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A IDADE DO SONHO

TONIO CARVALHO
Um dia, uma criança quis ver o circo.
Lá chegando, perguntou:
— Não vamos entrar?
E alguém responde:
— Você não disse que queria ver o circo?
E voltaram para casa.

Este texto é dedicado às crianças que não entraram no circo e aos adultos que
não compreendem os sonhos...

Texto para atores e bonecos devendo os


bonecos serem a réplica dos atores.

Personagens:

ANA
ANTONIO BOCA
BERNARDO
ELVIRA
PALHAÇO
AMÉLIA
CAMÉLIA

A ação se desenrola numa cidade do interior onde os sonhos ainda


significam partir em busca da aventura e do amor despertados pela passagem das
troupes itinerantes e mambembes dos circos, dos teatros, dos ciganos e suas
fascinantes magias.

ALGUMAS OBSERVAÇÕES:

QUANTO AOS BONECOS:

As sugestões para a utilização dos bonecos (marionete, vara, luva, etc.)


devem ser consideradas apenas enquanto sugestões, devendo ser respeitado,
apenas, em caso de encanação, o rompimento da rigidez teatral que estabelece
que lugar de ator é em cena e de boneco na empanada ou caixa.

QUANTO AO CENÁRIO:

Existe apenas a necessidade que se estabeleçam dois espaços distintos,


determinados pela existência de uma janela: o espaço de dentro e o de fora, real e
imaginário. É sugerido que se utilize a janela como empanada ou caixa de
bonecos.

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QUANTO AOS OBJETOS:

Alguns objetos de cena talvez sejam necessários para melhor definir os dois
espaços, mas preferimos não indicá-los, deixando a critério de um processo
autônomo de criação. Indica-se apenas a necessidade de uma mesa tipo
penteadeira de camarim com espelho e gambiarra para a ação do Palhaço, e
também por servir em determinados momentos como anteparo para alguns efeitos
de bonecos.

QUANTO AOS FIGURINOS E ADEREÇOS:

Sugere-se a não tentativa de reprodução realista do universo cigano de


modo formal mas apenas o clima mágico que o envolve.

CENA I

(No proscênio, em frente à uma mesinha tipo penteadeira com pequenas


luzes de gambiarra à sua volta, o Palhaço termina a maquiagem. Ele cantarola e
pega 3 bonecos de fio, tipo marionete — Pierrot, Colombina e Arlequim.)

CANTO DO PALHAÇO

Ai, velhas cartas de amor,


Ai, são retalhos de dor...
Esta saudade
por Colombina
não é saudade,
é tua sina!
Pierrot, Colombina, Arlequim,
história de um amor
assim, assim.
Agora chora, Pierrot,
é tua sina.
A sina de Pierrot
é chora por Colombina...

(O Palhaço deixa de lado os dois bonecos, Arlequim e Pierrot. Com


Colombina em suas mãos, abre uma cortina transparente, como se fosse
apresentar uma história. No centro da cena está Ana, que, deitada, brinca com
uma pequena caixa de música. Uma bailarina gira ao som da música da caixa. A
luz cai em resistência sobre o Palhaço, que se retira de cena após introduzir o
espectador na ação.)

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CENA II

(Ana observa a bailarina que gira na caixa de música, acompanhando o


instrumental da caixa, cantarolando.)

ANA — Os sonhos mais lindos sonhei.


de quimeras mil um castelo ergui...

(A corda da caixa de música acaba e a bailarina pára de girar. Ana dá corda


e tudo recomeça. Ana começa a sonhar. A janela passa a funcionar como uma
caixa de bonecos onde a ação do sonho dela se desenrola.)

CENA III

(A janela/caixa de bonecos tem a luz de uma fogueira ao longe. Som de


violino, violas e pandeiros. É uma festa. Entra em cena, Ana Manjericão, boneca
de vara, réplica da atriz que faz Ana, com roupas ciganas. Entra furiosa, tentando
escapar de Antonio Boca, um boneco de vara, cigano, que a segue, tentando
pegá-la.)

ANA MANJERICÃO — Me larga! Me larga! Sai de mim! Devolve meu


retrato!

ANTONIO BOCA — (Manhoso.) Não devolvo!

ANA MANJERICÃO — Tá pensando que sou chouriço misturado com


feitiço?

ANTONIO BOCA — Me deixa explicar!

ANA MANJERICÃO — Muita explicação é pra quem não tem razão!

ANTONIO BOCA — Mas eu tenho!

ANA MANJERICÃO — Tem o quê?

ANTONIO BOCA — Razão!

ANA MANJERICÃO — Mas é o sujeitinho mais deslavado que eu conheço!

ANTONIO BOCA — Eu explico!

ANA MANJERICÃO — Mas que tanto explico! explico! Daqui pouco,


(Ameaçadora.) quem tem explica sou eu! Desembucha!

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ANTONIO BOCA — Olha... você não viu nada! Foi tudo imaginação sua!

ANA MANJERICÃO — E eu lá fico gastando a minha imaginação com


você!?

ANTONIO BOCA — (Tentando pegá-la) — Vem cá, moreninha!

ANA MANJERICÃO — Sai pra lá com essa mão encardida! Passa pra cá o
meu retrato!

ANTONIO BOCA — Vem pegar, vem! Dá um beijinho, dá! Vem, capetinha!

ANA MANJERICÃO — Capeta é você, cigano duma figa!

ANTONIO BOCA — (Para si.) — Tô perdido e mal pago!

ANA MANJERICÃO — Eu li nas cartas! Você é muito do safado! Pensa que


eu não sei da tua vida?

ANTONIO BOCA — Tá com ciúme, tá, cintura fina!

ANA MANJERICÃO — Tô com ódio! E cintura fina é a tua avó!

ANTONIO BOCA — Vem cá, não fica assim... me dá um beijinho!

ANA MANJERICÃO — Pensa que eu não te vejo sassaricando por aí feito


maria-sem-vergonha!? (Mostrando a mão.) Tá aqui! Escrito nas linhas da minha
mão!

ANTONIO BOCA — (Safado) — Ah! Deixa ver se é verdade! (Pega na mão


de Ana e, aproveitando-se disso, agarra-a pela cintura.)

ANA MANJERICÃO — (Tentando desvencilhar-se mas, na verdade,


cedendo) — Me larga, tinhoso!

ANTONIO BOCA — Vem cá, cintura fina, cintura de pilão!

ANA MANJERICÃO — Me larga... (Cedendo de vez.) Você gosta mesmo de


mim?

