ABRIL23

100 DIAS DE
GOVERNO FEDERAL

voltou.
Pra fazer mais
POR NOSSA GENTE.
O Brasil voltou a investir
em infraestrutura e a cuidar
da cultura, da sua natureza,
da sua gente. Voltou a combater
a fome, com programas e ações
para quem mais precisa. Voltou
a priorizar a saúde, com mais
profissionais e recursos. Voltou
a priorizar a educação e valorizar
os professores. Voltou a respeitar
o meio ambiente e o seu povo
e a ser respeitado no exterior.
E é só o começo, vem
muito mais por aí.

#OBrasilVoltou

Confira as principais ações:

gov.br/obrasilvoltou
2 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
REFORMA DA PREVIDÊNCIA NA FRANÇA
Um povo de pé
O discurso vazio do Executivo e a brutalidade
policial testemunham a agitação febril do poder
francês. E não poderia ser diferente: a contestação
da reforma das aposentadorias carrega a semente
do rechaço à ordem social sustentada pelo governo
POR BENOÎT BRÉVILLE*
P
odemos fazer um governo recuar,
pondo em xeque uma decisão do
poder? Não faz muito tempo, a res-
posta era óbvia na França. Quando
confrontado com movimentos sociais
duradouros, determinados, organiza-
dos, que colocavam nas ruas multidões
maciças, o poder muitas vezes batia em
retirada. E seu recuo revelava a possibili-
dade, para a população, de se fazer ouvir
fora dos períodos eleitorais, aos quais a
vida democrática não se resumia. Os
mais diversos projetos acabaram assim
esquecidos: a lei de autonomia das esco-
las privadas em 1984, a da seleção para a
universidade em 1986, o contrato de in-
serção profissional em 1993, o “plano Ju-
ppé” em 1995... Era comum inclusive que
os promotores de uma reforma impopu-
lar pedissem demissão, como o ministro
do Ensino Superior Alain Devaquet, em
1986, ou o da Educação Nacional Claude
Allègre, em 2000.
No entanto, a partir de 2006 e da luta
vitoriosa contra o Contrato do Primei-
ro Emprego (CPE), nada disso voltou a
acontecer. Pouco importam o número
de manifestantes, a estratégia, as passea-
tas organizadas ou anárquicas, as ope-
rações-tartaruga, as ocupações de uni-
versidades ou as ações espetaculares. As
derrotas se sucedem: luta contra a auto-
nomia das universidades em 2007, bata-
lha das aposentadorias em 2010, mobi-
lizações contra as “leis trabalhistas” em
2016 e 2019 e contra o programa de sele-
ção no ensino superior “Parcoursup” em
2018... Doravante, o “modelo Thatcher”
se impõe: governos não recuam mais –
nem diante do lixo que se acumula, dos
postos de gasolina secos, dos trens para-
dos, das escolas fechadas, das estradas
bloqueadas. Pouco lhes importam as
ações no metrô e as manifestações se-
manais ou diárias: quando a situação se
torna insustentável, eles se mobilizam,
reprimem. Essa dureza se transformou
até em atributo do poder na República:
“resistir à rua” seria testemunho de um
senso de Estado, de coragem política.
Assim, o ex-primeiro-ministro Édouard
Philippe podia alardear orgulhosamente
diante dos alunos de uma grande escola
de negócios: “Nunca sabemos qual é a úl-
tima gota. [...] Em 2017, vieram os projetos
do trabalho. Eu disse a mim mesmo que
aquilo seria terrível, pois me lembrava da
lei do trabalho de dois anos antes. Mani-
festações monstruosas, tensão máxima...
Contudo os projetos foram encaminha-
dos e tudo passou. Fizemos a reforma da
SNCF [transporte ferroviário], pusemos
fim ao estatuto e nos abrimos à concor-
rência. Esperávamos bloqueios comple-
tos, mas nada disso aconteceu. Houve
greves e passaram. Dizia-se que as pes-
soas entrariam na universidade, no ensi-
no superior, por meio de uma orientação
seletiva, e, se vocês acompanharam os
acontecimentos dos últimos vinte ou trin-
ta anos, sabem que aquilo era uma bom-
ba. Mas foi feito, ocuparam-se e desocu-
param-se universidades... e passou!”.1 O
movimento dos Coletes Amarelos, entre-
tanto, mostrou que nem tudo passa.
DE CAIXA DE
RESSONÂNCIA A CAPACHO
Emmanuel Macron foi então protelan-
do, à espera do “isso passa” mais uma
vez. Impôs sua reforma das aposenta-
dorias com brutalidade, ignorando um
movimento de contestação cuja ampli-
tude e firmeza deveria ter percebido. Por
nove vezes, ao apelo de uma intersindi-
cal surpreendentemente unida (ver arti-
go na pág. 12), milhões de pessoas saí-
ram às ruas das grandes cidades e até de
algumas pequenas, que jamais tinham
visto semelhantes mobilizações. As pes-
quisas de opinião, que geralmente afe-
tam o Palácio do Eliseu, indicavam até
70% de opositores à reforma e mesmo
90%, apenas entre os trabalhadores da
ativa, números que foram aumentando
à medida que o governo fazia sua obra
“pedagógica” e os cidadãos desmascara-
vam as mentiras ministeriais: não, a re-
forma não é “necessária” nem “justa”, ela
não “protege as mulheres” nem garante
uma “pensão mínima de 1.200 euros”
para todos. É arriscado querer obrigar as
pessoas a trabalhar por mais dois anos:
elas se informam, elas verificam.
Dócil à União Europeia, que recomen-
da essa reforma, mas incapaz de con-
vencer os franceses e seus deputados,
Macron resolveu forçar a barra: utilizou
todas as munições imagináveis para li-
mitar a duração dos debates parlamen-
tares (artigo 47.1 da Constituição), inter-
romper as discussões sobre determina-
do artigo depois que “no máximo dois
oradores contrários falarem” (artigo 38
do regimento do Senado, utilizado pela
primeira vez desde sua entrada em vigor
em 2015, permitindo acelerar a ques-
tão do relatório da idade legal) e forçar
os senadores a se pronunciarem sobre
a reforma como um todo, e não artigo
por artigo (artigo 44.3). Enfim, em 16 de
março de 2023, o governo de Élisabeth
Borne recorreu ao famoso artigo 49.3,
que autoriza a dispensa do voto dos de-
putados. Eis aí um método original para
um presidente que gosta de se erigir em
arauto do mundo livre e fustigar incan-
savelmente os “autocratas”, os “regimes
autoritários” nos quais a opinião do
povo não conta, em que o Parlamento
desempenha um papel passivo e a opo-
sição é reduzida ao silêncio.
No fim das contas, sua reforma da pre-
vidência, que comprometerá a vida dos
franceses por décadas, acabará sendo
votada por senadores eleitos indireta-
mente e empenhados em proteger seu
próprio regime de pensão enquanto su-
primem o dos outros. Os dois anos de
trabalho suplementares impostos sem
a aprovação da Assembleia Nacional re-
pousam apenas na legitimidade de uma
instituição dominada por um partido
(Les Républicains) que não ultrapassou
os 5% dos votos na última eleição pre-
sidencial e de onde duas das principais
formações (Rassemblement National
[RN], extrema direita) e La France Insou-
mise (LFI, esquerda) estão ausentes...
Macron não vê nisso problema al-
gum: a reforma figurava em seu progra-
ma presidencial, ele venceu as eleições
e, portanto, os franceses a aprovam. A
“multidão não tem legitimidade diante
do povo que se exprime por intermédio
dos eleitos”, concluía ele ainda em 21
de março último. Há um ano, quando
do primeiro turno da eleição presiden-
cial, o desafio das aposentadorias mal
foi discutido, tanto mais que Macron se

recusou então a debater com seus con-
correntes, como fizera cinco anos antes:
ficou esquecido em proveito da imigra-
ção, da guerra na Ucrânia, da insegu-
rança... E o presidente em exercício só
obteve os votos de 20,7% dos inscritos.
Quanto ao segundo turno, sua vitória
decorreu largamente de um voto útil,
como ele próprio reconheceu na noite
de 24 de abril de 2022: “Sei que muitos
de nossos compatriotas votaram em
mim não por apoiar minhas ideias, mas
para barrar a extrema direita. [...] Tenho
consciência de que estou em dívida para
com esse voto nos próximos anos. Sou
depositário de seu senso do dever, de
seu apego à República e de seu respeito
pelas diferenças expressas nestas últi-
mas semanas”. Compromisso esquecido
logo depois de assumido.
Desde que foi eleito, Macron trabalha
sobretudo para ignorar ou esmagar toda
forma de oposição. Relegada durante a
legislatura anterior ao papel de caixa de
ressonância em que a maioria presiden-
cial votava em uníssono qualquer proje-
to do governo, a Assembleia agora fun-
ciona como capacho. Assuntos graves
como a guerra na Ucrânia, a entrega de
armas a Kiev ou as sanções contra a Rús-
sia não são objeto de nenhum debate
sério, legitimado pelo voto. O orçamen-
to de 2023 foi imposto com recursos ao
artigo 49.3 (não menos de dez no total),
a reforma do seguro-desemprego saiu
a toque de caixa, medidas controversas
foram introduzidas sorrateiramente nos
decretos...2 Tão logo se nota um desacor-
do, Macron apela para a força, ignoran-
do os contrapoderes e se recusando até
a receber, malgrado repetidas solicita-
ções, os sindicatos mobilizados contra a
reforma das aposentadorias.
Essa arrogância só alimenta a desilu-
são democrática e reforça o sentimento
de que o jogo político é viciado, para
grande satisfação do Rassemblement
National. A reforma das aposentado-
rias, de fato, concentra “a maior parte
dos mecanismos hoje identificados pela
ciência política como responsáveis pelo
ressentimento social que, por sua vez,
alimenta os partidos políticos de direita
radical”, explicam os pesquisadores Bru-
no Palier e Paulus Wagner.3 Ela procura
fragilizar, primeiro, as classes médias
baixas, as pessoas que exercem funções
árduas, dois reservatórios de votos para
a extrema direita. Ilustra também a ar-
rogância das “elites” perante a cólera do
povo, sua propensão a enganar, mentir
e dissimular a fim de alcançar seus ob-
jetivos, ao mesmo tempo que escancara
a decadência das instituições. Marine Le
Pen fará bem em aproveitar esses argu-
mentos na hora certa.
Além de favorecer um partido visto
como dos reprovados, a política de des-
prezo incita os eleitores a abandonar o
jogo. Com efeito, para que votar? Para
compor uma Assembleia Nacional re-
duzida a um teatro de sombras e de le-
gitimidade duvidosa? Já no segundo tur-
no das eleições legislativas de junho de
2022, mais de 53% dos inscritos se abs-
tiveram. Alguns ignoravam até que esta-
va havendo uma eleição. “Se somarmos
os 5%-6% de não inscritos aos 53% dos
que se abstiveram, chegaremos a seis
franceses em dez que não votam mais
nas eleições legislativas. Estamos numa
situação em que o campo majoritário
no Parlamento foi escolhido por um ter-
ço ou mesmo um quarto dos franceses”,
observa o cientista político Jean-Yves
Dormagen.4 Ora, prossegue ele, aqueles
que se rendem às urnas apresentam um
perfil todo especial: “Os idosos e diplo-
mados têm 80% de chances de votar, en-
quanto os jovens com pouco ou nenhum
estudo têm 80% de chances de não com-
parecer à votação”. Contudo, justamente
as classes superiores, os diplomados e os
aposentados é que constituem o núcleo
do eleitorado do presidente e da direita,
ao passo que os jovens, os não diploma-
dos e os moradores de bairros populares
integram em geral as fileiras do RN e da
LFI. Macron pode encorajar essa “demo-
cracia da abstenção”, pois ela o favorece.
E tanto pior se o fosso entre eleitos e ci-
dadãos aumentar, se a legitimidade do
Parlamento diminuir e se a desconfiança
política crescer a ponto de os deputados
requisitarem agora proteção policial.
Em 1922, a Internacional Comunis-
ta chegou a clamar que “nove décimos
dos postos eleitorais colocados à dis-
posição do partido estejam ocupados
por trabalhadores que nem sequer são
funcionários da agremiação, mas ainda
se encontram na fábrica e no campo”.
Era preciso que os representantes do
povo partilhassem “seus costumes, suas
concepções, seus hábitos”.5 Um século
depois, a Assembleia Nacional francesa
conta apenas com cinco operários entre
seus 577 deputados, ou seja, menos de
1% dos eleitos, embora esse grupo social
represente 16% da população. A maioria
presidencial (Renaissance, Modem, Ho-
rizons) abocanha 61,4% das diretorias e
profissões intelectuais de nível superior,
para somente 2% dos empregados e ne-
nhum operário.6 Depois de passar por
grandes escolas ou funções seletivas que
se tornaram socialmente homogêneas,
a maior parte desses deputados – advo-
gados, consultores, banqueiros, empre-
sários, médicos, startupers – só tem um
vago conhecimento da realidade concre-
ta do país. Tranquilos quanto à velhice
graças a aposentadorias complementa-
res e a uma poupança nada desprezível,
foram incapazes de perceber a cólera
provocada pela reforma no seio de uma
população já prejudicada pela inflação e
atormentada pelas crises sanitária, geo-
política, energética, climática...
“DEVEMOS RECORRER
À VIOLÊNCIA?”
Erro fatal: ao contrário do que ocorre
no Parlamento, a mobilização contra o
ABRIL 2023
relatório da idade legal de aposentado-
ria impressiona pela extrema heteroge-
neidade social. Que há de comum entre
os estudantes frequentemente egressos
de meios favorecidos e os funcionários
de hospital? Entre os lixeiros de cidade
grande e os setores de pesquisa? Entre
os técnicos de manutenção ferroviária
e os médicos particulares? A seus olhos,
essa reforma, como tantas outras, sim-
boliza a ruptura irreparável entre os di-
rigentes decididos a pôr a sociedade em
marcha a ré e as aspirações profundas
das populações para as quais é preciso
proteger – e melhorar – as instituições
que tornam possível uma vida feliz, de-
cente, cheia de sentido. De repente, é o
fio inteiro do regime econômico que o
governo desenrola às suas custas. Pois
constranger os assalariados de pouco
estudo, e sobretudo as mulheres, a tra-
balhar mais dois anos leva as pessoas
a perguntar infalivelmente: trabalhar
para que, por que e para quem?
Desde que foi eleito,
Macron trabalha
sobretudo para
ignorar ou esmagar
toda forma de oposição
Para umas, empregadas em serviços
essenciais à educação, à saúde, à lim-
peza e aos cuidados pessoais, a reforma
significa acrescentar 24 meses ao esgo-
tamento de uma carreira pautada pelas
supressões de pessoal, a perversidade
fria de uma administração obcecada por
números, a rapinagem de contratantes
públicos e privados capazes de organi-
zar a agonia de pessoas idosas em con-
dições indignas, enquanto recomendam
às cuidadoras que multipliquem forma-
ções em “humanidade”. Para os outros,
operários e técnicos em transporte,
energia, eletricidade e telecomunica-
ções nessas grandes empresas outrora
públicas que tecem as infraestruturas
dos países ocidentais e, a esse título, se
beneficiam de regimes especiais anu-
lados um após outro pelos “reformado-
res”, será preciso assistir e mesmo dar
sua colaboração durante mais dois anos
à erradicação de todo caráter de utilida-
de coletiva num trabalho cada vez mais
destinado a “produzir valor para o acio-
nista” ou a amortizar dívidas.
Assim, a onda levantada pela trucu-
lência governamental talvez se deva à
importância dos desafios subjacentes à
lei e à forma de sua imposição. Só pode
surgir contradição entre, de um lado, um
regime econômico que se desdobra na
comercialização de capinhas coloridas
de celulares, de direitos de poluir ou de
água de geleira derretida a 11 euros a
garrafa, e, de outro, uma população cada
vez mais indignada ao ver a política re-
duzida à escolha entre diversas manei-
Le Monde Diplomatique Brasil 3
ras de perpetuar um modelo inepto. Se
desertar, sair de um emprego inútil para
fazer outra coisa exige recursos e, no fun-
do, não resulta em nada, a amplitude da
“grande demissão” observada dos dois
lados do Atlântico, inclusive entre os di-
plomados nas maiores escolas, denuncia
um sufocamento do sistema e uma ne-
cessidade de esperança. Em 2018, essa
esperança foi despertada pelos Coletes
Amarelos. A cólera suscitada pela refor-
ma prolonga e generaliza essa revolta.
As comparações já se multiplicam.
“Para 284 mil Coletes Amarelos no auge
da mobilização, Emmanuel Macron li-
berou 13 bilhões de euros simplesmente
porque havia violência”, observou o se-
cretário-geral da CFDT, Laurent Berger.7
“Nós somos, segundo a polícia, 1,5 mi-
lhão nas ruas, em ordem e sem violên-
cia, mas ninguém se digna a nos rece-
ber!” “Nossos filiados nos questionam”,
desabafou o presidente da Confedera-
ção Francesa dos Trabalhadores Cristãos
(CFTC), Cyril Chabanier: “Precisaremos
recorrer à violência para sermos ouvi-
dos? Colocamos três vezes mais pessoas
nas ruas do que os Coletes Amarelos e
ninguém nos ouve. É necessário depre-
dar para conquistar?”.8
O protesto não para. Redobra, man-
tém-se, e ninguém sabe como isso vai
terminar. O Conselho Constitucional
deverá se pronunciar sobre a validade
da reforma em abril (ver artigo na pág.
14). Entretanto, qualquer que seja sua
decisão, o caso deixará marcas. Não se
espezinha impunemente a voz popu-
lar: dezoito anos depois, milhões de
franceses ainda se lembram do refe-
rendo de 29 de maio de 2005, relativo
ao Tratado Constitucional Europeu, e
da negação de seu voto pelo governo e
pelos parlamentares. “Segundo vários
de seus próximos”, diz um deles,9 “o
presidente da República ‘não tem ne-
nhum escrúpulo e não lamenta nada’.”
Nenhum escrúpulo, é verdade; não la-
menta nada, veremos. 
*Benoît Bréville é diretor do Le Monde
Diplomatique.
1   Intervenção de Édouard Philippe nos “Mardis
de l’Essec”, 18 maio 2021.
2   C f., por exemplo, “Assurance chômage: la
gauche et ses syndicats dénoncent un durcis-
sement ‘en catimini’ à la veille de Noël” [Segu-
ro-desemprego: a esquerda e seus sindicatos
denunciam um endurecimento “sorrateiro” na
véspera do Natal”], BFMTV, 25 dez. 2022.
3   Bruno Pallier e Paulus Wagner, “Les lendemains
politiques d’une réforme contestée” [As conse-
quências políticas de uma reforma contestada],
La Grande Conversation, 15 mar. 2013.
4   Citado em Le Figaro, Paris, 14 jun. 2022.
5   Relatório ao Quarto Congresso Mundial da
Internacional Comunista, 1º dez. 1922.
6   M athilde Goanec e Donatien Huet, “Après les
législatives, l’Assemblée nationale se renou-
velle mais n’est ni paritaire ni populaire” [Após
as eleições legislativas, a Assembleia Nacio-
nal se renova, mas não é nem paritária nem
popular], Mediapart, 22 jun. 2022.
7   E ntrevista ao Journal du Dimanche, Paris, 12
mar. 2023.
8   Citado em L’Opinion, Paris, 10-11 fev. 2023.
9   L e Monde, 19-20 mar. 2023.
4 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

EDITORIAL

Nossas crianças
precisam de atenção
POR SILVIO CACCIA BAVA

A
pior dor para uma mãe, para um A política neoliberal assumida pelo algum grau de insegurança alimentar. Retirar 33 milhões de brasileiros e bra-
pai, é perder seus filhos. Mesmo governo Temer e vigente até o fim do Significa redirecionar recursos públicos sileiras do mapa da fome é um dos prin-
que a morte tenha vindo por um mandato de Bolsonaro foi uma combi- para políticas sociais. Significa recuperar cipais objetivos desse governo. Para isso,
acidente ou pela Covid, a dor é nação perversa de desemprego, precari- experiências exitosas e inovar em políti- é preciso articular políticas públicas e
lancinante. O que pensar então do so- zação do trabalho, inflação dos alimen- cas públicas. Significa “botar o pobre no convocar a participação cidadã para fis-
frimento de uma mãe que vê seus filhos tos e cortes no orçamento das políticas orçamento e o rico no imposto de renda”. calizar a efetividade de sua implantação.
pequenos chorando, fracos, pedindo sociais, e colocou novamente o Brasil E entender que recuperar a dignidade Mas, se essa é uma prioridade, mais
comida, e, desesperada, não tem nada no mapa da fome. Foi o teto imposto ao dos mais pobres e atender a suas neces- prioritário ainda é atender nossas crian-
para aplacar a fome deles? Essa é a si- gasto social, para garantir a reafirmação sidades básicas é investimento em um ças. Premiar as prefeituras que tenham
tuação em que se encontram as famí- e o aprofundamento da desigualdade Brasil melhor para todos, e não gasto. o melhor desempenho e punir com
lias de 33 milhões de brasileiros e bra- social e os privilégios das classes mé- No caso das crianças, o Programa Na- exemplaridade os desvios de dinheiro
sileiras. Esse grupo que passa fome é o dias e das elites, que colocou os 6 mi- cional de Alimentação Escolar garante da merenda escolar. 
mais castigado, entre as 125 milhões de lhões de famílias mais pobres no mapa ao menos duas refeições diárias para os
pessoas que vivem com algum grau de da fome. Literalmente, esses governos 47 milhões de crianças e estudantes das
insegurança alimentar, mais da meta- tiraram o pobre do orçamento. escolas públicas. O governo Lula acaba de 1   E studo feito pela Universidade Livre de Berlim
de da população brasileira.1 Essa tragédia da extrema pobreza e da aumentar em 39% o repasse federal para em parceria com a Universidade de Brasília e
O Fundo das Nações Unidas para a In- fome não se expressa só no plano fami- a merenda escolar. As prefeituras tam- a Universidade Federal de Minas Gerais. Ver:
https://www.correiobraziliense.com.br/eco-
fância (Unicef), considerando o período liar e comunitário. Ela tem um forte im- bém fazem sua parte e podem estimular a nomia/2021/04/4918113-brasil-tem-125-mi-
de março de 2020 a dezembro de 2021, pacto na vida das pessoas e na socieda- produção, por parte de pequenos produ- lhoes-de-pessoas-que-nao-sabem-se-vao-se-
em plena pandemia, identificou um au- de, muitas sendo obrigadas a viver nas tores, dos ingredientes das refeições nas -alimentar-bem.html.
2   D isponível em: https://www.unicef.org/bra-
mento de 64,5% nos preços da cesta de ruas, dependendo da solidariedade dos creches, pré-escolas e escolas públicas. zil/insegurança-alimentar-aumento-da-mor-
alimentos para as famílias com crianças demais. A violência, a criminalidade e o E a qualidade da alimentação precisa talidade-materna-e-queda-nas-matriculas-
até 6 anos. Se somamos a isso o alto de- medo vão ganhando espaço e abrindo ser boa. A exigência de compra de ao me- -na-educação-infantil-impactam-a-primeira-
-infancia#.
semprego, o fechamento das creches e campo para a radicalização fundamenta- nos 30% dos alimentos dos produtores 3   Disponível em: https://drauziovarella.ul.com.
pré-escolas por 279 dias em 2020, que lista e o crescimento da extrema direita. locais de hortifrutigranjeiros é condição br/alimentacao/inseguranca-alimentar-quase-
privou as crianças das refeições diárias Garantir a segurança alimentar é um para atingir essa qualidade desejada, -3-mil-bebes-sao-internados-em-2022-com-
-sintomas-de-desnutrição.
que tomavam aí, e os cortes nas políti- enorme desafio para um país em que além de fortalecer esses pequenos pro- 4   Disponível em: http://portal.mec.gov.br/com-
cas de assistência social, as consequên- mais da metade da população vive em dutores, que são quem produz comida. ponent/tags/tag/31947-educacao-infantil.
cias são devastadoras. Quarenta e sete
milhões de estudantes da rede pública
brasileira de educação básica deixaram
de comer as refeições, cada vez mais
precárias, mas ainda fundamentais,
cujo valor do repasse federal estava con-
gelado havia cinco anos. O desenvolvi-
mento físico e intelectual das crianças
fica comprometido. A subnutrição abre
campo para doenças. As dificuldades no
aprendizado se acumulam.2
Os números impressionam. Das crian-
ças brasileiras com menos de 5 anos, 40%
das brancas e 58,3% das negras apresen-
tam algum grau de insegurança alimen-
tar. Houve um crescimento de 54,5% © Claudius
no número de crianças muito abaixo
do peso. A Fundação Oswaldo Cruz re-
gistrou que, durante 2021, diariamente
davam entrada no SUS oito bebês com
menos de 1 ano com quadro de desnu-
trição aguda. Ao todo foram 2.979 hospi-
talizações no ano. E 2022 apresentou um
crescimento de 7% nessas internações.3
No ano passado, eram 8.972.778 em
creches e pré-escolas. Mas, ainda que
o percentual de crianças de 0 a 3 anos
matriculadas venha aumentando, ape-
nas 12,2% das que vivem entre os 20%
mais pobres são atendidas, contrastan-
do com os 36,3% que vivem na parcela
mais rica da população.4

MOVIMENTOS SOCIAIS E O GOVERNO
Lula e o poder popular
Um dos grandes desafios do governo Lula é retomar, de modo consistente, a
participação popular. O povo precisa voltar ao centro do poder e exercê-lo, fortalecendo
laços que reconstruam a relação entre as camadas populares e seus representantes
POR CERES HADICH*
“Esperançar é se levantar, esperançar
é ir atrás, esperançar é construir,
esperançar é não desistir!”
Paulo Freire
A
vitória do presidente Lula em ou-
tubro de 2022 não foi somente
uma vitória eleitoral. Ela simboli-
zou um marco na defesa e reto-
mada da democracia no Brasil. Mais do
que isso, foi um muro de contenção da
escalada do autoritarismo e do fascismo
que avançaram em larga escala nos úl-
timos anos, com o governo Bolsonaro.
No entanto, a realidade imediata de-
monstrou que aquela vitória não iria sa-
tisfazer por si só. Os atos terroristas de 12
de dezembro, dia da diplomação de Lula,
quando bolsonaristas atacaram a sede
da Polícia Federal, em Brasília, e a ten-
tativa de explosão de um caminhão de
combustível nos arredores do aeroporto
da capital federal, em 24 de dezembro,
foram o prenúncio do que estava por vir.
Se, de um lado, a posse de Lula – en-
dossada pelas massas, com mais de 150
mil pessoas reunidas na Esplanada dos
Ministérios – e a subida na rampa do Pla-
nalto sinalizaram o caráter popular de seu
governo, de outro, o dia 8 de janeiro trouxe
à tona os ensaios antidemocráticos do fim
de 2022 elevados à potência de atos terro-
ristas que violentaram os três poderes e,
assim, a própria democracia. Se a eleição
de Lula simbolizou a vitória da democra-
cia, o 8 de janeiro de 2023 foi o aviso de
que as forças antidemocráticas deste país
não estão derrotadas por completo.
Mais do que eventos pontuais, as su-
cessivas tentativas de contestar, confun-
dir ou interromper o processo democráti-
co se somam à história de um país que se
formou com base em uma elite colonial,
antipopular, violenta, racista e patriar-
cal. O Brasil se tornou uma jovem pátria
carregando consigo uma independência
declarada sem o povo, uma República
proclamada em gabinetes e uma ditadu-
ra militar superada com anistia ampla.
Nesse sentido, a política genocida do
pior governo da história deste país, que
teve suas bases lançadas a partir do gol-
pe de 2016, é parte integrante desse pro-
cesso. Bolsonaro e sua política antipovo
são frutos de um Brasil que não conde-
nou seus generais torturadores e exalta
seus capitães do mato até hoje.
UMA POLÍTICA
QUE EXCLUI O POVO
Um dos grandes projetos do governo
Bolsonaro foi justamente eliminar a par-
ticipação popular e verticalizar todas as
formas de tomada de poder. Já em seus
primeiros atos, isso ficou demonstrado,
com a extinção, por exemplo, do Con-
selho Nacional de Segurança Alimentar
e Nutricional (Consea). A passos largos,
nas mais diversas esferas públicas, a
participação popular foi alijada (na cul-
tura, educação, direitos humanos, orça-
mento, saúde, meio ambiente...).
Fato é que a eliminação da participa-
ção popular representou parte da es-
tratégia do governo Bolsonaro. Rapida-
mente, o ex-presidente evidenciou sua
formação militar, ao considerar a so-
ciedade civil um inimigo interno a ser
combatido. Assim como na ditadura,
ao povo restou a exclusão das decisões
sobre os rumos do país. A rejeição ao
povo e o ódio à democracia deixaram
de ser retórica eleitoral e se tornaram
programa de governo.
Assim, as consequências desse pro-
grama se espalharam pela esfera federal:
universidades sem recursos, com pro-
fessores sendo perseguidos; a saúde sem
um plano estratégico em meio à pior
pandemia do século; programas sociais
com meros fins eleitorais, criados na ex-
pectativa de barganha de votos, sem ne-
nhuma intencionalidade voltada à redu-
ção dos impactos sociais da pandemia;
comunidades tradicionais entregues à
sorte de pistoleiros entusiasmados com
a política armamentista... Diante desse
cenário, pudemos concluir que a crise
não foi somente sanitária, com a pande-
mia de Covid-19; foi social, econômica,
política, ambiental... Vivemos uma crise
de democracia, um país em crise.
Ao todo, 125 milhões de brasileiros vi-
vem algum nível de insegurança alimen-
tar, sendo 59 milhões em insegurança
leve, 31 milhões em insegurança mode-
rada e 33 milhões em insegurança grave.
Por isso, é impensável seguirmos vivendo
sob a hegemonia ideológica de um “agro”
que diz ser “tudo”, mas na verdade é a
grande raiz das injustiças sociais, da con-
centração da terra, da renda, e causador
da fome, pois, além de não produzir ali-
mentos, dissemina desigualdades.
O POVO DEVE VOLTAR
AO CENTRO DO PODER
Um dos grandes desafios do governo
Lula é retomar, de modo consistente,
ABRIL 2023
a participação popular. O povo precisa
voltar ao centro do poder e exercê-lo,
fortalecendo laços que reconstruam a
relação entre as camadas populares e
seus representantes. A voz da sociedade
precisa penetrar nos gabinetes do Palá-
cio do Planalto e dos ministérios. Para
podermos voltar a nos enxergar enquan-
to país, devemos primeiramente nos en-
xergar enquanto povo, sujeito que tem
voz, e que essa voz seja escutada.
É muito simbólica a recriação do
Consea e do Conselho de Desenvolvi-
mento Econômico e Social, e a criação
do Conselho de Participação Social e
do Sistema de Participação Social In-
terministerial. No entanto, é importan-
te destacar, essa participação popular
deve ser caminho para a garantia, ela-
boração e execução de políticas públi-
cas efetivas e ações coordenadas com
intencionalidade.
Os conselhos não podem ser espaços
nos quais a voz do povo tenha somente
reflexos simbólicos. Nossa voz é funda-
mental no controle social, na proposi-
ção, fiscalização e avaliação de iniciati-
vas e políticas de governo.
NOSSAS BANDEIRAS
SEGUIRÃO TREMULANDO
Desde 2016 temos denunciado as ações e
articulações de segmentos conservadores
deste país para desestabilizar nossa demo-
cracia e nos impor uma derrota profunda,
com o golpe. Estávamos nas ruas, denun-
ciando o impeachment contra Dilma Rou-
sseff. Vigiamos os 581 dias de prisão arbi-
trária de Lula, marchamos por Lula Livre e
contra seu julgamento parcial. Ao lado de
Fernando Haddad, buscamos combater a
eleição de Jair Bolsonaro. Mantivemo-nos
em resistência ativa ao longo de quatro
anos de governo fascista. E fomos incan-
sáveis na campanha pela eleição de Lula e
a derrota da extrema direita.
Compreendemos que este era nosso
papel: estar ao lado do povo, denuncian-
do as ameaças à democracia. Ainda que
lotado de contradições, esse é o regime
que nos permite avançar em nossas lu-
tas e conquistas imediatas, possibilitan-
do criar as bases para a construção de
um processo mais profundo e efetivo de
transformações necessárias para a cons-
trução de um mundo mais justo.
Com a eleição de Lula, compreende-
mos que ainda não estamos em águas
tranquilas. Por outro lado, compreen-
demos também que esse é um governo
eleito graças a uma ampla base de apoio
Le Monde Diplomatique Brasil 5
– desde segmentos que em um passado
recente faziam oposição ao Partido dos
Trabalhadores (PT) até organizações
com princípios comunistas. Essa am-
plitude ainda se mantém e se reflete na
composição do governo.
A mesma responsabilidade que ali-
mentamos para eleger Lula, alimentare-
mos para cobrar e pressionar o governo
a favor de nossas bandeiras históricas.
Não abriremos mão de colocar na mesa
do governo a necessidade mais do que
imediata de fazermos uma reforma
agrária ampla neste país, como base
fundamental para a democratização do
acesso à terra, ao trabalho, à renda e a
uma vida digna, e a possibilidade de
produção ampla e maciça de alimentos,
somando-se à missão de eliminar de vez
a fome e demais violências. Para nós,
só se combate plenamente a mazela da
fome com reforma agrária e produção
de alimentos saudáveis.
Acreditamos que o governo e o movi-
mento social cumprem papéis distintos.
Se estivermos ativos na eleição de Lula,
estaremos ativos também para cumprir
nosso papel de movimento social ao
pressionar o governo, inclusive no sen-
tido de deixá-lo mais forte, com empo-
deramento popular, fortalecendo o coro
das demandas por resolução das neces-
sidades da maioria do povo brasileiro.
Atualmente há 65 mil famílias acam-
padas, lutando por um pedaço de terra.
Nossa luta é pelo assentamento imedia-
to dessas famílias. Por isso, seguiremos
organizados e pressionando o governo.
Nossos assentamentos e acampamen-
tos já demonstraram ter a capacidade
de produzir alimentos saudáveis na-
cionalmente durante a pandemia. A ga-
rantia de políticas públicas, com incen-
tivo à produção, pode massificar ainda
mais essa condição.
Seguiremos também mobilizados, e
isso não é contraditório, para estimular
a organização popular desde a base. O
embrião dessa construção foi feito espe-
cialmente durante o ano de 2022, com
a estruturação dos comitês populares,
que foram ferramentas fundamentais
para a massificação da campanha que
nos levou à vitória eleitoral.
Fortalecer a organização popular, para
pautar o governo com as necessidades
do povo, é fundamental para o proces-
so de retomada da participação popular,
pilar desse novo governo, e da democra-
cia que se restabelece em nosso país.
Um governo popular forte depende
de um povo organizado e consciente
de seu papel para levar o Estado a se
organizar para avançar na construção
de um Brasil mais justo, solidário e vol-
tado para os interesses da maioria do
povo brasileiro. Assim acreditamos, as-
sim o faremos! 
*Ceres Hadich integra a Direção Nacio-
nal do Movimento Sem Terra e coordena o
Escritório Nacional de Brasília.
6 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

NOVOS DESAFIOS E POSSÍVEIS SAÍDAS NA CONSTRUÇÃO COLETIVA DA DEMOCRACIA NO BRASIL

“O ouro e a madeira”
“O ouro / afunda no mar / madeira / fica por cima...” Assim se inicia o refrão de “O ouro e a madeira”, de Eraldo Gentil,
interpretada por gigantes da música brasileira como Originais do Samba e Beth Carvalho e que inspira o título deste
artigo. A canção orienta o tom do texto: sobrevivente de um país que nos persegue à morte, o movimento negro
brasileiro permanece no front da construção de uma sociedade justa

POR ÁGATHA DE MIRANDA, BEATRIZ LOURENÇO DO NASCIMENTO, VANESSA NASCIMENTO E MARCOS AMARAL*

ENTRE CRISES POLÍTICAS
E INSTITUCIONAIS
Em 2013, as ruas tomadas por ciclos de
protestos políticos nas chamadas Jor-
nadas de Junho marcaram a história da
democracia nacional. Naquele momento
se evidenciou a crise política que, de ma-
neira direta ou indireta, atravessava a cro-
nologia sociopolítica brasileira que culmi-
nou no golpe parlamentar que retirou Dil-
ma Rousseff da Presidência da República.
Além disso, a última década brasileira
foi marcada por tragédias que colocaram
em xeque a democracia, na medida em
que escancararam a desigualdade social
e o racismo como projetos de aniquila-
mento do povo brasileiro, como o desa-
parecimento de Amarildo Souza, a prisão
de Rafael Braga, o desastre de Mariana e
Brumadinho, a morte de Marielle Fran-
co e Anderson Gomes, a pandemia de
Covid-19 e suas consequências psicos-
sociais. A crise da democracia brasileira
teve sua expressão máxima, no último
período, com a invasão em Brasília simu-
lando uma tentativa de golpe de Estado.
As eleições presidenciais de 2022 de-
ram o tom da decisão que precisava ser
tomada: a defesa da ordem democráti-
ca ou a decretação do fim do Brasil en-
quanto nação. Assim, em outubro, um
respiro de alívio: a construção de uma
frente ampla para a defesa da democra-
cia, que expressou a soberania popular
estabelecida na Constituição de 1988,
culminando na eleição do presidente
Luiz Inácio Lula da Silva para o terceiro
mandato no Poder Executivo federal.
Não faltaram percalços. Nesses dez
anos, vivemos um cenário de sufoca-
mento dos espaços públicos para a orga-
nização e a participação política. Porém,
a mobilização popular da esquerda em
torno da defesa da democracia foi vital
e, até aqui, não há história sobre as dis-
putas políticas no país que tenham sido
atravessadas pela indignação com as
opressões transformada em ação políti-
ca direta e organizada dos movimentos
sociais e da sociedade civil.
LIÇÕES HISTÓRICAS
DO MOVIMENTO NEGRO
21 de março de 2023. Vinte anos após
a criação daquela que traduz o reco-
nhecimento do Estado sobre o racis-
mo operante na sociedade brasileira,
a Secretaria Nacional de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir),
estão presentes em celebração no Palá-
cio de Planalto importantes figuras do
movimento negro no Brasil.
Nessa data, em reforço ao seu com-
promisso com a erradicação da desi-
gualdade e das opressões, o presidente
Lula anunciou e assinou junto ao Minis-
tério da Igualdade Racial (MIR) o Paco-
te pela Igualdade Racial, que prevê sete
medidas pela igualdade racial no Brasil.
Importante lembrar que, em âmbito
global, a data de 21 de março também
marca o Dia Internacional de Luta pela
Eliminação da Discriminação Racial,
estabelecido pela ONU em memória
ao Massacre de Shaperville na África do
Sul. Tanto a existência do MIR como o
calendário das Nações Unidas são resul-
tado dos avanços que a resistência negra
provocou no combate ao racismo.
Nessa perspectiva, ressaltamos, em
síntese, a valorosa atuação histórica do
movimento negro brasileiro na cons-
trução de uma democracia antirracista,
apesar dos acontecimentos da última
década, marcada por desafios político-
-institucionais, econômicos, culturais
e sociais que aprofundaram a desigual-
dade racial brasileira.
Medidas como a criação do MIR e do
Pacote pela Igualdade Racial são impor-
tantes acenos sobre a disposição desse
governo no combate ao racismo e à de-
sigualdade racial produzida na realida-
de do Brasil. Esse espírito retrata os mo-
vimentos de ampliação da participação
social cidadã no diálogo e construção
dos movimentos sociais e da sociedade
civil junto ao governo.
Mesmo com a vitoriosa eleição do
presidente Lula, não ganhamos o jogo. É
preciso conduzir a atuação desse gover-
no ao atendimento dos interesses das
classes sociais mais pobres, que foram
constante alvo da sanha genocida do
governo Bolsonaro.
É indispensável que a agenda de defe-
sa dos direitos humanos, fundamentais
e sociais esteja na ordem do dia de todo
cidadão e cidadã deste país, inclusive
daqueles que estão em serviço no atual
governo. Pautas como segurança públi-
ca e sistema de justiça, clima e meio am-
biente, segurança alimentar, educação,
saúde e infraestrutura, organizadas em
conjunto ou separadamente, formam
as principais agendas defendidas pelos
movimentos sociais de esquerda no país.
Mesmo que o atual governo seja aber-
to à participação social, estamos longe
de viver em uma democracia igualitá-
ria. Ainda há intensos desafios a serem
enfrentados na formação de uma cons-
ciência e prática políticas distantes da
alienação social e da colonização cultu-
ral eurocêntricas. Sendo assim, o traba-
lho dos movimentos sociais e da socie-
dade civil do campo progressista para
articular de forma organizada denún-
cias sobre o estado de coisas e reivindi-
car sua mudança precisa seguir incisivo.
Tratando da segurança pública e do
sistema de justiça criminal, por exem-
plo, o debate sobre o perfilamento ra-
cial feito no Supremo Tribunal Federal
no âmbito do habeas corpus 208.240
evidencia a necessidade de engajar a
discussão sobre a atuação truculenta
e discriminatória impregnada na atua-
ção policial; e, para além disso, discutir
o papel fundamental do Poder Judiciá-
rio na garantia de direitos fundamen-
tais da população negra.
No debate climático e ambiental, te-
mos a urgência de trazer para o centro
a vida, a dignidade e a humanidade, por
meio do protagonismo dos povos ori-
ginários, que carregam, sem dúvida, o
saber para enfrentar a crise climática. É
imprescindível tratar do meio ambiente
sustentável conforme preconizado no
texto da Carta Constitucional de 1988
com base nos sujeitos desse direito. É
papel das instituições democráticas
trazer a noção de justiça social e racis-
mo ambiental para pensar em políticas
de mitigação e adaptação climática, no
enfrentamento de questões nevrálgicas
como a titulação de terras de povos ori-
ginários e na regulação do mercado de
carbono, por exemplo.
Por meio da compreensão de que a or-
ganização do capital econômico provoca
desigualdades materiais, é necessário
tratar de forma séria a disputa climática
há anos construída no país. No entanto, é
preciso que estejam na centralidade des-
ta as desigualdades sociais e territoriais
que condicionam as populações pobres,
negras, quilombolas e indígenas aos efei-
tos mais severos da crise do clima. Nesse
sentido, os temas ambiental e climático
deve estar relacionado aos temas das
vulnerabilidades sociais e econômicas e
do poder, especificamente do poder real
na organização da sociedade global.
Nessa toada, parece-nos que a mobili-
zação do direito e das instituições políti-
cas para ações políticas coletivas não será
estanque, tendo em vista a necessidade
de que as demandas sociais sejam tra-
tadas e viabilizadas pelos Três Poderes,
cada um no bojo de suas competências.
Com esse cenário, as expectativas de
atuação de diálogo entre movimentos
sociais e sociedade civil com o governo
não podem deixar escapar a importân-
cia estratégica do tensionamento para
ampliar a justiça social e fomentar polí-
ticas públicas. Apesar da vitória de par-
lamentares progressistas, o Congresso
Nacional segue dominado e a serviço
dos interesses das elites políticas e eco-
nômicas do país. Portanto, é forçoso di-
zer que a disputa na arena político-insti-
tucional e a construção da luta popular
precisam ser rigorosas.
Sabemos que há quem invista na mi-
séria – presente, por exemplo, na pos-
tura resistente do Banco Central em re-
duzir a taxa de juros, o que, entre outras
coisas, aliviaria a vida dos pobres deste
país. Ao contrário disso, temos em cons-
trução constante um projeto de vida
para a sociedade brasileira e, em cons-
tante caminhar, carregamos em nossa
história o passado, o presente e o futuro;
no aqui e no agora somos o lastro vivo
da luta de ontem e da vitória de amanhã.
O projeto político do movimento ne-
gro está historicamente comprometido
com a construção de uma sociedade
justa, solidária e antirracista, e neste pe-
ríodo não seria diferente.
POSSÍVEIS SAÍDAS PARA
A RETOMADA DEMOCRÁTICA
Que tipo de conceito de democracia é
disputado para pensar em qual tipo de
democracia que está sendo construída
no Brasil? Certo que esse é um questio-
namento central ao desafio per se da re-
tomada democrática no contexto políti-
co atual. Em que pese a eleição Lula 3,
é inegável a presença do bolsonarismo
na institucionalidade brasileira, sendo
um dos mais densos desafios políticos
e institucionais a serem encarados de
maneira contundente.

