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Sempre que temos em mente a discussao dum novo movi- mento educativo, e
especialmente necessario que adoptemos o ponto de vista mais amplo, ou social.
Doutra forma, as mudan- 5as na institui^ao e nas tradi^oes escolares serao
encaradas como inven^oes arbitrarias de determinados professores, no pior dos
casos modas transitorias e, no melhor, simples melhoramentos de certos
pormenores — e e este o piano em que, demasiadas ve- zes, sao colocadas as
mudan^as na escola. E algo de tao pouco racional como conceber a locomotiva ou o
telegrafo como dis- positivos ao servi^o de um punhado de pessoas. As
modifica^oes em curso nos metodos e programas educativos sao em igual me- dida
um produto das mudan^as na situa^ao social e um esfor^o para satisfazer as
necessidades da nova sociedade que esta a formar-se, a imagem do que sucede
com as altera<joes a que as- sistimos nos campos da industria e do comercio.
E, pois, para isto que eu chamo especialmente a vossa aten- §ao: o esfor^o para
conceber aquilo que pode ser designado de forma algo simplista como a «Nova
Educa^ao», a luz das muta- §oes mais amplas que se verificam na sociedade.
Poderemos re- lacionar esta «Nova Educa^ao» com a marcha geral dos aconte-
cimentos? Se pudermos faze-lo, ela perdera o seu caracter iso- lado; deixara de ser
um assunto que brota apenas das mentes de- masiado fantasistas de pedagogos
lidando com determinados alunos. Surgira como parte integrante da evolu^ao social
no seu todo e, pelo menos nos seus tra^os mais gerais, como algo de inevitavel.
Indaguemos portanto quais os aspectos principals do movimento social e em
seguida viremo-nos para a escola, ten- tando descobrir que testemunho ela nos da
do esfor^o para acompanhar essas tendencias. E, dado que e impossivel abordar
este tema em toda a sua extensao, limitar-me-ei em grande me- dida neste
capftulo a um aspecto tfpico do movimento da escola modema — aquilo que
costuma ser designado por treino manual —esperando, caso a rela^ao entre essa
faceta e as condi- ^oes sociais em muta^ao se tome evidente, que estejais prontos
a reconhecer que o mesmo sucede no respeitante a outras ino- va^oes educativas.
Um conjunto de li^oes praticas, qualquer que ele seja, prepa- rado com o fito de
fomecer informa^ao, nem por sombras po- dera servir de substituto ao
conhecimento das pl antas e animais da quinta e do jardim, adquirido por quern
vive realmente no meio deles e deles tern de cuidar. Nenhuma forma de exercfcio
dos orgaos sensoriais na escola, concebido como mero exerci- cio, pode competir
sequer com a subtileza e plenitude da vida sensorial que advem da intimidade e
interesse diario nas ocupa- ^oes familiares. A memoria verbal pode ser exercitada
cumprin- do determinadas tarefas e uma certa disciplina das faculdades
intelectuais pode ser adquirida estudando li^oes de ciencia e matematica; no
entanto, bem vistas as coisas, tudo isto e um pouco vago e obscuro, comparado
com o treino da aten^ao e do raciocfnio que se adquire quando se e obrigado a
fazer as coisas sob o impulso duma motiva^ao concreta e tendo em vista um re-
sultado igualmente concreto. Hoje em dia, a concentragao da in- dustria e a
divisao do trabalho praticamente eliminaram as ocu- pa^oes domesticas e
comunitarias — pelo menos para fins edu- cativos. Mas e inutil chorarmos o
desaparecimento dos bons ve- lhos tempos em que as crian^as denotavam
modestia, reveren- cia e uma obediencia implfcita; os meros lamentos e
exorta^oes nao os trarao de volta. O que ocorreu foi uma mudanya radical das
condi^oes de vida, e so uma mudanya igualmente radical no campo da educa^ao
produzira resultados palpaveis. Devemos reconhecer as compensates que os novos
tempos acarretaram —um aumento da tolerancia e da liberalidade dos juizos so-
ciais, um melhor conhecimento da natureza humana, uma maior sagacidade na
leitura dos tra^os do caracter e na interpreta^ao das situa^oes sociais, uma
adapta^ao mais atenta as diferentes personalidades que se nos deparam, o
contacto com actividades comerciais mais vastas. Estas considera^oes tern grande
impor- tancia para as crian^as que nascem e crescem nas cidades de ho- je.