ANTONIO BOCA — Tá me estranhando, Ana? E eu lá quero saber de


outras? (Pigarreia pela mentira.) As outras não têm gosto!

ANA MANJERICÃO — E eu, Boca?

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ANTONIO BOCA — Ah, você tem gosto de coisa que a gente se lambuza...
jabuticaba, mel, paçoca!

ANA MANJERICÃO — PAÇOCA?!

ANTONIO BOCA — (Disfarçando, sedutor, definitivo.) — Olha, na palma


da minha mão tá escrito que é de você que eu gosto!

ANA MANJERICÃO — Ah, meu Boquinha! Me derreto toda! Fico toda


empaçocada! (Alegre, canta e rodopia pela cena o seu pregão.)

Olha a salsa, a cebolinha!


Manjericão, pimenta, erva daninha!
Olha a canela, a malagueta,
louro e cravo de rainha!

ANTONIO BOCA — Assim é que eu gosto! Ana Manjericão! Quero beber


até o sol raiar!

ANA MANJERICÃO — Fica feliz também, meu Boca! Roubei uma garrafa
de vinho!

(Os bonecos dançam ao som de um canto cigano à distância, enquanto a luz


vai caindo em resistência.)

CANTO CIGANO DISTANTE

À força do tempo
nada lhe resiste.
Tudo tem um fim,
só o amor
persiste!

CENA IV

(A ação se desloca da janela/caixa de bonecos para o centro do palco. Ana


continua deitada ao lado da caixa de música. A corda acabou e a bailarina não
gira mais. Ao seu lado está Elvira, que despeja água de uma jarra em um copo. O
instante todo se concentra na água que vai deslizando de um para o outro. A água
ilumina a cena.)

ELVIRA — Menina, acorda!


ANA — Ai, que susto!

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ELVIRA — Mas que coisa! Só vive dormindo!

ANA — (Escondendo a caixa de música) — Eu não tava dormindo! Tava


sonhando!

ELVIRA — (Curiosa mas discreta) — Muitos sonhos?

ANA — Muitos... (Entusiasmando-se.) Muitos sonhos, Elvira! Muitos


sonhos!

ELVIRA — (Marotamente) — Sonhou com os anjinhos?

ANA — Com os anjinhos!

ELVIRA — Os seus olhos brilham! (Fingindo.) Ana, mentir é pecado!

ANA — Sonhei com os ciganos!

ELVIRA — (Misteriosa.) — Eles gostam de entrar no sonho dos outros!

ANA — (Girando e ajeitando os cabelos frente a um espelho) — Ele... ele


era lindo!

AS TIAS — (Juntas, em off) — Elvira, olha o feijão no fogo!

ELVIRA — As suas tias! (Ameaça sair mas Ana a impede.) (Às coxias.) Já
vou!

ANA — E eu, uma cigana! ANA MANJERICÃO!

ELVIRA — Cigano tem parte com o diabo! (Lembrando.) O feijão!


(Rapidamente.) São ladrões de crianças!

ANA — (Sonhando e girando pela cena.) — O nome dele era Antonio...


Antonio Boca!

ELVIRA — Se você rezasse todas as noites, não ficava tendo desses sonhos!

ANA — Ah!... (Segurando Elvira.)

ELVIRA — Me larga! O feijão vai queimar!

ANA — Boca, porque tinha um dente de ouro na boca! Brilhava como o sol!

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E um brinco também... um brinco de ouro na orelha!

ELVIRA — Onde já se viu homem de brinco!?

ANA — (Sem dar atenção.) Saltava e dançava como um bicho em volta da


fogueira! (Pausa.) Sabe o que ele vai me dar de presente quando a gente fugir?

ELVIRA — Você quer fugir?

ANA — (Sem ouvir.) Um brinco... um brinco de ouro igual às outras ciganas!

AS TIAS — (Juntas, em off.) Elvira! O feijão vai queimar!

ELVIRA — Meu Deus, o feijão!

ANA — (Segurando-a firme.) Elvira, me diz uma coisa: você já namorou


com alguém? Como é namorar alguém?

ELVIRA — Ih! É uma coisa que dá na goela! Que sobe, que desce! A gente
padece!

ANA — Você já quis fugir com alguém?

ELVIRA — Por quê? Você quer?

ANA — Eu sempre sonho em fugir... em namorar alguém!

AS TIAS — (Juntas, em off.) — Elvira, o feijão tá queimando!

ELVIRA — Mas que duas chatas! O feijão, o feijão, o feijão!

ANA — Eu queria ser uma borboleta! Os ciganos estão sempre rodeados de


borboletas e mariposas!

ELVIRA — (Fechando a janela, antes de sair.) — O vento está ficando


muito forte!

AS TIAS — (Juntas, em off.) Elvira! O feijão queimou! (Elvira sai correndo


e Ana fica só.)

CENA V
(Ana volta a pegar sua caixa de música, dá-lhe corda, a música volta a tocar
e ela começa a dançar em volta da caixa, como se fosse a própria bailarina da
caixa. A música e a dança vão num crescendo. O vento abre a janela com força,

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que volta a existir como caixa de bonecos, onde aparecem dois bonecos que
fazem serenata para Ana. Um deles é Antonio Boca, já conhecido, e o outro é
Bernardo, um cantador apaixonado.)

SERENATA DE ANTONIO BOCA

Moreninha, se eu te pedisse,
de modo que ninguém visse,
de modo que ninguém visse,
um beijo, tu me negavas?

Moreninha, se eu te pedisse,
de modo que ninguém visse,
um beijo, tu me negavas?
Ou davas, ou davas?

ANA — O quê que você me dava em troca?

ANTONIO BOCA — Um brinco! Um brinco de ouro!

SERENATA DE BERNARDO
Moreninha, se eu visse o mundo
da janela dos teus olhos,
da janela dos teus olhos
o mundo seria um doce.

Moreninha, se eu visse o mundo


da janela dos teus olhos,
o mundo seria um doce,
se fosse, se fosse...

ANA — Que doce seria o mundo?

BERNARDO — O doce de ficar junto de você!

ANA — Mas o quê que você me daria?

BERNARDO — Não tenho nada pra te dar!

ANA — (Apontando Antonio Boca) — Mas ele me daria um brinco! (Nesse


instante, ouvem-se passos fortíssimos de duas pessoas que aproximam. Os
bonecos escapam depressa. A luz se apaga na caixa de bonecos e as Tias de Ana
— Amélia e Camélia — austeras e professorais, irrompem intempestivamente na
cena.)

