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PROBLEMAS DE HERMENÊUTICA RADICAL

PROBLEMAS DE
HERMENÊUTICA RADICAL

Dagmar Manieri
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia / Imagem de Capa: Kangaroo Dreaming Puzzle - Charlie Chambers Junior

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MANIERI, Dagmar

Problemas de hermenêutica radical [recurso eletrônico] / Dagmar Manieri -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2022.

228 p.

ISBN: 978-65-5917-627-4
DOI: 10.22350/9786559176274

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Hermenêutica; 2. Estética; 3. XXX; 4. Interpretação; 5. Literatura; I. Título.

CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9
1 18
O ATO DE LEITURA COMO PRÁTICA HERMENÊUTICA
A PRÁTICA HERMENÊUTICA NOS MODOS DE LEITURA .............................................................................. 22
OS MODELOS PRÁTICOS DE INTERPRETAÇÃO TEXTUAL ........................................................................... 31

2 52
O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
O ABSOLUTO DA DANÇA .................................................................................................................................... 64
A DIGNIDADE DO ARTISTA ................................................................................................................................. 72
O MAL SOB CONTROLE ........................................................................................................................................ 79
A DIFÍCIL AUTONOMIA DE UMA COMUNIDADE ........................................................................................... 88

3 100
LITERALIDADE E ESCRITURA EM KAFKA: TRÊS CONTOS
A ESCRITURA EM TRÊS CONTOS DE KAFKA ................................................................................................. 110

4 140
O DISCURSO POPULISTA DE PERÓN
O DISCURSO POPULISTA E SUA IDEOLOGIA ............................................................................................... 145
O DISCURSO DE 31 DE AGOSTO DE 1955 NA PLAZA DE MAYO ............................................................ 158

5 176
LUTAS SIMBÓLICAS E REPRESENTAÇÃO
A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA ..................................................................................................................... 179
A HERMENÊUTICA NO PENSAR EM NIETZSCHE .......................................................................................... 185
OBJETIVAÇÃO E RECONHECIMENTO .............................................................................................................. 194

REFERÊNCIAS 211
INTRODUÇÃO

A dialética está intimamente relacionada a um desejo de transfor-


mação; ela foca as contradições e requer um reparo ao “erro” ou “estágio
inferior”. Na cultura filosófica antiga, a contradição (antiphasis) é ob-
servada – principalmente no platonismo – com antipatia pela lógica
filosófica. De certa forma a dialética é uma excelente arma, um instru-
mento, pode-se dizer, em mãos do filósofo. Neste estranho diálogo que
se denomina de dialético, o interlocutor se converte em adversário (em-
bora, no exemplo de Platão, seu Sócrates aparecer convidativo, até
simpático). Auxiliado no princípio da não contradição, o filósofo dialé-
tico encurrala o adversário e extrai dele um estado de confusão. Mas o
bom filósofo não pode ser só um bom competidor; ele necessita levantar
o derrotado e fazê-lo caminhar com segurança após a derrota. Esse é o
exemplo de Sócrates desenhado no Teeteto, de Platão. Nesta obra há um
bom exemplo de como a dialética opera no diálogo. Teeteto é um “es-
plêndido jovem” de Atenas que estuda matemática com Teodoro.
Sócrates se admira ante o elogio que o matemático faz da inteligência e
postura nobre do jovem. Sócrates simula cordialidade para atrair o jo-
vem Teeteto para sua armadilha. A isca é lançada e logo o jovem se sente
embaraçado diante da questão: o que é o conhecimento?
No decorrer do debate Teeteto se sente inseguro. O astuto Sócrates
necessita insuflar ânimo no jovem: “(...) sofres as dores do parto,
10 • Problemas de hermenêutica radical

Teeteto, visto que não és estéril, mas engravidaste”. 1 Sócrates tem cons-
ciência de sua imagem ante seus concidadãos. Afirma que se comenta
que ele é “um indivíduo muitíssimo excêntrico” e que leva “as pessoas a
dificuldades”. Assustadora dialética que conduz as pessoas a ter consci-
ência de que vivem na ilusão. Sócrates reconhece sua arte. Ela tem a
“capacidade de testar, de todas as maneiras possíveis, se o intelecto do
jovem está gerando uma mera imagem, uma falsidade, ou uma genuína
verdade”. 2 Então não há ensinamento, mas um “parto” no qual a consci-
ência dá a luz a “belas coisas”. Através das contradições se chega às
“belas coisas”; Teeteto foi conduzido e, através de muitas dores, se cu-
rou de sua ignorância. 3 Sócrates utiliza de uma metáfora para
caracterizar o jovem antes de passar pelas “dores do parto”: o ovo sem
gema. Poderosa dialética que localiza as falsidades, os simulacros e
ideias vazias (nas palavras de Sócrates, deve-se “investigar e tentar re-
futar nossas mútuas fantasias e opiniões”).
A dialektike é a arte da superação (Aufhebung), mas não em busca de
um acordo final. Enquanto houver contradição, o movimento dialético
pode gerar uma nova negatividade. 4 Portanto, o telos na dialética é um
momento que se explica pelo término da contradição: o fim da história,
em Hegel, e o comunismo, em Marx. 5 Refutação, negatividade, eis algu-
mas posturas intelectuais da crítica dialética que almeja contornar,

1
Platão, 2013, p. 52 [148e].
2
Ibid., p. 54 [150c].
3
“Aqueles que a mim se associam são – diz Sócrates -, no que tange a essa associação, também como
mulheres por ocasião do nascimento de seus filhos; suportam dores e experimentam angústias dia e
noite, e muito mais do que o experimentam as mulheres. Minha arte é capaz tanto de despertar essas
dores quanto de fazê-las cessar” (Ibid., p. 55 [151a]).
4
Aqui nos referimos à dialética moderna, pós-hegeliana.
5
“A contradição, portanto, como foi dito várias vezes, é o motor interno da dialética, aquilo que produz
o movimento, ou seja, a passagem de uma proposição a outra” (Berti, 2013, p. 335).
Dagmar Manieri • 11

cercar e superar o falso. Se há movimento na história, a dialética pro-


move um significado (otimista) para este movimento. 6 Peter Sloterdijk
com sua razão cínica diria que a dialética é pretensiosa. Por isso seu di-
álogo é um engodo que simula um ambiente democrático. Bem ao estilo
de Sócrates, quando o adversário não se curva, ele confidencia a ausên-
cia do saber.
No período da modernidade a dialética está no centro do debate
entre grandes pensadores: Hegel, Marx e Nietzsche. Este último a re-
jeita, inclusive a julga como fator de decadência do mito trágico antigo
(grego). Já Marx, como um hegeliano de esquerda, introduz a dialética
como um dos fundamentos da visão radical (marxista) da história. No
início do Manifesto Comunista, Marx e Engels comentam: “A história de
todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes”. 7
A dialética explica este princípio (da luta de classes) que ultrapassa as
fronteiras da radicalidade. Quando Lênin se refere ao revolucionário
Bukharin, primeiro há um elogio: “Além de ser o maior e mais impor-
tante teórico do partido, Bukharin é também tido, merecidamente,
como a pessoa mais benquista no partido; (...)”. Posteriormente, Lênin
abandona o espírito de partido e encarna o marxista severo: “[Suas po-
sições teóricas] contêm algo de escolástico – Bukharin jamais estudou
dialética e a meu ver jamais a entendeu muito bem”. 8

6
Esse otimismo, sem dúvida, está na perspectiva de quem manipula o método (dialético). Enrico Berti
cita uma passagem de Marx (do Posfácio de O capital), que mostra bem o alento que traz a dialética
para os marxistas: “Na sua forma racional, a dialética é escândalo e horror para a burguesia e para os
seus corifeus doutrinários, porque na compreensão positiva do estado de coisas existentes inclui-se
simultaneamente também a compreensão da negação dele, a compreensão do seu necessário ocaso,
porque concebe toda forma acontecida no fluir do movimento, portanto, também do seu lado
transeunte, porque nada pode intimidar e ela é crítica e revolucionária por essência” (Apud Berti, 2013,
p. 366, 367).
7
Marx; Engels, 2005, p. 40.
8
Apud Cohen, 1990, p. 178.
12 • Problemas de hermenêutica radical

Hegel é o responsável por introduzir a dialética como princípio de


movimento da ordenação social. Que princípio poderoso poderia expli-
car a evolução senão a dialética que está na própria ordem natural das
coisas? A história em Hegel adquire sentido e é explicada pelo “movi-
mento dialético”. Charles Taylor comenta sobre esta noção: “A força
motriz do movimento é a contradição, a contradição entre a realidade
externa e aquilo que está predeterminado a se realizar”. 9
Esse clima de otimismo que produz a dialética conduz a muitos in-
telectuais a desconfiar da ruptura de sua postura teórica. Pensadores
como Nietzsche, Bergson ou Hussels que rompem com esse modelo pa-
recem nos conduzir ao irracionalismo. Mas é preciso questionar esta
forma de racionalidade “de ferro” da dialética.
Hermes, da mitologia grega, é o patrono da arte hermenêutica,
uma prática interpretativa que sempre está em volta de grandes proble-
mas. Quando François Hartog comenta sobre Hermes em O espelho de
Heródoto, indica o espaço de agrós associado ao deus dos mensageiros.
Agrós é entendido em oposição à cidade; implica um espaço no campo
na qual se encontra os viajantes e uma paisagem selvagem. Hartog ainda
acrescenta que o deus é “o senhor desses lugares destinados ao per-
curso, longe dos campos cultivados, bem como dos espaços abertos onde
se caçam animais selvagens”. 10 Por isso, para Hartog, Hermes pode ser
compreendido como uma potência em íntima relação com os valores da
“abertura” e da “mobilidade”. 11
Na mitologia, a relação de Apolo com Hermes se presencia uma
troca benfazeja. Ao conceder a lira para Apolo, este lhe dá o dom da

9
Taylor, 2005, p. 124.
10
Hartog, 2014, p. 159.
11
Ibid., p. 160.
Dagmar Manieri • 13

palavra e da persuasão. Importante habilidade de Hermes, a arte de po-


etizar o lógos. Em diversas passagens, Hermes auxilia seus
companheiros. Não estaríamos enganados ao se conceber esse deus
como uma potência da representação; ele não só auxilia na relação com
o Outro, mas também se converte em Hermes poités, com um dom de
produzir novas representações. Eis a virada que necessitamos para Her-
mes: não mais servir às potências, mas contribuir para gerar novas
potências através da representação.
No campo literário, Franz Kafka foi um dos grandes exemplos que
sondou os efeitos do poder. O estranhamento, tão comum na literatura
de Kafka é um tipo de poder que não se define ao estilo dos regimes
políticos anteriores. Na Grécia antiga se conhece a tirania que pode ser
encontrado por toda a Hélade. Tal regime, muitas vezes, é associado à
figura do despótes. Mas este era o poder de mando, que nasce inicial-
mente na família, com a pater. Já a tirania é definida pelo grego antigo
como um regime para além da ordem normal: é uma transgressão. 12 Em
Platão a tirania se encontra na lista dos regimes mais corrompidos;
transgressão de ordem sexual, religiosa, o grego democrata ou oligár-
quico vê no tirano um homem que comete a hýbris, a desmedida. A
tirania, assim, é um regime transgressivo e que conduz para um tipo de
política para além da monarquia.
Em Problemas de hermenêutica radical ingressamos na literatura e
no cinema em busca de uma forma interpretativa que realça os signos
de dominação e de emancipação. No cinema, a saída surge de forma
mais flagrante; já na literatura, ela não é tão evidente. Em Kafka, prin-
cipalmente, o poder que se denuncia é de ordem burocrática. Ele foi

12
Hartog, 2014, p. 362.
14 • Problemas de hermenêutica radical

figurado em duas grandes obras: O castelo e O processo. O escritor tcheco


descreve com perspicácia os efeitos desse poder: ele atua na alta-estima
das pessoas. O que este poder misterioso efetua é obstruir a autonomia
do indivíduo. Em O processo, há uma primeira audiência em torno de
Josef K. No recinto do tribunal – um prédio popular, na periferia da ci-
dade – presenciamos Elsa, uma funcionária da limpeza que é assediada
por um estudante. Nesta particular relação, encontra-se uma parte da
extensa malha do poder. Ao ser interrogada por K. sobre o motivo de sua
subserviência às investidas do estudante, a “mulher” (Elsa) afirma: “[Se
rebelar] seria a minha perdição. (...) Ele não faz senão cumprir a ordem
do juiz de instrução”. 13 Essas vítimas kafkanianas são pessoas desmora-
lizadas e que não possuem mais uma saída humana para suas vidas
oprimidas. Há uma espécie de coação estrutural que obriga as pessoas a
se submeterem a tal relação. O esposo de Elsa, assim comenta sobre o
episódio de assédio: “Se eu não precisasse tanto de meu cargo, há muito
tempo que eu teria amassado o estudante contra a parede”. 14
O texto kafkiano é uma advertência sobre as mais variadas formas
de poder que nos ameaçam. De maneira diversa à ciência política, a li-
teralidade descreve os efeitos do poder excessivo. Ele pode ser o
totalitarismo, mas também pode estar no poder paternal autoritário
(como em Carta ao pai). Ele também pode ser encontrado na força des-
medida do público que “admira” o jejuador em O artista da fome, ou na
phýsis que impede o surgimento da cultura (a fase da “humanidade”) em
Josefina, a cantora. Em A colônia penal, o poder excessivo é simbolizado
pelo maquinismo e, posteriormente, no messianismo. Assim, associar

13
Kafka, 1975, p. 68.
14
Ibid., p. 71.
Dagmar Manieri • 15

Kafka como um escritor do regime totalitário é só uma parte de sua am-


pla intenção estética em torno do poder.
Desde as pesquisas de intelectuais radicais – Gramsci, Foucault,
Deleuze, Bourdieu, entre outros - evidencia-se que o poder dos grupos
dominantes também está presente nos princípios que nos fazem ver o
mundo. Bourdieu insiste em mostrar que o principium divisionis contém
um poder simbólico e que este fato não deixa de ser uma violência (sim-
bólica). Do marxismo, nasce uma perspectiva de leitura do mundo social
que desconfia da “evidência” do mundo em que nos criamos e educamos.
Antonio Gramsci enfatiza que cada grupo social, na medida em que as-
cende a uma “função social” (mundo da produção econômica), “cria para
si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais camada de in-
telectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função,
(...)”. 15 Esses homens e mulheres letrados são os denominados “intelec-
tuais orgânicos”. Como no exemplo da Idade Média, Gramsci comenta
que a “categoria dos eclesiásticos” pode ser considerada “como a cate-
goria intelectual organicamente ligada à aristocracia fundiária”. 16
O exposto acima são problemas de ordem objetiva. Mas há de se
notar a importância da diferenciação das dimensões na ordem subje-
tiva, isto em relação ao mundo social. A título de hipótese, pode-se
apreender a dimensão subjetiva através de três elementos: Ego, Eu e o
Si-mesmo. O Ego corresponde à entidade do interesse particular. Ele
está presente (como condição humana) no homem grego antigo, bem
como no ser social da sociedade burguesa contemporânea. Quando Jac-
ques Rancière em O ódio à democracia investe contra o “homem

15
Gramsci, 1982, p. 3.
16
Ibid., p. 5.
16 • Problemas de hermenêutica radical

democrático” ocidental, entende-se que a nova sociedade de consumo


está gerando o “individualismo de massa”. 17 O consumidor é um “cida-
dão” que procura a “realização pessoal”. Nesse sentido, a astúcia do
sistema atual converte (no exemplo do movimento francês de 1968) as
reivindicações por autonomia no “reino ilimitado do mercado, pene-
trando cada vez maia fundo na espinha e no coração dos indivíduos”. 18
Já o Eu corresponde às várias identidades possíveis. 19 Ele se traduz como
nosso vínculo social, ou seja, a entidade subjetiva que se desenvolve
através do convívio social. Nele se problematiza a forma como ocorre a
incorporação/formação de disposições que fundamentam (como função
social) a “legitimação das diferenças sociais”. 20 Os trabalhos de Pierre
Bourdieu trouxeram uma enorme contribuição para esta problemática
da função do Eu. Por último, o Si-mesmo corresponde a uma dimensão
humanística da subjetividade. Ele pode ser engendrado pela cultura es-
tética, bem como pela subjetividade política. O Si-mesmo é uma
dimensão subjetiva importante, pois alimenta a politeia, impedindo que
esta se transforme em algo exclusivo (reificada, na acepção radical) da
ordem jurídica. No decorrer de Problemas de hermenêutica radical mos-
traremos exemplos dessas três dimensões da ordem subjetiva. Elas são
importantes, pois através delas se entende (de forma mais clara) as vá-
rias formas de incorporação/transgressão na intencionalidade do ser
social.

“A vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor indiferente de mercadorias, direitos das
17

minorias, indústria cultural e bebês produzidos em laboratório” (Rancière, 2020, p. 43).


18
Ibid., p. 112.
19
Um pouco semelhante ao éthos (costume) dos gregos antigos.
20
Bourdieu, 2013, p. 13.
Dagmar Manieri • 17

Diante desses caminhos do pensamento radical se vislumbra a pos-


sibilidade de uma hermenêutica radical que dê conta não só da prática
interpretativa, mas também da elaboração de novos princípios de divi-
são do mundo social. Uma das tentativas de se elaborar esta
hermenêutica radical está em Gonçalo Marcelo. Para tanto, ele formula
uma postura que se ampara no “riso, o humor e a ironia”. São táticas já
conhecidas dos estratos populares (assim como mostrou Bakhtin) ao se
confrontarem com a linguagem oficial. Há um elemento que Gonçalo
Marcelo antecipa e que fundamenta sua proposta: a imaginação. Nessa
hermenêutica, pretensamente crítica e radical, deve-se suspender “a
inocência da atitude natural” e empreender uma crítica radical aos
“pressupostos que lhe subjazem”. 21 Ao que tudo indica a teoria da ima-
ginação produtiva de Marcelo ainda não funda uma hermenêutica
radical. Em um primeiro momento, ao se amparar em Paul Ricoeur, sua
hermenêutica deixa de sondar o substrato social por trás das forças de
representação; em outras palavras, Marcelo não leva em consideração
os grupos excluídos que sentem o sequestro de seu poder simbólico.
Gonçalo Marcelo ainda não encontrou seu Hermes produtivo; embora
criativo, ele não deixou de operar na esfera abstrata da imaginação. O
novo Hermes liberto é aquele que auxilia os grupos agrós (fora da civili-
zação) a se apoderarem do dom da palavra, da eloquência que produz
novas representações do mundo social.

21
Marcelo, 2014, p. 62.
1
O ATO DE LEITURA COMO PRÁTICA HERMENÊUTICA

O estudo de uma forma específica de prática de leitura textual (o


leitor em sua relação ao texto) não deixa de ser uma forma de herme-
nêutica. Por esta última não se compreende uma atitude de passividade
do leitor ante o texto; a leitura deve ser entendida em uma acepção que
comporta vários níveis. O texto está aqui para ser lido, mas se sabe que
isto implica uma série de operações. Ler também implica em uma ati-
tude ativa, no sentido de que se exerce o senso crítico. Além disso, a
reflexão se faz sobre e além do texto: mesmo assim, ainda se está no
universo textual.
Outro detalhe importante nesta forma de relação cultural é que o
texto não comporta uma mímesis. Não se trata de uma hermenêutica es-
tética, pois o texto deve ser entendido como um processo do lógos. Ele
não é artístico: se considerarmos a mímesis literária, o estudo se torna
complexo em demasia, já que foi abarcado o nível estético. Aqui, ingres-
samos no mundo da arte. Esse foi o problema maior da obra de Umberto
Eco, Os limites da interpretação. O intelectual italiano intenta uma teoria
semiótica do texto, incluindo as obras literárias. A grande objeção de
Eco é a concepção que relativiza em excesso a leitura do texto; em sua
visão, a semiótica deve mostrar que esta liberdade (do leitor) possui um
limite. 1 Mas ao abarcar o texto literário, o programa de Eco se dirige a
uma especificidade para poucos: não é esta nossa intenção.

1
“Esse é o caso típico em que não é necessário conhecer a intenção do autor empírico: a intenção do
texto é evidente e, se as palavras têm significado convencional, o texto não diz o que aquele leitor –
Dagmar Manieri • 19

O texto que contém o lógos não deixa de abarcar as figuras de lin-


guagem (tropos). Esta foi a grande contribuição de Haydem White não
só para o campo científico da história, mas também para a exegese do
texto concebido em sua designação de “realista” (como o texto do histo-
riador, por exemplo). A presença da poiesis implica em uma reflexão
sobre a natureza da linguagem. White desmascara o pretenso “discurso
realista” na medida em que postula o caráter ativo da linguagem. 2 É de
acordo com este argumento que o próprio discurso da história passa a
ser questionado: “(...) a forma das relações que parecerão ser inerentes
aos objetos que habitam o campo na realidade foi imposta ao campo pelo
investigador no próprio ato de identificar e descrever os objetos que aí
descobre”. 3 É a dimensão figurativa da linguagem que nos obriga a rever
o discurso realista. Se a própria linguagem é compreendida como uma
forma de “construção poética”, então cai por terra o pretenso “realismo”
(na representação) da linguagem. 4
Portanto, após a “virada linguística”, sabemos que a linguagem
contém uma lógica que produz sentido, independente do referente. 5 O

que obedece a algum impulso íntimo – acreditava ter lido. Entre a inacessível intenção do autor e a
discutível intenção do leitor, está a intenção transparente do texto que contesta uma interpretação
insustentável” (Eco, 2019, p. 91).
2
Na interpretação do pensamento de Wittgenstein em Laurenio Sombra: “O grande avanço que a
percepção da dimensão linguística traz é que a linguagem não é meramente um conjunto de signos
que representa uma realidade exterior a ela, mas é, ela mesma, “criadora” de realidade” (Sombra, 2012,
p. 41).
3
White, 2014, p. 112.
4
“O instrumento característico de codificação, comunicação e intercâmbio de que o historiador dispõe
é a linguagem culta habitual. Isto quer dizer que os únicos instrumentos que ele tem para dar sentido
aos seus dados, tornar familiar o estranho e tornar compreensível o passado misterioso são as técnicas
de linguagem figurativa. Todas as narrativas históricas pressupõem caracterizações figurativas dos
eventos que pretendem representar e explicar. E isso significa que as narrativas históricas, consideradas
meros artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do discurso figurativo em que são
moldadas” (Ibid., p. 111).
5
Nesses dois aforismos do Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein deixa clara a relação entre
“realidade” e “figuração”: “A figuração, porém, não pode colocar-se fora de sua forma de representação”
(2.174). “O que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com a realidade para
20 • Problemas de hermenêutica radical

bom leitor e que conhece os avanços do pensamento sobre a linguagem


já é capaz de distinguir os efeitos de realidade que produz a linguagem.
Isto conduz a crítica ao texto a um nível superior, pois o próprio conhe-
cimento da realidade (aqui, estamos nos referindo ao saber histórico) se
enriquece com o “problema” da linguagem. A mediação linguística deixa
de ser algo “neutro” e o próprio leitor abandona uma espécie de “ino-
cência” ante esta mediação que tem a capacidade de acrescentar algo ao
significado do conhecimento.
É neste horizonte que a hermenêutica pode contribuir para o es-
tudo das configurações discursivas. Esta forma de conhecimento nos
aproxima, nos dias atuais, a uma postura cognitiva na qual a “verdade”
(aqui, estamos nos referindo às humanidades) recebe uma nova concep-
ção. Isto porque o discurso, nessa forma de postura hermenêutica, surge
em seus diversos momentos, como uma composição. A importância da
hermenêutica reside no fato de não desejar esgotar a análise da ordem
discursiva. Na hermenêutica há sempre uma abertura para novas inter-
pretações, definindo o texto como um complexus de significados que
ultrapassa as intenções do autor.
É desta forma que a abertura de leitura propiciada pela prática her-
menêutica pode ser concebida como um “círculo”. Na apreciação de Luiz
Hohden, foi Heidegger quem introduziu no círculo hermenêutico o su-
jeito; neste caso, a compreensão não deixa de estar marcada por certa
projeção. É a consciência em torno desta última que configura o cuidado
do método hermenêutico: “Do ponto de vista ontológico, com o círculo
hermenêutico, toda compreensão é autocompreensão, todo autêntico

poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade”
(2.18) (Wittgenstein, 2010, p. 145).
Dagmar Manieri • 21

ato filosófico é auto-implicativo”. 6 No círculo hermenêutico o sujeito (do


saber) está sempre implicado no conhecimento. Há uma constante cir-
cularidade entre as dimensões subjetiva e objetiva, o todo e a parte. Isto
resulta em uma leitura na qual “não existe uma interpretação única, úl-
tima e definitiva de um texto, (...)”. 7
Na compreensão há uma espécie de paralisia do senso crítico, pois
se este último for utilizado corre-se o risco do processo de compreensão
ficar comprometido. Na compreensão a atenção não utiliza o potencial
de criticidade; só após seu término, algo ocorre com seu Si. O precon-
ceito, a pré-compreensão podem “ser retificados, ratificados e/ou
ampliados, (...)”. 8 A compreensão é uma forma de saber experiencial,
algo que modifica nossa anterior condição cognitiva.
É no modo interpretativo que se inicia a dimensão ativa do sujeito;
em Paul Ricoeur, este modo surge como “conotações subjetivas especí-
ficas”. Após a compreensão, a interpretação realiza a operação
apreensivo-conceitual na qual há uma relação complexa entre o texto e
o Si (do leitor). Interpretação que, didaticamente, necessita da explica-
ção. Aqui, então, temos uma “tripla referência”, na expressão de
Ricoeur. 9 A significação que surge desta “tripla referência” não pode
aparecer como “um pretenso sentido original ou fundamental ou pri-
mitivo ou próprio, (...)”. 10
Nesse sentido, na hermenêutica concebe-se o mundo como “o
mundo dessa obra”; neste caso, Ricoeur se refere a um modo de

6
Hohden, 2005, p. 163.
7
Ibid., p. 166.
8
Ibid., p. 173.
9
Ricoeur, 2011, p. 73.
10
Ibid., p. 75.
22 • Problemas de hermenêutica radical

conceber o discurso no qual “o mundo é a totalidade das referências


abertas pelos textos”. 11 Ricoeur acentua que na hermenêutica surge uma
verdade proposicional. Isto implica em dizer que há “várias modalida-
des de ser”, sempre ancoradas na historicidade. A prática do saber não
pode estar dissociada de uma situação; por isso o conhecimento passa,
necessariamente, pela “dialética da situação e da compreensão”.
Ricoeur indica a seguinte relação entre epistemologia e hermenêu-
tica: se a primeira é a forma de pensar sobre os limites e potencialidades
da ciência, a segunda é “uma reflexão sobre as condições não epistemo-
lógicas da epistemologia”. 12 Nesse sentido, a hermenêutica pode ser
compreendida como a reflexão das condições de toda leitura de mundo.
Nas palavras de Ricoeur, a hermenêutica pensa sobre as “condições de
possibilidade” dos saberes.

A PRÁTICA HERMENÊUTICA NOS MODOS DE LEITURA

De uma forma geral, pode-se subdividir o trabalho hermenêutico


com o texto em quatro dimensões. Elas dizem respeito às atitudes inte-
lectual do leitor em relação ao universo textual. Essas quatro posturas
são: compreensão, interpretação, entendimento e reflexão. O texto pode
ser considerado o material empírico, pois é o produto de um autor (ou
autores): a expressão cultural de um ente vivente. Assim, o texto repre-
senta o mundo significado do autor, ele é sua particularidade, em
primeiro lugar. Esta última é problematizada, na medida em que posso
ter um texto composto por dois ou mais autores. Também o autor não
deve ser compreendido como um átomo isolado. Após a sociologia do

11
Ibid., p. 84.
12
Ibid., p. 131.
Dagmar Manieri • 23

conhecimento e o estruturalismo cultural marxista aprendemos a in-


terpretar o autor mediado por conceitos e estruturas sociais.
O primeiro ato de leitura é a compreensão; nela se verifica uma
arte bem peculiar que se traduz em prestar atenção ao Outro. Na com-
preensão o objetivo é apreender o significado da mensagem do texto.
Nesta etapa, há o perigo (ou engano) de ativarmos os preconceitos e
princípios antes do devido tempo. Por isso na compreensão é a atenção
que deve ser ativada. 13 Em si esta faculdade humana é plenamente de-
mocrática, embora possa ser também um elemento da astúcia do
dominador que procura bem compreender para melhor dominar. 14 A
compreensão faz parte da condição humana naquilo que se denomina
de curiosidade. O ser humano é um ser curioso, isto no sentido de que
investiga o mundo à sua volta, segundo seus interesses. No exemplo da
compreensão democrática, o interesse é o conhecimento “desinteres-
sado” do Outro. Mas por que “desinteressado”? Ele é um ato cultural e
só tem razão de ser na medida em que traz um bem cultural ao Si-
mesmo ou ao Outro. O bem ao Si-mesmo pode ser entendido como o Si
melhorado, fator essencial no ato cultural.
Em Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche nos dá uma lição sobre a pos-
tura de “aprender a ver”. No fundo, ele ingressa nesta fase da
compreensão ao indicar que devemos “habituar o olho ao sossego, à

13
Nas palavras de Jacques Rancière: “Ele [o aluno] saberá que pode aprender porque a mesma
inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um homem sempre pode compreender
a palavra de um outro homem” (2018b, p. 37).
14
Atitude de Francis Bacon em relação à natureza exige, primeiro, a compreensão. Se isso não for
seguido, corre-se o risco de se estar amarrado aos “ídolos”. Eles são “numerosos princípios e axiomas (...)
que entram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência” (Bacon, 1999, p. 41). Mas esta
compreensão é diversa em relação ao mundo antigo; agora o que se pretende é “o império do homem
sobre as coisas (...)”, nas palavras de Bacon. Assim, a compreensão é entendida no campo da experiência.
É um jogo sutil que envolve a dominação: “A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe” (Ibid., p.
98).
24 • Problemas de hermenêutica radical

paciência, a deixar as coisas se aproximarem”. 15 Deve-se “adiar o julga-


mento” e procurar observar o “caso individual” de todos os lados. O erro,
para Nietzsche, é reagir de imediato; deve-se ter a capacidade de não
“querer”. Reagir de imediato é ser vulgar; por isso o aprender a ver torna
a pessoa “lenta, desconfiada, recalcitrante. Inicialmente deixa aproxi-
marem-se coisas desconhecidas, novas de todo tipo, com hostil
tranquilidade”. 16 O pensador utiliza-se da metáfora da “porta aberta”;
ela quer dizer que “servilmente” deve se prostrar ante “cada pequenino
fato, sempre estar disposto a lançar-se no lugar de, a mergulhar nos
outros (...)”. 17 São belas palavras e que nos mostram a dificuldade do ato
de compreensão, pois ele exige uma sensibilidade na qual há o silencia-
mento do Eu.
No decorrer da compreensão podem surgir alguns obstáculos. Eles
já são o prenúncio de que a nova etapa está por vir. Esta etapa interpre-
tativa corresponde a uma atitude mais ativa do hermeneuta. Trata-se
de uma intencionalidade ainda com um grau médio; o erro de muitos
intérpretes é exagerar na potência interpretativa e reduzir o conteúdo
compreendido. Aqui o próprio elemento democrático no ato de leitura
se encontra em prejuízo, pois um preconceito (ou princípio intelectual)
apaga a possível riqueza de sentido do objeto a ser compreendido. É o
que se denomina de reducionismo: um desvio no bom ato de leitura.
Na expressão de Hans-Georg Gadamer, a tarefa da hermenêutica é
descobrir o sentido textual. O que de início é um estranhamento se con-
verte em algo compreendido. Na hermenêutica o estranhamento recebe

15
Nietzsche, 2020, p. 48.
16
Ibid., p. 49.
17
Idem.
Dagmar Manieri • 25

um tratamento especial. Ao ser compreendido, tenho a consciência de


que há uma espécie de simbiose entre o Si e o Outro (do texto):

A hermenêutica implica, antes, que toda compreensão de algo ou de um Ou-


tro vem precedida de uma autocrítica. Aquele que compreende não postula
uma posição superior. Confessa, antes, a necessidade de colocar à prova a
verdade que supõe própria. É o que está implícito em todo compreender, e
por isso todo compreender contribui para o aperfeiçoamento da consciên-
cia da história dos efeitos. 18