Concordamos que o pacto democrá-
tico de 1988 foi rompido por parte da
direita com o golpe que retirou Dilma
da Presidência e que essa ruptura evi-
dencia a prática radicalmente antide-
mocrática por parte da extrema direita
em nível individual, regional e global,
que atinge os países da América Latina
de maneira específica, considerando o
processo de colonização e exploração
de mão de obra escravizada.
Não podemos perder de vista a forma
como o Brasil se organiza enquanto so-
ciedade. Em quadro histórico resumi-
do, a convivência democrática não se
apresentou como realidade na história
da sociedade brasileira. Exemplo disso
é o mito da democracia racial superado
no campo teórico que arrasta correntes
quando pensamos na dinâmica social
pautada em uma ideologia racista.
Nesse sentido, a trivial ideia e pro-
posta de transformação de estruturas
de uma sociedade forjada historica-
mente no escravismo que gera uma
ideologia autoritária e racista, como
afirma Clóvis Moura, não parecem ser-
vir à consecução de um projeto coletivo
democrático que priorize a vida e a jus-
tiça social. Precisamos apostar na cons-
trução de projetos políticos essencial-
mente comprometidos com a desconti-
nuidade da produção de desigualdade
e opressões. A teoria a serviço da ação
© Antonio Cruz/Agência Brasil
O presidente eleito, Lula, e o vice-presidente, Alckmin, participam de reunião com diferentes movimentos sociais em Brasília, logo após a eleição de 2022
política antirracista se apresenta como
uma imprescindível resposta à crescen-
te extrema direita no Brasil.
A prática antirracista é, por exce-
lência, anticapitalista. Partindo dessa
compreensão para construir a retoma-
da democrática na atual conjuntura,
mostra-se essencial o reforço à mobili-
zação social da esquerda em torno das
pautas sociais a fim de retomar a legiti-
midade da ocupação das ruas em bus-
ca de resultados concretos de nossas
demandas por igualdade. Para isso, pa-
rece-nos central que a consciência de
classe sobre a situação de exploração
do capitalismo neste tempo histórico
seja tratada no âmbito coletivo. Outro
desafio (nada novo) que se mostra, por-
tanto, é criar uma consciência coletiva
sobre nosso papel em nossas comuni-
dades e territórios, em detrimento da
ideologia da hierarquia que domina a
sociedade brasileira, como já afirmou
há décadas Lélia Gonzales.
Tendo em vista a dinâmica sistêmi-
ca de violações de direitos e produção
de desigualdade na realidade brasilei-
ra – sobretudo em relação à população
negra –, é de primeira importância a exi-
gência de ações positivas do Estado bra-
sileiro na garantia e proteção de direitos
constitucionais. É preciso elevar o inves-
timento público em políticas voltadas a
garantir o pleno exercício dos direitos e
ABRIL 2023
garantias fundamentais das populações
negra e quilombola, dos povos originá-
rios, das mulheres, da população LGB-
TQIA+, das crianças, da juventude, dos
nossos mais velhos.
Políticas voltadas à igualdade racial
se mostram historicamente centrais
para retardar o colapso irreversível da
sociedade, demonstrando a essencial
necessidade de que o antirracismo seja
encarado como compromisso e tare-
fa de toda a sociedade brasileira. O in-
teresse e os esforços políticos pela luta
antirracista devem ser coerentes com a
superação da ideia de democracia, ou
com seu conteúdo formal. A construção
de uma democracia que nos caiba vivos
é inegociável, bem como a prevalência
da salvaguarda dos direitos e garantias
fundamentais que inauguram a ordem
democrática brasileira.
Parafraseando Florestan, está entre
um de nossos desafios responder à per-
gunta “Que democracia?” construire-
mos daqui em diante e, nesse sentido,
devemos nos preocupar em mobilizar
na prática novos valores que formarão
as gerações futuras e serão transmitidos
a elas sobre a compreensão coletiva do
que é a vida e a dignidade humanas.  do. São Paulo: Perspectiva, 2016.
*Ágatha de Miranda é mestranda e pes-
quisadora na Escola de Direito da FGV-SP e
coordenadora na Diretoria de Incidência Po-
Le Monde Diplomatique Brasil 7
lítica do Instituto de Referência Negra Pere-
gum; Beatriz Lourenço do Nascimento é
advogada graduada pela PUC-SP, técnica
em Gestão Ambiental e militante do Movi-
mento Negro Uneafro Brasil; Vanessa Nas-
cimento é diretora-executiva do Instituto de
Referência Negra Peregum e militante do
Movimento Negro Uneafro Brasil; e Marcos
Amaral é coordenador de Incidência Políti-
co-Institucional do Amma Psique e Negritu-
de: Centro de Pesquisa Formação e Refe-
rência em Relações Raciais e doutorando
em Psicologia da Educação pela PUC-SP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
•   F ERNANDES, Florestan. Que tipo de repúbli-
ca? 2. ed. São Paulo: Globo, 2007.
•   G ONZALES, Lélia. Por um feminismo afro-lati-
no-americano: ensaios, intervenções e diálo-
gos. Organização: Flavia Rios e Márcia Lima.
Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
•   HARRIS, Angela P. Vulnerability and Power in
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e poder na era do Antropoceno], Washington
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•   MACIEL, Débora Alves. Ação coletiva, mobiliza-
ção do direito e instituições políticas: o caso da
Campanha da Lei Maria da Penha. Revista Brasi-
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•   M OURA, Clóvis. Sociologia do negro brasilei-
ro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019.
•   N ASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro
brasileiro: processo de um racismo mascara-
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ra à reconstrução democrática no Brasil. Saú-
de em Debate, v.40, p.114-121, dez. 2016.
•   S ANTOS, Milton. Pobreza urbana . São Pau-
lo: Edusp, 2009.
8 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
CONSTRUIR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA
Da derrota nasceram
a resistência e a vitória
O que se passou nos últimos quatro anos foi um gravíssimo ataque à sociedade civil e
aos movimentos sociais. A democracia não sucumbiu por muito pouco. Agora, a vitória
de Lula precisa ter consequências concretas para o fortalecimento do campo popular
POR WAGNER ROMÃO*
Q
uem foi ao Sindicato dos Meta-
lúrgicos do ABC no dia 7 de abril
de 2018 deve se lembrar da gran-
de interrogação que pairava no ar
sobre a multidão: resistir ou aceitar a
derrota? A vigília no ABC culminou com
Lula se apresentando à Polícia Federal
para iniciar os 580 dias de sua prisão.
As dificuldades vinham se suceden-
do desde o início do segundo mandato
da presidenta Dilma Rousseff. A virada
neoliberal na condução da política ma-
croeconômica gerou o afastamento das
centrais sindicais e dos movimentos
sociais da base de sustentação sociopo-
lítica do governo. O campo popular ba-
teu cabeça nas tentativas de resistir às
grandes manifestações pelo impeach-
ment em 2015 e 2016. A Operação Lava
Jato, os saudosos da ditadura de 1964 e
a direita youtuber levaram milhões de
pessoas às ruas contra as esquerdas.
Temer subiu à cena, tornou constitu-
cional sua política de retração do Esta-
do e realizou as contrarreformas traba-
lhista e previdenciária, destruindo
direitos arduamente conquistados pela
classe trabalhadora.
A Vigília Lula Livre em Curitiba se
tornou uma referência simbólica con-
tra tudo isso e se multiplicou nos mi-
lhares de comitês Lula Livre que se es-
palharam pelo Brasil e pelo mundo. Os
comitês reaproximaram vertentes dis-
tintas do movimento sindical e dos mo-
vimentos sociais, e rearticularam par-
tidos de esquerda e centro-esquerda.
Lideranças mundiais progressistas vie-
ram ao Brasil para se solidarizar com
Lula e conosco. Mantivemos acesa a
chama da resistência.
A eleição de Bolsonaro consolidou o
ciclo de brutalidade, autoritarismo e
neoliberalismo. Em seu pronuncia-
mento logo após a divulgação do resul-
tado do primeiro turno, Bolsonaro de-
clarou: “Vamos botar um ponto final
em todos os ativismos do Brasil”,1 uma
frase nada retórica, como se viu em
seus quatro anos de mandato. Para
além da criminalização de movimen-
tos sociais, organizações da sociedade
civil e sindicatos, seu governo atacou
diretamente a participação social pre-
vista na Constituição Federal, sobretu-
do dos conselhos e conferências nacio-
nais de políticas públicas.
Em um de seus primeiros atos, Bolso-
naro retirou da estrutura da Presidên-
cia da República o Conselho Nacional
de Segurança Alimentar (Consea) e o
Conselho de Desenvolvimento Econô-
mico e Social, o Conselhão. Alguns me-
ses depois, com o Decreto n. 9.759, de
11 de abril de 2019, extinguiu todos os
órgãos colegiados da administração fe-
deral que não fossem previstos em lei,
com a decisão de que a existência de
conselhos criados por portarias ou de-
cretos deveria ser justificada pelos mi-
nistérios a eles ligados até o dia 28 de
junho daquele ano, adequando-se às
restrições que o próprio decreto impu-
nha aos conselhos e outros órgãos cole-
giados que viessem a ser recriados.
A resistência se deu por parte de di-
versas organizações da sociedade civil e
partidos políticos que acionaram o Su-
premo Tribunal Federal por meio de
instrumentos como a Ação Direta de In-
constitucionalidade (ADI) n. 6.121, con-
tra o Decreto n. 9.759/2019, e a Arguição
de Descumprimento de Preceito Fun-
damental (ADPF) n. 622, contra o De-
creto n. 10.003/2019, que recriou o Con-
selho Nacional de Direitos da Criança e
do Adolescente (Conanda). A ADPF 622
foi julgada parcialmente procedente, de
maneira que diversas mudanças na es-
trutura do “novo” Conanda foram iden-
tificadas como inconstitucionais e cer-
ceadoras do princípio constitucional da
igualdade e da participação popular di-
reta. Porém, mesmo com essas ações,
continuou havendo o cerceamento da
autonomia organizativa dos órgãos co-
legiados, a descaracterização de suas
funções originais, a forte diminuição
das representações da sociedade civil e
a impossibilidade de realizar a prática
do controle social preconizada pela
Carta de 1988.2
O esboroamento da Operação Lava
Jato, a libertação do presidente Lula e a
retomada de seus direitos políticos em
abril de 2021 deram novo ânimo ao
campo popular. Era urgente reorgani-
zar as forças democráticas para a dis-
puta eleitoral que se aproximava. As
duas frentes ligadas ao campo da es-
querda – Frente Brasil Popular e Frente
Povo Sem Medo –, criadas em 2015 em
meio ao enfrentamento contra o im-
peachment de Dilma Rousseff, passa-
ram a desempenhar a tarefa estratégica
de estabelecer um campo de mobiliza-
ção social para além dos partidos polí-
ticos, incorporando centrais sindicais,
movimentos sociais de abrangência
nacional e regional, organizações da
sociedade civil, cidadãos e cidadãs.
Em fevereiro de 2022, o Partido dos
Trabalhadores lançou os Comitês Po-
pulares de Luta (CPLs), uma forma de
manter ativa a organização dos comitês
Lula Livre e que remetia à tradição de
núcleos de base que forjaram o petis-
mo. MST, CUT, outras centrais sindicais
e movimentos socais se agregaram aos
CPLs. Essa iniciativa buscava expandir
a campanha presidencial para além dos
debates internos ao PT e aos partidos da
coalizão que então se formava.
MOVIMENTOS SOCIAIS NA
TRANSIÇÃO E PRIMEIROS ATOS
DO TERCEIRO GOVERNO LULA
As frentes, os CPLs, o conjunto dos
movimentos sociais, os partidos polí- vimentos sociais e o governo em transi-
ticos do campo e toda a enorme mobi- ção, em reunião ocorrida em 17 de
lização social gerada pela repulsa a novembro. Estiveram presentes repre-
Bolsonaro e pela esperança renovada sentantes do MST, MTST, CUT, CSB, In-
em Lula obtiveram a dura vitória elei- tersindical, UNE, CMP, Marcha Mun-
toral no segundo turno das eleições. dial das Mulheres, Contag, Contraf,
Ao longo de todo o processo eleitoral, a MAB, CNTE, Uneafro, Coalizão Negra
participação das frentes no núcleo da por Direitos, Movimento Negro Unifi-
campanha foi decisiva, complemen- cado, Inesc, entre outras entidades,
tando as representações dos partidos movimentos sociais, centrais sindicais
políticos, e em contato permanente e demais atores do campo popular.
com a coordenadora-geral da campa- Depois dessa reunião, as coordena-
nha, a deputada federal e presidenta ções das frentes Brasil Popular e Povo
do PT Gleisi Hoffmann. Quando da Sem Medo – em contato com a Coorde-
montagem do Gabinete de Transição, nação de Articulação Política do Gabi-
no entanto, entre os 32 grupos de tra- nete de Transição Governamental –
balho anunciados, não era possível criaram o Conselho de Participação
identificar um que desse conta da rela- Social (CPS), órgão consultivo de asses-
ção estabelecida com os movimentos soramento direto ao presidente eleito
sociais ao longo da campanha. Lula e que teve como principal tarefa a
As frentes e os movimentos sociais, produção de subsídios para o relatório
então, demandaram à presidenta Gleisi final de transição quanto à relação ins-
Hoffman a composição de uma instân- titucional do governo com a sociedade
cia de interlocução direta entre os mo- civil. Além disso, o CPS estabeleceu

diálogo com os grupos de trabalho das
diversas áreas da transição para o de-
senho das estruturas específicas de
participação social e interlocução com
a sociedade civil nos ministérios.
A primeira reunião plenária do CPS
ocorreu em 28 de novembro, e o prazo
para a entrega do relatório à coordena-
ção do Gabinete de Transição era de ape-
nas duas semanas. O CPS foi composto
de cerca de cinquenta representantes de
centrais sindicais, movimentos sociais e
organizações da sociedade civil e espe-
cialistas no tema da participação social,
com o assessoramento de pelo menos
uma dezena de servidores do governo fe-
deral. As principais tarefas do CPS se re-
lacionaram a três eixos de ação:
1. Definição de um órgão responsável
pela implementação da política nacio-
nal de participação social junto à Pre-
sidência da República. Aqui a escolha
se deu de maneira semelhante aos go-
vernos Lula e Dilma, com a definição
© Vitor Flynn
da Secretaria-Geral da Presidência da
República (SGPR) como órgão de arti-
culação com os movimentos sociais e
de supervisão dos órgãos colegiados
de participação social;
2. Recomposição dos conselhos nacio-
nais extintos ou reconfigurados após o
Decreto n. 9.759/2019, retomada das
conferências nacionais de políticas pú-
blica e uma inovação na participação
social no nível federal: o debate sobre a
criação de um Orçamento Participati-
vo nacional, tema que surgiu após as
falas de Lula na campanha eleitoral
contra o “orçamento secreto”;
3. Inclusão dos movimentos sociais na
formulação e implementação de polí-
ticas públicas, como elemento mobili-
zador e articulador de um projeto de
sociedade democrática e popular. Esse
eixo diz respeito à criação e retomada
de “programas associativos”, 3 ações
em que os movimentos sociais e orga-
nizações da sociedade civil atuam em
ABRIL 2023
conjunto com o governo para fomen-
tar modelos alternativos de produção e
acesso a bens públicos. Exemplos já
testados nos primeiros governos petis-
tas foram o programa Minha Casa Mi-
nha Vida Entidades, em parceria com
movimentos populares de moradia; o
programa Um Milhão de Cisternas,
com a Articulação do Semiárido Brasi-
leiro; o Programa de Aquisição de Ali-
mentos, com as cooperativas ligadas
aos movimentos sociais rurais; ou os
Pontos e Pontões de Cultura, com as
redes de movimentos culturais, entre
outras ações.
Em seus primeiros atos como presi-
dente, Lula simbolicamente revogou o
Decreto n. 9.759/2019, tornou o Conse-
lho de Participação Social uma estru-
tura permanente de referência dos mo-
vimentos sociais ligada à SGPR e abriu
espaço para a recomposição da partici-
pação social no governo federal.
CONSTRUIR UMA SOCIEDADE
DEMOCRÁTICA E PARTICIPATIVA
A retomada de uma relação construti-
va entre a sociedade civil e o governo
federal tem seu lastro na trajetória re-
cente de resistência ao neoliberalismo
e ao autoritarismo. Essa relação se dá
tanto nos espaços institucionais de
participação social (conselhos, confe-
rências e outros) como na prática da
formulação e implementação de políti-
cas públicas em que governo e movi-
mentos sociais se encontram e se for-
talecem mutuamente.
No entanto, é preciso mais do que isso
para enfrentar a extrema direita e o
neoliberalismo. O que se passou nos úl-
timos quatro anos foi um gravíssimo
ataque à sociedade civil e aos movimen-
tos sociais. A democracia não sucumbiu
por muito pouco. A vitória de Lula pre-
cisa ter consequências concretas para o
fortalecimento do campo popular.
Sem dúvida, isso passa por medidas
estruturais, como uma reforma tribu-
tária que cobre os mais ricos e desonere
os mais pobres; um “arcabouço fiscal”
que possibilite ao Estado investir forte-
mente em saúde, educação e outras po-
líticas públicas; a reversão da contrar-
reforma trabalhista e previdenciária; a
retomada de uma política externa so-
berana, entre tantas pautas estratégi-
cas para construirmos uma sociedade
justa e solidária.
Essa agenda de reformas populares
precisará de muita mobilização social
para se concretizar. O Congresso Nacio-
nal tem maioria conservadora. Os movi-
mentos sabem que não adiantará espe-
rar sentados nos gabinetes que o
Parlamento se mova em direção a refor-
mas que desfaçam os malfeitos recentes.
Por isso, de um lado, devemos man-
ter aquecida nossa capacidade de mo-
bilizar a sociedade sobre pautas estru-
turais, como a questão da luta contra
os juros altos, ou pela reforma tributá-
Le Monde Diplomatique Brasil 9
ria que combata desigualdades so-
ciais, ou pela manutenção de cotas so-
ciais e raciais nas universidades e no
serviço público. De outro lado, é fun-
damental que as ações do governo fe-
deral no campo da participação social
possam atingir as pessoas nos municí-
pios. O grande desafio é que não ape-
nas as lideranças dos movimentos se-
jam ouvidas em suas demandas e
participem, mas que também a base
da sociedade possa conhecer e valori-
zar processos participativos que real-
mente mudem a vida das pessoas.
Um orçamento participativo nacio-
nal, por exemplo, deve ser construído
de modo a provocar mobilização das
comunidades locais em torno de de-
mandas concretas e com alto grau de
efetividade. Políticas públicas como o
Bolsa Família, o Prouni ou o Minha Ca-
sa Minha Vida devem dar às pessoas a
oportunidade de se informarem sobre
o funcionamento do orçamento públi-
co, do Estado, da sociedade e de seus
direitos como cidadãs. Precisamos ou-
sar na relação entre os serviços públi-
cos oferecidos pelo Estado e o uso das
plataformas digitais, de modo a criar
ambientes de proximidade entre as
pessoas e o governo federal. As confe-
rências nacionais devem ser noticiadas
à exaustão, no rádio, TV e redes sociais,
com a apresentação de suas finalida-
des, potencialidades e limites.
O processo político pelo qual passa-
mos nos últimos anos nos mostra que
estamos vulneráveis ao neoliberalismo
e ao fascismo. Construir uma socieda-
de democrática e participativa deve ser
uma meta orientadora de ativistas da
sociedade civil e dos governos, sobre-
tudo os do campo popular. Aproveitar
essa oportunidade histórica significa
apresentar resultados concretos que
beneficiem e fortaleçam aqueles que
precisam do Estado contra aqueles que
se aproveitam dele. E, ao mesmo tem-
po, fazer essa luta política tendo o povo
como protagonista. 
*Wagner Romão é professor de Ciência
Política da Unicamp e cocoordenador do
Núcleo de Pesquisa em Participação, Movi-
mentos Sociais e Ação Coletiva. Represen-
tou a Rede Democracia e Participação no
Conselho de Participação Social do Gabi-
nete de Transição Governamental.
1   Band Jornalismo, “Bolsonaro: Vamos botar
ponto final em todos os ativismos do Brasil”,
YouTube, 7 out. 2018.
2   C onforme Carla de Paiva Bezerra, Maira Ro-
drigues e Wagner Romão, “Conselhos de po-
líticas públicas no governo Bolsonaro: impac-
tos do Decreto 9.759/2019 sobre a
participação da sociedade civil”. In: Luciana
Tatagiba et al. (orgs.), Participação e ativis-
mos: entre retrocessos e resistências, Zouk,
Porto Alegre, 2020, p.37-64.
3   Luciana Tatagiba e Ana Claudia C. Teixeira,
“Movimentos sociais e políticas públicas no
ciclo dos governos petistas: a controversa no-
vidade dos programas associativos”. In: Movi-
mentos sociais e políticas públicas, São Pau-
lo, Unesp, p.23-47.
10 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
DIVISÕES INTERNAS COBRAM UM ALTO PREÇO
O grande desencantamento curdo
As grandes instabilidades que o Oriente Médio vem enfrentando há pelo menos três décadas permitiram aos curdos
do Iraque e da Síria, impossibilitados de atingir a independência, ao menos conquistar autonomia territorial.
Entretanto, agravadas por dissenções fratricidas, as ameaças continuam numerosas, em particular no Rojava
POR VICKEN CHETERIAN*
E
m setembro de 2017, o Governo
Regional do Curdistão (GRC) rea-
lizou um referendo a favor da in-
dependência do enclave autôno-
mo que ele administra no norte do
Iraque. Apesar do resultado do plebisci-
to (92,73% dos votos a favor da separa-
ção), a iniciativa fracassou principal-
mente em razão da recusa do governo
central de Bagdá em endossar o resulta-
do, mas também por causa da hostili-
dade das grandes potências (Estados
Unidos e Rússia) e dos vizinhos (Arábia
Saudita, Irã e Turquia) em aceitar o des-
membramento do Iraque.1 Esse fracas-
so enfraqueceu o GRC, que, desde en-
tão, teve de conceder importantes
territórios às forças do governo central,
inclusive a estratégica cidade de Kir-
kuk. Mais a oeste, as perspectivas não
são menos sombrias para a recém-for-
mada entidade curda no nordeste da Sí-
ria, muitas vezes chamada de Federa-
ção Democrática do Norte da Síria, ou
Rojava (“oeste”, em curdo). Ela vive sob
a ameaça do regime sírio e sofre ata-
ques recorrentes do Exército turco.2 No
entanto, se a afirmação territorial cur-
da se vê contrariada pelo jogo das po-
tências, ela também é complicada pelas
rivalidades que opõem os representan-
tes políticos desse povo.
É impossível abordar a questão da es-
tabilidade do Oriente Médio sem ana-
lisar a anomalia curda. Após a Primeira
Guerra Mundial, a região foi remodela-
da, passando dos impérios dinásticos a
novos Estados baseados em critérios ét-
nicos, como a Turquia e os países árabes
(Iraque, Líbano etc.). No mapa, os cur-
dos constituíam um “povo sem Estado”,
divididos entre Turquia, Síria, Iraque e
Irã, que não respeitavam seus direitos
fundamentais ou mesmo os negavam.
Seu destino foi a causa de muitas revol-
tas seguidas de repressões. Nos últimos
anos, o enfraquecimento e o colapso dos
Estados iraquiano e sírio ofereceram no-
vas oportunidades aos curdos. Especial-
mente porque suas organizações milita-
res no Iraque e na Síria foram as princi-
pais aliadas das coalizões internacionais
lideradas pelos Estados Unidos contra o
regime baathista de Saddam Hussein em
2003, e depois, a partir de 2014, contra a
Organização do Estado Islâmico (OEI).
Esse último compromisso ganhou um
apoio internacional sem precedentes
para os combatentes curdos e sua cau- barris (30% das reservas iraquianas) e yazidis em Sinjar, o KDP-Peshmerga re-
sa. Também favoreceu o surgimento de entre 8 bilhões e 10 bilhões de m³ de gás. tirou-se, o que facilitou o massacre de
uma entidade autônoma na Síria depois Uma disputa ainda mais fundamental milhares de membros dessa minoria;
que a mobilização dos curdos iraquianos é sobre a unificação dos combatentes em 2017, quando, depois do referendo
lhes permitiu obter a inclusão da auto- peshmerga (expressão curda cujo signi- sobre a independência, o Exército ira-
nomia do GRC na Constituição de 2005.3 ficado é “aquele que enfrenta a morte”) quiano avançou sobre Kirkuk, a PUK-Pe-
No entanto, as lutas internas não de- sob um só comando. Desde a conquista shmerga retirou-se de suas posições, o
sapareceram, em particular no Curdis- da autonomia curda graças à proteção que levou à queda da cidade, símbolo da
tão iraquiano, com a rivalidade entre norte-americana em 1992, duas estru- riqueza petrolífera do Curdistão.4 Com
a União Patriótica do Curdistão (PUK) turas militares controlam um territó- ela, outros “territórios contestados” fo-
e o Partido Democrático do Curdistão rio bem definido. A Unidade 70 é leal à ram recuperados por Bagdá. “Com um
(KDP). Isso teve como consequência o PUK; a Unidade 80, ao KDP. Em várias exército peshmerga unificado e reforma-
fato de o Iraque ficar sem presidente da ocasiões, essa divisão se revelou desas- do, teríamos chance de sobreviver. Com
República – e, portanto, de governo – du- trosa: em 2014, quando a OEI atacou os as unidades divididas, corremos o risco
rante vários meses. O cargo – protocolar,
mas simbólico da unidade iraquiana –
voltou a ser ocupado por um curdo em
2005, após uma votação no Parlamento,
com um acordo entre as partes: à PUK,
a presidência do Iraque; ao KDP, a lide-
rança do governo regional. Entretanto,
após as eleições legislativas nacionais
de outubro de 2021, os dois partidos
apresentaram um candidato próprio a
chefe do Estado iraquiano e provocaram
um impasse institucional. Foi somente
em outubro de 2022 que Abdel Latif Ra-
chid, membro da PUK, foi eleito graças
ao compromisso entre os dois partidos e
outras formações iraquianas. No entan-
to, apesar do fim da crise, os líderes do
KDP ainda consideram que as exigên-
cias da PUK são muito altas em relação
a seus resultados eleitorais. “A PUK não
representa metade do povo curdo”, diz
Mahmud Mohammad, membro do es-
critório político do KDP.
UMA NOVA GERAÇÃO DE DIRIGENTES
Por sua vez, a PUK, cuja base eleitoral
está concentrada no leste do Curdis-
tão, queixa-se do controle que o KDP
exerce sobre o governo regional sedia-
do em Erbil, o que causaria uma distri-
buição injusta dos recursos financeiros.
Embora o GRC receba 17% das receitas
orçamentárias iraquianas, o maná não
beneficiaria suficientemente a provín-
cia de Sulaymaniyah, onde a PUK está
bem estabelecida e os trabalhadores do
setor público, principalmente professo-
res e funcionários municipais, manifes-
tam-se regularmente contra os atrasos
no pagamento de seus salários. Os dois
partidos disputam também o controle
da produção de petróleo e a distribuição
de suas receitas. O GRC dispõe de reser-
vas de petróleo de cerca de 45 bilhões de Ativista em manifestação contra a incursão da Turquia no nordeste da Síria

de mais derrotas”, explica Niyaz Barzani,
chefe do departamento de política exter-
na e diplomacia da presidência do GRC.
Com o controle de cada partido sobre
uma força militar, qualquer desacordo
político traz um risco de confronto ar-
mado, como foi o caso nos anos 1990.
Porém, isso também dificulta o desen-
volvimento de uma administração efi-
caz e acima das questões partidárias.
Se um dos dois atores perde qualquer
eleição, é grande a tentação de recorrer
à coerção para conservar sua hegemo-
nia política.5 As lideranças do KDP e da
PUK conhecem ao menos certa renova-
ção, o que cria algumas oportunidades,
mas também provoca novas tensões. O
KDP, uma formação curda histórica, foi
fundado em 1946 por Mustafa Barza-
ni em Mahabad, Irã. Pancurdo em seus
primórdios, ele é hoje considerado um
partido tradicionalista sob o domínio
da família Barzani. Após a morte de seu
fundador em 1979, seu filho Masoud
Barzani tornou-se líder do partido e de
suas forças militares. Ele também presi-
diu o GRC de 2005 até sua renúncia, em
novembro de 2017, após o fracasso de
© Carlos Jasso/Reuters
um referendo que ele havia iniciado. No
entanto, manteve o controle do KDP en-
quanto uma nova geração de líderes de
sua família chegava ao poder.
Preferindo o uso de trajes ocidentais
ao de uniformes, esses jovens não parti-
ciparam das lutas internas curdas. Con-
tudo, privados da legitimidade de seus
antepassados, veteranos dos combates
contra o Exército de Saddam Hussein,
eles devem seu pertencimento à di-
nastia Barzani para figurar no topo da
hierarquia política. A sociedade curda
não questiona esse privilégio, mas está
preocupada com o surgimento de novas
relações de poder dentro do próprio go-
verno. Após a renúncia de Masoud Bar-
zani da presidência do GRC, o cargo foi
para seu sobrinho Nechirvan Barzani,
e o de primeiro-ministro para seu filho
Masrour. No entanto, como a distribui-
ção de suas respectivas atribuições não
era especificada nos textos que regem
o GRC, a rivalidade cresceu e as tensões
políticas se agravaram.
A luta pelo poder foi ainda mais dura
dentro da PUK. A morte de seu fundador
e líder histórico Jalal Talabani, em 2017,
colocou seu filho Bafel contra seu sobri-
nho Lahur. De comum acordo, os dois
limparam o partido da velha guarda an-
tes de um confronto que conduziu à vitó-
ria de Bafel e à expulsão de seu primo da
liderança da PUK.6 A estabilidade do Cur-
distão iraquiano dependerá, portanto,
tanto da capacidade das duas partes em
gerir suas diferenças quanto da maneira
como, no seio de cada uma das organiza-
ções, a nova geração exercerá seu poder.
Mas e as relações entre o GRC e o Ro-
java? Uma viagem de Erbil, a capital do
GRC, a Qamishli, a principal cidade de
administração autônoma do nordeste
da Síria, nos permite medir o nível de
animosidade entre as entidades curdas.
A princípio, são cinco horas de estra-
da. Na prática, leva quase o dia todo.
O posto fronteiriço de Semalka – uma
ponte flutuante sobre o Rio Tigre – está
aberto apenas três dias por semana e
somente para pessoas com permissões
especiais. Essa situação é resultado das
relações tensas entre o KDP e o Partido
dos Trabalhadores do Curdistão (PKK),
fundado no Curdistão turco, mas repre-
sentado na Síria por seu ramo local, o
Partido da União Democrática (PYD), e
por seu braço armado, as Forças de De-
fesa Popular (YPG).
DIALOGAR COM OS TURCOS?
No decorrer dos últimos dois anos, os
confrontos armados entre o PKK e o
KDP reavivaram os temores de uma
nova guerra intercurda. Esses confron-
tos são a consequência do ataque ma-
ciço do Exército turco contra a guerrilha
curda dentro da Turquia. Desde 2015,
Ancara conseguiu reduzir as atividades
militares do PKK pagando um preço
muito alto, como a destruição de Sur,
a antiga cidade de Diyarbakir.7 Como
ABRIL 2023
AUTONOMIA CURDA
Diyarbakır
Gaziantepe
Kobané
Tell Abyad
Afrin
ROJAVA
Rakka
Alepo
SÍRIA Deir Ez-Zor
Homs
Zonas Palmyre
de povoamento curdo
LÍBANO majoritário minoritário
Regiões autônomas curdas
Damasco Federação Democrática
da Síria do Norte
Zona ocupada pela Turquia
Região autônoma
do Curdistão iraquiano
consequência desse impulso, os comba-
tentes curdos se dispersaram em novas
regiões no interior do Iraque e da Síria.
Uma presença nada apreciada pelo KDP,
que há muito trabalha para manter boas
relações com Ancara.
No entanto, os dirigentes do Rojava
estão menos preocupados com suas
más relações com o KDP do que com a
Turquia. Ancara ameaça continuamen-
te invadir todo o norte da Síria e esta-
belecer uma “zona de segurança” de 30
quilômetros de extensão a fim de ali ins-
talar os refugiados sírios que vivem em
seu território e construir um “cinturão
árabe” em sua fronteira sul.8 Muitos ob-
servadores acreditam que essa invasão
ainda não ocorreu por causa da presen-
ça de cerca de novecentos militares nor-
te-americanos, espalhados em mais de
uma dúzia de bases. O que acontecerá se
eles se retirarem? “Nós nunca cortamos
relações com a Rússia, apesar de nossa
aliança militar com os Estados Unidos”,
disse Abdulkarim Omar, o ministro das
Relações Exteriores de facto da admi-
nistração autônoma. Saleh Muslim,
copresidente do PYD, nos recebe em
um complexo próximo de Hasaka, para
evocar a capacidade dos curdos sírios
de enfrentar uma ofensiva turca. Em ra-
zão da proximidade de uma base militar
norte-americana, o assobio das turbinas
dos helicópteros interrompe constante-
mente a conversa. “O Exército turco não
é capaz de triunfar diante das guerrilhas
[do PKK] nas montanhas”, explica, re-
ferindo-se aos frequentes combates no
norte do Iraque. Quando perguntado
sobre as chances de suas forças na Síria
se a Turquia atacar em vista da natureza
plana das estepes áridas do Rojava, sua
resposta é lacônica: “Não temos monta-
nhas aqui, mas podemos cavar túneis”.
Entre os curdos da Síria, no entanto,
algumas vozes pedem um diálogo com
Le Monde Diplomatique Brasil 11
© Cécile Marin
ARMÊNIE
NAKHITCHEVAN
(AZERB.)
Lago de Van
TURQUIA
Tabriz
Lago
de Úrmia
Mardin
Qamishli Mahabad
Hasaca
Sinjar Erbil
IRÃ
Mossul
Kirkuk
Suleimânia
IRAQUE
Eufrates
ig r
e
T
Bagdá
0 200 km
Fontes: Michael Izady, « The Gulf 2000 Project »,
Universidade Columbia; Institut Kurde de Paris.
os turcos. “Os curdos não conseguirão
criar um Estado independente na atual
Síria, mas vamos pensar em como al-
cançar a estabilidade em vez continuar
em uma guerra contínua”, disse Nasser
Haj Mansour, ele próprio curdo. Diretor
do Centro Sírio de Pesquisa e Diálogo,
ele se questiona, entretanto, sobre a dis-
posição de Ancara de fazer concessões,
mesmo que sejam mínimas. De qual-
quer modo, o Rojava e o GRC permane-
cem mais estáveis e mais prósperos do
que vários Estados da região ameaçados
de colapso, como o Líbano e a Síria. E,
para essas duas entidades autônomas,
a sobrevivência depende tanto das ins-
tabilidades no Oriente Médio como da
cooperação entre os curdos. 
*Vicken Cheterian  é diretor do curso de
História e Relações Internacionais da Uni-
versidade de Genebra.
1   L er Laurent Perpigna Iban, “Un référendum
pour rien?” [Um referendo para nada?], em
“1920-2020, le combat kurde” [1920-2020,
o combate curdo], Manière de Voir, n.169,
fev.-mar. 2020.
2   Ler Mireille Court e Chris Den Hond, “L’avenir
suspendu du Rojava” [O futuro suspenso do
Rojava], Le Monde Diplomatique, fev. 2020.
3   Ler “Chance historique pour les Kurdes”
[Oportunidade histórica para os curdos], Le
Monde Diplomatique, maio 2013.
4   L er Shahinez Dawood, “Kirkouk la disputée”
[Kirkuk, a disputada], Manière de Voir, n.169,
fev.-mar. 2020.
5   Cf. Hawre Hasan Hama, “The consequences of
the fragmented military in Iraqi Kurdistan” [As
consequências da fragmentação militar no
Curdistão iraquiano], British Journal of Middle
Eastern Studies, v.48-2, Glasgow, 2021.
6   C f. Amberin Zaman, “Talabani family feud at
center of power struggle in Iraqi Kurdistan
party” [Família Talabani briga no centro da
luta pelo poder no partido do Curdistão ira-
quiano], Al-Monitor, 14 jul. 2021.
7   Ler Laura-Maï Gaveriaux, “La sale guerre du
président Erdogan” [A guerra suja do presiden-
te Erdogan], Le Monde Diplomatique, jul. 2016.
8   Ler Jean Michel Morel, “La Syrie, une nouvelle
Atlantide?” [A Síria, uma nova Atlântida?], Le
Monde Diplomatique, mar. 2023.
12 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