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CENA VI

AMÉLIA — (Fechando um lado da janela) — Que ventania, Santa Maria!

CAMÉLIA — (Fechando o outro lado) — Que coisas mais desabrida,


Senhora d’Aparecida!

AMÉLIA — Por que esta janela estava aberta?

ANA — (Rápida.) — Por causa do cheiro de feijão queimado!

CAMÉLIA — Não quero nem ouvir falar em feijão!

ANA — Então, que bons ventos as tragam!

AMÉLIA — Não quero vento nenhum me tragando!

ANA — (Confundindo.) — Vento não fuma!

CAMÉLIA — Como não fuma?

AMÉLIA — É o verbo, energúmena!

CAMÉLIA — Dá no mesmo!

AMÉLIA — E por falar em fumo... quer dizer, em verbo!

CAMÉLIA — Aula de língua pátria!

ANA — (Dá risada.)

AMÉLIA — (Dando-lhe um cascudo.) Sem rir.

ANA — (Simulando choro.)

CAMÉLIA — (Dando-lhe um outro cascudo.) — Sem chorar! (As 3 se


colocam em posição de aula. É uma espécie de interrogatório, com Ana ao centro
e as 2 Tias cada uma de um lado, militarmente.)

AMÉLIA — O contrário de devo ser má!?

ANA — (Marota) — Devo ser boa!

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CAMÉLIA — (Dando outro cascudo em Ana) — Presente do verbo
obedecer!

ANA — Eu obedeço! (Apontando Amélia.) Tu obedeces! (Apontando


Camélia.) Ela obedece!

AMÉLIA — (Interrompendo.) — Eu obedeço?!

CAMÉLIA — Eu obedeço?!

AS TIAS — (Juntas) — Nunca! (Com os dedos do nariz de Ana.) Você


obedece!

AMÉLIA — Aula de Matemática!

CAMÉLIA — Sete e sete?

ANA — São catorze; três vez sete, vinte e um... tenho sete namorados mas
não gosto de nenhum!

AS TIAS — (Juntas e girando ao redor de Ana, enlouquecidas com se


tivessem perdido o controle sobre si mesmas.) Ai, eu entrei na roda ui, ai, eu entrei
na roda dança, ai, ui, ai, eu entrei na roda dança, ai, ui ai, eu não sei dançar!
(Caem em si, recompõem-se e colocam-se novamente ao lado de Ana,
empertigadas e austeras.) Aula de religião!

CAMÉLIA — A quem se deve amar sobre todas as coisas?

ANA — Deus?

AMÉLIA — Claro que é Deus, ignorante!

CAMÉLIA — Qual o mais grave pecado?

ANA — Uma coisa... uma tal de luxúria!

AMÉLIA — (Delirando) — A luxúria!

CAMÉLIA — (Devaneando grotescamente) — A luxúria!

ANA — Tias, o que é a luxúria?

AS TIAS — (Juntas.) A luxúria é... (Entreolham-se em pânico.) LUXÚRIA!

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CAMÉLIA — Coisas do tinhoso!

AMÉLIA — Chega de explicações! Aula de geografia!

CAMÉLIA — Capital do Ceará?

ANA — Logo do Ceará?!

AMÉLIA — (Ameaçadora, entredentes) — Não sabe?

CAMÉLIA — (Idem) — Sabe ou não sabe?

AMÉLIA — (Com olhar perdido) — Lembre-se de um homem forte bem


forte... forte!

ANA — Antonio Boca!

CAMÉLIA — (Irônica.) — Ceará, capital Antonio Boca!

AMÉLIA — (Triunfante) — Forte! Forte! Fortaleza!

CAMÉLIA — E quem é este tal de Antonio Boca?

ANA — Ah, é um sonho que eu tive!

AMÉLIA — Você sonhou?

CAMÉLIA — Você sonha demais!

AMÉLIA — Castigo!

CAMÉLIA — Castigo!

AMÉLIA — Primeiro o meu!

CAMÉLIA — Primeiro o meu!

AMÉLIA — (À Camélia.) — Metida!

CAMÉLIA — (À Amélia.) — Invejosa!

AMÉLIA — (Contendo a raiva, mordendo a própria mão.) Escrever 100


vezes: “Não devo sonhar, não devo sonhar”!

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CAMÉLIA — E antes de dormir, rezar, rezar, rezar!

AS TIAS — (Juntas e saindo.) — E nada de ficar de namoricos pela janela!

ANA — (Depois da saída das duas.) — Bruxas! Não esqueçam suas


vassouras! (Ana corre, abre a janela e vê duas bruxas montadas em suas
vassouras, cortando o céu da janela/caixa de bonecos.)

CENA VII

(Mal humorada, Ana começa a escrever e a falar em voz alta o que está
escrevendo: Não devo sonhar, não devo sonhar, não devo sonhar... A luz volta a
iluminar a penteadeira do Palhaço no proscênio e por detrás dela surge
novamente o boneco Bernardo. O boneco canta mas Ana inicialmente não se dá
conta.)

CONTO DE BERNARDO
Amor é prata
ou ouro em pó.
Às vezes lua
outras é sol.
O meu amor
que é feito a lua
é minha sina
viver tão só.

(Surge o boneco Antonio Boca por detrás da mesma penteadeira,


interrompendo Bernardo.)

ANTONIO BOCA — (Dirigindo-se a Bernardo.) — Chega de tanta cantoria!


Não sabe fazer outra coisa! (Ana ri. Ele se dirige a Ana.) Ana, você não quer ser
minha Ana Manjericão?

ANA — (Assusta-se, levanta-se e chama.) — Elvira, Elvira!

(O Palhaço surge detrás da penteadeira trazendo em suas mãos os dois


bonecos: Antonio Boca e Bernardo.)

CENA VIII

(A cena é um diálogo entre o Palhaço, Ana, Antonio Boca e Bernardo. O


Palhaço deve funcionar como um ventríloquo, respondendo e falando por Antonio
e Bernardo. Ana fica um pouco confusa com a situação.)

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ANA — (Ao Palhaço) — Você não é Elvira!

PALHAÇO — Você me acha com cara de palhaço?

ANA — Mais ou menos!

PALHAÇO — Elvira já vem!

ANA — Por que você está aqui?

ANTONIO BOCA — A polícia está atrás dos ciganos e eu me escondi aqui!

ANA — Mas você não pode ficar aqui! As minhas tias...

BERNARDO — Você já sabe da sua sorte nas cartas?