Para Gadamer o ato de compreender é concebido de forma mais


ampla. Isso não impede o reconhecimento de aspectos importantes
nesta primeira fase. Um dos grandes méritos da hermenêutica é eviden-
ciar a presença do Si na exegese. 19 Estar consciente do Si é essencial para
a ação hermenêutica. Mas não só isto; ela ainda permite a abertura do
Si a um mundo estranho, ainda não compreendido. Eis uns dos grandes
desafios da hermenêutica que já não é mais uma técnica, mas se trans-
forma em “consciência hermenêutica”: como ressalta Gadamer, “aquele
que compreende coloca em jogo seus próprios preconceitos”. Por isso a
hermenêutica se diferencia das várias ciências humanas constituídas,
na medida em que leva em consideração o Si do leitor:

A distância insuperável e necessária entre os tempos, as culturas, as classes,


as raças – ou mesmo entre as pessoas – é um momento suprassubjetivo, que
confere tensão e vida a todo compreender. Pode-se descrever esse

18
Gadamer, 2011, p. 141.
19
Neste sentido, observar esta passagem de Gadamer: “O que a reflexão faz é apenas descobrir os
condicionamentos que já estão atuando, a cada vez, sobre o compreender, condicionamentos que
sempre já estão sendo aplicados quando nos empenhamos em esclarecer um texto, visto que são
constitutivos de nossa “compreensão prévia” ” (Ibid., p. 132).
26 • Problemas de hermenêutica radical

fenômeno também do seguinte modo: o intérprete e o texto possuem cada


qual seu próprio “horizonte”. 20

Há outro elemento no ato interpretativo que não se pode despre-


zar: ele se refere à apreensão de conceitos. Desde os textos filosóficos
até os de conteúdo jornalístico, a interpretação é uma fase que localiza
a operacionalidade dos conceitos. Este último foi assim definido por
Marcuse:

O termo “conceito” é usado como designação da representação mental de


algo que é entendido, compreendido, conhecido como o resultado de um
processo de reflexão. Esse algo pode ser um objeto da prática diária, ou uma
situação, uma sociedade, um conto. Em qualquer dos casos, se tais coisas
são compreendidas, tornam-se objetos de pensamento e, como tal, seu con-
teúdo e significado são idênticos aos objetos reais da experiência imediata
e, não obstante, diferentes deles. “Idênticos” no quanto o conceito denota a
mesma coisa; “diferentes” no quanto o conceito seja o resultado de uma re-
flexão que tenha entendido a coisa no contexto (e à luz) de outras coisas que
não apareceram na experiência imediata e que “explicam” a coisa (media-
ção). 21

Com a interpretação já não se compartilha mais com a “aparência”


textual; ela procura os conceitos que dão sustentação à significação do
texto. No fundo este “procurar” é uma operação analítica: assim, na in-
terpretação a razão surge como análise. Ele discrimina os conceitos que
promovem o significado do lógos textual.
Após a interpretação, chega-se ao entendimento. Nele, há uma to-
talidade que confere coerência à aplicabilidade dos conceitos. Quando
Gadamer comenta sobre a totalidade em um texto literário, tal ênfase

20
Idem.
21
Marcuse, 1973, p. 109.
Dagmar Manieri • 27

pode servir para toda forma textual: “Tal como cada palavra forma parte
do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor e,
esta, por sua vez, forma parte do conjunto do correspondente gênero
literário e mesmo de toda a literatura”. 22 Nesta passagem o “gênero lite-
rário” faz o papel da totalidade. Assim, o texto (com seus conceitos)
adquire um maior sentido pela mediação da totalidade. É importante
ressaltar que a aproximação (ou apropriação) dessa totalidade não é
neutra; como ressalta Gadamer, “quem lê o texto lê a partir de determi-
nadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado”. 23
Posso apreciar ou não estar de acordo com determinado “gênero literá-
rio”: isto também ocorre em outros campos da cultura. Esta
aproximação que se traduz em uma postura perspectivista (da totali-
dade) vai propiciar o surgimento do senso crítico que se aperfeiçoa no
entendimento. A crítica tem como tarefa julgar o sentido textual pela
mediação de uma totalidade. Esta última opera como um subtexto nesta
fase do entendimento que já vislumbra a nova fase, a reflexão. Na fase
do entendimento entra em cena a razão sintética: os conceitos são es-
tudados em sua relação com a totalidade coerente. No exemplo da
filosofia, o autor adquire valor porque sua filosofia (ou seja, sua totali-
dade de pensamento) é coerente, promovendo uma visão geral dos
elementos da vida (homem, sociedade, estética, mundo, etc.).
A fase da reflexão corresponde a um desafio para muitos novatos
do campo das humanidades. Independente do talento individual, a re-
flexão envolve um quantum de criatividade, mesclada com a experiência

22
Gadamer, 2014, p. 386.
23
Ibid., p. 356.
28 • Problemas de hermenêutica radical

na prática textual. 24 A boa reflexão nasce do confronto entre duas tota-


lidades. Um pensador (ou esteta) original é aquele que apresenta uma
nova totalidade; é desta perspectiva que ele compreende o texto (ou a
“visão de mundo”) do Outro. A reflexão é um salto no vazio, acompa-
nhada de uma intensa alegria intelectual. Isto ocorre porque na
inteligência em atividade, desprende-se do mundo do conhecimento já
estabilizado. A alegria provém do sentimento de liberdade que se expe-
rimenta na reflexão. Por isso esta ação é denominada de re-flexão: a luz
da inteligência volta a iluminar o conhecimento de forma criativa, nova.
A inteligência mostra que o ser humano não é escravo do Si; resta sem-
pre a possibilidade de uma libertação que se traduz em retornar a um Si
melhorado. Liberta-se para se possuir um melhor controle daquilo que
nos determina socialmente (isto foi mostrado por Hegel). A reflexão
pode ser compreendida como uma forma de imaginação aplicada à ra-
zão. 25
De forma particular, Cornelius Castoriadis é crítico ante a recepti-
vidade da imaginação na tradição filosófica: “É por isso que a
“imaginação criadora” permanecerá, filosoficamente, como uma sim-
ples palavra, e o papel a ela atribuído estará limitado aos domínios que
parecem ser ontologicamente gratuito (a arte)”. 26 Mas a imaginação que
se aplica na arte é diversa da imaginação que se observa em autores com
um refinado senso crítico. A imaginação aplicada aos estudos das hu-
manidades (filosofia, história, sociologia, ciência política, etc.) é uma

24
Essa “experiência textual” implica no saber adquirido pela leitura. O conhecimento de autores, assim
como de novas perspectivas, dota a experiência de maior profundidade e coesão. No fundo, a própria
prática da ação textual implica em um conhecimento das várias etapas da exegese. Há uma metodologia
que auxilia nesta experiência.
25
Sobre a presença da imaginação da tradição filosófica, ver especialmente o capítulo “A descoberta da
imaginação” In: Castoriadis, 1987, p. 333-372.
26
Ibid., p. 371.
Dagmar Manieri • 29

imaginação intelectiva: ela é a força necessária para que a razão dê o


salto para outro entendimento.
Em Henri Bergson a inteligência corresponde à luz da consciência;
no bergsonismo, criação e inteligência não são apenas atributos huma-
nos. Elas fazem parte da própria vida. Em A evolução criadora, a vida é
compreendida como uma série composta de ordem e mutabilidade.
Neste processo, “as alternativas de crescimento e de diminuição se su-
cedem sem fim”. 27 Bergson explica as faculdades humanas segundo a
própria noção de vida: são construções provisórias (a ordem das coisas)
que encontram obstáculos. Assim, há o “elã vital” que parece desejar,
cada vez mais, formas diversa e superior:

A partir da contingência é portanto grande na evolução. Contingente, o


mais das vezes, são as formas adotadas, ou melhor, inventadas. Contin-
gente, relativa aos obstáculos encontrados em tal lugar e em tal momento,
a dissociação da tendência primordial em tais ou tais tendências comple-
mentares que criam linhas divergentes de evolução. 28

É neste sentido que a própria consciência é entendida como uma


“exigência de criação”. Bergson explica a consciência como uma facul-
dade em íntima relação com o julgamento. Por isso a “consciência
corresponde à potência de escolha”. No exemplo do ser humano, a
“consciência é sinônima de invenção e de liberdade”. 29 A própria socie-
dade é compreendida nesta linha evolutiva. Linguagem e vida social
(entende-se aqui o domínio da cultura) são compreendidos como com-
plexos que fixam “um nível médio para o qual os indivíduos deverão se

27
Bergson, 2005, p. 265.
28
Ibid., p. 276.
29
Ibid., p. 286.
30 • Problemas de hermenêutica radical

alçar de saída, (...)”. 30 Então, o ser humano não é subsumido pelo ser so-
cial; esse último surge como “signos exteriores e diversos de uma só e
mesma superioridade interna”. 31
Aqui se deve compreender o papel da inteligência; Bergson enfa-
tiza que “a consciência, no homem é, sobretudo, inteligência”. Daí “a
consciência é essencialmente livre; é a própria liberdade”. 32 Portanto, a
consciência é a expressão de um estado superior. 33 Mas ela necessita da
potência da inteligência para alçar novos níveis. Então, a inteligência é
a potência criativa, livre, da consciência.
Esta passagem sobre a consciência e a inteligência em Bergson é
importante, pois mostra que a prática hermenêutica da leitura corres-
ponde a um grande aprendizado. De forma apropriada se denomina esta
operação de círculo hermenêutico, pois ela expressa sempre a incom-
pletude. Na prática hermenêutica há uma expansão do “horizonte de
compreensão”. A expressão é de Paul Ricoeur, que acrescenta:

Assim, o círculo hermenêutico não é negado, mas sim deslocado de um nível


subjetivista para um plano ontológico: o círculo está entre minha maneira
de ser – para além do conhecimento que posso ter – e a maneira aberta e
descoberta pelo texto como mundo da obra. 34

Na experiência hermenêutica, o texto representa o estranhamento


que deve ser compreendido; isso já implica em uma modificação do Si.

30
Ibid., p. 287.
31
Idem.
32
Ibid., p. 292.
33
“O animal encontra seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga na animalidade e a humanidade
inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, na nossa
frente e atrás de nós, numa carga contagiante, capaz de pulverizar todas as resistências e franquear
muitos obstáculos, talvez mesmo a morte” (Ibid., p. 293).
34
Ricoeur, 2011, p. 87.
Dagmar Manieri • 31

Essa ideia presente em Ricoeur e Gadamer corresponde a um dos efeitos


da fenomenologia aplicada aos estudos de linguagem.

OS MODELOS PRÁTICOS DE INTERPRETAÇÃO TEXTUAL

Aqui, nosso intuito é mostrar alguns exemplos de relação textual


em autores já conhecidos pelo grande público intelectual. Em cada um
deles, procuramos discernir as etapas do trabalho textual que enume-
ramos acima. É claro que em muitos autores consagrados, a etapa da
compreensão é logo invadida pela interpretação e o entendimento. Mas
há autores que possuem a consciência da didática textual. Paul Ricoeur
é um bom exemplo de prática na qual se presencia uma excelente com-
preensão (de autores que utiliza para formar seu pensamento). Mas em
sua maioria, os grandes autores realizam uma habilidosa relação dessas
etapas, dificultando para o leitor a própria crítica desses autores.
No exemplo de Michel Foucault em seu famoso texto Nietzsche, a
genealogia e a história o objetivo é o estudo da genealogia de Nietzsche.
Temos nesta prática uma composição na qual a compreensão está mes-
clada ao entendimento. Foucault compreende Nietzsche através de
diversos escritos do filósofo alemão. É uma compreensão entusiasta,
bem ao estilo de um discípulo que procura compreender o mestre. Fou-
cault compartilha dos ensinamentos de Nietzsche; daí a leitura
apaixonada:

Ora, se o genealogista tem o cuidado de escutar a história em vez de acredi-


tar na metafísica, o que é que ele aprende? Que atrás das coisas há “algo
inteiramente diferente”: não seu segredo essencial e sem data, mas o se-
gredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por
32 • Problemas de hermenêutica radical

peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de
uma maneira inteiramente “desrazoável” – do acaso. 35

Compreensão que em certos momentos depara-se com a reflexão.


Após esta passagem (citada acima), Foucault conclui que na origem das
coisas há “discórdia”, “disparate”. Assim, até onde estamos diante da
compreensão? Fica muito difícil de saber, pois Foucault segue em sua
leitura os princípios do nietzschianismo. Na compreensão de Foucault,
a história genealógica deve apreender a “dispersão” do objeto; deve “de-
marcar os acidentes, os ínfimos desvios” de sua trajetória. O que tem
valor (para nós) deve ser estudado em seus “erros, as falhas na aprecia-
ção, os maus cálculos (...)”. A genealogia mostra que “na raiz daquilo que
nós conhecemos e daquilo que nós somos – não existe a verdade e o ser,
mas a exterioridade do acidente”. 36 Ao consultarmos A arqueologia do sa-
ber, verifica-se a proposta do pensador francês em torno dos objetos:
“(...) fazer uma história dos objetos discursivos que não os enterre na
profundidade comum de um solo originário, mas que desenvolva o nexo
das regularidades que regem sua dispersão”. 37 Então, não há diferença
entre a compreensão e a reflexão no Foucault de Nietzsche, a genealogia
e a história. O pensador francês utiliza Nietzsche para realizar a reflexão
sobre o discurso, bem como sua nova proposta para os estudos históri-
cos (a arqueologia, conjugada com a genealogia).
Em Nietzsche o que está em causa é a denominada história dos his-
toriadores. Por isso a genealogia mostra-se como um pensar rebelde no
seio da história. Foucault resgata os escritos de Nietzsche das

35
Foucault, 1979, p. 17, 18.
36
Ibid., p. 21.
37
Foucault, 1987, p. 55.
Dagmar Manieri • 33

Considerações extemporâneas para mostrar a crítica deste último a uma


“forma histórica” que utiliza “o ponto de vista supra-histórico”. 38 Te-
mos, então, uma compreensão de Nietzsche com extrema criatividade:

(...) uma história [a dos historiadores] que teria por função recolher em uma
totalidade bem fechada sobre si mesmo a diversidade, enfim reduzida, do
tempo; uma história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte
e dar a todos os deslocamentos passados a forma de reconciliação; uma his-
tória que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo. 39

Esta forma de história (dos historiadores) supõe a “verdade eterna,


uma alma que não morre, uma consciência sempre idêntica a si
mesma”. 40 Mas a história efetiva mostra o “descontínuo” em nosso pró-
prio ser. Aqui se percebe os dois movimentos de Foucault. Um em
direção à genealogia; o outro endereçado à arqueologia. No primeiro,
objetiva-se “libertar da sujeição os saberes históricos, isto é, torná-los
capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico,
unitário, formal e científico”. 41 Já na proposta da arqueologia é “o mé-
todo próprio à análise da discursividade local (...)”. 42 A genealogia na
medida em que ativa saberes locais, “descontínuos, desqualificados, não
legitimados” participa da insurreição dos saberes. Trata-se de um mo-
vimento contra “os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à
instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no
interior de uma sociedade como a nossa”. 43

38
Foucault, 1979, p. 26.
39
Idem.
40
Idem.
41
Ibid., p. 172.
42
Idem.
43
Ibid., p. 171.
34 • Problemas de hermenêutica radical

Assim, em Nietzsche, a genealogia e a história (de Foucault) há uma


amálgama criativa de compreensão e entendimento. Na ordem do
campo da historiografia, temos como resultado uma forma de saber na
qual a história, como discurso, é pensada em suas condições de produ-
ção social. 44
Outro exemplo no qual se constata um misto de compreensão com
outras etapas do trabalho hermenêutico se encontra em Marx, especi-
almente na Crítica da filosofia do direito de Hegel. Diante de várias
citações de Hegel, Marx intenta a compreensão ao lado da interpretação.
O que se observa é que nesta obra não se presencia o instante de com-
preensão de forma isolada. Marx sobrepõe ante a compreensão sua
interpretação (crítica) das diversas passagens compreendidas. Eis um
instante de compreensão:

[Em Hegel] família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo natural
donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do Estado estão as “funções”
do Estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas
formam partes do Estado, em que participam do Estado como tal. 45

Em seguida, Marx enfatiza que esta definição de Hegel “é notável”,


pois a família e a sociedade civil são apreendidas como “esferas concei-
tuais do Estado”. Marx denomina esse jogo (no hegelianismo) de
“misticismo lógico”. Logo após, realiza a interpretação:

A Ideia é subjetivada e a relação real da família e da sociedade civil com o


Estado é apreendida como sua atividade interna imaginária. Família e soci-
edade civil são os pressupostos do Estado; elas são elementos propriamente

44
Sobre esta definição, ver especialmente A escrita da história de Michel de Certeau (2017),
especialmente sua Apresentação (“Escritas e histórias”), p. XV- XXVII.
45
Marx, 2005, p. 29.
Dagmar Manieri • 35

ativos; mas, na especulação, isso se inverte. No entanto, se a Ideia é subje-


tivada, os sujeitos reais, família e sociedade civil, “circunstâncias, arbítrio”
etc. convertem-se em momentos objetivos da Ideia, irreais e com um outro
significado. 46

No hegelianismo a aproximação com o conteúdo empírico gera


uma falsa apreciação sobre o saber produzido, a “aparência de um co-
nhecimento real”. No fundo, Hegel pretende reencontrar a “Ideia lógica
em cada elemento, seja o do Estado, seja o da natureza, e os sujeitos re-
ais, (...)”. 47 Uma compreensão marxiana eivada de criticidade
interpretativa. O que era sujeito da Ideia, em Hegel, torna-se um predi-
cado da Ideia. Idealismo e materialismo estão em confronto na
plenitude da interpretação de Marx: “Ele [Hegel] não desenvolve seu
pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um
pensamento previamente concebido na esfera abstrata da lógica”. 48
A questão em torno da sociedade civil também desperta a atenção
do jovem Marx. Ele enfatiza que “o mais profundo em Hegel é que ele
percebe a separação da sociedade civil e da sociedade política como uma
contradição”. Em Hegel, “a sociedade civil (...) não tem a determinação
de ter como fim o universal”. Marx prossegue com sua compreensão:

Portanto, para se comportar como cidadão real do Estado, para obter signi-
ficado e eficácia políticos, ele deve abandonar sua realidade social, abstrair-
se dela, refugiar-se de toda essa organização em sua individualidade; pois a
única existência que ele encontra para sua qualidade de cidadão do Estado
é sua individualidade nua e crua, (...). 49

46
Ibid., p. 30.
47
Ibid., p. 34.
48
Ibid., p. 36.
49
Ibid., p. 95.
36 • Problemas de hermenêutica radical

Para Marx, em Hegel tudo está invertido, como na ideia de que o


poder governamental é a emanação do príncipe. No exemplo da relação
entre sociedade civil e Estado, Hegel “quer que o “universal em si e para
si” do Estado político não seja determinado pela sociedade civil, mas
que, ao contrário, ele a determine”. 50 Neste caso, Marx compreende He-
gel de forma crítica. Além do mais, indica a forma como um estudo de
ordem filosófica deve entender o Estado:

Com isso, a crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Es-


tado não indica somente contradições existentes; ela esclarece essas
contradições, compreende sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em
seu significado específico. Mas esse compreender não consiste, como pensa
Hegel, em reconhecer por toda parte as determinações do Conceito lógico,
mas em apreender a lógica específica do objeto específico. 51

Foi com a Revolução Francesa que surge a ideia moderna de Estado.


Nas palavras de Marx, “um mérito dos franceses de ter produzido o
princípio político ele mesmo”. 52 A determinação (“abstrata”) de ser um
membro do Estado encontra-se nas próprias relações (“reais”) moder-
nas (que Hegel, de certa forma reproduz). Tais relações pressupõem “a
separação da vida real em relação à vida política”. Em Sobre a questão
judaica, há esta passagem:

Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem


leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na
realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena,
a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitá-
rio, e a vida na sociedade burguesa, na qual ele atua como pessoa particular,

50
Ibid., p. 107. Sobre a concepção de sociedade civil de Hegel, ver: Kervégan, 2006, p. 181-234.
51
Marx, 2005, p. 108.
52
Ibid., p. 128.
Dagmar Manieri • 37

encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de


meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. 53

Por não se realizar de forma completa, a compreensão em Marx


não deixa espaço para o discurso do Outro. Marx intercala a interpreta-
ção ao processo de compreensão de Hegel. No exemplo deste último, seu
“idealismo” é objeto da crítica, pois realiza uma inversão de ordem mís-
tica. Na Crítica da dialética e da filosofia hegelianas em geral, (rascunhos
que compõem os Manuscritos econômico-filosóficos) ele acentua que em
Hegel “o ser humano mesmo só vale como ser abstrato pensante, como
consciência-de-si; e, em segundo lugar, porque a apreensão é formal e
abstrata, (...)”. 54 Há uma estratégia na escrita marxiana; seu lógos lin-
guístico não permite a apreciação (independente) do leitor sobre o
objeto estudado: sempre há uma antecipação do intérprete. A crítica é
implacável, fato que comprova o radicalismo de Marx. No fundo, o texto
não transforma o Si; faz parte da estratégia utilizar-se do texto para
expor um programa de pensamento. 55
Exegese que inaugura uma verdadeira tradição marxista: para se
chegar às “verdades” do capitalismo, necessita-se de uma crítica ao he-
gelianismo. Por isso essa obra do jovem Marx - Crítica da filosofia do
direito de Hegel – é importante para delinearmos a própria formação do
marxismo. Quando Hegel comenta sobre o Estado, Marx se atenta sobre
sua definição. Para o primeiro, o Estado “em face da família e da socie-
dade civil”, surge como “necessidade externa”. Em seguida se pode
identificar a compreensão de Marx:

53
Marx, 2010a, p. 40.
54
Marx, 2010b, p. 132.
Aqui, a ausência de transformação do Si está ligada à ausência de liberdade. Sem esta última, o Si
55

melhorado não se efetiva.


38 • Problemas de hermenêutica radical

Por “necessidade externa” pode-se somente entender que “leis” e “interesses”


da família e da sociedade civil devem ceder, em caso de colisão, às “leis” e “in-
teresses” do Estado; que aquelas são subordinadas a este; que sua existência é
dependente da existência do Estado; ou também que a vontade e as leis do
Estado aparecem à sua “vontade” e às suas “leis” como uma necessidade. 56

Mas por que o Estado é importante para Hegel? O que há em sua


natureza que o faz uma necessidade? É que o Estado é o “produto da
Ideia”. Aqui, Marx se mostra com sua ironia nesta compreensão: ele co-
menta que irá traduzir em prosa a linguagem (hermética) de Hegel. Se a
interpretação de Marx já localiza o conceito de “Estado” em Hegel, surge
repentinamente o entendimento do hegelianismo: um “misticismo ló-
gico, panteísta”. 57 Há outro detalhe importante no estilo de leitura de
Marx, ou seja, seu senso crítico logo é ativado: o hegelianismo surge na
perspectiva da crítica. Observar a forma como Marx interpreta o con-
ceito de Ideia:

A realidade não é expressa como ela mesma, mas sim como uma outra rea-
lidade. A empiria ordinária não tem como lei o seu próprio espírito, mas um
espírito estranho e, ao contrário, a Ideia real tem como sua existência não
uma realidade desenvolvida a partir dela mesma, mas a empiria ordinária,
comum. 58

No hegelianismo o “fato empírico” é concebido como racional. Isto


quer dizer que em Hegel, o sujeito é a Ideia: está em curso uma estranha
inversão. 59 No entendimento de Marx, o materialismo deve fazer o

56
Marx, 2005, p. 28.
57
Ibid., p. 29.
58
Ibid., p. 29, 30.
59
“Ele [Hegel] transformou um produto, em um predicado as Ideia, o que é seu sujeito; ele não
desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um pensamento
previamente concebido na esfera abstrata da lógica” (Ibid., p. 36).
Dagmar Manieri • 39

contraponto ao hegelianismo. Neste instante, Marx faz sua reflexão so-


bre o Estado. Afirma que Hegel concebe “as funções e atividades estatais
abstratamente” e complementa que não se pode desmerecer a “indivi-
dualidade particular”. Logo após, lança a reflexão:

(...) tanto a individualidade particular como as funções e atividades estatais


são funções humanas; ele esquece que a essência da “personalidade parti-
cular” não é a sua barba, o seu sangue, o seu físico abstrato, mas sim a sua
“qualidade social” e que as funções estatais, etc. são apenas modos de exis-
tência e de atividades das qualidades sociais do homem. 60

Aqui, a sociologia surge como expressão do próprio materialismo,


fato este que faz evidenciar a mistificação do Estado em Hegel. Portanto,
o materialismo indica que o estudo deve se iniciar “do sujeito real e con-
siderar sua objetivação”. Observar como, em Marx, as fases do trabalho
hermenêutico estão próximas. Para além da crítica, percebe-se uma ati-
tude de confronto. 61 A inversão empreendida pela filosofia hegeliana
corresponde a um fechamento para o conhecimento. Neste instante,
Marx retorna à interpretação:

Como se trata, no fundo, apenas de uma alegoria, de atribuir a uma existên-


cia empírica qualquer o significado da Ideia realizada, então é evidente que
estes receptáculos completaram sua determinação tão logo se tornaram
uma incorporação determinado de um momento da vida da Ideia. Assim, o
universal aparece por toda parte como algo de particular, de determinado,

60
Ibid., p. 42.
61
Peter Sloterdijk ao comentar sobre esta postura de Marx, vê no pensador dois modelos: o jovem Marx,
humanista e outro, após a presença de Max Stirner e Bakunin: “Os dois lhe mostraram limites
sistemáticos de seu ponto de partida próprio – experiências que ele não conseguiu nem integrar, nem
simplesmente desprezar” (2012, p. 143). Marx e Engels possuem “um prazer destrutivo terrível”; por isso,
ao exercerem esse poder de crítica ante Max Stirner, “eles destroem a si mesmos nele” (Ibid., p. 145).
Assim, A ideologia alemã é “indiscreta”, nas palavras de Sloterdijk; já o tom acentuadamente crítico de
Marx já visualizava o “pensador senhorial, em sua unilateralidade” (Ibid., p. 144).
40 • Problemas de hermenêutica radical

enquanto o singular não atinge em lugar algum sua verdadeira universali-


dade. 62

As consequências do hegelianismo é que o leitor pode apreender


um determinado conteúdo empírico de forma acrítica: “Ele não pode
medir a Ideia pelo existente, mas deve medir o existente pela Ideia”. 63 A
etapa da reflexão, além de confrontar duas totalidades, também implica
em evidenciar as consequências (no leitor) da totalidade hegeliana. No
exemplo da leitura de Marx sobre Hegel, as consequências são a “abs-
tração fantástica”, sendo que o idealismo deste último conduz a uma
liberdade formal. Ao separar o “em Si” do “para Si”, Hegel converte “o
sujeito real da liberdade [em um] significado formal”. Aqui, já se visua-
liza o tema que envolve Sobre a questão judaica: a emancipação política
promovida pelas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Foi o
burguês da sociedade civil que libertou seu egoísmo, restando ao traba-
lhador a emancipação formal na figura do citoyen. 64
A rejeição ao idealismo de Hegel não se explica só pela divergência
em relação ao materialismo. O problema é que a filosofia hegeliana é
presa do próprio momento burguês. Por isso Marx desconfia da crítica
exercida no interior do hegelianismo:

(...) a crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado não


indica somente contradições existentes; ela esclarece essas contradições,
compreende sua gênese, sua necessidade. Ela as apreende em seu

62
Marx, 2005, p. 59.
63
Ibid., p. 73.
64
Em uma passagem da Contribuição à crítica da economia política, Marx nos mostra a emancipação na
perspectiva do capital: “(...) o processo do valor de troca que a circulação desenvolve não só respeita a
liberdade e ao igualdade: ele próprio as cria e lhes serve de base real. Como ideias abstratas são
expressões idealizadas de suas diversas fases, seu desenvolvimento jurídico, político e social é apenas a
sua reprodução em outros planos” (Marx, 2011, p. 328).
Dagmar Manieri • 41

significado específico. Mas esse compreender não consiste, como pensa He-
gel, em reconhecer por toda parte as determinações do conceito lógico, mas
em apreender a lógica específica do objeto específico. 65

Ou seja, a crítica no interior do hegelianismo não é radical. Aqui,


transparece o radicalismo de Marx no ato de julgar o hegelianismo como
um pensar cativo de uma totalidade histórica: o capitalismo. Observar
esta interpretação de Althusser sobre a problemática das articulações
nos diversos níveis sociais em Marx:

Vê-se com isso que certas relações de produção supõem, como condição de
sua própria existência, a existência de uma superestrutura jurídico-política
e ideológica, (...). Vê-se finalmente que a natureza das relações de produção
consideradas não apenas exige ou não exige esta ou aquela forma de supe-
restrutura, mas determina também a grau de eficácia delegado a este ou
aquele nível da totalidade social. 66

Marx visualiza em Hegel uma espécie de fechamento: “Ele não


deixa que a sociedade se torne o determinante real, pois para isso é ne-
cessário um sujeito real e ele possui apenas um sujeito abstrato, uma
imaginação”. 67 Assim como havia realizado na crítica à economia clás-
sica, Hegel também será colocado à prova ante o materialismo histórico.
Michael Löwy recupera esta postura de Marx:

O que os faziam representantes científicos da burguesia [os economistas


clássicos] é que seu pensamento não podia superar os limites que o próprio
burguês não supera em sua vida e que, por consequência, são teoricamente
impelidos para os mesmos problemas e para as mesmas soluções às quais

65
Marx, 2005, p. 108.
66
Althusser; Balibar; Establet, 1980, p. 127.
67
Ibid., p. 136.
42 • Problemas de hermenêutica radical

os burgueses na prática são conduzidos por seu interesse material e sua si-
tuação social. 68

Então, o hegelianismo não se constitui como a totalidade que o ma-


terialismo histórico deve afrontar: a totalidade correta corresponde ao
próprio sistema capitalista. 69 Nesta perspectiva teórica, o hegelianismo
não confirma a “verdadeira essência humana”; ele realiza a inversão ao
confirmar a “essência estranhada” do homem. São termos dos Manus-
critos econômico-filosóficos que promovem um fundo crítico à
fenomenologia hegeliana. Se em Hegel a apreensão (do ser humano) é
“formal e abstrata”, então a “suprassunção da exteriorização torna-se
uma confirmação da exteriorização, (....)”. 70
Por isso na reflexão de Marx, o hegelianismo é pensado nos limites
da totalidade capitalista: “O homem estranhado de si mesmo é também
o pensador estranhado de sua essência, isto é, da essência natural e hu-
mana”. 71 Filosofia que se traduz em “espíritos fixos”; é a lógica desses
“espíritos” no movimento de exteriorização e de sua suprassunção. O
pensar de Hegel não corresponde a uma “abstração determinada”; seu
“homem” não é um homem real. Por isso a “externação da essência” não
representar algo de fato. A filosofia trata o pensar como algo diverso do
pensar de um “sujeito humano e natural, com olhos, ouvidos, etc.,

68
Löwy, 1991, p. 104.
69
Observar esta passagem de Louis Althusser, que interpreta o conceito de totalidade em Marx: “Toda a
estrutura da sociedade considerada acha-se assim implicada e presente, de um modo específico, nas
relações de produção, isto é, na estrutura determinada da distribuição dos meios da produção e das
funções econômicas entre categorias determinadas de agentes da produção. Equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produção determina o econômico como tal, a definição do conceito das
relações de produção de um modo de produção determinado passa necessariamente pela definição do
conceito de totalidade dos níveis distintos da sociedade, e de seu tipo de articulação (isto é, de eficácia)
própria” (Althusser; Balibar; Establet, 1980, p. 128).
70
Marx, 2017, p. 132.
71
Ibid., p. 135.
Dagmar Manieri • 43

vivendo na sociedade, no mundo e na natureza”. 72 De forma irônica,


Marx comenta que no hegelianismo há um “pensar sem olhos, sem den-
tes, sem ouvidos, sem nada (...)”. 73
No exemplo específico de Marx o entendimento (ao inserir o pen-
sar de Hegel como uma forma de idealismo) está presente desde o início
de seu estudo. Marx não vê a compreensão como um ato isolado; seu
criticismo equivale a dizer que as fases de compreensão e interpretação
se dão no quadro do entendimento. Já a reflexão só é alcançada na me-
dida em que se encontra o objeto último da crítica. Ela não corresponde
(no hegelianismo) como um pensar crítico; este último só se realiza
quando se apreende a totalidade do próprio capitalismo como sistema.
Desta forma, o hegelianismo é objeto da crítica e entendido como uma
mistificação (o “pensar abstrato”) que confirma a exteriorização estra-
nhada do homem no interior da totalidade capitalista.
A forma como Marx se defronta ante os escritos de Hegel nos mos-
tra que em muitos autores as etapas do trabalho hermenêutico estão
embaralhadas. Nem todo autor suspende seu potencial crítico na fase
da compreensão; muitos intérpretes (como Marx, por exemplo) anteci-
pam as várias fases do estudo textual. O problema maior é a presença
incisiva do conceito de “crítica” em Marx. Na leitura de Deleuze e Gua-
ttari, “criticar é somente constatar que um conceito se esvanece, perde
seus componentes ou adquire outros novos que o transformam, quando
é mergulhado em um novo meio”. 74 A crítica implica que há um modelo
alternativo; isto deve ocorrer para não se cair presa do ressentimento

72
Idem.
73
Idem.
74
Deleuze; Guattari, 2013, p. 37.
44 • Problemas de hermenêutica radical

(dos que “falam senão deles mesmos”, nas palavras de Deleuze e Guat-
tari).
Se em Marx a reflexão ocorre como um encerramento de sua pos-
tura crítica, há um caso particular em Jacques Rancière, em especial em
O desentendimento. Aqui, encontra-se um discurso de ordem reflexiva.
Neste caso, ele utiliza os conceitos aristotélicos de sympheron (coisas
vantajosas) e blaberon (dano) para uma reflexão sobre a natureza da po-
lítica. O que é política?

