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Gui Bonsiepe nasceu em 1934, na Alemanha.

Entre 1955 e 1959, estudou na Hochschule für


Gestaltung, Ulm, onde tambémn exerceu a
licenciatura, cormo professor titular do
Departamento de Desenho Industrial, de 1960 a
1968. No Chile, além de assessorar, através do
Projeto ONU/OIT, a pequena e a média indústria
em questões relacionadas a desenho industrial
(1968/1970), criou a área de Desenvolvimento de
Produtos no Comitê de Investigações Tecnológicas
(1971/1973). Ocupou, de 1973 a 1975, a vice
presidência do ICSID (International Council of
Societies of Industrial Design). Na Argentina, foi o
criador da área de Desenvolvimento de Produtos,
no Instituto Nacional de Tecnologia Industrial
(1974/1976), participando também como diretor
técníco do escritório MM/B Diseño, de Buenos
Aires (1975/1980). Foi assessor de vários
organismos internacionais (ONUDI, UNESCO, OIT,
OECD)e docente em universidades européias,
latino-americanas, norte-americanas e asiáticas.
Dentre os vários títulos que publicou sobre
desenho industrial, destacam-se: Teoria e pratica
del disegno industriale (Milão, 1975) e Diseño
industrial, tecnología e dependencia (México,
1978).

Atualmente trabalha no CNPg, na Coordenação de


Desenvolvimento Industrial na área de Desenho
Industrial e de Desenvolvimento de Produto.
Apresentação

Darcy Ribeiro

Recomendo vivamente a leituradeste livro admirável de Gui Bonsiepe. Nele


se casam aagudez do analista e sua imaginação criadora com o mais alto
senso de responsabilidade social.

Lendo Bonsiepe, mergulheioutra vez nas minhas vivências indigenas.


Aparentemente da forma mais disparatada. Mas, na verdade, buscando e
desencontrando nexos entre os fazimentos dos indios e os nossos que, ao
menos para mim, são visíveis e comoventes.
Vivi muitos anos com os índios, se sabe. Eu mesmo me pergunto, por quê?
Seria mera curiosidade científica o que me movia a voltar sempre às aldeias
para observar, incansavelmente, o seu modo de ser e de viver e para dele
participar, nos limites da função de antropólogo?

Supus que fosse assim atésuspeitar de motivações mais lúdicas do que


cognitivas. Acho hoje que gostava mesmo era de estar ali vendo,
encantado, os indios serem tal qual são ou eram. Este encantamento tinha
raiz na simpatia que eles, com seu modo peculiar de ser e de fazer
suscitavam em mim.

Meditando, agora, sobre este meu sentimento, tantos anos depois,


descubro nele dois componentes principais. Vejo que me encantava nos
indios sua dignidade inalcançável para nós, de gente que não passou pela
moda da estratificação social. Não tendo sido nem sabido, jamais, de senhores
e escravos, nem de patrões e empregados ou de elites e massas, cada índio
desabrocha como um ser humano em toda sua inteireza e individualidade.
para olhar o outro e para ser Visto por todos como um ser único e
irrepetivel. Um ser humano respeitvel em si, tão só por ser gente de seu
povo.
daquele "paraiso
Creio mesmo que lutamos pelo socialismo épor nostalgianenhuma
perdido'", de homens vivendo uma vida igualitária, sem
necessidade ou p0ssibilidade de explorarem ou de serem explorados.