ANA — Ainda não!

ANTONIO BOCA — Você quer saber?

ANA — Quero muito!

PALHAÇO — De quem você gosta mais? De Antonio ou de Bernardo?

ANA — Eu não sei!

PALHAÇO — Então eu tenho que ir embora!

ANA — Com os ciganos?

BERNARDO — (Misterioso.) — A polícia, está mais perto do que se pensa!

ANA — (Assustada.) — É?

ANTONIO BOCA — É... querem nos pegar! Dizem que enfeitiçamos as


pessoas e as levamos embora!

ANA — Eu tenho medo!

PALHAÇO — De nós?

ANA — Não sei! (Chamando.) Elvira! Elvira!


PALHAÇO — Não tenha medo! Elvira já vem! (O Palhaço se retira levando
os bonecos.)

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CENA IX

(Neste instante a janela não tem função de caixa de bonecos. É apenas uma
janela e através dela aparece o rosto de Elvira.)

ELVIRA — Às suas ordens!

ANA — Onde você foi?

ELVIRA — Fui ver se salvava o feijão!

ANA — Ainda bem que você voltou! Eu vi! Ele me chamou... ele me
perguntou: — Ana, você quer ser a minha Ana Manjericão? (Esquecendo que está
falando com Elvira.) Será que eu sonhei? Eu estava dançando e tudo começou a
girar, girar... (Ana gira pela cena a relembrar. Neste momento, Elvira pula a
janela e está vestida de cigana. Simultaneamente, o Palhaço entra pelo proscênio
e começa a transformar a cena, que passa a assemelhar-se à cena inicial do
espetáculo com Ana Manjericão e Antônio Boca na caixa de bonecos.)

ANA — (Dançando.) — Como você entrou?

ELVIRA — (Tocando pandeiro e envolvendo Ana numa dança cigana.) É só


pular a janela... O que estava dentro está fora e o que estava fora está dentro!

ANA — Por que você está vestida desse jeito?

ELVIRA — Você não queria saber a sua sorte?

ANA — Mas você não é cigana!

ELVIRA — Então eu vou embora!

ANA — Não! Quero saber sim!

ELVIRA — Quer mesmo?

ANA — Quero!

(A música e a dança se intensificam. O Palhaço traz para a cena um grande


bonecão tocador de violino. O Palhaço o senta sobre a sua perna. O bonecão
segura o violino com o queixo e o Palhaço usa o arco para tirar o som do violino.
Um foco de luz azul sobre o Palhaço e seu boneco e outro vermelho alaranjado
sobre Ana e Elvira dividem a cena. Ana vai colocando sobre si adereços que a

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transformam em Ana Manjericão.)

ELVIRA — (Lendo a sorte de Ana, atirando cartas de Tarot ao ar.) — O teu


destino... o que estava dentro está fora... o que estava fora está dentro... é o teu
caminho... e o teu destino... alguém gosta muito de você... mas você gosta de
outro... um brinco... um brinco de ouro... uma carta... um caldeirão e o fogo! (O
Palhaço vai tirando do violino do bonecão os mesmos acordes da caixa de
música de Ana: Os sonhos mais lindos sonhei...)

AS TIAS — (Histéricas, off) — Elvira! Está na hora de servir o jantar!

ELVIRA — Bem que elas podiam cair dentro da panela do feijão! (Elvira se
retira.)

CENA X

(Ana dança ao som do violino cigano. Na janela aparece o ator do qual o


boneco Antonio Boca é a réplica. Os dois se entreolham e Antonio pula a janela e
vem para junto de Ana Manjericão.)

ANA MANJERICÃO — Você gosta mesmo de mim?

ANTONIO BOCA — De outra é que não é!

ANA MANJERICÃO — Olha que tem outro que gosta de mim!

ANTONIO BOCA — Bernardo sempre fica só! É o destino dele!

ANA MANJERICÃO —
Olha a salsa, a cebolinha!
(Insinuante.) Manjericão, pimenta, erva daninha!
Olha a canela, a malagueta,
louro e cravo de rainha!

ANTONIO BOCA — Assim é que eu gosto! Ana Manjericão! Quero beber


até o sol raiar!

ANA MANJERICÃO — Fica feliz também, meu Boca! Roubei uma garrafa
de vinho! (Os atores dançam ao som de um canto cigano tocado e cantado pelo
Palhaço e seu bonecão. A cena reproduz os mesmos movimentos finais da Cena
III que se passava na caixa de bonecos. Os dois bebem e adormecem ao som do
violino. A luz cai em resistência sobre os dois.)
PALHAÇO E SEU BONECÃO
À força do tempo

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nada lhe resiste,
Tudo tem um fim,
só o amor persiste!

CENA XI

(Ouvem-se vozes em off. O Palhaço se retira de cena levando o bonecão.


Uma das vozes se destaca e entra em cena Bernardo, ator do qual o boneco
Bernardo é a réplica.)

VOZ 1 — Boca, acorda! Ana, acorda!

VOZ 2 — Temos que partir!

VOZ 3 — Boca, Ana, é dia claro... A polícia!

VOZ 4 — Estão atrás de nós!

ANTONIO BOCA — (Acordando.) A polícia?

ANA MANJERICÃO — Quero dormir!

BERNARDO — (Entrando, decidido.) — Antonio, a polícia! Acorda,


levanta!

ANA MANJERICÃO — (Esfregando os olhos.) — Quem é esse?

BERNARDO — Pra você eu não sou ninguém mesmo, não é?

ANTONIO BOCA — O quê que você quer aqui, Bernardo?

BERNARDO — Vim apenas avisar que estão atrás de nós!

ANA MANJERICÃO — De nós? Antonio, o que ele tem a ver comigo e


você?

ANTONIO BOCA — (À Bernardo, sem dar atenção a Ana.) — E quem


garante que isso é verdade?

BERNARDO — Não tenho nada a ganhar! Se quiser acreditar, acredite... se


não quiser acreditar, não acredite!

ANA MANJERICÃO — Não confia nele, Boca... Olhos verdes são traição!

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ANTONIO BOCA — Bernardo nunca me traiu!

BERNARDO — Vontade não falta!

ANTONIO BOCA — O que te segura, então? Vai dizer à polícia onde nós
estamos!

BERNARDO — Eu sou um cigano!

ANA MANJERICÃO — Não parece!

ANTONIO BOCA — Cala a boca, Ana!

ANA MANJERICÃO — Cala a boca já morreu!