REFORMA DA PREVIDÊNCIA NA FRANÇA

Diálogo social,
a grande ilusão
A revolta popular provocada pela perspectiva de trabalhar por mais dois anos e pela aprovação forçada do
Executivo confirma uma virada. Abalado por governos que definiram como objetivo a felicidade dos acionistas,
o crédito concedido pela população ao mundo político desmorona. Este abdicou de sua missão, a ponto deixar
nas mãos do Conselho Constitucional uma decisão da qual depende a vida de milhões de trabalhadores
(ver pág. 14 ) . Quando o descontentamento das pessoas comuns serve de guia (ver pág. 2 ), os líderes sabem
alimentar dois tipos de reação: a resignação ou a revolta. Eles estavam contando com a primeira. No entanto,
o desejo de viver uma vida digna reacendeu nos menos politizados a força de lutar (ver pág. 16 ) . E até a
Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT) redescobriu as virtudes da luta (ler abaixo )

POR SOPHIE BÉROUD E MARTIN THIBAULT*

“A
França que marcha é a Fran-
ça que trabalha e exprime
democraticamente seu repú-
dio a uma reforma injusta”,
felicitava-se Laurent Berger, secretário-
-geral da Confederação Francesa De-
mocrática do Trabalho (CFDT), no
L’Obs de 9 de fevereiro último. “Esse
movimento se parece com a CFDT.”
Mas a CFDT se parece com o que atual-
mente? Onde ela está? Em março de
2020, junto com o Movimento das Em-
presas da França (Medef, principal
confederação patronal do país), ela se
preparava para participar de uma con-
ferência de financiamento das aposen-
tadorias pouco antes de o governo re-
nunciar à reforma precedente por causa
da crise sanitária. Três anos depois, a
imprensa nos mostra Berger como o lí-
der do movimento intersindical mobili-
zado contra o projeto do governo da
primeira-ministra Élisabeth Borne. Se-
ja como for, dessa vez e diferentemente
de seus predecessores em outras lutas,1
Berger não fraquejou. Muitos comenta-
ristas atribuíram essa firmeza ao voto,
no congresso de junho de 2022, de uma
emenda pela qual 67% dos delegados
recusavam, contra a vontade da dire-
ção, qualquer aumento de duração da
contribuição. No entanto, como expli-
car semelhante mudança se, por cerca
de dez anos, a confederação sustentou a
necessidade de um aumento dessa du-
ração? Como entender a retomada de
combatividade na qual se inscreve essa
mudança de postura? Sem dúvida, reto-
mando a história recente do “diálogo
social”, a fim de detectar como ele con-
duziu os sindicatos em um impasse, e
também precisando as dificuldades en-
contradas para superá-lo.
A expressão “diálogo social” surgiu na
França em 1984: em 18 de janeiro, na
tribuna do Parlamento europeu, o mi-
nistro socialista das Relações Exteriores,
Claude Cheysson, anunciou que a pre-
sidência francesa do Conselho da Co-
munidade Europeia iria tomar “as ini-
ciativas necessárias para descobrir, com
os parceiros sociais, o meio de reforçar
o diálogo social no nível europeu”. Nos
anos seguintes e por quatro décadas,
esse binômio – “diálogo social”, “parcei-
ros sociais” – formou um “sistema léxi-
co-semântico” que, segundo a cientista
política Corinne Gobin, deveria permi-
tir “relações sociais mais harmoniosas,
vividas como relações entre parceiros
orientados para um objetivo comum,
estimulando a competitividade das
empresas”.2 Desse modo, impunha-se
uma maneira de pensar e sobretudo de
praticar o sindicalismo no seio de uma
democracia liberal pacificada, sem an-
tagonismo de classes.
A CFDT acolheu essa transformação
com entusiasmo. Desde o fim dos anos
1970, o fracasso da “segunda esquerda”
em impor sua linha ao Partido Socialis-
ta levou-a a esperar pouco da política e
da lei. No congresso de Brest, em 1979,
o secretário-geral Edmond Maire preco-
nizava uma “reorientação” rumo à ação
sindical – isto é, um sindicalismo “de
propostas”, às vezes qualificado de “libe-
ral-sindicalismo”.3 Para a confederação,
servir ao interesse geral implicava dora-
vante assumir compromissos aceitáveis
e adotar uma concepção mais estreita
de sua atividade. Valorizaram-se nego-
ciações sem mobilização paralela – “a
frio”, conforme a expressão consagra-
da. E não foi só a CFDT: a Confederação
Francesa de Executivos (CFE-CCC), a
Confederação Francesa dos Trabalhado-
res Cristãos (CFTC) e a União Nacional
dos Sindicatos Autônomos (Unsa) tam-
bém aderiram ao diálogo social.
A partir dos anos 2000, houve uma
expansão. As organizações sindicais se
encontraram cada vez mais integradas à
ordem gerencial. A lei de 20 de agosto de
2008 conclamava-as a participar de uma
“democracia social” renovada, reser-
vando um lugar central para a concerta-
ção a fim de acabar com todos os tipos
de conflito e, na realidade, domesticar
um pouco mais os militantes sindicais.
A lei de 8 de agosto de 2016 (chamada
“Lei do Trabalho”) deu prioridade aos
acordos com as empresas, e não mais
aos dispositivos legislativos ou aos acor-
dos setoriais, na hierarquia das normas
aplicáveis aos assalariados. A negocia-
ção contribuiu para enfraquecer as pro-
teções coletivas e, como explicado por
uma nota recente do think tank Intérêt
Général, para “subordinar os sindicatos
ao poder das finanças e do mercado,
obrigando-os a negociar recuos sociais
(planos de demissão, flexibilização das
horas de trabalho) a fim de reduzir o
risco de afastamento dos acionistas e
manter a competitividade da empresa”.4
Por um lado, concedeu-se aos sindica-
tos o estatuto de “parceiros” com direito
a acompanhar transformações frequen-
temente desfavoráveis aos assalariados;
por outro, constatou o sociólogo Étien-
ne Pénissat, houve “uma série de dis-
positivos [...] com vistas a neutralizar as
formas de ação tradicionais do sindica-
lismo, especialmente a greve”.5
Desde o início de 2023, a
CGT e a CFDT constatam
um aumento sensível
dos pedidos de filiação
ATESTADO DE RESPONSABILIDADE
Quando aceitavam se inscrever nesse
quadro, as organizações recebiam um
atestado de responsabilidade dos po-
deres públicos, dos especialistas patro-
nais e das mídias (pelo menos até 2017).
Desde a eleição de Emmanuel Macron,
o governo brutalizou sistematicamen-
te os sindicatos. Do diálogo social em
nível nacional, não pode restar grande
coisa quando, um após o outro, os pri-
meiros-ministros Édouard Philippe,
Jean Castex e Élisabeth Borne preferem
desmantelar por decreto as instâncias
de representação das pessoas (IRP) ou
a proteção social. O pedido dos sindica-
tos, em 9 de março último, para conver-
sar com o presidente da República não
passou de ilusão: apesar das mobiliza-
ções recordes em número de passeatas
(perto de trezentas em 7 de março) ou
de manifestantes (3,5 milhões segun-
do os sindicatos, 1,2 milhão segundo o
Ministério do Interior na mesma data),
Borne não se dignou a recebê-los de-
pois da primeira manifestação, em 19
de janeiro. A petulância do governo
levou-o a arriscar uma apresentação
ainda incompleta de uma reforma mal
concebida. Sua recusa ao diálogo indu-
ziu-o a negligenciar a possibilidade de
dividir o movimento intersindical se fi-
zesse algumas concessões.
A decepção é ainda mais forte – e pree-
xistente à reforma da previdência – nos
locais de trabalho. Os dirigentes tendem
a se tornar peritos em detrimento da
ação militante em campo. “Hoje, no mo-
vimento sindical, as reuniões são rápi-
das e decididas pelas direções. Um ver-
dadeiro drama. Há camaradas que são
bons delegados, mas não sindicalistas”,
explica um ex-gerente da SUD-Rail. A si-
tuação piorou ainda mais com os decre-
tos de Macron em 2017. A constituição
dos Comitês Sociais e Econômicos (CSE)
acentuou sua distância dos assalaria-
dos.6 Quando, além disso, esses comitês
se transformam em caixas de ressonân-
cia de decisões patronais, o impasse fica
evidente até para os sindicalistas mais
propensos ao diálogo. Sua desmoneti-
zação em nível nacional e local explica a
presença das organizações ditas “refor-
mistas” no movimento sindical. Diante
da exasperação geral e da brutalidade
do poder, elas induzem a refletir de novo
em termos de confronto.

© Eric Gaillard/Reuters
Protestos da CGT com cartaz do presidente Emmanuel Macron como um rei, em Nice. Desde o início de 2023, a CGT teve aumento nos pedidos de filiação
São termos, é claro, sempre mais
moderados que os de outros compo-
nentes do mundo sindical. Na Confe-
deração Geral do Trabalho (CGT) ou
na Solidaires, a necessidade de esta-
belecer uma robusta relação de forças
perante um governo dos mais intran-
sigentes foi sentida pelos militantes
após o fracasso de várias mobilizações
interprofissionais, em particular a da
primavera de 2016 contra a Lei do Tra-
balho. No contexto da mobilização em
curso, isso provoca fortes tensões na
CGT ou na Solidaires. Em 2 de março
último, as federações de portos e do-
cas da CGT, SNCF (ferrovias), quími-
ca, minas e energia, vidro e cerâmica
decidiram se unir com vistas a greves
duradouras.
MOBILIZAÇÃO CONTINUA
A GANHAR POPULARIDADE
Até agora, o movimento intersindical
privilegiou uma postura de reação e
defesa, em sincronia com o calendário
do governo (primeira leitura na assem-
bleia, primeiro exame no Senado, en-
trega à comissão mista paritária). Isso
poderá esgotar os militantes de campo,
obrigados a se mobilizar sem entender
a forma nem a cronologia do movimen-
to? Os setores de energia ou transportes
sempre tiveram a capacidade de arras-
tar outros, mas também de bloquear
sozinhos a economia. Na SNCF e em
outras partes, é preciso levar em conta o
enfraquecimento dos coletivos laborais,
com a intensificação da repressão (no
trabalho, nas greves ou nas manifesta-
ções) e com a restrição cada vez maior
do exercício do direito de greve. Os as-
salariados das refinarias, no outono de
2022, e os lixeiros de Paris, em março de
2023, arcaram com exigências das pre-
feituras que ignoram as recomendações
da Organização Internacional do Traba-
lho (OIT). Em relatório de novembro de
2011 (caso n. 2.841), seu comitê da liber-
dade sindical havia solicitado expressa-
mente ao governo francês que “não re-
corresse à imposição da medida por via
unilateral” naquelas circunstâncias e
privilegiasse “a participação das organi-
zações de trabalhadores e empregados
ligados a esse exercício”.
Apesar dessas medidas e da comuni-
cação que as acompanha, a mobilização
continua a ganhar popularidade. Desde
o início de 2023, a CGT e a CFDT cons-
tatam um aumento sensível dos pedidos
de filiação. “Chegam assalariados isola-
dos ou que querem fundar um sindicato
em sua empresa. No [departamento de]
Jura, foram 80 mil em atividade... É algo
ABRIL 2023
colossal para nós”, explica um secretá-
rio-geral departamental da Force Ou-
vrière (FO).7 Segundo as confederações,
um quinto desses pedidos de adesão é
feito por pessoas com menos de 30 anos
(nem 3% de sindicalizados tinham essa
idade em 2019, segundo o Ministério do
Trabalho). Isso, tanto quanto as mani-
festações nas pequenas comunidades,
encoraja os sindicalistas.
As passeatas evocam também, obriga-
toriamente, as ações dos Coletes Ama-
relos... Sua capacidade de pressionar o
poder, mas também de fazer implodir
os códigos rotineiros das manifestações,
deixou traços em muitas equipes sindi-
cais nas quais a vontade de decifrá-los é
muito forte. Sem grande contenção, sua
força apareceu depois que Borne deci-
diu, em 16 de março, tornar seu gover-
no responsável por impor a reforma aos
parlamentares e à população que teima-
va em recusá-la. Por iniciativa dos sindi-
catos locais, milhares de pessoas desfila-
ram por noites seguidas em Paris, Lyon e
Marselha, mas também em Brest (15 mil
manifestantes segundo a CGT em 18 de
março, 6 mil segundo a polícia), Caen,
Dijon, Roanne e Saint-Étienne. Nas
passeatas, aposentados, estudantes, o
mundo do trabalho, Coletes Amarelos...
e muita determinação.  L’Obs, 16 mar. 2023.
Le Monde Diplomatique Brasil 13
*Sophie Béroud e Martin Thibault,  pro-
fessores pesquisadores de Sociologia, são
autores de En luttes! Les possibles d’un
syndicalisme de contestation [À luta! O que
é possível a um sindicalismo de contesta-
ção], Raisons d’Agir, Paris, 2021.
1   J acques Kergoat, “Les syndicats français mis au
défi” [Desafio aos sindicatos franceses], Le Mon-
de Diplomatique, mar. 1996, e Martine Bulard,
“Financier les retraites autrement” [Financiar as
aposentadorias de outro modo], jul. 2003.
2   C orinne Gobin, “Dialogue social” [Diálogo so-
cial], em Nouveaux mots du pouvoir: frag-
ments d’un abécédaire [Novas palavras do
poder: fragmentos de um abecedário], Qua-
derni, n.63, Paris, 2007.
3   Cf. Jean-Claude Aparicio, Michel Pernet e Daniel
Torquéo, La CFDT au péril du liberal-syndicalis-
me [A CFDT em risco de liberal-sindicalismo],
Syllepse, Paris, 1999. Ver também Jean-Michel
Dumay, “CFDT, un syndicalisme pour l’ère Ma-
cron” [CFDT, um sindicalismo para a era Ma-
cron], Le Monde Diplomatique, jun. 2017.
4   “Que peut l’État pour renforcer le syndicalis-
me? Réhabiliter les syndicats dans leur rôle
de contre-pouvoir” [O que pode fazer o Esta-
do para fortalecer o sindicalismo? Recolocar
os sindicatos em seu papel de contrapoder],
Intérêt Général, nota 28, jan. 2023. Disponível
em: interetgeneral.net.
5   Étienne Pénissat, “À l’ombre du ‘dialogue so-
cial’” [À sombra do “diálogo social”], Agone,
n.50, 2013.
6   Ver Sophie Béroud e Jean-Marie Pernot, “La
grève, malgré tous les obstacles” [A greve,
apesar de todos os obstáculos], Le Monde
Diplomatique, mar. 2020.
7   Citado por Agathe Ranc, “Le printemps des
syndicats” [A primavera dos sindicatos],
14 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

O CONSELHO CONSTITUCIONAL FRANCÊS NÃO SERVE PARA NADA?

Sobre o bom uso da Constituição

É razoável esperar que os “sábios da Rue de Montpensier” rejeitem toda ou parte da lei que reforma
a previdência da França? O Conselho Constitucional continua a ser um órgão essencialmente político,
que muito raramente tem vontade de fazer frente aos poderes constituídos

POR LAURÉLINE FONTAINE*

A
rtigo 49, alínea 3. Mas também
47-1 (para acelerar o exame do
texto). E 44, alínea 3 (para per-
suadir o Senado a votar unani-
memente o conjunto do texto). Desde
que o governo anunciou seu projeto de
reforma das aposentadorias, em janei-
ro, essas disposições da Constituição
foram alvo de inúmeros comentários. A
rejeição das duas moções de censura
pela Assembleia Nacional, em 20 de
março, conferiu maior importância ao
recurso ao Conselho Constitucional. Os
juízes deverão se curvar a duas séries
de argumentos: a primeira, o fato de di-
versas medidas, consideradas a esse tí-
tulo como “socialmente inconvenien-
tes”, não figurarem em um Projeto de
Lei Retificativo do Financiamento da
Seguridade Social (PLRFSS), como a
elaboração de uma lista dos trabalha-
dores “seniores”, que não incidem sobre
as contas sociais; mas isso seria de me-
nor importância em comparação com o
essencial da reforma. A segunda levará,
ao contrário, o Conselho Constitucio-
nal a se pronunciar sobre a hipótese do
desvio do procedimento inscrito no ar-
tigo 47-1 da Constituição de 1996, cujo
propósito certamente não era resolver
questões sociais tão fundamentais co-
mo a idade legal de aposentadoria, ain-
da mais por poder eventualmente pri-
var o Parlamento de seu direito de voto
ao fim de um atraso de cinquenta dias.
No entanto, as esperanças deposita-
das nos despachos decorrem do fato de a
narrativa constitucional, durante muito
tempo, ter criado nos espíritos um ima-
ginário amigável, do qual, por extensão,
o Conselho Constitucional asseguraria
sua eficácia sendo seu guardião. Apoia-
dos por um público universitário pouco
crítico e por mídias mal informadas, os
“sábios da Rue de Montpensier” [onde
fica o prédio do Conselho Constitucio-
nal] gozam de uma boa imagem,1 sem
compromisso nem com a realidade da
supressão de direitos e liberdades que
vem ocorrendo há anos nem com a de
sua jurisprudência particularmente fa-
vorável aos interesses econômicos mais
poderosos. O Conselho Constitucional
sempre validou os avanços neoliberais
de nosso quadro legal de vida, aqueles
que governos sucessivos propuseram,
dando-lhes até mesmo contornos cons-
titucionais. Ele é, assim, contra o poder
© Patricia Bonani

– mas endossa sistematicamente sua fi-
losofia, não representando por isso um
contrapoder. Quer sejamos favoráveis
ou não a esse regime político, devemos
constatar que nem sua composição nem
seus meios ou funcionamento o colo-
cam à altura do que uma democracia re-
presentativa exige. Pensamos que ele é
juiz, e ele não é. Pensamos que ele é pelo
menos independente (digamos, justo), e
ele não é. Queremos crer que esteja imu-
ne a influências externas, e outra vez nos
enganamos. A essas falhas se somam
decisões caracterizadas pela imposição
de uma versão mutilada e discutível da
Carta a que ele deveria obedecer.
UMA CASA DE REPOUSO PARA
AS PERSONALIDADES JURÍDICAS
Entre os múltiplos problemas que afe-
tam o Conselho Constitucional, há em
primeiro lugar o da imparcialidade.
Quase todos os seus membros precisam
constantemente arbitrar sobre a sorte
de seus ex-colegas ou sobre textos que
contribuíram para elaborar ou aplicar.
Ou seja, são juízes e partes com respeito
às leis que elaboram ou à regularidade
das eleições legislativas, senatoriais e
presidenciais. Desde as primeiras no-
meações em 1959, as três maiores au-
toridades do Estado – o presidente da
República, o presidente do Senado e
o presidente da Assembleia Nacional
– nomeiam, cada uma, três membros
entre os nove que compõem o Conselho
Constitucional (desde 2010, é necessá-
rio o aval de uma comissão de parla-
mentares). Ora, essas autoridades con-
cebem a justiça constitucional como
uma antecâmara de seu próprio poder,
“uma casa de repouso para as persona-
lidades de destaque no tribunal”, con-
forme a expressão de Alain Supiot. Entre
os membros atuais, contam-se dois ex-
-primeiros-ministros (Laurent Fabius e
Alain Juppé), dois ex-ministros (Jacque-
line Gourault e Jacques Mézard), um
ex-parlamentar (François Pillet), dois
ex-diretores de gabinete ministerial
(Véronique Malbec e François Seners) e
uma ex-secretária-geral da Assembleia
Nacional (Corinne Luquiens). Desig-
nados pelo presidente da República,
os sucessivos presidentes do Conselho
Constitucional foram todos deputados,
ministros, presidentes da Assembleia
Nacional ou primeiros-ministros – ten-
do Laurent Fabius exercido todas es-
sas funções. Ele dirigia o Quai d’Orsay
quando François Hollande o nomeou
para a Rue de Montpensier em 2016.
Isso lhe permitiu participar de uma
deliberação sobre a lei referente ao tra-
balho, à modernização do diálogo social
(ver pág. 12) e à securitização das carrei-
ras profissionais (chamada El Khomri).
O projeto fora aceito pelo conselho de
ministros quando ele próprio era o nú-
mero dois do governo (decisão n. 2016-
736 DC, de 4 de agosto de 2016). Mais
recentemente, Jacqueline Gourault se
encarregou de verificar a constitucio-
nalidade de um texto que, a pedido dos
agentes imobiliários, limitava o direito
de recorrer contra um alvará de constru-
ção e cujo princípio ela defendera quan-
do ministra, chegando a adotar o termo
de aplicação (decisão n. 2022-986 QPC,
de 1º de fevereiro de 2022). Às vezes, es-
sas aparências de parcialidade assumem
contornos sórdidos. A decisão que teve
como efeito anular a condenação por as-
sédio sexual do réu Gérard Ducray, ex-se-
cretário de Estado (decisão QPC n. 2012-
440, de 4 de maio de 2012, M. Gérard D.),
foi tomada quando quatro membros do
Conselho Constitucional mantinham
vínculos profissionais com ele, dois dos
quais participaram da decisão.
Seja como for, as personalidades no-
meadas – e os ex-presidentes da Repú-
blica, membros de direito da instituição
– sabem de cor a música do poder. Elas
a apreciam a ponto de não quererem fi-
car longe dela; mas, de qualquer modo,
só muito raramente têm a competência
que lhes permitiria fazer outra coisa.
Hoje, apenas uma conselheira dispõe
de sólidas qualificações em direito e de
uma experiência jurídica significativa,
mantida no exercício do cargo, já que
era diretora do gabinete da Guarda dos
Selos no momento de sua nomeação
para o Conselho. Além disso, os mem-
bros não podem contar com uma ajuda
à altura de sua missão. No estrangeiro,
os juízes constitucionais, sempre quali-
ficados em direito, possuem inúmeros
assistentes, também eles qualificados;
na França, os conselheiros não têm
uma equipe pessoal para trabalhar com
confiança. Por força das circunstâncias,
é o julgamento político que lhes serve
de bússola. O Conselho busca então
se “servir” do direito – mais especifica-
mente da Constituição, e fazê-la passar
pelo que ela não é. Se decide, por exem-
plo, que o interesse geral é um “objetivo
de valor constitucional”, o Conselho o
faz com base naquilo que o legislador
(portanto, o governo, que é sempre o
“defensor” oficial da lei contra ele em
caso de contestação) estabeleceu como
interesse geral, o que equivale a lhe con-
ferir o poder de determinar, ele próprio,
o conteúdo da Constituição.
Não se vê traço, no Conselho, do es-
forço para compreender o sentido do
projeto constitucional, como acontece
em muitos outros tribunais constitu-
cionais ou supremos de democracias
comparáveis. Não há aí, jamais, uma
leitura atenta e completa do texto cons-
titucional, e as decisões dispensam toda
espécie de argumentação: se uma lei
é contrária ou não à norma suprema,
isso acontece, pontifica o Conselho em
todos os seus vereditos, em virtude do
que ela diz... não se sabendo, contudo,
por quais razões o que ela diz é contrá-
rio ou não à Constituição. Em decisão
de 21 de novembro de 2014 (n. 2014-440
QPC, de 21 de novembro de 2014), ele
ABRIL 2023
pôde, por exemplo, depois de ter sim-
plesmente copiado algumas das regras
de direito que contemplam o suporte
legal, sustentar sem mais palavras que,
“do acima exposto, resulta que o pro-
cesso de admissão ao suporte legal não
é sempre, no sentido do artigo 61-1 da
Constituição, uma instância vigente na
ocasião em que uma questão prioritária
de constitucionalidade pode ser coloca-
da; que a demanda do sr. ... não pode,
portanto, ser aceita”, sem que se tenha a
menor ideia do motivo (mesmo quando
se está familiarizado com o jargão).
A “pobreza intelectual” em que vive
atualmente o Conselho, como afirma
um de seus ex-membros, vem acompa-
nhada da permeabilidade às influências,
sobretudo a dos interesses econômicos,
que prosperou durante anos na maior
opacidade. Ex-membros do Conselho
admitem que os escritos enviados por
esses lobbies e redigidos por especialis-
tas em direito são uma ajuda preciosa
para eles, auxiliando-os a entender tan-
to a lei como a Constituição. Confissão
de impotência, mas também leviandade
de confissão, como a de Jean-Louis De-
bré quando declarou ter, durante seu
mandato de presidente do Conselho, al-
moçado regularmente com o presidente
do Movimento das Empresas da França
(Medef) e empresários a fim de conver-
sar sobre a jurisprudência do Conselho.
Ele escreveu, por exemplo: “Almocei
com uma dezena de empresários que
encontrei para preparar nossa decisão
sobre a lei de finanças de 2012. [...] Eles
agradeceram o convite e a disposição de
ouvi-los o tempo todo. Estou satisfeito
com isso, é claro”.2 Em outra jurisdição,
seria o primeiro presidente da Suprema
Corte a almoçar com as partes de um
processo em curso ou futuro...
JUÍZES IGNORAM O QUE CONTRADIZ
SUA VISÃO DA SOCIEDADE
A colaboração mantida com os poderes
tem uma primeira consequência: as res-
trições às liberdades individuais e coleti-
vas são facilmente validadas, chegando-
-se a admitir que uma violação manifesta
da Constituição não a contraria. Foi o
que aconteceu quando o legislador deci-
diu suspender provisoriamente, no início
do período da pandemia de Covid-19, a
obrigação de exame de uma questão
prioritária de constitucionalidade, isto
é, uma possibilidade de fazer reconhecer
a inconstitucionalidade de uma lei (n.
2020-799 DC, de 26 de março de 2020).
Em 25 de novembro de 2022, o Conse-
lho foi mais longe ainda, admitindo em
uma decisão o que antes lhe parecera in-
concebível: em Mayotte, a possibilidade
geral de efetuar os controles de identi-
dade sem nenhum outro limite (decisão
n. 2022-1025 QPC, de 25 de novembro
de 2022). Isso equivale a fazer da ilha um
território fora do direito constitucional.
Sempre atento às expectativas do po-
der econômico e do Executivo, o Conse-
Le Monde Diplomatique Brasil 15
lho censura o que considera um entrave
à expansão do mercado (a luta contra a
fraude ou a evasão fiscal) ou a seu domí-
nio (autorização para a venda de semen-
tes produzidas por camponeses, decisão
n. 2018-771 DC, de 25 de outubro de
2018). Ele decide em nome de princípios
como a liberdade de empreendimento,
que não figura expressamente na Cons-
tituição, mas cujo valor constitucional
assegura. Com o mesmo fundamento,
os juízes censuram também dispositi-
vos da lei relativa à economia social e
solidária, que prevê a possibilidade de
declarar a nulidade de cessão de uma
empresa quando ela se realiza sem os
funcionários terem sido informados,
não podendo eles, portanto, apresentar
uma proposta de aquisição (decisão n.
2015-476, de 17 de julho de 2015).
Ao contrário, os juízes ignoram aquilo
que, nos textos de valor constitucional,
contradiz sua visão da sociedade, princi-
palmente o preâmbulo da Constituição
de 1946, que tem valor constitucional e
afirma, entre outras coisas, que: “Todo
trabalhador participa, por intermédio
de seus delegados, da determinação
coletiva das condições de trabalho e da
gestão das empresas”. Ignorando tam-
bém a ideia de República social, cujo
princípio está inscrito no artigo 1º da
Constituição,3 o Conselho validou sem
problemas a virada neoliberal das políti-
cas públicas da França. Um ex-membro
do Conselho, Georges Vedel, declarou
que essa entidade não tinha a obrigação
de sustentar uma doutrina econômica
específica, pois a Constituição é neutra.
Esse mito da neutralidade econômica da
Constituição, vindo da Alemanha e zelo-
samente cultivado há anos,4 não passa
entretanto de uma facilidade de leitura
e de uma cegueira voluntária diante do
aspecto social do texto constitucional.
Não há, com efeito, mais razões para co-
locar a liberdade contratual e a liberda-
de de empreendimento acima da hierar-
quia das normas constitucionais do que
para privilegiar a efetividade das dispo-
sições sociais do texto constitucional. 
*Lauréline Fontaine,  professora de Direi-
to Público e Constitucional da Universida-
de Sorbonne Nouvelle, é autora de La
Constitution maltraitée. Anatomie du Con-
seil Constitutionnel [A Constituição maltra-
tada. Anatomia do Conselho Constitucio-
nal], Amsterdam, Paris, 2023.
1   V er Anne-Cécile Robert, “Vous avez dit ‘sa-
ges’?” [Vocês disseram “sábios”?], Le Mon-
de Diplomatique, abr. 2013.
2   J ean-Louis Debré, Ce que ne pouvais pas
dire [O que não se podia dizer], Robert Laf-
font, Paris, 2017.
3   Cf. Lauréline Fontaine e Alain Supiot, “Le Con-
seil Constitutionnel est-il une juridiction socia-
le?” [O Conselho Constitucional é uma jurisdi-
ção social?], Droit Social, n.9, set. 2017.
4   Ver François Denord, Rachel Knaebel e Pierre
Rimbert, “L’ordolibéralisme allemand, cage de
fer pour le Vieux Continent” [O ordoliberalis-
mo alemão, jaula de ferro para o Velho Conti-
nente], Le Monde Diplomatique, ago. 2015.
16 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
COM OS GREVISTAS NA FRANÇA
“Fazemos com
o que temos!”
Conciliar o apoio popular maciço com a fraqueza relativa das forças
mobilizadas em campo: esse é o desafio enfrentado pelos militantes sindicais
em luta contra a reforma da previdência na França. Eles o aceitam mais ou
menos bem, contando com o tempo. Exemplos no oeste do país
POR PIERRE SOUCHON*, ENVIADO ESPECIAL
“O
nde estão as madeiras? Eu
não vejo nada...”
Ao amanhecer desta ter-
ça-feira, 21 de março, na
rotatória da zona industrial dos Her-
biers (no departamento de Vendée),
os militantes se procuram no escuro
e no frio. Para combater a reforma da
previdência, embora o Parlamento já
a tenha votado na véspera, a madeira
começa a se empilhar na calçada. “Re-
solvemos fazer esse bloqueio sozinhos,
pois nossa intersindical regional não
estava de acordo. Sem dúvida, é uma
medida um tanto radical para muitos
deles [dirigentes sindicais]”, lamenta
François,1 do braço local da Confedera-
ção Geral do Trabalho (CGT) em La Ro-
che-sur-Yon. A madeira pega fogo: um
primeiro veículo pesado buzina em si-
nal de solidariedade. “Vocês são os sin-
dicatos?”, pergunta uma quinquagená-
ria ao volante de um carro de serviço.
– Sim, senhora, somos a CGT.
– Ah, não posso conversar por muito
tempo porque sou geolocalizada, mas
vocês vão me salvar. Quero ser sindicali-
zada. Trabalho como faxineira, as coisas
vão mal para mim e, como estou toda
quebrada, jamais chegaria aos 64 anos...
Valérie, sindicalista em uma segura-
dora, lhe passa rapidamente seu núme-
ro de telefone: “Só por encontrar essa
senhora nossa ação já valeu a pena”.
Durante a manhã, o “bloqueio da
economia” previsto se transforma em
barreira com distribuição de panfle-
tos: os trinta militantes presentes não
bastam para interromper totalmente a
circulação, conforme o esperado, mas
conseguem exasperar a polícia local,
que apaga as fogueiras. “Fazemos com
o que temos!”, desafia Kamel, emprega-
do da companhia elétrica Enedis. “Com
o que temos” significa, a alguns metros,
uma zona industrial com cerca de 5 mil
assalariados dos quais nenhum está em
greve. “Com o que temos” são esses mes-
mos assalariados que vão trabalhar pe-
gando panfletos, encorajados pela maior
parte dos militantes presentes, agrade-
cendo-lhes a manifestação. Contudo,
é preciso dizer: estes últimos estão um
pouco cansados. Cansados das grandes
manifestações – pelo que os militantes
se lembrem, jamais as autoridades de
Vendée viram passeatas tão concorridas
como neste inverno –, das mensagens de
apoio, das felicitações e buzinaços, que
não se convertem em atos, paralisações
ou greves nos locais de trabalho. Cada
qual enumera as causas em tom de de-
sânimo: a resignação, o fatalismo, o indi-
vidualismo, as dificuldades financeiras...
No entanto, cada qual traz um pedaço
de madeira, uma garrafa térmica de café,
sorrisos, galhos de árvore, maços de
panfletos. Todos continuam ali.
RESIGNAÇÃO E INDIVIDUALISMO
Sem dúvida, os ferroviários da CGT de
La Roche-sur-Yon também vivem uma
contradição profunda. Eles nos convi-
dam a comer – copiosamente – ali mes-
mo. Estão em greve por tempo indeter-
minado – a palavra faz alguns sonharem,
eles não: “Os colegas estão sempre em
greve aqui, é um núcleo duro”, antecipa
Olivier. Todos lamentam não ter conse-
guido arrastar os outros para seu movi-
mento: “O pior é que eles nem ligam”,
diz Olivier, desolado. “Embora se con-
siga pouco com a greve, logramos pelo
menos diminuir a atividade. Porém, eles
jogam Candy Crush o tempo todo em
seus celulares...” Esse sindicalista critica
a “consciência” dos assalariados, “polí-
tica ou sindical”, que seria muito fraca.
Objetamos que a “consciência” da injus-
tiça dessa “reforma” está bastante dis-
seminada, como atestam todas as pes-
quisas de opinião pública. “É verdade”,
admite Sébastien. “Mas se trata apenas
de uma oposição de televisão: passar
da revolta diante da tela para o ato de
imobilizar seu instrumento de trabalho
a fim de coagir um governo a recuar não
é coisa fácil de obter das pessoas...” No
entanto, todos continuam aqui.
Éric também continua. Esse sindicalis-
ta da CGT da Airbus, em Nantes (depar-
tamento de Loire-Atlantique), parece ter
resolvido a contradição: “É preciso acei-
tar a militância sem resultados”. Pergun-
tamos a ele e a seu colega Jimmy: com 150
pessoas, vocês conseguiram bloquear
completamente uma rotatória durante
algumas horas – não será esse um resul-
tado interessante? “Pelo contrário, é uma
confissão de fraqueza”, retruca Jimmy.
“Se considerarmos apenas os votos ob-
tidos nas eleições profissionais, devería-
mos ter perto de mil...” Aceite-se, pois,
uma militância sem resultados: “Demora
muito trabalhar a consciência das pes-
soas”, prossegue Éric. “Provavelmente,
jamais colheremos, em vida, os frutos
do que plantamos. Porém, as ideias vão
se difundindo, inclusive de maneiras que
ainda não conhecemos. Enquanto espe-
ramos, temos de continuar, renunciando
sobretudo ao culto do imediatismo: as
novas gerações que chegam às fábricas
sabem disso. Para as conquistas sociais,
as coisas não são assim...”
Jimmy sugere também que se recon-
sidere a relação com o tempo: “Traba-
lhamos em cadência, temos objetivos
fixados hora a hora, cada minuto nosso é
contado... É o tempo capitalista. Precisa-
mos reivindicar novamente o tempo lon-
go, o nosso tempo”. Cumpre ainda resol-
ver uma contradição suplementar: ope-
rador de sistema digital – “aperta-botões,
como chamamos” –, Éric se diz orgulho-
samente um trabalhador braçal. “No en-
tanto, é muito difícil passar do emprego
na fábrica à tarefa de persuasão. Na ofi-
cina, ao fim do dia, sei o que fiz com mi-
nhas mãos: é gratificante. Na militância
junto aos assalariados, no cotidiano sin-
© Gonzalo Fuentes/Reuters
dical, não vejo nenhum resultado con-
creto desse tipo. O que fazemos é impal-
pável...” Éric e Jimmy seguem. Enquanto
o movimento intersindical permanecer
unido, eles têm uma grande vantagem:
para esses homens da CGT habituados
à dominação histórica da Force Ouvrière
(FO) na Airbus, frequentemente qualifi-
cada de “sindicato da casa”, a presença
no movimento intersindical da confede-
ração FO, jamais desmentida, contribuiu
em muito para reforçar as fileiras dos
manifestantes e dos grevistas.
“Foram necessários três dias.” Julga-
mos, por um instante, que Jean-Marie,
da CGT Fleury-Michon, que conta com
mais de 2 mil assalariados em Vendée,
cedera ao culto do imediatismo. “Três
dias de greve para que os desossadores
da fábrica, todos de fora, obtivessem
aumento.” Mas então foi tudo rápido,
eficaz, imediato? Jean-Marie tem um
sobressalto: “Três dias de greve é mui-
to, convenhamos! Sem falar do trabalho
de conscientização anterior, que durou
meses, talvez anos...” Ali ao lado, Mickaël
lembra seus primeiros anos de trabalho,
sem nenhuma queixa, nesse orgulho da

Manifestantes seguram a bandeira nacional francesa na Place de la Nation durante uma manifestação contra a reforma previdenciária do governo
indústria agroalimentar: “Sem consciên-
cia”. O destino de um amigo operário,
injustamente ameaçado de demissão, é
que lhe “abriu os olhos”. Sindicalizou-se
quando a CGT estava em baixa na fábri-
ca; quinze anos depois, ela só precisa
de alguns votos para ser majoritária. O
“tempo longo” permitiu chegar a 10% de
grevistas na Fleury-Michon por ocasião
das jornadas de mobilização em defesa
das aposentadorias. Mickaël lamenta
essa taxa, pequena diante do desafio.
Depois volta atrás: ela na verdade é bem
alta, em comparação com as taxas entre
os outros assalariados da indústria local.
Jean-Marie e Mickaël continuam.
“Descobri a escravidão.” Béatrice
parece uma pessoa comedida. Assim,
quando essa cuidadora da CGT nos re-
lata o começo de sua carreira, percebe-
mos que a palavra “escravidão” não é
despropositada. Condições de trabalho,
pressão mental e sobretudo física: “Fe-
lizmente, logo fiz boas amigas. Depois
do serviço, bebíamos um copinho e co-
míamos uns petiscos na sala, em com-
panhia dos meus cachorros”. Escondia
ela então segundas intenções militan-
tes? Béatrice sorri. Garante que na épo-
ca não sabia nada de engajamento, não
tinha “consciência” nem imaginava que
aqueles encontros de fim de tarde logo
se transformariam em reuniões sindi-
cais. Contudo, ao partilhar seu cotidia-
no, suas dificuldades, um bolo e um
café, aquele punhado de mulheres jo-
vens acabou por decretar, coletivamen-
te, um “basta”. No início dos anos 2000,
elas designaram Béatrice delegada sin-
dical: “Lembro-me bem do começo. Não
entendia nada. Dizia na cara do patrão,
gentilmente, o que estava errado. O que
suportávamos era desumano, e eu esta-
va convencida de que seria fácil nos en-
tendermos. Afinal, nós dois éramos hu-
manos. O problema é que, na verdade,
ele compreendia perfeitamente nosso
sofrimento e me respondia: ‘Sim, é difí-
cil para vocês. Mas as coisas são assim e,
se não estão satisfeitas, pouco importa’”.
“Isso me abalava”, acrescenta Béatrice
com voz doce. “Eu não sabia que estava
descobrindo a luta de classes. Ignorava
que isso existisse, que alguém poderia se
recusar a me ouvir pura e simplesmen-
te porque seus interesses eram diferen-
ABRIL 2023
tes dos meus.” Toda semelhança com
os processos contra o autoritarismo,
apoiados pelo artigo 49.3, e outras críti-
cas à “surdez” do governo atual não são,
segundo Béatrice, mera coincidência...
Entretanto, acontece que, após promo-
ver suas primeiras greves, particular-
mente raras nesse setor, alguém acabou
por ouvir Béatrice. Vinte anos após a
criação do sindicato, ela contou 10% de
grevistas em sua associação de cuidado-
ras quando das recentes mobilizações
em Vendée contra o projeto da primei-
ra-ministra Élisabeth Borne de reforma
das aposentadorias. Béatrice trabalhou
por muito tempo sem resultado, aceitou
o tempo longo. Ela garante que 10% de
grevistas são uma vitória inequívoca.
Está convencida de que a reforma da
previdência talvez não seja retirada, mas
isso faz parte da “luta de classes” – na
qual se pode “perder uma batalha, mas
não a guerra”. Béatrice continua.
Já Denis está satisfeito. O bloqueio do
liceu técnico onde esse sindicalista ensi-
na matemática foi efêmero, mas inédito
– e vencedor. Um de seus colegas trou-
xe um impressionante feixe de madeira
Le Monde Diplomatique Brasil 17
serrada por sua própria iniciativa na flo-
resta, muito útil para barrar as diferentes
entradas do estabelecimento. “Quando
esse colega chegou a nossa escola em
2018, eu o desprezava abertamente: era
tão fanático por Macron, adorava-o de
tal maneira que ficava por cinco horas
assistindo a seu grande debate! Não per-
dia um... Ninguém conseguiu fazer coi-
sa igual neste país!” Magnânimo, Denis
preferiu não levá-lo a sério e convidava-
-o depois das aulas para jogar baralho
entre colegas. “Toda sexta-feira, alguns
de nós nos reuníamos em um bar per-
to da escola. Jogávamos bebendo umas
cervejinhas. Conversávamos sobre tudo
e nada. Sobre política também. Assim,
depois de cinco anos, meu colega pas-
sou do grande debate aos feixes de ma-
deira que transportava para bloquear a
escola. Foram necessários cinco anos
de carteado.” Tempo longo? “Não, cin-
co anos passam depressa.” Denis cai na
gargalhada. E continuará. 
*Pierre Souchon  é jornalista.
1   O
 s entrevistados pediram para ser identifica-
dos pelo prenome.
18 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

VOCÊ PROTESTA CONTRA UM LÍDER DE ESQUERDA OU DE DIREITA?

