar a incorreção de várias das teorias sobre ele formuladas e
esclarecer um pouco mais da dinâmica do sistema imperial. O tema dos matizes da
ordem discutido no capítulo anterior com referência aos setores da burocracia ganhou
aqui maior amplitude ao ser estendido à elite como um todo. A diversificação
apareceu também na estrutura partidária, aliada a novas clivagens provenientes da elite
não burocrática (CARVALHO, 2008, p. 224).
Desconsiderar interpretações clássicas sobre a formação dos partidos políticos brasileiros não é
uma tarefa fácil de realizar, tal como sugere José Murilo de Carvalho. Afinal, tais leituras são
extremamente interessantes e capazes, inclusive, de nos impedir de “ir um pouco além em termos de
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 696
A citação, por mais que seja demasiadamente longa, coloca em evidência uma pertinente
contradição inerente ao pensamento de José Murilo de Carvalho. Afinal, se por um lado é preciso se
afastar das interpretações clássicas a respeito de nossa formação como povo e da constituição de
nossos partidos políticos, por outro, o autor mineiro ratifica diversas concepções canônicas sobre o
Brasil que, por sua vez, são facilmente vinculadas – graças às teorizações de intelectuais como Oliveira
Vianna, Raymundo Faoro e Victor Nunes Leal – aos diversos reflexos oriundos de nossa formação
Colonial/Latifundiária.
Considerações finais
Neste artigo tivemos a oportunidade de compreender a formação dos partidos políticos no
Brasil comparando diferentes leituras voltadas para o entendimento deste objeto. Neste sentido,
priorizamos, em um primeiro momento, a exposição da interpretação dada por Oliveira Vianna a
respeito da gênese de nossas organizações partidárias para, posteriormente, cotejar com outras
teorizações vinculadas ao entendimento de tal tema que, por sua vez, estão amplamente difundidas em
nosso pensamento social e político. Para a realização deste segundo movimento analítico selecionamos,
para melhor compreender a constituição dos partidos políticos no Brasil, as ideias de Bolivar
Lamounier e Rachel Meneguello, de Maria do Carmo Campello de Souza, de José Murilo de Carvalho e
de Victor Nunes Leal. Desta forma, conseguimos demarcar os alinhamentos e as diferenças existentes
Referências
CARVALHO, José Murillo de. A Construção da Ordem: A Elite Política Imperial & Teatro de Sombras: A Política
Imperial. 4ª Ed. Rio de Janeiro: EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2008.
_______. As Metamorfoses do Coronel. Jornal do Brasil: 2001, p. 04. Disponível
em:<http://www.ivnl.com.br/download/jose_murilo_jornal_do_brasil_2001.pdf>. Acessado em: 24 de
Setembro de 2013.
_______. Mandonismo, Coronelismo, Clientelismo: Uma Discussão Conceitual. Dados Vol. 40, Nº. 2. Rio de Janeiro,
1997. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581997000200003>. Acessado em: 24 de Setembro
de 2013.
_______. Pontos e bordados: escritos de História e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
LAMOUNIER, Bolivar & MENEGUELLO, Rachel. Partidos Políticos e Consolidação Democrática: O Caso Brasileiro.
São Paulo: Brasiliense, 1986.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
SOUZA, Maria do Carmo Campello. O Processo Político-partidário na Primeira República. In: MOTA, Carlos
Guilherme (Orgs.). Brasil em Perspectiva. 4ª Ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968, p. 162-226.
VIANNA, Oliveira. História social da economia capitalista no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói, RJ: Eduff, 1987.
(Volume I e II).
29Apesar da extensão de nossas argumentações, a continuidade das interpretações do pensador fluminense nas teorizações
desenvolvidas pelos distintos pesquisadores aqui investigados, a respeito da gênese dos partidos políticos no Brasil, se
configura ainda com uma hipótese. Acreditamos que uma leitura tão incisiva como esta mereceria uma análise de mais
fôlego que envolvesse, por exemplo, uma pesquisa nos acervos de Bolivar Lamounier, Rachel Meneguello, de Maria do
Carmo Campello de Souza, de José Murilo de Carvalho e de Victor Nunes Leal, com a intenção de lá verificar se há a
presença de obras de Oliveira Vianna, assim como marcações e anotações nas mesmas.
O
período histórico que segue ao fim da regência é frequentemente tratado pela
historiografia como privilegiado para compreender o processo de construção do Estado
Nacional no Brasil. Período atravessado pelo “Regresso”, obra marcante de centralização
politica e administrativa capitaneada pelo Partido Conservador, que pautaria toda a politica do Império,
ao menos até um novo período reformador na década de 1870. A conjuntura política da regência, na
qual tem início o período do “regresso” é tradicionalmente vista sob a perspectiva negativa, que
caracteriza a época como anômala e anárquica. A construção dessa imagem se da muito em função da
interpretação de autores do Segundo Reinado, como Joaquim Nabuco e Justiniano José da Rocha. Não
obstante as disputas políticas ocorridas na regência ajudam a compreender o período histórico
posterior, especialmente a obra centralizadora do regresso.
Primeiramente, pensamos o período regencial como período crucial do processo de construção
da nação brasileira. Período conturbado, com diversas revoltas (em que se destacam a Farroupilha,
Cabanagem e a Sabinada, mas também movimentos de escravos como a revolta dos Malês e a de
Manoel Congo), os quase dez anos de regência (1831-1840) colocaram na agenda política projetos
distintos. No entanto uma primeira agenda política ligada às reformas liberais, no sentido da
descentralização administrativa, foi realizada no intuito de eliminar certos resíduos absolutistas do
Primeiro Reinado (BASILE, 2009:97). Encampada especialmente por uma parcela dos “liberais
moderados”, dominantes da Câmara dos Deputados, estas reformas vão enfrentar as relações de força
entre o Legislativo e o Executivo, e rever a estrutura do aparelho repressivo do Estado, reformado a
Política e, especialmente, a Justiça. Nesse período destaca-se o Código de Processo Criminal de 1832, a
grande obra jurídica dos “moderados”, representando os ideais de autonomia judiciária, localismo e
representação popular, dando grande destaque a figurado juiz de paz (introduzida pela lei de 15 de
outubro de 1827, mas com poderes consideravelmente ampliados após 1832) e do júri. O habeas corpus
foi também destaque desta obra, além da criação do juízo municipal, cujo cargo seria preenchido pelo
período por três anos por nomeado do Presidente de província segundo lista tríplice apresentada pela
Câmara Municipal (BASILE, 2009:76).
O grupo político dos “moderados”, ainda que não gozasse de uma solidez interna quanto a um
projeto político específico (o que seria um dos motivos de seu enfraquecimento após 1837, data no
inicio do período do “regresso”), conseguiu ainda em 1834 aprovar a lei do Ato Adicional que
* Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Bolsista da Capes.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 700
1“A elas competia legislar sobre diversos assuntos, como fixação das despesas provinciais e municipais, impostos
provinciais, repartição da contribuição direta pelos municípios, fiscalização das rendas e despesas municipais e provinciais,
nomeação dos funcionários públicos, policiamento e segurança publica, instrução publica e obras públicas, ficando as
resoluções da Assembleia sujeitas à sanção do presidente de província” (BASILE, 2009:81)
2Destaforma, os relatórios dos Ministros da Justiça são fonte importantíssima para a pesquisa que estamos desenvolvendo,
juntamente com os Anais da Câmara e do Senado.
Com efeito, aponta Elaine Leonara de Vargas Sodré, os primeiros anos após reforma, foram
encontradas muitas dificuldades de preencher todos estes postos por Bacharéis em Direito, mas após a
década de 1850, as disposições da Lei de 3 de Dezembro em sua estratégia de profissionalização
passariam a se consolidar gradativamente (SODRÉ, 2009:35).
Por outro lado, exame dos debates relativos reforma do judiciário, durante o final da década de
1830 e mesmo sobre a reforma da Lei 3 de Dezembro, revelam que entre posição politica de apoio às
reformas liberais e a de revisão dessas reformas (encampada pelo Partido Conservador após 1837) não
havia oposições irredutíveis. Havia uma compreensão, por parte de setores do Partido Liberal de que as
reformas liberais haviam falhado em relação ao aparato judiciário, que precisava ser reorganizado no
sentido de o poder central exercer um controle maior sobre as autoridades judiciárias e de valorização
da formação em direito. Com efeito, no correr das décadas de 1860 e 1870 o Partido Liberal já
reformulado e sob a liderança de Nabuco de Araújo relega ao juizado de paz um papel menor do que
os liberais de 1832 (ainda que proponha um aumento de suas atribuições diante da reforma de 1841).
Num certo sentido a preocupação com uma justiça independente se transpõe para a modernização e a
mudança do processo de treinamento e seleção da magistratura profissional. Como presente nas
propostas de reforma de Nabuco de Araújo.
Um outro ponto também deve ser abordado, o caso da polícia judiciária. Com a criação dos
delegados, coube a estes a realização do inquérito policial e a realização das funções de policia judiciária,
esvaziando sobejamente os poderes dos juízes de paz e dos prefeitos. A experiência administrativa
propiciada pela legislação processual de 1832 orienta o processo de centralização através de seus
efeitos. Deixaria claro que a autonomia provincial tinha de ser submetida a um controle rígido no que
se refere ao poder judiciário, dado seu caráter privilegiado na operacionalização da manutenção da
ordem e do controle social e politico. O que não excluiria terminantemente as relações entre governo
central e os “poderes locais”, os fazendeiros. Relações estas fundamentais no funcionamento do
sistema político eivado de clientelismo. E aqui os controles sobre a polícia e os tribunais dariam ao
governo central a influencia local necessária para construir sua hegemonia.
Aqui é importante nos determos um pouco na instituição do juizado de paz. A figura do juiz de
paz se destaca como alvo das principais mudanças processuais no campo criminal. O juiz de paz
adquire papel fundamental, sobre tudo por se tornar alvo da critica dos defensores da reforma. É,
assim, sobre a instituição do juizado de paz que pesam as medidas mais duras da reforma do Código de
Processo Criminal, de 1841. Sua função politica e administrativa é amplamente questionada pela
bancada conservadora, que passa a interpreta-lo, curiosamente, não com ares de excessiva
modernidade, mas como figura referida a uma administração retrograda.
Uma de suas atribuições mais significativas, até 1841, era a prepação das listas de votantes,
dando a este juiz eleito uma posição de responsabilidade eleitoral. O que, ao menos em tese,
desequilibrava os jogos de poder entre o poder central e os poderes locais. Após a abdicação,
[…] no siendo ya meramente demoledores y provocadores a corto plazo, los liberales ahora
encontrabam que eran los encargado de constuir un sistema político proprio, y al mismo tiempo
mantener un orden social eficaz; el gubierno de la regencia indentificó estos objetivos como los
problemas más irgentes que enfrentaba Nrasil. Con estos fines, la legislacion subsequente modificó
radicalmente la naturaleza del juez de paz aumentando su jurisdicción penal y sus poderes de
vigilancia. Despues de 1831, el juez de paz y el liberalismo brasileño comezaron a avanzar juntos en
una dirección claramente nueva. (FLORY, 1986:103)
sucede à lei, nas tentativas de reforma. Quem se destaca tanto nas discussões, quanto nos relatórios de
sua pasta é o então Ministro da Justiça, Paulino Soares de Souza. No relatório ministerial de 1840,
publicado em 1841, portanto anterior à lei, Paulino da conta de como o grupo politico do Regresso
interpretava às reformas relativas à descentralização administrativa justiça.
Elaborada em tempos de inexperiência não pôde a nossa Legislação aproveitar as
tristes loções que nos derão depois as calamidades por que temos passado, não
consultou quanto devera as variadas circunstancias das diversas províncias, e ainda das
diferentes porções de território em que são divididas. Sahidos há pouco do regimen
colonial; em demasia desconfiados e receosos do arbitrário, abraçamos com avidez
doutrinas vagas e declamatórias de huma liberdade exagerada, pondo de lado o
positivo e os factos, cuja observação, analyse e estudo, derrama huma luz immensa na
aplicação das questões Moraes, politicas e de Legislação a hum paiz.3
Fonte:
Relatórios do Ministério da Justiça, 1840-1850.
Anais do Parlamento Brasilleiro e Anais do Senado, 1840-1850.
Referências
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Brasil Imperialm, volume II (1831-1870). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, v. II, 2009. Cap. 2, p. 53-
119.
CARVALHO, J. M. D. A Construção da Ordem. Teatro das Sombras. 6º. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011.
FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato politico brasileiro. 5ª. ed. Porto Alegre: Editora
Globo, v. 1, 1984.
FLORY, T. El juez de paz y el jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871: control social e estabilidad politica en
el nuevo Estado. 1ª. ed. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1986.
GRINBERG, K. O fiador dos brasileiros: Cidadania, escravidão e direito civil no tempo de Antonio
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NEDER, G. 'Carretilhas' em ação: reforma e conservadorismo no Segundo Reinado. Dimensões - Revista
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SODRÉ, E. L. D. V. A disputa pelo monopolio de uma força (i)legitima: Estado e Administração Judiciária no
Brasil Imperial (Rio Grande do Sul, 1833-1871). PUC-RS. Porto Alegre, p. 415. 2009.
SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999.
I - Introdução
O
presente estudo analisa criticamente a dimensão corporativista do pensamento do
intelectual fluminense Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951)2, considerado um
dos principais “Intérpretes do Brasil”, a partir dos seus artigos de jornais catalogados no
museu homônimo3. Estes textos constituem fontes pouco conhecidas no campo das ciências sociais.
Duas hipótese permeiam este trabalho: (i) como apontou Giselle Venancio (2008)4, os jornais
teriam centralidade em Vianna como meios de publicização e antecipação de publicações em livros e (ii)
haveria uma tensão constitutiva do pensamento de Vianna entre liberalismo e autoritarismo.
Metodologicamente, utilizamos a démarche de pesquisadores dos escritos de Vianna, como Maria
Stella Martins Bresciani (2005), de modo a analisar as referidas fontes primárias evitando sendas
previamente delimitadas pela apologética ou detração do objeto de estudo e contextualizando-o em seu
tempo.
Do ponto de vista histórico, Vianna vivenciou a transição e constituição formal da nossa
República, elaborando e publicando a maior parte dos seus textos no período compreendido entre as
décadas de 10 e 40 do século passado. Especialmente este último momento pode ser definido, no
cenário nacional, pelo desenvolvimento de novas instituições sociais visando ao atendimento das
demandas capitalistas, caracterizando o chamado processo de modernização econômica e, no plano
internacional, pela crise do liberalismo em suas faces econômica – e.g. ideias associadas ao chamado
laissez-faire mercadológico - e política – principalmente a democracia de corte liberal. Numa palavra,
eram momentos de crise.
Alves Filho (1997) correlaciona a noção de “crise” histórica às incertezas de natureza ideológica
que se configuram por um declínio da aceitação de determinados paradigmas sociais de uma época, ou
seja, num momento de “crise de paradigma ideológico” as certezas de uma dada ideologia são
1 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política, Universidade Federal Fluminense, financiado pela
CAPES.
2 Maiores informações biográficas, ver, e.g., ARAUJO, 2011.
3 Vários possuem anotações pós-publicação o que indica sua releitura de Vianna num processo de construção da “obra”.
Mais de 80% dos 110 artigos analisados possuem alguma indicação temporal, pelo menos o ano publicação, o que nos
permite maior fidelidade na correlação pensamento-contexto histórico que apontamos em nossa pesquisa (ARAUJO, 2012,
p. 70).
4 Venancio sustentou a hipótese da importância dos artigos de Oliveira Vianna na construção da sua trajetória intelectual.
Chama a atenção para a construção da memória do autor retomando fontes primárias, como os artigos, os “papagaios” –
anotações em pequenos recortes de papel – e a suas correspondências.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 709
questionadas a medida que não se mostram suficientes para responderem aos novos imperativos
sociais, políticos e econômicos.
A “crise” num determinado momento histórico não representa apenas um período de incertezas
e decisões em aberto, mas também de invenção de alternativas e arranjos sociais em resposta às novas
necessidades de uma época, ensejando, portanto, um questionamento do presente e uma projeção do
futuro.
Numa dimensão mais ampla e internacional relativa ao pensamento político e social, o século
XIX e a maior parte do século passado5 poderiam ser caracterizados, como apontou Sheldon S. Wolin
(1974[1960]) pelo desenvolvimento e fortalecimento da ideia do grupo sobre a do indivíduo per si, em
outras palavras, “pelos problemas da comunidade e da organização”6.
Neste cenário, o corporativismo foi desenvolvido como uma terceira via entre liberalismo e
comunismo. Mihail Manoilesco (1891-1950), tido como uma das principais expressões da doutrina
corporativista e uma das influência de Vianna, definiu a corporação como organização genérica o
suficiente de forma a pairar sobre as especificidades sócio-históricas:
[...] a corporação é uma organização coletiva e pública, composta pela totalidade de
pessoas (físicas ou jurídicas) que desempenham em conjunto a mesma função
nacional, e tendo por objetivo assegurar o exercício desta no interesse supremo da
nação, através de regras de direito impostas aos seus membros (MANOILESCO,
1938, p. 126).
Em artigo publicado no Vassourense em 1910, o Estado do Rio de Janeiro fora criticado por
Vianna ao não conseguir, como outros7, adaptar-se ao novo regime republicano-liberal instaurado a
partir de 1889. Viveríamos numa “apatia” e sob a crença da salvação providencial governamental, de
modo a depender e crer na dependência de ações estatais. Se havíamos “progredido” (sic), dever-se-ia
mais à natureza que à iniciativa privada.
O Vianna deste artigo positivou a iniciativa privada e a “vontade” como componentes
importantes na tessitura sociopolítica de um regime republicano-democrático-liberal. O seu prognóstico
de inadaptação do social ao regime político vigente dizia respeito ao Estado do Rio de Janeiro, não
mencionando uma ampla difusão pelo país, ao menos do ponto de vista das uniões classistas e da sua
colaboração com o governo.
5 Quando nos referimos à “maior parte” do século XX, entendamos o período até a década de 60, quando da publicação do
original de Wolin (1974) e abrangendo o período histórico que nos interessa neste momento.
6 A ideia de organização foi utilizada por pensadores da política de forma muito diversa, ampliando um espectro muito
variado, seja com perspectivas “conservadoras” e contrarrevolucionárias, como em Maistre e Bonald, seja com posições
revolucionárias, como em Lênin (WOLIN, 1974, p. 390).
7 Por exemplo, em São Paulo a situação seria diferente: as classes econômicas constituiriam associações coletivas, inclusive
junto ao governo, como colaboradores, de modo a atingirem, juntos, os seus objetivos individuais, ampliando sua
representatividade frente ao Estado.
8 Pelas informações expressas, como a referência ao IFEA, a importância da iniciativa individual na ação coletiva, o artigo
dataria dos fins da década de 20 do século passado.
9 Oliveira Vianna participou ativamente da administração estatal em temas relativos à organização sindical e corporativa,
pelo menos, desde quando iniciou o cargo público de diretor do respectivo Instituto, em 1926. A participação do autor
fluminense, enquanto diretor deste órgão, na constituição da Companhia Salícola Fluminense, em 1927, no governo de
Washington Luis, foi uma manifestação desta atividade de articulador de interesses coletivos. C.f. Diário Oficial de 15 de
dezembro de 1927, p.26.433.
Vianna critica uma das bases da representação nacional brasileira, o Congresso, propondo, ainda que
mantendo-o, a preponderância de uma nova forma de representação, a classista.
Generalizando sua desconfiança em relação aos partidos políticos brasileiros, Vianna (1927) não
acreditava na viabilidade das grandes organizações partidárias nacionais entre nós, pois, além das nossas
particularidades históricas – fundadas no insolidarismo -, seria um movimento universal da época os
partidos políticos representarem não princípios teórico-doutrinários abstratos, mas as classes nas quais
se apoiariam.
O único meio de evitar a absorção dos núcleos locais partidários pelos interesses personalistas
seria uma organização local de classes mais vigorosa, plena de interesses comuns. A proposta de uma
educação democrática passaria, na ótica do articulista, pela organização de uma base socioeconômica de
apoio político.
Vianna (s.d.a) sustentou que os grupos profissionais somente conseguiriam maior acesso à
administração estatal pela via dos conselhos de governo, devendo sair do que denominou, retomando
texto O idealismo da constituição, de “estado atomístico”, solidarizando-se e, enquanto coletividade
passariam a exercer maior influência sobre o corpo político.
Estas organizações de classe, ainda que não estivessem imbuídas do mesmo espírito “militante”
e combativo de conquista do poder, como na Inglaterra, restringindo suas ações ao escopo profissional,
seriam grupos que poderiam servir a “uma causa pública de um modo eficiente”.
Independentemente da capacidade intelectual das elites políticas, segundo o articulista, o corpo
político precisaria assessorar-se de técnicos profissionais no processo de administração e legiferação. A
participação das classes profissionais via conselhos consultivos seria uma “revelação” (sic) da Primeira
Guerra Mundial e expandir-se-ia mundialmente como uma necessidade do Estado Moderno. Na
Europa esta tendência seria muito evidente, mas, entre nós, ainda estaria num estágio muito insipiente.
Em artigo datado de 1932, Vianna propôs a adoção gradativa da representação classista no
Brasil, iniciando-se na esfera municipal, seguida pela estadual e, por fim, na federal, na Assembleia
Nacional10. Estas etapas deveriam ser seguidas pela necessidade de organização prévia profissional antes
da sua representação política nacional. Contudo, estas mudanças não ocorreriam pela simples ação da
imposição legal, mas seria fruto do tempo, das transformações econômicas e sociais. Esta proposta
colidiria com as forças centrífugas características da nossa formação social, o insolidarismo e a carência
de espírito associativo, mesmo em nossas elites econômicas.
Particularizando o caso das capitais, aonde possivelmente as classes econômicas poderiam se
organizar mais agilmente, a maior parte da população nacional, dos eleitores, que viviam no campo,
10A representação classista poderia ser via “colaboração consultiva” e/ou “colaboração administrativa” das corporações
profissionais. O ideal vianniano seria ir além do primeiro modo, de forma a atribuir, às organizações de classe,
competências administrativas e jurisdicionais autônomas na gerência dos seus interesses coletivos.
passaria, segundo Vianna, muito vagarosamente do insolidarismo para a organização sindical local,
estadual e nacional.
A dimensão legal da organização societal poderia, se planejada com vistas às nossas
especificidades, estimular a participação dos indivíduos em agrupamentos representacionais, podendo
gerar gradativas transformações porque a integração social seria um fenômeno lento. Contudo, a lei
poderia também propiciar, se edificada inorganicamente, a rápida desintegração social, engendrando
uma coletividade amorfa. O articulista concede à “evolução social”, aos “agentes históricos” e não ao
Estado, às leis e a outros atos correlatos, o papel predominante nas transformações históricas.
Em artigo publicado no Diário de Notícias11, Vianna (1939a) delimita um novo espaço de atuação
estatal na econômica de forma a evitar crises de superprodução num momento de subconsumo que
então far-se-ia presente. Esta atuação justificar-se-ia pelo espírito individualista dos “leaders”
empresariais ao visarem a produção indefinida para consumo ilimitado, margeando uma ação coletiva
de subtração da produção.
Observando as relações de trabalho na Suécia e na França, Vianna (1939b) 12 positivou o
primeiro caso, que seria pautado na cordialidade e tolerância, e negativou o segundo, fundado na
discórdia e conflitos. Princípios ligados à solidariedade social fariam parte do cotidiano do mencionado
país escandinavo em suas relações entre patrões e trabalhadores, rechaçando ideias marxistas de luta de
classe como fenômeno irredutível. Ainda que conflitos pudessem ocorrer nesta relação, segundo o
articulista, a conciliação e a justiça seriam o destino da contenda.
A ideia de soluções “pragmáticas”, presente em outros artigos de Oliveira Vianna e comumente
associadas aos europeus e norte-americanos, foi retomada nesse último texto como o meio privilegiado
de solucionar os conflitos de interesses entre as classes sociais. O pragmatismo dos suecos estaria na
capacidade de equacionar as contendas “sem paixões de partidos ou de classes, sem preconceitos de
doutrina”13.
Os artigos da década de 40 do século passado, num contexto de aumento das críticas aos
regimes nazifascistas, Vianna objetivou distanciar-se discursivamente das experiências corporativas da
Alemanha e Itália da época, explicitando que deveríamos observar antes a nossa “realidade” que as
experiências externas, embora estas pudessem nos auxiliar a elaborar soluções por identidade de
problemas. Neste mote, a Carta Constitucional de 1937, que enseja mais fortemente a organização
corporativo-sindical do primeiro momento da Era Vargas (1930-1945) fora defendida por Vianna
11 O artigo compõe a 5ª parte do cap. V - “O problema das nossas crises econômicas e as nossas elites industriais” – de
POPD, 2ª ed..
12 O artigo compõe o cap. III – “Da consciência corporativa e o exemplo da Suécia” -, de POPD, 2ª ed.
13 Grifos no original.
(1943a)14 como uma expressão antes das nossas particularidades que das experiências exógenas
similares.
O corporativismo e a organização sindical, segundo o articulista, não seriam esmaecidos com o
fim da II Guerra Mundial mas se desenvolveria no seio e em defesa das democracias. Neste último caso
referiu-se, e.g., a Inglaterra e aos Estados Unidos, que teriam organizações sindicais que colaborariam
com o Estado, contrastando com os países “totalitários” (sic), como a Itália e Alemanha, nos quais o
sindicalismo concorreria com o Estado, “visando substitui-lo ou mesmo destruí-lo”.
Vianna (1943b)15 atribuiu uma das origens do corporativismo ao pensamento católico gestado
nas encíclicas papais Rerum Novarum [1891] e Quadragesimo Anno [1931]16, afastando-as das apropriações
de Hitler e Mussolini17. Aprofundando esta categorização, o articulista propõe o que seriam dois tipos
de corporativismo dentre os vários de existiriam: o modelo “liberal” (sic), vigente na América do Norte,
na Inglaterra e na Suíça, e o “totalitário” existente na Itália e na Alemanha. O primeiro sindicalismo
sobreviveria à Guerra pois constituir-se-ia num fenômeno social universal, o segundo, não.
No que seria o alvorecer deste novo mundo, Vianna apontou para a insustentabilidade das
ditaduras e das instituições políticas que as expressariam: “Desaparecerão as ditaduras, por certo;
desaparecerão as instituições políticas em que elas se exprimem especificamente”. Contudo,
determinadas associações coligadas às ditaduras, mesmo que por determinados momentos,
permaneceriam, pois não lhes pertenceriam, sendo invenções do passado. Em contraposição à doutrina
liberal de sua época, o Estado Moderno reviveria o fundamento medieval da fraternidade, da
solidariedade e do serviço social na valorização e fortalecimento das ações de caráter coletivo. Esta
mentalidade que privilegiaria o grupo expressar-se-ia em novas associações que, cada vez mais, seriam
reconhecidas e ensejadas pelo Estado. Neste cenário internacional, nós estaríamos alinhados às novas
tendências grupalistas e aos seus imperativos.
14.O presente artigo compõe partes literais do cap. IV - “O espírito anti-fascista da nova legislação sindical” - de Problemas
de direito sindical. Vários artigos da década de 40 do século passado são permeados por tentativas de afastamento das
propostas viannianas com relação às experiências nazifascistas. O artigo, sem data e local de publicação, intitulado
“Corporativismo e fascismo” (VIANNA, s.d. b) é outra manifestação deste cenário.
15 Compõe literalmente, com modificações de forma o capítulo VII - “Sindicalismo e corporativismo no mundo pós-
guerra” - de Problemas de Organização e Problemas de Direção. Algumas das mudanças podem ser notadas na versão
original deste artigo, com inúmeros traços à caneta. Estas anotações no original do artigo visando a sua posterior publicação
em livro são indícios, como já evidenciamos antes, da releitura dos seus próprios escritos bem como a publicação
antecipada de parte de seus futuros livros, serviria também para esmerilhar sua escrita e efetuar possíveis mudanças de
sentido, da mesma forma em que contribuiria para criar uma recepção às suas brochuras, concomitantemente com a
observação da reação do público leitor aos seus textos, possibilitando-o, quando da edição do próximo livro de tema
semelhante, responder às possíveis críticas.
16 Para uma análise acerca da relação da Doutrina Social da Igreja e o pensamento de Oliveira Vianna, c.f. ARAUJO, 2010.
17 A “velha democracia dos partidos”, que seria fundada no exclusivismo, personalismo e monopólio dos cargos públicos,
não venceria a Guerra, mas o sindical-corporativismo. Em defesa deste último modelo-guia no processo de constante
formação estatal, o articulista dissociou os regimes totalitários do sindicalismo e corporativismo, atribuindo uma
anterioridade deste sobre aqueles, que se apropriaram desta doutrina visando os seus objetivos de “mando e expansão”,
como no caso alemão. Este corporativismo sindical totalitário estaria destinado ao desaparecimento (VINNA, 1943b).
18 Compõe partes literais do cap. V - “Democracia de partidos e democracia de elites (teoria de uma democracia social)” -
do livro póstumo Direito do Trabalho e Democracia Social (1951).
19 Artigo publicado com o mesmo título e sem as referências completas, como o local de publicação, na 6ª parte de Ensaios
Inéditos.
20 Este artigo em defesa do statu quo foi escrito num momento de maior desenvolvimento das críticas ao governo
III - Conclusão
21 Para uma análise acerca da influência de Manoilesco em Vianna, c.f. ARAUJO, 2010.
semelhante ao societal, valorizando a iniciativa privada como meio privilegiado da ação coletiva, não
enfatizando a ação estatal na construção de representações de classe;
II - Após o contato com a obra de Alberto Torres22, o liberalismo brasileiro em prática na época
foi progressivamente sendo mais criticado pelo articulista, que direcionou maior atenção à ação estatal
como veículo central da ação coletiva, secundarizando, sem desconsiderar, a ação da iniciativa privada,
aproximando-se, portanto, do corporativismo estatal. Este segundo momento pode ser fortemente
demarcado nos artigos posteriores, especialmente, aos anos de 1920. Este segundo momento constitui,
geralmente, um denominador comum para tratar do “Oliveira Vianna” como todo. Em exemplo desta
generalização autoral está presente na ideia de “semeador” utilizada por Luiz Guilherme Piva (2000, p.
68), na qual o autor fluminense prognostica um estado forte contra os “determinismos negativos” do
nosso povo, principalmente a insolidariedade.
A partir da participação do autor fluminense no Ministério do Trabalho Indústria Comércio
(1930-1940), as suas leituras acerca da temática corporativista foram ampliadas consideravelmente,
refletindo em maiores e mais detalhados diagnósticos e prognósticos acerca do corporativismo no
Brasil.
Ainda no interior deste segundo momento do corporativismo em Vianna que, aos termos de
Schmitter (1970) denominamos de estatal, já mais ao fim da sua vida, especialmente no decorrer da II
Guerra Mundial, o autor objetivou distanciar o corporativismo enquanto doutrina das suas experiências
singulares, principalmente a alemã e italiana num momento de aumento das críticas às ações estatais
destes países.
O sindical-corporativismo na apropriação vianniana propunha formar um novo espaço
cognitivo e indentitário trabalhista de modo a ensejar uma nova cultura política nacional que
transpassasse subculturas, classes e frações de classes distintas.
Conceitualmente, Vianna não foi um “antiliberal” na medida em que assimilou positivamente
componentes constitutivos do liberalismo23 em diversos momentos da sua obra, como a valorização da
“tolerância” entre os indivíduos, preocupação com a coação e a representatividade social discrepante de
determinados grupos sociais, mormente os “clãs”, com relação à sociedade mais ampla e,
consequentemente, aos indivíduos que a compõe. Afastou-se do totalitarismo ao chamar atenção para
os limites da ação do Estado em relação à sociedade civil e a limitação da discricionariedade dos
poderes executivos e legislativos, por dispositivos legais, através de um judiciário forte. Neste sentido,
entender o pensamento do autor fluminense em tela apenas pela chave interpretativa da “modernização
pelo alto” obscurece a sua complexidade e potencial teóricos.
Pensar Oliveira Vianna pela noção de tensão é mais adequada que a simples oposição e/ou
contradição que geralmente se lhe atribui, seja de um liberalismo no “jovem” Oliveira Vianna seja de
um completo autoritarismo, per si contrário ao liberalismo, como se esta última doutrina não
possibilitasse hibridizar-se, em casos particulares, com alguns dos seus componentes ao autoritarismo e
vice versa. Ao caracterizar o autor fluminense como “antiliberal”, o prefixo “anti” anula,
completamente, a possibilidade de amálgamas e conciliações entre ideias gestadas no âmago de
doutrinas no todo dessemelhantes.
O corporativismo é, ainda hoje, (re)atualizado em nosso país, mesmo que, discursivamente, não
empreguemos esta nomenclatura para definir as nossas experiências corporativas. Podemos citar, além
do arranjo sindical, a representação de classe no interior do nosso Parlamento, formando “bancadas”
específicas para atender a interesses determinados pela sua base de apoio social classista, constitui mais
uma manifestação da relevância deste tipo de organização na vida brasileira.
Interessante notarmos que, na tentativa de ressignificação das nossas experiências corporativas,
os veículos da grande mídia costumam restringir o termo “corporação” ao seu uso costumeiro na língua
inglesa, as corporations, as grandes empresas, pouco mencionando o caráter corporativo das nossas
associações de classe, do governo e do Parlamento.
Este paper pretendeu constitui-se num pilar para problematizar o Brasil de ontem e de hoje,
(re)pensando uma das dimensões doutrinárias que fundamentam o constante processo de
(re)construção da nossa identidade nacional e do desenvolvimento de novos direitos, especialmente os
trabalhistas, que permeiam discussões (extra)acadêmicas até o presente.
Referências
Introdução
E
ste artigo discute a atuação do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Relações
Raciais, Movimentos Sociais e Educação - N’UMBUNTU da Faculdade de Educação,
da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará - Marabá/PA. Programa que articula
ensino, pesquisa e extensão em função da legislação educacional, como também em subsidiar
educadores/as, estudantes e a sociedade em geral na região Norte, sobre o pensamento social clássico
referente às relações raciais no Brasil.
O Núcleo conta em suas ações com o apoio da Pró-Reitoria de Extensão (Proex) e da Pró-
Reitoria de Pesquisa e Pós-graduação (PROPESP) ambas da Universidade Federal do Pará. Desta
última no desenvolvimento de pesquisa, no âmbito do programa de Apoio ao Doutor Pesquisador
(PRODOUTOR/2012), subprograma apoio ao Doutor Recém Contratado (PARC), contando com
uma bolsa de iniciação científica (PIBIC).
O Núcleo de Estudos em Relações Raciais, Movimentos Sociais e Educação - N’UMBUNTU
se constituiu numa dimensão critica, onde seu codinome se referencia no universo civilizatório africano,
cuja matriz é conhecida no Brasil como nação bantu, grupo linguístico que influenciou profundamente
o jeito, a forma dos falares e práticas religiosas na sociedade brasileira. Ubuntu tem como sentido uma
abordagem coletiva, pois um de seus mais conhecidos significados é: "Eu sou o que sou devido ao que todos
nós somos", evidenciando o universo de interdisciplinaridade preconizada pela ação educacional. Desta
forma o Ubuntu é visto como um dos princípios fundamentais e como forma de resistência à opressão,
e está intimamente ligado à ideia de enfatizar a necessidade da união e do consenso nas tomadas de
decisão, bem como na ética humanitária envolvida nessas decisões.
A partir deste princípio o N´UMBUNTU coloca na ordem do dia as mudanças nas
concepções arraigadas sobre as populações negras em todas as partes do Brasil, buscando alterar as
concepções cristalinas sobre os processos civilizatórios produzidos pelos descendentes de africanos.
A fundamentação que norteia as ações baseia-se no debate em que a sociedade brasileira, no
início deste novo século, vem enfrentando inúmeros desafios, colocados por processos históricos
1 Professor Doutor - Faculdade de Educação – Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará/ UNIFESSPA – Agencia
financiadora: Pró-Reitoria de Pesquisa – PROPESP/PRODOUTOR/UFPA.
2 Bolsista do N’UMBUNTU – PIBIC, aluna do curso de graduação em letras – inglês. Universidade Federal do Sul e
motivados em parte pela ação de diferentes organizações dos movimentos sociais (GOHN, 1997),
dentre eles o Movimento Negro (MN). Tais movimentos buscam entre outras questões problematizar a
ação do Estado na perspectiva de executar políticas públicas, que levem a efetivação dos direitos sociais
a diferentes parcelas de populações excluídas destes processos.
O projeto apresentado a Propesp/Prodoutor 2012 apresenta como principal método a
utilização da história oral, segundo a visão de Meihy (2002, p.13) “história oral é um recurso moderno
usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à vida social de pessoas”.
Assim, o trabalho realizado tem como característica a abordagem da memória como fonte de
conhecimento, na tentativa de apreender os movimentos e os atores sociais, que impulsionaram suas
proposições na perspectiva de mudanças estruturais, a partir de suas próprias falas. A evidência oral
transforma os “objetos” de estudo em “sujeitos”, contribuindo para uma história que não só é mais rica
mais viva e mais comovente, mas também mais verdadeira (THOMPSON, 1992, p.137).
A partir desta matriz inicial a pesquisa desenvolvida utilizou-se de outros referenciais para
apreender as formas organizativas da população negra na região, especialmente a pesquisa participante,
que tem sido teorizada como conhecimento coletivo produzido a partir das condições de vida de
pessoas, grupos e classes populares, como tentativa de avançar a partir da ciência tal conhecimento, “de
dentro para fora, formas concretas dessas gentes, grupos e classes participarem do direito e do poder de
pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seu saber a respeito de si próprios” (BRANDÃO, 1999,
p. 10). Com isso a pesquisa neste primeiro semestre centrou-se em entender a organização das religiões
de matriz africana de Marabá, pela constatação in lócu de suas ausências nos documentos oficiais.
Desta forma, articulou-se como método a realização de diferentes modalidades para a pesquisa
científica, como entrevistas semiestruturadas para compreender as formas como os sujeitos destas
religiões chegam até ela como se organizam diante as demonstrações de preconceito e
desconhecimento sobre seus fundamentos. Assim como de observações dos lugares de participação
desses sujeitos sociais, e de técnicas como filmagem e registro fotográfico, que como discute Caputo
(2012) “Como lembra o cientista social e fotógrafo Luiz Eduardo Robinson Achutti, a fotografia e a
antropologia nasceram praticamente na mesma época e com as mesmas preocupações.” (p.172). Assim
este uso da imagem expressa à articulação com os depoimentos, revelando a diversidade, que envolve as
práticas das religiões de matriz africana em Marabá.
Do ponto de vista do levantamento bibliográfico acerca do tema pudemos comprovar a escassa
produção acerca dos processos organizativos da população negra na região sul e sudeste do Pará.
Registramos a produção de apenas três trabalhos de graduação, que tratam sobre a população negra.
Dois deles se referem ao Bairro “Cabelo Seco”, que constitui em nossa análise um espaço de maioria
afrodescendente, conforme demonstra os estudos de Cunha Júnior (2012).
Nossa pesquisa ampliou nossa compreensão acerca deste debate nesta região e a necessidade de
se problematizar a presença negra na cidade, que pode se notar carece de políticas públicas, conforme o
caso deste bairro de Marabá. Ao se defrontar com esta condição percebeu-se a necessidade da
universidade contribuir em dar visibilidade a esta localidade e as formas que a população negra assume
para defender sua identidade. Desta forma, o N’UMBUNTU promove uma ação que coloca o bairro
em evidência, assim como amplia a discussão teórica sobre a importância da educação e o
questionamento do pensamento social sobre a presença negra.
Estes debates foram importantes para ampliar nosso conhecimento acerca do tema das relações
raciais, ampliando, como descrevemos em nossa proposta de trabalho, a necessidade de práticas
educativas, assim como as investigações que reflitam, conforme indica para o campo da educação,
práticas e valores próprios das experiências históricas e contemporâneas dos descendentes de africanos.
Mais ainda, que adotem paradigma que enfatize tanto sua cultura como os caminhos que lhes são
peculiares para produção de conhecimentos, e, além do mais, comprometam-se com o fortalecimento
da comunidade negra. Desta forma, contextualizar o debate educacional com as estratégias de combate
ao racismo, às reivindicações específicas sobre a cultura e a história preconizada pelo Movimento
Negro, como uma contribuição em “fotografar”, no dizer de Bandeira (1994), o discurso democrático
da sociedade e do sistema educacional. Neste sentido a participação no processo de formação de
educadores da rede municipal de ensino.
Em termos teóricos a possibilidade de socializar o conhecimento sobre a legislação que
determina o estudo da história e cultura negra na escola (BRASIL, 2003) e diferentes autores que tem se
debruçados sobre a forma de introdução destes conteúdos.
Localizamos como expressões da mobilização negra no sul e sudeste do Pará, o Movimento
Hip Hop em Marabá, em suas diferentes dimensões como o RAP (que é a parte musical) e BBOYS (a
parte da expressão corporal), elementos de atuação dos negros que se situam na periferia de Marabá.
Do mesmo modo se situa o mapeamento de diferentes formas organizativas da religiosidade da
população negra, a partir de seus terreiros de candomblé e umbanda espalhados pela cidade.
Conhecimentos estes que estão sendo sistematizados em diferentes interesses de pesquisa e
aproximação com o universo acadêmico, como poderemos ver a partir da participação destes sujeitos
no encontro promovido pelo N’UMBUNTU, que articulou reflexão teórica e prática na realização de
diferentes oficinas e mesas que priorizam o conhecimento sobre o universo da cultura negra no Pará.
Consideramos pertinente apontar que a produção existente na região ainda se mostra restrita, mas com
a participação de intelectuais convidados para as ações constituídas trazem conhecimentos mais amplos
sobre a organização da população negra e justifica a necessidade de um aprofundamento por parte de
nossa pesquisa de quais formas a população negra lança mão em sua trajetória na cidade de Marabá.
Cunha Júnior vai escrever que “africanos e afrodescendentes participaram significativamente da
formação socioeconômica do Estado do Ceará, no entanto os processos de dominação e imposição de
uma cultural ocidental têm contribuído para que estes povos não sejam bem representados na cultura e
na historia” (2011, p. 11), o que é demonstrado pelas diferentes discussões trazidas por estes grupos
aqui em Marabá.
com a formação no campo da cultura negra paraense, ampliando o conhecimento de saberes produzido
por estes sujeitos sociais nesta região.
O segundo momento de visibilidade sobre as temáticas propostas pelo Núcleo foi a
realizaçãodo1º Encontro de Ensino, Pesquisa e Extensão “Consciência Negra para Valer” e
Curso Iniciativas Negras Regional: Trocando Experiências. Esta ação contou com dois
momentos diferenciados:
1º Momento: Ação prática em um dos nossos campos de interesse de pesquisa
Realizado: no dia 20 de novembro de 2012
Local: Bairro Francisco Coelho – “Cabelo Seco”
Programação:
- Exibição e Debate do filme Kiriku e a Feiticeira, ação desenvolvida com as crianças do bairro,
visando trabalhar a história e cultura das populações africanas como herança ancestral.
- Pinturas nas camisetas, voltadas a dar visibilidade ao bairro enquanto Raiz da Diversidade
Marabaense, este bairro é majoritariamente composto pela população Negra que deu origem a Marabá,
e hoje sofre um grande descaso pelo poder público, em questões de segurança, iluminação pública, ruas
não asfaltadas e falta de saneamento básico.
- Grupo de Dança: Princípios Cabelo Seco – grupo composto pelas crianças do bairro e dançam
músicas típicas paraenses como o Carimbó.
- Desfile Beleza Negra do Cabelo Seco Futurando – desfile montado pelos moradores/as, onde
as crianças dos bairros desfilaram sua beleza negra, trabalhando a valorização da estética das populações
negras.
- Passeata, este evento foi realizado no dia 20 de novembro, data esta que se remete ao dia que
ZUMBI foi assassinado, uma das principais lideranças do Quilombo de Palmares, símbolo da
resistência ao regime escravista e da consciência negra de homens e mulheres em busca da liberdade e
da construção de uma nação. Este marco de luta, na atualidade, foi retomado com a criação do 20 de
Novembro como Dia Nacional da Consciência Negra, proposta pelo Movimento Negro e,
assumida posteriormente pelo estado brasileiro. A partir daí passou a ser comemorado como a data
mais importante da população negra brasileira. A passeata foi uma proposta de manifesto para se
efetivar políticas públicas e educacionais em prol do povo negro, e dar visibilidade a esta população, sua
história e cultura.
2º Momento; Ação prática articulando ensino e pesquisa
Realizado: nos dias 30 de novembro a 01 de dezembro de 2012
Local: UFPA/Campus Universitário de Marabá
Realização: Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Relações Raciais, Movimentos Sociais
e Educação - N’UMBUNTU/UFPA com parceria do Núcleo Brasileiro, Latino Americano e
Caribenho de Estudos, em Relações Raciais, Gênero e Movimentos Sociais – N’BLAC/UFC.
O N’BLAC promove um curso intensivo com dez dias de duração realizado na Universidade
Federal do Ceará, que reúne ativistas do movimento negro em âmbito nacional com o objetivo de
trocar experiências, participar em oficinas e assistir aulas e refletir sobre as questões ligadas ao debate
contemporâneo sobre relações raciais e antirracismo. Este curso acontece bianualmente, e no interim o
curso acontece em diferentes regiões do país, sendo que neste ano o N’UMBUNTU foi convidado a
integrar esta parceria.
Buscamos dar evidência ao fazer dos movimentos sociais, da população Negra Marabaense,
para mostrar seus interesse e preocupações com a superação do racismo e discriminação racial.
- Oficinas de Bonecas Negras e Tranças, ministradas pelo grupo mulheres de Dandara, em que
buscamos valorizar e reconhecer a estética das populações Negras. Oficina de Capoeira, em que
trazemos um pouco do universo da história e cultura afro-brasileira e africana, como sinal de resistência
e identidade cultural. Oficina de DJ, em que o ministrante é um integrante das lutas do movimento
negro e busca por meio das músicas denunciar e resistir as discriminações raciais e preservar, valorizar
as músicas de origem afro enquanto herança cultural. Oficina de Estêncil, buscamos por meio de
imagens, na pintura das camisetas, valorizar a história e cultura negra.
Estas diferenças oficinas nos ofereceram uma mostra da mobilização negra em Marabá que será
sistematizada buscando ampliar a construção de conhecimentos sobre a a trajetória da população negra
em Marabá.
- Conferência: “Africanidades e Afrodescendência: da pesquisa as ações afirmativas” ministrada
pelo Prof. Dr. Henrique Cunha Júnior, da Universidade Federal do Ceará – Campus Fortaleza.
- Mesa: “Os Desafios na Execução da Legislação sobre Inclusão de História e Cultura Afro-
brasileira e Africana nos Currículos Escolares”, Profª. Msc. Jeruse Romão – Santa Catarina. Presidenta
de Fórum de Diversidade Étnico-Raciais de Santa Catarina
- Debate: “Pensamento Social Brasileiro e as Relações Raciais”, Profª. Drª. Joselina da Silva –
Universidade Federal do Ceará UFC – Campus Cariri, coordenadora do N’BLAC,
Do ponto de vista do ensino, o N’UMBUNTU oferta a cada semestre diferentes disciplinas
sobre as temáticas desenvolvidas, sendo que estas disciplinas são abertas ao conjunto de cursos do
campus universitário, além de buscar intervir para que os Projetos Pedagógicos incluam esta temática
nas diferentes áreas de conhecimento.
relacionam com a cidade de Marabá, em função dos processos discriminatórios sofridos pelos afro-
religiosos. Como resultado teremos a publicação dos CADERNOS DO N’UMBUNTU, que deve
divulgar artigos científicos e publicar o dossiê Religiões de matriz africana de Marabá, com previsão de
lançamento para novembro deste ano.
Dentro do programa da Campanha participamos ativamente da Grandiosa festa em
homenagem à Yemanjá/Oxum que ocorreu dia 17 de Agosto, que retoma uma tradição já existente em
Marabá, registrada pela primeira vez em 1988, realizada pela associação contando com a presença de
terreiros da cidade e região, saindo em carreata, procissão e entrega de oferendas e homenagem a estes
Orixás. Participando também da produção de Folders, faixas, e banners, com apoio da PROEX,
PROPESP e Secretaria de Cultura de Marabá e demais secretarias municipais.
- FORMAÇÃO REDE MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE MARABÁ
Como parte de uma negociação iniciada em 2012, os professores doutores Gisela Villacorta e
Ivan Costa Lima realizaram 02 formações com professores/as da rede municipal de educação, das áreas
de história, artes e religião debate o ensino religioso, que tem sido oferecido pela instituição.
Observamos as dificuldades dos profissionais em lidar com a história e acultura negra e africana, em
especial com as religiões de matriz africana. A partir desta constatação propusemos um debate mais
amplo com a rede, no sentido de construir um programa consistente de formação durante todo o ano.
Esta proposição até o momento não foi acatada pela administração municipal.
- CONFERÊNCIA DE IGUALDADE RACIAL
Convocada pela administração municipal a conferencia de igualdade racial do munícipio de
Marabá foi realizada no dia 10 de agosto, com a presença de autoridades locais e de capital, no sentido
de tirar delegados para a conferência estadual, bem como propor a constituição no município de
políticas de igualdade racial. O N’UMBUNTU organizou parte desta dinâmica e o prof. Dr. Ivan Costa
Lima representa a universidade como delegado na conferencia estadual, que ocorrerá no final do mês
de agosto. Esta intervenção evidencia a necessidade da cidade assumir políticas públicas tendo como
foco a população negra, que tem sido impactada de maneira negativa com a violência que recaem sobre
a juventude e mulheres negras.
- PARTICIPAÇÕES EM EVENTOS ACADÊMICS
- I Congresso Nacional Educação para as relações étnico-raciais: identidades e alteridades -
CNEPRE, com a participação do prof. Dr. Ivan Costa Lima, que apresentou comunicação oral
intitulada “PROCESSOS ORGANIZATIVOS DA POPULAÇÃO NEGRA NA AMAZÔNIA
PARAENSE: AÇÕES DE EXTENSÃO E PESQUISA DO N’UMBUNTU”, co-autoria de Raiane
Ferreira e Juliana Sindeaux, na cidade de Campina Grande, no período de 13 a 16 de maio.
- Este mesmo artigo foi apresentado no mês de Junho no V FIPED - Fórum Internacional de
Pedagogia, Pesquisa na Graduação: justiça social, diversidade e emancipação humana, em Vitória da
Conquista- Bahia pela bolsista Raiane M. Ferreira, com coautoria do prof. Dr. Ivan Costa Lima.
- Em agosto uma versão deste artigo foi apresentada no XIII ABANNE (Reunião de
Antropólogos do Norte e Nordeste) - IV REA (Reunião Equatorial de Antropologia) em Fortaleza-CE
apresentado pela bolsista PROEX Juliana Sindeaux, co-autoria do prof. Dr. Ivan Costa Lima e Raiane
Ferreira bolsista Prodoutor/2012.
- PUBLICAÇÃO
Em andamento teremos a produção do Caderno do N’UMBUNTU centrado metodológica no
uso da história oral, a partir das entrevistas concedidas por diferentes sujeitos da pesquisa, algumas
pessoas das religiões de matriz africana, cotistas negros da universidade federal, professores negros da
rede municipal de Marabá, o movimento negro do Hip Hop, entre outras manifestações negras na
cidade de Marabá, tratando de assuntos como a aproximação religiosa de matriz africana, o preconceito
e políticas públicas na cidade, relacionados às relações étnico-raciais.
Referências
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BRANDÃO, Carlos H (Org.). Pesquisa participante. SP: Brasiliense, 1999.
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Sylvio G., PEREIRA, Sonia. Movimentos Sociais, educação popular e escola: a favor da diversidade. Fortaleza: Editora
UFC, 2006.
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GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e Contemporâneos. São Paulo:
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LIMA, Ivan Costa. Uma proposta pedagógica do Movimento Negro no Brasil: Pedagogia Interétnica, uma ação de
combate ao racismo. Florianópolis, 2004.(Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação da Universidade
Federal de Santa Catarina).
______________________. As pedagogias do Movimento Negro no Rio de Janeiro e Santa Catarina (1970-2000):
implicações teóricas e políticas para a educação brasileira. Fortaleza, 2009. (Tese de Doutorado. Faculdade de
Educação. Universidade Federal do Ceará).
NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade, raça e gênero no Brasil. São Paulo: Selo Negro
Edições, 2003.
PIMENTA, Selma Garrido (Org.). Docência no ensino superior. São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção Docência em
Formação).
ROMÃO, Jeruse (Org.). História da educação dos negros e outras histórias. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade – Brasília: MEC/SECAD, 2005.
ULLMANN, R. A. A universidade – das origens à Renascença. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1994.
A
problemática dos castigos físicos contra crianças e adolescentes poderá ser bem
compreendida ao se analisar o passado e os fatores culturais e históricos do uso dessa
violência como método educativo.
Ao verificar a história da formação da sociedade brasileira, percebe-se o quanto ela é herdeira de
um excesso de autoritarismo o qual ainda é refletido nas relações familiares. Depreende-se, então, que a
violência contra crianças e adolescentes com o infundado propósito educacional não é nova e nem
fruto desse tempo, mas tem suas raízes culturais na catequização jesuítica.
Isso é deslindado por Sérgio Buarque de Holanda ao discorrer que:
Foram ainda os jesuítas que representaram, melhor do que ninguém, esse princípio da
disciplina pela obediência. Mesmo em nossa América do Sul, deixaram disso exemplo
memorável com suas reduções e doutrinas. Nenhuma tirania moderna, nenhum
teórico da ditadura do proletariado ou do estado totalitário, chegou sequer a
vislumbrar a possibilidade desse prodígio de racionalização que conseguiram os
jesuítas. (HOLANDA, 1995, p. 39-40).
Assim, em tempos não tão remotos, as escolas brasileiras usavam o castigo como forma de
promover a educação e concomitantemente a disciplina. Quando o estudante errava, eram aplicadas
punições, como palmadas, com a mão ou palmatória.
Del Priore, (2000) em pesquisas sobre a temática, constatou que o castigo físico em crianças foi
introduzido no Brasil pelos padres jesuítas no século XVI, causando indignação nos indígenas, que
repudiavam o ato de bater em crianças. Os indígenas ensinavam os filhos de maneira muito mais
respeitosa e humana, como se analisa:
[...] o aprendizado das crianças se dava por meio dos cuidados dos mais velhos e de
brincadeiras com companheiros, normalmente do mesmo sexo. Em nenhum
momento de todo o processo de desenvolvimento do curumim até chegar à fase
adulta não havia punição. O resultado de um erro cometido por si só já era
considerado suficiente para indicar que aquilo não deveria ser feito novamente. O
aprendizado dos grupos indígenas era solidário e cooperativo, muito distinto da
educação europeia, que era mais disciplinada, competitiva e punitiva. (MELATTI,
1987. p.79)
Assim, percebe-se que o berço dessa cultura a qual se opõe aos direitos fundamentais de
crianças e adolescentes nasceu com as primeiras instituições de ensino e de evangelização dos padres da
Companhia de Jesus. Essa conduta influenciou pais daquela época ao processo de punições aos erros
de seus filhos por meio dos castigos corporais presentes ainda, hoje.
Como as crianças aprendem principalmente pelo exemplo dos pais, o castigo físico lhes ensina
que a violência é um modo correto de expressar sentimentos e solucionar problemas. É o que melhor
se depreende do esclarecimento abaixo:
[...] nenhum outro fator de risco tem uma associação mais forte com a psicopatologia
do desenvolvimento do que uma criança maltratada, ou seja, o abuso e a negligência
causam efeitos profundamente negativos no curso de vida da criança. As sequelas do
abuso e da negligência abrangem grande variedade de domínios do desenvolvimento,
incluindo as áreas da cognição, linguagem, desempenho acadêmico e desenvolvimento
sócio-emocional. (BARNETT, 1997 apud MAIA e WILLIAMS, 2005, p.92).
Neste mister, Straus e Kantor (1994) apud Longo (2002) revelam que um grande passo na
prevenção primária da violência e dos problemas de saúde mental pode ser dado através de um esforço
nacional para reduzir ou eliminar todo uso de punição corporal, tendo em vista a necessidade de
considerá-la como um significante fator de risco, o qual aumenta a probabilidade de desordens
psicológicas e que ideias suicidas aumentam marcadamente com a frequência da punição corporal na
adolescência para homens e mulheres, sendo mais prevalente entre mulheres.
Há diferenças entre a disciplina positiva e a punição física. A primeira consiste na utilização de
meios educacionais humanos, tais como, conversa. A segunda, uma forma equivocada, desumana e
covarde de educação.
Apesar de as pancadas serem mais dolorosas que palmadas leves, são todas formas de violência.
Há uma enorme incoerência ao se justificar que a palmada educa ou que é um ato de amor à criança,
pois tais afirmações aparentemente inofensivas encobrem as violações dos direitos, além de serem
eufemísticas, com intuito de suavizar a expressão.
Nessa seara, Rocha (1999), aponta haver um problema ético nas sociedades plurais, o qual
resulta em alguns equívocos. Ele identifica como problema a ocorrência de um relaxamento de
costumes, ou seja, as pessoas verbalizam sua desaprovação, mas não agem como se efetivamente
desaprovassem o que dizem desaprovar.
Vislumbra-se desse modo, a ocorrência de uma hipocrisia manipulada e disfarçada pela qual a
sociedade esboça não aceitar maus tratos ou tratamento degradante direcionado às crianças, mas
aceitam e cometem atos agressivos contra elas na rotina de suas vidas privadas ou até mesmo em
público, haja vista o aceite quase que unânime a tal conduta por entenderem que ela tem como escopo
a educação. Isso, como apontado pelo citado autor, introduz uma indefinição efetiva nos valores
praticados pela sociedade, e contribui para desmoralizar todo o seu discurso moral.
Essa mesma sociedade, muitas vezes, sensibiliza-se mais em ver um adestrador dando palmadas
num cão, do que um pai tendo a mesma conduta com seu filho.
Rossi (2010) ao discorrer sobre técnicas de se educar um cachorro diz que educação é essencial
para garantir o bem-estar e o bom convívio. Acrescenta que há diversas técnicas para punir um cão,
mais vantajosas do que um tapa, por exemplo.
Não se está aqui discordando que os animais mereçam proteção e carinho, mas sim
comparando as vertentes lançadas, porque é óbvio que não está correto bater em um cachorro para
fazê-lo entender como se comportar, muito menos ainda, em uma criança para obter a mesma
finalidade.
2.1 Maus-tratos
O ECA define a prática de maus-tratos em seus artigos 3º e 5º. Conforme os dispositivos
referidos, depreende-se que toda ação ou omissão que prejudique o desenvolvimento físico, mental,
moral, espiritual e social, em condições de dignidade e de liberdade, configura essa prática. Já o art. 13
do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que:
O Código Penal conceitua e incrimina a conduta de maus-tratos em seu artigo 136. Segundo
este dispositivo, entende-se como maus-tratos a exposição a perigo de vida ou saúde de pessoa
subordinada ao agente causador, já que está sob sua autoridade, guarda ou vigilância com finalidade de
educação, ensino, tratamento ou custódia. Além disso, a conformação desse tipo penal se vincula as
condutas de privação absoluta ou relativa de alimentação ou de cuidados indispensáveis; trabalho
excessivo ou inadequado; abuso de meios físicos ou morais de correção ou disciplina, sendo que para a
caracterização da infração basta que apenas um desses comportamentos seja praticado pelo agente
causador.
De acordo com Gomes (2004), as principais formas de maus-tratos à criança são: o abuso
físico, a privação de alimentos, a administração intencional de drogas e venenos, o abuso sexual, a
negligência de assistência médica, a negligência de segurança e o abuso emocional. Porém, nesse estudo,
dar-se-á mais atenção aos maus-tratos traduzidos na forma de abuso de meios de correção ou
disciplina, a violência física propriamente dita, já que o ECA coloca, como violência propriamente dita,
aquela que se caracteriza pelo dano físico, moral ou sexual.
Fragoso (1976) já lecionava sobre o objeto da tutela jurídica do crime de maus tratos, relatando
que:
[...] é a incolumidade pessoal, tendo em vista, especialmente o perigo decorrente de
abuso dos meios de correção ou disciplina [...] É unânime entre os povos civilizados o
repúdio à violência física como meio pedagógico, pois ela só gera o ódio, o
inconformismo e a brutalidade [...]. (FRAGOSO, 1976, p.186).
Maus-tratos é crime próprio, o qual só pode ser praticado pelas pessoas mencionadas na
estrutura típica, e que se encontrem na condição de exercer a autoridade, guarda ou vigilância, para fins
de educação, ensino ou custódia. Sem a demonstração da existência de uma relação jurídica e de
subordinação entre os sujeitos do crime, tal como especificado na descrição típica, o crime será o do
artigo 132 do CP, ou seja, de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente, cuja pena é
a de detenção, de 3 meses a 1 ano, se o fato não constitui crime mais grave. (MIRABETE e
FABBRINI, 2009).
Dessa forma, a pena do artigo 132 é mais gravosa do que a do art. 136 – maus tratos –, cuja
pena é a de detenção, de 2 meses a 1 ano, ou multa. Isto é, uma pessoa que expõe perigo a uma outra,
cuja relação entre ambas inexiste qualquer subordinação, guarda ou vigilância, o sujeito ativo poderá a
ter uma pena superior a uma outra situação, na qual exista um desses elementos determinantes para a
configuração do fato típico.
Além disso, a enorme incongruência não para por aí. Vejamos: se há esses elementos que fazem
configurar o tipo penal é porque tais pessoas possuem uma condição peculiar que as impossibilite de
por si só praticar atos de subsistência ou incolumidade de sua saúde, tais como: educação, ensino,
tratamento ou custódia, alimentação e cuidados.
É congruente que a pessoa impossibilitada e/ou em dificuldade de prover ou necessite de
auxílio para sua sobrevivência carece de muito mais zelo, cuidado e orientação. Tais pessoas tem uma
relação de dependência para com seu guardião, vigilante ou superior hierárquico, os quais possuem uma
grande responsabilidade de garantir a essas pessoas um tratamento especial de atenção para com suas
saúde e incolumidade física.
Percebe-se uma afronta à dignidade dessas pessoas na hipótese da ocorrência do fato, o agente
sofrer apenas pena de multa, por exemplo. Essa pena, absurdamente alternativa, por sua vez não está
prevista no tipo penal do art. 132. Demonstra-se com isso que o crime de maus tratos, embora englobe
todas as pessoas que estejam sob tais condições, possui consequências menos gravosa que o crime de
expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e indireto, o que é ilógico.
Deslandes, et al. (2003, p.78) assim define esse crime: “O abuso ou maus-tratos é definido pela
existência de um sujeito [...] que comete um dano físico, psicológico ou sexual, contrariamente à
vontade da vitima ou por consentimento obtido a partir de indução ou sedução enganosa.”
O autor admite, acertadamente, que o crime de maus tratos é um abuso. Um abuso contra
todos os direitos inerentes aos sujeitos passivos dessa agressão, em peculiar aos da criança e
adolescentes.
A última parte da redação do art. 136 do CP vai de encontro com a proteção integral da criança
e do adolescente prevista no ECA, pois se infere que há possibilidade de aplicar a esses sujeitos, meios
corretivos ou disciplinares, desde que sem abusos. Nessa lógica absurda, poder-se-ia admitir dar
palmadas educativas também nos loucos que fizerem suas necessidades na roupa, deixar o preso sem
alimentação por um dia inteiro em virtude de algum mau comportamento, ou deixar alunos um
pouquinho somente de joelhos sobre grãos de milhos, desde que não deixe marcas, ou seja, poderia se
pensar em outros absurdos.
Há quem admita que o ato de bater numa criança, é permitido, desde que não cometa marcas.
Pensa que é capaz de bater, sem fazer hematomas. Porém, o ato de bater já é exposição a perigo,
havendo uma grande probabilidade de dano, pois não se pode prever ao certo qual será o resultado de
tal conduta.
Há crianças, que por uma simples palmada, – que, aliás, de simples não tem nada – vir a óbito,
se hemofílicas, uma vez que as nádegas são uma das partes do corpo sensíveis a hemorragias nas
crianças portadoras de hemofilia.
2.2 Tortura
A Tortura é uma violação de direitos humanos, afeta a integridade física, psicológica e mental
por estas razões viola o direito do cidadão de sua integridade, de sua liberdade, de sua convivência
social pacifica, e seu direito a vida com dignidade humana. A tortura castigo está prevista no art. 1º, II
da Lei 9.455, de 7 de abril de 1997, a qual define o crime de tortura do seguinte modo:
Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe
‘sofrimento físico ou mental; [..] II- Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou
autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou
mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Pena -
Reclusão - Pena de 2 a 8 anos.
Infere-se que para o autor, acertadamente, o espancamento configura o crime de tortura. Nesse
sentido, essa prática é frequente nas famílias brasileiras, que ainda insistem em desvirtuar tal conduta
delitiva para simples correção física, necessária à educação dessas pessoas. Embora frequentes, são
poucos os casos de condenação dos infratores, tendo em vista a dificuldades de comprovação, de
denuncias, de medidas protetivas. Conforme se observa, a tortura infantil é um crime aviltante tendo
em vista a fragilidade e dependência desses sujeitos perante seus agressores, os quais deveriam zelar por
sua integridade física e desenvolvimento psíquico.
Terror, do latim terrore, é aquilo que possui a qualidade de terrível, despertando um estado de
grande pavor ou apreensão. Diversos estudos, em especial na área da Psicologia, apontam que a
punição corporal doméstica pode causar na criança um grande susto, pavor, um estado de verdadeiro
terror. Tais pesquisas contribuem para o aprofundamento dessa interessante discussão, do sentido de
informar o quão terrificante é para a criança a experiência da punição corporal perpetrada pelos pais.
(CARVALHO, 2000).
O Projeto de Lei n. 7.672/2010 altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o
Estatuto da Criança e do Adolescente, para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem
educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel ou degradante.
Originalmente o tema foi proposto para ser adotado como lei pela ONU em decorrência da Convenção
Internacional sobre os Direitos da Criança, aprovado em 20 de novembro de 1989.
O Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) pertencente ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo realizou uma Campanha Nacional entre 1994 a 2006, intitulada a Palmada
Deseduca, coletou assinaturas de cidadãos brasileiros, em 19 estados, pleiteando por uma pedagogia
não violenta e as encaminhou à Câmara Federal. No decorrer dessa campanha foi redigido o Projeto de
Lei 2.654/03 pelo LACRI e por advogados da área de Direitos Humanos e apresentado à Câmara
Federal por meio da Senhora Maria do Rosário, que na época era Deputada Federal (PT-RS) e hoje,
Ministra da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. (GUERRA, 1998).
Uma das razões desse projeto é dar uma redação mais específica ao texto do ECA, pois resta
dúvida no que tange à permissão ou não da aplicação de castigos físicos às crianças e adolescentes, uma
vez que à interpretação do art.1638, I do Código Civil, há uma permissão implícita. Ou seja, leva as
pessoas a aceitar que castigos moderados estão liberados. Entretanto, o termo castigo deve ser bastante
analisado. Como já questionado anteriormente, não há somente castigo físico. No entanto, o que se
percebe, por uma questão cultural já debatida, há uma forte tendência em associar o termo castigo à
punição corporal.
Ressalta-se que a abolição de castigos corporais como método educativo foi primeiramente
cogitado no extinto Projeto de Lei nº 2.654/2003 o qual foi substituído pelo de nº 7.672/2010. O
antigo Projeto dispunha acréscimos dos arts. 18-A e 18-B, 18-C e 18-D ao art. 18 do ECA, além da
alteração do art. 1.634 do Novo Código Civil. Logo, esse extinto projeto era mais protetivo, pois
estabelecia de forma inequívoca, conforme detalhado a seguir, o direito da criança e do adolescente de
não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos
moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos.
O Projeto de Lei n. 7.672/2010 propõe acréscimos dos arts. 17-A e 17-B ao art. 17 do ECA, do
art. 70-A ao art. 70, além do acréscimo ao parágrafo único do art. 130 do mesmo estatuto.
O art. 17-A desse projeto tem a seguinte redação:
Art. 17-A: A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados pelos
pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis ou por qualquer pessoa
encarregada de cuidar, tratar, educar ou vigiar, sem o uso de castigo corporal ou de
tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação, ou
qualquer outro pretexto.
Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I - castigo corporal: ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física
que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente.
II - tratamento cruel ou degradante: conduta que humilhe, ameace gravemente ou
ridicularize a criança ou o adolescente.
Já o extinto Projeto de Lei nº 2654 /2003, revogaria, acertadamente, o disposto no art. 395, I do
Código Civil, devido ao acréscimo do artigo 18-A, cuja redação seria a seguinte:
Art. 18-A A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer
forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados,
sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de
atendimento público ou privado ou em locais públicos.
Parágrafo único – Para efeito deste artigo será conferida especial proteção à situação
de vulnerabilidade à violência que a criança e o adolescente possam sofrer em
consequência, entre outras, de sua raça, etnia, gênero ou situação sócio-econômica.
(grifo nosso).
Além disso, esse extinto Projeto trazia o artigo 2º o qual propunha a alteração expressa do art.
1. 634 do Código Civil, pelo que se extrai de sua redação:
Art. 2º – O artigo 1634 da Lei 10.406, de 10/01/2002 (novo Código Civil), passa a ter
seguinte redação:
Art. 1634 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
VII. Exigir, sem o uso de força física, moderada ou imoderada, que lhes prestem
obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
Ou seja, estaria de forma clara e incontroversa que a competência aos pais quanto à educação
dos filhos seria a de exigir, sim o respeito e os serviços próprios de sua idade, sem contudo, utilizar-se
de qualquer agressão física.
Há uma discussão acerca da ação do Estado em interferir em assuntos inerentes à família, tal
como a educação dos filhos, como por exemplo, o Projeto de Lei nº 7.672/2010.
Maciel (2012) é um do que entendem que o referido projeto de Lei engendrará restrições às
liberdades individuais, ou seja, que o Estado não deve interferir nas relações familiares de tal modo que
possa dizer o que pode e o que não pode ser feito dentro dela. Completa que um dos princípios
basilares do Direito de Família é a mínima intervenção estatal, ou seja, caberia a cada família dentro de
suas perspectivas e aptidões optar pelo modelo de educação a ser adotado, e o referido projeto viria de
encontro a esse princípio.
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 738
Braga (2012) também é contrário ao Projeto de Lei, pois segundo ele, o empreendimento
legislativo além de demonstrar uma total intervenção na intimidade familiar da sociedade brasileira,
demonstra uma grande preocupação em modificar os ideais de bom e mau, justamente, os vértices
incontestáveis da noção moral e que a tentativa de transformar tais padrões, socialmente aceitos, como
a palmada disciplinar, acaba por atravessar, no usufruto das liberdades individuais, um ideal de controle
e determinação de bem-comum.
Contudo, esses pensamentos não se coadunam com o principal objetivo do projeto de lei que
não é intervir na educação dos pais para com os filhos, mas sim a ampliação da liberdade das crianças e
sua segurança física e psicológica. Os discursos equivocados, ora apontados de que o Estado não pode
disciplinar a liberdade de educar, devendo punir apenas os excessos, vão de encontro com os preceitos
das garantias constitucionais conquistadas por todos, inclusive, crianças e adolescentes. A figura de um
modelo político intervencionista nas liberdades individuais, nesse caso, é necessária, posto que
resguardar o direito da integridade física de crianças, não tem nada a ver controle do núcleo familiar e
sim, com proteção a elas.
Esse discurso de intervenção estatal no seio familiar é apenas uma desculpa daqueles que
entendem que os pais tem autonomia legal de educar os filhos como bem entenderem. Acontece que o
Estado, como corresponsável pela proteção e desenvolvimento das crianças e adolescentes, devem sim
adentrar nesta esfera social para garantir que tais direitos sejam efetivados.
Como afirmam Ribeiro e Martins (2009), quando a violência ocorre no seio familiar, isto mostra
que os pais ou responsáveis não estão conseguindo cumprir seus deveres de cuidado e proteção, sendo,
então, necessária a intervenção estatal.
Outra questão sobre essa intervenção do Estado na imposição de leis que imponham a abolição
de castigos físicos é se tal ingerência atinge a liberdade religiosa da família. Porém esse questionamento
é bem explicado a seguir:
[...] O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos garante a todos a
liberdade de consciência religiosa, mas a prática de uma religião ou crença deve ser
compatível com o respeito pela dignidade humana e pela integridade física das outras
pessoas. A liberdade de praticar a sua religião ou crenças pode ser legitimamente
restringida a fim de proteger as liberdades e direitos fundamentais das outras pessoas.
(COMITÉ DOS DIREITOS DA CRIANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS:
COMENTÁRIO GERAL Nº 8, 2006, p. 29).
Assim, a ingerência do Estado não deve ser resumida apenas na formulação e execução da
política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, mas também em modificar sua
legislação de forma a proibir a ação de violência dos pais sobre eles, pois não é aceitável que uma
sociedade que proíbe todas as formas de violência física entre adultos tolere que os adultos inflijam
violência física às crianças.
Considerações finais
Verificou-se que as punições corporais são muito comuns na sociedade brasileira e, em muitas
outras, fazendo parte de uma cultura social, historicamente datada, e de algumas instituições, destinadas
à proteção da infância e adolescência, como exemplo, a família. Tais práticas punitivas foram
introduzidas aqui no Brasil por meio do processo civilizatório a partir do século XVI com a chegada
dos colonizadores portugueses e dos jesuítas em suas missões.
Há um raciocínio antagônico ao se entender que o castigo, desde que moderado é lícito, pois
como visto, não há apenas o castigo físico como forma de ajustar ou corrigir uma conduta da criança e
adolescente, consideradas inadequadas para os pais. Há também uma grande tendência das pessoas
considerarem qualquer agressão física a uma simples palmada. Essa redução errônea do termo
demonstra ser uma tentativa de as pessoas que adotam tal conduta, minimizar os castigos corporais,
uma justificativa para afirmar sua atitude agressiva contra crianças.
Ressalta-se que a violência no âmbito familiar, mesmo com natureza educacional, ainda está
cercada pelas marcas da impunidade. Isso se dá na maioria das vezes pelo fato de ser relevada, em
nome do direito dos pais ou responsáveis de educar, a prática de castigos físicos. A perda do poder
familiar prevista no Código Civil no que tange à aplicação de castigo imoderado, não constitui infração
penal e sim, administrativa, pois não há a essa figura típica inserida no Código Penal. Contudo, essa
imoderação é interpretada, de acordo com o caso concreto, por analogia, como maus-tratos, lesão
corporal ou tortura.
Diante dessa realidade de violência infanto-juvenil ocorrida no seio familiar e em atendimento
aos preceitos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção sobre os Direitos da
Criança e de pesquisadores brasileiros que lutam por uma política de não violência à criança e ao
adolescente é que foi redigido e aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 7.672 de 2010,
o qual o não visa à restrição da liberdade dos pais, e sim a ampliação da liberdade das crianças e sua
segurança física e psicológica.
O referido Projeto é conhecido erroneamente, como Lei da Palmada, tendo em vista que ela
não visa somente à palmada, mas todo ato de castigo corporal às crianças e adolescentes. Esse Projeto
procura inserir ao ordenamento brasileiro uma significante forma de aplicação do direito tendo em vista
a função social que se almeja. Esse novo modelo de prestação jurisdicional passa a considerar mais a
condição das partes envolvidas do que necessariamente a natureza jurídica dos institutos. Com sua
aprovação, restaria clara a impossibilidade de uso de qualquer meio violento físico ou psicológico para
correção e educação, o que se efetivada será extremamente salutar.
Todos sabem que é dever do Estado em conjunto com toda a sociedade proteger de forma
absoluta a dignidade e a integridade das crianças e adolescentes. Isto posto, não se pode admitir que,
frente à aceitação social generalizada a respeito da permissibilidade do castigo corporal, esses
garantidores de tais direitos, permaneçam incólumes e pretendem justificar o castigo corporal como
uma necessidade e como uma medida disciplinar que responde a fins positivos, dado que sua aplicação
é considerada benéfica para a criança e o adolescente.
A necessidade da proibição explícita da aplicação de castigos corporais com qualquer
justificativa que seja, é imperativa, em particular por duas razões: primeiro, porque visibiliza o
reconhecimento da prática do castigo corporal como uma forma de violência e uma violação de direitos
humanos, a qual tem um efeito absoluto na conduta dos agentes públicos; segundo, porque, embora o
objetivo da proibição não seja penalizar a conduta dos pais no âmbito privado, o importante é
reconhecer que a proibição legislativa constitui um referencial para a atuação dos agentes jurídicos a fim
de assegurar a devida proteção das crianças e adolescentes.
Para que esse problema seja erradicado, será necessário, primordialmente, que haja uma
consciência social para entender a gravidade dessa prática punitiva, por meio de debates sobre o tema
nos meios de comunicação para que se possa obter uma maior difusão e assim, esclarecer seus
fundamentos e objetivos.
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GOMES, Hélio. Medicina legal. 33. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2004.
A
afirmação dos direitos humanos, sobretudo a partir do pós-guerra, faz emergir a pessoa
humana como sujeito de direito internacional trazendo novos paradigmas compreensivos,
flexibilizando a soberania estatal e concedendo à pessoa humana um papel central no
sistema internacional. O objetivo neste texto é compreender uma compatibilização entre a proposta de
universalidade dos direitos humanos e o pluralismo cultural, expresso sobremaneira em processo de
migração internacional, e também discutir sobre normas pretensamente universais reveladoras de um
esforço do ocidente de tentar universalizar suas próprias crenças.
Os fluxos migratórios internacionais podem ser interpretados como instâncias nas quais um
pluralismo cultural se revela problematizando a constituição de uma moral universal. Nestes contextos
os direitos humanos com seu caráter universalista são confrontados com uma necessidade de
relativismo cultural e o panorama que se desenha informa sobre a necessidade de um diálogo
intercultural em que as diferenças sejam reconhecidas e seja consolidada uma agenda em que ações
pontuais atendam a segmentos específicos provocando políticas de redistribuição de bens materiais e
simbólicos. A universidade dos direitos humanos é alcançada, desta forma, a partir do reconhecimento
das diferenças e especificidades de grupos humanos que não se pretendem universais, mas aptos a
alcançar situações de direitos fundamentais.
Desde a Declaração e Programa de Ação de Viena, em 1993, tem se afirmado a dimensão de
universalidade dos direitos humanos, complementarmente e contemporaneamente são muitas as
argumentações favoráveis à apreensão do relativismo cultural como uma necessidade para uma
efetivação dos direitos humanos. Assim sendo, a vivência particular, as interações da comunidade e a
cultura local dão o tom da efetividade dos princípios universais dos direitos humanos. A construção de
uma sociedade, inclusive internacional, mais justa e solidária pressupõe uma conjugação entre proteção
do ser humano no âmbito global e respeito, reconhecimento e tolerância às particularidades vivenciadas
no âmbito local.
São efetivadas por estes agentes estratégias de deslocamento que vão se construindo desde a partida da
terra natal, da travessia das fronteiras, da chegada e da tentativa de permanência em um lugar estranho.
Uma consideração importante acerca do migrante é que ele é antes de qualquer coisa uma “construção
social” (CASTRO, 2001).
Os diagnósticos fornecidos pelo IBGE por meio do Censo Demográfico de 2010
complementam estudos especializados que indicam que a emigração de brasileiros não se apresenta
como algo de novo. O Brasil, desde sua formação, conta com fluxos migratórios mais ou menos
intensos, mas que, contudo, tem assegurando ao longo da história do país deslocamentos para outros
países, bem como a entrada de estrangeiros. O que o Censo Demográfico nos ajuda a entender é que a
cada dia parece aumentar significativamente o número de pessoas entrando e saindo do país. É
importante entender que
As imigrações não são um fator recente. No final do século passado,
aproximadamente 52 milhões de pessoas deixaram a Europa em direção aos Estados
Unidos, América Latina e Austrália. Uma diferença entre esta imigração realizada no
final do século e a que presenciamos agora em direção à Europa diz respeito ao fato
de que os primeiros imigrantes permaneciam desconectados de sua terra, enquanto
que os imigrantes atuais conseguem manter uma comunicação razoavelmente fluida
com seus lugares de origem. Em grande medida, isto é possível em função dos
avanços da tecnologia informacional, permitindo a um imigrante ter acesso aos fatos
ocorridos em sua terra natal quase simultaneamente (CANCLINI,1998, p.4).
fatos sociais, Durkheim (2002, p.11) acentua que os mesmos são “toda maneira de fazer, fixada ou não,
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que é
geral na extensão de uma sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existência própria,
independente de suas manifestações individuais”. Este destaque é importante por considerarmos que
uma clareza compreensiva dos fatos sociais é fundamental em uma investida analítica das migrações
internacionais.
É curioso notar que Goiás, um estado do centro-oeste brasileiro que conta com pouco mais de
6 milhões de habitantes, sem fronteiras internacionais ou saídas marítimas se configure como uma das
localidades com a maior taxa emigratória do país (IBGE, 2012). Uma aproximação compreensiva e
explicativa desta realidade resguarda a potencialidade de ampliar horizontes epistemológicos acerca dos
fluxos migratórios internacionais como um todo. Um dos debates mais contundentes (SILVA, 2011)
tematiza as redes sociais migratórias como fundamentais nos mais variados momentos da migração
internacional. A partir da análise das redes migratórias que são consolidadas entre pessoas que mantem
contato entre si e que coletivamente empreendem um projeto de migração, podemos entender melhor
os laços que se formam entre indivíduos e que dão visibilidade, impulsionam, mantêm, interrompem ou
reativam o ato de migrar.
Estas compreensões preliminares nos motiva a realizar um diagnóstico dos processos
migratórios que especificamente envolvam pessoas oriundas do estado de Goiás que empreenderam
processos migratórios internacionais. Estimativas atuais, do MRE, indicam que se encontram na
condição de emigrantes mais de três milhões de brasileiros. A Europa recebe a maior quantidade de
emigrantes brasileiros, depois a América do Norte (notadamente Estados Unidos, que se ranqueado por
país passa a ocupar o primeiro lugar) é eleita como segunda rota preferencial e os países da América
Central são os menos procurados brasileiros. Ásia, Oceania e África são os continentes menos
expressivos na recepção de brasileiros que decidem viver fora de seu país natal.
Considerando os países que mais tem recebido brasileiros, por estado de origem, na condição
de migrantes, merecem destaque: Estados Unidos – principal destino da população oriunda de todos os
estados, especialmente de Minas Gerais (43,2%), Rio de Janeiro (30,6%), Goiás (22,6%), São Paulo
(20,1%) e Paraná (16,6%); Japão – segundo país que mais recebe emigrantes de São Paulo e Paraná,
respectivamente 20,1% e 15,3%; Portugal – segunda opção da emigração originada no Rio de Janeiro
(9,1%) e em Minas Gerais (20,9%); Espanha – os indivíduos que partiram de Goiás elegeram a Espanha
como o segundo lugar preferencial de destino, o que representou 19,9% da emigração. A Espanha
aparece como segunda ou terceira opção de uma série de outras Unidades da Federação, o que,
segundo o IBGE, permitiria concluir que a proximidade do idioma estaria entre as motivações da
escolha.
Quanto aos países vizinhos da América do Sul, temos o seguinte delineamento: Guiana
Francesa – o principal destino da emigração proveniente do Amapá; Venezuela – recebe a maior parte
dos fluxos migratórios que partem de Roraima; Bolívia – atrai maior volume de emigrantes do Acre.
Nas fronteiras do centro-sul do Brasil, a Argentina, Uruguai, Paraguai e Bolívia figuram como quinta
opção preferencial dos emigrantes brasileiros. Ressalte-se que o Censo Demográfico de 2010 indica que
haveria 4.926 brasileiros residentes no Paraguai, número muito inferior às estimativas do MRE e da
rede consular que informam que apenas nas jornadas de regularização migratória dos últimos dois anos,
foram atendidos mais de 10 mil brasileiros naquele país. O MRE reconhece também que suas
estimativas não representam exatamente a realidade devido ao fato de muitos brasileiros estarem em
situação de irregularidade no país receptor, o que faz com que os indocumentados tenham receio de se
expor, permanecendo invisíveis nos bancos de dados consolidados.
O caso do Japão é outro exemplo de discordância numérica nos dados que são disponibilizados
por institutos de pesquisa, o que não inviabiliza a verificação de tendências coincidentes. Segundo
dados oficiais do Ministério da Justiça do Japão, havia, em setembro de 2011, 215.134 brasileiros
residentes no arquipélago oriental, número muito próximo às estimativas apresentadas pelo MRE.
Todavia, as respostas dadas pelos entrevistados ao IBGE, quando da realização do censo demográfico,
indicam que haveria apenas 36.202 nacionais no Japão no ano de 2010, o que representaria 1/6 do
número que fora apresentado pelo Ministério da Justiça japonês. O que estamos querendo esclarecer
aqui é que possíveis discrepâncias numéricas e estatísticas não inviabilizam um diagnóstico e reflexões
aprofundadas acerca dos fluxos migratórios internacionais. Pelo contrário, o cotejamento entre fontes
diferenciadas somente instiga a curiosidade e insere o pesquisador em um terreno que, embora seja
movediço, é transitável.
Considerando-se a população dos estados brasileiros e sua relação com indivíduos emigrantes,
Goiás é o estado de origem com a maior proporção de emigrantes (5,92 pessoas para cada mil
habitantes), seguido por Rondônia (4,98 por mil habitantes), Espírito Santo (4,71 por mil habitantes) e
Paraná (4,39 por mil habitantes). Uma curiosidade que vale a pena destacar é que Sobrália, São Geraldo
da Piedade e Fernandes Tourinho (cidades mineiras) são as cidades brasileiras com maiores proporções
de emigrantes (88,85 emigrantes por mil habitantes; 67,67 por mil; e 64,69 por mil, respectivamente). O
IBGE tem realizado estudos que permitem visualizar o quanto o estado de Goiás apresenta uma forte
propensão para “exportar” pessoas para várias partes do mundo.
Quando se trata da sonhada viagem daqueles que partem em busca de sonhos, o principal
destino eleito pelos brasileiros é: Estados Unidos (23,8%), Portugal (13,4%), Espanha (9,4%), Japão
(7,4%), Itália (7,0%) e Inglaterra (6,2%). Somente este grupo de países representa 70% do destino eleito
pelos emigrados brasileiros. Laços históricos e redes sociais previamente estabelecidas (TRUZZI, 2008)
explicariam a preferência por esses países mais distantes em detrimento de países fronteiriços. Cabe
ressaltar que, somados, os primeiros 10 países europeus na lista de preferências (Portugal, Espanha,
Itália, Inglaterra, França, Alemanha, Suíça, Irlanda, Bélgica, Holanda) representam 49% do total, mais
do que o dobro da cifra referente aos Estados Unidos. As rotas preferenciais dos emigrados que partem
do estado de Goiás seguem a mesma tendência nacional e um diagnóstico possível é o de que os(as)
goianos(as) atuam nos cenários migratórios internacionais de maneira harmonizada com as tendências
brasileiras, aos menos no que se refere a rotas preferenciais.