ANTONIO BOCA — Pois é, quem manda aqui sou eu! (A Bernardo.) O que
eles alegam, Bernardo?

BERNARDO — Dizem que alguém de nome Ana foi enfeitiçada e raptada!

ANTONIO BOCA — O de sempre!

BERNARDO — E que Elvira tem a ver com isso!

ANA MANJERICÃO — Elvira não tem nada a ver com isso! Quem tem a
ver é Antonio!

BERNARDO — Eu tô vendo! Desgraça pouca é bobagem!

ANA MANJERICÃO — Acho bom! Mas não pensa que vai escapar de mim
não, porque não vai! (Sai.)

CENA XII

ANTONIO BOCA. BERNARDO e depois ELVIRA

ANTONIO BOCA — É verdade mesmo, Bernardo?

BERNARDO — O quê? Que a polícia está atrás de nós?

ANTONIO BOCA — Que tudo isso é ciúme?

BERNARDO — É verdade!

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ANTONIO BOCA — O quê que é verdade?

BERNARDO — Ambas as coisas! (Nervoso.) Não sei o quê que você quer
com Ana!

ANTONIO BOCA — Eu quero o que você não pode ter!

BERNARDO — Você sempre faz isso!

ANTONIO BOCA — E o que é que você tem a ver com isso?

BERNARDO — Minha vontade é te arrebentar!

ANTONIO BOCA — Por que não arrebenta?

BERNARDO — (Irônico.) — Cala a boca já morreu! Quem mande aqui é


você!

ANTONIO BOCA — Manda quem pode!

BERNARDO — Ou quem é safado!

ANTONIO BOCA — Você é que é safado!

BERNARDO — Eu não sou safado e você sabe disso! Eu sou um


apaixonado!

ANTONIO BOCA — (Debochado.) — Apaixonado!

BERNARDO — Você não entende isso! Não sabe o que é isso!

ANTONIO BOCA — Minha paixão dura pouco mas é feito fogo em brasa!

BERNARDO — Pois a minha é eterna como a água dos meus olhos!

ANTONIO BOCA — Você se queixa demais! É por isso que elas não te
querem!

BERNARDO — E é por você não ser assim que elas te querem?

ANTONIO BOCA — Quem sabe?!

BERNARDO — Você tem é medo! Você é um covarde!

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ANTONIO BOCA — (Puxando uma faca.) — Diz isso de novo!

BERNARDO — (Puxando uma faca.) — Digo e repito: você é um covarde!

Vive fugindo do amor! (Os dois simulam uma luta/dança cigana de facas.
No calor da luta, entra Elvira, apavorada, correndo.)

ELVIRA — Antonio! Bernardo! Parem com isso! Parem com isso! A polícia
está atrás de nós! (Os dois param, medindo-se.)

ANTONIO BOCA — (A Bernardo.) — A gente ainda se acerta!

BERNARDO — Não vejo a hora!

ANTONIO BOCA — (A Elvira) — Como souberam?

ELVIRA — As tias... Vocês não vão fazer nada?

ANTONIO BOCA — Temos antes um assunto a resolver!

ELVIRA — Vocês estão é loucos?

ANTONIO BOCA — Bernardo está louco! De ciúmes!

BERNARDO — Antonio é que está louco! Tem medo do amor!

ELVIRA — Eu não estou interessada nisso! Temos que salvar a pele! Vocês
não têm vergonha na cara?

ANTONIO BOCA — Vergonha é roubar e não poder carregar!

ELVIRA — Vocês sempre foram como irmãos!

BERNARDO — Está tudo errado! Antonio quer Ana apenas por algumas
horas e eu a quero para sempre!

ELVIRA — Isso não existe! Me dêem essas facas! (Ela recebe as facas.)
Isso! Agora estendam as mãos! Estão vendo a ponta dessas facas? Elas juntam as
duas partes como as duas metades de uma mesma medalha! Elas iam tirar o
sangue para o mal e agora vão tirar para o bem! (Elvira dá um pique na ponta do
dedo de Antonio e de Bernardo e os junta num pacto de irmãos.)

ELVIRA — Quando um irmão está em perigo, o outro saberá, e, esteja onde


estiver, atenderá ao chamado!

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Bernardo, repita comigo:
Antonio, por detrás te vejo em cruz; e por mim, Bernardo, o sol e a luz.

(Bernardo repete as palavras mágicas de Elvira.)

ELVIRA — Agora você, Antonio, repita comigo:

Bernardo, tu irás e acharás;


em busca de mim, Antonio, tu tornarás!

(Antonio repete as palavras mágicas de Elvira. Os três juntam as mãos no


centro da cena. Elvira vai para o centro e os dois abrem a sua saia como uma
grande tenda e os três rodopiam como num ritual cigano. O diálogo que se segue
acontece durante o rodopio.)

BERNARDO — (A Antonio.) — Você acredita?

ANTONIO BOCA — No quê?

BERNARDO — Que é possível vencer?

ANTONIO BOCA — Viva o medo do que não se sabe!

BERNARDO — Viva você, Antonio!

ANTONIO BOCA — Viva você, Bernardo!

ELVIRA — Viva tudo o que se foi e tudo o que será!

ANTONIO BOCA — Bernardo, estamos do mesmo lado?

BERNARDO — Como sempre!

ANTONIO BOCA — Precisa estar seguro!

BERNARDO — Prometo!

ANTONIO BOCA — Então eu vou falar com Ana! Você não se importa?

BERNARDO — Eu morro de paixão... mas é o meu destino!

ANTONIO BOCA — Até depois! (Sai do rodopio e desaparece.)

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CENA XIII

(Bernardo e Elvira ficam sós e terminam o rodopio, sentados no chão, um de


frente para o outro.)

BERNARDO — Elvira... eu preciso saber! Preciso saber! Você precisa ler a


minha sorte! (Elvira tira um baralho da manga, pede a Bernardo que o corte e
começa a ler.)

ELVIRA — Ele foi se encontrar com ela... Ela gosta dele e você gosta dela...
Antonio você sabe como ele é! (Assusta-se com o que vê.) Isso pode pôr tudo a
perder! Antônio está dando o brinco dele para Ana! Antonio não pode ficar sem o
seu brinco! Do contrário, perde a força! Todos os ciganos sofrerão com isso! É
você, Bernardo, quem tem que nos salvar! A polícia, Bernardo, as tias, estão atrás!
Não sei... não vejo muito bem... areia da grossa... areia da fina... areia da grossa...
areia da fina... areia da grossa... (Cai a luz em resistência na cena sobre Elvira e
Bernardo e sobe em resistência na janela/caixa de bonecos.)