Da Venezuela ao Peru, nem

todos os manifestantes são iguais
Evidências apontam que é melhor desafiar um presidente de esquerda do que um líder que chegou ao poder por um
golpe de Estado. Uma comparação dos tratamentos reservados a levantes recentes em dois países latino-americanos
aponta que nem todas as mobilizações têm a mesma legitimidade perante os tribunais midiáticos e diplomáticos

POR MERIEM LARIBI*

E
m 2014 e 2017, protestos da oposi-
ção venezuelana e sua repressão
resultaram em aproximadamente
180 mortes. Desde dezembro de
2022, a revolta popular no Peru levou à
morte pelo menos sessenta pessoas por
balas da polícia e deixou outras 1.800
feridas. Em ambos os países, os mani-
festantes se opõem a seus líderes: Nico-
lás Maduro, na Venezuela, e Dina Bo-
luarte, no Peru. No entanto, apesar de
situações comparáveis, as reações mi-
diáticas e diplomáticas divergem. De
um lado, condenação do poder e apoio
aos manifestantes; de outro, solidarie-
dade com a presidência e descrição dis-
tanciada da repressão.
Em 6 de junho de 2021, o Peru elegeu
Pedro Castillo, um professor rural pouco
reconhecido que venceu o pleito con-
tra Keiko Fujimori, filha do ex-ditador
Alberto Fujimori (1990-2000). Castillo e
sua equipe “devem estar preparados para
uma reação séria da oligarquia, apoiada
por seus chefes em Washington. O Peru
tem enormes depósitos de cobre e ouro
que o Ocidente costuma extrair do solo
em seus termos. Eles não fazem acordos”,
alertou o jornalista britânico Matt Ken-
nard, cofundador da Declassified UK.1
Depois de duas tentativas de destitui-
ção (a primeira, quatro meses após sua
posse) e após a passagem de 78 minis-
tros e quatro primeiros-ministros, en-
curralado, o presidente anunciou, em
7 de dezembro de 2022, “a decisão de
decretar estado de emergência para res-
tabelecer o estado de direito e a demo-
cracia, dissolvendo temporariamente o
Congresso e convocando eleições para
uma Assembleia Constituinte dentro de
nove meses”. Seus adversários contra-
-atacaram. O Congresso afastou-o do
cargo menos de duas horas depois de
seu discurso, por “incapacidade moral
permanente”. Castillo foi detido por sua
própria guarda e encarcerado. Trata-se,
em realidade, de um golpe de Estado
que permitiu à vice-presidenta Dina Bo-
luarte colocar a faixa presidencial.2
O sol ainda não havia se posto em
Lima, em 7 de dezembro, quando
Washington já chamava Castillo de “ex-
-presidente”.3 No dia seguinte, os Esta-
dos Unidos cumprimentaram o Peru
por garantir a “estabilidade democrá-
tica”4 e prometeram trabalhar com a
nova presidenta. Esta recebeu também
o apoio da União Europeia em “todos
os esforços destinados a restabelecer o
diálogo e fortalecer o Estado de direito e
as instituições democráticas”.5 Rapida-
mente, milhares de peruanos saíram às
ruas para exigir a renúncia de Boluarte
e a volta de Castillo. Em frente à sede
do Congresso, eles alertavam: “Se ele
não for liberto, haverá uma revolução”.
Sindicatos do mundo agrícola e orga-
nizações sociais, camponesas e indíge-
nas convocaram greves e bloqueios. A
mobilização se intensificou em todo o
país. A repressão começou.
AVALANCHE DE REPORTAGENS
De volta à Venezuela. Maduro tornou-se
presidente com a morte de Hugo Chá-
vez, em 5 de março de 2013, e foi con-
firmado no cargo na eleição de 14 de
abril de 2013, cujo pleito venceu com
50,6% dos votos. A decisão do candi-

© Pilar Olivares/Reuters

Manifestantes protestam contra a presidente Dina Boluarte, em meio à pior onda de protestos em pelo menos duas décadas no país andino, em Juliaca, Peru

dato da oposição Henrique Capriles
de denunciar fraude eleitoral levou a
grandes manifestações pontuadas por
atos de vandalismo e confrontos que
causaram nove mortes entre partidários
de Maduro e policiais. Uma nova onda
de manifestações começou em feverei-
ro de 2014. A oposição batizou-a de La
Salida [a saída]: começou entre os estu-
dantes, em um contexto de inflação alta
e escassez constante. Desde o primeiro
dia, manifestantes mascarados jogaram
pedras e coquetéis molotov em institui-
ções públicas, incluindo a sede do go-
verno do estado de Tachira.
O anúncio das três primeiras vítimas
desencadeou uma avalanche de repor-
tagens e editoriais na imprensa interna-
cional. A Venezuela tornou-se assunto
central por quatro meses. Em 27 de fe-
vereiro, reportagem da BBC sugeriu que
as manifestações se transformaram em
uma insurreição: “Agora são construí-
das estruturas semelhantes a fortalezas
feitas de tijolos, colchões, tábuas de
madeira e até arame farpado”.6 Muito
rapidamente, o então secretário de Es-
tado dos Estados Unidos, John Kerry,
condenou a “violência sem sentido”
perpetrada contra manifestantes anti-
governamentais e acusou o presidente
Maduro de realizar uma “campanha de
terror” contra seu povo.7
Retornemos ao Peru em 2022, quando
a mídia se enfureceu contra os manifes-
tantes. “Por que esses senhores [atiran-
do pedras na polícia] não levaram um
tiro na cabeça?”, perguntou o jornalista
Philip Butters ao chefe da polícia na-
cional de Lima durante uma entrevista
no canal Willax (9 dez. 2022). No El Co-
mercio, um jornalista explica que “é evi-
dente que há uma parte da população
faminta que já está farta de tudo. Prin-
cipalmente dos protestos e seus partici-
pantes”.8 Em 18 de dezembro, a Agence
France Presse (AFP) informou que “o
país está abalado por manifestações
mortais”. “Os protestos deixaram pelo
menos 19 mortos e 569 feridos, incluin-
do menores de idade”, acrescentou a
agência. Nem a polícia nem o Exército:
“os protestos”. A mesma matéria conta
que o secretário de Estado dos Estados
Unidos, Antony Blinken, falou com Bo-
luarte e enfatizou “a necessidade de to-
dos os partidos peruanos se engajarem
em um diálogo construtivo para supe-
rar as divisões políticas e se concentrar
na reconciliação”. Acrescentou ainda
que os Estados Unidos “esperam tra-
balhar em estreita colaboração com a
presidenta em objetivos e valores com-
partilhados relacionados à democracia,
direitos humanos, segurança, anticor-
rupção e prosperidade econômica”.
Um pouco mais ao norte, alguns anos
antes, a decisão do governo venezuela-
no de ordenar a prisão de quinze poli-
ciais suspeitos de terem extrapolado as
instruções oficiais passou despercebida
nas chancelarias e na mídia.9 Nada sobre
a violência dos manifestantes, nenhum
apelo à calma ou ao diálogo, apesar dos
carros queimados, incêndios, munições
reais que mataram tanto simpatizantes
da oposição como ativistas chavistas, e
até transeuntes. Em março de 2015, o
presidente dos Estados Unidos, Barack
Obama, decidiu aplicar sanções contra
dezenas de altos funcionários venezue-
lanos: “A erosão das garantias de respei-
to aos direitos humanos na Venezuela
[...] constitui uma ameaça incomum e
extraordinária à segurança dos Estados
Unidos”, justificou.
Em 11 de janeiro de 2023, quando o
número de mortos dobrou no Peru, os
Estados Unidos apelaram a “todas as
partes” por “contenção” e “não violên-
cia”. “Incentivamos o governo a usar
o mínimo de força enquanto trabalha
para proteger os cidadãos, a proprieda-
de privada e a livre circulação de pessoas
e bens”, disse um porta-voz do Departa-
mento de Estado, citado pela AFP. Em 31
de janeiro, o número de mortos se apro-
ximava de cinquenta; os Estados Unidos
pediram à “comunidade internacional”
que apoiasse o governo de Boluarte. Para
Washington, são “os dirigentes e as ins-
tituições do país” que devem “decidir”
a data das eleições, cuja antecipação é
exigida pelos manifestantes. No dia an-
terior, um comunicado de imprensa
do Escritório de Direitos Humanos das
Nações Unidas lamentava a morte de
um policial no incêndio de seu carro e
de um bebê que não pôde ser levado
ao hospital por causa de um bloqueio
na estrada. O órgão da ONU exortou os
manifestantes a “exercer moderação no
exercício de seu direito fundamental de
reunião pacífica” e reiterou seu “pedido
às forças de segurança para defender os
padrões de direitos humanos e garantir
que a força seja usada apenas quando
estritamente necessário e, caso seja ne-
cessária, em total respeito os princípios
da legalidade, da precaução e da propor-
cionalidade”. Sublinhou, ainda, o fato de
o governo peruano ter concordado com
uma plataforma de diálogo nacional.
De abril a julho de 2017, a Venezuela
experimentou uma nova onda de protes-
tos antigovernamentais que levou a mais
violências e deixou mortos e feridos. Em
29 de março, o Supremo Tribunal Fede-
ral privou os deputados de sua imuni-
dade e se outorgou as prerrogativas do
Parlamento controlado desde o fim de
2015 por uma oposição que, desde sua
eleição, havia prometido derrubar Ma-
duro “em seis meses”. O ato denunciava
um golpe de Estado. A repercussão in-
ternacional foi tamanha que fez a Corte
voltar atrás. Porém, já era tarde. No iní-
cio de abril, os guarimbas (bloqueios) in-
cendiaram as ruas, deixando dezenas de
mortos de ambos os lados. No início de
junho, o então ministro da Defesa vene-
zuelano, Vladimir Padrino, reconheceu
os abusos militares e prometeu o fim das
“atrocidades”. “Não quero ver mais um
ABRIL 2023
guarda nacional cometendo atrocidades
na rua”, ameaçou (AFP, 7 jun. 2017). Nove
policiais foram mortos e 829 feridos nes-
ses quatro meses.
A Venezuela é uma “ditadura que ten-
ta sobreviver”, lançou o então recém-
-eleito presidente francês Emmanuel
Macron, antes de ser obrigado a baixar
o tom diante do aumento dos preços
da energia e se mostrar mais amistoso
com Caracas.10 Ele se perguntava “como
alguns podiam ter sido tão complacen-
tes com o regime instaurado”.11 Conti-
nuando e intensificando a política de
sanções de seu antecessor, o presiden-
te Donald Trump prometeu que “os
Estados Unidos não ficarão imóveis
enquanto a Venezuela afunda”. O bilio-
nário garantiu que os Estados Unidos
estavam “com o povo venezuelano em
sua busca para devolver a seu país uma
democracia plena e próspera”.12
Ao todo, 210 policiais venezuelanos
(policiais e militares) foram condena-
dos a penas de prisão de até 28 anos por
violações de direitos humanos durante
os protestos de 2017, conforme anun-
ciou o procurador-geral do país, Tarek
William Saab, em 15 de dezembro de
202113 – informação que não circulou
pelo mundo ocidental. A AFP publicou
uma pequena nota, que praticamente
nenhum meio francês reproduziu.
O sol ainda não havia
se posto em Lima,
em 7 de dezembro,
quando Washington
já chamava Castillo
de “ex-presidente”
CAUSAS JUSTAS SELETIVAS
Em 2017, a ONG Red de Apoyo por la
Justicia y la Paz apresentou um relató-
rio de 232 páginas sobre a violência de
abril a julho de 2017.14 A organização
entrevistou familiares de boa parte das
142 vítimas identificadas, examinou um
grande número de depoimentos, arqui-
vos e documentos, e concluiu que mais
de 50% dos mortos não estavam partici-
pando de desordem pública: eram prin-
cipalmente espectadores no local de co-
mícios ou tumultos. De acordo com esse
relatório, 52 pessoas foram mortas por
forças da ordem (36,6%) e 70 (49,3%) por
“civis”, indivíduos ou grupos armados
que podem ser “organicamente ligados
ao governo ou à oposição”. O relatório
faz referência também a linchamentos.
Entre esses linchamentos, o caso de
Orlando José Figuera, queimado vivo por
manifestantes, marcou de forma parti-
cular os ânimos na Venezuela. Ao passar
por um aglomerado de adversários, o
jovem de 22 anos levantou suspeitas de
que, por ser negro, seria “chavista”. Um
grupo começou a espancá-lo e, quando
ele já estava no chão, um motociclista o
Le Monde Diplomatique Brasil 19
encharcou de gasolina e jogou um fós-
foro aceso em seu corpo. Segundo fami-
liares, ele também foi esfaqueado e chu-
tado. Esse episódio não foi mencionado
por nenhum meio de comunicação, ex-
ceto pela Telesur, a televisão financiada
pelo governo venezuelano.
Do lado peruano, a Anistia Internacio-
nal forneceu a Boluarte, em 16 de feve-
reiro último, provas de abuso das forças
de segurança, que “várias vezes” atira-
ram e mataram manifestantes.15 Segun-
do a organização, as autoridades agiram
“com acentuado viés racista, visando
populações historicamente discrimi-
nadas”. “As evidências reunidas que ora
apresentamos mostram que agentes da
lei empregaram força excessiva, despro-
porcional e repetidamente letal, usando
suas armas contra pessoas que protesta-
vam”, disse Erika Guevara, diretora das
Américas da Anistia, após sua reunião
com o líder peruano.
A dirigente peruana e seus familiares
não sofreram nenhuma sanção. Seu país
não sofreu nenhum banimento interna-
cional. E, na França, nenhuma petição
dos intelectuais de Saint-Germain-des-
-Prés, geralmente rápidos em apoiar
“causas justas”, pediu apoio aos protes-
tos pró-democracia do país. 
*Meriem Laribi  é jornalista.
1   T witter, 7 jun. 2021.
2   Ler Aníbal Garzón, “Au Pérou, le coup d’État
permanent” [No Peru, o golpe de Estado per-
manente], Le Monde Diplomatique, jan. 2023.
3   “Pérou: Washington qualifie Castillo, desti-
tué par le Parlement, ‘d’ancien président’”
[Peru: Washington chama Castillo, destituí-
do pelo Parlamento, de “ex-presidente”],
AFP, Paris, 7 dez. 2022.
4   “ Washington salue ‘la stabilité démocratique’
au Pérou et félicite la nouvelle présidente”
[Washington elogia “estabilidade democráti-
ca” no Peru e parabeniza nova presidenta],
AFP, 8 dez. 2022.
5   “Pérou: l’ex-président Castillo placé en dé-
tention provisoire” [Peru: ex-presidente Cas-
tillo colocado em prisão preventiva], AFP, 7
dez. 2022.
6   “Street blockades divide opinion in Venezue-
la” [Bloqueios nas ruas dividem opiniões na
Venezuela], BBC, Londres, 27 fev. 2014.
7   Ler Alexander Main, “Au Venezuela, la tentation
du coup de force” [Na Venezuela, a tentação
do golpe], Le Monde Diplomatique, abr. 2014.
8   Gonzalo Ramírez de la Torre, “La venganza de
los hambrientos” [A vingança dos famintos],
El Comercio, Lima, 10 fev. 2023.
9   Ler Alexandre Main, op. cit.
10  Ler Renaud Lambert, “La diplomatie du radia-
teur” [A diplomacia do radiador], Le Monde
Diplomatique, dez. 2022.
11  “Venezuela: Macron qualifie le régime Maduro
de ‘dictature’” [Venezuela: Macron qualifica regi-
me Maduro de “ditadura”], AFP, 29 ago. 2017.
12  “Trump menace le Venezuela de ‘mesures
économiques fortes’” [Trump ameaça Vene-
zuela com “fortes medidas econômicas”],
AFP, 18 jul. 2017.
13  C omunicado de imprensa do Ministério Públi-
co, 15 dez. 2021.
14  “ Nos faltan 142” [Faltam-nos 142], Red de
Apoyo por la Justicia y la Paz, Caracas,
dez. 2017.
15  “ Perú: La represión letal del Estado es una
muestra más del desprecio hacia la pobla-
ción indígena y campesina” [Peru: a letal
repressão do Estado é mais um exemplo de
desprezo pela população indígena e cam-
ponesa], comunicado da Anistia Internacio-
nal, 16 fev. 2023.
20 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
CIÊNCIA INSTRUMENTALIZADA
Vacinas e Covid, as origens
de uma desconfiança
A injeção maciça de dinheiro público para combater a Covid-19 não afrouxou o controle da
indústria farmacêutica sobre a produção da informação médica. Muitas vezes usado para
justificar ataques às liberdades, o recurso a um vocabulário científico perdeu significado,
favorecendo, em troca, discursos simplistas. Três anos depois do início da pandemia,
uma avaliação mais documentada das políticas de saúde pública ainda precisa ser feita
POR ARIANE DENOYEL*
D
esenvolvidas com urgência para
combater a Covid-19, as vacinas
Comirnaty (da Pfizer/BioNTe-
ch) e Spikevax (da Moderna) fo-
ram um “enorme progresso terapêuti-
co”, com uma “acentuada redução do
risco de formas sintomáticas, inclusi-
ve as graves”, estima a única revista
médica em língua francesa indepen-
dente da indústria farmacêutica. Em
janeiro de 2022, a Prescrire concedeu a
essas vacinas o prêmio Pilule d’Or [Pí-
lula de Ouro] de 2021, considerando
que elas trouxeram “progressos tera-
pêuticos decisivos em uma área na
qual doentes e cuidadores estavam to-
talmente desvalidos”.
No momento em que uma pandemia
devastava o planeta, com muitos siste-
mas de saúde já exaustos por causa de
um subfinanciamento crônico, e nisso
a França se destaca, a chegada dessas
vacinas foi saudada como a promessa
de um retorno à vida “normal”. Porém,
a façanha científica não pode esconder
os erros das autoridades e reguladores
sanitários, nem a falta de informação
para os cidadãos. Dado o enorme fi-
nanciamento público mobilizado para
o desenvolvimento desses tratamentos
– pré-encomendas, subsídios etc. –, pa-
recia que a situação criava as condições
para que um novo quadro de transpa-
rência fosse imposto a todo o setor. Con-
tudo, pelo contrário, discursos simplis-
tas e as mais diversas fantasias têm sido
alimentados por uma forte opacidade
nos estudos e nos discursos de autorida-
des maniqueístas, ignorando a comple-
xidade da abordagem científica.
“As vacinas contra a Covid salvaram
milhões de vidas”, confirma o profes-
sor John Ioannidis, médico e grande
especialista nas questões de prevenção
e saúde pública da Universidade Stan-
ford, nos Estados Unidos. “A estimativa
mais difundida fala em mais de 14 mi-
lhões de vidas salvas no primeiro ano,
mas é uma modelagem que se assenta
em bases questionáveis. Eu colaborei
para demonstrar1 que a taxa de letalida-
de da infecção, antes da vacinação, ha-
via sido amplamente superestimada, e
a eficácia das vacinas, bastante superes-
timada,2 pois se baseavam em estudos
de acompanhamento de curto prazo.
Estimar o número de vidas salvas é ex-
tremamente difícil, e é algo que deve ser
feito considerando-se uma ‘estratifica-
ção’ por idade, mas eu diria, muito cau-
telosamente, algo em torno de 1 milhão
a 6 milhões. Os benefícios em termos
de redução do número de mortes e de
problemas graves são substanciais para
pessoas idosas de saúde frágil.”
Entretanto, o professor lamenta a “pés-
sima comunicação” sobre o que real-
mente se poderia esperar dessas vacinas.
“Elas foram apresentadas como capazes
de acabar com a pandemia, quando sua
capacidade de reduzir a transmissão do
vírus era modesta e logo se erodiu com a
chegada da variante ômicron. Utilizamos
demais estudos medíocres para avaliar a
eficácia e a segurança dessas vacinas e,
no futuro, considero essencial usar en-
saios clínicos randomizados3 para enten-
der o interesse das estratégias vacinais
possíveis, por exemplo, para os reforços.”
Melhores estudos, idealmente indepen-
dentes, com total transparência dos re-
sultados, também seriam mais capazes
de combater o discurso anticiência.
INDUSTRIAIS
MINIMIZAM OS RISCOS
“Alguns grupos, que hoje classificaríamos
amplamente como ‘antivax’, dissecam e
superinterpretam documentos que não
necessariamente entendem”, lamenta
Claudina Michal-Teitelbaum, médica ge-
neralista e revisora da Prescrire. “Todavia,
não devemos ser ingênuos”, continua,
lembrando um fato geral que diz respeito
a várias vacinas e tratamentos: “Os estu-
dos são realizados pelos fabricantes, e os
dados daí obtidos pertencem exclusiva-
mente a eles. Eles só comunicam o que
querem, inclusive para as autoridades
sanitárias; minimizam os riscos e exage-
ram os benefícios. Ansioso por estimular
a população a se vacinar, o poder públi-
co transmitiu mensagens triunfalistas
do setor, sem questioná-las. Os estudos
não foram concebidos para avaliar a ca-
pacidade de as vacinas prevenirem as
mortes, a transmissão, as formas gra-
ves e as hospitalizações. Eles acabaram
mostrando um efeito protetor para as
formas graves, mas isso foi totalmente
por acaso!”. De fato, a eficácia anunciada
em 90% e até 95% estava relacionada ao
objetivo principal, que era reduzir as for-
mas sintomáticas (estado gripal). Em 10
de outubro passado, perante o Parlamen-
to Europeu, a encarregada de mercados
internacionais da Pfizer, Janine Small,
admitiu que a empresa não tinha dados
sobre a transmissão do vírus por vacina-
dos: “Sabíamos se a vacina interromperia
a transmissão quando ela foi lançada no
mercado? Não. Nós realmente avança-
mos na velocidade da ciência”.
Em sua edição de setembro de 2022, a
Prescrire fez uma análise cautelosa dos
dados disponíveis, avaliando que “essas
vacinas reduziram muito o risco de doen-
ça sintomática de Covid-19, incluindo as
formas graves”. A revista observou tam-
bém que “vários efeitos adversos, geral-
mente não graves, foram identificados”,
listando-os um a um e indicando o ba-
lanço oficial dentro do Espaço Econô-
mico Europeu (EEE):4 “De acordo com
a Agência Europeia de Medicamentos
(EMA), no início de abril de 2022 o nú-
mero total de casos de pacientes cujas
mortes seriam atribuídas às vacinas de
Covid-19 seria de 10.451, incluindo 8.631
às duas vacinas de RNA mensageiro”.
De um total de quase 1 bilhão de doses
injetadas até 23 de novembro de 2022,
a Agência Europeia listou 1,6 milhão de
efeitos colaterais experimentados após
o recebimento de uma vacina, 11.515
dos quais levaram à morte. Trata-se de
“eventos médicos observados após o
uso de uma vacina”, precisa a agência.
Porém, “só porque alguém teve um pro-
blema médico ou morreu após uma va-
cinação não significa necessariamente
que a vacina foi a causa”.5 Para concluir, a
Prescrire destaca sobretudo que a relação
risco-benefício dessas vacinas varia “de
acordo com a vulnerabilidade de cada
pessoa às formas graves de Covid-19 e de
acordo com as variantes do [vírus] Sars-
-Cov-2 em circulação”.
Na seríssima revista Vaccine, sete pes-
quisadores observam um risco acentua-
damente aumentado de efeitos adversos
nos grupos que receberam vacinas de
RNA mensageiro em comparação com o
grupo placebo,6 e em particular um efei-
to grave para oitocentas injeções. Assim
como o professor Ioannidis, eles pedem
uma reavaliação das análises de risco-
-benefício incorporando uma “estrati-
ficação”, que distinguiria os pacientes
em função de seu risco de forma grave
– sem deixar de lembrar que, para reali-
zar tais análises, os fabricantes deveriam
comunicar os resultados completos dos
ensaios clínicos. Além disso, esclarece o
professor Peter Doshi, editor-chefe do
British Medical Journal (BMJ): “Nossa
reanálise retoma os dados transmitidos
pelos fabricantes às autoridades sani-
tárias, o que significa que não leva em
conta casos semelhantes aos de Brianne
Dressen e Maddie de Garay”.
Esses nomes citados pelo pesquisador
encarnam os questionamentos sobre a
não consideração, em alguns estudos
produzidos pelos laboratórios, de volun-
tários saudáveis que foram vítimas de
efeitos graves durante a participação em
testes de vacinas. A professora Brianne
Dressen, então com 39 anos, ficou inca-
pacitada após sua primeira injeção da
AstraZeneca, em 4 de novembro de 2020.
Publicado em setembro de 2021 na New
England Journal of Medicine (NEJM), o
texto relatando os resultados do ensaio
clínico conduzido em mais de 32 mil par-
ticipantes concluiu que a vacina é “se-
gura e eficaz na prevenção de infecções
sintomáticas e graves por Covid-19”.7
Nenhum dos efeitos graves que Brianne
sofreu está listado. Seu acompanhamen-
to médico pela AstraZeneca, que deveria
durar 790 dias segundo o protocolo do
ensaio, foi interrompido após dois me-
ses. Apesar do reconhecimento oficial
pelo National Institutes of Health (NIH),
nos Estados Unidos, da ligação com a va-
cina nesse caso, o professor Eric Rubin,
editor do NEJM, recusou-se a emitir uma
errata, acrescentando que encaminhou
ao fabricante, “o único que possui os da-
dos fontes do ensaio”, o e-mail em que
Dressen lhe contou sua história.
Já Maddie de Garay, uma adolescente
de 13 anos perfeitamente saudável que
participou do estudo da Pfizer, está hoje
em uma cadeira de rodas, alimentada
por um tubo nasogástrico. Sua condição
foi atribuída pelos realizadores do tes-
te a fatores psicológicos, portanto não
foi devidamente listada nem no estudo
nem no artigo publicado em maio de
2021 no NEJM.8 David Healy, o farmaco-
logista e psiquiatra que avaliou seu caso,
acredita que o diagnóstico de histeria “é
absurdo”. O professor estima que, “ao
longo das últimas décadas, os médicos
vêm se tornando cada vez menos capa-
zes de diagnosticar os efeitos tóxicos de

