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DIÁRIO DE UM DETENTO O MISTÉRIO DO QUARTO ESCURO

São Paulo, dia 1º de Outubro de 1992, oito horas da Acordo atordoada, tonta, não me lembro de
manhã nada, me viro para lá, me viro para cá e não consigo
Aqui estou, mais um dia sair daqui. A porta está fechada. Por mais que eu tente,
Sob o olhar sanguinário do vigia não consigo abrir. Aqui dentro está uma bagunça de
Você não sabe como é caminhar com a cabeça na mira roupas esparramadas, um mau cheiro. Está mau
de uma HK ventilado, sinto até falta de ar Aqueles homens me
Metralhadora alemã ou de Israel prenderam sem motivo algum.
Estraçalha ladrão que nem papel Tento mais uma vez, não consigo abrir a porta,
Na muralha, em pé, mais um cidadão José me trancaram, está escuro, não enxergo nem onde piso,
Servindo o Estado, um PM bom esbarrando em tudo. Aqui, apesar de fazer muito frio,
Passa fome, metido a Charles Bronson estou até corada de calor e aflição.
Ele sabe o que eu desejo Este escuro me dá medo. Apesar de tudo,
Sabe o que eu penso preferia estar lá fora. Só consigo ver luz em uma brecha
O dia tá chuvoso, o clima tá tenso da porta. Pouca coisa posso ver do outro lado, não sei o
que estão fazendo com as minhas amigas, ai coitadas.
Vários tentaram fugir, eu também quero Não sei se estão fazendo ou já fizeram. Ai! não quero
Mas de um a cem, a minha chance é zero nem pensar.
Será que Deus ouviu minha oração? Esses homens que me prenderam aqui dentro
Será que o juiz aceitou a apelação? não têm coração, não nos respeitam, a nós que somos
Mando um recado lá pro meu irmão tão inofensivas e indefesas.
Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão Fico em silêncio e ouço vozes masculinas confusas do
Ele ainda tá com aquela mina lado de fora. Acho que estão discutindo o que farão
Pode crer, moleque é gente fina comigo. Essas cordas estão me machucando. Não
Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá gosto nem de pensar o que me vai acontecer. Acho que
Tanto faz, os dias são iguais me prenderam por eu ser, a mais gordinha
Acendo um cigarro, e vejo o dia passar Meu medo aumentou, ouço passos em minha
direção, não posso me esconder, não consigo nem me
Mato o tempo pra ele não me matar movimentar. Estão forçando a porta e têm a chave. Não
Homem é homem, mulher é mulher sei o que fazer. Acho que chegou a minha vez, vieram
Estuprador é diferente, né? me buscar, não posso mais escapar.
Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés Abriram a porta. E um moreno magro e
E sangra até morrer na rua 10 comprido, de cabelo grande, feio que Deus me livre.
Cada detento uma mãe, uma crença Vem com as mãos em minha direção e me agarra com
Cada crime uma sentença força em seus braços, me desamarra, joga as cordas e
Cada sentença um motivo, uma história de lágrima me leva para fora num gesto brutal, me põe no chão
Sangue, vidas inglórias, abandono, miséria, ódio para fechar novamente o local. Tento correr mas não
Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo consigo ir longe. Ele me agarra outra vez com força.
Misture bem essa química Tento me livrar dele, mas não consigo. Ele sorri, me leva
Pronto, eis um novo detento para outro lugar. Vejo uma de minhas amigas, penso cm
pedir socorro, mas ela não pode me ajudar, pois ela
Lamentos no corredor, na cela, no pátio está sendo vigiada por um careca ainda mais feio que o
Ao redor do campo, em todos os cantos outro (o que o outro tem de cabelo, neste está em falta).
Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã Coitada! Será que o destino dela será o mesmo que o
Aqui não tem santo meu?
Rátátátá preciso evitar Até que ele pára comigo, mas não me coloca no
Que um safado faça minha mãe chorar chão (acho que, de medo de eu fugir outra vez) então é
Minha palavra de honra me protege a hora, ele me bate, bate, bate no chão. Entra comigo
Pra viver no país das calças bege. no garrafão, pula comigo e faz a primeira cesta do jogo!
[...]
Autor desconhecido
Racionais MC's

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