A política começa precisamente onde se deixa de equilibrar lucros e perdas,


e se cuida de repartir as partes do comum, de harmonizar segundo a pro-
porção geométrica as partes de comunidade e os títulos para se obter essas
partes, as axiai que dão direito à comunidade . 75

Rancière pensa, neste exemplo, a política na Grécia antiga (Atenas,


especialmente). Na interpretação de Jean-Pierre Vernant, a política na
Grécia antiga apresentava duas correntes principais: aristocrática e de-
mocrática. Na primeira, percebe-se a concepção de Sólon com sua
eunomia, a boa ordem. A visão de mundo aristocrática ampara-se na no-
ção de homónoia, “um acorde harmônico, [que] repousa sobre uma
relação do tipo: 2/1, 3/2, 4/3”. 76 Na hegemonia erigida pela classe dos
aristocratas, eis o princípio de diferenciação social:

A harmonia da eunomia implica, pois, o reconhecimento, no corpo social


como no indivíduo, de um certo dualismo, de uma polaridade entre o bem e
o mal, a necessidade de assegurar a preponderância do melhor sobre o
pior. 77

75
Rancière, 2018a, p. 19, 20.
76
Vernant, 2016, p. 101.
77
Idem.
Dagmar Manieri • 45

A dualidade entre agathós (melhor) e kakós (pior) funda (a arché) o


princípio de diferenciação social. É contra este princípio que a corrente
democrática intenta a nova representação política. Agora a isonomia
(igualdade diante da lei) garante a justiça nas relações (políticas) entre
os cidadãos; nesta nova orientação, deve-se “igualar estritamente entre
todos a participação na arché, o acesso às magistraturas, fazer desapa-
recer todas as diferenças que opõem entre si as diversas partes da
cidade, (...)”. 78
Na medida em que a corrente democrática questiona (daí o “desen-
tendimento”) “a oligarquia dos ricos, a aristocracia das pessoas de bem”,
há a possibilidade da instituição de outra forma de representação polí-
tica: “(...) a minoria dos homens de “mérito” e pela maioria dos homens
comuns”. 79 Jacques Rancière pensa o conceito de política quando há (de
forma ativa) um “partido” dos pobres, ou seja, a política corresponde a
uma “interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos – que faz
os pobres existirem enquanto entidade”. 80 Assim a política institui uma
parte dos sem-parte. Na reflexão de Rancière:

Essa instituição [de uma parte dos sem-parte] é o todo da política enquanto
forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como co-
munidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à
aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não há polí-
tica. Há apenas a ordem da dominação ou a desordem da revolta. 81

Percebe-se, nesta reflexão, que a noção de dano (blaberon) é funda-


mental para se pensar o conceito de política. A noção de igualdade, neste

78
Ibid., p. 103.
79
Rancière, 2018a, p. 21.
80
Ibid., p. 26.
81
Idem.
46 • Problemas de hermenêutica radical

caso, implica a “figura do dano”, sempre em confronto com uma lógica


policial (a dominação). O que ocorre quando se utiliza os conceitos é uma
nova apropriação; foi isto que realizou Rancière ante o blaberon de Aris-
tóteles. Diante de novos problemas, o conceito recebe uma
reapropriação:

Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de


outros conceitos, que respondiam a outros problemas e supunham outros
planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte,
assume novos contornos, deve ser reativado ou recortado. 82

É o conceito que opera a reflexão, por isso ele deve ser entendido
em função de um problema. Como na expressão de Deleuze e Guattari,
“um conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função das con-
dições de sua criação”. 83 Na reflexão, há a necessidade da criação: o
pensar só é criativo quando se tem uma boa utilização dos conceitos.
Dessa forma, em alguns autores se observa a habilidade no jogo entre a
aplicação do conceito e a reflexão. Isto ocorre, particularmente, com
Gilles Deleuze. Em Lógica do sentido, há um capítulo (“Platão e o simula-
cro”) reservado à filosofia de Platão. Logo no início, Deleuze nos
apresenta a exposição do platonismo: “(...) distinguir a essência e a apa-
rência, o inteligível e o sensível, a Ideia e a imagem, original e a cópia, o
modelo e o simulacro”. 84 No platonismo há o modelo inteligível, as có-
pias e os simulacros. Ele comenta que este último corresponde aos
“falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude,

82
Deleuze; Guattari, 2013, p. 26.
83
Ibid., p. 36.
84
Deleuze, 2009, p. 262.
Dagmar Manieri • 47

implicando uma perversão, um desvio essencial”. 85 A intencionalidade


platônica atua no mundo empírico e vai distinguir “cópias sempre bem
fundidas e os simulacros sempre submersos na dessemelhança”. As có-
pias são superiores aos simulacros, pois se assemelham (“interiormente
e espiritualmente”) à Ideia da coisa. Eis, então, a compreensão de Platão
empreendida por Deleuze: “A cópia é uma imagem dotada de semelhan-
ças, o simulacro, uma imagem sem semelhança”. 86 É o conceito de Ideia
que fundamenta o bom pretendente (a “cópia”). Mas como compreender
a noção de simulacro no filósofo grego? Para tal resposta é necessário o
conhecimento do universal, em nosso exemplo, o platonismo. Eis a res-
posta de Deleuze:

O simulacro é constituído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele


interioriza uma dissimilitude. Eis porque não podemos nem mesmo defini-
lo com relação ao modelo que se impõe às cópias, modelo do Mesmo do qual
deriva a semelhança das cópias. Se o simulacro tem ainda um modelo, trata-
se de um outro modelo, um modelo do Outro de onde decorre uma desse-
melhança interiorizada. 87

Nesse entendimento o simulacro surge como (um efeito) algo “ex-


terior e improdutivo, obtido por ardil ou submissão”. Deleuze já mapeia
as três dimensões: na Ideia há a possibilidade do saber; na cópia, a boa
opinião e no simulacro, a subversão. No entendimento de Deleuze o pla-
tonismo é uma filosofia conservadora. Isto porque rejeita o
estranhamento do simulacro, concebido como “um devir subversivo das
profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o

85
Idem.
86
Ibid., p. 263.
87
Idem.
48 • Problemas de hermenêutica radical

Semelhante (...)”. 88 Perceber que no entendimento do platonismo a in-


terpretação do simulacro adquire um tom dramático: o domínio das
representações é “preenchido pelas cópias-ícones”. Ao se compreender
e interpretar o simulacro, essa ação nos conduz a uma das característi-
cas do platonismo. A representação só é bem recebida (a “cópia
platônica”) na medida em que realiza o Semelhante; no mundo empírico
(terreno) a boa representação está na execução da “similitude exem-
plar”. Por isso o platonismo não desenvolve um pensar sobre a “potência
da representação”.
Deleuze localiza seus elementos de análise: o Mesmo, o Semelhante
e o Ilimitado. Eles percorrem uma longa história através do cristia-
nismo, passando por Leibniz e Hegel. A própria definição de
representação parece ter sido encarcerada pela filosofia. Então, onde
está a vertigem do pensamento filosófico? Deleuze comenta que “sua
embriaguez é fingida”. Como enfatiza Hayden White sobre as estraté-
gias de linguagem, Deleuze prepara o leitor para seu pensar reflexivo.
Mas antes disso, o filósofo localiza na arte (ele comenta sobre a litera-
tura de Joyce) o surgimento da representação para além do modelo
platônico. Aqui, já temos a reflexão: a representação (da diferença) “é
potência de afirmação, potência de afirmar todas as séries heterogê-
neas”. 89 Eis, então, que na modernidade artística surge o simulacro:
“Reúnem-se assim as condições da experiência real e as estruturas da
obra de arte: divergência das séries, descentramento dos círculos,

88
Ibid., p. 264.
89
Ibid., p. 266. Deleuze ainda enfatiza: “Todos estes caracteres são os do simulacro, quando rompe suas
cadeias e sobe à superfície: afirma então sua potência de fantasma, sua potência recalcada” (Idem).
Dagmar Manieri • 49

constituição do caos que os compreende, ressonância interna e movi-


mento de amplitude, agressão dos simulacros”. 90
Na aparição do “fantasma” ocorre uma nova composição. Deleuze
indica a “comunicação de elementos díspares”. Aqui, o simulacro leva
em consideração a “diferença” em uma concepção diversa da visão pla-
tônica do “mundo como ícone”. Esta nova visão corresponde ao mundo
dos simulacros, sem uma identidade preliminar. Deleuze propõe rever-
ter o platonismo; ele apreende os simulacros longe das aporias
essência/aparência ou modelo/cópia. A reflexão de Deleuze se apresenta
desta forma: “O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma
potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo
como a reprodução”. 91 A reflexão surge ao se rejeitar a totalidade do pla-
tonismo, estudada ao nível do entendimento. O que se questiona é o
modelo de classificação na totalidade do platonismo; por isso a reflexão
implica em uma nova totalidade que produz um significado renovado
para o simulacro:

Na reversão do platonismo, é a semelhança que se diz da diferença interio-


rizada, e a identidade do Diferente como potência primeira. O mesmo e o
semelhante não têm mais por essência senão ser simulados, isto é, exprimir
o funcionamento do simulacro. Não há mais seleção possível. A obra não-
hierarquizada é um condensado de coexistências, um simultâneo de acon-
tecimentos. É o triunfo do falso pretendente. 92

Pode-se sentir a presença de Nietzsche nesta totalidade que não


deseja instaurar um novo fundamento. Nietzsche contra Platão: o

90
Idem.
91
Ibid., p. 267.
92
Ibid., p. 268.
50 • Problemas de hermenêutica radical

mundo como um “processo de disfarce em que, atrás de cada máscara,


aparece outra ainda”. 93 A reflexão sobre o simulacro surge no choque de
duas totalidades. Na linguagem de Deleuze (que não deixa de expressar
o nietzschianismo), agora se instaura “o mundo das distribuições nô-
mades e das anarquias coroadas”. Ao invés de um movimento rumo à
certeza - como uma episteme que contempla a Ideia - o simulacro ensaia
uma postura de simulação. Aqui, há um “processo de sinalização” em
que se opera o signo. Ao invés da ordem platônica, agora se aceita o
“caos sem começo nem fim” de Nietzsche e Joyce. Essa postura crítica
ante o platonismo apresenta uma temporalidade específica. Nietzsche é
apreendido como o despertar de uma modernidade filosófica que des-
taca o “intempestivo”. Este elemento rebelde assinala que o pretendente
é aceito como uma figura da modernidade. 94
No término de “Platão e o simulacro” eis que surge outro elemento
para se conjugar com o simulacro: o factício. 95 São dois elementos que
coroam a modernidade anarquista nietzschiana. A realidade é definida
ao sabor de um leve sorriso: a ironia aprofunda a visão de mundo. O
sorriso nietzschiano que sabe do “caos que cria, que faz marchar os si-
mulacros e levantar um fantasma”. 96 Em “Platão e o simulacro” há um
bom exemplo dessas fases do trabalho textual. Deleuze faz uma boa
compreensão do platonismo; a partir da etapa interpretativa, percebe-
se que ingressa a totalidade compreendida como nietzschianismo.

93
Ibid., p. 269.
94
“O intempestivo se estabelece com relação ao mais longínquo passado, na reversão do platonismo,
com relação ao presente, no simulacro concebido como o ponto desta modernidade crítica, com
relação ao futuro no fantasma do eterno retorno como crença do futuro” (Ibid., p. 271).
95
“O factício é sempre uma cópia de cópia, que deve ser levada até ao ponto em que muda de natureza
e se reverte em simulacro (momento da Pop’Art)” (Idem).
96
Idem.
Dagmar Manieri • 51

Quantas leituras de Platão e Nietzsche empreendeu Deleuze para se che-


gar até “Platão e o simulacro”? O círculo hermenêutico possui uma
história que nos conduz à reflexão. Mesmo assim, esta nunca é com-
pleta: dela pode-se empreender uma nova compreensão. Paul Ricoeur
comenta sobre a “apropriação” no ato de leitura; por isso “não existe
interpretação autêntica”. 97 A fase da compreensão sempre descortina a
possibilidade para o giro hermenêutico. Como afirma Husserl, “qual-
quer objetividade real e mundana, inclusive a dos homens e dos animais
(...) deve ser considerada uma operação constituída”. 98 Mesmo com uma
atenção concentrada, com a presença da inteligência, há a consciência
do Outro: a consciência atenciosa ainda é consciência de um ser-situ-
ado.

97
Ricoeur, 2011, p. 86.
98
Apud Bonomi, 1974, p. 29.
2
O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

Para alguns pensadores da condição pós-moderna como Fredric


Jameson, por exemplo, o que caracteriza o pós-modernismo é um ele-
mento perigoso para a própria constituição da arte. Para ele, algo está
operando nas produções culturais que promove a alteração no potencial
estético das obras. Em suas palavras, seria como “não pudéssemos mais,
hoje, focar o nosso próprio presente, como se nos tivéssemos tornado
incapazes de alcançar representações estéticas de nossa própria expe-
riência atual”. 1 Jameson nos chama a atenção para a possibilidade de a
própria arte perder a capacidade de se distanciar do “mundo real”. Ele
resgata a metáfora da caverna de Platão para nos mostrar que na con-
temporaneidade a arte traça “suas imagens mentais do mundo nas
paredes que a confinam”. 2
Este diagnóstico pessimista de Fredric Jameson, de certa forma,
promove uma continuidade em relação ao pensamento de Herbert Mar-
cuse que, em 1964, lança o One-dimensional man. Nesta obra, o quadro da
sociedade capitalista é expresso desta forma: “O que está ocorrendo
agora não é a deterioração da cultura superior numa cultura de massa,
mas a refutação dessa cultura pela realidade. A realidade ultrapassa sua
cultura”. 3 Se o próprio cotidiano lança um véu sobre a cultura, isto equi-
vale a dizer que a “forma de mercadoria” corrompe o elemento

1
Jameson, 2006, p. 29.
2
Ibid., p. 30.
3
Marcuse, 1973, p. 69.
Dagmar Manieri • 53

(superior) da cultura: “A cultura superior se torna parte da cultura ma-


terial. Nessa transformação, [a arte] perde a maior parte de sua
veracidade”. 4 Dois marxistas, Jameson e Marcuse, que dão prossegui-
mento à tese da reificação dos Manuscritos econômico-filosóficos do
jovem Marx. Interdição, na perspectiva marxista, da cultura ao executar
uma prática negativa. Na mensagem há a ideia de que a cultura exerce
uma espécie de função idealista; na linguagem de Marcuse, no atual es-
tágio do capitalismo ocorre a “dessublimação”. Marcuse utiliza Hegel ao
conceber o sujeito na sociedade unidimensional: “O resultado é a atrofia
dos órgãos mentais, impedindo-os de perceber as contradições e alter-
nativas e, na única dimensão restante da racionalidade tecnológica,
prevalece a consciência feliz”. 5 É bem provável que Benjamin e Adorno,
no campo marxista, tenham aberto uma nova vereda na compreensão
da obra de arte. Essa nova senda rompe com a concepção de que se deve
esperar pela revolução para remover a reificação. Eles não mais creem
nesta ideia; daí as obras do modernismo receber um tratamento mais
positivo, no sentido de executar o potencial (negativo) da arte. A obra
autêntica preserva a “consciência autocrítica” e persegue um “princípio
digno da humanidade”. 6
Essa abertura de análise em Benjamin e Adorno (em relação à arte
no modernismo) nos conduzem às interpretações de Gilles Lipovetsky.
Mesmo em um pensamento para além do círculo marxista, a reflexão
deste último não pode ser descartada. Ela nos mostra um ser humano
mais complexo em relação à concepção marxista. Como bem enfatizou

4
Ibid., p. 70.
5
Ibid., p. 88.
6
Adorno, 2021, p. 55.
54 • Problemas de hermenêutica radical

Michel de Certeau, o indivíduo consumidor não é tão passivo, como


acentuam muitos intelectuais.
Em Lipovetsky, o capitalismo tardio não traz só o “bem-estar ma-
terial”; com ele, pode nascer “um novo pluralismo dos valores, uma nova
apreciação da vida devorada pela ordem do consumo volúvel”. 7 Uma
possibilidade na dimensão do devir que não nasce mais do pessimismo
(crítico) marxista: para além do “avanço consumista” pode nascer “uma
consciência de outro tipo”. 8
É com esse desafio de um pensar inquietante em Lipovetsky que o
cinema é definido como uma forma de interrogar “a realidade por todos
os meios – imagem, som, montagem”. Há no cinema uma peculiar forma
de “representação do mundo”, ou seja, nesta arte se pratica uma “inves-
tigação problemática de um mundo fragmentado e sem fronteiras, que
ele interroga em todas as direções através de meios mais complexos”. 9
Ao comentar sobre o crescimento da produção de documentários, Lipo-
vetsky e Serroy explicam suas causas: “Ele responde à necessidade que
tem o indivíduo contemporâneo de sentir-se um sujeito livre, pensante
e crítico, (...). Um pouco em toda parte vemos crescer o desejo de um
consumo mais reflexivo e ativo, distanciado e cidadão”. 10 Quando os au-
tores comentam sobre a obra de Pedro Costa, No quarto de Vanda (2001),
acentuam que os elementos da obra “deixam a porta aberta ao sentido e

7
Lipovetsky, 2017, p. 368.
8
Idem. Observar, ainda, esse acréscimo ma mesma ideia em Lipovetsky: “Não tenhamos a ingenuidade
de crer que essas “dissidências” bastarão para fazer mudar de rumo: elas assinalam apenas que a
multiplicação e a renovação perpétua dos bens mercantis não podem ser consideradas a única e
principal vocação do homem. Chegará o dia em que a procura da felicidade no consumo não terá mais
o mesmo poder de atração, a mesma positividade: a busca da realização de si acabará por se desprender
da corrida sem fim aos prazeres consumidores” (Idem).
9
Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 142.
10
Ibid., p. 145.
Dagmar Manieri • 55

oferecem a cada espectador, por mais distante que esteja desse mundo,
as “lições de vida” que quiser encontrar”. 11 Essa abertura no ato inter-
pretativo é denominada por Lipovetsky e Serroy de “avanço do
imaginário democrático”. 12
Esse pensamento inquietante de Gilles Lipovetsky nos conduz a
uma reflexão sobre a própria forma como nos relacionamos com a obra
fílmica: a experiência estética. Ela possui uma natureza semelhante ao
jogo, estudado por John Huizinga em Homo ludens. Experienciar a obra
cultural apresenta uma característica especial como ato desinteressado.
Huizinga acentua: “Visto não pertencer à vida “comum”, ele se situa fora
do processo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo
contrário, interrompe esse processo”. 13 Passagem importante, pois nos
mostra que a alegria provinda da experiência estética surge ao se rom-
per com o ciclo das necessidades cotidianas. Isso não seria uma das
características do ser humano, ou seja, o poder de se desligar das neces-
sidades do dia-a-dia? Esta é a ideia de Huizinga ao enfatizar que nas
experiências lúdicas “as leis e costumes da vida cotidiana perdem vali-
dade”. 14 No próprio termo ludus, Huizinga encontra o significado de
“ausência de seriedade”; assim, ludus pode ser compreendido como uma
experiência que nos conduz à “ilusão, simulação e derrisão”. 15 O mundo
da experiência estética tem esse poder de “encantar”, de “arrebatar”;

11
Ibid., p. 148.
12
Assim, temos a evolução da forma “documentário”. Eis o novo estágio dessa produção cultural: “Essa
força narrativa do documentário assim praticado explica que se possa considerar esses realizadores
como verdadeiros criadores cinematográficos, cujos filmes vamos ver como vamos ver uma obra de
ficção” (Ibid., p. 151).
13
Huizinga, 2019, p. 10.
14
Ibid., p. 15. Observar, também, esta passagem: “[O jogo] é uma atividade desligada de todo e qualquer
interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e
temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (Ibid., p. 16).
15
Ibid., p. 45.
56 • Problemas de hermenêutica radical

são formas de alegria em contraposição ao mundo da necessidade. 16 Hui-


zinga não deixou de evidenciar que o surgimento da palavra “seriedade”
(em diversas línguas) sempre está em relação à “consciência do conceito
de jogo”. 17
Experiência estética que já em Immanuel Kant – segundo o Pro-
grama Iluminista – é compreendida como “gosto” superior em
contraposição ao “atrativo dos sentidos”. O belo nos proporciona uma
alegria desinteressada e nos remete à própria capacidade do ser hu-
mano de ser livre. Para o pensador alemão, a abertura para o “gosto”
desinteressado já é uma prova de que se pode possuir um “sentido hu-
mano universal”. 18 É o que Kant denomina de humanidade (Humanitat):
pode-se conquistar um “universal sentimento de participação (...)”. 19
Esses breves apontamentos sobre a experiência estética são impor-
tantes para situarmos a prática fílmica no universo cultural. Aqui, não
seria equivocado se utilizarmos o conceito de Adorno de forças produ-
tivas estéticas. O cinema aparenta ser uma forma evoluída dessas
“forças estéticas”. Tal poder é utilizado pelo processo mercantil de Hol-
lywood. 20 O cinema, neste modelo mercantil, transforma-se em uma
grande indústria cultural; mas este potencial produtivo pode ser utili-
zado como força estética humanizadora. O cinema não está só em

16
Nos escritos de Wilhelm Dilthey, essa experiência estética surge como “novas visões da vida”. Para a
hermenêutica trata-se de uma “revivência” (nas palavras do próprio Dilthey): “A compreensão, por sua
vez, lhe abre um vasto reino de possibilidades que não estão presentes na determinação de sua vida
real e efetiva” (Dilthey, 2010, p. 198).
17
“Não queremos com isso dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas fases mais
primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que ela se processa segundo as formas e o ambiente do
jogo” (Ibid., p. 59).
18
Kant, 2005, p. 200.
19
Ibid., p. 199.
20
Observar os valores dessa indústria. Com Homem-Aranha: Sem volta para Casa, a Sony Pictures gastou
(produção e distribuição) um valor estimado de US$ 160 milhões; sua arrecadação ultrapassou US$ 1,75
bilhão.
Dagmar Manieri • 57

função da criação de capital; ele se traduz como uma forma de arte que
rompe com os limites do espaço/tempo. O ser humano já experimenta
esta sensação no sonho; agora, esta experiência é produzida de forma
intencional, com efeitos culturais poderosos sobre o ser humano.
Neste sentido, a poiésis da obra fílmica apresenta um grande po-
tencial estético; ao incorporar as outras formas artísticas, o diretor tem
diante de si uma variedade enorme de opções. Há no filme o teatro, na
encenação dos atores. Há, também, a pintura com seu desenvolvimento
através dos séculos; sobre isto, pode-se dar um exemplo. Em O nome da
rosa, de Jean-Jacques Annaud, observam-se diversas tomadas de câmera
que são verdadeiras pinturas. Annaud utiliza o belo cenário do mosteiro
beneditino para proporcionar uma representação pictórica impressio-
nista. São tomadas da grande torre do mosteiro que nos faz lembrar
Monet. Mas não só o impressionismo se encontra em O nome da rosa. 21 A
inspiração para filmar o rosto assombrado de Adson é romântica. Ele,
enfim, é um personagem romântico, apaixonado pela pobre camponesa
que reside nas cercanias do mosteiro. Nesta Idade Média de luzes natu-
rais e, acrescentada, por velas, Rembrandt auxilia o diretor nos
contrastes de luz e escuridão. Como se percebe, temos em O nome da rosa
diversas estéticas pictóricas, deixando ao cinema o privilégio de ser uma
arte que sintetiza diversas formas de estética já consolidadas. Outro
exemplo dessa apreensão se localiza na música. Tanto Apocalypse now
(de Coppola), quanto Laranja mecânica (de Kubrick) apresentam a mú-
sica como parte importante de sua linguagem fílmica. 22 Nessas duas
obras a música representa um aprofundamento da cena; trata-se de

21
ANNAUD, Jean-Jacques (Dir.). O nome da rosa (Le Nom de la Rose). França, 1986.
22
COPPOLA, Francis F. (Dir.). Apocalypse now. EUA, 1979.
58 • Problemas de hermenêutica radical

algumas estratégias como formas de complemento, contraste, desloca-


mento, performances das personagens e da câmera.
O cinema como arte apresenta uma enorme complexidade. Tal di-
ficuldade de definição se explica por sua característica de arte da época
contemporânea. Só isto já nos mostra uma problemática importante: no
cinema o poder de se gerar a ilusão é enorme. Os efeitos especiais que
os técnicos criam promovem no cinema uma capacidade imaginativa
nunca antes conquistada. Mas aqui reside um problema; este enorme
efeito imaginativo é gerado nos limites da arte e não, como na litera-
tura, no leitor. Aqui, o receptor ainda possui o poder de sua imaginação,
restando à literatura a tarefa de fundamentar com suas palavras a ima-
ginação. 23 No cinema a própria imaginação é gerada em seu meio
técnico. Também no cinema, para sua promoção, necessita-se de um
conjunto de técnicos, diversos especialistas, com destaque para o dire-
tor.
De uma forma geral, pode-se subdividir a experiência (hermenêu-
tica) estética da obra fílmica em alguns elementos. Primeiro, a relação
dialógica do espectador com a obra. Ela é importante, pois na herme-
nêutica há a possibilidade do sujeito que frui a arte se transformar. Não
se trata de um sentido dialético, mas uma forma mais democrática de
consciência: o que se denomina de consciência estética, no sentido da
capacidade de empatia, compaixão. É esta forma de consciência que a
tragédia (especialmente em Sófocles) tenta provocar. Em Antígona, o la-
mento da heroína no final da peça (na iminência da tragédia), intenta

23
“Supomos que todo leitor de um texto narrativo evoca continuamente uma série de imagens visuais,
à medida em que sua leitura avança, imaginando não só como são os personagens, mas também qual
será sua aparência. Dá-se o mesmo com o cenário, o espaço ou a paisagem onde a ação se desenrola”
(Snodgrass, 2004, p. 107).
Dagmar Manieri • 59

um efeito emocional no espectador. 24 São lamentos com o objetivo de


despertar a compaixão (oiktos) no espectador ateniense. Teatro que in-
tenta a transformação do espectador através das emoções. Isto não é
uma kátharsis (purificação) no sentido de Aristóteles ou de Górgias; ela
implica em uma metánoia: a transformação provocada por um “abalo”
emocional. O ideal da representação trágica requer um espectador
transformado pelo complexo emocional, um ser mais sensível às dores
do Outro.
O segundo elemento da experiência fílmica na perspectiva da her-
menêutica é a abertura do ato interpretativo: o denominado círculo
hermenêutico. Aqui, abandona-se o ideal de objetividade, no sentido de
que a arte possui uma “substância” que deve ser esgotada pela interpre-
tação. Na hermenêutica, o caráter da interpretação é intrinsecamente
incompleto; isto não deve ser concebido como um erro ou desvio. Essa
incompletude faz parte da própria natureza do ato interpretativo. Não
há um intérprete superior que possa indicar o caminho correto; o que
se denomina de má interpretação faz parte do mundo da vida do intér-
prete. A fenomenologia nos ensina que o “erro” pode ser compreendido
como um elemento do mundo da vida do sujeito que “errou”. O que a
hermenêutica conclama é o diálogo; este último propicia a oportunidade
de um dos intérpretes se corrigir, caso se conscientize de que a inter-
pretação do Outro é mais apropriada. Deste segundo elemento, já
visualizamos o próximo elemento: a obra de arte como um poliedro, algo
com diversas faces. Esta forma de abordagem permite variadas formas
de experiência com a obra. Posso assistir a um filme com objetivo de

24
Na fala de Antígona: “Sem que me chorem, sem amigo algum, sem cantos de himeneu sou arrastada
– pobre de mim – por sôfrego caminho! Para desgraça minha nunca mais poderei ver a santa luz do sol!
E dos amigos nem um só lamenta esse meu doloroso fim sem lágrimas” (Sófocles, 1990, p. 239 [950]).
60 • Problemas de hermenêutica radical

apreender suas montagens, ou mesmo, suas composições musicais. As-


sim, são diversas possibilidades na relação com a obra.
A obra de arte tem como característica a incompletude. Quanto
mais superior a produção cultural, maior as possibilidades interpreta-
tivas. Como uma espécie de poliedro, a obra sempre nos apresenta uma
nova face. Isto porque ela figura uma determinada sociedade. Quantos
elementos a serem observados? Quantos temas? Nesse sentido a com-
pletude da obra torna-se um recorte; alguns temas são privilegiados em
detrimento de outros. Não se trata de uma hierarquia de elementos; ela
pode ser entendida como uma sinfonia, uma espécie de harmonia nesse
conjunto de temas.
Na hermenêutica radical se acentuam os elementos da heterono-
mia e da autonomia. São duas dimensões importantes para o ato
interpretativo. De certa forma, esses dois conceitos pensam o caráter
social da própria arte. Qual o desafio de se pensar um tema social? As-
sim, a obra não se esgota em sua forma artística. Uma comédia não se
esgota no riso do espectador; uma tragédia não se esgota na seriedade
(como comoção) daquele que frui a obra. A grande obra ensaia uma sa-
ída; ela testa as possibilidades de uma nova vida, mas não como
programa. Por isso um dos objetivos da arte é desenvolver o senso crí-
tico. É uma forma de crítica do mundo através do percepto. Um amor
interrompido pelo egoísmo; uma perda motivada pelo conflito de inte-
resses. Romantismo e existencialismo se traduzem como formas
expressivas desse senso crítico.
No exemplo do cinema, ao apreendermos os signos na perspectiva
da dominação social, abrimos a possibilidade de uma melhor familiari-
dade com a estética fílmica. Ela possui uma linguagem própria;
simbólica, se apropria dos entes ao convertê-los em linguagem estética.
Dagmar Manieri • 61

Um castelo se converte em símbolo da nobreza e, também, da opressão


e da apropriação do trabalho alheio. Assim, o castelo não é só um sím-
bolo da nobreza (no sentido de classe superior); ele se transforma em
expressão da dominação social. Por isso, o cinema transporta seus sig-
nos de dominação e espíritos de emancipação.
Antes de finalizarmos com a mímesis, há um elemento que também
merece um pequeno comentário. São os espaços fílmicos caracterizados
como topos. Aqui se encontram aspectos do belo ao lado da “feia” neces-
sidade. Diante de uma imensa tragédia, eis que desponta uma linda lua.
Esse contraste é perseguido pela arte. Ela mostra que a vida não se tra-
duz em uma determinada unilateralidade: o belo convive com o feio e o
disforme. Sem esse confronto a arte se tornaria artificial, fria e sem
vida. 25
É nesse sentido que a arte possui uma reflexão sobre a temporali-
dade. Uma condição humana que está intimamente relacionada com o
ideal e o otimismo. Mas se trata de um elemento de difícil apreensão.
Nas obras menores, a mímesis se descaracteriza e se converte em pro-
paganda, em clichê. Nelas se deseja a atenção do espectador; por isso o
apelo ao inesperado, à surpresa. As novelas de TV operam com esta ló-
gica: cada capítulo necessita apresentar surpresas, impactos
emocionais. Já a grande obra encaminha-se para outra vereda. Ela deve
romper com o “senso comum”: uma espécie de concepção de mundo

25
O belo não necessita ser só um recorte da natureza. Ele é toda forma (absoluta) em sua perfeição. Para
um escritor moralista como Dostoiévski, belo é Jesus, “um homem de tal forma sublime (...)” (Dostoiévski,
2009, p. 123). Em outra passagem de suas cartas, o escritor russo nos oferece a definição de belo: “Todos
os escritores, não somente os nossos, mas também os estrangeiros, que tentaram representar a Beleza
Absoluta, foram desiguais em seus resultados, pois é algo infinitamente difícil de representar. A beleza
é o ideal; mas ideais, seja entre nós ou na civilização europeia, há muito se desfazem” (Ibid., p. 138).
62 • Problemas de hermenêutica radical

impregnada de valores dominantes. 26 De certa forma, a mímesis é um


elemento estético, mas não deixa de transportar a perspectiva do artista
(autor). Vamos dar um exemplo do campo literário. Em uma carta ende-
reçada à sua sobrinha (Sofia), Dostoiévski afirma que não produz por
“fama e dinheiro”, mas pela “síntese [dos] ideais poéticos e artísticos,
(...)”. 27 Portanto, a mímesis nas obras do escritor russo possui esses “ide-
ais poéticos e artísticos”.
De certa forma, há em torno da obra de arte uma variante que,
grosso modo, pode ser utilizada para diferenciar os tipos de arte. Uma
pintura é uma arte muda; a literatura, surda e muda. A música é cega,
posto que é uma estética auditiva. Há, então, em torno das várias formas
de arte uma incompletude, sendo o cinema uma arte mais “evoluída” em
relação aos sentidos. Assim, a arte necessita encontrar a completude
nos limites de sua forma de expressão. Se na pintura há uma mensagem
através de suas cores e formas, o espectador necessita completar essa
lacuna para que a obra adquira vitalidade e valor. No caso do cinema,
onde está esta lacuna? Aqui, reside uma grande questão, pois o cinema
parece conter as outras artes em seu formato; ele é música, pintura, te-
atro, dança, mas não pode ser literatura. Quando se incorpora uma obra
literária para o cinema, temos outra obra em si. Isto porque a literatura
se faz através da linguagem, sendo que o leitor necessita complementar
a narrativa com o processo da imaginação. No exemplo do cinema, este
parece que nos sequestra a imaginação. Então, através de seu discurso

26
Na sociologia de Pierre Bourdieu esse “senso comum” é expresso pelo conceito de habitus (disposições
adquiridas no convívio social): “A lógica, essencialmente social, do que chamamos de “vocação” tem por
efeito produzir tais encontros harmoniosos entre as disposições e as posições, encontros que fazem
com que as vítimas da dominação simbólica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do
termo) as tarefas subordinadas ou subalternas que lhes são atribuídas por suas virtudes de submissão,
de gentileza, de docilidade, de devotamento e de abnegação” (Bourdieu, 2019b, p. 98).
27
Dostoiévski, 2009, p. 159.
Dagmar Manieri • 63

estético, o cinema exige a reflexão que complementa seu círculo inter-


pretativo. Eis que, para muitos teóricos, o que diferencia a “boa obra” da
“obra comercial”: na primeira, exige-se do espectador a reflexão; já na
última, a conclusão já está na obra, como simplificação.
Por isso, o cinema sem reflexão se endereça para o campo da su-
gestão, propaganda, obra menor, fascinação, espanto. Desta forma,
pode-se dividir a produção cultural em dois tipos: ou ela é uma obra de
arte excelente ou uma obra menor. Por ser uma obra excelente, a obra
anseia a completude. No exemplo do cinema e da literatura, isto não
significa que abarca todo o universo social, mas a universalidade do
tema. Se há um herói, este deve ser composto de qualidades esperadas
por determinado tipo social do pensamento do autor. Assim, todos os
detalhes que envolvem o herói, seu comportamento, suas relações soci-
ais, devem estar associadas ao tipo esperado. A obra deve conter uma
verossimilhança, pois este elemento faz parte de sua lógica.
A obra de arte além de nos educar, pede um bom espectador. 28
Trata-se de uma relação estranha, mas a obra superior nunca está sa-
tisfeita com seu espectador. Ela sempre desafia a fruição, na medida em
que se recusa a se esgotar. A interpretação deve descobrir camadas, pro-
fundidades, sempre insondáveis para o espectador pretensamente
apressado. É desse ponto de vista que a fenomenologia auxilia na rela-
ção com a obra fílmica. A experiência fílmica proporciona várias
abordagens sobre o tema; provavelmente isto rompe com o efeito de re-
alidade que produz o cinema. Ao assistir a obra com o objetivo de
observar um determinado tema, o produto cultural se apresenta em sua
dimensão intelectualizada. A totalidade se endereça para o fundo e, na

Aqui, não se pode esquecer a bela frase de Marx: “A produção [artística], portanto, não apenas produz
28

um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (Apud Vázquez, 1968, p. 256).
64 • Problemas de hermenêutica radical

evidência, surge o tema a ser estudado. Então, há uma inversão na rela-


ção do espectador com a obra: eu me conscientizo de que devo possuir
uma postura ativa ante a produção cultural. Por isso a estética apre-
senta, aparentemente, uma forma atrativa. No fundo isto é uma ilusão
necessária: a atração só deseja que o espectador dê um salto de consci-
ência. Isto é um esforço cultural alcançado através do belo, do sensível.