drogas e vacinas. Isso se deve sobretudo
a uma especialização cada vez mais pro-
funda, que os impede de discernir ma-
nifestações multissistêmicas, frequentes
em casos de toxicidade”.
“Nos últimos trinta ou quarenta anos,
o setor farmacêutico tem apresentado a
vergonhosa tendência de apagar das es-
tatísticas de seus estudos alguns efeitos
adversos incômodos, e as novas formas
‘virtuais’ de organização desses estudos
facilitam essa tarefa”, denuncia o profes-
sor Healy, que em 2015 escreveu um im-
portante estudo, com outros colegas, re-
velando a ocultação de um risco de sui-
cídio duas ou três vezes aumentado pela
administração do antidepressivo paro-
xetina em adolescentes, em um estudo
de 2001.9 Nos testes relacionados às va-
cinas contra a Covid-19, os voluntários
foram acompanhados por meio de um
aplicativo no qual deviam ser listados os
efeitos adversos. Porém, na prática, eles
só podiam marcar itens relacionados a
efeitos leves (febre, dor no local da inje-
ção, dor de cabeça etc.). Para relatar um
efeito grave não especificado, precisa-
vam tentar chegar ao centro de estudo.
Brianne Dressen, que ficou registrada
como tendo abandonado o ensaio, foi
de fato excluída dele, pois seu aplicativo
foi desativado remotamente.
IRREGULARIDADES EM
TERCEIRIZADA DA PFIZER
Além disso, os ensaios foram realizados
em uma rede de muitos centros, em vá-
rios países. Esses testes, chamados de
multicêntricos, recorrem a uma sub-
contratação em cascata que prejudica
a transparência de todo o processo. O
número de centros envolvidos no en-
saio da Pfizer no território dos Estados
Unidos chegou a ser, segundo as fontes,
de 135 a 153. Nem os responsáveis pelo
acompanhamento dos pacientes nos
centros nem seus chefes tinham uma
visão de conjunto, o que permite ao pa-
trocinador selecionar os dados que de-
seja comunicar. Cada vez mais, nenhum
resultado é comunicado, desafiando as
obrigações legais dos fabricantes. Por
exemplo, uma auditoria da Inspetoria
Geral do Departamento de Saúde dos
Estados Unidos revelou que, entre os
ensaios clínicos randomizados recentes
financiados pelo NIH – o maior finan-
ciador mundial nesse campo –, mais da
metade não havia publicado resulta-
dos no ano seguinte ao seu fechamen-
to, contrariando suas obrigações legais
(The-scientist.com, 18 ago. 2022).
No dia 25 de setembro de 2020, Brook
Jackson, então diretora regional da Ven-
tavia, uma empresa texana subcontrata-
da da Icon, por sua vez uma companhia
subcontratada da Pfizer e responsável
por realizar parte dos ensaios clínicos
da vacina de RNA mensageiro, conta-
tou a agência norte-americana Food
and Drugs Administration (FDA) para
denunciar uma série de irregularidades
© Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Desenvolvida com urgência, a vacina para o Covid-19 foi “progresso terapêutico”
graves cometidas por seu empregador:
falsificação de dados, falhas na refrige-
ração de vacinas, descumprimento do
“cegamento”. Esse último ponto signifi-
ca que participantes ou pessoal médico
sabiam quem havia recebido o produto
e quem havia recebido o placebo – o que
invalida o próprio princípio do ensaio
clínico “duplo-cego”. No mesmo dia em
que lançou o alerta, Brook foi demiti-
da pela Ventavia. Em 8 de janeiro de
2021, ela ingressou no tribunal federal
de Beaumont (Texas) por meio de um
procedimento que permite a indivíduos
ajuizar uma ação contra uma empresa
em nome do Estado. Ela diz não acredi-
tar que o julgamento saia antes da pri-
mavera de 2024. Desde então, a Pfizer
contratou a Ventavia para mais quatro
ensaios clínicos de vacinas.
Abordamos os órgãos reguladores
que operam em solo francês a respeito
de todas essas questões. Nem a Agência
Nacional de Segurança de Medicamen-
tos e Produtos de Saúde (ANSM) nem
a EMA responderam. A presidente da
Alta Autoridade para a Saúde (HAS) da
França, Dominique Le Guludec, des-
tacou que sua instituição tem alterado
as recomendações à medida que saem
novos dados. Sobre os efeitos adversos,
ela reconhece “sua existência e sua sub-
notificação na França, que está ligada a
uma cultura punitivista e desestabiliza-
dora que desencoraja os médicos”. “Para
qualquer medicamento, a HAS incentiva
fortemente os profissionais a notificar
esses eventos”, acrescenta. “De forma
mais ampla, durante a crise sanitária
passamos muito tempo comunicando
sobre os testes, as vacinas, os tratamen-
tos, por meio de coletivas de imprensa e
‘respostas rápidas’ publicadas em nosso
site e nas redes sociais”. Para Dominique,
“é normal que a pesquisa seja feita pela
indústria, pois ela lucra com a venda dos
produtos. Porém, a regulamentação que
ABRIL 2023
rege os ensaios clínicos e os controles a
que eles estão submetidos é muito pre-
cisa”. Uma pesquisa publicada em 16 de
novembro pelo BMJ, no entanto, revela
lacunas consideráveis nos controles dos
ensaios clínicos nos Estados Unidos, so-
madas à falta de transparência.10 Essa
mesma revista debruçou-se, em junho
de 2022, sobre a participação do finan-
ciamento da indústria farmacêutica
nos orçamentos das agências sanitárias
(89% para a EMA, 65% para a FDA), des-
tacando os riscos que esse fator repre-
senta para sua independência.
Todas as tentativas de forçar as empre-
sas a tornar pública a totalidade dos da-
dos dos estudos falharam. Em agosto de
2021, um grupo internacional de pesqui-
sadores solicitou, reivindicando a lei de
acesso à informação dos Estados Unidos,
receber os dados com base nos quais a
FDA havia autorizado a vacina da Pfizer.
A agência, que levou 108 dias para exa-
minar tais dados, pediu para isso ao juiz
federal do Texas encarregado do caso um
prazo de... 75 anos! O magistrado deu oito
meses. Os documentos que começam a
ser abertos mostram que a Casa Branca
pressionou para acelerar a autorização de
emergência, embora esta já fosse baseada
em um procedimento excepcionalmente
rápido. “Podemos ser favoráveis às vaci-
nas contra Covid-19 e à transparência –
suprimir a obrigatoriedade das vacinas
e ter acesso aos dados completos é hoje
essencial para restabelecer a confiança”,
argumentou em agosto passado o cardio-
logista britânico Aseem Malhotra, espe-
cialista em saúde pública.11
TRANSPARÊNCIA PARA
RESTAURAR A CONFIANÇA
“Nos Estados Unidos, a FDA aprovou
em junho a autorização de emergência
para vacinar crianças a partir dos 6 me-
ses, com base em testes nos quais nada
vai bem”, lamenta Claudina Michal-Tei-
Le Monde Diplomatique Brasil 21
telbaum, que também é médica em pro-
teção materno-infantil e escreve para o
site Medcritic.fr. “As normas de eficácia
foram significativamente revistas para
baixo. Teria sido mais lógico revê-las
para cima, já que essa faixa etária cor-
re muito menos risco com a Covid-19.
Além disso, o principal critério de ava-
liação se assenta na ‘imunogenicidade
equivalente’, conceito criado em junho
de 2021, em um encontro internacional
de agências reguladoras, e nunca antes
usado para afirmar a eficácia vacinal.
Ele consiste em presumir que um ní-
vel de anticorpos que confere proteção
contra as infecções ou as formas graves
em uma faixa etária para determinada
variante deverá oferecer a mesma pro-
teção para outra variante e outra faixa
etária. É um absurdo, o grau zero da
ciência e da regulamentação.”
Para ela, crianças, adolescentes e
adultos jovens saudáveis têm uma rela-
ção risco-benefício individual desfavo-
rável para essas vacinas, o que torna sua
administração antiética. Contrariando
o conselho de muitos colegas, o profes-
sor Éric Caumes, muito requisitado pela
mídia no auge da pandemia, vai mais
longe: “No plano individual e de acor-
do com o estado dos dados científicos,
seria possível dizer que a idade na qual
a relação risco-benefício dessas vaci-
nas é positiva poderia ser estabelecida
a partir dos 60-65 anos, na ausência de
comorbidades [outras doenças]”. O ex-
-chefe do serviço de doenças infeccio-
sas do Hospital Pitié-Salpêtrière, que
agora trabalha no Hospital Hôtel-Dieu,
dedicou um livro aos erros cometidos
durante a epidemia.12 Embora o pre-
sidente Emmanuel Macron o tenha
“várias vezes incentivado a manter seu
espírito crítico”, o pesquisador observa
que “as vozes discordantes foram rapi-
damente eliminadas dos órgãos de de-
cisão. Em particular, devíamos ter recu-
sado o ‘passaporte da vacina’”.
O professor Peter Doshi recorda que
defendeu que as vacinas contra Co-
vid-19 fossem disponibilizadas por meio
de mecanismos de “uso compassivo,
com total transparência sobre o estado
da ciência”: “Não tínhamos garantia de
segurança ou eficácia, e persistiam mui-
tas dúvidas sobre isso. Os governos [bem
como a Organização Mundial da Saúde
(OMS)] disseram que elas eram ‘seguras
e eficazes’, uma expressão usualmente
empregada para classificar medicamen-
tos colocados no mercado pelo procedi-
mento usual. A partir de então, a vacina-
ção em massa tornou-se uma daquelas
políticas cuja própria escala impede que
se considere seu fracasso”. Por sua vez,
a revista European Scientist conclama à
distinção entre a defesa das vacinas con-
tra a Covid-19 e a obrigatoriedade da va-
cinação. Ela também pede a publicação
integral dos dados brutos, única forma,
a seu ver, de restaurar a confiança do pú-
blico nas autoridades sanitárias.
22 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
No dia 25 de outubro, o BMJ lamentou
que a FDA tenha levado mais de um ano
para estudar quatro sinais de efeitos ad-
versos graves que ocorreram em idosos
após a vacinação com o imunizante da
Pfizer: infarto do miocárdio, coagulação
intravascular disseminada, tromboci-
topenia imune e embolia pulmonar. A
revista indica que, no intervalo, a FDA
não emitiu nenhum aviso, nem para os
médicos nem para o público. Em sites
como o realnotrare.com, há dezenas de
depoimentos de pessoas que declaram
ter sofrido eventos adversos, às vezes
gravíssimos, desde a vacinação, entre
elas Brianne Dressen e Maddie de Garay.
A maioria relata enfrentar um muro de
negação médica e frequentemente um
processo de “psiquiatrização”, o que sig-
nifica que seus sintomas são atribuídos
a ansiedade, depressão etc. Um advo-
gado de Marselha, Éric Lanzarone, que
afirma representar trezentas vítimas
de efeitos adversos de vacinas de RNA
mensageiro, entrou com várias ações
em seu nome. “Muitas vezes as vítimas
falam comigo depois de terem instau-
rado procedimentos junto do Gabinete
Nacional de Indenização de Acidentes
Médicos, Agravos Iatrogênicos e Infe-
ções Hospitalares (Oniam) [da França]”,
conta, “pois este não lhes responde ou
recusa a indenização por motivos muito
questionáveis, inclusive submetendo os
casos à avaliação de peritos em situação
de conflito de interesses. O órgão tam-
bém descarta sistematicamente efeitos
que não aparecem na literatura científi-
ca, mas nós não temos distanciamento
suficiente dessas vacinas para excluir
qualquer causalidade.” Questionado, o
Oniam não respondeu a nossas ques-
tões. Seu relatório de 2021 menciona
três pagamentos de indenização, para
um total de 243 pedidos.
Após uma petição, o Gabinete Parla-
mentar de Avaliação de Escolhas Cien-
tíficas e Técnicas (OPECST) iniciou, em
março de 2022, uma consulta sobre os
efeitos adversos das vacinas contra a
Covid-19. Grande parte das audiências
ocorreu a portas fechadas, sem atas. O
relatório de progresso, publicado em ju-
nho, dá um longo atestado de satisfação
à farmacovigilância francesa e mencio-
na brevemente os depoimentos de pa-
cientes cujos médicos se recusaram a
relatar reações ao sistema de coleta. Ele
reconhece, todavia, que a comunicação
pública sobre efeitos adversos foi “mais
discreta” do que a comunicação sobre a
necessidade de se vacinar.
“Nós estimulamos as declarações [de
efeitos adversos]”, pondera Annie-Pier-
re Jonville-Bera, presidente da Rede
Francesa de Centros Regionais de Far-
macovigilância (CRPV), “especialmente
incluindo no rodapé dos cartões de va-
cinação o link para isso. Os CRPV rea-
lizaram o equivalente a cinco anos de
atividade em um ano. Nosso trabalho é
detectar novos efeitos adversos; quanti-
ficar seu risco de ocorrência cabe à far-
macoepidemiologia.”
Para as “vozes críticas” também ouvi-
das pelo OPECST, seria preciso dedicar
parte dos orçamentos das campanhas de
vacinação aos efeitos adversos e à forma
de relatá-los. Aure Saulnier, virologista,
defende um sistema de “coleta ativa”, a
exemplo do aplicativo norte-americano
v-safe. O OPECST se esquece de lembrar
que os sistemas de farmacovigilância
passivos “perdem” de 82% a 98% dos
efeitos adversos, segundo a Academia
Nacional de Medicina da França.
“Ao não mencionarem os efeitos ad-
versos e seu método de notificação nas
campanhas de comunicação em massa
e nos e-mails com os quais a Direção-
-Geral da Saúde [francesa] inundou os
profissionais de saúde, os poderes públi-
cos não informaram de maneira justa”,
denuncia o professor François Alla. “Por
exemplo, a miocardite foi minimizada,
sistematicamente qualificada como ‘be-
nigna’ em casos nos quais poderia exigir
internação e mudanças no estilo de vida
por várias semanas. O slogan ‘Todos va-
cinados, todos protegidos’ constitui fake
news no sentido primário do termo. A
vacina não protege contra a transmissão
do vírus. A generalização da vacinação
para a população adulta, depois para
os adolescentes, acompanhada de me-
didas limitadoras da liberdade, não se
assentou nas bases científicas usuais.”
O médico lamenta uma “vontade de re-
forçar o sentimento de vulnerabilidade”,
uma “escolha construída e assumida
pelo medo”, conjugada a uma ausência
de debate. Em um recente fascículo assi-
nado com a filósofa Barbara Stiegler, ele
denuncia a consanguinidade e a coop-
tação dentro de instâncias que aconse-
lham, validam e depois se autoavaliam.13
“O governo [francês] adotou as pro-
jeções mais alarmistas, e até as piorou,
quando isso lhe convinha, sobretudo
na época da adoção do passe sanitário”,
garantem dois membros da Escola Po-
litécnica de Paris, criadores anônimos
do site crítico Covid Scenarios, que trata
da utilização de modelizações. “As mo-
delizações comunicadas dependiam da
mensagem que se queria transmitir, o
que coloca problemas de honestidade
intelectual. Em seu discurso de novem-
bro de 2020, ao anunciar um segundo
confinamento, Emmanuel Macron afir-
mava que ‘não importava o que viésse-
mos a fazer’, estaríamos em 9 mil reani-
mações em meados de novembro, o que
o relatório do Institut Pasteur absolu-
tamente não dizia. A realidade foi duas
vezes menos do que isso.”14
“As políticas autoritárias prejudicaram
muito a adesão à vacinação em geral,
bem como a saúde mental da popula-
ção, com agora um terço da população
francesa ‘ansiosa’ ou ‘deprimida’, segun-
do a [agência nacional de saúde da Fran-
ça] Santé Publique France”, acrescenta
François Alla. As prescrições de medi-
camentos psicotrópicos dispararam,
segundo a Epi-Phare [órgão que realiza
estudos de farmacoepidemiologia], com
destaque para uma alta de 3,4 milhões
de entregas de ansiolíticos de março de
2020 a abril de 2021. O Defensor dos Di-
reitos [entidade francesa que defende os
direitos dos cidadãos perante o Estado]
solicitou duas vezes um plano de emer-
gência para a saúde mental juvenil.
AUTOCENSURA DOS JORNALISTAS
Paralelamente, o peso das empresas far-
macêuticas em todas as áreas da saúde
pública aumentou. Um exemplo gritan-
te: não foi a OMS que escolheu as cepas
integradas nas próximas gerações de va-
cinas contra a Covid, mas os fabricantes.
No fim de agosto, o Wall Street Journal
revelou que a FDA iria se contentar com
estudos com camundongos para autori-
zar versões “atualizadas” de reforços de
vacinas de RNA mensageiro. Mesmo os
dados dos testes efetuados nesses ani-
mais não foram tornados públicos, ga-
rantiu a revista Science,15 especificando
que a Pfizer se contentou em apresentar
à FDA, em junho passado, “resultados
preliminares” relativos a oito camun-
dongos triplamente vacinados. Os estu-
dos clínicos começaram em setembro;
eles serão usados para buscar autoriza-
ção de comercialização plena, já que até
o momento a FDA só concedeu autori-
zação de uso emergencial.
“A mídia se mostrou alarmista duran-
te a pandemia, ao mesmo tempo que
manifestava um desejo de tranquilizar
a população a todo custo a respeito das
vacinas”, avalia a médica Claudina Mi-
chal-Teitelbaum. “Para espanto geral, as
bases científicas das decisões das auto-
ridades sanitárias foram pouco questio-
nadas, e os jornalistas se autocensura-
ram muito, concedendo às vacinas um
estatuto sagrado, intocável. É preciso
reconhecer que as críticas mais virulen-
tas e nem sempre bem fundamentadas
muitas vezes vinham da extrema direi-
ta, o que tinha um efeito paralisante;
qualquer crítica passou, assim, a não ser
considerada digna de credibilidade.”
O caso Ventavia, revelado no BMJ, foi
minimizado. O Facebook classificou o
artigo como “desinformação”, levando o
editor-chefe do BMJ a enviar uma carta
aberta ao fundador da rede, Mark Zuc-
kerberg, denunciando uma verificação
“imprecisa, incompetente e irrespon-
sável”.16 Contudo, sem dúvida, o auge
da situação foi a exclusão pelo Twitter
do jornalista californiano Alex Guten-
tag, que publicou informações sobre
testes de vacinas de RNA mensageiro
em crianças. Sua conta foi restabelecida
quando a plataforma percebeu que es-
ses dados vinham de um comunicado
de imprensa da Pfizer...  Researcher blows the whistle on data inte-
*Ariane Denoyel, jornalista, é autora de
Génération Zombie, enquête sur le scanda-
le des antidépresseurs [Geração Zumbi, in-
vestigação sobre o escândalo dos antide-
pressivos], Fayard, Paris, 2021.
1   A ngelo Maria Pezzullo et al., “Age-stratified
infection fatality rate of COVID-19 in the non-
-elderly population” [Taxa de mortalidade por
infecção estratificada por idade de Covid-19
na população não idosa], Environmental Re-
search, v.216, Parte 3, 2023.
2   John Ioannidis, “Factors influencing estimated
effectiveness of COVID-19 vaccines in non-
-randomised studies” [Fatores que influen-
ciam a eficácia estimada das vacinas contra
Covid-19 em estudos não randomizados],
BMJ Evidence-Based Medicine, 25 mar.
2022. Disponível em: ebm.bmj.com.
3   Testes realizados com vários grupos forma-
dos aleatoriamente e recebendo diferentes
tratamentos com o objetivo de demonstrar
um efeito terapêutico.
4   U nião Europeia, Noruega, Islândia e
Liechtenstein.
5   “Covid-19 Vaccines safety update” [Atualiza-
ção sobre a segurança das vacinas contra
Covid-19], Agência Europeia de Medicamen-
tos, Amsterdã, 10 nov. 2022.
6   Joseph Fraiman et al., “Serious Adverse Events
of Special Interest Following mRNA Vaccina-
tion in Randomized Trials” [Eventos adversos
graves de interesse especial após a vacinação
com RNA mensageiro em ensaios randomiza-
dos], Vaccine, v.40, n.40, 22 set. 2022.
7   Ann R. Falsey et al., “Phase 3 Safety and Effi-
cacy of AZD1222 (ChAdOx1 nCoV-19) Co-
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da vacina contra Covid-19 AZD1222 (ChA-
dOx1 nCoV-19)], New England Journal of Me-
dicine, 29 set. 2021. Disponível em: nejm.org.
8   R obert W. Frenck et al., “Safety, Immunogeni-
city, and Efficacy of the BNT162b2 Covid-19
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genicidade e eficácia da vacina BNT162b2
contra Covid-19 em adolescentes], New En-
gland Journal of Medicine, 15 jul. 2021. Dispo-
nível em: nejm.org.
9   Joanna Le Noury et al., “Restoring Study 329:
efficacy and harms of paroxetine and imipra-
mine in treatment of major depression in ado-
lescence” [Revisando o Estudo 329: eficácia
e riscos da paroxetina e da imipramina no tra-
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10  M aryanne Demasi, “FDA oversight of clinical
trials is ‘grossly inadequate’, say experts” [Su-
pervisão de ensaios clínicos pelo FDA é
“grosseiramente inadequada”, dizem especia-
listas], British Medical Journal, 16 nov. 2022.
Disponível em: bmj.com.
11  Aseem Malhotra, “Being Pro-Covid 19 Vacci-
nes and Pro-transparency are not mutually ex-
clusive – ending all mandates globally and
accessing the raw data is now essential to
restore trust” [Ser pró-vacinação contra a Co-
vid-19 e pró-transparência não são atitudes
mutuamente excludentes – encerrar a obriga-
toriedade da vacina no mundo e acessar os
dados brutos agora é essencial para restaurar
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2022. Disponível em: europeanscientist.com.
12  Urgence sanitaire [Emergência sanitária], Ro-
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13  François Alla e Barbara Stiegler, “Santé publi-
que, année zéro” [Saúde pública, ano zero],
Tracts/Gallimard, Paris, 2022. Uma resenha
da obra foi publicada pelo site AOC, Daniel
Benamouzig et al., “La santé publique a-t-elle
besoin de telles sciences sociales?” [A saúde
pública precisa das ciências sociais?], 28 jun.
2022. Disponível em: www.aoc.media.
14  C f. https://evaluation-modelisation-Covid.gi-
thub.io/france/; assim como o perfil no Twitter
Covid Scenarios.
15  G retchen Vogel, “Omicron booster shots are
coming – with lots of questions” [Doses de
reforço contra ômicron estão chegando –
com muitas questões], Science, Washing-
ton, 30 ago. 2022.
16  F iona Godlee e Kamran Abbasi, “Covid-19:
grity issues in Pfizer’s vaccine trial” [Co-
vid-19: pesquisador denuncia problemas de
integridade de dados no teste de vacina da
Pfizer], British Medical Journal, 17 dez. 2021.
Disponível em: bmj.com.

LUTA DE CLASSES OU IDEIA NACIONAL?
Direito dos povos, um
debate que vem de longe
Desde o século XIX, os pensadores revolucionários se perguntam sobre
a oposição entre as reivindicações nacionalistas e as exigências da luta
de classes. Confrontados com essa mesma questão, Vladimir Lenin e
Leon Trotsky subordinavam os interesses nacionais aos do proletariado
POR ALAIN BIHR E YANNIS THANASSEKOS*
A
poiando a luta dos ucranianos
contra a agressão russa, alguns
militantes de esquerda erigiram
o direito dos povos de disporem
de si mesmos como um princípio abso-
luto. Os que reivindicam a tradição
marxista não hesitam em apelar para
esse princípio a fim de justificar seu en-
gajamento. Na realidade, tanto Karl
Marx e Friedrich Engels como vários
marxistas revolucionários que vieram
depois deles abordaram a questão do
direito dos povos sem ver nela uma exi-
gência intocável, independentemente
das circunstâncias históricas.
Refletindo sobre o período de revolu-
ções e contrarrevoluções na Europa de
meados do século XIX, conhecido como
Primavera dos Povos, Engels publicou
uma série de artigos particularmente
virulentos contra as pretensões de au-
tonomia nacional dos eslavos, tchecos,
sérvios, morávios, rutenos, croatas e
eslovenos, pretensões que os Habsbur-
go utilizavam como instrumentos para
combater as revoluções democráticas
na Áustria, Hungria e Itália. “Os pan-es-
lavistas [...] se viam diante de um dilema
infernal: renunciar à revolução e confiar
à monarquia imperial a tarefa de salvar,
ao menos em parte, a nacionalidade ou
renunciar à nacionalidade e salvar a re-
volução [...]. A sorte da revolução na Eu-
ropa Oriental dependia, pois, da atitude
assumida pelos tchecos e eslavos do sul.
[...] No momento decisivo, em nome de
suas mesquinhas esperanças nacionais,
traíram a revolução e entregaram-na a
São Petersburgo e Olmütz.”1 Na mesma
ordem de ideias, Marx enfatizou que,
“em Viena, os croatas, os pandures, os
tchecos, os casacos vermelhos e outros
tratantes loquazes da mesma laia degola-
ram a liberdade germânica, de modo que
agora o czar é onipotente na Europa”.2
Esses textos de Engels e Marx foram
bastante criticados pelo historiador
ucraniano Roman Rosdolsky: a seu ver,
Engels quis montar uma teoria essen-
cialista segundo a qual existem povos
capazes, por natureza, de conquistar a
autodeterminação nacional (alemães,
poloneses, húngaros, italianos) e ou-
ABRIL 2023
tros não, como os eslavos, entre eles os a visão abrangente do panorama históri-
ucranianos – qualificados por Engels de co em seu contexto mundial. [...] Numa
“povos ‘sem história’”.3 Entretanto, nada época de imperialismo desenfreado, já
confirma essa afirmação. Engels se limi- não pode haver guerras nacionais. [...] Os
tou à análise concreta do contexto que pequenos Estados-nações, cujas classes
prevalecia na Europa em 1846-1849, dirigentes são os joguetes e os cúmplices
considerando três aspectos: o desenvol- de seus camaradas de classe dos Estados
vimento do capitalismo nessa época no maiores, não passam de peões no jogo
leste e no sul europeus, o tipo de con- imperialista das grandes potências”.4
frontação de classes que daí decorria e, No entanto, contrariamente ao que
enfim, as potencialidades das revoltas, em geral se diz, Rosa Luxemburgo de
insurreições e revoluções democráticas modo algum se opunha ao princípio
que então se sucediam. Afora isso, não do direito das nações de disporem de
fez nenhuma generalização. si mesmas. Em sua crítica da social-de-
mocracia após a Grande Guerra, ela ex-
INSTRUMENTALIZAÇÕES plicou: “Sim, o socialismo reconhece a
Rosa Luxemburgo foi igualmente radical cada povo o direito [...] à livre disposição
a esse respeito. Para ela, no quadro dos de seu próprio destino. Contudo, é uma
conflitos interimperialistas que conduzi- pura zombaria do socialismo propor os
ram à Primeira Guerra Mundial, “a defe- Estados capitalistas atuais como expres-
sa da pátria é pura fantasia, que impede são desse direito de livre disposição”.5
© Gleb Garanich/Reuters
Confrontado sobre direito dos povos, Lenin preferia priorizar o proletariado
Le Monde Diplomatique Brasil 23
Em seguida, ao comentar as consequên-
cias imediatas da guerra, ela declarou
em 1918: “A ideia da luta de classes ca-
pitula formalmente diante da ideia na-
cional [...]. O nacionalismo é popular.
De todos os lados, surgem nações e mi-
ninações que se apresentam para fazer
valer seu direito a constituir um Estado.
Cadáveres em decomposição, animados
por um novo impulso primaveril, saem
de seus sepulcros seculares, e povos
‘sem história’ [...] sentem uma arden-
te obrigação de criar uma. Poloneses,
ucranianos, bielorrussos, lituanos, dez
novas nações no Cáucaso. Os sionistas
estão prestes a edificar seu gueto pales-
tino, embora esse gueto se encontre por
enquanto na Filadélfia. É o sabá das fei-
ticeiras na noite nacionalista”.6
Vladimir Lenin também tomou posi-
ção, várias vezes, sobre o direito das na-
ções de controlarem seu próprio desti-
no, de modo bem menos nuançado do
que se pensa. Partindo do princípio
segundo o qual um povo que domina
outro não pode ser livre (princípio já
afirmado por Marx e Engels a propósito
da Inglaterra em relação à Irlanda), ele
sem dúvida defendia resolutamente o
direito dos povos dominados por im-
périos de disporem de si mesmos, mas
subordinando-o sempre aos interesses
do proletariado revolucionário. Para
ele, o que importava sobretudo era o
ponto de vista da social-democracia,
isto é, o ponto de vista de classe: “O
fato de a social-democracia reconhecer
o direito de todas as nacionalidades à
livre disposição não significa, de modo
algum, que ela renuncie a exarar seu
próprio julgamento a respeito da opor-
tunidade, para uma ou outra nação,
dependendo das circunstâncias, de se
erigir em Estado distinto. Ao contrário,
as sociais-democracias devem julgar
conforme lhes é de direito, levando em
conta tanto as condições do desenvol-
vimento do capitalismo [...] [quanto] os
interesses da luta de classes do proleta-
riado em prol do socialismo”.7
Já no poder, Lenin julgou que o pri-
meiro Estado operário, ainda frágil,
tinha interesse em atrair, respeitando
suas aspirações e direitos, todos os po-
vos até então sob o jugo de monarquias
imperiais, czarista ou austro-húngara.
Qualquer outra estratégia poderia fazer
com que a jovem República Soviética
parecesse, aos olhos desses povos até
então oprimidos, uma continuação da
arrogância do antigo império dos czares
– e ela se voltaria contra a própria Revo-
lução de Outubro. Por isso, ele criticou
com firmeza as posições de Josef Stalin
e Félix Dzerjinski sobre a questão das
nacionalidades, posições que atribuiu
especificamente a “grão-russos”.8
Dado seu lugar na revolução bolche-
vique e no movimento operário interna-
cional, Leon Trotsky também tratou, di-
versas vezes, dessa questão. Ele seguiu a
mesma linha que Lenin, pensando sem-
24 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
pre o problema da autonomia nacional
à luz do horizonte da luta de classes e
da missão do proletariado revolucioná-
rio: “O direito das nações de disporem
de si mesmas é a fórmula essencial da
democracia para as nações oprimidas.
Onde a opressão de classe e de casta
se mistura com a sujeição nacional, as
reivindicações da democracia revestem
antes de tudo a forma de reivindicações
de igualdade, autonomia e indepen-
dência completa”.9 Contudo, ele não se
enganava: “A grande carnificina impe-
rialista introduziu mudanças decisivas
na questão. Durante a guerra, todos os
pequeno-burgueses e sociais-patriotas
apelaram [...] para o princípio do direito
dos povos a disporem de si mesmos [...].
Por todos os meios, os governos belige-
rantes fizeram de tudo para monopoli-
zar essa palavra de ordem, primeiro na
guerra que travavam uns contra os ou-
tros, depois em sua luta contra a Rússia
soviética. O imperialismo alemão explo-
rou a independência nacional dos po-
loneses, dos ucranianos, dos letões, dos
estonianos, dos finlandeses, dos cau-
casianos, primeiro contra o czarismo e
mais tarde, em escala bem maior, contra
nós. [...] A República Soviética [...] pro-
clamou abertamente o direito dos povos
de disporem de si mesmos e a liberdade
para eles de se constituírem em Estados
nacionais independentes. Compreen-
dendo quão importante era esse prin-
cípio na época de uma transição para o
socialismo, nosso partido, ainda assim,
jamais o transformou em um dogma ab-
soluto, superior a todas as outras neces-
sidades e missões históricas”.10
ESTADOS UNIDOS
SOVIÉTICOS DA EUROPA
Uma vez banido da União Soviética, em
sua luta arrojada contra o regime infame
de Stalin, Trotsky nunca deixou de ser
partidário da independência das repú-
blicas soviéticas, ou seja, de seu direito
a separar-se de Moscou. Considerando
o lugar eminentemente decisivo ocupa-
do pela nação ucraniana, tanto no plano
histórico como no econômico-político,
ele sustentou que “só há uma palavra
de ordem [...]: por uma Ucrânia soviéti-
ca, operária e camponesa, unida, livre e
independente”.11 A precisão nas palavras
(“soviética, operária e camponesa”), fre-
quentemente ignorada quando se faz
referência a esse texto, assume enorme
importância em relação ao modo como
Trotsky colocava o problema da autode-
terminação. Para ele, a reivindicação de
independência por parte de nacionali-
dades oprimidas pela glaciação stalinista
da União Soviética era legítima não ape-
nas na esfera do princípio, mas também
enquanto força capaz de desestabilizar o
poder stalinista e precipitar sua queda.
Essa queda, no contexto das perturba-
ções sociais que pressagiavam a iminên-
cia da guerra, inauguraria uma nova era
revolucionária na perspectiva dos “Es-
tados Unidos Soviéticos da Europa”, das
“Repúblicas Operárias e Camponesas
Unidas da Europa” que ele vinha elabo-
rando desde 1923.12 Para Trotsky, o direi-
to das nações de disporem de si mesmas
se inscrevia assim no quadro de sua his-
tória da “revolução permanente”.13
Concluindo, Marx, Engels, Luxembur-
go, Lenin e Trotsky examinaram esses
desafios nos contextos históricos mar-
cados por revoluções e contrarrevolu-
ções, por guerras estrangeiras e guerras
civis. Em cada um desses contextos, eles
subordinaram o problema nacional e o
da autodeterminação dos povos aos in-
teresses do proletariado sob a perspec-
tiva da revolução social. Nessa mesma
medida, suas tomadas de posição nun-
ca foram rígidas: revelavam elementos
constantes, mas nem por isso menos
matizadas, e podiam ensejar divergên-
cias – por exemplo, entre Rosa Luxem-
burgo e Lenin. Enfim, nenhum deles
pretendeu elaborar uma teoria do direi-
to das nações de disporem de si mesmas
que fosse válida independentemente do
contexto histórico concreto.  meiro, a Arábia Saudita e o Irã,
*Alain Bihr e Yannis Thanassekos são,
respectivamente, professor emérito de So-
ciologia da Universidade de Franche-Com-
té e pesquisador-adjunto do Instituto de So-
ciologia da Universidade Livre de Bruxelas.
1   R eferência à cidade onde o imperador da
Áustria e sua corte se refugiaram após a sub-
levação vienense de outubro de 1849, erigin-
do essa modesta localidade em capital provi-
sória do império. Engels, “Le panslavisme
démocratique” [O pan-eslavismo democráti-
co], Nouvelle Gazette Rhénane (NgR),
n.194, 15 fev. 1849. (N.E.)
2   M arx, NgR , n.84, 1º jan. 1849.
3   C f. Roman Rosdolsky, Friedrich Engels et les
peuples “sans histoire”. La question nationale
dans la revolution de 1848 [Friedrich Engels e
os povos “sem história”. A questão nacional
na revolução de 1848], Page 2/Syllepse, Lau-
sanne/Paris, 2018. Rosdolsky enfatiza que,
embora eslavos, os poloneses eram conside-
rados por Engels uma nação revolucionária no
plano democrático.
4   Rosa Luxemburgo, La crise de la social-démo-
cratie [A crise da social-democracia] (1915),
Bruxelas, La Taupe, 1970.
5   Ibidem.
6   Rosa Luxemburgo, Fragment über nationale Fra-
ge und Revolution [Fragmento sobre questão
nacional e revolução], maio 1918; Gesammelte
Werke [Obras completas], v.4, Berlim, Dietz
Verlag, 1990, citado por Rosdolsky, op. cit.
7   L énine, “Thèses sur la question nationale”
[Teses sobre a questão nacional], jun. 1913,
Œuvres , v.19.
8   “ La question des nationalités ou de l’autono-
mie” [A questão das nacionalidades ou da
autonomia], dez. 1922, Œuvres, v.36.
9   Trotsky, “Le droit des peuples à disposer d’eu-
x-mêmes” [O direito dos povos de disporem
de si mesmos], Entre l’impérialisme et la révo-
lution [Entre o imperialismo e a revolução], La
Taupe, Bruxelas, 1970.
10  Ibidem.
11  
Léon Trotsky, “La question ukranienne” [A
questão ucraniana], 2 abr. 1939, Entre l’impé-
rialisme et la révolution, op. cit.
12  
Léon Trotsky, “Les conditions sont-elles
mûres pour le mot d’ordre des ‘États-Unis
d’Europe’?” [As condições estão maduras
para a palavra de ordem dos “Estados Unidos
da Europa”?], Pravda , Moscou, 30 jun. 1923.
13  L éon Trotsky, La révolution permanente [A
revolução permanente], 1928-1931, Galli-
mard, Paris, 1963.
DE RIAD A MOSCOU, O ATIVISMO DA CHINA
Pequim: o
promotor da paz?
Após sete anos de rompimento, a Arábia Saudita e
o Irã restabeleceram relações diplomáticas. Graças
à sua bem-sucedida mediação, a China assume o
papel de protagonista nas relações internacionais,
demonstrando que os Estados Unidos não têm
mais o monopólio da influência no Oriente Médio.
Resta saber se os países recém-aproximados serão
capazes de superar seus múltiplos desacordos
POR AKRAM BELKAÏD E MARTINE BULARD*
O
dia 10 de março de 2023 trouxe
ao mundo duas surpresas. Pri-
rivais regionais desde os anos
1960, anunciaram a retomada de suas
relações diplomáticas, rompidas em
2016 após a execução de dignitários xii-
tas pela Arábia Saudita, na sequência
do ataque à embaixada saudita em Tee-
rã. Depois, a China, que todos conside-
ravam isolada no cenário internacio-
nal, fez uma irrupção marcante no
Grande Jogo do Oriente Médio, patroci-
nando esse acordo obtido após dois
anos de negociações secretas e cinco
rodadas infrutíferas. É verdade que não
se deve exagerar o significado desse
aperto de mão sob o céu de Pequim:
ainda há muito trabalho a ser feito para
que a paz definitiva se estabeleça, es-
pecialmente no Iêmen, onde iranianos
e sauditas tocam seu programa bélico.
Porém, os líderes ocidentais estariam
errados em subestimar o evento, como
fez o presidente dos Estados Unidos,
Joe Biden, garantindo que “não há de
nada novo aí, meus amigos”,1 antes que
seu governo admitisse que qualquer
progresso é uma boa notícia.
O porta-voz do Ministério das Rela-
ções Exteriores da China, por sua vez,
preferiu a modéstia. O texto constitui
“uma vitória para o diálogo e para a paz”,
declarou em sua coletiva de imprensa
semanal. No entanto, é a primeira vez
que a China orquestra oficialmente um
acordo internacional. É também a pri-
meira vez que ela interfere nos assuntos
do Oriente Médio, espaço estratégico
dominado, há mais de setenta anos,
pelos Estados Unidos, apesar da priori-
dade que estes têm dado à Ásia desde
o início do século. Até o momento, o
Estado chinês evitava cuidadosamente
qualquer interferência, a ponto de ter ir-
ritado o ex-presidente dos Estados Uni-
dos Barack Obama, que o via como “um
passageiro clandestino” de uma política
norte-americana que, segundo ele, en-
carregava-se da “segurança da região”.2
A mudança do comportamento da
China e seu sucesso devem-se simulta-
neamente à habilidade diplomática chi-
nesa e a uma conjunção de diversos fenô-
menos: o desejo da Arábia Saudita de se
emancipar um pouco da tutela norte-a-
mericana – sobretudo desde a disposição
pouco ardorosa dos Estados Unidos em
defender o reino após os ataques terro-
ristas contra suas instalações petrolíferas
em 2019 –, bem como as preocupações
do Irã com a crise econômica, a agitação
social e as ameaças de ataques israelen-
ses contra suas instalações nucleares.
Sem esquecer o trabalho de longo prazo
empreendido pelos dirigentes chineses
na região, somado a um clima geral, nos
países do Sul, de cada vez menos sensibi-
lidade à narrativa ocidental. Prova disso
foi a recusa, em maio de 2022, de endos-
sar as sanções contra a Rússia após a in-
vasão da Ucrânia.3 Seis meses depois, du-
rante a cúpula da Organização dos Países
Exportadores de Petróleo Mais (Opep+,
que reúne a Opep e outros dez países, in-
cluindo a Rússia), a Arábia Saudita man-
teve-se impassível diante dos insistentes
apelos da Casa Branca para aumentar a
produção de hidrocarbonetos, a fim de
baixar o preço do barril.
A China conseguiu aproveitar essas
oportunidades porque estava prepara-
da para isso. Aplicando o princípio de
Deng Xiaoping, “esconda seus talentos e
aguarde sua hora”, ela quase passou des-
percebida... até o estrondo de 10 de mar-
ço. Contudo, a China não estava parada
nas últimas três décadas, longe disso.4
Desde a abertura econômica e o lan-
çamento das reformas no fim do sécu-
lo passado, os dirigentes chineses estão
empenhados em estabelecer relações
diplomáticas com cada um dos países
da região – a Arábia Saudita (embora for-
temente anticomunista) em 1990, Israel
(apesar da sina dos palestinos) em 1992,