O Censo Demográfico de 2010 (IBGE, 2013) possibilita a percepção de que dentre os estados
brasileiros que mais enviam nacionais para o exterior temos, em ordem decrescente: Minas Gerais, Rio
de Janeiro, Goiás, São Paulo e Paraná. Segundo dados do IBGE (2012), mais de cem mil (106.758)
goianos(as) estavam fora do país quando da realização do censo demográfico de 2010. Neste ponto,
vale um rápido esclarecimento ao fato de que ao nos referirmos a goianos(as) estamos falando de um
grupo constituído por sujeitos de ambos os sexos, nascidos em Goiás, além de pessoas que nasceram
em outros estados, mas que têm no estado de Goiás sua referência, atuando como partícipes de um
grupo que consolida uma identidade regional em torno de determinadas referências locais. Ainda no
que se refere aos goianos(as) no mundo, outras fontes, tais quais as estimativas da Secretaria de
Assuntos Internacionais do Estado de Goiás, sugerem números ainda mais expressivos que os do
IBGE. O secretário de estado Elie Chidiac assegura que
Estima-se que há 300.000 goianos no exterior. Desses, algo menos que 200.000 estão
nos Estados Unidos e algo mais que 100.000 estão na Europa. Na Europa, os
principais destinos são Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra e França; nos Estados
Unidos, as cidades de Atlanta, São Francisco, Nova Iorque e Boston. (CHIDIAC,
2011, p.157).
O estado de Goiás destaca-se no cenário nacional por evidenciar intensos fluxos migratórios
internacionais e é importante atentar-se para os efeitos destes processos em questões de sociabilidades,
identidades, redistribuição de riquezas e alteração de paisagens. Toda essa dinâmica impulsionada pelos
fenômenos migratórios evidencia marcadores sociais importantes que contribuem para uma
interpretação das interações sociais, convívio de alteridades e questões de direito. Pensar
problematizando estes elementos é um exercício do qual não se pode esquivar na contemporaneidade
planetária que permite conjugar o individual e o coletivo, o singular e o plural, o fixo e o mutante,
dentre outras polaridades, abrindo interfaces entre elas.
Considerações finais
Referências
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Introdução
O
s elementos históricos da luta da Juventude perpassam pela construção de um conceito de
juventude que quase corriqueiramente é associado à idade e faixa etária. Alguns
organismos internacionais, como a Organização para as Nações Unidas – ONU e também
as legislações nacionais, como é o caso da brasileira, tem como recorte de juventude a faixa etária. No
Brasil, a Política Nacional da Juventude considera como jovem as pessoas com idade entre 15 a 29
anos. Observa-se, no entanto, que esse entendimento vem se tornando ultrapassado face à
complexidade do campo da juventude.
Cada vez mais a juventude tem demandado investimentos de todas as ordens: econômico,
educacional, cultural, político e, sobretudo, social. Há principalmente a demanda por investimentos e
olhares para as especificidades e vulnerabilidades em torno da juventude brasileira, afinal, esses olhares
não tem como serem concebidos descolados do reconhecimento da diversidade de determinações e
fraturas sociais que atingiram e atingem o campo da juventude.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Censo Demográfico
2010 indica-se que pouco mais de 16 milhões de pessoas vivem em extrema pobreza no Brasil, o que
significa 8,5% da população total. Apesar de muitas pessoas saírem da linha da extrema pobreza por
meio de benefícios de transferência de renda de programas sociais, a pobreza assombra os setores
dominantes da sociedade sendo que a criminalização dos pobres se acentua. É uma lógica de
culpabilização do indivíduo e criminalização pela sua situação de pobreza onde os jovens –
principalmente pobres e negros – se tornam alvos centrais.
No tocante aos direitos humanos, o cenário de violação dos direitos das pessoas jovens também
é alvo de preocupação. Segundo Lauletta (2012), no Brasil são comuns abordagens sobre a violência e
adolescências pela mídia, segmentos públicos e outros que acabam por veicular imagens e notícias de
modo que são associados crimes violentos praticados por jovens à pobreza, realimentando os
sentimentos de insegurança e medo na sociedade. “[...] sem considerar que a vulnerabilidade à violência
é uma realidade de todos e que a prática de condutas tipificadas pelo direito como ato infracional
expressa apenas o singular dentro de um contexto coletivo” (LAULETTA, 2012, p.113).
1Mestranda em Desenvolvimento Regional e Especialista em Gestão Pública e Sociedade pela Universidade Federal do
Tocantins – UFT; Assistente Social graduada pela Fundação Universidade do Tocantins – UNITINS.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 750
Notoriamente, desenvolver políticas públicas de combate à pobreza, tendo como público alvo a
juventude em maior situação de vulnerabilidade social, requer abordagens que envolva além da área
social, a cultural, a econômica e a política. Dessa forma, faz-se necessário um olhar sobre as
vulnerabilidades dos jovens e adolescentes em situação de pobreza para um melhor entendimento das
implicações de privações sociais e econômicas que atingem as pessoas jovens.
Nesse sentido, para a delimitação do objeto de estudo considerou-se que o Programa Nacional
de Inclusão de Jovens – Projovem é um programa voltado para juventude na tentativa de atender às
aspirações e vulnerabilidade socioeconômica desse segmento, bem como busca a efetivação e
integração de programas e ações do governo federal voltada aos jovens com idades entre 15 e 29 anos.
Silva e Silva (2011) ressaltam que em relação ao fortalecimento da participação e cidadania,
apenas três programas têm entre seus objetivos a participação juvenil: Projovem Adolescentes,
Projovem Urbano e o Programa Juventude e Meio Ambiente. Ressalta ainda que em relação à faixa
etária, cada programa atende a uma faixa específica e elas não coincidem com os grupos etários
definidos pela Política Nacional da Juventude, sendo que somente o programa Projovem Adolescente
está dentro de uma delas, ou seja, jovens de 15 a 17 anos.
Desse modo, ao visualizar as modalidades do Programa: Urbano, Campo, Trabalhador e
Adolescente, este estudo optou por discorrer sobre o Projovem Adolescente, o qual é desenvolvido por
meio de serviços socioeducativos no âmbito da política de assistência social, considerada como politica
de enfrentamento à pobreza e de desenvolvimento da cidadania. A delimitação considerou ainda que o
Projovem Adolescente atende esse segmento a partir do seu recorte de “jovem vulnerável”, que dispõe
de dúvidas, inseguranças, carências, riscos sociais e pessoais, e ainda, uma visível necessidade de
inclusão social.
Dessa forma, na tentativa de dar respostas neoliberais para o estabelecimento da ordem junto às
classes menos favorecidas, as medidas brasileiras adotadas por meio de políticas sociais obtiveram um
cunho focalizado, assistencial e emergencial, típicos dos ditames estatais implementadas ao longo da
história. Como afirma Sposati (2008), ao contrário de caminhar na direção da consolidação de direito, a
modalidade que irá adotar as políticas sociais brasileiras será primordialmente o caráter assistencial.
Em meio às políticas sociais, a assistência ao pobre e ao desfavorecido ia consolidando-se nas
ações estatais de forma programática de prestação de serviços em várias áreas. Segundo Mestriner
(2001) a formulação das politicas iniciais de enfrentamento da pobreza mobilizou especialistas,
profissionais e organizações da área social. Nesse período notava-se que o processo de pauperização se
acirrava e acabava por exigir do Estado respostas mais urgentes tendo como público alvo o “exército”
da mão-de-obra reserva da classe trabalhadora, que não estava inserido no trabalho. Era clara a “[...]
necessidade de extensão da assistência social aos desempregados e aos sem condições de trabalho”
(MESTRINER, 2011, p.180).
Nesse percurso, a cada tempo a questão social, iniciada na década de 30, tomava maior
visibilidade na medida em que a pobreza, o desemprego e a violência ganhavam expressões acentuadas.
O cenário dava bases para reivindicações de diversas ordens visto que quando se procurava enfrentar a
pobreza e a violência, os segmentos marginalizados – aqueles vistos como improdutivos para o trabalho
– eram os que mais sofriam.
Já na década de 90, observa-se que no campo de reivindicações coletivas, havia o surgimento
doutras exigências como, por exemplo, a emergência do debate e a luta acerca dos direitos humanos e
das situações de exclusão. Afinal, é fato que a combinação entre pobreza, exclusão social e
complexificação das relações sociais, num quadro que vinha a ser influenciado pelos primeiros ventos
da globalização, produzia múltiplos fatores de pressão e instabilidade.
Ressalta-se que a política pública de assistência social, muito embora tenha sido marcada por
um histórico assistencial, filantrópico e de benemerência, está instituída na Constituição Federal atual
por meio dos Art. 203 e 204, onde legalmente é uma política pública que deve ser prestada a quem dela
necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social.
Os objetivos da política de assistência social pautam-se em torno da: proteção à família, à
maternidade, à infância e à adolescência, à velhice, o amparo às crianças e adolescentes carentes; a
promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras
de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; além da garantia de um salário
mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e à pessoa idosa que comprovem não possuir
meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
O Estado acaba por assumir a assistência social com um conjunto de procedimentos com
aparente caráter compensatório da questão social manifestada pelas desigualdades sociais geradas pelo
modo de produção. Nesse sentido, aos demandatários da assistência social, criam-se um elenco de
instituições e serviços no âmbito nacional, estadual, municipal e do distrito federal.
Além da Constituição de 1988, a assistência social obteve importantes conquistas: a Lei
Orgânica de Assistência Social – LOAS, em 1993; seguida das diretrizes nacionais da Política Nacional
de Assistência Social – PNAS, aprovada em 2004 e a implantação do Sistema Único de Assistência
Social – SUAS2, normatizado em 2005. Esses são considerados elementos centrais de regulação das
ações de gestão e de oferta de serviços no âmbito da referida política pública.
Muito embora, faz-se pertinente considerar que a proteção social que está se fortalecendo e se
impondo no Brasil acaba por focalizar os pobres tendo como consequências abordar os “indigentes” e
“incapacitados” para o trabalho e por sua vez impondo a essa parcela da população condicionalidades
para acessar as politicas sociais, ou mesmo contrapartidas, como é o caso do programa bolsa família e
também do programa projovem adolescente que está atrelado a uma bolsa de R$ 30,00 (trinta reais) que
a família recebe como acréscimo do valor da bolsa família. Isto, num quadro de baixa ou mesmo
insignificante preparação para a cidadania e abertura de espaços de participação social.
Telles (2006) registra que a pobreza contemporânea diz respeito aos impasses do crescimento
econômico, principalmente num país situado na periferia capitalista. Para a autora são os pobres a
figura clássica da destituição. “Para eles são reservados o espaço da assistência social cujo objetivo não
é elevar as condições de vida, mas minorar a desgraça e ajudar a sobreviver na miséria” (TELLES,
2006, p.94).
Ademais, Mestriner (2011) contribui ao afirmar que a desigualdade, a pobreza e as privações
sociais que vinham se agravando devido a pesada tradição excludente das políticas sociais de interesses
econômicos, toma dimensão e natureza inusitadas de uma questão social não mais restrita a relação
capital e trabalho descrita por Marx, “mas acrescida agora de novos problemas de exclusão social”
(MESTRINER, 2011, p. 31).
A pobreza e exclusão apresentam-se, desde os primórdios, paralelas ao crescimento econômico
colocando a população alijada à esfera do trabalho na condição de improdutivos ou mesmo incapazes.
Estes acabam por se tornar alvo da política de assistência social na tentativa de sobreviver diante das
facetas da miséria gerada pela desigualdade e pelas privações sociais básicas.
Acaba por se observar a existência de um quadro de responsabilização do indivíduo por sua
condição de pobreza e/ou inatividade/incapacidade para o trabalho. Sobre tal aspecto, Telles (2006)
esclarece que a virada neoliberal dos anos 80 e 90 traz um feroz pressuposto de culpabilização do
indivíduo pela sua situação de pobreza, onde esta é posta e “figurada sob uma lógica que retira qualquer
2 Em 2011, o SUAS foi instituído na legislação face a alteração da LOAS, Lei 8.742/9, com o objetivo de organizar os
programas, projetos, serviços e benefícios em bases regionais (abrangência municipal, estadual ou regional). O projeto
institucionaliza ainda a exigência de controle social, monitoramento e também a avaliação das políticas da assistência social.
legitimidade à própria noção de direitos, enfatizando os deveres e responsabilidades de cada um por sua
situação” (TELLES, 2006, p. 15).
Nesse entendimento, ao analisar o texto da Política Nacional de Assistência Social – PNAS,
instituída no ano de 2004, o seu público alvo são os cidadãos e grupos que se encontram em situações
de vulnerabilidade e riscos sociais. Mas afinal, de que vulnerabilidade se trata? Segundo a referida
política, trata-se das situações de vulnerabilidade e risco que pressupõem o rompimento ou a fragilidade
de vínculos de afetividade, pertencimento e sociabilidade; identidades estigmatizadas em termos étnico,
cultural e sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e/ou no acesso
às demais políticas públicas; dentre outras formas de violação.
Para Mauriel (2010), a forma como a política nacional de assistência social está disposta deve
funcionar para incluir grupos sociais injustamente impedidos de participar dos circuitos de produção,
bens, serviços e direitos existentes na sociedade brasileira. Posta dessa forma a assistência social não
estaria desgarrada das demais políticas socioeconômicas, tampouco contribuiria para desmantelá-las,
mas sim funcionaria para fortalecer as condições de eficácia das demais políticas sociais e econômicas,
com a roupagem de combate da pobreza de modo a impedir a reprodução da pobreza das gerações
vindouras.
[...] as causas da pobreza aparecem desvinculadas dos seus determinantes estruturais,
separando os indivíduos submetidos a essa condição de seus lugares no sistema
produtivo priorizando o cotidiano, passando a assistência a constituir um atributo
individual para aqueles que “moralmente” têm direito ou potencialidade para se
capacitarem (MAURIEL, 2010, p.177).
Segundo Silva e Silva (2011), a palavra juventude3 tem assumido diferentes significados de
acordo com o contexto histórico, social, econômico e cultural “Porém, o sentido mais comumente
encontrado é aquele que a define como uma fase de transição entre a adolescência e a vida adulta, um
momento de preparação para um ‘devir’[...]” (SILVA; SILVA, 2011).
Essa definição é complicada se a analisamos juridicamente, pois engloba jovens com
estatutos legais diferentes. Tem o mérito, contudo, de tentar romper com a
perspectiva tradicional de juventude como fase de transição entre a infância e a idade
adulta, ou do jovem como aquele que não é, mas estar por vir a ser. Advoga-se a
definição da juventude a partir da transversalidade contida nessa categoria. Ou seja,
definir juventude implica muito mais do que cortes cronológicos; implica vivências e
oportunidades em uma série de relações sociais, como trabalho, educação,
comunicações, participação, consumo, gênero, raça etc. (CASTRO; ABRAMOVAY,
2002, p.25.).
3No Brasil, a atual Política Nacional de Juventude (PNJ), considera jovem todo cidadão ou cidadã da faixa etária entre os
15 e os 29 anos. A Política Nacional de Juventude divide essa faixa etária em 3 grupos: jovens da faixa etária de 15 a 17
anos, denominados jovens-adolescentes; jovens de 18 a 24 anos, como jovens-jovens; e jovens da faixa dos 25 a 29 anos,
como jovens-adultos. (SILVA; SILVA, 2011).
sua ocorrência. Um maior grau de vulnerabilidade social pressupõe uma maior probabilidade de se estar
sujeito a riscos sociais.
Dessa forma, a vulnerabilidade da juventude pode ser observada tanto no trato da questão
social daqueles “fracos” alijados à esfera do trabalho – os tido como incapaz e improdutivo – quanto
daqueles que estão em situação de pobreza e ou risco social da ordem da violação dos direitos.
[...] situações específicas representam, para os jovens, fatores agravantes de
vulnerabilidades, como é o caso das relacionadas aos preconceitos e às discriminações,
que atingem de forma significativa, por exemplo, jovens negros ou jovens com
deficiências (JACCOUD; HADJAB; ROCHET; 2009, p. 172).
Esse entendimento evidencia as faces frágeis e a situação de risco vivenciada pela juventude, e,
ao mesmo tempo, traz à tona o cenário de periculosidade vivido por esse segmento. Isto, observados os
processos exposição dos jovens e ainda a formação da identidade face os territórios e condições
culturais e políticas. Para Barros (2008) “os jovens pobres têm sido alvo de ações muito repressivas e de
extrema visibilidade midiática, quando cometem algum tipo de violência, em detrimento das situações
das quais são vítimas” (BARROS, 2008, p. 144).
Destaca-se que, ao lado do tema do desemprego, o da violência comparece com
bastante eloquência quando se trata de identificar as vulnerabilidades na situação social
da juventude brasileira. Nos últimos anos, têm-se registrado taxas elevadas de
vitimização fatal entre os jovens, principalmente em decorrência de causas externa.
(SILVA; ANDRADE; 2009, p. 46)
É fato portanto que esse olhar da juventude em vulnerabilidade não pode ser concebido de
forma deslocada do reconhecimento da diversidade de determinações e fraturas sociais que atingiram e
atingem o campo da juventude. Como afirma Guimarães (2012) a juventude negra tem sido exposta à
sorte de violações de direitos devido a racismos estruturais que acaba por definir as condições de vida e
de oportunidade dessa camada de jovens, pois a violência continua a ter como principal vitima e ator a
juventude, sobretudo a negra.
Não obstante, observa-se a vinculação da juventude à situação de pobreza, onde, historicamente
construiu-se um entendimento equivocado de se associar a pobreza e as pessoas que vivem nessa
condição como criminosos. É oportuno esclarecer, que segundo Rizzini (1997) existem dois tipos de
pobres. Uma categoria ela descreve como os pobres que são dignos. Estes, vivem de acordo com os
padrões de moralidade pois trabalham e mantém a sua família “estruturada” e “unida” que mantem os
seus frutos – filhos – distantes de ambientes indignos como as ruas e os guetos. Já a outra categoria,
trata-se dos pobres condenados pelo vício. São os pobres viciados. Estes que não vivem de acordo com
os padrões de moralidade pois não trabalham e vivem no ócio. Logo, são tratados como deliquentes e
marginalizados como criminosos.
Nesse sentido, Guimarães (2012) contribui ao apontar que ocorre uma estigmatização
recorrente que banaliza o histórico da juventude e o seu lugar de pertencimento, principalmente no
tocante à juventude negra que são as principais vítimas da violência. Aponta ainda que a juventude
negra não tem o reconhecimento da sociedade diante da estrutura que o racismo cria, sobrando para ela
apenas a face marcada pela insegurança e sensação de ameaça de suas vidas.
Observa-se que a condição juvenil é diversificada. Há desigualdade entre brancos e negros,
entre jovens da cidade e do campo, entre jovens ricos e pobres. Guimarães (2012) observa que a faixa
de renda tem estreita relação com a origem regional, cor da pele, entre outros elementos. Quando se
trata de segurança pública, as ações de repressão são mais invasivas junto à juventude negra. Esta sofre
na pele a violência como instrumento de dominação e manutenção da ordem. Os jovens tornam-se
vulneráveis face à cor da pele e face à condição de pobreza ou mesmo do lugar em que vivem.
No que se refere às privações vividas Kowarick (2009) também traz contribuições importantes
ao observar que a vulnerabilidade também é vista em relação ao acesso aos direitos básicos sociais e
cíveis, o autor aponta que a condição de vida da população apresenta signos de ausência de garantias
sociais. Para ele é fato que uma parcela relevante da população vive às margens do discurso cidadão e
sobrevive em condição de extrema pobreza.
A face vulnerável da juventude também apresenta privações sociais vividas por esse segmento.
Um (a) jovem que não tem acesso aos direitos básicos para uma garantia mínima de condição de vida
acaba ficando à revelia das politicas públicas. Como afirma Kowarick (2009), os jovens estão às
margens do discurso cidadão e em situação de extrema necessidade. As políticas públicas precisam
enxergar a face da juventude tomando como parâmetro a idéia de construir seus caminhos a partir das
conexões locais principalmente atentando-se para os segmentos em situação de vulnerabilidade
socioeconômica e cível.
No tocante aos direitos humanos, não se pode deixar de citar a preocupação face ao cenário de
violação dos direitos e vulnerabilidade que se encontram as pessoas jovens. Como afirmam Benvenuto
e Cicaré, (2012) na América do Sul registra-se uma considerável taxa de pessoas assassinadas - 26 a cada
100 mil pessoas – sendo que “[...] Em geral, os assassinatos atingem principalmente pessoas de baixa
renda e jovens entre 15 e 29 anos” (BENVENUTO; CICARÉ, 2012, p. 8.).
No Brasil, entre muitos aspectos, Castro e Abramovay (2002) observam que alguns indicadores
sobre condições de vida de jovens apontam vulnerabilidades sociais reais que exigirem atenção por
políticas para juventude. Isto não se tratando do foco de violência e repressão, mas sim ampliar o
alcance da cobertura de programas sociais e metas, principalmente quanto à escolaridade e emprego.
Registra-se que é comum as políticas públicas elaboradas fundamentar-se em propostas de
caráter funcionalista, ou instrumentais, por tutela. Principalmente até a década de 80. É um ideário em
que a vulnerabilidade é facetada até na própria liberdade dos(as) jovens, quando observa-se que esse
fundamento tutelador busca adequar o comportamento dos jovens a uma normalidade posta. Buscam
ainda prestar algum bem ou serviço para este segmento, seja mantendo-os nas escolas, sob a guarda da
família ou do Estado, ou mesmo em instituições para jovens infratores.
Os autores observam que não há propriamente rupturas históricas com a ideologia do controle
e de tutela dos jovens pelo Estado. O que se observa são as formas de exercício de tal controle e
variações em relação aos sujeitos objetos de tal controle.
[...] algumas propostas foram guiadas, sobretudo, pela ideia de prevenção, de controle
ou de efeito compensatório de problemas que atingiriam a juventude, transformada,
esta, em um problema para a sociedade. Como exemplo, cita-se a grande proliferação
de programas esportivos, culturais e de trabalho, orientados para o controle social do
tempo livre dos jovens e destinados particularmente para os moradores dos bairros
pobres das grandes cidades [...] Prevaleceram, portanto, políticas focalizadas em
setores que apresentam as características de vulnerabilidade, risco ou transgressão –
normalmente, os grupos visados encontravam-se na juventude urbana, pobre e negra.
(SILVA; ANDRADE; 2009, p. 46)
Para Jaccoud; Hadjab e Rochet (2009) abordar o jovem a partir da perspectiva das
vulnerabilidades vividas e dos riscos sociais potenciais ou já existentes implica um amplo conjunto de
desafios. Os autores reforçam as diversidades que caracteriza este grupo e à identificação das demandas
por serviços e benefícios.
Assim, observam-se que a implementação da política pública de assistência social precisa
sobremaneira considerar os jovens e suas disparidades sociais e culturais, mas sobremaneira,
proporcionar-lhes um mínimo que seja de orientação e proteção social que proporcione acesso a bens e
serviços, à cidadania e à participação social, seja em qual for o território vivido.
As características sociais dos territórios – como os relacionados ao grau de violência,
ao perfil do mundo do trabalho ou à oferta de equipamentos culturais – também
impactam na vivência e nas oportunidades que se apresentam aos jovens. Investir na
construção das redes de proteção social e na oferta de serviços visando apoiar a busca
de autonomia, o desenvolvimento de capacidades e o protagonismo e o
enfrentamento das vulnerabilidades sociais exige o efetivo reconhecimento das
diversidades e o aprofundamento dos diagnósticos com vista à formulação de políticas
públicas de caráter integrado, descentralizado e participativo (JACCOUD; HADJAB;
ROCHET; 2009, p. 172).
A situação de pobreza e de extrema pobreza vivenciada pela juventude ainda que parcialmente
identificada nos territórios brasileiros acaba por balizar signos e ausências sociais graves. “[...] tanto as
vulnerabilidades como os riscos sociais mais frequentes devem ser mais bem conhecidos e analisados,
visando organizar ações de prevenção e proteção” (JACCOUD; HADJAB; ROCHET; 2009, p. 172)..
Figura 1
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Relatórios de Informações Sociais. Disponível
em: www.mds.gov.br/sagi acessado em 6 de agosto de 2013.
localização, do total de extremamente pobres, 242 (4,4%) viviam no meio rural e 5.231 (95,6%) no
meio urbano.
Os dados do Censo 2010 e do Relatório de Informações Sociais do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate á Fome – MDS revelaram ainda que havia 138 indivíduos
extremamente pobres com alguma deficiência mental; 818 tinham alguma dificuldade para enxergar;
196 para ouvir e 305 para se locomover. Quanto às pessoas idosas, foram registradas 249 (duzentas e
quarenta e nove) pessoas com mais de 65 anos na extrema pobreza. Sob o recorte de gênero, do total
de extremamente pobres no município, 2.903 são mulheres (53,0%) e 2.570 são homens (47,0%).
Um intrigante dado revelado pelo Censo IBGE 2010 foi o fato de que 47,4% da população
extremamente pobre do município de Palmas têm de zero a 17 anos. Havia 664 (seiscentas e sessenta e
quatro) crianças na extrema pobreza na faixa de 0 a 3 anos e 310 (trezentas e dez) na faixa entre 4 e 5
anos; no grupo de 6 a 14 anos, 1.381 (mil trezentos e oitenta e um) indivíduos na extrema pobreza. No
grupo de 15 a 17 anos, 241 (duzentos e quarenta e um) jovens foram registrados nessa situação de
extrema pobreza. E ainda, das pessoas com mais de 15 anos em extrema pobreza, 331 não sabiam ler
ou escrever, o que representa 11% dos extremamente pobres nessa faixa etária. Dentre eles, 185 eram
chefes de domicílio.
Figura 2
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. A Extrema Pobreza no Município de Palmas.
Boletim do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Disponível em: www.mds.gov.br acessado
em 2 de julho de 2013.
Quanto à infraestrutura básica, 129 pessoas extremamente pobres (2,4% do total) viviam sem
luz, 164 (3,0%) não contavam com captação de água adequada em suas casas, 3.147 (57,5%) não tinham
acesso à rede de esgoto ou fossa séptica e 483 (8,8%) não tinham o lixo coletado. 590 pessoas
extremamente pobres (10,8% do total) não tinham banheiro em seus domicílios. 467 (8,5%) não tinham
em suas casas paredes externas construídas em alvenaria.
Os dados revelados implicam o entendimento de que a face mais vulnerável da população, ou
seja, jovens, adolescentes, crianças e pessoas idosas, estão em condição de dupla vulnerabilidade: tanto
pelas peculiaridades do seguimento, quanto pela situação de extrema pobreza em que se encontram.
Este cenário acaba sendo um palco fiel das desigualdades, vulnerabilidades e privações sociais face à
situação de extrema pobreza.
Em meio a isto, cabe por se questionar o papel da assistência social e das demais politicas
públicas no real enfrentamento das situações de extrema pobreza, pois como se viu, é um cenário que
atinge principalmente os mais vulneráveis. Questiona-se ainda em que medida os serviços
socioeducativos do ProJovem Adolescente poderão ter impacto positivo para o desenvolvimento
humano e garantia dos direitos básicos diante de um retrato de desigualdade, vulnerabilidade e de
privações sociais.
Isto, sob as considerações de que os dados demonstrados colocaram os adolescentes em
situação de privação dos serviços como educação e um sistema escolar eficaz, infraestrutura básica,
alimentação segura, entre outros quesitos básicos para a vida digna.
No que diz respeito ao Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Projovem, este busca a
efetivação e integração de programas e ações do governo federal voltadas para jovens com idades entre
15 e 29 anos e divide-se nas modalidades: Urbano, Campo, Trabalhador e Adolescente. Ressalta-se que
este estudo discorre sobre o Projovem Adolescente desenvolvido por meio de serviços socioeducativos
no âmbito da política de assistência social.
O Projovem Adolescente integra o Sistema Único de Assistência Social – SUAS, é gerido
nacionalmente pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS e
coordenado/executado pelos municípios compondo a Proteção Social Básica – PSB 4 desse Sistema de
modo a atender jovens entre 15 aos 17 anos provenientes de famílias em situação de pobreza ou
extrema pobreza, beneficiárias do Programa Bolsa Família – PBF. No entanto, o Projovem também se
correlaciona com a Proteção Social Especial – PSE5 do SUAS, e atende jovens que geralmente são
4 PSB – tem como objetivo a prevenção de situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições
e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.
5 PSE - destina-se a famílias e indivíduos que já se encontram em situação de risco pessoal ou social, cujos direitos tenham
6 Segundo o ECA /1990 “Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade [...]” (ECA, 1990, p.24)
7 Segundo o ECA /1990 “Art. 118. A liberdade assistida será adotada sempre que se afigurar a medida mais adequada para
o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente” (ECA, 1990, p.23)
8 O Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI articula um conjunto de ações para retirar crianças e
adolescentes com idade inferior a 16 anos da prática do trabalho precoce, exceto quando na condição de aprendiz, a partir
de 14 anos.
9 Conforme o ECA /1990 “Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: I - encaminhamento a programa
oficial ou comunitário de proteção à família; II - inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e
tratamento a alcoólatras e toxicômanos; [...]” (ECA, 1990, p.26).
10 A participação do jovem possui duração de dois anos, com carga horária de 600 horas distribuídas semanalmente. O
Governo Federal participa do cofinanciamento repassando, fundo a fundo, um valor mensal para cada coletivo instituído.
Não obstante, o Estado e municípios também possuem responsabilidades para com o desenvolvimento do programa.
Fonte: Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome – MDS. Relatórios de Informações Sociais. Disponível
em: www.mds.gov.br/sagi acessado em 5 de agosto de 2013.
É fato, portanto, que os jovens no Brasil são uma das maiores vítimas dessa situação de
desigualdade, vivenciando suas mazelas no desemprego, violência, pobreza e na falta de projetos
futuros. “Mesmo sendo beneficiada transversalmente por políticas de educação, saúde, habitação e
assistência social, a juventude continua sendo um hiato nas ações focais do governo [...]” (BLANCO,
2011, p. 2).
Jaccoud; Hadjab e Rochet (2009) questionam em que medida os serviços socioeducativos do
ProJovem Adolescente poderão fazer frente às dificuldades de permanência no sistema escolar e, ao
mesmo tempo, construir efetivas possibilidades de desenvolvimento de capacidades e potencialidades
para os beneficiários. Isto, face à diversidade de inserções sociais e culturais além das vivências de
vulnerabilidades sociais e exposição a riscos sociais aliados aos dados de extrema pobreza vivenciados
pelos municípios.
É presente a necessidade de superar os desafios, as desigualdades e as situações de privações
sociais decorrentes da pobreza de modo a oferecer oportunidades de acesso à educação, ao trabalho e à
cidadania para a população. Isto, na perspectiva de garantir os direitos humanos dos jovens e
adolescentes não apenas na esfera da oferta das politicas publicas de forma eficaz, mas, sobremaneira,
compreendendo as vulnerabilidades e especificidades vivenciadas por esse segmento.
Provavelmente canalizar esforços pelo viés da cidadania, do respeito à diversidade, da
integração social e das possibilidades culturais e politicas dispostas de forma continuada e sistemática
aos jovens e adolescentes torna-se o caminho mais viável visto que se trata de uma população
historicamente marginalizada.
Considerações finais
Este artigo realizou um ensaio teórico sobre a política pública de assistência social para
juventude a partir das considerações do programa Projovem Adolescente que tem como público alvo
adolescentes que estão em situação de extrema pobreza vivenciada no município de Palmas – TO. O
objetivo foi identificar a face vulnerável da juventude e qual a contribuição da política pública de
assistência social para a garantia dos direitos humanos desses jovens.
Compreendeu-se que garantir direitos humanos e a superação da situação de vulnerabilidade
social e econômica pelo viés de uma política de combate à pobreza institucionalizada por uma cidadania
limitada em meio a um cenário onde os adolescentes apresentam-se como um segmento historicamente
marginalizado e numa condição de extrema pobreza, torna-se um surpreendente desafio.
A face vulnerável da juventude acaba por ser retratada numa condição estrutural das
manifestações da questão social brasileira embebida por condições de discriminação de todas as ordens,
aliadas à privações sociais e econômicas, e à signos e ausência de garantia de direitos e do acesso a
serviços públicos básicos. Nesse quadro, os adolescentes apresentam um alto teor de vulnerabilidade
social.
Dessa forma, as possibilidades de desenvolvimento de capacidades e potencialidades para os
jovens adolescentes beneficiários do programa Projovem Adolescente da assistência social acabam por
serem limitadas. Não basta ações socioeducativas fragmentadas e descoladas da oferta de reais
possibilidades e espaços de diálogos e participação da juventude. Isto, face à diversidade de inserções
sociais e culturais e ao acentuado grau de vulnerabilidade, pobreza e riscos sociais identificados.
Há, portanto, a preocupação para com as responsabilidades e possibilidades da política pública
de assistência social para com os adolescentes beneficiários do Projovem Adolescente de maneira que
essa política possa, acima de tudo, compreender não somente as desigualdades sociais estruturais, mas
sim oferecer oportunidades de potencialização da cidadania e da participação social, além de viabilizar o
acesso desses adolescentes à outras políticas como a garantia do direito à educação, ao trabalho e à
segurança alimentar e real superação da situação de extrema pobreza.
Como alerta, as políticas públicas de uma maneira geral precisam identificar e reconhecer as
diferentes faces da juventude, sobremaneira, da juventude em extrema pobreza de modo a reconhecer e
enfrentar a existência do racismo, dos estigmas e do lugar de pertencimento social, econômico e
familiar. É necessário ainda captar e compreender a face vulnerável dos jovens e adolescentes pobres
considerando as situações de risco e de fragilidades vividas em todos os aspectos.
Referências
BARROS, N. V. et. al. Juventude e Criminalização da Pobreza. Educere et Educare. Revista em Educação, v. 3, n. 5, p.
141-148, jan.-jun./2008.
“... Sentimo-nos com o direito de acreditar que ainda não é muito tarde para se empreender a
criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa
decidir pelo outro até mesmo a forma de morrer, onde, realmente, o amor seja certo e a
felicidade seja possível, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, por fim e
para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra''.
Gabriel García Marquez, apud MÉNDEZ; COSTA, 1994, p. 53.
A
pós 24 anos de vigência da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (CIDN) e
23 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quais os auspícios para a infância e
a adolescência na América do Sul? Pensar o panorama regional do status em que nos
encontramos nos dará a dimensão do desenvolvimento social que alcançamos de fato, o que nos dirá da
consistência da política econômica prevalecente e, sobretudo, como definir rumos condizentes com um
projeto de integração pautado por objetivos e metas inadiáveis de justiça, dignidade e solidariedade,
capazes de sustentar uma permanente interlocução internacional a partir do bloco subregional.
Consideraremos o caso brasileiro como emblemático de uma iniciativa capaz de impactar os
vizinhos por seu protagonismo jurídico, mas sobretudo pelo processo político que antecedeu e
prolongou-se após o ECA, indicando óbices e perspectivas que se abriram desde então.
O longo processo que foi da criação do primeiro Tribunal de Menores, em Ilinois (EUA), no
ano de 1899, e desembocou na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (daqui em diante
apenas Convenção), representou o segundo momento da ruptura histórica com o modelo da infanto-
adolescência como objeto da compaixão-repressão para o arquétipo da criança como sujeito de direitos.
Assim como ocorreu com as legislações específicas para crianças e adolescentes envolvidas em
atos infracionais, nos países latino-americanos a adesão a CIDN foi acompanhada de políticas de
atenção diferenciadas na implementação dos princípios ali contemplados. Ainda hoje o caráter
excepcional da Medida de Privação de Liberdade é frequentemente violado, como é o caso brasileiro.
Este descompasso chega a ser abissal. Uma boa ilustração é quanto à população internada, que na Costa
Rica, em 2006, não passava de 50 adolescentes, após 10 anos da aprovação de sua Lei Penal Juvenil
(MÉNDEZ; 2006, p.14), realidade bastante diferenciada das demais nações latinas, onde a aplicação da
1Psicólogo com atuação junto ao Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), com pós-gradução lattu senso em Intervenção
na Família e Realidade Social (Faculdade Frassineti do Recife – FAFIRE).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 766
medida de internação ainda é bastante frequente. Aliás, diga-se de passagem, que o avanço legislativo
verificado em toda a América Latina foi significativamente inspirado pelo Brasil.
A sociedade civil que havia se afastado anteriormente de qualquer tentativa de intervir sobre a
política assistencial-autoritária que predominou até a Convenção, num rastro de governos ditatoriais
disseminados ao longo das décadas de 60 a 70, retomou o diálogo com o Estado de modo bastante
diferente na década de 90. A interlocução traduzida em paridade na definição da política, no plano
legislativo, não se configura igualmente na prática, pois o Estado o mais das vezes se confunde com
quem deveria constituir seu anteparo e controlador de suas ações, o que permite-lhe que estabeleça seu
ritmo e interesse à revelia de qualquer resistência da sociedade civil. Colaborou definitivamente para o
atual estado das coisas a inserção entusiasta das nações do bloco na versão neoliberal do Capitalismo
gestado pelo centro da economia de mercado globalizada, durante a década de 90. É que, entre os seus
postulados ideológicos estava a transformação do Estado num mero gestor dos interesses econômicos
em favor dos grandes grupos. As entidades civis foram convocadas como “parceiras” da lógica
neoliberal de apropriação da política pública pelo interesse privado. No dizer de Montaño:
Procura-se que esse processo seja percebido como de “transferência” de um setor
“falido”, o Estado, para outro mais eficiente, empreendedor, livre, a “sociedade
civil”..Acrescenta-se a esta imagem de “transferência” ou “passagem” a ideia de que
ela está potencializada pela “parceria” com o Estado. Então o caminho para ocultar a
verdadeira finalidade de classe desse processo, e com ele a importante perda de
direitos conquistados, está livre. (MONTAÑO, 2010, p. 226)
Portanto, na nova estratégia de reestruturação do capital sob o seu projeto neoliberal o Estado
estabelece “parcerias” com a sociedade para se desresponsabilizar da questão social, terceirizando,
precarizando, descentralizando e despojando a política pública de seu caráter universal para focalizá-la
em ações pulverizadas sob encargo do terceiro setor.
O efeito perseguido foi o de encobrir o verdadeiro fenômeno de reestruturação do capital como
catalizador da reconfiguração estatal nos anos 90, forçando a delegação às organizações civis da função
de estofo dos conflitos com os destinatários das políticas públicas e, assim, evitando o atrito direto da
população vulnerabilizada com o ente estatal (des)responsabilizado. Ao fim, a potencialidade conflitiva
é mitigada e inoculada a ideologia de que o ente privado da sociedade é mais eficiente, solidário e
desburocratizado/descentralizado que o pesado ente estatal na provisão dos serviços públicos.
Mas, o que ficou do profícuo período que antecedeu a promulgação da Convenção e sua
ratificação pelos países da América Latina? É preciso, antes de tudo, resgatar um pouco do que foi a
trajetória do movimento social em prol da infância e juventude no Continente para dimensionar seu
espectro antes e depois dos marcos normativos.
Os anos 80 rotulados de “década perdida” pelo aprofundamento da crise econômica, em
especial no Brasil, foi, por outro lado, uma época de abertura democrática e, sobretudo, de engajamento
e produção político-cultural da militância social, que deslindou em um novo olhar para um segmento
até então irrelevante no campo de lutas tradicionais, a criança e a juventude. A degradação das
condições de vida da crescente população da periferia das grandes cidades, depositária do êxodo rural e
do desemprego estrutural, flagelava de modo ainda mais atroz a infanto-adolescência, visibilizada
através da ocupação das ruas como lugar de sobrevivência e moradia. Uma espécie de força tarefa se
constituiu para enfrentar a problemática:
[...] um grupo de técnicos do Unicef, da Funabem e da SAS (Secretaria de Ação Social)
do Ministério da Previdência e Assistência Social (deram) início ao Projeto Alternativas
de Atendimento a Meninos de Rua, com base em um termo de acordo celebrado entre
dirigentes das três instituições. (COSTA; MÉNDEZ, 1994, p. 93).
O desafio aberto à sociedade civil por Costa, quando da conquista legislativa representada pela
promulgação do ECA foi encarar a árdua e difícil articulação com os governos para o desenho e
fiscalização de um novo tipo de políticas públicas. E para tanto os Conselhos dos Direitos da Criança e
do Adolescente constituíram a sustentação política e legitimidade jurídica para o desenvolvimento desta
utopia concreta.
Mas, qual a real assunção do lugar fiscalizador e de controle social das políticas pelas entidades
civis? Méndez diagnosticava que, à época do avanço jurídico, a proliferação de organizações não
governamentais produziu, basicamente, duas posições relativas à política oficial, quais sejam, um grupo
que nascia e se nutria das benesses do Estado e um outro, que cultivava um espírito de autonomia. E
avaliou que a resultante destas duas posturas era que “no caso das ONGs do primeiro tipo, sua
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 768
Méndez2 identifica um processo regressivo na América Latina nos últimos 25 anos no que tange
à Doutrina de Proteção Integral, localizando três momentos do atavismo menorista que ainda
atravessamos, os quais são emblemáticos no sentido de sintetizar em determinado momento histórico
um conjunto muito mais amplo de posições. Na década de 80 o tema recorrente foi o de meninos em
situação de rua, na década de 90, o trabalho infantil e, finalmente, no despontar do século XXI até o
presente, os adolescentes em conflito com a lei. Portanto, abordar a temática infracional é remeter às
questões que melhor expressam as dificuldades que temos e, consequentemente, que instigam a buscar
respostas.
A regressão a que se refere Méndez diz respeito aos dois momentos históricos que antecederam
o garantismo representado pela Convenção. O primeiro deles, denominado período do Caráter Penal
Indiferenciado se prolongou de fins do século XIX até 1919. Crianças, adolescentes e adultos eram
encarcerados no mesmo espaço, com a única exceção aos menores de 7 anos, considerados
“absolutamente incapazes e cujos atos eram comparáveis aos animais” (Méndez, 2006: p. 9). A faixa
etária dos 7 aos 18 anos incompletos respondiam aos mesmos procedimentos destinados aos adultos,
com o único atenuante da redução do tempo da pena em um terço.
A degradante situação de promiscuidade da infanto-adolescência no sistema carcerário
mobilizou um grupo de ideólogos que se engajaram pela Reforma do modelo, imbuídos do espírito do
positivismo filosófico. Iniciado nos Estados Unidos, em 1905 o movimento se espraiou para a
Inglaterra e em 1920 atingiu quase toda a Europa, que adotou uma legislação e uma administração da
justiça própria à infância e à adolescência. A nova perspectiva Tutelar atracou entre nós a partir da
Argentina, com a Lei Agote (1919), que logo foi acolhida em toda a região. Todavia, o que parecia uma
ruptura com a visão anterior, logo mostrou-se um continuísmo, pois o positivismo filosófico amparou-
se no “sequestro dos conflitos sociais, quer dizer, na cultura segundo a qual a cada “patologia social”
devia corresponder uma arquitetura especializada de prisão’ (MÉNDEZ, 2006, p. 9). Mesmo o inegável
avanço da separação dos encarcerados infanto-adolescentes dos adultos foi apenas parcialmente
incorporado pelos europeus e redundou em retórica mais que em materialização no caso da América
Latina, quadro ainda hoje encontrado em alguns países da Região.
2 Op. Cit., p. 8.
Como resultado desses encontros, acordou-se que seriam constituídos dois grupos de trabalho
com tarefas específicas embora complementares, a saber: a elaboração de um projeto de lei de execução de
medidas socioeducativas e a elaboração de um documento teórico-operacional para execução dessas medidas.
Portanto, em novembro de 2004 a proposta operacional foi sistematizada, mas só em junho de
2006 foi aprovado em Assembléia do CONANDA, efetivando-se na Resolução nº 119, em
11/12/2006.
Posteriormente, em 18/01/12, foi promulgada a Lei de Execução Socioeducativa, conhecida
como Lei do SINASE (Lei 12.594/2012).
A nova Lei consolidou os avanços do Estatuto da Criança e do Adolescente ao estabelecer: 1-
Formas procedimentais preventivas da discricionariedade judicial ou administrativa; 2- a diferenciação entre o judicial
e o administrativo na execução; 3- a definição do que cabe a cada ente federado e à sociedade civil; 4-condições e
requisitos para a inscrição, a organização e funcionamento dos programas de atendimento; 5- a qualificação e
responsabilização de seus dirigentes; 6- a qualificação técnica dos recursos humanos e da estrutura das
instalações; 7- Fortalecimento do papel dos Conselhos de Direito; 8- Definição de um Plano Individual de
Atendimento como instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desenvolvidas com o
adolescente; 9- Definição da especificidade de atenção ao portador de transtorno mental.
Destacamos a seguir alguns dispositivos inovadores. Os Planos de Atendimento Socioeducativo
contemplarão ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e
esporte, para os adolescentes atendidos (art. 8º). Portanto, a incompletude institucional orienta a gestão
intersetorializada, combatendo a lógica das instituições totais e convocando os recursos sócio-
comunitários disponíveis. Os Programas de Atendimento deverão prover, de modo geral (art. 11º): a
especificação de métodos e técnicas pedagógicas; indicação de estrutura material, de recursos humanos
e estratégias de segurança; regimento interno contendo: a) atribuições e responsabilidades dos
dirigentes, dos membros das equipes técnicas e educadores; b) condições de exercício de disciplina e
concessão de benefícios; c) concessão de benefícios extraordinários; política de formação de recursos
humanos; ações de acompanhamento ao egresso; definição de Quadro multiprofissional em
conformidade com as normas de referência; adesão ao Sistema de Informações sobre o Atendimento
Socioeducativo. E no tocante aos Programas de Privação e Restrição de Liberdade, prevêem os
seguintes requisitos (art. 15): estabelecimento educacional em conformidade com as normas de
referência; Requisitos para seleção do dirigente; estratégias de gestão de conflitos; definição do Regime
Disciplinar; estrutura física das Unidades em conformidade com o SINASE.
No tocante à prevenção da discricionariedade, o Plano Individual de Atendimento mostra-se
fundamental ao estabelecer objetivos exeqüíveis para o adolescente, além do respectivo compromisso
Conclusões possíveis
Considerando as mudanças enfocadas, o que se pode fazer para redirecionar a tendência da rota
atual, de modo a resgatar a importância e influência dos movimentos sociais no controle da política de
atenção à criança e ao adolescente?
Para Montaño a reversão do estado de coisas atual requer o abandono do lugar de simples
executor dos interesses governamentais e do capital para o de mobilizador de uma nova política. Em
suas palavras:
Se na concepção de mobilização social contida no debate do “terceiro setor” esta é o
resultado da intervenção estatal que descentraliza, privatiza, terceiriza ou transfere para
a comunidade a responsabilidade da gestão social, nossa perspectiva concebe a
mobilização social como o processo que leva o Estado (e o capital) a desenvolver
ações antes não incorporadas nas suas funções. (2010: p. 278).
Portanto, a consolidação da Doutrina de Proteção Integral representada pela promulgação e
ratificação da Convenção exige um aprofundamento da participação política da sociedade civil nas
instâncias de decisão e controle da política pública para a infanto-adolescência. O espaço garantido na
esfera jurídica com a criação dos Conselhos de Direito e Tutelares precisa ser fortalecido pela sua
ocupação concreta por representantes talhados pela formação crítica e propositiva, de modo a cultivar
autonomia em relação ao ente estatal e fiscalizar a implementação definitiva do que se conquistou
enquanto normativa.
Referências
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Conselho Nacional dos Direitos
da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília, DF, 2006. 100 p.
COSTA, A.C.G.; MÉNDEZ, E.G. Das necessidades aos direitos. s.d. Disponível em http://cliente.d-
on.co/abmp/site_dev//textos/5.htm. Acesso em 06 de set. 2013.
Méndez, Emilio Garcia. Evolución historica del derecho de la infância: Por que uma historia de los derechos de
La infância? In: ILANUD; ABMP; SEDH; UNFPA (orgs.). Justiça Adolescente e Ato infracional: socioeducação e
responsabilização. São Paulo: ILANUD, 2006.
MONTAÑO, C. Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2010.
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Corregedoria Geral da Justiça. Cordenadora Estadual da Infância e da
Juventude – CEIJ. Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90 atualizado com a Lei nº 12.010 de 2009 –
Inclusa Lei nº 12.594/2012-SINASE). Florianópolis, SC, Fev/2012.
Introdução:
Antecedentes políticos e sociais do pré-64
A
Era Vargas, que durou 15 anos (1930-1945), foi marcada por uma estrutura estatal que fez
com que o executivo se fortalecesse, anulando diferentes movimentos contestatórios de
amplas bases sociais, em razão do autoritarismo, centralismo e do corporativismo.
A eleição de 1945, conforme destaca Limongi (2012, p.37) marcou o início da primeira
experiência democrática do Brasil. Eleição, por si só, não seria condição suficiente para qualificar o
regime nascente como democrático. Eleições não era novidade na história política do Brasil, afinal,
direta ou indiretamente, governantes foram eleitos por mais de cem anos, de 1822 até 1930.
O período entre 1945-1964 seria popularmente chamado de Democracia Populista. Pela
primeira vez na história do país, surgiriam e se fortaleceriam partidos políticos nacionais com
programas ideológicos definidos e identificados com o eleitorado. Conforme destaca Ferreira (2010,
p.12) não mais se tratava dos partidos da época do Império ou das organizações estaduais da Primeira
República, em ambos os casos, instrumentos das elites.
As eleições tornaram-se sistemáticas e periódicas para os cargos do Executivo e do Legislativo
nos planos federal, estadual e municipal, e passaram a contribuir para a consolidação de um sistema
partidário nacional que expressasse as diversas correntes de opinião existentes. Entretanto, merece ser
ressaltado que certos grupos políticos caíram na ilegalidade, caso do PCB, a partir de 1947, em virtude
da cassação de seu registro pelo STF, em meio ao cenário bipolar da Guerra Fria. O Brasil não ficou
imune aos conflitos entre Estados Unidos e União Soviética e, em vários setores da sociedade,
despontou o sentimento anticomunista.
Todavia, as raízes do Estado Novo ainda se encontrariam incrustadas na estrutura organizativa
do Estado - por meio das estruturas burocráticas e do executivo, com suas agências centralizadoras -
afetando ora direta e indiretamente os três Poderes, assim como a institucionalização dos partidos
políticos, que se apresentavam muito frágeis, estando atrelados a interventorias e clientelas
sindicalizadas.
A intelectualidade brasileira foi atuante nos debates sobre os rumos da nação, especialmente nas
perspectivas que envolviam projetos de desenvolvimento e à questão democrática. A começar no
governo de Vargas, mas, sobretudo com Juscelino Kubitschek e João Goulart, a sociedade produziu
diversos movimentos artísticos e culturais. No teatro, na música, no cinema, nas artes plásticas ou na
poesia, artistas e intelectuais valorizavam a cultura nacional. Tudo queria ser novo, do Cinema Novo à
Bossa Nova. (FERREIRA, 2010, p.13)
Nos anos 50, as dimensões do mercado interno, criado de modo prévio pelo capitalismo
nacional, já era de uma ordem de grandeza que o tornava atrativo às inversões maciças do capital
estrangeiro no âmbito da produção industrial. Os investimentos do Estado e do capital estrangeiro
serão marcas registradas do salto industrial do governo JK. Até o início dos anos 60, o populismo foi a
política do Estado, que bem ou mal, permitiria levar à frente a industrialização pela via dos atoleiros e
conflitos. (GORENDER, 1990, p.15)
O populismo, segundo Gorender (1990, p.16) seria a forma e hegemonia ideológica por meio
da qual a burguesia tentou e obteve em elevado grau, consenso da classe operária para a construção da
nação burguesa.
Entretanto, conforme destacou Mello Franco (1965, p.81), o Brasil do início dos anos 60, traria
muitos aspectos e semelhanças por ele vividas do Brasil de 1937, reconhecendo, entretanto, a existência
de importantes diferenças. Para Mello Franco, o país que viveu o Estado Novo era uma nação onde
predominou uma radicalização de caráter mais teórico - era a doutrinação ora de comunistas e ora de
integralistas, em meio a um governo que não apresentaria qualquer diretriz teórica ou coerência
doutrinária. Já o Brasil do início dos anos 60, apresentaria uma radicalização mais operativa do que
doutrinária, onde o maior risco para a democracia estaria na radicalização das elites.
Em meio a este cenário, nem os direitistas nem os esquerdistas fariam teoria, mas sim lançar-se-
iam a ação. E este clima de limite extremo teria que apresentar um equilíbrio em médio prazo, ora por
intermédio da manutenção do regime constitucional de 1946, ou pelo dissabor de um possível golpe
antidemocrático. Seria uma fase onde a Revolução Brasileira não poderia deixar de ser omitida; seria um
processo que ocorreria, possivelmente, pelo arranjo hábil dos setores sociais, ou por reformas que
propiciassem o desenvolvimento econômico e social, salvaguardando ao máximo o ideal democrático.
(MELLO FRANCO, 1965, p.81-82)
Portanto, o objetivo deste artigo é tratar deste cenário que precedeu a ruptura da ordem política
existente no período em questão, analisando o pensamento dos principais teóricos da Revolução, tais
como: Celso Furtado, Caio Prado Jr, Alberto Guerreiro Ramos, San Tiago Dantas, etc; destacando na
seqüência, qual foi de fato o desfecho desta ruptura da ordem política (31/3/1964), mostrando o que
realmente prevaleceu na agenda política dos vitoriosos durante o primeiro ano de governo, a partir da
análise de textos e declarações de política externa da nova elite política dirigente.
uma definição mais clara das posições a defender em meio a realidade nacional – uma identificação
corajosa de objetivos e métodos de luta seriam vitais para a conquista do futuro. (FURTADO, 1962,
p.13)
Para Celso Furtado (1962, p.16-17), a análise dos processos econômicos sociais não teria outro
objetivo senão produzir um guia para a ação. E para esta ação necessitaríamos de uma filosofia. Esta
filosofia de ação para orientar a mudança seria o ‘marxismo’. O marxismo permitiria, em qualquer de
suas variantes, ‘traduzir o diagnóstico da realidade social em normas de ação’. Esta filosofia de ação
combateria a exploração do homem pelo homem, reconhecendo que a realidade social é histórica,
estando, pois, em permanente mutação. Trataria então, de um estágio superior do humanismo,
colocando o homem no centro de suas próprias preocupações, buscando reafirmar que o
desenvolvimento pleno dos indivíduos somente poderiam ser alcançados mediante a orientação
racional das relações sociais.
O preço da liberdade que o povo brasileiro possuía segundo Celso Furtado, seria o
‘retardamento do desenvolvimento econômico geral’. Ao constatar isso, ele aparentava crer que mesmo
com as dolorosas experiências agrícolas da União Soviética e de outras nações além Cortina de Ferro –
que seria evidência universal o rápido desenvolvimento destes países de economia coletivista. Portanto,
Furtado compartilhava da idéia na qual o desenvolvimento destas nações socialistas, mesmo em meio
ao cerceamento de liberdades cívicas, ocasionaria uma ‘realidade mais humanista frente ao caráter
profundamente anti-humano do subdesenvolvimento nacional’.
Assim sendo, um dos métodos eficazes para lograr tais transformações sociais, seria a
implantação de uma ‘rígida ditadura’. Entretanto, em uma sociedade aberta, com a existência de formas
complexas de convivência social, a revolução de tipo marxista-leninista representaria óbvio retrocesso
político, e assim, o socialismo, como forma de humanismo, se perverteria. Ao negar a viabilidade de
uma revolução de tipo marxista-leninista no Brasil, em razão da sociedade aberta existente (já
modernizada), a dualidade da estrutura político-social brasileira deveria ser combatida a partir de
mudanças na estrutura agrária (a sociedade brasileira seria rígida neste segmento). As técnicas
revolucionárias marxistas-leninistas poderiam ser eficazes, haja vista que mais da metade da população
derivaria seu meio de vida diretamente do setor agrícola. (FURTADO, 1962, p.27-29)
A década de 60, em especial o período que perpassava pela saída de Jânio e a entrada de Jango,
segundo Furtado, seria uma autêntica ‘fase pré-revolucionária’. As técnicas de transformação social e os
métodos revolucionários ocupariam o primeiro plano das preocupações políticas. Dentro desta visão,
Celso Furtado via na caminhada de modificações constitucionais, os primeiros passos para a realização
da reforma agrária e a modificação da maquinaria administrativa estatal, assim como do sistema fiscal e
da estrutura dos bancos. Somava-se a isso, a hipótese da criação de mecanismos para disciplinar a ação
do capital estrangeiro, e a possibilidade de estabelecer dispositivos que conhecessem a origem de
recursos aplicados nos órgãos que orientassem a opinião pública. (FURTADO, 1962, p.30-32)
A revolução deveria, a priori, definir seus destinatários – uma vez que, sem suportes sociais
organizados, o poder não se conservaria nas mãos dos que o exercessem.
Para Ramos (1963, p.40-41), uma das tarefas mais urgentes estaria na criação de uma vanguarda
política, que estivesse livre de pressões externas de certas “internacionais”, fosse de direita, fosse de
esquerda. Ramos considerava certo “internacionalismo” uma doença infantil do movimento socialista
brasileiro. Haveria de fato, a necessidade de se constituir um movimento que realmente soubesse
analisar com exatidão a realidade nacional e suas peculiaridades.
Em sua análise, Ramos considerava que o Brasil do início dos anos 60, vivia uma realidade que
tornava cada vez menos praticável a obtenção de uma acomodação dos interesses que representavam o
latifúndio pré-capitalista e os exportadores (principalmente do café), os capitais estrangeiros, o
empresariado vinculado à acumulação interna do capital e o público em geral. Se em tempo não fosse
encontrada a equação interna da economia nacional, o agravamento da inflação acarretaria uma crise
geral, que seria suscetível de se converter em fator eminente e iminente da revolução. (RAMOS, 1963,
p.49)
Guerreiro Ramos reconheceria que a reforma agrária reclamada pelos trabalhadores poderia se
concretizar, sendo que as outras virtuais reformas de base poderiam vir a entrar na equação política do
momento.
Seria notória na estrutura social brasileira a mobilização de setores da sociedade, que poderiam
ser vitais para a efetivação de uma revolução. Ramos cita organizações como o Pacto Sindical da
Unidade e Ação, o Comando Geral de Greve, as Ligas Camponesas, a Frente Parlamentar Nacional, e o
Comando Geral dos Trabalhadores. Partes destes grupos teriam capacidade de recursos de insurreição
– caso das Ligas Camponesas, de Francisco Julião; assim como dissidências do PCB e grupos ligados a
internacional cubana; e também o deputado Leonel Brizola, que não acreditava em uma solução
convencional para o problema do país. (RAMOS, 1963, p.55-59)
A crise brasileira também seria crise de cultura política. Para Ramos, o Brasil passava por um
processo de orfandade política. A crise de liderança poderia fazer com que a tão falada e possível
revolução brasileira se tornasse uma 'jornada de otários'. Haveria muitos que viviam de ‘gesticulações
revolucionárias e de ficções verbais’.
O ativismo que se manifestaria nos setores sindicais, na categoria dos sargentos e dos oficiais
das forças armadas, e em outras esferas nacionalistas, constituiria enorme capital político, porém este
de consulta. Esta declaração feita por San Tiago Dantas na Câmara dos Deputados veio a criar um mal-
estar entre parlamentares opostos a este posicionamento da diplomacia brasileira. (BONAVIDES;
AMARAL, 2002, p. 631-657)
Com grande prestígio na arena de poder dominante do período, Dantas se tornou um dos
principais porta-vozes das mudanças estruturais almejadas durante o governo Jango nos anos de 1962-
1963. Para San Tiago Dantas, o processo de desenvolvimento econômico intensivo ao qual o país se
submeteria, seria financiado em grande parte por recursos inflacionários, colocando em risco o
progresso material do país, que passaria a se dar em desarmonia. Segundo ele, a inflação levaria ao
acúmulo de disponibilidades para certos setores sociais, agravando a injustiça social, ameaçando as
instituições democráticas e uma verdadeira unidade nacional. As disparidades regionais seriam cada vez
mais clamorosas. Regiões que tinham ausência de pólos industriais estariam ficando cada vez mais
inferiores economicamente. Regiões de economia agropastoril no Nordeste assistiriam a um processo
de total desamparo do Estado. (BONAVIDES; AMARAL, 2002, p.693-694)
Na análise de San Tiago Dantas - em discurso proferido no Congresso Nacional em 29 de
junho de 1962 [quando se apresentou como candidato a primeiro-ministro] – as populações rurais
passavam a se inquietar, e reivindicavam de forma desordenada os seus direitos, saindo da sua
tradicional passividade para uma atitude de luta, que poderia vir a constituir uma preocupação
permanente para os que eram responsáveis pelas ações do governo.
Na visão de Dantas, seria necessário reformas – já como ‘medidas de emergência’. Sem elas, não
seria possível atacar de modo eficaz os problemas do país. As reformas deveriam se estender para a
máquina administrativa, visando maior eficiência e modernidade; as reformas tributária, bancária e
agrária também estariam na pauta central. Também seria vital a criação de uma política para
investimento estrangeiro, com o intuito de combater ações de exportação descontrolada de lucros que
atuariam como fonte de espoliação e empobrecimento da economia nacional. (BONAVIDES;
AMARAL, 2002, p.696-697)
A reforma agrária, para Dantas, teria que ser feita com o intuito de oferecer oportunidades às
massas trabalhadoras dos campos, visando o caráter social e humanitário, além do objetivo econômico
de aumentar a produção e melhorar a produtividade – estando, para Dantas, distante de constituir uma
ameaça ao progresso nacional.
Segundo algumas análises, existiria uma ‘igualdade de indecisão’ entre certos grupos políticos,
não havendo de forma efetiva uma coalizão parlamentar governamental, assim como não haveria uma
coalizão estável de oposição para substituí-la. Um processo de ‘paralisia decisória’ foi se tornando
inevitável, em vista da ‘fragmentação política’, da ‘polarização ideológica’ e da ‘instabilidade das
coalizões’. A dispersão eleitoral soma-se ao conflito institucional “executivo-legislativo”.
Sem os elementos vitais para decisão política: preferências definidas, recursos e intensidade das
preferências – assistiríamos a um confronto de recursos e ausência de informação completa. A
deslegitimação do sistema partidário e do legislativo ganhava ainda mais força quando a aliança PSD-
PTB [os ganhos de um decorriam das perdas do outro]2 mostrava embates ideológicos freqüentes; já a
UDN, apresentava uma incapacidade de seguir uma unidade nacional, acentuando o caos do sistema
partidário. A radicalização impediu que os partidos se engajassem em cooperação e compromisso,
provocando a ruptura da ordem política.
2 Devido ao processo de industrialização/urbanização que ocorria no país no fim da década de 1950, o PSD (de base rural)
perde força política, enquanto o PTB (representante da grande massa trabalhadora que se formava) ganha força política.
(SANTOS, 2003)
3 Ministério das Relações Exteriores – Textos e Declarações sobre Política Externa (de abril de 1964 a abril de 1965), 1965,
p.1
4 Ministério das Relações Exteriores - Textos e Declarações sobre Política Externa (de abril de 1964 a abril de 1965), 1965,
p.9
5 Idem, p.35
6 Idem, p.37
7 Idem, p.60
A crítica ao processo inflacionário do governo anterior, também era constante por parte da
equipe de governo de Castello Branco. Merece ser destacado que em 1961, a inflação foi da ordem de
30%; em 1962, da ordem de 50%; em 1963, de 80%. A inflação desmedida seria um inimigo declarado
da ‘democracia’. Desta forma, a modificação da Lei de Remessa de Lucros eliminaria as restrições a
entrada de capitais estrangeiros no país, configurando ‘um plano racional e integrado para a
recuperação e expansão do crédito externo do Brasil’.9
A necessidade de importar bens de capital, matérias-primas essenciais, manufaturas e serviços
seria condição sine qua non para o crescimento econômico do Brasil.
Luis Vianna Filho, Ministro Extraordinário para Assuntos do Gabinete Civil, destacou em
discurso de aniversário de um ano da “revolução”, que nos dois últimos anos do governo João Goulart,
teria ocorrido uma queda vertical do poder de aquisição da moeda, e constatava: “E não sei se não
estará aí à causa do fim, da “débâcle” que haveria de marcar o governo do Sr. João Goulart”.10
Considerações finais
Para a chegada da nova elite dirigente ao poder, seria necessário contar com uma base social de
apoio que fosse a mais ampla e diferenciada possível, incluindo setores da sociedade civil além dos
próprios militares.
Com Castello Branco se efetivou algumas reformas: da Administração Pública – que buscou
racionalizar métodos de trabalho da máquina burocrática, e também buscou extinguir práticas
clientelísticas que bloqueariam alternância no poder; houve algumas mudanças na questão agrária, com
o imposto territorial progressivo e o Estatuto da Terra11; e a Reforma da Previdência Social - que pôs
fim a patronagem sindical nos aparelhos estatais, promoveu a unificação administrativa, a
universalização do direito de acesso aos benefícios do sistema, e o fim da representação classista.
(MARTINS; CRUZ, 1983)
Coube a esquerda assistir a queda de Jango e ao fim da possibilidade de uma revolução. Prado Jr
(1977, p.30) ao tratar da teoria da revolução – destacava que, era comum em militantes políticos da
esquerda formados exclusivamente na atividade prática imediatista brasileira, apresentar inclinações de
8 Ministério das Relações Exteriores – Textos e Declarações sobre Política Externa (de abril de 1964 a abril de 1965), 1965,
p.95
9 Idem, p.96
10 Idem, p.146
11 Alguns grupos conservadores que se colocavam contra a Reforma Agrária, caso da Sociedade Brasileira de Defesa da
Tradição Família e Propriedade (TFP), classificavam a Emenda Constitucional nº10 e o Estatuto da Terra aprovados no
governo Castello Branco como a “reforma agrária que Jango queria” (ALENCAR JUNIOR, 2011, p.29).
preferência, em geral, para a ação mais que para o pensamento e reflexão acerca desta ação e sua crítica
teórica. Existiria um ‘dogmatismo’, que sem grandes indagações proporcionou a construção de uma
defeituosa aprendizagem inicial.
Os elaboradores desta teoria revolucionária não tinham dado conta das diferenças profundas
que separavam os países asiáticos - “coloniais” e “semicoloniais” na nomenclatura consagrada – dos
países “dependentes” da América Latina. Nessa generalização apressada e injustificada, o Brasil teria
sido particularmente prejudicado, pois no organismo que se incumbiria da teoria e linha revolucionária
na América do Sul, predominaria decididamente elementos hispano-americanos, e nada ou muito
pouco se sabia de coisas brasileiras. (PRADO JR, 1977, p.37)
O desacerto consistiu em interpretar a economia agrária nacional e as relações de
produção e trabalho nela presentes como derivações, ou remanescentes de ‘obsoletas e anacrônicas
formas e estruturas feudais’. Para Prado Jr (1977, p.71), não haveria nada que se assemelhasse no Brasil
ao status especial dos proprietários ou senhores de terra da Europa pré-capitalista ou da Ásia.
Portanto, conforme definiu Prado Jr (1977, p.74):
[...] a idéia de uma “burguesia nacional” progressista e contrária ao imperialismo por
sua posição específica de classe causou à linha política da esquerda os mais graves
danos. Foi ela certamente um dos fatores que contribuíram para levar as esquerdas
por caminhos errados e cheios de ilusões que deram no desastre de abril de 1964. É
sem dúvida em boa parte porque iludida com a falsa convicção, derivada daquela idéia,
de que estava politicamente em jogo a luta antiimperialista (como antifeudal também)
de amplos setores pseudo burgueses nacionalistas, que as esquerdas brasileiras se
envolveram na aventura janguista de tão triste desfecho.
A crise de liderança que poderia fazer com que a tão falada e possível revolução brasileira se
tornasse uma 'jornada de otários', uma vez que haveria muitos que viveriam de ‘gesticulações
revolucionárias e de ficções verbais’ - conforme dizia Guerreiro Ramos em 196312 - se concretizou.
Já em 1980 - refletindo sobre o episódio que levou a ruptura da ordem política de 1964 -
Guerreiro Ramos (1982, p.538) considerava que os três partidos políticos (PSD-PTB-UDN) que
constituiriam o ‘cerne da vanguarda civil no Brasil desde 1945 e que vivenciaram o movimento
reformista que agitou o país em 1963 e nos primeiros meses de 1964’ teriam promovido a mais
espetacular ‘jornada de otários’ que se registra em nossa história político-partidária. Por força de suas
‘propostas inarticuláveis’, tudo estaria fadado à frustração e a provocar a substituição daquela
‘vanguarda civil’ pela ‘guarda militar’.
12Em 1963, Guerreiro Ramos publicou Mito e verdade da revolução brasileira, onde transcreveu seu manifesto ao PTB da
Guanabara instando a que o partido renunciasse “à ideologia marxista-leninista”. (verbete sobre Guerreiro Ramos
disponibilizado no CPDOC-FGV)
Referências
ALENCAR JUNIOR, Moacir P. A Assembléia Nacional Constituinte e o papel da TFP como grupo de pressão no processo de
promulgação da Constituição de 1988. Monografia apresentada ao DCSo – UFSCar, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais, 2011. Versão em PDF pode ser encontrada em:
http://moaciralencarjunior.files.wordpress.com/2012/01/2c2ba_2011_moacirpereiraalencarjunior10.pdf
BONAVIDES, Paulo; AMARAL, Roberto. Textos Políticos da História do Brasil, 3ª edição – Volume VII, Senado
Federal, 2002.
CRUZ, S. C. Velasco; MARTINS, C. E. De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da “Abertura”.
In: SORJ, B. e ALMEIDA, M.H.T. (eds.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo, Brasiliense, 1983.
FERREIRA, Jorge. Dossiê 1946 – 1964: a experiência democrática no Brasil – Apresentação. Tempo, Jun 2010, vol.14,
n.28, p.11-18.
FURTADO, Celso. A Pré-Revolução Brasileira. Editora Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, Brasil, 1962.
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas – A esquerda brasileira: Das ilusões perdidas à luta armada. - 4ª edição Editora
Ática, 1990.
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1. Introdução
O
contexto do trabalho contemporâneo está marcado pela forma como está articulado a
uma série de mudanças que ocorreram nos últimos tempos. Tolfo e Piccinini (2007),
dentre outros, destacam que essas mudanças compreendem elementos da globalização, a
crescente competitividade entre os países, reestruturação nesse setor, inovações tecnológicas, sócio-
organizacionais e uma alta flexibilidade das relações de trabalho. O aumento do desemprego, a
precarização das relações de trabalho e mudanças na organização familiar, são considerados aspectos
marcantes dessas mudanças, a atividade informal também é uma delas3.
Esse setor da informalidade é conhecido pelos postos de trabalho socialmente desprotegidos,
realizados em condições precárias, pela instabilidade e reduzidas rendas. Por outro lado, essa atividade,
também remete a autonomia, independência, para esses sujeitos, sendo uma forma de afirmação e
valorização de sua identidade, sua honra e posição social (BETTIOL, 2009; SARTI, 1996).
No caso brasileiro, estudos mostram que a informalidade aparece como uma de suas
características mais marcantes4. Em geral, as pessoas inseridas nessa atividade, apresentam como perfil,
uma baixa escolaridade e mão de obra menos qualificada, principalmente aquelas concentradas nos
grandes centros urbanos do país, a exemplo dos carroceiros.
Apesar de ser uma forma de trabalho antiga, esse grupo de trabalhadores apresenta
características tanto em seu trabalho quando no seu modo de viver que podem exemplificar as
transformações pelas quais passaram a sociedade no âmbito do trabalho. Desempenham atividades na
informalidade, são considerados uma mão de obra menos qualificada, preservam um modo tradicional
de execução do trabalho e continuam utilizando carroças conduzidas por tração animal como principal
instrumento de trabalho. Embora tenha havido modificações nos veículos de transportes, esse tipo de
atividade ainda é bastante encontrada, principalmente em regiões metropolitanas das grandes cidades
(MOURA 1988).
As transformações que ocorreram nas últimas décadas, no mercado de trabalho, podem ser
visualizadas não só pelas mudanças na maneira de trabalhar, como pelo surgimento de novas formas de
trabalho, a exemplo do trabalho informal6. A informalidade aparece como uma alternativa de
sobrevivência exemplifica, sobretudo, a profundidade e o impacto dessas mudanças na organização
social das pessoas.
A reestruturação pelo qual passou esse setor teve como pontos principais: o aumento do
desemprego, a precarização das relações de trabalho e mudanças na organização familiar,
principalmente no que diz respeito à busca por meios de sobrevivência (MONTALI, 2000). Esse
processo atinge vários setores da economia, não somente os Carroceiros. Contudo nesse grupo
específico é possível visualizar seus efeitos de forma que é possível considerá-los como um dos mais
afetados, apesar de não ocorrer de forma direta.
5 Os resultados desta pesquisa correspondem a um trabalho de conclusão de curso que foi realizado no ano de 2011. No
entanto novas informações foram acrescentadas, devido à continuidade no trabalho com essa temática, no mestrado em
andamento.
6 No Brasil a categoria trabalho informal é utilizada para conceituar aqueles trabalhadores que exercem algum tipo de
trabalho, mas não estão incorporados legalmente na forma de trabalho tipicamente capitalista, assim, não estando
reconhecidos legalmente algumas categorias são marginalizados e compõem um setor informal, qualificado também, como
um setor desprotegido e gerador de postos de trabalho de baixa qualidade (SERAINE, 2009; ULYSSEA, 2006).
A atividade informal, também pode ser analisada pelo sentido que ela produz na atual realidade
social. O fato do trabalhador se considerar “patrão de si mesmo” leva-o a conceber o seu trabalho
como uma atividade remunerada em uma sociedade com uma escassez de emprego, assim, ele adquire
um valor na sociedade que vive (ANTUNES, 2000; BETTIOL, 2009).
No Brasil, o mercado de trabalho informal desde o início da década de 80 teve uma elevada
proporção de trabalhadores inseridos, ganhando força principalmente no final dos anos 90. Autores
como: Ulyssea (2006), Pochmann, (1999) e Guimarães (2002), destacam que alguns fatores
contribuíram para elevação desse setor no país, entre eles o crescimento da proporção de trabalhadores
por conta própria e sem carteira assinada e mudanças no setor urbano como a expansão do setor de
serviços e a contração da indústria de transformação.
Ainda no que diz respeito ao caso brasileiro, cabe ressaltar que essas características atuais do
mercado de trabalho estão ligadas também ao seu processo de formação. Não há como desconsiderar
que a escravidão se configura como um dos aspectos fundamentais na análise do processo de formação
do mercado de trabalho brasileiro, além de um importante elemento a se considerar na avaliação de
suas marcas políticas, sociais e principalmente econômicas. Alexandre Barbosa (2003), em seu estudo
sobre o desenvolvimento e formação do mercado de trabalho no Brasil, apresenta aspectos
esclarecedores e acima de tudo um panorama crítico desse processo, que ajuda não só na sua
compreensão como aponta direções para relacioná-lo com suas características atuais.
Com algumas reservas, o autor aponta que o sistema colonial brasileiro viabilizou a Revolução
Industrial e o Capitalismo, na medida em que a terra e trabalho funcionavam como forças motrizes
para o desenvolvimento do capital comercial. “Os escravos eram considerados mercadorias socialmente
baratas”. No entanto, efetivamente não é possível visualizar um mercado de trabalho num contexto no
qual a base econômica era prioritariamente na escravidão (BARBOSA, 2003, p. 23-24).
Sonia Tomazini (1995), também traz um traço interessante sobre o assunto, na medida em que
destaca a diversidade de manifestação de falta de emprego no mercado de trabalho brasileiro,
relacionando-o com o grau de desenvolvimento capitalista e suas implicações nesse mesmo mercado.
Em seu trabalho, ela chama atenção, para uma separação que existe entre o que é emprego informal e
ocupações não assalariadas.
O destaque dado a esse aspecto pela autora é importante, porque além de chamar atenção para
essa distinção nas diferentes manifestações da falta de emprego no Brasil, traz como discussão a
importância do grau de integração econômica e dinamismo do mercado de trabalho em diferentes
regiões do país, como um subsídio para compreender essa distinção.
Tanto Alexandre Barbosa quanto Sonia Tomazini, ajudam a compreender o que Gabriel Ulissea
(2006), destaca como características marcantes do setor informal no Brasil nos últimos anos. Com base
em sua análise, as pessoas inseridas nessa atividade apresentam a baixa escolaridade e mão de obra
menos qualificada, principalmente aquelas concentradas nos grandes centros urbanos do país.
Outro fator que também influenciou para o aumento desse tipo de trabalho foi às altas taxas
impostas pela legislação trabalhista brasileira, como cargas fiscais e restrições do mercado de trabalho.
Ainda com base nesse autor, no Brasil, semelhante a maior parte dos países da América Latina, o
trabalho informal aparece como uma forma de sobrevivência para o desemprego provocado pelas
novas exigências do mercado (ULYSSEA, 2006).
Estudos mostram que em média 95% dos trabalhadores de carteira assinada contribuem para o
INSS, no Brasil e apenas 5% dos trabalhadores informais contribuem, ou seja, um dos pontos mais
negativos da informalidade é a falta de proteção legal, indicando que aqueles que mais precisam de
proteção estão desprotegidos, assim, a informalidade está intrinsecamente associada à precariedade dos
postos de trabalho.
As discussões mostram, dentre outros aspectos, que os problemas ocasionados pela crise no
mercado de trabalho provocaram uma condição de trabalho precária para muitos trabalhadores, apesar
do trabalho de carroceiro ser antigo e provavelmente anterior a esse processo, esse grupo apresentam
em seu modo de trabalho muitos aspectos dos efeitos dessas mudanças, tanto no que se refere às
precárias condições em que realizam o trabalho quanto no modo como se organizam a partir deste.
Além disso, essas discussões contribuem para compreender a origem e desdobramentos do
debate sobre trabalho, permitindo visualizar o trabalho dos carroceiros como um trabalho produtivo e
que apesar de está no âmbito do setor informal, se constitui como uma atividade que possibilita a
sobrevivência de um grupo, na medida em que proporciona o acesso, mesmo que restrito, a
determinados bens úteis a sua sobrevivência.
3. Experiências de trabalho dos carroceiros nas zonas norte e sul: busca por direitos e
visibilidade social.
Em relação aos Carroceiros das zonas norte e sul de Teresina, observou-se em vários aspectos
desse grupo, as discussões levantadas acima. De modo geral, apresentam precárias condições de
trabalho e falta visibilidade no que se refere à proteção legal. A maioria apresenta como principal fonte
de renda o trabalho com a carroça, baixa arrecadação financeira, o que interfere na forma como esses
sujeitos se organizam na busca por sobrevivência.
Na cidade de Teresina, existem atualmente cerca de 1. 300 carroceiros distribuídos em
diferentes zonas7 e representados por associações. Através destas associações, são estabelecidos
contratos com a Prefeitura para limpeza de entulhos jogados em praças e avenidas da cidade, além do
recolhimento do lixo domiciliar em bairros onde o carro de coleta não tem acesso devido à falta de
calçamento.
7Segundo informações da Superintendência de Desenvolvimento Urbano-SDU, esse número corresponde apenas aqueles
Carroceiros que são cadastrados neste órgão, por isso estima-se que possa existir um número maior de Carroceiros em
Teresina.
Como esses contratos não são permanentes e abarcam apenas uma pequena parcela desses
trabalhadores, na maioria das vezes, transportam cargas dos mais variados tipos: recolhem lixos de
casas, ajudam no transporte de mudanças, transportam materiais de construção em pequenas
quantidades quando as pessoas não podem pagar os serviços de transporte das lojas.
No que se refere às condições de trabalho e vida do grupo, destacam-se as precárias condições
em que realizam essa atividade, falta de visibilidade da categoria no que se refere aos direitos
trabalhistas e os baixos rendimentos. Não contribuem com a previdência social, moram em áreas de
infraestrutura e saneamento precários (tratamento de água, esgoto, coleta de lixo), em grande parte, são
oriundos de zonas rurais do Estado, possuem baixa escolaridade e apresentam dificuldades de acesso a
serviços de saúde e educação.
Só estudei até a quinta série, sou carroceiro a mais de 10 anos, aqui em casa sou eu,
minha mulher e mais três filhos, ganho por mês uns R$ 300,00 a R$ 400, 00 reais,
quase sempre passamos dificuldades, outro dia meu filho teve que fazer uma cirurgia
porque nasceu com um problema no estomago, tive que ficar com ele no hospital e
não trabalhei, passamos muitas dificuldades, milha mulher teve que lavar roupa fora
para conseguirmos passar aqui em casa, de vez em quando passamos necessidade, aí as
outras pessoas nos ajudam (Entrevista dia 13/10/2011, às 15:00h, Vila Nova Parque
Piauí, zona sul de Teresina).
Grande parte dos carroceiros arrecada mensalmente uma média de R$ 300,00 a R$ 600,00, ou
seja, abaixo do salário mínimo vigente no país, trabalham sem carroças apropriadas ao tipo de produtos
que transportam, ficam muito tempo expostos ao sol, possuem pouco incentivo institucional, moram
em áreas com problemas relacionados à falta de serviços básicos como infraestrutura e saneamento
básico (tratamento de água e esgoto), coleta de lixo, alguns residem em casas sem registros na prefeitura
por estarem localizadas em áreas ocupadas e ainda não legalizadas:
Quando fico doente ou meu cavalo adoece, fica difícil as coisas, porque o dinheiro é
pouco e o único meio de vida que eu tenho. Não tenho casa própria, às vezes moro
com meu irmão, às vezes fico na casa de minha mãe, só trabalho como Carroceiro, a
mais de 15 anos. Comecei a trabalhar com a carroça do meu pai, todos meus irmãos
são carroceiros, tiro por mês uns R$ 400, 00 reais, não dá para muita coisa, mas é o
que consigo com meu trabalho, é muito difícil, porque não temos apoio da associação
ou da prefeitura (Dia 14/10/2011 às 15:38h, Vila Nova Parque Piauí, zona sul de Teresina).
A situação vivenciada pelo grupo, nesse aspecto se assemelha as observações de Ulyssea (2006),
sobre as características mais marcantes dos trabalhadores inseridos na informalidade, como: as
condições precárias de realização do trabalho, a baixa qualificação da mão de obra e baixos
rendimentos, ainda permanecem como traços marcantes associados a esse setor. O que também pode
ser explicado pela ausência de políticas e programas que abarquem todos esses setores do ramo
informal.
Por outro lado, outros setores da economia, como pequenos comerciantes, trabalhadores do
setor da construção civil, catadores de lixo e empregadas domésticas (que também exerciam atividades
na informalidade), em sua maioria, apresentam hoje uma situação diferente, no sentido de que foram
estimulados por medidas específicas para serem inseridos na economia com melhores condições de
trabalho. O que pode demonstrar a falta de visibilidade dessa categoria no tocante a políticas públicas,
tendo como principal consequência à família como mais afetada por essa atual situação.
Outro fator relacionado a este grupo está na forma como são visualizados na cidade. Com base
nos jornais impressos e portais de notícias na internet, entre os assuntos relacionados aos carroceiros,
destacam-se: as precárias condições em que realizam esse trabalho, os maus tratos aos animais, a
contribuição e/ou prejuízo ao meio ambiente, pelo fato de jogarem lixo em locais inadequados,
prejuízos ao trânsito na cidade, questionamentos da permanência desse modo de trabalho primitivo
diante do cenário atual de desenvolvimento da cidade e aquisição de veículos automotores 8.
Essas “notícias e visualizações negativas” associadas ao trabalho desses sujeitos ocorrem
principalmente quando estes circulam pelo centro e em bairros consideradas “nobres” na cidade.
Nesses lugares é possível visualizar um forte processo de urbanização e modernização, o que pode
contrastar com esse tipo de trabalho que conserva aspectos rudimentares.
Nessa linha, o trabalho de Sérgio Paulo Morais (2003), com carroceiros na cidade de
Uberlândia9, traz questões interessantes para pensar o assunto, na medida em que mostra como
diferentes tipos de atividades remuneradas na cidade foram se transformando historicamente,
chamando atenção para um número significativo de circunstâncias que fez com que, o que antes era
aceito se tornasse ilícito e perdesse espaço.
As mudanças no cenário urbano de Uberlândia, ocasionadas pelo desenvolvimento econômico
e industrial da cidade, mudaram também as oportunidades de trabalho, principalmente com carroças.
Segundo Sérgio Paulo, os carroceiros enfrentaram dificuldades com os semáforos eletrônicos que
deram mais mobilidade ao trânsito, estacionamentos de fluxo rápido no qual ficava inviável a carga e
descarga com carroças, ou seja, remodelações que materializavam as novas dinâmicas de trabalho no
cenário urbano da cidade.
Foi necessário impor uma imagem degradada desses veículos e de seus proprietários, e
apresentá-los como estorvos à organização “racional” do trânsito, ao
“desenvolvimento”, à estética dos diversos espaços públicos, etc... a criação de
secretarias especializadas na fiscalização da higiene dos bairros, somada à produção de
mecanismos de apreensão de animais de transporte e de controle e punições à criação
de animais de consumo, parecia determinar também o fim do “tempo dos
carroceiros”, dos criadores de porcos e galinhas, e de todos aqueles que insistam em
manter uma economia familiar baseada na utilização dos espaços das ruas, das casas e
dos bairros. (MORAIS, 2004, citando MORAIS, 2003, p.228- 229).
8 Locais pesquisados: Meio Norte, Jornal O dia, Diário do Povo; Portais de internet: Cidadaverde.com, portal O Dia, Portal
da Clube, site da prefeitura de Teresina. A pesquisa ocorreu entre os meses de fevereiro a março de 2013 e os endereços
citados acima se encontram nas referências.
9 Sua análise histórica trata especificamente de aspectos relacionados ao tempo, trajetórias de vida e trabalho desses sujeitos,
entre 1970-1998.
Ainda segundo o autor, o trabalho com carroças, apesar de fazer parte do cotidiano da cidade,
estava na contramão a perspectivas e práticas de modernização urbana no qual Uberlândia caminhava.
As carroças não se encaixavam na percepção do mercado de desenvolvimento criado nos anos 1970 e
articulado nos anos de 1980 em torno da participação democrática dos cidadãos urbanos, limpos e
devotados às normas da saúde e da higiene pública.
Em Teresina, esse processo também ocorre, de modo que cada vez mais é reduzido o número
de carroças circulando no centro da cidade. Contudo, esse processo também apresenta aspectos
contraditórios, pois apesar de uma tendência a redução desse tipo de trabalho na cidade, devido às
novas dinâmicas de trabalho no cenário urbano. Há uma parcela significativa de carroceiros circulando
em outras áreas, inclusive reconhecidos como necessários, não só pela população que habita nessas
áreas como pela própria prefeitura, que os contrata para o recolhimento do lixo domiciliar.
Aqui é assim: são eles que recolhem o lixo de nossas casas. Você tá vendo, não tem
calçamento e não tem como o carro grande entrar. Então são eles que nos socorrem.