Todavia, enfrentamos um grave problema: o que fazer para, conservando estas
vantagens, introduzir na escola algo que re- presente o outro lado da vida —
ocupa^oes que impliquem res- ponsabilidades pessoais precisas e que exercitem a
crian^a no contacto com as realidades ffsicas da vida?
Ao analisarmos a escola, verificamos que uma das tendencias mais marc antes do
presente e a introdu^ao do chamado treino manual, dos trabalhos oficinais e das
artes domesticas — costu- ra e culinaria.
Isto nao foi feito «de proposito», com a plena consciencia de que a escola deve
agora proporcionar essa forma de adestra- mento que outrora competia ao lar, mas
sim por instinto, depois de varias experiencias terem revelado que esse tipo de
ensino cativa imenso os alunos e da-lhes algo que nao poderiam obter de nenhuma
outra forma. A consciencia da sua verdadeira im- portancia e ainda tao debil que o
trabalho e muitas vezes feito dum modo hesitante, confuso e desconexo. As razoes
apontadas parajustificd-lo sao penosamente inadequadas ou mesmo mani-
festamente erradas.
A coisa mais importante a reter, pois, no que diz respeito a in- trodu<jao na escola
de diversas formas de ocupa^ao activa, e que, atraves destas, toda a essencia da
escola e renovada. A institui- ^ao escolar tern assim a possibilidade de associar-se a
vida, de tomar-se uma segunda morada da crian^a, onde el a aprende atraves da
experiencia directa, em vez de ser apenas um local onde decora li^oes, tendo em
vista, numa perspectiva algo abs- tracta e remota, uma hipotetica vivencia futura.
Isto e, a escola tern a oportunidade de se converter numa comunidade em mi-
niatura, uma sociedade embrionaria. Este e o facto fundamental, e dele emerge a
instru§5o enquanto processo contmuo e ordeiro. Sob o regime industrial atras
descrito, a crian^a, afinal de con- tas, participava no trabalho, mas o objectivo
primordial nao era essa participagao, mas o produto. Os resultados educativos que
se alcangavam eram reais, ainda que fortuitos e secundarios. Os trabalhos tfpicos
executados na escola, por^m, estao livres de to- da e qualquer exigencia de ordem
economica. O objectivo nao e o valor economico dos produtos, mas o
desenvolvimento da pu- janga e da capacidade de organizagao social. E esta
emancipagao em relagao a componente utilitaria restrita, esta abertura as pos-
sibilidades do espfrito humano, que transforma estas actividades prdticas na escola
em cong€neres da arte e pontos de partida para o estudo da ciencia e da historia.
Em termos educativos, isto significa que, na institui^ao esco- lar, estas ocupa^oes
nao devem reduzir-se a meros expedientes praticos ou formas de ocupagao
rotineira que visem a aquisigao duma mestria tecnica no campo da culinaria, da
costura ou da tecelagem, mas deverao ser, isso sim, centros activos de desco-
berta cientffica sobre os materiais e processos naturais, pontos de partida donde as
criangas serao levadas a compreender o de- senvolvimento historico do homem. A
verdadeira importancia de tudo isto pode ser ilustrada de forma mais eloquente se,
ao inves de recorrermos a consideragoes genericas, langarmos mao de um exemplo
concreto extrafdo do trabalho escolar.