A outra vertente daquele encantamento vinha de meu assombro


diante do
exercício da vontade de beleza que eu via expressar-se ali, de mil modos.
o belo
Nós nos acostumamos tanto a atribuir a arte aos artistas e a só ver
exibido nos museus ou ostentado nas casas ricas que nos assombramos
diante de uma beleza gratuita, generalizada e atévulgar: a singela beleza
que impregna as coisas que os indios fazem.
Aprimeira reação diante desta descoberta édizer que lá não há, nem pode
haver arte alguma. Para isto Ihes falta artistas especializados e
profissionalizados como criadores do belo. Falta-Ihes, mais ainda, a
capacidade de construir objetos inúteis, únicose singulares que é o
apanágio da criação artística; Ihes falta, igualmente, a corriola dos
entendidos, capazes de apreciar e criticar as criações, atribuindo-lhes o
mérito artístico que mereçam.
Envolvido na bruma destas considerações e incompreensões, custei muito a
entender que a função real e profunda, a verdadeira razão de ser, de cada
coisa que os índios fazemé simplesmente ser bela. Aos poucos fui
percebendo que aquelas sociedades singelas guardam, entre outras
características que perdemos, a de não terem despersonalizado nem
mercantilizado sua produção, o que Ihes permite exercer a criatividade como
um ato natural da vida diária. Cada índio é um fazedor que encontra enorme
prazer em fazer bem tudo que faz. E também um usador, com plena
consciência das qualidades singulares dos objetos que usa.
cesto de
Quero dizer com isto, tão-somente, que a índia que trança um reles
e trabalho
carregar mandioca, coloca no seu fazimento dez vezes mais zelo
utilidade.
do que seria necessário para o cumprimento de sua função de
Este trabalho a mais e este zelo prodigiosamente maior, só se explicam pelo
atendimento a uma necessidade imperativa, pelo cumprimento de uma
determinação tão assentada na vida indígena que é inimaginável que alguém
descuide dela.

Aquela cesteira põe tanto empenho no fazimento do seu cesto porque sabe
que se retrata inteiramente nele. Uma vez feito, ele é seu retrato
reconhecível, uma vez que qualquer outra mulher da aldeia, olhando, lera
nele imediatamente, pela caligrafia cestária que exibe, a autoria de quem o
fez.
Nesta trama da vida indigena é que aquele reles cesto de carregar mandioca
daroça para a aldeia ganha entidade. Simplesmente por existir, junto de
todaa outra tralha da aldeia, ele estáfalando da maestria e do virtuosismo
admiráveis de certa cesteira ou do desleixo e da inabilidade de outra. Como
o mesmo ocorre com OS arcos e flexas, com oS utensílios e adornos e com
tudoo mais que os indios fazem e usam, seu sistema de objetos se opõe a
nosso, frontalmente. E formado por coisas cuja natureza participa mais o
que entre nós é arte, do que daquilo que para nós étreinzada que se
compra e se vende e se usa e se desgasta, sem neles ver mais o que sua
função utilitária.
Admito de bom grado que há umaboa dose de exagero no que disse até
aqui. Nem nossa tralha étão ruim e aí está a "arte" do design de Bonsiepe
tentando fazer dela uma tralha de índio. Nem a tralha dos índios é tão
perfeita em todo lugar e sempre. Os objetos realmente belos surgem,
efetivamente, énaqueles campos em que determinada tribo alcançou maior
virtuosismo e pôs mais empenho de perfeição. Por outro lado, a vontade de
beleza de que falo aqui, só floresce realmente nas tribos isoladas;
incontaminadas, ainda, tanto de nossas pestes como de seu encantamento
pela nossa tralha e de nossa valorização dos artefatos deles.

Ageneralização que quero reter, neste passo, éque, ao contrário do que


sucede conosco, na vida indígena o importante não é o objeto artistico para
ser colecionado. É, isto sim, o seu fazedor, estimulado por toda a
comunidade a criar coisas cada vez mais belas.

Outra generalização que me permito é que não havendo para os indios


fronteiras entre uma categoria de coisas tidas Como artísticas e outras,
vistas como vulgares, eles ficam livres para criar o belo. Láuma pessoa ao
pintar seu corp0, ao modelar um vaso, ou ao trançar um cesto, põe no seu
trabalho o máximo de vontade de perfeição e um sentido desejo de beleza
Sócomparável com o de nossos artistas quando criam. Quando um índio
ganha de outro um utensilio ou adorno, ganha, com ele, a expressão do ser
de quem o fez. O presente estará ali recordando sempre que aquele bom
amigo existe e é capaz de fazer coisas tão lindas.