Quando a prefeitura suspende o contrato com eles, nós chama logo a televisão para
denunciar e resolver o problema. Eles também cobram mais baratos pelos serviços, se
você compra uma carrada de areia num depósito eles cobram uns R$ 20,00 pra vim
deixar em casa, o carroceiro só cobra R$: 10,00 (Entrevista dia 20/ 08/2011, sexo F,
Vila Irmã Dulce, zona sul de Teresina).
Nessas regiões periféricas de Teresina, esse trabalho se apresenta como necessário e assume
uma função social importante, visto que supri as necessidades da população que o poder público não
alcança. Isso mostra que esse processo de urbanização e modernização é contraditório, uma vez que
não abrange aqueles que mais precisam. A permanência desse tipo de trabalho aparece como um
exemplo dessa contradição.
Somos nós que fazemos a limpeza de locais onde o carro do lixo não passa. O que
acontece: essas empresas contratadas pela prefeitura chega aqui pra levar o lixo, pega a
sacola, mas se a sacola derramar, lá fica. É como um carro de corrida. Passa assim:
voo, voo. O cara jogou o lixo dentro do carro e se cair no chão, lá fica. Nós não! A
gente vai com a carroça, pega o lixo e o que cair no chão, vai lá e varre com a vasoura.
Com todo o cuidado. (Entrevista dia 18/08/2013, carroceiro do sexo M, bairro São Joaquim,
zona norte de Teresina).
No que diz respeito às ações do grupo, na busca por direitos profissionais e visibilidade social, é
possível destacar, principalmente em relação aos carroceiros localizados na zona norte de Teresina, que
esses trabalhadores tem se organizado na busca por melhores condições de trabalho e apoio
institucional, o que revela a busca pela afirmação de uma identidade coletiva, através do trabalho.
Nos últimos anos, houve iniciativas por parte do presidente da associação de carroceiros da
zona norte, em conjunto com associações de proteção aos animais, ambientalistas, para elaboração de
projetos. Entre as demandas desses projetos, destacam-se: a regulamentação da profissão (para que
esses trabalhadores possam ter o direito de se aposentar como carroceiro e tenham incentivos para
redução do valor da contribuição mensal), a criação de carroças ecológicas que ocasione menores danos
aos animais, um aumento no número de contratos com a prefeitura para prestação de serviços na
cidade, criação de locais para os animais descasarem e ficarem protegidos de violências e mortes10.
A senhorita tocou num ponto que Eu sempre batalho, inclusive na passeata dos
Carroceiros que acontece todo dia primeiro de junho, para comemorar nosso dia, Eu
falei sobre isso para os deputados que estavam lá na nossa festa. Luto para nossa
profissão ser reconhecida pra gente poder se aposentar como Carroceiro e contribuir
pra previdência... A maior parte dos Carroceiros tem só essa renda, mas também já
tem muitos aposentados, que complementam a aposentadoria com esse trabalho.
Também tem caso, como o meu, que já sou aposentado, mas minha vida toda
trabalhei como Carroceiro, quando fui me aposentar disseram que essa profissão não
existe, então tive que me aposentar como trabalhador rural. E assim tem muitos. E
mesmo se aposentando continua na profissão. Outra luta nossa é para nós colocarmos
os animais para descansar. Outra coisa, a ração para o animal é cara e muitos
carroceiros quando termina o dia solta os bichinhos para comer capim, não dá a
alimentação adequada. Olha: um burro, que é o melhor pra gente trabalhar, se bem
cuidado, vive 20 a 30 anos, mas tem uns que não passa de 7 anos. Também lutamos
pela saúde dos carroceiros, a maior parte dos carroceiros sofre com isso: a saúde. Fica
muito tempo no sol, tem problema de saúde, problema nos rins, dor de cabeça do sol
e o animal não tem um lugar para descansar porque não dar pra colocar o animal
dentro de casa, aí fica solto e sujeito a violência. (Sexo M, em 18/08/2013, bairro São
Joaquim, zona norte de Teresina).
Eder Sader (1988), ao falar sobre das experiências de lutas de trabalhadores na grande São
Paulo, no período de 1970 a 1980, destaca o impacto dos movimentos sociais nos mais diversos grupos
populares que estavam na cena pública reivindicando direitos, o que levou a uma revalorização de
práticas sociais presentes no cotidiano desses sujeitos. Ainda com base no autor, esses movimentos
10 A elaboração dos projetos é feita pela filha do presidente da associação da zona norte, que se denomina como secretária
da associação e está articulando a criação de um sindicato para a categoria. Isto ocorre devido ao presidente conhecido
como Careca, não ser alfabetizado. O acesso aos projetos foi mediante a autorização do presidente das associações e de sua
filha.
chamavam atenção pelas suas linguagens, pelos lugares de onde se manifestavam, pelos valores que
professavam principalmente como indicadores da emergência de novas identidades coletivas.
Resguardando o contexto histórico e político no qual o autor se refere, sua análise contribui
para pensar essa passeata dos carroceiros de Teresina, como um momento em que eles aproveitam sua
evidencia no cenário público, devido a grande mobilização de pessoas que essa passeata concentra
(políticos, autoridades da administração da cidade e jornalistas), não só para fazer suas reivindicações e
demandas profissionais, mas para mostrar o valor do seu trabalho, suas práticas coletivas, afirmar sua
identidade de carroceiro.
Por isso, esse momento representa uma das grandes conquistas do grupo. A passeata tem um
valor simbólico, já que o dia do carroceiro representa o reconhecimento do trabalho desse grupo, sua
importância para a cidade de Teresina. Assim, esse conjunto de ações demonstra, sobretudo, uma
mobilização coletiva do grupo na busca pela afirmação da categoria e reconhecimento social desses
trabalhadores na cidade. A identificação do grupo com o trabalho está expressa nessas ações.
Como assinala Sarti (1996), para as famílias pobres o trabalho é muito mais do que um meio de
sobrevivência, sendo também uma forma de afirmação e valorização de sua identidade. Assim, os
carroceiros de Teresina, apesar das dificuldades com essa atividade que realizam, através dela afirmam
sua honra, honestidade e posição social e com isso o trabalho vai além do ganho material, representa
uma afirmação da moral e disposição de vencer.
4. Considerações finais
desenvolvidas pelo grupo na busca por direitos profissionais e melhores condições de trabalho são
importantes porque podem contribuir para uma integração na economia de mercado e trabalho
teresinense, com boas condições de trabalho e de salário. Mas revelam, sobretudo, a busca pela
afirmação enquanto identidade coletiva.
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Introdução
A
proposição do trabalho desenvolvido tem como objetivo contribuir para as discussões
acerca da identidade, da comunidade e dos projetos regionais que se desenham no nível sul
americano. Antes de se colocar como palavra final, sugere a interlocução conceitual numa
revisão bibliográfica que visa enriquecer as análises e propostas para o decorrer do século XXI.
A conjuntura de crise que enfrenta o velho continente reforça a necessidade de articulação dos
países sul americanos no intuito de estreitar suas relações políticas e econômicas redundando na
melhoria significativa nos aspectos sociais na região. Para tanto, é preciso compreender os fenômenos
que promovem transformações conceituais no período compreendido por diversos autores como pós
modernidade.
Entender que a América do Sul não está fora do contexto pelo qual os efeitos globalizantes que
promovem identidades flexíveis ao mesmo tempo que deteriora os símbolos comunitários, tendo como
horizonte a sacralização do mercado e do consumo se colocam como desafios e ao mesmo tempo
paradoxo da realidade. Orientar as democracias emergentes e recentes no sul do continente para novas
formas de representação e participação que não seja o modelo pré estabelecido que tantos males
causaram aos povos e nações constituído fronteiras para a alteridade se torna fundamental para que em
colaboração se eleja um projeto comum.
Os efeitos da entrada sul americana na modernidade tardiamente geraram os desenraizamentos,
o êxodo rural numa industrialização concorrencial em nome de um progresso que chegou à poucos. A
formação de blocos econômicos como o Mercosul precisa ser orientado também por uma perspectiva
sociológica, que pese os efeitos reais de uma comunidade para seus membros, que são reais e humanos
na reconstrução de uma história nossa, dos povos que trabalharam e construíram as nações latino
americanas.
Por ser o maior país, seja em extensão territorial, seja em valores econômicos, cabe ao Brasil
desenvolver o papel de articulador da ampliação do Mercosul para formação da comunidade sul
americana de nações. Para tanto, é preciso compreender as múltiplas identidades que compõem o jogo
político, social e econômico com diplomacia e respeito às heterogeneidades que correspondem aos
povos da região.
Como exposto, refletir sobre as transformações que ocorrem no tempo espaço numa
velocidade nunca vista na história, requer a permanente discussão sobre a identidade em seus aspectos
culturais, sem as quais a construção de uma comunidade orientada por projetos comuns se torna uma
discussão para dentro e sem repercussão no real, pois os jogos de dominação continuam a operar
colocando sob xeque as potencialidades dos povos sul americanos conseguirem de fato autonomia no
cenário global.
Os fundamentos que escreveram a história ocidental no decorrer dos séculos XIX e XX,
advieram de uma perspectiva, essa seria a modernidade. A modernidade que segundo Bauman (1999) se
apresenta a partir do século XVII, como um conjunto de transformações socioestruturais, primeiro
como projeto cultural e posteriormente com a sociedade industrial capitalista afirma esse modelo de
vida consumada. Nessa conjuntura de transformações está inserida a América do Sul e seus projetos
regionais e locais de “independência” das suas respectivas metrópoles.
As mudanças que o ideário iluminista traria ao mundo, seria a afirmação da racionalidade como
forma de compreensão dos fenômenos naturais e sociais por meio da ciência. Esta traria o
desenvolvimento tecnológico, e como resultado de um pensamento evolutivo, alcançaria o estágio mais
avançado da humanidade, a civilização do progresso. Para Baum (1992) foi fomentada uma crença de
que a ciência e a tecnologia produziriam o progresso contínuo.
O período ao qual se refere à afirmação da modernidade, enquanto projeto, é também o
momento de consolidação das ciências sociais. Marx, Durkheim, Weber, Tocqueville, entre outros estão
nesse entremeio, que percorre a transição de um mundo tradicionalmente rural e agrário, para um
mundo urbano e industrial. Quijano (2005) aponta que ainda que a América Latina, tenha sido em
efeito, uma vítima passiva da modernização, foi na verdade uma troca, pois participou ativamente do
processo de produção da modernidade.
As erupções revolucionárias da Europa tiveram reflexos na América do Sul, ao mesmo tempo
em que a industrialização europeia apresentava novas contradições na sociedade europeia, a América
convivia com ambiguidades herdadas de um momento colonial espoliador. Nesse contexto, segundo
Baum (1992) a Sociologia nasce como uma ciência sensível ao lado sombrio das revoluções industrial e
democrática. A busca pela autonomia, o universalismo e o individualismo marcaram os trabalhos
clássicos. Vale demonstrar que:
O jovem Marx lamentava a alienação infligida aos seres humanos impedindo-os de
assumir as responsabilidades por suas instituições políticas e econômicas; Durkheim
lamentava a anomia produzida em amplos segmentos da população mediante o
declínio da comunidade e o culto do indivíduo; Weber deplorava a racionalização da
existência humana mediante a sempre maior difusão da tecnologia e da burocracia.
(BAUM, 1992, p. 789)
Bauman (1999), ensina que a modernidade é impregnada de ambivalências, que na verdade não
foram totalmente superadas dentro do projeto moderno. Daí a perspectiva de uma etapa pós moderna,
em que tais ambivalências seriam reexaminadas não no sentido de superação, já que elas são
insuperáveis, constituem a complexidade humana e suas relações. As ambivalências da modernidade
seriam os elementos de continuidade, de rupturas na história, seria o reescrever, ou escrever a história a
contrapelo, como ensinou Benjamim (1987).
Os resultados de uma análise da modernidade na pós modernidade se apresenta como um
momento de reavaliação, já que os conceitos pelos quais se orientou o mundo ocidental, inclusiva a
América do Sul no último século produziram progresso e destruição. Segundo Bauman (1999) e Morin
(2012), a destruição, a miséria e a fome são muito maiores que as benesses que poucos colhem do
progresso. Ainda nessa perspectiva, vale relembrar a passagem de Benjamim (1987), em suas teorias da
história sobre a alegoria do anjo.
Galeano (1976) constata que a deusa tecnologia não fala espanhol, portanto, uma ciência
universal, nos moldes propostos pelo projeto moderno não atinge a América Latina. Já que o
subdesenvolvimento que alimenta o desenvolvimento em regiões do mundo, é na verdade uma
desordem, que como ambivalência necessita existir para manutenção do sistema de espoliação que
marca os povos sul americanos. A aposta feita no século XIX, segundo Quijano (2005) de que a
modernidade seria uma associação entre razão e liberdade, promovendo aos povos a autonomia de seu
destino foram sendo apartadas, onde a razão se associou com a dominação econômica, técnico-
científica e política militar. A esse fenômeno denominado “imperialismo”, recai todo o momento
histórico desenrolado na América do Sul no século XX.
Quijano (2005) chama atenção que na América Latina o processo de desintegração do
mercantilismo promoveu ao plano de poder, os setores sociais mais conservadores, adversos ao
liberalismo, essa ambiguidade na verdade guarda que no continente sul americano, a modernidade não
se concretizou como demonstra Fernandes (2005), que fora na verdade reprimido quando apresentou
possibilidades de se materializar concretamente. Contudo, é preciso reconhecer de acordo com Quijano
(2005), a América Latina que não encontrou a modernidade, encontrou a modernização, foi
industrializada e conduzida a operar na lógica do sistema capitalista, copiando as instituições de poder,
mantendo as desigualdades sociais, promovendo uma urbanização desordenada, entre outros fatores
que permitem a reprodução permanente do modelo de espoliação histórico.
As perspectivas que se apresentam a partir dos anos de 1970 com a adoção de políticas
neoliberais associadas à processos políticos econômicos globais, que redundam na globalização, se
confirma naquilo que Castells (1996) denomina de Sociedades em Redes, que são frutos de um
fenômeno descrito por Harvey (1992) por uma condição pós moderna que altera a dinâmica de
funcionamento do mundo, na compressão do tempo espaço. Dessa condição pós moderna surge a
necessidade de crítica para com a modernidade, uma crítica que apresente novos paradigmas que
atendam aquilo que a modernidade projetou mas não cumpriu segundo Santos (1997). Contudo, é
preciso analisar que em muitas regiões do mundo, em especial aquelas espoliadas, ou mesmo esquecidas
intencionalmente, como é o caso de partes da América Latina mesmo distantes da modernidade sofrem
os reflexos da “modernidade líquida”, que segundo Bauman (1999), gera um distanciamento cada vez
maior da realidade frente à virtualidade.
As características que marcam a modernidade, como o modernismo e a modernização, se
refletem diretamente na construção dos direitos humanos e sua afirmação, que entretanto na América
do Sul só se fazem em parte, já que o universalismo, a autonomia e o individualismo conforme descrito
pelos ideais iluministas foram ecos incorporados segundo Quijano (2005) pelos setores conservadores
na América Latina. Com isso, mesmo que existam direitos internacionalmente reconhecidos como
humanamente essenciais, a América do Sul foi marcada na segunda metade do século XX, pelo
desrespeito a tais conjunto de direitos, em nome de um progresso e segurança nacional, que não
promoveram a inserção de fato dos povos sul americanos na modernidade.
O estudo da identidade nas Ciências Sociais se apresenta como uma busca de compreender os
mecanismos de identificação social, dos sujeitos e agentes que em tempos de pós modernidade
apresentam mudanças quanto aos conceitos de identificação propostos no século XIX e começo de
XX. É importante destacar que a construção do reconhecimento se faz por aquilo que Marx (1988)
chama de espelhamento, onde dialeticamente o eu e o outro se reconhecem como iguais, ou como
semelhantes em condições de humanidade. Essa relação se aprofunda em diferentes esferas atingindo
os objetos e bens materiais produzidos, onde a identificação liberta o sujeito da alienação.
A problemática que envolve a conceituação de identidade nas Ciências Sociais compõe um alvo
de estudos que se aprofundam e se refazem na atualidade, conforme se observa em:
[...] a “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto;
como alvo de um esforço; “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa
construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-
la lutando ainda mais... A fragilidade e a condição eternamente provisória da
identidade não podem mais ser ocultadas... Atualmente a “identidade” é o “papo do
momento”, um assunto de extrema importância e em evidência... (BAUMAN; 2005,
pp. 21-23).
Hall (2011) aponta que vivemos a chamada “crise de identidade”, vista como parte de um
processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando as referências que davam ancoragem estável aos indivíduos no mundo social. A
crise se apresenta nas reformulações conceituais sobre a identidade e a própria concepção de sujeito,
em que a dinâmica social constrói necessidades transitórias levando os sujeitos a se tornarem
subsumidos dentro das relações, em que a escolha é a condição para adentrar em um grupo, ou mesmo
pertencer ao conjunto dos identificáveis. Hall (2011) apresenta a identidade como derivada dos
momentos históricos e sociais, sendo classificados em sujeitos nos recortes temporais propostos pelo
autor. Tais momentos caracterizam os sujeitos e a identidade, assim temos o “sujeito do iluminismo”
centrado na racionalidade do indivíduo, o “sujeito sociológico” reconhecedor da necessidade do
“outro” na constituição de sua identidade, e o “sujeito pós-moderno” descentrado, fluído e não fixo
sempre na busca de uma identidade ou de múltiplas identidades.
Nessa perspectiva se levanta outro problema essencial para os estudos latino americanos, uma
vez que se tratam de múltiplas identidades, que se constituíram fragmentadas e se reproduzem
fragmentárias, já que no continente americano a formação das nações se fez num processo histórico
capitaneado pelas elites locais, onde os povos originários da terra foram excluídos da participação
política e econômica do país que se formava. Daí decorre mais um dos elementos ausentes da
modernidade na América do Sul, como Giddens (1992) aponta ao dizer que a política emancipatória
torna imperativos valores de justiça, igualdade e participação.
Além dos problemas de ordem estrutural na constituição das nações latino americanas,
encontramos outro mecanismo recorrente na dominação e espoliação das populações, que é estigma.
Essa marca que registra o lugar, portanto, determina quais as possibilidades que os agentes sociais
decorrentes de tais regiões podem ou não assumir na era globalizada. Tal método de segregação é
encontrado nas relações endógenas e exógenas de cada país, com isso se apresenta um tipo de
identidade apontado como:
[...] identidade da subclasse” é a ausência de identidade, a abolição ou negação da
individualidade, do rosto, esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é
excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas,
avaliadas, confirmadas ou refutadas. (BAUMAN, 2005, p.46)
Nesse sentido, Castells (1996) desenvolve três tipos de identidade, que caracterizam diferentes
objetivos, a primeira delas a identidade legitimadora introduzida pelas instituições dominantes da
sociedade, a segunda a identidade de resistência criada pelos atores sociais em processo de
estigmatização pelas instituições dominantes da sociedade, e a terceira a identidade de projeto em que
os atores sociais se utilizam de diferentes recursos culturais para a construção de novas identidades
capazes de reconfiguras sua posição na sociedade de forma transformadora. Tais concepções são
recepcionadas pelo pensamento que apresenta:
A América Latina ingressa na próxima década dividida em três grandes forças políticas
e sociais: neoliberais, terceira via e neonacionalistas. Os neoliberais seguem as
proposições do Consenso de Washington, caso da Colômbia e do México. A terceira
via busca combinar maior independência externa com políticas sociais, caso do Brasil,
Uruguai e Chile. Os neonacionalistas associam o socialismo cubano e o sandinismo da
Nicarágua, é o caso da Venezuela, Bolívia e Equador. (MARTINS in OLIVEIRA,
2010, p. 253)
A constituição de uma identidade sul americana, que componha uma identidade latino
americana, vai de encontro a proposição de Castells (1996) de identidade de projeto. Esse esforço
conjunto, reconhecido em busca da elaboração de um projeto autônomo e emancipador, seria o passo
que descoloniza de fato a América Latina, isso contudo requer uma etapa de aprendizagem para se
libertar do espelho eurocêntrico, já que que a imagem da região é sempre e necessariamente distorcida.
Aproximar as diferenças, que são afirmadas e ratificadas segundo Todorov (1999) pelos setores
conservadores, são indispensáveis para a construção da comunidade sul americana. Todavia, temos que
relembrar o passado que produziu o quadro de desigualdades na parte sul do continente, bem como
ressaltar a necessidade de garantias de segurança para seus membros perante os ataques geoeconômicos
oriundos do período que Harvey (1992) classifica de capitalismo flexível. A América do Sul enfrenta,
ainda no século XXI, os problemas identificados por Galeano (1978), em que no momento da
independência dos países latino americanos, faltava uma comunidade econômica capaz de realizar a
construção de uma nação única.
A ideia de nação única, em tempos pós modernos encontra ainda mais barreiras, podemos
pensar num projeto comum dos povos sul americanos, e ainda assim temos o desafio de articular o
conjunto de direitos fundamentais a serem preservados pela e para a comunidade. Nesse ponto é que se
levanta o debate sobre os modelos de democracia e participação política que temos nos países sul
americanos.
Ao falar em democracia, é necessário incluir pelo menos, cinco categorias: a repressão,
a negociação, a representação, a participação e a mediação. Esse conjunto de
categorias é indispensável. Sem ela, toda análise sobre a democracia é incompleta.
(CASANOVA, 1986, p. 167)
Articular a comunidade sul americana demanda o esforço coletivo daqueles que detém o poder
político em nome dos seus representados, para superar os interesses exclusivos e sedutores do mercado
mundo, em prol de uma composição que se fortaleça internamente dando garantias de direitos. Tais
direitos só se podem se realizar dentro da democracia, mas numa democracia diversa daquela que
historicamente se impôs à América do Sul, que persegue, explora e violenta os povos e nações em
nome da liberdade. Esse modelo, segundo Galeano (1978) promoveu a sangria, as desigualdades sociais
e a miséria na América Latina.
Os riscos que se tornaram moda na nova conjuntura internacional, deriva da demanda
consumista que produz conceitos e modelos, disso a formação de uma comunidade deve zelar para que
os vínculos fraternos dos povos sul americanos não sejam vistos, como ressalta Bauman (2003) como
comunidade de fracos. E ainda, que não se promova um ideal comunitário estético que se desvincule de
qualquer proposição de longo prazo.
É fato que o Consenso de Washington e suas políticas intervencionistas na América do Sul
fracassaram, mais por resistências do que por projetos articulados entre os países, Martins (2010).
Mesmo assim, o México que outrora seria um membro fundamental para composição de um bloco
latino americano aderiu ao Bloco do Norte, redesenhando o cenário, em que a América do Sul ganha
uma territorialidade específica no jogo geopolítico econômico global.
Ainda assim, se faz importante destacar que só se constituirá uma comunidade de fato se
houver autonomia para os sujeitos sociais que atuam no cotidiano de cada nação, isso significa
igualdade de direitos políticos, representação e participação.
[...] igualdade de direitos não significa, na verdade, uma igualdade de fato: sempre
haverá os mais fortes e os mais fracos, os mais ricos e os mais pobres, os mais belos e
os mais feios; a igualdade política é a regra do jogo, não seu resultado. (TODOROV,
1999, p. 228)
Dessa forma, não é o singular que determina o objetivo do todo, mas a política representada de
forma igualitária por seus agentes representativos que orientam os resultados do projeto comum.
Respeitar a heterogeneidade existente na América do Sul é fundamental para que não se proponha
modelos ideias a serem transpostos de um lugar para o outro, a ideia de descontruir as fronteiras em
nome da alteridade reescrevendo a nossa história em comum de acordo com suas particularidades é o
primeiro passo.
Qualquer ideia de utopia, significa romper com o real, no sentido do que existe e está em
hegemonia no plano político, econômico e social. Assim, a utopia se apresenta como um “sonho
possível”. Dessa forma, a utopia de uma América do Sul enquanto comunidade real pode ser sonhada e
imaginada pelos atores políticos e sociais no século XXI.
A identidade de projeto definida por Castells (1996) carrega em seus pressupostos um tanto de
utopismo, já que depois da resistência o projeto comum pode criar a unidade com fins políticos a serem
alcançados. É nesse ponto que a utopia alimenta a própria realidade, já que desafia o velho ao novo, o
conhecido pelo inédito. Assim, Szacki (1972) afirma que o utopista não aceita a mera possibilidade
escolhas entre o “ou e ou”, sempre impostas pela análise das circunstâncias do possível.
Se como observado por Bauman (2003) vivemos no espectro da incerteza, vivemos no reino da
utopias possíveis. Do mesmo modo, se temos uma concepção de que a modernidade chegou ao seu
limite, como nos diz Santos (1997), há que se apostar em novas organizações e instituições políticas
possíveis.
A utopia é uma recusa da absolutização das divisões políticas atuais, é uma tentativa de
recomeçar de novo o debate sobre a forma de sociedade. A escolha entre duas
variantes da realidade é substituída pela escolha entre a realidade e o ideal... (SZACKI,
1972, p. 99)
Retomando a ideia de Szacki (1972), confirmada por Lowy (2000) temos que para além das
imposições do sistema mundial globalizado e flexível, em que os mecanismos de exploração e
degradação ambiental e humana se renovam, as alternativas também sofrem o mesmo processo.
Recuperando Castells (1999), é preciso conectar os projetos alternativos num sistema de rede, em que o
diálogo seja compromisso multilateral, e aplicar tais perspectivas à América do Sul seriam uma aposta
para uma nova agenda para construção de uma comunidade sul americana alternativa.
Rede é um conjunto de nós interconectados. Nó é o ponto no qual uma curva se
entrecorta... Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada,
integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja,
desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação... Redes são
instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na inovação,
globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores e empresas
voltadas para a flexibilidade e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e
reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de
novos valores e humores públicos; para uma organização social que vise a implantação
do espaço e invalidação do tempo. (CASTELLS, 1999, p. 498)
Em análise a América do Sul continua a despertar interesse dos gigantes econômicos, tanto dos
setores políticos, como dos empresários, visto que detêm reservas importantes para continuidade do
próprio sistema capitalista. Explorar essas possibilidades por outro viés é o desafio para a comunidade
sul americana, pois cair na lógica da exploração, entregando tais recursos ao mercado é trair novamente
os interesses dos povos e nações sul americanas, como ocorrera na história segundo Galeano (1978).
As alternativas já existem, os ideais estão postos e como e um deles reside no ecossocialismo, os
elementos constituintes da identidade ecossocial a cada dia ganham mais adeptos e a aposta numa
agenda em torno de tal modelo político, social e econômico tende a aproximar os relutantes.
Um novo sistema produtivo e tecnológico, explorando o desenvolvimento e o recurso
a fontes de energia renováveis, especialmente aquelas que não ameaçam a vida
humana ou agridem o meio ambiente natural. O princípio segundo o qual o socialismo
não pode primeiro tomar posse do aparelho de Estado burguês e usá-lo para seus
próprios fins, mas tem que destruir a velha estrutura e construir uma nova, aplica-se
também, embora de forma diferente, ao aparelho técnico produtivo existente. A
forma atual do maquinismo não é a única possível. Ele pode e deve ser radicalmente
transformado, substituído por métodos mais avançados e menos destrutivos de
produção. (LOWY, 2000, p. 128)
Considerações finais
Os debates em torno da manutenção do Mercosul ou até de sua extinção são cada vez mais
acalorados, sobretudo, nos setores conservadores que defendem a adesão à blocos mais hegemônicos.
Ampliar o Mercosul se apresenta como necessidade, mas não somente de viés econômico, como
exposto é preciso uma alternativa para a atual conjuntura global. Expandir sem construir uma história
que dê conta da análise dos elementos comuns aos povos sul americanos rememorando os processos
de espoliação vividos no continente, contribui diretamente para relegar à região uma condição
subalterna no panorama mundial.
Debater a democracia temos operando na América do Sul, em que os representados não se
sentem assim pelos representantes, em que há repressão ao invés de participação, em que a sociedade
civil não tem poder de negociação política perante os interesses internacionais. Dessa forma, falar em
segurança e direito significa resgatar a autonomia política dos sujeitos sociais sul americanos. A pós
modernidade denuncia que a modernidade não cumpriu suas promessas, e a América do Sul é exemplo
disso, sempre buscou a modernidade sem ter entrado de fato nela.
A utopia da comunidade sul americana, que em outrora, teve viés latino americano, se coloca
como possibilidade real, desde que seus agentes políticos e sociais consigam compor identidades de
projeto, que consigam a interconexão em rede, e que as alternativas visem a superação das
desigualdades sociais que produzem miséria, a destruição sistemática da natureza, que dê maior
participação política aos cidadãos, que estabeleça uma agenda comum para construção de nossa história
do ontem ao hoje, apontando para um horizonte em que uma nova América do Sul seja possível.
Referências
BAUM, Gregory. A modernidade: perspectiva sociológica. In: Vários Autores. A modernidade em discussão.
Petrópolis: Vozes, 1992.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
_________________. Modernidade e Ambivalência. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
_________________. Identidade: entrevista a Benedetto Vechi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
BENJAMIM, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
CASANOVA, Pablo Gonzáles. Exploração, colonialismo e luta pela democracia na América Latina. In Revista
Tareas, 63, Panamá, jan./1986.
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. v. II, São Paulo: Paz e Terra, 1996.
_________________. A sociedade em rede. Vol.1. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
GIDDENS, Antony. As consequências da modernidade. 2ª Ed. São Paulo: EDUNESP, 1991.
GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deterioriada. 4ª Ed. Rio de Janeiro: LCT, 2012.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
E
ste paper apresenta algumas considerações preliminares acerca da formação continuada de
professores a partir da leitura da legislação e de alguns indicadores sociais para apontar os
desafios postos à educação diante da universalização do acesso à educação. Recorro ao
acúmulo das minhas experiências profissionais como professora na educação básica, professora tutora
na pós-graduação e assistente social que em vinte e três anos desta sempre manteve uma relação com a
educação dentro desse exercício.
O Brasil em 2009 tinha 20,3% de analfabetos funcionais segundo dados do IBGE – Síntese dos
Indicadores Sociais – Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira – 2010. E taxa de
analfabetismo em 2011 era de 8,6%, segundo o IBGE – Síntese dos Indicadores Sociais – 2012.
Libâneo (2011) expressa o desafio destinado aos professores de aprender a pensar e a operar a
partir da comunicação permeada por tecnologias da comunicação e informação. Eu diria que é
insuficiente que os professores sejam requisitados sozinhos a elaborar e a intervir no processo
comunicacional. Outros profissionais precisam se aproximar daqueles que compõem os dados
alarmantes dos indicadores de analfabetismo e analfabetismo funcional.
Minhas indicações perpassam dúvidas e certezas quanto a qualificar e atualizar a distância na
pós-graduação diante de uma realidade caótica que exige mais que o empenho dos profissionais
envolvidos: professores objeto dos cursos de formação continuada e professores coordenadores e
tutores. Qual o acesso à biblioteca nas localidades de forma a democratizar o acesso diversificado a
material de leitura (livros, fichas de leitura, gibis, revistas, etc.) e a laboratórios equipados com
tecnologias, em que se tenham profissionais bibliotecários e da área da computação para dinamizar e
supervisionar atividades pedagógicas. A educação como política pública diante de números exorbitantes
não pode focar ações de uma única área. Como pensar a interdisciplinaridade?
A grande responsabilidade da escola é articular a cultura clássica com as novas
tecnologias, compondo um currículo denso e significativo para a formação das novas
gerações. E o grande desafio lançado às escolas na atualidade é como realizar essa
tarefa de modo adequado.” (SAVIANI, 2010 p.179).
As palavras a seguir tentam apontar uma introdução a como pensar uma ação pedagógica que
contemple o que revelam os indicadores sociais expressando a reciprocidade e a complementaridade de
diferentes disciplinas (SEVERINO, 2010, p.11). “A pluralidade dos caminhos do pensar vai também
produzir a suposta multiplicidade dos aspectos do real [...].” (SEVERINO, 2010, p.13), propiciando que
se desdobre em ações não fragmentadas. Considero aqui que o múltiplo das situações educacionais com
as quais se depara o professor, um diverso caótico, se situa no plano da aparência. A fazer tem-se, no
processo de aproximação do real representado pelos dados numéricos da educação que expressam a sua
multiplicidade qualitativa dum universo de problemas, a transposição da aparência esta reduzida à
unidade do sistema explicativo, uma síntese através da interdisciplinaridade.
O Decreto Nº 5.800, de 8 de junho de 2006 aborda a territorialidade como foco principal ao
definir a expansão e a interiorização dos cursos para redução das desigualdades de acesso a formação
continuada dos professores. A finalidade de ampliar a formação dos professores no que tange o alcance
na dimensão da territorialidade requer que se pense o universo que se intenciona alcançar tanto de
professores como de estudantes, e estes a se qualificar e quantificar na verdade numérica.
A educação a distância na formação continuada dos professores como estratégia de abrangência
e de alcance territorial e numérico comporia com efetividade o conjunto das ações direcionada aos
problemas educacionais brasileiros? Não tenho a intenção de trabalhar tal problema dado à dimensão
do texto que proponho a escrever nesse momento. Meu objetivo é formular algumas questões
introdutórias dentro da temática da formação continuada a partir da óptica de não ser direcionada
exclusivamente ao professor uma ação que abarque o que pertence a outras disciplinas no que tange a
solução dos problemas educacionais. Defendo aqui que a finalidade de ampliar a formação continuada
dos professores no que tange o alcance dentro da perspectiva da territorialidade requer que se pense
também a partir da perspectiva da interdisciplinaridade.
Transcrevo a distribuição por região geográfica por região: praticamente metade das IES
(48,9%) está localizada na região Sudeste. Constatamos que a outra metade das IES (51,1%) está
distribuída da seguinte forma: 18,3% no Nordeste, 16,5% no Sul, 9,9% no Centro-Oeste e 6,4% no
Norte.
Fonte: MEC/Inep
dos 4 anos de idade fato que amplia o universo das crianças que estão fora da escola nesta faixa de
idade.
Reconhecer no professor uma unidade que estabelece conexões intelectivas, mas que participa,
partilha, propõe produz potencializa-se concomitantemente com todos na perspectiva de
interdisciplinaridade. Sua função pedagógica possibilita a análise e síntese dos problemas pedagógicos e
educacionais, sem, contudo definir uma proposta de exclusividade de atuação. Pensar a biblioteca com
o profissional de Biblioteconomia e o laboratório de informática com o profissional de Computação é
começar a propor uma política educacional que considere a dinâmica societária contemporânea em que
crianças, adolescentes e jovens defendem o seu tempo, a inovação tecnológica concomitantemente ao
saber, ao pensar e ao transformar, pois estes são os protagonistas do futuro.
Há mediações congruentes à educação permeadas pelas tecnologias da informação e comunicação.
Com as múltiplas possibilidades direcionadas à escola, inquestionável local de apropriação do saber que
no reconhecimento dos conteúdos, da aprendizagem venha aproximar a arte e a cultura sem medo de
que algo se perca. Somente se ganha quando se rompe com o tradicional, com o processo pedagógico
que não contempla as exigências contemporâneas apresentadas pelos discentes no contexto
democrático de participação na formulação do projeto político pedagógico.
Recorrendo a tendência progressista afirmo a partir das considerações de Libâneo (2011) que sendo a
escola espaço de sociabilidade e pertencente à sociedade enquanto recorte desse todo social deve viver
intensamente o debate e a cultura da sua sociedade de referência e não se constitui como algo a parte
distanciada da realidade e desconectada da verdade propagada. A referência da escola é espaço-
temporal.
A persistência de continuidade e o desafio da ruptura se movimentam na formação continuada de
professores. Temos a cultura erudita e a cultura popular, temos as forma de expressão contemporânea.
Estamos diante dos livros, das letras, da gramática e simultaneamente das tecnologias de informação e
comunicação. E na sequência altos índices de analfabetismo funcional, paralelamente à apresentação
das múltiplas possibilidades de acesso pela web. E assim, ir do saber ao engajamento político para o
exercício da cidadania e consolidação de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática. A
contradição é a submissão de todos à mercadoria porque o instrumento o aparato tecnológico é objeto
de consumo inerente ao contexto da produção e regras do mercado definidas pelo mercado financeiro e
o Estado. É contraditório no que tange à superação das desigualdades sociais e as diferenças de
território.
“Há um confronto do aluno entre sua cultura e a herança cultural da humanidade, entre seu modo de
viver e os modelos sociais desejáveis para um projeto novo de sociedade.” (LIBÂNEO, 2011, p. 46)
Seria exclusivamente o professor o único profissional a transitar nesse universo de responsabilidades?
O mapa a seguir apresenta como estão concentradas as pessoas segundo a migração no Brasil
definindo a diversidade cultural dentro das cinco regiões. O projeto político pedagógico requer que se
incluam todas as diferenças culturais não exclusivamente para difusão de culturas, mas para
identificação como a vida do outro, para incorporação que não pertence sendo próprio do outro e que
se mistura, dando a possibilidade de ser, cidadão emancipado.
A arte é necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo
[...]. A arte em todas as suas formas [...] comum a todos e elevando todos os homens
acima da natureza, do mundo animal. A arte nunca perdeu inteiramente esse caráter
coletivo, mesmo muito depois da quebra da comunidade primitiva e da sua
substituição por uma sociedade dividida em classes. (FISHER, 1987, p. 20-47).
O mapa a seguir apresenta a origem do imigrante, o que gera a circulação das culturas internamente e
a diversidade cultural. Os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília agrupam o maior número de
migrantes vindos da Região Nordeste. Os estados do Espírito Santo, Goiás, Tocantins, Mato Grosso,
Rondônia agrupam de 50% a 58,5% da população não natural.
A leitura e a diversidade cultural com a interface das mídias deveriam ser partilhadas pelos
professores das diversas disciplinas (o artista plástico e o músico aqui se incluem) juntamente com os
profissionais da Biblioteconomia, da Computação e da Comunicação, com a disponibilização de salas
de mídia, salas de produção e studio de gravação. Somente assim proporcionaríamos a transformação
da educação eliminando o cuspe e o giz que tanto colabora para desaparecer aqueles que certamente
não se acerta com o tradicional pedagógico.
Apontamentos para conclusão
Referências
BRASIL. Decreto nº 5.800, de junho de 2006. Dispõe sobre o Sistema Universidade Aberta do Brasil – UAB.
FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.
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Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadores
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Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Sintese_de_Indicadores_Sociais_2012/SIS_2012.pdf.
Acesso em: 24 jul. 2013.
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Edições Loyola, 2011.
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continuada de professores; contribuições para o debate. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2012.
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instituições de ensino participantes do Sistema Universidade Aberta do Brasil, vinculado a CAPES e à Secretaria
de Educação a Distância do Ministério da Educação, nos exercícios de 2008/2009.
SAVIANI, D. Interlocuções pedagógicas; conversa com Paulo Freire e Adriano Nogueira e 30 entrevistas sobre
educação. São Paulo: Autores Associados, 2010.
SEVERINO, A. J. Subsídios para uma reflexão sobre os novos caminhos da interdisciplinaridade. In: SÁ, J.L.M.
de (org.). Serviço Social e interdisciplinaridade; dos fundamentos filosóficos à prática interdisciplinar no ensino,
pesquisa e extensão.8ª ed. São Paulo: Cortez Editora,2012, p.11-21.
UNESCO. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Representação no Brasil.
Alcançar os excluídos da educação básica; crianças e jovens fora da escola no Brasil. Série Debates ED, n.3,
abr/2012.
Wilson Vieira1
O
objetivo deste trabalho é analisar, em caráter introdutório, as aproximações do
pensamento de Celso Furtado com a teoria da dependência no decorrer da década de
1970, tendo a hipótese de trabalho de que suas reflexões se aproximam dessa teoria,
principalmente da sua vertente marxista, denotando uma transformação de seu pensamento sobre a
relação entre a construção da nação e o binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento.
Portanto, a fim de atingirmos o fim para o qual é proposto este trabalho, é necessária uma breve
exposição da metodologia de análise adotada, a qual se utiliza da sociologia do conhecimento de Karl
Mannheim e da teoria da linguagem política de John Pocock, para que possamos compreender o
contexto e a linguagem utilizados por Furtado e pelos teóricos da dependência, conforme expomos nos
parágrafos seguintes.
A sociologia do conhecimento de Karl Mannheim, exposta primeiramente no livro Ideologia e
Utopia (1972) e posteriormente no livro Sociologia da Cultura (1974), possui as seguintes características:
I) Ela analisa o pensamento, o conhecimento, como uma construção coletiva, ou seja, está
sempre inserido num contexto concreto de uma situação histórico-social. Portanto, nunca parte de um
indivíduo isolado, mas sim de determinados grupos humanos que buscam respostas aos seus problemas
e situações que vivem em comum.
II) Ela integra os modos de pensamento concretamente existentes ao contexto da ação coletiva,
pois é através desta que se descobre inicialmente o mundo num sentido intelectual.
1Professor da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e Pós-Doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 816
O período compreendido entre 1964 e 1980 é marcado por grandes transformações no Brasil e
no mundo. Entre 1930 e 1964, observamos o desenvolvimento da Industrialização por Substituição de
Importações (ISI), que pode ser subdividida, segundo Mello (1982), em industrialização restringida
(1930-1956), caracterizada pela predominância do Departamento III da economia (bens de consumo
não duráveis) e em industrialização pesada (1956-1980), caracterizada pela implantação e
desenvolvimento do Departamento II (bens de consumo duráveis) e do Departamento I (bens de
capital).
No Brasil, frente aos reflexos da instabilidade econômica e política devido ao quadro de
estagnação e inflação desde 1962 (como herança negativa do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek,
apesar de ter conseguido implantar o Departamento II) e ao conturbado mandato de João Goulart, o
qual teve um período parlamentarista (como solução à sucessão de Jânio Quadros, que renunciou ao
mandato apenas oito meses após ter assumido em 1961) seguido de um período presidencialista com
radicalizações à esquerda e à direita e tentativa de recuperação da economia através do Plano Trienal,
elaborado por Celso Furtado, mas que mal saiu do papel, observamos a consumação de um golpe civil-
militar em 1964, ou seja, um golpe de Estado liderado por forças da direita e pelos militares e que
contou com o apoio decisivo dos EUA, dado o contexto de guerra fria com a então URSS. Esse golpe
foi o primeiro de uma série dos que ocorreram na América Latina a partir de então e que instauraram
ditaduras.
No caso brasileiro em particular, a ditadura militar perdura por quase 21 anos (até 1985) e
incialmente, no período 1964-1967 implementa o Plano de Ação Econômica Governamental (PAEG),
que se propôs a combater o quadro de estagnação econômica e inflação (estagflação) através de duas
frentes:
I) Conjuntural: aplicação de medidas de política econômica de caráter ortodoxo (inclusive
arrocho salarial), variando somente na intensidade, ou seja, de tipo stop-and-go, a fim de promover a
retomada do crescimento econômico com o combate à inflação, além da criação da correção monetária.
II) Estrutural: reforma profunda do sistema econômico nacional através das seguintes medidas:
a) reforma do sistema financeiro nacional com a criação do Banco Central do Brasil (BACEN), do
Conselho Monetário Nacional (CMN) e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM); b) fim da
estabilidade no emprego do setor privado após dez anos de permanência na mesma empresa e criação
do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Programa de Integração Social (PIS) e do
Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PASEP); c) criação do Sistema Financeiro
da Habitação (SFH) e do Banco Nacional da Habitação (BNH); d) reforma tributária, criando a
estrutura tributária cuja maior parte ainda vigora.
O resultado de tais medidas é percebido na queda das taxas de inflação e na mudança dos
rumos da política econômica a partir de 1967, quando Delfim Netto assume o Ministério da Fazenda e
defende a retomada de um ritmo mais vigoroso de crescimento econômico através do argumento de
que a manutenção de políticas econômicas de caráter recessivo poderiam fazer a inflação voltar a
crescer, dada a alta capacidade ociosa da economia e os altos custos em mantê-la, ou seja, a inflação que
poderia voltar a crescer seria caracterizada como de custos.
Portanto, tendo em vista tal diagnóstico, inicia-se um período de vigoroso crescimento
econômico que ficou conhecido como “milagre” econômico brasileiro e que durou até 1973 sem ter
completado, contudo, a implantação do Departamento I, além de ter se caracterizado como
concentrador de renda e com arrocho salarial.
Porém, devido ao primeiro choque do petróleo em 1973 e ao esgotamento da capacidade
produtiva, o período do “milagre” chega ao fim e em 1974 o governo Geisel se vê diante de duas
opções: implantar medidas de contenção da atividade econômica ou avançar na ISI, a fim de terminar a
implantação do Departamento I da economia, ou seja, internalizando-o, a fim de superar a dependência
externa dos bens de capital.
O governo Geisel (1974-1979) optou pela segunda alternativa, implantando o II Plano Nacional
de Desenvolvimento (II PND), dentro do projeto “Brasil potência”, cujo objetivo era tornar o país
uma potência, pelo menos em nível regional, além de tomar parte do movimento dos países não
alinhados, procurando se distanciar um pouco da esfera de influência dos EUA.
Sobre o II PND, mais especificamente, observamos que os investimentos foram
predominantemente das empresas estatais, com pouca ou nenhuma participação das empresas
transnacionais, dada a conjuntura internacional adversa, e pouca participação das empresas privadas
nacionais, que se opuseram a tal plano, por considerá-lo extremamente intervencionista. Além desses
fatos, o financiamento se deu através de endividamento externo.
Contudo, a situação de subdesenvolvimento não seria superada, dado caráter de manutenção da
dependência desse plano, por copiar simplesmente o paradigma tecnológico do centro e também pela
crise econômica que o Brasil passa a sofrer devido ao segundo choque do petróleo em 1979 e à crise da
dívida externa a partir de 1980, dado aumento dos juros internacionais2.
2 Para mais detalhes sobre as transformações econômicas no Brasil entre 1964 e 1980, ver Giambiagi et al. (2011).
3 Para mais detalhes ver Bielschowsky (2000).
4 Nome pelo qual ficou conhecido o texto El Desarrollo Económico de la América Latina y Algunos de sus Principales
uma pequena interrupção para assumir o Ministério do Planejamento entre setembro de 1962 e junho
de 1963 a fim de elaborar o Plano Trienal.
No período da SUDENE, observamos em Furtado uma reflexão de caráter mais
interdisciplinar, nas quais observamos um otimismo com o processo de industrialização no Brasil,
apesar dele observar suas primeiras dificuldades na década de 1960, além de uma elaboração que
podemos dizer ser um pouco diferente daquela de Prebisch sobre a relação desenvolvimento-
subdesenvolvimento. Essas reflexões estão presentes nas obras Desenvolvimento e Subdesenvolvimento
(1961), A Pré-Revolução Brasileira (1962) e Dialética do Desenvolvimento (1964).
Podemos afirmar que as reflexões de Furtado estão inseridas no grande debate sobre nação e
desenvolvimento econômico ocorrido nesse período. Observamos que ele se posiciona de maneira
contrária à teoria do desenvolvimento econômico elaborada no centro5 as quais veem o
subdesenvolvimento como uma etapa anterior ao desenvolvimento, bastando, portanto, para superá-lo,
seguir o caminho feito pelos países desenvolvidos. Na qualidade de membro da Cepal na década de
1950, ele compartilha da posição de Raúl Prebisch, que observa o subdesenvolvimento como o outro
lado do processo de desenvolvimento cuja superação passaria pela industrialização planejada pelo
Estado e não como uma etapa anterior ao desenvolvimento.
Dentro do debate sobre nação mais especificamente, Furtado está inserido, no debate mundial,
naqueles que chamam a atenção para o processo peculiar de construção das nações do Terceiro Mundo,
que, numa análise modernista, procura seguir os valores da nação a partir da Revolução Francesa, mas
através de um caminho próprio, com ampla participação do Estado no planejamento para a
industrialização, num modelo socialdemocrata6. Essa posição vai de encontro àquela que via a
construção da nação no Terceiro Mundo através de um mero transplante do processo vivido no
Primeiro Mundo sem levar em conta as especificidades da periferia7.
No Brasil em especial, Furtado toma parte no rico debate que ocorre sobre nação e
desenvolvimento, se alinhando entre os desenvolvimentistas do setor público nacionalista. Destacamos
os seguintes nomes nesse debate: Caio Prado Júnior, Ignácio Rangel, Partido Comunista Brasileiro
(PCB), Roberto Simonsen, Eugênio Gudin, Octávio Gouvêa de Bulhões, Roberto Campos, Instituto
Superior de Estudos Brasileiros (ISEB)8.
Nesse período, é clara a identificação da construção da nação com o projeto de
desenvolvimento econômico, entendida por Furtado como processo de unificação do espaço
econômico nacional, através da valorização do mercado interno via políticas conduzidas pelo Estado, as
quais garantiriam o vínculo de solidariedade entre as regiões brasileiras, num contexto político
semelhante ao da socialdemocracia europeia.
Logo após o golpe militar de 1964, Furtado, cassado de seus direitos políticos pelo Ato
Institucional nº 1, parte para o exílio, primeiramente no Chile, depois para os EUA e finalmente para a
França (em 1965), onde assume cargo de professor na Universidade de Paris (Sorbonne). Nesse
período, observando a situação de estagnação da economia brasileira e o poder hegemônico dos EUA
sobre a América Latina, Furtado elabora um diagnóstico e um prognóstico pessimista caso nada fosse
feito para modificar tal situação, fato que o leva a propor alternativas, como observamos em
Subdesenvolvimento e Estagnação na América Latina (1966), Um Projeto para o Brasil (1968) e Brasil: da República
Oligárquica ao Estado Militar (1968). Nesse período, destacamos as seguintes inovações na sua análise, tais
como: i) o conceito de “efeito de demonstração”, isto é, imitação, pelas classes pobres dos países
periféricos, do padrão de consumo das suas classes médias, e destas, do padrão de consumo das classes
médias dos países centrais; ii) a percepção de que a assimilação da tecnologia moderna continuaria
acarretando efeitos negativos sobre a taxa de criação de novos empregos, além do aumento da
concentração de renda; iii) inclusão da análise sobre a transnacionalização do capital, mostrando a sua
penetração na periferia, acompanhada de desequilíbrios estruturais de difícil correção (maiores
disparidades de níveis de vida entre grupos de população e rápido aumento do desemprego aberto e
disfarçado). Esses novos pontos de análise se constituiriam na base da sua reflexão sobre a
“modernização” a partir da década de 1970.
Na verdade, as reflexões de Furtado após 1964 reforçam o que ele já havia percebido a partir de
1960, ou seja, de que a industrialização não conseguiu equacionar as questões sociais. Tal constatação
leva o referido teórico, juntamente com Prebisch9, a fazer sua autocrítica e propor a inclusão da
necessidade de políticas sociais e de distribuição de renda para sair do subdesenvolvimento e, assim,
construir a nação.
Nesse período também observamos o surgimento da teoria da dependência nas suas duas
vertentes, a saber:
I) Vertente marxista: composta por Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos e Vânia
Bambirra (principais membros) os quais criticam a tese da estagnação defendida por Furtado e veem
uma nova fase do subdesenvolvimento, com industrialização e manutenção da dependência da periferia
frente ao centro. Segundo Santos (2000: 134)10:
Combati em 1964 todas as teses estancacionistas que viam na política de estabilização
monetária de Roberto Campos a destruição da indústria brasileira. Ao contrário,
afirmei que a política de estabilização deveria levar a uma nova fase de crescimento,
baseada contudo num nível mais alto de produtividade, concentração econômica,
monopolização e estatização (...).
consumo duráveis (além da minoria proprietária de bens de capital, com inclusão da classe média)
através do financiamento do consumo em suas várias formas (subsídios ao consumo e transferências de
títulos de propriedade e de crédito). Tais medidas foram tomadas para evitar dificuldades da retomada
do processo de industrialização (depressão predominante em importantes segmentos da atividade
econômica) que certamente ocorreriam se a concentração de renda continuasse a ser estática.
No livro O Mito do Desenvolvimento Econômico (1974), Furtado busca aprofundar o significado da
“modernização” para os países subdesenvolvidos. Podemos observar isso em alguns pontos listados
abaixo.
I) A “modernização” está inserida no processo de industrialização da periferia, a qual não se
orienta para formar um sistema econômico nacional, mas sim para completar o sistema econômico
internacional.
II) A industrialização periférica conta, de maneira cada vez mais forte, com a presença das
grandes empresas transnacionais.
III) A partir das modificações estruturais ocorridas no centro (transnacionalização das grandes
empresas e financeirização crescente do capital), principalmente a partir da segunda metade da década
de 1960, observamos as seguintes consequências: a) processo de unificação dos países centrais, o qual
levou a uma intensificação do seu crescimento; b) ampliação considerável do fosso entre o centro e a
periferia; c) as relações comerciais entre países centrais e periféricos (mais ainda do que entre os países
do centro) se transformaram progressivamente em operações internas das grandes empresas.
IV) A modernização é uma manifestação de um mimetismo cultural da periferia.
V) A partir dos pontos listados acima, Furtado (1974: 81-82), então, define a “modernização”
da seguinte maneira:
Chamaremos de modernização a esse processo de adoção de padrões de consumo
sofisticados (privados e públicos) sem o correspondente processo de acumulação de
capital e progresso nos métodos produtivos. Quanto mais amplo o campo do
processo de modernização (e isso inclui não somente as formas de consumo civis, mas
também as militares) mais intensa tende a ser a pressão no sentido de ampliar o
excedente, o que pode ser alcançado mediante expansão das exportações, ou por meio
de aumento da “taxa de exploração”, vale dizer, da proporção do excedente no
produto líquido. (...). Daí que apareçam crescentes pressões, ao nível da balança de
pagamentos, quando o país atinge o ponto de rendimento decrescente na agricultura
tradicional de exportação e/ou enfrenta deterioração nos termos de intercâmbio. (...).
A importância do processo de modernização, na modelação das economias
subdesenvolvidas, só vem à luz plenamente em fase mais avançada quando os
respectivos países embarcam no processo de industrialização; mais precisamente,
quando se empenham em produzir para o mercado interno aquilo que vinham
importando. (...). Ao impor a adoção de métodos produtivos com alta densidade
de capital, a referida orientação cria as condições para que os salários reais se
mantenham próximos ao nível de subsistência, ou seja, para que a taxa de
exploração aumente com a produtividade do trabalho.
criação de uma nova langue na parole, ou seja, nas expressões de Pocock, inovação no debate sobre o
binômio desenvolvimento-subdesenvolvimento através das elaborações teóricas da Cepal, de Furtado e
da teoria da dependência, tal como podemos observar em expressões como deterioração dos termos de troca,
centro, periferia, dependência, dentre outras.
Furtado, com sua análise sobre a “modernização”, nos mostra que os desafios para a construção
da nação são cada vez mais complexos, fato que o leva a trabalhar numa perspectiva cada vez mais
interdisciplinar e com ênfase nas variáveis externas, dada a força que possuem na conformação das
decisões que são tomadas no plano interno. Por isso que as saídas para a situação do
subdesenvolvimento passam pelo repensar o desenvolvimento na periferia numa perspectiva de busca
de soluções e ações de caráter conjunto entre esses países.
A partir das suas elaborações teóricas na década de 1970, Furtado continuaria refletindo em
obras posteriores as alternativas para o Brasil diante dos desafios que iam surgindo para a nação
brasileira: a crise econômica da década de 1980, como observamos em O Brasil Pós-“Milagre” (1981) e os
riscos da adesão ao neoliberalismo, como observamos em Brasil: A Construção Interrompida (1992).
A teoria da dependência desdobra-se nos seguintes caminhos: a vertente marxista da teoria da
dependência acopla-se à teoria do sistema mundo e a vertente do desenvolvimento dependente e
associado defende a globalização como uma atualização para o desenvolvimento da América Latina.
Referências
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com acréscimo do capítulo 8: 1977).
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Campinas: IFCH/UNICAMP, 2012 (Dissertação, Mestrado em Ciência Política).
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_______. A economia brasileira. Rio de Janeiro: Editora A Noite, 1954.
_______. Uma economia dependente. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956.
_______. Formação econômica do Brasil. 34. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007 (1ª edição: 1959).
_______. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.
_______. A pré-revolução brasileira. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1962.
Resumo
O
presente artigo pretende analisar como o princípio constitucional da cooperação
internacional aplicado em matéria tributária pode repercutir em progresso econômico para
os países do Mercosul. Nessa intenção, pretende demonstrar que a inserção dos países-
membros do Mercosul em medidas de cooperação internacional tributária pode ser meio eficaz de
aproximação comercial. Parte da compreensão dos sistemas tributários dos países-membros do
Mercosul e averigua uma possível harmonização tributária, sugerida desde o tratado de Assunção.
Pondera, ainda, sobre tal dificuldade, ao se considerar as diversidades dos sistemas tributários
mercosulinos. Esse estudo pretende investigar a estreita relação entre o Direito e a Economia, tomando
por base o Direito Internacional como instrumento de modificação e integração social, econômica e
política.
Resumo
O
artigo revisita o debate em torno do relativismo e do universalismo cultural, por meio do
recurso a autores de referência e procurando atualizá-lo, tendo como foco as discussões
relacionadas a gênero, atualmente existentes no Brasil. Concentra-se na posição
contingente exposta por Richard Rorty, com o que o autor assume uma posição de equidistância em
relação aos universalismos e aos relativismos tradicionais.
Resumo
O
presente artigo pretende analisar os meios disponíveis de solução de controvérsias no
Mercosul. Com tal propósito, buscará detalhar as previsões do protocolo de arbitragem,
bem como, dar destaque às decisões contemporâneas. Pretende-se compreender se a
colisão do bloco, incluindo a aproximação comercial entre todos, depende também da credibilidade e
confiança atribuída aos seus meios de solução de controvérsias. Definirá todo o sistema de solução de
controvérsias no âmbito do Mercosul, partindo da análise do Protocolo de Brasília até a análise do
Protocolo de Olivos. Delineará a organização do Tribunal Arbitral ad hoc do Mercosul, no marco do
Protocolo de Brasília. Apresentar-se-á uma síntese do direito aplicado pelo Tribunal Arbitral, fazendo
menções às controvérsias tramitadas no marco do Protocolo de Olivos. Ao final, em considerações
finais, tecer-se-ão conclusões acerca de sua efetividade.
Introdução
E
sse estudo visa comparar dados socioeconômicos de alguns países da América do Sul com
outros da África. Foram escolhidos os seguintes: Brasil, Peru, Colômbia, Venezuela, África
Do Sul, Angola, Moçambique e Nigéria. Esses países são tidos como subdesenvolvidos ou
em desenvolvimento e foram escolhidos por apresentarem características históricas semelhantes, por
terem sido colônias de exploração de recursos naturais e outros pelos europeus e outras nações.
O conceito de subdesenvolvimento pode ser depreendido por meio de seu oposto, o do
desenvolvimento. Para Bresser-Pereira (2006) o desenvolvimento econômico é um fenômeno histórico
que é caracterizado pelo aumento sustentado da produtividade ou da renda per capita, acompanhado de
acumulação de capital bem como de incorporação de progresso técnico. Já Oliveira (2002) assevera que
o desenvolvimento deve ser encarado como um processo complexo que é, com mudanças e
transformações intervenientes, seja na ordem econômica, política e, nas palavras do autor,
principalmente humana e social. O autor acrescenta que desenvolvimento é o crescimento convertido
para satisfazer as necessidades humanas, tais como: saúde, educação, transporte, habitação, alimentação,
lazer, entre outras. Desse modo, os países que não observam esses processos podem ser considerados
como subdesenvolvidos.
Todos esses países, também, são considerados periféricos. A ideia de periferia surge com o
estudo do sistema Centro-Periferia desenvolvida pelo economista argentino Raúl Prebisch Couto
(2007). Para este, o Centro pode ser entendido, de maneira geral, como os países desenvolvidos que
produzem bens manufaturados, e por periferia entende-se os países em desenvolvimento ou
subdesenvolvidos, produtores de bens primários. Ainda de acordo com o autor, o Centro e a Periferia,
resultam do processo histórico da propagação do progresso técnico em escala mundial.
Segundo Bari (2006), o modo de produção colonial tem como consequências o
empobrecimento, o subdesenvolvimento e a imposição cultural. Contudo, nos últimos anos muitos das
ex-colônias portuguesas, francesas e inglesas, após se tornarem países independentes conseguiram
formar sociedades e construir nações que têm apresentado avanços significativos em seus indicadores
socioeconômicos. Tais países foram elevados à categoria de países em desenvolvimento, como é o caso
de Brasil e África do Sul.
No intuito de sintetizar esses avanços a fim de compará-los entre as duas regiões é que se faz
necessário esse estudo. Foram selecionados oito países, quatro sul-americanos e os demais africanos,
conforme citado anteriormente.
A metodologia utilizada foi a exploratória, descritiva e bibliográfica. Os dados foram coletados
das seguintes instituições e organizações: Banco Mundial, IBGE, PNUD e outros. O período analisado
foi entre os anos de 2000 a 2010, sendo que para alguns países foi flexibilizado por dificuldades de
dados.
Os indicadores socioeconômicos escolhidos para analisar e comparar o desenvolvimento entre
os países selecionados foram os seguintes: PIB per capita, IDH, população, educação, saneamento
básico, expectativa de vida ao nascer, mortalidade infantil e consumo de energia elétrica.
5000
4000
3000
2000
1000
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Angola Brasil Colômbia Moçambique
Elaboração própria a partir dos dados do Banco Mundial
3,5
2,5
1,5
0,5
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Angola Brasil Colômbia Moçambique
Nigéria Peru África do Sul Venezuela
Gráfico 3 – Taxa de alfabetização de maiores de 15 anos (% do total) de países selecionados de 2000 a 2010
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Mesmo na África havendo uma redução no número de analfabetos, esse indicador ainda é
preocupante. Em Moçambique, por exemplo, apenas 56% dos indivíduos maiores de 15 anos no ano
de 2010 sabiam ler e escrever.
A taxa de mortalidade infantil, indicador utilizado para medir as condições da saúde infantil ao
fazer uma relação entre a quantidade de crianças nascidas vivas com os óbitos até 1 ano de idade, é
apresentada por meio do Gráfico 4. Ao analisar este gráfico, percebe-se que os países sul-americanos
agrupam-se por possuírem resultados bastante próximos entre si e melhores que os africanos, bastante
elevados. O país africano com melhor taxa, a África do Sul, apresenta um desempenho quase três vezes
pior do que os da América do Sul em média.
Altos índices desse indicador geralmente estão relacionados às condições de saúde, saneamento
(analisado mais adiante) e moradia e das populações onde as crianças nascem.
Gráfico 4 – Taxa de mortalidade infantil (por mil nascidos vivos) de países selecionados de 2000 a 2010
140
120
100
80
60
40
20
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Angola Brasil Colômbia Moçambique
Nigéria Peru África do Sul Venezuela
Destaque para o Peru nessa análise, pois o país apresentou uma redução bastante significativa
em sua taxa de mortalidade infantil, passando de 30,4 para 13,7 em uma década.
Outra variável a ser analisada nessa perspectiva é a expectativa de vida ao nascer, uma vez que a
mortalidade infantil é um dos fatores que a afetam. O Gráfico 5 resume a evolução desse indicador para
os países avaliados e apresenta um resultado interessante: percebe-se que os países africanos e sul-
americanos agrupam-se por continente. O que podemos notar é que os países que compõem cada
grupo apresentam resultados semelhantes, isto é, exibem uma evolução no mesmo nível de
crescimento.
Observa-se que a expectativa de vida está em ascensão em todos os países, e as causas podem
ser relacionadas aos avanços na medicina, melhorias no saneamento, maior preocupação com a saúde,
entre outros fatores.
É interessante notar que a separação clara entre os países nesse quesito reflete a diferença no
grau de desenvolvimento dos países, uma vez que a expectativa de vida é considerada no cálculo de
medidas como o IDH.
75
70
65
60
55
50
45
40
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
Angola Brasil Colômbia Moçambique
Nigéria Peru África do Sul Venezuela
A África enfrenta sérios problemas que fazem com que esse indicador não seja positivo, entre
os quais se destaca a AIDS. De acordo com os dados do Banco Mundial (2013) a prevalência do HIV
na população mundial entre 15 e 49 anos é de 0,8%, enquanto que em países como África do Sul e
Moçambique, esse valor é de 17,3% e 11,3% respectivamente.
Ainda em relação às condições de saúde, é pertinente analisar o saneamento básico, pois o
acesso ao mesmo promove melhora nas condições de vida. O Gráfico 6 mostra o percentual de acesso
da população ao saneamento básico e assim como nos Gráficos 4 e 5, os indicadores dos países sul-
americanos superam aqueles dos países africanos, com exceção da África do Sul, com performance
superior aos demais países do seu continente.
A Venezuela destaca-se nesse segmento por ser o país que possui o maior numero de habitantes
com acesso ao saneamento básico proporcionalmente, com um índice acima de 90%. Já Moçambique
situa-se abaixo de 20% em se tratando de cobertura de sua população com saneamento básico.
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
O Gráfico 7 mostra a evolução do PIB per capita, que revela o desempenho econômico dos
países no período estudado. É, de acordo com IPEA (2013), o produto ou renda média das pessoas
residentes no país e o termo per capita advém da divisão pelo tamanho da população.
Assim como nas análises anteriores, os países do continente africano apresentam resultados
aquém daqueles obtidos pelos sul-americanos. Destaque para Venezuela, África do Sul e Brasil, que
apresentam riqueza média acima de cinco mil dólares. Há que se considerar, entretanto, o nível de
desigualdade observado nos países em questão. O índice de Gini4, medida de concentração de renda,
revela que há má distribuição de riqueza nesses países, um exemplo é a África do Sul que possui PIB per
capita elevado, porém com índice de Gini de 63,1 em 2009 (BANCO MUNDIAL, 2013).
Todos os países apresentam, no período estudado, crescimento da renda per capita. A Venezuela
apresenta uma redução significativa entre 2001 e 2003, em seguida observa-se que a economia voltou a
crescer, para sofrer nova queda no ano de 2008 e crescer novamente. Apesar dessas oscilações, que não
ocorreram nos demais países com tanta intensidade, o resultado líquido do período é de crescimento. A
Venezuela destaca-se, ainda, como um dos principais países que produzem petróleo na América Latina,
sobressaindo-se assim dos demais países analisados.
4 Mede o grau de concentração de renda em determinado grupo. Aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres
e dos mais ricos. Varia de 0 a 1, quanto mais próximo de 0, menor a concentração de renda (IPEA, 2013).
Gráfico 7 – PIB per capita (US$ constantes de 2005) de países selecionados de 2000 a 2010
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010
A África do Sul possui grandes reservas de carvão, petróleo e ouro, além de ser um líder na
extração de diamante, o que lhe confere resultados do PIB per capita além dos do Brasil, que figura
entre as maiores economias do mundo.
É importante ressaltar que a Colômbia apresenta-se com bons resultados do PIB per capita
mesmo atravessando sérios problemas com violência e guerrilhas.
O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida resumida do progresso em longo
prazo sob a ótica de três dimensões básicas do desenvolvimento humano: saúde, educação e renda.
Surge como contraponto ao PIB, e pretende ser uma medida geral, sintética, do desenvolvimento
humano. O índice varia de 0 a 1, quanto mais próximo de 1, maior o desenvolvimento. (PNUD, 2013).
,8,0000
,7,0000
,6,0000
,5,0000
,4,0000
,3,0000
,2,0000
2000 2005 2009 2010
Angola Colômbia Brasil Peru
Nigéria Moçambique África do Sul Venezuela
O Gráfico 8 apresenta os resultados do IDH para o grupo de países verificados neste estudo.
Por meio do gráfico percebe-se que os países sul-americanos apresentam níveis de desenvolvimento
bastante superiores aos observados nos africanos. Esse resultado já é esperado em virtude do
desempenho constatado por meio dos indicadores apresentados.
A evolução do indicador no período apresenta um padrão bastante similar para os países do Sul
da América, já em relação ao continente africano, os países demonstram evoluções do IDH de formas
diversas. Há que destacar elevação do índice de Moçambique e Angola em contraste à constância de
Nigéria e África do Sul.
O resultado mais interessante que se depreende da análise do Gráfico 8 provém da comparação
com o Gráfico 7. Enquanto que o primeiro evidencia o nível de desenvolvimento dos países, o segundo
mostra o crescimento econômico. O caso da África do Sul merece ênfase ao passo que figura em
segundo lugar em PIB per capita e em quinto no IDH.
Por meio dessa comparação, infere-se que o crescimento econômico é uma característica
necessária ao desenvolvimento, uma vez que faz parte do cálculo do IDH, porém não é suficiente.
Conclusão
Este estudo teve como objetivo comparar os dados socioeconômicos de alguns países da
América Latina com alguns da África. Os países escolhidos da América Latina foram: Brasil, Peru,
Colômbia e Venezuela. Do continente africano foram: África do Sul, Angola, Moçambique e Nigéria.
A fim de se alcançar o objetivo proposto realizou-se uma pesquisa exploratória, descritiva e
bibliográfica, adotando indicadores socioeconômicos para comparar a trajetória de desenvolvimento
dos países na última década.
A análise dos indicadores demonstrou que, em média, os países sul-americanos analisados
possuem melhores resultados socioeconômicos que os países africanos selecionados, como por
exemplo, os índices IDH, de saneamento básico e de mortalidade infantil. Verificou-se, também, que
alguns países do continente africano, mesmo enfrentando, por anos, guerras internas e outros conflitos,
têm dados socioeconômicos semelhantes ou melhores do que alguns países latino-americanos
selecionados, nesse caso pode-se citar o desempenho da África do Sul no consumo de energia elétrica e
no PIB per capita.
Comparando indicadores do Brasil e África do Sul, que fazem parte do BRICS (junto com a
Índia, Rússia e China) o Brasil sobressai nos resultados dos indicadores do IDH, saneamento básico e o
índice de analfabetismo já a África do Sul, já citado anteriormente, se destaca com um maior consumo
de energia elétrica e PIB per capita.
Há que enfatizar, ainda, o contraste entre os grandes produtores de petróleo das regiões
analisadas, Nigéria e Venezuela, que se mostraram bastante díspares quantos aos índices de
desenvolvimento. Nesse sentido, destaca-se o saneamento básico, PIB per capita, IDH e alfabetização
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 841
em que a Venezuela apresentou os melhores resultados enquanto que Nigéria mostra-se quase sempre
na última posição entre os países verificados neste estudo.
Durante o estudo pode-se perceber, sobretudo, a melhora contínua dos dados socioeconômicos
(educação, PIB per capita, saneamento básico, acesso a energia elétrica, expectativa de vida ao nascer,
mortalidade infantil e outros) dos dois continentes nos últimos dez anos.
Referências
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em < http://www.didinho.org/AFRICAEDESENVOLVIMENTO.htm> Acesso em 09/02/2013.
COUTO, Joaquim Miguel. O pensamento desenvolvimentista de Raúl Prebisch. In: Economia e Sociedade, Campinas, v.
16, n. 1 (29), p. 45-64, abr. 2007.
DAVIS JR, R. Hunt. Encyclopedia of African History and Culture. Vol IV - The Colonial Era (1850 to 1960). Nova
Iorque, Facts On File, Inc 2005.
GOLDEMBERG, José. Energia e desenvolvimento. Estud. av., São Paulo, v. 12, n. 33, Ago. 1998.
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em http://www.ibge.gov.br/. Acesso em
09/09/2013.
IPEA, Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. G1: Apesar de melhora, educação ainda trava avanços
sociais no Brasil. Disponível em http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com
_content&view=article&id=19178&catid=159&Itemid=75, Acesso em 20/09/2013.
OLIVEIRA, Gilson Batista de. Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento. Rev. FAE, Curitiba, v.5, n.2, p.37-48,
maio/ago. 2002.
PNUD, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Human Development Report 2011 - Sustainability and
Equity: A Better Future for All. Disponível em http://www.pnud.org.br/atlas/ranking/IDH
_global_2011.aspx?indiceAccordion=1&li=li_Ranking2011 Acesso em 02/09/2013.
WORLD BANK. Disponível em http://data.worldbank.org/. Washington, DC, 2013. Acesso em 20/08/2013.
O
presente artigo apresentará o resultado da pesquisa acerca dos impactos da Política
Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) para o desenvolvimento do município de
Serrinha/BA. Durante o processo, além de pesquisa bibliográfica e análise de dados
secundários, foi realizada uma pesquisa de campo a fim de conhecer as contribuições e os desafios da
ATER nos indicadores de desenvolvimento rural, tais como renda agrícola, diminuição do êxodo rural,
ocupação nas atividades rurais, acesso a outras políticas, programas e serviços públicos, entre outros,
pelos agricultores familiares de Serrinha/BA.
A Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) é um serviço direcionado aos agricultores
familiares, de caráter gratuito, através de educação continuada e não formal, que promove processos de
gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades e serviços agropecuários e não
agropecuários, inclusive atividades agroextrativistas, florestais e artesanais2. No entanto, até 1973, tal
serviço era prestado por associações a uma pequena parcela de agricultores com foco a concessão de
crédito.
Foi a partir do governo do presidente Geisel que esse serviço foi ampliado, ocasionando a
estatização de parcela considerável das atividades realizadas. É importante ressaltar que esse
crescimento foi favorecido pela conjuntura da época, na qual o Estado se constituiu como o grande
empreendedor e financiador dos avanços capitalistas, não apenas na indústria, especialmente de base,
mas também no campo.
A crescente percepção da falência ou ausência de um Estado como solucionador dos problemas
da sociedade, que via o campo apenas como espaço físico, deu lugar a diversas iniciativas locais para a
superação daqueles antigos problemas, fazendo surgir atores que passaram a reconhecer o campo como
o ambiente de relações diversas e complexas, que incluem espaços físicos e simbólicos para o exercício
de poder por meio das interações sociais estabelecidas, em que os mesmos passaram a exigir uma nova
postura e ação dos agentes políticos (ABRAMOVAY, 2007).
1Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - Estudante do Mestrado em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdades e
Desenvolvimento. – Bolsista Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia(FAPESB).
1 Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER). –
Lei 12.188/2010.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 843
densidade demográfica (116,5 hab/km2). Possui uma área territorial total de 624,228 km², com
distribuição da população rural e urbana não muito desigual (47.188 população urbana e 29.574 rural).
Dentre os habitantes da área rural, 3.803 são agricultores familiares, o que apresentou uma redução
34,6% numa comparação entre os censos agropecuário 1996 e 2006.
Conforme já foi apontado, o município de Serrinha está localizado na região nordeste da Bahia,
pertencente a zona semiárida, apresenta um clima subúmido a seco, vegetação caatinga, sua bacia
hidrográfica é formada pelos rios Paraguaçu, Inhambupe e Toco. Sob essas condições tem-se como
principais produtos agrícolas o milho, o feijão e mandioca, além da criação de aves, bovinos, suínos e
ovinos. Observou-se ainda que a pecuária foi o setor que mais recebeu financiamento público frente o
setor agrícola, no período de 2007 a 2012, segundo dados do Banco Central3.
No município há quatro entidades que prestam ATER. Entre elas estão as ONG’s: Associação
de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira (APAEB), Movimento de Organização
Comunitária (MOC), Associação das Cooperativas de Apoio a Economia Familiar (ASCOOB); e uma é
entidade pública estadual, a Empresa Baiana de Desenvolvimento Agrícola (EBDA).
Vale destacar algumas iniciativas de programas públicos voltados ao meio rural que antecedem
o PRONAF, as quais resultaram de longas lutas de movimentos sociais. A lei 4.504/1964 instituiu o
estatuto da terra o qual dispunha sobre a execução da Reforma Agrária e promoção da Política
Agrícola. Para consecução dessa lei foi criado o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária – IBRA, como
órgão competente para promover e coordenar a execução dessa reforma, o qual detinha poderes de
representação da União, para promover a discriminação das terras devolutas federais, autoridade para
reconhecer as posses legítimas, dentre outras atribuições. Mas o público objeto dessa lei e as instituições
de reivindicação ligadas ao campo consideram que essa lei nunca se efetivou plenamente.
Outra iniciativa estatal voltada para o desenvolvimento rural, mas não de iniciativa única daquele
ente, foi a Política Agrícola instituída pela lei 8.171 de 1991, a qual fixava os fundamentos, definia os
objetivos e as competências institucionais, previa os recursos e estabelecia as ações e instrumentos da
política agrícola, relativamente às atividades agropecuárias, agroindustriais e de planejamento das
atividades pesqueira e florestal. Dentre os seus objetivos, visava a regularidade do abastecimento
interno e a redução das disparidades regionais, promover a descentralização da execução dos serviços
públicos de apoio ao setor rural, compatibilizar as ações da política agrícola com as de reforma agrária,
melhorar a renda e a qualidade de vida no meio rural, entre outros.
Para atingir os objetivos propostos pela lei foram articulados ações e instrumentos de política
agrícola tais como: pesquisa agrícola tecnológica; assistência técnica e extensão rural; associativismo e
cooperativismo; crédito rural; produção, comercialização, entre outros. No entanto, o abismo entre o
que determinava a lei e sua efetivação era tamanho, ao ponto de pouco modificar a realidade do seu
público.
Após a criação do Pronaf, dez anos depois, surge um novo marco legal que trouxe em seu
escopo um conjunto de promoções para o meio rural. Refere-se à lei 11.326, de 2006, que estabelece os
conceitos, princípios e instrumentos destinados à formulação das políticas públicas direcionadas à
Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Uma das novidades dessa lei foi a
denominação e caracterização de uma nova categoria de público desse espaço, a de agricultores familiares,
que para muitos estudiosos da área nada mais foi do que uma tentativa de camuflar e tirar de cena uma
categoria historicamente constituída e reconhecida: o camponês.
Essa política estabelecia como objetivos: descentralização; sustentabilidade ambiental, social e
econômica; equidade na aplicação das políticas, respeitando os aspectos de gênero, geração e etnia;
participação dos agricultores familiares na formulação e implementação da política nacional da
agricultura familiar e empreendimentos familiares rurais. Essa lei, como as anteriores, também
promoveu o serviço de assistência técnica e extensão rural, entre outros, para o atendimento dos
objetivos que devem ser buscados em parceria com outras áreas.
As intenções de criar mecanismos que possibilitassem o desenvolvimento do espaço rural
brasileiro não se esgotaram até então. Mais recentemente, em 2010, foi instituída a lei 12.188 que
institui a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e
Reforma Agrária - PNATER e o Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na
Agricultura Familiar e na Reforma Agrária – Pronater, resultado de décadas de reivindicações feitas
pelas entidades estatais e da sociedade civil, por um tratamento mais estruturante do serviço de ATER.
Ao ampliar o serviço de ATER para estrutura de política pública nacional, essa lei expressa a
necessidade, urgência e importância do serviço público de ATER para o desenvolvimento rural,
considerando-o, de alguma forma, base para o desenvolvimento de outros setores da economia.
A citada lei prevê em seus objetivos, dentre outros: promover o desenvolvimento rural
sustentável; aumentar a produção, a qualidade e a produtividade das atividades e serviços agropecuários
e não agropecuários; promover a melhoria da qualidade de vida de seus beneficiários; construir sistemas
de produção sustentáveis; aumentar a renda do público beneficiário e agregar valor a sua produção;
promover o desenvolvimento e a apropriação de inovações tecnológicas e organizativas adequadas ao
público beneficiário; apoiar o associativismo e o cooperativismo; contribuir para a expansão do
aprendizado de forma apropriada e contextualizada à realidade do meio rural brasileiro. Contudo,
diante da disponibilidade e forma da gestão dos recursos públicos destinados à execução dessa política,
esses objetivos estão longe de serem alcançados de forma plena.
Essa política, em primeira instância, é executada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário,
criado em 25 de novembro de 1999; pela medida provisória n° 1.911/12 e demais entidades estatais e
não estatais nas unidades da federação e municípios.
Numa análise não muito aprofundada dessas iniciativas, pode-se constatar que apesar de
trazerem em seu corpo estratégias viáveis para o desenvolvimento do espaço rural brasileiro, até hoje
não conseguiram efetivar seus objetivos de forma plena, visto que o atraso e as desigualdades internas e
entre regiões ainda persistem no meio rural, resultando o êxodo rural, concentração de terras, escassez e
insuficiência na infraestrutura, entre outros.
Sabe-se que políticas públicas não surgem apenas da identificação e seleção de problemas por
iniciativas dos governos. Elas devem ter por base a capacidade de organização e pressão da sociedade
que pode pautar questões na esfera pública, para que sejam reconhecidas como problemas passíveis de
intervenção, ainda que contrariem o poder de formulação do Estado (OFFE, 1984). No caso das
políticas voltadas ao campo, particularmente a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão
Rural (PNATER), representa um marco novo da participação popular frente ao processo de
formulação da política. Sua criação foi precedida de plenárias e conferências a nível municipal, estadual
e nacional, com a participação de representantes da sociedade e do Estado.
Para superar esses desafios históricos, a Política Nacional de ATER está sendo construída de
forma participativa, em articulação com diversas esferas do governo federal, ouvindo os governos das
unidades federativas e suas instituições, assim como os segmentos da sociedade civil, lideranças das
As teorias que podem ser utilizadas para situar as políticas públicas implantadas no Brasil
podem ter origem no Estado de bem-estar social que sucede o Estado liberal após a crise econômica de
1929, estabelecendo uma nova relação entre Estado, Mercado e Sociedade, por meio de leis e políticas
que interviam e tentavam controlar as estruturas (MOURA,1998).
A construção do Estado de bem-estar social no Brasil, também denominado de
desenvolvimentista, não ocorreu apenas a partir da implementação de políticas sociais, mas da
promoção do desenvolvimento econômico através de investimentos em industrialização e, talvez, de
uma ruptura política (mas não ideológica e de práxis), pelo fato de que nesse período também se inicia
o enfraquecimento de uma dominação oligárquica e seu sistema organizacional. Porém, o sistema de
proteção social brasileiro se desenvolveu de forma fragmentada, heterogênea e estratificada, que acabou
impactando negativamente a estrutura social, reforçando as desigualdades, principalmente no meio
rural, espaço que continuou às margens das políticas e programas dos governos (VIANNA, 1998).
A partir da década de 30, o Estado brasileiro passou a intervir de forma mais constante, ampla e
decisiva nas diversas dimensões que consideraram base para o desenvolvimento econômico, mas
sempre com olhar marginal em relação ao espaço rural e não visualizando os problemas regionais em
vista de um projeto nacional de integração.
Outra crise, a de 1970, influenciou modelos de planos e programas dos Estados. Oriunda da
estagnação do petróleo, impactou a economia de todo o mundo e também afetou significativamente o
modelo de desenvolvimento (Welfare state) até então vigente. Ressurge então o pensamento liberal, que
ganhou força em quase todo mundo impulsionado pela globalização.
O modelo neoliberal passou a ser implantado no Brasil a partir da década de 1980. Nesse
período, apesar das fortes reivindicações dos movimentos sociais do campo, faltava um projeto
nacional de desenvolvimento do campo que contribuísse para estruturar uma política pública efetiva e
de integração regional.
Corrobora com essa ideia as pesquisas realizadas por Leite et al, (2009) os quais discutem sobre
a forma como as políticas públicas são concebidas no Brasil, no que diz respeito ao meio rural.
A ausência no Brasil de algo que assemelhe a uma estratégia de desenvolvimento,
notadamente no que se refere às políticas agrícolas e de desenvolvimento rural,
Esse estudo reforça a constatação de que o Brasil foi, por décadas, assolado por uma política de
desenvolvimento focada no mercado internacional e que, por isso, não promoveu as bases para um
desenvolvimento endógeno, durador, integrado e autônomo.
O processo de descentralização de políticas públicas no Brasil foi concretizado a partir da
constituição de 1988 - a qual também influenciou a estrutura de planejamento para o desenvolvimento
rural - marcado pela transferência de recursos e do poder decisório de instâncias superiores para
unidades espacialmente menores, incluindo a sociedade civil organizada (MALMEGRIN, 2010).
No caso das políticas voltadas para o meio rural, o marco da descentralização se definiu com a
Lei 8. 171 de janeiro de 1991, porém, sua efetivação foi se concretizando nos anos seguintes, por
iniciativas de atores ligados à questão. Daí surgiu a proposta de consolidação de um modelo
institucional de ATER pública estatal, não estatal, descentralizado, pluralista, autônomo e gratuito.
Como princípios, a proposta defendia ainda o desenvolvimento sustentável, o controle social da gestão
e organização em rede, entre outros, os quais se busca efetividade constantemente, (PNUD,1997).
Sabe-se que a gestão descentralizada de programas e políticas sociais de criação do governo
federal ainda passa por diversos desafios, visto que essa metodologia inserida na administração pública
brasileira é recente e, portanto, demanda de maior aperfeiçoamento e amadurecimento por parte dos
atores envolvidos (ARRETCHE, 2004).
Apesar de tudo, não se pode dizer que a descentralização de políticas públicas foi insuficiente.
De certa forma, ela contribuiu muito para a democratização política e descentralização do poder, mas
há de se reconhecer que a forma como se deu não foi por intensões puramente de desenvolvimento da
nação.
Esse novo modelo tem a ver com a proposta do desenvolvimento sustentável e, para alcançar
esse estágio, as ações da ATER, sem exclusões de outras, tem sido as seguintes: promover e prestar
assistência técnica agropecuária, gerencial e social junto aos produtores rurais e suas famílias; promover
a introdução e/ou adaptação de inovações de tecnologias; incentivar os agricultores à diversificação
e/ou combinações de culturas e criações; sensibilizar e fomentar o acesso dos agricultores a políticas e
programas voltados ao meio rural; programar e executar, de acordo com as reais necessidades do
público, cursos de capacitação de mão-de-obra rural; diagnosticar e planejar a situação das comunidades
rurais atendidas, das unidades familiares e dos empreendimentos formados pelos agricultores familiares.
Baseada nessa concepção espera-se que a ATER contribua para o desenvolvimento rural de
Serrinha, no que concerne aos seguintes aspectos: na utilização de recursos da própria região no
processo produtivo das famílias; na diversificação da produção e ampliação das fontes de renda destinas
à propriedade; em atividades ambientalmente mais adequadas implementadas pelos agricultores; no
engajamento político-social, formação de cooperativas e associações e no acesso e controle dos meios
de produção.
No que tange à avaliação desse serviço público, esse tipo de estudo ainda não foi estruturado e
realizado de forma integrada a nível nacional. Cabe destacar que, por demanda da Secretaria de
Agricultura Familiar (SAF), em 2002, a pesquisa, dentre os diversos levantamentos, apresentou dados
acerca da cobertura do serviço no território nacional. Foi constatada a seguinte situação: enquanto no
sul ela atinge 99% dos municípios com escritórios locais, na região nordeste este índice é de apenas
50%. Todas têm como público prioritário os agricultores familiares, sendo que pelo menos um terço
das instituições atende também agricultores patronais. O nível de atendimento varia de 65% do público
potencial na região sul a 27% na região nordeste. As informações demonstram o quanto a prestação de
serviço é desigual de região para região, se agravando na região norte e nordeste do país, (MDA/FAO,
2003).
As desigualdades no espaço rural brasileiro vão além das demonstradas pela pesquisa do perfil
da ATER. O Censo Agropecuário 2006, realizado pelo IBGE, constatou que apenas 22% dos
estabelecimentos agropecuários do País recebem algum tipo de orientação técnica. De acordo com o
instituto, a área média dos estabelecimentos que recebeu assistência é de 228 hectares; enquanto a dos
não assistidos é 42 hectares. A orientação técnica de origem governamental atinge 43% dos
estabelecimentos assistidos e está mais voltada para os estabelecimentos menores, com área média de
64 hectares.