passando pelo Irã em 1990. Nenhum
presidente da República vai questionar
esses laços. Todos vão desenvolvê-los,
mesmo que isso signifique ignorar os
princípios fundamentais da solidarieda-
de internacionalista.
É claro que a sede pelos hidrocarbo-
netos que transbordam na região facilita
as declarações de amor: a Arábia Saudita
tornou-se o principal fornecedor de pe-
tróleo; o Catar, em relação ao gás natural,
e os Emirados Árabes Unidos, para o ouro
negro, a seguiram. Além disso, as empre-
sas chinesas procuram mercados para
os quais direcionar sua produção e sua
cooperação na área de novas tecnologias.
Em 2004 já havia sido criado o Fórum de
Cooperação China-Estados Árabes (FC-
CEA), mas as trocas explodiram após o
lançamento das Novas Rotas da Seda, em
2013-2014, principalmente em constru-
ção, infraestrutura, telecomunicações,
5G... Entre 2002 e 2022, os investimentos
diretos chineses na Arábia Saudita che-
garam a US$ 106,5 bilhões; no Kuwait,
a quase US$ 100 bilhões; nos Emirados
Árabes Unidos, a mais de US$ 64 bilhões.
RECUSA DE QUALQUER ALIANÇA
Essa “diplomacia da carteira” está dan-
do frutos políticos: nenhum desses
países se uniu ao Conselho de Direitos
Humanos das Nações Unidas, em julho
de 2020, para condenar a repressão aos
uigures (muçulmanos). No entanto, a re-
cíproca também é verdadeira. Dois anos
antes, o assassinato do jornalista e opo-
sitor Jamel Khashoggi dentro do consu-
lado saudita em Istambul não levou a
China a criticar o príncipe herdeiro – e
homem forte do reino – Mohammed bin
Salman (MBS). Ao contrário dos Estados
Unidos, que por muito tempo o olharam
feio, até que voltaram a se aproximar e
Joe Biden visitou Riad em julho passa-
do. Uma visita sem grandes efusões, que
contrastou com a de Xi Jinping em de-
zembro, recebido com grande pompa.
Pelo menos os dirigentes chineses têm
o mérito de certa coerência: “Nenhuma
interferência nos assuntos internos”,
martelam eles, afirmando cada vez mais
sua própria visão geopolítica. Eles dizem
desejar “um diálogo em pé de igualdade,
baseado no respeito mútuo”, que o Oci-
dente sempre recusou. E assim esperam
envolver parte do Sul em busca de ca-
pital – e reconhecimento. Nada garante
que vá funcionar. A verdade é que a Chi-
na, obcecada com a desintegração da
União Soviética, tem pouca vontade de
se tornar a líder de um campo. Ela rejei-
ta qualquer aliança política e militar que
implique “uma mentalidade de campo
entrincheirado” e mantenha um “clima
de guerra fria”,5 extremamente custoso.
Os dirigentes privilegiam as relações
bilaterais, ao mesmo tempo que desen-
volvem organizações multilaterais que
reúnem países em desacordo, às vezes
até em conflito, mas ansiosos por man-
ter o diálogo nessas instâncias e até por
cooperar em questões que não trazem
problemas. É o caso da Organização para
a Cooperação de Xangai ou ainda dos
Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África
do Sul), a que Arábia Saudita, Egito, Emi-
rados Árabes, Turquia e Argélia querem
aderir – um triunfo no qual a China pode
garantir a posição de maestro!
Os chineses incluíram em seu arsenal
a proposta de “segurança comum, glo-
bal, cooperativa e duradoura”. O que Xi
chama de Iniciativa de Segurança Glo-
bal, definida em 2014 e refinada desde
então, serviu de base para o documento
de doze pontos para as negociações de
paz entre a Ucrânia e a Rússia. Os co-
mentaristas ocidentais trataram o texto
com desprezo, mas o resto do mundo
não.6 Antes, em dezembro de 2022, o pre-
sidente Xi havia apresentado as grandes
linhas da Iniciativa de Segurança Global
ao Conselho de Cooperação do Golfo,7
durante sua visita a Riad, retomando
a ideia de que “a segurança de um não
pode ser garantida em detrimento da se-
gurança do outro”. Menos de uma sema-
na após o acordo Irã-Arábia Saudita, Xi
viajou a Moscou para encontrar-se com
Vladimir Putin, sempre mantendo con-
tato telefônico com Volodymyr Zelensky
– sinal de que a China decidiu por um
maior envolvimento na busca de uma
solução para a guerra na Ucrânia.
O presidente Xi, que em seu segundo
mandato (2017-2022) impulsionou uma
diplomacia agressiva, parece, portanto,
querer inaugurar o terceiro com uma
abordagem mais favorável à negociação,
inclusive buscando incluir aqueles que o
Ocidente exclui. “Juntos, podemos tor-
nar o jardim planetário das civilizações
colorido e dinâmico”, explicou lirica-
mente em uma coletiva.8 Enquanto isso,
a China não se incomoda em apresentar-
-se como pacificadora. Mesmo conside-
rando que, como escreve a especialista
em geopolítica Hélène Nouailles, “os chi-
neses não são os guardiões da liberdade
alheia”, nem querem ser.9 E há um longo
caminho entre uma troca de embaixado-
res e uma paz construída e duradoura.
Nada garante, de fato, que o acordo
entre Irã e Arábia Saudita vá sobreviver
às tensões geopolíticas que dividem a
região. O primeiro teste de sua eficácia
será a segurança do reino saudita diante
da situação no Iêmen. Se a China teve
sucesso em sua mediação, é porque o
Irã, ao contrário das rodadas anterio-
res, aceitou que Ali Shamkhani, seu ex-
-ministro da Defesa e, principalmente,
secretário do Conselho Supremo de Se-
gurança Nacional, esteja diretamente
envolvido para dar o crédito necessário
aos compromissos do país em termos
de estabilidade regional. Com, no fim
das contas, a satisfação de duas exigên-
cias sauditas: que cessem os ataques
contra as instalações petrolíferas do
reino e que o Irã ponha fim às entregas
de armas aos rebeldes houthis. Embora
estes últimos tenham saudado o acor-
ABRIL 2023
do, é pouco provável que deponham
as armas contra as forças do governo
iemenita que apoiam o reino wahabita.
DIVERSOS CAMPOS
DE ENFRENTAMENTO
Em um contexto marcado pela multipli-
cação de conflitos internos no Iêmen –
com, entre outras coisas, o forte retorno
do movimento separatista no sul do país
–, o Irã e a Arábia Saudita terão muito a
fazer para preservar sua reconciliação.
Ela também vai depender de um tercei-
ro ator, os Emirados Árabes Unidos, país
aliado aos sauditas que tem seu próprio
papel. Os Emirados precederam o reino
saudita ao reabrir sua embaixada em
Teerã, em setembro. Mas existem diver-
gências significativas entre as duas mo-
narquias no que diz respeito ao futuro do
Iêmen, em particular sua parte sul, cujas
inclinações secessionistas são apoiadas
pelos Emirados. No diálogo a três (Arábia
Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã)
que se esboça sobre esse conflito, as di-
ferenças de opinião entre os dois primei-
ros pesarão tanto quanto o preconceito
comum em relação ao terceiro.
Chineses dizem desejar
“um diálogo em pé de
igualdade, baseado no
respeito mútuo”, que o
Ocidente sempre recusou
A solidez do acordo entre iranianos
e sauditas também será julgada tendo
em vista a evolução das relações com
Israel, que o considerava perigoso para
seu próprio futuro. Contrário a qualquer
normalização, o Irã critica com frequên-
cia os signatários dos Acordos de Abraão,
dos quais os Emirados Árabes Unidos
são um dos mais ativos promotores. Po-
rém, isso não impede que os Emirados
mantenham fortes relações econômicas
com seu grande vizinho. Envolvida em
negociações não oficiais sob a égide dos
Estados Unidos, a Arábia Saudita, por
sua vez, não fecha as portas ao estabe-
lecimento de relações diplomáticas com
Israel, mas impõe suas condições, sobre-
tudo no que concerne à criação de um
Estado palestino. A chegada ao poder
de uma coalizão de extrema direita em
Israel dá argumentos aos grupos próxi-
mos a MBS que preferem atrasar a nor-
malização – o suficiente para satisfazer
o Irã, que observa que seus dois vizinhos
não querem um ataque israelense con-
tra ele. Para o Irã, a exigência é simples:
as monarquias do Golfo podem manter
relações com Israel, mas com a condição
de rejeitarem a associação a qualquer
ação militar contra suas instalações. Se
Israel, agora isolado nessa questão, co-
locar em prática seu famoso “plano B”
– incluindo um ataque unilateral contra
o Irã –, a Arábia Saudita e os Emirados
Le Monde Diplomatique Brasil 25
Árabes terão de convencer a república
islâmica de que não são cúmplices nem
apoiadores da medida.
Além disso, o Líbano pode constituir
um campo de batalha que ameaça a
perenidade do acordo entre iranianos
e sauditas. De fato, como resultado da
invasão dos Estados Unidos em março
de 2003, a Arábia Saudita endossou que
o Iraque agora faz parte do quintal da
potência iraniana. Contudo, os saudi-
tas também vão acabar aceitando que
a presidência do País dos Cedros seja
ocupada por alguém próximo ao Hez-
bollah? Se, por acaso, a crise política
libanesa fosse resolvida nas próximas
semanas, isso significaria que o Irã e
a Arábia Saudita chegaram a um acor-
do sobre essa espinhosa questão que
ameaça a paz civil libanesa.
Seja como for, a retomada das relações
diplomáticas com o Irã representa um
sucesso para o príncipe Salman. Primei-
ro, porque ele continua a afirmar sua au-
tonomia em relação aos Estados Unidos.
Depois, internamente, porque confirma
sua capacidade de impor seus pontos de
vista aos dignitários religiosos sunitas,
que sempre foram hostis a uma apro-
ximação com a potência xiita. Por fim,
porque reforça sua estatura como líder
do mundo árabe. Nos próximos meses
– a data exata ainda não foi marcada –,
é na Arábia Saudita que será realizada a
32ª cúpula da Liga Árabe. Na ocasião, o
país deverá permitir o retorno da Síria ao
órgão, do qual foi excluída em 2011. Um
retorno a ser celebrado pelo Irã, grande
aliado da Síria. Já o acordo patrocinado
pela China terá de provar seu valor antes
que o Irã esteja entre os convidados de
honra da cúpula. 
*Akram Belkaïd e Martine Bulard são
jornalistas do Le Monde Diplomatique.
1   N ahal Toosi e Phelim Kine, “U.S. officials pro-
ject calm as China stuns world with Iran-Saudi
deal” [Autoridades dos Estados Unidos proje-
tam calma, enquanto a China surpreende o
mundo com o acordo entre Irã e Arábia Saudi-
ta], Politico, Arlington, 13 mar. 2023.
2   Entrevista com Thomas L. Friedman, “Obama
on the world” [Obama no mundo], disponível
no site do The New York Times, 8 ago. 2014.
3   Ler Alain Gresh, “Quand le Sud refuse de s’alig-
ner sur l’Occident en Ukraine” [Guerra na Ucrâ-
nia: quando o Sul se recusa a alinhar-se ao Oci-
dente], Le Monde Diplomatique, maio 2022.
4   Cf. James Reardon-Anderson (org.), The Red
star and the crescent. China and Middle East [A
estrela vermelha e o crescente. China e Oriente
Médio], Hurst Publishers, Londres, 2018.
5   Coletiva de imprensa do porta-voz do Ministério
das Relações Exteriores, Pequim, 14 abr. 2023.
6   Cf. Claude Leblanc, “Effet Pschitt? L’initiative de
paix chinoise illustre à quel point le monde est
fracturé” [Muito barulho por muito pouco? A ini-
ciativa de paz chinesa ilustra como o mundo
está fraturado], L’Opinion, Paris, 26 fev. 2023.
7   Criado em 1981, o Conselho de Cooperação
do Golfo inclui Arábia Saudita, Bahrein, Emi-
rados Árabes Unidos, Kuwait, Omã e Catar.
8   “Xi proposes Global Civilization Initiative,
stressing inclusiveness” [Xi lança a Iniciativa
de Civilização Global, enfatizando a inclusão],
Global Times, Pequim, 15 mar. 2023.
9   Hélène Nouaille, “Inattendue, la médiation chi-
noise entre Riyad et Téhéran” [Inesperada, a
mediação chinesa entre Riad e Teerã], La Let-
tre de Léosthène, n.1724, 15 mar. 2023.
26 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
SANÇÕES DOS ESTADOS UNIDOS, FUGA DE CÉREBROS E BUROCRACIA
A China está perdendo a
batalha da inteligência artificial?
Após a reunião anual do Congresso Nacional do Povo e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, a nova
equipe de governo está instalada em Pequim. Entre os desafios que precisa enfrentar, está o embargo dos Estados
Unidos às tecnologias de ponta. Embora a China mostre um progresso espetacular em muitas áreas da inteligência
artificial, ela está seriamente atrasada em certos setores, especialmente o de semicondutores
POR GABRIELLE CHOU*
T
ornar-se “o principal centro de
inovação em inteligência artifi-
cial do mundo até 2030”. Esse é o
objetivo claramente anunciado
pelo Conselho de Estado (o governo) da
República Popular da China, que, em
24 de outubro de 2017, elevou o setor à
categoria de “prioridade nacional”. As
apostas são altas, pois a inteligência ar-
tificial chinesa, com suas aplicações
médicas, industriais e de transporte,
sobretudo em veículos autônomos, po-
deria se tornar um dos principais mo-
tores do crescimento nacional.
Além da vontade política afirmada, a
China tem alguns trunfos indiscutíveis.
Os consumidores do país são os primei-
ros no mundo a utilizar maciçamente o
smartphone para pagar bens e serviços
on-line1 e a utilizar softwares de reconhe-
cimento de voz ou assistentes virtuais. A
robótica é amplamente aceita pela po-
pulação para substituir a mão de obra
que falta em hotéis, hospitais e bancos:
não é raro que os serviços de recepção
ou encaminhamento do saguão à porta
do quarto sejam prestados por um robô.2
Essa tecnologia também é utilizada na
construção, mineração e até para ajudar
no socorro em situações de desastre.
Com 800 milhões de usuários de
smartphones para 1,41 bilhão de habi-
tantes recenseados em 2021, o país con-
ta com um volume considerável de in-
formações digitais, amplamente acessí-
veis por causa de uma regulamentação
que, embora proteja os dados dos con-
sumidores, muitas vezes é flexibilizada
em caso de “necessidade do Estado”
(na área da saúde, por exemplo). Há
inclusive um componente regulatório
específico para biotecnologia (bioenge-
nharia e biofarmacêutica) que incenti-
va empresas, pesquisadores e poderes
locais a trabalhar em conjunto. E sua
estreita associação atrai investidores:
vários avanços biotecnológicos impor-
tantes surgiram, como o processamen-
to automático de linguagem que per-
mite a análise de dados médicos para
prever os resultados de testes clínicos,
reduzindo o custo dos diagnósticos e
aumentando sua confiabilidade.
CLOUD, AVATAR E TÁXI-ROBÔ
O país conta com uma grande reserva
de trabalhadores qualificados. Todo ano,
cerca de 1,4 milhão de engenheiros são
formados, seis vezes mais do que nos
Estados Unidos, sendo pelo menos um
terço deles em inteligência artificial.3
Além disso, como observa o jornal eco-
nômico japonês Nikkei Asia, “a China é
campeã indiscutível no número de arti-
gos de pesquisa publicados sobre inteli-
gência artificial, superando em muito os
Estados Unidos, em quantidade e quali-
dade”.4 Tencent, Alibaba e Huawei estão
agora entre as dez maiores empresas do
mundo a fornecer esse tipo de produção.
E a pesquisa às vezes resulta em apli-
cações no mundo real, superando os
modelos globais já existentes. É o caso
do aplicativo de celular para comparti-
lhamento de vídeos TikTok (ver boxe) e
do cloud (nuvem) do Alibaba (líder no
comércio eletrônico), que agora ofere-
ce 62 serviços baseados em inteligência
artificial, contra 47 da concorrente dos
Estados Unidos Microsoft Cloud. Seus
softwares de conversação inteligente
(chatbots) para atendimento ao consu-
midor e suas soluções para viabilizar
ferramentas de ensino personalizadas
na área de educação são utilizados para
acelerar e personalizar a comunicação
com os usuários. Também podemos
citar seu programa City Brain, que me-
lhorou o tráfego de carros a ponto de
alavancar a cidade de Hangzhou (6,97
milhões de habitantes) da 5ª para a 57ª
posição no ranking mundial das cidades
mais engarrafadas do mundo. O sistema
gere automaticamente os semáforos de
acordo com os pontos de congestiona-
mento que identifica, uma otimização
que se revelou particularmente útil para
a circulação de ambulâncias, uma vez
que alguns bairros estavam em isola-
mento total durante a crise sanitária,
enquanto o resto da cidade continuava
a viver normalmente.5
Existem muitos exemplos de sucesso,
sobretudo na área da cibersegurança,
com quatro grandes empresas (Bairong,
TransinfoTech, Dahua Technology, Hik-
vision). Sem falar da SenseTime, que se
prepara para capturar a maior fatia do
mercado doméstico de tecnologias de
inteligência artificial que utilizam visão
computacional. Já dominante na área da
segurança por reconhecimento facial, a
empresa está otimizando seu know-how
para aplicá-lo a outros setores. Ela de-
senvolveu um software capaz de identi-
ficar rostos, avaliar a idade das pessoas
e cruzar essas informações com dados
comerciais, ajudando os comerciantes a
identificar os clientes com maior proba-
bilidade de comprar seus produtos.
A WeRide realizou mais
de 150 mil trajetos com
seus táxis-robô na cidade
de Cantão, sem nenhum
registro de acidentes
A indústria chinesa se destaca de suas
concorrentes internacionais pela capa-
cidade de mesclar poder digital e varejo,
graças ao sucesso da integração entre
dados de comércio on-line, off-line e lo-
gísticos, em uma única cadeia de valor.
Aliada à inteligência artificial, essa inte-
gração possibilitou organizar um modelo
de entrega de alto desempenho. Um pe-
dido de batom, por exemplo, na JD, outra
gigante do e-commerce, pode ser entre-
gue em 6 minutos pela operadora que
comanda um dos centros logísticos mais
avançados do mundo. Em maio de 2022,
o Baidu, o “Google” chinês, lançou táxis
sem motorista em Pequim, enquanto a
WeRide realizou mais de 150 mil trajetos
com seus táxis-robô na cidade de Cantão
(Guangzhou, 14 milhões de habitantes),
sem nenhum registro de acidentes.
É verdade que, no campo da inteli-
gência artificial generativa (ramo que
utiliza conteúdos existentes para gerar
novos), a ferramenta norte-americana
ChatGPT – capaz de manter conversas
inteligentes com seus usuários – tem
somado pontos. No entanto, as gigan-
tes chinesas estão criando aplicativos e
tentando lançar plataformas concorren-
tes. É o caso da Tencent, cujo gerador de
imagens animadas Different Dimension
Me, que chegou às plataformas sociais
globais no fim de 2022, usa fotos de
rostos para criar avatares comparáveis
a personagens de mangá, e do Baidu,
que está desenvolvendo um modelo de
10 bilhões de parâmetros (ERNIE-ViLG)
com lançamento anunciado para mar-
ço de 2023. Vale também mencionar o
Idea, um laboratório de pesquisa dirigi-
do pelo famoso cientista da computação
Harry Shum, que inventou o Taiyi, outro
modelo de conversão de texto em ima-
gem em larga escala.
Apesar do terreno favorável e das nu-
merosas iniciativas, em março o minis-
tro da Ciência e Tecnologia, Wang Zhi-
gang, reconheceu que “a China vai ter de
esperar” até “ver resultados”6 como os
do ChatGPT. Além disso, todos puderam
constatar que a inteligência artificial chi-
nesa não foi de grande utilidade para o
tratamento da pandemia de Covid-19.
Claro que ela serviu para impor as medi-
das de restrição de circulação e prever a
evolução de surtos da doença. No entan-
to, pouco ajudou no desenvolvimento de
vacinas com efeitos críveis, ao contrário
da start-up norte-americana Moderna.
Diversos fatores explicam os fracas-
sos dessa marcha forçada lançada pelo
poder público. Em primeiro lugar, ainda
que quase um terço dos melhores pes-
quisadores do mundo na área venha da
China, apenas um décimo deles real-
mente trabalha lá. É nos Estados Uni-
dos que está a maior parte dos talentos
chineses, a ponto de constituir “a arma
secreta dos Estados Unidos em inteli-
gência artificial”, segundo um estudo
do think tank norte-americano Marco
Polo.7 A essa fuga de cérebros soma-se
a discrepância entre os investimentos
anunciados e os valores efetivamente
aplicados, habilmente desvendada pe-
los atores do setor da informática na-
cional para exercer pressão. É o caso dos
R$ 91 bilhões anunciados em 2018 pelo
município de Tianjin, no nordeste do
país, que ninguém sabe se foram libe-
rados, e, caso tenham sido, se chegaram
aos destinatários e foram exclusivamen-
te aplicados em inteligência artificial.

© Reberson Alexandre
INVESTIMENTOS INCERTOS
Além disso, a rigorosíssima política de
Pequim para regulamentar o setor aca-
bou prejudicando alguns avanços. O Ant
Group, braço financeiro do Alibaba, cuja
atuação dupla em Hong Kong e Xangai
foi suspensa em novembro de 2020,8 teve
as asas cortadas. Pesadas multas caem
sobre os empresários que insistem em
não respeitar as regras da concorrência.
Em julho de 2022, após uma longa inves-
tigação, o regulador da internet aplicou
uma multa de 8 bilhões de yuans (R$ 6,8
bilhões) à Didi, a “Uber” da China. As
duas gigantes dos videogames Tencent
e NetEase, punidas por violações à lei
antitruste em 2021, foram impedidas de
lançar novos jogos no mercado até o fim
de 2022, fazendo despencar os preços
de suas ações. Com medo de irem para
a cadeia, vários executivos das “tech” se
demitiram, como fez, em novembro de
2021, Zhang Yiming, fundador da Byte-
Dance, empresa-mãe do TikTok; muitos
se refugiaram no exterior, no Japão ou
em Cingapura. Em 1º de novembro de
2021, entrou em vigor a grande lei so-
bre a proteção da privacidade on-line
aprovada pelo Congresso Nacional Po-
pular, cujos termos vagos representam
um risco maior para os operadores que
lidam com dados do consumidor. Esse
fortalecimento do controle estatal pode
desmotivar as gigantes digitais.
Além disso, logo no início do ano, o go-
verno interrompeu abruptamente o pla-
no de investimentos de US$ 148 bilhões
destinado ao setor de semicondutores,
que incluía vários programas de ajuda,
sobretudo na forma de subsídios e crédi-
tos de impostos, para apoiar a produção
e a pesquisa. O problema foi a corrupção
revelada por uma onda de investigações
de muitas personalidades, incluindo
Xiao Yaqing, então ministro da Indús-
tria e Tecnologia da Informação, e Ding
Wenwu, diretor-geral do Fundo de In-
vestimento da Indústria Chinesa de Cir-
cuitos Integrados. Conhecido pelo nome
Big Fund e dotado de US$ 45 bilhões,
ABRIL 2023
esse fundo é, desde 2014, o instrumento
oficial do governo para administrar seus
colossais investimentos em semicon-
dutores. Com uma complexa teia de in-
teresses, ele tem entre seus acionistas o
Ministério das Finanças, o credor estatal
China Development Bank, o poderoso
monopólio China Tobacco e a gigante
das telecomunicações China Mobile.
A interrupção caiu mal para o pre-
sidente Xi Jinping e suas ambições de
autonomia tecnológica. Os semicondu-
tores são essenciais para as inovações
contínuas em 5G, nuvem, internet das
coisas e em muitos setores que estão em
franca transformação, como o militar e o
espacial. Dos smartphones aos compu-
tadores, passando pelos mísseis balísti-
cos e pela indústria automotiva, eles são
indispensáveis, sendo a China o maior
mercado consumidor de semiconduto-
res e circuitos integrados do mundo.
E sua cadeia de valor caracteriza-se
por uma combinação de tecnologias
interdependentes marcada por garga-
Le Monde Diplomatique Brasil 27
los que dão vantagem estratégica para
quem os controla.9 Uma quebra, uma
escassez, uma falha ou um embargo, em
um único elo da cadeia, tem repercus-
sões consideráveis. Em certos elemen-
tos, apenas um pequeno número de em-
presas possui um know-how único. Os
semicondutores são obtidos após três
etapas principais: projeto, fabricação e
fase de montagem-teste-embalagem. Os
gargalos concentram-se em softwares de
projeto e na tecnologia de litografia (má-
quinas para fabricação) – dois segmen-
tos especializados nos quais a China está
muito atrasada, apesar dos esforços, e
todos localizados em países aliados dos
Estados Unidos: Japão, Coreia do Sul,
Taiwan e alguns países europeus.
Os Estados Unidos têm optado por
um embargo cada vez mais cerrado. No
início de outubro de 2022, a Casa Branca
proibiu as empresas do país de exportar
para a China as ferramentas necessárias à
fabricação de semicondutores, essenciais
para computação de alto desempenho e
supercomputadores,10 bem como semi-
condutores cujo tamanho seja menor ou
igual a 14 nanômetros, os mais neces-
sários para o setor de alta tecnologia. A
proibição se estende inclusive a empre-
sas não norte-americanas, o que impede
a China de encontrar soluções. O presi-
dente Joe Biden conseguiu incluir até a
Holanda, onde fica a fábrica de máquinas
para fundições avançadas de semicondu-
tores ASML, e o Japão, que detém a Elec-
tron e a Nikon. Em janeiro de 2023, as três
assinaram um acordo de cooperação, en-
dossando o bloqueio. A abordagem cada
vez mais restritiva do governo dos Esta-
dos Unidos reacende consideravelmente
a cobiça chinesa por Taiwan, onde se lo-
caliza a fundição de maior desempenho,
a Taiwan Semiconductor Manufacturing
Company (TSMC), que detém metade do
mercado mundial dos semicondutores
mais sofisticados.
O endurecimento das sanções afeta
um setor importante e pujante na China:
em 2020, o país detinha 9% do mercado
mundial de semicondutores, o equi-
valente a US$ 39,8 bilhões em vendas
anuais totais, contra apenas 3,8% em
2015. No entanto, é um grande impor-
tador do produto: US$ 378 bilhões, ou
18% de suas importações totais (energia
incluída). Suas exportações foram afe-
tadas. No ano passado, caíram drasti-
camente (queda de 72,8% em relação a
2021). Os clientes estrangeiros obrigam-
-se a diversificar suas cadeias de supri-
mentos. Assim, a norte-americana Dell
planeja deixar de usar chips fabricados
na China até 2024 e já pediu que os for-
necedores reduzam a quantidade de ou-
tros componentes produzidos lá.11 Uma
de suas rivais, a Hewlett Packard, tam-
bém começou a sondar os fornecedores
para avaliar a viabilidade de transferir a
produção e a montagem.
No entanto, as grandes empresas
“tech” da China também agem para
28 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
preservar seus interesses comerciais in-
ternacionais. Start-ups estão optando
radicalmente por deixar o país: a Movio
(ex-Surreal), especializada na criação de
avatares para vídeos profissionais, prefe-
riu se mudar para Los Angeles para poder
vender seus serviços no mercado global,
apesar do grande sucesso no mercado
doméstico durante a pandemia.
Por enquanto, a indústria chinesa
ainda possui reservas significativas de
semicondutores em laboratórios priva-
dos e públicos. Porém, a longo prazo, a
escassez pode ameaçar sua capacida-
de de desenvolver seus próprios algo-
ritmos potentes, indispensáveis para
o desenvolvimento de uma inteligên-
cia artificial competitiva. Isso poderia
afetar empresas que usam material
de origem norte-americana, inclusive
para veículos autônomos e logística,
bem como os centros de pesquisa que
usam inteligência artificial para criar
medicamentos.
ESCASSEZ DE SEMICONDUTORES
Evidentemente, a China não está olhan-
do tudo de braços cruzados. As autori-
dades estão pedindo que fornecedores
locais reduzam os preços dos compo-
nentes destinados a clientes nacionais
fabricantes de semicondutores, tanto
para apoiar a competitividade das ex-
portações como para reduzir as com-
pras externas, até então mais baratas.
No entanto, a forma de reagir às decisões
dos Estados Unidos divide os líderes.
Há quem defenda investimentos ainda
maiores para recuperar o atraso – fala-se
em um plano adicional de US$ 145 bi-
lhões, apesar do caso Big Fund, que soa
como um alerta –; outros contam com o
apoio indireto dos grandes projetos de
consumo de semicondutores produzi-
dos na China, como o 5G. Entretanto, é
certo que o curso do desenvolvimento
da inteligência artificial se mantém: Xi
Jinping mencionou quarenta vezes o
termo “tecnologia” no relatório ao XX
Congresso do Partido Comunista em ou-
tubro, contra dezessete vezes em 2017.
A postura agressiva dos Estados Uni-
dos certamente atrasará, embora pro-
vavelmente não inviabilize, esses novos
esforços. Isso pode levar a China a se
desacoplar do resto do mundo e gerar
padrões técnicos diferentes, dificultan-
do o potencial global de colaboração
em novas tecnologias. Levará algum
tempo para identificar todas as conse-
quências, mas a situação tem, no míni-
mo, o efeito de desacelerar a inovação
chinesa a curto prazo.  AI rivalry a tale of two talents” [Rivalidade en-
*Gabrielle Chou é professora associada
da Universidade de Nova York em Xangai.
1   “ Payment Methods in China: How China be-
came a mobile-first nation” [Métodos de paga-
mento na China: como a China se tornou uma
nação que prioriza os dispositivos móveis],
Daxue Consulting, 3 ago. 2022.
2   Barry van Wyk, “As China’s population ages,
medical robots and devices are booming” [À
TIKTOK, ESPÓLIO DE GUERRA NORTE-AMERICANO
Os vídeos exibidos pela filial de uma
companhia chinesa ameaçam a seguran-
ça dos países ocidentais? Seria ela um
cavalo de Troia destinado a doutrinar jo-
vens espíritos ingênuos? Aumentam a
pressão e as iniciativas para proibi-la na
América do Norte e na Europa Ocidental
N o início dos anos 2000, o mundo
ocidental se ofendeu quando os chi-
neses proibiram o Google, o Facebook e
o Twitter em seu território. Agora é a vez
de os norte-americanos tentarem proibir
o TikTok no seu. A rede social pertence à
empresa chinesa ByteDance, que tem
uma plataforma equivalente na China
chamada Douyin. Entre seus três direto-
res está Wu Shugang, um membro do
Partido Comunista. Isso seria um sinal
do controle político sobre o aplicativo de
sucesso global.
Com mais de 1 bilhão de usuários no
mundo, utilização média de 90 minutos
por dia entre os menores de 25 anos e
uma receita anual de mais de R$ 4,6 bi-
lhões, o TikTok é, de fato, um sucesso co-
mercial. No entanto, hoje, a ByteDance
está tendo alguma dificuldade para pro-
teger sua start-up, avaliada em mais de
R$ 350 bilhões, dos líderes políticos e da
mídia norte-americana.
“O TikTok tem problemas”, declarou
Karine Jean-Pierre, porta-voz da Casa
Branca, no dia 4 de março. Três dias de-
pois, dois senadores – um democrata, ou-
tro republicano – apresentaram um proje-
to de lei, que tem todas as chances de ser
aprovado, para restringir seu uso (Restrict
Act). De acordo com o Conselheiro de
Segurança Nacional, Jake Sullivan, isso
“permitiria ao governo dos Estados Uni-
dos impedir que alguns Estados estran-
geiros operem serviços de tecnologia de
forma a ameaçar dados confidenciais dos
norte-americanos e a segurança nacio-
nal”.1 Nem a China nem o TikTok são cita-
dos diretamente, mas é evidente que a
legislação tem como alvo principal a rede
chinesa. Esta já é proibida para funcioná-
rios do governo dos Estados Unidos e pa-
ra muitos de seus colegas europeus.
Por que essa obstinação, se sua ativi-
dade não tem muita diferença em relação
medida que a população da China envelhece,
aumenta o uso de robôs e dispositivos médi-
cos], The China Project, 2 nov. 2022.
3   Handel Jones e David P. Goldman, “US-China
tre Estados Unidos e China na inteligência
artificial é uma história de dois talentos], Asia
Times, Hong Kong, 2 jul. 2022.
4   Kotaro Fukuoka, Shunsuke Tabeta e Akira Oika-
wa, “China trounces U.S. in AI research output
and quality” [China supera Estados Unidos em
produção e qualidade da pesquisa em inteligên-
cia artificial], Nikkei Asia, Tóquio, 16 jan. 2023.
5   Josh Chin e Liza Lin, “In China, surveillance
crushes lives – and improves them” [Na Chi-
na, vigilância esmaga vidas – e as melhora],
The Economist, Londres, 22 set. 2022.
à das concorrentes norte-americanas? O
TikTok, com seus compartilhamentos de
vídeo de alguns segundos, parece ino-
fensivo. No entanto, assim como todas as
redes sociais, ele tem um poder de in-
fluência que, segundo os Estados Uni-
dos, pode cair em mãos erradas, repre-
sentando um risco político. Tal como no
Facebook, Instagram ou YouTube, os in-
fluenciadores partilham suas opiniões e,
de forma mais geral, à força de rolagem,
cliques e compras, os usuários revelam
dados muito pessoais. Embora, em princí-
pio, a confidencialidade esteja protegida,
todos recebem diariamente anúncios ou
conteúdos selecionados por algoritmos
que são mantidos em segredo por essas
redes... O que é verdade para os negócios
pode ser verdade para a política. Como o
TikTok pertence a uma companhia chine-
sa, o governo norte-americano teme uma
manipulação da opinião pública e a coleta
de informações sensíveis por parte do
Estado chinês. Especialmente porque es-
te último detém 1% do capital da Byte-
Dance, com direitos privilegiados que po-
dem lhe permitir ditar certas decisões.2
Essas suspeitas não são totalmente
infundadas. Em dezembro de 2022, a
ByteDance admitiu que funcionários
usaram o TikTok para rastrear os movi-
mentos de dois jornalistas estrangeiros
que tinham obtido informações confiden-
ciais, na tentativa de identificar a origem
dos vazamentos. Esses funcionários pe-
gos em flagrante foram demitidos, mas o
mal-estar permanece.
Aplicativo favorito
nos Estados Unidos
Além disso, os norte-americanos apon-
tam que a Douyin, por meio de seus al-
goritmos, oferece principalmente con-
teúdo educacional para usuários
chineses menores de 14 anos. Eles
veem aí a mão do poder chinês, que po-
deria se estender para o Ocidente, mes-
mo que o TikTok não promova a educa-
ção lá. Todas as redes sociais adotam
programas diferentes, dependendo da
área geográfica, porém Washington não
reconhece essa dissociação quando se
trata do aplicativo chinês.
6   X inmei Shen, “China’s ‘two sessions’ 2023:
ChatGPT-like artificial intelligence is ‘difficult
to achieve’, China’s tech minister says” [As
“duas sessões” da China em 2023: a inteli-
gência artificial do tipo ChatGPT é “difícil de
alcançar”, diz o ministro da Tecnologia da
China], South China Morning Post , Hong
Kong, 5 mar. 2023.
7   P aul Mozur e Cade Metz, “A U.S. secret
weapon in A.I.: Chinese talent” [Uma arma
secreta dos Estados Unidos na inteligência
artificial: o talento chinês], The New York
Times , 9 jun. 2020.
8   Ler Jordan Pouille, “Alibaba, épopée chinoise”
[Alibaba, a epopeia chinesa], Le Monde Di-
plomatique, mar. 2021.
9   Ler Evgeny Morozov, “Doit-on craindre une
Para se eximir e se libertar de sua iden-
tidade original, a ByteDance pretende
dissociar suas atividades chinesas daque-
las em vigor no resto do mundo. A compa-
nhia elaborou um plano de reestruturação
denominado Project Texas, que busca
proteger os dados dos usuários por meio
de uma parceria com o grupo norte-ame-
ricano Oracle Corp e compreende um
centro nevrálgico com sede em Dallas
(TikTok US Data Security Inc) e três data-
centers europeus – o primeiro será esta-
belecido na Irlanda, com um orçamento
alocado de mais de R$ 17 bilhões.
O CEO do TikTok, Shou Zichew, defen-
deu esse plano perante o Comitê de Co-
mércio do Congresso dos Estados Uni-
dos em 23 de março, na esperança de
escapar da proibição de operar no terri-
tório norte-americano, como a que atin-
giu a Huawei em 2019. Caso contrário, é
provável que os governos dos países eu-
ropeus o sigam, enquanto a Comissão
Europeia já exigiu que seus funcionários
removessem o aplicativo chinês de suas
ferramentas de trabalho.
No entanto, os líderes dos Estados Uni-
dos estão em posição, politicamente, de
proibir as pessoas com menos de 35 anos
de usar seu aplicativo favorito? Quais se-
riam as reações nas redes sociais? As au-
toridades norte-americanas, que defendem
a liberdade de negócios, vão certamente
tentar obter a cessão da TikTok a investido-
res estrangeiros ou pelo menos uma sepa-
ração total das atividades da Douyin e do
TikTok.3 Os efeitos podem ser considerá-
veis para as grandes empresas norte-ame-
ricanas presentes na China, como a Apple,
a Microsoft e a Tesla. (G.C.) 
1   “Statement from National Security Advisor
Jake Sullivan on the Introduction of the Res-
trict Act” [Declaração do Conselheiro de
Segurança Nacional Jake Sullivan sobre a
criação do Restrict Act], site da Casa Bran-
ca, 7 mar. 2023.
2   Cristina Criddle, Hannah Murphy e Demetri
Sevastopoulo, “Can TikTok convince the
world it is not a tool for China” [TikTok con-
segue convencer o mundo de que não é um
instrumento da China?], Financial Times,
Londres, 3 mar. 2023.
3   “TikTok Considers Splitting from ByteDance if
Deal with US Fails” [TikTok considera se sepa-
rar da ByteDance se o acordo com os Estados
Unidos falhar], Bloomberg, 14 mar. 2023.
panne électronique?” [Há razão para temer
uma pane eletrônica?], Le Monde Diplomati-
que, ago. 2021.
10  “Commerce implements new export controls
on advanced computing and semiconductor
manufacturing items to the People’s Republic
of China (PRC)” [Comércio implementa no-
vos controles de exportação de itens avança-
dos de computação e fabricação de semicon-
dutores para a República Popular da China
(RPC)], Bureau of Industry and Security,
Washington, 7 out. 2022.
11  C heng Ting-Fang, “Dell looks to phase out
‘made in China’ chips by 2024” [Dell preten-
de eliminar gradualmente chips “made in Chi-
na” até 2024], Financial Times , Londres, 11
jan. 2023.
 ABRIL 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 29

UMA LIMPEZA ÉTNICA DISFARÇADA

Tanzânia: o povo massai expulso

pelo turismo – e pela caça
Em 1968, os Beatles zombavam de “Bungalow Bill”, um ocidental adepto da meditação e da caça ao
tigre na Índia. Hoje, seus herdeiros vêm dos Emirados Árabes Unidos, que caçam grandes animais
nos vales e pastagens da África Oriental – em detrimento das populações locais, forçadas a fugir
pelas autoridades que cuidam muito bem desses afortunados predadores

POR CÉDRIC GOUVERNEUR*, ENVIADO ESPECIAL

E
nvoltos em seu tradicional shuka
vermelho, com o cajado de pastor
nas mãos, Abel1 e sua família nos
recebem em seu boma, uma al-
deia massai composta de cabanas re-
dondas e um curral, rodeada de espi-
nhos e urtigas para proteger o gado dos
leões. Atualmente, porém, os massai de
Loliondo, no noroeste da Tanzânia,
têm menos medo dos predadores – o
ataque ao gado é raro, já que os herbí-
voros que vivem na savana são mais fá-
ceis de alcançar – do que das autorida-
des: “Não fotografem nosso rosto”,
implora o anfitrião, “nem nada que
permita reconhecer aqui”. Abel tem
boas razões para se mostrar prudente:
ele e outros vinte massai acabam de
© Thomas Mukoya/Reuters
passar cinco meses na prisão de
Arusha. “Éramos setenta detentos
amontoados em uma cela que devia
abrigar 25. Eles pegaram pessoas in-
fluentes, chefes tradicionais, aqueles
que estudaram ou que têm contato
com associações ocidentais” de defesa
dos direitos dos povos indígenas, como
a Survival International (Reino Unido)
e o Oakland Institute (Estados Unidos).
“Querem impedir que a gente se orga-
nize contra a OBC”, deduz ele.
OBC, ou Otterlo Business Corpora-
tion, é uma empresa de caça dos Emi-
rados Árabes. Em 6 de junho de 2022, a
região de Arusha anunciou que estava
despovoando uma área de 1.500 quilô-
metros quadrados no setor de Loliondo
(ao norte da reserva natural de Ngoron-
goro e a leste do Serengeti), com o ob-
jetivo de alocá-la para uso exclusivo da
companhia. Nos dias seguintes, cente-
nas de policiais ergueram mais de qua-
trocentas balizas brancas delimitando
um perímetro proibido na savana. “Fo-
mos convocados pelo comissário distri-
tal de Loliondo, que disse: ‘Esta exclusão
é uma ordem presidencial; obedeçam,
depois cuidamos dos detalhes’”, con-
ta Abel. “Evidentemente, protestamos.
Não queríamos só saber os ‘detalhes’,
queríamos saber qual será nosso futu-
ro estatuto neste país, se ainda seremos
cidadãos de pleno direito. O tom subiu
e, na mesma noite, dormimos na dele-
gacia...” Nesse tempo, em torno da área
em demarcação, os massai se alertaram
por celular, de um boma a outro, e en-
frentaram as forças da ordem.
Na noite de 9 para 10 de junho, as
balizas foram retiradas. Pela manhã,
a polícia tentou dispersar os manifes-
tantes com gás lacrimogêneo e tiros
de munição real. Divulgadas nas redes
sociais, as imagens do enfrentamento
entre as tradicionais vestes vermelhas e
os uniformes verdes e azuis correram o
mundo. Várias dezenas de pessoas fica-
ram feridas. Alguns guerreiros brandiam
lanças e arcos: atingido por uma flecha
na cabeça, o oficial Carlus Mwita Garlus
morreu. Nos dias seguintes, centenas de
massai fugiram através da savana rumo
ao vizinho Quênia, onde foram abri-

Mulheres massai, envoltas em seu tradicional shuka vermelho – embora o povo seja de fato nômade com tradições guerreiras, eles não são mais caçadores
30 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
gados por parentes – muitos nômades
têm família dos dois lados da fronteira.
O ministro do Interior, Hamad Masau-
ni, ordenou o reforço da vigilância nas
fronteiras e a investigação de ONGs que
operam na área de Loliondo. No fim de
novembro de 2022, a maioria dos massai
exilados no Quênia voltou para a Tanzâ-
nia, quando a libertação sem processo
criminal de líderes encarcerados parecia
significar uma relativa calmaria.
Setenta mil pessoas seriam afetadas
pelas medidas de expulsão. “Começa-
ram a aplicar multas de 100 mil xelins
(R$ 230) para quem atravessasse as ba-
lizas”, continua Abel. Os massai rara-
mente têm dinheiro, muitos praticam
o escambo: assim, os infratores preci-
saram muitas vezes vender suas vacas
“por um preço baixo, pois era a estação
seca e os animais estavam magros”, con-
ta uma testemunha. “Quando as pessoas
não podiam mais pagar, as autoridades
confiscavam os rebanhos.” De acordo
com uma investigação do Oakland Ins-
titute, 5.880 bovinos e 767 ovinos foram
apreendidos em novembro e dezembro
de 2022.2 Os confiscos continuaram em
janeiro de 2023. “Tudo a pretexto da
conservação!”, exaspera-se Abel. “Não
é o governo que vai nos ensinar a pre-
servar a natureza: ao contrário desses
estrangeiros ricos, nós não matamos
animais selvagens, sempre convivemos
com eles. Não somos nós que os colo-
camos em perigo! Prova disso é que,
nos lugares onde vivem os massai, tan-
to na Tanzânia quanto no Quênia, está
a maior parte da fauna.” Vale lembrar
que a União Internacional para a Con-
servação da Natureza (IUCN) por muito
tempo defendeu o conceito de parques
naturais sem habitantes.3 Assim como
o WWF (Fundo Mundial para a Natu-
reza), que agora reconhece o papel das
populações agropastoris e extrativistas
na preservação do meio ambiente: “Os
objetivos de proteção da biodiversida-
de são inatingíveis sem a plena inclusão
dos povos indígenas e das comunidades
locais”.4 Os números são eloquentes:
“91% das terras dos povos indígenas”
estão em boas condições ecológicas, e
“pelo menos 36% das áreas-chave para a
biodiversidade (Key Biodiversity Areas)”
estão em seus territórios.
Entre 1904 e 1911, na África Oriental
Britânica (futuro Quênia), a administra-
ção colonial britânica já havia expulsado
os massai de 50% a 70% de seu território
para dar lugar à vida selvagem – e aos ca-
çadores ingleses, que quase extermina-
ram os tigres do subcontinente indiano
em meio século.5 Na década de 1950, o
veterinário da Alemanha Ocidental Ber-
nhard Grzimek (1909-1987) e seu filho
Michael (1934-1959) popularizaram no
Ocidente a ideia de um Éden africano
cuja virgindade estaria ameaçada pelos
próprios africanos. Filmado em Tanga-
nica (futura Tanzânia), seu filme, Ao les-
te do Congo, ganhou o Oscar de melhor
documentário em 1960. O doutor Grzi-
mek convenceu os britânicos, e depois o
primeiro presidente da Tanzânia, Julius
Nyerere, a retirar do Serengeti e do Ngo-
rongoro as populações que ali viviam.
Diretor do zoológico de Frankfurt no
pós-guerra, Grzimek havia sido veteri-
nário da Wehrmacht e membro do Par-
tido Nacional-Socialista dos Trabalha-
dores Alemães (NSDAP). A ideia de uma
natureza africana expurgada de seus
habitantes não está isenta de racismo:
o historiador Guillaume Blanc destaca
que, enquanto o papel do agropastoris-
mo na preservação da biodiversidade é
reconhecido para o parque de Céven-
nes (França), “na África, um parque na-
tural deve ser despovoado”.6 Esse “ideal
de uma natureza despojada de seus
habitantes” constitui uma espécie de
“colonialismo verde”, analisa: “Na épo-
ca colonial, havia o fardo civilizacional
do homem branco... Depois veio o far-
do ecológico do especialista ocidental”.
Em última análise, “o mundo moderno
e civilizado deve continuar a salvar a
África dos africanos”.
“Ao contrário desses
estrangeiros ricos, nós
não matamos animais
selvagens, sempre
convivemos com eles”
CAÇA “SUSTENTÁVEL”
Após as independências, muitos ex-fun-
cionários coloniais puderam encon-
trar uma segunda carreira na gestão de
parques. Por sua vez, os novos Estados
independentes transformaram essas re-
servas em santuários com o objetivo de
promover o turismo (10% do PIB da Tan-
zânia antes da pandemia)7 e controlar
minorias étnicas em condições de vida
Kisumu
MASSAI MARA
Lago
Victória
Loliondo
Musoma
NGORONGORO
SERENGETI
Endulen
Mwanza
Parques nacionais
e áreas de conservação
Zona de povoamento massai
© Cécile Marin
consideradas incompatíveis com o cen-
tralismo do Estado ou com certa con-
cepção de modernidade (nomadismo,
caça e coleta, nudez etc.). No entanto,
embora os massai sejam de fato nôma-
des com fortes tradições guerreiras, eles
não são mais caçadores – já se foi o tem-
po em que um jovem guerreiro precisa-
va matar um leão para provar sua força.
Os pastores inclusive evitam qualquer
interação entre seu gado e gnus que pos-
sam transmitir doenças às vacas, como a
febre catarral maligna. E o próprio gado
faz a manutenção da savana, pastando
as plantas e fertilizando o solo com seu
esterco: no Serengeti, cuja população
massai foi retirada em 1959, os guardas
florestais precisam fazer limpezas regu-
lares para erradicar uma erva daninha, a
Bidens pilosa. Após a expulsão de 1974,
foi constatada uma redução na diversi-
dade de herbívoros.8 “Já estamos sentin-
do os efeitos do aquecimento global: é
janeiro, deveria ser a estação das chuvas,
mas quase não chove. Agora, também
temos o problema da OBC. Não sei o que
será de nós, isso muda completamente
nosso modo de vida”, conclui Abel.
A OBC, que desde 1992 organiza ca-
ças esportivas na Tanzânia, pertence à
holding Al Ali, de Mohammed Abdoul
Rahim al-Ali, general de brigada, vice-
-ministro da Defesa dos Emirados Ára-
bes e citado no escândalo dos Panama
Papers em 2015. O emir de Dubai, o
xeque Mohammed bin Rashid al-Mak-
toum, e seu filho, o príncipe Hamdan,
estão entre seus clientes. Nas redes so-
ciais, a empresa dos Emirados Árabes
não menciona a recente violência em
Loliondo. Ela prefere postar fotos de
mulheres massai trabalhando em torno
de um poço cavado pela UAE Water Aid,
organização humanitária financiada
pela fundação do xeque Al-Maktoum:
“As comunidades locais no entorno de
cada concessão de caça contam com
QUÊNIA
Nairóbi
Magadi
Kilimandjaro
AMBOSELI 5 895 m
KILIMANJARO
Lago Moshi
Natron
Arusha
LAGO MANYARA
Lago TANZÂNIA
Manyara TARANGIRE
Lago
Eyasi
N
E
O 0
S
programas de desenvolvimento comu-
nitário”, dizia a OBC no Twitter, em 13
de dezembro de 2017. No entanto, du-
rante quinze anos, as forças policiais
da Tanzânia expulsaram os massai da
concessão... A OBC também se orgulha
de sua “caça sustentável”, apesar da de-
núncia de abusos, por parte dos emira-
denses, feita pela imprensa local e pela
associação queniana Massai Environ-
mental Resources Coalition em 2002:
helicópteros para abater a caça, pedras
de sal como isca, cotas não respeitadas.9
A reserva de Loliondo está situada na
rota migratória de manadas de herbívo-
ros (e dos predadores que se alimentam
deles), entre Ngorongoro, o Serengeti e
o parque queniano de Masai Mara: des-
de os anos 2000, o Quênia (onde a caça
esportiva é proibida desde 1977) nota
uma redução da fauna, claramente dizi-
mada durante a travessia do Loliondo. A
reserva da OBC também tem uma pista
de pouso privada, que permite ligações
diretas com o Golfo. Alguns massai sus-
peitam de tráfico de animais selvagens
para o zoológico de Dubai.
A violência das expulsões veio a públi-
co no dia 4 de julho de 2009, quando po-
liciais da Field Force Unit incendiaram
cerca de duzentos bomas, obrigando a
população a se retirar. Os fatos foram
então denunciados pela Comissão Inde-
pendente de Direitos Humanos da Tan-
zânia, pelo Embaixador da Dinamarca
na Tanzânia, Bjarne H. Sorensen, e pelo
relator especial das Nações Unidas para
os Direitos dos Povos Indígenas, James
Anaya. A expulsão era ilegal pela lei da
Tanzânia, já que a licença de caça da
OBC não previa direitos fundiários.10 Ex-
pulsões também aconteceram em 2013
e em agosto de 2017. Mas, em outubro
do mesmo ano, o presidente da Tanzâ-
nia, John Pombe Magufuli, demitiu o
ministro do Turismo e Recursos Natu-
rais, Jummane Maghembe.
Oceano
TSAVO
Índico
DO LESTE
Mombasa
TSAVO DO OESTE
Tanga
Msomera
Handeni
200 km