Toda esta minha explanacão vem a propósito deste livro admirável de Gui
Bonsiepe. Pode muito bem ser, como adverti antes, que não exista liame
as
VIS0vel para outra pessoa que não seja eu, entre o desenho industrial e
artes índias. Eu estou disposto a afirmar que existem. Concordo, porém,
que as questões focalizadas neste livro com respeito a nós, sÓ se comparam
de fato com a problemática dos indios avassalados e deculturados. Aqueles
que, havendo perdido seu ser, perderam sua capacidade criativa, passando a
papaguear seus dominadores. Por mais que esses pobres indios
desindianizados se esforcem eles não produzirão mais do que um simulacro
pobre e triste da civilização que o atingiu e o degradou. Nós também.
Persistindo nos trilhos sobre os quais estamos postos e somOs empurrados
segunda classe. Ouero
nös vamos ser no futuro, outra vez, um povo de
sendo o que sãoe
dizer, um desses pobres povos terceiromundistas que simultaneamente
fazendo o gue fazem, tal como o fazem, assim contribuem
e para a universilizacão
para a prosperidade dos povos ricos a que servem
consumo que eles almeiam
dos seus estilos de vida e de seus ideais de
ardentemente alcançar.

tecnológicos, da automacão
Isto significa que nossa era dos milagres comunicação, não
maquinistica, da intencionalização mercantil de toda fartura, e sim mais
promete aos povOs do Terceiro Mundo mais autonomia ede modernizacão
dependência e penúria. Assim como, no nosso passadoda eletricidade, ao
petróleo
reflexa dentro das civilização do carvão, do
no papel de pobres
progredir apenas nos tornamos mais eficientes por sua
provedores de insumos; assim também a Civilização emergente,
com respeito aos
própria dinâmica, só nos pode dar mais atraso relativo
aceleradamente ànossa frente.
povos autônomos que avançam
próprios, nos éatribuído um papel
No projeto de futuro que eles têm para si potencialidades. Papel inevitável
indispensável para que eles realizem suas
história, enquanto aceitamos
de proletariado externo, descompassado na produçãoe de vida. Papel
sua dominação tecnológica e seus estilos de um patronato
inelutável enquanto nossO projeto de vida for ditado por
gerencial descomprometido com nosso povo.

ruptura com nossa situação presente de povos dependentes, não se dará


A
outros fazem. Só se
jarnais pelo caminho da macaqueação do que os passado e o presente de
abrirão nossos horizontes, quando proibirmos o
propensão. Só
forjaremo futurO que corresponde ao seu ser e àsua mesmnos o
realizaremos nossas próprias potencialidades projetando nós
quando desenvolvermos
futuro que queremos para nós. Isso só sucederá
pelo primado de
estilos de vida e modos de consumo que não se regemnecessidades
atender às de
lucro, mas que queiram fundamentalmente
saúde e
nossa população, em termos de emprego, comida, educação,
moradia.

Sobre esta vida produtiva nova e autônoma que ocupará a todos 0s milhoes
e
de trabalhadores que somos no esforço de prodUzir o que consumimos,
que poderáflorescer e florescerá, um dia, a civilização que corresponde ao
nosso ser, com sua tecnologia própria e com um estilo criativo genuino.
Voltaremos, ento quem sabe? - a ser índios como aqueles dos cestos
de carregar mandioca, da descarada vontade de beleza e da mais ousada
alegria de viver.
Prefácio

Esta colecão de textos cristaliza-se ao redor de uma entrevista realizada por


Maria Cecília dos Santos, em meados do ano de 1980, em Buenos Aires. A
escassez de publicações em língua portuguesa sobre desenho industrial
motivou-nos a reunir uma série de textos elaborados durante os últimos
anos (1978-1982).

Além de entrevistas e conferências, há um anexo com descrições de alguns


projetos e uma contribuição a uma publicação sobre a Bauhaus.
A questão tecnológica nos paises periféricos constitui o tema central dos
trabalhos, mais precisamente a questão da "tecnologia" para produzir
tecnologia, a questão do software para criar hardware anossSO ver, a
questão central da problemática tecnológica da Periferia. Dentro do amplo
espectro de atividades na área de inovação tecnológica, o desenho industrial
éuma das disciplinas mais frágeis, não bem-definida, mas nem por isso
menos importante.
O uso de diferentes formas literárias a entrevista informal
(necessariamente mais espontânea, de caráter pessoal e com saltos
temáticos) e o texto de conferência, de caráter mais reflexivo - implica
alguns entrecruzamentos. Eles não foram eliminados posto que, às vezes, é
oportuno repetir argumentos.
Henunciei, nesse caso, ao aparato científico e seus ritos, que
Treqüentemente tornam um texto ilegível e, por isso, este livro não exibe o
que tem sido chamado foot-and-note-disease. O leitor julgaráse a
plausibilidade dos argumentos sofreu com essa decisão ou se ela deve ser
considerada como um ato de falta de devoção.

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