Pelos dados do documento de divulgação do Censo/IBGE, em toda a Região Norte e Nordeste
houve avanço em relação à orientação técnica de origem governamental, o mesmo ocorrendo em Minas
Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Distrito Federal. Mas esse comportamento não se repetiu
em todos os estados, já que houve significativa redução de produtores que declararam receber
orientação técnica nos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Goiás, o que
pode ser uma sinalização de declínio nos serviços de extensão rural nestes Estados. Segundo o órgão,
porém, cabe uma pesquisa avaliativa para se identificar os fatores que contribuíram para a diminuição
do serviço nessas regiões. Os estabelecimentos que têm orientação técnica particular ou do próprio
produtor têm área média de 435 hectares. As empresas privadas de planejamento atendem a
estabelecimentos com maior área média, 506 hectares.
O censo agropecuário 2006 revela dados que na opinião de muitos pesquisadores, são talvez o
fator determinante de todos os tipos de desigualdades e mazelas sociais, tanto no campo quanto na
cidade, isso diz respeito a concentração fundiária.
De acordo com os dados do Censo Agropecuário, levantados pelo IBGE em 2006, enquanto os
estabelecimentos rurais de menos de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da área total ocupada pelos
estabelecimentos rurais, a área ocupada pelos estabelecimentos de mais de 1.000 hectares concentra
mais de 43% da área total.
O município de Serrinha, lócus da unidade dessa pesquisa, se encontra nesse patamar. Os
quadros abaixo demonstram as características do desenvolvimento rural quanto as condicionantes já
apresentadas.
Fonte: IBGE Censo Demográfico( 2000, 2010), IBGE Censo Agropecuário(1996 2006), MDA/Incra/SIR (2007), Atlas
Brasil 2013 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pesquisa de campo – Elaboração: Ana Carla Evangelista
dos Santos.
Observa-se a partir dos dados da tabela uma diminuição da população total na ordem de 6.444
pessoas no período de 10 anos. No entanto, a diminuição na área rural foi mais significativa: 7.689
pessoas deixaram o campo no mesmo período. Quanto ao número de agricultores familiares, a redução
foi de 2.023 entre 1996 e 2006. Pode-se inferir que mesmo com a atuação de 4 entidades prestadora de
ATER no município, o desafio de favorecer o campo de condições que garantam a permanência com
qualidade de vida para sua população ainda está longe de ser alcançada.
Na tabela a seguir são apresentados dados acerca do desenvolvimento social e econômico do
município, os quais o colocam numa condição de baixo desenvolvimento. Constata-se um crescimento
considerável de concentração de terras evidenciado pelo índice de Gini e de desigualdade no tamanho
dos estabelecimentos rurais. Observou-se que na faixa de 1 a 20ha existem cerca de 2.158
estabelecimentos que correspondem a 48% do total, outros 2012 estão na faixa de 0,1 a 1ha,
perfazendo um total de quase 45% de estabelecimentos considerados com pouca área, impossibilitando
a reprodução familiar.
Aspectos do Desenvolvimento Rural do Município de Serrinha/BA.
Nº de Agri. Renda média mensal per IDH Índice de Acesso a outros programas Participação político-
Fam. capita por domicílio rural 1991 GINI e políticas social; Acesso aos meios
assistidos particular permanente. 2000 1980 de produção.
pela ATER IBGE 2006 2010 1985
1996
2006
300 177,00 reais. 0,388 0,749 1)crédito Pronaf, Significativa participação
0,488 0,762 2)habitação rural, social; Baixo nível de
0,634 0,775 3)luz para todos, 4)bolsa acesso e ampliação dos
0,820 família, meios de produção.
5)PAA,
6)PNAE,
7) Cisternas.
Fonte: MDA(2012), IBGE Censo Demográfico( 2000, 2010), IBGE Censo Agropecuário(1996 2006), MDA/Incra/SIR
(2007), Atlas Brasil 2013 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Projeto GeografAR, 2011, Pesquisa de
campo – Elaboração: Ana Carla Evangelista dos Santos.
identificar e estimular os agricultores para a utilização de recursos locais, incentivar mudanças para
técnicas de produção mais sustentáveis e fomentar o acesso a outras políticas e programas que apesar
do grande acesso, parte da população rural ainda não foi beneficiada.
Resultado positivo da atuação da ATER é a participação dos agricultores assistidos em diversos
espaços políticos, como conselhos municipais e outros, através de suas organizações (associações,
sindicato e cooperativas).
Outra questão que tem impacto direto no desenvolvimento como um todo é a condição da
infraestrutura do município (saneamento, estradas, energia, água). A tabela a seguir apresenta uma
realidade ainda precária no que diz respeito a esses fatores, no município de Serrinha.
Fonte: SEI/BA (2012), SEAGRI/BA (2012), IBGE Censo Demográfico( 2000, 2010), IBGE Censo Agropecuário(1996
2006), Atlas Brasil 2013 Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pesquisa de campo – Elaboração: Ana Carla
Evangelista dos Santos.
Considerações
Diante do legado histórico de práticas políticas como o clientelismo, paternalismo, coronelismo,
entre outras, vivenciado no estado da Bahia, considera-se que esses fatores, aliados aos econômicos e
culturais, influenciaram de forma negativa a execução da ATER na Bahia.
A ATER, enquanto serviço público destinado aos trabalhadores do campo que possuem algum
tipo de propriedade de terra ou que foram beneficiados pelo Programa Nacional de Reforma Agrária
(PNRA), exclui significativa parcela daquela população que está inserida no conjunto de indivíduos
marginalizados pela concentração e má distribuição das terras do país. Assim, espera-se que essa
política também promova o acesso à terra pelos camponeses.
A partir de uma análise não aprofundada dos atuais programas destinados ao meio rural,
percebe-se que o foco da reforma agrária foi desviado para o ”fortalecimento da agricultura familiar”
enquanto segmento potencial de produção e escoamento de produtos, sob a forma de custeio à
produção e infraestrutura, em detrimento de um projeto nacional estrutural de reforma agrária. Nesse
ambiente a ATER pode se tornar o elo fundamental para consecução de uma estratégia de manutenção
do poder da classe aristocrata rural ou emancipação dos camponeses.
Diante dessas constatações, o desafio que está posto para a ATER enquanto serviço público
destinado à parcela da população considerada em situação de mais desvantagens sociais e econômicas, é
quanto a sua contribuição para elevação dos níveis de escolaridade e conhecimento dos agricultores,
acesso à terra, à tecnologias apropriadas e disseminação de práticas ambientalmente adequadas.
Referências:
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ARRETCHE, M. T. S Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em
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VIANNA, Maria Lucia Teixeira Werneck. A Americanização (perversa) da Seguridade Social no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, IUPERJ, 1998.
1. A fronteira em questão
T
rataremos aqui da relação entre dois países sul-americanos que possuem vários pontos de
conexão em suas fronteiras através das chamadas cidades-gêmeas, que são assim
denominadas por se tratarem de
[…] adensamentos populacionais cortados pela linha de fronteira – seja esta seca ou
fluvial, articulada ou não por obra de infraestrutura – apresentam grande potencial de
integração econômica e cultural, assim como manifestações “condensadas” dos
problemas característicos da fronteira, que nesse espaço adquirem maior densidade,
com efeitos diretos sobre o desenvolvimento regional e a cidadania (BRASIL, MIN,
2010, p. 21).
1 Mestre em Política Social, doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Bolsista CAPES.
cacaias@hotmail.com
2 Doutora em Enfermagem, professora dos Programas de Pós-Graduação em Política Social da Universidade Católica de
Esses municípios estão inseridos na chamada “faixa de fronteira”, instituída pela Constituição
de 1934 como uma zona de segurança nacional, faixa esta que foi ampliada pelo governo Getúlio
Vargas em 1937 de 100 para 150 quilômetros, abarcando assim 27% do território nacional (STEIMAN,
2002). Caracterizando as cidades-gêmeas do Brasil e Uruguai, nelas residem, segundo dados do último
Censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), 340.779 brasileiros
distribuídos em 11 municípios, ou seja, representa 0,18% dos brasileiros ou ainda 3% dos gaúchos. Em
se tratando dos habitantes uruguaios, segundo dados do Instituto Nacional de Estadística (INE, 2011)
são 143.503 habitantes distribuídos em cinco Departamentos – Rocha, Treinta y Tres, Cerro Largo,
Rivera e Artigas, nos quais estão localizadas as seis cidades gêmeas com o Brasil, que totalizam 4,27%
da população daquele país, segundo o Instituto Nacional de Estadística (2011).
O Aceguá brasileiro é um município localizado no Bioma Pampa, que foi desmembrado da
cidade de Bagé em 1996, porém a estrutura administrativa iniciou as atividades em 2001. Está dividido
em quatro distritos: Sede, Rio Negro, Colônia Nova e Minuano, que ocupam uma área de 1.549,383
km², e sua população de 4.394 habitantes – a maior parte (75,89%) domiciliada na zona rural, é
4 Segundo Silva (2009), antes de “gaúcho” ser utilizado como gentílico para todos do Rio Grande do Sul, o termo estava
associado aos trabalhadores da pecuária em estâncias do Pampa, ou também como sinônimo de marginal.
5 A denominação de um lugar como Pueblo, Villa ou Ciudad remontam ao período colonial, e não existem normas ou
Assim como suas congêneres, sua população vislumbrou o auge e a decadência econômica por
conta das variações cambiais. O Chuí substituiu então alguns comércios que eram direcionados para
uruguaios (lojas de roupas e supermercados), por uma infraestrutura de serviços que oferece suporte
aos inúmeros turistas que vão ao Chuy veranear na praia (é a única cidade-gêmea que tem saída para o
mar), visitar o Forte de São Miguel (1737) e a Fortaleza de Santa Tereza (1762), construções erguidas
durante a disputa pelo território entre portugueses e espanhóis, e realizar compras em seus variados
freeshops, dispostos majoritariamente na Avenida que faz limite com o Brasil.
Segundo Yunes (1999), o modelo de descentralização adotado teve como eixo a relação entre a
União e os municípios, prejudicando o papel dos estados como articuladores do processo de
regionalização dos serviços e favorecendo um cenário que “acentua as distorções regionais e que acaba
desequilibrando a redistribuição dos recursos destinados à saúde” (p. 68). Já Cohn (1994, p. 94),
enfatiza que os aspectos econômicos sobrepuseram os políticos nesse movimento, e que a
descentralização foi forjada de maneira nebulosa,
[…] sendo implantada com um volume crescente de recursos dos municípios, como
também a baixa definição das competências de cada nível de poder impõe limites
estreitos à autonomia dos municípios na definição de suas políticas de saúde. Acresce
que a descentralização, nos moldes em que se dá, carece de um padrão de articulação
entre os níveis federal, estadual e municipal. Há casos em que município e nível
federal se relacionam diretamente, e outros em que o nível estadual figura como
intermediário.
Passada mais de uma década do início desse movimento, a necessidade de implantação de uma
forma mais eficaz e profunda de conduzir esse processo é verificada pelos gestores do Sistema Único
de Saúde, por perceberem várias fragilidades no processo de implantação do SUS. O instrumento
proposto para favorecer a organização dos serviços através de uma rede regionalizada de atenção aos
principais agravos à população, fortalecer o controle social e assim melhorar a gestão dos recursos foi a
adesão por estados e municípios ao Pacto pela Saúde. O Pacto pela Saúde está dividido em três esferas
(CONASS, 2006):
Pacto pela vida – elege prioridades e metas a serem alcançadas na atenção em saúde (saúde
do idoso, da mulher, redução da mortalidade infantil e materna, saúde do trabalhador, saúde do
homem, saúde mental...);
Pacto em defesa do SUS – consiste em regulamentar a Emenda Constitucional nº 29, e
definir o compromisso das três esferas de gestão do SUS (municípios, estados e governo federal)
quanto ao financiamento das ações em saúde;
Pacto de gestão – este eixo contempla a organização administrativa da saúde, estabelecendo
responsabilidades e, inclusive, novos ordenamentos regionais e territoriais com o intuito de
descentralizar a gestão e desburocratizar processos, qualificar o controle social e o trabalho em saúde,
regulação do acesso aos serviços.
acordo com a análise feita por Preuss e Nogueira (2012), sobre os desdobramentos advindos da
assinatura do Pacto pelas cidades-gêmeas brasileiras, argentinas e uruguaias ocorreram diversos
problemas em sua implantação (seja por parte da morosidade conferida pela burocracia para adesão,
seja pelo não entendimento por parte de gestores e profissionais de saúde quanto as suas implicações).
Em suma, a adesão ao Pacto na fronteira
[…] não ampliou o acesso à saúde aos brasileiros e estrangeiros. Entende-se que a
intenção originária do pacto é ampliar a capacidade operacional dos municípios,
incluindo a população estrangeira nos mesmos patamares de atenção integral e
universal garantida nos termos constitucionais aos brasileiros (PREUSS e
NOGUEIRA, 2012, p. 331).
atenção de acordo com suas necessidades, alcançando assim, um patamar de justiça social
(MINISTÉRIO DE SALUD PUBLICA, s/d).
O financiamento do SNIS é como no Brasil: mantido por tributos arrecadados pelo governo e
pelas contribuições dos trabalhadores e empresas. Todo o recurso é reunido no FONASA, que faz o
repasse para os prestadores de serviço públicos e privados que compõem o sistema, sendo enviados
recursos para o Fundo Nacional de Recursos (FNR), que cobre os tratamentos de alto custo e
complexidade.
Com a criação do SNIS, é posto em prática o Plan Integral de Atención a la Salud (PIAS), que
deve ser seguido por prestadores de saúde públicos e privados. Segundo Giovanella et al (2012, p. 737),
esse é um “[…] aspecto relevante dado que o sistema opta por um espectro de prestadores misto aos
quais o usuário assegurado pode escolher sua afiliação”. É o PIAS que define as diretrizes sobre as
modalidades de atenção, os procedimentos terapêuticos, de reabilitação e ambulatoriais, vacinas,
atendimento a urgências e emergências, cuidados paliativos e internações. Então, se em um primeiro
olhar os prestadores públicos e privados têm as mesmas atribuições, o quê determina a opção do
usuário por um ou outro? Segundo um dos entrevistados
[…] o público está muito desprestigiado no Uruguai. Em realidade o ASSE
[Administración de los Servicios de Salud del Estado] é o maior prestador que tem no
país, porque cobre todo o território nacional, e tem tudo o quê se precise, embora
você tenha que esperar de uma semana para outra. E tem todos os benefícios sem
pagar: se você tem o carnê de assistência ou de seguridade social [trabalhadores] não
paga nada para ser atendido na policlínica, emergência, medicamentos, tomografia. No
privado você tem um elenco de procedimentos que o Ministério da Saúde Pública
exige a cada prestador – e que o ASSE tem alguns fora desse elenco, e se você precisar
de algo que estiver fora disso precisa pagar (Entrevistado 13, 2012).
Na prática, as pessoas que optam por contribuir para sistema privado uruguaio acabam tendo
que realizar co-pagamentos para utilizar os serviços que não estão listados no PIAS, acesso a
medicamentos para hipertensão e diabetes, que no sistema ASSE são subvencionados. Não há menção,
na politica de saúde uruguaia sobre ações e programas especiais para a faixa de fronteira.
3.1 Aceguá-Aceguá
Em termos de infraestrutura em saúde, o Aceguá do lado uruguaio conta com uma policlínica
(ligada a ASSE), e uma unidade de atendimento da Cooperativa Assistencial Médica de Cerro Largo
(CAMCEL), que é privada. Já no Brasil, há um posto de saúde na sede do município, uma unidade
móvel de saúde que atende no interior do município principalmente as especialidades de odontologia e
ginecologia, além de um hospital localizado na Colônia Nova, zona rural, que foi construído na década
de 1970 pelos imigrantes com auxílio do governo alemão, e atende em sua maioria usuários do SUS.
Embora o município se mantenha ao nível de atenção básica em saúde, de acordo com os entrevistados
esse hospital consegue resolver boa parte dos problemas da população, realizando inclusive cirurgias.
Segundo a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007a), o atendimento a brasileiros no Uruguai
nesta parte da fronteira ocorreria caso pagassem a CAMCEL, mas também foram relatados casos de
gratuidade – embora não se especificasse quais os critérios para esse atendimento; já os estrangeiros
residentes no Brasil eram atendidos pelo PSF, sendo observado que não havia distinção de
nacionalidade quando o tema era vacinação. Na ocasião da pesquisa de campo ocorreram duas
situações que desaguam no mesmo rio chamado financiamento da saúde: a percepção de que o sistema
uruguaio não tem lastro para atendimento a brasileiros, e o reconhecimento de que fornecer o acesso a
saúde é universal, mas esbarra na burocracia e no custeio das ações.
no hospital uruguaio. Desse modo, foi possível custear pelo atendimento de brasileiros no Hospital de
Bella Unión, garantindo pela vigência de um ano o atendimento a
Consultas de urgência/emergência incluindo exames básicos de sangue e
eletrocardiograma; hemograma, glicemia, sódio, potássio, ureia e creatina, TGO e
TGP, TP, KTTP, hemossedimentação, PCR, HIV, troponina, CPK e CKMB, amilase,
QUE, urocultura, beta HCG (PREFEITURA MUNICIPAL DA BARRA DO
QUARAÍ, 2011, p. 2).
O referido convênio (tratado diretamente entre a prefeitura brasileira e direção do hospital, com
alguma intervenção do Ministério da Saúde) foi estipulado em um teto de 300 consultas ao valor
unitário de U$ 54,00 (cinquenta e quatro dólares), e a dificuldade apontada pelos atores locais foi a
efetivação do pagamento dessas prestações junto ao hospital, que eram acrescidas de taxas bancárias
que chegavam a 35% do montante a ser pago, por se tratar de operação financeira internacional. É
interessante salientar que o convênio surgiu mais para legitimar uma situação que já ocorria no território
(de atendimento de brasileiros pelo hospital uruguaio), posto que o mesmo está localizado a 6 km de
distância de Barra do Quaraí, em detrimento à referência hospitalar do município para esse tipo de
atendimento, situada a 70 km dali. Foi relatado que as gestantes que se encontram na iminência de
terem seus filhos seguem sendo atendidas no hospital, fora da cota desse convênio, sendo essas crianças
já registradas ali e depois novamente registradas no Brasil, tendo elas a dupla nacionalidade, ou o
fenômeno conhecido como “doble chapa”.
3.3 Chuí-Chuy
De acordo com dados obtidos junto ao Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de
Saúde (SCNES, 2012) o Chuí brasileiro dispõe de um centro de saúde com enfermeiros, técnicos em
enfermagem, nutricionista, psicólogos, odontólogos, e mantém um convênio com uma cooperativa que
disponibiliza médicos, devido a dificuldade de contratação desses profissionais – ao todo são 18
médicos (pediatria, ginecologia e clínica geral), a maioria com 4 horas carga horária semanal. Quanto ao
acesso da população, ele “atende brasileiros e uruguaios que vivem no Brasil” (Entrevistado 11, 2012).
O Chuy tem uma população de 10.045 habitantes, foi alçado a município há três anos, conta com um
hospital que atende ASSE, e também prestadores privados como a Cooperativa de Médicos de Rocha
(COMERO). Ao hospital estão vinculados 47 médicos de diversas especialidades: ginecologia, pediatria,
neurologia, ortopedia, entre outras.
Embora no Brasil não se tenha obtido relatos de que brasileiros fossem atendidos no Hospital
do Chuy, nossos vizinhos mantém um controle de frequência desses pacientes: entre junho e agosto de
2012, somavam-se 270 atendimentos, média de 90/mês. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(2007b) também aponta que durante pesquisa realizada no município, 40,1% dos entrevistados
buscaram atendimento no Chuy. Segundo Aveiro (2006, p. 96), a conclusão do Hospital do Chuy foi
tratada no Comitê de Fronteira em 1990, que atendia “[…] aos cidadãos dos dois lados da fronteira, de
forma gratuita e indistinta”, quando Chuí ainda era um distrito de Santa Vitória do Palmar.
Os dois há anos municípios procuram implementar um Centro Regional de Hemodiálises, no
Chuy, tendo inclusive uma Comissão Binacional específica constituída em outubro de 2011 para tratar
deste tema, pois os pacientes brasileiros com insuficiência renal crônica tem de percorrer 245km até
Pelotas e os uruguaios 130km até Rocha, três vezes por semana para obter tratamento. O Centro seria
encampado pela COMERO, que já teria inclusive adquirido terreno para iniciar sua construção. Seu
funcionamento se daria com 11 máquinas em funcionamento e 3 para eventuais substituições, às
segundas, quartas e sextas-feiras, contando com enfermeiros e pessoal treinado e médicos que se
deslocariam de Rocha para acompanhar os procedimentos. Quanto ao financiamento, seria coberto
pelo Fondo Nacional de Recursos, e atenderia a pacientes vinculados a ASSE e Instituições de
Assistência Médica Coletiva (IAMC) (COMISIÓN BINACIONAL PRÓ CENTRO REGIONAL DE
HEMODIÁLISIS PARA CHUY, 2011). Sobre o custeio para atendimento a brasileiros ainda não está
definido, pois segundo os entrevistados o que emperra as negociações é encontrar a forma de pagar
pelos procedimentos
O Uruguai se propôs a fazer o centro de hemodiálise, e o Brasil pagaria o uso pelos
brasileiros através do SUS. Nós ficamos de ver a possibilidade do SUS pagar para uma
empresa do lado uruguaio – não sabemos como isso será feito legalmente (Entrevistado 11,
2012).
Segundo dados da Comissão, 37 pacientes de Chuí, Chuy, Santa Vitória do Palmar, Lascano de
Cebolattí seriam beneficiados pelo Centro. A viagem para os serviços de referência, além de serem
longas (o trajeto Chuy-Rocha-Chuy mais o tempo de tratamento dura cerca de dez horas) e cansativas
para os pacientes que já estão debilitados preocupam também por conta dos acidentes de trânsito6 que
ocorrem com os veículos que os transportam. Outro inconveniente assinalado é o desemprego por
conta da impossibilidade destas pessoas trabalharem, pois são em sua maioria relativamente jovens que
acabam dependendo de seus pais aposentados, filhos ou esposas/maridos para viver (JUNTA
DEPARTAMENTAL DE ROCHA, 2010).
Conclusões
Nas cidades pesquisadas foi possível verificar que, embora tenham características em comum
quanto a população e estrutura disponível em saúde, cada um procura sanar suas debilidades na atenção
à saúde de forma peculiar: procurando a referência do lado brasileiro, propondo convênios ou mesmo
troca de serviços, valorizando assim a expertise do município vizinho. E de fato, enquanto não forem
6 Em 2008 um grave acidente entre um ônibus da Secretaria Municipal de Saúde de Santa Vitória do Palmar e um caminhão
resultou na morte de 7 pessoas e 20 feridos. Eles estavam a caminho de Pelotas e Rio Grande para realizar tratamentos de
saúde. Entrevistados uruguaios relataram a ocorrência de acidentes no trajeto a Rocha.
seguidos acordos existentes e outros sejam elaborados para normatizar essas questões, o acesso da
população estrangeira ao serviço variará sempre de acordo com o entendimento que o gestor ou
prestador de saúde tiver sobre o direito à saúde.
Referências
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Acesso em: 03 jun. 2011.
Introdução
O
acompanhamento das transformações advindas de políticas públicas, empresariais ou
acadêmicas consistia apenas em quantificações exclusivas. A partir da Segunda Guerra
Mundial os interesses mudaram e iniciou-se um controle da sociedade e dos países via
construção de dados estatísticos diversos, passando a identificar a realidade a partir de indicadores
econômicos produzidos por departamentos, agências e repartições públicas (BRASIL, 2010). No Brasil,
esta quantificação de modo mais sistêmico, foi realizada a partir da criação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).
No entanto, a partir de 1970, percebeu-se que os índices de desenvolvimento econômico não
refletiam o verdadeiro grau de desenvolvimento de um país, fazendo com que surgissem,
posteriormente, instrumentos mais específicos de quantificação e qualificação da condição de vida
populacional, como é atualmente (BRASIL, 2010).
Existem várias definições de indicadores, sendo que, de modo geral, para Cassiolato e Gonzales
(2009), estes são medidas de quantidade ou qualidade que informam a evolução de um objeto em
avaliação, mais especificamente:
O indicador é uma medida, de ordem quantitativa ou qualitativa, dotada de significado
particular e utilizada para organizar e captar as informações relevantes dos elementos
que compõem o objeto da observação. É um recurso metodológico que informa
empiricamente sobre a evolução do aspecto observado (CASSIOLATO;
GONZALES, 2009, p. 24).
Metodologia
As metodologias utilizadas no presente trabalho foram explicativa, explanatória e bibliográfica.
As principais fontes consultadas para coleta de dados foram o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), a Organização das Nações Unidas (ONU), o Banco Mundial, o Fundo Monetário
Internacional (FMI), entre outras instituições e programas que contemplam o assunto no ano de 2013.
No entanto, por não apresentarem dados estatísticos, realizou-se a captação de dados em anos
imediatamente anteriores em alguns casos.
Os países estudados foram Venezuela, Argentina, Brasil, Colômbia e Haiti com a finalidade de
apresentar a real situação econômica e social destes, a partir de indicadores de desenvolvimento, tais
como:
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH): “índice composto que mede as realizações em três
dimensões básicas do desenvolvimento humano - uma vida longa e saudável, o conhecimento e
um padrão de vida digno” (PNUD, 2013, p. 153). Medido entre 0 e 1, sendo que, valores mais
próximos a 1 indicam alto índice de desenvolvimento humano naquela região.
Expectativa de Vida ao Nascer: “número de anos que uma criança recém-nascida poderia esperar
viver se os padrões prevalecentes das taxas de mortalidade por idades à data do nascimento
permanecessem iguais ao longo da sua vida” (PNUD, 2013, p. 153).
Taxa de Alfabetização: percentagem de pessoas com 15 ou mais anos de idade que saibam ler e
escrever um bilhete simples no idioma que conhece.
Índice de Gini: cálculo usado para medir a desigualdade social, cujo valor varia de zero (perfeita
igualdade) a um (a desigualdade máxima).
Eletricidade per capita: energia elétrica consumida por habitante.
Saneamento Básico: população com acesso a rede sanitária.
Abastecimento de Água: população com acesso a água potável.
Produto Interno Bruto (PIB): valor de mercado de todos os bens e serviços finais, produzidos em
uma nação em determinado período de tempo (MANKIW, 2005). Quanto mais elevado o PIB,
melhor e mais próspera a condição de vida nessa nação (FERREIRA, 2012).
PIB per capita: resulta da divisão do PIB da nação por sua população total, de modo a verificar a
riqueza média desta.
Dívida Pública Federal: refere-se a todas as dívidas contraídas pelo governo federal para
financiamento do seu déficit orçamentário, incluindo o refinanciamento da própria dívida e
outras operações com finalidades específicas, definidas em lei (STN, 2013).
Taxa de Desemprego: população de 15 anos ou mais de idade economicamente inativa.
Importações: total de bens e serviços produzidos no exterior e, posteriormente, comprados por
clientes locais.
Exportações: total de bens e serviços produzidos localmente e, posteriormente, vendidos a
clientes estrangeiros.
Saldo da Balança Comercial: total de recursos financeiros que entram e saem de um país na forma
de importações e exportações de produtos, serviços, capital financeiro, bem como transferências
comerciais (STN, 2013).
Para a apresentação das análises social e econômica da Venezuela, Argentina, Brasil, Colômbia e
Haiti foi realizada, primeiramente, uma caracterização geral a partir dos aspectos demográficos dessas
regiões, como mostra a Tabela 1.
Com base nos dados acima, pode ser observado que o Brasil é o país, dentre os analisados, com
maior extensão territorial e maior população absoluta, ou seja, 8.515.767 km² e 199.242.462 habitantes,
respectivamente. O Brasil compreende uma área e uma população quase duas vezes maior que todos os
países em estudo, conjuntamente.
A maior parte da população brasileira (84,9%) se concentra na zona urbana, assim como a
população dos demais países. No entanto, no Haiti esse percentual é bem menor, sendo a ocupação na
zona rural mais acentuada (45,2%), evidenciando o caráter primário da região desde a colonização.
O Haiti é responsável ainda pela maior densidade demográfica dos países em estudo, com 370
habitantes por km². A Argentina, por sua vez, possui uma densidade demográfica relativamente baixa
para os padrões mundiais, ou seja, apenas 30% da média mundial, de 50 habitantes por km². Tal fato se
explica devido a Argentina se encontrar no bloco de países continentais e o Haiti no de países insulares.
Indicadores Sociais
Os indicadores sociais são medidas de monitoramento do bem-estar social e,
consequentemente, do desenvolvimento de determinadas regiões. Assim sendo, a Tabela 2 revela
informações sobre o desenvolvimento dos países localizados na América Latina, vistos a partir destes.
Desde o ano 2000, todos os países registraram progressos na educação, na saúde e nos
rendimentos, como aferidos pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). No entanto, analisando
esses países de forma específica, observa-se que a Argentina e a Venezuela são as nações em estudo
com os melhores indicadores sociais.
No Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) de 2013, ano base 2012, elaborado pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), os IDHs da Argentina e da Venezuela
são considerados como muito elevado (0,811) e elevado (0,748), ocupando a 45ª e 85ª posições,
respectivamente. O Haiti é o único, dentro desse conjunto de países, com desenvolvimento humano
baixo (165ª), os demais apresentam IDHs considerados muito elevado e elevado.
A América Latina foi, em 2012, a região com maior crescimento nos indicadores de
desenvolvimento humano no mundo (0,67%). Atualmente, esta apresenta IDH (0,741) inferior apenas
ao da região europeia, onde planejamentos e altos investimentos sociais fizeram com que países
obtivessem um alto índice de desenvolvimento. O nível mundial do IDH é de 0,694 (PNUD, 2013).
Ainda de acordo com o RDH (2013), a América Latina apresentou índices positivos em todas as
variáveis que compõem o IDH, entre os quais se destaca uma expectativa de vida de 74,7 anos, também
acima da média mundial de 70,1 anos. Tal fator se explica, segundo o PNUD (2013), devido à
integração de “Estados fortes” na economia e no comércio mundial. A Colômbia, por sua vez,
apresenta expectativa de vida maior que a brasileira (73,9 anos), mesmo sendo um país com menor
desenvolvimento humano e uma prevalecente desigualdade de rendas e riquezas. Observa-se ainda que
no Haiti, a expectativa de vida é, em média, dez anos menos do que na Venezuela, Argentina, Brasil e
Colômbia.
A proporção de pessoas de 15 ou mais anos de idade alfabetizadas na Argentina (97,6%) e na
Venezuela (93,0%), também é superior aos índices dos países analisados. No Brasil, este percentual é de
90,4, mostrando que quase 10% da população não sabem ler e escrever um bilhete simples no idioma
que conhece.
A Colômbia, mesmo com seu caráter guerrilheiro, apresenta menor taxa de analfabetismo que o
Brasil e o Haiti, e uma taxa pouco superior ao índice da Venezuela, com 92,7% de sua população
alfabetizada. Já no Haiti, país possuidor dos piores índices, o problema afeta mais de um terço (34,7%)
da população com idade superior a 15 anos, indicando que muito tem a ser feito pelo país mais pobre
do hemisfério Ocidental (PNUD, 2013).
Nesse ranking, o Brasil ocupa a décima segunda maior taxa de analfabetismo, em um total de 20
países, ficando atrás dos índices de Cuba (0,2%), Uruguai (1,9%), Argentina (2,4%), entre outros
(PNUD, 2013).
Estimativas mostram ainda que a taxa de analfabetismo da América Latina reduziu 68,5% entre
1970 e 2010, passando de 26,3% para 8,3%. E mais, a ONU estima que em 2015 tal percentual será de
7,1 para a América Latina e de 8,2 para o Brasil (PNUD, 2013).
A Tabela 2 demonstra o índice de Gini, onde apontam o Brasil com resultado de 0,539, sendo
assim, o sétimo país mais desigual do mundo, à frente apenas da Colômbia, Haiti, Bolívia, Honduras,
África do Sul e Angola (PNUD, 2013).
A Colômbia e o Haiti, mesmo apresentando-se como regiões com posições tão extremas em
alguns índices, como os citados acima, nesse, estes se apresentam como pouco díspares, vez que o nível
de desigualdade colombiano é inferior ao haitiano em menos de 10%.
Os dados do PNUD (2013) permitiram constatar ainda que, dos 10 países mais desiguais do
mundo, segundo o índice de Gini mundial, 06 se encontram na América Latina, região mais desigual
atualmente.
Quanto ao nível de eletricidade per capita, pode ser observado que a Venezuela, país que vem
apresentando bom comportamento dos indicadores sociais, apresenta neste um valor elevado (3.061
kWh por habitante), um dos fatores que justificam a necessidade declarada de estado de emergência do
sistema de serviço elétrico do país, pelo governo venezuelano, em abril de 2013.
O ministro venezuelano de Energia Elétrica, Jesse Chacón, afirma que o país se tornou o maior
consumidor de energia per capita da América Latina, devido ao aumento da demanda advinda do
fornecimento de energia à população que jamais obtivera esse recurso (TADDEO, 2013).
A Venezuela possui uma capacidade de consumo elétrico superior ao do Haiti em quase 100
vezes. A Argentina, o Brasil, e a Colômbia apresentam níveis de consumo inferiores ao venezuelano em
18,9%, 25,3% e 71,9%, respectivamente.
Em termos de recursos hídricos, afirma-se que a América Latina é responsável por mais de 31%
da água doce mundial, sendo considerada a região mais rica no que tange a disponibilidade de água por
habitante. No entanto, estimam que 78 milhões de habitantes dessa região, ou seja, 15% da população
carecem de água potável devido à explosão da urbanização dos países em desenvolvimento. Além disso,
irregularidades no abastecimento fazem com que países da mesma região apresentem disparidades tão
significativas, como podemos observar entre Argentina e Haiti, por exemplo (BANCO MUNDIAL,
2013).
Pode ser observado também que, os índices dos países analisados são elevados no que tange ao
acesso da população a água potável. Na Argentina, 99% da população dispõem desse benefício e
possuem todos os atributos para que esse percentual chegue a 100, com a criação de novos programas
que os beneficiem, em 2012. No Haiti, por outro lado, esse percentual é de apenas 64, mostrando que
quase 7 milhões de habitantes passaram a ter esse problema social a partir do terremoto ocorrido em
2010 na capital do país, Porto Príncipe. Comparado ao Brasil, Argentina e Colômbia, o Haiti possui,
uma taxa 34% menor referente ao nível de acesso à água potável.
Em saneamento, o índice haitiano é ainda mais preocupante, de apenas 26%. Nos demais
países, com exceção da Venezuela, devido a não estimação, e da Argentina, por contar com 96% de sua
população com saneamento básico, tais valores também não são tão favoráveis. A Argentina possui um
nível de saneamento 73% maior que o do Haiti. No Brasil, por sua vez, apenas 45,7% dos domicílios
tem acesso à rede de esgoto sanitário, onde dos 5.564 municípios, 2.495 não contam com nenhum tipo
desse serviço (IBGE, 2013).
O relatório “Programa de Monitoramento Conjunto para Abastecimento de Água e
Saneamento”, realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF) em 2013, estimou que a carência do serviço de saneamento atingirá 2,4
bilhões de pessoas no mundo até 2015. Dentre estes, 22%, o equivalente a 175 milhões de pessoas,
serão da América Latina, onde a falta deste e de água é comum (OMS/UNICEF, 2013).
Segundo Sanjay Wijesekera, diretor global do Programa de Água, Saneamento e Higiene do
UNICEF, "esta é uma situação de emergência não menos terrível do que um forte terremoto ou
tsunami". Afirma ainda que "todos os dias centenas de crianças morrem, todos os dias milhares de pais
choram seus filhos e filhas. Podemos e devemos agir em face desta colossal tragédia humana diária"
(OMS/UNICEF, 2013, p. 1).
Indicadores Econômicos
Autores afirmam que os indicadores econômicos buscam apresentar informações do sistema
econômico de determinada região:
Os indicadores econômicos (IEs) representam essencialmente dados e/ou
informações “sinalizadoras” ou “apontadores” de comportamento (individual ou
integrado) das diferentes variáveis e fenômenos componentes de um sistema
econômico de um país, região ou estado (LOURENÇO; ROMERO, 2002, p. 27).
Com base nos dados apresentados no “Balance Económico Actualizado de América Latina y el
Caribe 2012” de abril de 2013, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), nota-
se que o crescimento do PIB da América Latina foi de 3,0%. O motivo deste ter sido menor que os
3,1% estimados no fim de 2012, deve-se ao fato que as taxas de crescimento da Argentina (1,9%) e do
Brasil (0,9%) foram menores que as estimativas iniciais. Dentre os países latinos americanos, a taxa
brasileira ficou a frente apenas do Paraguai, cujo índice foi de -1,2%.
No entanto, observa-se na Tabela 3 que o Brasil e a Argentina respondem, conjuntamente,
pelos maiores índices, ou seja, são as maiores economias da América Latina. Entretanto, comparando
com os países em estudo, o PIB brasileiro é duas vezes maior que o PIB destes, concomitantemente.
Adicionalmente, comparando com o PIB da Venezuela, Argentina e Colômbia têm-se um PIB médio
de US$409,04 bilhões, ou seja, apenas 16,8% do PIB do Brasil. Nota-se ainda que o PIB brasileiro é
superior ao haitiano 310 vezes.
Os países, Venezuela, Colômbia e Haiti apresentaram crescimentos de 5,6%, 4,0% e 2,8% no
ano de 2012, respectivamente. Para 2013, as estimativas são de crescimento em 2,0% para a Venezuela,
de 4,5% para a Colômbia, de 6,0% para o Haiti, de 3,5% para a Argentina e de 3,0% para o Brasil. Para
a América Latina, como um todo, estimam-se um percentual de crescimento de 3,5 a partir da
recuperação agrícola e dos investimentos da Argentina e do Brasil, perdidos em 2012 (CEPAL, 2013).
Quanto ao PIB per capita, destaca-se que a Argentina, mesmo com um PIB teoricamente
pequeno comparado ao do Brasil, possui o maior índice (US$11.601,63 por habitante). O Brasil,
detentor de maior PIB, porém, com maior número populacional, apresenta PIB per capita duas vezes
menor que o argentino e doze vezes maior que o haitiano, de apenas US$459,7 por habitante.
Comparando com o PIB per capita da Argentina têm-se que este é 25 vezes maior que o haitiano, 2
vezes maior que o colombiano e, aproximadamente, 2 vezes o venezuelano.
No entanto, ao analisar a taxa de crescimento do PIB per capita desses países, apresentado no
“Estudio Económico de América Latina y el Caribe: tres décadas de crecimiento desigual e inestable”
da Cepal, vê-se que a Venezuela (4,0%), a Colômbia (2,6%) e o Haiti (1,5%) apresentaram aumentos
superiores ao da Argentina (1,0%). O Brasil, no entanto, apresentou crescimento baixíssimo de apenas
0,1%, tornando-o um dos países mais desiguais da América Latina mesmo com crescimento econômico
e redução da pobreza nos últimos anos. Por sua vez, a América Latina apresentou crescimento de 1,9%
em seu PIB per capita (Cepal, 2013).
A Dívida Pública Federal (DPF) inclui os endividamentos das nações. Desse modo, no que
tange aos países em análise, pode-se observar na Tabela 3, que o Brasil é o país com maior dívida
pública, ou seja, 65,1% do orçamento da União são destinados ao pagamento da mesma. Em termos
monetários isso significa, cerca de, R$ 2 trilhões, com estimativas de aumentos entre 4,58% e 11,55%
em 2013, podendo chegar a R$ 2,24 trilhões (STN, 2013).
Maria Lucia Fattorelli, auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira “Auditoria
Cidadã da Dívida”, afirma que:
A dívida pública se transformou em um mero instrumento do mercado financeiro.
Em lugar de servir como meio de obtenção de recursos para financiar o Estado e
incrementar as condições de vida de todos os brasileiros, tornou-se um mecanismo de
subtração de crescentes volumes de recursos públicos, inviabilizando a destinação de
verbas para áreas sociais e provocando a piora nas condições de vida da sociedade em
geral, enquanto favorece o setor financeiro (UNISINOS, 2012, p. 1).
Na Argentina onde, atualmente, tentam aprovar nova reestruturação da dívida, esta corresponde
43,2% do PIB desta nação. No Haiti, esse percentual é de apenas 16,2, devido ao fato de que seus
principais credores, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), juntamente com os governos dos
Estados Unidos, Canadá e França, perdoaram a dívida em quase sua totalidade para que se iniciasse o
Plano de Reconstrução do Haiti (PSTU, 2013).
A DPF da Colômbia é duas vezes menor que a brasileira, consumindo apenas 32,3% do PIB
deste país. Diante disso, estima-se uma tendência de melhora, vez que, mesmo com o menor
crescimento da economia devido à crise externa, este foi maior que o brasileiro. Luiz Cherman,
economista do Itaú Unibanco, afirma que a Colômbia tem feito o dever de casa por meio de reformas
políticas para melhorar sua situação, como é o caso da “regra fiscal” (MANIERO, 2012).
No relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre as tendências mundiais do
emprego, foi declarado que a taxa de desemprego mundial alcançará níveis inéditos, podendo chegar a
202 milhões de pessoas desempregadas findos 2013. A situação é ainda mais preocupante entre os
jovens entre 15 e 24 anos, cuja taxa poderá atingir 12,6% destes. No entanto, a América Latina poderá
fechar o ano com o índice entre 6,4% e 6,2%, ou seja, o mais baixo das últimas décadas (OIT, 2013).
Na Tabela 3, constata-se que a Argentina e a Venezuela, conhecidas por apresentarem os
melhores índices, perdeu lugar ao Brasil, o qual possui melhor comportamento desse indicador com
apenas 5,6% da sua população desempregada. A Colômbia possui quase 10% de sua população com
essa problemática social.
No entanto, índice alarmante é o do Haiti, onde o indicador, taxa de desemprego, sempre foi
um problema social devido à incapacidade de geração de rendas no país. Comparado aos demais países,
mesmo com dados de 2010, este possui uma taxa de desemprego altíssima (40,6%), chegando a possuir
uma taxa cinco vezes maior que a taxa de desemprego média dos países em estudo,
concomitantemente. Com a ocorrência do terremoto, esse percentual chegou a 95% da população
economicamente ativa em 2011, onde mais de 70% da população vivia e vive até hoje do mercado
informal (OIT, 2013).
No que tange a capacidade de importação e de exportação dos países analisados, podemos
constatar que Brasil e Venezuela detêm os melhores índices. Tal fato deve-se a produtividade
petrolífera da Venezuela, a qual ocupa o lugar de maior produtora da América do Sul com uma média
de 3 milhões de barris/dia (FERNANDES, 2012).
No Brasil, o principal responsável pelos altos índices são as elevadas exportações de milho e
derivados, como carne e etanol, entre outros, ou seja, das commodities agrícolas como um todo. Um
dos fatores que favoreceram tal fato foi a forte seca que atingiu a safra norte-americana, reduzindo a
oferta mundial desses produtos pelos Estados Unidos. Para a América Latina, região com enorme
riqueza de matérias primas e bens básicos para o comércio, este foi o grande fator para a superação de
crises (FERNANDES, 2012).
Os saldos das balanças comerciais apresentaram superávits, com exceção do Haiti, cujo déficit
foi de US$181 milhões em 2012. No Brasil, estima-se que, mesmo estando em superávit, tal poderá se
reverter para um déficit de US$2 bilhões no fim de 2013, devido a atual redução das exportações
petrolíferas advinda da desativação de algumas plataformas da Petrobrás. O presidente da Associação
de Comércio Exterior do Brasil, José Augusto de Castro, informa que se tal fato não viesse a ocorrer, o
saldo da balança comercial do Brasil poderia chegar a um superávit de US$7 a US$10 bilhões em 2013
(BRANCO, 2013).
Conclusão
Este artigo buscou analisar 14 variáveis socioeconômicas dos seguintes países: Venezuela,
Argentina, Brasil, Colômbia e Haiti. Percebeu-se durante o estudo que na Argentina e na Venezuela, as
variáveis que denotam aspectos relacionados à qualidade de vida da população, possuem valores que
representam uma evolução positiva a nível social e econômico em comparação com as demais nações,
como IDH, Índice de Gini, PIB per capita, Taxa de Desemprego, entre outras, nos anos de 2011, 2012 e
2013.
Porém, o que foi constatado durante a pesquisa e chamou a atenção foram os dados da
Colômbia para 2013, mesmo tendo: a menor área por quilômetro quadrado; a segunda maior
população, perdendo somente para o Brasil; a maior densidade demográfica, que chega quase ao dobro
frente a do Brasil; maior taxa de desemprego; menor saldo na Balança Comercial; enfrentado Guerra
Civil e guerrilhas desde 1960, apresenta melhor expectativa de vida que o Brasil, e apresenta um IDH,
que se comparado com o do Brasil (0,730) e o da Venezuela (0,748), pode-se concluir que existe uma
melhor aplicação do dinheiro público em favor da população nessa nação.
Outro fator importante refere-se ao Haiti, que em 1790 era, porventura, o país mais rico do
Novo Mundo, e atualmente ocupa a posição de país mais pobre do hemisfério Ocidental.
Na América Latina apesar da desigualdade ter diminuído, esta se apresenta, como a região mais
desigual de todas as regiões do mundo no tocante à distribuição de riquezas (PNUD, 2013). Desse
modo, evidencia-se a existência de diferenças marcantes entre as nações estudadas e, mais ainda, entre
essas e os países em estudo pertencentes ao mundo em desenvolvimento.
Referências
BANCO MUNDIAL. Desigualdade no abastecimento de água é um dos grandes desafios para a América Latina. Disponível
em: <http://www.worldbank.org/pt/news/feature/2012/08/30/agua-saneamiento-america-latina>. Acesso em:
07 ago. 2013.
BRANCO, M. Petróleo pode fazer balança comercial fechar com déficit este ano. Disponível em: <
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-08-18/petroleo-pode-fazer-balanca-comercial-fechar-com-deficit-
este-ano>. Acesso em: 09 ago. 2013.
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Secretaria de Planejamento e Investimentos
Estratégicos. Indicadores de programas: Guia Metodológico. Brasília: MP, 2010.
CEPAL. Balance Económico Actualizado de América Latina y el Caribe 2012. Disponível em:
<http://www.eclac.org/publicaciones/xml/3/49713/Balanceeconomicoactualizado2012.pdf>. Acesso em: 11
ago. 2013.
Márcio Eckardt1
Rafael Gualberto de Ávila2
Yolanda Vieira de Abreu3
Introdução
A
modalidade de Compra Direta Local é realizada por meio da aquisição de alimentos dos
agricultores enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF). Os alimentos são fornecidos pelas entidades sócios assistenciais que atendem as
famílias ou indivíduos que estejam em estado de insegurança alimentar nutricional, em vulnerabilidade
social, pessoas atendidas por programas sociais, crianças de escolas públicas. Para o funcionamento do
programa é firmado convenio com os governos estaduais que são responsáveis pela operacionalização
(BRASIL, 2011).
Os produtos que podem ser comercializados pelos agricultores e permitidos pelo PCD e PCDL
são os alimentícios oriundos da agricultura familiar para consumo humano, que incluem alimentos
perecíveis e característicos da região e do hábito alimentar. A região de abrangência da regional de
Paraíso do Tocantins atende a estas exigências, adquirindo produtos dos agricultores familiares, que são
peça fundamental para o estado do Tocantins que vem vivenciando crescimento dos centros urbanos
ao mesmo tempo em que o número de habitantes na área rural vem diminuindo.
O Estado do Tocantins esta localizado na região Norte do Brasil, na área denominada de
Amazônia Legal, possui extensão territorial que pode ser estilizada para produção agrícola de
13.921.035ha. Deste potencial 7.500.000ha são pastagens e 600.000ha são atualmente explorados com
agricultura, restando uma área a serem explorados de 6.900.000 hectares (SEAGRO, 2011).
As principais atividades agropecuárias desenvolvidas pelos agricultores familiares são a criação
extensiva de gado bovino e os cultivos de arroz, mandioca, milho e fruticultura. (CONAB, 2008). Com
a aquisição destes produtos, o Estado, através da execução do Programa Federal de Aquisição de
Alimentos busca contribuir para o melhoramento das condições dos agricultores familiares.
A agricultura familiar apresenta-se no Tocantins com o total de 56.567 unidades familiares
(IBGE, 2006) que podem ser incluídas no Programa de Compra Direta (PCD), criado pelo governo
federal para ser desenvolvido pelos municípios brasileiros. Este torna possível que agricultores
1 Prof. MSc. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (Campus Paraíso)
2 Prof. MSc. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Tocantins (Campus Gurupi)
3 Profa. Dra . Universidade Federal do Tocantins (Campus de Palmas)
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 878
familiares comercializem seus produtos através da venda direta às instituições municipais, estaduais e
federais sem licitação ou procedimentos burocráticos normais exigidos por estes. No Estado do
Tocantins as entidades beneficiadas pelo programa são as escolas, creches, casas de repouso e outras
instituições localizadas na região em que estes agricultores familiares estão inseridos. O PCD tem como
meta a aquisição de produtos agropecuários produzidos por agricultores familiares os quais tenham o
perfil exigido pela legislação específica destinada ao mesmo.
Para participarem do Compra Direta Local, os agricultores devem estar inscritos no Pronaf
sendo que cada beneficiado poderá comercializar até o valor total de R$4.500,00 por ano em produtos
como hortaliças, cereais, doces, legumes, derivados do leite, frutas entre outros produtos regionais.
Com a venda de produtos regionais foi possível, no ano de 2010, a 173 agricultores familiares
da regional de Paraíso do Tocantins participantes do programa Compra Direta Local atenderem a 69
entidades beneficiadas. Como resultado deste estudo pretende-se apresentar como o PCD propiciou
melhoria na renda dos agricultores familiares, inclusos no programa, e na segurança alimentar de
crianças e adultos das instituições beneficiadas.
O estudo de caso descrito é o da regional de Paraíso do Tocantins abrangendo 15 municípios.
O fato de 84% dos empreendimentos agrícolas no Brasil serem classificados como familiar e empregam
74,4% da população rural, além de representar 10% do PIB (MDA, 2013). Faz deste trabalho um
instrumento de reflexão quanto a agricultura familiar.
Material e métodos
O Programa de Compra Direta analisado é o da região da cidade de Paraíso do Tocantins (TO-
BR). A abordagem da pesquisa realizada foi do tipo exploratório, explicativo e descritivo. A coleta de
dados foi do tipo bibliográfico (livros, revistas, relatórios, outros) e, também, coleta de dados
estatísticos, in loco, nas instituições locais ligadas ao assunto desta pesquisa. Das instituições municipais,
estaduais e federais, no geral, envolvidas no PCD, pode se citar por exemplo: RURALTINS (Instituto
de Desenvolvimento Rural do Estado do Tocantins), IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), CONAB (Companhia
Nacional de Abastecimento) e outros. A delimitação temporal foi a do período que compreende a
comercialização dos produtos pelos agricultores nos anos de 2009 e 2010. Porém, este período foi
flexibilizado, quando necessário, quanto a fatos e dados históricos ou estatísticos para entender a
dinâmica do desenvolvimento do programa.
Resultado
Para incentivo e fomento da atividade da agricultura familiar o governo do estado do Tocantins
– TO por intermédio de sua LEI 2.069/2009 em seu Inciso II isenta da taxa de serviços Estaduais
(TSE) na emissão de nota fiscal avulsa relativa às operações.
Com a participação da agricultura familiar a adesão ao programa compra direta no estado por
intermédio da regional de Paraíso do Tocantins atende aproximadamente 15 municípios, 69 entidades
que recebem uma diversificação de 150 tipos de produtos com preço estabelecido em pesquisa de
mercado. Entregam seus produtos ao programa 173 dos 5.322 agricultores familiares cobertos pela
regional, perfazendo um total de 3.25%. Os produtores receberam aproximadamente no ano de 2010
em média, segundo dados do controle financeiro da regional de Paraíso do Tocantins R$1.365,39 por
produtor.
Para manter a qualidade dos produtos fornecidos pelos produtores e garantir a segurança
alimentar a Secretaria da Agricultura solicita que todos os produtos devem ter a aprovação da vigilância
sanitária. Produtos como galinha caipira ou aves em geral devem estar abatidas congeladas e
empacotadas com o nome do produtor e seu endereço fixado em local visível para contato, se
necessário. Também, foram comercializados outros produtos como a mandioca, que deve estar limpa e
em caixas, milho verde, que deve estar sem palha, polpas de frutas, que deverão estar em embalagens de
500 gramas ou 1 quilo para facilitar o uso e ter padronização, o mel, que deverá ser entregue em
embalagem própria, sendo que para o mel não será permitido o uso de garrafa PET. Os produtos
devem obedecer ao padrão sugerido pela Secretaria de Estado e devem estar em condições de uso
imediato após o recebimento pela entidade. Se o produtor entregar um produto estragado ou sem
qualidade, este produto será devolvido. Ao persistir o problema de entrega de produtos sem condições
de uso o produtor responsável por tal entrega será desligado do programa.
Para minimizar os problemas de qualidade dos produtos decorrentes, muitas vezes pela
dificuldade de entrega e para agilizar a distribuição às entidades estão sendo implantadas as Centrais de
Distribuição nos municípios atendidos pelo programa de Compra Direta Local. Esta central servirá
para a entrega dos produtos por parte do produtor e local de retirada dos produtos por parte das
entidades beneficiadas.
Discussão
O PCDL na regional de Paraíso do Tocantins está sendo desenvolvido em 15 municípios
circunvizinhos onde beneficia em torno de 69 entidades carentes cadastradas como creches, escolas e
asilos. Dentro das 69 entidades o montante de pessoas beneficiadas é de 8.466 pessoas as quais
começam a ter acesso a segurança alimentar.
Entre as pessoas beneficiadas 4.587 pessoas são do sexo feminino e 3.879 pessoas do sexo
masculino, merecendo destaque ao montante de mulheres beneficiadas, pois nesse grupo ao se
trabalhar a segurança alimentar além de se reduzir a fome, há também a redução da taxa de mortalidade
infantil. Assemelhando-se a outros trabalhos realizados pelo governo federal como exemplo os
trabalhos desenvolvidos em comunidades indígenas no país (Programa de Segurança Alimentar e
Nutricional de Mulheres e Crianças Indígenas).
Conclusão
O Programa de Compra Direta organizado pela regional de Paraíso do Tocantins (TO) está em
conformidade com as estratégias de atuação do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar dando segurança alimentar para a população que se enquadra nas regras estabelecidas para
classificação das famílias ou entidades requerentes. O programa oferece garantia de mercado para os
agricultores familiares que estão cadastrados e ao mesmo tempo oferece alimentos de qualidade às
pessoas atendidas pelas entidades sociais e assistências da região. Os produtores recebem o preço justo,
conforme pesquisa de mercado, realizada antes da comercialização, evitando a ação de atravessadores
que exploram os produtores rurais.
Além disso, a implantação do programa na região de Paraíso do Tocantins gerou um aumento
da renda média dos agricultores, tem garantindo o acesso a alimentos saudáveis às populações em
situação de insegurança alimentar. Esta promovendo a inclusão social no campo, por meio do
fortalecimento da agricultura familiar e da segurança da compra de seus produtos a preços justos. Este
tipo de programa é muito importante uma vez que permite ao agricultor manter a si e sua família com
dignidade e promover melhoria na qualidade de vida do mesmo.
Referências
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<http://www.mds.gov.br/segurancaalimentar/> acesso em: 04 ago 2011.
_______. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). MDA apresenta politicas em encontro com novos prefeitos e
prefeitas em MT. Disponível em: http://portal.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=12556120. Acesso em
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COMPANHIA NACIONAL DE ABASTECIMENTO – CONAB. Acompanhamento da Safra Brasileira.
Grãos, safra 2007/2008, Décimo Levantamento, Brasília, Julho de 2008. Disponível em
<http://www.conab.gov.br> Acesso em: 07 de Ago de 2011.
IBGE. Censo Agropecuário de 2006. Agricultura Familiar: primeiros resultados. Brasil, Grandes Regiões e Unidades
da Federação. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. Acesso em: 05 ago 2011. Disponível em:
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SEAGRO. Agricultura. Tocantins. 2011. Acesso em: 05 ago 2011. Disponível em:
http://www.seagro.to.gov.br/conteudo.php?id=18
Introdução
O
Mercosul surge da busca, nos anos de 1980, por maior inserção na economia global,
sobretudo, de Brasil e Argentina, que tiveram papel determinante no seu processo de
construção, majoritariamente, como forma de integração comercial. No limiar da década
de 1990 e início dos anos 2000, porém, a entidade voltou-se à ampliação do seu escopo e à
incorporação das questões sociais em sua agenda. Trata-se de um momento, fortemente influenciado
pelas demandas de atores não estatais que, fortalecidos pela realização do Fórum Social Mundial em
2006, acreditam que outra integração é possível (DELLO BUONO, 2006).
É nesta perspectiva que se apresenta esta comunicação com o objetivo de refletir sobre as bases
da integração social do Mercosul, tendo em vista os avanços e limites em termos de políticas públicas
no âmbito do bloco, em uma perspectiva crítica. Mais especificamente, versar-se-á, a respeito das
políticas públicas culturais, educacionais e de agricultura familiar.
O surgimento do Mercosul
O processo de integração latino-americana foi iniciado no século XIX, tão logo se desenvolve
o movimento de independência dos países da região, com ideais de proteção contra as metrópoles e de
solidariedade entre os países. Mas somente em meados dos anos de 1950 a ideia de integração se firma
e se consolida a partir da criação da Associação de Livre Comércio da América Latina (Alalc) em 1960
como tentativa de construção de um mercado comum para maior inserção dos países latino-americanos
no comércio internacional. Mais tarde encaminharam-se negociações mais abrangentes e, ao mesmo
tempo mais flexíveis, de modo a incorporar os diversos interesses a partir da criação da Associação
Latino Americana de Integração (Aladi), em 1980. Esta organização teve bastante relevância para os
diversos países da região na medida em que estabeleceu “uma estrutura capaz de viabilizar a negociação
de acordos de liberalização comercial entre eles, permitindo acordos bilaterais ou plurilaterais, graduais
e progressivos.” (ARAÚJO, 2006 p. 114)
1Autores do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas – NEPPs / Faculdade de Ciências Humanas e Sociais / Universidade
Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" – Unesp, Franca/Brasil
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 883
As aproximações, sobretudo entre Brasil e Argentina, que mais tarde dão vida ao Mercosul
iniciam-se com a assinatura do acordo Itaipu-Corpus já em 1979 entre os governos brasileiro, argentino
e paraguaio. Tal aproximação avança no interior da própria Aladi, a partir de 1980, com a assinatura do
Tratado de Montevidéu e se acelera após a redemocratização dos dois primeiros países com a adoção
da Declaração de Iguaçu (1985), o Programa de Integração e Cooperação Econômica (1986) e o
Tratado de Integração e Desenvolvimento (1988). O salto determinante destas aproximações se deu em
março de 1991 quando, juntamente à participação do Paraguai e Uruguai, adotou-se o Tratado de
Assunção, marco que institucionalizou o Mercado Comum do Sul.
O objetivo destas aproximações na direção da construção do Mercosul pressupunham a
formulação de uma alternativa de desenvolvimento conjunto de modo a facilitar a inserção na
economia global pois, como afirma Oliveira (2003, p. 13)
[...] essas ações facilitariam a abertura comercial ao mundo externo e a competitividade
global, preservando ainda uma certa fronteira regional em relação ao espaço
econômico mundial, bem como a articulação entre diversas outras esferas, como a
científica, a tecnológica, a se segurança e a financeira, num amplo espectro de
perspectivas de colaboração, que propiciariam, pelo menos idealmente, antes de mais
nada, a reestruturação produtiva das empresas da região e, por conseguinte, tanto a
retomada do desenvolvimento nacional quanto o sucesso da integração regional entre
os países.
Deste modo, iniciava-se uma nova forma de inserção de Argentina e Brasil no sistema
internacional, baseada na aplicação destas medidas neoliberais com vistas a consolidar uma "plataforma
de expansão comercial ou circuitos auxiliares de valorização patrimonial e financeira" (TAVARES &
MELIN, 1998, p. 77 apud OLIVEIRA, 2003, p. 15)
exclusivamente, para o mercado externo. (MARIN, 2002). Nesse contexto, a agricultura familiar
desponta como alternativa de produção e importante estratégia para garantir a segurança alimentar na
região tanto em termos de quantidade de alimentos quanto em qualidade.
Preocupações com essa temática deram origem à Reunião Especializada sobre Agricultura
Familiar do Mercosul (REAF), criada pela resolução 11/2004 do Grupo Mercado Comum (GMC), a
partir de uma proposta do governo brasileiro. A REAF, tem por objetivo, “inserir a agricultura familiar
no processo de integração regional por meio do fortalecimento das políticas públicas e da geração de
renda pela facilitação do comércio dos produtos da agricultura familiar.” (REAF, 2011). O órgão conta,
ainda com 05 (cinco) unidades temáticas, que são responsáveis por tratar de assuntos mais específicos,
como acesso à terra e reforma agrária, facilitação de comércio, gênero, seguro agrícola e gestão de risco
e juventude rural.
As atividades da REAF, segundo Costa e Pires (2008), podem ser divididas em dois ciclos. O
primeiro ciclo, que compreende da I à V REAF, teve como traço marcante de atuação a realização de
estudos e diagnósticos. Nesse ciclo foram criadas as Seções Nacionais, que são comissões que avaliam
políticas públicas internas aos países do bloco e levam à REAF experiências e modelos que tem
potencial de se tornarem comuns, através do processo de transferência internacional de políticas
públicas.2 Quantos aos estudos, nessa etapa se trataram de temas iniciais e de mapeamento,
relacionados à representatividade da agricultura no Mercosul e à estrutura de produção e
comercialização dos produtos agrícolas.
Portanto, observa-se que a REAF apresentou atuação muito tímida nesse primeiro ciclo, de
forma que não houve implementação de nenhum projeto de incentivo à agricultura familiar, como
colocam Costa e Pires, “em resumo, este primeiro ciclo consistiu em um estudo para a compreensão da
Agricultura Familiar e de sua representatividade.” (COSTA e PIRES, 2008. p.09).
A partir de 2006 tem início o segundo ciclo da REAF (COSTA e PIRES, 2008). Nesse novo
momento fica clara a mudança na atuação do órgão, que passa a agir de modo mais organizado e com
maior participação da sociedade civil. Como destacam Costa e Pires, “Nota-se claramente a
preocupação em ir além dos estudos teóricos e concentrar esforços para que as discussões atinjam de
fato os agricultores através das políticas públicas.” (COSTA e PIRES, 2008. p.12).
Nesse sentido, tem início a implantação de vários programas pilotos, como o Programa de
seguro agrícola para a agricultura familiar, o Programa de fortalecimento institucional de políticas de
igualdade de gênero na agricultura familiar do Mercosul, o Fundo “Seguro de colheita” (programa de
cobertura de riscos climáticos) e alguns outros, que visavam forçar a atuação mais direta da REAF.
2Entendida aqui como um processo político que conduz à adoção de políticas públicas semelhantes por diferentes países, a
partir de trocas de experiências e compartilhamento de Know How. Para um estudo mais aprofundado consultar: MARIN,
Pedro de Lima. Mercosul e a disseminação internacional de políticas públicas. Disponível em:
<http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/cgpc/article/view/3567/2252> .
Muito embora alguns desses programas tenham alcançado relativo sucesso, como o caso do Programa
de educação não-formal de jovens rurais, que objetivava capacitar jovens líderes rurais, o que se percebe
é que as iniciativas permaneceram tímidas, limitadas à pequenas regiões experimentais.
Por um outro lado, dois novos projetos do REAF, pensados a partir de 2009, tem se destacado
como programas potenciais para o fortalecimento da agricultura familiar em toda a região, sendo o
Programa de compras públicas e o Fundo da Agricultura Familiar (FAF). O primeiro, é um programa
que busca, por meio de intercâmbio de experiências entre os países membros do Mercosul, fortalecer as
políticas públicas de compras institucionais como alternativa comercial dos produtos da agricultura
familiar. Já o FAF, conforme o estabelecido no Art. 1º da Decisão número 45/08 do Conselho do
Mercado Comum, tem por objetivo “financiar os programas e projetos de incentivo à agricultura
familiar do Mercosul, assim como facilitar uma ampla participação dos atores sociais em atividades
relacionadas ao tema”.3 No entanto, como em todo processo de negociação multilateral, existem muitos
desafios a serem superados, a nível institucional e internos aos países membros, para que essas políticas
passem a produzir resultados efetivos para a produção familiar.
Assim, se o Mercosul deve impulsionar projetos com a finalidade de promover o
desenvolvimento econômico e social (PECCI, 2002), o quadro é de uma atuação embrionária mas que
se apresenta como importante alternativa para fomentar o desenvolvimento na região, haja visto os
importantes avanços que as discussões no âmbito da REAF já trouxeram e os resultados, mesmo que
pequenos, dos projetos pilotos implantados.
O Mercosul Cultural (MC), assim como o âmbito da agricultura familiar, ainda se configura
como uma iniciativa recente, fruto da demanda por maior participação social. Este adquire maior
importância através da quebra da visão que valoriza apenas o aspecto econômico em detrimento dos
aspectos sociais e culturais e ao difundir a necessidade de se estabelecer uma agenda de políticas na qual
o âmbito cultural seja altamente estimado e se vincule diretamente à construção de um projeto
societário mais amplo e à busca de novas práticas de ação política.
Embora a trajetória e a agenda do Mercosul Cultural não sejam extensas, são perceptíveis certos
avanços a despeito de dificuldades que ainda devem ser superadas. A primeira menção ao Mercosul
Cultural foi feita em outubro de 1992, enquanto a primeira Reunião Especializada de Cultura foi
realizada apenas três anos depois, em 1995, na qual foi elaborado um primeiro documento que visava a
institucionalização do aparato técnico-burocrático referente às políticas culturais. No ano seguinte, é
possível afirmar que ocorreram certos progressos na estruturação do Mercosul Cultural, isto por ter
sido instituído o “Protocolo de Integração Cultural do Mercosul”- documento que estruturou a política
cultural do bloco- , as reuniões técnicas regulares, as reuniões dos Ministros da Cultura dos países
participantes; assim como o Parlamento Cultural “que buscou a harmonização normativa entre os
países nas disposições atinentes à cultura”
Preocupações com essa temática deram origem a projetos como o “Selo Mercosul Cultural” (o
qual normatiza a circulação de bens culturais e objetiva promover o intercâmbio artístico cultural, por
meio da isenção de impostos), o “Fundo Mercosul Cultural” e os Corredores Culturais, aquele ainda se
encontra em vias de aprovação e visa financiar programas que incentivem a criação, circulação,
proteção e transmissão dos bens e serviços culturais enquanto o último objetiva a realização de
atividades culturais em áreas fronteiriças.
Pode-se analisar, com os avanços retratados, que é inegável que o fator da “cultura” tomou um
maior espaço nas políticas “mercosulinas”. Contudo, o projeto ainda está sendo estruturado
institucionalmente, fazendo com que muitos dos programas demandados pelos Ministros da Cultura
dos países membros não sejam executados ou ainda estarem em fase de elaboração. Ademais, tais
progressos ainda parecem extremamente ínfimos e tímidos se comparados com as próprias projeções
do Bloco, o que decorre do modelo neoliberal no qual o Mercosul ainda se insere, apesar das alterações
perpetradas na última década. É perceptível que a finalidade do MC, bem como de seus projetos, é a
promoção de intercâmbio de bens e serviços culturais, assim como a criação de outras atividades as
quais fomentam as economias dos países membros; distanciando-se da concepção inicial de cultura,
conceituada como catalisadora de uma integração mais ampla.
Nota-se que a agenda do Mercosul Cultural é extremamente vaga quanto aos seus objetivos,
atendo-se apenas a três principais frentes: a viabilidade de compatibilizar currículos, a preservação de
patrimônios culturais e as análises de problemas vinculados à propriedade intelectual. Além destas
problemáticas inicias, o desenvolvimento do projeto é dificultado sobretudo por carecer de ferramentas
flexíveis e isonômicas que permitam a elaboração de ações conjuntas de mútuo interesse, criando uma
grande deficiência na implementação das políticas e diretrizes aprovadas pelo bloco.
No entanto, apesar destes obstáculos, é evidente que o Mercosul Cultural se configura como
um espaço privilegiado para o debate e para a construção de políticas públicas que objetivem a inclusão
e transformação social da região. O escopo desse empreendimento aponta para a criação de uma
integração cultural e social que avance no sentido de respeito às diferenças, de valorização à pluralidade
de culturas e do desenvolvimento aliado à justiça social para todo o Cone Sul. Destaca-se portanto a
unidade identitária do projeto ao mesmo tempo que celebra a heterogeneidade de pensamentos e
vivências, na busca da consolidação não apenas de um mercado comum, mas de uma verdadeira aliança
que caminhe na direção da humanização, emancipação e do diálogo com as realidades dos povos da
América Latina.
Em 1992 foi aprovado o primeiro “Plano Trienal para o Setor da Educação no Mercosul”,
elaborado e aprovado pelos Ministros da Educação. O plano foi prorrogado em 1994 e 1997 e aborda
três temáticas principais, que são: (i) Formação da consciência cidadã favorável ao processo de
integração; (ii) Capacitação de Recursos Humanos para contribuir ao desenvolvimento; (iii)
Compatibilização e harmonização dos sistemas educativos (Mercosul, 1992, online).
O II Plano Trienal (1998-2000) e os seguintes- Plano 2001-2005; 2006-2010; 2011-2015
reforçam os aspectos abordados pelo primeiro Plano Trienal e adicionam especificidades e ajustes nos
seus respectivos Planos. No geral, os Planos Trienais explicitam o caráter subsidiário da Educação e do
SEM no Mercosul, utilizados como ferramentas em prol do desenvolvimento produtivo no bloco.
Contudo, não se pode negar que outras temáticas educacionais aos poucos ganham visibilidade, como
mostra o quarto Plano Trienal (2004-2010) ao pontuar que a educação deve ajudar a construção
econômica e social do Mercosul, de modo a melhorar a qualidade de vida da população.
O SEM é nebuloso ao citar quais e como os objetivos dos Planos Trienais estão sendo
executados. Porém, podemos citar os projetos de maior expressão já realizados como o Escolas de
Fronteira, o Parlamento Juvenil do Mercosul, o Programa de Mobilidade Acadêmica Regional em
Cursos Acreditados (Marca), a criação da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila),
o Programa de Intercâmbio Acadêmico de Português e Espanhol, o Sistema de Acreditação Regional
de Cursos Superiores dos Estados do Mercosul e Estados Associados- ARCSUL, o Núcleo de Estudos
e Pesquisas na Educação Superior do Mercosul, o Foro Universitário del Mercosur (FoMerco) entre
outros.
O ensino das línguas oficiais pode ser considerado um dos programas mais importantes do
SEM, pois como pontua Sombra Saraiva2, amplia os conhecimentos em três áreas principais. Em
primeiro lugar o aluno adquirirá um conhecimento técnico do idioma (compreensão oral e escrita), a
segunda aquisição se refere aos aspectos culturais dos povos do Mercosul em um sentido
antropológico, e por fim o terceiro ponto é o desenvolvimento da criticidade e compreensão das
diversas culturas. No Brasil, desde 2005, o ensino do espanhol é obrigatório para o Ensino Médio de
escolas públicas e privadas, e o ensino gratuito e particular de escolas especializadas no idioma vem
crescendo consideravelmente.
A análise dos vintes anos do Mercosul Educacional indica que a maioria das propostas dos
Protocolos e Planos Trienais ainda não foi concretizada, em especial às relacionadas à formação da
identidade regional. Um dos principais agravantes desses fatos é a ocupação periférica do SEM no
Mercosul, além das dificuldades quanto ao financiamento dos seus projetos e do teor economicista
encobrir as demais vertentes educacionais. E assim o Setor Educacional do Mercosul segue com vários
desafios pela frente, caminhando a passos lentos rumo a uma integração que ultrapasse as fronteiras do
mercado comum.
Considerações finais
que o atual modelo oferecido e formulado pelo modelo capitalista neoliberal: “El movimiento hacia la
outra integración posible es um proceso transformador y emancipatório” (DELLO BUONO, 2006:
18).
Uma integração que seja capaz de promover o fortalecimento regional embasado na condição
periférica comum e no interesse coletivo em busca de alternativas de melhorias e transformações
sociais. Para Dello Buono:
[...] el papel de los acuerdos integracionistas como la CAN [Comunidade Andina de Nações] y el
MERCOSUR [Mercado Común do Sul] son indispensables en la lucha por la otra integración
posible, por su capacidad de conformar un bloque para frenar proyectos hegemónicos5 [...]. También,
puede funcionar como un mecanismo para ampliar los parámetros de los esquemas integracionistas
con un mayor énfasis sobre los componentes sociales y culturales de la integración (DELLO
BUONO, 2006: 21).
Diante deste quadro é importante destacar a importância da participação de atores não estatais
no processo de inclusão das novas necessidades, em especial as de caráter social, nas pautas políticas do
Mercosul. Ressalta-se ainda que, mesmo que as políticas apresentadas acima se apresentem em estágio
embrionário e com um baixo nível de desenvolvimento instituicional - fruto das dificuldades das
negociações multilaterais- estas representam importante passo para a consolidação de um Mercosul
mais plural.
É com essa perspectiva que olhamos para as possibilidades da integração do Mercosul como
uma agenda de políticas públicas, a qual torna-se capaz de se adequar às demandas coletivas,
corroborando para que as políticas de cunho social possuam um suporte adequado para a realização de
seus projetos. Possibilitando não apenas a transformação do atual panorama, como também
perpetuando uma integração em seu sentido mais amplo.
Referências
ACHUGAR, Hugo (1994) A política cultural no acordo Mercosul, Estud. Av. vol 8 n. 20 p. 215-229. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ea/v8n20/v8n20a21.pdf. Acesso em 06 SET. 2013
ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR, Arturo. Cultura e Política nos Movimentos Sociais Latino-
americanos. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
ARAÚJO, Leandro Rocha de, coord., Blocos Econômicos e Integração na América Latina, África e Ásia. Curitiba: Juruá,
2006.
BRASIL. Plano Trienal de Educação. Brasília, 1998. Disponível em: <http://www.sic.inep.gov.br>. Acesso em
08 SET 2013.
COSTA, Júlia Jacomini. PIRES, Elson Luciano Silva. A institucionalização da Agricultura Familiar na esfera do
Mercosul: avanços e desafios. Disponível em: http://www.observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal12/
Geografiasocioeconomica/Geografiaagricola/16.pdf Acesso em 07 SET 2013.
5 Aqui, Dello Buono utiliza o termo “hegemonia” para referir-se à atual dominação burguesa, termo que difere da
concepção trabalhada por Antonio Gramsci.
N
a análise consideramos importante relembrar as limitações concernentes ao
desenvolvimento, em consequência, sobretudo das especificidades da lógica contraditória
do capital demonstrando que há uma relevante tendência de vinculação orgânica com o
Estado capitalista. No primeiro momento, exemplificamos como o processo de desenvolvimento busca
articulação com a ordem em função da sua manutenção, partimos então para o entendimento da
constituição desse processo. Em seguida tratemos de apresentar algumas alternativas hegemônicas das
esquerdas em função de um novo projeto político de desenvolvimento, sendo assim cunhamos o
reconhecimento do desenvolvimento enquanto uma política necessária, ressaltando, porém que este
não se encerra em si.
É fundamental definir as mediações da política de desenvolvimento com o Estado, suas
designações extremamente restritas assimilam um controle econômico e social. Haja vista que essa
realidade pode ser constatada rapidamente sobre olhar do capitalismo monopolista que travou com
organicidade uma ação interventiva do Estado para com a dinâmica do Capital, é da conformação do
pós-crise de 19292 que o Estado remodula suas atribuições em função do capitalismo monopolista,
assumindo com organicidade as transações econômicas. A assimilação de novas estratégias no Brasil
culminou na ideologia do desenvolvimentismo pregada pelo governo de Juscelino Kubitschek (1956-
1961), tendo sua gênese fundamentada na hegemonia norte-americana, e atribuída a necessidade de
integração e capacitação para o progresso, numa funcionalidade que transpassa processos de
modernização e participação (enquanto ajuda mútua). Como observa Cardoso (1977), a ideologia
desenvolvimentista reduz as problematizações críticas à estrutura socioeconômica, todo esforço nesse
processo tem por objetivo o progresso na sociedade dentro dos parâmetros ditados pelo capitalismo,
trata-se da manutenção da ideologia dominante.
O processo de industrialização escamoteia as relações de classe, esse fenômeno ocorre desde a
Revolução Industrial no início do século XIX quando da instauração do modo de produção capitalista,
todo esforço no processo desenvolvimentista tinha por objetivo a “ordem e o progresso” na sociedade
dentro dos parâmetros ditados pelo capitalismo. Sendo assim, o sistema encampava ações para o seu
próprio desenvolvimento, e qualquer movimento disfuncional á sua lógica tinha caráter subversivo,
diga-se de passagem, que tamanho era o jogo manipulatório desse governo ao ponto de indicar a
subversão como sendo determinação da miséria - “de tal modo que lutar contra subversão no seu
sentido profundo seria lutar contra a miséria e de que acabando com a miséria estaria acabada a
subversão – é a própria desqualificação da subversão” (CARDOSO, 1977:336).
No capitalismo concorrencial, a harmonia social era sem interferência do Estado na auto-
regulação do mercado, tratava-se da “mão-invisível”, o Estado organizando dispositivos internos de
forma a gerar um equilíbrio na economia. No capitalismo monopolista o chamado Estado Keynesiano
vai exercer algum nível de atividade reguladora priorizando determinados setores (setores
monopolistas), buscando um conjunto de medidas econômico-sociais “anticíclicas”, a fim de
salvaguardar as condições de reprodução ampliada do capital, tem destaque nesse processo de
desenvolvimento a capacidade tecnocientífica, marcada pela indústria da guerra no período pós II
Guerra Mundial, e em conseqüência da Guerra Fria com a bipolarização do mundo, e a corrida
armamentista. A partir de então, o desenvolvimento tecnocientífico impulsionava uma composição
orgânica do capital, e o Estado mantinha incólume os fluxos econômicos.
Nos anos 80 inicia a articulação de um projeto democrático popular contando com uma
vigorosa participação da sociedade civil, ações contextualizadas nesse período obtiveram como marco
legal a promulgação da Constituição Federal de 88. Conquista possível através de um dispendioso
esforço dos movimentos sociais demonstrando todo o seu capital social, sob condição de assimilarem
um controle social através da participação política, em função dos direitos sociais, universais.
Como observou Neves (2008), os movimentos sociais, tenderam um dispendioso esforço de
forma a articular um novo tipo de gestão, o controle social por via de participação popular seguido de
um avanço nas políticas públicas. Cabe ressaltar, que o dado projeto democrático-popular, compete a
um plano ideológico do PT (Partido dos Trabalhadores), que enquanto governo monta uma estratégia
diante do quadro conjuntural do Brasil, período pós-ditadura militar, e consegue implementar
mecanismos institucionalizados de gestão democrático-participativa. Diante deste contexto de transição
política, a sociedade civil tornou-se mais visível.
Já nos anos 90 tais organismos de ação democrática proliferam, mas os mesmos não foram
garantia de democratização; mesmo com a descentralização de poder, a cultura participativa não se
efetivava em alguns espaços. Tal antagonismo era reflexo da hegemonia neoliberal, a democracia
participativa só encontrava articulação nos municípios em que o PT, ou partidos aliados estavam no
poder. Travava-se uma disputa entre projetos para uma hegemonia política, de um lado a busca para a
construção de processo democrático comprometido com a defesa de direitos, de outro desmobilização
e despolitização necessários ao desenvolvimento do projeto neoliberal. Mas, como exercer a
democracia diante da burocratização apresentada na esfera política, se até mesmos os partidos de
suas múltiplas determinações da esfera econômica, refutando a real objetividade de que a questão
ambiental em sua totalidade abrange não só a natureza em si, mas também questões territoriais e
sociopolíticas.
A abertura social e política para com o tema têm como iniciativa primeira a Declaração de
Estocolmo sobre o Ambiente Humano em 1972, que em seus princípios procura moldar ações
institucionais para com o meio ambiente. Mas, é a partir da Rio-92, realizada no Rio de Janeiro, que o
Brasil passa a contar com a cooperação internacional, que para além da defesa do meio ambiente,
promoveu um grande debate sobre desenvolvimento sustentável, traçando não só princípios. O
encontro acarretou na elaboração diplomática da Agenda 213 colocando em pauta um novo padrão de
desenvolvimento a partir do século XXI, apontando para novos padrões de produção e consumo. O
Brasil incorpora uma política de gestão ambiental a princípio instituindo a Política Nacional de Meio
Ambiente em 1981, garantindo uma institucionalidade frente à defesa do meio ambiente, seus fins e
mecanismos estão fundamentados nos incisos VI e VII do art. 23 e no art. 235 da Constituição Federal.
Mediante a proposta de tal legislação, fica instituído o Sistema Nacional de Meio Ambiente
(SISNAMA) que busca articulação de órgãos e entidades que compõe os níveis político-administrativos
de gestão ambiental. Tais iniciativas buscam a normatização da utilização dos recursos naturais e seus
espaços de modo a conter a degradação ambiental, e promover o desenvolvimento sustentável.
Diante de tal cenário, observa-se a possibilidade de integração de propostas junto à cúpula
internacional, políticas universais que garantam a política de desenvolvimento sustentável em ampla
escala. Podendo ser citado nesse caso o Protocolo de Quioto que define sobre a emissão de gases de
efeito estufa nos países industrializados desde 1990, tendo seu vencimento estendido até 2012, citamos
também o Plano Nacional de Mudança do Clima4 (PNMC), apresentado em 2008 na 14ª Conferência
das Partes realizada na Polônia.
A política de desenvolvimento sustentável, expressa um olhar tecnicista sobre a questão
ambiental, e se propaga como um mecanismo de “manutenção da alienação”, que vem sancionar uma
nova forma de apropriação da natureza, se expressa como uma ideologia, capaz de ocultar a luta de
classe (CHAUÍ apud OLIVEIRA, 2005). O autor enfatiza, os pressupostos do Relatório de Brundtland
foram adotados imediatamente pelo empresariado internacional, e que faz a política de
desenvolvimento sustentável emergir no berço da elite dirigente.
3 179 países participantes da Rio-92 acordaram e assinaram a Agenda 21 Global, um programa de ação baseado num
documento de 40 capítulos, que constitui a mais abrangente tentativa já realizada de promover, em escala planetária, um
novo padrão de desenvolvimento, denominado “desenvolvimento sustentável”. O termo “Agenda 21” foi usado no sentido
de intenções, desejo de mudança para esse novo modelo de desenvolvimento para o século XXI. A Agenda 21 pode ser
definida como um instrumento de planejamento para a construção de sociedades sustentáveis, em diferentes bases
geográficas, que concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência econômica. Fonte: www.mma.gov.br.
4 A Política Nacional sobre Mudança do Clima foi sancionada em 29 de dezembro de 2009 pelo presidente Luiz Inácio Lula
da Silva. Aprovada pelo Senado em novembro, a Política fixa em lei o compromisso do Brasil de reduzir, até 2020, as
emissões projetadas de gases do efeito estufa, entre 36,1% e 39%, com base nas taxas do relatório de emissão até 2005.
Fonte: Site do Ministério do Meio Ambiente.
Pensar nos organismos e mecanismos institucionalizados que envolvem tais questões é refletir
sobre a visibilidade e tratamento dado aos conflitos socioambientais e ao Meio Ambiente. A
aproximação das particularidades envoltas nesses conflitos dependerá de uma articulação entre políticas
públicas e econômicas, pois se trata de uma relação indissociável entre o ser humano e a natureza,
estando o ser humano em constante movimento de apropriação. Neste sentido, a intervenção do
Estado busca regular a ação do ser humano sobre o Meio Ambiente, paradoxalmente, essa regulação
possibilita um questionamento, pois imprimi um ataque á culturas já sustentáveis, impossibilitando
muitas vezes o uso sustentável dos recursos naturais, ora que são essas comunidades que produzem
menos impacto ao meio ambiente.
É fundamental descortinar as relações sociais e econômicas no contexto de reprodução da
sociedade capitalista, e dar centralidade aos conflitos socioambientais. Isto, porque as questões
ambientais percorrem uma relação interconexa entre indivíduo/natureza e sociedade/natureza,
mediadas pela categoria trabalho e pelas transformações nas relações de produção e consumo.
Tomamos por base a apreensão do significado histórico do cenário neoliberal, ensejando a
contextualização antagônica das relações sociais, movidas pelas condições materiais impostas pelas
relações de produção. Neste eixo as políticas públicas que mediam interesses coletivos atuam como
instrumento ideológico de reprodução da estrutura de classes, sendo assim, sob uma política cada vez
mais expansionista em função da consolidação de uma hegemonia neoliberal, o modelo de
Desenvolvimento Sustentável articula novas políticas públicas desconsiderando particularidades das
relações dos homens entre si e com a natureza.
pescadores tradicionais, colonos, ex-trabalhadores da Fazenda Engenho do Mato, que hoje vivem como
pequenos agricultores. Em pesquisa, Mendonça (2008) nos traz referências sobre a Fazenda Engenho
do Mato, que ocupava um engenho de açúcar em meados do século XIX, localizando-se no atual bairro
Engenho do Mato, no pé da Serra da Tiririca. Com a falência da Fazenda a empresa imobiliária
Terrabraz, comprou sua massa falida e iniciou um processo de opressão fundiária aos trabalhadores da
antiga Fazenda adquirindo suas posses, obrigando-os a deixar suas casas. No entanto, esses
trabalhadores resistiram, e com o apoio do Estado iniciou-se um processo de Reforma Agrária, que
consistiu no Plano de Ação Agrária, no qual foram concedidos sítios na Serra para cada família de
colonos. Então, surgem os sitiantes tradicionais da Serra da Tiririca.
Quando do estabelecimento dos limites definitivos do Parque pela Lei 5079/2007, a área
inicialmente delimitada em 2.400 hectares, reduziu para 2.077 hectares, tal redução vinha contemplar a
especulação imobiliária, que então já se instalava, sob a construção de grandes condomínios. A nova
legislação provocou grande reação de um conjunto de ambientalistas e movimentos sociais,
mobilizando também as comunidades tradicionais locais. Estas consideravam a redução dos limites em
30% um “crime ambiental”, pois além de regulamentar as invasões no entorno da Serra da Tiririca,
garantia a liberação de dezenas de hectares para a especulação imobiliária, extrapolando os limites da
Mata Atlântica.