CENA XIV

(Na janela/caixa de bonecos está a boneca Ana escrevendo, falando em voz


alta: — Não devo sonhar, não devo sonhar, não devo sonhar... Em cena, surge
Antonio Boca, ator, meio escondido, meio agachado, esqueirando-se. Antonio
assobia em direção à janela. O diálogo todo é entre a boneca Ana e o ator que
representa Antonio Boca.)

ANA — É você, Antonio?

ANTONIO BOCA — Sou eu!

ANA — Eu quero namorar com você! Eu só penso nisso!

ANTONIO BOCA — Mas eu vim te dizer adeus!

ANA — Você não gosta de mim?

ANTONIO BOCA — Eu sou um cigano... As suas tias...

ANA — Por que você não deixa de ser cigano e casa comigo?

ANTONIO BOCA — Eu vou ser sempre um cigano! Olha, isso é de


lembrança para você! (Tira o seu brinco de ouro da orelha e o coloca na orelha
da boneca.)

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ANA — É lindo! Mas é seu!

ANTONIO BOCA — Não tem importância!

ANA — (Pedindo silêncio.) — SSSHHH...

ANTONIO BOCA — O que foi?

ANA — Fala mais baixo que elas podem ouvir!

ANTONIO BOCA — Elas já sabem!

ANA — Sabem? Agora mesmo é que eu vou com você!

ANTONIO BOCA — Não! Cigano não tem paradeiro!

ANA — Eu só penso em você! Casa comigo!

ANTONIO BOCA — Fica pra outra vez!

ANA — Eu vou com você! Esta noite! Estou decidida!

ANTONIO BOCA — Mas não pode ser!

ANA — Você não me deu o seu brinco? (Ouve-se barulhos de passos.)

ANTONIO BOCA — (Rápido) — Você me devolve ele na clareira perto do


acampamento!

ANA — Me diz que me adora!

ANTONIO BOCA — Eu não te dei o brinco?

ANA — Eu te adoro! Eu quero ser a sua Ana Manjericão!

ANTONIO BOCA — Isso é só um sonho, Ana!

(Os barulhos se intensificam e Antonio Boca escapa rapidamente de cena.)

CENA XV

(Entram em cena as duas Tias, atrizes, vestida de policiais com as duas


bonecas que são as suas réplicas, nas mãos. Elas farejam a cena como se
estivessem seguindo algum rastro, até que deparam com a boneca Ana na janela.)

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AMÉLIA — O que faz você aí na janela?

CAMÉLIA — De namoricos outra vez?

AMÉLIA — Você vai ter o castigo que merece!

(As Tias entram atrás da empanada — janela/caixa de bonecos — e as


bonecas que são as suas réplicas interrogam a boneca Ana.)

ANA — Eu não estava fazendo nada... Tava só sonhando!

CAMÉLIA — Sonhando de novo?

AMÉLIA — O que você estava sonhando?

ANA — Que horas são?

AS TIAS — As mesmas de sempre!

AMÉLIA — Em ordem!

CAMÉLIA — Seu lugar!

AMÉLIA — Sem rir!

CAMÉLIA — Sem falar!

AMÉLIA — De um pé!

CAMÉLIA — Ao outro!

AMÉLIA — De uma mão!

CAMÉLIA — À outra!

AMÉLIA — (Vendo que Antonio obedece as ordens e ajeita as suas coisas.)


— Aonde você pensa que vai?

CAMÉLIA — E este brinco de onde surgiu?

AMÉLIA — É um brinco roubado!


ANA — Vou fugir!

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CAMÉLIA — Fugir? Mas essa é boa! Você ficou louca?

ANA — Fiquei! Doidinha! Vou fugir!

AMÉLIA — E você pensa que vai fugir para onde?

ANA — Sei lá! Tanto faz!

CAMÉLIA — Como sabe lá tanto faz?

AMÉLIA — E você pensa que vai fugir com quem?

ANA — Com Antonio Boca, um cigano! E este brinco era dele! Agora é
meu!

CAMÉLIA — A polícia vai atrás dele!

ANA — Pois então vai atrás de mim também... eu sempre quis fugir com os
ciganos! (De alguma forma, sem que Ana o perceba, roubam-lhe o brinco de ouro
que Antonio Boca lhe dera.)

AMÉLIA — Você não vai! Está proibida de sair!

ANA — Não há ninguém que me segure aqui!

CAMÉLIA — Eu juro por tudo de mais sagrado que você não vai com ele
coisa nenhuma!

AMÉLIA — Cigano tem parte com o Diabo!

CAMÉLIA — Deus a abandonou!

AS TIAS — (Juntas.) — Guerra é guerra!

(Em cena ouvem-se barulhos de folhas secas, galhos e um assobio.)

AS TIAS — Que barulhos são esses?

AMÉLIA — Vamos lá fora verificar!

CAMÉLIA — Estamos de olho em você! (As Tias desaparecem na cena da


caixa de bonecos.)
CENA XVI

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(A luz sobe em resistência na cena e vê-se Bernardo. Esta cena toda é um
diálogo entre o ator e a boneca.)

BERNARDO — Ana, Ana!

ANA — É você, Antonio?

BERNARDO — Não! Sou eu, Bernardo.

ANA — O que você quer aqui?

BERNARDO — Eu gosto de você! E é de verdade!

ANA — Você devia estar junto com os outros! Cadê Antonio?

BERNARDO — Elvira me disse que Antonio te deu o brinco dele!

ANA — Porque ele me adora!

BERNARDO — Antonio não pode ficar sem o brinco dele! Devolve, Ana!
Eu vim buscar! (Ana constata que está sem o brinco que Antonio Boca lhe dera.)

ANA — O brinco não está mais comigo!

BERNARDO — Ele não te deu?

ANA — Deu! Elas roubaram... aquelas bruxas malditas!

BERNARDO — Antonio e todos os ciganos vão sofrer por isso!

ANA — Isso não é verdade! Isso tudo é ciúme seu! (Bernardo e Ana
assustam-se com risos estridentes e coachar de sapos.)

ANA — Vem vindo gente! (Ana se esconde e a luz na caixa de bonecos se


apaga rapidamente. Em cena, Bernardo, atônito, é surpreendido pela entrada das
duas Tias, vestidas de bruxas.)

ANA — Vem vindo gente!