O ABSOLUTO DA DANÇA

O filme como obra cultural surge como uma arte típica da moder-
nidade. Complexa, a obra fílmica de forma geral traz um herói que
também é complexo. Não se trata de uma figura que seja um modelo;
aqui se está na Antiguidade, em Homero e nas peças teatrais da tragédia
grega. Os heróis a partir da época moderna não querem mais dar exem-
plo: sua função se transforma. Muitas vezes ele comporta um tema, uma
possível saída a um impasse social. Ver o exemplo de Tony Manero em
Os embalos de sábado à noite. 29 A obra é produzida no mesmo período
histórico que anseia representar: a década de 1970, com a moda da dis-
coteca. Se a indústria cultural nos acostumou com heróis típicos, a obra
de John Badham mostra que o herói intenta em deslizes, mas traz em si
um lampejo de libertação. Tony Manero reside no Brooklin (um bairro
de classe média em Nova York), em uma família (de ascendência itali-
ana) problemática. Ele trabalha como funcionário em uma loja de
material de construção. Onde está seu heroísmo? Se fosse um persona-
gem comum, tentaria a carreira como dançarino: estaria preocupado
com seu futuro, já que parece que domina bem a arte das pistas de
dança.

29
BADHAM, John (Dir.). Os embalos de sábado à noite (Saturday night fever). E.U.A, 1977.
Dagmar Manieri • 65

Mas Tony não se preocupa com o futuro. Em uma cena, ele co-
menta: “O futuro é hoje à noite, na danceteria Oddyssey 2001”. Ele
representa a denominada “juventude transviada” (das décadas de 1960
e 1970) que só deseja o prazer de viver. Mas não só isso; em Tony Manero
há o gozo desinteressado da arte na expressão da dança. Aqui, já temos
o grande tema do filme: o absoluto da arte e a sociedade de consumo.
Assim, como relacionar esses dois temas? Já sabemos pelos vários intér-
pretes da sociedade atual que o consumismo procura transformar a arte
em mercadoria. Mas Os embalos de sábado à noite não envereda por esse
campo; a obra mostra de forma inteligente a sociedade de consumo. Os
sapatos da moda de Tony e seus amigos; o desejo de comprar uma ca-
misa que expressa a alegria da noite. Claro que há uma propaganda dos
hábitos norte-americanos, da vida agitada da grande cidade: por exem-
plo, comer um hambúrguer ou um pedaço de pizza, enquanto se
caminha pela rua. O fast-food como expressão de “não posso perder
tempo!”. Todos esses elementos estão na composição do filme. Mas o
que distingue Tony Manero de seus amigos (e outros personagens) é o
absoluto da arte que gera um profundo senso de justiça. Bem ao estilo
kantiano, o gozo estético é desinteressado neste personagem. Em um
diálogo com seu irmão (Frank), afirma que todos lhe perguntam: o que
fará com a dança? Ele responde que os membros da família afirmam que
ele “não vale muita coisa”; assim, a dança é uma forma de alegria efê-
mera para um indivíduo “derrotado” pelo determinismo social.
Por trás do tema da dança, o que John Badham nos apresenta é o
confronto entre dois mundos: as classes populares de Nova York e a elite
de Manhattan. Bobby, Joey, JJ e Tony Manero fazem parte do grupo que
frequenta a danceteria Oddyssey 2001; já Stephanie traz em suas repre-
sentações o mundo artístico de Manhattan. Há entre Tony Manero e
66 • Problemas de hermenêutica radical

Stephanie uma espécie de romance, mas o enlace não se concretiza na


obra. De certa forma eles comportam dois mundos distintos e que só
pela dança se conjugam de forma harmônica. É a ponte do Brooklyn que
faz o papel de símbolo das relações de classe. Em uma cena romântica,
quando Tony está com Stephanie ao lado da ponte, o dançarino comenta
sobre os vários detalhes de sua construção, bem como os dados estatís-
ticos sobre a quantidade de carros que a atravessam diariamente. Por
que essa fixação pela ponte? Ela é o símbolo da união entre o mundo dos
ricos e dos pobres; assim como a dança (para Tony), a ponte também
tem essa função de unir dois mundos sociais.
Os embalos de sábado à noite tem como objetivo realizar um quadro
da revolução cultural dos anos 1960 e 1970. Em Nova York está em curso
a formação da sociedade de consumo, juntamente com uma série de ele-
mentos inovadores. A liberação sexual (pílula, camisinha, etc.) e a fase
das contestações sociais: feminismo, emancipação dos negros, entre ou-
tros. Gilles Lipovetsky utiliza o termo “reivindicação emancipadora”;
ele acrescenta em O império do efêmero que maio de 1968 (na França)
“menos reacendeu os fogos milenaristas do que levou à sua apoteose, e
por um tempo curto, a moda da revolução”. 30 Palavras que podem soar
conservadoras, mas que não deixa de ser provocantes, na perspectiva
dos dias atuais:

Houve espetáculo da Revolução, afirmação alegre dos signos da Revolução,


não aposta e confronto revolucionário. Diferentemente das revoluções san-
grentas centradas na construção voluntária de um futuro diverso. Maio de
1968 organizou-se segundo o eixo temporal da moda, o presente, num

30
Lipovetsky, 2016, p. 285.
Dagmar Manieri • 67

happening mais parecido com uma festa do que com os dias que abalam o
mundo. 31

Os movimentos de protesto (nos países centrais do capitalismo)


nas décadas de 1960 e 1970 mostram o grau de flexibilidade da sociedade
capitalista. Ao analisar este período através do conceito de moda, Lipo-
vetsky enfatiza: “No coração do individualismo contestador, há o
império da moda como trampolim das reinvindicações individualistas,
apelo à liberdade e às realizações privadas”. 32 Se aplicarmos esta passa-
gem à interpretação dos personagens de Os embalos de sábado à noite,
obtemos um bom quadro do filme.
Na obra os personagens lutam pela sobrevivência e, também, pos-
suem ideais no horizonte do star-system. Bruce Lee e Al Pacino são
astros que Tony e seus amigos procuram imitar. O primeiro é o estímulo
para as lutas (as gangues, que mostra o filme); já o segundo, a beleza do
homem italiano. Stephanie também se alegra de conviver, em seu tra-
balho, com famosas figuras do meio artístico. Assim, a consciência dos
personagens é marcada pelas imagens do mundo da fama. O automóvel
esportivo, o calçado da moda, a forma de andar nas ruas movimentadas
da grande cidade, o estilo de alimentação (fast-food), as relações sexuais:
são diversos elementos que John Badham conjuga para compor a época.
Observar a forma como os personagens (com exceção de Tony) possuem
um Eu formado pelo meio cultural; no exemplo do filme, a música con-
diciona uma determinada identidade social.
Neste instante, está em curso o que muitos pensadores da condição
pós-moderna qualificam de presentismo. Há uma ânsia pelo novo, pela

31
Idem.
32
Ibid., p. 287.
68 • Problemas de hermenêutica radical

moda; nesse movimento, os valores do passado são questionados. 33 Li-


povetsky comenta que a moda opera “sobre uma lógica do hedonismo,
da sedução, do novo. (...) A moda se alimenta do desejo insaciável do
novo, (...)”. 34 Eis a relação da moda com o presente; para ele, a primeira
“exalta” este último. A obra de John Badham constrói com propriedade
os vários elementos da sociedade de consumo. O gosto pelo novo, o efê-
mero e o presentismo são os novos horizontes apresentados aos sujeitos
dessa sociedade: “Nos tempos em que a moda domina, não é mais o pas-
sado tradicional que é objeto de culto – o momento atual magnetiza as
consciências, o prestígio vai para as novidades: venera-se a mudança, o
presente”. 35
É este mundo pós-moderno que Os embalos de sábado à noite nos
mostra, esteticamente. Os valores do passado se chocam com a nova
concepção de vida social. 36 Aqui, o filme tem consciência de que sua mí-
mesis não pode ser colonizada pelos valores da sociedade de consumo. É
neste ponto específico que Lipovetsky e Adorno, ao optarem por uma
forma de radicalidade ante a obra fílmica, perdem de vista a saída mi-
mética em muitas obras de qualidade. Em A tela global, Lipovetsky e
Serroy confundem as obras da indústria cultural com as de valor mimé-
tico. No início desta obra nos deparamos com afirmações, como: “A arte-
cinema é, antes de mais nada, uma arte de consumo de massa”. 37 Há a
ênfase de que o cinema busca a “distração da maioria”. Passagens que

33
No filme, há de forma nítida, o conflito entre Tony Manero e seu irmão Frank, com a família. O atrito
se aprofunda quando este último decide abandonar a batina.
34
Lipovetsky, 2016, p. 300.
35
Ibid., p. 311.
36
“O legado ancestral não estrutura mais, no essencial, os comportamentos e as opiniões, a imitação
dos antepassados apagou-se diante da dos modernos, o espírito costumeiro cedeu o passo ao espírito
de novidade” (Ibid., p. 314).
37
Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 40.
Dagmar Manieri • 69

nos mostram a impossibilidade de o cinema ter uma mímesis negativa,


optativa, de estranhamento. 38
De outra perspectiva (mas com o mesmo resultado), Adorno tam-
bém não visualiza a capacidade (mimética) negativa da obra fílmica. Em
mínima moralia há algumas reflexões sobre o cinema que mostram o
pessimismo do intelectual ante a Sétima Arte. Para ele, o filme surge
como sinônimo de indústria cultural. 39 O filme se converte em um “fei-
tiço caseiro”, um “refresco venenoso” ou um sonho “que não tem
sonho”. O cinema como arte popular traz um impulso de dominação; o
intelectual alemão vê uma “força regressiva” nessas obras culturais:

O filme logrou converter os sujeitos em funções sociais de maneira tão com-


pleta que, inteiramente capturados e incapacitados de se darem conta de
qualquer conflito, eles gozam a própria desumanização como felicidade do
calor humano. O nexo total da indústria cultural, que nada deixa de fora, é
idêntico à ofuscação social total. 40

Em nosso entendimento a obra fílmica pode preservar a mímesis.


Mesmo as obras de consumo de massa como Os embalos de sábado à noite
(ou mesmo Beleza americana) não permitem que a estética seja coloni-
zada pelos valores de mercado. 41 De forma inteligente, essas obras se
endereçam ao grande público com uma mímesis de valor específico ao

38
Eis outra passagem de Lipovetsky e Serroy que negam a mímesis da obra fílmica: “Arte de massa, enfim,
no seu modo se consumo. De fato, o cinema se acompanha de uma retórica da simplicidade, solicitando
o menor esforço possível da parte do seu destinatário. Não é o elemento espiritual do homem que é o
objetivo, mas um consumo sempre renovado de produtos que possibilite uma satisfação imediata e não
exija formação alguma, nenhuma referência cultural específica e erudita” (Ibid., p. 40).
39
“O tom de qualquer filme, contudo, é o da bruxa que oferece a comida ao pequeno que pretende
enfeitiçar ou devorar com o assustador murmúrio: “Sopinha boa, gostosa sopinha? Que lhe faça bem,
faça bem”. Na arte, Wagner inventou esse feitiço caseiro, (...)” (Adorno, 2008, p. 197).
40
Ibid., p. 202.
41
MENDES, Sam (Dir.). Beleza americana (American beauty). EUA, 1999.
70 • Problemas de hermenêutica radical

cinema. Elas não procuram enfeitiçar o espectador, muito menos foram


absorvidas pela maquinaria (lucro) da indústria cultural.
Em Os embalos de sábado à noite não há nenhum intuito à politiza-
ção; o que temos é o protesto inofensivo de Tony e seus amigos. Quando
eles brincam na ponte do Brooklyn, um deles esbraveja: “Que se dane,
Manhattan!” Tony também se revolta ao constatar que ganhou o con-
curso (de danças) de forma fraudulenta: “Todo mundo ferra todo
mundo!”. O que esses jovens mostram são os efeitos do individualismo,
conjugado com as injustiças sociais. Mas Tony se revolta com seus ami-
gos por compartilharem da injustiça no julgamento do concurso: ele
rompe com seu meio social. Aqui, já vislumbramos a gênese do Si-
mesmo em Tony promovida pelo absoluto da dança; em seu percurso de
vida, a cultura (dança) não produziu um Eu, mas a dimensão humana na
dimensão do Si-mesmo.
No filme, as drogas aparecem como um hábito normal entre os jo-
vens; eles utilizam o entorpecente para produzir um melhor prazer na
noite. Se Sam Mendes quer nos mostrar a geração “sexo, droga e rock’n
roll”; em Badham, torna-se a geração “sexo, droga e Bee Gees”. Desde a
modernidade do século XIX, a droga surge como uma nova forma de se
experienciar o mundo: esses alucinógenos também possuem uma his-
tória. Em Paraísos artificiais, Charles Baudelaire nos deu vários
exemplos da utilização do ópio e do haxixe. Sobre este último, comenta:
“Pegue uma porção equivalente ao tamanho de uma noz, encha com ela
uma colherzinha e possuirá a felicidade; a felicidade absoluta com todos
os seus êxtases, todas as suas loucuras e juventude e também suas bea-
titudes infinitas”. 42 Assim, a “felicidade absoluta” torna-se a conquista

42
Baudelaire, 2001, p. 230.
Dagmar Manieri • 71

da ingestão do haxixe. Mas o efeito desta última não está só na alegria;


ao seu lado, “toda dor e toda angústia são imensamente profundas”. São
experiências artificiais que o poeta maldito vivenciou. Experiência que
traz ao ser humano uma “profunda piedade” e uma “ideia de superiori-
dade”.
De certa forma, há com o haxixe uma alteração (ou anulação) do
ego. Baudelaire afirma: “Você está sentado e fuma; acredita estar sen-
tado dentro de seu cachimbo”. 43 Experiência que transporta o indivíduo
a “um mundo maravilhoso e fantástico”. Mas antes de Paraísos artificiais
glorificar a vida sob os alucinóginos, nos faz uma advertência: “Na ver-
dade, para que trabalhar, laborar, escrever, fabricar o que quer que seja,
quando podemos tomar o paraíso de um só golpe?”. 44 No fundo, o poeta
francês compartilha da concepção de Barbereau. Ele cita uma passagem
deste último que enfatiza a estranheza de pessoas que buscam as drogas
para atingir o “êxtase poético”. Para Barbereau, os “grandes poetas, os
filósofos, os profetas” não necessitam disto, pois alcançam estados no
qual são, ao mesmo tempo, “causa e efeito, sujeito e objeto, magnetiza-
dor e sonâmbulos”. 45 Baudelaire confidencia que pensa “exatamente
como ele”.
Observar que em Os embalos de sábado à noite Tony Manero não
consome drogas. Seu grande prazer está na dança. A música parece ne-
cessitar de um corpo que acompanhe seu ritmo; por isso a dança dá
visibilidade aos sons. Através do corpo, a música se materializa. É nesta
duplicidade que o dançarino se sente transportado para outra dimen-
são; a música atravessa seu corpo e ele sente o ritmo em todas suas

43
Ibid., p. 236.
44
Ibid., p. 243.
45
Apud Baudelaire, 2001, p. 244.
72 • Problemas de hermenêutica radical

partes, seus nervos e músculos. A arte tem esta característica: ela pro-
cura um complemento para se tornar mais completa. A música que
procura o corpo para a dança; a dança que se sente atraída para os palcos
em busca de expressão para sua linguagem.
Assim como indicam Barbereau e Baudelaire, o artista de verdade
já apresenta um entusiasmo em si. Eis aqui que nos deparamos com o
rastro da mímesis na obra: a excepcionalidade do personagem Tony. Ele
não tem um ideal; é um herói que se sente feliz na dança. Mais que feliz
é a dança que o realiza, sem drogas ou sexo. Um herói da vida comum e
que descobre alguns talentos em sua forma de agir de forma artística. É
um herói que não deixa de ser trágico; sua miséria é a miséria social que
ele experimenta no dia-a-dia de uma grande cidade.

A DIGNIDADE DO ARTISTA

Há em torno de Luzes da ribalta uma importante reflexão sobre os


espaços sociais (tópos). 46 Calvero, interpretado por Chaplin, é um come-
diante esquecido pelo grande público. A obra se passa em Londres às
vésperas da Primeira Grande Guerra. Logo de início da obra conhecemos
a situação social de Calvero: ele reside em uma pensão modesta e se em-
briaga, constantemente. Seu encontro com Thereza Ambrose (Terry) é
fortuito; ao chegar à pensão, sente pelo cheiro de gás que a moça intenta
o suicídio. Depois de salvá-la, ela passa a residir em seu quarto, recupe-
rando-se do triste acontecimento. Na verdade se dá o encontro de dois
artistas. Calvero como comediante (abandonado pelo público) e Terry,
bailarina.

46
CHAPLIN, Charles (Dir.). Luzes da ribalda (Limelight). Inglaterra, 1952.
Dagmar Manieri • 73

Terry estava acometida de uma espécie de paralisia das pernas.


Para uma bailarina, isto se traduz em uma verdadeira tragédia. Mas
quase por milagre, ela se recupera. Isto graças ao incentivo de Calvero
que descobre um trauma no passado da moça. Por isso nasce entre am-
bos uma espécie de amor fraternal. Por parte de Terry, Calvero
representa a figura do herói: ele lhe salvou a vida, bem como descorti-
nou um novo futuro. Já na perspectiva de Calvero, Terry se traduz em
um recomeço para sua triste vida de ex-astro da comédia. Assim os dois
protagonistas se elevam.
Há em Luzes da ribalta um primeiro diálogo que é significativo.
Terry está na cama, ainda convalescente. Neste instante, Calvero confi-
dencia sua visão de mundo. Para o ex-comediante (na velhice) a vida
torna-se um hábito sem esperança. Por isso, em sua condição, deve-se
viver cada instante como se fosse algo maravilhoso. Sem um trabalho
digno, desconfia da receptividade do grande público: ou este perdeu a
imaginação ou o artista está velho e vazio. Sua embriagues não é porque
é infeliz; ele já havia se habituado a ela. O palhaço se embriaga para ser
cômico: ele crê que na velhice se adquire uma espécie de “dignidade
triste”, algo fatal para um palhaço, confidencia o artista. Em síntese, na
velhice se perde o nexo com o público. Mas há também outra visão que
explica a tragédia de Calvero. O público se transformou em um monstro
sem cabeça que não conhece mais seu objetivo: ele pode ser conduzido
para qualquer lugar! Daí pode-se afirmar que Luzes da ribalta é uma obra
sobre a relação do artista com seu público. Nesse horizonte, Calvero é o
modelo de artista que caiu em decadência. Mesmo assim, ele persegue a
imagem de artista famoso e, de certa forma, é cativo dessa vocação.
Em algumas noites Calvero sonha com a época em que provocava
risos na plateia e, consequentemente, fazia sucesso. A música que anima
74 • Problemas de hermenêutica radical

seus sonhos é produzida por um grupo de músicos de rua, também


avançados em idade. Aqui já temos um topos importante na obra: o es-
paço da rua. Como no caso desse grupo, a rua se transforma em uma
espécie de “palco” para aqueles que perderam a condição de artistas re-
conhecidos. Assim, a obra recupera dois topoi: a rua e o palco.
Após se recuperar, Terry ambiciona voltar à carreira de bailarina.
Já Calvero também almeja retornar aos palcos e brilhar como grande
astro da comédia. É no Middlesex Music Hall, um local decadente, que ele
intenta o retorno ao estrelato. Como um empresário havia lhe dito que
seu “nome” já não valia mais nada, ele opta por se apresentar com outro
nome. Sua apresentação é uma decepção: ninguém ri de suas piadas. No
camarim (ao retirar a maquiagem), a câmera mostra o rosto de Calvero:
ele é um artista derrotado. É neste instante que Terry passa a animá-lo;
por todos os meios, a bailarina procura uma ocupação nos palcos para
seu grande amor. Eis mais um grande obstáculo para o velho Calvero:
voltar a fazer sucesso e ter um grande amor. Por meio de Terry, o dire-
tor do The Empire Theatro deseja se encontrar com o velho palhaço; seria
uma nova oportunidade, mediada pelo empresário Postant. Eles já ha-
viam trabalhado juntos; nas palavras de Calvero, “guando [eu] era um
astro!”. Mas Calvero se apresenta com outro nome, por isso Postant não
o reconhece.
É justamente no teste em que Terry intenta ser a bailarina princi-
pal do The Empire Theatro, que presenciamos a cena principal do filme.
No palco, são cinco personagens: Postant, o diretor Bodalink, Calvero,
Terry e o pianista, Neville (o antigo amor de Terry). Na apresentação,
Terry se sai bem e Postant a escolhe para a honrosa função cultural.
Depois do triunfo de Terry todos saem do palco; mas ninguém se dá
conta da presença de Calvero. As luzes se apagam e lá fica inerte o velho
Dagmar Manieri • 75

palhaço, triste. A câmera se aproxima do rosto de Chaplin que mostra a


tristeza assombrosa de um ser desprezado. O ex-astro expressa o pesar
do artista; cabisbaixo ele é um ser destruído. Quando Terry retorna, in-
terroga Calvero sobre o motivo de ele ainda estar lá, no escuro. Eis a
resposta do artista: “Eu ficaria ridículo à luz. Deveria ter vergonha”.
No espetáculo no qual Terry é a bailarina principal, Calvero faz o
personagem de um dos palhaços. É a encenação da tragédia de Arlequim
e Colombina. Mas Postant exige que os palhaços sejam substituídos: só
neste instante fica sabendo que um dos palhaços é Calvero. E eis que
novamente, o velho comediante se encontra em ruínas. Volta a beber.
No diálogo com Terry, Calvero confidencia: “A verdade é só o que me
resta. No fundo, só desejo um pouco de dignidade”. Nesta altura da
trama, Calvero abandona Terry; ele sabe que só nas ruas conseguirá so-
breviver. Juntamente com alguns amigos, também na decadência,
formam um grupo musical para tocar nas ruas e nas entradas dos res-
taurantes. Calvero se conscientiza da realidade da indústria cultural.
Aqui, não há humanismo, pois embora seja um campo cultural, as pes-
soas estão em função do capital.
Na sequência da obra, observamos Terry em uma turnê, com muito
sucesso; já Neville é convocado para a guerra. Para Calvero é um mo-
mento difícil, principalmente quando percebe que Neville se aproxima
de Terry. É neste instante que após um período sem conviver com Cal-
vero, a bailarina o encontra na rua. Ela intenta um novo recomeço e,
novamente, diz que o ama. Terry se aproxima do empresário Postant; a
bailarina se utiliza de seu prestígio para homenagear seu grande amor.
Bailarina e empresário combinam um espetáculo em homenagem ao ve-
lho palhaço. Calvero ainda resiste; ele tem consciência que não pode
mais voltar aos palcos. Para ele “o mundo é um palco”; ela sabe, também,
76 • Problemas de hermenêutica radical

que “o vagabundo que há nele, gosta de trabalhar nas ruas”. É um diá-


logo comovente entre Calvero e Terry; aqui, Chaplin surge com seu
tradicional personagem “vagabundo”. Ele afirma que precisa seguir seu
caminho, pois “é o progresso”.
Mas eis que de repente, Calvero se anima. Terry consegue con-
vencê-lo a voltar aos palcos. Calvero percebe que todos ficam gentis.
Afirma que “a gentileza o faz sentir-se isolado”. Mesmo assim, realiza o
espetáculo. Mas o temor de Terry diante de uma nova aversão da plateia
faz com que ela pense em uma estratégia: ensaia com o grupo da plateia,
falsos risos. A obra mostra Calvero em sua apresentação, agora com a
plateia rindo e aplaudindo a encenação. Ele triunfa, mas em uma cena
arriscada, sofre um ataque cardíaco. Suas últimas palavras são endere-
çadas ao amor e ao sucesso. Para o primeiro, diz: “O coração e o espírito,
que grande enigma!”. Ele se refere ao paradoxo da jovem Terry o amar,
quando possui um belo e jovem pretendente na figura de Neville. Sobre
a última, comenta: “Acho que vou morrer. Mas não tem problema, pois
já morri muitas vezes...”. O filme termina com a morte de Calvero.
O encaminhamento final que Chaplin promove para seu protago-
nista (Calvero) já mostra os limites da ação criativa. Por que Calvero
após tantas “mortes”, ainda é um ser cativo do sucesso? Por que Chaplin
realiza o sacrifício no palco de seu grande personagem? Essas são ques-
tões que só são explicadas pela própria relação de Chaplin com seu
público. Por que Calvero não desperta para a realidade e, com isso, inicia
uma nova prática artística alternativa? O humanismo de Chaplin parece
conter um feitiço que encanta uma parte da elite, não deixando de irri-
tar outros bruxos. 47

O lançamento de Luzes da ribalta se dá ao mesmo tempo em que o artista se retira dos EUA. Charles
47

Chaplin em História de minha vida, nos conta a recepção do filme na Europa: “Desde que partimos da
Dagmar Manieri • 77

Luzes da ribalta é um pensar estético sobre a relação do artista com


seu público; por isso, a obra possui algumas semelhanças com Um artista
da fome, de Kafka. O percurso de Calvero contém os temores de Chaplin?
Provavelmente, mas quantos atores ou atrizes o astro inglês não pre-
senciou na condição de Calvero? Na interpretação de A woman of Paris,
de Chaplin, Francisco Pina nos mostra o drama da companheira do di-
retor, Edna Purviance:

É penoso assinalar que Chaplin, levado por suas urgentes ocupações, dedi-
cado fervorosamente à sua obra, dando provas também desse egoísmo que
se oculta com frequência no fundo de toda natureza humana, terminou de-
sinteressando-se de Edna. Esta entregou-se à bebida e morreu
prematuramente, num hospital, abandonada e pobre. 48

Observar que Pina indica o “egoísmo” de Chaplin. A triste história


de Edna Purviance é um bom exemplo que contrasta com o humanismo
artístico de Chaplin. Edna havia trabalhado com o diretor “durante mais
de dez anos sem exigir-lhe nunca nem sequer um contrato escrito”. 49 Na
conclusão de Pina, o Chaplin que conhecemos como artista progressista
está em causa: “E até um homem de inteligência tão clara e sensibilidade
tão fina como Chaplin pode converter-se em instrumento (...) dessa cru-
eldade arbitrária e revoltante”. 50

América, a nossa existência ascendeu a um outro plano. Paris e Roma acolheram-nos como heróis em
triunfo. Recebemos convite para almoçar com o Presidente Vincent Auriol no Palácio l’Elisée e também
fomos convidados a jantar na Embaixada Britânica” (Chaplin, 1966, p. 476). Em outra passagem, o
ator/diretor afirma: “A estreia de Luzes da ribalta foi abrilhantada pelo público mais seleto, em que se
incluíam ministros do governo francês e embaixadores estrangeiros. Entretanto, deixou de comparecer
o embaixador dos Estados Unidos” (Ibid., p. 479).
48
Francisco Pina, “A Woman of Paris”, In: Cony, 1967, p. 281.
49
Ibid., p. 282.
50
Idem.
78 • Problemas de hermenêutica radical

De fama internacional, Chaplin persegue a imagem de artista pro-


gressista, humano e gênio da Sétima Arte. Mas seu tipo artístico não
deixa de enfrentar algumas características do próprio cinema. Pri-
meiro, a evolução da técnica. Em História de minha vida, ele nos conta
sobre a transição do cinema mudo para o falado: “Com o êxito dos filmes
falados, a terra do cinema perdera o encanto e a vida descuidosa. Da
noite para o dia, o seu ambiente passou a ser o de uma indústria fria e
séria”. 51 Sem dúvida que para um ator cômico (que trazia o mundo do
teatro para o cinema), os diálogos agora parecem um aprisionamento.
Em seu relato desta transição, Chaplin não parece à vontade com o pro-
gresso técnico: “Como ter inspiração criadora com toda essa tralha
[equipamentos] ao derredor?”. 52
Outra característica do cinema é que se traduz em uma arte para o
grande público (mass art). No exemplo de Chaplin, o diretor/ator se
transforma em um superstar. Assim, até que ponto Chaplin é refém de
sua própria imagem de astro do cinema? Eis alguns aspectos sociológi-
cos da análise, mas eles não devem ser levados em consideração na
interpretação de Luzes da ribalta. 53 A realidade na obra é que ela ameaça
surgir no quadro da indústria cultural. Calvero tem dificuldades em se
conscientizar de que ele não é mais útil para a maquinaria cultural;
como artista, persegue o ideal da fama. Por isso o choque que se realiza
na obra. A condição humana e a realidade do mercado da cultura; a obra
nos mostra que o ser humano não deve aceitar seu destino social.