Nada parece tao bizarro aos olhos do visitante medio, atento e interessado, do que
ver rapazes de dez, doze e treze anos a executarem, em conjunto com raparigas da
mesma idade, traba- lhos de costura e tecelagem. Se encararmos isto como uma
pre- paragao dos rapazes para coserem botoes e fazerem remendos, chegamos a
uma concepgao restrita e utilitaria — com base na qual dificilmente se justificara
valorizar este tipo de trabalho na escola. Porem, se encararmos estas tarefas numa
outra perspec- tiva, verificamos que el as funcionam como um ponto de partida
que permite a crianga reconstituir e analisar o progresso da hu- manidade ao longo
da histori a, instruindo-a, alem disso, sobre os materiais usados e os principios
mecanicos envolvidos. Estas actividades sao pretextos para recapitular o
desenvolvimento historico do homem. Por exemplo, as criangas recebem em pri-
meiro lugar a materia-prima — as fibras de linho, os frutos do algodoeiro, a la tai
como e extrafda do corpo da ovelha (se pu- dermos leva-las ao local onde as
ovelhas sao tosquiadas, tanto melhor). Em seguida, e feito um estudo destes
materiais, do ponto de vista da respectiva adaptagao aos usos a que se desti- nam.
Por exemplo, a fibra do algodao e comparada com a fibra da la. Eu nao sabia, ate
as criangas mo terem di to, que o motivo para o desenvolvimento tardio da
industria algodoeira, quando comparada com a manufactura de tecidos de la, era o
facto de a fibra do algodao ser tao diffcil de separar manualmente das se- mentes.
Um grupo de criangas, trabalhando durante trinta mi- nutos a separar as fibras de
algodao da capsula e das sementes, conseguiu extrair menos de trinta gramas. Foi-
lhes facil calcu- lar que uma pessoa, usando as maos, nao conseguiria descaro- gar
mais do que meio quilo por dia, e compreenderam assim por que motivo os seus
antepassados preferiam as roupas de la as de algodao. Entre outros factores que
afectam a utilidade relativa destes dois tipos de materiais, el as descobriram que
as fibras de algodao sao mais curtas do que as de la, medindo as primeiras,
digamos, um centfmetro, ao pas so que estas ultimas atingem os oito centfmetros
de comprimento; e ainda que as fibras de algodao sao macias e nao se enrigam
umas nas outras, enquanto a la possui uma certa aspereza que emaranha as fibras,
facilitando assim a fiagao. As criangas compreenderam isto por si proprias, em
contacto com os materiais concretos, ajudadas por pergun- tas e sugestoes do
professor.
Isto, por seu tumo, influencia o ensino da ciencia. Nas condi- qoes actuais,
qualquer actividade, para ser coroada de sucesso, tern de ser dirigida, numa
qualquer das suas fases, pelo perito cientifico — ou seja, qualquer actividade e um
caso de ciencia aplicada. Esta liga^ao deveria de termi nar o estatuto das activi-
dades praticas na educa^ao. E que os chamados trabalhos ma- nuais ou industrials
escolares nâo se limitam a permitir a intro- duçâo da ciencia que os ilumina, que os
toma pertinentes, pre- nhes de significado, em suma, que os faz ultrapassar o
estatuto de meros exercfcios para as mâos e os olhos; para alem disso, a
compreensâo cientffica assim adquirida toma-se um instrumen- to indispensâvel de
participaçâo livre e activa na vida social mo- dema. Num dos seus textos, Platâo
fala do escravo como sendo a pessoa que, nas suas acçöes, nâo expressa as proprias
ideias, mas sim as doutrem. Hoje em dia, dum modo ainda mais pre- mente do que
na epoca de Platâo, cabe-nos assegurar que o me- todo, a finalidade e a
compreensâo existam na consciencia da- quele que executa o trabalho, que a
actividade de cada um sig- nifique algo aos olhos do pröprio.