SUSPEITAS DE CORRUPÇÃO
O novo ministro, Hamisi Kigwangalla,
suspendeu as expulsões, ordenou a de-
volução do gado apreendido, pediu uma
investigação do Gabinete Anticorrupção
(Prevention and Combating of Corrup-
tion Bureau) e demitiu vários funcio-
nários suspeitos de favorecer a OBC,
incluindo o diretor do departamento
encarregado da vida selvagem no minis-
tério, Alexander Songorwa, bem como
oficiais de segurança.11 O diretor execu-
tivo da OBC, o tanzaniano Isaac Mollel,
chegou a ficar preso por um tempo. Ab-
dulrahmane Kinana, secretário-geral do
partido no poder (Chama Cha Mapindu-
zi, “Partido da Revolução”), suspeito de
corrupção em benefício dos Emirados
Árabes, foi forçado a renunciar em maio
de 2018. Os dias da OBC na Tanzânia pa-
reciam contados. No entanto, em março
de 2021, o presidente Magufuli morreu
repentinamente (talvez de Covid-19). A
vice-presidenta Samia Suluhu Hassan,
que o sucedeu, mantém excelentes re-
lações com os Emirados Árabes: durante
sua visita oficial a Dubai em fevereiro
de 2022, o Burj Khalifa – o arranha-céu
mais alto do mundo – foi iluminado com
as cores da Tanzânia. A presidenta favo-
receu a nomeação do polêmico Kinana
como vice-presidente do partido no po-
der em abril de 2022.
Quatro meses após sua visita a Dubai,
a presidenta ordenou que a reserva con-
trolada de caça de Loliondo fosse fecha-
da e esvaziada – evitando o uso da pa-
lavra “expulsão”. “Todo mundo está com
medo”, lamenta Charles, chefe massai.
“Minha família foi deportada do Seren-
geti em 1959. Na época, o acordo com os
britânicos prometia que nunca mais se-
ríamos expulsos. Fomos traídos.” A atual
política de realocação também se esten-
de à Área de Conservação de Ngoron-
goro (Ngorongoro Conservation Area,
NCA). Em maa, a língua massai, a pala-
vra “ngorongoro” significa “sino”: uma
referência ao tilintar dos guizos do gado
ressoando dentro da espetacular cratera
de mesmo nome. Estabelecida em 1959
graças aos Grzimeks, a área de conser-
vação, com uma superfície total de 8.288
quilômetros quadrados, tem em seu
centro uma caldeira (a cratera de um an-
tigo vulcão) de mais de 300 quilômetros
quadrados, a maior do mundo preser-
vada e emersa. A cratera de Ngorongoro
tornou-se um santuário de animais vi-
sitado anualmente por meio milhão de
turistas, que vão de jipe admirar a fauna.
Em 1974, os massai foram obrigados a
abandonar o local, porém o restante da
reserva é “de múltiplos usos”, o que quer
dizer que ali as atividades agropastoris
são toleradas. Pelo menos 80 mil mas-
sai vivem nessa área, que tem muitos
bomas, casas de alvenaria, escolas e um
hospital. Muitos são descendentes de
famílias que foram expulsas do Seren-
geti. No entanto, desde janeiro de 2022,
as autoridades estão preocupadas com
a “superpopulação” da área protegi-
da, argumentando que os massai eram
apenas alguns milhares na década de
1960. “Estamos perdendo Ngorongoro”,
declarou a presidenta, que montou um
“programa de recolocação voluntária”.
O primeiro-ministro, Kassim Majaliwaa,
reuniu-se com os residentes de Ngoron-
goro em fevereiro de 2022 e “propôs”
que saíssem. No entanto, segundo várias
pessoas com quem conversamos, “já es-
tava tudo decidido, desde dezembro já
estavam construindo casas em Handeni
para receber os deslocados”. Cada famí-
lia recebe uma casa, 2 hectares de terre-
no e uma indenização de 10 milhões de
xelins (R$ 230 mil). Em janeiro de 2022,
cerca de 5 mil massai de Ngorongoro já
haviam partido, e outros 5 mil se prepa-
ravam para fazer o mesmo. No total, en-
tre Loliondo e Ngorongoro, são 150 mil
massai que poderiam ser deslocados: o
Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos denuncia,
desde 15 de junho de 2022, “um deslo-
camento arbitrário proibido pelo direito
internacional”, sem “consentimento li-
vre, prévio e informado”.
Philip é o chefe de um boma próxi-
mo à cratera de Ngorongoro. Alguns
turistas, depois do safári 4 × 4, vão ali
conhecer a fotogênica cultura massai,
assistir a uma demonstração de dança
e canto, ver como se acende uma fo-
gueira esfregando gravetos, visitar uma
cabana tradicional e comprar artesa-
nato, com destaque para as pulseiras
de contas multicoloridas. Os massai
costumam abordar os turistas dizen-
do hakuna matata (“sem problema”,
em suaíli). A expressão foi globalizada
pelo desenho animado O Rei Leão, dos
estúdios Disney (1994), que tiveram o
cuidado de registrar a marca...
A cratera de Ngorongoro
tornou-se um santuário
de animais visitado
anualmente por meio
milhão de turistas,
que vão de jipe
admirar a fauna
CONSERVAÇÃO COMO PRETEXTO
As autoridades incentivam os massai
a deixar Ngorongoro por meio da ofer-
ta de locais para se estabelecerem fora
dali. Porém, também degradam meto-
dicamente os serviços dentro da NCA.
Administrado pela diocese de Arusha
desde 1965, o único hospital da região,
em Endulen, acolhe cerca de vinte pa-
cientes por dia: o estabelecimento, que
não recebe mais subsídios, precisou
reduzir o efetivo. O hospital foi rebai-
xado a posto de saúde. Desde 2021, as
autoridades pararam de emitir licenças
de construção na reserva, impedindo a
renovação de imóveis. A Flying Medical
ABRIL 2023
Service, uma ONG com sede em Arusha
que mantém pequenos aviões que ser-
vem de ambulância para bomas isola-
dos, não tem mais permissão para aten-
der Ngorongoro. Um discreto passeio
de carro pelos arredores de Endulen
mostra que casas e bomas abandonados
são destruídos para evitar a reocupação.
Há trabalhadores demolindo até uma
escola inteira, que abrigava quatrocen-
tos alunos, a Osotwa Primary School.
Outras oito devem ter o mesmo desti-
no, além de quatro igrejas e uma dele-
gacia de polícia. “Aqui não é Loliondo.
Haveria testemunhas demais: turismo
e violência não são compatíveis... En-
tão a pressão para expulsar as pessoas é
mais suave”, destaca Daniel, uma fonte
bem informada de Endulen. Sem acesso
à saúde e à educação, a população não
tem escolha a não ser ir embora. “Cinco
hotéis de luxo” poderiam ser construí-
dos no lugar das casas e da infraestrutu-
ra que serviam aos massai, garante nos-
sa fonte: “A conservação não passa de
um pretexto: a ideia deles é desenvolver
o turismo. E isso terá muito mais impac-
to ambiental do que os massai”.
Seiscentos quilômetros a leste, na
região costeira de Tanga, fica a cidade
de Msomera, onde são reassentadas
as populações que deixam Ngoron-
goro. Nessa região mais densamente
habitada vivem gerações de massai.
Sedentarizados e mais afeitos à agri-
cultura (milho, feijão), seu modo de
vida difere daquele dos grupos do oes-
te, seminômades. Um grupo de massai
de Msomera, os habitantes originais
da comuna, ficou chocado ao ver as
autoridades construindo casas em
suas terras para acomodar os recém-
-chegados. Considerando que “não ti-
nham mais nada a perder”, decidiram
se manifestar em seu nome, apesar
dos riscos. Eles nos levaram para ver
o sofrimento, em um veículo com vi-
dros fumê, fazendo desvios para evitar
os bloqueios do Exército. “O povo de
Ngorongoro veio se instalar em nos-
sas terras”, esbraveja William Kanyin-
ge, chefe consuetudinário de seus 60
anos, segurando com orgulho seu ca-
jado de comando oringa. “A mídia local
nunca fala desse assunto, e as autori-
dades ameaçam quem reclama.” Nos-
sas testemunhas mostram pequenas
casas verdes com telhados de chapa
ondulada: “Vivi por 35 anos nesta ter-
ra e fui expulso para construírem essas
casas, essa igreja”, fulmina Emmanuel
Kilossu, que afirma ter perdido “40 de
seus 50 hectares”. “E veja isso!”, conti-
nua Lukas Simeon, mostrando lápides:
“Era minha casa! Veja, os túmulos de
meus ancestrais! Eles deram minha
terra aos deslocados. Não tenho mais
o direito de vir aqui”. Quando os legíti-
mos proprietários tentaram cultivar as
terras, os novos ocupantes chamaram
a polícia, que afugentou os recalcitran-
tes. “Até agora, estamos sobrevivendo
Le Monde Diplomatique Brasil 31
graças às colheitas do ano passado e
com a ajuda de parentes. Porém, no
próximo ano, o que será de nós?”, preo-
cupa-se Kilossu. Deneth Mwarabu viu
sua terra ser dada a um ex-deputado
de Ngorongoro. As relações com os
deslocados são terríveis: “Nossos filhos
e os deles brigam na escola. Assim que
os soldados forem embora, pode haver
violência”. Cautelosos, os recém-che-
gados erguem cercas e se isolam.
O direito consuetudinário dos mas-
sai às suas terras, porém, é reconhecido
pelo artigo 24 da Constituição da Tanzâ-
nia de 1977. A terra não pode ser con-
fiscada sem a estrita observância dos
procedimentos. Em Arusha, o advogado
Joseph Oleshangay pretende contestar
esses confiscos na Justiça. Contudo, no
dia 30 de setembro de 2022, os massai
sedentarizados sofreram um primeiro
revés jurídico: o Tribunal de Justiça da
África Oriental negou seu recurso contra
as autoridades da Tanzânia... “O Estado
gosta dos massai quando eles podem
servir de recurso turístico”, conclui Ole-
shangay. “No entanto, quando defen-
dem seus direitos, deixam de ser vistos
como cidadãos de pleno direito.” 
*Cédric Gouverneur  é jornalista.
1   P or razões de segurança, os entrevistados
identificados apenas por um primeiro nome,
fictício, pediram para se manter anônimos.
2   “Tanzanian Government Resorts to Cattle
Seizures to Further Restrict Livelihoods of
Massai Pastoralists” [Governo da Tanzânia
recorre a apreensões de gado para restringir
ainda mais os meios de subsistência dos pas-
tores massai], Oakland Institute, Oakland
(Califórnia), 24 jan. 2023. Disponível em:
www.oaklandinstitute.org.
3   “The state of indigenous peoples’ and local
communities lands and territories” [O estado
das terras e territórios dos povos indígenas e
comunidades locais], 7 jul. 2021. Disponível
em: IUCN.org.
4   John Vidal, “Armed ecoguards funded by
WWF ‘beat up Congo tribespeople’” [Eco-
guardas armados financiados pelo WWF “es-
pancam tribos do Congo”], The Guardian,
Londres, 7 fev. 2020.
5   C f. Lotte Hughes, Moving the Massai: a co-
lonial misadventure [Deslocamento massai:
uma desventura colonial], Polgrave McMil-
lan, Basingstoke, 2006, e “Massai eviction:
Tanzania is repeating Kenya colonial past”
[Expulsão massai: Tanzânia repete o passa-
do colonial do Quênia], The Star, Nairóbi,
6   G
25 jul. 2022.
 uillaume Blanc, L’invention du colonialisme
vert [A invenção do colonialismo verde],
Flammarion, Paris, 2022.
7   Disponível em: Statista.com.
8   Ismael Selemani, “Indigenous knowledge and
rangelands biodiversity conservation in Tanza-
nia: success and failure” [Conhecimento indí-
gena e conservação da biodiversidade das
pastagens na Tanzânia: sucessos e fracas-
sos], Biodiversity and Conservation, v.29, 14
dez. 2020. Disponível em: link.springer.com.
9   C f. John Mbaria, “Game Carnage in Tanzania
alarms Kenya” [Jogo de carnificina na Tanzâ-
nia alarma o Quênia], The East African, Nairó-
bi, 4 fev. 2002, e “The killing fields of Lolion-
do” [Os campos da morte de Loliondo].
Disponível em: massaierc.org.
10  “Tanzania Human Rights Report 2009: State
of indigenous people: the Massai forceful
eviction” [Relatório de Direitos Humanos da
Tanzânia 2009. Estado dos povos indígenas:
a expulsão forçada do povo massai], jul.
2009. Disponível em: www.humanrights.or.tz.
11  The Citizen, Dar es Salaam, 6 nov. 2017.
32 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

“O SISTEMA DESMORONA DIANTE DE NOSSOS OLHOS”

A roda quadrada
das finanças
A falência do banco californiano Silicon Valley Bank (SVB), em 10 de março,
veio com uma sensação de déjà-vu: Bolsas desabando, pedidos de calma,
resgate de investidores, promessas de investigação. Quer a queda do SVB
arraste ou não o resto da economia, uma coisa já é certa: quinze anos após
a falência do Lehman Brothers, parece estar tudo começando outra vez

POR RENAUD LAMBERT, FRÉDÉRIC LEMAIRE E DOMINIQUE PLIHON*

Q
uando um dirigente político in-
siste no óbvio, é porque há moti-
vos para duvidar. De modo que
ouvir o ministro francês da Eco-
nomia e Finanças, Bruno Le Maire, ex-
plicar, no dia 13 de março, que “estava
tudo bem” com os bancos franceses,
após a falência de mais um banco nos
Estados Unidos, provavelmente “con-
tribuiu para convencer” os agentes do
mundo financeiro a se precipitar so-
bre os canais de resgate.
Três dias antes, os Estados Unidos
passavam pela maior falência bancá-
ria desde 2008: a do Silicon Valley Bank
(SVB), instituição especializada no fi-
nanciamento de start-ups. Após um fim
de semana de negociações das autorida-
des políticas e monetárias do país, todos
os olhares se voltaram para o “planeta
finanças” com medo de tremores secun-
dários. Diante das câmeras, o ministro
francês esforçava-se para inspirar con-
fiança e serenidade. No entanto, seu sor-
riso estava crispado: “Tenham calma!”,
disse aos investidores, “Acalmem-se e
observem a realidade. A realidade é que
o sistema bancário francês não está ex-
posto. Não há ligação entre as [...] situa-
ções” da França e dos Estados Unidos.
E a autoridade francesa concluiu, como
um bombeiro que segura uma man-
gueira cuspindo querosene: “Não há
nenhum risco para os bancos franceses”.
Enquanto uma onda de pânico tu-
multuava as Bolsas de Valores em todo
o mundo, os líderes políticos davam as
explicações de costume. Em primeiro
lugar, o SVB não era um banco como os
outros. “Não era a atmosfera típica de
Wall Street, a atitude dura, as mangas
arregaçadas. Trabalhar no SVB parecia
mais com trabalhar em uma empresa do
setor de tecnologia do que em um ban-
co”, explicou um ex-funcionário da ins-
tituição ao Financial Times.1 Em outras
palavras, como o SVB tinha uma cultura
diferente daquela que marca os bancos
comuns, suas dificuldades necessaria-
mente poupariam as demais institui-
ções. Infelizmente, quando o artigo do
Financial Times foi publicado, a queda
do SVB já tinha obrigado o Banco Cen-
tral da Suíça a intervir para evitar que o
Crédit Suisse – um banco perfeitamente
tradicional – implodisse.
E a segunda forma de explicação da
crise: ela seria resultado do comporta-
mento condenável de indivíduos cujos
ombros parecem ser tão largos como os
de Atlas. Em 2008, o trader Jérôme Ker-
viel e o financista Bernard Madoff encar-
naram, aos olhos da mídia, os “desvios”
de um sistema imaculado. Poucos dias
após a falência do SVB, a justiça dos Es-
tados Unidos abriu um inquérito contra
os dirigentes da empresa, enquanto o
banco central do país, o Federal Reserve
(Fed), anunciava um exercício de intros-
pecção destinado a compreender “como
tinha deixado o banco quebrar”.2
CONTORÇÕES IDEOLÓGICAS
O mais provável é que os resultados des-
sas investigações façam menos barulho
do que seu anúncio. Porque, enquanto
os especialistas se dilaceram – haverá
contágio? Será um novo 2008? –, os lí-
deres norte-americanos e europeus fo-
gem da constatação mais importante:
seja amanhã, seja mais tarde, uma nova
grande crise vai se tornar possível, para
não dizer inevitável. Não por “disfun-
ções” periféricas do sistema, mas por
causa de desequilíbrios próprios de seu
funcionamento rotineiro, os quais colo-
cam os bancos centrais, ponto de crista-
lização de todas as contrações do siste-
ma, na posição de operadores encarre-
gados de fazer girar uma roda quadrada.
Ocupando a 16ª posição na lista dos
bancos norte-americanos, o SVB sucum-
biu a um evento bastante banal na histó-
ria das falências bancárias: um bank run,
ou seja, um saque maciço e concentrado
por parte dos clientes ao qual não foi ca-
paz de responder. Contudo, ocorre que
as malhas do sistema bancário agora se
tecem tão apertadas que um evento ba-
nal ameaça toda a estrutura. Por medo
de contágio, as autoridades monetárias
resolveram fechar o SVB e mobilizar US$
160 bilhões em empréstimos para aten-
der a eventuais necessidades de outros
estabelecimentos, a fim de tranquilizar
seus correntistas. A isso se unem duas
medidas excepcionais: a garantia de to-
dos os depósitos do SVB – ao passo que
a garantia federal está normalmente li-
mitada a US$ 250 mil – e a adoção pelo
Fed de um novo mecanismo de financia-
mento de emergência, o Bank Term Fun-
ding Program (BTFP).
Especializado no financiamento, ar-
riscado por natureza, de start-ups, o SVB
aproveitou o entusiasmo pelo setor de
tecnologia durante a pandemia de Co-
vid-19. O banco investiu o abundante
caixa à sua disposição em obrigações (ou
títulos de dívida) de longo prazo pouco
arriscadas, sobretudo títulos do Tesouro
dos Estados Unidos. Entretanto, a partir
de 2022, a situação no setor de tecnolo-
gia mudou, e as start-ups passaram a ter
dificuldades para arrecadar fundos. Essa
dificuldade pode ser explicada especial-
mente pelo questionamento da política
acomodatícia do Fed, que há tempos
mantém suas taxas básicas de juros em
um patamar muito baixo. O fluxo de li-
quidez foi secando gradativamente, com
seis aumentos sucessivos dessas taxas,
que passaram de 0% a 4,75% em cerca
de um ano. E as start-ups então sacaram
seus depósitos do SVB.
Para fazer frente a esses saques gran-
des e imprevistos, o SVB precisou ven-
der com urgência os títulos que havia
acumulado. O problema: seu valor havia
derretido com o aumento das taxas de
juros. O princípio é bem conhecido nos
mercados obrigacionistas (onde são ne-
gociados títulos de dívida). Quando as
taxas de juros sobem, os novos títulos
emitidos são mais lucrativos do que os
antigos, cujo preço cai automaticamen-
te na revenda nos mercados. Constatan-
do as perdas significativas na revenda
dos títulos, da ordem dos US$ 2 bilhões,
os clientes perderam a confiança no SVB
e apressaram-se em sacar seus depósi-
tos – precipitando a falência do banco.
A imprudência das autoridades norte-
-americanas vinha redobrada desde que
elas reduziram o escopo, já limitado, dos
requisitos de supervisão bancária herda-
dos da crise financeira de 2008. Em 2018,
o governo de Donald Trump decidiu ele-
var de US$ 50 bilhões para US$ 250 bi-
lhões o limite a partir do qual um banco
fica sujeito a uma supervisão reforçada.
O SVB estava abaixo desse limite, por isso
desapareceu do radar das autoridades...
No entanto, a queda dessa instituição
também coloca em evidência a respon-
sabilidade dos banqueiros centrais.3
Desde o retorno da inflação, durante o
ano de 2021, eles enfrentam um dilema.
Depois de terem por muito tempo bai-
xado as taxas de juros a fim de reanimar
a atividade econômica, após a crise do
subprime e da Covid-19, eles passaram
a elevá-la com o objetivo de combater a
inflação, o que revela um erro de diag-
nóstico: as principais causas da inflação
recente não são monetárias, mas estru-
turais. Elas decorrem da reorganização
das cadeias de valor, do aumento dos
preços da energia e da situação geopo-
lítica. Além disso, ao aumentarem as
taxas básicas de juros, as autoridades
monetárias caíram no mesmo erro co-
metido durante a crise financeira de
2008: subestimaram o impacto da políti-
ca monetária na estabilidade do sistema
bancário e financeiro.
Contudo, todo mundo sabia que o
aumento das taxas de juros represen-
taria desafios significativos para atores
politicamente muito mais poderosos
do que os eleitores: os investidores,
cujas carteiras foram impulsionadas
por anos de dinheiro fácil. Operar uma
subida brusca das taxas de juros amea-
çou privar o setor da liquidez da qual
ele se tornou dependente.4 Até março

Traders, na Bolsa de Valores de NY, avaliam ações da Houlihan Lokey, assessora das falências da Enron e Lehman Brothers
de 2023, o Fed ainda considerava a in-
flação o mais ameaçador dos perigos. A
falência do SVB pode fazê-lo reconsi-
derar suas opções. E elas são duas: con-
tinuar no caminho do aperto, apesar do
aumento do risco de instabilidade, ou
iniciar uma “pausa”, se não uma queda
nas taxas, evitando colocar em dificul-
dade novos atores financeiros. Tudo
indica que as nuvens que escurecem o
horizonte no compartimento bancário
da economia vão levá-lo a optar pela
segunda alternativa.
O Fed também já travou a redução de
seu balanço, parte essencial do aperto
monetário que ele havia começado com
a venda de títulos inicialmente adqui-
ridos para garantir a estabilidade dos
mercados financeiros. Em coordenação
com a agência federal responsável pela
garantia dos depósitos e com o Tesouro
dos Estados Unidos, ele reabriu a tornei-
ra da liquidez para socorrer os bancos
afetados pela queda do SVB. Resultado:
US$ 164,8 bilhões foram tomados de
empréstimo do Fed entre a quinta-fei-
ra, 9 de março, e a quarta-feira, 15 de
março – mais que o recorde do fim de
setembro de 2008 (US$ 111 bilhões). Em
quatro dias, o novo dispositivo de finan-
ciamento de emergência do BTFP já era
de US$ 11,8 bilhões. Segundo o banco
JPMorgan, o montante de liquidez for-
necido pelo BTFP poderia chegar a US$
2 trilhões.5 Em 15 de março, os emprés-
timos de emergência já haviam anulado
a metade da redução do balanço do Fed.
Mais uma vez, as autoridades optam
por apoiar, “custe o que custar”, os in-
vestidores. Ao fazê-lo, alimentam uma
das ameaças que há muito pairam sobre
a economia mundial: a do estouro de
bolhas especulativas infladas pela liqui-
dez injetada pelos bancos centrais desde
2015 como parte de suas chamadas polí-
ticas “não convencionais”.
Tudo isso à custa de contorções políti-
cas e ideológicas cada vez mais descon-
fortáveis. De maneira cada vez mais fre-
quente, e para garantir um pouco mais
a sobrevivência de um sistema insusten-
tável, as autoridades políticas e monetá-
rias são obrigadas a encontrar soluções
para as recorrentes crises do sistema
em uma caixa de ferramentas que elas
execram: a da ação pública. E, com isso,
desferir um golpe em todos os princí-
pios que defendiam como garantia do
funcionamento “ótimo” da economia.
Após a crise do subprime, as políticas
“não convencionais” adotadas pelos
bancos centrais destinam-se a inundar
de liquidez o mercado e o setor financei-
ro: uma operação, contudo, proibida nos
livros de economia ortodoxa. A partir de
2021, ansioso em garantir a coesão de
uma zona do euro ameaçada pela crise
da dívida soberana de 2010-2011 e de-
pois pela da Covid, o Banco Central Eu-
ropeu administrou, sem jamais assumir
isso institucionalmente, as taxas de juros
das dívidas soberanas do bloco europeu,
colocando em questão, na prática, o
dogma da “neutralidade do mercado”.
ECONOMIA ADMINISTRADA
Nessa área, a crise do SVB trouxe sua
parcela de inovação. Para contar com o
financiamento nas condições preferen-
ciais estabelecidas pelo Fed, os agentes
ABRIL 2023
© Brendan McDermid/Reuters
financeiros geralmente precisam forne-
cer como garantia títulos considerados
de alta qualidade (baixo risco), como
títulos do Tesouro dos Estados Unidos
ou títulos de dívida de grandes empre-
sas. Isso se chama “colateral”. Os agentes
obtêm liquidez até o valor de mercado
dos títulos dados como garantia. Agora,
com o novo dispositivo de financiamen-
to emergencial, a regra mudou. Desta
vez, o Fed está aceitando os títulos em
garantia em seu valor inicial (ou nomi-
nal), uma completa contradição com a
ortodoxia dos banqueiros centrais e que
remete menos ao livre mercado do que
a uma economia administrada. Porém,
era preciso tornar indolor, por meio de
uma criação monetária ex nihilo, a des-
valorização dos títulos obrigacionistas
provocada pela alta das taxas, que está
na origem da falência do SVB e ameaça
muitos outros agentes financeiros im-
prudentes que não conseguiram prever
adequadamente o aperto monetário.
Sinal de febre nas finanças globais, a
crise bancária norte-americana logo se
traduziu em um pânico no mercado de
ações que afetou os bancos europeus. As
preocupações inicialmente se concen-
traram no Crédit Suisse, já em dificulda-
de, que figura na categoria dos bancos
sistêmicos, aqueles considerados too
big to fail (grandes demais para falir),
estreitamente interconectados às finan-
ças globais. No entanto, o Banco Central
Europeu afirmou, em 16 de março, a
manutenção da alta de suas taxas pre-
vista para o dia, expressando também
suas incertezas quanto ao futuro: “Não
é possível determinar neste momento
Le Monde Diplomatique Brasil 33
qual será o caminho a seguir”, explicou
a presidenta da instituição, Christine La-
garde.6 Tal pirueta não consegue enco-
brir as divergências de opinião cada vez
mais flagrantes, no seio do Banco Cen-
tral Europeu e do Fed: de um lado, os
“falcões”, preocupados com a luta con-
tra a inflação; de outro, aqueles que se
inquietam com as consequências da alta
das taxas de juros sobre a estabilidade fi-
nanceira. Essas divergências refletem os
conflitos de objetivos do Banco Central
Europeu, entre estabilidade monetária
e estabilidade financeira. A escolha de
manter a elevação das taxas de juros não
é um bom presságio para a estabilidade
do sistema bancário europeu.
Desde a crise de 2008, as autoridades
monetárias dos Estados Unidos e da
União Europeia parecem envolvidas em
uma corrida desenfreada, que a falência
do SVB veio acelerar: assumir de manei-
ra cada vez mais profunda os danos cau-
sados pela incúria dos agentes financei-
ros e dos seguros, sem contrapartidas de
seus riscos, mesmo que isso signifique
afastar-se da ortodoxia de mercado que
eles normalmente prometem defender.
Esse paradoxo não escapou ao gerente
de fundos especulativos norte-america-
no Kenneth Griffin: “Os Estados Unidos
deveriam ser uma economia capitalista,
e eis que tudo desmorona diante de nos-
sos olhos”.7 A observação também pode-
ria se aplicar à Europa. 
*Renaud Lambert  é jornalista do Le Mon-
de Diplomatique ; e Frédéric Lemaire e Do-
minique Plihon são, respectivamente, eco-
nomista e professor emérito da Universidade
Sorbonne Paris Nord, bem como membros
do Conselho Científico da Associação para
a Taxação das Transações Financeiras para
a Ajuda aos Cidadãos (Attac).
1   T abby Kinder e Antoine Gara, “‘It is not cut-
-throat like Goldman Sachs’: SVB’s culture in
focus” [“Não é cruel como o Goldman Sa-
chs”: a cultura do SVB em foco], Financial Ti-
mes, Londres, 16 mar. 2023.
2   Brian Quarmby, “US Fed faces internal probe
over Silicon Valley Bank failure” [Fed enfrenta
investigação interna sobre falência do Silicon
Valley Bank], 14 mar. 2023. Disponível em:
cointelegraph.com.
3   Jean-Marie Harribey, Esther Jeffers, Pierre
Khalfa, Dominique Plihon e Nicolas Thirion,
Les Banques centrales, apprentis sorciers à la
manœuvre [Bancos centrais, aprendizes de
feiticeiro em ação], Textual/Les partis pris de
la fondation Copernic, Paris, 2023.
4   Frédéric Lemaire, “Pouvoir d’achat, emploi...
Faut-il craindre l’inflation?” [Poder de compra,
emprego... Precisamos ter medo da infla-
ção?], Le Monde Diplomatique, mar. 2022.
5   “ Les banques américaines ont emprunté 165
milliards de dollars à la Fed en une semaine”
[Bancos dos Estados Unidos pegaram em-
prestados US$ 165 bilhões do Fed em uma
semana], Les Échos, Paris, 17 mar. 2023.
6   “ François Villeroy de Galhau écarte le spectre
d’une crise financière en Europe” [François
Villeroy de Galhau dissipa o espectro de uma
crise financeira na Europa], 17 mar. 2023.
Disponível em: latribune.fr.
7   Harriet Agnew, “US capitalism is ‘breaking
down before our eyes’, says Ken Griffin” [O
capitalismo dos Estados Unidos está “desmo-
ronando diante de nossos olhos”, diz Ken Grif-
fin], Financial Times, 13 mar. 2023.
34 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023

UMA PROPOSTA PARA SECAR O MEDITERRÂNEO

Atlantropa, o ancestral dos ainda é possível prevenir a imobilização

e a bolchevização do leste.” Sörgel con-
tatou Benito Mussolini, mas este recu-

grandes projetos inúteis

sou a ideia de secar os portos italianos.
Em uma obra publicada em 1938 e opor-
tunamente introduzida por uma citação
de Adolf Hitler extraída de Mein Kampf,
ele descrevia um mundo dominado por
três grandes potências, a América, a Ásia
A utopia da paz universal muitas vezes estimulou a imaginação de personalidades e Atlantropa, da qual a Itália fascista e a
excêntricas e deu origem a projetos insanos, como o projetado pelo arquiteto grande Alemanha seriam os pilares. Em
contato com o escritório nazista de or-
alemão Herman Sörgel no fim da década de 1920, que impressiona pela ambição ganização do território, ele promoveu
faraônica e sua fé ilimitada na tecnologia: criar artificialmente um continente sem sucesso seu sonho eurafricano para
eurafricano sob domínio europeu e secar parcialmente o Mediterrâneo um regime mais interessado na submis-
são do leste.2 Em 1943, a Gestapo, cansa-
da de suas excentricidades, acabou por
POR PIERRE RIMBERT* proibir qualquer publicação sua; assim
que a rendição foi assinada, o arquite-
to virou a casaca e tentou convencer os

C
om um monóculo sobre o olho
direito, terno com colete e porte
altivo, Herman Sörgel não pare-
cia um palhaço. O nome desse ar-
quiteto expressionista alemão, no en-
tanto, permanece associado a uma das
mais delirantes utopias energéticas e
geopolíticas do século XX. Exposta pu-
blicamente no fim dos anos 1920, ela ti-
nha como objetivo nada menos que se-
car parcialmente o Mar Mediterrâneo
com a construção de uma série de bar-
ragens hidrelétricas gigantes nos es-
treitos de Gibraltar, Bósforo e Sicília, e
na foz do Rio Nilo. E então o grande de-
sejo de Sörgel se tornaria realidade: re-
unir a Europa e a África colonizada em
uma única entidade geográfica e políti-
ca batizada de Atlantropa.
A ideia pareceu evidente ao arquiteto
em 1927 quando ele leu uma obra de
geografia que descrevia o Mediterrâ-
neo como um mar de evaporação: se
o Estreito de Gibraltar fosse obstruído,
cimento elétrico infinito transportado
por linhas de alta-tensão, os males da
Europa ligados à falta de espaço vital,
de superfícies cultiváveis e de energia
estariam eliminados para sempre. Uma
ferrovia ligando Berlim à Cidade do
Cabo simbolizaria a unidade do novo
continente, cuja força repousaria na
produção de corrente elétrica: sozinha,
a barragem de Gibraltar desenvolveria
uma potência de 50 mil megawatts, ou
seja, o equivalente atual a trinta reato-
res nucleares do tipo EPR. Convencido
de que “as reservas de carvão e de pe-
tróleo estarão esgotadas dentro de du-
zentos a trezentos anos”, Sörgel exorta-
va seus contemporâneos a desenvolver
a produção de energias alternativas.
“Se a Europa não quiser ser ultrapas-
sada pelos outros continentes, ela deve
desenvolver a tempo sua única grande
fonte de energia, ou seja, o Mar Medi-
terrâneo”, prevenia o arquiteto; caso
contrário, “a centralidade cultural da
Europa vai desaparecer. O Velho Conti-
nente vai se tornar um deserto, perder o
fôlego e se reduzir, no melhor dos casos,
a uma cultura ossificada como o Egito
ou a Índia contemporânea”. Familiar ao
filósofo Oswald Spengler, Sörgel resumia
a alternativa que os dirigentes europeus
deveriam escolher naquele momento:
“Ou o declínio do Ocidente, ou Atlantro-
pa como mudança e novo objetivo”.
No fim dos anos 1930, o arquiteto ten-
tou reformular sua utopia pós-nacional
e pacifista em um sentido mais compatí-
vel com a ideologia do Terceiro Reich. O
esforço necessário não era especialmen-
te colossal, ainda mais porque o autor se
mostrou pouco sensível às ideologias
progressistas que agitavam boa parte da
Europa. “A integração da África no círcu-
lo cultural ocidental permite hoje que se
domine a raça negra”, escreveu em 1932.
“Reforçando a Europa pela Atlantropa,
Aliados do interesse de seu projeto.
Se hoje em dia a promoção obsessiva
de um elefante branco desse nível con-
duziria seu autor a uma consulta psi-
quiátrica, Herman Sörgel recebeu uma
acolhida bem entusiasmada quando
começou, em 1928, a inundar o mundo
com flyers, livretos, cartazes, exposições
itinerantes, obras e artigos sobre Atlan-
tropa. Misturando pedagogia e estéti-
ca, o livro-manifesto Atlantropa estava
cheio de diagramas, mapas desdobrá-
veis, infográficos e esboços fascinantes.
Sörgel de fato contatou os maiores inte-
lectuais do planeta (ele se correspondeu
com Albert Einstein, que o fez perceber
em 1929 que a água salgada que ele pla-
nejava bombear para irrigar o deserto
não era adaptada para a agricultura...)3
e arregimentou arquitetos renoma-
dos, como Erich Mendelsohn e Peter
Behrens, que desenhou a torre de 400
metros que deveria se erguer sobre Gi-