51
Chaplin, 1966, p. 382.
52
Ibid., p. 282.
53
Aqui, pode se evidenciar algumas objeções a Jean-Paul Sartre em O idiota da família. Com acesso às
cartas de Gustave Flaubert, o filósofo existencialista interpreta a estética do escritor mediada pelos
complexos familiares do escritor.
Dagmar Manieri • 79

Calvero, juntamente com Terry, representa o ideal, a imaginação e o hu-


manismo em confronto com a realidade do capital cultural.
São três elementos estéticos que compõem a estrutura do filme: a
face, o palco e a rua. O palco e a rua são dois topoi importantes. O artista
está feliz no palco; já a decadência implica que o sujeito transforma a rua
no próprio palco. A rua traduz a condição desumana do artista. Mas o
grande elemento estético de Luzes da ribalta é a face (de Calvero). São al-
guns momentos, mas plenos de sentido. A face (que expressa a derrota)
representa a realidade que exclui o homem-artista; é neste instante que
a saída é traduzida pela palavra “dignidade”. Mas qual? Não se trata de
caridade; a “dignidade” a que se refere Calvero é o reconhecimento perene
do público ante o artista. É desta forma que a própria definição de público
está em causa. A obra desconfia do gosto do público ao mostrar que o valor
cultural não deve se imiscuir com o gosto popular. Este último é efêmero
e está sujeito às várias formas de manipulação.

O MAL SOB CONTROLE

Um dos projetos da modernidade é utilizar a ciência na resolução


dos problemas sociais. O que se verifica no modelo (da aplicação da ci-
ência) envolve os meios técnicos de forma desenvolvida. A medicina, o
transporte, as telecomunicações, a engenharia: nesses meios, a ciência,
de fato, transformou nossa época. Mas a referência à sociedade e seu
bem-estar geral, trata-se de um desafio. No século XIX a sociologia al-
mejou tal reforma; o positivismo de Comte e o comunismo de Marx
eram algumas dessas correntes de pensamento que se amparavam nas
“leis sociais”, objetivando a resolução dos problemas da sociedade. Mas
hoje, sabe-se que este intento não é algo tão fácil: de certa forma, tanto
80 • Problemas de hermenêutica radical

o positivismo (conservador) quanto o marxismo (revolucionário) con-


duzem a modelos sociais questionáveis em termos de valores humanos.
Ao que tudo indica o tema de Laranja mecânica, de Stanley Kubrick,
visa ao debate sobre o tema da reforma social. 54 A obra mostra no início um
grupo de jovens delinquentes, liderados por Alexander De Large (Alex).
Durante a noite, após se encontrarem em uma espécie de bar underground
(Leiteria Korova), eles saem em busca de aventura: na linguagem do pró-
prio grupo está em curso o horror-show. Eles sentem prazer na “aventura”
da violência; idosos de rua, famílias em suas residências, todos são ataca-
dos por esses alucinados desordeiros. O filme mostra o contexto social de
Alex. Em um ambiente futurista, a família deste último reside em um con-
junto residencial popular. Seus pais são trabalhadores e o próprio local é
desenhado como decadente. Há sujeiras por toda a parte, assim como o
próprio elevador do prédio totalmente danificado. Alex é filho único;
dorme durante o dia e, à noite, sai para as aventuras.
Mas a liderança (excessiva) de Alex provoca uma reação no grupo;
Pete, Georgie (novo líder) e Dim se revoltam e, agora, ameaçam a antiga
posição do líder. 55 Em um assalto-show na residência de uma mulher
solteira (a mulher-gato), Alex passa dos limites e assassina a aprecia-
dora dos felinos. Na fuga, seus amigos o atacam; ferido, o jovem
delinquente desfalece no local. Detido pela polícia, Alex inicia uma nova
jornada; conhecido pelas autoridades policiais, ele é condenado e, pos-
teriormente, conduzido até a prisão de Parkmoor.

54
KUBRICK, Stanley (Dir.). Laranja mecânica (A clockwork orange). Reino Unido; EUA, 1971.
55
A revolta do grupo é uma reação ante a forma autoritária como Alex controla o grupo. Eles
ambicionam os bens materiais das vítimas, não só a aventura. Na resposta, Alex acrescenta: “Querem
carro? É só colher nas árvores. Desejam uma garota? É só pegar!”. Aparentemente, Alex não objetiva a
posse dos bens das vítimas, mas ao seu livre usufruto. No entanto em uma cena na qual a câmera o
mostra em seu quarto, observamos o líder guardando dinheiro na gaveta. Isso sugere que ele fica com
a maior parte dos bens roubados.
Dagmar Manieri • 81

São alguns ambientes sociais que Stanley Kubrick nos apresenta.


As ruas com seus conhecidos moradores; residências populares, bem
como os locais da elite, como a espaçosa residência da mulher-gato e,
também, o lar modernista de Frank, o escritor que faz oposição ao atual
governo. Há um destaque especial para o sistema correcional; neste úl-
timo, presenciamos algumas figuras de destaque como o sacerdote
Charlie e o oficial-chefe Barnes. O primeiro crê na bondade inerente ao
ser humano; por isso intenta a evangelização dos presidiários. Já o úl-
timo – com o perfil semelhante a Hitler - é adepto da punição severa. É
neste ambiente correcional que surge a figura do ministro do atual go-
verno, Frederick. Ele realiza uma vistoria no presídio em busca de um
infrator que seja uma espécie de cobaia para um novo programa do mi-
nistério. Liderados pelo Dr. Brodsky, organiza-se um projeto (no Centro
Médico Ludovico) que visa recuperar o presidiário através do método de
associação. Após uma série de condicionamentos, o presidiário sente
náuseas no ato infracional. Ansioso pela liberdade, Alex se prontifica ao
experimento, passando por uma série de sofrimentos.
Após a liberdade, Alex retorna ao ambiente familiar. Mas tudo pa-
rece alterado; no espaço familiar já há um jovem que ocupa seu lugar.
Por questões financeiras, seus pais haviam alugado seu quarto e, por
isso, sentem o desgosto de receber o filho. Nas ruas, Alex também sofre
uma série de reveses. Todos aqueles que foram objeto de suas perigosas
aventuras agora se vingam. O caso de maior destaque é o do escritor
Frank. Quando Alex, ferido pelos guardas (seus ex-amigos), pede abrigo
na residência do intelectual, surge o momento da reação vingativa. O
jovem é torturado com a música de Beethoven. Como fuga, ele se joga
do segundo andar da mansão.
82 • Problemas de hermenêutica radical

Agora está um curso a última fase da vida de Alex. No hospital, ele


recebe um tratamento especial. O filme mostra a repercussão negativa
que este acontecimento (a tentativa de suicídio) provoca na imagem do
governo. Por isso, o ministro Frederick fará uma proposta irrecusável
ao jovem: ele será protegido (com um bom emprego), com a promessa
de ser fiel ao partido do poder. Após seu consentimento, temos a cena
final. Ele posa (ao lado do ministro) para os fotógrafos, ao som da música
erudita. De repente, eis que surge o antigo êxtase: ele está violentado
uma mulher, com um grupo de honrosas pessoas que lhe aplaudem. De
forma irônica, o narrador (o próprio Alex) comenta que está curado!
A linguagem fílmica de Laranja mecânica explora uma variedade de
possibilidades. Daí a riqueza estética da obra que deu fama à obra de
Stanley Kubrick. A montagem, a utilização da música, o slow motion, a
aceleração: eis alguns exemplos da linguagem fílmica. A música apre-
senta uma posição de destaque na linguagem da obra. Desde o velho
morador de rua que, antes de ser espancado pela gangue de Alex, canta
a conhecida música folclórica irlandesa:

Molly Malone
Que na bela cidade de Dublin
(...)
Vende seus peixes
(...)
Ela morreu de febre
(...)
Esse foi o fim da doce Molly Malone
Agora seu espírito conduz o carrinho
Através das ruas largas e estreitas
Gritando: mariscos e mexilhões, viva, viva, oh!
Dagmar Manieri • 83

Alex é um apreciador de Ludwig van Beethoven. Toda vez que ouve


suas composições entra em verdadeiro êxtase. Trata-se de uma espécie
de transe fascista. Em seu quarto, ele assim se expressa, ao apreciar a
obra:

Oh! Deleite, deleite e paraíso


A formosura feita carne
Como um pássaro de metal raro e celestial
Um vinho prateado flutuando em uma espaçonave
A gravidade deixada para trás
Em minha alucinação
Via imagens tão adoráveis!

A música representa para Alex o prazer da vida. Mas é uma alegria


desumana, cruel. Trata-se de um prazer “cultural” individualista, delin-
quente. Enquanto agride a mulher do escritor, Alex canta Dançando na
chuva. Observar uma passagem da letra da música:

Que sensação gloriosa


Estou feliz novamente
Estou rindo das nuvens
Tão escuras, lá no alto
O sol está no meu coração
E estou pronto para o amor

Que tipo de alegria é esta que celebra a vida de forma individua-


lista? O que significa estar feliz em um dia de chuva? Na verdade, o
diretor ao introduzir a música como elemento (importante) na vida de
Alex, realiza uma ficção estética. É uma forma de estranhamento
84 • Problemas de hermenêutica radical

quando se observa um jovem delinquente apreciar a música erudita. 56


Neste sentido, a música se transforma em um estímulo à desumaniza-
ção: ela aciona o Ego de Alex.
A obra de Kubrick apreende o sistema político; esse novo método
de “cura” da criminalidade será utilizado para influenciar a opinião pú-
blica ante a imagem do governo nas próximas eleições. Fica claro que há
uma competitividade dos partidos políticos e o novo método de “cura”
da delinquência (Método Ludovico) surge como um lance político. Nas
palavras do ministro: “O paciente é impelido para o bem, paradoxal-
mente, por ser impelido para o mal”. No discurso político, esta
modernização no sistema correcional, além de resolver o problema da
criminalidade, diminuirá a superlotação dos presídios.
Laranja mecânica é um pensar estético sobre os perigos da utiliza-
ção da ciência em relação à dimensão humana. Quem realiza essa
perspectiva crítica é o escritor (que ficou paraplégico, após o ataque do
grupo de Alex), partidário do humanismo. Em uma de suas falas (aos
seus amigos de partido) ele comenta que este novo método pode condu-
zir ao totalitarismo. Assim, a obra faz uma advertência dos perigos da
utilização de meios de manipulação humana. Em um futuro próximo,
isso não poderia ser utilizado nos adversários políticos? Eis como a obra
de arte pode se endereçar ao campo político: Laranja mecânica proble-
matiza a utilização da ciência no campo político. Por isso a concepção
do sacerdote Charlie surge no filme como uma resistência à moderni-
zação do sistema penal. Na obra, não sabemos se Kubrick é partidário

56
Na vida real temos alguns exemplos na qual a cultura está lado-a-lado com a barbárie. Tzvetan Todorov
comenta que “em seu ócio, Eichmann praticava a bela música de câmara alemã do século XIX” (2010, p.
52). Adolf Eichmann era um dos chefes dos esquadrões de extermínio no regime de Hitler. Hannah
Arendt dedicou uma obra ao estudo de seu caráter, bem como ao tema do extermínio dos judeus sob
os nazistas: Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (2013).
Dagmar Manieri • 85

da visão do sacerdote. Mas ele adquire uma função importante. Eis uma
de suas falas: “A bondade vem de dentro; a bondade é escolhida. Quando
um homem não pode escolher, deixa de ser homem”. A obra de Kubrick
lança mais questionamentos do que propõe um programa positivo. Ela
problematiza a concepção de natureza humana, bem como lança a des-
confiança sobre a prática política ao apreender a cientificidade na
modernidade.
A obra nos faz pensar sobre o tipo do caráter de Alex. Ele se com-
porta como um homem em estado de natureza. É dessa forma que se
pode acompanhar Montesquieu na afirmação de que “os homens são go-
vernados por diversas sortes de leis”. 57 No exemplo de Alex, percebe-se
que ele é governado pelo princípio do prazer (esta é sua lei). Sexo, vio-
lência e aventura se transformam em meios de se sentir uma espécie de
prazer individualista.
Na acepção do programa dos contratualistas da época moderna, o
ser humano civilizado é aquele que renuncia à independência do estado
de natureza em troca de uma segurança no estado de sociedade civil.
Nas palavras de Montesquieu, “os homens renunciaram à sua indepen-
dência natural para viverem sob leis políticas, (...)”. 58 Por isso todo o
indivíduo que só age motivado por seu interesse pessoal, mesmo em es-
tado de sociedade, ainda se comporta como se estivesse em estado de
natureza: este é o exemplo de Alex (e seus companheiros).
Para alguns intérpretes de Laranja mecânica, evidencia-se o fas-
cismo em Alex. Aqui, há a necessidade de uma diferenciação entre o
regime político e o tipo de personalidade. No regime político fascista há

57
Montesquieu, 2005, p. 502.
58
Ibid., p. 516.
86 • Problemas de hermenêutica radical

o apelo romântico ao “povo” e à nação; por isso o fascismo pode ser con-
siderado uma forma extrema de populismo. Em Alex não há este anseio
a um resgate romântico do “povo”, muito menos a busca por uma nação
unitária. Seu individualismo-delinquente se confronta com qualquer
obstáculo que possa interromper o prazer. 59
O regime político fascista despertou em muitas pessoas o caráter
autoritário. É neste ponto que Alex pode ser considerado um tipo fas-
cista; há nele diversos elementos que estão presentes nos homens do
regime fascista. Em A biblioteca esquecida de Hitler, Timothy Ryback se-
gue com cuidado as leituras do líder nazista. Quando Hitler lê Fogo e
sangue, de Ernst Jünger, chama a atenção o interesse do líder pelos
“efeitos transformadores da carnificina [guerra]”. O soldado no campo
de batalha empreende “o endurecimento de coração e mente, o forja-
mento do espírito humano em algo “duro e implacável”, a experiência
aglutinante de homens avançando para a batalha, (....)”. 60 Ryback acres-
centa que “o lápis de Hitler segue essas enunciações numa
concordância”. Então, há diversos elementos da personalidade autori-
tária que são apreciados pelo regime nazista. O apreço pela tecnologia
como expressão do poder humano; a ênfase na aventura, uma espécie
de experiência que traz vigor e força a este ser. Em Tempestade de aço
(1920), Jünger enaltece o homem novo que surge do ambiente de guerra.
Jeffrey Herf interpreta esta obra:

Jünger rememorava a guerra como um contato provocante e romântico com


o perigo repentino, a morte, o vigor masculino e forças naturais e exóticas

59
Neste aspecto, este tipo de comportamento ocorre até entre seus amigos. Quando o grupo está no
bar Korova, uma cantora lírica executa uma partitura de Beethoven. Isso já é o bastante para que Alex
entre em transe. Mas seu companheiro Dim faz um som, que irrita Alex. Com seu bastão, este último
agride o primeiro, fato que dá início ao conflito entre líder e os outros companheiros.
60
Ryback, 2009, p. 114.
Dagmar Manieri • 87

que lhe faziam recordar suas viagens à África de antes da guerra. (...) Des-
truía-se casas, paredes e tetos tombavam, “como que pelo poder da magia”.
No curso de uma ofensiva, em 1918, escreveu Jünger: “Assisti à matança
como se estivesse em um camarote de teatro”. 61

Jünger sintetizou com propriedade esse “novo homem” fascista.


Neste mundo de forças desumanas, há uma beleza apropriada a esta
forma de se viver. Ele a denominava de “poesia do aço”:

Hoje escrevemos poesia a partir do aço e da luta pelo poder em batalhas


onde os acontecimentos se engrenam com a precisão das máquinas. Nessas
batalhas na terra, na água e no ar, repousa uma beleza que somos capazes
de antegozar. Lá a impetuosa vontade do sangue se refreia e depois se ex-
pressa pelo domínio das maravilhas técnicas do poder. 62

Por isso, Herf se refere ao termo “esteticismo fascista”; a aprecia-


ção e o gosto pela tecnologia, assim como a força que remove obstáculos
rumo a uma vida plena. Nesse sentido a estética fascista é uma forma
“amoral modernista” que Herf qualifica de modernismo reacionário.
Por isso não é incorreto caracterizar o caráter de Alex como um tipo
fascista. Há elementos em sua personalidade que estão presentes no
modelo político fascista. Mas ele é, também, um representante do indi-
vidualismo moderno. Seu prazer desmedido e desumano nos conduz a
vários tipos de conduta da elite no capitalismo nas democracias ociden-
tais. 63

61
Herf, 1993, p. 87, 88.
62
Apud Herf, 1993, p. 93.
63
Notar, neste caso, um exemplo que ficou famoso no Brasil. Em 20 de abril de 1997, o cacique Galdino
dos Santos foi morto em um ponto de ônibus, em Brasília. Cinco jovens moradores do Plano Piloto
(região central da Capital) atearam fogo ao seu corpo. O índio havia participado dos protestos contra o
governo um dia antes, 19 de abril, dia do índio.
88 • Problemas de hermenêutica radical

Por isso a mensagem de Laranja mecânica nos mostra que os sujei-


tos do campo político não estão interessados no bem individual (no
filme, traduzido pela “cura” de Alex). Os agentes do campo político só se
preocupam com os efeitos desse “bem” alcançado. No final da obra, Alex
é cooptado pelo partido do poder e, ao que tudo indica, o protegerá em
suas futuras aventuras. A distopia de Laranja mecânica nos adverte do
perigo da utilização dos métodos científicos para fins políticos. Além de
problematizar a prática política, lança uma grande interrogação sobre a
natureza humana, na figura de Alex.

A DIFÍCIL AUTONOMIA DE UMA COMUNIDADE

A Itália sai da Segunda Guerra Mundial com uma triste experiên-


cia; o fascismo havia conduzido toda a nação à ruína. Era preciso uma
reconstrução, mas em qual caminho? No plano internacional, o con-
junto das nações ingressava na Guerra Fria. O mundo era divido em
áreas de influência; de um lado os EUA, de outro, a URSS. É com esse
quadro político que, de início, nos aproximamos de A terra treme, de Lu-
chino Visconti. 64 Aqui, temos a estética fílmica italiana denominada de
neo-realismo, fenômeno que tanto influenciou o Cinema Novo brasi-
leiro. Em A terra treme já presenciamos muitos elementos desse
realismo fílmico: atores da própria região; o apelo político; o enfoque
nas classes populares; a denúncia de uma elite que explora o trabalho
alheio. Neste momento, o cinema está em função da politização de seu
público, semelhante ao objetivo do Cinema Novo.
O filme de Visconti nos mostra a pequena comunidade de Aci
Trezza (Trezza) que sobrevive da pesca. Para os que residem nesta

64
VISCONTI, Luchino (Dir.). A terra treme (La terra trema). Itália, 1948.
Dagmar Manieri • 89

pequena vila a grande referência é a cidade de Catania: é aqui que os


peixes são vendidos. O filme se inicia com o badalar do sino da igreja
local; o som indica que é o instante de iniciar o trabalho. Visconti nos
mostra a família Valastro. Primeiro a residência humilde, com paredes
simples e alguns quadros que sinalizam os bons momentos do lar. Na
foto do quadro principal, está toda a família; Ntoni com o uniforme de
marinheiro, assim como também “papai”, que morrera no trabalho de
pesca, certa noite. A família traz viva sua memória; na porta da casa,
visualizamos dois papéis colados:

Per Il nostro padre


Per Il mio caro sposo

O grande líder da família é Ntoni; ele havia estado na marinha e lá


se politizou. Cola, irmão de Ntoni, também se politiza, influenciado pelo
irmão. Nas cenas iniciais, os Valastro, juntamente com outras famílias
de Trezza, vão ao mar ganhar o sustento diário. Quando retornam com
os peixes, assistimos os comerciantes. Na própria praia, a venda é ne-
gociada pelos pescadores mais velhos; mas quase sempre a proposta do
comerciante se sobrepõe à oferta dos pescadores. Não há opção, pois o
mercado é monopolizado por Raimondo, o mercador que expressa a
elite da comunidade. Eis a rotina desses pescadores, algo que não aplaca
a pobreza das camadas populares.
É neste instante que Ntoni inicia o trabalho de liderança. Em seu
discurso: “Deus nos deu o mar e os barcos, que vão muito longe. Mas
Deus não inventou esses canalhas que se aproveitam dos pescadores”.
Agora são os jovens que irão negociar o valor dos peixes vendidos. Mas
no acordo, ocorre um grande tumulto. Os pescadores se revoltam e se
inicia o confronto. A balança, símbolo da opressão, é jogada ao mar por
90 • Problemas de hermenêutica radical

Ntoni. Neste momento entre em cena a força policial e os pescadores


rebeldes são presos.
O filme mostra a casa de Raimondo, o proprietário da Ciclope – So-
cieta transporto e vendita pesce. Eles se alimentam fartamente e se
divertem com a repressão. Na conversa, fica evidente a proposta do co-
merciante de que todos devem ser anistiados: Raimondo necessita do
trabalho dos pescadores. No retorno à comunidade, Ntoni se conscien-
tiza da força dos trabalhadores. Ele diz: “Eles precisam de nós”. Ele
deseja convencer os pescadores a vender os peixes em Catania. Mas para
isso precisam comprar um barco maior, assim como executar o processo
de salga do produto. Desconfiados, ninguém o segue. Resoluto, Ntoni
envolve a família em seu projeto. Eles irão penhorar a casa e fazer um
empréstimo bancário no Banco Fidania, em Catania. Realizada a em-
preitada bancária, Ntoni compra um barco maior.
Ele retorna à comunidade alegre. Diz o narrador: “Ntoni volta a
Trezza se sentindo o dono do mundo. Com dinheiro no banco, faz planos
para o futuro. Agora que é independente, pretende se casar (com
Nedda)”. Em uma das primeiras pescas, eles conseguem grande quanti-
dade de anchovas. O filme mostra toda a família no trabalho de salga
dos peixes; são trinta barris que pretendem estocar para o inverno. Em
outro dia de trabalho, verificamos que o tempo não está propício para a
pesca; mas Ntoni opta por sair ao trabalho, mesmo assim. Será sua tra-
gédia, pois a tempestade atingirá seu barco à noite. É o momento de
aflição na família Valastro. O mar revolto; ouve-se o badalar do sino da
igreja: “Quando o sino toca em Trezza e quem tem homens no mar, sente
um aperto no coração. As badaladas significam tempestade. Todos pro-
curam ajuda com os vizinhos e rogam a Deus por aqueles que estão em
perigo”, diz o narrador. Mara, irmã de Ntoni, diz referindo-se à sua mãe:
Dagmar Manieri • 91

“Ela parece um cadáver, olhando para o nada!”. Neste instante, um


amigo da família, Bandiera, entra ao mar para resgatar Ntoni e o resto
família (vovô, Cola e Vanni). Após certo período, eis que retornam os
dois barcos. Mas a embarcação de Ntoni está perdida: sem o mastro, os
remos e a vela. Também perderam as redes. Na Praia, todos esperam
pelos pescadores. O locutor diz que é o momento de desforra dos comer-
ciantes; Lorenzo (o fiel empregado de Raimondo) sobe ao barco e diz
para Ntoni: “Você nunca será um mercador!”. O líder da família Valastro
está desolado. Ele diz: “Sou um miserável azarado!”.
Aqui A terra treme faz uma crítica à comunidade. Ninguém quer au-
xiliar a família Valastro; Ntoni e Cola saem em busca de emprego, mas
sem sucesso. Eles são obrigados a vender os trinta barris de anchovas
por um preço ínfimo. A fome assola a família; neste momento da narra-
tiva, Cola resolve partir da comunidade em busca de uma nova vida. Já
na concepção de Ntoni: “Nossa luta é aqui!”.
Sem o pagamento devido ao banco, a casa dos Valastro será penho-
rada. O filme mostra um grupo de homens representando o Banco
Fidania. Eles fazem a medição da casa e anotam suas condições para a
venda. É o fim do único bem imóvel da família; a casa, mesmo modesta,
representa a própria história da família Valastro. O narrador comenta:

E agora devem deixar aquela casa,


na qual tantos Valastro nasceram e morreram.
Dar as costas àquelas paredes,
e aquelas pedras alisadas
pelos seus passas diários.

A casa é o símbolo de dignidade; também se resume em um enrai-


zamento dos membros da família na condição existencial da
92 • Problemas de hermenêutica radical

comunidade. Desde o momento da presença dos representantes do


Banco Fidania, a família se fragmenta. Cola parte (com um homem mis-
terioso) para outros lugares; Lúcia se entrega ao sargento Salvatore em
troca de um colar; vovô adoece e Ntoni se entrega às bebidas, frequen-
tando um grupo de alcoólatras nas madrugadas de Trezza.
É o momento da fome para a família Valastro. Ntoni passeia deso-
lado pela praia. Observa seu antigo barco ao ser reformado. Todos o
evitam; ele parece um ser maldito para a comunidade. De repente ele
sobe em seu antigo barco: está voltando ao passado. Uma garota se apro-
xima para a conversa. Ela diz que ninguém gosta dele na pequena
cidade. Em resposta, Ntoni afirma:

Os que podiam me ajudar,


invejam uns aos outros.
Eles não entendem que aquilo que fiz,
foi por todos nós,
não apenas por mim.
Temos que aprender
a cuidar uns dos outros.
Aprender a nos unirmos,
pelo bem comum.

Belas palavras do líder, agora abandonado. Essa declaração com-


prova o nascimento do Si-mesmo em Ntoni. Para além de uma prática
no sentido particular, o herói promove uma visão geral da comunidade.
Ele apreende uma nova politeia que inclui a dignidade (do trabalho) dos
pescadores. São grupos excluídos e explorados pela elite local. A forma-
ção da subjetividade política em Ntoni gerou o Si-mesmo.
Ao retornar a casa, Ntoni observa que sua irmã (Mara) está com sua
roupa nova nas mãos. Ele conclui: terão que vender para aplacar a fome.
Dagmar Manieri • 93

Ele retira do baú seu uniforme de marinheiro e outros pertences: tudo


será vendido. O líder veste uma blusa rasgada, expressão de sua condi-
ção maltrapilha. Nessas condições, Ctoni, Vanni e Alfio se dirigem até
ao escritório de Raimondo. Com os novos barcos que o último comprou,
agora ele se inscreve como pescador-operário: receberá um salário fixo,
bem como seus irmãos (Vanni, metade do salário e Alfio, um quarto).
Observar que o diretor nos mostra (no final da obra) a transformação
dos pescadores em trabalhadores assalariados. Agora, eles não possuem
mais os barcos, nem as redes de pesca. Nesta cena do escritório, Rai-
mondo sorri em tom de deboche. Ao fundo, pode-se observar que o
escritório trazia, nos anos anteriores, uma saudação ao líder Mussolini.
Mesmo com a recente pintura, a antiga saudação ainda permanece pre-
sente ao fundo.
A obra se encerra em uma cena no mar; o grupo se dirige até aos
cardumes. Ctoni, entristecido, rema de forma acelerada. Eles voltaram
a trabalhar como pescadores e, por ironia do destino, em uma condição
pior à anterior. Agora, são empregados de Raimondo
A terra treme expressa o período do pós-Segunda Guerra Mundial
na Itália. Foi uma difícil reconstrução, após os anos de fascismo. Ao tér-
mino do conflito mundial, os partidos se recompõem; resta como força
política o Partido Comunista Italiano (PCI) e o Partido Democrata Cris-
tão (DC). É desta forma que com a derrocada do fascismo, a Itália ainda
permanece carente de um partido (ou líder) que reconduza o sistema
político para um modelo político estável, longe dos extremismos.
Como bem mostrou a obra de Visconti, o fascismo se fora, mas os
grupos dominantes (que o apoiaram) persistiam como classe domi-
nante. Restou ao Partido Comunista Italiano (PCI) realizar as reformas
possíveis no interior do estabhishment:
94 • Problemas de hermenêutica radical

De 1946 a 1976, o Partido Comunista Italiano aumentou constantemente


(com uma única paralisação em 1958) de 19% para mais de 34% da votação
total. Se essa progressão não tivesse sido interrompida pelo revés de 1979,
o PCI teria, com toda probabilidade, participado, naquela época, do governo
como um importante, talvez o maior, partido da coalizão. 65

É evidente que a atuação dos comunistas no sistema político só ti-


nha duas saídas possíveis. Ou se convertiam em uma espécie de social-
democracia alemã ou se efetuaria a corrosão (golpe interno) das insti-
tuições “burguesas” para um futuro regime socialista. Giovanni Sartori
afirma que neste período pós-guerra, o PCI exerceu uma “oposição
construtiva”. Sua força era tão grande que “quase três quartos da legis-
lação italiana entre 1948 e 1968 teve a aprovação dos comunistas (...)”. 66
O subtexto de A terra treme indica a possibilidade da ascensão dos
comunistas na Itália. Mas o discurso estético da obra vai além do mundo
político; reflete as condições sociais para a reconstrução da sociedade
na perspectiva das classes populares. A tragédia da família Valastro nos
mostra a ausência de solidariedade entre os membros da comunidade
de Trezza. O que está em jogo, aqui, é a força da tradição em contraste
com o despertar da consciência política. Assim, quais as possíveis saídas
na perspectiva de Visconti? Primeiro, a possibilidade da comunidade de
pescadores efetivarem uma cooperativa; assim, eles teriam mais força
para negociar seus produtos no mercado. Quando Boaventura de Sousa
Santos comenta sobre a modernidade, enfatiza que a regulação social
ocorre através de três pilares: Estado, mercado e a comunidade. Em seu
entender, o “pilar da emancipação é constituído pela articulação” de vá-
rias formas de racionalidade: moral-prática do direito moderno;

65
Sartori, 1982, p. 162.
66
Ibid., p. 168.
Dagmar Manieri • 95

cognitivo-experimental das ciências e da técnica e, finalmente, a ex-


pressividade estética das artes. Nesse sentido, o equilíbrio entre
emancipação e regulação “obtém-se pelo desenvolvimento harmonioso
de cada um dos pilares e das relações dinâmicas entre eles”. 67
A cooperativa é uma forma de ação no pilar “mercado”. Outra saída
mimética da obra indica a participação política ao nível universal.
Mesmo que Ctoni se sinta atrelado à comunidade, ele possui elementos
necessários para a liderança política em um nível mais universal (o pilar
“Estado”, em Boaventura Santos). Essa forma de experiência política –
respeitando as diferenças de tempo e espaço social – foi realizada no
Brasil, com a formação do Partido dos Trabalhadores (PT). Ao contrário
de outros partidos políticos brasileiros, o PT nasce dos movimentos so-
ciais, especialmente, o movimento sindical. Cláudio Couto expressa o
objetivo do novo partido:

A própria criação do PT objetiva, segundo os seus fundadores, criar um ca-


nal para a expressão dos excluídos do jogo político brasileiro: o PT seria o
veículo das reivindicações dos trabalhadores, dos sem-terra, dos desvalidos,
enfim dos “de baixo”, incluindo-os num cenário até então ocupado unica-
mente pelas elites socioeconômicas e políticas, que, quando muito,
cooptavam esses setores (...). 68

Nesta passagem, evidencia-se a especificidade do PT em sua fase


de formação. Estamos em 1979, em uma fase de reconstrução após o
golpe militar de 1964. O PT surge com a missão de “permitir a incorpo-
ração dos trabalhadores ao sistema político, combatendo o seu caráter

67
Santos, 2013, p. 224.
68
Couto, 1995, p. 87.
96 • Problemas de hermenêutica radical

elitista; (...)”. 69 Observar a diferença em relação a outras formas de as-


censão política. O meio tradicional brasileiro corresponde ao que se
denomina de elitismo. Ver, por exemplo, o caso de Antonio Carlos Ma-
galhães. Seu pai, Francisco Magalhães Neto era Deputado Federal pelo
PSD. Em entrevista, o líder baiano afirma:

[Em 1946] eu tinha então 18 anos e assistia a todas as sessões da Constituinte


no período de junho a 15 de julho, aproveitando as férias escolares na Bahia
(...). Em 1959, ao ser eleito deputado, disse: é ali, e sentei logo cedo na cadeira
que escolhera já em 1946. 70