Furlan (2004) concentra-se no princípio, de que a criação de unidades de conservação integral
gera impactos sociais, criando cenários conflitivos. Cabe-nos desse modo questionar onde e como se
posicionam as políticas públicas de cunho socioambiental. É importante acentuar que a comunidade
residente na Serra da Tiririca assim como aquela que habita seu entorno não teve participação na
criação da lei que institui o Parque. Se hoje esses assentamentos humanos ali permanecem, é devido a
uma enorme resistência, a fim de garantir a natureza, e “território”, e este território se refletir enquanto
“lugar” representando uma identidade entre as comunidades tradicionais e a natureza. “O território
como lugar e a identidade, não podem ser compreendidos em si mesmos, há sempre uma mediação
com os objetos ou a materialidade do lugar.” (FURLAN, 2004, p.226)
Subjacente a essa discussão Furlan (2004) argumenta que o Estado é ausente, ao ponto de não
perceber que território e lugar tem sentido amplo nas práticas culturais das comunidades tradicionais, o
direito à propriedade de terra se confunde, no direito a autonomia cultural e valores. Um não assegura
o outro, a unidade de proteção integral não assegura o modo de vida tradicional, quando limita o acesso
aos recursos naturais, não assegura também a “autonomia de escolha sobre o seu futuro, não lhes
assegura o território como lugar.” (FURLAN, 2004, p. 227).
Sentimos nas várias dimensões de nossa vida os efeitos da problemática inter-regional da nação
brasileira marcada por profundas desigualdades sociais, onde predomina um projeto de
desenvolvimento que privilegia a concentração e centralização de terra e renda, conjugado a degradação
ambiental. Esse modelo carrega uma opção de industrialização, de agricultura e de sociabilidade que
Referências
XI
O Mercosul educacional
Anelisa Maradei1
Introdução:
N
as últimas décadas, assistimos a grandes mudanças socioeconômicas, políticas, culturais,
científicas e tecnológicas que impactaram todo o mundo. Ainda não conseguimos
dimensionar de forma precisa o que deverá representar a globalização da economia, das
comunicações e da cultura para a América Latina. Sabemos, contudo, que tais transformações,
impulsionadas pelo aparecimento de novas tecnologias, tornaram possível o surgimento de um novo
momento histórico, um tempo de crise de concepções e paradigmas. Trata-se de um contexto social
rico de possibilidades. Por isso, não podemos falar do futuro da educação no Brasil e na América Latina
sem certa dose de cautela. Qual é o papel da educação nesse novo cenário emergente? Qual é o papel
da educação na era da informação?
Para compreender essas mudanças, inicialmente, é necessário traçarmos um breve panorama
histórico evolutivo da educação. O surgimento da escola no começo da Idade Média, modelo essencial
da escola tal como hoje a conhecemos, representou a primeira revolução tecnológica na história do
ensino, pondo fim a um ensino clássico ligado a um estilo de vida aristocrático. Posteriormente, a
educação passou da esfera eclesiástica para a estatal, tornando-se uma poderosa arma na formação de
nações. Com a Revolução Industrial (final do séc XVIII e XIX), entramos em um novo ciclo, o da
educação maciça e padronizada. Chegamos, por fim, à atualidade, à era da informação, tempo em que a
comunicação se tornou central na cultura dos povos e das civilizações. Considerando-se que a
comunicação ocupa, na contemporaneidade, lugar de centralidade nas relações pessoais, no trânsito de
valores, torna-se fundamental a discussão do tema comunicação e educação.
Um dos pontos que consideramos fundamental ressaltar é que, diante de imensas
transformações sociais, faz-se necessário um movimento em direção a novos parâmetros educacionais
na região. As instituições de ensino estão inseridas em uma sociedade muito mais dinâmica nos dias de
hoje. A mudança tecnológica tem um forte impacto psicológico e sociológico em nossa sociedade e a
educação tradicional já não cabe na contemporaneidade. Há necessidade de redefinições no campo da
educação formal: mudanças nos mecanismos de aprendizagem, promovendo novas formas de ver,
sentir e compreender.
Os cérebros de nossos filhos e netos já não operam como os nossos e precisamos estar atentos
a essa realidade. O que funcionou para nós enquanto processo educacional, parece já não funcionar
1Mestreem Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo e Professora do Curso de Pós-Graduação em
Comunicação Empresarial da Universidade Metodista de São Paulo.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 906
para as novas gerações. Por exemplo, a educação tradicional opera ainda hoje, preponderantemente,
com a linguagem escrita. Entretanto, nossa cultura atual dominante vive impregnada por uma nova
linguagem, a da televisão e da informática, particularmente a linguagem da Internet. Em muitos
estabelecimentos de ensino trabalha-se muito ainda com recursos convencionais que têm pouco apelo
para as crianças e jovens.
Observa-se, em muitas escolas, que as tecnologias da informação e comunicação (TICs)
aparecem como um elemento alheio à educação, ou, na melhor das hipóteses, como uma ferramenta
emprestada, como um fator externo que deve ser trazido para a escola. Entretanto, como propõe Sodré
(2012, p.13): “[...] a forma da consciência contemporânea é fundamentalmente tecnológica. Isto
equivale a dizer que o relacionamento do sujeito humano com a realidade hoje passa necessariamente
pela tecnologia, em especial as tecnologias da informação, em todos os seus modos de realização”.
Mas, se não há tecnologia que substitua o professor, máquina que substitua o elemento
humano, a escola precisa começar a perceber que fora dela há uma série de situações novas às quais ela
deve estar atenta. Como propõe Orozco (2006, p. 375), a escola “poderia participar contribuindo com
todo o seu potencial educativo e reflexivo” da relação entre os educandos e os meios de comunicação.
Entendemos que o sucesso da educação passa pelas relações humanas e não pelos aparatos
tecnológicos, muito embora haja forte influência desses elementos na educação contemporânea.
Uma das questões mais debatidas na atualidade, por exemplo, é a dificuldade que temos de
transformar a grande quantidade de informação disponibilizada pelas novas tecnologias em
conhecimento. Hoje, temos muita informação, que nos chega com grande facilidade pela Web e por
tantos outros meios de comunicação. Há mecanismos sofisticados de busca, como o Google, mas,
como afirma Morin (2004, p.12) “[...] o conhecimento é resultado da organização da informação”. Ao
realizar tal afirmativa, o autor conlui que “[...] temos excesso de informação e insuficiência de
organização, logo carência de conhecimento”. Nesse sentido, num mundo submerso em informações, o
papel norteador da escola parece ser fundamental.
De fato o que presenciamos é um grande conflito entre a facilidade de acesso à comunicação e à
informação, proporcionada pelas novas tecnologias, e a qualidade de informação repercutida nessas
mídias. E para onde caminhamos com essa avalanche de informações? Em meio a tantas informações, a
pergunta que se faz é se não estaríamos sendo induzidos a pensar que sabemos o que nem imaginamos
ter conhecimento? Não estaríamos nos distanciando do conhecimento que tanto almejamos?
Como propõe Sylvia Moretzsohon (2007, p.2), hoje, temos a superexposição que substitui a
cegueira pela treva à cegueira pelo excesso de luz. A autora sustenta que “[...] diante do que estava
oculto podíamos ser levados a saber que ignorávamos, e com isso despertar para a necessidade de
saber; pela aparência da visibilidade total, somos levados a ignorar que não sabemos, e nos consolamos
na ilusão do saber”. Nesse sentido, o papel norteador do educador nunca se fez tão necessário quanto
nos dias de hoje.
Alinhado a essa perspectiva, Martín Barbero, em entrevista concedida ao jornal Folha de
S.Paulo em 2009, também ressalta a importância do sistema educacional em um mundo onde há
disponibilidade de uma grande quantidade de informações. Para ele, o sistema educacional torna-se de
extrema importância para esse aluno exposto a conteúdos midiáticos dispersos:
Hoje há tanta informação que é muito difícil saber o que é importante. Mas o
problema para mim não é o que vão fazer os meios, mas o que fará o sistema
educacional para formar pessoas com capacidade de serem interlocutoras desse
entorno; não de um jornal, uma rádio, uma TV, mas desse entorno de informação em
que tudo está mesclado. Há muitas coisas a repensar radicalmente.
social, cabe ao educador desenvolver no educando a capacidade de pensar criticamente a realidade que
lhe é apresentada pelos meios de comunicação de massa e pela internet, conseguir selecionar
informação e inter-relacionar as informações provenientes dos meios de comunicação com as da sala de
aula.
O educando, na atualidade, já não consegue estar por 50 minutos numa sala de aula dentro dos
parâmetros convencionais, em que o professor fala, com autoridade máxima, e os alunos ouvem. O
educando deve ser percebido como sujeito crítico e autônomo que se ajusta ao universo em que vive,
mas que também o transforma. Assim, o educador se reafirma como um facilitador, responsável pela
formação crítica e participativa dos educandos para leitura dos meios de comunicação.
O educador deve ser, mais do que nunca, responsável pela construção de uma sociedade
dialética e dialógica, que percebe o educando como constituinte e constituído por sua cultura, ou seja,
um indivíduo que é capaz de transformar a realidade por meio de atos de criação, recriação e decisão.
Deve perceber o diálogo como condição essencial de sua tarefa, que é a de coordenar, sem jamais
influir ou impor.
Mais que questionar o uso do vídeo ou da Internet em sala de aula, é preciso reconhecer que
essas ferramentas se tornaram parte da vida das pessoas. A escola atual encontra-se diante de um
desafio adicional: assumir novas funções num contexto social diverso, cujas bases tradicionais se
debilitaram. O livro didático com seu conteúdo repleto de valores pré-estabelecidos já não é capaz de
formar um jovem dinâmico, inserido num universo de múltiplas possibilidades de acesso à informação.
As novas tecnologias criaram outros espaços de conhecimento e, agora, além da escola, também
o espaço domiciliar e social tornaram-se educativos. Cada vez mais pessoas estudam em casa, pois
podem, de sua residência, acessar o ciberspaço da formação e da aprendizagem a distância. Além disso,
a sociedade civil (ONGs, associações, sindicatos, igrejas, etc) está se fortalecendo como espaço de
difusão de conhecimento. Um espaço potencializado pelas novas tecnologias.
Os eventos técnico-científicos, como a internet, não são uma coisa a mais na vida das pessoas.
São, sim, centrais, reorganizadores das relações sociais. No decorrer da história migramos do polo da
oralidade para a escrita, e da escrita chegamos ao polo informático, da linguagem digital dos dias atuais.
Assim vejamos: a comunicação oral propicia um compartilhamento mais próximo de informações, pois
as coisas estão na memória das pessoas. Com a escrita, através da carta, por exemplo, as informações
atingem maiores distâncias. Já com a linguagem digital chegamos, na contemporaneidade, a um
hipertexto universal, todos convivemos com tudo, as informações estão disponíveis por toda parte em
tempo real, num clique no computador, e isso tem mudado as concepções de tempo, de espaço e
compartilhamento dos indivíduos, fato que não pode ser ignorado por quem almeja uma educação
eficaz para os jovens do Brasil e da América Latina.
Não podemos fechar os olhos ao fato de que o sistema perceptivo acionado pela TV, pelo
videogame, pela internet é o da aceleração. O sistema vídeo tecnológico nos fornece a possibilidade de
explorar o espaço e o tempo. Já a sala de aula é lugar de sistematização. A retórica vídeo-tecnológica é
muito mais rica, mais híbrida: ouço, vejo, leio, clico. Já a escola vem operando, ainda hoje, com signos
de linguagem menos complexos e interativos, embora os esforços para se estabelecer novos parâmetros
educacionais já sejam detectados e o debate em torno da questão esteja ganhando força no Brasil e em
toda a América Latina.
O que é urgente perceber é que ensinar a ler nesse universo de suportes eletrônicos é ensinar a
usar seletivamente as ferramentas, e não apenas crer que mesmo para o analfabeto haverá um mundo
aberto que ensinará gratuitamente e sem esforço algum. Ensinar, analisar, estudar, pesquisar sempre
foram atividades que exigem esforço, concentração, o que na maioria das vezes nada têm a ver com o
prazer imediato e direto que alguma linguagem mágica possa proporcionar.
Esse é, contudo, um grande desafio a ser superado. A mídia está constituída no vídeo
tecnológico e a escola na comunicação clássica. Há um abismo entre a atividade, diversidade,
curiosidade e atualidade que dinamizam o mundo da comunicação e a passividade, redundância e
anacronismo que marcam o processo escolar. Essa distância coopera para mover ainda mais os jovens
em direção aos MCM e à internet e afastá-los da escola.
A educação, assim, tem que rever seu paradigma letrado e adentrar o campo das imagens e das
linguagens tecnológicas para que se possam ultrapassar as barreiras que separam duas culturas: uma
Além disso, Hoje, alunos e professores passam a conviver proximamente com relação ao
universo cultural e informacional. Eles estão debatendo com os mesmos indicativos, assistem aos
mesmos filmes, acessam informações e grupos de debate na internet. O universo comum de referência
de alunos e professores nunca se tornou tão próximo. E mais, os MCM, como a televisão e as redes
sociais na internet, por contarem com um código de acesso mais simples que o do livro, expõem as
crianças, desde cedo, a um mundo que antes só era acessível aos adultos (sexo, guerra, conflitos
familiares etc).
2Barbero, Jesús Martín. Heredando el futuro. Pensar la educación desde la comunicación. In: Revista Nórmadas, Bogotá,
DIUC, 1995.
Considerações finais
Se o que os alunos aprendem fora da aula é relevante para a sua aprendizagem dentro da escola,
é obrigação dos educadores estarem atentos a essa aprendizagem proveniente das telenovelas, da
internet, dos MCM, enfim. Não há como se conviver com a ideia equivocada de que os MCM,
especialmente a TV, são uma “caixa idiota” e que a única instituição legítima para educar é a escola.
Temos que inserir a escola nesse cenário informatizado. Há espaço para a transformação e para a
educação para os meios.
Toda discussão, em verdade, gira em torno do fato de que, tanto no processo de aprendizado
quanto no de comunicação, devemos estar atentos ao que se processa no polo da recepção. É
importante preparar o receptor para interagir mais criticamente com os MCM e as redes sociais na
internet. O problema se localiza na recepção e na falta de educação da audiência na América Latina para
interagir mais crítica e autonomamente com relação às mensagens dos meios de comunicação. Por
exemplo, os professores que falam com seus alunos em classe sobre aquilo que estes viram no dia
anterior na telenovela, oferecem a eles uma possibilidade de contar com um juízo para ir formatando
um critério frente a essas mensagens. Por outro lado, o próprio fato de que as crianças comentam o que
viram na TV com seus companheiros indica que o processo de recepção se estende até a escola.
Dessa forma, conclui-se que a escola é local de mediação, de cruzamento de culturas, de
diversidade de componentes. Não só os alunos, mas os próprios docentes são distintos entre si. Sendo
assim, não se pode olhar a escola como um meio, apenas como uma instituição de ensino. Mais que
isso, temos que percebê-la como um espaço de múltiplas mediações. E é na mediação que os
significados sociais são produzidos e reproduzidos, pois esse é o lugar das práticas efetivas. Temos que
deixar de perceber os meios de comunicação como foco e transportar nosso olhar para o processo de
comunicação. Os meios de comunicação precisam ser pensados sob novas perspectivas, muito menos
por sua capacidade de manipular, como preconizavam os frankfurtianos, mas como um sistema que
engloba novas formas de perceber a realidade, a cultura e a sociedade.
Com as tecnologias da comunicação e informação se inicia uma nova revolução educacional,
com uma série de implicações. A constituição de um sistema tecnológico de informação e
telecomunicações facilita esses processos e gera novos contextos, dentro dos quais deverá se
desenvolver, a partir de agora, a formação de pessoas.
Quando nos perguntamos como organizar a educação em vista de tantas mudanças, inclusive
nas alterações familiares, em vista de uma cultura cada vez mais pluralista, decorrente do processo de
globalização e da revolução científica e tecnológica, percebemos que a ciência está em condições de
responder muitos desses problemas, mas a educação, em contrapartida, não pode esperar. Nota-se que
as escolas e universidades estão em desequilíbrio, desalinhadas em relação ao meio.
Há estratégias que alguns países estão seguindo para adaptar a educação às mudanças
necessárias, como: a educação contínua ao longo da vida para todos e a educação à distância e
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 912
Referências
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30, pp. 55-63, jun. 1991.
Ellen da Silva1
Edmar Antonio Brostulim2
N
a condição de bolsistas do Programa de Ensino Tutorial do curso de Ciências Sociais
da Universidade Federal do Paraná, foi proposto um projeto de pesquisa coletiva3 cujo
objeto seria a carreira do cientista social no Brasil, e onde se encontrariam os
profissionais formados em nosso curso nos últimos 30 anos. Porém, ao examinar a bibliografia
referente ao assunto foi possível aferir a ausência de discussões mais aprofundadas sobre os cursos
de graduação existentes no país e seus graduandos.
As pesquisas existentes sobre as Ciências Sociais no Brasil se dirigem à situação da pós-
graduação: sua importância, história, conjuntura, papel, etc. Dessa forma, como os holofotes não se
voltavam para o curso superior e seu respectivo papel para a formação do cientista social, surgiu à
ideia de discutir somente a graduação.
Ao percebermos o quanto dados sobre graduandos são inéditos, decidimos tornar os alunos da
graduação em Ciências Sociais da UFPR nosso objeto de análise. Buscamos identificar: a) quem são
estes alunos; b) qual a sua inserção e suas expectativas em relação à graduação; c) o que conhecem
dos programas de pós-graduação ofertados pela área. Ao fim de um ano e meio (2010-2011) de
pesquisa coletiva delineamos um perfil do estudante de Ciências Sociais da UFPR.
Enquanto realizávamos essa pesquisa coletiva local, surgiu a oportunidade de uma das
autoras de realizar de intercâmbio na Universidade de La Republica Uruguay (Udelar) pelo convênio da
UFPR com a Associação de Universidades do Grupo Montevideo (AUGM). Nesse contexto se
tornou interessante a ideia de tentar reproduzir a pesquisa já realizada para então comparar dois
aspectos principais: a grade curricular e as expectativas dos estudantes quanto aos cursos, com
inspiração em trabalho semelhante já realizado na Argentina. Esse exercício comparativo é relevante
para inventariar quais são os motivos que levam estudantes latino-americanos de contextos tão
1 Ellen da Silva é graduanda do 12º período do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Foi
pesquisadora bolsista do grupo PET (Programa de Educação Tutorial) do mesmo curso. Participou, em 2011, de
Intercâmbio E studantil da “Universidad de La República”. Em 2012 foi Bolsista do Programa de Fortalecimento da
Função Pública na América Latina. Desenvolve, desde 2009, pesquisas na área de Ciência Politica, a t u a n d o nos
temas: Elites Paranaenses, Carreiras Políticas e Trajetórias Sociais de Elites.
2 Mestrando em Antropologia Social pelo PPGAS/UFPR. É Técnico em Administração de Empresas pela UFPR (2005) e
graduado em Ciências Sociais pela UFPR(2013). Foi bolsista do grupo PET - Programa de Educação Tutorial do curso de
Ciências Sociais da UFPR entre 2009 e 2013. Tem interesse na área de Antropologia, especialmente nos temas: culturas
tradicionais e migração, urbanização, projetos de desenvolvimento e atividade portuária.
3 “A relação entre a graduação e a pós-graduação em Ciências Sociais na UFPR”, realizada pelos autores, juntamente com
Metodologia
Este trabalho utilizou método comparativo com duas fontes de análise: I) grade curricular
das duas graduações6 e II) a comparação da percepção dos alunos quanto aos cursos. Para tanto,
trabalhamos com uma entrevista semi estruturada, dividida em três blocos, por meio de um
questionário. Esse instrumento foi elaborado coletivamente pelos pesquisadores envolvidos na
pesquisa da UFPR. No caso da UDELAR contamos, com o auxílio de dois estudantes uruguaios para
fazer a tradução e a adaptação do instrumento para a realidade deles, excluindo, por exemplo, as
questões relativas à licenciatura7.
No caso da UFPR, foram entrevistados apenas alunos que haviam entrado na Universidade
no período entre 2003 e 2008. As implicações metodológicas dessa decisão não implicam em uma
perda irreparável para a pesquisa por duas razões: a) com a experiência dos outros questionários,
percebemos que os alunos que estão pouco ativos no curso têm mais dificuldade para responder o
questionário e b) as entrevistas realizadas representam 97,9% da amostra o que já é significativo para
a pesquisa.
O questionário respondido pelos alunos da graduação pareceu levar questões que de alguma
forma permeiam o universo dos graduandos, e que estes consideram importantes responder. Exemplo
que demonstre isso talvez tenha sido a frequente “conversa sobre o assunto” após terminar um
4 Durante a pesquisa pode-se perceber que este curso ocupa uma posição periférica dentro da “Facultad de Ciencias
Sociales”, primeiramente por não ser oferecido na capital. E também porque forma poucos alunos : segundo os dados da
Secretaria, o número de formandos foram cinco em 2010.
5 É importante frisar que houve reforma curricular nos dois cursos: No Brasil, ela foi implantada em 2011, alterando a
grade curricular do Curso de Ciências Sociais da UFPR. A escolha entre as três áreas já citadas se dá no 4º. semestre, ou
seja, 2º. ano. No Uruguai, o currículo foi alterado em 2009 e a escolha se dá no 4° semestre também.
6 Este material foi consultado nos sites disponíveis: Curso de Ciências Sociais da Universidade F ederal do Paraná:
questionário: muitos entrevistados tinham algo a dizer sobre a situação da graduação. Outro
retorno muito positivo que obtivemos em relação à pesquisa foi o elogio de alguns professores do
curso, ao considerarem a temática extremamente coerente e importante para a reflexão do papel da
graduação.
A Pesquisa na Udelar foi mais modesta por uma razão prática: havia somente uma
pesquisadora, que não dominava bem o idioma e que não estava ambientada no campo. O
primeiro passo foi definir quem seriam os entrevistados: restringimos o universo para os estudantes
de quarto ano. A justificativa para essa restrição é o fato de estes estudantes serem os últimos
remanescentes do currículo de 1992, currículo mais ou menos do mesmo período que o da UFPR.
Havia mais ou menos 89 alunos matriculados nas disciplinas de quarto ano. O objetivo era
que uma amostra de trinta estudantes respondesse a pesquisa. O questionário foi enviado para a lista de
e-mail da turma para angariar o máximo de respostas. Mesmo com essa medida só obtivemos retorno
de quinze agentes. Por tal
Razão os dados aqui compilados não podem ser considerados estatisticamente
representativos. Eles foram tratados com metodologia qualitativa e representam somente o perfil e
as expectativas do grupo de estudantes que participou da pesquisa.
Referenciais teóricos
Pela análise dos textos, é possível observar, como já enunciado na introdução, que o assunto
dominante nos textos brasileiros mais recentes é a pós-graduação em Ciências Sociais e temas a ela
relacionados, principalmente no que tange ao papel e a utilização da teoria social e aos recursos
destinados para a pesquisa e a produção intelectual brasileira.
Quando o tema da graduação aparece em artigos, entrevistas e outras publicações pode-se
perceber três grandes frentes de discussão. A primeira, que trata da institucionalização das Ciências
Sociais no Brasil - localizada historicamente na década de 1930, momento no qual se buscava a
criação de profissionais especializados em conhecimentos específicos da sociedade brasileira, a
formação de professores de Sociologia e técnicos treinados para atender às demandas governamentais,
conforme afirma Oliveira (1991).
A segunda frente de discussão tematiza os modelos curriculares contrastando, e a terceira
ocupando-se do problema da alta taxa de saída de graduandos em Ciências Sociais sem concluírem o
curso. Um exemplo de relação entre estas duas variáveis é o artigo de Gláucia Villas-Bôas,
intitulado “Currículo, iniciação científica e evasão de estudantes de ciências sociais”, analisando o
curso de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas no Rio de Janeiro. O que a
autora demonstra é que mesmo com as sucessivas reformas curriculares, acordadas com o contexto
sociopolítico na qual se encontravam, não era possível resolver o problema da alta taxa de evasão de
graduandos em Ciências Sociais; situação que é modificada pelos programas de iniciação científica.
A Revista Brasileira de Ciências Sociais publicou o resultado da entrevista realizada com Elisa
Pereira Reis (socióloga), Fábio Wanderley Reis (cientista político) e Gilberto Velho (antropólogo);
cujo título era As Ciências Sociais nos últimos 20 anos: Três perspectivas; e cujo conteúdo estava estruturado
em torno de seis temas, sendo eles: a) as ciências sociais no Brasil hoje; b) o desenvolvimento da
pesquisa e da pós-graduação; c) as relações da comunidade brasileira com a comunidade internacional;
d) áreas temáticas e abordagens metodológicas; e) o impacto das ciências sociais na sociedade ; f)
os principais problemas e perspectivas das ciências sociais brasileiras. Nota- se que a graduação não
aparece enquanto tema específico numa entrevista que versa justamente a situação da ciência social
brasileira. Já a pós-graduação aparece não só num bloco específico, mas também surge, em
determinados momentos, nas respostas às outras perguntas. Como é possível falar da Ciência Social
Brasileira sem falar da graduação em Ciências Sociais?
A relação entre graduação e pós é pensada principalmente a partir da matriz de pesquisa.
Figueiredo (2006) aponta a importância do contato e da efetiva prática científica, ofício do sociólogo
e, por conseguinte, dos outros dois cientistas sociais, o que se daria por meio das bolsas de
iniciação científica. A autora reconhece, porém que os graduados apenas iniciam-se na formação de
pesquisador, continuada nos programas de pós-graduação, nos mesmos departamentos onde são
ofertados cursos de mestrado e doutorado, onde os valores da pesquisa científica estariam mais
facilmente disseminados e que, portanto, motivaria o estudante à prática do rigor científico.
Uma dificuldade apontada, porém, é que na criação dos programas de pós, já se buscou uma
distância da graduação, conforme Maggie (1991). A partir disto, ressaltamos que não é questão de
duvidar da importância da pós-graduação para a ciência social brasileira ou para o próprio cientista
social – pelo contrário, essa importância é devidamente reconhecida -, mas trata-se apenas de
questionar o porquê da graduação não aparecer na agenda de questões dessas discussões; por que
não se enfatiza quais são seus defeitos, suas qualidades e, principalmente, seu papel na formação
profissional.
Já no contexto Uruguaio, existem pouquíssimos trabalhos que tenham o curso de Ciência
Política como objeto. Tivemos acesso a algum material, mas a maioria era referente a fundação da
Universidade de La República e pelos processos de Reforma que esta passou. Essa ausência
provavelmente se dá porque os processos de institucionalização da Ciência Política no Uruguai são
muito recentes. Como veremos no tópico seguinte, o Programa de Mestrado, por exemplo, foi
fundado há quinze anos.
Em nossa pesquisa bibliográfica encontramos somente dois textos que tem o Instituto de Ciencia
Política (IC) da Udelar como objeto: o de Garcé (2005) e de Altman (2011). O primeiro texto detalha o
contexto como a Ciência Política nasceu e se desenvolveu, destacando quais foram os principais
agentes,instituições e acontecimentos históricos decisivos para a consolidação desta disciplina no
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 918
campo acadêmico uruguaio. O segundo texto teve como objetivo fazer um estudo sistemático da
produtividade científica e do impacto de mais de vinte departamentos de Ciencia Política e
Relações Internacionais Latino americanos. No entanto a UFPR não foi objeto dessa pesquisa, o
que fez o primeiro texto ser a principal fonte mobilizada.
Reforma Universitária de Córdoba, que em linhas gerais foi um movimento muito importante ocorrido
em 1918, na Argentina, que tinha como meta: a autonomia universitária em todos os âmbitos
(acadêmico, administrativo e financeiro); eleições de autoridades pela comunidade universitária.;
concursos para a seleção de professores; modernização dos métodos de ensino ;democratização do
acesso a educação superior entre outros. Essa reforma consolidou a Universidade na Argentina e
em outras nações, como o Uruguai, por exemplo, como uma instituição laica, gratuita e universal.
A primeira vista esse sistema escancara as portas que dão acesso ao Ensino Superior, para que
qualquer cidadão que deseje cursar uma graduação possa fazê-lo. No entanto, no contexto Uruguaio
não é bem assim. Se observarmos os dados relativos à escolaridade da população, é possível aferir
que esta não está usufruindo da Universidade: segundo o Instituto Nacional de Estadística (INE),
em 2010, em torno de 61,7% da população tinha menos que dez anos de estudo 9vii. O requisito
para ingressar na graduação são doze anos de estudos. Somente 16,1% dos uruguaios têm mais
que 13 anos de estudo, isto quer dizer que menos de 20 % da população conseguiu ingressar no
Ensino Superior. O INE não divulgou o percentual dos que tem o ensino superior completo.
Tendo isso em vista é possível afirmar que no Uruguai, apesar do acesso ao ensino superior
ser universal, existe uma seleção anterior que não permite que a maioria da população ingresse na
graduação. O problema de acesso ao curso superior é de ordem diferente do caso brasileiro e só
poderá ser sanado quando for solucionado o problema da permanência da população no ensino
básico.
Partindo especificamente para o contexto de desenvolvimento da Ciência Política nesta
nação, cabe salientar que, na UDELAR, as ciências sociais não são um curso de graduação único. A
Sociologia, a Antropologia e a Ciência Política são separadas, cada uma é uma graduação10.
Historicamente, existiram cátedras de Ciência Política desde 1957, na Faculdade de Direito.
No entanto, só foi possível a criação de Centros de Pesquisa e a consolidação de um curso de
graduação na UDELAR no final dos anos 80. Garcé (2005) aponta que essa consolidação foi tardia
se comparada a áreas como a Economia e a Sociologia. O autor sugere que a ausência da
institucionalização da disciplina pode ser explicada pela reflexão de alta qualidade gerada pelos Partidos
Políticos. Ele aponta também que durante os anos sessenta, o campo intelectual das ciências sociais
tendia a não ver os fenômenos políticos de forma autônoma. Os teóricos da época eram mais
afeitos a paradigmas teóricos que explicassem os fenômenos por um viés da economia ou da
sociologia. Nessas condições não houve uma produção teórica extensa da Ciência Política.
No entanto, dos anos sessenta em diante, alguns agentes como Carlos Real de Azúa, Juan
Pivel Devoto, José Pedro Barrán e Benjamín Nahum que se esforçaram para desenvolver estudos da
área. Essas pesquisas, geralmente desenvolvidos na Universidad de L a República, foram o que criaram
a acumulação teórica que possibilitou o avanço posterior da área.
Com o Golpe de 1973 houve uma interrupção da produção de todas as áreas relacionadas às
Ciências Sociais, pois muitos docentes foram expulsos da UDELAR. Por tal razão, durante a
Ditadura Militar, vários centros de Pesquisa Privados 11 começaram a ser fundados ou revitalizados
para abrigar as pesquisas.
A Ciência Política conseguiu se desenvolver bastante nesse período, principalmente com
estudos sobre Partidos Políticos e sobre a relação entre Estado e Sociedade. Concomitante a essa
expansão de pesquisas havia uma geração de estudantes fazendo cursos de pós-graduação em
grandes Universidades no exterior.
Com a acumulação teórica e a contribuição dos pesquisadores que estavam obtendo grau de
mestre e doutor fora do país, foi fundado na Universidade da República, no departamento de
Direito, o Instituto de Ciencia Política (ICP), em 1985.
Quatro anos mais tarde foi fundada a Facultad de Ciencias Sociales. Com essa inauguração o ICP
foi incorporado e já foi aberto o curso de graduação em Ciência Política. O departamento cresceu
rapidamente: em 1997 começou o Programa de Mestrado em Ciência Política e em 2005, o de
doutorado em Ciências Sociais.
Ao longo dos anos noventa O Instituto de Ciência Política (ICP) se consolidou como o
centro de pesquisa mais importante do país, contando com um grupo de professores altamente
capacitado. A maioria desses docentes se formou na América Latina em centros de excelência como o
Iuperj (Brasil), Flacso (México) e a UBA (Argentina).Atualmente, o número de estudantes que
ingressam atualmente é crescente ,muito similares por exemplo aos números da Sociologia.
A Ciência Política atual já está consolidada, porém existem novos desafios no horizonte. Garcé
(2005) aponta que no campo acadêmico é necessário sanar a ausência de algumas linhas de
pesquisa e aumentar o número de pesquisas comparadas com outros países, para que haja uma
internacionalização e ampliação da reflexão de alta qualidade gerada nacionalmente.
No que tange ao campo profissional, o autor aponta que é relativamente fácil os estudantes
conseguirem bolsas em bons programas de pós-graduação no exterior, mas existem graves
dificuldades de inserção no mercado de trabalho u ruguaio. Além disso, os cientistas políticos têm
sido mais demandados pelos meios de comunicação para explicarem processos eleitorais, do que por
ONGs e pelo Estado para ajudarem na formulação das políticas públicas. Nesse contexto são
11Os Centros que Garcé(2005) cita são Centro Latinoamericano de Economía Humana (CLAEH) , Centro de Información
y Estudios Sociales del Uruguay (CIESU) , Centro de Investigaciones Económicas (CINVE) y el Centro Interdisciplinario
de Estudios sobre el Desarrollo del Uruguay (CIEDUR).
necessárias medidas para consolidar o lugar do polítólogo no mercado de trabalho uruguaio, para que
não haja uma “fuga de cérebros”.
Até mesmo a carreira docente no ICP na Universidade de La República, que é uma posição
excelente para os politólogos uruguaios, tem suas mazelas: existe um descompasso entre o prestígio
social e o retorno salarial que os professores do ICP gozam.
Resultados
somente com quatro disciplinas optativas, os “talleres”.12 É relevante salientar também que as cargas
horárias das disciplinas não são fixas, elas podem variar dependendo do ano. Esses “talleres”
citados tinham a carga de 30 ou 45 horas. Já na UFPR o currículo do curso permite que o aluno
faça dezesseis matérias do seu interesse: as optativas.
Nesta Universidade também há uma diferença substancial no que tange a carga horária,
existe um padrão fixo de 60 horas de duração dos cursos tanto de optativas como obrigatórias. É
importante salientar também que as optativas na UFPR totalizam 960 horas das 2820 previstas para
a formação integral, o que representa 35% da carga horária total do curso. Estas optativas são
organizadas em torno de temas ou grandes projetos de pesquisa, que se alinham as linhas de
pesquisa da pós-graduação e aos núcleos constituídos nos departamentos responsáveis pelo curso
(Antropologia e Ciências Sociais, este último congregando as áreas de Sociologia e Ciência Política).
Outro ponto que não podemos deixar de salientar é a preocupação com a discussão teórica com
enfoque no contexto nacional. Ao observar os títulos das disciplinas obrigatórias podemos aferir que
na UFPR a única disciplina que contempla essa questão é a de “Antropologia V: Antropologia
Brasileira”, enquanto no Uruguai os estudantes têm acesso a, pelo menos, cinco matérias que tratam
exclusivamente do país: História do Uruguai, Sociologia do Uruguai e Sistema Político Nacional I, II e III. A
experiência em sala de aula na disciplina de “Sistemas Políticos Latino-americanos” deixou evidente
que os estudantes conheciam as minúcias do Sistema Político Nacional e por isso podiam usar este
conhecimento como parâmetro comparativo para analisar os sistemas políticos de outros países do
continente.
12No semestre em que a pesquisa foi realizada no Uruguai algumas das opções eram: “Políticas Sociais”; “Relações
Internacionais” e ”Forças armadas, política e sociedade”
superior, 69% dos alunos declararam ter tios e 12,7% avós.No que se refere a membros ascendentes
com o título de mestre e/ou doutor 20% dos respondentes declararam ter pais e tios com este
grau e somente um aluno tinha um avô.
Considerando que o acesso ao ensino superior no Brasil foi ampliado nas últimas décadas,
estes dados indicam que há um percentual relativamente alto dos estudantes que foram socializados
em ambientes em que a graduação se configurava como uma realidade próxima.
No que se refere especificamente à trajetória acadêmica, 58,2% dos entrevistados são
vinculados a programas de bolsas das mais diversas modalidades e em relação a características
profissionais, 25 alunos do total de 54 entrevistados trabalham e destes,
30% em ocupações vinculadas a área de ciências sociais, desenvolvendo em especial
atividade de docência e estágios13.
Em relação ao motivo principal que levou a optar pelo curso de graduação em Ciências
Sociais no Brasil, aponta o seguinte gráfico:
Metade (50,9%) dos alunos buscou originalmente a graduação em Ciências Sociais por
afinidade e interesse com temática das ciências sociais, como citadas a política e os movimentos
sociais. 16,4% responderam que seu interesse foi motivado pelo contato com a Sociologia no
ensino médio, em especial os alunos de GRR2008, o que pode por sua vez, ser apontado como
influencia do estabelecimento recente da disciplina de Sociologia na grade curricular do ensino
médio, ao passo que 12,7% responderam que sua escolha foi motivada pelo anseio que o curso
fornecesse em termos mais amplos uma melhor compreensão do mundo social. 5,5% buscaram
13Os estágios citados pelos entrevistados vão desde atuando diretamente na área de ciências sociais, bem como em outras
áreas: estágio em direito, projetos sociais e bibliotecas.
Tabela 2 – Motivações escolhidas pelos graduandos em primeiro plano para cursar a pós-graduação
Tabela 3 – Motivações escolhidas pelos graduandos em segundo plano para cursar a pós-
graduação
Tabela 4 – Motivações escolhidas pelos graduandos em terceiro plano para cursar a pós-
graduação
Oportunidade de fazer pesquisa sobre um tema de meu interesse 20%
Meio de obter titulação de mestre ou doutor para ter melhor posição na
18,2%
carreira com efeito favorável sobre a renda/estabilidade no emprego
Possibilidade de alongar e aprofundar a formação iniciada na graduação 14,5%
Como podemos observar nas tabelas acima muitos estudantes acreditam que cursar uma pós-
graduação lhes oferecerá maior liberdade para realizar uma pesquisa de seu interesse: a alternativa foi a
mais votada como primeira razão e apareceu novamente no segundo e terceiro plano.Curiosamente
,mesmo em um contexto de abundancia delas, a concessão de bolsas não foi o principal atrativo para a
realização de uma pós.Já a possibilidade de melhor inserção no mercado de trabalho por conta do título
está presente com percentuais similares nos três planos.
b) Universidad de la República
Para este estudo de caso foram entrevistados quinze estudantes. Destes dez são mulheres e
cinco são homens. No quesito idade a amplitude vai de 21 a 49 anos. Oito desses tem menos de
25 anos e o restante é disperso.
Como já comentamos antes, no contexto uruguaio somente uma parcela muito pequena da
população consegue terminar o nível educacional que é requisito para ingressar no nível superior, por
isso nos pareceu relevante indagar se os pais dos estudantes cursaram graduação: dos quinze
respondentes, oito tiveram pais graduados. O que indica que pode haver um capital cultural familiar
que pesa nesse ingresso ao curso superior.
Questionamos os entrevistados também sobre a sua inserção no Mercado de Trabalho e sobre
o recebimento de bolsas na Universidade: dez, dos quinze respondentes, trabalham fora. E somente
dois vincularam suas ocupações ao curso de Ciência Política. Na experiência como estudante dessa
universidade foi possível perceber que a maior parte das disciplinas da Ciência Política, para os
estudantes dos últimos anos, é ofertada no período noturno.
No que se refere às bolsas, somente dois respondentes afirmaram receber. Nesse quesito a
experiência dos graduandos da Udelar é radicalmente diferente dos da UFPR: enquanto aqui metade
dos estudantes tem bolsas, lá a oferta é muito restrita. Em conversas informais com os estudantes
fomos informados que essas bolsas geralmente não são de pesquisa, como no contexto da UFPR,
os estudantes que trabalham na Universidade geralmente realizam trabalhos administrativos.
Com este pequeno panorama sobre o perfil dos estudantes podemos expor agora as
expectativas destes em relação ao curso. No que tange ao motivo original que levou os
respondentes a fazerem o curso onze dos entrevistados indicaram que era a Afinidade com áreas da
Ciência Política; dois apontaram que buscavam Compreender melhor o mundo Social. Dois respondentes
deram respostas mais ligadas à prática: um apontou que lhe pareceu necessário o ingresso para
influir em alguma mudança importante e outro respondente apontou que a motivação original era
que a esquerda ganhasse as eleições de 2005.
Os estudantes também foram questionados acerca das expectativas que tinham com o curso no
momento da entrevista:
Como podemos observar na tabela acima a maioria dos estudantes espera que o curso os
prepare para desempenhar funções técnicas junto a ONGs, ao Estado e a Empresas Privadas. Essa
expectativa foi a mais citada em primeiro lugar, mas também foi a que mais apareceu como segunda
e terceira opção.
Os estudantes também foram questionados se o curso atende a essa demanda: dos treze, onze
responderam que sim. Porem destes, três fizeram ressalvas que indicam que a formação atende
parcialmente a essa expectativa.
Como Garcé (2005) citou nos anos oitenta e noventa, na emergência da Ciência Política
como uma área institucionalizada com curso de graduação e Centro de Pesquisa, foi possível uma
grande absorção de politólogos para a docência e pesquisa no ICP. Porém, as novas gerações
precisam de novas e mais amplas opções de inserção no Mercado de Trabalho.
Os estudantes citarem mais vezes a preparação para funções técnicas como expectativa,
demonstra que eles já identificaram em quais espaços podem atuar. Somado ao parecer positivo dos
respondentes em relação à qualidade da formação para estes cargos, podemos crer que nos próximos
anos haverá uma busca por vagas em organismos Estatais, em ONGs e Empresas Privadas, que
aloquem este contingente de politólogos recém-formados.
Apesar de ser menos citada como primeira expectativa, provavelmente pela saturação do
campo, a segunda expectativa que apareceu mais vezes foi o “Preparo para carreira acadêmica”,
notadamente a docência e a pesquisa no Ensino Superior. Quando questionados se o curso atendia
essa demanda nove dos respondentes disseram que sim e dois que não,
A terceira expectativa mais citada foi à sofisticação do repertório cultural e intelectual, uma
resposta bastante recorrente no contexto dos estudantes da UFPR também. Essa também foi apontada
por oito, dos dez, dos respondentes como uma demanda atendida. Observando esses dados, é possível
aferir que os estudantes em questão têm expectativas similares e que o curso as tem atendido.
Os entrevistados também foram questionados se acreditavam que o curso de graduação é
suficiente para atender as expectativas supracitadas e se tinham intenção de cursar alguma pós-
graduação strictu sensu.
GRÁFICO 3 GRÁFICO 4 GRÁFICO 5
A graduação é suficiente para Você tem intenção de fazer uma Qual a intensidade dessa
atender as suas expectativas pós-graduação strictu sensu intenção?
atuais? (mestrado e doutorado) em
Ciência Política?
12 16 9
14 8
10
12 7
8 6
10
5
6 8
4
4 6
3
4 2
2
2 1
0
Sim Não 0 0
Sim Não Forte Média Fraca
Dos quinze respondentes, dez acreditam que a graduação não é suficiente para atender as
expectativas que eles citaram. Quando questionados sobre intenção de realizar uma pós-graduação
strictu sensu, com exceção de um respondente, até mesmo os que acreditam que a graduação atende
suas expectativas responderam que o mestrado está nos seus planos.
Para saber se essa intenção é um plano longínquo, ou um objetivo mais tangível, perguntamos
qual era a intensidade dessa intenção. Mais da metade dos entrevistados apontaram que é uma
Considerações finais
Referências
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departments in Latin America”. Advance online publication, 14 January 2011; doi:10.1057/eps.2010.82 [online],
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Três Perspectivas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, no. 35. [online].
http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091997000300002, 1997.
WESTPHALEN, Cecília. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Paraná – 50. Anos. Curitiba: SBPH, 1988.
1. Introdução
A
lguns dos problemas ambientais brasileiros estão relacionados com o sistema
socioeconômico de consumo e produções insustentáveis se desenvolveu nos últimos anos.
O atual quadro de alerta ambiental é fruto de reiterados atos políticos e sociais, que se
demonstravam despreocupados com o futuro ambiental do País.
Os conhecimentos acerca do meio ambiente passaram a ser insuficientes para subsidiar as
decisões de organizações ambientais o que desencadeou um avanço nas diversas áreas do saber, entre
elas a ecologia. (MEDINA, 2008). A preocupação do ser humano em reverter o quadro alarmante que a
sua interferência ocasionara ao meio ambiente foram sendo aperfeiçoados os conceitos e criada normas
jurídicas ao longo da história, e nesse contexto a Educação Ambiental. (SOUZA, 2011).
As questões ambientais incidem diretamente na criação de vínculos sociais e ações solidárias a
promover a interação entre os diversos tipos de conhecimentos e experiências, a multi e
interdisciplinariedade. Assim, parte-se do pressuposto de que, para disseminar a conscientização
ambiental, deve-se valer de um desencadeamento sistemático de atos e práticas ambientalistas, para que
se possa atingir o início desse efeito dominó que, pois, conscientizar e confrontar o homem na sua fase
inicial da vida.
Somados a esse contexto, o histórico de devastação ao meio natural, e as conferências que
ocorreram em âmbito internacional em que o Brasil se fez signatário determinou a criação de uma
política publica que estabelecesse diretrizes e ações na formação da consciência socioambiental do ser
humano e atendesse ao princípio do desenvolvimento sustentável. Assim, em 1999, foi publicada a Lei
nº 9.795/99 que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), que visa instituir
campanhas, ações e projetos para disseminação da Educação Ambiental (EA), bem como disciplinar a
sua observância na edição de leis ambientais. (BRASIL, 1999).
Durante o século XX, iniciou-se no Brasil e no mundo uma série de discussões acerca dos
problemas ambientais ocasionados ao bioma da terra. O período pós-revolução industrial fora marcado
pela chegada de máquinas, que tinha como intuito primordial, dinamizar a produção, oferecendo maior
quantitativo em itens em um curto lapso temporal, o que também ocasionou uma crise econômica,
pois, os índices de demissão e desempregos subiram significadamente. Entretanto, o crescimento
industrial, associado à ideia de um crescimento econômico desencadeou uma série de danos ao meio
ambiente.
Nos anos 70 eclodiu no mundo uma série de manifestações ambientais que tinham como mote
grave exploração aos recursos naturais ameaçando a qualidade da vida e colocando em jogo a
possibilidade de sobrevivência da própria humanidade. Nesse período, os componentes dos
movimentos ambientalistas, que emergiam espalhados pelo mundo, ponderavam que a violação dos
princípios ecológicos teria alcançado um estado crítico, o que ameaçava em curto lapso temporal a
qualidade da vida e consequentemente a possibilidade de sobrevivência da própria humanidade no
futuro. (MEDINA, 2008).
Devido o estado alarmante dos países, como por exemplo, a França e Alemanha, marcado por
descobertas, e o surgimento de novos fenômenos ambientais, começou-se a cogitar a necessidade de
desenvolver políticas públicas visando à preservação ambiental.
Assim, em 1972, foi realizado a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano
ocorrida em Estocolmo, visando contribuir, entre outros temas, com o desenvolvimento da educação
ambiental no mundo. Nessa Conferência foi construída a recomendação de nº 96 que propunha o
Programa Internacional de Educação Ambiental (PIEA), lançado em 1975, para que promovesse a
educação ambiental como uma base de estratégias para atacar a crise do meio ambiente. A partir da
Conferência de Estocolmo iniciou-se uma série de polêmicas de caráter mundial que colocou a
educação ambiental como assunto oficial da ONU. (MATOS, 2009).
No Brasil, o que se evidenciou foi a utilização abusiva dos recursos naturais pelo homem, cuja
exploração retratava a concepção econômica da época e o anseio por um crescimento industrial. Essas
ações proporcionaram resultados negativos na esfera ambiental, com consequências diretas ao homem.
Nas décadas de 80, a EA começa a avançar no país, o que se consolidou nos anos 90, com a
ECO92, cuja preocupação era as incógnitas globais e as matérias relativas ao desenvolvimento
sustentável. Entre os documentos provindos dessa conferência, destaca-se a Agenda 21, que apresentou
um plano de ação para o desenvolvimento sustentável de vários países, dentre eles a promoção do
ensino, da conscientização e do treinamento vinculado as áreas de programa da Agenda. (SOUZA,
2011).
Nesse contexto, a criação de uma política publica que estabelecesse diretrizes e ações na
formação da consciência socioambiental do ser humano e atendesse ao princípio do desenvolvimento
sustentável era essencial. Assim, surge em 1999, regulamentada pela Lei nº 9.795/99, a Política
Nacional de Educação Ambiental (PNEA).
O quadro 1 demonstra cronologicamente os principais marcos históricos da EA no Brasil,
entretanto, cumpre destacar que além dos acontecimentos abaixo informados, ainda ocorreram
inúmeros fóruns, cursos e movimentos ambientalistas que tinham como tema centralizador o termo
Educação Ambiental.
A Educação Ambiental integra uma forma ampla no campo educacional que visa, por meio de
um processo participativo permanente, envolver os cidadãos, a fim de se suscitar uma consciência
crítica, acerca das controvérsias ambientais existentes.
É possível afirmar que as inserções da educação ambiental nos planos governamentais visam
promover o desenvolvimento de ações socioeducativas relacionada à prevenção, proteção e
recuperação ambiental, a fim de se fomentar mudanças sociais e culturais na sociedade, por meio de
trabalhos educativos.
Antes do século XXI, havia pouco interesse governamental em investir na proteção ambiental,
o que se pode perceber pelas dificuldades encontradas ao tentar se estabelecer critérios para uma
economia sustentável, dentro de países desenvolvidos ou em desenvolvimento.
Com a promulgação da CF/88 a Educação Ambiental passou a ganhar efetivamente forças para
se tornar uma área autônoma e relevante entre as Políticas Ambientais.
Especificadamente o Art. 225, VI, CF/88, prevê a necessidade de promover a Educação
Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio
ambiente. A fim de externar os preceitos constitucionais, se instituiu 10 anos após a promulgação da
constituição, a Política Nacional da Educação Ambiental, Lei 9.795/99.
Com a criação da PNEA, estabeleceu-se no âmbito federal um novo sistema de atuação de
políticas públicas em Educação Ambiental, conforme a figura1:
acordo com as previsões legais da PNEA e em consonância com o Programa Nacional de Educação
Ambiental (ProNEA), conforme ilustrado.
A fim de facilitar a gestão de novas políticas educambientais o ProNEA, traçou alguns
objetivos, que estão coerentes com princípios e finalidades da Lei de educação ambiental, dos quais
pode-se destacar:
a) Promover processos de educação ambiental voltados para valores humanistas,
conhecimentos, habilidades, atitudes e competências que contribuam para a
participação cidadã na construção de sociedades sustentáveis; b)Contribuir com a
organização de grupos – voluntários, profissionais, institucionais, associações,
cooperativas, comitês, entre outros – que atuem em programas de intervenção em
educação ambiental, apoiando e valorizando suas ações; c) Promover a inclusão digital
para dinamizar o acesso a informações sobre a temática ambiental, garantindo
inclusive a acessibilidade de portadores de necessidades especiais. (MMA, 2005, p. 39-
49).
Desse modo, visando alcançar seus objetivos, o Instituto utilizou-se de redes virtuais para fazer
circular as informações entre os atores e autores ambientais. No Brasil, existem muitas redes virtuais,
tanto em âmbito nacional, estadual e local, como por exemplo, o REBEA, REASUL, RMEA, RPEA,
SIBEA, entre tantas outras, este última será foco de análise do presente trabalho. Além disso, destaca-se
ainda a existências de redes internacionais, como REDELUSO e a REDE AMAZÔNICA.
Assim no início de abril de 2007, o SIBEA foi reformulado, e essa nova versão constou com
uma base de 200 mil registros. Outra novidade foi a conexão do sistema à plataforma Lattes, do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), uma base dados que
congrega milhares de currículos de especialistas e pesquisadores em todas as áreas, bem como
informações sobre organizações.
Fonte: MMA, B, p. 06
Dessa forma, a reformulação do SIBEA, em 2007, visou adaptar a rede a sociedade tecnológica,
valendo-se de seus meios eficazes para atingir seus objetivos. Entretanto, conforme será analisado, o
portal possui vícios que comprometem sua estrutura e acessibilidade, não sendo, portanto, um molde
eficaz de disseminação de Educação Ambiental.
O SIBEA foi criado com a finalidade principal de possibilitar, por meio de um espaço público o
acesso acerca de educadores ambientais e instituições que trabalham com educação ambiental no Brasil,
como uma das principais formas de disseminar as ideias ambientalistas no país.
A princípio, a ideia de centralizar um banco de dados com informações acerca de profissionais
que trabalhassem diretamente com a EA, foi aplaudida pelos órgãos responsáveis pela organização e
implantação de meios eficazes para atingir um grande grupo social, principalmente o estudantil.
Entretanto, analisando a estrutura do portal, foi possível constatar alguns vícios que comprometem
todo o projeto, que partem desde os erros mais simples aos mais grosseiros.
O método utilizado foi o percurso cognitivo, que persiste em uma técnica em que o avaliador se
coloca no lugar do usuário analisando se há algum problema em acessar, utilizar ou se interagir com o
portal, site, sistema, ou ao menos tentar prevê tais situações, simulando a execução das tarefas
recebidas.
Nesse sentido, Prates e Barbosa entendem:
[...] o avaliador deverá se colocar no lugar do usuário do sistema (o que deverá ser
feito através da leitura de um texto informativo, previamente elaborado, sobre o perfil
do potencial usuário), e simular a execução das tarefas recebidas, respondendo uma
Desse modo, com os resultados obtidos por meio das analises feitos no percurso cognitivo, é
possível constatar imperfeições que comprometem a execução e uso do sistema. Assim, realizou-se uma
análise levando em consideração o designer, a acessibilidade e usabilidade nos campos de registro,
buscas, cartograma e críticas e sugestões.
3.2.1.1 Designer
Percebe-se que o portal demonstra uma grande falha em seu posicionamento, o que acarreta em
transtornos em sua usabilidade e flexibilidade aos usuários.
Fonte: http://Sibea.mma.gov.br/dcSibea/
Além disso, as barras de rolagem do lado direito e no rodapé demonstram mais uma falha no
site, pois todos os navegadores (Chrome, Mozilla, Explore) já têm suas barras de rolagem padrão.
Desse modo, quando conteúdo do site ultrapassa o tamanho da resolução do monitor do computador
ela é ativada automaticamente para facilitar a visualização do conteúdo do site.
Por tanto, este erro de programação é considerado grosseiro por não ter sido implantado o
código CSS (Cascading Style Sheets), que é uma ferramenta para construção do layout dos websites, nas
barra de rolagem no corpo todo do site, prejudicando a acessibilidade a todas as pessoas, inclusive
portadoras de alguma necessidade especial.
3.2.1.1 Registro
O sistema SIBEA, a priori, visou permitir que seus usuários pudessem realizar o registro de
forma facilitada, para tanto o índex ou página inicial do portal apresenta um link ao lado esquerdo e um
banner do lado direito para efetuar o registro de perfil, possibilitando assim a fácil localização e
identificação do link, conforme Figura 04.
Fonte: http://Sibea.mma.gov.br/dcSibea/
Depois de selecionado o link, o segundo passo é a escolha entre os três perfis disponíveis para
divisão dos grupos educacionais, quais sejam Instituição; Organizações sem CNPJ, Educador
ambiental, como se pode verificar na Figura 05.
Figura 5 - Campo de cadastro – Escolha de perfil
Fonte: http://Sibea.mma.gov.br/dcSibea/
Entretanto, nenhuma das três modalidades de perfis funciona, pois ao clicar no botão “Aceito”,
para anuir acerca dos termos de adesão, nenhuma das opções passa para tela de identificação. Devido
ao erro constante na programação, não é possível prosseguir no cadastro do perfil, este erro pode
ocorrer nos select que faz a conexão do botão do formulário de cadastro com próximo formulário
identificação, conforme Figura 6.
Figura 6 – Campo de cadastro – problema no botão “Aceito”.
Fonte: http://Sibea.mma.gov.br/dcSibea/
3.2.1.2 Buscas
O Portal SIBEA disponibiliza serviços de busca, de visualização de redes e de extração de
indicadores para os diversos atores do sistema de Educação Ambiental. Através desse campo, os
usuários podem fazer consultas sobre educadores, pesquisadores, instituições que trabalham
diretamente com educação ambiental, desde que estejam devidamente cadastrados no SIBEA e na
Plataforma Lattes.
Em análise a Figura 7, percebe-se que as páginas de buscas apresentam incompatibilidade do
CSS com navegador Chrome, este erro ocorre devido algumas funções adicionadas no estilo da página.
Assim, ao se utilizar o Chrome aparecem barras de rolagens em locais impróprios, o que dificulta a
visuabilidade da pesquisa. Cabe ressaltar que este erro também ocorre na tela de redes por competência,
conforme Figura 08.
Figura 7 – Campo de Buscas –problema na área de buscas nos navegadores Chrome e Mozilla.
(A e B) e problema na área de redes por competência (C)
Fonte: http://Sibea.mma.gov.br/dcSibea/
3.2.1.3 Cartograma
O Cartograma é uma ferramenta que visa permitir a fácil visualização gráfica de informações
sobre a base de dados do SIBEA, tais como a distribuição de competências, instituições, ações,
políticas, programas e material pedagógico no Brasil, considerando diversos critérios de filtragem. Esses
indicadores são referenciados geograficamente pelos estados brasileiros.
A comunicação entre as informações é uma das finalidades básicas do sistema. Portanto, o
cartograma se faz essencial a observação e análises de medidas e ações educoambientais adotadas no
país, bem como verificar quais foram mais viáveis e os métodos aplicados para atingirem sua finalidade.
Além disso, por meio dos dados veiculados provavelmente identificaria os problemas das Políticas
Públicas ao trabalhar a Educação Ambiental.
A Figura 9 mostra que no index do site possui links para o acesso ao cartograma, ou seja, as
informações necessárias, ao clicar em qualquer dos links é aberta uma nova tela vazia. Esses ocorrem
geralmente por falta de conteúdo ou falha na comunicação com o banco de dados.
Fonte: http://sibea.mma.gov.br/dcsibea/
Portanto, pode-se afirmar que o SIBEA perdeu a sua essência básica, pois, uma vez que não
consegue sequer apresentar informações básicas sobre o andamento da EA, impossibilita a
disseminação da educação entre os usuários.
Fonte: http://sibea.mma.gov.br/dcsibea/
Entretanto, ao se tentar abrir a página, ocorre erro no sistema e não abre a tela desejada. Esse
erro pode ocorrer por fala de comunicação do formulário de sugestão com banco ou por estar com o
link quebrado.
4. Considerações finais
No Brasil, houve um grande avanço da EA nos últimos anos, porém, ainda, há muitos
problemas a serem encarados para que realmente a Educação Ambiental atinja sua finalidade.
Em análise às leis disponíveis, é possível estabelecer que no Brasil vivemos a era Ambiental,
onde o capitalismo tem que atender, em caráter obrigatório, as necessidades do meio ambiente, ou seja,
caminhamos sentido a uma economia verde, que se externa por meios de debates, conferências, fóruns,
onde visam atender as exigências legais e básicas da EA.
A Política Nacional de Educação Ambiental prevê dentre seus objetivos o incentivo à
participação permanente e responsável do indivíduo e da coletividade, na preservação do equilíbrio do
meio ambiente, e o fomento e o fortalecimento da integração com a ciência e a tecnologia. Portais
como SIBEA nascem de ideias que tem por base externar os objetivos da PNEA e do PRONEA.
Entretanto, para executar um sistema de grande porte, acaba por despender tempo, investimento e
colaboração, o que só esteve presente na criação e na reforma do SIBEA.
Com os resultados obtidos, pode-se concluir que o SIBEA mostra inúmeras inconsistências,
além de erros visíveis na linguagem de programação e nos formulários com banco de dados, o que
inviabiliza sua executoriedade e ainda prejudica a imagem do sistema frente aos usuários caso não haja
as devidas correções.
Atualmente o mercado tecnológico desenvolve websites em um padrão conhecido como
W3Cuma “plataforma Web aberta”, que serve para desenvolver aplicativos que permitis aos
desenvolvedores criar experiências interativas, o que é alimentado por grandes armazenamentos de
dados. Sites desenvolvidos com essas normas permitem o acesso e visualização por qualquer pessoa ou
tecnologia, sem levar em consideração o hardware ou softwares por elas utilizados, como celulares,
tabletes e outros. Assim, propõem-se, as ferramentas e linguagens de programação sejam revistas,
alterando-se as etapas que envolvem diretamente a interface do sistema. Além disso, deve ser feito uma
vistoria mais rígida pelos órgãos competentes a fim de constatar tais falhas que são perfeitamente
aparentes. Ressalta-se que ainda há possibilidade de que sejam realizadas as devidas reparações no
portal SIBEA, a fim de se conceder acessibilidade e usabilidade aos seus usuários.
Desse modo, o presente estudo abre espaço para novas análises e discussões acerca dos altos
investimentos que são realizados, sob a argumentação de tais aplicações servem para integralizar as
viabilizar melhor execução da educação ambiental por meio das ferramentas tecnológicas disponíveis
no mercado, sem ao menos fiscalizar todo o projeto.
Referências
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E
l Tratado fundacional del Mercosur, firmado en 1991 en Asunción, representó la concreción
de un proyecto integracionista comercial para fomentar el desarrollo de los países del Cono
Sur americano, bajo una lógica de apertura regional, en el marco de un consenso
hegemónico (PERROTA, 2011, p. 79). El acuerdo planteó esencialmente los objetivos de acelerar los
procesos de desarrollo económico, promover la inserción de los países fundadores en el mercado
internacional y modernizar las economías a través del intercambio constante.
Las ideas-fuerza fundantes del pretendido Mercado Común no escaparon a la lógica dominante
en la década de los ’90, donde la participación de los actores políticos y sociales quedó disminuida
frente a la incidencia de los actores empresariales. Aunque en la constitución del bloque se les asignó
importancia a la justicia social, a la integración latinoamericana y a la unión entre los pueblos, las políticas
orientadas al desarrollo económico otorgaron una prioridad menor a las políticas culturales, educativas
y sociales (BOTTO, 2007).
Ya desde la fundación del bloque, sin embargo, los Ministros de Educación de los países
fundadores reconocieron la importancia de la educación en el proceso integracionista y suscribieron, en
1991, el primer Protocolo de Intenciones relativo a aspectos educativos, en el que se destacó la
importancia de “reconocer a la educación como un elemento dinamizador, que permitirá acelerar los
procesos de desarrollo económico con justicia social y consolidar el camino de integración”4. Así, fue
creada la Comisión de Ministros de Educación, devenida en la actual Reunión de Ministros de
Educación, tras la Decisión del CMC nº 7/1991.
De esta forma, paulatinamente fue tomando dimensión la necesidad de una formación integral
de los recursos humanos para “fortalecer el proceso de integración y alcanzar la prosperidad, el
progreso y el bienestar con justicia social de los habitantes de la subregión”5.
1 Estudiante de Comunicación Social. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Nacional del Comahue;
Argentina.
2 Estudiante de Derecho. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales, Universidad Nacional del Comahue; Argentina.
3 Estudiante de Psicología. Facultad de Psicología, Universidad Nacional de Mar del Plata; Argentina.
4 MERCOSUR. Reunión de Ministros de Educación. Protocolo de Intenciones. Brasilia: 1991.
5 MERCOSUR. Consejo del Mercado Común. Decisión 07/1991. Brasilia: 1991.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 944
En 1992 comenzó a regir el primer Plan Trienal del Sector Educativo del Mercosur (SEM),
cuyo objetivo principal –reiterado en los Planes subsiguientes– fue detectar el estado de situación y los
obstáculos que condicionarían la movilidad de los alumnos en la región (GIANGIÁCOMO, 2008).
Sin embargo, el planeamiento concreto de diversos proyectos de regionalización de la educación
superior fue definido por primera vez en el Plan de Acción del SEM 2001-20056, especialmente en lo
relativo a la aprobación por parte de los países de diversos programas, en el marco del trinomio
acreditación-movilidad-cooperación como bloques temáticos rectores.
Sólo después de 2003, en el marco de los nuevos gobiernos con amplio apoyo popular y con
una fuente impronta social en sus políticas internas7, se comenzó a articular un compromiso regional
real en materia de regionalización educativa. Vazquez (2012) destaca la importancia del Consenso de
Buenos Aires8 como punto de partida de un proceso orientado a lo social, en el cual se afirmó la
necesidad de fortalecer los sistemas universitarios “con el fin de generar un polo científico regional” 9,
reconociendo un marco de asimetrías entre los diversos países.
Los principios del Consenso se plasmaron en el Programa de Trabajo del Mercosur 2004-200610,
que otorgó prioridad, en lo relativo a educación, a la negociación para el reconocimiento de títulos
universitarios, la circulación de profesionales, la mejoría en los niveles educacionales y a la enseñanza
obligatoria de los idiomas español y portugués.
Asimismo, en la XX Cumbre Iberoamericana de Jefes de Estado de 2010, se aprobó el Plan
“Metas Educativas 2021” –con objetivos de universalizar la educación, mejorar la calidad educativa y
posibilitar la igualdad educativa–, que complementó sinérgicamente el accionar del SEM, otorgando un
nuevo marco de compromisos políticos regionales.
Los nuevos impulsos conducentes a la integración educativa determinaron, por un lado, planes
de acción más ambiciosos. Es posible verificar una evolución en las metas, donde se incluyeron
paulatinamente la concreción de proyectos de impacto real y se estableció un sistema de monitoreo y
evaluación para acompañar las acciones establecidas. Asimismo, se propuso como objetivo la
comunicación con los diversos actores sociales.
Por otro lado, junto con la diversificación de temáticas y mayor complejidad adquirida por la
agenda educativa, se produjo un mejoramiento del acervo normativo relativo al SEM. Así, la estructura
6 En los documentos anteriores, las metas se centraban fundamentalmente en el estudio de situación y perspectivas, con
excepción de escasos proyectos con protocolos aprobados. Es ilustrativa la meta 4.2.2 del Plan Trienal 1998-2000:
“Fomento a la cooperación dentro de la región, en vistas a favorecer la transferencia de conocimientos y tecnologías y el
intercambio de estudiantes, docentes e investigadores en el marco de los protocolos existentes.” (El resaltado nos
pertenece).
7 Son los casos de Néstor Kirchner (Argentina, 2003-2007), Tabaré Vázquez (Uruguay, 2005-2010), “Lula” da Silva (Brasil,
2003-2011) y Fernando Lugo (Paraguay, 2008-2012), elegidos democráticamente, con un fuerte arraigo en sectores
populares y que impulsaron diversas políticas sociales conducentes a la mejora del nivel de vida, acceso a la educación y
servicios sanitarios y lucha contra la pobreza.
8 Destaca PERROTA (2011) que el nombre atribuido respondió a una clara oposición al Consenso de Washington.
9 ARGENTINA y BRASIL. Declaración Conjunta. Buenos Aires: 2003. Considerando 5º.
10 Adoptado por la Decisión CMC 26/2006.
orgánica simple y precaria fundada tras la Reunión de Ministros de 1991 se perfeccionó de forma
paulatina, especialmente tras las Decisiones 7/1991, 05/2006 y 05/2011 del CMC. Se crearon, bajo la
órbita de la Reunión de Ministros de Educación, diversas Comisiones Coordinadoras de Área y grupos
de trabajo específicos, además de un Fondo de Financiamiento propio del Sector Educativo.
11 La estabilidad democrática de los países integrantes del bloque, reconocida en el Plan de Acción 2011-2015, quedó
debilitada frente al Golpe Institucional contra el presidente paraguayo Fernando Lugo, en 2012, que obtuvo como
respuesta la suspensión del Paraguay en los órganos decisorios del Mercosur.
12 MERCOSUR. Plan de Acción del Sector Educativo del Mercosur 2011-2015. Asunción: 2011, p. 11.
Con respecto a la situación interna de los países del Mercosur, fue notable la mejoría cualitativa
y cuantitativa en términos educativos, ya reconocida en el Plan 2006-201013, a pesar de la existencia de
desafíos en materia de igualdad de acceso y universalización. Estas situaciones internas determinan y
condicionan, aunque no exclusivamente, las dinámicas integracionistas en el ámbito regional
(PERROTA, 2001, p. 90-91).
Los objetivos estratégicos del Plan 2011-201514 fueron, por un lado, relativos a la educación
transformadora de ciudadanía, cuya utilidad destaca Tedesco (1996, p. 7), como medio de integración
cultural en un contexto de supranacionalidades. Así, se reconoce la necesidad de ejecutar políticas
educativas de promoción de una ciudadanía regional. También, se prevé asegurar una “educación de
calidad” como “factor de inclusión social, de desarrollo humano y productivo”15.
Por otro lado, existen objetivos estratégicos relativos a la integración educativa propiamente dicha.
Estos son: la promoción de la cooperación y el intercambio con miras en la mejoría de la calidad
educativa; el fortalecimiento de programas de movilidad de estudiantes, docentes, investigadores y
profesionales; y la articulación de la regionalización educativa con el proceso rector del Mercosur.
El Plan reconoce, como ya fue dicho, la importancia del Programa “Metas 2021: La educación
que queremos para la generación de los Bicentenarios” de OEI-Cepal y la consonancia de los objetivos
con esa carta-compromiso de Jefes de Estado.
Dentro del Plan 2011-2015, en el “Plan Operativo” se destacan diversas metas derivadas de los
objetivos estratégicos. Sin perjuicio de la clasificación originaria según las estrategias de acción del SEM,
es posible identificar cuatro grandes ejes en las acciones planeadas: 1) institucionalización del SEM y
vinculación con otros organismos intra y extra Mercosur; 2) promoción y fortalecimiento de la
formación docente con perspectiva integracionista y eje en la diversidad; 3) equivalencias, acreditación
de carreras y proyectos de movilidad regional; y 4) integración de políticas internas e intercambio de
buenas prácticas entre los países miembros.
El primer eje está orientado a consolidar la institucionalidad del SEM, a través de la interacción
con otros organismos dependientes del Mercosur y con sectores externos al bloque. Así, se destaca la
necesidad de elaborar instrumentos de cooperación técnica con otras instancias del Mercosur y de
gestionar espacios de participación de la RME en las reuniones del CMC. Otras metas destacables son:
identificar potenciales socios (países, bloques y organismos) para desarrollar proyectos conjuntos
de cooperación con el SEM;
coordinar y articular la agenda con grupos especializados de UNASUR y otros bloques y
organismos;
13 MERCOSUR. Plan de Acción del Sector Educativo del Mercosur 2006-2010. 2006, p. 5.
14 Los objetivos son reiterados en los anteriores Planes de Acción, especialmente en el Plan 2006-2010, que guarda
semejanza con el actual vigente.
15 MERCOSUR. Plan SEM 2011-2015. Op. cit., p. 13.
consolidados, en su mayoría relativos a la educación superior. Es posible destacar, entre otros, los
proyectos ARCUSUR, MARCA, MARCA Docentes, Movilidad lingüística y Programa de Movilidad
Mercosur.
del Ministerio de Educación y Cultura de la República Oriental del Uruguay en conjunto con la
Universidad de la República.
Los objetivos del programa se relacionan con las metas establecidas en los Planes 2006-2010 y
2011-2015: conocimiento recíproco, interculturalidad, respeto a la diversidad, cooperación, etc.
La fase piloto del Programa se desarrolló en 2012, y participaron 157 estudiantes de diferentes
carreras de grado –sin restricciones– de los entonces cuatro estados parte. El balance final del programa
fue positivo, destacando la participación de diversas universidades regionales16.
Si bien existe voluntad y se cuenta con la logística adecuada –especialmente tras la creación de
redes interuniversitarias–, el inconveniente mayor para dar permanencia al programa es de índole
presupuestario, debiendo articularse un financiamiento conjunto del SEM con las universidades
participantes.
16 Los coautores de este trabajo fueron participantes de la Fase Piloto del programa.
Acción han enfatizado el estudio y el intercambio de buenas prácticas entre los diversos sistemas17. Esto
se ha visto, por un lado, en la diferencia de esquemas de educación general, y por el otro, en el grado
diferente de implementación de Agencias de Acreditación universitarias.
En relación a la movilidad de los actores educativos, Astur (2011, p. 128) destaca que los
estados han fracasado en las negociaciones tendientes a la libre circulación de estudiantes y
profesionales no encuadrados en el Acuerdo de Residencia Permanente del Mercosur. No hay
actualmente un sistema de Visa Estudiantil unificado, sino que existen acuerdos bilaterales aislados,
como el caso Argentina-Brasil de exención de tasas para el trámite de visas estudiantiles. Sin embargo,
la necesidad de trámites consulares de visado existe y representa un obstáculo para las movilidades de
larga o media duración.
La circulación de profesionales, que también se ve alcanzada por las dificultades migratorias,
está también condicionada al reconocimiento de títulos universitarios por parte de los Ministerios de
Educación locales. La decisión 4/1999 CMC puso en vigencia el reconocimiento de títulos
universitarios “al solo efecto del ejercicio de actividades de docencia e investigación”. Sin embargo, un
entendimiento18 de la CAPES19 brasileña determinó que el reconocimiento es exclusivo para actividades
académicas temporales y no permanentes. Es decir, nuevamente, existen divergencias en la aplicación
interna que truncan la aplicación de una norma que, si bien no resolvió, avanzó en el reconocimiento de
diplomas.
Asimismo, a pesar de que el sistema ARCUSUR fue mentado para facilitar el reconocimiento de
títulos y la consecuente habilitación profesional (HERMO, 2006), las negociaciones en ese sentido
fracasaron. Así, el sistema está limitado a garantizar la calidad de las carreras acreditadas, pero sin
implicar ello la reválida. Astur (2011, p. 112) reconoce que existen resistencias de Brasil, por una parte,
y de Uruguay y Paraguay, por otra, por no contar con sistemas de colegiación posteriores a la
revalidación de los diplomas.
No será posible concretar un sistema eficiente de acreditación y posterior reconocimiento, si no
se profundiza la lógica de que si el Mercosur “cuenta con una base de trabajo común que acredita
niveles comunes de calidad, esta pueda operar como sustento de reconocimiento, ya que aporta los dos
elementos fundamentales que son el conocimiento de los sistemas de formación y la confianza mutua
sobre la calidad de los títulos” (ASTUR, 2011, p. 114).
Por otro lado, como ya fue indicado, existe un grado diferente de implementación de los
sistemas nacionales de acreditación de carreras universitarias. Así, mientras la CONEAU argentina
17 En el Plan 2011-2015, por ejemplo, las metas A.1.1 y B.1.1 del objetivo estratégico 2, CCR.
18 Parecer CNE/CES nº 106, de 2007, disponible en http://www.capes.gov.br/images/stories/-
download/avaliacao/pces106_07.pdf. Consultado el 02/09/2013.
19 La CAPES -Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior- depende del Ministerio de Educación y
tiene funciones, por un lado, de evaluación de posgrados y, por el otro, de incentivo a la ciencia y técnica.
igual que el propio bloque, atravesado por las diversas problemáticas sociales, culturales y educativas
internas de los países miembro. Sin embargo, es notorio el grado de avance en las políticas educativas
nacionales, que repercute en el fenómeno integracionista.
En definitiva, para arribar al objetivo de un espacio educativo común, las políticas regionales
deben proponer un reconocimiento a la diversidad y a la compatibilidad de intereses y objetivos,
buscando la interacción entre los diferentes contextos de cada uno de los países y universidades. Es en
la creación de este espacio común que, integrando las diferencias socioculturales, se encuentra el
concepto de Identidad Regional (BARRERA, 2012). Ese proceso de creación de una identidad regional
también tiene sustento, en términos lacanianos20, en las pautas y marcos simbólicos necesarios para que
cada sujeto comparta y construya con el Otro, representado en este caso en el bloque regional.
Al mentar una Identidad Regional construida en el marco de un espacio educativo común, debe
reconocerse su dinamismo teniendo en cuenta el presente, el pasado y el futuro de las proyecciones, los
proyectos y los propios mitos. El punto de partida es, necesariamente, el reconocimiento del territorio y
la identificación de la cultura, la historia y todo aquello que pertenezca a la misma.
El camino de la integración es, entonces, el reconocimiento de lo heterogéneo y diverso que
permite, a su vez, valorizar lo característico de cada contexto y adquirir una visión integral y coherente
de la región. Es a partir de la identidad regional que surgen el sentimiento de pertenencia, los valores
regionales comunes, el fomento de capital social y la cooperación.
La integración económica no es posible sin integración social, cultural y educativa. Y debe
entenderse que la integración implica respeto, cooperación y solidaridad –valores presentes en los
Planes del SEM–, con objetivos no de aculturización o uniformización, sino de diálogo permanente entre
las culturas.
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Introdução
A
o curso do processo de conformação da modernidade no ocidente, intrinsecamente
vinculado à constituição do capitalismo como modo dominante de produção e fundamento
ordenador das sociedades contemporâneas, a geração e a disseminação dos conhecimentos
científicos e filosóficos ocuparam, progressivamente, um papel de importância singular tanto para o
próprio desenvolvimento das relações de produção capitalistas, como para a instituição e legitimação
das formas de sociabilidade e organização política que passaram a desempenhar um papel
paradigmático a partir do século XX.
As ciências (e a filosofia) cada vez mais se fizeram presentes no universo econômico, por meio
da promoção do domínio e intervenção sobre a natureza, mediante o desenvolvimento contínuo de
novas tecnologias; da racionalização, sob a lógica da acumulação do capital, dos processos de produção
e circulação de bens materiais e simbólicos e da compreensão das relações sociais e do processo de
individuação que assinalam a modernidade.
A produção e a disseminação de novos conhecimentos e informações, em escala inédita na
história da humanidade, tornaram obrigatória a constituição de sistemas de ensino vinculados aos
Estados Modernos, cada vez mais abrangentes do ponto de vista das classes, dos gêneros, das etnias e
dos grupos etários, dada a sua importância para a economia e a afirmação de dispositivos
comportamentais próprios ao “viver moderno”. Não unicamente, mas de modo especial, a chamada
educação superior ganhou papel de destaque, fazendo com que as instituições por esta responsável –
sobretudo as universidades – não fossem tão somente locais de formação de quadros profissionais
qualificados, por meio da transmissão de saberes reconhecidos como legítimos, seguindo, em maior ou
menor grau, o “modelo de ensino superior napoleônico”, mas também se afirmassem, gradativamente,
como espaços da produção científica, em articulação a institutos e demais centros de pesquisa, fossem
estes públicos ou privados.
Deste modo, nas sociedades que historicamente ocupam posições centrais no sistema
econômico internacional, se evidenciaram – e continuam se evidenciando- de forma quase “natural”, os
elos entre produção do conhecimento científico (e filosófico) e a organização de estruturas
institucionais essenciais para o próprio progresso das ciências e, igualmente, para a formação e a
qualificação dos quadros técnicos socialmente necessários à continuidade do crescimento econômico e
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 956
da ordem pública dominante. Para tal sempre se fez presente a ação estatal, mesmo quando coadjuvada
pela iniciativa privada, objetivando a promoção e a reorganização dessas estruturas institucionais
quando, por força de mudanças históricas, assim o fosse preciso, pois como, ao final do século XIX,
Durkheim afirmava em suas lições sobre a educação moderna: o Estado não pode desconsiderar o
sistema educacional, sob pena de prejuízos impensáveis, dada a importância do mesmo (em todas as
suas dimensões) para a reprodução da própria sociedade (DURKHEIM, 1984).
Os países capitalistas avançados como os EUA e os europeus ocidentais, ressalvadas suas
particularidades e incorporação em maior ou menor grau dos princípios do welfare state, têm sistemas
universitários consagrados, de ampla dimensão e abrangência, bases de financiamento diversas e
variadas funções: das mais tradicionais, como a formação de quadros, às de extensão, cursos de
atualização e especialização, consultorias para agentes públicos e privados, projetos de produção
cultural e ações de assistência social. No caso dos países europeus, resultante da constituição da União
Europeia, foi progressivamente instituído o Processo de Bolonha, principalmente a partir da
Declaração de Bolonha, em 1999, objetivando estabelecer parâmetros - inclusive curriculares - e
objetivos comuns para as instituições europeias de ensino superior.
Em sociedades de desenvolvimento capitalista tardio, mas que podem também ser classificadas
como “avançadas ou desenvolvidas” como vem a ser o caso de Japão e Coréia do Sul, as características
nacionais se evidenciam mais fortemente, notadamente no tocante a elos mais diretos entre a
implantação (e/ou reforma) dos sistemas de ensino e desenvolvimento econômico. Nesse sentido, vem
a ser muito expressiva trajetória sul-coreana. A configuração do sistema de ensino superior sul-coreano
foi resultante de ambicioso projeto de crescimento econômico, iniciado após o final da guerra civil e
que tinha por objetivo superar os efeitos destrutivos de anos de conflito e ocupação estrangeira e atingir
a condição de país desenvolvido.
Tal projeto era centrado na industrialização, utilizando instrumentos de planejamento
econômico como planos quinquenais detalhados e com metas precisas, forte apoio do Estado ao
sistema produtivo privado, com financiamento a juros reduzidos, reserva de mercado para as empresas
nacionais e indução à formação dos grandes grupos econômicos conglomerados (os chaebols).
Por consequência, a ênfase na formação de engenheiros (cerca de 50% das vagas destinam-se a
estudantes de cursos de engenharia) e pessoal especializado para a indústria marcou o desenvolvimento
da educação superior sul-coreana. As instituições de ensino, em sua maioria, são privadas, porém
contam com sistema de apoio do Estado (bolsas para estudantes e outros mecanismos de permanência
no ensino superior) e atendem a mais de 60% dos jovens entre 18 e 20 anos de idade.
Se para as sociedades capitalistas avançadas a produção do conhecimento científico e as
consequentes aplicações tecnológicas e organizacionais foram - e são - cruciais para a continuidade da
expansão do processo de acumulação capitalista e da superação de crises conjunturais que ciclicamente
incidem sobre o sistema econômico como um todo, para as sociedades que, por força das
transformações históricas, romperam politicamente com o estatuto colonial, mas sem que essa ruptura
viesse a situá-las em posições que não fossem, com maior ou menor força, as de dependentes e
periféricas, empreender o desenvolvimento da pesquisa científica e tecnológica bem como promover a
ampliação dos níveis de escolarização de suas populações em ritmos necessários à superação da
condição subalterna terminou por se constituir em um dilema, quase uma impossibilidade, em função
das dificuldades econômicas, políticas e culturais que nelas se configuraram ao longo dos últimos dois
séculos.
De todo modo, as instituições de ensino superior têm sofrido significativamente os efeitos das
mudanças, especialmente as econômicas, que vieram a marcar o final do século XX.
Mudanças que se caracterizam pelo elevado grau de monopolização do capital, tanto em esferas
nacionais como na internacional, visível em todos os setores econômicos: dos diretamente produtivos
ao financeiro, inclusive o educacional.
A emergência da crise econômica mundial, iniciada em 2008 a partir da quebra do setor
imobiliário dos Estados Unidos, ao expressar contradições estruturais do sistema capitalista e o possível
esgotamento do chamado modelo neoliberal vigente nas últimas décadas na maior parte dos países,
acentuou ainda mais a tendência à concentração monopolista do capital e, ao mesmo tempo, delineia o
que podem ser alternativas de crescimento - também no campo educacional - para países de
industrialização tardia, como os BRICs, embora isto não signifique que estes,como os demais
participantes do cenário econômico mundial, estejam imunes as vicissitudes da crise.
civil, sejam ou não diretamente vinculadas a instituições educacionais, as quais ressaltam os ainda mais
fortes vínculos entre educação e desenvolvimento.
A educação superior quase permanentemente esteve entre nós, sul-americanos, relacionada às
temáticas da modernização e do desenvolvimento, mesmo com a implementação de políticas
econômicas de inspiração neoliberal que acompanharam o processo de democratização política na
grande maioria dos países do subcontinente.
Notadamente pelos aspectos que configuram o capitalismo e a ordem mundial no principiar do
século XXI, as problemáticas do desenvolvimento e do papel das instituições de ensino superior em tal
contexto devem ser necessariamente analisadas sob novas perspectivas. Perspectivas que sejam capazes
de, em primeiro lugar, apreender a hoje marcante diversidade de interesses presentes nas nossas
sociedades, os quais não mais se configuram unicamente em torno da relação que estabelecem com os
processos econômicos, ainda que esta permaneça sendo a principal relação constituinte das identidades
dos agentes sociais.
Em segundo lugar, elas devem propiciar uma melhor compreensão das particularidades das
sociedades da América do Sul, as quais, embora se vejam quase que “forçadas à integração e à
internacionalização”, possuem características decorrentes de suas trajetórias históricas mais recentes
que as diferenciam entre si.
Sublinhemos que se o “nacional-desenvolvimentismo” esgotou-se como caminho para a
“superação do atraso”, tampouco as tentativas de implementar a modernização através de estratégias
econômicas neoliberais resolveram dilemas históricos das sociedades da América do Sul. Ao contrário,
o agravamento das condições de vida de grande parte das populações da região, traduzidas em maior
empobrecimento, índices elevados de informalidade e desemprego, perpetuação (em alguns casos,
maior precarização) de serviços públicos de baixa qualidade, redução dos parques industriais,
intensificação da violência urbana e da criminalidade, foram, entre outros, parte significativa dos
resultados alcançados pelos governos que adotaram postulações neoliberais em nome da estabilidade
monetária.
Por sua vez, os governos que se seguiram a onda neoliberalizante dominante nos anos noventa
não empreenderam, salvo as situações mais pontuais de Venezuela, Bolívia e Equador, rupturas mais
profundas com a ordem dominante, especialmente no que diz respeito à manutenção de determinadas
diretrizes de política econômica adotadas por governos de espectro mais conservador como os de
Carlos Menem, Fernando Henrique Cardoso e Alberto Lacalle. Correlações de força favoráveis à
mudança, mas não a rupturas estruturais de maior radicalidade, fizeram com que governos de centro-
esquerda e herdeiros dos (in)sucessos neoliberais, como os de Lula, Nestor e Cristina Kirshber,
Vasquez, Aylwyn e demais representantes da Concertación chilena, apesar de suas bases partidárias se
situarem à esquerda, optassem por assegurar a governabilidade, combinando a persistência de
princípios conservadores para a política econômica, garantidores de taxas de crescimento moderado,
1 Como exemplo de construção de política educacional relativamente bem sucedida, mesmo que orientada
predominantemente por um viés conservador, temos o caso da constituição do sistema de pós-graduação brasileiro a partir
do final dos anos sessenta.
inevitabilidade da adoção de modelos “únicos”, em virtude da globalização, termina por ser falaciosa.
Não é possível desconsiderar na análise dos sistemas de ensino bem como na elaboração de propostas
para os mesmos, as especificidades de cada sociedade, suas características estruturais singulares, a
diversidade de interesses das classes e segmentos sociais, enfim, as próprias histórias dessas sociedades.
Minimizar na análise ou proposição de políticas setoriais de Estado, a importância das
trajetórias constituintes de um campo social, como, por exemplo, o educacional (ou o acadêmico), em
uma dada realidade histórica particular, é submeter-se ao que, já nos anos setenta foi classificado como
sendo a mera assimilação de “idéias que estariam fora de seu lugar” (Cardoso, 1980) e que, mais
recentemente, Pierre Bourdieu (2000) denominou simplesmente de “imperialismo cultural ou analítico”,
o qual impõe para todos os lugares do mundo e todas as regiões, modelos ou paradigmas de políticas
públicas.