© Jon Nazca/Reuters
como foi o caso quando de movimen-
tos tectônicos do passado, o aporte hí-
drico dos rios não seria suficiente para
compensar a seca e o nível abaixaria ra-
pidamente. “Os humanos só precisam
terminar esse trabalho da natureza”,
explicou Sörgel na obra em que revelou
ao mundo seu projeto.1 Na falta de um
cataclismo que uniria a África e a Euro-
pa, o visionário iria construir uma bar-
ragem. Evaporando na velocidade de
1 metro por ano, o mar comum se divi-
diria – em um ou dois séculos – em duas
bacias, uma a oeste da Sicília, cujo nível
estaria 100 metros abaixo do Oceano
Atlântico, e o outro a leste, estabilizado
100 metros mais abaixo ainda.
Além disso, por que interromper um
caminho tão bom? Mais ao sul, Sörgel
previu a instalação de outras barragens
gigantes no Rio Congo, a criação de dois
mares artificiais, assim como a exten-
são da superfície do Lago Chade com
o objetivo de refrescar o clima africano
e irrigar o Saara. Com o espaço ganho
pela evaporação do Mediterrâneo, a
produção de cereais alimentada pela ir-
rigação da África do Norte e um abaste- Sörgel queria secar parcialmente o Mediterrâneo com construção de barragens hidrelétricas nos estreitos de Gibraltar

braltar como um farol. Seu colega Fritz
Höger imaginou a “Atlanthopahause”, o
quartel-general de Atlantropa, dotado
de duas torres ligadas entre si, para o
qual Sörgel previu o funcionamento nos
mínimos detalhes, assim como a atri-
buição dos escritórios. Outras obras pla-
nejavam o futuro modificado das gran-
des cidades portuárias – Gênova, Mar-
selha, Veneza, Argel, Porto Saíde – agora
distantes da costa. Inicialmente cético,
o engenheiro suíço Bruno Siegwart se
implicou completamente em uma re-
configuração hidrológica da África que
deveria se estender por... 133 anos.
Do New York Times ao Ici Paris, a im-
prensa ocidental, seduzida pelo carisma
de Sörgel, ofereceu a Atlantropa uma
poderosa caixa de ressonância. Apenas
entre 1929 e 1933, os jornais em língua
alemã consagraram 450 artigos ao as-
sunto (frequentemente escritos pelo
próprio Sörgel ou por seus colaborado-
res...). Para vender seu futuro aos deciso-
res e investidores, o arquiteto organizou
uma propaganda multimídia que faria
Elon Musk empalidecer de inveja. Nos
anos 1930, uma dezena de romances
evocavam de perto ou de longe Atlan-
tropa, entre os quais Amadeus, assinado
pelo célebre escritor suíço John Knittel.
Traduzida em seis línguas e tendo ven-
dido mais de 1 milhão de exemplares no
mundo, a obra descrevia o amor con-
trariado de um engenheiro e de uma
pianista que celebravam, não sem certo
didatismo, o projeto de Sörgel. Tendo se
tornado um clássico da ficção científica,
A Guerra das Salamandras (1936), do
autor tcheco Karel Capek, também reto-
mava o grande projeto do arquiteto.
Preocupado em utilizar os melhores
meios de comunicação para atingir uma
audiência ampla, Sörgel organizou em
1933 um concurso de roteiros para a
realização de um filme de propaganda
que ele acabou escrevendo sozinho em
1948. Ainda que o roteiro rico em com-
plôs evitasse a armadilha de uma com-
plexidade inútil – segundo a revista Der
Spiegel (13 mar. 1948), “o filme termina
com a criação de Atlantropa e a vitória
dos oponentes. Vastas paisagens ensola-
radas, a Terra benta, as crianças cantam,
a bandeira de Atlantropa flutua” –, o lon-
ga-metragem nunca veio a ser rodado.
Nesse meio-tempo, para desgosto de
Sörgel, o diretor Anton Kutters filmou a
versão catástrofe de Atlantropa, na qual
a destruição da barragem de Gibraltar
engolia a nova civilização e ridiculariza-
va seu inventor (Ein Meer versinkt, 1936).
Autopromotor incansável, Sörgel escre-
veu também um libreto em versos para o
coro de uma hipotética “sinfonia Atlan-
tropa”, realizou diversos documentários
médias-metragens traduzidos em várias
línguas, além de programas de rádio, fez
muitas conferências, editou um jornal
para apoiar seu projeto (Die Atlantropa-
-Mitteilungen) e criou em Munique um
instituto dedicado à causa.4
Espelho de um mundo ocidental em
que as angústias de decadência, a fé tec-
nológica, a estética vanguardista e uma
predileção pelas soluções radicais se
entrechocavam entre as duas guerras,
Atlantropa propunha uma nova ordem
mundial pacificada, fundada na coloni-
zação e na ciência. Como nota o histo-
riador Philipp Nicolas Lehmann, “Sörgel
considerava seu projeto uma força revo-
lucionária que reorganizaria e reestru-
turaria a Europa não apenas no plano
físico, mas também nos planos social
e político. Atlantropa deveria se tornar
‘uma nova forma de vida para a Euro-
pa’, que uniria as nações belicosas do
continente e reorientaria suas energias,
desperdiçadas em guerras internas, para
um grande projeto de colaboração”.5 Fo-
ram raros os contemporâneos de Sörgel
que rejeitaram seu projeto como irrea-
lista ou aberrante: o Canal de Suez tinha
apenas sessenta anos, Fritz Lang fasci-
nava multidões em 1927 com seu filme
vanguardista Metrópolis, a administra-
ção Roosevelt multiplicava desde 1933
as grandes barragens no Vale do Tennes-
see em nome do New Deal, e as linhas
modernistas dos planos soviéticos de
organização do território inspiravam a
imaginação do público.
Sörgel morreu no Natal de 1952, em
um acidente de bicicleta em Munique.
Com a Guerra Fria instalada, a energia
nuclear relançou pouco a pouco o pa-
pel de vanguarda tecno-energética das
obras hidrelétricas no imaginário popu-
lar, e as guerras de libertação na África
desmonetizaram logo depois as utopias
coloniais. Privado de seu principal em-
baixador, Atlantropa, que por fim só
existiu em obras de ficção, desapareceu
do espaço público. Outras ocupariam
seu lugar: a era dos grandes projetos
inúteis estava apenas começando...  vem essa padronização, essa uniformi-
*Pierre Rimbert  é jornalista do Le Monde
Diplomatique.
1   H erman Sörgel, Atlantropa , Fretz & Wasmuth,
Zurique / Piloty & Loehle, Munique, 1932. Se
não houver nota contrária, as citações seguin-
tes são extraídas dessa obra.
2   Alexander Gall, Das Atlantropa-Projekt. Die
Geschichte einer gescheiterten Vision. Her-
man Sörgel une die Absenkung des Mittelmers
[O projeto Atlantropa. A história de uma visão
fracassada. Herman Sörgel e o naufrágio do
Mediterrâneo], Campus, Frankfurt, 1998.
3   Ricarda Vidal, “Atlantropa: One of the Missed
Opportunities of the Future” [Atlantropa: uma
das oportunidades perdidas do futuro]. In: Ri-
carda Vidal e Ingo Cornils, Alternative Worlds:
Blue-Sky Thinking since 1900 [Mundos alter-
nativos: pensando invenções desde 1900],
Peter Lang, Oxford, 2014.
4   Wolfgang Voigt, Weltbauen am Mittelmeer. Ein
Architektentraum der Modern [Construindo o
mundo no Mediterrâneo. O sonho de moderni-
dade de um arquiteto], Dölling und Galitz,
Hamburgo, 1998; e Alexander Gall, op. cit.
5   Philipp Nicolas Lehmann, “Infinite Power to
Change the World: Hydroelectricity and Engi-
neered Climate Change in the Atlantropa Pro-
ject” [Energia infinita para mudar o mundo:
hidreletricidade e mudança climática projeta-
da no projeto Atlantropa], The American His-
torical Review, Oxford, v.121, n.1, fev. 2016.
ABRIL 2023
LETRAS
A literatura, um
produto a mais
Ao observarmos a profusão de livros publicados,
acreditamos prontamente que o leitor tem a escolha
– uma escolha na verdade muito limitada. Porque, se
as “marcas” (esse é o termo usado) que os publicam
parecem diversas, elas pertencem esmagadoramente
a poucos grandes grupos. E as obras oferecidas, na
maioria das vezes, cabem em caixas claramente
identificáveis pelo consumidor
POR HÉLÈNE LING E INÈS SOL SALAS*
H
á mais de trinta anos, as pratelei-
ras saturadas das livrarias prati-
camente só se diferenciam pelos
romances destinados ao suces-
so: assinados por sobrenomes conheci-
dos, ou envolvidos por fitas como pre-
sentes com um preço de outono. Ora,
esses títulos, que ocupam todo o espa-
ço, não são apenas sinais da superpro-
dução, muitas vezes denunciada e de-
plorada. Sua semelhança marcante
revela antes de mais nada a uniformi-
zação em curso. As práticas de escrever
são cada vez mais codificadas, basea-
das em técnicas de publicidade e inter-
cambiáveis. Aos poucos, a obra literá-
ria foi transformada em um objeto
obsoleto, com conteúdos esperados e
linguagem achatada – inclusive no aca-
demicismo da trivialidade. De onde
zação do horizonte coletivo? É proble-
ma do público, ótimo cliente? Da su-
posta “democratização da literatura”?
Das políticas editoriais?
Apesar de seu status simbólico, a li-
teratura jamais ficou longe da história
econômica. Sob o bastão de conglome-
rados da indústria e da comunicação, o
mundo da edição passou por uma longa
série de reestruturações.1 Desde os anos
1990, o duplo fenômeno de superprodu-
ção e de concentração atinge totalmen-
te a França. Atualmente, quatro grandes
grupos (Hachette Livre, Éditis, Media
Participation e Madrigall) dominam três
quartos do mercado, em um jogo de fu-
sões sempre instável. Quando, em 2022,
os jurados do Prêmio Goncourt [de livro
do ano] tiveram o cruel dilema de esco-
lher entre Vivre vite [Viver rapidamente],
de Brigitte Giraud, e Le Mage du Kremlin
[O mago do Kremlin], de Giuliano da
Empoli, os autores ficaram, sem dúvida,
um pouco tensos; no entanto, suas edi-
toras estavam nitidamente menos, uma
vez que ambas – Flammarion, no caso
da primeira, Gallimard no do segundo
Le Monde Diplomatique Brasil 35
– pertencem à mesma editora matriz,
a Madrigall. No entanto, os dois títulos
em disputa testemunham sobretudo o
que deve ser a literatura a ser premia-
da. Ambos têm gêneros comprovados:
uma autoficção, narrativa íntima sobre
um luto; o outro é um livro da atualida-
de “desvendando”, segundo o editor, “os
bastidores da era Putin”. Duas categorias
que fazem sucesso. Le Mage é vendido
extraordinariamente. Vivre vite, que fi-
nalmente venceu o Prêmio Goncourt
2022, já é objeto de diversas propostas
de adaptação para o cinema. Existem
também, é óbvio, as viagens neoexóticas
de Sylvain Tesson ou os romances úteis,
L’Élégance du hérisson [A elegância do
ouriço], de Muriel Barbery, ou Je vais
mieux [Estou melhor], de David Foen-
kinos. Contudo, independentemente de
sua declinação genérica, o livro que sa-
tura o espaço das livrarias nunca é mais
do que simplesmente um “apêndice do
império do entretenimento e da mídia”,
segundo a expressão de André Schiffrin.
Quando se observa o outro lado da
questão, é no campo da recepção que
se trava outra batalha nessas mesmas
décadas. Para chamar uma atenção
cada vez mais dispersa, sempre mais
solicitada, as indústrias culturais im-
põem seus formatos – stream, threads,
story – nas redes sociais. O que, a partir
de então, se denomina “ficção” realiza
a integração do romance, da narrativa
e do longa-metragem na indústria da
informação e do entretenimento. Ela
poderá se desdobrar sucessivamente
em filmes, séries e jogos. Na cadeia de
produção de “conteúdos” multimídia, o
livro é apenas um elemento. Reduzida
a uma “história”, muitas vezes inspirada
em “fatos reais”, fortalecida por emo-
ções fortes e na maior parte das vezes
provedora de um final feliz, a ficção está
destinada a ser adaptada pela Netflix ou
por outra plataforma, fonte de maior
notoriedade e vendas.
36 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
A evolução das estruturas tecnoeco-
nômicas e a pressão pela rentabilidade
e pelo sucesso transformaram, assim,
rapidamente as próprias práticas literá-
rias – suas disputas (sempre políticas) de
forma e de linguagem, com a competi-
ção das grandes editoras, críticos, mídia,
políticas públicas. Mesmo as vozes que
se apresentam como rebeldes podem ser
recuperadas. Virginie Despentes, identi-
ficada como punk e dissidente, partici-
pou assim, em 2013, de uma coletânea
inspirada em notícias públicas, La Malle
[A mala], para a editora Vuitton, que, na
época, tinha recentemente se unido ao
capital da Gallimard, editora da obra.
Em 2015, Despentes foi membro do júri
do Prêmio Fémina. Em 2016, ela entrou
para a Academia Goncourt. Em 2022,
com Cher Connard [Caro Connard], ela
se beneficiou de um plano de promoção
midiático que não deixou nada a desejar
ao mais consensual dos best-sellers. De
maneira geral, a posição crítica diante
do mercado costuma se tornar um pro-
duto para o grande público ou para um
nicho, o que acaba neutralizando qual-
quer efeito que faça sentido.
Do mesmo modo, tornaram-se con-
fusas as referências, as categorias im-
plícitas da aceitação. As obras de David
Foenkinos foram publicadas na Col-
lection Blanche [Coleção Branca] da
Gallimard – que sempre desfruta de re-
putação –; as considerações mundanas
de Jean d’Ormesson tiveram a honra
de ser publicadas pela Pléiade, ao lado
de Claude Simon, Jules Vallès, André
Breton... Esse novo consenso foi citado
tanto pelo romancista de sucesso Marc
Lévy como pelo comerciante Michel-É-
douard Leclerc, que abriu em seus gran-
des supermercados “Espaços culturais”.
O que foi batizado de “democratização”
da cultura designa, na realidade, uma
diversidade pseudodemocrática, que se
tornou inteiramente normal.
Os autores são também submeti-
dos pessoalmente aos imperativos da
rentabilidade do capitalismo tardio. O
escritor se vê obrigado a trabalhar: na
melhor das hipóteses, como ícone do
vedetismo midiático, nos talk shows, à
maneira do buzz e do entretenimento,
como Yann Moix e Christine Angot, que
comandaram a versão televisionada
do espetáculo On n’est pas couché, de
Laurent Ruquier, na emissora France 2;
com mais frequência, como neoprole-
tários em busca de dinheiro e residên-
cias, animam espaços públicos e esco-
lares para sobreviver. A indicação do
livro é enriquecida por um grande nú-
mero de júris e de prêmios – promovi-
dos pela mídia, por revistas, escolhidos
pelo público leitor (em 2022, contamos
com mais de 2 mil: Goncourt des Dé-
tenus [Goncourt dos Presidiários], Prix
des Lecteurs U [Prêmio dos Leitores U],
Prix RTL-Lire [prêmio cuja seleção dos
livros é feita pela rádio RTL e pela revis-
ta literária Lire]). E se organiza um mar-
keting digital muito profissionalizado:
nomes conhecidos se instauram como
verdadeiros símbolos e influenciadores,
como a “Instapoetisa”, Rupi Kaur e a ro-
mancista Tatiana de Rosnay. Já a crítica,
transformada em recomendação, se
enfraquece sob a forma de crônicas de
dois minutos em formato “booktube”,
“bookstagram” ou “booktok”, quando
não se trata simplesmente de palavras
antecedidas de uma hashtag (#). E vai
até as novas pedagogias digitais, que
conseguem dialogar com o Bel-ami, de
Guy de Maupassant, e suas conquistas
no Facebook e em outras redes...
O livro que satura o
espaço das livrarias
nunca é mais do que
simplesmente um
“apêndice do império
do entretenimento
e da mídia”
É nesse panorama global que se in-
serem as próprias práticas de escrever.
Seguindo a tendência geral, elas conver-
gem para as categorias da comunicação,
da atualidade, em uma série de registros
e de estilos reconhecidos. As formas de
pensamento singulares se tornam ra-
© Giorgia Massetani
ras, pois o que aparece como critério de
êxito é o leque da prática padronizada
da linguagem. Assim, desencadeia-se
a volta permanente a formas herdadas
da modernidade, quase como um pas-
tiche, que as transpõem sem de fato
repensá-las: a narrativa neodurassiana
(Ça raconte Sarah [Assim conta Sarah],
de Pauline Delabroy-Allard), o roman-
ce pós-histórico plastificado (L’Été des
quatre rois [O verão dos quatro reis], de
Camille Pascal), o thriller artístico-rea-
lista (Chanson douce [Canção de ninar,
no Brasil], de Leïla Slimani), o folhetim
infinito da autoficção (Le Royaume [O
reino], d’Emmanuel Carrère) etc. Con-
tudo, o que domina há muito tempo
todos eles é a tonalidade neonaturalista,
que supõe pintar a realidade com toda
a transparência. Na verdade, assistimos
a uma renovação do romance como se
fosse uma tese; por exemplo, é o caso
de dois escritores quando tudo a priori
opõe a exploração que fazem de avatares
do desejo. Michel Houellebecq, tirando
partido de sua imagem de multiartista,
desenvolve em sua obra uma obsessiva
fraseologia centrada nas formas do êxo-
do e projetada no declínio do Ocidente.
No outro extremo do espectro, Édouard
Louis (En finir avec Eddy Bellegueule
[Acabando com Eddy Bellegueule] etc.)
parece transcrever o discurso através de
um prisma de teoria sociológica.
Esse mercado do livro produto, que
acabou modelando um gosto e impondo
suas normas, é o oposto de uma verda-
deira democratização da literatura. Em
determinados períodos, essa aspiração
começou a se concretizar, quando uma
parte do povo se apropriou dos impres-
sos, da poesia, como instrumentos de
emancipação e recreação com objetivos
coletivos. Foi o que ocorreu, entre outros
casos, durante tensões em prol de uma
revolução social, como testemunham os
escritos e jornais operários da década de
1840, estudados por Jacques Rancière,2
ou, de forma muito diferente, por oca-
sião do surgimento da contracultura nos
anos 1960-1970. As esperanças de ligar a
experiência estética a uma mudança das
formas de vida foram retomadas, trinta
anos depois, e reduzidas à gestão neo-
liberal da indústria do entretenimento
– o que reforça a canalização da atenção
dada aos algoritmos.
Emancipar-se deles, a partir de então,
como ainda tentam fazê-lo muitos atores
e atrizes desse ambiente – da escrita, da
edição e da livraria independentes –, im-
plicaria uma ruptura profunda e extensa
com a esfera produtiva, que transformou
a criação artística em bens de consumo
culturalizados. Esse viés se impõe a qual-
quer obra vista, hoje, por meio do filtro
e do condicionamento do marketing. O
público é todo o tempo convidado a con-
sumir a cultura, a título de divertimento,
da última moda – ou como “assunto” da
sociedade. Contudo, para se libertar da
linguagem operacional e regulada por
normas, seria preciso encontrar o subs-
trato utópico que permanece no uso
poético da língua, aquele que propicia o
possível, o imprevisto, por meio do traba-
lho dos signos e do jogo de interpretação.
Do lado oposto dessa cadeia de produtos
que, a partir de então, é possível confun-
dir com “os escritos” – os cálculos – de
uma inteligência artificial, seria preciso
recriar, segundo Walter Benjamin, essas
utopias intermitentes, “nas quais alguma
coisa autenticamente nova se faz sentir
pela primeira vez com a serenidade de
uma nova manhã”.3 
*Hélène Ling e Inès Sol Salas  são profes-
soras e coautoras de Le Fétiche et la plume.
La littérature, nouveau produit du capitalisme
[O fetiche e a escrita. A literatura, novo pro-
duto do capitalismo], Rivages, Paris, 2022.
1   C f., de André Schiffrin, L’Édition sans éditeurs
[A edição sem editores], La Fabrique, Paris,
1999, assim como Thierry Discepolo, La Trah-
ison des éditeurs [A traição dos editores],
edição revista e complementada, Agone, Mar-
selha, 2023. Ler também, de Jean-Yves Mol-
lier, “Édition, le tournis des concentrations”
[Edição, a vertigem das concentrações], Le
Monde Diplomatique, out. 2022.
2   Jacques Rancière, La Nuit des prolétaires: ar-
chives du rêve ouvrier [A noite dos proletários:
arquivos do sonho operário], Fayard, Pluriel,
2017 (1. ed. 1981).
3   W alter Benjamin, Paris, capitale du XIXème
siècle. Le Livre des passages [Paris, capital
do século XIX. O livro das passagens], Édi-
tions du Cerf, Paris, 1989.
 ABRIL 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 37

GEOGRAFIA, ESTRATÉGIA E A IMPORTÂNCIA DAS TROPAS

O ataque de Karl XII contra a Rússia

Invadir a terra dos czares e se tornar senhor de Moscou passando pela Ucrânia era o plano do soberano sueco no início
do século XVIII. Por muito tempo, isso foi considerado um erro estratégico; depois, os especialistas em guerra se
convenceram do contrário. No entanto, assim como para outros invasores posteriores, o resultado foi a derrota

POR LIONEL RICHARD*

N
© Domínio público
o século XIX, o geógrafo Conrad
Malte-Brun, criativo e engenho-
so, mantinha com regularidade
uma crônica no Journal de l’Em-
pire. Em 7 de janeiro de 1807, ele fez
uma resenha do Guide des voyageurs en
Europe, que acabara de ser publicado
em Paris, com uma tradução lançada
pela “editora e geógrafa” Hyacinthe
Langlois, instalada na Rue de Seine.1
Seu autor é o alemão Heinrich August
Ottokar Reichard. Desde 1784, ele tinha
se especializado em “guias de viagem”,
novo gênero em voga do qual foi pio-
neiro, antes de ser imitado, e plagiado,
entre outros, pelo editor parisiense Au-
din. Sob o pseudônimo de Jean-Baptis-
te Richard, “engenheiro geógrafo e fun-
cionário dos correios”, Audin publicou
em 1828-1829 o Guide classique du vo-
yageur en Europe, em dois volumes.
Malte-Brun elogiou as descrições e
os comentários de Reichard. Ele tinha
razão, uma vez que, até hoje, seus livros
continuam a ser publicados por toda a
parte e adaptados de diversas manei-
ras. Do Guide des voyageurs en Europe,
ele se interessou particularmente pelas O rei da Suécia, Karl XII, na época um dos soberanos mais poderosos da Europa, se arriscou a enfrentar Pedro, o Grande
páginas sobre a Rússia. Como imaginar,
ele se pergunta, que um país como esse sia, com a intenção de se manter ali”. E da guerra. O jovem rei da Suécia, que certo de si, incapaz de avaliar “a hege-
poderia ser conquistado por um Estado continuou: “Tudo é abundante nessa morreu em 1718, aos 36 anos de idade, monia de conjunturas contrárias”. 
estrangeiro? Em 1708-1709, o rei da Sué- rota. Dos campos de trigo da Volhynia, vítima de uma bala que atravessou sua
cia, Karl XII, na época um dos soberanos passamos para as magníficas pastagens cabeça quando sitiava a fortaleza de *Lionel Richard, historiador, é professor
mais poderosos da Europa, se arriscou a regadas pelo Boristhenes [o Rio Dnie- Fredriksten, no sul da atual Noruega, emérito da Université de Picardie, França.
enfrentar Pedro, o Grande. Durante o in- pre] e, ao subir os rios Seim e Desna, pe- em sua opinião foi uma cópia do intré-
verno de 1709, seu Exército enfraqueceu netramos nas férteis províncias de Orel e pido Alexandre, o Grande. Infelizmente,
diante de um frio terrível. Esgotado, ele de Koursk, que ocupam o primeiro lugar ele subestimou um dado essencial: “Por 1   C onrad Malte-Brun, “‘Guide des voyageurs en
acabou massacrado em Poltava, no cen- entre os celeiros da Rússia. Assim, sem o maior que seja o talento de um general Europe’, par M. Reichard, traduit de l’alle-
mand, 4e édition” [Guia de viajantes na Euro-
tro da Ucrânia, em 8 de julho de 1709. infortúnio que atingiu Lewenhaup,2 o rei em chefe, só muito dificilmente ele pode pa, por Reichard, traduzido do alemão, 4ª edi-
da Suécia era o soberano que tinha o po- alcançar a vitória quando tem de lutar ção], Journal de l’Empire, Paris, 7 jan. 1807.
MAGNÍFICOS PASTOS UCRANIANOS der de decidir a sorte da Rússia em uma contra forças que são o dobro das suas”.3 2   O general Lewenhaup comandava a infantaria
por ocasião da derrota em Poltava em 1709.
“Karl XII esperava dar um golpe no czar, única batalha, cuja vitória o teria levado A primeira biografia cuidadosa de Karl 3   C arl von Clausewitz, Théorie de la grande
o que consolidaria para sempre a liber- até as portas de Moscou”. XII, após a tentativa muito respeitável de guerre [Teoria da grande guerra], tradução
dade do norte”, salienta Malte-Brun. A Nesse ponto, Malte-Brun interrompe Voltaire em 1768,4 foi escrita por um his- do lugar-tenente coronel de Vatry, L. Bau-
doin, Paris, 1889.
derrota teria ocorrido devido a um erro suas considerações. Ele só se vê como toriador alemão de tendência naciona-  oltaire, Histoire de Charles XII, roi de Suède
4   V
de estratégia? Como a maior parte de geógrafo. Não pretende ser especialista lista, Otto Haintz, e somente o primeiro [História de Karl XII, rei da Suécia], dois volu-
seus contemporâneos, era o que pensa- em polemologia, em análise de confli- dos três volumes foi publicado antes da mes, Christophe Revis, Bâle, 1731. Trata-se da
primeira das obras históricas de Voltaire. Ele
va Malte-Brun. Para chegar a Moscou, tos. Ele simplesmente reconhece que, Segunda Guerra Mundial, em 1936. Esse elaborou diferentes edições dela até a de 1768.
Karl XII passou pela Ucrânia, itinerário de acordo com mapas da geografia e em historiador incorpora ao seu prefácio Ver principalmente, de Éric Schnakenbourg,
perigoso, extenuante. Uma rota que le- virtude das experiências dos autóctones, o julgamento de Clausewitz, ao lançar “L’histoire de Charles XII de Voltaire dans une
perspective historique” [A história de Karl XII,
vava à derrota. Porém, “após uma nova a tática de usar a Ucrânia como base de uma advertência velada aos dirigentes escrita por Voltaire, de uma perspectiva históri-
análise das circunstâncias locais” e com apoio quando o objetivo é conquistar nazistas que ambicionavam a “conquis- ca], Dix-Huitième Siècle, Paris, n.1, 2008.
informações obtidas junto a “homens Moscou certamente é conveniente. Ele ta de um espaço vital” no leste.5 “Genial 5   O tto Haintz, König Karl XII, von Schweden
[Rei Carlos XII, da Suécia], tomo 1, “Der Kam-
instruídos nativos da Ucrânia”, nosso não procura explicar a derrota de Karl XII. militarmente, [Karl XII foi] o primeiro pf Schwedens um die Vormacht in Nord- und
geógrafo mudou de opinião. Ele admi- a descobrir com clareza o perigo rus- Osteuropa (1697-1709)” [A luta pela supre-
tiu que Karl XII escolheu “realmente o UM REI GENIAL, MAS PRESUNÇOSO so na Europa no horizonte dos tempos macia da Suécia no norte e leste europeu
(1697-1709)], De Gruyter, Berlim, 1936. Os
caminho mais favorável para fazer uma Quem ousa dar essa explicação é o futuros”, afirma. No entanto, o homem dois tomos complementares foram publica-
invasão que chegasse ao centro da Rús- prussiano Clausewitz, famoso teórico se mostrou presunçoso, extremamente dos em 1951 e em 1958.
38 Le Monde Diplomatique Brasil  ABRIL 2023
MISCELÂNEA
livros
A ACTRIZ
Luís Serguilha,
Kotter Editorial
A Actriz é um romance-poema. Ou poema-roman-
ce. Escapa de tipologias textuais estabelecidas
e, seguramente, renova antigas percepções. Por quê?
Porque a densidade poética do autor Luís Serguilha
ultrapassa as expectativas comuns e banais. Dividi-
do em diversas partes. Não existe linearidade. Cada
parte pode ser lida independentemente de outra. Fe-
cha-se em si mesma. Os aspectos gráficos, dos mais
variados, intensificam a travessia poética proposta
pelo autor: “um resvalo até ao infinito acontece para
atravessar a expressão aiônica porque é no imper-
ceptível que o PALCO-ACTRIZ se torna consistente:
um arrastão sígnico, uma vibração de fendas inédi-
tas, uma pororoca de hiatos, uma cosmicidade bru-
xa______forças fluídicas____o refazer ininterrupto
de tramas, o movimento destruidor de fisionomias, a
alegria do insano que conquista tempo)”.
DOZE DIAS
Tiago Feijó,
Editora Penalux
O jovem escritor cearense Tiago Feijó brinda o leitor
com esse seu novo romance. Uma sinopse sin-
gela do livro nos dá conta de que se trata de ficção
que gira em torno de um pai e um filho que não se
veem há quinze anos, separados por uma indiferença
mútua e persistente, rompida apenas uma vez a cada
ano, quando o pai telefona ao filho para felicitá-lo por
seu aniversário. Mas o acaso tratará de pôr fim a esse
frio afastamento. Certa manhã, o senhor Raul acorda
com uma estranha dor que o impede de se levantar da
cama; sozinho e abandonado, não lhe resta alternativa
senão ligar para o filho e lhe pedir ajuda. Antônio viaja
200 quilômetros com o intuito de levar o pai ao hospi-
tal e retornar à mesmice de sua vida, mas o desenrolar
dos fatos o mantém por doze dias como único acom-
panhante do doente. Doze dias num quarto de hospital,
esses são o local e o tempo.
Avançando um pouco mais na singela sinopse, le-
vantemos a ponta do véu que oculta o cerne da obra e
como ele foi trabalhado pelo autor: o tempo, conjugado
à memória, é a mola mestra desse romance. O desen-
volvimento cronológico, até certa altura pelo menos,
Entretanto, um dos pontos mais fortes desse livro
de 1.040 páginas, que se mostra incomum, brilhante e
paradoxal, é o contínuo entrelaçamento que se faz en-
tre o movimento corporal e reflexões acerca do papel
das diversas linguagens. Tais questões são, inclusive,
remetidas, a todo momento, a recortes epistemológicos
sobre realidade, verdade, hipocrisia, ironia, sistemas de
subserviência e muitos outros que nos afetam direta-
mente. E, muitas vezes, nos aniquilam!
Outro ponto que impressiona no livro é o ritmo. Ser-
guilha possui ritmos velozes. Furiosos. Circulares. Es-
piralados. Entrelaçados. Entrecruzados. Estonteantes.
Quase impossível um leitor não se envolver com as on-
das oceânicas de um livro que nos mergulha em águas
profundas. No entanto, nem sempre claras, transparen-
tes e azuis. Com tal procedimento, o autor nos conduz
a uma atmosfera de desestabilização que somente os
fortes terão a valentia de enfrentar sem passividade.
Durante a leitura da obra, fatalmente somos arre-
messados a uma poesia, por lembrar de Stevens, que
é mais do que uma concepção mental. A poética, como
um todo do romance, é uma verdadeira revelação da
natureza. Extensível a dimensões que ultrapassam con-
cepções e vão diretamente a percepções essenciais.  TEXTO PARA MÚSICA
[Ana Maria Haddad Baptista] Graduada em Le-
tras, mestra e doutora em Comunicação e Semiótica
(PUC-SP). Pós-doutoramento em História da Ciência
(Universidade de Lisboa/PUC-SP). Pesquisadora e
professora da Universidade Nove de Julho.
demarca duas trajetórias distintas e opostas. De um
lado, o filho, Antônio (32 anos), que estudou e se es-
força ainda para construir a vida. De outro, e no mesmo
decurso de tempo, a mais completa desestruturação. O
pai, Raul (64 anos), precocemente envelhecido a viver
sozinho em uma casa praticamente vazia de mobiliário,
pobre, afastado de parentes e muito doente. Quando
atentamos para o plano interno da narrativa, percebe-
mos que a progressão da temporalidade se opera em
ondas, e não em linha. Em quadros justapostos – os
dias passados no hospital –, e não encadeados. Tais
recortes constroem o texto, que se assemelha à nossa
memória. Acúmulo de cenas não ordenadas, em que o
antes e o depois constituem sedimentos. A flagrante
metamorfose que experimentamos ininterruptamente
no decurso da vida. Afinal, o eu é fluxo permanente.
É livro que nos incita a refletir em certo sentido da
vida, no impulso que jamais deixa de atuar. Mesmo
que façamos escolhas, estamos fadados a ir da indi-
ferença à dedicação, da vingança ao perdão, da dor
à felicidade. Não importa o tempo. Quinze anos ou
doze dias que seja. A vida negligenciada de um pai
pesou em seu destino, e a dor, essa excepcional for-
jadora de almas, fez seu trabalho. Esse é o destilar
do labor da existência. Pai e filho fizeram escolhas
na medida do que podiam conceber no decorrer do
tempo. Ocorre, entretanto, insuspeitada sublimação.
Aí a verdadeira ascensão dos que desejam transferir
para mais alto o centro de sua vida.  professor de Jornalismo e Cinema na ESPM,
[Krishnamurti Góes dos Anjosa] Escritor, pesquisa-
dor e crítico literário.
internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem seu tempo
MONUMENTOS ÁRABES
Athar Lina é uma plataforma colaborativa
de mapeamento e conservação de edifica-
ções e esculturas públicas do mundo árabe.
A expressão significa “o monumento é nos-
so”, e a iniciativa parte do princípio de que
somente quando a cultura e a memória são
entendidas pela população como um benefí-
cio é que a comunidade se torna parceira na
conservação. Começou em 2012 com uma
oficina de design em Al-Khalifa, no Cairo.
A proposta original foi identificar locais de
memória, colocar crianças como foco das
atividades e encontrar benefícios sociais e
econômicos que poderiam vir da preserva-
ção, como a promoção do turismo. Essas
ainda são as bases do projeto hoje.
https://atharlina.com/
lMusicLM é uma inteligência artificial do Goo-
gle que cria música por meio de comandos de
texto. Você pode, por exemplo, escrever “uma
melodia calma de violino com um acompanha-
mento de uma guitarra distorcida”. O programa
produzirá vários minutos de uma sequência mu-
sical consistente. Para fins de pesquisa, o Goo-
gle publicou os dados gerados pelo computa-
dor e os textos que deram origem às músicas.
Coisas como “uma fusão de reggaeton e dance
music, com sons espaciais. Induz a experiência
de estar perdido no espaço e a música evoca
um senso de maravilhamento, mas ao mesmo
tempo é dançável”. Ou simplesmente “Uma ver-
são de ‘Bella Ciao’ assobiada”.
https://bit.ly/googlemusiclm
JOGUE UM ASTEROIDE EM SUA CIDADE
Neal Agarwal é um programador que traba-
lha há anos com visualização de dados. Seu
site tem várias ferramentas divertidas que
mostram possibilidades de interação com o
computador enquanto se aprende algo – ou
simplesmente são um passatempo. Num dos
apps, você pode escolher qual tipo de asteroi-
de quer jogar na Terra e posicionar no mapa
onde quer que ele caia. O resultado mostrará
dados sobre o impacto, como o número de
mortos pela explosão e pela onda de cho-
que, quantas casas seriam derrubadas, por
quantos quilômetros de distância o som seria
ouvido e outros dados. Um cometa que caís-
se, por exemplo, na Avenida Paulista, em São
Paulo, geraria uma bola de fogo de 12km.
https://neal.fun/asteroid-launcher/
[Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
mestre em Teoria da Comunicação pela ECA-
-USP e doutorando em Design na FAU-USP.

CANAL DIRETO
Capa
Uma capa mais linda que a outra!
Este ano vocês estão se superando.
Amanda Ringer, via Instagram
A questão é essa, porém a mais
importante ainda é: como impedir
o retorno e a ascensão da extrema direita?
Tiago Jacques, via Instagram
Essas capas merecem uma exposição só para elas!
Vinicios Novelli, via Instagram
Capa genial, como sempre.
Frederico Assad, via Instagram
Água mole em pedra dura
tanto bate até que fura
É hora de debater sobre o tamanho
das Forças Armadas no Brasil.
Augusto Duarte, via Instagram
O problema é que é bem mais fácil “politizar” (de
uma forma fascista) que arrumar o estrago depois.
@beneath_the_mire, via Instagram
Não obstante, demonstram a mesma
incompetência e incapacidade.
@sertanidadesemcores, via Instagram
Capitalização, outro nome
para a reforma da Previdência
Acredito que, mesmo que aumente por mais
alguns anos, vai mesmo faltar dinheiro para
sustentar a Previdência. O futuro está falido.
Eliane Almeida, via Twitter
Capitalização é emboscada mesmo.
Mirem no Chile.
Adriano Ruaro, via Instagram
A burguesia quer escravos de seu poder
econômico em todas as esferas da vida.
Guto Teixeira, via Instagram
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Capa: © Luciano Salles
ABRIL 2023 Le Monde Diplomatique Brasil 39
SUMÁRIO
LE MONDE
diplomatique
BRASIL
Ano 15 – Número 189 – Abril 2023
www.diplomatique.org.br
DIRETORIA
Diretor da edição brasileira e editor-chefe
02 Reforma da previdência na França
Um povo de pé
Silvio Caccia Bava
Diretores
Por Benoît Bréville Anna Luiza Salles Souto, Jorge Romano, Maria Eliza-
beth Grimberg e Rubens Naves e Vera da Silva Telles
04 Editorial
Nossas crianças precisam de atenção
Editor
Luís Brasilino
Por Silvio Caccia Bava
Editora-web
05 Capa
A vitória eleitoral de Lula e a
Bianca Pyl
Editor de Arte
construção do poder popular Cesar Habert Paciornik
Por Ceres Hadich
Assistente de edição
“O ouro e a madeira” Samantha Prado
Por Ágatha de Miranda, Beatriz Lourenço do Nasci- Estágio em Jornalismo
mento, Vanessa Nascimento e Marcos Amaral Carolina Azevedo
Da derrota nasceram a resistência e a vitória Revisão
Lara Milani e Maitê Ribeiro
Por Wagner Romão
Gestão Administrativa e Financeira
10 Divisões internas cobram um alto preço
O grande desencantamento curdo
Lúcia Benito da Silva Ricco
Tradutores desta edição
Por Vicken Cheterian
Carolina M. de Paula, Celina Olga, Frank de Oliveira,
Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
12 Reforma da previdência na França
Diálogo social, a grande ilusão Conselho Editorial
Por Sophie Béroud e Martin Thibault Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius
Sobre o bom uso da Constituição Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro,
Igor Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena,
Por Lauréline Fontaine Jorge Eduardo S. Durão, Jorge Romano,
José Luis Goldfarb, Ladislau Dowbor,
“Fazemos com o que temos!” Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Por Pierre Souchon, enviado especial Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves,
Sebastião Salgado, Tania Bacelar de Araújo
18 Você protesta contra um líder de esquerda ou de direita? e Vera da Silva Telles.
Da Venezuela ao Peru, nem todos Assessoria Jurídica
os manifestantes são iguais Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Por Meriem Laribi
Escritório Comercial Brasília
Marketing 10: José Hevaldo Rabello Mendes Junior
20 Ciência instrumentalizada
Vacinas e Covid, as origens de uma desconfiança
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110
jh@marketing10.com.br
Por Ariane Denoyel
Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria
23 Luta de classes ou ideia nacional?
Direito dos povos, um debate que vem de longe
com o Instituto Pólis.
Por Alain Bihr e Yannis Thanassekos Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil
Tel.: 55 11 2174-2005
24 De Riad a Moscou, o ativismo da China
Pequim: o promotor da paz?
diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
Por Akram Belkaïd e Martine Bulard
Assinaturas: Lúcia Benito da Silva Ricco
26 Sanções dos Estados Unidos, assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2005
fuga de cérebros e burocracia
A China está perdendo a Impressão
batalha da inteligência artificial? ESKENAZI Indústria Gráfica, CNPJ 61.069.100/0001-69
Av. Miguel Frias e Vasconcelos, 1023
Por Gabrielle Chou Jaguaré, São Paulo - SP,
CEP 05345-000
29 Uma limpeza étnica disfarçada
Tanzânia: o povo massai expulso
pelo turismo – e pela caça
Por Cédric Gouverneur, enviado especial
32 “O sistema desmorona diante de nossos olhos”
A roda quadrada das finanças
LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)
Fundador
Por Renaud Lambert, Frédéric Lemaire Hubert Beuve-Méry
e Dominique Plihon
Presidente, Diretor da Publicação
34 Uma proposta para secar o Mediterrâneo
Atlantropa, o ancestral dos grandes projetos inúteis
Benoit Bréville
Redator-Chefe
Por Pierre Rimbert Akram Belkaïd
35 Letras
A literatura, um produto a mais
Diretora de Relações e das Edições Internacionais
Anne-Cécile Robert
Por Hélène Ling e Inès Sol Salas Le Monde diplomatique
1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
37 Geografia, estratégia e a importância das tropas
O ataque de Karl XII contra a Rússia
secretariat@monde-diplomatique.fr
www.monde-diplomatique.fr
Por Lionel Richard Em novembro de 2021, o Le Monde Diplomatique contava
com 31 edições internacionais em 22 línguas:
38 Miscelânea 24 edições impressas e 7 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
 As desigualdades
são inaceitáveis e
as mulheres são
as mais afetadas.

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