A elite política brasileira é composta de famílias tradicionais em


suas várias regiões. 71 O PT quebrou esta forma de ascensão política ao
surgir como um partido da classe trabalhadora: “Em primeiro lugar, a
decisão de formar um partido era uma decisão de diferenciar a organi-
zação política da classe operária da “oposição” mais geral”. 72 Mas não só
um partido da classe trabalhadora; ele abraça a causa dos excluídos em
geral. Na campanha para governador em 1982, Lula comenta: “É preciso
que aqueles que sempre foram oprimidos entendam, de uma vez por to-
das, de que eles precisam deter o poder político em suas mãos”. 73 Ao nos
depararmos com essas ideias, não podemos deixar de notar as atitudes
de Ntoni. É bem isso que o líder da comunidade de pescadores almeja
levar aos seus companheiros. A consciência de que a solidariedade entre

69
Ibid., p. 91.
70
Magalhães, 1995, p. 41.
71
Quando Margaret Keck se refere ao candidato à Presidência da República em 1989 Fernando Collor de
Melo, afirma: “Collor, herdeiro de uma das mais importantes famílias oligárquicas de Alagoas, entrou na
política como prefeito nomeado de Maceió durante o Regime Militar. Foi eleito para o Congresso em
1982 pelo PDS e ganhou o governo de Alagoas sob a sigla do PMDB” (Keck, 1991, p. 185).
72
Ibid., p. 174.
73
Ibid., p. 172.
Dagmar Manieri • 97

eles já é uma forma de prática política. Em setembro de 1981, na I Con-


venção Nacional do PT, Lula ressalta:

O Partido dos Trabalhadores é uma inovação histórica neste país. É uma


inovação na vida política e na história da esquerda brasileira também. É um
partido que nasce do impulso dos movimentos de massas, que nasce das
greves e das lutas populares em todo o Brasil. É um partido que nasce da
consciência que os trabalhadores conquistaram, após muitas décadas de
servirem de massa de manobra dos políticos da burguesia e de terem ouvido
cantilenas de pretensos partidos de vanguarda da classe operária. Só os tra-
balhadores podem conquistar aquilo a que têm direito. Ninguém nunca nos
deu, ninguém nunca nos dará nada de graça. 74

Como se pode observar, essa indicação de Ntoni para que os mem-


bros (explorados) da comunidade se organizem, ocorreu em alguns
países, especialmente no Brasil (1979) no período da redemocratização.
O despertar político de Ntoni implica a presença da indignação ante as
condições de miséria de sua família e da comunidade. Ele se conscien-
tiza da possibilidade de uma nova prática para se alterar as condições
de vida. Para que isto ocorra, deve-se romper com uma série de elemen-
tos (da dominação) que estão presentes na tradição. Trata-se de uma
conscientização que se traduz em força de ideação. O próprio ser hu-
mano se reestrutura (e seu mundo) ao romper com o ciclo de reprodução
da miséria:

(...) o ato político (intervenção) propriamente dito não é apenas aquilo que
funciona bem no interior da estrutura das relações existentes, mas o que
muda a própria estrutura que determina como as coisas funcionam. (...)
Também podemos dizer isso nos termos da conhecida definição de política
como “a arte do possível”: a política autêntica é justamente o oposto, isto é,

74
Apud Keck, 1991, p. 148.
98 • Problemas de hermenêutica radical

a arte do impossível – ela transforma os próprios parâmetros daquilo que é


considerado “possível” na constelação existente. 75

A transgressão de Ntoni requer uma prática da justiça que favoreça


a comunidade (carente). Sua “subversão” é um movimento de abalo ante
as injustiças da elite local. Nesse sentido A terra treme se caracteriza
como obra de arte que se coloca ao lado das classes populares. Ela de-
nuncia a exploração que a elite realiza ante o trabalho alheio; esforço
que não permite às “gentes do povo” sair do estado de miserabilidade.
Assim, como pensar o realismo do filme? Cinema que figura as condi-
ções reais de vida do povo oprimido; mas só isso não caracteriza a
grande obra. Herbert Marcuse comenta que “na arte, o conteúdo da li-
berdade só se mostrará indiretamente, dentro e através de algo mais
que não é a meta, mas que possui força para iluminar a meta”. 76 Ntoni se
equivoca ao crer que pode, de forma isolada, sair da condição de miséria;
a comunidade também se equivoca ao excluir a família Valastro de seu
mundo da vida. Realismo fílmico que mostra a possibilidade de consci-
entização e, também, a concentração de capital. Na obra as forças
vitoriosas correspondem à ordem dominante.
A estética iluminou uma meta; ao invés de naturalizar uma condi-
ção de vida (miserável), desacorrentou a meta, sepultada nas condições
de vida. Se o realismo na arte corresponde a um “ponto de ruptura”, isto
quer dizer que o desespero, a promessa de felicidade (promesse du bo-
nheur) e a coragem em Ntoni são linhas de fuga (Cf. Deleuze). 77 A força

75
Zizek, 2016, p. 220.
76
Marcuse, 1999, p. 272.
77
Observar esta passagem em Marcuse: “A obra de arte deve, em seu ponto de ruptura, expor a absoluta
nudez da existência do homem (e da natureza), despida de toda a parafernália da cultura de massas
monopolista, completa e absolutamente só, num abismo de destruição, desespero e liberdade” (Ibid.,
p. 271).
Dagmar Manieri • 99

subversiva de A terra treme se constata ao mostrar a humanidade das


classes populares (na família Valastro, de forma específica). Também há
a “humanidade romântica” (Lucia) que se curva aos valores de troca. Ci-
nema que se traduz em imagens, sons, paisagens, texto lido, vida
econômica: A terra treme não explora a imaginação do espectador, se-
gundo o grande potencial técnico do cinema (poiesis). O diretor não
compartilha da “técnica de exploração dos consumidores” (Cf. Adorno);
ao contrário, a obra se traduz como um apelo à sensibilidade do espec-
tador ante a humanidade danificada.
3
LITERALIDADE E ESCRITURA EM KAFKA:
TRÊS CONTOS

Há um texto interessante de Jacques Derrida que se dedica ao pen-


samento de Antonin Artaud; nele, se pensa como o teatro pode servir de
abertura para a escritura na ordem literária. Em primeiro lugar, Derrida
recupera a radicalidade de Artaud que rejeita a forma do teatro contem-
porâneo: “Sempre se obrigou o teatro a fazer aquilo para que não estava
destinado”. 1 Para Artaud, o teatro tem executado uma prática fora de
seu campo específico. Assim, o que ele tem praticado? O que ainda não
encontrou? A palavra que nos chama a atenção na interpretação de Der-
rida é “afirmação”: o que tem impedido o teatro de se “afirmar” é que
esta arte está amarrada a um modelo exógeno. Daí o enfoque de que “o
teatro da crueldade não é uma representação”. Aqui, a contenda gira em
torno da antiga definição de mímesis como uma prática imitativa. Para
se fundar um campo – aqui, Derrida/Artaud pensam no teatro – inici-
almente é necessária a fratura, a rejeição daquilo que se tornou
“normal”: “A arte teatral deve ser o lugar primordial e privilegiado dessa
destruição da imitação: mais do que outro foi marcado por esse trabalho
de representação total no qual a afirmação da vida se deixa desdobrar e
escavar pela negação”. 2
Procura-se, dessa forma, um espaço teatral autêntico. Com isso se
entende a prática cênica que deve produzir “um espaço não-teológico”.

1
Derrida, 2011, p. 340.
2
Ibid., p. 342.
Dagmar Manieri • 101

Artaud comenta sobre a atitude de romper com forças invisíveis: isto é


tentar ser “não-teológico”. 3 Os atores, como intérpretes, estão subjuga-
dos. Eles são “escravos interpretando, executando fielmente os
desígnios providenciais do “senhor” ”. 4 Há algo de suspeito nesta prática
teatral que é representativa; no fundo, o teatro tem servido para ilustrar
um texto, sendo que o palco ainda não se libertou do “tecido verbal”, ou
seja, do “lógos”.
Para que o teatro conquiste seu espaço autêntico, deve executar a
“liberdade criadora e instauradora”. O teatro deve ser uma forma de
“experiência produtora do seu próprio espaço”. Não mais um teatro que
possui o texto como uma espécie de “senhor” do espaço cênico. Para se
reverter essa injunção, imagens e gestos devem produzir algo e não,
como antes, imitar. Aqui, Derrida cita Artaud: “O espetáculo agindo não
apenas como um reflexo, mas como uma força”. 5
Percebe-se que as exigências (radicais) de Artaud nos remetem ao
campo da teatralidade. Tal prática artística deve realizar um novo sen-
tido; essa radicalidade implica em dizer que a escritura deve se
converter em objeto da arte em um campo específico. Observar, tam-
bém, as exigências do jovem Nietzsche ante a música na Grécia antiga.
Em sua conferência em Basileia (“O drama musical grego”), o filósofo
ressalta sobre a importância da música no teatro grego antigo: ela é “vi-
vacidade”. A diferença da música em relação à palavra diz respeito às
faculdades que estão sob a influência do efeito estético. A palavra “age

3
“O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar, segundo toda a tradição, os seguintes
elementos: um autor-criador que, ausente e distante, armado de um texto, vigia, reúne e comanda o
tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-lo no que se chama o conteúdo dos
seus pensamentos, das suas intenções, das suas ideias” (Ibid., p. 343).
4
Idem.
5
Apud Derrida, 2011, p. 347.
102 • Problemas de hermenêutica radical

primeiramente sobre o mundo dos conceitos e somente a partir daí so-


bre o sentimento”; já a música “toca o coração imediatamente, como a
verdadeira linguagem universal, inteligível por toda parte”. 6 Assim, o
teatro grego antigo executava a “música e a palavra” de forma conjunta.
Isto explica a objeção de Nietzsche: “Nós que crescemos sob a influência
do mau costume da arte moderna, sob o isolamento das artes, já não
estamos em condições de fruir de texto e de música conjuntamente”. 7
Esses exemplos de Artaud e Nietzsche nos servem de guias quanto
às exigências do campo específico para cada forma de arte. No campo
literário, deve haver uma “afirmação” (nas palavras de Derrida) que cor-
responde à perspectiva literária; como expressa o feliz comentário de
Bourdieu: é necessário se atentar para a “ordem inscrita na ordem das
coisas, (...)”. 8 Na literatura essa “ordem inscrita” nas coisas é a escritura.
Mas para sondar e evidenciar esta “ordem das coisas” é necessário um
campo específico e uma prática apropriada: eis a tarefa da literatura.
Neste sentido a literatura traz para seu campo específico a tarefa
de configurar uma espécie de geografia da “ordem das coisas”, sendo a
prática artística compreendida como literalidade. Quando Raymond
Williams comenta sobre a relação entre ideologia e literatura, não deixa
de evidenciar a literalidade:

A literatura não é apenas portadora de ideologia, como em muitas formas


de teoria do reflexo; ela é inescapavelmente ideológica, mas sua autonomia
relativa específica é que ela é uma forma de escrita e prática em que a ide-
ologia tanto existe quanto é, ou pode ser, internamente afastada e
questionada. Assim, o valor da literatura é precisamente que ela é uma das

6
Nietzsche, 2010, p. 66.
7
Ibid., p. 66, 67.
8
Bourdieu, 2019, p. 105.
Dagmar Manieri • 103

áreas em que a pressão da ideologia é ou pode ser reduzida porque, embora


ela não possa escapar da construção ideológica, sua literalidade se questi-
ona internamente e continuamente. 9

A literalidade questiona e subverte a “ordem das coisas”: ela tem o


poder de evidenciar os aspectos heterônomos da vida social. É nesse
sentido que a arte adota a seguinte postura: “[Um sistema que] pode ser
questionado ou pode, de modo bastante prático, ser rejeitado”. 10 A cons-
ciência estética na literatura significa que ela é sensível aos
“determinantes sociais”, na expressão de Williams. Assim, antes mesmo
de ingressarmos na literatura de Kafka, deve-se esclarecer sobre nossa
perspectiva teórica. Literalidade é a prática libertadora da literatura.
Nas palavras de Roland Barthes:

Trata-se, por transmutação (e não mais somente por transformação), de fa-


zer surgir um novo estado filosofal da matéria linguareira; esse estado
inaudito, esse metal incandescente, fora de origem e fora de comunicação,
é então coisa de linguagem e não uma linguagem, fosse esta desligada, imi-
tada, ironizada. 11

Como exemplo da prática da literalidade em torno da escritura,


pode-se interpretar O processo, de Kafka. Aqui, Josef K. – um funcionário
de banco – sofre a acusação por parte da justiça. Inquieto, ele não é co-
municado sobre o motivo do processo. Seus esforços se traduzem na
intenção de se livrar da acusação, mas ao se defender, começa a com-
preender o complexo sistema judicial. Por meios legais, sua causa
parece perdida. Nas primeiras experiências com o sistema judicial, K.

9
Williams, 2014, p. 271.
10
Ibid., p. 272.
11
Barthes, 2010, p. 39.
104 • Problemas de hermenêutica radical

percebe que é através das relações pessoais que o caso pode ter uma so-
lução feliz.
Assim, vamos focar uma cena de O processo e que testemunha a re-
lação entre literalidade e escritura. Esta cena mostra o pintor Titorelli;
esse artista surge na vida do protagonista por indicação de um “fabri-
cante”, cliente do banco em que K. trabalha. O cliente havia
confidenciado que esse “quase mendigo” (o pintor) havia-lhe dito sobre
o processo de K. Por isso, o herói resolve procurar o artista em sua re-
sidência no subúrbio da cidade. O romance descreve com habilidade as
condições degradantes do local. Já na residência do pintor, essa é a sen-
sação de Josef: “Nesse ínterim, K. se pusera a observar a habitação;
nunca havia imaginado que pudesse chamar estúdio a esse quartinho
miserável e pequeno”. 12 Nesse primeiro encontro de K. com o pintor, te-
mos uma visão exata das ramificações do poder judicial; Titorelli é o
pintor da justiça, profissão que herdou do pai. Mas, aqui, não se trata
simplesmente da especialização artística; Titorelli revela que recebeu
do pai o segredo da forma de representar (na expressividade artística da
pintura) os juízes:

Ali, em minha gaveta, por exemplo, tenho as instruções de meus pais que
não mostro a ninguém. Pois bem, unicamente aquele que as conhece é capaz
de pintar os juízes. Contudo, mesmo que as perdesse, existem tantas regras
que somente eu sei de memória, que ninguém poderia disputar-me o posto.
É necessário representar os juízes tais como foram pintados os antigos, os
grandes juízes, e isso é algo que somente eu posso fazer. 13

12
Kafka, 1975, p. 157.
13
Ibid., p. 165, 166.
Dagmar Manieri • 105

Há um poder informal na justiça em O processo que, de fato, se con-


figura como um micropoder: ela atua nas instâncias inferiores do
processo. Uma relação de ordem sexual ou artística (como em Titorelli)
se traduz em uma forma de “influência” no sistema judiciário. Já as ins-
tâncias superiores são expressas através de um completo segredo, como
na ênfase do próprio pintor: “As sentenças definitivas da justiça, não
somente não se publicam, mas nem mesmo são acessíveis aos juízes,
(...)”. 14 No exemplo de Titorelli, há a confissão (ao herói) de que as rela-
ções pessoais podem interferir no transcurso do processo. Sua ação fica
reservada às instâncias inferiores, sendo que os efeitos são localizados
através de duas formas: a absolvição aparente e a dilação indefinida.
Portanto, a escritura em O processo figura as relações de poder ao
nível do judiciário. Observar que o romance faz o contraste entre as re-
presentações formais da justiça e os micropoderes que, em parte,
modificam as instâncias inferiores (como, por exemplo, evitar a deten-
ção). Em uma fala do pintor, essa relação entre a aparência (formal) e as
relações pessoais fica evidente:

É preciso que você não confunda essas duas coisas. Certamente que não li
em nenhuma lei, embora naturalmente deve estar estabelecido ali que o
inocente deve ser absolvido, portanto, não se estabelece nela que se possa
influir sobre os juízes por meio de relações pessoais. Pois bem; inteirei-me
de que precisamente acontece tudo o contrário, porque o certo é que não

14
Ibid., p. 168. Observar esta passagem em O processo: “Os juízes inferiores – na fala de Titorelli -, entre
os quais se acham os meus conhecidos, não têm o direito de absolver definitivamente; esse direito
corresponde à justiça superior totalmente inacessível para você, para mim e para todos nós. Não
sabemos o que acontece nessa esfera superior e, seja dito de passagem, tampouco queremos saber.
Quer dizer então que nossos juízes não possuem o direito de absolver definitivamente o acusado, mas
em troca sim têm o direito de pô-lo em liberdade” (Ibid., p. 172).
106 • Problemas de hermenêutica radical

tenho conhecimento de nenhuma absolvição real, mas sim de muitos casos


de influências pessoais. 15

Aqui pode-se observar que a literalidade realiza a prática artística


sobre a escritura. O que estabelece o nível estético (como campo especí-
fico da força da poiesis) é lido como exagero, no caso de se identificar as
obras de Kafka como um prelúdio ao poder totalitário. Mas essa estra-
tégia da maximização corresponde à ficção estética: o idealismo
romântico de dom Quixote; a busca de felicidade no amor em Emma Bo-
vary; o puro ideal do amor em Moreau em A Educação sentimental, entre
outros.
A literalidade também executa uma espécie de percurso; ela des-
venda nos objetos a dominação social. Em O processo, evidencia-se a
cama de Titorelli: aqui, a cama é o objeto inscrito pelas relações de do-
minação. Quando Josef K. visita a residência do artista, sabe-se que, de
verdade, esse minúsculo quarto representa uma seção da secretaria de
justiça, localizada ao lado. Como neste quarto só há uma cadeira, o visi-
tante é obrigado a sentar-se na cama. 16 Na sequência, o pintor indica
que no quarto há uma segunda porta que conduz o hóspede aos corre-
dores da repartição judiciária. Mas esta passagem se encontra atrás da
cama, de modo que a pessoa para atingir esta segunda saída deve passar,
obrigatoriamente, por cima da cama. O próprio Titorelli dá um exemplo:

Pois bem, o caso é que [o juiz] tem o costume de vir de manhã muito cedo
quando ainda estou dormindo. De modo que sempre me arranca do mais
profundo de meus sonos quando abre a portinha que está junto à cama.

15
Ibid., p. 167.
16
“Além disso, parecia que o pintor não chegava a compreender por que K. permanecia simplesmente
na borda do leito, já que ele mesmo lhe dizia que se instalasse comodamente, de modo que, como visse
que K. hesitava, foi ele mesmo metê-lo profundamente dentro da cama” (Ibid., p. 162).
Dagmar Manieri • 107

Verdadeiramente, você perderia todo respeito pelos juízes se ouvisse as


maldições com que recebo a este quando pela manhã cedo sobe à minha
cama. 17

Quando Josef K. deseja se retirar do local (para fugir das meninas


do prédio que o perseguem), resolve sair por esta segunda porta. Mas
como sair, se a cama está junto à saída? Na resposta, Titorelli indica:
“Suba sem medo sobre a cama; todos os que aqui vêm o fazem”. 18 Aqui,
temos uma forma de apresentar as ramificações das relações de domi-
nação, bem semelhante à cena da escola em O castelo. 19 Nessas cenas a
literalidade desvenda objetos e espaços (tópos) - a cama de Titorelli e a
sala de aula transformada no quarto de K. em O castelo - inscritos no
sistema de dominação. São objetos e espaços que expressam a perda de
autonomia dos sujeitos; na ordem literária, objetos e espaços se trans-
formam em signos colonizados pelo complexo de poder.
Aqui, se configura a ruptura ante as tradicionais teorias em torno
da escritura. De forma geral, o próprio pensar sobre a escritura corre o
risco de cair nos jogos sutis da modernidade burguesa. É assim que a
escritura indica “novas significações”. Neiva Kadota acompanha o sur-
gimento do termo; scriptura no latim ou écriture, em francês, o que se
sabe é que Roland Barthes irá desenvolver a reflexão sobre o termo, es-
pecialmente em Le degré zero de l’écriture. Para Barthes, a escritura é
uma espécie de natureza da linguagem do escritor. Aqui, já se desconfia
do exagero diante da figura do “escritor”; além disso, a estetização da

17
Ibid., p. 170.
18
Ibid., p. 178.
19
Ao ser admitido em outra função (um servente de uma escola pública), K. recebe como moradia uma
sala de aula na escola que deve trabalhar. Diante de seu status de agrimensor, trata-se de uma forma de
rebaixamento. De manhã, os alunos e a professora adentram no espaço, causando uma cena curiosa de
“invasão” de um espaço privativo.
108 • Problemas de hermenêutica radical

linguagem nos conduz a um fechamento da poiesis da arte literária: “(...)


a literatura, ao apontar para o referente, ao falar do mundo, na verdade
busca um pretexto para falar de si mesma. É a própria linguagem o seu
objeto; (...)”. 20 Eis as expressões que, ao que tudo indica, conduzem a es-
critura a uma espécie de “ouro” do escritor: a) Ela é um requinte estético
do escritor; b) A escritura como a marca particular do escritor; c) A es-
critura como expressão de um signo liberto. 21
Já em Michel de Certeau as coisas se clarificam, no sentido da in-
quietude diante do perigo do conceito de escritura cair nas malhas da
estetização burguesa. A hermenêutica radical deve ser precavida ante o
enfraquecimento teórico de conceitos importantes como mímesis, poie-
sis e escritura. O que se entende por “estética burguesa” é uma forma de
produção cultural que tem seu poder de negação esfriado. Em Jean-Paul
Sartre, a literatura “burguesa” visa a uma “elite intelectual”; seu “refi-
namento técnico” implica em “jogos abstratos” incapazes de elevar o
nível cultural das massas. 22 Para Theodor Adorno, a produção literária
burguesa apresenta uma “magia indolente”; ela é “divertimento” sem-
pre a serviço dos Senhores. 23 No fundo a cultura na era burguesa existe
como um “bem cultural agradável” que executa o “hedonismo estético
que expulsa da arte toda a negatividade (...)”. 24 Assim, a fruição artística
está contaminada pelo valor de troca. O consumidor cultural não se livra
do fetichismo da obra:

20
Kadota, 1999, p. 52.
21
Jogo perigoso e que pode reificar a obra de arte. Na Contribuição à crítica da economia política, Marx
conjuga reificação com o fetichismo. Há objetos (as mercadorias) que assumem um “efeito mágico”.
Neste fenômeno, “resulta necessariamente da imagem totalmente invertida que os agentes do mundo
das mercadorias têm de seu próprio trabalho social; (...)” (Marx, 2011, p. 157).
22
Sartre, 1999, p. 95.
23
Adorno, 1993, p. 13.
24
Ibid., p. 23.
Dagmar Manieri • 109

Nas mercadorias culturais consome-se o seu ser-para-outro abstrato, sem


que elas sejam verdadeiramente para os outros; na medida em que lhes es-
tão ao serviço, enganam-nos. A antiga afinidade de contemplador-
contemplado é invertida. Ao reduzir a obra de arte a simples factum, gesto
típico do comportamento de hoje, vende-se também em saldo o momento
mimético, incompatível com toda a essência coisal. 25

Fratura, cisão, dano: eis os termos que indicam o abalo no “mo-


mento mimético”. A mímesis como a “possibilidade do possível” nas
obras de arte. Após a virada estética empreendida por Nietzsche, a mí-
mesis apresenta outra definição: ela não será mais “imitação”, mas se
utilizará da poiesis para escapar dos encantos dos valores de mercado. 26
Diante dessas posturas críticas, as reflexões de Michel de Certeau em
torno da escritura são importantes. Ele comenta sobre os “aparelhos es-
criturísticos”. Então, se percebe que em Certeau a escritura assume uma
função de objeto estético da prática literária e não a teoria de “liberta-
ção” literária. A escritura em Certeau, embora pensada como texto,
significa “o domínio de um sujeito diante de um objeto”. 27 Portanto, Cer-
teau já está às portas de uma concepção negativa de escritura; ela é
“uma apropriação do espaço exterior”. Descartes é utilizado para se
compreender a intencionalidade burguesa, no sentido de um desejo
“conquistador”. Assim, a escritura marca as coisas; ela imprime “um
princípio de hierarquização social”, nas palavras de Certeau. Evidencia-
se que a referência de Certeau é Na colônia penal de Kafka. O conto per-
mite que se entenda que “o sujeito da escritura é o senhor, (...)”. 28 De

25
Ibid., p. 29.
26
Ver esta passagem de Adorno, na Teoria estética: “Em última análise, deveria derrubar-se a doutrina da
imitação; num sentido sublimado, a realidade deve imitar as obras de arte” (Ibid., p. 153).
27
Certeau, 2014, p. 204.
28
Ibid., p. 209.
110 • Problemas de hermenêutica radical

certa forma, Certeau vê os corpos como a substância que recebe a Lei:


“Do nascimento ao luto, o direito se “apodera” dos corpos para fazê-los
seu texto”. 29 Por isso o lógos de uma sociedade ao se imprimir na carne,
realiza um trabalho de “encarnação”. O corpo é, então, “escritura encar-
nada”, um corpus textual trabalhado pelas instituições. As nervuras dos
corpos atestam que uma “máquina” (a instituição) escreveu a Lei sobre
sua pele. Uma importante reflexão de Certeau em torno da escritura; ela
é impulsionada com o auxílio de Foucault e Kafka. 30

A ESCRITURA EM TRÊS CONTOS DE KAFKA

Em Na colônia penal presencia-se uma etapa da história da ilha tro-


pical na qual a justiça passa por um processo de modernização. O antigo
método do suplício está em vias de desaparecimento e o sujeito trans-
formador é marcado pelo novo comandante. No início do conto estamos,
temporalmente, nesta fase de transição. O antigo regime punitivo é ex-
presso pelo oficial, um adepto dos velhos procedimentos; já a
modernidade judicial é apresentada pelo novo comandante.
O conto acompanha a chegada do explorador. Não fica claro o mo-
tivo de sua presença, mas tudo leva a crer que ele é um “curioso” que
pretende, como turista, observar os métodos correcionais da colônia. O
narrador logo no início apresenta ao leitor sua posição: “(...) o interesse
pela execução não era muito grande (...)”. 31 A historicidade da punição

29
Ibid., p. 210.
30
Certeau comenta que o ser vivo humano para se transformar em ser social, necessitam ser “impressos
da ordem”. Eis, aqui, outra bela reflexão de Certeau: “A escritura adquire um direito sobre a história, em
vista de corrigi-la, domesticá-la ou educá-la. Ela se torna poder nas mãos de uma “burguesia” que coloca
a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado à hipótese de que o mundo
dado é razão” (Ibid., p. 215).
31
Kafka, 2011, p. 29.
Dagmar Manieri • 111

fica evidente na atitude do explorador: ele “tinha pouco interesse pelo


aparelho”. Assim, o turista é mostrado com flagrante “indiferença” ante
o aparelho de suplício. Historicidade que mostra os novos tempos, ou
seja, uma época na qual não há mais a admiração ante os antigos méto-
dos de tortura.
Já o oficial, um patriota, surge como um homem associado à antiga
forma de poder; ele se sente ameaçado por permanecer fiel às antigas
concepções. Eis a escritura que a literatura percorre em sua figura: “(...)
na sua farda justa, própria para um desfile, carregada de dragonas,
guarnecida de cordões, (...)”. 32 Escritura que inscreve o sujeito; nele, a
farda indica o poder em sua função no sistema penal. Ele é adepto do
velho comandante, já falecido. Como um tipo de rei na época arcaica na
Grécia antiga, o antigo comandante concentrava as funções de juiz, sol-
dado, construtor, químico, desenhista. Curiosa descrição de um chefe
que, saberemos no final do conto, é cultuado (como um messias) por um
pequeno grupo de soldados. O pequeno círculo de seus adeptos crê que
este “homem extraordinário” ressuscitará para trazer a boa justiça, no-
vamente.
O aparelho elaborado pelo velho comandante é um complexo ins-
trumento de suplício. Aqui, a justiça não é questionada; o condenado
(que será executado) é mostrado como um homem que não respeitou a
hierarquia. Daí a condenação: “Nossa sentença – afirma o oficial – não
soa severa. O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu
corpo com o rastelo. No corpo deste condenado, por exemplo – o oficial
apontou para o homem -, será gravado: Honra a teu superior!”. 33

32
Ibid., p. 32.
33
Ibid., p. 36.
112 • Problemas de hermenêutica radical

Estamos diante de um poder despótico. O oficial impõe a sentença


sem consideração à “humanidade” do condenado: ele não está consci-
ente do por que está sendo condenado e, nem mesmo, que foi
condenado. Só conhecerá a sentença da punição na medida em que já
está no processo do maquinismo: “O senhor [aqui o oficial indica para o
explorador] viu como não é fácil decifrar a escrita com os olhos; mas o
nosso homem [o condenado] a decifra com seus ferimentos”. 34
Na colônia penal o personagem central é o oficial. Se a sequência
narrativa segue o explorador, o conceito estético é identificado na fi-
gura do oficial. Como conceito, ele nos mostra as relações de poder na
colônia. Kafka pretende iluminar as zonas cinzentas do terror judicial.
Por que se narra as complexas engrenagens do aparelho? Este último é
um signo de dominação do antigo poder judicial.
Presencia-se, aqui, um sentido inverso à interpretação de Michel
Foucault que concebe o poder em um processo cada vez mais sutil, efi-
caz. Em Kafka os micropoderes também estão presentes nos regimes
totalitários (como em O castelo, por exemplo) ou no terror judiciário em
Na colônia penal. O oficial representa o poder soberano, agente da pró-
pria desumanização. Com a derrocada de seu plano, ele se entrega como
objeto de sacrifício ao seu próprio instrumento de suplício. Assim, o ter-
ror da punição apresenta outra face: o sacrifício que assinala o
messianismo reacionário. O oficial é um personagem que adere a esse
messianismo e não se adapta aos novos métodos; ele não se reconhece
em uma época na qual o condenado é concebido nos quadros do huma-
nismo.

34
Ibid., p. 44.
Dagmar Manieri • 113

O oficial tem um fervor na justiça do suplício incorporada no apa-


relho. A literatura de Kafka descreve com precisão seu funcionamento.
É a literalidade que descreve o signo de dominação:

Quando o homem está deitado na cama e começa a vibrar, o rastelo baixa


até o corpo. Ele se posiciona automaticamente de tal forma que toca o corpo
apenas com as pontas; quando o contato se realiza, este cabo de força fica
imediatamente rígido como uma barra. E aí começa a função. 35

Nela há uma inversão entre o humano e a técnica; o oficial crê que


a técnica (maquinismo judicial) irá reparar a injustiça, representada
pela quebra da norma. Na literatura de Kafka a saída (para o huma-
nismo) não se transforma em uma mímesis. Esse “pessimismo” é um dos
elementos que explica a rejeição de sua estética pelos marxistas mais
ortodoxos, como Lukács, por exemplo. De forma específica em Na colô-
nia penal o conceito estético ilumina o regime de terror, bem como o
confronto entre duas formas de punição. Kafka utiliza-se do oficial para
nos mostrar o discurso do novo poder modernizador.
Através do oficial, fica-se consciente que há uma disputa na colô-
nia. O velho modelo punitivo, identificado no oficial, está ameaçado pela
modernidade do novo comandante. O oficial é astuto diante das relações
de poder; ele percebe as estratégias do novo comandante na tentativa
de desestabilizar o antigo regime punitivo: “Agora ele próprio adminis-
tra o fundo para a máquina: se alguém solicita uma correia nova, é
exigida a que rebentou como prova, a nova só vem em dez dias, mas é de
qualidade inferior e não serve para quase nada”. 36 Também ao nível dis-
cursivo o oficial apreende a ideologia operada pelo novo comandante.

35
Ibid., p. 40.
36
Ibid., p. 46.
114 • Problemas de hermenêutica radical

Haverá uma espécie de assembleia com a presença de vários convidados.