CENA XVII

(As duas Tias, vestidas de bruxas entram em cena montadas em vassouras,


equipadas de cordas e cassetetes, trazendo um caldeirão fumegente. As duas
rodopiam em volta de Bernardo dando gritinhos e risadinhas estridentes.)

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AMÉLIA — Ah, ah... você deve ser o tal Antonio Boca!

CAMÉLIA — (Gargalhando.) — A capital do Ceará! Ah! Ah! (Riem e


rodopiam amarrando Bernardo nas cordas.)

BERNARDO — Eu não sou Antonio Boca! Eu sou Bernardo!

AMÉLIA — Pois então nos diga onde está esse tal de Antonio Boca que nós
o deixamos livre!

BERNARDO — Eu não posso fazer isso!

CAMÉLIA — Por que não?

BERNARDO — Isso é traição!

AMÉLIA — Olhos verdes são traição! (Riem.)

CAMÉLIA — É o seu destino!

BERNARDO — Pois então eu mudo o meu destino!

AMÉLIA — (Rindo) — Muda, é?

CAMÉLIA — (Rindo.) — É o que veremos! (As duas Tias bruxas começam


um estranho ritual ao redor do caldeirão, ameaçando transformar Ana numa
lagartixa.)

AMÉLIA — Areia da grossa... areia da fina. Ana cigana vai virar lagartixa.

CAMÉLIA — Hi, hi, hi... areia da grossa, areia da fina faz lagartixa daquela
menina.

BERNARDO — Tá bem! lá bem! Eu conto onde está Antonio Boca!

AS TIAS — Hi, hi, hi, a gente sabia!

BERNARDO — Mas só se me derem o brinco de ouro que era de Antonio!

AMÉLIA — O brinco? Nunca!

CAMÉLIA — Pra que que você quer o brinco? Ele não é seu. (Riem.)

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BERNARDO — Assim eu terei tudo o que ele tem!

AMÉLIA — Ele é dos nossos! Além de traidor...

CAMÉLIA — ...é safado!

BERNARDO — Eu sou apenas um apaixonado!

AS TIAS — (Juntas, morrendo de rir.) — Ah, ah, ah, essa é muito boa!

AMÉLIA — Trato feito! Onde está Antonio?

BERNARDO — Primeiro o brinco!

CAMÉLIA — Tá pensando que somos bobas, é, ah, ah, ah!

AMÉLIA — (Mostrando o brinco.) — De longe, de longe... é prá ver com os


olhos!

CAMÉLIA — Agora!... Antonio!

BERNARDO (Sem opção) — Antonio, por detrás te vejo em cruz; e por


mim, Bernardo, o sol e a luz!”

(Bernardo repete as palavras mágicas de Elvira 3 vezes até que se começa a


ouvir ao longe a resposta de Antonio.)

CENA XVIII

(Antonio entra correndo atendendo ao chamado de Bernardo.)

ANTONIO BOCA — Bernardo, tu irás e acharás; em busca de mim,


Antonio, tu tornarás!”

BERNARDO — Este é Antonio! Prendam-no!

(As Tias bruxas ameaçam Antonio, rodopiam à sua volta e prendem-no com
cordas.)

AMÉLIA — Ah, então é você o namoradinho?

CAMÉLIA — A capital do Ceará não é nenhuma Fortaleza!


AMÉLIA — (Irônica.) — O príncipe cigano!

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CAMÉLIA — Encantador, você não acha Amélia?

AMÉLIA — Acho sim, Camélia!

CAMÉLIA — Vai virar um belo dum rato!

ANTONIO BOCA — Bernardo, você me traiu!

BERNARDO — Se é isso o que você acha!

AMÉLIA — Traidor barato, você não acha, Camélia?

CAMÉLIA — Tudo por causa de um brinco, não é Amélia? (As duas riem
estridentemente sem parar.)

AS TIAS — (Juntas, em direção à Antonio.) — Agora, o namoradinho vai


virar... ratinho! Hi, hi, hi!

BERNARDO — Agora o brinco é meu!

AMÉLIA — Calma, calma, primeiro o ratinho... depois o brinquinho! (As


Tias bruxas colocam Antonio de joelhos atrás do caldeirão e principiam uma reza
maldita.)

AS TIAS — (Juntas.)
Pelo sim e pelo não
pelo cheiro do feijão
lugar de peixe é rede
e de rato é caldeirão!

(Repetem várias vezes até que Antonio, escondido na platéia, coloque uma
máscara de rato e um rabo comprido no traseiro.)

AMÉLIA — Pronto, ratinho! Pode levantar!

CAMÉLIA — Que bonitinho que ficou, ah, ah, ah! (Elas soltam as cordas de
Antonio e começam a brincar com o seu rabo pela cena num jogo maldito.)

BERNARDO — Agora o brinco!

AMÉLIA — Ah, sim, o brinco!

CAMÉLIA — Fez por merecer, o safado!

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AMÉLIA — Quero ter o prazer de colocar na sua orelha! (Assim que elas
colocam o brinco na orelha de Bernardo, ele consegue se desvencilhar das
cordas.)

CAMÉLIA — Hummm, acho que é ele a capital do Ceará, Amélia!

AMÉLIA — Não se pode confiar na geografia, Camélia! (Bernardo vai até o


caldeirão e olha para dentro. Dá um grito espantado.)

AS TIAS — (Juntas.) O que foi?

BERNARDO — Vocês não sabem o que eu estou vendo!

AS TIAS — O quê, o quê?

BERNARDO — Ana está fugindo!

AS TIAS — Não pode ser! Não acredito! Só vendo!

BERNARDO — Pois olhem! (As Tias olham para dentro do caldeirão e


Bernardo rapidamente as empurra para dentro. Elas ficam apenas com as pernas
para fora, esperneando. Bernardo corre até junto de Antonio e dança e canta ao
seu redor até que Antonio consegue livrar-se do feitiço de rato.)

BERNARDO — Na noite que esconde o dia (Ao redor de Antonio.) há lua e


três Marias.
Se o sol brilha
e é claro o dia,
é porque a noite lhe serviu de guia!

(Quando Antonio finalmente surge de dentro do rato, Bernardo mostra-lhe o


brinco, devolvendo-o.) — Antonio, Antonio! O sol é um brinco de ouro no céu! E
ele é seu, Antonio, é seu!

ANTONIO BOCA — Bernardo, estamos do mesmo lado!

BERNARDO — Pra o que der e vier!

ANTONIO BOCA — Então vamos embora! Eu preciso escrever uma carta!