Se a crítica à adoção de modelos, que se pretendem universais, é justa e politicamente
necessária, todavia, incidem, igualmente, no mesmo tipo de equívoco conceitual, aquelas análises que,
buscando se contrapor à pura e simples submissão a modelos institucionais “mundializados”,
terminam, ainda que dotadas de sentido ideológico aparentemente inverso, por se submeter a uma
similar lógica de percepção da realidade, visto também desconsiderarem as particulares históricas das
sociedades e as diferenças de cada momento conjuntural, universalizando “a subserviência ao
imperialismo” como móvel determinante de toda proposição política governamental das últimas
décadas2.
Frente aos esquematismos de toda ordem, é preciso salientar a importância de enfoques
analíticos que tenham em conta a relatividade e a descontinuidade da própria produção científica. Este
é um aspecto fundamental, de sobremaneira, pois somente deste modo poderemos apreender as
características particulares do espaço social latino-americano contemporâneo (particularmente no que
diz respeito às sociedades sulamericaas) e, assim, contribuir positivamente para intervenções de ordem
política que objetivem a superação dos entraves ao estabelecimento de uma sociedade em que o fim das
desigualdades sociais se constitua em objetivo majoritário, possibilitando a conformação de uma ordem
econômica, social, cultural e politicamente democrática.
Como tem sido por tantas vezes salientado, as mudanças na ordem econômica internacional
repercutiram diretamente no cenário educacional, tanto nas sociedades capitalistas avançadas como
naquelas outras que se encontram em uma posição periférica e subalterna. No novo contexto mundial,
os sistemas educacionais se encontram diante da necessidade de atender a demandas correlacionadas
diretamente aos interesses capitalistas como também aos interesses mais imediatos dos trabalhadores.
Da parte do empresariado, é preciso desenvolver novas formas organizacionais e tecnológicas
baseadas em informações mais detalhadas e precisas, disponibilizadas em tempo real, bem como formar
uma força de trabalho polivalente, devidamente qualificada e disciplinada, habituada à avaliação mais
constante e capaz de se adequar, em tempo real, às exigências diferenciadas do mercado.
A concretização desses projetos e objetivos demanda o domínio pelos agentes sociais (sejam
gestores, sejam trabalhadores) de novas competências e habilidades, as quais possam agregar maior
valor aos bens e serviços comercializados. E é pela ampliação da socialização escolar, inclusive, por sua
extensão a níveis pós-secundários e superiores, que esse domínio vem a ser possível.
Da parte dos trabalhadores, espera-se que os sistemas de ensino possam instrumentalizá-los,
permitindo que obtenham as desejadas inserção e permanência no mercado de trabalho, considerando
as oscilações que sobre este incidem, seja conjunturalmente em função do cenário de incertezas que
hoje se ressente a economia capitalista mundial dada a crise iniciada em 2008. Se os anos finais do
século XX foram de “desemprego estrutural”, a crise mundial agravou a eliminação de postos de
trabalho, inclusive para indivíduos dotados de maior grau de escolarização.
Portanto, é sob este cenário que devemos compreender as mudanças em curso nos sistemas de
educação superior e as possíveis relações com o desenvolvimento de áreas periféricas , sem se esquecer
que no caso das sociedades sul-americanas esses sistemas além ds questões postas pela conjuntura
internacional contemporânea, se defrontam com duas grandes problemáticas herdadas do século XX. A
primeira, a definição precisa do papel das instituições de ensino (independente de sua modalidade
administrativa e/ou acadêmica) no processo de desenvolvimento nacional e a segunda, a contínua e
crescente demanda por acesso a cursos superiores, intensificada conforme se processaram a
urbanização e a industrialização, com as conseqüentes alterações na estrutura de classes dessas
sociedades.
Nas últimas três décadas, agências internacionais como a Unesco, o Banco Mundial, a
Organização Mundial do Comércio, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), mesmo apresentando, em certos aspectos, perspectivas diametralmente opostas, formularam,
nos anos oitenta e noventa, projetos de adequação e/ou reforma das instituições de ensino superior, em
função das transformações econômicas, políticas e culturais do final do século XX, conformando, dessa
forma, as discussões e decisões internacionais sobre educação superior. Para alguns analistas (KERR,
1990 e livro publicado na UnB), as reflexões e propostas de reforma institucional, delineariam um
modelo “cosmopolita” de educação superior, implicitamente presente em iniciativas
intergovernamentais de cooperação – como, por exemplo, os programas Erasmus (European Action
Scheme for the Mobility of University Students) e UMAP (Univesity Moblity in Asia and Pacific) e
definição de padrões institucionais comuns, como o Processo de Bolonha3. Porém, menos do que um
“modelo”, podemos dizer que há uma agenda relativa à educação superior composta por temas como:
- o aumento da “população universitária”, objetivando atender favoravelmente às demandas por
quadros técnicos qualificados, o que, no caso brasileiro e em grande parte dos países sulamericanos, é
um ponto de pauta absolutamente relevante, dada o proporcionalmente reduzido número de
ingressantes em cursos superiores;
- a democratização do acesso ao ensino superior para que sejam superadas as barreiras impostas pelas
desigualdades de classe bem com os efeitos excludentes sobre segmentos sociais que, historicamente,
têm sido objeto de discriminação, seja esta de ordem étnica ou não, mesmo em países onde o acesso ao
ensino superior é formalmente irrestrito;
- a manutenção ou, principalmente, a obtenção por parte dos países denominados “em
desenvolvimento ou emergentes” de padrões elevados de qualidade de ensino e pesquisa - estratégicos
para o maior domínio e produção de tecnologia - mesmo quando concomitante a processos de
massificação da educação superior e/ou pós-secundária;
- as formas de financiamento das instituições de educação superior, o que envolve assuntos bastante
polêmicos como limites orçamentários governamentais e propostas de vinculação de investimentos
públicos ao cumprimento de metas institucionais;
- a autonomia das instituições de educação superior quanto a ensino e pesquisa, temática que também
inclui o debate acerca de critérios internos e externos presentes nos processos de tomada de decisão e
as formas de controle social sobre essas instituições;
- as relações entre o setor público e o setor privado nos sistemas de educação superior e a consequente
definição da situação e papel das instituições privadas nesses sistemas, bem como as formas de sua
regulação pelo Estado;
- a contribuição dos sistemas de educação superior para a obtenção de condições de melhor
competitividade, traduzida em ganhos circunstanciais e inserção mais bem sucedida da produção
econômica no mercado internacional, em função de maiores possibilidades de agregação de valor às
mercadorias geradas por uma força de trabalho mais capacitada e devidamente qualificada;
- a internacionalização de modelos de cursos e instituições de ensino superior, tendo por conseqüência
a intensificação do intercâmbio institucional (não apenas entre docentes e pós-graduados, mas também
entre graduandos);
- a padronização de currículos (notadamente em áreas como engenharia, medicina, odontologia e
economia) e a instituição de mecanismos internacionais de acreditação de diplomas, objetivando o
3 Iniciado em 1999 e envolvendo mais de quarenta países signatários de toda a Europa, concretiza as mais expressivas
iniciativas de construção concertada de um projeto internacional de estabelecimento de parâmetros comuns para a reforma
da educação universitária.
reconhecimento universal; tema bastante caro aos países sulamericanos, em especial, aos integrantes do
Mercosul;
- a possibilidade de comercialização internacional da educação superior, conceituada pela OMC
(Organização Mundial de Comércio) como um serviço a ser ofertado mediante transações comerciais
em todo o mundo tal como outros bens e serviços mercantilizados. A posição adotada pela OMC sobre
a comercialização de serviços educacionais originou uma dos mais polêmicos debates sobre políticas
educacionais no cenário mundial.
Se desde os anos oitenta, O Banco Mundial defende repetidamente a contenção de
investimentos por parte do Estado e ampliação da presença de instituições privadas, inclusive mediante
o apoio técnico e financeiro do próprio setor público, a UNESCO, reafirmou reiteradamente, ao longo
das últimas duas décadas, a importância estratégica do comprometimento do Estado com
investimentos diretos na educação superior.
Dessa maneira, independente de suas configurações ideológicas, as propostas de reestruturação
dos sistemas de educação superior são hoje objeto de ações intergovernamentais como que vem a se
constituir como resultante de experiências anteriores de ação interinstitucional e intergovernamental.
Embora de forma ainda preliminar, iniciativas semelhantes ganham corpo no cenário sul-americano,
envolvendo principalmente ações dos governos integrantes do Mercosul.
Entretanto, embora devam ser observadas as tendências mundiais e as tentativas de
implementação de modelos institucionais mais favoráveis à lógica atual da acumulação capitalista, não
podemos, como já sublinhamos, delimitar nossas análises por um reducionismo mecanicista que
termina por estabelecer as orientações de certas agências internacionais – especialmente as mais
diretamente representativas do grande capital – como maior fator determinante das ações políticas
empreendidas pelos governos nacionais dos países periféricos. Isto seria considerá-los, em última
instância, como meros elementos executores de forças externas dominantes, numa perspectiva analítica
que desconsidera as especificidades locais e, conseqüentemente, as formas como as lutas entre as
classes se afiguram efetivamente nos espaços constituintes dessas mesmas sociedades, ou seja, nos
diversos campos sociais, entre os quais se inscreve o educacional. Em outras palavras, é a diversidade
conflituosa dos interesses locais o elemento delineador final das políticas públicas. Assim, permanece
como elemento imprescindível para o estudo da natureza e função contemporâneas dos sistemas de
educação superior, as relações destes últimos com as características estruturais das sociedades em que
estão situados.
Como sabemos, desde a primeira metade do século XX a trajetória do desenvolvimento
capitalista nas sociedades da América Latina, principalmente em países como Brasil e Argentina,
ampliou a demanda por quadros qualificados nas áreas de administração, economia e engenharia,
alterando a tradição do ensino superior, originada no século XIX, de formar especialmente graduados
nas áreas do direito e da medicina, que atuavam como profissionais liberais ou se direcionavam para a
burocracia estatal. Em que pesem a progressiva diversificação da oferta de cursos de graduação e das
modificações na legislação educacional, ilustradas nas reformas do ensino superior realizadas no
subcontinente, o aumento da população universitária ficou aquém das necessidades de implementação
da modernização das sociedades sulamericanas, expressando, dessa forma, os efeitos da lenta e ainda
inconclusa universalização do acesso à educação básica.
Ainda que a partir dos anos setenta a oferta do ensino superior tenha aumentado
expressivamente, graças, não somente, mas, sobretudo, a posturas governamentais favorecedoras da
criação de instituições privadas na maioria dos países da região, a educação superior conviverá ao longo
de mais de quatro décadas com o recorrente problema da escassez de vagas, sempre aquém da demanda
existente, de modo especial no que diz respeito à formação de quadros pós-graduados (mestres e
doutores).
Saliente-se que as políticas educacionais promovidas pelas ditaduras militares e pelos governos
subseqentes à “redemocratização política” permitiram o agravamento da distinção entre as instituições
escolares públicas e privadas, seja no que tange ao ensino fundamental e secundário, seja quanto ao
ensino superior. Intensificou-se o hiato entre as redes públicas de ensino fundamental e médio e a rede
privada, produzindo, em conseqüência, efeitos diretos no acesso às instituições de ensino superior.
Os estudantes pertencentes aos segmentos mais próximos do pólo dominante da sociedade – e
quase sempre portadores de maior capital econômico, cultural e social –se direcionam para os cursos
mais prestigiados das melhores instituições de ensino superior, as quais, são, em geral, públicas. Já os
que se encontram em posições mais subalternas do campo social continuam se encaminhando para os
cursos oferecidos por instituições particulares (geralmente consideradas academicamente inferiores) ou
aos cursos de menor prestígio social das instituições públicas.
A oferta da educação superior tem se concentrado em cursos da área de ciências humanas, em
sua maioria localizados em instituições privadas ou em cursos de curta duração (dois anos), ambas
modalidades de curso oferecidas predominantemente por instituições não-universitárias e menor
reconhecimento acadêmico.
A ampliação da oferta de cursos de cursos superiores, predominantemente nas regiões de maior
urbanização como o sudeste e o sul brasileiros ou a região metropolitana de Buenos Aires, veio a
atender, principalmente, à demanda de segmentos determinados da sociedade, notadamente camadas
das classes médias urbanas. Estas, objetivamente, consideram o acesso ao ensino superior, antes de
tudo, um instrumento individual de mobilidade social. Mesmo os programas de pós-graduação e
pesquisa, originariamente estruturados dentro de uma perspectiva desenvolvimentista, não raro sob
ótica política conservadora, também tendem hoje, objetivamente, a se constituir muito mais em
instrumentos de ascensão social desses mesmos segmentos sociais do que propriamente um meio de
promoção planejada do desenvolvimento nacional.
Apesar da vitória das coalizões de centro-esquerda após a “década neoliberal” em boa parte dos
países da região, as medidas propostas continuam destacando temáticas sublinhadas por seus
antecessores, como: autonomia universitária; modalidades de instituição de ensino superior (com
propostas de adoção de modelos institucionais semelhantes aos “colleges” norteamericanos ou aos
indicados no “Processo de Bolonha”); formas de ingresso nos cursos de graduação; avaliação das
instituições de ensino superior, notadamente as do setor privado; mudanças nas estruturas curriculares
dos cursos de graduação; sendo claramente perceptível, particularmente no caso brasileiro, que o ponto
das maiores atenções governamentais continua sendo o atendimento à demanda crescente por vagas no
ensino superior.
Os sistemas de ensino superior, como os afirmamos e não poderia ser de outro modo, resultam
das características das sociedades em que estão localizados. Sua dinâmica é determinada pelos interesses
econômicos e políticos produzidos mediante as relações entre os diversos segmentos e campos da
sociedade em que estes sistemas se desenvolvem. Não havendo forma de transplantar mecanicamente
modelos externos ou implantá-los “artificialmente” em uma determinada sociedade, sem que existam
interesses de agentes sociais internos que possam ser favorecidos pela adoção desses modelos.
A história das sociedades sul-americanas assinala a persistente demanda popular por medidas que,
possibilitando o atendimento dos interesses mais imediatos da grande maioria da população e fossem
instrumentos políticos para a reestruturação de uma ordem social produtora das mais extremas
desigualdades.
Com a democratização política era esperado que demandas presentes desde as lutas sociais que
antecederam a emergência dos regimes autoritários na região, somadas àquelas provenientes das
mudanças relacionadas à modernização conservadora das sociedades sulamericanas pudessem ser
atendidas.
Contudo, com respeito ao campo educacional na América do Sul, continua se perpetuando a
sua condição subalterna. Para isto contribuiu decisivamente a predominãncia de governos norteados
pelo objetivo de assegurar a estabilidade monetária, mesmo que a custos sociais elevados, entre os quais
a redução relativa dos recursos para o desenvolvimento dos sistemas de ensino, inclusive o superior,
situação que não foi plenamente revertida por governos de centro-esquerda que assumiram o poder na
primeira década deste novo século. E aos efeitos das ações de governos de insraçãoo neoliberal, não
nos esqueçamos , somam-se a perpetuação do conservadorismo acadêmico e à força dos interesses
privatistas, dois fatores importantes na preservação e reprodução das fragilidades do ensino superior
sul-americano, sobretudo quanto às suas possibilidades de intervir positivamente para o atendimento
das demandas por modernização, desenvolvimento econômico e igualdade social existentes na região.
Apesar da sempre reiterada importância das relações entre a educação superior e o
desenvolvimento nacional, as propostas feitas até o momento não demonstram existir um projeto de
desenvolvimento econômico nacional e integração regional de maior vulto, aos quais as instituições de
igualmente, permitam o estreitamento das relações das instituições de educação superior com o setor
empresarial e demais segmentos da sociedade civil, inclusive reavaliando as iniciativas governamentais
até o momento tomadas e as ações necessárias a serem realizadas, avaliando criticamente as tendências
que se configuram para a educação superior em todo o continente e muito particularmente em Brasil e
Argentina.
Referências
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TILAK, Jandhyala B. G. Ensino superior e desenvolvimento. Seminário Internacional Universidade Século XXI, Brasília,
2003.
Introdução
O
objetivo deste trabalho é apresentar algumas reflexões sobre o processo de
internacionalização da educação superior adotado no âmbito do Mercado Comum do Sul.
Ainda que seja reconhecida como um importante aspecto para a promoção do
crescimento e do desenvolvimento econômico, a internacionalização tem sido estabelecida de maneira
desconexa e desigual e, talvez, não como uma função estratégica estabelecida por meio de políticas
públicas. Conhecer as manifestações da internacionalização da educação superior ocorrida nos e entre
os países do Mercosul é importante para se ter acesso a um panorama contemporâneo da importância
concedida pelos governos a esta questão e das relações internacionais que se estabelecem entre este
bloco e o restante do mundo.
A temática que ora se aborda faz parte de uma investigação mais ampla, elaborada e conduzida
pelo Núcleo de Estudos em Políticas Públicas (NEPPs) da Universidade Estadual Paulista, Unesp –
campus de Franca, sendo uma pesquisa ainda em desenvolvimento. Este trabalho apresentará uma
revisão sobre a internacionalização da educação superior, seguida de considerações sobre este processo
no âmbito do Mercosul. Também apresentará alguns dados quantitativos que possibilitam uma reflexão
inicial sobre a condução da internacionalização nos países mercosulinos. Por fim, são apresentadas
algumas reflexões a guisa de considerações finais.
1 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca.
Doutora em Economia Aplicada (USP).
2 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, campus de Franca.
diretrizes para o ensino superior, respaldadas pelas organizações internacionais, mas consolidadas por
meio de política públicas ou orientações nacionais – ou supranacionais, como no caso de blocos
econômicos.
Cabe um comentário sobre a definição de internacionalização da educação superior. Este
trabalho a define enquanto um processo abrangido tanto no nível nacional como no institucional, aos
quais se integra a dimensão internacional, intercultural ou global aos propósitos, funções e ofertas de
educação superior (ensino, pesquisa e extensão), tal como apresentado por Knight (2004). Esta
internacionalização assume diferentes roupagens: mobilidade acadêmica de estudantes de graduação,
pós-graduação e de docentes, bem como de pessoal técnico-administrativo, colaboração ou
desenvolvimento conjunto de pesquisas, delimitação de projetos internacionais de desenvolvimento em
educação superior, internacionalização de currículos ou estruturas curriculares em programas e cursos
gerais ou de disciplinas específicas – e no caso extremo a dupla titulação, a cooperação interinstitucional
e a da prestação de serviços educacionais (estabelecimento de filiais de faculdades/ universidades no
exterior ou redes transnacionais de instituições de ensino superior) (VAN DAMME, 2001).
Entretanto, por ser uma pesquisa ainda em elaboração, este trabalho focou na mobilidade de
estudantes – graduação e pós-graduação. Justifica-se esta escolha pelo fato de que na América Latina,
região que compreende os países do Mercosul, concentram-se esforços na ‘mobilidade’ – de estudantes
e docentes – enquanto aspecto da internacionalização. Este fato indica uma falta de coerência com as
demais estratégias e objetivos elencadas por Van Damme (2001) e que a internacionalização ainda é
considerada ‘periférica’ frente às demais atividades desenvolvidas pelas instituições (GARCÉL-ÁVILA
et al., 2005).
Apresentam-se na Tabela 1 alguns dados sobre o fluxo de saída de estudantes de nível superior
dos países do Mercosul. Os demais países do bloco não são destino prioritário da mobilidade de
estudantes de nível superior, em geral. Somente o Brasil figura como destino de estudantes dos outros
três membros, mas o inverso – brasileiros com destino ao países do Mercosul – não é comum.
Tabela 1. Fluxo de saída de estudantes de nível superior. Países do Mercosul, 2009.
4 Inicialmente cabe também ressalvar que este trabalho apresenta dados para Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Em que
pese a Venezuela também ser parte do bloco, os dados coletados referem-se ao ano de 2009, quando este país ainda não
fazia parte do Mercosul, e por isto não foram considerados.
5 Unesco (2009b) menciona que a mobilidade de estudantes universitários encontra percentual relevante somente em
algumas ilhas caribenhas, tais como as Ilhas Virgens Britânicas (onde um percentual de 33% dos universitários realizam
estudos no exterior), Trinidad e Tobago (percentual de 30%) e Barbados (13%).
que quando avaliaram as três principais regiões do mundo que seriam privilegiadas pelas políticas de
internacionalização nas instituições que representavam, os dirigentes de todas as regiões representadas
na pesquisa mencionaram várias outras regiões, que não a América Latina. Mesmo os dirigentes de
instituições latinas mencionaram que privilegiariam parcerias com a América do Norte e Europa e
somente em 3º lugar aparece a própria região, empatada com a Ásia.
A capacidade de atração de estrangeiros de parte das universidades da América Latina é
considerada a mais baixa entre as diversas macrorregiões do globo (UNESCO, 2009b), o que pode ser
interpretado como falta de maturidade para captação dos estudantes e pesquisadores ou inexistência de
políticas públicas que sejam capazes de estimular a inserção ativa da região no processo de
internacionalização. Apesar de a América Latina ser representada nos diversos rankings internacionais
que classificam as ‘melhores’ universidades do mundo, a região ainda é sub-representada, dado que
somente quatro dos países – dois deles do Mercosul (Argentina e Brasil), além de Chile e México –
possuem IESs com padrão de excelência internacional, classificadas de acordo com o Academic Ranking
of World Universities do Instituto de Ensino Superior da Shangai Jiao Tong University (LIMA; CONTEL,
2011).6
Há indícios de baixa competitividade da América Latina comparativamente aos sistemas de
educação superior dos países mais desenvolvidos: os sistemas educacionais são desconexos e há
dificuldade de acreditação do ensino superior nos próprios países da região (DIAS SOBRINHO,
2005a).
4. Considerações finais
Ainda que as conclusões deste trabalho não sejam definitivas, dado que é uma pesquisa ainda
em andamento, é possível tecer algumas considerações sobre o processo de internacionalização da
educação superior. O Mercosul não se configura, de fato, como destino de estrangeiros – nem mesmo
aqueles provenientes do próprio bloco – apesar de enviar grande número de estudantes para o exterior
– sobretudo para a América do Norte e Europa ocidental. O processo inverso, de acolhimento de
europeus e estadunidenses nas universidades da região, é menos intenso e em escala muito menor. O
fluxo de estudantes e professores para os países mais desenvolvidos é desproporcional, portanto. Neste
contexto, há risco de acontecer uma nova ‘divisão internacional do trabalho universitário’ – divisão do
mundo entre países que encaminham estudantes para o exterior (os chamados ‘passivos’) e outros que
recebem (países ativos) (LIMA; MARANHÃO, 2011). Isto porque se pode esperar uma
6 Lima; Contel (2011, p.175) apresentam os resultados para o ano de 2007, que relaciona as universidades de São Paulo,
Universidade Estadual de Campinas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual Paulista e
Universidade Federal de Minas Gerais no Brasil; Universidad de Buenos Aires na Argentina; Universidad Nacional
Autónoma de México, no México; e Pontifícia Universidad Católica e Universidad de Chile, no Chile. Estas universidades
também fazem parte do ranking apresentado no ano de 2012, ao qual se soma a Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (dados disponíveis em: <http://www.shanghairanking.com/>; acesso em: 28 jan. 2013).
Referências
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Latin America: the international dimension. Washington, DC: The International Bank for Reconstruction and
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Introdução
O
mundo tem apresentado diversas transformações nos âmbitos socioeconômico, cultural e
tecnológico, que atingiram as diferentes dimensões da sociedade contemporânea. Tais
mudanças estão associadas em escala mundial ao processo de globalização, que se
apresenta como um conceito abrangente, diverso e que induz a diferenciadas perspectivas de análises.
Entre as atuais tendências que se apresentam como centrais nas discussões e debates no mundo
globalizado se evidencia a internacionalização, concebida de forma ampliada, para além da cooperação
técnica, mas como a inserção de uma dimensão internacional ou intercultural em todos os aspectos,
especialmente os de educação e pesquisa. Surgem assim, novas necessidades formativas para o ensino
superior, que hoje enfrenta o desafio de preparar para um mundo sem fronteiras.
Para a consolidação do processo de globalização, faz-se necessária a aplicação e a produção de
conhecimentos e informações cuja base científica tem importância crescente. Neste cenário, novas
diretrizes estão postas ao ensino superior, elaboradas por políticas nacionais e supranacionais.
As universidades brasileiras são chamadas a se posicionar e contribuir para a efetiva
implementação de políticas públicas e de desenvolvimento. A inserção das mesmas no âmbito
internacional, mais que uma rotina institucional, deve ser encarada como um dever para quem pensa
enfrentar e vencer os desafios colocados pelo mundo e pela sociedade.
Com a globalização, não é mais admissível uma postura de isolamento. O intercâmbio cultural,
científico e tecnológico se faz necessário e imprescindível a todos: países, pessoas e, especialmente
universidades, as quais expressam papel preponderante como propulsoras do conhecimento universal.
Deste modo, cabe à Universidade assumir sua relevante função utilizando-se da cooperação
acadêmica e se dispondo a operar de forma mais eficiente como promotora do desenvolvimento
científico e tecnológico de sua região e consequentemente, seu país.
Convém ressaltar o lugar de destaque em estudos e aprimoramento que a cooperação
internacional entre universidades tem alcançado, se tornando assim, parte integrante da política dos
países. Neste sentido, acaba por se traduzir como a expressão de um trabalho conjunto entre nações,
atuando em direção dos interesses e benefícios de seus membros. O Estado atento aos benefícios da
geração de conhecimento surge como um dos impulsores da cooperação em nível acadêmico
internacional.
A educação superior passa a ser reconhecida assim, como setor estratégico para o
desenvolvimento, o qual compreende um conjunto de atores sociais que se relacionam através regras
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 976
com o processo de integração do MERCOSUL, estimulando a mobilidade, o intercâmbio e a formação de uma identidade e
cidadania regional, com o objetivo de alcançar uma educação de qualidade para todos, com atenção especial aos setores
mais vulneráveis, em um processo de desenvolvimento com justiça social e respeito à diversidade cultural dos povos da
região. Fonte: http://www.mercosur.int/edu/
Nos tempos antigos, tinha-se a idéia de que o mundo era plano e isto, conseqüentemente,
remetia à sociedade uma idéia de que o mundo era por assim dizer infinito, o que no entendimento das
pessoas, impossibilitava sua conquista e compreensão.
Contudo, a partir da aceitação de que o mundo não era mais plano e sim esférico,
sua conquista passa ser considerada como algo possível, transformando-se em um objeto a ser
conhecido e alcançado.
Surge assim a globalização, exprimindo a idéia de que o mundo é um globo ou esfera, cujo
alcance torna-se possível a todos.
Enquanto fenômeno econômico a globalização é compreendida como fruto das mudanças
tecnológicas e extensão dos mercados, possuindo seus alicerces no pós-guerra e tomando fôlego a
partir do início dos anos 1970 até os dias atuais.
Manifesta-se como expressão de uma nova ordem no padrão de relacionamento entre as
nações, seus mercados, capitais e serviços financeiros, ganhando força nas últimas décadas e se
caracterizando como um processo em plena marcha e expansão.
O Brasil adentra o século XXI conduzido pelo processo de globalização e testemunhando a
emergência e desenvolvimento de um mercado voltado para o ensino superior que atravessa fronteiras.
A globalização por sua vez, juntamente com advento de transição para uma sociedade do
conhecimento, passa a criar novas demandas e exigências às universidades.
Neste sentido, faz-se necessária uma melhor compreensão sobre a internacionalização da
educação superior. Diferentemente do que muitos acreditam, seu sentido é bastante recente. Antes de
1990, o termo usado coletivamente era “educação internacional”. Referia-se a um termo abrangente,
que buscava englobar toda uma série de atividades internacionais, pouco relacionadas entre si no campo
da educação superior: o estudo no exterior, orientação de estudantes estrangeiros, intercâmbio de
estudantes e funcionários entre universidades, ou ainda, o ensino voltado para o desenvolvimento e
estudos de áreas específicas.
Foi somente nas duas últimas décadas que se tornou possível observar uma transição gradual do
uso de “educação internacional” para “internacionalização da educação superior”, e a criação de uma
abordagem mais conceitual para tal termo.
A Internacionalização, neste sentido, é um termo que pode ser definido de várias formas. Para
algumas pessoas, pode ser compreendida como uma série de atividades tais como a mobilidade
acadêmica de estudantes e professores; redes internacionais, associações e projetos; novos programas
acadêmicos e iniciativas de pesquisa.
Para outros, no entanto, pode significar a transferência ou difusão de educação a outros países,
através de novas disposições, como as sucursais de universidades ou franquias, usando uma variedade
de técnicas presenciais ou até mesmo à distância.
É de grande importância ressaltar que o aumento da ênfase na comercialização da educação
superior também tem sido visto como internacionalização. Logo, esta pode ser interpretada e aplicada
de maneiras diversas nos países ao redor do mundo.
De acordo com a autora canadense Jane Knight, a internacionalização pode ser definida como
sendo “[...] o processo no qual se integra uma dimensão internacional, intercultural ou global nos
propósitos, funções e oferta de educação pós-secundária (2008, p.02)”.
Ainda segundo a autora, a dinâmica relação entre a internacionalização do ensino e a
globalização é uma importante área de estudo. Com o objetivo de reconhecer, mas não simplificar o
complexo e bastante controverso tema da globalização, é necessário que parâmetros sejam
estabelecidos a fim de que a referida discussão possa ser moldada.
Para tal, uma definição não ideológica de globalização é adotada por Knight:
[...] o fluxo de tecnologia, economia, conhecimento, pessoas, valores e idéias...
através das fronteiras. A globalização afeta cada país de uma forma distinta,
devido à história individual de cada nação, tradições, cultura e prioridades. A
globalização está posicionada como um fenômeno multifacetado e um
importante fator ambiental que tem vários efeitos sobre a educação (2003, p.0
2). (tradução da autora)
Jane Knight acrescenta que a globalização claramente apresenta novas oportunidades, desafios e
riscos e é apresentada como um processo que tem impactado a internacionalização. Resume seu ponto
de vista colocando que “[...] a internacionalização está mudando o mundo da educação e que a
globalização está mudando o mundo da internacionalização” (2003, p.03). (tradução da autora)
De acordo com a autora, esforços substanciais têm sido feitos durante a última década a fim de
se manter o foco na internacionalização do ensino e de se evitar o uso do termo globalização da
educação. Ressalta que a relação entre estes dois termos é reconhecida, porém ambos não são vistos
como sinônimos e tampouco são utilizados de forma intercambiável (KNIGHT, 2003).
Dentro deste contexto, verificar-se-á que paralelamente ao advento da globalização, a
internacionalização e o processo de integração regional se evidenciam como os elementos mais
representativos do atual sistema internacional.
Logo, a configuração política, econômica e cultural manifesta na nova ordem internacional,
passa a ter sua expressão mais visível na tendência à regionalização e multilateralização das relações
entre os Estados.
Observa-se, portanto, que nas duas últimas décadas, simultâneamente ao processo de
internacionalização da educação houve também a evolução no processo de integração regional,
acarretando significativas transformações no panorama educacional de países centrais e periféricos
assim como efeitos expressivos nas instituições, produções científicas e autonomia universitária.
No âmbito do Mercosul, verifica-se que o avanço no processo de integração em suas áreas
predominantes, a saber: economia e comércio, tem apresentado dificuldades desde o final da década de
1990 devido às crises e disputas entre os Estados-membros. Contudo, apesar das dificuldades sofridas
nas principais áreas de atuação no processo de integração regional do bloco, observaram-se avanços
significativos na área da educação desde a sua criação.
Sendo assim, será analisada a evolução institucional no processo de integração regional do
Mercosul no que se refere à educação superior, assim como as ações promovidas pelo Setor Educativo
do mesmo, o SEM, a fim de que fique evidenciada tal evolução.
4 União Europeia (UE) é a união econômica e política de 28 Estados-membros independentes localizados na Europa.
Opera através de um sistema híbrido de instituições supranacionais independentes e decisões intergovernamentais
realizadas por seus membros. Tem desenvolvido um mercado comum através de um sistema padronizado de leis que se
aplicam a todos os integrantes do Bloco.
direito comunitário e os processos de tomada de decisão pela maioria e órgãos com autonomia, cujos
representantes atuam em nome do Bloco e não de seus Estados-membros.
Já no contexto da América Latina, o primeiro passo visando à organização de um mercado
econômico regional ocorreu na década de 1960, quando foi formada a Associação Latino-Americana de
Livre Comércio (Alalc).
É fundamental que seja ressaltado o fato de que importantes iniciativas adicionais foram
tomadas nos anos 1980 para que houvesse a concretização desse mercado, dentre as quais podem ser
citadas: a sucessão da Alalc pela Associação Latino-Americana de Integração (Aladi); Brasil e Argentina
assinaram, em 1985, a Declaração de Iguaçu e, em 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e
Desenvolvimento.
Os referidos países, recém-saídos de regimes autoritários, buscavam desta maneira, uma maior
integração à economia global.
Neste cenário, é instituído em 26 de março de 1991, o Mercado Comum do Sul – Mercosul,
como zona de livre comércio com o propósito de realizar a integração acelerada das economias
nacionais da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, signatários do Tratado de Assunção.
Conforme é colocado pelo autor Hector Capraro,
Os processos de integração regional e, em particular, a criação de um mercado comum
como o Mercosul implicam, dentro de um contexto de supranacionalidade, a
realização de uma série de ações tendentes a lograr a livre circulação de bens, serviços
e fatores produtivos entre os países membros; estabelecimento de tarifas aduaneiras de
uma política comercial comum; a coordenação de políticas macroeconômicas e,
finalmente, a harmonização dos regimes jurídicos (CAPRARO, 1991; p.6).
Apesar do Tratado de Assunção, assinado no dia 26 de março de 1991, que criava o Mercado
Comum do Sul, apresentar conteúdo estritamente econômico-comercial, os membros do bloco
buscaram expandir o debate para outras áreas.
No início do século 21 teve início uma nova etapa da integração regional, denominada
Relançamento do Mercosul, visando reforçar a união aduaneira e conferir prioridade aos temas do acesso ao
mercado; agilização dos trâmites em fronteira; incentivos aos investimentos, à produção e à exportação;
fortalecimento institucional do Mercosul; tarifa externa comum; solução de controvérsias e educação
entre outros. Conforme o Ministério das Relações Exteriores do Brasil,
[...] a integração comercial propiciada pelo Mercosul também favoreceu a implantação
de realizações nos mais diferentes setores, como educação, justiça, cultura,
transportes, energia, meio ambiente e agricultura. Neste sentido, vários acordos foram
firmados, incluindo desde o reconhecimento de títulos universitários e a revalidação
de diplomas até, entre outros, o estabelecimento de protocolos de assistência mútua
em assunto penais e a criação de um “selo cultural” para promover a cooperação, o
intercâmbio e a maior facilidade no trânsito aduaneiro de bens culturais5
(MERCOSUL, 2000).
6Estes Planos foram denominados como Planos Trienais de Educação até 2001, quando entrou em vigor o Plano
Estratégico de Educação, caindo em desuso a denominação inicial.
Desta forma, é oportuno salientar que nos últimos anos, tem-se verificado obstáculos
significativos concernentes à política e economia no âmbito do Mercosul. Contudo, a Educação tem
assumido lugar de destaque dentre os elementos de integração que se podem considerar no Bloco, em
especial o Ensino Superior.
A presidência do SEM é exercida, de forma rotativa e pelo prazo de seis meses, pelos ministros
da Educação dos países membros do Mercosul. O Conselho de ministros de Educação é a instância
máxima do SEM, responsável pela definição das políticas e planos estratégicos do setor.
O organograma do Setor Educacional do Mercosul está ordenado da seguinte maneira:
Reunião de Ministros da
Educação
Fonte: http://viderefutura.riobrancofac.edu.br/site/Artigos/
Desde que o SEM foi instituído, a informação e a comunicação têm sido consideradas seus
elementos-chave no que se refere ao processo de integração das políticas educacionais.
Desta forma, ficou clara a necessidade da criação de canais de comunicação que possibilitassem
o intercâmbio sistemático de informações, imprescindível para a continuidade das políticas de
integração no âmbito da educação. Teve origem assim, o Sistema de Informação e Comunicação (SIC),
organizado a partir das infraestruturas e redes já existentes na Região, por exemplo, os bancos de dados
de universidades e centros de pesquisa em educação.
Dentre as funções do SIC podem ser citadas: difusão das ações do SEM junto aos sistemas
educacionais nacionais e às instâncias responsáveis pela gestão escolar; produção e disseminação das
informações atualizadas; e organização de base terminológica comum a ser adotada pelo SEM
(MERCOSUL, 2000).
Desde que foram analisadas as atas das primeiras Reuniões de Ministros da Educação, já havia
ficado evidenciada a relevância da educação para o desenvolvimento de um país e para o sucesso de um
processo de integração regional.
Neste sentido, será realizada a seguir uma análise de Cooperação Acadêmica Internacional no
âmbito do Mercosul e as principais cooperações entre os países do bloco.
7A Unesco entende como estudante internacional aquele matriculado em um programa de educação de um país sem ter a
condição de residente permanente.
De acordo com dados da Unesco (2009), o crescimento verificado se dá numa proporção onde,
para cada 100 estudantes de nível superior no ano de 2000, havia 150 em 2007, sendo que, deste
contingente, 2,8 milhões optaram por estudar no exterior, representando um aumento de 53% desde
1999. Estimativas relatam que esta cifra chegue a oito milhões em 2050.
No contexto do Mercosul, a cooperação acadêmica entre os países membros desempenha um
papel crucial favorecendo tanto a troca de conhecimentos já existentes, quanto o desenvolvimento
conjunto de novas técnicas nas mais diversas áreas de interesse do Bloco. Contribui diretamente para a
promoção do desenvolvimento científico e tecnológico de modo coordenado assim como para o
aumento e diversificação da oferta de bens e serviços com padrões comuns de qualidade, conforme as
normas internacionais estabelecidas.
De acordo com Neves e Morosini (1995), a cooperação interuniversitária na referida região se
dá basicamente em três planos distintos, sendo eles: a cooperação esporádica entre instituições e
grupos, acordos interinstitucionais bilaterais e acordos interinstitucionais multilaterais ou redes.
No que se refere aos sistemas de educação superior nos países que compõem o Mercosul,
apesar das inúmeras diferenças existentes, eles têm priorizado seu foco ao desenvolvimento de recursos
humanos e à produção de conhecimento.
Não obstante o processo de massificação da educação superior, os países membros do
Mercosul apresentam características distintas, dentre as quais destaca-se a relativa taxa bruta de
educação superior.
Tabela 3 - taxa de escolarização de nível superior nos países do mercosul - 2007
País Percentual
Chile 27,2%
Argentina 26,4%
Uruguai 19,9%
Paraguai 14,2%
Brasil 13,2%
Venezuela 8,4%
Fonte: Indicadores Educacionais dos países membros do Mercosul e associados.
8 Fonte: http://www.mercosur.int/innovaportal/v/4393/1/secretaria/2012
Seu credenciamento se dava através da avaliação das universidades e seus respectivos programas
por parte das Agências Nacionais Credenciadoras. Tal avaliação abrangia o corpo docente, bibliotecas,
infraestrutura de serviços e laboratórios, buscando garantir que todos os cursos aprovados no programa
estariam em semelhante patamar de qualidade (SOARES, 2009).
Em virtude de seu caráter experimental o MEXA foi sucedido pelo Sistema ARCU-SUL,
aprovado em novembro de 2006 como um sistema de acreditação permanente (Mercosul, 2006).
O Sistema ARCU-SUL é o Sistema de Acreditação Regional de Cursos Superiores dos Estados
do Mercosul e Estados Associados: “ é resultado de um Acordo entre os Ministros de Educação de
Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Chile, homologado pelo Conselho do Mercado Comum
do Mercosul através da Decisão CMC nº 17/08 (SISTEMA ARCU-SUL)”9.
Tem como ponto de partida critérios e parâmetros de qualidade comuns para cada curso,
acordados pelos ministros dos países-membros do Mercosul. É gerenciado pela Rede de Agências
Nacionais de Acreditação, no âmbito do Setor Educacional do Mercosul e procura respeitar as
legislações nacionais assim como a autonomia de suas instituições universitárias.
A adesão por parte das instituições de educação superior é voluntária desde que o Curso seja
reconhecido no País de origem e atenda a alguns critérios. E ainda, o processo de Acreditação é
contínuo, com convocatórias periódicas, participando do mesmo as seguintes titulações: Agronomia,
Arquitetura, Enfermagem, Engenharia, Medicina e Odontologia (Mercosul, 2011).
Considerando que a mobilidade regional é mais um dos eixos estratégicos do Setor de Educação
do Mercosul (SEM) e está diretamente ligada à acreditação regional dos cursos de ensino superior, ou
seja, ao reconhecimento regional dos títulos, foi criado também o Programa de Mobilidade Acadêmica
Regional Mercosul - MARCA.
O Programa, considerado como sendo pioneiro na área da mobilidade estudantil, apresenta
como objetivo principal a promoção do intercâmbio de alunos, docentes, pesquisadores e gestores de
Instituições de Ensino Superior acreditados pelo Mercosul. Também tem como finalidade o
fortalecimento das carreiras acadêmicas e acreditadas, o fomento da cooperação institucional e o
cumprimento dos objetivos centrais de integração regional. É importante salientar que o programa tem
avançado em especial na mobilidade do corpo discente, uma vez que consiste exclusivamente no
reconhecimento acadêmico dos títulos.
Outro Projeto de relevância é o Universitários Mercosul. É um projeto do Setor Educacional do
Mercosul (SEM), que surge a partir de um convênio de financiamento entre o Mercosul e a União
Européia, assinado em 16 de abril de 2008. A gestão do projeto foi delegada ao Ministério de Educação
e Cultura da República Oriental do Uruguai. Com término previsto para 2014 pelos Ministérios da
9 Fonte: http://arcusul.mec.gov.br/index.php/pt-br/descricao/122-sistema-arcu-sul.
Educação dos países membros, apresenta como objetivo principal a contribuição para a consolidação e
expansão do Programa de Mobilidade Estudantil de Ensino Superior do Mercosul.
E ainda, vale ressaltar que no dia 11 de abril de 2013 foi firmado um convênio entre o Mercado
Comum do Sul e a União Européia, do qual o Brasil é signatário, lançando o programa de trabalho
destinado a apoiar a criação de Redes de Instituições de Formação Docente, com objetivo de permitir o
desenvolvimento de pesquisas conjuntas para encontrar soluções comuns para os problemas de
formação de professores (MERCOSUL, 2011).
Ocorreu também, a implantação de outros vários projetos, destacando-se em especial, a
formalização do Fundo de Financiamento do Setor Educacional do Mercosul (FEM), o qual além de
ser o primeiro fundo setorial de financiamento do Mercosul, também opera como instrumento para a
continuidade das ações do Setor, até então financiadas por iniciativas pontuais dos Ministérios de
Educação dos países participantes e organismos internacionais.
No que diz respeito à relação do Setor Educacional do Mercosul com outros blocos e
organismos internacionais, como OEI, Unasul, União Européia, UNESCO e OEA, têm sido
observados avanços significativos.
Sob uma perspectiva avaliativa do Plano SEM, observou-se que até o ano de 2010, apesar das
dificuldades inerentes a qualquer processo de integração, o Setor Educacional do Mercosul conseguiu
dar continuidade às suas atividades avançando nas direções estratégicas estabelecidas.
Ao expor sobre as cooperações acadêmicas no âmbito do Mercosul, convém ressaltar o
importante significado que tem o bom gerenciamento das mesmas. Uma vez bem geridas, a
cooperações acadêmicas internacionais acabam por gerar impactos bastante positivos e amplos
benefícios à comunidade acadêmica.
Pode-se dizer que, no âmbito do Mercado Comum do Sul, existe de fato uma diversidade de
programas e acordos desenvolvidos direcionados à cooperação e à internacionalização da educação
superior por meio de associações, redes universitárias, instituições de educação superior e organismos
intergovernamentais. Programas como o MEXA, MARCA e Sistema ARCU-SUL entre outros
evidenciam o fomento à cooperação acadêmica internacional no Mercosul (MERCOSUL, 2011).
Contudo, há um fator de significativa importância a ser considerado ao se analisar as ações do
bloco: o conceito de educação superior vem sendo utilizado em perspectiva ampliada, sem que sejam
diferenciadas as distintas modalidades institucionais: as universidades com foco no ensino
profissionalizante e aquelas que atuam na dimensão do ensino, pesquisa e extensão.
Considera-se que, se não for reconhecida a especificidade da instituição
universitária no âmbito da pesquisa, corre-se o risco de dissociar a formação
profissional da pesquisa científica e tecnológica no âmbito regional
(KRAWCZYK e SANDOVAL, p.655).
pesquisa em reduzido número de universidades públicas e empresas transnacionais. Tais fatores afetam
diretamente a expansão do conhecimento científico e tecnológico necessários para a constituição de
blocos regionais capazes de enfrentar os desafios impostos pela globalização, comprometendo assim o
êxito das cooperações acadêmicas internacionais.
Em síntese, pode-se observar que os países da região do Mercosul têm buscado, aos poucos,
modificar esta dinâmica a fim de potencializar e obter maior sucesso nas estratégias e práticas de
integração utilizadas. A construção de um espaço regional de educação superior, que tem se
transformado cada vez mais em objeto de políticas públicas e estratégias de atuação de instituições
internacionais e regionais, fez com que as instituições de ensino superior vissem neste processo a
oportunidade de assumir a liderança na promoção da cooperação internacional.
Sendo assim, pode-se afirmar que a Cooperação Acadêmica Internacional tem se tornado cada
vez mais campo primordial e determinante de atuação das Instituições de Ensino Superior, propiciando
o fortalecimento e desenvolvimento dos sistemas universitários.
Considerações finais
A análise aqui realizada mostra entre outros aspectos que a dialética globalização e
internacionalização, regionalização e cooperação acadêmica internacional, presentes no âmago do
referido artigo, se configuram como elementos distintos, contudo, complementares demonstrando
servirem de engrenagem ao processo de globalização.
As mudanças observadas no cenário mundial decorrentes deste advento e das novas demandas
no campo da produção fazem emergir a relevância e a centralidade da educação e do conhecimento
como vetores de desenvolvimento e competitividade entre os países, induzindo a diferentes formas de
se pensar e elaborar políticas públicas.
De igual modo, fica clara a imperiosa necessidade de se desenvolver a integração na dimensão
educacional e cultural na mesma intensidade que é desenvolvida na dimensão econômica e comercial a
fim de enfrentar os avanços e desafios impostos pela globalização no século XXI.
Neste aspecto, a conjuntura global apresenta um desafio particular à educação. Ao passo que
esta anteriormente concentrava-se prioritariamente nas necessidades e no desenvolvimento do
indivíduo, o mundo globalizado faz com que a educação passe a ampliar seus limites para além da
comunidade, região e nação.
Surge assim a internacionalização conquistando significativo espaço no campo da educação
superior como pressuposto de cooperação em seus diferentes níveis e formas: científica, tecnológica e
acadêmica.
Ao analisar o fenômeno de internacionalização da educação superior, verifica-se que a idéia de
cooperação, compreendida como integração entre as instituições, não se ajusta por completo às
definições de globalização, uma vez que esta frequentemente acaba por evidenciar que nem todas as
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 990
regiões e países se inserem neste processo nas mesmas condições de igualdade, propiciando uma
discrepância entre seus respectivos pólos de desenvolvimento.
Na América Latina, em especial no Brasil, o processo de internacionalização pela perspectiva da
mobilidade acadêmica ainda é bastante incipiente e não ocorre de forma homogênea. A capacidade de
atração de estudantes estrangeiros pelos países deste continente ainda é bastante reduzida, o que
demonstra um desequilíbrio entre as regiões desenvolvidas e aquelas em processo de desenvolvimento,
ao considerar que a grande quantidade de alunos estrangeiros no mundo concentra-se nas regiões mais
desenvolvidas, com universidades mais consolidadas e detentoras de tecnologias de ponta.
Como se constatou no artigo, o Brasil vem adotando uma série de estratégias de captação e
envio de estudantes, por meio de políticas e programas financiados por recursos privados e públicos, o
que certamente, acarretará mudanças positivas no quadro da mobilidade acadêmica no país, através da
integração regional.
Neste sentido, conclui-se que a organização em blocos econômicos é fundamental ao
desenvolvimento dos países, uma vez que a integração econômica, social e cultural através da formação
de blocos regionais, no caso específico o Mercosul, é a forma mais eficaz de se fazer frente à pressão
competitiva imposta pela globalização nos dias atuais.
Vale destacar que o Mercosul vem se consolidando como um dos mais importantes projetos de
política externa da região e representa atualmente, muito mais que um acordo comercial e neste
contexto, verifica-se que a liderança brasileira é inquestionável.
Frente à heterogeneidade das instituições educativas é importante salientar que com o
surgimento dos blocos econômicos, observa-se que a internacionalização da função ensino apesar de
estimulada nos países do Mercosul, no que remete ao Brasil, ainda se apresenta em forma incipiente,
denominada como modelo periférico, por se caracterizar pela presença de atividades internacionais em
apenas alguns setores da IES e não como modelo central de internacionalização da educação superior,
onde toda a IES está imbuída desta característica.
Percebe-se desta maneira, que a eliminação das fronteiras nacionais, no âmbito do Mercosul,
não é elemento crucial no processo de integração, mas sim, as ações de integração universitária que têm
como marca a construção de redes de conhecimento que superem as barreiras burocráticas impostas
pelos estados nacionais (NEVES e MOROSINI, 1995).
As inúmeras iniciativas das universidades, bem como as ações governamentais e internacionais
desenvolvidas no âmbito do Mercosul, indicam o reconhecimento da cooperação acadêmica como
fundamental no processo de formação do bloco para que ocorra de fato uma integração consolidada.
Para concluir, fica claro o fato de que neste cenário a universidade se manifesta como parte
ativa do processo de integração e este, apoiado na evolução da cooperação acadêmica internacional,
tem logrado retorno demasiadamente positivo das instituições de ensino superior integrantes da região.
As considerações que foram feitas no decorrer deste artigo apontam para uma reflexão mais
ampla acerca da missão da universidade na sociedade contemporânea e como a educação superior nos
países do Mercosul tem respondido aos desafios da internacionalização.
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Resumo
C
uida o presente trabalho sobre reconhecimento de títulos acadêmicos de pós-graduação pelo
Brasil, obtidos em instituições argentinas e paraguaias investigando os entraves político-
jurídicos e administrativos existentes, No Brasil precisa-se em dez anos elevar para 40% e
35% o número de mestres e doutores, respectivamente; titular 60 mil mestres e 25 mil doutores por ano
visando consolidar a pesquisa acadêmica. A questão é: “como encontrar parâmetros de qualidade
capazes de assegurar o reconhecimento destes diplomas fazendo com que eles passem a ter validade no
Brasil fara fins de concurso de docente, progressão funcional, aumentos remuneratórios de servidores
docentes e técnico-administrativos, gratificação por titulação, concessão de benefícios legais, igualdade
de tratamento com os profissionais que obtiveram titulação equivalente no território nacional”? Estes
títulos até o presente momento, conforme normas do MERCOSUL são válidos para atividades de
pesquisa e docência temporárias,
Resumo
C
onsiderando o Plano de Ação do Setor Educacional do Mercosul (2011-2015) o presente
estudo pretende tecer reflexões sobre a temática das políticas públicas educacionais voltadas
à educação sexual no Brasil procurando discutir em que medida tais políticas se articulam ao
Plano de Ação, com especial destaque à formação de professores. A partir da LDBEN 9394/96
seguem-se documentos federais e diversas iniciativas estaduais e municipais, na forma de projetos. A
análise de documentos e Projetos permitem algumas articulações possíveis ao Mercosul Educacional: a
primeira, é o foco na formação de professores, com ênfase na educação básica. A segunda articulação:
mesmo que haja uma timidez das políticas federais, estaduais e algumas municipais, voltadas quase
exclusivamente para a prevenção de doenças e gravidez de adolescentes elas se engajam ao Plano de
Ação 2011-2015. Porém, uma das ressalvas nas articulações possíveis é o Plano não considerar
explicitamente a educação sexual como eixo.
Resumo
E
l presente trabajo analiza las peculiaridades de las políticas regionales del Mercosur en el área
de la educación superior en el marco del proyecto político del acuerdo de integración y su
vinculación con el nivel nacional de definición de las políticas públicas. En vistas a alcanzar
este objetivo se procede a un estudio de caso: la política de acreditación de la calidad de las titulaciones
de grado en el Mercosur (1998-2012), que contó con una primera fase de carácter experimental entre
los años 2002 y 2006 (Mecanismo Experimental de Acreditación de Carreras de Grado Universitario del
Mercosur, Bolivia y Chile, MEXA) y devino, a mediados del año 2008 en un sistema permanente
(Sistema de Acreditación de Carreras Universitarias para el reconocimiento regional de la calidad
académica de sus respectivas titulaciones en el Mercosur y Estados Asociados, ARCU-SUR). Se
pretende realizar una contribución al campo de estudios de la integración regional.
Resumo
O
presente artigo apresenta quatro breves retratos sociológicos de intercambistas de
diferentes países (Argentina, Uruguai, Bolívia e Colômbia) que vivenciaram a experiência
do intercâmbio no Brasil no primeiro semestre de 2013. Baseado no referencial teórico
desenvolvido por Pierre Bourdieu, os agentes foram entrevistados em sua última semana de estadia no
Brasil (entrevista semiestruturada) com o objetivo de analisar, através de seus relatos, suas trajetórias
sociais, apresentadas em forma de retratos sociológicos (trajetórias individuais analisadas
sociologicamente). Destacam-se as diferenças comportamentais e culturais, bem como certo “olhar” de
estrangeiro, ou seja, da percepção das pequenas diferenças (a forma de convivência, a vida universitária,
a sociabilidade, etc.) entre o Brasil e o país de origem. Pode-se vislumbrar que os estranhamentos
contribuem para a formação de laços de solidariedade entre os intercambistas das diferentes
nacionalidades e frações de classe.
XII
1. Introdução
O
presente trabalho é parte dos levantamentos iniciais de minha pesquisa para a escritura da
tese de doutorado, sob a orientação da Prof.ª Glaucia Villas Bôas no Programa de Pós-
graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Neste sentido, esclareço que o escrito
busca o levantamento de questões e o diálogo com outros pesquisadores num território de produção
acadêmica, sendo despretensioso da apresentação de resultados.
Em termos gerais, o estudo é composto pela revisão bibliográfica da discussão sobre arte e
cultura no Brasil nas décadas de 1950 a 70. Partindo das narrativas sobre trajetória social de Lygia Pape,
busco estabelecer relações e esmiuçar as conexões entre estas e as narrativas existentes sobre os
movimentos, Cinema Novo e Cinema Marginal. Para tanto, pretende-se um recorte de sua trajetória
que privilegie a relação com o cinema, visando compreender sua criação como uma unidade narrativa
inteligível a teoria sociológica.
Neste levantamento, procuro compreender o diálogo de Lygia e suas experimentações com o
cinema como rupturas criativas: digressões que procuram, na crítica dos padrões vigentes, extravasa-los
pela ampliação de suas possibilidades expressivas, criando transversalidades. Processos decorrentes da
apropriação de outros materiais, suportes e linguagens artísticas, como é o caso do filme, da câmera e
do cinema em Pape.
Assim, busco questionar-me sobre a influência do Cinema Novo, especialmente de Glauber
Rocha, na maneira em que Pape pensará as imagens em movimento. O cinema de Pape é convergente
com os traços que marcam o cinema moderno brasileiro: o cinema de autor, os filmes de baixo orçamento
e a experimentação.
Explorou nos seus filmes questões que marcaram o cinema de sua época, como os debates
sobre o nacional-popular, a problemática do realismo, o subdesenvolvimento, a colonização e a
sociedade de consumo. Lygia também colocou questões que extravasavam os debates mais marcantes
da esfera estrita da produção de cinema, marcando sua independência relativa. Contemporânea dos
movimentos Cinema Novo e Cinema Marginal, Lygia criou um conjunto heterogêneo de
experimentações em filme, tendo mesclado diferentes tipos de bitolas, investido em diversas
proposições estéticas e não fidelizado a nenhuma.
1 Licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Comunicação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), atualmente é doutorando do Programa de Pós-graduação em Sociologia e
Antropologia da UFR J e professor de sociologia da Fundação de Amparo a Escola Técnica do Estado Rio de Janeiro
(FAETEC), E-mail:cdouglasmartins@gmail.com.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1001
Lygia nasceu na cidade de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, em 1929 e deixou como
marca de sua obra uma diversidade exemplar. Criou intensamente e durante um longo tempo, do início
da década de 50 até quase meados dos anos 2000, não se especializando em nenhuma linguagem ou
meio de expressão artístico. Produziu uma obra tão diversa quanto complexa: de gravuras, passando
por pinturas, eventos, design, programação visual, filmes, performances e toda uma sorte de objetos. Sua
criação não partia de predeterminações, do contrário, era determinada a experimentar, apropriava-se de
diversos meios e objetos como formas de expressão.
Considero importante um panorama, mesmo que rápido e incompleto, da mulher que tendo
iniciando-se como artista no abstracionismo geométrico, integrou entre 1954 e 1956 o Grupo Frente,
formado por Ivan Serpa, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Mario Pedrosa e outros. Aproximou-se do
concretismo e foi signatária do “Manifesto Neoconcreto”, publicado por Ferreira Gullar em 1959,
mesmo ano em que começa sua relação com o cinema a partir da produção do roteiro do filme
“Brasília”, que jamais foi rodado (MACHADO, 2008, p.94).
Na década de 1950 o país passou por um novo impulso de modernização e industrialização:
impelidos por uma política nacional-desenvolvimentista, em um dos poucos interstícios democráticos
de nossa história, houve grande florescimento cultural e artístico. Com a abertura dos museus de arte
moderna e inauguração das bienais internacionais, concentrou-se uma soma variada de expressões
culturais. Foi o momento em que a sociedade brasileira se imbuiu do novo discurso modernizador ou
que, segundo Cocchiarale (2013, sp.), pela primeira vez na história cultural do país que as classes
2 Surgido na década de 60, esta técnica foi popularizada na década seguinte devido a sua leveza, maleabilidade e facilidades
técnicas como a visão direta do foco no visor, fotometragem automática, incorporação do zoom.
dominantes “assumiam sua responsabilidade cultural, tradicionalmente delegada ao Estado”, ainda que
por um breve momento, antes de serem substituídos pelos burgueses estadunidenses.
Juscelino Kubitschek é eleito anunciando 50 anos em 5. O horizonte político é o
desenvolvimentismo e o lema, o progresso. Brasília é construída. Nas artes e na
arquitetura o moderno é consagrado. Niemeyer, Lúcio Costa, Reidy e outros fundam
um novo cânone arquitetônico, pontuando a vida urbana com símbolos do futuro
planejado. Os Museus de Arte Moderna são fundados por todo o Brasil, e, em 1951,
Francisco Matarazzo Sobrinho institui ainda a Bienal de São Paulo. Em meio a
representações de construção de um novo país, também no âmbito da cultura
inovações formais aparecem no eixo Rio-São Paulo. A música é a Bossa Nova, o
cinema é o Cinema Novo. Nas artes e na poesia, o Concretismo assinala o sentido do
moderno, ditando as normas da ruptura (SANT’ANNA, 2013, p.3).
O debate entre artistas acadêmicos e modernos fora superado, sendo substituído por uma
disputa entre concepções de arte moderna:
Em contraste com o programa estético anterior [modernismo], que adotava uma
concepção figurativa e tinha por objetivo “representar” a “nação brasileira”, os artistas
concretistas dedicaram-se às experimentações com cores, formas, linhas e pontos
(VILLAS BÔAS, 2008, p. 199).
Dentre os intelectuais que se sobressaíram naquele contexto está o crítico de arte Mário
Pedrosa, um dos porta-vozes do Grupo Frente e signatário do “Manifesto Neoconcreto”. O crítico
colaborou para a transformação do campo cultural brasileiro em um período de profissionalização das
atividades intelectuais e artísticas, e da inauguração de estabelecimentos artísticos voltados para a arte
moderna. Como parte deste processo de complexificação do campo artístico, a divisão do trabalho no
sistema de arte também se acentuou; surgem os críticos de arte, marchands, colecionadores, além de
técnicos e intelectuais ligados à preservação do patrimônio histórico e artístico.
O reconhecimento dos artistas modernos nos meios culturais, literários e políticos
cariocas não pôs término ao academicismo nem acabou com as disputas no campo
artístico. Os integrantes do grupo modernista na sua primeira versão programática
logo tiveram que enfrentar outro projeto artístico, também modernista, porém
fundado em princípios construtivistas. Tal disputa aparece em sua dimensão discursiva
na crítica de arte veiculada pela imprensa, especialmente a de Mario Pedrosa, que ao
voltar do exílio nos Estados Unidos, em 1945, não poupou esforços em defender o
que chamava então de busca das “formas privilegiadas” (VILLAS BÔAS, 2008, p.
200).
Segundo Renato Ortiz (2009, p.105), o modernismo brasileiro enfrentou situação distinta ao
modernismo europeu, que detinha um passado clássico que servia tanto como fonte de tradição
artística quanto de referência à crítica. Mas ambos passaram pelo momento em que as inovações
tecnológicas eram imprevisíveis e seus efeitos ainda restritos a um pequeno grupo de pessoas,
transcorrendo em uma conjuntura política de profundas incertezas. Situação que o autor sintetiza
citando Perry Anderson (apud ORTIZ, 2009, p.105): “o modernismo europeu (...) floresceu no espaço
situado entre um passado clássico ainda utilizável, um presente técnico ainda indeterminado e um
futuro político ainda imprevisível”.
No Brasil não existiu este passado clássico, ocorrendo uma correspondência histórica entre o
desenvolvimento de uma cultura de mercado e a autonomização do campo artístico. Para o autor, foi
este fenômeno que permitiu um trânsito entre as vanguardas artísticas, como os concretistas, os
cinemanovistas e a bossa nova, e pontos de interseção entre manifestações culturais consideradas
“populares” e “eruditas” (idem, p. 106).
O concretismo supunha rejeitar modos tradicionais de ver e representar o Brasil,
apontando para uma arte que, cultivando a racionalidade, apostava em relações sociais
mais modernas. Por oposição a sociedade brasileira rural, patriarcal, patrimonialista,
[...] o concretismo assinalava uma arte partidária de um modo de vida industrial,
urbano, impessoal, contratual, meritório, em suma, moderna. Modo de vida desejado e
de que a arte não era senão enunciadora. (SANT’ANNA, 2006, p.35).
Nosso presente técnico era igualmente indeterminado, porém marcado por características
próprias, dentre as principais estão à precariedade da indústria cultural e a incipiência da sociedade de
consumo. Situação que facilitou a expressão de grupos de vanguarda nos meios de comunicação de
massa e o surgimento do “experimentalismo”, tendência de dupla face: “Uma negativa, referente às
dificuldades propriamente técnicas dos profissionais; outra positiva, relativa à busca de soluções novas,
às vezes engenhosas, para se contornar os problemas enfrentados” (ORTIZ, 2009, p. 106).
A proposta do concretismo carioca, também produto deste contexto sócio-histórico favorável
ao “experimentalismo”, está associada à quebra da moldura dos quadros e a supressão da base na
escultura, capaz de descolar o espectador de arte da anterior postura contemplativa e coloca-lo em ação.
Mais que a construção de um repertório formal, a grande contribuição do concretismo carioca se situa
em seu intenso sentido experimental, que Mário Pedrosa (1995, p. 308) definiria como o “exercício
experimental de liberdade”. Máxima que se tornaria um valor e forma de sociabilidade marcante do
movimento, trazendo a discussão um conceito de moderno que privilegia a mudança, a criação, a
contingência e a rejeição da racionalidade do concretismo paulista, retomando a dimensão subjetiva e
humana na arte presente, sua relação com o afeto e a emoção.
O roteiro de “Brasília” apresenta uma visão idealista e otimista da cidade, consonante com as
proposições de Mário Pedrosa. Compõe uma leitura que parte do imaginário utópico que busca a
valorização do trabalho, tendo nos personagens iniciais os trabalhadores, que de seu movimento
organizado, como “formigas”, segundo a metáfora de Pape, em uma obra coletiva e da sua junção
numa linha horizontal, faz surgir às edificações e posteriormente a personagem principal, a cidade em
si.
Os trabalhadores aparecem não em referência aos movimentos operários e organizações
sindicais, mas como o “tipo ideal” de trabalhadores, como formigas, fazendo surgir o sujeito principal
do roteiro, a cidade de Brasília. A ambiguidade do desaparecimento da política no roteiro de “Brasília”,
que realiza e constrói a cidade, cujo objetivo maior era a instauração do núcleo do poder político
brasileiro. Revela uma narrativa ingênua em que a cidade se faz fruto do voluntarismo dos
trabalhadores, que partem de linhas horizontais, que surgem e somem, sem demais conflitos, deixando
como imagem os prédios e monumentos.
O roteiro originaria, se tivesse sido realizado, um filme de artista, e mais que isso, um
filme “construtivo”. Ele se constrói pelo encadeamento de imagens em movimento,
que não contam narrativas nem tampouco são imagens colhidas da realidade. [...] O
filme de Pape rejeitaria as categorias tradicionais do cinema, não seria comédia nem
drama, seria um filme abstrato. E, como um filme abstrato, negaria categorizações:
fugiria das definições de gênero (MACHADO, 2008, p. 95).
Reflexo das expectativas otimistas e ingênuas desta vanguarda com relação ao processo de
modernização pelo qual passava o Brasil. O roteiro de “Brasília” pensou a cidade como fruto do
trabalho humano horizontal e coletivo, numa visão essencialmente igualitária e utópica, de um filme
que nunca teria sido realizado.
Depois de escrever o roteiro para o filme “Brasília”, Lygia envolveu-se com o movimento
Cinema Novo, colaborando com a programação visual de Mandacaru Vermelho (1961) e Vidas Secas
(1963), ambos dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, depois colaborou com Ganga Zumba (1963-64),
dirigido por Carlos Diegues e, finalmente, Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha.
Foram estas as primeiras primeira experiência concreta de Pape com o cinema.
Trabalhei ainda com o Cinema Novo, mas profissionalmente como designer. Créditos,
cartazes, displays para Mandacaru vermelho (o mais trabalhoso): gravei alfabetos em
madeira e imprimi todos os letreiros, letra por letra, em precioso papel japonês para
deixar aflorar a textura da madeira, como um cordel nordestino. Depois vieram Vidas
secas, Ganga Zumba, Deus e o diabo na terra do sol, O padre e a moça, A falecida, O
desafio e outros, e mais alguns curtas (PAPE, 2013, sp.).
O Cinema Novo influenciou decisivamente Lygia, encantada com a densidade e lastro social
que o movimento alcançara, mas esta influência se daria a partir das proposições mais abertas, radicais e
utópicas. A defesa do cinema autor, que Glauber Rocha definiu como “revolucionária” (XAVIER, 2006,
p. 10), não chega a ser uma influência, mas uma convergência, visto que isso já estava presente no
roteiro de “Brasília”, mesmo que distante de se concretizar. A autoria em oposição à “indústria” se
tornou o horizonte prático de realização do cinema de Lygia Pape. A influência do Cinema Novo
também se faz presente na centralidade de questões do imaginário ligadas à identidade nacional e a
crítica à sociedade de consumo.
O horizonte da libertação nacional foi o maior pressuposto do Cinema Novo, bem
como de outros movimentos culturais no Brasil [...] Ao mesmo tempo, como parte de
sua agenda política, o Cinema Novo tentou problematizar sua inserção na esfera da
industrial cultural, apresentando-se no mercado, mas procurando ser sua negação e
seu questionamento, procurando com tal perspectiva sua inserção na tradição cultural
erudita (Leite, 2005, p.96).
Segundo Ortiz (2009, p.106), devido à fragilidade da indústria cultural, o Cinema Novo
desfrutou dessa “abertura precária” para construir sua expressão estética como a prática de um autor
que se opõe à indústria cinematográfica, trazendo uma perspectiva crítica à ideia de uma arte industrial
voltada para o consumo. “Devido à incipiência da indústria cinematográfica, é possível um palavra de
ordem tão utópica e artesanal como ‘uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’” (idem, p. 108).
O cinema novo, devido à própria precariedade da indústria não encontra concorrente podendo
escapar das pressões do Estado. Porém, seria sua inserção na indústria que distanciaria Pape do cinema
novo, conduzindo-a a um processo criativo próprio que posteriormente convergiu com o Cinema
Marginal.
Pessoalmente, escolhi o território do curta-metragem por estar livre das grandes
produções, dos problemas burocráticos e principalmente financeiros. Pura alegria e
prazer da criação. Tudo correndo na intimidade do diretor/editor, um fotógrafo
simpático e um eletricista: estava pronta a equipe. (PAPE, 2013, sp.).
Num segundo período, no cenário brasileiro pós-golpe de 1964, Pape seguiu produzindo seus
próprios filmes. Iniciou com o curta-metragem Letreiros/cinemateca/MAM em 1965, que segundo a
sinopse é uma “Decupagem da palavra cinemateca através de imagens relacionadas a cada uma de suas
sílabas em uma vinheta para a Cinemateca do MAM – RJ” (FILMOGRAFIA, 2012). Dois anos depois
realizou La Nouvelle Creation (1967), filme pelo qual obteve um prêmio internacional.
Neste momento sua obra foi marcada por uma nova postura em relação às questões levantadas
pelo abstracionismo. Criou em favor de propostas que implicaram na realização de ambientes, eventos,
performances, obras de forte caráter coletivo, incorporando questões como a participação ativa do
espectador, produzindo obras como Ovo, Divisor e Roda dos prazeres.
Na década seguinte Pape produziu filmes experimentais e documentários como Artes Plásticas
(1970), O Guarda-chuva vermelho (1971), Eat me (1973), Wampirou (1974), Arenas calientes (1974), Carnaval in
Rio (1974), A mão do povo (1975) e Catiti Catiti (1978).
Nesse novo período manteve a natureza experimental de seus trabalhos, porém sua atuação
tendeu a ser crescentemente “marginal” em relação ao circuito de arte. Em texto para o catálogo
Expoprojeção de 1973, Lygia Pape e Antonio Dias, defenderam o super-8 como uma possibilidade de
trabalho em contraposição ao cinema convencional.
O S8 é realmente uma nova linguagem, principalmente quando também esta livre de
um envolvimento mais comercial com o sistema. É a única fonte de pesquisa, a pedra
de toque da invenção, hoje. (EXPOPROJEÇÃO, 2013, p.56).
Garantido o sentido de desvio à ordem instituída, Pape deu ainda outra dimensão à
marginalidade desse cinema, que sintetizaria sua obra:
Ser marginal, estar à margem de uma sociedade, ainda permanece como um conceito
burguês. Não foi esse cinema marginal de que participei ou participo. Marginal era o
ato revolucionário da invenção, uma nova realidade, o mundo como mudança, o erro
como aventura e descoberta da liberdade: filmes de 10 segundos, 20 segundos... o anti-
filme (PAPE, 2013, sp.).
O interesse de Pape centrou-se nos curtas metragens, pois os considerava mais livres,
burocrática e financeiramente, que os filmes de longa metragem. Tendo iniciado nos filmes de 35mm,
assim como atesta Pape (2013, sp.): “sempre trabalhei em 35 mm”. Não se especializou nesses,
produzindo filmes em diferentes bitolas, apropriando-se dos meios técnicos disponíveis que melhor se
adequassem a sua subversão a lógica industrial do cinema.
Neste contexto, considerado que os filmes superoitistas criavam situações descoladas da vida
cotidiana, permitindo a Pape inventar, com doses de humor, uma “nova realidade” disparatada onde
referências à cultura erudita apareciam mescladas a toda sorte de elementos da indústria cultural, tais
como vampiros em Wampirou (1974), tendo explicitamente como cenário a cidade do Rio de Janeiro.
Realizei três longas em Super 8, todos em 1974, com 40 minutos de duração cada. Em
Wampirou (o vampiro que pirou), além dos "atores" trabalharam como extras artistas
plásticos como Lygia Clark e poetas como Waly Salomão. Carnival in Rio é sobre o
carnaval individual do "eu" sozinho, filmado entre a praça Mauá e o Obelisco, no Rio
de Janeiro. Arenas calientes era o mais interessante, pois meus personagens tinhasm
aventuras no deserto com dunas imensas, onde hoje é o Condomínio Nova Ipanema,
no Rio de Janeiro. A dificuldade em encontrar água no deserto saciava-se com
gasolina nos postos Esso da região (PAPE, 2013, sp.).
Um de seus últimos filmes, Catiti Catiti (1978) é considerado por Ivana Bentes (2011, p.5) um
“filme-postulado”, pois destaca a importância da simbologia Tupinambá e a filosofia antropofágica ao
longo da obra e do pensamento de Lygia Pape. Temática que retornará na década de 1980 na sua
dissertação de mestrado, defendida no curso de Filosofia da UFRJ com o título: Catiti Catiti: na terra dos
Brasis. A “ontologia canibal” destaca-se para pensar uma arte brasileira experimental, que visa fundir o
arcaico com as questões de ponta das vanguardas modernas (BENTES, 2011, p.5).
6. Considerações finais
Lygia Pape aproximou-se do cinema no período entre o final da década de 1950 e continuou
seu diálogo durante as duas décadas subsequentes, pode-se dizer que Pape foi contemporânea do
“período estética e intelectualmente mais denso do cinema brasileiro” (XAVIER, 2006, p. 14).
Mesmo não tendo ela feito cinema, em seu sentido industrial, manteve intenso diálogo com os
movimentos de vanguarda, se mostrando presente nas produções mais significativas do Cinema Novo.
Além de ter colaborado intensamente para as formulações do Cinema Marginal com sua intensa criação
de curtas.
Sendo assim, é possível relacionar sua obra com os debates da sua época, como o debate na
questão nacional-popular e da problemática do realismo. Marcando sua abordagem pela próxima a um
imaginário da revolução social e da crítica radical, suas concepções tinham bases sociais objetivas e
refletiam a “utopia de um destino político ainda imprevisível” (ORTIZ, 2006, p.109).
Referências
BENTES, Ivana. Caos-Construção – O formal e o sensorial no cinema de Lygia Pape. XX Encontro Nacional da Compós
- UFRGS, Porto Alegre, 14 a 17 de junho. Grupo de Trabalho “Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual”,
2011.
Carolina Barnes1
Aída Quintar2
Introducción
L
a revolución de las tecnologías de la información y la comunicación (TICs), que se desarrolla en
el último cuarto del siglo XX, introduce importantes cambios cualitativos en las formas
socioproductivas y de la comunicación. Por una parte sientan las bases materiales para la
“informatización de la producción” y el despliegue del llamado “trabajo inmaterial” (HARDT y NEGRI,
2000) y por otra, favorecen nuevos desarrollos en el campo de la producción audiovisual3. Estos
desarrollos tienen como propósito común explorar nuevos modos de interacción que posibiliten una
democratización de las relaciones sociales, la política, el conocimiento y la comunicación. Es en torno a
las nuevas modalidades de la producción audiovisual comunitaria que desarrollaremos nuestra
investigación. Tomamos como unidad de análisis las prácticas desplegadas por instituciones y
organizaciones territoriales que se plantean la producción de formas de comunicación alternativa,
ponderando una participación de la comunidad más amplia y democrática.
El plan de exposición de este trabajo es el siguiente: en una primera parte se plantean algunas
digresiones en torno a la incidencia y a la apropiación de las nuevas tecnologías de información y
comunicación (TICs) por parte de diversos colectivos sociales para el desarrollo de experiencias
alternativas de comunicación. En una segunda parte, en el marco de la producción audiovisual y de cine
comunitario en América Latina, se exploran algunas experiencias desarrolladas en la Argentina.. Se
analizarán algunas de las organizaciones que llevan adelante diversas modalidades de producción
audiovisual comunitaria en el AMBA4, tomando en cuenta sus similitudes y diferencias en términos de
objetivos y prácticas así como la incidencia que tienen en sus participantes. Finalmente, se incluyen
algunas reflexiones acerca de los alcances y límites de este tipo de experiencias alternativas y de su
incidencia en la democratización de los espacios sociales.
1 Licenciada en Política Social. Instituto del Conurbano. Universidad Nacional de General Sarmiento.
2 Doctora en Ciencias Políticas. Instituto del Conurbano. Universidad Nacional de General Sarmiento
3 La red de Internet que se constituye como un espacio de interacción abierto, acentrado y no jerárquico – el ciberespacio -,
comienza a difundirse no sólo en el campo tecnoproductivo sino también a nivel de las instituciones sociales, políticas y
culturales, dando lugar entre otros procesos a la constitución de una amplia diversidad de comunidades virtuales (Quintar,
A., Calello, T. y Aprea, G. (2007).
4 AMBA, Área Metropolitana de Buenos Aires.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1010
5 Tal el caso del documental etnográfico creado por el ingeniero civil francés Jean Rouch, que logró revelar con su cámara la
riqueza de las diversas culturas autóctonas de África. Entre 1950 y 1980 se dedicó al documental etnográfico del cual es su
fundador. (Alfonso Gumucio agron, 2011)
6 De hecho, las TICs no sólo influyen en la producción sino también en la circulación y exhibición, sobre todo partir de la
permite al cine industrial ofrecer películas de mejor factura, donde la imagen y el sonido destacan por
su sofisticación. En el cine comunitario, la tecnología debe adaptarse a las necesidades de expresión de
las comunidades, porque de otro modo los procesos del audiovisual comunitario no serían sostenibles.”
A partir de estas posibilidades de democratización del audiovisual “fue gestándose un movimiento
continental preocupado por utilizar el medio audiovisual como un instrumento de recuperación
histórica, reforzamiento de la identidad, promoción cultural, denuncia, educación y democratización
(GUMUCIO DAGRON, 2011)7
Así, se comienza a difundir un tipo de producción audiovisual que acompaña las
reivindicaciones y debates al interior de grupos sociales organizados tales como sindicatos y gremios
profesionales, organizaciones indígenas, barriales, de derechos humanos, ecologistas, feministas, y
otros. De este modo, en estos procesos asociativos que se multiplican, se inventan nuevos ámbitos de
definición y de ejercicio de la ciudadanía, basados en redes de solidaridad y ayuda mutua que funcionan
en forma paralela o complementaria con las que se despliegan a nivel del Estado o del mercado
(CHANIAL y LAVILLE, 2009).
Gracias a la accesibilidad de los medios digitales, en numerosas experiencias, la propia
comunidad interviene en el proceso de producción ya sea desde el momento de la elección del tema y la
toma de decisiones sobre la forma de abordarlo, así como en el establecimiento del equipo humano de
producción, en la atribución de tareas y en la definición de los modos de difusión. En efecto, esta
modalidad busca generar a nivel de la comunidad un sentido de pertenencia a partir de que promueve
una apropiación colectiva del proceso fílmico de forma que sus miembros se sienten involucrados tanto
en la producción como en la decisión y la organización de la actividad (SOLANO y LAZARRINI,
2009).
Por otra parte, estas producciones audiovisuales que recibieron diversos nombres (popular,
educativo, etc.) no sólo desarrollaron formas de producción sino también de circulación alternativos a
los tradicionales, intentando fomentar variadas modalidades de exhibición no tradicional dada la escasa
presencia que tiene este tipo de producción audiovisual en las pantallas accesibles al público masivo.
En este apartado analizaremos, en primer lugar, los ejes comunes alrededor del cual se organiza
la producción audiovisual comunitaria en la Argentina particularmente el caso de una de las principales
regiones del país como es el AMBA. Posteriormente nos focalizaremos en cuatro experiencias de
producción audiovisual comunitaria investigadas para este trabajo.
7 Alfonso Gumucio Dagron (2011) señala que en ese entonces se defendía la noción de que formatos como el Súper 8 y el
video, no eran la expresión subdesarrollada del cine de pantalla y de la televisión sino que eran instrumentos con definidas
funciones sociales.
8 Eso no significa desestimar la lógica instrumental material, necesaria para llevar adelante cualquier emprendimiento
económico, sino que como sostiene Coraggio (1999), supone subordinar la acumulación a la reproducción de la vida,
estableciendo otro tipo de relación entre la producción (como medio) y la reproducción (como sentido).
participación en estos espacios revitaliza los lazos de amistad y solidaridad en los ámbitos barriales y
permite, en ocasiones, aminorar ciertas conflictividades que pueden existir entre los grupos.
Si bien el formar parte de estas experiencias no modifica, en líneas generales, la situación
económica de quienes se incorporan a estas producciones, el hecho de sentirse protagonistas o
realizadores puede llegar a provocar en ellos cambios importantes, en términos personales y sociales.
“Pibes que no habían ido nunca a la escuela,… y de repente son reconocidos y aplaudidos por lo que
ellos habían hecho y ese es el valor de la herramienta” (A,G, abril, 2013).
En definitiva, las actividades desplegadas por estas organizaciones, más allá de las
particularidades de trabajo que desarrolla cada una de ellas, tienen como objetivo despertar la
conciencia social y critica, y esto, a partir de contar diferentes historias que permita dar visibilidad a las
problemáticas cotidianas, pero de una perspectiva distinta, y a través de un trabajo de construcción
colectiva.
las construcciones sociales de principios del siglo XXI. A su vez, tienen la revista “La Posta Regional”
y la radio FM y el canal de TV “La Posta”9. En la señal de TV La Posta se emiten producciones propias
de eventos filmados y también productos de otras organizaciones que traen sus videos institucionales.
Tanto Barrio Galaxia como Desde los barrios van a los eventos y los filmamos,
entonces de algún modo es un noticiero de lo que pasa comunitariamente. Por
ejemplo, con Sofovial hay un montón de cortos y documentales que ellos nos traen
[…] (E.B.abril de 2013)
Desde el año 2003 comienzan a trabajar en un proyecto de cine comunitario que tras cinco años
de trabajo se concreta en un medio metraje llamado El Cuenco de las Ciudades Mestizas que tuvo
varios premios en diversos festivales. En el Festival de Cine de Saladillo10 ganó el primer premio.
Nosotros ya hacíamos espectáculos escénicos y musicales. Incorporamos el tema del
cine en el ultimo laburo, por una necesidad expresiva de mostrar lo que hacíamos…
eso se estrenó en el 2008 y se laburó desde el 2003 en adelante…. el Cuenco tiene que
ver con mostrar el trabajo nuestro en Cuartel V, una serie de temas, el lugar de lo
artístico, de la locura. (E.B.abril de 2013)
Lo que ellos proponen como punto de partida para el desarrollo del cine comunitario es ampliar
la capacidad de expresión de la comunidad y por esa razón consideran fundamental su participación en
la producción. Y si bien reconocen que en el caso del cine es necesario dominar ciertos saberes técnicos
sostienen que el mayor aprendizaje lo brinda la propia práctica.
[…] Hay que empezar a entender que la producción cultural popular no es un
tipo de actividad que haya que circunscribir al sector que está
profesionalizado….Eso no debería ir en desmedro de las cosas que se hacen
con mayor nivel de “profesionalidad”. (E.B.abril de 2013)
9 Con diversas comunidades, la Asociación Raíces Escénicas, realizó cuatro medio metrajes: “Saltar el Charco“, con las
comunidades de Polvorín y de Antonio José de Sucre; “Este soy yo“, con la comunidad de Valle Verde; “ De Regreso a
Casa “ con la comunidad de Santa Cruz con “ y “ Si se cree, se puede “. La última, con la comunidad Los Lanceros.
10 La película la dirigió Meirelles Fernando y se estrenó en el año 2002. El film es contado de una forma no-lineal, utilizando
diferentes técnicas de edición y tomas de cámaras y muchos de los actores, fueron residentes de favelas.
11 http://cinemanosso.wix.com/semifestaudiovisual#!cinemanosso/c20r9
Una de las primeras actividades conjuntas que realiza Sofovial con el Hospital Larcade fue un
relevamiento videográfico de la situación sanitaria del ex partido de Gral. Sarmiento. Esto posibilitó que
la asociación se vinculara con centros de atención primaria y con otras organizaciones que trabajaban
con esos centros.
En 1989 producen el primer video sobre la prevención del SIDA en la Argentina, a partir del
cual recibieron numerosas solicitudes para la realización de talleres en distintos establecimientos
públicos y sociales (sindicatos, escuelas, sociedades de fomento, etc). Casi la totalidad de los talleres se
graban y se transforman en videos, que con los aportes de la comunidad, logran construir un “sentido”
diferente alrededor de determinada problemática.
Los videos que realiza la organización, se distancian de los “videos tradicionales”, que por lo
general, hacen foco en el resultado videográfico, artístico o en su impacto mediático. En cambio, el tipo
de videos que realizan es catalogado por ellos mismos como “video proceso”, que sin descuidar los
aspectos comunicacionales, hacen foco en la construcción comunicacional, en el entramado de
relaciones, en la participación en distintos momentos del proceso de la realización: en el guión, las
investigaciones, el rodaje, las entrevistas, fotografías, música, etc.
Sofovial se ha consolidado como una organización que, a través de las prácticas audiovisuales
ha logrado realizar diferentes tipos de trabajos con distintas organizaciones públicas y privadas, tales
como organizaciones sociales, instituciones diversas como escuelas, sociedades de fomento, clubes,
universidades, municipios, entre otros. En los últimos tiempos han entablado una relación muy cercana
con distintos ministerios nacionales (Educación, Desarrollo Social, de Seguridad), pero principalmente,
con el Ministerio de Salud
Si bien en la actualidad los vínculos con el Ministerio de Salud están consolidados, no
ha sido fácil en sus comienzos pero nos han dicho que actualmente tenemos el
archivo de salud comunitaria más importante del país. (H.A. marzo de 2013)
Las producciones audiovisuales realizadas han sido variadas, desde cortos, programas para
televisión (ficción y documentales) e institucionales. Y todas conllevan una impronta particular, en ellas
se reflejan las distintas problemáticas, en donde prima lo territorial, barrial y la imagen de lo cotidiano.
Los encargados de las realizaciones se han formado tanto a nivel profesional, como en la
práctica. En sus comienzos, solo había una persona especializada en las temáticas audiovisuales:
Antes de Sofovial, no teníamos ninguna experiencia previa, salvo yo que estudié en el
SICA, pero ninguna con una cámara y una video casetera y fuimos aprendiendo.
Todos los que pasaron por acá estudiaron se recibieron. (H.A. marzo de 2013).
Hoy en día la organización esta conformada por profesionales en distintas disciplinas (médicos,
economistas, sociólogos, diseñador grafico, programador), otros que están cursando sus estudios
secundarios y sin estudios formales.
En la mayoría de los casos han trabajado con organizaciones sociales, en temáticas vinculadas
con la niñez, la adolescencia y la juventud. También incorporaron la temática de las mujeres en
situación de violencia, de prostitución y recientemente trabajan con adultos mayores del PAMI. Hasta
ahora pasaron por sus talleres 1200 personas en la provincia de Buenos Aires y ya articularon
actividades con cerca de medio centenar de organizaciones de base, incluyendo a las cooperativas de
“Argentina Trabaja”.