O oficial pressente que este evento será a oportunidade para que o novo
comandante lance sua ideia (de se abandonar o aparelho como forma
punitiva); para isto, ele ampara-se na figura do explorador. Eis como o
oficial localiza a ideologia no novo comandante, ao simular sua perfor-
mance diante da assembleia:

Um grande pesquisador do ocidente [aqui, o novo comandante se refere ao


explorador], encarregado de examinar o procedimento judicial em todos os
países, acabou de declarar que o nosso antigo procedimento é desumano.
Depois do juízo de uma personalidade como essa, naturalmente, não me é
mais possível tolerar este procedimento. 37

Passagem que identifica o discurso que justifica os novos modos de


judicialização. Neste caso, o explorador surge (no discurso do novo co-
mandante) como um “grande pesquisador do ocidente”. Se seguirmos a
interpretação de Michel Foucault, esse “grande pesquisador” corres-
ponde a um deslocamento do discurso da justiça. Não mais o poder que
age sobre os corpos; agora está em curso “uma tecnologia dos poderes
sutis, eficazes e econômicos, em oposição aos gastos suntuários do po-
der dos soberanos”. 38 Prática judiciária modernizada e rede discursiva
se articulam na nova ordem de punição.
Com essa nova ordem do poder judiciário ingressa novos atores. O
objetivo da punição não é mais produzir o exemplo (do poder soberano)
em corpos mutilados; agora, com o auxílio da ciência, procura-se a gê-
nese de corpos dóceis. Novas especialidades se somarão ao complexo das
penas e o próprio trabalho se transforma em instrumento de

37
Ibid., p. 53.
38
Foucault, 1986, p. 93.
Dagmar Manieri • 115

“recuperação”. Nas palavras de Foucault: “O trabalho pelo qual o conde-


nado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em
operário dócil”. 39 O que está em jogo, neste instante, é o que Foucault
denomina de “poder normalizador”. 40 Assim, deve haver um saber que
justifica e auxilia a justiça em sua função de julgar e condenar. Foucault
localiza uma rede de discursos “científicos” que são indispensáveis às
novas penalidades: “A partir do momento em que se suprime a idéia de
vingança, que outrora era atributo do soberano, do soberano lesado em
sua própria soberania pelo crime, a punição só pode ter significação em
uma tecnologia de reforma”. 41
Compreendemos melhor – com a interpretação de Foucault sobre
o processo da prisão – a expressão do novo comandante da colônia penal
ao nomear o explorador como um “grande pesquisador”. No humanismo
moderno, saber e poder estão integrados. Na expressão de Foucault,
“não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o
saber não engendre poder”. 42
Em Na colônia penal a escritura surge em seu momento extremo.
Ela se encontra na pele do condenado e seus ferimentos correspondem
ao próprio rastro do poder. Ela também se extrema na dimensão subje-
tiva: o condenado passa a ter uma admiração pela máquina. O veredicto
de sua falta será gravado em sua pele pelas agulhas da máquina: “Honra
o teu superior”. Nas palavras do oficial, “ele vai experimentá-la na

39
Ibid., p. 217.
40
“Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do “assistente-social”-juiz;
todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete
o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos. A rede carcerária,
em suas formas concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância,
observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador” (Ibid., p. 266).
41
Foucault, 1979, p. 138.
42
Ibid., p. 142.
116 • Problemas de hermenêutica radical

própria carne”. 43 Na concepção do oficial, a noção de “culpa” é unilateral:


o poder da colônia possui o direito exclusivo do julgamento. O oficial
pronuncia a sentença: ele é o juiz supremo.
São doze horas de suplício; nas primeiras seis horas, o condenado
sofre as dores. É neste momento que se insere uma “papa de arroz” para
ele se alimentar. Na descrição do oficial, percebem-se os diversos deta-
lhes do suplício:

Só na sexta hora ele (condenado) perde o prazer de comer. Nesse momento,


em geral eu me ajoelho aqui e observo o fenômeno. Raramente o homem
engole o último bocado. Apenas o revolve na boca e o cospe no fosso. Preciso
então me agachar, senão escorre no meu rosto. Mas como o condenado fica
tranquilo na sexta hora! 44

O soldado que auxilia a execução faz amizade com o condenado. Ao


saber da opinião do explorador (que se opõe ao sistema de suplício), o
oficial liberta-o: agora ele mesmo irá se colocar como objeto de suplício.
Nas palavras do narrador, “o condenado ria sozinho”. O condenado es-
tava surpreso diante da reviravolta da execução, já que em seu lugar é o
próprio oficial que se prepara para ser supliciado. Mas há também outra
reviravolta, pois o condenado passa a admirar o maquinismo:

O condenado era o mais animado, tudo ma máquina o interessava, ora ele


se abaixava, ora espichava o corpo, o indicador continuamente esticado
para mostrar alguma coisa ao soldado. 45

43
Kafka, 2011, p. 36.
44
Ibid., p. 44.
Ibid., p. 65. Essa estranha admiração de um ser social absorvido pelo poder heterônomo é apresentada
45

por Hannah Arendt em um exemplo concreto do nazismo alemão. Ela narra o caso de uma mulher da
Baviera (ela extrai esse exemplo de Friedrich Reck-Malleczewen, em Diários de um homem desesperado).
Em Königsberg, em janeiro de 1945, a cidade está próxima da invasão soviética. Diante do apelo para
Dagmar Manieri • 117

A máquina havia se tornado objeto de fascínio por parte do conde-


nado: “(...) as engrenagens literalmente o fascinavam, (...)”. 46 Aqui, Kafka
nos indica a extrema forma de dominação. O objeto de suplício se trans-
forma em algo belo. Mas, por que a fascinação? O próprio condenado
havia perdido a autonomia: ele introjetou o tecnicismo da justiça (hete-
rônoma) em seu Eu. Por isso em Na colônia penal não é incorreto afirmar
que o conto representa uma metáfora do totalitarismo. Ao se estudar os
vários aspectos deste regime de terror, percebe-se (no conto de Kafka)
uma antecipação dos horrores perpetrados por esta espécie de tirania
moderna. No terror da época de Stálin (ou Hitler), os elementos dessa
configuração política podem ser encontrados no conto de Kafka. Obser-
var esta passagem de Bukharin ao caracterizar o fascismo:

O fascismo (...) criou um “Estado total” onipotente, que tudo desumaniza,


exceto os líderes e os “líderes supremos”. No caso, a despersonalização das
massas está em proporção direta à glorificação do Líder. (...). Assim as pes-
soas, em sua grande maioria, transformam-se em meros funcionários
obrigados a uma disciplina imposta em todas as áreas da vida. (...) Três nor-
mas éticas dominam tudo: a devoção à “nação” ou ao Estado, a lealdade ao
Líder e o espírito de quartel. 47

O próprio Bukharin, posteriormente, será uma vítima deste ter-


ror. 48 Mas o que nos interessa nesses regimes é uma espécie de

que ela saia da cidade, a mulher responde: “Os russos nunca vão nos pegar. O Führer nunca vai permitir.
Antes disso ele nos põe na câmara de gás” (Apud Arendt, 2013, p. 127).
46
Ibid., p. 66.
47
Apud Cohen,1990, p. 407, 408.
48
Em muitos casos de execução, o poder punitivo forçava uma falsa confissão. No exemplo de Bukharin,
a confissão (que Stephen Cohen denomina de “bizarra confissão”) é a própria expressão de uma fina
ironia. Ele diz que “a confissão do acusado é um princípio medieval de jurisprudência”. Em seguida,
acrescenta: “Confesso-me culpado de (...) todos os crimes cometidos por esta organização contra-
revolucionária, independente de conhecê-los ou não, de ter ou não participado de qualquer ato em
especial” (Apud Cohen, 1990, p. 423).
118 • Problemas de hermenêutica radical

desumanização “sagrada”, ou seja, uma contradição em si inaugurada


por Maquiavel: o terror e o terrível em nome da criação de um bem pú-
blico. 49 Em sua pesquisa, Simon Montefiore acompanhou com atenção o
terror no regime de Stálin. Ele afirma que embora o líder bolchevique
“nunca compareceu a torturas ou execuções”, ele “respeitava seus ver-
dugos”. A execução de presos era a “mais alta medida de punição”,
gravada pelas letras “VMV” ou simplesmente Vishka. Montefiore, poste-
riormente, conclui que “Stálin a chamava [a punição] de “trabalho
negro”, que considerava um nobre serviço do Partido”. 50 Para esses
agentes do terror – por incrível que pareça - em seu íntimo a ato cor-
respondia a uma passagem necessária rumo a um estágio superior.
Neste nível de extremismo a própria razão se aproxima do irraci-
onalismo. O que justificava a prisão e execução dos antigos líderes do
Partido? Montefiore pesquisa nos arquivos desses ex-líderes; entre as
anotações de Vichinski, alude-se a uma fala de Stálin: “Talvez isso se
explique [ou seja, o motivo da punição] pelo fato de que vocês perderam
a fé”. 51 O que se denomina de “fé” se traduz na entrega total às resoluções
do Partido (ou melhor, do grupo ou líder que domina o Aparelho). Nas
palavras de Stálin “há em nosso país semitrotskistas, um quarto de
trotskistas, um oitavo de trotskistas” que auxiliam “sem saber da orga-
nização terrorista, mas simpatizando conosco”. 52 Diante dessas

49
Em uma passagem de O príncipe, Maquiavel comenta sobre o líder político: “Depois de vencerem esses
perigos e passarem a ser venerados, tendo aniquilados os que tinham inveja de suas qualidades, tornam-
se poderosos, seguros, honrados e felizes” (Maquiavel, 2001, p. 26).
50
Montefiore, 2021, p. 231.
51
Apud Montefiore, 2021, p. 244.
52
Ibid., p. 245.
Dagmar Manieri • 119

anotações de Vichinski, Montefiore enfatiza: “Os que não tinham fé cega


deveriam morrer”. 53
No fascismo alemão também se encontra essa amálgama entre re-
ligião e política, acrescentando ainda a dimensão estética. Jeffrey Herf
em estudo sobre o modernismo nazista nos mostra uma estética apro-
priada ao movimento liderado por Hitler. O soldado no campo de
batalha é expresso na imagem da “bela forma”. A estética fascista une o
sacrifício da guerra e o fascínio pela tecnologia. Ernst Jünger foi o inte-
lectual que sintetizou esses elementos em várias obras: Tempestade de
aço (1920); A batalha como expressão interior (1922); Fogo e sangue (1925) e
O trabalhador (1932).
Temos em Jünger um verdadeiro programa estético do regime fas-
cista alemão. Evidencia-se que há um romantismo reacionário que
procura valorizar as “forças primordiais da vontade”. 54 Na interpretação
de Herf, trata-se de um modernismo reacionário que enaltece os avan-
ços tecnológicos (rádio, avião, tanque de guerra, as armas, máquinas
industriais, automóvel). Se o modernismo capitalista potencializa o ci-
dadão (consumidor) da sociedade civil, o modernismo nazista propunha
um “homem novo”. Este novo ser social sai renovado da guerra. Em uma
passagem de 1918 (em plena Primeira Guerra Mundial), Jünger comenta:
“Assisti à matança como se estivesse em um camarote de teatro”. 55 A
guerra para ele se transforma em um espetáculo, uma espécie de

53
Montefiore, 2021, p. 245.
54
Aliás, o romantismo conservador que há na estética dos nazistas necessita ser compreendido em uma
corrente mais ampla. O romantismo alemão surge como reação ao Iluminismo francês. Irracional,
vitalista, sensualista, esta estética torna-se complexa na medida em que adquire várias tendências (não
se esquecer do romantismo revolucionário marxista, nas figuras de Benjamin e Bloch). Encontra-se uma
espécie de esteticismo nazista em agentes mais intelectualizados, como no “romantismo de aço” de
Gobbels: “Vivemos em época que é romântica e também de aço, a qual não perdeu a profundidade do
seu sentir” (Apud Herf, 1993, p. 219).
55
Ibid., p. 88.
120 • Problemas de hermenêutica radical

ingresso em uma nova vida: o “batismo de fogo”. Neste mundo mascu-


lino e agônico, a beleza é concebida com um êthos específico, um
indivíduo que não teme a morte:

A “poesia de aço” de Jünger - comenta Herf – concilia a beleza com o mundo


da tecnologia de precisão e do poderio militar, enquanto torna esta estética
masculina distinta daquilo que encara como sensibilidade desprezível, fe-
minina, pacifista. 56

Estranhos caminhos que conduzem a um romantismo desumani-


zado. Os escritos de Jünger sintetizam os sentimentos presentes em
vários grupos sociais: a classe média atemorizada com a inflação e a
crise econômica; ex-militares ressentidos da derrota de 1918; técnicos e
engenheiros que apostavam na tecnologia. Assim, Hitler não pregava no
deserto; a Alemanha da República de Weimar não empreendeu a revo-
lução socialista (como na Rússia de 1917), muito menos conseguiu
estabilizar o regime liberal-democrático. É dessa forma que o Partido
Nacional-Socialista surge como uma espécie de terceira via (com força
eleitoral, inclusive) nos primeiros anos da década de 1930. 57 Ao se conhe-
cer a forma como o nazismo surge na paisagem política alemã,
compreende-se melhor o conto de Kafka. A ficção estética na forma de
estranhamento e exagero se concretiza na história da Alemanha nos
anos 1930. 58 Nas palavras de Herf: “prazer”, “horror” e beleza se

56
Herf, 1993, p. 93.
57
Eis os dados eleitorais da Alemanha, antes da ascensão de Hitler: “Em julho de 1932, os social-
democratas perdiam 3% nas eleições legislativas em relação a 1930. Os comunistas ganhavam um
pouco mais de 1%. Os nazistas passavam de 18,3% para 37,3% e seu partido se tornava o mais forte no
Parlamento” (Richard, 1988, p. 115).
58
Sérgio Kokis não deixou de notar essa similitude entre a ficção kafkaniana e a vida cotidiana: “Em Kafka,
as coisas são símbolos para a vivência pessoal do leitor, que era ele mesmo, não tendo nunca um
significado delimitado e preciso. Mas apresentam-se sempre como uma porta aberta à reflexão e à
tomada de consciência de uma situação vital” (Kokis, 1967, p. 63).
Dagmar Manieri • 121

imiscuem em “estranhas elucubrações mentais”. A beleza desumani-


zada do maquinismo de A colônia penal é similar à beleza da estética
fascista. Herf nos apresenta de forma clara a forma como os nazistas
(principalmente em Jünger) estetizaram a violência. Esta última é a
prova que realça a beleza “amoral” (nas palavras de Herf).
Na literatura de Kafka a ficção estética, ou seja, a dessemelhança
(segundo Jacques Rancière) está no terror representado pela punição
unidimensional. Trata-se de um poder que não é questionado (com ex-
ceção de alguns heróis) e que não possui o anverso. Em O castelo, a
contratação do agrimensor K. tinha sido um erro por parte dos funcio-
nários do castelo. A região não necessitava de tal profissional; mas o
sistema de poder do castelo não admite o erro. Diante deste “problema”,
o poder do castelo vai utilizar K. em outros serviços, para encobrir o
erro de sua contratação:

Só uma pessoa completamente estranha pode fazer uma pergunta como a


sua [K. havia indagado da possibilidade de ausência de controle por parte
da administração do castelo]. Se existem autoridades de controle? Existem
apenas autoridades de controle. Evidentemente elas não se destinam a des-
cobrir erros no sentido grosseiro da palavra, pois não ocorrem erros, e
mesmo que aconteça um, como no seu caso, quem tem o direito de dizer de
forma definitiva que é um erro? 59

Isso explica o motivo de muitos intérpretes identificarem em


Kafka o escritor que nos adverte sobre os perigos do totalitarismo. Mas,
ao que parece, isto não é correto em sua integridade. Kafka é um escritor
dos micropoderes; ele compartilha com uma espécie de terror gerado

59
Kafka, 2019, p. 78, 79.
122 • Problemas de hermenêutica radical

por poderes obscuros. Esta é sua ficção estética, o exagero que cria a
distância necessária para se gerar o “real” literário.
Nos contos de Kafka sentimos a humanidade em poucos persona-
gens. Mas não é uma humanidade como Ideal, ao estilo Iluminista, nem
mesmo utópica no modelo marxiano. Trata-se de uma humanidade na
própria literalidade; uma forma de linguagem que ilumina os efeitos dos
micropoderes naqueles que foram excluídos. É uma escrita que faz a ge-
ografia da desumanidade na tentativa de se ter outra sensibilidade, já
que os micropoderes interferem nos pequenos detalhes de nossa forma-
ção autônoma. Em Kafka o requinte estético não faz parte da distinção
de uma classe superior (a “comunidade de leitores”); o gosto estético em
Kafka é político em sua essência na medida em que engendra um “olhar”
sobre os problemas da formação humanística. 60
No exemplo de Um artista da fome, notar o intenso historicismo do
conto que concebe o ser humano como um tipo social temporal. Só que
em Kafka, trata-se de uma temporalidade que nos oprime (ela está “rei-
ficada”, como diriam os marxistas). Observar que no início do conto há
um “antes” e o tempo “presente”. O passado surge nesses termos: “os
tempos eram outros”. Kafka nos mostra como o artista da fome cha-
mava a atenção dos espectadores. É neste instante que o narrador volta
ao passado:

Antigamente toda a cidade se ocupava com o artista da fome; a participação


aumentava a cada dia de jejum; todo mundo queria ver o jejuador no

60
Sobre a “comunidade de leitores”, ver especialmente Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano.
Nesta resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, Sloterdijk localiza a tradição da humanitas:
“Encontramos, no núcleo do humanismo assim entendido, a fantasia de uma seita ou clube – o sonho
da predestinada solidariedade dos que foram eleitos para saber ler” (2018, p. 10). Humanitas que se
converte em uma apropriação da literatura por parte da classe dominante. O que antes fora a função
ideológica da religião, agora passa para o setor cultural.
Dagmar Manieri • 123

mínimo uma vez por dia; nos últimos, havia espectadores que ficavam sen-
tados dias inteiros diante da pequena jaula; (...). 61

O artista da fome atraia a atenção do público pelo ineditismo. Como


poderia um ser humano suportar um longo tempo sem se alimentar?
Sua figura também auxiliava para compor o drama encenado no circo:
“(...) aquele homem pálido, de malha escura, as costelas extremamente
salientes, (...)”. 62 O jejuador tinha um empresário; isto já mostra sua im-
portância nesta época em que era famoso. Mas Kafka nos mostra uma
pequena insatisfação no artista: as pessoas não tinham a exata noção de
sua capacidade de jejuar. Por experiência prática, o empresário tinha
consciência de que após os quarenta dias de jejum, os espectadores per-
diam o interesse pelo fenômeno. Daí o por que ter estipulado este prazo
máximo para o jejum. Como o grande público poderia saldá-lo – assim
pensava o jejuador – e, até, glorificá-lo, se era obrigado a interromper
sua “arte”? Eis o que pensa o jejuador: “Por que essa multidão, que fingia
admirá-lo tanto, tinha tão pouca paciência com ele? Se ele aguentava
continuar jejuando, por que ela não suportava isso?”. 63 O público anseia
por um espetáculo da fome, sendo que o ineditismo termina de forma
festiva. No final, o artista se encontra “insatisfeito com o aconteci-
mento”: ele não havia alcançado a glória, como ansiava.
Neste instante, Kafka nos mostra a virada repentina. O grande pú-
blico não sente mais interesse por seu espetáculo; “o mimado artista da
fome se viu um dia abandonado pela multidão ávida de diversão que
preferia afluir a outros espetáculos”. 64 Não se sabe os motivos desta

61
Kafka, 1995, p. 24.
62
Idem.
63
Ibid., p. 27.
64
Ibid., p. 30.
124 • Problemas de hermenêutica radical

transformação no grande público; são novos tempos no qual o artista da


fome é obrigado a se adaptar:

Quem tinha sido aclamado por milhares de pessoas não podia exibir-se em
barracas nas pequenas feiras, e para adotar outra profissão o artista estava
não só muito velho, mas sobretudo entregue com demasiado fanatismo ao
jejum. Sendo assim, demitiu o empresário, companheiro de uma carreira
incomparável, e se empregou num grande circo; para poupar a própria sus-
cetibilidade, nem olhou as condições do contrato. 65

Eis agora o artista em um grande circo. Homem que vive de seu


passado, com seu “nome antigo e famoso”. Percebe-se que o artista da
fome não conhece o “espírito da época”; mesmo avançado em idade, ele
afirma que pode deixar “o mundo de justificado espanto”, algo que pro-
voca risos nos “especialistas”.
Neste novo ambiente circense, o artista (com sua jaula) se localiza
no espaço externo. Ele está ao lado das estrebarias dos animais. Aqui, já
se evidencia sua nova condição ao se igualar aos animais. De certa pers-
pectiva, sua condição é pior ainda que comparada aos animais. O grande
público não compreende mais esta forma de espetáculo. Kafka explica o
motivo: “Não se pode explicá-la para quem não a sente”. 66
No final do conto a tragédia se consuma. O artista prossegue com
o jejum, mas quase ninguém (mesmo os diretores do circo) dá atenção
ao espetáculo. O cartaz ao lado da jaula está apagado; a pequena tabela
que marca os dias de jejum não é mais alterada. O pobre homem ficou
esquecido, ainda jejuando sob uma “palha apodrecida”. Quando ocorre o
falecimento do jejuador, o inspetor indica: “Limpem isso aqui!”. Na

65
Idem.
66
Ibid., p. 33.
Dagmar Manieri • 125

sequência, o narrador comenta que “enterraram o artista da fome junto


com a palha”. 67
Observa-se em Um artista da fome que os personagens não realizam
uma relação definida, humana. Na linguagem hegeliana, a universali-
dade não se realiza, pois não há reconhecimento entre as partes.
Primeiro, o artista da fome não se sente reconhecido em sua glória; se-
gundo, o público em busca de novidades, não concede mais atenção ao
jejuador. Isto nos conduz a um apagamento da universalidade como um
efeito estético. De certo modo este apagamento é uma característica da
literatura de Kafka.
Na literatura kafkaniana o estranhamento corresponde à “pleni-
tude ausente” (nas palavras de Laclau). A totalidade não se consuma;
pelo contrário, temos fragmentos que sinalizam a desumanização dos
personagens. Em Um artista da fome, o protagonista sofre um duplo pro-
cesso de exploração. Em primeiro lugar, ao não ser reconhecido em sua
verdadeira destreza; segundo, o desprezo do público ante a própria
“arte” de jejuar nos novos tempos. Neste caso, há uma ironia de Kafka
ao designar o jejum como arte? Gandhi utilizou o jejum como uma prá-
tica política; já no artista da fome ela é uma técnica, um atributo (dom)
particular. Então não pode ser uma arte; trata-se de um domínio do
corpo que é exposto como espetáculo. Admira-se um além do limite cor-
poral no ato de se abster de alimentos.
Se o tema de Um artista da fome é a relação do “artista” com seu
público, também Josefina, a cantora ou o povo dos camundongos repre-
senta a problemática relação da arte com o público. Em uma
comunidade de camundongos, Josefina é a artista com o dom do canto;

67
Ibid., p. 35.
126 • Problemas de hermenêutica radical

já o narrador corresponde a um camundongo que pertence à comuni-


dade. Ele confidencia: “(...) nossa raça em geral não é amante da
música”. 68 Entre os camundongos há uma “esperteza prática”; por isso o
narrador comenta sobre a “astúcia”. Nesse contexto, o único ser da co-
munidade que aprecia a música é Josefina.
Atentar para o fato de que o narrador representar uma espécie de
intelectual. No decorrer do conto, ele faz uma série de reflexões sobre a
relação da música com sua comunidade. Por isso, em Josefina, a cantora
há um estilo reflexivo. O narrador se interroga sobre a beleza do canto
de Josefina. A comunidade em tempos pretéritos cultivava o canto: “(...)
as lendas falam a esse respeito e foram conservadas inclusive canções,
que naturalmente ninguém mais sabe cantar”. 69 Por isso se desconfia da
existência do canto (como arte) em Josefina; o narrador confidencia de
que pode haver a possibilidade de seu “canto”, no fundo, ser um assobio.
Mas a grande questão se resume, assim: por que sua grande influência?
Isto porque seu canto provoca a admiração dos camundongos. É neste
instante que o narrador inicia a problematização da relação da cantora
com seu público. Ela “não quer ser apenas admirada, e sim admirada
exatamente da maneira definida por ela: só admiração não lhe inte-
ressa”. 70 Desse ponto de vista, a vaidade artística de Josefina é algo
incomum.
Kafka nos mostra a vida insegura dos camundongos: “(...) intran-
quila, cada dia traz surpresas, temores, esperanças e sustos, (...)”. 71 É
neste contexto de necessidade que a arte se esforça por ter seu público.

68
Ibid., p. 37.
69
Ibid., p. 38.
70
Ibid., p. 40.
71
Ibid., p. 41.
Dagmar Manieri • 127

Mas o “povo” não se entrega incondicionalmente à arte de Josefina: o


narrador comenta sobre a “astúcia”. Há um respeito da comunidade
ante o canto; ou mais, uma responsabilidade perante o ser “frágil” e “no-
tável”. Sabe-se que a comunidade “cuida de Josefina à maneira de um
pai que se incumbe do filho”. Mas Josefina pensa o inverso; ela crê que
é ela quem protege o povo. Ante as adversidades, seu canto “expulsa a
desgraça”. De forma intelectualizada, o narrador confidencia que este
efeito artístico no “povo” é uma ilusão. De verdade, uma comunidade
adaptada ao sofrimento “sempre salvou a si própria”. Na reflexão do
narrador, o que explica a admiração do “povo” ante a arte de Josefina
são as condições de vida. Em meio ao perigo constante - como a guerra,
por exemplo - a paz é bem-vinda antes da luta. Assim, não é o canto em
si que explica a admiração do “povo”, mas este momento de paz:

Nessas ocasiões certamente não suportaríamos um verdadeiro artista do


canto (se se encontrasse algum entre nós) e recusaríamos a uma só voz a
insensatez de uma apresentação desse tipo. Josefina seja poupada de saber
que o fato de a escutarmos é uma prova contra o seu canto. 72

Para o narrador, Josefina não é “uma artista do canto”. Neste povo


a infância quase não existe; nesta passagem, Kafka nos mostra a impor-
tância da cultura. Na comunidade dos camundongos não há a
transmissão cultural: “Nossa vida é de tal ordem que uma criança, assim
que consegue andar um pouco e discernir alguma coisa no meio que a
circunda, precisa também cuidar de si mesma como um adulto; (...)”. 73
Necessidades prementes e perigos iminentes impedem que a in-
fância tenha o momento próprio de assimilação cultural. O narrador

72
Ibid., p. 47.
73
Ibid., p. 48.
128 • Problemas de hermenêutica radical

comenta que logo “as crianças” são jogadas na “luta pela existência”. A
isso se acrescenta a alta taxa de fertilidade: uma geração logo empurra
a outra, assim “as crianças não tem tempo de ser crianças”. 74 É desta
forma que o narrador, ele mesmo um camundongo, expõe a vida cotidi-
ana de um povo que não educa as crianças. Ele afirma: temos uma
“infantilidade inextinguível, inerradicável” e “agimos muitas vezes de
maneira completamente tola”, como no mundo infantil. Assim, este úl-
timo se imiscui com o mundo dos adultos: temos uma “alegria infantil”,
comenta o narrador.
Sem infância, a fase adulta está impregnada de uma espécie de ve-
lhice prematura. Por esta característica do povo dos camundongos, o
narrador conclui sobre a “amusicalidade” na comunidade: “Somos ve-
lhos demais para a música; sua excitação, seu enlevo, não se ajustam à
nossa gravidade e é com cansaço que nós a rejeitamos; recolhemo-nos
ao assobio, para nós a medida certa é um pouco de assobio aqui e ali”. 75
Cansaço de que? Observar que se trata de uma comunidade ativa e que
não conhece a face lúdica da vida. Daí a dificuldade em se identificar a
ação cultural na prática de Josefina: ela seria assobio ou canto? Na ver-
dade, o narrador afirma que para o povo é indiferente esta distinção.
Mesmo se for um canto, isto não incomodará a comunidade: o canto,
como arte (música) se reduzirá “a mais completa insignificância; (...)”. 76
Quando ocorrem as apresentações de Josefina, são os mais jovens
que apreciam seus sons; a multidão já se “recolheu-se em si mesma”.

74
A descrição do narrador, ainda esclarece esses detalhes: “Não temos escolas, mas de nosso povo
jorram, em intervalos brevíssimos, os bandos infinitos dos nossos filhos, chiando ou pipilando
alegremente enquanto ainda não sabem assobiar, rodando ou, graças à pressão, rolando
continuamente enquanto ainda não sabem andar, arrastando atabalhoadamente tudo por força da sua
massa enquanto ainda não podem enxergar – nossos filhos!” (Ibid., p. 48).
75
Ibid., p. 49.
76
Ibid., p. 50.
Dagmar Manieri • 129

Observar o fechamento do povo dos camundongos para o instante mu-


sical. Kafka introduz a cultura musical em um povo guerreiro e ativo;
isto quer dizer que “nas escassas pausas entre as lutas, o povo sonha”.
Mas não em um sentido cultural; trata-se de um sonhar que auxilia no
descanso. No fundo a cultura se transforma em “desassossego”, nas pa-
lavras do próprio narrador.
Assim, o canto de Josefina torna-se expressão da própria vida dos
camundongos. Ela não se diferencia da “infância pobre e breve”, bem
como de uma “vida ativa”. Daí o narrador concluir que a performance de
Josefina se tratar de um assobio:

O assobio é a língua do nosso povo, só que alguns assobiam vida inteira e


não o sabem; aqui porém o assobio está liberado das cadeias da vida cotidi-
ana e nos liberta também por um curto espaço de tempo. É evidente que não
iríamos perder essas apresentações. 77

Há um grupo de aduladores de Josefina; mas a opinião deles não


impede o julgamento sobre o perigo da ação cultural. O narrador co-
menta que certa vez a apresentação da artista foi interrompida
“inesperadamente pelo inimigo e vários dos nossos tiveram que perder
a vida”. Nesse mundo ameaçador, a prática de Josefina tem um limite
fixo. Aliás, Josefina é compreendida como um ser privilegiado, já que
possui a liberdade que não é permitida aos outros membros da comuni-
dade. Na verdade, sua liberdade “contraria as leis”. Dessa forma, como
Josefina compreende este privilégio que seu povo lhe concede? Ela
afirma que o povo não a entende, “[ele] admira impotente a sua arte,
não se sente digno dela, (...)”. 78 Um pouco semelhante ao conto Um artista

77
Ibid., p. 51.
78
Ibid., p. 52.
130 • Problemas de hermenêutica radical

da fome, arte e público não estão na mesma sintonia, restando a frus-


tração do artista.
Neste instante do conto, Kafka empreende uma reflexão sobre a
natureza da arte e sua relação com a vida prática. Algo que nos faz lem-
brar os comentários de Hannah Arendt sobre a política na Atenas
antiga:

Josefina aponta, por exemplo, que o esforço do trabalho prejudica sua voz,
que na verdade ele é pequeno em comparação com o esforço do canto, mas
tira-lhe a possibilidade de descansar o suficiente depois e de renovar as
energias para um novo recital; com isso ela tem que se esgotar por completo
e nessas circunstâncias não pode nunca atingir o seu rendimento máximo. 79

Mas o povo não consente esta liberdade excessiva que almeja Jose-
fina. O narrador assinala que, de verdade, a cantora deseja o
reconhecimento por sua arte. A veneração do povo é algo honesto; daí a
conclusão de que o reconhecimento ser “tão desmedido”. Parece estar
na própria natureza da artista essa exigência: é esta a perspectiva do
narrador. Muitos dizem que ela está envelhecendo, contudo o narrador
comenta que é a própria singularidade de Josefina:

Para ela não existe nem envelhecimento nem debilitação da voz. Quando
exige alguma coisa, não é levada a isso por coisas externas, mas por uma
lógica interna. Ela almeja a coroa máxima não porque no momento esta se
entre um pouco mais baixo, mas porque é a mais alta de todas; se estivesse
no seu poder decidir, ela a penduraria mais alto ainda. 80

Aqui, o narrador identifica as relações de poder. Josefina objetiva o


reconhecimento, mas não só através de seu canto. Para tanto ela utiliza

79
Idem.
80
Ibid., p. 55.
Dagmar Manieri • 131

de seus aduladores para promover ideias sobre sua capacidade de gerar


alegria cultural. É um tipo de prazer “no sentido das exigências dela”.
Um exemplo dessa forma de “manipulação” é quando ela comenta que
vai “encurtar os floreios”. O povo não percebe esta estratégia, pois tudo
parece como antes. Essas estratégias de Josefina não causam efeitos,
pois “o povo faz ouvidos moucos a todas essas explicações, decisões e
contradecisões”. O narrador enfatiza que os camundongos representam
“um povo de trabalhadores” e o fato da artista encurtar as canções, para
eles, nada significa.
Josefina, assim, comporta-se como uma criança. Confidencia seu
cansaço, fraqueza e mau humor. O grupo de seus aduladores implora
para que ela cante. A última novidade das afetações da artista está em
sua ausência: por isso a conclusão do narrador de que ela é uma “esperta
criatura”. Ele interroga: por que ela se esquiva de seu canto? Ela já havia
conquistado o poder “sobre os corações” dos camundongos. Mesmo as-
sim, seu desaparecimento é sentido como uma perda: “Sem dúvida não
será fácil para nós; como serão possíveis as assembleias em total mu-
dez?”. 81 Aqui, transparece um desenvolvimento cultural entre os
camundongos já que o povo sente a necessidade da música. Mas eis que
o narrador nos faz lembrar que se trata do mundo animal: “(...) possi-
velmente, portanto, não sentiremos muita falta, (...)”. 82 Assim, não há o
salto cultural propiciado pela arte: ele só é possível com o auxílio da his-
tória. O narrador “intelectual” nos lembra de que o povo não cultiva a
história e Josefina, assim como seus irmãos, logo estará esquecida.