BERNARDO — Espera! As vassouras! Agora são nossas!

ANTONIO BOCA — É, não vamos negar a raça! Apenas uma lembrancinha!


(Os dois saem rindo, montados nas vassouras.)

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CENA XIX

(Pelo outro lado da cena entra Elvira sem as vestes de cigana.)

ELVIRA — (escandalosa.) — Dona Amélia! Dona Camélia! O que as


senhoras estão fazendo dentro da panela do feijão?

AS TIAS — (Do fundo do caldeirão.) — Elvira, está na hora de servir o


jantar! (Elvira sai de cena arrastando o caldeirão com as duas esperneando.)

CENA XX

(A luz se acende na janela/caixa de bonecos e aparece a boneca Ana. Quase


que simultaneamente, a atriz da qual a boneca Ana é réplica sai da lateral da
caixa, e as duas acenam um adeus uma para a outra. Ana-atriz entra em cena
trazendo uma vela para clarear a noite escura.)

ANA — Antonio, Antonio, onde está você? Antonio... (Entra o Palhaço


trazendo uma carta.)

PALHAÇO — Não, Antonio não está mais aqui!

ANA — Obrigada... eu pensei que...

PALHAÇO — Não tem importância... Você ainda esperava encontrá-lo?

ANA — Eu queria devolver o brinco dele... Mas eu perdi!

PALHAÇO — Ele já o encontrou!

ANA — É verdade?

PALHAÇO — É verdade!

ANA — É verdade que o brinco era roubado?

PALHAÇO — Não... esse brinco sempre foi dele... Não pode ser de mais
ninguém!

ANA — E a polícia?

PALHAÇO — Estava atrás deles por causa da fuga de uma menina! Mas o
compromisso que eles têm entre eles é mais forte que isso!

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ANA — Compromisso?

PALHAÇO — De correr o mundo, se perderem e se encontrarem, estejam


onde estiverem.

ANA — E o amor que ele me tinha?

PALHAÇO — Era vidro e se acabou!

ANA — Mas eu preciso saber!

PALHAÇO — Você sabe... o seu coração sabe... e, olhe, eu trouxe uma carta
para você!

ANA — É uma carta de Antonio!

PALHAÇO — É uma carta de Antonio! (Enquanto Ana lê carta de Antonio,


o Palhaço cantarola.)
Ai, velhas cartas de amor...
ai, são retalhos de dor...

(E traz para a cena a sua penteadeira-gambiarra. Na caixa de bonecos a


boneca Ana choraminga ao final da carta que Ana-atriz lê.)

ANA (Boneca.) — Ana, Ana, eu tenho medo! Eu tô tão triste! (Ana- atriz se
dirige até a janela, pega a boneca Ana no colo, beija-a, acaricia-a.)

ANA (Atriz.) — Não tenha medo... eu vou cuidar para que você não tenha
medo!

(Entra Elvira, vestida de empregada.)

ELVIRA — Ana, Ana, onde você está? (Dirigindo-se à boneca Ana enquanto
fala.) Ah, Ana, vamos para dentro! Está esfriando! Não são horas de você estar na
rua! (Ana-atriz entrega a boneca Ana para Elvira que sai de cena. Ana fica só.)

CENA XXI

(Ana se dirige até a penteadeira-gambiarra no proscênio. Prende o cabelo,


maquila-se e coloca roupas de Colombina. O Palhaço a espreita satisfeito. Ele
sai detrás da penteadeira com os três bonecos do início da história: Pierrot,
Colombina e Arlequim. Os três são réplicas de Bernardo, Ana e Antonio, atores.
Começa a mesma música da caixa música de Ana e ela começa a rodopiar como

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a bailarina da caixa.)

CENA XXII

(De repente, a luz se acende na janela/caixa de bonecos e surge a boneca


Ana.)

ANA (Boneca.) — Elvira! Elvira! Tem música na cidade! Eles chegaram,


Elvira! Eles chegaram! (Sem que Elvira responda.) Elvira! Você namorou alguém?
(Pausa.) Ah! Eu queria tanto fugir com os ciganos, namorar alguém!

(Uma música de carnaval se intensifica e entra em cena dançando um bloco


formado pelos atores com roupas de um carnaval antigo, destacando-se Bernardo
e Antonio Boca, fantasiados de Pierrot e Arlequim. Os dois se juntam à
Colombina e pegam os seus bonecas réplicas das mãos do Palhaço. Todas pulam
carnaval jogando confetes e serpentinas, uns sobre os outros e sobre a platéia,
convidando-os a cantar e a dançar juntos.)

Vem ver a vida,


vem namorar,
Vem ver a vida
se enfeitar.

A terra é linda,
é flor menina, (BIS)
é Colombina
sempre a girar.

Vem ver a vida,


venha cantar.
É carnaval no
céu e no mar.

Vem ver a vida,


viver o sonho,
que tudo isso (BIS)
pode se acabar!

(Sob o olhar de Ana, que, na janela/caixa de bonecos, canta e aplaude.)

BIBLIOGRAFIA:

Algumas obras foram consultadas sobre os ciganos, os personagens de

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Commedia dell’arte e sobre os sonhos, a saber:

Vida e Obra de Frederico Garcia Lorca, em Obras Completas — Ed Aguilar.


Os Ciganos no Brasil e Cancioneiro Cigano — Mello Moraes Filho Col
Reconquista do Brasil.
A medicina secreta dos ciganos — Pierre Derlon — Difel.
Formulário de Alta Magia — P.V. Piobb — Ed. Francisco Alves.
O Poder do Sonho — Ann Faraday — Ed. Artenova.
Memórias, Sonhos e Reflexões — C.G. Jung — Ed. Nova Fronteira.
O Homem e seus Símbolos — CG. Jung — Ed. Nova Fronteira.
A Linguagem Esquecida — uma introdução ao entendimento dos sonhos,
contos de fadas e mitos — Erich Frommm — Ed. Zahar.
Feiticeiros, Profetas e Visionários — Textos antigos portugueses. Seleção de
Yvonne Cunha Rego — Imprensa Nacional, Lisboa.
La Commedia dell’arte — Ed. Paidos — Vários autores.

DISCOGRAFIA:
LP — Discos Marcus Pereira — Região Centro-Oeste — Moreninha se eu te
pedisse — Domínio Popular.
LP — Gipsy — Música Cigana Maravilhosa — Desmond Bradiey.
LP — Falso Brilhante — Elis Regina — Tema: Fascinação
LP — Luzes da Ribalta — Charles Chaplin

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