Quando as tarefas prâticas sâo encaradas desta forma ampla e generosa, nâo posso
senâo ficar estupefacto ante a objecçâo, tantas vezes formülada, de que tais
ocupaçöes nâo tem lugar na escola, pois sâo tendencialmente materialistas,
utilitârias ou ate tipicas das classes subaltemas. Parece-me por vezes que aque- les
que fazem estas objecçöes devem viver num mundo bem di- ferente do nosso. O
mundo em que grande parte de nos vive e um mundo no qual toda a gente tem uma
vocaçâo e uma ocupa- çâo, isto e, um trabalho a executar. Uns sâo dirigentes e
outros sâo subordinados. Tanto para uns como para outros, porem, a coisa mais
importante e que cada indivıduo tenha tido acesso â educaçâo que lhe permi te
destrinçar, no seu trabalho quotidia- no, tudo o que possui um significado humano
mais abrangente, Quantos empregados nâo passam hoje de meros apendices das
maquinas que operam! Isto poderâ dever-se em parte â propria maquina ou ao
regime que coloca tanta enfase nos produtos da maquina; mas deve-se certamente,
em grande medida, ao facto de o trabalhador nâo ter tido oportunidade de
desenvolver a sua imaginaçâo e a compreensâo solidaria dos valores sociais e
cientfficos inerentes ao seu trabalho. Hoje em dia, durante o periodo escolar, os
impulsos que estâo na base do sistema industrial sao ou negligenciados na pratica
ou positivamente distorci- dos. Enquanto os instintos de constru^ao e produ^ao nao
forem enquadrados de forma sistematica durante a infancia e juventu- de,
enquanto esses instintos nao forem canalizados em termos sociais, enriquecidos
pela interpreta§So historica, controlados e iluminados por metodos cientfficos,
enquanto nada disto for fei- to, nao estaremos em condi^oes sequer de localizar a
origem dos nossos males economicos, quanto mais de lidar com eles eficazmente.
E facil de entender que esta revolu^ao, no que toca aos ele- mentos do saber,
acarreta uma mudan^a acentuada na postura do indivfduo. Os estfmulos de tipo
intelectual chovem sobre nos atraves dos mais diversos canais. A vida meramente
intelectual, a vida de estudo e aprendizagem, passa pois a ser avaliada du- ma
forma bem diferente. Academico e escolastico, ao inves de tftulos honrosos, sao
cada vez mais epftetos depreciativos.
A que se deve, porem, esta minha exposi<jao tao pormenori- zada? E facil de ver
que a nossa vida social sofreu uma mudan- §a tao completa quanto radical. Se
queremos que a educa^ao ministrada nas nossas escolas tenha alguma influencia na
vida de todos os dias, ela devera passar por uma transforma^ao igualmente
completa. Esta transforma^ao nao surgira subita- mente, nao sera executada do dia
para a noite, de forma inten- cional. Ela esta ja em curso. As modifica^oes do
nosso sistema escolar, que parecem muitas vezes (mesmo aos olhos dos mais
activamente empenhados nelas, ja para nao falar dos seus es- pectadores) nao
passar de meras mudan^as de pormenor, sao na realidade indfcios e provas de
evolu^ao. A introdu^ao de ocupa- ^oes activas, do estudo da natureza, dos
rudimentos da ciencia, da arte, da historia; a relega^ao do meramente simbolico e
formal para uma posi^ao secundaria; a mudan^a na atmosfera moral da escola, na
rela^ao entre alunos e professores — na disci- plina; a introdu^ao de factores mais
activos, expressivos e de autonomia — tudo isto nao sao meros acidentes, sao
exigencias duma evolu^ao social mais vasta. Falta apenas organizar todos estes
factores, avalia-los na plenitude do seu significado e fazer com que as ideias e
ideais envolvidos assumam um controlo pleno e intransigente do nosso sistema
escolar. Fazer- isto signi- fica transformar cada uma das nossas escolas numa
comunida- de embrionaria, sede de ocupa^oes que reflitam a vida da sociedade no
seu todo, impregnada do espfrito da arte, da historia e da ciencia. Quando a escola
for capaz de iniciar e exercitar cada um dos novos membros da sociedade na
participagao numa comunidade tao reduzida, impregnando-os dum espfrito de al-
trufsmo e fomecendo-lhes os instrumentos duma autonomia efectiva, teremos a
melhor garantia de que a sociedade no seu todo e digna, admiravel e harmoniosa.