La primera experiencia surgió de una actividad que el trabajador social realizó con chicos de un
centro asistencial en el Gran Buenos Aires con motivo de un festival que se hacía en la Ciudad de
Buenos Aires y que convocaba a escuelas para hacer el primer cortometraje.
Un día los chicos dijeron que querían contar como era un día de ellos en la calle, y se
llamo “Los de andar con pies descalzos” que es una canción de Walter Olmos, que
hizo un cantante cuartetero, que había sido un pibe de la calle. Los pibes eligieron esa
canción y también eligieron a quien querían entrevistar en el día, día. (A. G., marzo de
2013)
El nombre “Cine en Movimiento” tiene que ver, por una parte, con la vinculación que han
forjado con las organizaciones y movimientos sociales con las que vienen trabajando desde su origen.
Pero también tiene que ver con la decisión de no tener una sede fija y no ver al cine como algo estático
al que la gente tiene que acercarse. En palabras de su fundador:
[…] Pensar desde el origen la idea del cine como en una cosa móvil, en movimiento
como llegar a eso lugares donde el cine no había llegado nunca. (A.G., marzo de 2013)
Si bien la experiencia se inicia con dos personas vinculadas directamente al cine, el interés
principal de ellos es el de acercar el lenguaje audiovisual a los sectores populares o sea producir
contenido audiovisual desde la misma comunidad y no desde otro tipos de espacios.
No es mejor o peor, pero es distinto si nosotros nos ponemos hacer un documental
acerca de los cartoneros a que lo hagan los mismos involucrados. El que mira por la
cámara es otro y el que establece el guión, la cámara es otro, es otra forma de contar y
nosotros vamos detrás de eso. La idea es ir detrás de lo que el otro quiere contar
generar un espacio educativo, para que el otro pueda contar lo que quiera. (A. G.,
marzo de 2013)
Es de este modo, que el trabajo que realiza la organización es el de que la propia comunidad
pueda contar y plasmar sus historias y vivencias por medio del manejo de las herramientas
audiovisuales, en este caso a través de la concreción de distintos cortometrajes.
Una característica de esa modalidad de hacer cine es incorporar el proyecto de filmación dentro
de un proyecto social. Si bien los proyectos que realizan han recibido diversos financiamientos (Unicef,
Banco Mundial, Fundación Huésped, BID, Municipios, Ministerio de Desarrollo Social de la Nación)
los miembros que participan en la asociación se autodefinen como voluntarios, es decir que además de
esa actividad cada uno de los integrantes desarrolla un trabajo en paralelo. Actualmente está
conformada por un grupo estable de unas 20 personas.
Desde el 2004, la asociación tiene su sede en el partido de San Fernando y en este lugar es que
comenzaron a trabajar con la Fundación Huésped en un programa de prevención del sida. En el 2008,
se abre un espacio de cine comunitario orientado con temáticas relacionadas con la juventud en donde
se trabaja de forma integral.
Hay un espacio de encuentro semanal, con participación total, resolución de
problemas y de producción audiovisual…El proyecto actual es Jóvenes integrados, y
es un taller de cine y tv comunitaria, y uno de lenguaje audiovisual para la promoción
de derechos. (G.A, abril, 2013)
Los trabajos realizados desde la organización en conjunto con los jóvenes participantes, han
logrado el reconocimiento de diversas instituciones públicas y privadas (Gobierno de la Provincia de
Buenos Aires, Canales de Televisión, festivales, etc.)12.
12Polanco Uribe, Gerylee; Aguilera Toro, Camilo "Luchas de representación: prácticas, procesos y sentidos audiovisuales
colectivos en el suroccidente colombiano"-Programa Editorial Universidad del Valle-2011
herramientas audiovisuales. En ese contexto, las comunidades locales pudieron utilizar esas
herramientas para llevar adelante diversas experiencias comunicacionales de forma participativa, que
tienen como eje el abordaje de los problemas sociales de la comunidad, involucrando, en ocasiones, sus
propias historias de vida. Cabe destacar que si bien la multiplicación de este tipo de experiencias es, sin
dudas, valiosa para las personas y la comunidad en su conjunto su nivel de desarrollo es aún incipiente.
Del conjunto de experiencias investigadas algunas se inscriben como parte de un proyecto más
amplio de arte y cultura comunitaria, mientras que otras se dedican específicamente a la producción
audiovisual, ya sea como cine comunitario (documentales o de ficción) o como videos con objetivos
vinculados a la educación popular. En todas esas experiencias resulta significativa la activa participación
de los miembros de la comunidad no sólo en términos de los temas que se muestran sino también en su
participación como técnicos, actores, guionistas, etc. Incluso, en algunos casos, la participación no sólo
les permitió capacitarse sino que los transformó también en capacitadores replicando en diversos
ámbitos la experiencia.
Con este trabajo pretendemos aportar al conocimiento de las formas de producción audiovisual
alternativas que han surgido en las últimas décadas y que tienen como objetivo la democratización del
lenguaje y las herramientas audiovisuales, a través de los principios de la educación popular y la
comunicación social. Consideramos que los casos analizados nos aportan elementos para seguir
profundizando en la investigación de este campo de gran riqueza y diversidad.
Referências
CORAGGIO, J.L. Política social y economía del trabajo. Alternativas a la política neoliberal para la ciudad, Madrid:
Miño y Dávila, 1999.
Chanial y Laville. Asociativismo. En: Cattani A.D, Coraggio, J.L. y Laville, J.L. (Org). En Diccionario de la otra
economía. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento/Altamira/Clacso..2009.p.36-42
GUMUCIO DAGRON, Alfonso. Aproximación al cine comunitario. En Estudio de experiencias del cine y el
audiovisual comunitarios en América Latina y el Caribe. Cuba: Fundación del Nuevo Cine Latinoamericano.
Observatorio del Cine y el Audiovisual Latinoamericano. 2012
HARDT, M. y NEGRI, A. Empire. Cambridge (Massachussets) – London, Harvard University Press. 2000.
HINKELAMMERT, F. y Mora Jiménez, H. Economía, sociedad y vida humana. Preludio a una segunda crítica de la
economía política. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento/Altamira. 2009
Perrenoud, P. Aprender en la escuela a través de proyectos: ¿por qué?, ¿Cómo?. Revista de Tecnología Educativa,
Santiago de Chile, Año XIV, Nº 3. 2000.
Quintar, A., Calello, T. y Aprea, G. Los usos de las TICs. Una mirada multidimentsional. Buenos Aires: UNGS –
Prometeo.. 2007
SANGUINETTI, I. El arte, la cultura y el desarrollo equitativo en Latinoamérica.. Sobre la base de documentos de
Plataforma Puente - Cultura Viva Comunitaria. Congreso Latinoamericano de cultura viva comunitaria realizado
en La Paz (Bolivia). 2013. p. 1-15.
Solano, H.Ch y Mutuberría Lazarrini, V..Economía comunitaria. En: Cattani A.D, Coraggio, J.L. y Laville, J.L.
(Org.). Diccionario de la otra economía. Buenos Aires: Universidad Nacional de General Sarmiento/Altamira/Clacso..
2009.p.121-133
Introdução
A
o propor uma análise sócio-histórica sobre cinema latino-americano, já de início, pode-se
imaginar uma complexidade de fatores que envolvem a produção fílmica desta região,
principalmente fatores econômicos e políticos que implicaram em censura de certas obras
cinematográficas.
Na historiografia do cinema latino-americano podemos observar que há uma variação de
temáticas que abordam de melodramas, questões políticas e sociais, além dos temas cômicos e sensuais.
Mas esses temas não foram suficientes para fidelizar o público nacional que acaba preferindo o cinema
hollywoodiano. Segundo Autran (2009, p.130) é preciso “encarar a mundialização da cultura” para
entendermos a ausência do público aos filmes latinos.
Nesse sentido, o conceito de “mundialização da cultura” é defendido pelo sociólogo Renato
Ortiz no livro de sua autoria intitulado “Mundialização e Cultura”. Fala-se em uma vivência
mundializada, como por exemplo, nos casos específicos da Euro Disney e de Hollywood. A temática
cultural passa a ser analisada no contexto da sociedade global, considerando-se também a economia e
política. Esses fatores estão interligados ao processo de globalização e a uma cultura de consumo,
muito evidente e eficiente nos dias atuais.
Os processos econômicos, sociais e culturais contemporâneos são marcados pela
globalização, diante da qual as fronteiras dos mais variados tipos ou a vigilância do
Estado-Nação são porosas e ineficientes (AUTRAN, 2009, p.130).
No século XXI a dinâmica social, política e econômica se alterou devido aos avanços
tecnológicos e de informação, impulsionado pelo desenvolvimento da pesquisa científica após a
Segunda Guerra Mundial. Todos esses fenômenos influenciaram diretamente o cinema mundial,
principalmente o norte-americano, que aproveitou, com o apoio político e econômico, para se difundir
e internacionalizar.
Dessa forma, entendemos que os desafios do cinema latino-americano envolvem fatores
econômicos e políticos que historicamente afetaram os setores sociais e culturais das suas sociedades.
Segundo Ortiz (1994, p.94) “cultura e economia seriam assim dimensões equivalentes. Isto significa,
porém, que a mundialização só pode ser compreendida como um fenômeno externo aos países que a
adotam”.
1 Sociólogo, pós-graduando em artes visuais, intermeios e educação no instituto de artes da universidade estadual de
campinas (unicamp).
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1021
Desafios latinos
Os estudos e análises do cinema latino-americano permitem reflexões sobre alguns pontos do
nosso processo histórico enquanto homens produtores de bens culturais. A cultura pode ser um meio
de estudo das questões políticas, econômicas e artísticas assim como dos fenômenos sociais recorrentes
em determinadas épocas, além de refletir a subjetividade de uma nação. O cinema pode ser considerado
um meio e/ou recurso para pensarmos sobre a complexidade que envolve a construção de
determinadas sociedades.
É evidente que temos que levar em conta a liberdade poética dos produtores de cinema, pensar
sobre as razões e visões do diretor, bem como todo o processo que envolveu a produção e realização
da obra cinematográfica.
O cinema latino-americano ainda é muito desconhecido pelo seu próprio povo, diferente do
que ocorre com o cinema norte-americano de hollywood. Com a expansão do capitalismo e todo o
processo de globalização impulsionado pelas tecnologias da informação, o cinema hollywoodiano,
amparado numa economia forte e numa política imperialista norte-americana, se valeu de ganhar
espaço de exibição pelo mundo a fora, e consequentemente de conseguir atrair e fidelizar um público
que comparece aos cinemas para prestigiar as produções de hollywood.
Na América Latina diversos desafios estão em jogo, mas o maior deles vem da economia que
sofreu no seu processo sócio-histórico grande golpes e explorações. Com o advento da colonização por
povos europeus, essa região do continente americano foi expropriada o que historicamente causou-lhe
danos que até os dias atuais refletem nas sociedades latinas.
Dessa forma, os diversos segmentos das sociedades latinas com todas as suas diversidades
étnico-culturais sofreram um processo de aculturação que gerou transformações profundas nos modos
de ser e viver dos latino-americanos. O cinema não fugiu a regra. De acordo com Paranaguá (1984,
p.09) “o cinema aparece na América Latina como mais uma importação estrangeira”.
Na tabela 1 podemos observar que após a primeira exibição pública do cinematográfico em
Paris no dia 28 de dezembro de 1895, o mesmo feito, foi realizado um semestre depois na parte latino-
americana do continente. Com ressalvas ao Kinetoscópio de Thomas Alva Edison que provavelmente
foi exibido na capital Argentina em 1894.
País Datas
Buenos Aires 1894 e 18 de julho de 1896
Rio de Janeiro 08 de julho de 1896
Montevidéu 18 de julho de 1896
México 14 de agosto de 1896
Santiago do Chile 25 de agosto de 1896
Guatemala 26 de setembro de 1896
Havana 24 de janeiro de 1897
Venezuela 28 de janeiro de 1897
Mas esse movimento de difusão do cinema na América Latina ocorreu de forma desigual e
irregular, porque as dificuldades eram muitas e a tecnologia ainda estavam em desenvolvimento.
Segundo Paranaguá (1984, p.14) os latino-americanos eram “espectadores de uma produção
importada.” No começo do século XX o cinema ainda gerava dúvidas quanto ao seu desempenho
comercial e econômico, dificultando os investimentos e posteriormente a sua expansão, além de
concorrer com outras atrações culturais de rua que se apresentavam ao vivo e de forma mais interativa
com o público, como por exemplo, o circo.
Os teatros, cafés e clubes tiveram um papel importante na difusão do cinema em diversos países
da América Latina. Mas fatores estruturais das cidades acabavam por dificultar a exibição de filmes
nesses espaços, pois nessa época a eletricidade ainda não estava disponível em todos os lugares.
Algumas capitais da América Latina estavam em processo de modernização e algumas salas de cinema
vão começar a ser inauguradas a partir de 1900, conforme demonstra a tabela 2.
Essas salas de cinemas inauguradas em algumas capitais da América Latina tem como principal
exibição filmes documentários. Esses filmes eram silenciosos, ou seja, cinema mudo, porque no inicio o
cinema não tinha som nem cor. Talvez por falta de conhecimento da linguagem cinematográfica ou até
mesmo de criatividade para inventar histórias de ficção, a maioria de filmes produzidos nessa época em
diversas capitais latinas eram basicamente filmes sobre o cotidiano das cidades, das fazendas, dos
políticos e principalmente dos empresários que podiam pagar pela produção de uma fita sobre as suas
atividades comerciais, com o intuito de auto-promover o próprio negócio.
Mas um dos fatores primordiais nessa luta pela sobrevivência cinematográfica na América
Latina se deu pelas ações em competir com os filmes estrangeiros que chegavam com força total,
invadindo as salas de cinema e ganhando atenção dos telespectadores que eram receptivos aos seus
diversos filmes de ficção.
Observamos que nesse período os filmes de cavação e os cinejornais são as únicas opções dos
diretores para não se afundar numa crise de mercado cinematográfico que já estava instalada pela
presença dos produtos estrangeiros, principalmente dos norte-americanos.
A presença de filmes norte-americano no espaço latino começa a ganhar força após a primeira
guerra mundial. Antes desse evento o foco do negócio cinematográfico estava concentrado entre
exibidores e produtores locais. Em seguida o foco é alterado para as importações de produtos já
prontos, no caso filmes norte-americanos. Sendo assim, na área cultural e de mercado de cinema “a
América Latina virou o quintal dos Estados Unidos” (PARANAGUÁ, 1984, p.25).
Se observarmos os números de exibição dos filmes latinos em comparação com os filmes norte-
americanos podemos compreender que a hegemonia do cinema de hollywood é uma realidade no
século XXI. Fatores estritamente econômicos e políticos regem as regras do mercado cinematográfico,
não só na América Latina, mas também na Europa e na maioria dos demais países, onde os filmes
hollywoodianos prevalecem.
Ao analisar estatisticamente os dados de lançamentos, e faturamento do cinema de diversos
países e compará-los aos dados do cinema norte-americano, podemos entender que “o cinema e o rádio
se autodefinem como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores-gerais tiram
qualquer dúvida sobre a necessidade social de seus produtos” (ADORNO, 2002, p.08).
No gráfico 1 temos como exemplo os dados numéricos do cinema brasileiro que revela como
os lançamentos nacionais ainda não conseguiram superar as produções norte-americanas.
EUA; 17 Filmes
BRASIL; 3 Filmes
De acordo com a Agência Nacional do Cinema brasileiro (Ancine) o ano de 2011 foi muito
bom para o desempenho dos filmes estrangeiros no Brasil. Observamos no gráfico 1 que os filmes
norte-americanos lideraram as bilheterias brasileiras tendo uma participação muito superior quando
comparado aos filmes nacionais de maior sucesso.
Esse desempenho dos filmes estrangeiros também é observado quando analisamos os dados
referente a renda das 20 maiores bilheterias do ano de 2011. No gráfico 2 fica evidente que o cinema
nacional faturou muito pouco em comparação com o cinema dos Estados Unidos (EUA).
Dentro desse contexto, não temos como objetivo repudiar a existência do cinema norte-
americano, principalmente porque é inegável o nível qualitativo e técnico dos seus filmes, mas sim,
entender como essa dominação cultural foi possível e se difundiu pelo resto do mundo, inclusive no
Brasil, se tornando preferência nacional quando os filmes estão em exibição nos cinemas.
Sabemos que questões políticas e econômicas são os principais meios de difundir culturalmente
um produto, seja cinema, música, novela, literatura, etc. O poder econômico, político e militar dos
norte-americanos facilitaram muito o desenvolvimento de práticas de difusão cultural, incluindo os
negócios cinematográficos. Além disso, e talvez um dos mais importantes fatores, é o desenvolvimento
de novas tecnologias, impulsionado e incentivado por ações governamentais e privadas.
É muito importante compreender historicamente como a indústria cultural de hollywood se
tornou poderosa mundialmente, porque através dessas informações históricas é possível criar
estratégias e planos de ações para desenvolver o próprio cinema da América Latina. É claro que fica
evidente as questões políticas e econômicas envolvidas nesse processo sócio-histórico. Mas não é
impossível pensar como criar novas oportunidades para o cinema latino analisando e entendendo
historicamente o cinema dominante norte-americano.
A importância de entender esse contexto histórico pode ser compreendida no gráfico 2 quando
vemos que a porcentagem da renda das 20 maiores bilheterias do ano de 2011 está na fatia dos EUA
com 90% do total de arrecadação. Na Comparação com o cinema nacional o Brasil esta longe de se
igualar ao cinema norte-americano. Mesmo assim, de acordo com a Ancine “o mercado brasileiro de
cinema é o mais pujante entre todas as artes” atingindo no ano de 2011 um faturamento de R$ 1,44
bilhão se tornando um dos mercados mais importantes do mundo (BRASIL, 2012, p.02).
BRASIL
10%
EUA
90%
Fonte: Brasil / ANCINE (2012, p.06)
O caso brasileiro é uma exceção porque nem todos os países da América Latina tem o mesmo
tamanho geográfico e populacional, além de uma economia em pleno desenvolvimento que apresenta
sinais de estabilidade. O setor cultural de qualquer país depende muito da sua economia para se
desenvolver. Ações culturais, entre elas as cinematográficas exigem grandes investimentos para
produção e difusão.
Com base nessas perspectivas os governos latinos poderiam elaborar planos de
desenvolvimento para impulsionar as áreas cinematográficas de seus países, porque como observamos,
esse é um setor que movimenta bilhões de dólares na indústria cultural norte-americana, oferecendo
muitas possibilidades de trabalho técnico e criativo a milhares de pessoas, além de autopromover e
difundir os bens culturais de uma nação. Em artigo recente no jornal Folha de S.Paulo a ministra da
Cultura do Brasil, Marta Suplicy, escreveu sobre as oportunidades que o soft power brasileiro poderá
trazer ao país.
Isso se chama "soft power". Se for suficientemente atraente, funcionará como uma luz
que conquistará visitantes, investidores e sonhadores. Quando o conjunto é de tal
monta consistente, pode exercer extraordinário poder (soft power) como Hollywood em
relação aos EUA, a moda e a gastronomia na França, os monumentos históricos da
humanidade na Itália e na Grécia... Trata-se, porém, muito mais que cinema, comida
ou monumentos. São valores, posições históricas, políticas externas e autoridade
moral que, no conjunto, geram admirações e sonhos (SUPLICY, 2013).
Sem nenhuma pretensão de fazer política partidária à ministra da Cultura, mas concordando
com o seu pensamento quanto ao soft power brasileiro, conceito que segundo Suplicy (2013), foi criado
pelo professor Joseph Nye da Universidade Harvard, os países da América Latina também poderiam
aderir ao conceito soft power para difundir sua diversidade cultural numa tentativa de fortalecer suas
relações econômicas e políticas tendo o cinema como um dos principais produtos de divulgação.
Observamos no gráfico 3 que os EUA sabem muito bem como trabalhar o seu soft power
cinematográfico. A porcentagem da participação no total de público das 20 maiores bilheterias do ano
de 2011 no Brasil, consta que 89% das pessoas preferiram ir aos cinemas brasileiros para assistir filmes
norte-americano. Esse dado revela que ações políticas e econômicas do governo norte-americano são
muito efetivas para impulsionar e tornar o seu cinema mais atraente no exterior, e consequentemente
lucrar muito com as suas qualidades softs.
Em Cesário (2008, p.07) observamos o market share de alguns casos locais da América Latina
referente ao ano de 2006. Na Argentina, por exemplo, apenas 11,6% de espectadores foram aos
cinemas prestigiar filmes nacionais, no Brasil esse porcentual foi de 11,1%, seguido de 7,1% no México
e no Chile apenas 6,3%.
Filmes do Brasil
11%
Nesse caso, conforme Ferreira (2010) é preciso políticas públicas de valorização da cultura
nacional com toda a sua dimensão simbólica, cidadã e econômica para que o Brasil se torne mais forte e
desenvolvido na área cultural.
Desse modo, ao observarmos a relação de filmes que ficaram entre os 20 maiores sucessos de
bilheteria do ano de 2011, entendemos que dos 17 filmes (tabela 3) dos EUA que mais faturaram no
Brasil são filmes de gênero animação / aventura que acaba englobando todas as faixas etárias de
público. E apenas por curiosidade, são filmes que sempre retratam os heróis norte-americanos.
Os dados da tabela 3 mostram como o caso brasileiro reflete muito o que acontece no mercado
cinematográfico, não só em espaço nacional, mas em todo o espaço latino-americano, o cinema de
Hollywood domina todas as salas de exibição com os seus blockbuster, que por sinal sempre retrata na tela
histórias de super-heróis norte-americanos. Seria então necessário o cinema da América Latina também
criar os seus super-heróis? Ou como no caso brasileiro (tabela 3), investir nos filmes de comédia e
sensuais? Qual seria a fórmula de sucesso para o cinema latino-americano?
É difícil responder as perguntas acima porque a América Latina é um complexo de países que
tem suas individualidades e especificidades culturais, políticas, econômicas e artísticas. Mas sabemos
que é preciso valorizar sua própria cultura incentivando a produção de bens materiais e imaterias que
possam garantir a soberania cultural de seus povos. Em Avellar (1995, p.141-142) observamos que “o
cineasta deve examinar as estruturas sociais, ver como se articula a linguagem em sua realidade para, a
partir daí, descolonizar o gosto“. Para Avellar esse gosto cultural e cinematográfico foi “colonizado pela
estética comercial/popular (hollywood), pela estética populista/demagógica (Moscou), pela estética
burguesa/artística (Europa)”.
Dessa forma, podemos entender que as políticas públicas de difusão cultural do cinema
nacional, do folclore, das artes plásticas, da música, do teatro, seria um dos caminhos a serem
perseguidos para fortalecer os vínculos do povo latino com a sua própria cultura.
Imagens em construção
O cinema latino-americano ao longo de sua história já passou por períodos positivos sendo
reconhecido no cenário internacional ganhando prêmios e críticas favoráveis as suas produções. Mas
também houve e ainda há muitos problemas a serem enfrentados para garantir uma produção
cinematográfica expressiva e forte na América Latina. Se observarmos a tabela 4, no caso específico do
Brasil, podemos entender que os lançamentos estrangeiros são muito superiores aos lançamentos
nacionais.
Esses dados não são diferentes em outros países latinos, se consideramos que a economia
brasileira é uma das maiores da região. Países como México, Argentina e Chile também poderiam ser
analisados a partir da relação entre economia e produção fílmica mais expressiva.
Dentro desse contexto, segundo Riquelme (2011, p.45) alguns cineastas latino-americanos, tais
como: Fernando Birri, Fernando Solanas, Octavio Getino, Glauber Rocha, Jorge Sanjinés, Julio Garcia
Espinoza e Miguel Littin começam a se relacionar na tentativa de trocar experiências sobre suas
produções, principalmente sobre cinema documentário.
Os primeiros Encontros de Cinema Latino-Americano aconteceram em Viña Del
Mar/Chile, (1967 e 1969) e Mérida/Venezuela (1968), e estes três festivais
constituíram o nascimento e o próprio desenvolvimento do Movimento
Cinematográfico a nível continental. Diversos representantes do cinema da América
do Sul e da América Central participam com o intuito de se conhecer e trocar ideias
sobre cinema e cultura em geral, unir os esforços em metas comuns e reafirmar a
constatação da existência de um cinema próprio (RIQUELME, 2011, p. 45, apud,
FRANCIA, 1990).
Dessa forma, as imagens latinas começam a se integralizar por meio do cinema a partir da
década de 1960 nos Festivais de Cinema do Chile e Venezuela. Observamos que essa integralização se
fortaleceu e continua até os dias atuais com a recente edição de 2013 do 8º Festival de Cinema Latino-
americano de São de Paulo, onde participaram diversos países da região, entre eles: Argentina, Brasil,
Bolívia, Colômbia, Cuba, Equador, Guatemala, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela.
É importante destacar a relevância dos festivais de cinema da América Latina, uma vez que
esses festivais reúnem uma grande diversidade de filmes latinos promovendo relações entre cineastas,
produtores, atores, exibidores e o público em geral. Por outro lado, esses festivais também contribuem
para formação de público e uma memória afetiva junto ao cinema latino. Além de ser um meio de
concorrer com a “indústria da consciência” e o “imperialismo cultural” imposto pelo cinema norte-
americano (ORTIZ, 1994, p.89).
A América Latina ainda sofre muito com a concorrência dos filmes estrangeiros, dificultando o
desenvolvimento e o fortalecimento de uma indústria cinematográfica local. Segundo Cesário (2008,
p.06) países como México (45%) lidera a produção fílmica da região, seguido de países do extremo sul,
como Brasil (25%), Argentina (20%) e Chile (10%). Vale reafirmar que fatores econômicos e políticos
influenciam muito a dinâmica de produção fílmica da região.
Experiências contemporâneas
O México talvez seja o país que contrasta com esses dados da tabela 5, porque historicamente é
um país que se destaca na produção fílmica da América Latina. Mesmo assim, observamos que os
dados revelam uma maior produção de longas-metragens no extremo sul da região.
É importante lembrar que o cinema latino-americano, mesmo passando por dificuldades
financeiras com a falta de recursos econômicos e muitas vezes falta de recursos tecnológicos e de
logística, conseguiu ao longo da história cinematográfica se destacar entre as melhores produções do
mundo.
Portanto, podemos citar as indicações ao Oscar, prêmio norte-americano de maior prestígio
cinematográfico concedido aos melhores filmes. Vale lembrar que o Brasil já concorreu por 4 vezes ao
Oscar (1963, 1996, 1998 e 1999). Outros países da América Latina como México já concorreu por 8
vezes (1961, 1962, 1963, 1976, 2001, 2003, 2007 e 2011), a Argentina por 6 vezes (1975, 1985, 1986,
1999, 2002 e 2010) ganhando 2 vezes (1986 e 2010), e países como Peru e Chile concorreram 1 vez,
respectivamente (2010; 2013).
Considerações finais
A cultura latino-americana é composta por diversas nacionalidades, todas com suas
especificidades e complexidades. A América Latina é uma região que se destaca pela sua exuberância
geográfica e riqueza natural, além de sua pluralidade cultural. E o cinema desta região é tão valioso
quanto os recursos naturais disponíveis pela sua natureza. Porém sabemos que este cinema não é
reconhecido e valorizado como deveria, principalmente pelo seu próprio povo.
Esse fenômeno de rejeição ao cinema nacional latino pode ser entendido pelo próprio processo
de globalização que acaba incluindo a cultura (principalmente a cultura cinematográfica) nos seus meios
de consumo. Segundo o Sociólogo Renato Ortiz (1994, p.91) “a indústria cultural, ao se desenvolver
preferencialmente em solo americano, teria inventado um tipo de cultura irresistível, e pela sua
extensão, portadora dos germes da universalidade”. Nesse caso, entendemos porque o cinema
hollywoodiano se tornou hegemônico na América Latina.
Em Ortiz (1994, p.08) também compreendemos que “a mundialização da cultura se revela
através do cotidiano”, incluindo os filmes. Além de que “a fabricação industrial da cultura (filmes, séries
de televisão, etc.) e a existência de um mercado mundial exigem uma padronização dos produtos”
(ORTIZ, 1994, p.32). Essas afirmações de Renato Ortiz confirmam os dados da tabela 3 que mostram
lançamentos fílmicos norte-americanos padronizados em temáticas heróicas de aventura e animação,
conseguindo atingir os diversos tipos de público. Ou seja, um cinema mercadológico voltado para o
consumismo imediatista.
Enfim, volto à reflexão de Ortiz (1994, p.91), e pergunto: “Caberia aos outros imitá-la”? Imitar
o cinema de Hollywood seria o melhor caminho para a América Latina conseguir criar vínculos com os
seus espectadores? No Brasil tivemos a experiência positiva em 2010 com o filme “Tropa de Elite 2”
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1031
que foi a maior bilheteria de todos os tempos do cinema nacional. Capitão Nascimento seria o nosso
herói nacional? Exemplo a ser seguido por outros países? Não é possível prever o futuro do cinema
latino-americano, mas sabemos que são essenciais novos investimentos no setor cinematográfico, assim
como ações políticas de incentivo à produção nacional.
Referências
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AUTRAN, Arthur. O cinema brasileiro contemporâneo diante do público e do mercado exibidor. São Paulo: Revista
Significação USP, nº32, p.119-135, 2009.
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34 / Edusp, 1995.
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2011 (31 de dezembro de 2010 a 5 de janeiro de 2012), ANCINE, 2012. Acessado em 08jun2013, disponível em:
http://oca.ancine.gov.br/media/SAM/Informes/2011/Informe_Anual_2011.pdf
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de Estado da Cultura de São Paulo, 2013. Acessado em 04ago2013, disponível em:
http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/AgendaDetalhe.do?agendaId=456
CESÁRIO, Lia B. Cinema Latino-Americano e Globalização: Novos Desafios Econômicos, Políticos e Culturais. Rio de
Janeiro: Rede Alcar, 2008.
FERREIRA, Juca. A centralidade da cultura no desenvolvimento. In: BARROSO, Aloísio Sergio; SOUZA,
Renildo (orgs.). Desenvolvimento: ideias para um projeto nacional. São Paulo: Fundação Mauricio Grabois, p. 265-278,
2010.
ORTIZ, Renato. Mundialização e Cultura. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1994.
PARANAGUÁ, Paulo Antonio. O cinema na América Latina : longe de Deus e perto de Hollywood. Porto Alegre (RS):
Ed. L&PM, 1984.
RIQUELME, Diego I.C. O Cinema Documentário na Integração Latino-Americana: O ABC do início. Tese, Instituto de
Artes Unicamp. Campinas, 2011.
SUPLICY, Marta. O “soft power” brasileiro. São Paulo: Jornal Folha de S. Paulo – Opinião, 24fev2013. Acessado
em 10/07/2013, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/95343-o-quotsoft-powerquot-
brasileiro.shtml
Introdução
O
debate sobre a juventude vem se intensificando nos últimos anos no Brasil, direcionando
os olhares da sociedade para uma nova configuração deste tema, no qual os jovens passam
a ser vistos como protagonistas de ações que envolvem diretamente a sociedade. Esta
mudança de visão também propiciou o amadurecimento do tema e ampliou o conceito ao considerar a
diversidade como elemento importante para compreensão desse segmento. Neste sentido, quando
falamos sobre políticas públicas para a juventude, já não podemos limitar como referência a juventude,
mas as juventudes. Segundo Castro e Abramovay (2002),
[...] advoga-se a definição da juventude a partir da transversalidade contida nessa
categoria. Ou seja, recortes cronológicos, implica vivências e oportunidades em uma
série de relações sociais, como trabalho, educação, comunicações, participação,
consumo, gênero, raça, etc. Na realidade, essa transversalidade traduz que não há
apenas um grupo de indivíduos em um mesmo ciclo de vida, ou seja, uma só
juventude.
Neste viés, quando nos referimos aos jovens, há que se considerar a heterogeneidade destes,
uma vez que tentar emoldurá-los ou delimitá-los seria não considerar este universo tão plural que os
englobam, caracterizado por diversos fatores. Assim, mais que uma delimitação de idade, nas
juventudes está arraigada todo o contexto a sua volta.
O Estatuto da Juventude, aprovado em 7 de julho de 2013, em seu Art. 1º § 1º define que “são
consideradas jovens as pessoas com idade entre 15 (quinze) e 29 (vinte e nove) anos de idade”. É um
período razoavelmente extenso, em que o indivíduo sai da adolescência e entra na fase adulta, fazendo
um percurso de inúmeras descobertas e experiências que poderão influenciar fortemente suas vidas.
Durante este período, o jovem vivencia várias formas das juventudes, determinadas pelas experiências
http://lattes.cnpq.br/5128061477901535.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1033
ao longo destes anos. Há também as influências culturais, territoriais, religiosas e financeiras que
refletem diretamente com qual configuração das juventudes o sujeito melhor se identifica.
Neste viés, Pochmann (2009) corrobora destacando que, “ainda que a fase juvenil esteja
presente em todas as classes, nota-se que ela não ocorre de forma homogênea a todos. O modo de ser
jovem difere muito, principalmente quando há diferenças significativas entre os estratos de renda da
população”.
Neste sentido, para o desenvolvimento desta investigação, tomou-se como base a participação
das juventudes no programa Cultura Viva no município de Palmas, Tocantins. Mais especificamente,
esta pesquisa voltou sua atenção às ações que buscam identificar como as políticas públicas podem
contribuir para a equalização do acesso à formação acadêmica, profissional e, ainda, oferecer cultura e
lazer aos seus usuários/beneficiários. A metodologia foi norteada pela pesquisa documental, análise
bibliográfica e pela coleta de dados nos pontos de cultura de Palmas - TO, na Fundação Cultural, na
Secretaria Estadual da Juventude do Tocantins, nos endereços eletrônicos do Ministério da Cultura e da
Secretaria Nacional da Juventude, no intuito de enriquecer a discussão embasada por autores que tratam
sobre políticas públicas de cultura e de juventude. Além disso, foram entrevistados alguns gestores deste
programa.
De acordo Rua apud León (2008), as políticas públicas podem ser entendidas:
Como um conjunto de decisões e ações destinadas à resolução de problemas políticos.
Essas decisões e ações envolvem a atividade política compreendida como um
conjunto de procedimentos formais e informais que expressam relações de poder e se
destinam à solução pacífica de conflitos relacionados com bens públicos.
[…] a aquellos cursos de acción y flujos de información relacionados con un objetivo político definido
en forma democrática; los que son desarrollados por el sector público y, frecuentemente, con la
participación de la comunidad y el sector privado. Una política pública de calidad incluirá
orientaciones o contenidos, instrumentos o mecanismos, definiciones o modificaciones institucionales, y
la previsión de sus resultados.
Quando tratamos de políticas públicas para as juventudes é importante lembrar que este público
possui demandas específicas, inerentes a sua faixa etária. Portanto, faz-se necessário que os governos
incluam em suas agendas projetos que beneficiem diretamente os jovens, buscando pensar
implementações de programas que visualizem como devem ser as políticas públicas para as juventudes.
Neste sentido, faz-se imperativo que a políticas públicas sejam desenvolvidas em consonância como os
interesses sociais, visando, principalmente, o investimento em pessoal.
4A segunda Conferência Nacional da Juventude aconteceu em 2011; é um evento que visa reunir os jovens de todo o País
para dialogarem com o Governo Federal. Disponível em http://www.juventude.gov.br/conferencia/arquivos/texto-base
acesso em 11/jul./2013.
Dentre os projetos do Cultura Viva está o ponto de cultura, que busca oferecer a comunidades
de baixa renda oficinas de atividades recreativas, culturais e instrutivas. Embora não seja destinado
apenas aos jovens, seu público é predominantemente composto por esta faixa etária, uma vez que
identificam-se com suas propostas, já que estão em processo de formação acadêmica, profissional,
cultural e, em alguns casos, não se encontram em nenhum destes perfis, dispondo de vasto tempo
ocioso; daí a relevância da atenção a esta faixa etária, que busca o reconhecimento identitário enquanto
sujeitos de direitos e históricos, enquanto agentes estruturadores e transformadores de suas vidas.
Para Turino (2010),
[...] uma política pública de acesso à cultura tem que ir além da mera oferta de
oficinas artísticas, espaços e produtos culturais; precisa ser entendida em um sentido
amplo, expresso em um programa que respeite a autonomia dos agentes sociais,
fortaleça seu protagonismo e gere empoderamento social. Cultura para aproximar os
diferentes. Aproximação para que os diferentes se percebam próximos na essência.
Cultura que dá coragem, une, potencializa. Este tem sido o principal objetivo do
programa Cultura Viva: a busca de uma cultura que liberta.
Neste viés, o site do Ministério da Cultura (MinC)6 reforça que o ponto de cultura “é uma ação
prioritária do Programa Cultura Viva. Ele é referência de uma rede horizontal de articulação, recepção e
disseminação de iniciativas culturais. Como um parceiro na relação entre estado e sociedade”. Assim, o
programa Cultura Viva estimula o desenvolvimento sociocultural, desportivo e profissional dos jovens,
por meio dos pontos de cultura, onde “são ofertados bens e serviços culturais pertinentes aos interesses
dos jovens, sobretudo considerando que esses centros culturais, em grande parte, se encontram em
regiões cuja maioria da população é de baixa renda” (LEITE, 2012, p. 79).
Ainda de acordo o site do MinC, o Programa Cultura Viva busca “fortalecer o protagonismo
cultural na sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais, grupos e comunidades, ampliando o
acesso aos meios de produção, circulação e fruição de bens e serviços culturais”. Para Leite (2012)
5 TURINO, Célio é Historiador e Servidor Público, idealizador do Programa Cultura Viva. Apresenta uma leitura da atual
conjuntura do Programa Cultura Viva no artigo “O desmonte do Programa Cultura Viva e dos pontos de Cultura no
Governo Dilma”. Disponível em (http://revistaforum.com.br/brasilvivo) acesso em 7/jul./2013.
6 Disponível em http://www.cultura.gov.br/ acesso em 28/jun./2013.
apresenta “com um desenho inovador e uma visão da cultura como geradora de processos criativos nas
comunidades, o Cultura Viva veio ocupar o lugar de projeto complementar diferente”.
Neste sentido, ainda de acordo informações no site do MinC apud Leite (2012) complementa
que ponto de cultura “é o ponto nodal a partir do qual, em interação com outros pontos, começa a
construir uma rede não hierarquizada de trocas entre os pontos, e ganham um novo impulso suas
iniciativas junto às suas comunidades pela ampliação de suas relações, contatos, parcerias”; o que sem
dúvida incorpora as juventudes. Portanto, voltar o olhar a projetos que incentivem ações desta natureza
faz-se de extremamente relevância, uma vez que estimula e busca difundir a democratização cultural.
Ainda nesta mesma perspectiva, Turino (2010) enfatiza que os pontos de cultura “potencializam
iniciativas já em andamento, criando condições para um desenvolvimento alternativo e autônomo, de
modo a garantir sustentabilidade na produção da cultura. É a cultura entendida como processo e não
mais como produto”.
Os pontos de cultura são espaços que valorizam as diversidades das culturas juvenis, onde suas
produções são reconhecidas como resultados da sociedade a que pertencem. Por isso, esta sensibilidade
ao reconhecimento dos jovens enquanto participantes ativos nas comunidades a que pertencem,
imprime nestes a valorização da autoestima assim como o exercício do desenvolvimento de
potencialidades humanas, primordiais a esta faixa-etária.
Contexto atual
Um forte exemplo de amadurecimento cultural dos jovens pode ser evidenciado por meio dos
protestos que estão ocorrendo atualmente no Brasil que vive um momento histórico em que grandes
mudanças são almejadas pela população a qual tem lotado as ruas para protestar por diversos motivos7,
contrariando o senso comum que definia as juventudes com passivas e adormecidas, que suas
manifestações eram apenas através da tela do computador/celular. “Os manifestantes realizaram um
evento político: disseram não ao que aí está, contestando as ações dos poderes executivos municipais,
estaduais e federal, assim como as do poder legislativo nos três níveis” (CHAUÍ, 2013).8
7 Dentre os diversos motivos das causas dos protestos podemos destacar os seguintes: 1- melhores condições nos
transportes públicos; 2- mais investimentos na saúde pública; 3- destinação de 10% do PIB para a educação; 4- fim da
corrupção; 5- fim do fórum privilegiado, sob a alegação que é um ultraje ao Artigo 5º da nossa Constituição; 6- não
aprovação da PEC 37, que faria com que o poder de investigação fosse exclusivo da Polícia Federal e Civil, retirando a
atribuição do Ministério Público e outros órgãos; 7- saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso
Nacional; 8- imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa do Mundo, pela Polícia Federal e
Ministério Público Federal; 9- criação de legislação que torne corrupção no Congresso crime hediondo. Os protestos foram
encabeçados por jovens indignados com o aumento da tarifa de ônibus, iniciaram em São Paulo e tomou todo o país. Vale
ressaltar que, como as notícias sobre os protestos corriam, principalmente, pelas redes sociais, é difícil precisar todas as
causas reivindicadas. Retirado das redes sociais nos períodos de 1º a 30/jun./2013.
8 CHAUÍ, Marilena é filósofa e professora na USP. Apresenta seu ponto de vista sobre as manifestações de 2013 no artigo
Essa atitude demonstra que é justamente o acesso à cultura, o acesso às informações que
possibilitam os jovens desenvolverem o pensamento crítico, levando-os à busca de tornarem-se sujeitos
de suas histórias, é isso que os movem para se articularem em busca de melhorias, lutarem por seus
direitos, mais que isso, se tornarem detentores de direitos. Neste sentido, Silva [s.d.] reforça: “a
participação requer conhecimento e competências educacionais básicas, negar a oportunidade de
escolarização a algum grupo é contrário às condições elementares da liberdade participativa”.
Para tanto, é importante uma estruturação que constitua mecanismos de fortalecimento da
classe juvenil, uma vez que organizados em massa, conseguirão maior visibilidade, prova disso é que a
mobilização dos jovens já surtiu efeitos positivos, levando as juventudes a conquistar espaço. Embora
as mudanças ainda sejam tímidas, o fato de as juventudes entrarem na pauta, conseguir dialogar com o
governo e apresentar suas demandas é um passo importante para a consolidação das etapas posteriores;
mas é preciso atentar ao fato de que a ampliação da política continua tendo como obstáculo a
transversalização. Portanto, é importante que sejam estabelecidos diálogos e parcerias, tanto do
governo com os jovens, como, entre as Secretarias e Conselhos, isso facilitará significativamente o
fortalecimento das políticas públicas para as juventudes.
Nesta vertente, Turino (2010) enfatiza que o papel do Estado vai muito além de abrir espaço na
agenda para as juventudes e explica que
[...] ouvir a demanda, porém, é insuficiente. É preciso ouvir como fazer, assegurar voz
e autonomia, respeitar o protagonismo, empoderar. Para que esta relação entre Estado
e os agentes da sociedade não seja aparente e aconteça de forma unidirecional, com
diálogos desiguais (em razão do desnivelamento de informação e poder), é necessário
urdir redes; muitas redes, redes intermediárias, por afinidades, territórios, públicos,
linguagens, interesses; redes que se interconectam. Em rede a sociedade ganha força.
O programa Cultura Viva pressupõe a gestão e articulação em rede. Com gestão em
rede se estabelece uma outra prática em política pública, podendo gestar um novo tipo
de Estado. Um Estado que aprende a conversar com o movimento social de uma
outra forma, não como controlador ou provedor, mas como parceiro orgânico,
integrado na rede.
Assim, faz-se necessário que os jovens estejam atentos para não se deixarem levar por
manobras políticas, em que ações de assistencialismo são enfatizadas desencadeando assim, uma relação
de dependência; daí a importância do acesso ao capital cultural, pois é ele quem oferece mecanismos
para a sustentação de um pensamento crítico, em que se prima pelo não conformismo, onde a luta pelo
empoderamento deve ser uma constante na vida da sociedade.
Outro fator positivo, muito cobrado durante as manifestações, foi a aprovação do Estatuto da
Juventude, em 7 de julho de 2013; embora esta demanda venha sendo reivindicada há muito tempo, a
pressão pode ter facilitado seu processo de aprovação. A regulamentação do Estatuto é uma grande
conquista para os jovens, assim, normatiza seus direitos, princípios e propõe diretrizes para
implementação de políticas públicas para as juventudes.
O Estatuto da Juventude não anula o Estatuto da Criança e do Adolescente, aos que estão na
idade entre 15 e 18 anos, pelo contrário, ele vem a somar, sendo aplicado para esta faixa etária quando
não confundir com as normas de proteção integral do adolescente. Dentre suas principais temáticas
voltadas para as políticas de acesso à cultura estão:
→ destinação de recurso, pelo poder público, ao fomento de projetos culturais destinados aos
jovens e por eles produzidos, considerando suas especificidades em relação à ampliação do acesso à
cultura e à melhoria das condições para o exercício do protagonismo no campo da produção cultural;
→ direito à cultura, incluindo a livre criação, o acesso aos bens e serviços culturais e a
participação nas decisões de política cultural, à identidade e diversidade cultural e à memória social, em
que a política de acesso aos locais e eventos culturais deve ser estimulada, mediante preços reduzidos
em âmbito nacional, com direito a meia-entrada em salas de cinema, cineclubes, teatros, espetáculos
musicais e circenses, eventos educativos, esportivos (exceto os que tratam das Leis nº 12.663, de 5 de
junho de 2012, e nº 12.780, de 9 de janeiro de 2013), de lazer e entretenimento, em todo o território
nacional, para jovens de até 29 anos, pertencentes a famílias de baixa renda, com limite de 40% do total
de ingresso, por evento;
→ participação na elaboração dos Planos Nacional, Estaduais e municipais de Políticas de
Juventudes, em parceria com os Estados, Distrito Federal, Municípios e a sociedade.
Portanto, é relevante que os jovens, em meio a esta nova conjuntura, em que “acordaram” para
lutar por seus direitos, não deixem que as conquistas e o desejo de mudança se percam, que continuem
buscando reconhecimento de uma nova autonomia “com atos concretos de participação e afirmação
social; protagonista, articulada em rede, modificando relações de poder e gerando empoderamento
social como exercício de liberdade” (TURINO, 2010, p. 68). Ações desta natureza impulsionam os
jovens a visualizarem-se com sujeitos de direitos. É importante ressaltar que este tipo de articulação não
seria possível se não fosse por meio de acesso às informações, a clareza de ideias; tão importantes para
alavancarem tamanha mobilização.
Mas, faz-se imperativo que esta cobrança pelos tão “gritados” anseios precisa de uma
organização política, ainda que para isso seja necessário reformular a atual conjuntura política, visando
um novo modelo de democracia. Neste sentido, Chauí (2013) corrobora, “ninguém governa sem um
partido, pois é este que cria e prepara quadros para as funções governamentais para concretização dos
objetivos e das metas dos governantes eleitos”. É dispensável lembrar que ferramentas e mecanismos
para isso já temos, não foi por acaso que as “convocações”, por meio das redes obtiveram tamanha
aderência e sucesso, basta saber usá-los.
O caso de Palmas
O Programa Cultura Viva intenta promover ações que favorecem a articulação de políticas
destinadas às juventudes por meio de pontos de cultura. Portanto, é significativo estudar seu histórico
analítico em Palmas, buscando apresentar sua relevância enquanto fomentador de projetos que prestam
assistência às juventudes, sob a visão de que este tipo de programa não deve ser encarado como
dispendioso, mas com um investimento social. Além disso, investigar, ainda, se a ações propostas pelo
programa realmente atingem seu público-alvo e quais os mecanismos utilizados para a garantia do
sucesso destes, é importante para uma melhor avaliação deste programa.
O programa Cultura Viva em parceria com o município Palmas possui dez pontos de cultura,
distribuídos principalmente entre os extremos norte e sul da cidade, onde há maior concentração de
pessoas de baixa renda, com exceção de um ponto localizado na região central e outro na zona rural.
Os pontos oferecem à população diversas atividades como teatro, violão, teclado, dança de rua,
percussão, bateria, dança popular, violino, quadrilha, cinema, leitura, redação, artesanato, reciclagem,
entre outras; o que confirma a relevância destes programas para o processo de interação, formação
sociocultural, instrutiva e, possivelmente, financeira, oportunizando aos jovens menos favorecidos
construir de caminhos e projetos de vida.
Segundo informações da Fundação Cultural de Palmas, os dez pontos que fazem parceria com a
rede municipal estão em pleno funcionamento. Em entrevista, Luciane de Marque de Bortoli 9, explica
que os pontos de cultura
[...] desenvolvem ações de impacto sociocultural em suas comunidades. São geridos
por instituições não governamentais, selecionadas por meio de edital público. As
entidades passam a receber aportes de recursos liberados em três parcelas de R$
60.000 para aplicação conforme o plano de trabalho próprio e que o atual convênio
está no segundo ano de execução dos projetos.
Os convênios são firmados a partir de seleções realizadas por meio de chamamento público, em
editais lançados pelo MinC, pelos governos do Estado ou pelas prefeituras. Os pontos de cultura não
possuem um modelo padrão de instalações físicas, já que utilizam as estruturas de instituições não
governamentais. As atividades também não possuem modelo único, e são previstas nos projetos de
acordo com a demanda da região/bairro em que são desenvolvidas. Neste sentido, Barbosa e Araújo
(2009) reforçam que os pontos de cultura “não procuram padrões culturais que sirvam de referência à
excelência. Simplesmente avançam na ideia de reconhecer as comunidades e o associativismo cultural
como elementos dinâmicos”.
Embora os gestores de alguns pontos de cultura mostrassem bastante receptivos, houve
resistência por parte de outros para visitação aos locais e, alguns, não foram possíveis localizar, pela
9 Luciane de Marque de Bortoli é Diretora de Convênios da Fundação Cultural de Palmas. Entrevista concedida em
10/mai./2013.
falta de atualização dos contatos; assim, não se conseguiu conhecer todos os pontos de cultura de
Palmas. Mas dos que foram visitados10, pode-se registrar que a participação dos jovens nas atividades
desenvolvidas é predominante; as atividades são desenvolvidas em parcerias com associações, igrejas e
comunidade; que há uma preocupação em incentivar a permanência dos participantes nas escolas,
embora não haja exclusão dos que não estão estudando; a maioria das atividades é destinada a crianças e
jovens de até 18 anos, a oferta de atividades a outras faixas etárias ainda é tímida.
Um dado que chamou atenção foi constatado no ponto Ideia Cultural, que fica localizado na
região central da cidade; de acordo com seu coordenador, uma das maiores dificuldades em
implementar as atividades é a participação do público a quem são destinadas, uma vez que as pessoas
que moram naquela região já têm acesso a outras formas de atividades culturais e recreativas e, embora
disponha de programações riquíssimas como cinema, cursos de teatro e organização de espetáculo,
aulas de leitura e redação e oficina de costura, a procura pelas atividades oferecidas ainda é pouca. Já, os
demais pontos de cultura visitados, que ficam nas regiões com pessoas de rendas mais baixas, têm uma
demanda intensa; suas atividades são bem disputadas e a participação de seu público é bastante ativa,
atendendo cerca 560 alunos, com destaque ao ponto de cultura Arte Fato, o qual tinha em seu projeto
inicial o objetivo de atender a 300 alunos e, atualmente, oferece 400 vagas distribuídas entre oficinas de
teatro, dança de rua, percussão, violão, bateria, dança popular e teclado.
A maioria das atividades oferecidas nos pontos de cultura é demandada pela própria
comunidade, o que fortalece seus aspectos culturais no sentido de incentivar a fruição e a difusão da
cultura. Além disso, faz parte de suas atribuições analisar os resultados e impactos socioculturais e
colher dados que indiquem a satisfação da comunidade local, isso contribui à implantação das atividades
e, consequentemente, para o sucesso destas. Barbosa e Araújo (2009) enfatizam, “é necessário lembrar
que boa parte da produção só se completa no consumo e este se refere ao movimento relacionado ao
gosto e às utilidades dos bens e produtos consumos. Ou seja, à realidade de produção deve-se adicionar
a do consumo”. Assim, não foi detectado nenhum dado relevante das atividades preferenciais dos
jovens, já que a preocupação em oferecê-las em consonância com a realidade e aspirações da
comunidade é considerada.
O público geralmente é constituído por pessoas da comunidade, de baixa renda e que têm
pouco acesso aos meios de cultura, esta inclusive é uma política do programa, constituindo-se como
característica em todo o país. Leite (2012) ressalta,
[...] observando a programação dos pontos de cultura e o que eles disponibilizam em
equipamentos, percebe-se que são ofertados bens e serviços culturais pertinentes aos
interesses dos jovens, sobretudo considerando que esses centros culturais, em grande
parte, se encontram em regiões cuja maioria da população é de baixa renda, ou lidam
10Foram visitados quatro pontos de cultura entre os dias 14 e 25 de maio, sendo eles: Arte Fato, Cabana Cultural, Cordas
do Tocantins e Ideia Cultural.
com um público com pouco acesso a atividades tanto para a produção como para a
fruição.
Além disso, percebe-se que os pontos de cultura, promovem a integração de seu público,
reforçando laços de convívio social; investe na formação de agentes multiplicadores, numa perspectiva
de reconhecer os sujeitos como cidadãos, estimulando-lhes as aptidões pessoais e profissionais, no
intuído de oferecer dignidade aos alunos. Neste sentido, os pontos de cultura também têm um
importante papel social de resgatar o jovem da vitimização de um contexto de pobreza que o rodeia
para a reinserção social e, até mesmo, econômica. “Desta forma, a cultura pode ser tomada como um
fenômeno vivo, dinâmico, capaz de animar a vida econômica e simbólica das sociedades” (BARBOSA e
ARAÚJO, 2009, p. 237).
Para Jocel Santiago11,
[...] os pontos de cultura contribuem para o desenvolvimento da cidadania, mudança
de postura, interação social, rendimento escolar, capacitação pessoal, inclusive ex-
alunos e professores das oficinas integram o quadro de professores das escolas de
tempo integral e todos os nossos instrutores são ex-alunos da associação. O projeto
promove mudança social, interferindo de forma positiva na formação dos jovens.
Considerações finais
Entende-se que o conceito de juventudes tem se firmado com mais consistência, sustentando a
tese de que há um universo plural que as rodeiam. Apresentar um julgamento enquadrando e/ou
delimitando o jovem revela falta de um pensamento mais aprofundado sobre o assunto. Bourdieu apud
Castro e Abramovay (2002) já defendia muito sabiamente que “seria um abuso de linguagem referir-se a
uma juventude, quando os universos culturais de distintos jovens são tão diferentes”.
As políticas públicas e as políticas de cultura ainda recebem pouca atenção dos governos. Há
que se reconhecer que na última década tivemos avanços significativos, mas ainda longe de atingir o
ponto ideal. Quando tratamos de políticas públicas de cultura para as juventudes, faz-se necessário
compreender que os debates precisam ser intensificados levando em consideração que elas são plurais,
11Jocel Santiago de Araújo é presidente da Associação Ação Social Jesus de Nazaré, na Quadra 405 Norte, onde fica o
ponto de cultura Arte-fato. Entrevista concedida em 14/mai./2013.
dinâmicas e estão em formação; portanto, seu contexto deve ser considerado, pois uma política que deu
certo em uma terminada região pode não apresentar sucesso em outra.
Outro fator importante e até desafiador é a transversalização das políticas. Implementá-las sem
um planejamento, sem conversa e parceria entre os conselhos, secretarias, governos e jovens seria um
caminho um tanto arriscado. Logo, é importante incentivar o aprendizado do “fazer políticas” como
um ponto indispensável para uma melhor construção destas.
Em relação aos pontos de cultura de Palmas, podemos tomá-los como exemplos de que tantos
as políticas públicas universais como as políticas setorizadas como as de cultura são essenciais à
sociedade civil. São ações dessa natureza que estimulam a prática da democratização de acesso aos bens
culturais incentivando as potencialidades de jovens de classes menos favorecidas, legitimando a ideia,
como bem canta Titãs12 apud Castro e Abramovay (2002) de que “a gente não quer só comida, a gente
quer comida, diversão e arte”, em que nossas necessidades vão além do imediatismo de sobrevivência
(comer e beber), mais que isso, precisamos viver, e, em sentido mais amplo.
Mas, há de se reconhecer que os investimentos nas políticas públicas de cultura ainda são
frágeis. Há uma dependência muito grande do governo para que as ações sejam implementadas e
continuadas, quando já estão em andamento. Portanto, é considerável repensar uma melhor
consolidação destas políticas no sentido de fomentar ações de empoderamento e legitimação das
juventudes. “Este é um caminho diferente de inclusão e sustentabilidade social, e envolve não somente
a capacitação a partir da vocação cultural de cada grupo, como também de um processo de inclusão
social, digital, cultural, econômica e política” (TURINO, 2010, p. 74). Portanto, a construção deste
caráter emancipador social, é possível, desde que haja investimentos sólidos de recursos por parte do
governo às políticas públicas e de cultura, priorizando-as como necessidade básica da sociedade civil e
não o contrário, como privilégio de poucos.
Referências
CASTRO, Jorge Abrahão de; AQUINO, Luseni Maria C. de; ANDRADE, Carla Coelho de (Orgs). Juventude e
políticas sociais no Brasil. Brasília: Ipea, 2009.
CASTRO, Mary Garcia e ABRAMOVAY, Miriam. Por um novo paradigma do fazer políticas de/para/com juventudes.
Revista Brasileira de Estudos de População, v. 19, nº 2, jul./dez. 2002.
DENCKER, A. F. M. Métodos e técnicas de pesquisa em turismo. 5. ed. São Editora Cortez.
Diário Oficial da União. Seção 1 nº 97, de 23 de maio de 2005.
FREITAS, Maria Virgínia de; PAPA, Fernanda de Carvalho (Orgs). Políticas públicas: juventude em pauta. São Paulo:
Cortez, 2008.
________. Juventude em pauta: políticas públicas no Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2012.
12Titãs é uma banda de rock brasileira formada em São Paulo em 1981, a música Comida foi lançada em 1987 como forma
de protesto à ausência de valorização da cultura e arte no Brasil. Disponível em http://www.titas.net/historia/ acesso em
16/jul./2013.
LAHERA P., Eugênio. Política y Políticas Públicas. Revista CEPAL - Série Políticas sociales. Naciones Unidas,
Santiago de Chile v. 95 p. 2004.
LIMA, Telma Cristiane Sasso de; MIOTO, Regina Célia Tamaso. Procedimentos metodológicos na construção do
conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Revista Katalysis, v. 10, p. 35-45, 2007.
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Revista Sociologias, Porto Alegre, ano 8, nº 16, jul/dez
2006, p. 20-45.
SILVA, João Oliveira Correia da. Amartya Sen – Desenvolvimento com Liberdade. Faculdade de Economia do Porto.
[s. d.].
TURINO, Célio. Ponto de Cultura – o Brasil de baixo para cima. São Paulo: Anita Garibaldi: 2010.
http://mais.cultura.gov.br/2009/02/09/410/ acesso em 28/jun./2013.
http://www2.cultura.gov.br/culturaviva/ acesso em 28/jun./2013.
www.juventude.gov.br/conjuve/ acesso em 17/mai./2013.
Introdução
O
Programa de Educação Tutorial constitui um instrumento complementar na formação
acadêmica dos estudantes de graduação. O referido programa busca propiciar condições
para realização de atividades extracurriculares, procurando atender o tripé que sustenta a
Universidade: a Pesquisa, o Ensino e a Extensão.
Segundo o Manual de Orientações Básicas (2006), as atividades extracurriculares objetivam
garantir aos alunos do curso oportunidades de vivenciar experiências não presentes em estruturas
convencionais, tendo como base a formação global e favorecendo a formação acadêmica. O Programa
de Educação Tutorial do curso de Engenharia Ambiental (PET-EAmb) foi criado para amplificar o
conhecimento do estudante universitário buscando sempre disseminá-lo a toda comunidade. O PET-
EAmb é composto por doze alunos bolsistas, um aluno voluntário e um professor Tutor, cada
integrante têm como prioridade o bom desempenho acadêmico, estar envolvido em um projeto de
pesquisa referente ao curso e repassar o conhecimento adquirido para a comunidade no formato de
extensão universitária. O grupo possui um planejamento anual de eventos relacionados ao curso e de
atividades interdisciplinares que devem ser desenvolvidas no decorrer do ano.
Segundo Arcoverde (2008) desde a época de Platão o teatro tem o intuito de educar, visto que
esse movimento de expressão dramática era estudado com valores didáticos e um importante
instrumento educacional. O conceito de educar a partir do movimento cultural, teatro, é ao mesmo
tempo tão antigo quanto recente, hoje utilizam esta ferramenta para fixação do aprendizado, onde se
pode aprofundar a percepção da realidade num formato criativo e didático. Aredes et. al. (2004) acredita
1 Graduandos em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Tocantins e Bolsista do Programa de Educação
Tutorial Engenharia Ambiental - PETEAmb;
2 Professor do curso de Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Tocantins e Tutor do Programa de Educação
que com o teatro há várias maneiras de observar um assunto e que mais tarde pode ajudar na
transformação humana.
Os anseios do bem estar, interesses individuais e coletivos da sociedade, crescem
concomitantemente a velocidade de degradação ambiental, gerando sempre resíduos poluidores,
destruição de habitats naturais, contaminação da água, do ar e do solo, ameaça a fauna e flora, problemas
e prejuízos ambientais que aguçam as incertezas futuras da prosperidade humana. De fato a solução
existente de caráter prático que pode ser acessada por todos, englobando diversos fatores com
respostas rápidas ao tempo é a Educação Ambiental.
O referido trabalho está disposto em dois temas que se complementam, o Teatro e a Educação
Ambiental. O primeiro está voltado à criatividade de apresentar um conteúdo e o segundo se instaura
na problemática a ser apresentada no intuito de educar. Os textos teatrais são de fácil entendimento,
com assuntos sobre impactos ambientais regionais, tais como: Resíduos Sólidos e Queimadas.
Metodologia
Foi acordado em reunião ordinária do grupo PET-EAmb que uma das ações desenvolvida no
ano seria a Educação Ambiental no formato de Teatro. O grande desafio seria como proceder às
atividades artísticas individuais, partindo da escolha do assunto abordado, seguida pela escrita do texto
e por fim a apresentação cênica. Para facilitar o planejamento a atividade foi dividida em tópicos de
interesse:
a) Escolher a temática ambiental a ser abordada;
b) Pesquisar o método de escrita para teatro;
c) Escrever o texto teatral;
d) Escolher as escolas em Palmas de Ensino Fundamental;
e) Ensaiar a peça teatral;
f) Criar o cenário;
g) Apresentar o teatro.
A escolha do tema ambiental abordado foi de fácil discussão pelo grupo visto que
problemáticas ambientais são de conhecimento de todos do curso de Engenharia Ambiental. Já os
ensaios, os cenários e as apresentações nas escolas teve maior dificuldade visto que alguns integrantes
nunca apresentaram teatro, mas a ideia foi alcançada e os alunos compreenderam a real situação do
meio ambiente.
O texto intitulado “Lixo Amigo” tem como contexto Resíduos Sólidos, onde atitudes
incorretas como jogar o lixo no chão levam a grandes consequências e prejuízos ambientais. Foi
apresentado para todas as turmas de Ensino Fundamenal I e II da Escola Municipal Mestre Pacífico
Siqueira Campos conforme a Figura 01 e Figura 02. No final de cada apresentação a moral da história
era debatida entre os atores e plateia.
A segunda peça teatral foi apresentada no Colégio Marista de Palmas/Tocantins, com o tema:
“Foco na Queimada”, Figura 03 e Figura 04. Esse texto envolveu personagens do folclore brasileiro, o
curupira e a caipora que são seres que defendem a natureza, e o grande vilão do estado, a queimada
descontrolada. Percebeu-se que as crianças do Ensino Fundamental I se sensibilizaram com a história,
tiveram participação e discussão em cada momento das cenas do teatro.
Resultados e discussões
Tabela 1: Descrição dos Impactos causados pelo Resíduo Sólido e pela Queimada.
IMPORTÂNCIA DA ABORDAGEM DOS ASSUNTOS
Assunto Impacto Ambiental Impacto Social
- Contaminação do lençol - Habitat para vetores de
freático; doenças;
- Contaminação das águas - Odor desagradável;
Resíduo Sólido
superficiais; - Acumulo de lixo;
- Contaminação do ar; - Infecções.
- Contaminação do Solo.
- Redução da Biodiversidade; - Queda de fuligem;
- Morte de animais; - Problemas respiratórios;
- Morte de vegetais; - Risco de queimaduras;
Queimadas
- Erosão; -Perda na produtividade
- Desertificação; agrícola.
- Poluição do ar.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Manual de orientação báscias. 2006.
ARCOVERDE, S. L. M. A Importância do Teatro na Formação da Criança. PUCPR, 2006.
AREDES, A. P.; ANIZ, R. M. C.; PEDRAO, M.A.; LANDIN, P.M.G.; GOMES, G. M.; O papel do Teatro na
Escola Pública: o Caso da Escola Estadual Nair Palácio de Souza. In: Congresso Brasileiro de Extensão
Universitária. UEMS, 2004.
Felipe V. G. Brandão1
Introdução
N
a etapa final de minha graduação, vi-me às voltas com a necessidade de fazer algum tipo de
pesquisa a partir do qual desenvolvesse minha monografia. Durante minha formação já
apresentava uma vontade de trabalhar com a literatura sobre consumo e escrever a
monografia seria a oportunidade de realmente explorar o tema. Apesar de ser músico, sempre tive uma
espécie de rejeição a escolher um objeto de estudo que fosse relacionado ao meio musical, por temer
que o exercício intrínseco a prática antropológica, o estranhamento, fosse tirar o prazer de um dos
meus hobbys. Seja por ironia, seja por meus interesses terem falado mais alto, acabei escolhendo como
objeto empírico os discos de vinil. Ou seja, seria obrigado a discutir o que eu tanto temia como objeto
de estudo. Ainda que pelo viés do consumo, a música estaria presente em meus trabalhos e, como se
provou mais tarde, de maneira ainda mais impositiva do que eu imaginava.
Assim, usando despretensiosamente uma rede social na internet, deparei-me com a seguinte
manchete indicada por um amigo: “A volta do vinil: Deckdisc lança quatro discos esta semana”. Não
tendo sido suficiente ter me deparado com esta notícia um pouco anacrônica, minha sensação de estar
deslocado no tempo aumentou ao reparar que ela havia sido publicada em janeiro de 2010. Iniciei a
leitura, ainda um pouco impressionado e, para aumentar minha surpresa, a matéria discorria sobre o
histórico muito recente do processo de reabilitação da fábrica em questão, iniciado em 2007. Passei
então a buscar links e matérias sobre esta aclamada "volta do vinil" e em pouco tempo percorri diversos
sites, percebendo toda uma movimentação no mercado musical em torno do vinil. Apesar do conteúdo
das matérias estar recheado de informações sobre vendas, números, balanços, discussões sobre
mercado, uma outra coisa me chamou mais atenção. Havia inúmeros relatos sobre uma espécie de
"paixão", "devoção", "sacralidade" em torno do vinil. Pessoas que nunca tiveram contato com vinil,
passando a desejá-lo. Pessoas que jogaram toda sua coleção no lixo nos anos 90, voltando a colecionar.
Pessoas, que nunca pararam de colecionar, eufóricas com as novas prensagens. Enfim, porque um
objeto que para muitos estava fadado ao esquecimento voltou a encantar tantos ouvintes? Diante do
material coletado em uma pesquisa prévia, a chamada netnografia, minha pergunta inicial foi: afinal de
contas, que tipo de contribuição o reaparecimento e o retorno dos velhos discos de vinil podem
oferecer aos estudos contemporâneos sobre o consumo de bens culturais? Sei que para alguns esta
pergunta pode parecer trivial ou demasiado arbitrária, mas farei um grande esforço para mostrar como
estes objetos podem dizer alguma coisa sobre nós e vice-versa.
Talvez o leitor deste texto já seja um entusiasta do vinil e esteja achando um tanto quanto
ingênua minhas indagações. Ou então, não considere que um objeto "obsoleto" possa ter questões de
alguma relevância sociológica. Neste caso, preciso me alongar um pouco sobre onde pretendo situar
este trabalho dentro das diversas possibilidades de bibliografia. Para tanto, me reportarei aos estudos
sobre consumo nas Ciências Sociais que muitas vezes são relegados a um segundo plano ou
questionados sobre sua legitimidade acadêmica. Apesar deste campo ter passado por um grande
desenvolvimento nas últimas décadas, ainda existem acusações de que essas pesquisas buscam justificar
o consumismo e a frivolidade. A questão é que os estudos sobre consumo podem se apresentar tão
fundamentais ao tentar entender nossa sociedade, quanto categorias como trabalho, por exemplo. A
proposta aqui é entender o consumo para longe do sentido de ‘consumismo’, ‘exaustão’, ‘compra’, e ir
em direção de ‘que usos se fazem das coisas’ (BARBOSA; CAMPBELL, 2006).
Dentro dos estudos sobre consumo, corre a expressão “Bias Produtivista” (MILLER, 1995)
para designar uma tradição teórica que valoriza a análise da produção da sociedade capitalista em
detrimento do estudo do consumo. Digo ‘em detrimento’, pois esta oposição não apenas separa
consumo e produção em duas esferas estanques, como também as qualifica em lugares bem distintos da
dinâmica social. A produção seria criativa, agregaria valor e estaria diretamente ligada a uma das chaves
a se compreender a sociedade como um todo: o sistema de estratificação social. Enquanto isso, o
consumo seria destrutivo e alienador, um empecilho para que se entenda a base que sustenta toda a vida
social. Ainda como apontaram Campbell e Barbosa, “as oposições entre dádiva e mercadoria, troca e
mercado, entre feitichismo e utilidade e entre generosidade e interesse”, presentes em grande parte da
literatura das Ciências Sociais, reforçam de maneira mais contundente a suposta oposição entre
produção e consumo. O ponto é que a sociedade não é dividida entre consumidores e produtores,
muito menos suas condições são excludentes. Produz-se a partir de um sistema de consumo e
consome-se a partir de um sistema de produção.
Uma maneira de se entender consumo na contemporaneidade e, que vai auxiliar muito este
trabalho, é a ciência do gosto e do consumo cultural (BOURDIEU, 2011). A argumentação de
Bourdieu passa por tentar desnaturalizar o gosto, tentar descontruir o argumento de que ele seja fruto
de uma empatia pura. Um agente social vai interpretar determinada obra a partir de seus referentes
culturais e é preciso uma competência cultural específica para que se tenha uma percepção estética
determinada. Sua análise, porém, vai privilegiar a classe social como a instituição genuína para a
construção das disposições estéticas, diferentemente deste trabalho. Um dos panoramas colocados pelo
autor, é que estas disposições estéticas além de serem fruto de uma construção cultural incorporada
pelo agente social, também produzem as próprias práticas sociais. Agora, é importante ressaltar que a
disposição estética também é uma “expressão distintiva de uma posição privilegiada”, ou seja, além de
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1051
suscitar uma práxis específica, esta objetividade posiciona o agente em seu espaço social. Ou seja, o
gosto é uma forma de distinção social.
Bem, outra questão que acredito ser central nesta discussão é a do objeto em si, sua
materialidade e o que ela implica. Apesar de uma parte da literatura do consumo enfatizar como nos
expressamos através das coisas, como elas constroem nossa identidade e como nos relacionamos com
outras pessoas através de coisas, gostaria de discorrer aqui como os objetos também nos constroem.
Talvez tenha sido Marx (MARX, 2012) uma das primeiras grandes referências a chamar atenção para o
objeto em si, a mercadoria. Seu texto vai enfatizar como as mercadorias não são algo alheio ao seu
ambiente social, como os objetos incorporam também relações sociais. Apesar de enxergar o processo
de produção na sociedade capitalista como desumanizante, onde o trabalhador não se reconhece na
mercadoria, vamos nos ater, nesta contribuição de Marx, ao apontamento de que a mercadoria
incorpora relações sociais. Pois bem, ainda dialogando com Marx, Benjamin (1987) pode nos aproximar
às especificidades do vinil como um objeto socialmente construído. O autor vai pensar a obra de arte a
partir de sua reprodutibilidade técnica. Benjamin vai apontar que além de terem uma “estrutura física”,
as obras de arte também possuem uma “relação de propriedade em que ela ingressou”, onde seus
vestígios são “objeto de uma tradição, cuja reconstituição precisa partir do lugar em que se achava o
original”. O autor afirma haver uma “aura” envolta ao objeto de arte, onde parece aproximar o agente
social das propriedades autênticas, ao “aqui-e-agora” da tradição original. Todavia, sua análise irá
considerar a reprodutibilidade técnica da obra de arte um aspecto negativo, onde a “existência única”
vai dar lugar a uma “existência serial” e, consequentemente, a obra terá sua “aura” atrofiada, perdendo
seu valor tradicional. Essa indicação de atrofia da “aura”, nos vai ajudar a pensar mais adiante as
transformações passadas pelo vinil.
Metodologia
Os dados e reflexões que compõem este artigo fazem parte de uma pesquisa ainda em curso,
iniciada em janeiro de 2013. Meu trabalho de campo começou no mesmo dia em que li a primeira
reportagem sobre a venda de vinis. A partir daí fui iniciando um mapeamento do campo no sentido de
entender por onde circulavam os colecionadores e o próprio disco de vinil: feiras, lojas, sebos,
ambulantes, festas, coletivos, reportagens, sites. Além de ter iniciado um acompanhamento dos
ouvintes a partir de uma observação de perto e de dentro (MAGNANI, 2002), até agora já percorri
mais de 70 reportagens, 35 lojas e iniciei o processo de gravar entrevistas em profundidade.
Primeiramente, minha opção foi de iniciar uma observação participante. Minha intenção seria
etnografar as práticas destes usuários do LP e construir minha pesquisa a partir de algum possível Clube
do Vinil. Porém, uma das primeiras constatações foi a inexistência (pelo menos até agora) de algum
clube desses nas cidades do Rio de Janeiro ou Niterói. A ideia de acompanhar ouvintes em suas
audições se tornaria um desafio, já que suas vitrolas se encontram em um território mais privado: suas
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1052
casas. Minha primeira saída, então, foi me concentrar na abordagem de lojistas. Porém, ao contar a
colegas de universidade minhas intenções passei a perceber que muitos deles já colecionavam LP’s e
esta tem sido minha importante porta de entrada para o mundo dos vinis, já que, passei a constatar
mais tarde que não se convida "qualquer um" para escutar um disco em sua casa.
Em seguida, outra constatação foi a de que não se fala de outra coisa que não seja música
quando se está na presença de um colecionador de vinil. Como tenho podido observar, definitivamente
todos os meu interlocutores costumam narrar uma série de histórias e fatos são evocados (seja da
fabricação do disco, se vendeu bem ou encalhou, a pior ou melhor fase do artista, etc.). Se tivesse
mesmo a intenção de me aprofundar no relacionamento com esses nativos seria preciso dominar um
certo tipo de conhecimento em relação à história de certos artistas, álbuns, gravadoras, ou seja, ter
algum domínio sobre o funcionamento da indústria fonográfica do vinil, o que requer um capital
cultural (BOURDIEU, 2011) específico. Comecei a perceber que existe toda uma literatura nativa
(WACQÜANT, 2002) na qual eu precisaria me iniciar e investir para poder repertoriar meu
posicionamento em campo. Biografias, revistas atualizadas, programas de TV me ajudaram muito na
pesquisa das histórias por trás dos álbuns.
Aliás, foi em episódios como esses que comecei a sentir o quão forte são as questões acerca do
gosto na mediação e na interação entre os colecionadores. Meu principal informante, por exemplo, é
um funcionário da universidade que já convivia há alguns anos comigo. Algumas conversas
despretensiosas sobre música eram travadas quando nos encontrávamos. Por ele ser DJ nas horas
vagas, perguntei quando iniciei a pesquisa se não conhecia colecionadores de discos de vinil que ele
pudesse me apresentar. Para minha surpresa, não só descobri que ele é um colecionador (estima ter por
volta de 3.000 discos), como nossa relação mudou completamente. Ele, até mais entusiasmado que eu,
passou a me contar histórias diversas sobre uma espécie de “cultura do vinil” (categoria nativa)2, como
também passou a me fazer convites para audições de discos em sua casa. Me sentia o tempo todo
convidado a ingressar nessa "cultura do vinil" mencionada por ele, com constantes incentivos a iniciar
minha coleção, chegando ao ponto de ser presenteado com umas das 5 vitrolas que ele guardava em sua
casa.
Já que minha pesquisa e particularmente este texto se iniciaram com relatos sobre a
movimentação da indústria fonográfica em relação aos vinis, creio que vale incluir uma descrição sobre
as alterações ocorridas nos últimos anos e que estão diretamente ligadas às práticas em torno do objeto
estudado.
Em 2008, um acontecimento em específico foi o carro chefe para a crescente atenção da mídia
para os vinis: a compra da fábrica Polysom pela gravadora nacional Deckdisc. Fundada em 1999, a
Polysom chegaria a carregar o título de única fábrica de vinis da América Latina até o seu fechamento
em 2007. Se os anos 90 foram marcados pela interrupção da fabricação de discos de vinil por parte de
todas as grandes gravadoras que atuavam no Brasil, o surgimento da Polysom no último ano desta
década pode ser visto como um indicativo de que, na prática, o consumo de vinil nunca foi
interrompido. Tendo sobrevivido basicamente de prensagens de pequenos artistas independentes e de
uma alta demanda do mercado de música gospel3, a movimentação, ainda que tímida, era um
demonstrativo de que havia consumidores determinados a propagar a ‘cultura do vinil’. E, ao contrário
do que foi anunciado por muitos jornalistas e trabalhadores da indústria fonográfica, o vinil nunca
morreu no sentido que pautavam. Por mais que muitos colecionadores não tivessem acesso a novas
prensagens (a não ser por importações e de tiragens de poucos artistas independentes e gospel), um
mercado de vinis usados estava ativo, ainda que totalmente transfigurado.
Os anos 2000, e principalmente sua primeira metade, foram marcados pela rápida popularização
do acesso à internet e a circulação grátis de cópias virtuais dos CD’s. Este foi o pano de fundo para o
fim da Polysom. Cada dia mais enfraquecida com o acesso grátis às novas formas de escutar música, a
fábrica teve que fechar suas portas em 2007. As pequenas tiragens de artistas independentes e a
migração do mercado gospel quase que totalmente para a área virtual e do CD contribuíram para o fim
da fábrica. O apelo que sustentava a fábrica se esgotou de forma a se tornar insustentável sua
manutenção. Paralelamente, os donos da Deckdisc estavam acompanhando as crescentes vendas do
mercado americano, consolidando em 2008 a compra da Polysom e sua reestruturação.
Apresentar mais detalhes sobre as vendas de vinis no mercado norte-americano pode parecer
deslocado em um trabalho que visa discutir o consumo de vinis no Rio de Janeiro. Porém, por três
razões acredito ser importante passar por este caminho. Primeiro, foi o crescimento de vendas nos
Estados Unidos que encorajou a decisão da Deckdisc. Segundo, existe um instituto de pesquisa, a
Nielsen Soundscan, que computa as vendas de vinil no Estados Unidos. No Brasil, a ABPD4 parou de
computar as vendas de vinis, devido a sua crescente inexpressividade nas vendas dos novos
lançamentos, ainda em meados dos anos 90. Cabe ressaltar que tanto a Nielsen Soundscan quanto a
ABPD apresentam os números das vendas de vinis por parte das grandes gravadoras, ou seja, artistas
independentes não entram nos números destes institutos. Terceiro, muitos artistas que passaram a
3 Segundo uma das entrevistas em profundidade: “O pessoal religioso, parece que no Norte e Nordeste, tinham muitos
senhores que não tinham acesso ao CD ou não sabiam manusear (...) Algumas cidades mais afastadas do Nordeste e Norte
também, interiorzão mesmo, pessoal mais idoso, não tinha acesso ao CD, e não sabia operar o CD”. Até agora esta foi a
única interpretação sobre a predominância do volume de prensagens no mercado gospel no início da Polysom. Vale notar
nesta fala a indicação de uma prática específica de se escutar vinil inserida na distinção das mídias CD-vinil. Como a relação
pessoa-objeto é dialética, onde os objetos culturalmente construídos também constroem nossas práticas.
4 Associação Brasileira de Produtores de Discos. Site: www.abpd.org.br
lançar seus trabalhos no Brasil (sejam brasileiros ou estrangeiros) fazem parte ou tem ligações com
gravadoras multinacionais que atuam no mercado norte-americano.
Em 2007 o instituto Nielsen calculou um total de 1 milhão de vinis vendidos, 15% maior que o
ano anterior. Para entender a computação e a presença de uma venda significativa no mercado
americano é preciso lembrar que, apesar do resfriamento a partir da popularização dos CD’s, a
fabricação e lançamento de novos discos de vinil continuava ainda dentro das grandes gravadoras, ao
contrário do Brasil. Este cenário foi se aquecendo ano a ano, chegando a um total de 4,4 milhões em
2012. Foram dados como esses que encorajaram a Deckdisc a prensar novos artistas e relançar álbuns
clássicos da música brasileira ou do seu próprio casting. Dados mais recentes, de agosto de 2013,
mostram que há um crescimento de 33,5% em relação ao ano anterior e estimam que a venda deva
chegar a 5,8 milhões no final de 2013. No Reino Unido, por exemplo, as vendas de vinil representam
36% do total e, nos primeiros três meses de 2013, já alcançaram 78% de aumento em relação ao mesmo
período do ano anterior. As vendas e receptividade do mercado brasileiro também deram sua resposta:
a Polysom em 2012 passou a operar com um lucro de 13,55%.
Na seção anterior foram descritas algumas movimentações tanto das vendas de vinis nos
Estados Unidos e Brasil, como também um pouco da recente trajetória de uma gravadora (não apenas
uma, mas a única da América Latina) Polysom. Pois bem, essa descrição por si só não consegue atingir
a suposta pretensão deste trabalho que é investigar a aura (BENJAMIN, 1987) em torno dos discos de
vinil. Por mais que levemos a considerar as alterações do mercado, nosso foco aqui é o que as relações
pessoa-vinil podem nos dizer. Seria interessante pensar no sentido de o que se faz, afinal, com estes
discos? Neste caso, mais do que escutar os vinis, é preciso escutar seus ouvintes.
Logo que iniciei a pesquisa tinha a hipótese de que as discussões girariam em torno de gostos
musicais. Isto se confirmou e acredito que esteja presente em todos os discursos analisados até agora.
Porém, há uma outra questão que está o tempo todo sendo pautada e que acredito ser anterior à
discussão dos gostos musicais, que é a própria predileção/especificidade do vinil como mídia em
detrimento do mp3, CD ou fita-cassete, por exemplo. Parece haver um encantamento específico pelo
vinil, principalmente em relação à qualidade do som, como podemos ver nestes trechos selecionados:
“Meu foco é vinil. Não desprezo novas tecnologias, acho todas elas importantes, mas vinil tem
charme” – DJ Sir Dema, em entrevista à Globo News.
“Tem uma qualidade melhor, a profundidade do grave, a quantidade de frequências que você
ouve, a resposta que você tem, a forma como um arquivo não comprimido funciona dentro do seu
ouvido. É mais suave, é mais macio. É muito fácil perceber essa diferença.” – Rafael Ramos, produtor
musical e sócio da Polysom.
“Uma coisa que eu sempre falava com as pessoas, sobre essa história de frequência, que uma
coisa que percebi e continuo achando que, e aí deve ter a ver com frequência, se você escutar o CD
muitas vezes seguidas te cansa. Não sei explicar o quê, mas cansa um pouco. Um vinil, posso escutar,
sei lá, 20 horas seguidas que não cansa. Mas se eu escutar muitos CDs seguidos chega uma hora que eu
quero parar e com o vinil isto não acontece.” – Jorge, dono de loja de vinis em entrevista concedida ao
autor.
“Não tem como negar. Eu acho que a própria passagem do vinil pro CD foi uma grande
enganação, uma mentira. Porque o que o CD prometia era um som de maior qualidade e de uma
durabilidade maior e não tem nem uma coisa, nem outra. Vinil por mais que tenha o chiado, é muito
diferente.” – Betânia, consumidora de vinil em entrevista concedida ao autor.
“É provado tecnicamente que, com certeza, o vinil tem maior qualidade. Não é uma coisa que
vai perceber em toda música. (...) É provado.” – Paulo Rodrigues, DJ de vinil em entrevista concedida
ao autor.
Estes trechos podem servir de referência para pensar melhor os discursos acerca do lugar
diferenciado que é delegado ao vinil em relação a outras mídias. Acredito ser proveitoso interpretarmos
este consumo contemporâneo de vinil a partir de uma teoria do gosto. Neste caso, podemos entender a
opção, ou rejeição, do vinil como uma disposição estética, sendo uma “expressão distintiva de uma
posição privilegiada no espaço social, cujo valor distintivo determina-se objetivamente na relação com
expressões engendradas a partir de condições diferentes” (Bourdieu, 2006). Parece haver uma certa
hierarquia na qualidade do som do vinil ou uma economia das frequências onde no vinil se escuta mais
e melhor. Apesar de todos os informantes citados terem relatado que não dispensam o uso de outras
mídias para audição de músicas, mencionam o vinil como ocupando um lugar especial em relação à
qualidade do som obtido. Mas esta relação não é unilateral, na qual o consumidor elegeu
arbitrariamente um lugar diferenciado para o vinil no campo musical. Este objeto também constrói o
ouvinte e o desloca para uma determinada disposição social. Não é uma relação exatamente entre
consumidores e artista ou consumidores e consumidores, mas uma relação pessoa-objeto. Ao mesmo
tempo que se delega ao vinil um “charme”, como apontou um dos informantes em trecho anterior, esse
mesmo “charme”, de certa forma, empodera simbolicamente o ouvinte do vinil. Se se considera que o
vinil te permite escutar melhor, é também considerado um melhor consumidor.
Já mencionei que os vinis nunca pararam de estar por aí, nos rondando. Ele não se desintegrou.
Por mais que a chegada dos CD’s e a internet tenham passado a predominar, mesmo que o vinil tenha
passado a frequentar mais os porões do que nossa sala principal, ele não desapareceu. A questão é
investigar por quê se fala tanto da "volta" de algo que realmente não se foi. Vamos tomar o termo
“volta” (assim mesmo, entre aspas) como uma categoria nativa. Afinal, que "volta" é esta?
Iniciei uma investigação acerca do que teria acontecido no período em que as vendas de vinil
passaram a crescer significativamente, por volta de 2007 e 2008 e quando também, posteriormente,
aconteceu a reativação da Polysom. Deparei-me com inúmeras adaptações do mercado fonográfico em
prol do vinil, mas ainda não tinha nenhuma hipótese do que poderia ter sustentado tudo isso. Mas foi
conversando com vendedores de vinil que tive um indicativo de que, talvez, teria errado nos anos
escolhidos para análise. Quando perguntados se teriam sentido muita diferença na procura por LP’s nos
anos referidos, todos até agora me alertaram que, na verdade, eles perceberam uma mudança brusca na
procura por vinis já em 2004 e 2005. Pesquisando sobre as movimentações da indústria fonográfica
acerca destes anos, percebi que a grande pauta naquele momento ainda era a adaptação do mercado
musical aos compartilhamentos gratuitos de música pela internet e já um início de respostas positivas
quanto às propostas de venda digital de música. O LP? Quando era citado em alguma reportagem era
para se fortalecer sua inexpressividade e descarta-lo do futuro da música. Agora, tomando como base
os relatos de meus informantes, essa alteração brusca que se notou em torno dos vinis se deu ao
mesmo tempo em que a popularização do compartilhamento online de música estava tão aquecida que
levava à discussão acerca de uma crise do mercado fonográfico. Será que esses dois movimentos teriam
alguma relação?
Minha hipótese é de que para além de ter uma relação, ela não é contraditória. Se considerarmos
o consumo dos formatos de reprodução musical a partir de uma disposição estética, como proposto
anteriormente, como ficaria este processo com uma corrente popularização do acesso a música do
ponto de vista da distinção? Como um ator social, neste caso o consumidor de música, manteria sua
posição dentro do campo musical com as mudanças mencionadas? Parece que não bastaria apenas ter
discografias completas em seu computador, também seria preciso adquirir alguns discos de vinil à sua
coleção. Mas então, se considerarmos isso como explicar o fechamento das portas de Polysom em
2007? Como em pleno aumento na procura de vinis a fábrica fecha alegando que não havia demanda
para manter suas atividades? Primeiro, é preciso comparar superficialmente o que mudou na fábrica
Polysom antes e depois de sua reabertura com a administração da gravadora Deckdisc. Se antes a
Polysom funcionava, majoritariamente, a partir de demandas de artistas independentes e de música
gospel, agora ela funcionaria a partir de prensagens de discos clássicos da música brasileira e de artistas
de grandes gravadoras. O mercado que a antiga e a nova Polysom visavam não são os mesmos. Mas,
afinal, que volta é esta?
A categoria "volta" que está presente tanto em reportagens como nos discursos nativos dos
colaboradores, não deve ser levada tão literalmente. Pensando a partir dos exemplos e indicações
mencionados acima, acredito que esta "volta" do vinil não seja uma volta propriamente dita, mas uma
alteração do significado do vinil e das práticas que envolvem seu consumo. Acredito que essa "volta"
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1057
Referências
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WACQÜANT, L. Corpo e Alma. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002.
O
esporte e o lazer são elementos que surgiram da dinâmica humana, alicerçada na
sociedade moderna. Seja com a função de controle social e de formação do homem
“civilizado”, ou como campo de força e de distinção social, percebe-se que na sociedade
contemporânea o esporte e o lazer são elementos que se apresentam incorporados tanto ao cotidiano
dos indivíduos, quanto na própria estrutura estatal.
Em sua origem o esporte (e o lazer), como explicita Dunning (2010), surge no seio da sociedade
inglesa, deu-se, portanto em virtude do modo como se apresentava o Estado inglês no século XVII.
Dunning relata que:
[...]como Elias ainda mostrou, pelo fato de a Inglaterra ser uma ilha e uma potência
naval, que doravante não exigia mais aquela espécie de imensa burocracia centralizada
que tende a crescer nos Estados continentais onde é necessário um importante
exército de terra para defender as fronteiras. Além disso, na Inglaterra, diferentes
pressões sociais permitiram às classes superiores dos proprietários de terra, a grande e
a pequena nobreza, conservar um alto grau de autonomia e, através do Parlamento,
dividir as tarefas de poder com o monarca. (DUNNING, 2010, p. 98)
Ou seja, o Estado exerce poder sobre os diferentes espaços e campos sociais. No campo de
esporte e lazer, foco de estudo neste trabalho, percebe-se que, por vezes, esses são difundidos com
caráter competitivo, desigual e excludente.
O quadro das regras, incluindo aquelas que eram orientadas pelas ideias de “justiça”,
2Guttmann classifica o esporte a partir de uma concepção histórica, ou seja, analisa o desenvolvimento do esporte através
de uma cadeia evolutiva histórica. Para o mesmo, o esporte é dividido em quatro classes: 1) esporte primitivo, 2) esporte
antigo (gregos e romanos), 3) esporte medieval e 4) esporte moderno.
Trazendo pra a realidade do Brasil, onde serão sediados mega-eventos esportivos, – Copa das
Confederações, Copa Mundial de Futebol e Jogos Olímpicos – é pulsátil esse processo de
3 Mascarenhas (2004) engendra esse termo a partir da junção entre lazer e cidadania. A lazerania ao mesmo tempo em que
procura expressar a possibilidade de apropriação do lazer como um tempo e espaço para a prática da liberdade, isto é, para
o exercício da cidadania, busca traduzir a qualidade social e popular de uma determinada sociedade cujo direito ao lazer tem
seu reconhecimento alicerçado sobre os princípios como planificação, participação, autonomia, organização, transformação,
justiça e democracia, deixando de ser monopólio ou instrumento daqueles que concentram poder econômico
(MASCARENHAS, 2004 p. 75).
A assertiva apresentada acima é corroborada pela existência de um objeto simbólico que adorna
o cotidiano da sociedade contemporânea ocidental – o relógio. Instrumento que simboliza a
segmentação do tempo não só do indivíduo, mas em contexto mais amplo, da própria sociedade
ocidental, tal acessório representa a forma como a sociedade a partir de relações sócio-históricas define
o tempo do trabalho, define o tempo do não-trabalho, define o tempo livre, e claro, define o tempo do
lazer.
Nobert Elias realiza a distinção de cada um destes tempos fragmentados na vida urbana e
moderna. De maneira sintética, esse autor, define o trabalho como atividades realizadas pelas pessoas
para “ganhar a vida”, enquanto que o tempo livre destina-se ao trabalho não remunerado, ou seja, o
tempo que não se vincula às ocupações de trabalho. E o tempo do lazer é uma pequena parte que
compõe o tempo livre, destinado ao divertimento e para amenizar o estresse. Esse autor desenvolve a
classificação das atividades de tempo livre em cinco tipos: trabalho privado e administração familiar; repouso;
provimento das necessidades biológicas; sociabilidade e atividades miméticas ou jogo.
Compreendido que o tempo do lazer é a menor fração que compõe o tempo do indivíduo, eis
que surge a seguinte inquietação, a qual o presente trabalho buscará responder por meio da tipologia
desenvolvida por Dumazedier (1999) o que é o lazer?
A primeira definição apresentada por Dumazedier descreve o lazer como um estilo de
comportamento, assim o mesmo está incorporado a qualquer atividade humana. “Todo comportamento em
cada categoria pode ser um lazer, mesmo o trabalho profissional” (DUMAZEDIER, 1999 p. 88). O lazer é
analisado sob a perspectiva muito mais psicológica que sociológica, como elemento da psique humana e
não construído socialmente.
A segunda definição, contudo, trata o lazer como elemento antagônico do trabalho, ou seja,
existem dois momentos para o homem, um é o tempo do trabalho e o outro o tempo do lazer. Essa
visão acaba por ignorar as outras atividades que foram descritas por Elias & Dunning (1985).Logo, sob
essa perspectiva, o lazer fica obscurecido e até mesmo dependente da categoria trabalho. Outra
corrente que apresenta o mesmo princípio limitador relaciona o lazer a atividades sócio-políticas e
religiosas.
A quarta definição categoriza o lazer como um elemento constitutivo do tempo livre. Haja vista
que o tempo livre é composto por atividades familiares, pelas obrigações políticas-religiosas e pelo
lazer.
A última definição apresentada por Dumazedier (1999) vai de encontro à quinta categoria
descrita por Elias & Dunning (1985) e esta é tomada como a definição mais adequada para o presente
estudo. O lazer é pensado como uma categoria sociológica, construída e consolidada na modernidade e
entendida, assim como o esporte, como uma das categorias que corroboram o processo civilizador da
sociedade moderna.
Tratar o esporte “como problema sociológico”, tal como Nobert Elias se propôs a
fazer, implicava analisar as condições sociais de seu surgimento. Situada
historicamente, a gênese do esporte o estava também socialmente. Após a análise
interna das atividades esportivas, a análise social acabava por constituir a esportização
numa modalidade do processo de civilização. Tanto do ponto de vista dos agentes
sociais quanto das condições sociais da gênese do esporte, são os mesmos grupos e as
O lazer, como pôde ser demonstrado, é um campo de estudo que aborda ações dos indivíduos
em determinado contexto fora das obrigações societais – profissional, familiar, religiosa e política – e
que gera satisfação e redução das tensões. No entanto, o lazer não se resume, exclusivamente, a apenas
esta característica. Dumazedier apresenta quatro caracteres que são “[...] constitutivos do lazer; em sua
ausência, ele não existiria”. (DUMAZEDIER, 1999 p. 94)
Dentre os caracteres apresentados presentes no lazer, primeiramente pontua-se o caráter
liberatório, que oferece ao indivíduo a liberação das obrigações institucionais – sejam o trabalho
profissional, os afazeres domésticos, os deveres políticos ou religiosos.
O lazer apresenta caráter desinteressado, uma vez que não está fundado na obtenção de lucro
ou fim utilitário, como ocorre no ambiente do trabalho profissional e nas obrigações domésticas. “No
lazer, as atividades física, artística, intelectual ou social não se acham a serviço de fim material ou social
algum, mesmo quando os determinismos materiais ou sociais pesam sobre eles [...]”. (DUMAZEDIER,
1999 p. 95).
Outra característica apresentada por Dumazedier é o aspecto hedonístico do lazer, cuja
finalidade está na própria satisfação do indivíduo, ou seja, atender a seu self.
Há o caráter pessoal, que representa as necessidades pessoais em meio a uma gama de
possibilidades de lazer. Dumazedier descreve três possibilidades de lazer que estão vinculadas à
realização, encorajada ou contrariada, das virtualidades desinteressadas do homem, concebido de forma
hedonística, em relação ou em contradição com as exigências ou necessidades societais
(DUMAZEDIER, 1999).
Os três gêneros ou possibilidades do lazer apontadas por Dumazedier são o gênero biológico
ou fisiológico, o gênero psicológico e o gênero sócio-cultural. Dumazedier (1999) descreve uma gama
de modalidades de lazeres, a exemplo, os lazeres artísticos, lazeres práticos, lazeres intelectuais, lazeres físicos ou
esportivos e lazeres sociais. No entanto, independentemente do tipo de modalidade de lazer é fundamental
atentar-se à condição relacional existente entre os três gêneros ou possibilidades do lazer que deverá
estar presente em quaisquer daqueles acima mencionados, pois como Dumazedier afirma, “[...] o lazer
mais completo é aquele que poderá satisfazer estas três necessidades do indivíduo e estas três funções
fundamentais irredutíveis entre si, mas em estrita inter-relação” (DUMAZEDIER, 1999 p. 97),
O fundamental é compreender que esporte e lazer propiciaram a mudança de conduta da
sociedade “não civilizada” para “civilizada”4. Elias relata que:
4[...]Nobert Elias reconheceu explicitamente o fato de que o termo “civilização” é, no uso corrente, um termo carregado de
valor. Ao contrário, no seu uso sociológico, e mais particularmente sob a forma do conceito de “processo civilizacional”, é
uma palavra técnica, diferente, utilizada sem nenhuma conotação em termos de valor. Elias a usa, mais particularmente,
para referir-se à sequência potencialmente reversível das mudanças num longo tempo sofridas pelas sociedades dominantes
da Europa ocidental, que fez com que seu desenvolvimento social levasse, num primeiro momento, os grupos dirigentes de
suas sociedades e, mais tarde, os setores maiores de suas populações a se perceberem como “civilizados”. (DUNNING,
2010 p. 93)
A área de conhecimento de políticas públicas (policy science) surgiu, no século XIX, nos Estados
Unidos da América e posteriormente na Europa. No entanto, nos EUA, as pesquisas vinculavam-se à
análise sobre o Estado e suas instituições, enquanto que no continente europeu os estudos sobre
políticas públicas foram desdobramentos de trabalhos baseados em teorias sobre o Estado, em especial,
sobre o governo, visto como “[...] produtor, por excelência, de políticas públicas” (SOUZA, 2006 p. 22).
A partir da concepção europeia de Estado em face de ações, em nível local, no campo de lazer
e esporte é fundamental compreender as políticas por ele engendradas. No Brasil, desde a Constituição
Federal de 1988, tanto o esporte quanto o lazer são tratados como direitos sociais. Já no início da
Constituição Federal do Brasil, de 1988, Título II – Dos direitos e garantias fundamentais/Capítulo II –
Dos direitos sociais, o artigo sexto explicita que “são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a
moradia, o lazer (grifo nosso), a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância,
a assistência aos desamparados, na forma desta constituição” (BRASIL, 2008 p. 11).
Mais adiante a Carta Magna contempla o esporte ao ditar no capítulo III, uma seção exclusiva,
sob o título “do desporto”, para tratar desse tema. Alicerça o artigo 217 que “é dever do Estado
fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um[...]” (BRASIL, 2008 p.
66).
No Brasil, é recorrente tornar em ações assistencialistas o que, de fato e de direito, deveria ser
garantido a todos os cidadãos. Segundo Marcellino (2001), vícios assistencialistas têm por precedente as
raízes históricas. Desde os tempos coloniais, o Estado brasileiro apresentava-se patrimonialista,
clientelista e coronelista. Lavram-se ações contraditórias e confusas que tornavam direitos em favores,
público em privado e governo em patrão e cidadãos em subordinados.
Portanto, o lazer e o esporte, na condição de elementos constituídos pelo Estado, acabam
sendo difundidos como políticas assistencialistas.
Outro ponto que deturpa as políticas de esporte e lazer é entendê-las de forma isolada sem
entender as relações inseridas no contexto societal, bem como, o processo de lutas neste espaço social.
Bourdieu diz que:
O campo das práticas esportivas é o lugar de luta que, entre outras coisas, disputam
monopólio de imposição de definição legítima da prática esportiva e da função
legítima da atividade esportiva, amadorismo contra profissionalismo, esporte-prática
contra esporte-espetáculo, esporte distintivo – de elite – e esporte popular – de massa
– etc; e este campo está ele também inserido no campo das lutas pela definição do
corpo legítimo e do uso legítimo do corpo [...] (BOURDIEU, 1983 p. 07)
Ademais, barreiras interclasses e intraclasses sociais formam um todo inibidor que dificulta o
acesso ao lazer, não só quantitativamente, mas em especialmente sob o aspecto qualitativo. Deixar as
pessoas a esmo para exigir seus direitos, sem a interferência política, no que se refere ao lazer, acaba por
segregar aqueles que não conseguem pagar por isso, no campo cada vez mais rentável e sofisticado do
“lazer mercadoria” (ou melhor, mercado de entretenimento). (MARCELLINO, 2001)
Barbosa (2004), sobre a formação de uma sociedade de consumo, afirma que os grupos sociais
não são indiferenciados entre si em termos de consumo, haja vista que, todos são a priori consumidores.
No entanto, “[...] noções de gosto – ou melhor, de bom ou mau gosto e de ‘estilo social – tornaram-se
um dos mecanismos fundamentais de diferenciação, inclusão e exclusão social [...]” (BARBOSA, 2004
p. 23).
Essa discussão leva o esporte e o lazer a serem tratados como elementos de responsabilidade do
mercado, onde o Estado atua como parceiro, favorecendo o setor privado através de leis de incentivo e
financiamentos públicos.
Embora sejam configurados como direitos sociais, esporte e lazer ficam à mercê do capital
econômico. Por essa razão, poucos são aqueles que possuem acesso a este direito outorgado pela
Constituição.
As diversas interpretações, engendradas por crenças e valores diversificados, sobre o esporte e
lazer levam a tipos distintos de formulação e implementação de políticas para este tema. Esse conflito
de interesses, crenças e concepções é explicado pelo modelo de coalizão de defesa ou advocacy coalition
framework (ACF) de Sabatier & Jerkins-Smith. O modelo de coalizão de defesa defende que crenças,
valores e ideias são importantes dimensões do processo de formulação de políticas públicas e implica
no processo de implementação das mesmas. A inclusão de valores societais é o fator distintivo deste
modelo para com outros que o antecederam, pois Sabatier disserta que, para entender o processo de
políticas públicas, é necessário analisar as divergências entre as abordagens de escolha racional e a ACF.
[…] a abordagem de escolha racional diz que o analista (1) focalize os líderes
institucionais com autoridade formal para tomada de decisão; (2) assumir que estes
atores estão buscando seu auto-interesse material ( por exemplo, renda, poder,
segurança) e (3) para grupos de atores inseridos em categorias institucionais, por
exemplo, legisladores, agências administrativas e grupos de interesse (Shepsle 1989;
Scharpf 1997). Em contraste, a coalizão de defesa diz que o analista presume (1) que o
sistema de crenças é mais importante que a afiliação institucional, (2) estes atores estão
buscando uma ampla variedade de objetivos, que devem ser medidos empiricamente,
e (3) deve-se adicionar pesquisadores, jornalistas como atores politicos potencialmente
importantes. (SABATIER, 2007 p. 04)
As arenas sociais atuam de forma a controlar o processo decisório de políticas públicas, seja a
inclusão de um tema ou problema, ou, ao contrário, para que o mesmo seja negligenciado. O modelo
de arena de ação deixa explicitado o “jogo” político entre os diversos atores e o processo de barganha e
cooperação entre os mesmos. No campo de esporte e lazer existem grupos ou arenas que divergem
quanto ao objetivo de determinadas políticas públicas. Há aqueles que defendem o caráter keneysiano –
o esporte e o lazer sob essa égide são tratados, exclusivamente, como bens de consumo, e
consequentemente, levam a implementação de políticas que objetivam o bem-estar econômico – e, há
aqueles que veem o esporte e o lazer como elementos que favorecem a cidadania e a inclusão societal..
Novamente, tomando as ações governamentais como ações que influenciam no estilo de vida
ou no habitus da sociedade, pode-se inferir que a conformação dos programas de esporte e lazer,
também, deve ser tratada como signos distintivos (BOURDIEU,1996). Sobre o conceito habitus, Bourdieu
relata que
Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário
come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de
praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-la diferem
sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário
industrial; mas são também esquemas classificatórios, princípios de classificação,
princípios de visão e de divisão de gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças
entre o que é bom e o mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é
vulgar etc., mas elas não são as mesmas. (BOURDIEU, 1996 p. 22)
Considerações finais
Referências
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O
conhecimento é contextual e é importante fazer uso da interdisciplinaridade na
construção cognitiva. Sabe-se que as relações entre comunicação, arte e cultura constituem
um importante espaço de investigação no âmbito acadêmico e latino-americano e que a
arte, tanto como manifestação estética quanto forma de comunicação de uma cultura, constitui um
modo de produção de significados.
Tendo a “comunicabilidade da arte” como escopo deste estudo,adotou-se este tema face à sua
importância para o campo cognitivo nas áreas das artes, humanas e sociais e devido a sua relevância
social, pois embora a arte, sobretudo a contemporânea brasileira, seja vista e pensada como algo muito
diferente da vida e, de certa forma, “incomunicável” para um público leigo acredita-se que ela, por ser
filha da cultura em que vivemos e ser dotada de uma dinâmica própria, criativa e transformadora
desempenha papel fundamental na sociedade transmitindo e comunicando, à sua maneira, emoção,
prazer, conhecimento entre uma infinidade de outras coisas.
A arte não se encontra apenas nos museus. Ela está nos objetos do dia-a-dia, nas ruas das
cidades, dentro de nós, que a vivenciamos ao criá-la, e também ao apreciá-la. Estamos cercados de uma
cultura visual e participamos, direta ou indiretamente, da construção social da arte, da imagem e das
experiências estéticas. Mas o que vem a ser arte?
Conforme Ferreira (2012) conceituar a arte não é uma tarefa fácil. Inúmeros artistas, filósofos e
estudiosos já tentaram defini-la, no entanto, ao longo de séculos a compreensão da arte sofreu e sofre
oscilações significativas a ponto de os estetas explorarem questões relativas ao valor da arte ao invés de
tentar chegar a uma definição dela.
1Graduando em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Tocantins – UFT. Este
estudo é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso e está em fase de finalização. E-mail: judi.ferreira@uft.edu.br
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Os seres humanos respondem a estímulos sensoriais, mas é correto dizer que existe uma
categoria de objetos essencialmente sensoriais que seja totalmente particular e que tenha peculiaridades
de várias ordens?
Para Rodrigo Duarte (2012, p. 11) “esse conjunto de objetos sensoriais absolutamente peculiar
quanto à sua origem, objetivos e conteúdo pode ser chamado simplesmente de ‘arte’”. Ele acomete que
da admiração pela natureza adveio a sensibilidade voltada para a harmonia de todos os estímulos
sensoriais como, por exemplo, cor, sons, formas e que a atividade artística se configura, desde a Pré-
História, como um dos principais indicadores da presença e comunicação humana no mundo.
Entretanto, a arte ainda hoje é considerada por muitos como algo supérfluo, sem necessidade,
uma distração ou um comércio de luxo, ou seja, reflexo de uma elite formada por uma minoria na qual
existe uma “cultura” de que a arte não sai dos limites apolíneos dos museus, logo, é “inacessível”,
“incomunicável”. Todavia, Collingwood (1938, p. 284) apregoa que “a arte não é um luxo” é pelo
contrário, como afirma Wilbois apud Huisman (1977, p. 80), “o passatempo que a nossa moral
desdenha”.
Numa perspectiva sociológica ou socializante,a arte pode ser um importante observatório de
tendências sociais ou um reflexo da trama social em que vivemos. O inconformismo social de um
artista produz em sua obra um inconformismo estético, um grito de alerta como, por exemplo, a
obraHomenagem a cara de cavalo que o artista Hélio Oiticica fez a Manoel Monteiro, o “Cara de Cavalo”,
bandido violentamente morto pela polícia do Rio de Janeiro.Trata-se de uma caixa envolta por telas,
cujas paredes internas foram cobertas por fotografias do criminoso assassinado. Oiticica confronta as
ideias convencionais de justo e errado, de exercício legítimo de poder e abuso autoritário, de marginal e
herói, na qual o conteúdo emocional que absorve o artista é explícito também em palavras visíveis no
poema-bandeira Seja Marginal, Seja Herói.
Das inúmeras funções da arte, destaca-se na obra acima a reflexão e a leitura crítica da
sociedade. Nem sempre uma experiência estética está ligada unicamente ao prazer, pois a arte expressa
um pensamento, uma visão do mundo e provoca uma forma de inquietação no observador, uma
sensação ora triste ora alegre, especial, assustadora, uma vontade de contemplar, uma admiração
emocionada ou uma comunicação com a sensibilidade do artista.
Deste modo a arte além da função estética pode ser instrumento de crítica e mudança social.
Nota-se, portanto, que o gosto e a sensibilidade para apreciar a arte variam de pessoa para pessoa, de
sociedade para sociedade, de época pra época e assim, as manifestações artísticas trazem a marca do
tempo, do lugar e dos artistas que as criaram, pois elas atendem às diversas necessidades humanas e são
parte importante da vida e da cultura da humanidade.
Culturas?!
São muitas as visões e versões de cultura e da gama de possibilidades de significados que esta
possa instigar pode-se citar que a cultura é constituída por tudo aquilo que aprendemos. Raymond
Williams (1992) acomete que cultura pode ser
[...] desde (i) um estado mental desenvolvido – como uma “pessoa de cultura”,
“pessoa culta”, passando por (ii) os processos desse desenvolvimento – como
em “interesses culturais”, “atividades culturais”, até (iii) os meios desses
processos – como em cultura considerada como “as artes” e “o trabalho
intelectual do homem” (WILLIAMS, R. 1992, p. 11).
Arte é cultura e muitas vezes ambas são colocadas como sinônimas, embora cada uma tenha as
suas particularidades. A América Latina é muito rica em termosculturais e qualquer que seja a direção, a
arte está em toda parte e é um elemento definidor da identidade de um povo, de um grupo social e de
um indivíduo, pois as manifestações artísticas revelam características próprias de cada cultura e de cada
época.
Eduard Said apud Eagleton (2005, p. 28) aponta que “todas as culturas estão envolvidas umas
com as outras, nenhuma é isolada e pura, todas são híbridas, heterogêneas, extraordinariamente
diferenciadas e não monolíticas”.
A ideia de culturas continua suscitando uma crescente expansão de conceitos, teorias e debates.
O tempo, segundo Raimundo Martins (2007, p. 20), “influencia de maneira decisiva nossa visão e
entendimento do mundo, exigindo revisão, que transformou muitos aspectos do conhecimento
humano”. A cultura é um meio pelo qual o artista pode se articular e avançar, uma vez que é através da
dela que a arte existe e se faz entendível.
Com o advento das novas tecnologias, da sociedade informacional – que possibilitou ao campo
das comunicações um lugar cada vez mais dilatado nas culturas das sociedades industriais e pós-
industriais – e à medida que o século XXI avança a distinção entre “cultura superior / erudita” e
“cultura inferior / popular” vai se desfazendo. Martins (2007, p. 22) aponta que “a pluralização da
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palavra ‘cultura’ intensificou a dimensão social das transformações” e isso se deu devido à ascensão dos
estudos culturais que possibilitou o desenvolvimento de pesquisas sobre a cultura e o modo como ela é,
segundo Miller (2001, p. 1), “usada e transformada por grupos sociais ‘comuns’ e ‘marginais’ produtores
em potencial de novos valores sociais e linguagens culturais”
Esta leitura e expansão conceitual da cultura apontam, segundo Martins (2005, p. 135), “o fato
de que as ciências sociais e mais especificamente as ciências humanas estão vivendo um espaço
transdisciplinar, intertextual e multimidiático”
A cultura das mídias apresenta uma lógica distinta da comunicação de massas. Trata-se de
dispositivos tecnológicos que propiciam uma apropriação produtiva por parte do indivíduo.Santaella
aponta que
[...] para muitos, a comunicação identifica-se com comunicação de massas,
enquanto as artes se restringem ao universo das ‘belas artes’ [...] Alimentar o
separatismo conduz a severas perdas tanto para o lado da arte quanto para o da
comunicação (SANTAELLA, 2007,p. 07)
avanço do entendimento”. A arte é também uma forma de comunicação, uma vez que parafraseando
Gullar (2003, p. 69) expor a arte como o meio menos apropriado para dizer alguma coisa significa dizer
que a arte não quer dizer nada e esta é uma tese inaceitável.
Afirmar-se que a arte é o meio menos indicado para dizer alguma coisa, implica
uma definição da linguagem artística, segundo a qual esta linguagem é um
universo fechado que se alimenta exclusivamente de si mesmo. Essa definição
aparece como verdadeira se se concebe a linguagem da arte (ou qualquer outra)
como um sistema desligado do processo global da história e do espaço social
[...] Mas, se se destrói o sistema de linguagem – que não foi criado por decisão
de nenhuma autoridademas por uma necessidade real de expressão e
comunicação – e se pretende substituí-lo pela valorização de meras atitudes e
especulações arbitrárias, não se ganha nada, não se cria nada, não se ajuda a
ninguém. Trata-se de uma posição ‘libertária’, de fundo niilista, que confunde
os valores e prejudica os verdadeiros artistas. (GULLAR, 2003, p. 70, grifo
nosso)
A arte, enquanto forma de comunicação, tem a função de exprimir uma ideia, um estado de
ânimo, um sentimento, uma identidade. Não é de hoje que os artistas discutem e manifestam estas
ideias e reflexões relevantes para a sociedade, quer seja no debate sobre arte, quer na produção de
artistas significativos.
A arte contemporânea ainda causa espanto. Não é muito difícil ouvir frases de estranhamento,
como o que é isso? Isto é arte? O público, de modo geral, tentando captar informações acerca do que é
exposto parece desnorteado diante desta arte. Para Veras
[...] a arte contemporânea mete medo porque, ao se deparar com algumas de
suas obras, o público vê suas convenções embaralhadas. A fruição desses
trabalhos pode ser frustrante porque o observador se põe em dúvida, ainda que
em breves segundos, sobre o que está à sua frente (VERAS, 2009, p. 07).
Esta pode ser uma das razões para que muitos deixem de frequentar exposições de arte
contemporânea. Para Chiarelli (2009, p. 12), essa situação “é lastimosa porque muito da produção
recente possui conexões com questões atuais que afligem a todos, de uma forma ou de outra”.
Cauquelin (2005, p. 17) aponta como obstáculo para o entendimento da arte contemporânea a ideia que
se tem de arte e a falta de reconhecimento, por parte do público, da arte que é produzida na atualidade,
isto é, “de que forma a arte do passado nos impede de captar a arte de nosso tempo”.
Chiarelli (2009, p. 12) pontua que “muito daquilo que se observa não possui conexão com o que
foi pensado como arte” e Cocchiarale apud Veras (2009, p. 7) aponta que “habituamo-nos a pensar que
a arte é uma coisa muito diferente da vida, dela separada pela moldura e pelo pedestal e, aliás, a arte foi
mesmo isso durante a maior parte de sua história”. Scott (2009, p. 43), por sua vez, pondera: a “arte
contemporânea é um ambiente não primordialmente destinado à excelência ou à genialidade, e sim ao
experimento, à criação de linguagens”.
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Logo, a arte contemporânea não pode ser emoldurada em conceitos anacrônicos, pois como
apregoa Cauquelin (2005, p. 11), ela “não dispõe de constituição, de uma formulação estabilizada [...]
Sua simultaneidade – o que ocorre agora – exige uma junção, uma elaboração: o aqui-agora da certeza
sensível não pode ser captado diretamente”
Hélio Oiticica cravou uma fissura no entendimento tradicional que separava arte e vida. Através
de sua arte ele desenvolveu uma trajetória quese iniciou no âmbito da pintura e passou por
questionamentos que problematizavam a separação entre os territórios da arte e da vida.
Schenberg acomete que
Hélio Oiticica [...] compreendeu a riqueza de possibilidades artísticas da vida
dos morros e favelas, sabendo aproveitá-las com um talento excepcional. Foi
uma das figuras principais da nova objetividade e do movimento tropicalista
(SCHENBERG, 1973, p. 97)
Chiarelli (2009) aponta a obra Parangolés como um desenvolvimento da pesquisa realizada por
Oiticica no campo da cor no tempo e no espaço, numa questão pictórica na qual não foram concebidas
para serem admiradas a certa distância, mas para ser utilizados, para ser vestida, pois para Rush
[...] qualquer coisa que possa ser analisada como sujeito ou substantivo
foi provavelmente incluída em uma obra de arte por alguém, em algum
lugar. Esta inclusão denota uma preocupação central do artista
contemporâneo, que é encontrar o melhor meio possível de fazer uma
declaração pessoal da arte (RUSH, 2006, p. 1)
Nota-se, portanto que assim como apregoa Fischer (2007) existe uma necessidade da arte como
forma de colocar o homem em estado de equilíbrio com o meio circundante e que a mudança da arte,
conforme Archer (2001), tem a divergência do estilo como característica mais marcante, uma vez que
estas mudanças perpassam a vida cotidiana e contribuem para a comunicabilidade da arte.
Oiticicaé autor de uma concepção de obra de arte inaugural e para ele, segundo Paltronieri
(2006, p. 26), “a obra de arte só existia enquanto antiarte2 já que, classicamente, a arte operou em um
mundo descolado dos valores cotidianos, tidos como superficiais ou mundanos”. Oiticica era um
provocador que clamava por uma “transcendência social da arte, isto é, [...] uma arte interessada na
vida” (JUSTINO,1998, p. 21).
Parangolé é uma espécie de capa que se veste, mas também lembra bandeira, estandarte, tenda.
Quanto à posição ética Oiticica aponta, em Aspiro ao Grande Labirinto, que
O meu programa ambiental a que chamo de maneira geral Parangolé não
pretende estabelecer uma ‘nova moral’ ou coisa semelhante, mas
‘derrubar todas as morais’, pois que estas tendem a um conformismo
estagnizante, a estereotipar opiniões e criar conceitos não criativos[...] o
seu pricipalobjetivo é o de dar ao público a chance de deixar de ser
público espectador, de fora, para participante na atividade criadora.
(OITICICA, 1986, p. 81).
2Schenberg (1973, p. 89) aponta que “podemos considerar a antiarte como um alargamento do campo da arte no sentido
tradicional. Ela procura essencialmente eliminar o afastamento entre arte e as vivências tidas como não artísticas pela
estética do passado”. Para Oiticica Parangolé é uma antiarte por excelência.
Referências
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1. Introdução
N
as últimas décadas o número de pesquisas e fóruns a respeito de qual seria a melhor
estratégia ou modelo de desenvolvimento para regiões periféricas do capitalismo mundial
cresceu muito. Na verdade o start dessas pesquisas se deu no inicio da segunda metade do
século passado através dos estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe –
CEPAL e pela chamada “Teoria da dependência” 2.
Ambas contribuíram imensamente para o debate da economia e da sociedade latino-americana,
identificando características estruturais específicas e apresentando propostas de políticas públicas
apontado para os desafios contra a desigualdade, a pobreza e a necessidade de fomentar a democracia e
a inserção na economia mundial.
O que se percebe nas pesquisas recentes é a ideia de evolução do desenvolvimento apontada por
Sachs (2008), entendendo a complexidade e a multidimensionalidade do desenvolvimento. O reflexo
dessa influencia aparece na adição de sucessivos adjetivos (econômico, social, político, cultural,
sustentável, etc.) ao conceito. Ainda assim, existe a dificuldade de um paradigma capaz de lidar com o
desemprego/subemprego e a desigualdade socioeconômica crescente dessas economias.
De certo, elaborar uma estratégia de desenvolvimento que contemple as demandas de um país
periférico e ao mesmo tempo não aprofunde ainda mais o quadro de pobreza e desigualdade social e de
renda, é bastante complicado, e por isso, as múltiplas políticas/estratégias podem ser úteis à medida que
sejam conduzidas por um objetivo comum.
Essa tarefa é desafiadora visto que não existe uma teoria de desenvolvimento “pronta” e muito
menos leis universais no que diz respeito a um processo multidimensional e de transformações
estruturais qualitativas que é o desenvolvimento (BRANDÃO, 2004). Pensar numa teoria “pronta”
pode ser uma armadilha, é preciso ter sensibilidade para determinar até onde o uso de algumas teorias é
útil.
O principal equívoco é não considerar a especificidade da formação social e histórica da
periferia, é assimilar sem criticar as doutrinas econômicas irradiadas das potencias hegemônicas,
formuladas em função de suas necessidades e seus interesses. Segundo Furtado (2013), o
desenvolvimento da América Latina encontra-se além do capital, o cerne da questão estaria na
* Mestranda do Programa de Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro- UFRRJ e graduada em Licenciatura em Educação Artística pela Universidade Federal do Rio de Janeiro- UFRJ.
2 Ver Cardoso, F. H.; Faletto, E.; Dependência e desenvolvimento na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.
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2. Mimetismo e desenvolvimento
A passagem escrita por Sun Tzu é de grande valia para tentar compreender o processo de
desenvolvimento econômico que aconteceu na periferia do capitalismo mundial no século passado.
Entender o terreno, conhecer seus pontos fracos e potencialidades é fundamental para armar qualquer
estratégia de luta. Na tentativa de vencer a luta contra o subdesenvolvimento, a maioria desses países
percorreu uma trajetória marcante no que tange os aspectos histórico, econômico e social.
No caso brasileiro, embalado pelas políticas nacionais-desenvolvimentistas, o progresso
acontecia a pleno vapor. O crescimento era notável haja visto o “milagre econômico” da década de 70.
O problema era que esse “progresso” fosse diretamente relacionado à conjuntura geopolítica
internacional e, portanto depois da crise de Bretton Woods, do fim do padrão dólar-ouro e da crise do
petróleo em 1979, a economia nacional sofreu um grande choque.
Com o cenário internacional desfavorável economicamente, o Brasil, assim como grande parte
dos países periféricos, teve sua economia seriamente abalada3. O Estado nacional perdeu força e
afundou-se em crises financeiras, comprometendo seu orçamento e principalmente as políticas
3Queda dos investimentos, aumento da dívida interna e externa, superinflação, aumento das taxas de juros, aumento do
desemprego e consequentemente constrangimento do crescimento nacional e aumento da desigualdade e pobreza.
Os problemas internos que habitam em todo país subdesenvolvido estão na raiz da sociedade,
no processo de construção dos valores e na forma como ela está organizada. Por isso a importância de
resgatar a base cultural na hora de propor e aplicar um projeto de desenvolvimento econômico.
Novamente, desenvolvimento e não apenas crescimento econômico, é preciso ter consciência de que a
qualidade de vida nem sempre melhora com o avanço da riqueza material de um povo.
Para compreender melhor o significado desse código genético é interessante resgatar a análise feita
por Milton Santos em “A Natureza do Espaço”, sobre a conformação do espaço e influência dos atos
territorializantes imprimidos dentro de um espaço ou território. Para Santos (2006):
O espaço é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório,
de sistemas de objetos e sistemas de ações [...] De um lado, os sistemas de objetos
condicionam a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à
criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes. É assim que o
espaço encontra a sua dinâmica e se transforma. (SANTOS, 2006, p.39).
As ações as quais se refere, são resultado das necessidades naturais ou criadas tanto pelo
homem quanto pelo capital ou pelas instituições. Essas necessidades podem ser de ordem material,
econômica, social, cultural, moral ou afetiva. É o conjunto dessa inter-relação entre objeto e ações, que
ajuda o homem a construir e caracterizar cada espaço. Com o tempo esse conjunto se transforma em
um processo social marcado de heranças simbólicas e concretas as quais Santos (2006) denomina
rugosidades.
As rugosidades são a identidade, a memória, os acontecimentos, as mazelas e os triunfos que
constituem cada espaço. São elas que constroem o contexto de cada espaço e atribuem ao território um
caráter relacional (REIS, 2005), onde é ao mesmo tempo, determinado e determinante das relações
sociais, culturais, políticas e econômicas existentes em espaços delimitados de forma concreta ou
abstrata, onde se estabelecem formas específicas de representação, códigos e instituições,
caracterizando uma noção de territorialidade.
4 Segundo (SEN, 2000) o crescimento econômico é um meio de expandir as liberdades sociais, políticas e econômicas do
cidadão, ou seja, é através dele que a sociedade consegue um mínimo de dignidade, emprego, educação, saúde e alcança as
condições materiais de sobrevivência.
5Ver COCCO, G. Mobilizar os territórios produtivos: para além do capital social, a constituição do comum. In: SILVA, G.;
COCCO, G.; Territórios produtivos: oportunidades e desafios para o desenvolvimento local. Ed DP&A, 2006
sustentam a economia de um dado território. E reforçando seu papel de catalisador entre o social, o
político e o econômico, a criatividade é um combustível renovável e cujo estoque aumenta com o uso.
Além disso, a “concorrência” entre agentes criativos, em vez de saturar o mercado, atrai e estimula a
atuação de novos produtores. Essas e outras características fazem da economia criativa uma
oportunidade de resgatar o cidadão (inserindo-o socialmente) e o consumidor (incluindo-o
economicamente), através de um ativo que emana de sua própria formação, cultura e raízes.
Uma das características positivas da criatividade é que não está atrelada necessariamente a
quantidade de capital econômico ou cultural a qual um território está submetido, e sim aos estímulos e
necessidades que os indivíduos de determinados espaços sofrem ao longo de sua trajetória, ou seja, não
obedece nenhuma determinação natural para emergir, e nesse ponto é colocada como democrática.
O desenvolvimento, portanto precisa considerar a dimensão cultural e criativa dos territórios,
resgatando e estimulando as diversidades e potencialidades internas, quanto força estratégica. A base
para o desenvolvimento está na singularidade do território, nas dimensões culturais, criativas, vocações
econômicas, dinâmicas sociopolíticas que se estabelecem entre seus agentes e setores. Essa
singularidade deve ser o leme do desenvolvimento, entendido como um conjunto entrelaçado das
políticas culturais, sociais e econômicas. (REIS, 2008).
Complementando a ideia de Sun Tzu, a estratégia para vencer a batalha, portanto, deve
considerar, embora não como único, o entendimento sobre a cultura e a identidade cultural dos
territórios. Quaisquer que sejam as necessidades e potencialidades encontradas a partir desse estudo um
bom modelo de desenvolvimento é também criativo e articula as políticas de desenvolvimento nas
múltiplas escalas e dimensões.
Segundo Flores (2006) essa articulação pode representar o rompimento com as práticas
tradicionais de políticas clientelistas e domínio do poder por segmentos específicos, facilitando a
formação de novas iniciativas, reconstruindo as redes de poder local e permitindo a formação de novas
estratégias de cooperação através de novas tecnologias, novos setores, novos recursos e outros fatores
inovadores que dependem do que Florida (ano) chamou de éthos criativo6.
No entanto considerando todos os apontamentos feitos até aqui é natural se perguntar como
por em prática um modelo de desenvolvimento levando em consideração a coerência interna, os
limites, as diferenças, a criatividade, o processo histórico e as necessidades de cada microespaço que
compõe um território?
É dentro desse contexto que se fortalecem as políticas de desenvolvimento endógeno ou “de
baixo para cima”, por caracterizarem por uma dimensão mais micro, teoricamente estão mais próximas
da realidade e mais familiarizadas com a identidade e territorialidades que agem nas escalas sociais,
Mesmo numa era onde o Estado está cada vez mais coadjuvante do processo de
desenvolvimento, ainda é dele a função principal de articular as várias propostas de desenvolvimento e
fornecer as condições básicas para que possam de fato atuar com êxito na promoção de um
desenvolvimento mais homogêneo e equitativo.
Esse é um trabalho de longo prazo preocupado com uma política de desenvolvimento voltada
para as múltiplas escalas e setores de dentro do país e para isso é importante ter um Estado ativo capaz
de articular os espaços de desenvolvimento (desde o nível local até o transnacional), promover as
parcerias necessárias entre os agentes sociais e por último, capaz de realizar um planejamento
estratégico que harmonize as metas sociais, econômicas e culturais. (SACHS, 2008).
4. Considerações finais
depois da criação do Ministério da Cultura (Minc) em 1986 e chegou ao ponto de exclui-lo em 1990. Os
gestores públicos tendem a olhar a cultura como atividade supra-econômica geradora de despesa
(manutenção e restauração de equipamentos culturais) enquanto as empresas privadas pela ótica do
mercado e dos interesses (PRESTES 2001). A busca de convergência entre cultura e desenvolvimento é
essencial.
O desenvolvimento endógeno criativo é uma expressão da capacidade de criar soluções
originais aos problemas específicos de uma sociedade. A preservação da cultura e a valorização da
mesma são um contraponto no combate de uma globalização que cada vez mais introduz vetores de
“desenvolvimento” que não fazem mais do que mutilar a identidade cultural e a liberdade criativa dos
territórios quando “sugerem” a reprodução de padrões de consumo, reformas políticas, sociais e
econômicas voltadas para um contexto cultural e histórico completamente diferente das necessidades
da massa subdesenvolvida ou em desenvolvimento.
O diferencial das políticas de desenvolvimento endógenas é oportunidade de dar visibilidade
aos agentes sociais diferentes daqueles historicamente privilegiados e caracterizados por posturas
patrimonialistas e conservadoras. São os “novos” agentes de dentro do território que vão analisar os
próprios contextos, identificar seus problemas e propor caminhos alternativos para ação. Funcionando
como uma lupa para identificar os conflitos e potenciais, a fim de auxiliar o desenho de políticas
públicas de forma articulada entre Estado e sociedade civil.
O esforço para o desenvolvimento deve ser em todos os níveis, do local ao nacional, e deve sem
dúvida explorar as oportunidades de desenvolvimento social e crescimento econômico que podem
surgir em determinados territórios. Tanto o mercado, o Estado e a sociedade têm suas falhas e
potencialidades por isso é fundamental a articulação das conexões necessárias e um planejamento
estratégico de modo que juntas essas iniciativas possam funcionar como ramificações alternativas de
desenvolvimento econômico e bem estar social.
Resgatando a inquietação de Sachs, o desafio é desenhar uma estratégia de desenvolvimento que
seja ambientalmente sustentável economicamente sustentada e socialmente includente. Para isso, deve
se abandonar a tradição do mimetismo e redirecionar o olhar para as especificidades da sociedade, da
história e do território.
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5, Set. 2002.
1. Introdução
A
ssim como investigar as formas de sociabilidades na constituição de identidades dos artistas
plásticos, foi frutífero compreender suas carreiras artísticas para compreender o espaço
público vivido. Pierre Bourdieu (2007) contribui diretamente nessa perspectiva, com os
conceitos de campo artístico, acúmulo de capital (simbólico, cultural, econômico, etc.) e habitus.
Em O poder simbólico (2007), Bourdieu discute que as categorizações sócio-históricas podem ser
frutos da distribuição desigual de poder. Ao discutir a noção de campo artístico, o autor traduz para a
análise das relações sociais a luta de classes, em que os agentes, uma vez inseridos no jogo, disputam
poder, status e prestígio. Os diferentes graus de acúmulo de capital – como o cultural, o simbólico e o
econômico – posicionam os agentes na hierarquia do campo, o qual é dividido entre dominados e
dominantes. Dessa maneira, as forças que tensionam os agentes no campo tendencionam-os a
percorrerem uma determinada trajetória, um habitus. Nesse sentido, o campo mostrou ser fértil o
diálogo entre um habitus do campo artístico e a trajetória de vida dos artistas plásticos, especificamente os
chamados “de rua”2.
A presente reflexão resulta de uma parte da dissertação de mestrado, intitulada de “Os artistas
plásticos da Feira de Artesanatos do Campo de São Bento, Niterói RJ”, a qual pretendeu explorar as
formas de sociabilidade, constituição de identidades e carreiras dos artistas plásticos “de rua”. A fim de
perceber os elementos indicativos do habitus da carreira das artes plásticas, a pesquisa, que teve duração
de catorze meses, baseou-se na etnografia acompanhada da análise dos relatos orais e histórias de vida
das pessoas que compõem a feira em questão, sobretudo dos artistas plásticos.
Dessa maneira, o texto condensa a análise das carreiras dos artistas plásticos de rua realizada na
dissertação de mestrado, tendo como intenção sinalizar os principais elementos da constituição de
identidade dos produtores, assim como indicar como as práticas sociais podem estar presentes na
criação artística.
1 Mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS/ UFF).
Pesquisa financiada pela Coordenação de Pessoal de Ensino Superior (CAPES).
2 Sinalizo, no decorrer do texto, alguns termos entre aspas para marcar que são categorias nativas, ou seja, apresentadas pelo
campo de pesquisa.
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1088
O grupo de artistas plásticos da Feira de Artesanatos do Campo de São Bento (Niterói, RJ) é
composto por aproximadamente3 vinte pessoas. A maioria dessas é do sexo masculino, possuem
sessenta anos ou mais e residem na região norte.
Os dados da pesquisa indicaram que parte dos artistas plásticos aprendeu a técnica da pintura
sozinhos, parte com os chamados “mestres” em seus ateliês, parte em cursos livres e parte formado (ou
que cursaram algum período da faculdade) na área das artes.
O grupo de pessoas que aprenderam a técnica das artes plásticas sozinhas trabalhavam em
outro segmento com alguma afinidade com a pintura ou pintavam para o espaço privado. Grande parte
desses artistas plásticos transitou em outras formas artísticas (como o crochê, pintura em tecido, em
vidro) antes de migrar para a pintura em tela.
Gertrudes: Eu aprendi sozinha, desde menina que ficava desenhando e nunca mais
parei. Ninguém me ensinou nada não. Fucei, fucei e aprendi a pintar em tecido.
Pintava flores. Depois passei para a pintura em tela, e pintava flores também. E então
agora, bem depois, que estou pintando abstrato.
Pedro: Eu trabalhava como diretor de arte de uma copiadora, fazia desenhos também.
Me inscrevi aqui na feira como artista plástico para tirar um dinheiro a mais, comecei a
pintar para vender há pouco tempo. Mas me vejo mesmo como desenhista.
Ana: Eu sempre gostei de arte, pintava para mim, para enfeitar a casa, pintava pote de
vidro, tecido. Dava de presente para os parentes, as amigas. Mas depois eu comecei a
vender, recebi uma encomenda de uma amiga para dar de presente, depois outra... e aí
fui pintando e vendendo.
O grupo de artistas plásticos da feira que aprenderam em ateliê com seus mestres é, em sua
maioria, do sexo masculino. Os chamados “mestres” são artistas plásticos reconhecidos socialmente,
sobretudo no espaço da rua, e que possuem ateliês próprios. Nesses ateliês, “aprendizes” de artistas
plásticos não apenas aprendem a técnica da pintura, mas também os valores do trabalho. Os artistas
plásticos da feira ex-aprendizes de seus mestres relatam da experiência como a obtenção de uma
titulação. Ou seja, como uma constatação de seu prestígio, uma vez que aprendeu a pintar com
determinado artista plástico reconhecido.
Os artistas plásticos que aprenderam em cursos livres indicaram ter buscado a experiência em
busca de novas formas de sociabilidades. Como indica o exemplo de Flávia:
3 Digo o número aproximado pois os produtores entram e saem da feira com certa frequência, inclusive por ser composto,
majoritariamente, por idosos, o que influencia no afastamento devido a doenças, entre outros fatores.
4 Ressalto que esses são nomes fictícios, a fim de preservar as pessoas que compuseram a presente pesquisa.
As pessoas que possuem contato com a academia, especificamente na área das artes, relataram
estar na feira temporariamente, como um momento de suas carreiras, e não o espaço principal
ocupado. Relataram ocupar outros espaços, e esses sim “legítimos” (relatado pelos artistas plásticos),
como as galerias.
Eu estou no quarto período da faculdade, estou desenvolvendo meus traços... o
público daqui não é o público que aprecia arte, o pessoa quer uma coisa mais
decorativa, ainda estou me adaptando. [...] Agora... tem muita diferença o que eu faço
pra cá e o que eu faço para outros lugares... aqui eu deixo a parte teórica de lado, uso
só relações cromáticas. Enfim, pra não virar uma bagunça o quadro né... procuro o
lado mais estético da arte. Pra outros espaços, tipo em galeria ou os quadros que eu
faço na faculdade, eu tô pesquisando uma poética pessoal, tô pesquisando outros
pintores. (Téo)
Para Ademar há uma ligação entre pintar abstratos e ter dinheiro. “Quem tem dinheiro, está mais no
topo, domina mais... pode pintar assim”, relata Ademar.
Foi frequente, durante a pesquisa, a referência em pintar abstratos e estar “no topo”, ou “estar
mais tempo pintando”, ou “pintar para galerias”, ou ser uma prática de quem “tem dinheiro”. Essa
frequência parece evidenciar a existência não apenas de uma forma dominante de fazer arte, mas
também a existência de um habitus5 do campo, materializado no objeto produzido. Os produtores de
artes plásticas da feira, denominados por eles mesmos como “artistas de rua”, evidenciam não possuir
5 Segundo Bourdieu (1989), o campo pode ser compreendido como um espaço social e simbólico, tensionado pelo habitus
do próprio campo, em que os agentes envolvidos assumem posições hierárquicas e dinamizadas. As regras do campo são
legítimas para os agentes, de modo que estes são ativos e receptivos. Há, portanto, uma dialética entre os agentes e o
campo. O habitus é um conjunto de tendências que podem direcionar a atuação dos agentes dentro do campo, de modo a
haver ajustamentos dos agentes nesse conjunto de tensões.
determinado capital econômico e cultural acumulado para investir no jogo do campo e percorrer o
caminho – habitus – de modo a atingir o grupo de artistas que dominam e
[...] podem pintar abstrato. É assim, se você fica muito tempo investindo uma hora
consegue... mas quem tem dinheiro assim? Só rico mesmo... a gente aqui faz pra
vender rápido, status é legal, mas aqui a gente tem que fazer de tudo...(Cledir)
A temática do abstrato foi relatada como tradução da maturação do trabalho do artista plástico.
Ou seja, o artista plástico com determinado tempo de carreira começa a pintar abstrato.
A pesquisa mostrou que a maioria dos produtores necessita do dinheiro da feira para seu
sustento. Ademar apresenta sua atividade como uma forma de complementar a sua renda de aposentado
que é pouca. A baixa renda do produtor, sua posição na ordem social e econômica, também constitui
sua identidade. A identidade de Ademar encontra-se marcada nos seus quadros e materializa o contexto
que localiza sua produção, que localiza, logo, ele próprio. Ou seja, se torna evidente a relação da
identidade de Ademar com a diferença do mercado da feira e outros tipos de mercados, os quais
estariam destinados à “pessoas que tem dinheiro para investir um bom tempo sem retorno imediato”.
Eu vendo uma tela assim parecida com essa... aí essa daqui eu reproduzi, mas
tomando o cuidado de não repetir as mesmas coisas e tal.. eu coloco um cara ali, até
esqueci de colocar no barco alguma pessoa... coloquei mais um barco aqui, dei mais
movimento no mar. O negócio é vender, o objetivo aqui é vender para ganhar
dinheiro. Não tem nada, nada a não ser isso. Por exemplo, se eu tivesse dinheiro, eu
faria obras que iriam para o exterior, umas coisas da minha cabeça, faria umas coisas
diferente, entendeu? De alto nível, para ser espalhada por aí. Mas eu sou obrigado a
vender para poder sobreviver. Entendeu? O problema é esse! (Ademar)
3. A velhice e as artes
Foi frequente entre os artistas plásticos, a ocupação do trabalho manual em boa parte de suas
vidas. Bosi (1994, p.471), em Memória da arte, memória do ofício, revela questões interessantes sobre o
trabalho manual, o qual possui dupla significação. A primeira seria a de que o trabalho manual
“envolveria uma série de movimentos do corpo penetrando fundamente na vida psicológica. Há o
período de adestramento, cheio de exigências e receios; depois, uma longa fase de práticas”. E a
segunda seria, “simultaneamente com seu caráter corpóreo, subjetivo, o trabalho significa a inserção
obrigatória do sujeito no sistema de relações econômicas e sociais”. Ou seja, o trabalho é uma atividade
que resulta em renda e está posicionado na hierarquia de uma sociedade composta “por classes e
grupos de status”.
As duas dimensões do trabalho abarcam nos sistemas subjetivo e objetivo do indivíduo. Na
primeira dimensão, houve uma frequência de relatos com tons prazerosos sobre o fazer.
Telma: Quando eu pinto eu esqueço de tudo. Minha alma flui! Meu corpo flui! É uma
terapia para mim as minhas telas, meus pincéis! Não tem pra ninguém. Meu marido
fica olhando, olhando.
Porém, no aspecto objetivo, no qual a pessoa idosa está inserida na estrutura capitalista, houve
relatos condizentes às mazelas próprias enfrentadas na desigualdade social. A maioria das pessoas que
compõem a feira como um todo são idosas. Tereza, de setenta anos de idade, relata: “as tintas, a tela
significa tudo né, renda mensal pra mim, compro remédio, o que mais eu compro é remédio!”.
Sendo o corpo a possibilidade de materializar a ideia, a teleologia, de determinado objeto, a
saúde possui destaque no processo do fazer. O idoso, que está propício a ter sua saúde debilitada,
enfrenta uma particularidade com seu corpo, a qual pode fragilizá-lo na lógica do mercado. Como no
caso de Olga, que anda com muita dificuldade, e sua produção não é tão rápida como a de outros
produtores. Ou como Gilmar que sua visão também interfere no fazer e trai os seus traços. Ou como
relatou Ademar “artes plásticas é só um trabalho, o que o INSS dá é uma porcaria, (...) os meus quadros,
essa coisa toda significa dinheiro, eu quero é vender, porque eu preciso do dinheiro para comprar
remédio”.
A feira, que consiste em um espaço rico de possibilidades de sociabilidades, abriga pessoas que
buscam construir novos laços sociais. A venda dos seus quadros na feira ajuda a complementar a renda
de Silvia, que é pensionista e viúva.
Aqui na feira é muito bom, é bom para conhecer outras pessoas... o convívio não
deixa minha cabeça parar, dando mole para doença, trabalhando eu fico mais atenta...
mas tem dia que é difícil, a visão não é mais a mesma 6... (Silvia)
6Durante as observações dos feirantes idosos, o assunto sobre superar alguma doença ao produzir se apresentou em todos
os casos. A maior queixa foi a da visão, e segunda maior com a locomoção, com problemas cardiorrespiratórios e
ortopedia.
depois eu tive que arranjar alguma outra renda. Foi aí que eu resolvi pintar para vender
mesmo. Foi a necessidade...
símbolos que aquelas atividades adquirem sentidos e os seres humanos tornam capazes de se
comunicar”.
É válido destacar que o conceito de gênero carrega um conjunto de ideias historicamente
construídas (SCOTT, 1990, p.01). Scott (1990, p.14) define gênero a partir de duas proposições. “como
um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos” e como
“uma forma primeira de significar as relações de poder”.
Diferente de sexo – feminino ou masculino – o gênero é composto no vivido, na corporeidade
de sujeitos sociais para além do biológico, superando qualquer determinação categórica da “existência
de uma essência masculina e uma essência feminina” (SAFFIOTI, 1994, p.271). Resultado de
sociabilidades entre agentes historicamente situados, o gênero se constitui para além do discurso da
diferença. Ou seja, “ser mulher não é apenas diferente de ser homem” (SAFFIOTI, 1994, p.277). A autora
coloca a importância de admitir a pessoa como múltipla, a qual participa “das relações de gênero, de
raça/ etnia e de classe social em diferentes posições – de dominação e de sujeição” e “da convivência
competitiva de várias matrizes de inteligibilidade cultural de gênero” (SAFFIOTI, 1994, p.277). A
pessoa, logo, se traduz no múltiplo e no complexo, no geral e no particular. Assim, o campo mostrou as
questões relativas às relações de gênero como um dos elementos na constituição de identidades dos
artistas plásticos.
Na análise dos homens idosos, os quais compõem a maioria no grupo de artistas plásticos,
apresentaram outros indicadores que se diferem ao das mulheres idosas. A maioria são (ou foram)
chefes de família e pintam por precisarem complementar suas rendas. Apesar de grande parte serem
aposentados, continuam trabalhando durante a semana e nos finais de semana na feira. Geralmente,
trabalham como autônomo e a instabilidade marca suas atividades profissionais.
Fábio, além de vender seus quadros na feira nos finais de semana ainda procura emprego
durante a semana. “Não consegui arranjar nada... a situação está difícil, está muito difícil, me inscrevi
em um curso para idoso desses social, mas é muita gente, muito idoso precisando de emprego”. Certas
vezes, durante o período em que o acompanhei, Fábio relatava sua indignação: “depois de velho ainda
ter que passar por isso”.
4. Considerações finais
O presente texto buscou submergir alguns elementos que pudessem indicar a constituição de
identidades dos artistas plásticos da Feira de Artesanatos do Campo de São Bento (Niterói RJ),
compreendendo suas formas de sociabilidade, as buscas e conformismos em suas carreiras artísticas.
A presente exploração pretendeu somar ao pensamento social na percepção do campo artístico
das artes plásticas, assim como apontar os modos de categorização das pessoas e dos objetos por elas
produzidos no mundo social. Ou seja, como muitas vezes o sujeito passa a ser objeto da lógica
mercantil e como o objeto pode assumir a forma de sujeito. Assim, havendo uma transmutação do
sentido humano das relações. Ou como diria Karl Marx (2002) em sua crítica sobre o fetichismo da
mercadoria: a relação entre pessoas assume a forma de relação entre coisas.
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Introdução
A
diversidade cultural presente no Brasil é notória. Cada viagem, cada encontro com
manifestações populares, religiosas e folclóricas, desde os grandes centros urbanos aos mais
desconhecidos povoados do interior, afloram a criatividade de um povo unindo suas
demandas vida, sua fé, valores e a necessidade de reforçar laços identitários. Ainda que com a mesma
origem e raízes, cada fato se torna único e representa cada lugar, revelando suas expectativas presentes
nas peculiaridades dos ritos compartilhados comunitariamente.
Retratar os festejos de São João do distrito de Príncipe, no Tocantins, constitui o objetivo
central deste trabalho, entendendo aspectos da diversidade cultural que orientam a reelaboração cultural
características dos fatos folclóricos. O povoado de Príncipe é um distrito do município de Natividade
que fica a 230 (duzentos e trinta) quilômetros da capital Palmas, formado principalmente por
agricultores e lavradores.
A festa é maneira de motivar a comunidade, reforçar sua autoestima, incentivar a afirmação de
sua cultura pela preservação da memória e dos costumes de seus antepassados, mas também pela
mobilização da economia local e ganho de visibilidade social, a partir da festa que atrai visitantes,
proporcionando assim uma nova realidade à comunidade, movimentando o turismo religioso aliado às
tradições.
cultura como prática possui mecanismos de mudança, aos quais Williams denomina tradição seletiva.
Consiste em Identificar os aspectos hegemônicos, e na sua oposição o contra-hegemônico, as forças
contra-hegemônicas que dão dinâmica à mudança. Ou seja, é preciso pensar a cultura como todo um
modo de vida, seguindo pela verificação da heterogeneidade das experiências dos indivíduos frente às
transformações sociais, em que as pessoas se reconhecem como parte de um grupo e constituem
mecanismos próprios de asseguramento de sua cultura.
A recuperação da tomada de consciência histórica do conceito para desenvolver uma análise
cultural séria originou o estudo das formas culturais por Raymond Williams (1980, p. 21). Para o autor,
a cultura é um processo que agrega as experiências vividas e cotidianas das pessoas mas também carrega
a marca do legado e da herança que conformam a história distinta de cada povo.
Williams designa três categorias de definição da cultura: a) definição ideal de cultura (expressão
de valores absolutos do homem); b) acervo documental (registro da experiência num tempo
determinado); c) definição social, descrição de um modo de vida particular. Esta última inclui a
definição ideal, o acervo documental, a análise das instituições políticas, econômicas e sociais e das
formas particulares de comunicação entre os integrantes da sociedade.
Outro aspecto é o momento em que a linguagem se corporifica, observando a forma cultural, os
elementos dominantes de um processo cultural, no que a etnometodologia vai se inserir contribuindo
com o conceito de lugar de fala.
Assim, pensar a folkcomunicação, as manifestações populares, o folclore e suas vertentes, é
entrar no mundo do “diverso”, em que cada realidade estudada carrega elementos diversos de
manutenção dos grupos sociais.
O diverso, espaço de identificação multipolarizada, abre as portas da percepção e festeja o
encontro com o outro, num fluxo e refluxo de criatividade e de espanto, em que aquele que
fala poderá se encontrar na resposta do outro. O outro do desejo, o outro como exclamação
ou campo poético (LINS, 1997, p. 93).
Nesse sentido, retomamos aqui a abordagem de Luiz Antônio Barreto (2005, p.85). Segundo o
autor, "sobrevivência e renovação são leis próprias das memórias, aplicadas aos fatos folclóricos que
englobam, em suas vigências, todo o fazer e todo o saber de um povo". Assim, faz parte da própria
manutenção do folclore e inerente à sua sobrevivência (Benjamim (2004) e Barreto (2005) já chamam a
atenção para repensar o próprio desgastado termo folclore, que deve ser revisitado, e a inserção
inerente da relação entre comunicação e folclore, a partir das ideias de Luiz Beltrão) a sua capacidade de
se recriar, de inovar, nesse sentido, é necessário buscar no âmago dos grupos algo novo, sua reinvenção
em que alguns valores e identidades permanecem como herança e outros novos se constroem.
No Brasil, este processo de recriação tem sido compreendido desde sua colonização.
O Folclore no Brasil, portanto, espelha a convivência do povo com matéria que cria e
recria, no cotidiano dos estímulos de vida e com os repertórios do projeto
Cristianizador Ibérico, formado principalmente por danças e folguedos, literatura, em
Por outro lado, o “diverso” de manifesta em diversos processos que seguem além das visões
romantizadas ou de relações de poder, é um imbricamento de motivos e motivações:
Mas é possível, também, recolher, nas ruas do Brasil, as pequenas estórias, contadas
por mulheres, velhos e crianças pedintes, ou as invenções brincantes ou as
improvisações dos corpos evoluindo aos sons e aos ritmos das sanfonas nordestinas,
acompanhadas pelo toque fino dos triângulos e pelo baque forte das zabumbas; muito
mais que uma estética dos desvalidos [...] Para restaurar o Folclore falta buscar, no
íntimo das pessoas e dos grupos, a matéria nova, que mostra a capacidade criadora da
gente brasileira, despojada da submissão redutora e que revele, in fieri, toda a amplitude
da alma nacional, nos recantos todos do Brasil (BARRETO, 2005, pp. 105-106).
Conforme encerra Schmidt (2008, pg.4), das atividades do dia-a-dia ao extraordinário das festas,
as manifestações folclóricas são registros criativos, influenciam e transmitem de uma geração à outra,
ou entre pares, o conhecimento comunitário e popular.
A Realeza Negra
A África nunca foi uma realidade homogênea em termos humanos e culturais e a cultura
brasileira está “impregnada” desta cultura africana. Antes mesmo do contato entre africanos e
europeus, ambos já sabiam o que era escravidão. No reino do Congo, por exemplo, existiam três
ordens sociais: a aristocracia, os livres e os escravos.
Na aristocracia a associação entre rei e a divindade, segundo Souza (2002), está presente na
grande maioria das culturas documentadas através dos tempos, pois a presença de um rei é, para Frazer
(1951), condição de desenvolvimento da humanidade, na qual o rei recebe a fidelidade de seus súditos
no duplo caráter de rei e deus.
De acordo com “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribeiro (2002), os primeiros povos negros que
vieram da África ao Brasil foram os da Costa Guiné. Em seguida, os “bantus” provenientes de Angola,
Congo e África Central Atlântica. Estes povos não vieram despidos de cultura e o “sagrado”, embora
cerceado pelos senhores de engenho, esteve e está presente em todos os instantes e em todas as
situações da vida bantu. Eles acreditam na existência de dois mundos, o visível e o invisível, na
interação destes dois mundos e num deus que é criador disto tudo.
Ainda no século XVIII o Brasil recebeu outro contingente de povos negros que foram trazidos
da Costa da Mina e do Golfo de Benin. Vieram pra cá os povos Gêges, grupos étnicos da antiga
Daomé; Nagôs, grupos étnicos de origem e língua iorubá – trazendo os orixás e orikis; e Alçás, vizinhos
dos iorubanos e com influência árabe. Para o povo iorubano, que contribuiu na fisionomia cultural de
Salvador, Recife e São Luís, os reinos variam de região para região. Tem-se o reino Oyó de Xangô, o
Keto de Oxossi e o Irê de Ogum.
Em Portugal, a herança africana também foi mantida, inclusive nas
XIV Congresso Internacional | Palmas-Tocantins-Brasil | 2013
Anais do FoMerco - Fórum Universitário Mercosul | 1100
[...] festividades promovidas pela Coroa e pelas autoridades municipais, como entradas
reais, aclamações, casamentos e aniversários de membros da família real, eram
ocasiões em que se encontravam, sendo inclusive incorporados nos cortejos e
chamados, ao lado de outros grupos, a apresentarem suas músicas e danças exóticas
(SOUZA, 2002, p. 159).
Entretanto, a presença de africanos mostrando seus costumes tradicionais não era benquista
fora destes ambientes festivos. Além das festas reais, era permitida, segundo Souza (2002, p. 160), a
presença destes grupos nas instituições religiosas, “que aceitavam que celebrassem a Virgem Maria
vestidos à sua moda, com danças e ritmos africanos executados até dentro das igrejas”.
Nas Américas, sobretudo no Brasil, as comunidades de negros realizavam eleições de reis e
governadores e estas eram desempenhadas com festas e comemoradas com danças e ritmos africanos.
Além das festas eles cumpriam ações e funções de apoio à comunidade como, por exemplo, apoio aos
doentes, ajudando nos enterros etc. O rei, também chamado de capitão do mato ou capataz, desfrutava
de poder dentro daquele espaço e além do rei e da rainha havia outros cargos de caráter cerimonial,
entre os quais o do encarregado da bandeira, imperadores. As eleições duravam, normalmente, três dias
de cerimônias para os santos.
Segundo Marina Souza,
[...] os eleitos assumiam posição de controle sobre seus governados, decidindo
diretamente as questões internas ao grupo ou atuando à maneira de intermediários
entre este e a sociedade abrangente, como elementos de reforço da ordem (SOUZA,
2002, p. 177).
Além do poder político, os reis, devido à ligação com o divino, também exercia/exercem
importante papel na religiosidade do povo que durante muito tempo não foi bem visto pelos olhos da
Igreja por possuir festas carregadas de simbologia sincrética com caráter simbólico e lúdico, popular e
permeado de danças e cantos executados nas ruas e com ingestão de grande quantidade de bebida e
comida.
Na região central do Brasil, algumas manifestações populares mesclando a origem sagrada e as
festas profanas mantém o culto a esta realeza, destacando-se processos de reelaboração cultural que
identificam os locais dessas culturas, conforme as considerações de Bhabha, no sentido de que
instituem elementos formadores da vida cotidiana, lócus de realização e reprodução de sentidos no
tempo presente constituintes de um “entre-lugar” dentro de um tempo histórico que é ao mesmo
tempo “presença e substituição” (BHABHA, 1998, p. 221).
Esta influência pode ser percebida em manifestações diversas, como as festas juninas, cuja
maior força pode ser observada na região Nordeste do Brasil, e que ganha características peculiares no
distrito de Príncipe, em Natividade, Tocantins.
Capitão do Mato 4
3 Colaboração neste tópico de pesquisa de campo realizada na disciplina Comunicação Comunitária, do curso de
Comunicação Social da UFT, no semestre 2011/1, pelos alunos Carla Schultes Ribeiro, Fábio Coêlho, Lara Fogaça, Samea
Letícia Aires e Wanderson Gonçalves, sob a orientação da professora Verônica Dantas Meneses.
4 PINHEIRO, Paulo César; BARRETO, Vicente. Capitão do mato. Intérprete: Maria Bethânia. In .: Brasileirinho ao vivo. Rio
As duas principais manifestações culturais do distrito estão ligadas à igreja católica, embora
existam na comunidade duas pequenas igrejas evangélicas. O Festejo de São João e a recepção da Folia
do Divino Espírito Santo de Natividade atraem visitantes da região anualmente.
Durante a Folia do Espírito Santo, a chamada folia de baixo realiza um pouso no povoado, que
recebe com farta comida, orações e danças (catira) os foliões que compõem a comitiva que passará 40
dias em peregrinação até o encerramento da festa, no dia de Pentecostes. Já os Festejos de São João,
marca forte do povoado, se tornaram referência nas proximidades e envolve todo esforço comunitário
e planejado pela comunidade durante o ano.
A festa tem características particulares em Príncipe. O dia de São João é comemorado em 24 de
junho, mas seus preparativos se iniciam muito antes e na data da celebração já se têm escolhidos os
personagens principais da festa: capitão do mastro, rainha, imperador e imperatriz.
O primeiro dia da festa, 23 de junho, é chamado Dia do Capitão do Mastro e de sua
companheira rainha. O capitão do mastro é figura da festa do Divino Espírito Santo em várias cidades
do Brasil, especialmente na região Centro Oeste e vemos nos festejos juninos de Príncipe sua presença
marcante diferenciando das festas juninas tradicionais da região Nordeste do Brasil. Nas festas juninas,
o mastro é tradicionalmente erguido para simbolizar os três santos homenageados, Santo Antônio, São
João e São Pedro. Uma possível origem desta tradição, entretanto, costume pagão de levantar o mastro,
ou do mastro de maio, presente em vários países europeus e no Brasil, simbolizando a fertilidade.
No decorrer da manhã do dia 23, os preparativos começam com a decoração do salão e da
comida que será servida à noite aos participantes da festa, preparada em grandes panelas e fogões pelas
mulheres do povoado na casa do capitão, com mantimentos recolhidos com a ajuda de todos da
comunidade.
Nas ruas de Príncipe, a imagem de São João é levada em procissão, com rituais e manifestações
de fé e devoção. A marcha é conduzida por uma das duas folias do local. Depois da marcha, à tarde,
acontece um lanche na casa da rainha servido aos presentes.
Após, segue o encontro das folias, cada uma se apresenta com cânticos diferentes. Neste
momento se reúnem às folias, capitão do mastro, rainha, imperador, imperatriz e o padre em que
acontece mais um ritual de oração.
Já no período da noite, todos se encontram na casa do Capitão, entoam cânticos e em seguida
caminham para a igreja. Capitão do mastro e rainha são carregados pela comunidade em um andor ao
lado do mastro. Durante o percurso, um grupo de crianças segue dançando sussa, dança de origem
africana presente vários festejos religiosos de diversas cidades do Tocantins. Após a celebração da missa
acontece o jantar, farto, de responsabilidade do capitão, mas preparado pela comunidade e servido pela
rainha e outras mulheres. Após estas celebrações, muita música e bebidas seguem até tarde, nas barracas
montadas seguindo a rua principal lotada por visitantes.
líderes folkcomunicacionais que transmitem o ideal de compromisso como portadores das graças
pedidas aos santos (MARÇAL et al, 2011).
Na festa junina de Príncipe, especialmente a figura do Capitão do Mastro é um elemento a mais
que demonstra a invenção particular destes festejos pela comunidade, criando laço identitários fortes e
regionalmente, tradicionalmente e cotidianamente marcados. Podemos dizer que este é mais um
elemento com diversas origens.
Assim, diversos elementos do fato folclórico se fundam como formas de comunicação e
cultura, conforme Benjamim (2004, pp. 21-28). Aspectos de antiguidade, aceitação coletiva e
tradicionalidade, e por consequência resistência cultural, são perpassados por processos de
refuncionalização baseados em condições próprias do local, mas constituindo um sistema cultural que
não está isolado e restrito àquele grupo.
Considerações finais
Nas sociedades contemporâneas em tempos de globalização, não é mais possível a manutenção
de definições determinadas e fechadas. A diversidade cultural que marca o Brasil tem características
muito particulares que manifestam modos de pensar e fazer de seus representantes, mas também
demarcam laços identitários, comunicam expressões, valores e demandas de grupos em geral
reprimidos e à margem da cultura hegemônica. A criatividade da apropriação cultural, reconstrução e
reinvenção são marcas das manifestações populares que também são regionalizadas.
As peculiaridades dos festejos juninos no povoado Príncipe, Tocantins, demonstram formas de
os grupos sociais localizados garantirem estratégias de visibilidade e sobrevivência coletiva e a
capacidade de reinventar as formas culturais com as quais estruturam essas condições.
Observar com desprendimento a realidade de um povoado que vive às margens da sociedade em
um momento em que a pacata comunidade mostra toda a sua força de vontade, devoção, tradição e
coletividade, quando se propõe à realização, produção e execução de uma festa que movimenta todo o
povoado e seus arredores, é essencial para garantir, por meio da pesquisa e divulgação científica,
panoramas mais dinâmicos e particulares da sociedade.
O Festejo de São João de Príncipe representa, de fato, a identidade cultural da sua população,
destacada pelo sincretismo, pelas especificidades do lugar, pela necessidade de visibilidade e pela
reinvenção e reelaboração das heranças passadas por gerações bem como da comunicação hegemônica,
em que a própria comunidade é protagonista e coadjuvante.
Referências
BARRETO, Luiz Antônio. Folclore: invenção e comunicação. Aracaju: Typografia Editorial/Scortecci Editora, 2005.
BENJAMIM, Roberto. Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore,
2004.
BHABHA, H. O local da cultura. Trad. de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de L. Reis e Gláucia R. Gonçalves. Belo
Horizonte, MG: Ed. UFMG, 1998.
FRAZER, James George. The golden bough. The magic art and the evolution of kings. New York: The MacMillan
Company, 1951.
LINS, Daniel. Como dizer o indizível. In: LINS, Daniel (Org.). Cultura e subjetividade: saberes nômades. 5. ed. São Paulo, SP:
Papirus, 1997.
MARÇAL, D.C. ; CARACRISTI, M. F. A. ; MENESES, V. D. . A Folkcomunicação nos festejos de Monte do
Carmo/TO. In: XIV Conferência Brasileira de Folkcomunicação, 2011, Juiz de Fora/MG. XIV Conferência
Brasileira de Folkcomunicação, 2011.
MESSIAS, N. C. Negros e Brancos em Monte do Carmo(TO): Manifestações culturais e Religiosidade. Disponível em:
<http://www.ufg.br/this2/uploads/files/112/36_NoeciMessias_NegrosEBrancosEmMonteDoCarmo.pdf.> .
Acesso em junho de 2010.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
SCHMIDT, Cristina. Folkcomunicação: estado do conhecimento sobre a disciplina. 2008. Disponível em:
http://www.intercom.org.br/bibliocom/zero/pdf/schmidt.pdf. Acesso em: 14/01/2010.
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: histórias da festa de coroação do rei congo. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2002.
WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. Barcelona, Espanha: Ediciones Península, 1980.
Resumo
D
esde 2009 vem sido construída na América Latina uma rede de coletivos, artistas, gestores,
pesquisadores, midialivristas, e agentes culturais em geral em torno da chamada "Cultura
Viva Comunitária". Esta articulação é fruto da apropriação latinoamericana do Programa
Cultura Viva, criado em 2004 pelo Ministério da Cultura brasileiro, ao passo que esta política pública se
enfraquecia no país. É interessante observar como o conceito foi apropriado pela sociedade civil
organizada, que o ressignificou em uma rede transversal de experiências ligadas ao território local, e ao
mesmo tempo orientadas à ação nacional e continental, reconhecendo que o primeiro território é seu
prório corpo. Este artigo visa assim explorar esta articulação em termos históricos, sociais e conceituais,
mais especificamente com a realização do 1° Congresso Latinoamericano Cultura Viva Comunitária, de
17 a 22 de maio de 2013 em La Paz, na Bolívia, do qual os autores participaram ativamente de sua
construção.
O FoMerco
Objetivos
Para tanto, o FoMerco pretende promover e divulgar a pesquisa e o debate acerca da atuação conjunta
das nações sul-americanas —e do protagonismo do Brasil em particular—, não apenas em termos de
estratégia de inserção regional autônoma na nova ordem global, mas, sobretudo, como construção de
alternativa emancipatória de um processo contra-hegemônico.
Trajetória
Desde sua origem, em 2000, o FoMerco tem buscado promover o intercâmbio entre as instituições e
estudiosos através de atividades de cooperação que contribuam para o aperfeiçoamento do ensino e da
pesquisa em relação aos temas que formam a agenda do Mercosul. Para a difusão do Fórum e do ideal
da construção da integração, o FoMerco tem adotado a estratégia de realização de seus congressos nas
diversas capitais brasileiras e, em 2010, inaugurou suas atividades no exterior, na Universidade de
Buenos Aires. Desde sua inspiração nos seminários sobre “Universidades no Mercosul”, realizados na
PUC-MG, no final da década de 90, e a partir sua criação em 2000, foram realizados até agora quatorze
Congressos Internacionais.
XIV (2013) De sul a Norte. Por uma integração do continente sul-americano. Universidade
Federal do Tocantins (UFT) Palmas, Tocantins.
XIII (2012) Por uma integração ampliada da América do Sul no século XXI. Edifício‐sede do
Mercosul. Montevidéu, Uruguai.
XII. (2011) Os 20 anos do Mercosul. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro.
XI (2010). Sulamérica: comunidade imaginada. Emancipação e integração. Universidad de
Buenos Aires (UBA). Buenos Aires, Argentina.
X (2009). Fronteira, Universidade e Crise Internacional. Universidade Federal da Integração
Latino-Americana (Unila). Foz do Iguaçu, Paraná.
IX (2008). Desafios e oportunidades no norte da América do Sul. Universidade Federal de
Roraima (UFRR). Bela Vista, Roraima.
VIII (2007) Desafios e oportunidades da integração regional no norte da América do Sul.
Universidade Federal de Sergipe (UFS). Aracaju, Sergipe.
VII (2006) Uma nova configuração política para a América do Sul. Memorial da América
Latina, sede do Parlatino. São Paulo, São Paulo.
VI (2005) Mercosul e Comunidade Andina de Nações: os desafios da integração sul-americana.
Universidade Católica de Goiás (UCG). Goiânia, Goiás.
V (2004) A relação Estados Unidos - América Latina na ordem mundial hoje. Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
IV (2003) América do Sul como prioridade do Brasil. Universidade Estadual de Maringá
(UEM). Maringá, Paraná.
III (2002) A Universidade e a (des)integração da América Latina. Universidade de Brasília
(UnB). Brasília, DF.
II (2001) Desequilíbrios regionais na Integração. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Recife, Pernambuco.
I (2000) Mercosul em Debate. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro.
Dentre as publicações dos Anais dos Congressos, além do livro eletrônico resultante do XIII
Congresso, que reuniu análises dos diferentes aspectos da agenda de desenvolvimento e políticas de
integração, destacam-se até o momento:
SARTI, I; LESSA, M. L.; PERROTTA, D., CARVALHO, G. C. (Orgs) Por uma integração
ampliada da América do Sul no século XXI. Ingrid Sarti, Daniela Perrotta, Mônica Leite Lessa,
Glauber Cardoso Carvalho. E-book. 2v. Rio de Janeiro: Perse, 2013.
Lessa, M. (org): Os 20 anos do Mercosul. Anais XII Congresso Internacional do FoMerco,
2011. cd;
Cerqueira Filho, G. (org). Sulamérica, comunidade imaginada: emancipação e integração. Niterói:
EdUFF, 2011;
Lima, M. C, Santos, R. R., Sarti, I. e Ghere, T (org.). Mercosul século 21: ampliação e aprofundamento.
2 vol. Boa Vista: EdUFRR, 2010;
Lima, M; C. e Sarti, I (org). Frontera, Universidad y Crisis Internacional. Fórum Universitário Mercosul
– FoMerco. Foz de Iguaçu, 2009 (cd)
As atividades setoriais dos Grupos de Trabalho também geraram várias publicações expressivas do
debate interno acumulado nos GTs, algumas vinculadas a outras associações (como Clacso e Flacso).
Integrantes de uma rede sem fins lucrativos, os congressistas do FoMerco têm contado com o apoio
das Universidades que acolhem a realização dos Congressos e o patrocínio de órgãos e instituições de
caráter público. A contribuição de órgãos públicos do tem sido fundamental para viabilizar a realização
dos Congressos.Destacam-se os seguintes apoios históricos:
Estrutura e Funcionamento
Neste momento, sob presidência eleita em Assembleia no XII Congresso para o exercício do período
2011-2013 e com o apoio do Conselho Consultivo eleito na mesma ocasião, foram assumidos os
seguintes compromissos de uma gestão descentralizada que pretende renovar a estrutura do FoMerco,
acentuando sua natureza democrática, integracionista e latino-americanista:
Associados
Vale ressaltar que o cadastro de participantes inscritos nos Congressos do FoMerco nos últimos 5 anos
registra a presença de 600 membros. Em relação ao perfil dos participantes dos Congressos FoMerco,
observa-se um grau de constância na presença de pesquisadores/professores, principalmente entre
brasileiros e argentinos. Já o número de alunos de pós-graduação oscila e é sempre muito maior nos
Congressos de anos ímpares, quando ocorre a chamada aberta de artigos como atividade dos Eixos/
Grupos de Trabalho. Historicamente, os Congressos do FoMerco apresentam uma média de presença
de, pelo menos, 70% de pesquisadores/professores e 25% de pesquisadores/pós-graduação.
Programação
Simpósio de Abertura
Cultura Contemporânea na América Latina
Debate sobre pensamento latino-americano e as expressões culturais do continente,
desde as manifestações dos povos originários até a luta pela regulamentação do
poder midiático. Questionamento do papel da cultura como fator de integração
regional.
Horário: 16h às 18h
Expositores:
Albino Rubim
Ana Wortman
Beatriz Bissio
Maria Luiza Franco Busse
José Renato Vieira Martins
Susana Soares
Vera Cepêda
Relator: Leonardo Valente
Coordenação: Mônica Leite Lessa
Cerimônia de Abertura
Instalação do XIV Congresso
Horário: 18h20 às 19h
Painel de Abertura
Unasul e Mercosul, os desafios da Integração em tempo de crise global
Intervenções de convidados especialistas sobre as estratégias de articulação política
entre os Governos nos blocos Mercosul e Unasul, em relação aos temas prioritários
da agenda da integração.
Horário: 19h às 21h
Expositores:
Jorge Lara Castro
Mariana Vázquez
Luiz Dulci
Reinaldo Salgado
Roberto Conde
Samuel Pinheiro Guimarães
Coordenação: Geronimo de Sierra
Eixos/GTs
Reunião de Trabalho.1
Horário: 8h30 às 10h20
Painel. 2
Tecnologias sociais, cooperação internacional e produção do conhecimento
A importância da integração das ciências e das tecnologias na América do Sul e as
alternativas de produção e divulgação do conhecimento como fator de
desenvolvimento regional que redefinem as políticas públicas. Distintas visões acerca
da necessidade de institucionalização das redes e do aprofundamento de seu grau de
internacionalização. Contribuições analíticas de redes consolidadas, abrem o debate
sobre a internacionalização das universidades e do FoMerco, em particular.
Horário: 10h3o às 12h30
Expositores:
Anibal Orué Pozzo
Daniela Perrotta
Ennio Candotti
Geronimo de Sierra
Paula Rodriguez Patrinós
Relator: Glauber Cardoso Carvalho
Coordenação: Gonzalo Berrón
Painel.3
Os desafios da Amazônia. Desenvolvimento, defesa e políticas sociais
Os desafios da integração e as políticas de defesa e desenvolvimento científico que
nos remetem à Amazônia e a questões contidas na agenda do desenvolvimento
integrado.
Horário: 10h30 às 12h30
Expositores:
Alexandre Fuccille
Alexandre Uehara
Edna Castro
Marcelo Mariano
Emanuel Porcelli
Coordenação: Thomas Heye
Simpósio.2
Desenvolvimento, industrialização, recursos naturais e a nova arquitetura
financeira da integração no Século XXI
Debate sobre as questões que interrogam as escolhas dos modelos de
desenvolvimento no contexto de crise internacional e a busca de políticas alternativas
na região. Incluir a polêmica primarização vs industrialização, a noção de
desenvolvimentismo no mundo globalizado e as escolhas possíveis de utilização dos
recursos naturais para o desenvolvimento integral. Avaliação dos avanços e
obstáculos na tentativa de criação de um sistema de financiamento do
desenvolvimento integrado.
Horário: 14h30 às 16h30
Expositores
Alan Barbier0
André Calixtre
José Carlos de Assis
José Félix Rivas
Ricardo Canese
Relator: Raphael Padula
Coordenação: Frederico Katz
Simpósio.3
Desafios da Democracia: desigualdades, teoria e prática.
Abordagem da democracia e os conflitos sociais vigentes nos países-membro do
Mercosul e da Unasul, à luz dos persistentes indicadores de desigualdade social e do
desempenho das instituições voltadas para sua gestão. Apreciação da
institucionalidade do Mercosul com a entrada da Venezuela, o golpe do Paraguai e as
propostas de incorporação de Equador e Bolívia, Guiana e do Suriname. Novas
formas de diálogo com o movimento social urbano no contexto de descrédito da
política e, particularmente, dos partidos políticos. Avaliação da competência
legislativa e o desempenho do Parlamento da América do Sul – Parlasul.
Horário: 17h às 19h
Expositores
Aragon Érico Dasso Júnior
Gustavo Codas
Eixos/GTs
Reunião de Trabalho.2
Horário: 8h30 às 10h20
Assembleia Geral
FoMerco