81
Ibid., p. 58.
82
Idem.
132 • Problemas de hermenêutica radical

Este belo conto de Kafka se equipara – com as devidas proporções


– ao mito de Protágoras. Ele indica a importância da cultura, para além
da vaidade do artista. 83 É a própria história concebida como o funda-
mento da cultura, ou seja, um campo de perpetuação na qual se preserva
um bem inventado e reconhecido. O artista da fome e Josefina são dois
contos que têm a arte como tema. No primeiro, há o questionamento
sobre algumas técnicas (o jejum) que não podem ser consideradas como
pertencentes à arte; no último, a própria reificação da prática artística
no instante em que há uma dissociação entre intenção e efeito da ação
cultural. Dois temas complexos do mundo cultural e que Kafka encena
em sua literatura.
Independente de suas várias definições – segundo os autores e suas
respectivas áreas – a cultura pode ser concebida como uma espécie de
bem para a comunidade. Logo no início de A ideia de cultura, Terry Ea-
gleton acentua: “Nossa palavra - ele se refere à cultura - para a mais
nobre das atividades humanas, assim, é derivada de trabalho e agricul-
tura, colheita e cultivo”. 84 Esse bem cultural, de certa forma, é
preservado pela tradição e na prática educativa. Trata-se de uma cria-
ção humana que serve para gerar um bem-estar. A domesticação dos
animais e a conquista do fogo propiciaram o sedentarismo e a formação
das cidades. Desde então, o ser humano vive em um ambiente cultural,
ou melhor, não há como realizar a separação entre o “ser humano” e a
“cultura”. A própria linguagem é um produto cultural e expressa o grau

83
Tzvetan Todorov nos apresenta uma bela reflexão sobre a importância da arte: “Por isso, incumbe ao
indivíduo de superar o peso das antigas maneiras de pensar e ver, para descobrir soluções inéditas;
compete-lhe analisar a condição humana com novo olhar, impelindo mais longe o trabalho do espírito,
ou seja, aquilo que Wilhelm von Humbold designava por Bildung ou formação espiritual do indivíduo”
(2010, p. 51).
84
Eagleton, 2011, p. 9, 10.
Dagmar Manieri • 133

das interações humanas. Dessa forma, “a cultura é uma questão de au-


tossuperação tanto quanto de autorrealização”. 85
Quando o coro em Antígona, de Sófocles, descreve o ser humano,
não deixa de indicar a cultura como elemento para o desenvolvimento:
“Há muitas maravilhas, mas nenhuma é tão maravilhosa quanto o ho-
mem. (...) [Ele] exaure a terra eterna, infatigável, deusa suprema,
abrindo-a com o arado em sua ida e volta, ano após ano, auxiliado pela
espécie equina”. 86 Aqui se presencia no poeta Sófocles a capacidade do
ser humano em criar cultura. Sófocles comenta que o ser humano é “su-
til de certo modo na inventiva”. 87 Se essa definição de cultura nos conduz
à própria definição de ser humano, como compreender o jejuador como
um ser cultural? Trata-se de uma técnica (ou dom natural) que infringe
um dano ao corpo. Se na tradição hindu o jejum faz parte de um com-
plexo sistema religioso, no conto de Kafka ela se transforma em um
dano que produz admiração. Esta técnica se transforma em espetáculo
sem a promoção de um bem. O jejuador, além de sobreviver desta téc-
nica, anseia por honra. Mas não se trata de um mérito que será
compartilhado pela comunidade. O próprio espetáculo possui a carência
estética, já que seu efeito é produzir a consciência dos limites humanos.
O jejuar não é uma prática cultural porque seu efeito não produz um
compartilhamento de um bem:

Pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração nem por isso
constituem uma cultura; elas o fazem somente quando começam a

85
Ibid., p. 15.
86
Sófocles, 1990, p. 215.
87
Idem.
134 • Problemas de hermenêutica radical

compartilhar modos de falar, saber comum, modos de proceder, sistemas


de valor, uma auto-imagem coletiva. 88

Observar que na temporalidade do conto o novo público não sente


mais a atração por esta forma de espetáculo (jejum). Mesmo nos velhos
tempos, o jejuador compartilha da ilusão sobre seu talento. Mas não se
trata de uma admiração (do público) cultural; a atração do público é um
espanto ante os limites do corpo humano. O espanto pode surgir ao ad-
mirarmos a tragédia; nela não há o belo, mas uma espécie de
profundidade na qual desaparece a imagem do homem. Trata-se da
consciência de Macbeth, personagem de Shakespeare. No transcorrer
da ação terrível, o próprio Macbeth se admira ante seu ato: “Neste mo-
mento a natureza é como morta em metade do mundo”. 89 Ao observar
suas mãos sujas de sangue, o personagem conclui: “Triste espetáculo,
este!”. 90 Macbeth sente a inquietação de saber que ultrapassou o limite
suportável do humano. Como punição pela perda da inocência ele pres-
sente: “Macbeth não dormirá mais nunca”. 91 Aqui temos o exemplo do
espanto diante de algo grandioso, mas desumano.
Já o sublime é o sentimento de se estar diante de algo grandioso e
belo. Um céu estrelado, uma portentosa cachoeira, a vastidão do mar:
trata-se de um belo descomunal que provoca a admiração ao sublime.
Em Kant, este “sentimento sublime” é denominado de entusiasmo. Jean-
François Lyotard em sua interpretação do entusiasmo kantiano retoma
algumas citações deste último para comprovar esta forma extrema de

88
Eagleton, 2011, p. 59.
89
Shakespeare, 1997, p. 33.
90
Ibid., p. 35.
91
Ibid., p. 29.
Dagmar Manieri • 135

sublime. Nesta experiência singular, a “présentation” é “suprêmement pa-


radoxale”; ela é, no fundo, uma “présentation de l’infini”. 92
Em Josefina, a arte do canto se depara com uma enorme dificuldade
ao se converter em cultura. São as condições práticas da comunidade
que impedem que o belo se converta em aprimoramento do mundo sen-
sível. Ao não se realizar a primeira passagem para o nível cultural, isto
explica a dificuldade em se compreender a prática de Josefina. O próprio
narrador, como um membro da comunidade, não diferencia o canto em
relação ao assobio. Sabe-se que a comunidade em tempos pretéritos cul-
tivava a música; mas isto se perdeu, fato que comprova a ausência da
tradição/educação que preserva um bem. Então, houve em tempos pre-
téritos o salto cultural, mas isto não foi preservado (ou incorporado)
como cultura.
O tema do salto cultural foi estudado pela antropologia, bem como
pelo fundador da psicanálise, Sigmund Freud. 93 Em Totem e tabu o que
instaura o ser social são as interdições. É nesse sentido que para Freud
a sublimação cultural está associada às neuroses. 94 Em determinado mo-
mento da obra, Freud se depara com a grande questão do primeiro salto
cultural: “De onde vem, em última análise, o horror ao incesto, na qual
se deve reconhecer a raiz da exogamia?”. 95 Na tese de Freud, foi a

92
Apud Lyotard, 1986, p. 51.
93
No campo filosófico, Martin Heidegger não deixou de pensar o saldo cultural: “Pois, se de um lado, ele
[reino animal] nos é o mais próximo, de outro lado, está separado de nossa Essência ec-sistente por um
abismo. (...) Porque os vegetais e os animais, embora se achem numa tensão com seu ambiente, nunca
estão postos livremente na clareira do Ser – e só essa é “mundo” -, por isso lhes falta a linguagem (2009,
p. 44).
94
“As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções
sociais que são a arte, a religião e a filosofia, e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-
se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva,
a caricatura de uma religião, e um delírio paranóico, de um sistema filosófico” (Freud, 2015, p. 72).
95
Ibid., p. 125.
136 • Problemas de hermenêutica radical

interdição sobre a antiga liberdade sexual que funda o ser social. Aqui,
ele lança a ideia da associação do totemismo com a economia libidinal.
Se o animal totêmico é o pai e, com isso, surge a proibição de “não ter
relações sexuais com uma mulher do totem”, conclui-se que as duas
transgressões de Édipo (que assassinou o pai e casou-se com a própria
mãe) estão presentes nos “desejos primordiais da criança”. Eles formam
“o núcleo de talvez todas as psiconeuroses”. 96
Independente da questionável tese de Freud, o importante é a pro-
blemática do salto cultural primordial que instaura o ser social. Na tese
de Freud a moralidade inicial se explica através de “dois tabus do tote-
mismo”. Se os irmãos (em revolta) assassinam o pai, há a necessidade da
proibição do incesto: “Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas
eram rivais uns dos outros no tocante às mulheres”. 97 Surge uma espécie
de pacto entre os irmãos ao se instituir a proibição do incesto e salvar a
nova organização social. Sem dúvida uma conquista cultural, mas que
tem um custo para a formação da psique:

A sociedade repousa então na culpa comum pelo crime cometido; a religião,


na consciência de culpa e no arrependimento por ele; e a moralidade, em
parte nas exigências dessa sociedade e em parte nas penitências requeridas
pela consciência de culpa. 98

O salto cultural é uma conquista em proveito da “consciência de


culpa”. No conto de Kafka é esta instauração da cultura que é impedida
pela própria circunstância de vida da comunidade. O conto é uma lição
sobre os perigos que rondam a arte. Seu reconhecimento estético (algo

96
Ibid., p. 136.
97
Ibid., p. 150.
98
Ibid., p. 152.
Dagmar Manieri • 137

que parece não ocorrer na comunidade de Josefina) implica que a arte


“modela [o] material local em alguma coisa de um teor mais amplo (...)”. 99
No conto, a mímesis (como a dimensão do possível) implica o reconheci-
mento da arte como canto e não como assobio. Isto seria “acolher a obra
como cultura elevada”. 100 Eis a função da cultura: Ela “designa um vín-
culo entre uma civilização específica e a humanidade universal”. 101 Em
Todorov, a arte pode contribuir para a consecução da civilização que
consiste “no reconhecimento efetivo dos outros em sua plena humani-
dade”. 102 São reflexões de Terry Eagleton e Tzvetan Todorov que servem
para o conto de Josefina, a cantora. Trata-se, no exemplo de Kafka, de
uma prática literária que desenha os contornos da noção de cultura. A
ficção estética na imagem da animalidade (os camundongos) cria, de
forma necessária, o distanciamento e a estranheza que realçam o valor
da cultura. 103
É neste ponto específico que se pode inserir a noção de Si-mesmo:
o despertar de formas de consciência (estética, histórica) que afetam o
Si-mesmo. Em Paul Ricoeur, o despertar do Si-mesmo é pensado na re-
lação com a identidade. O Si-mesmo (ipse) em Ricoeur corresponde a
uma identidade narrativa: “A ipseidade pode escapar ao dilema do
Mesmo e do Outro na medida em que sua identidade repousa numa es-
trutura temporal conforme ao modelo de identidade dinâmica oriundo
da composição poética de um texto narrativo”. 104 Observar que o Si-

99
Eagleton, 2011, p. 83.
100
Idem.
101
Idem.
102
Todorov, 2010, p. 54.
“Dizemos que, para Kafka, a essência animal é a saída, a linha de fuga, mesmo no local ou na gaiola.
103

Uma saída, não a liberdade. Uma linha viva de desaparecimento e não um ataque” (Deleuze; Guattari,
1975, p. 63, 64). Tradução de Dagmar Manieri.
104
Ricoeur, 2010, p. 419.
138 • Problemas de hermenêutica radical

mesmo apresenta como potência formativa a “composição poética” da


narratividade. Se a “identidade abstrata do Mesmo” é mais estável, a
identidade do Si-mesmo inclui a “mudança, a mutabilidade, na coesão
de uma vida”. Ao se constituir o Si-mesmo, o sujeito transforma-se em
“scriptor de sua própria vida, (...)”. 105 Ricoeur confidencia sua antiga hi-
pótese de que “o Si do conhecimento de si não é no eu egoísta e
narcísico”:

Ora, uma vida examinada [“o Si do conhecimento de si é fruto de uma vida


examinada”] é, em grande medida, uma vida depurada, clarificada pelos
efeitos catárticos das narrativas tanto históricas como fictícias veiculadas
por nossa cultura. A ipseidade é portanto a de um Si instruído pelas obras
da cultura que ele aplicou a si mesmo. 106

Palavras importantes de Ricoeur e que compartilham de nossa


concepção sobre a função da cultura no despertar do Si-mesmo. Aqui,
reside, a importância da compreensão hermenêutica, pois para além da
“objetividade”, há o nascimento da simpatia. No exemplo da arte trágica
(aqui, pensamos nas representações trágicas em torno do mito de
Édipo), isto não invalida o reconhecimento do possível humanismo,
sempre presente na vida alheia e traduzida na interrogação: por que não
foi possível? É dessa forma que a qualidade da compreensão aprofunda
cada vez mais a dimensão humana do Si-mesmo. Por isso, este último
vive da cultura, elemento que impede expressões como “a vida é assim
mesmo...”. A literatura de Kafka é um bom exemplo que nos mostra
como o ser humano, enredado em micropoderes, regride a dimensão do
Si-mesmo. Maleável e aberto às múltiplas influências, o Si-mesmo é a

105
Idem.
106
Idem.
Dagmar Manieri • 139

grande riqueza do mundo subjetivo. Seu aprofundamento compreende


o humanismo possível; sua regressão também mostra o triste exemplo
do retorno ao mundo da phýsis, espaço da necessidade e da força. 107 O
que diferencia o Si-mesmo em relação ao Eu é o compromisso. 108 Na me-
dida em que o Si-mesmo é desperto pelas formas de consciência cultural
ele passa a compartilhar a humanidade com outros seres humanos (eis
uma das conclusões de Kant na Crítica da faculdade do juízo). Dessa
forma, o compromisso é uma atitude que comprova que o Si-mesmo
está desperto.

107
Um bom exemplo dessa regressão do Si-mesmo pode ser flagrado em uma declaração de Himmler,
de 4 de outubro de 1943: “A maioria de vocês deve saber o que significa 100 cadáveres, ou 500 ou 1000.
O fato de termos suportado a situação e, ao mesmo tempo, apesar de alguma exceção devida à fraqueza
humana, termos continuado sendo homens honestos, nos endureceu. É uma página de glória da nossa
história que nunca foi escrita e nunca o será” (Apud Agamben, 2021, p. 84).
108
Sobre o nascimento do compromisso (ou responsabilidade moral), ver especialmente a peça de
Sófocles, Filoctetes (2008).
4
O DISCURSO POPULISTA DE PERÓN

Realizar o estudo interpretativo do discurso populista é uma tarefa


complexa. Ela apresenta tais dificuldades na medida em que além da
análise linguística em si, há o elemento histórico que perpassa algumas
instâncias da linguagem. Se averiguarmos com atenção, o discurso po-
pulista não é só um ato político de convencimento (como em um debate,
por exemplo); ele é algo que almeja a mobilização popular. O agente do
discurso populista tem o dom que se denomina de “carisma”: ele dota
sua fala de vivacidade e esperança utópica. Assim, a complexidade do
discurso populista está em sua natureza mista; ele contém anseios das
classes populares e, ao mesmo tempo, possui uma carga ideológica nada
desprezível. Nesse sentido, a questão da representação torna-se algo
importante. Primeiro está o fato de se estar em um nível político, sendo
que o populismo se vê como o representante das classes populares. Ele
não pode ser inserido no modelo das representações precárias da demo-
cracia liberal, muito menos como a representação orgânica dos grupos
e comunidades que lutam por reconhecimento. É deste ponto de vista
que o fascismo europeu, tão intenso entre as duas Grandes Guerras
Mundiais, pode ser considerado como uma forma extrema de popu-
lismo.
No sistema político da democracia liberal o poder não se encontra
personalizado. A despersonalização do poder é um fator fundamental
da democracia: ela implica no revezamento dos agentes do poder. Na
Dagmar Manieri • 141

democracia ninguém está predeterminado a assumir o poder político;


aquilo que Claude Lefort havia indicado como o espaço vazio do poder. 1
Esse vazio do espaço de poder contrasta, de forma flagrante, com
o personalismo da monarquia absoluta. 2 No exemplo do regime de prin-
cipado romano antigo, o próprio termo iustitium (suspensão) expressa a
identificação do espaço de poder com o imperador. Giorgio Agamben em
Estado de exceção traz um capítulo especial sobre o termo iustitium. Este
último designa, ao mesmo tempo, um “estado (político) de exceção” e o
“luto pela morte do soberano”. Se o príncipe está identificado com o po-
der, então seu falecimento torna-se uma anomia. Embora Agamben
utilize a noção durkheimiana de anomia, ao que tudo indica o iustitium
(como luto) quer mostrar a identificação do poder com o soberano (im-
perador). Agamben recupera os intelectuais orgânicos do regime de
principado no esforço de legitimar o sistema político. Nesta forma de
justificação, o imperador é a “lei viva” (nomos empsychos); por ser a pró-
pria encarnação da lei – segundo Diotógenes – o soberano “assemelha-
se a um deus entre os homens”. 3
Eis, então, que o populismo ensaia esta personalização do poder na
figura do líder (demagogos). No exemplo do populismo latino-ameri-
cano, a demagogia não é só uma estratégia para se conquistar a simpatia
das massas. De certa forma, o populismo rompe com o sistema político

1
Em uma passagem significativa, Claude Lefort comenta sobre os fundamentos de um regime
democrático (de direito): “A mesma razão faz com que o poder seja limitado, de direito, e não possa se
confundir com a potência dos que o exercem; e a mesma razão faz com que não haja povo em ato fora
da operação regulamentada do sufrágio e com que não haja poder susceptível de encarná-lo. O lugar
do poder encontra-se, assim, tacitamente reconhecido como um lugar vazio, por definição inocupável,
um lugar simbólico, não um lugar real” (Lefort, 1983, p. 100).
2
Nesta passagem de Giorgio Agamben, fica evidente a personalização do regime dos romanos antigos:
“A novidade constitucional do principado pode então ser vista como uma incorporação do estado de
exceção e da anomia diretamente na pessoa do soberano, que começa a desligar-se de qualquer
subordinação ao direito para se afirmar como legibus salutos” (Agamben, 2015, p. 106).
3
Agamben, 2015, p. 107.
142 • Problemas de hermenêutica radical

vigente, compreendido como um Estado oligárquico. Ele implica em


uma prática de poder que incrementa o capital nacional, bem como in-
corpora as classes populares (na figura do “trabalhador”) ao sistema de
proteção do Estado. É nesse sentido que o peronismo pode ser conside-
rado um modelo clássico de populismo. Seu autoritarismo corresponde
à personalização do poder, justificado como representante exclusivo das
classes populares. 4
Daí ser correto associar o populismo a um modelo paternalista.
Edward Thompson ao comentar sobre a vida social dos trabalhadores
ingleses no século XVIII aponta a existência do paternalismo. Para ele,
essa forma de relação “sugere calor humano, numa relação mutuamente
consentida”. Do lado do pai, há a “consciência dos deveres e responsa-
bilidades para com o filho”; já este “é submisso ou complacente na sua
posição filial”. 5 O paternalismo inglês no século XVIII não é só uma mera
semelhança com o paternalismo populista de meados do século XX na
Argentina. São as próprias condições econômicas e sociais do capita-
lismo que explicam o surgimento desta forma de relação social. Nessas
duas fases, respectivamente, o capitalismo avança para a etapa indus-
trial. Isto quer dizer que capital e trabalho se dissociam e está em curso
o “individualismo competitivo”, nas palavras de Thompson. 6
Para além da prática efetiva populista (as leis trabalhistas, as naci-
onalizações de empresas estrangeiras, etc.), seu discurso constrói a

4
Em 3 de julho de 1967, Perón concede uma entrevista para Adriana Civita, do semanário Sete Dias
Ilistrados. Sobre seu perfil, ele comenta: “Sou igual a Alexandre, o Grande: um profissional da liderança.
Isso é o que me caracteriza toda minha atividade. Sempre esteve em meu ofício, conduzir. Conduzir
povos, conduzir exércitos, conduzir gente...” (Perón, 2020, p. 286).
5
Thompson, 2021, p. 30.
6
Na interpretação (na perspectiva marxista) de Thompson, o paternalismo desta fase inicial da
industrialização capitalista se explica como uma espécie de saudosismo na qual “os trabalhadores
muitas vezes retornavam aos valores paternalistas perdidos” (Ibid., p. 30).
Dagmar Manieri • 143

noção de povo. 7 No discurso de Perón de 17 de outubro de 1948, o líder


comenta sobre “o povo laborioso, virtuoso e forte”. Com esta constitui-
ção há uma valoração deste agrupamento de “descamisados y peronistas”.
Esse é um pequeno exemplo do fenômeno linguístico populista em sua
tarefa de gerar reconhecimento. As massas populares tornam-se ativas
na medida em que se reconhecem nesses discursos. Na perspectiva po-
pular, a visão que se tem é que, enfim, surge um líder que representa os
anseios populares: o populismo forja uma representação que, por ser
deslocada do sistema vigente, ensaia um significado religioso (messia-
nismo). Perón tem consciência deste aspecto e explora a via irracional.
Quando esta forma de irracionalidade ingressa no campo político,
podemos pensar que ocorre o messianismo. Na história do ocidente
sabe-se da estratégia de Júlio César em utilizar este modelo para trans-
formar o regime político de Roma. Assim, ao se pensar o messianismo
na ordem política, percebe-se que se ultrapassou o nível da representa-
ção orgânica. O líder político na figura de profeta já não pertence a uma
autêntica representação (orgânica): ele ocupa a ordem da consagração
religiosa. Nas palavras de Bourdieu, na consagração o agente é investido
de alguns atributos especiais. No exemplo da consagração messiânica o
líder se torna um indivíduo com atributos divinos; assim, uma aura está
em volta do líder-profeta. É o que se denomina de carisma: um dom es-
pecial de se comunicar com o povo. No fundo o carisma comporta um
poder de constituição; como profeta, o líder político simboliza “as re-
presentações coletivas porque [contribuiu] para constituí-las”. 8

7
Em discurso de 17 de outubro de 1947, Perón comenta: “Povo maravilhoso de uma pátria imortal, que
está construindo, como exemplo para os séculos, uma nova doutrina e uma nova idealidade que o
mundo não se esquecerá jamais” (Perón, 2002, p. 38).
8
Bourdieu, 2019, p. 92.
144 • Problemas de hermenêutica radical

O carisma resgata o sentimento de proteção e esperança. O pai pro-


tetor e o deus da esperança são forças simbólicas reunidas na figura do
profeta. Bourdieu comenta que ele “traz ao nível do discurso ou da con-
duta exemplar, representações, sentimentos e aspirações que já
existiam antes dele embora de modo implícito, semiconsciente ou in-
consciente”. 9 Na linguagem psicanalítica, trata-se de uma regressão.
Freud se atenta sobre a libido; nesse sentido a regressão corresponde a
“um retorno da libido a anteriores pontos de interrupção de seu desen-
volvimento”. 10 Já no modelo sociológico (na qual é pensado o populismo)
a regressão corresponde a uma transferência para o líder político de as-
pectos da proteção paternal. Não seria incorreto afirmar que o
populismo, principalmente no contexto da América Latina, corresponde
a uma fase de transição entre a sociedade tradicional (rural) e a socie-
dade industrial. São valores comunitários que são substituídos por um
novo modelo de sociedade capitalista industrial. A sociologia (em espe-
cial, Bourdieu) apresenta sua reflexão sobre este fenômeno. Ela nos
mostra que esses “períodos de crise” são denominados de “transforma-
ções econômicas”. Eis os efeitos dessas transformações: “(...) a
destruição, o enfraquecimento ou a absolescência das tradições e dos
sistemas de valores que forneciam os princípios da visão do mundo e da
conduta na vida”. 11
Há de ser observado, também, que após a consagração do profeta-
líder ocorre a fase autoritária. Na ordem religiosa esta face repressiva
se encontra nos Livros e na prática do próprio movimento. Ali Kamel
comenta que só no Pentateuco são quinze “crimes punidos com a

9
Idem.
10
Freud, 1976, p. 401.
11
Bourdieu, 2019, p. 93.
Dagmar Manieri • 145

morte”, entre os quais o adultério, a feitiçaria e a adivinhação. 12 Na afir-


mação do cristianismo e do islamismo, a repressão aos idólatras e
politeístas é praticada de forma intensa. Na medida em que se institui a
crença ao profeta-líder, toda forma de ceticismo é punida. Eis então que
o poder ao se amparar no irracionalismo religioso se sente desvenci-
lhado das injunções da lei. Já no exemplo do Estado de direito (nas
democracias ocidentais) a lei expressa o princípio de tolerância. É o con-
tra-poder jurídico ante o kratos. 13
Regressão, autoritarismo e elementos do totalitarismo são alguns
dos temas que estão presentes no discurso populista. Do ponto de vista
da hermenêutica torna-se um desafio à interpretação esta forma de in-
terpelação ideológica. Sua eficiência pode ser subdividida em dois
elementos explicativos. O primeiro corresponde à competência do
agente do discurso em reunir, na dimensão da linguagem, anseios das
classes populares. No segundo, o que explica o sucesso performativo são
as próprias condições sociais de produção do discurso.

O DISCURSO POPULISTA E SUA IDEOLOGIA

A partir do século XIX, principalmente após o advento do mar-


xismo, a noção de ideologia adquiriu consistência e se transformou em
um conceito fundamental para as ciências humanas. Dentre as várias
formas de ideologia, destaca-se um tipo especial que se encontra na or-
dem política: trata-se da falsa representação, que será importante para

12
Kamel, 2007, p. 129.
13
Este princípio de tolerância pode ser encontrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789. No Artigo X, afirma-se: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, inclusive opiniões
religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (Jellinek,
2015, p. 110). Também no Artigo XI, temos a afirmação de que “a livre comunicação das ideias e das
opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; (...)” (Idem).
146 • Problemas de hermenêutica radical

apreensão do elemento ideológico no populismo. Um exemplo prático


desta utilização ideológica ocorreu na ex-URSS, na própria formação da
sociedade soviética após a Revolução de 1917.
Na Rússia czarista, Lênin adapta o marxismo às condições locais.
Uma das novidades é a presença do Partido, com seus membros disci-
plinados e profissionais. Na interpretação de Christopher Hill, na Rússia
o marxismo só poderia ser introduzido no movimento proletário “de
fora para dentro”; assim, nasce uma classe de intelectuais com “instru-
ção, lazer e facilidade para o estudo teórico”. 14 Aqui já presenciamos o
tema da representação. Com essa concepção leninista, evidencia-se a
importância dos líderes (de Partido): os intelectuais “não deveriam va-
ler-se do “atraso” teórico dos operários como pretexto para não os
conduzirem adiante, (...)”. 15
Neste “marxismo soviético” (na expressão de Marcuse), o Partido é
compreendido como elemento consciente e ativo na marcha progres-
sista da sociedade: ele é o sujeito da história. 16 De certa forma, esta
concepção leninista de Partido revolucionário nasce das objeções à so-
cial-democracia alemã. Esse programa para o marxismo soviético pode
ser encontrado em Que fazer? obra de 1902 (ano anterior à formação do
Partido Bolchevique). Lênin rejeita no “marxismo alemão” o culto ao es-
pontâneo; para ele, isto traz o “ecletismo” e a “ausência de princípios”.
É neste contexto (que Lênin qualifica de “crise do marxismo”) que surge
a importância do Partido; nas palavras do líder, ele deve ser “guiado por

14
Hill, 1967, p. 60.
15
Ibid., p. 61.
16
Observar este comentário de Hill sobre o Partido Bolchevique: “Depois de alguém ser admitido [no
Partido], não era fácil continuar sendo membro, a menos que o justificasse pelo trabalho e pela fé. O
Partido era considerado como uma equipe de pessoas altamente treinadas, abnegadas e enérgicas,
capazes de planificarem a edificação do socialismo e convencerem a massa inculta de seus
compatriotas” (Ibid., p. 65).
Dagmar Manieri • 147

uma teoria de vanguarda” e ser capaz de “preencher o papel de combate


de vanguarda”. 17 Em Lênin, há essa dicotomia entre o que é “espontâneo”
e a “organização”:

Nós devemos assumir a organização de uma ampla luta política sob a dire-
ção de nosso Partido, a fim de que todas as camadas da oposição, quaisquer
que sejam, possam prestar e prestem efetivamente a essa luta, assim como
a nosso Partido, a ajuda de que são capazes. 18

O que se propõe ao nível da organização é uma espécie de prática


essencialmente marxista: a hegemonia. Lênin afirma a necessidade de
se “conhecer as forças internas do mecanismo de nosso Estado”. A as-
túcia leninista se assemelha ao renascentista Maquiavel. O mundo
social, bem como o poder político, é despojado do fator “ideal” (bem
como do normativo) para ser compreendido através da mediação de for-
ças. Como realizar uma ação (o problema de organização) para que as
relações de forças (sociais) adquiram um sentido proposta pelo Partido.
Diante desta tarefa de organização, o Partido surge em sua grandeza.
Há uma passagem em Que fazer? que Lênin enfatiza a “fé na força do
Partido”. 19 Nesta obra, o revolucionário russo já delineia o percurso do
poder soviético, evidente após a grande vitória de 1917. 20
Com a ascensão ao poder, o Partido Bolchevique inicia a tarefa de
identificação do novo poder com a classe operária. Nesta primeira fase,
Leon Trotsky possui uma posição de destaque no Partido. Seus escritos

17
Lênin, 1978, p. 19.
18
Ibid., p. 67.
19
Ibid., p. 100.
20
Ainda em Que fazer?, Lênin enfatiza: “E nós, Partido de luta contra toda a opressão econômica, política,
social, nacional, que podemos e devemos encontrar, reunir, instruir, mobilizar e pôr em marcha esse
exército de homens oniscientes” (Ibid., p. 115).
148 • Problemas de hermenêutica radical

desta época são uma prova deste tipo de marxismo. Primeiro, Trotsky
esclarece que “os sovietes são uma organização proletária revolucioná-
ria”; eles são compreendidos “como instrumentos de poder da classe
trabalhadora”. 21 No topo desta organização está o Partido. Trotsky co-
menta da “disciplina do regime soviético” e acentua que “a autoridade
do partido é indiscutível” e que sua disciplina não pode deixar “nada a
desejar”. 22 Eis a formação da “identidade” na ordem da representação
política, nas palavras de Trotsky:

Graças à clareza de suas ideias teóricas, graças à sua forte organização re-
volucionária, o Partido deu aos sovietes a possibilidade de se
transformarem, de informes parlamentos operários que eram, num instru-
mento de dominação do trabalho. Nesta substituição do poder da classe
operária pelo poder do Partido, não houve nada de casual, e mesmo no
fundo, não existe nisso nenhuma substituição. 23

Está em curso, aqui, a própria gênese da ideologia como falsa re-


presentação. Se atentarmos bem se percebe que o próprio totalitarismo
soviético utiliza-se dessa noção ideológica para justificar sua raison
d’être. Alguns estudiosos do totalitarismo soviético como Arendt, Morin
e Leford enfatizam este momento de virada ideológica do regime sovi-
ético.
Em Arendt, o regime oculta as próprias contradições sociais (ela
comenta do “pavor” à contradição). Se “do ponto de vista histórico, o
Partido sempre tem razão”, então “certos crimes [compreendidos como
desvios na lógica do Partido] certamente serão cometidos, e o Partido,

21
Trotsky, 1969, p. 111.
22
Ibid., p. 113.
23
Ibid., p. 115.
Dagmar Manieri • 149

conhecendo a lei da história, deve puni-los”. 24 Esta já é a terceira etapa


do marxismo soviético. Na primeira, o Partido é justificado segundo a
necessidade de organização; na segunda, o Partido no poder ensaia ser
o agente da representação da classe operária. A terceira etapa corres-
ponde ao terror, compreendido como o esforço em disciplinar a
sociedade; nesta etapa, são punidos os indivíduos que perderam a fé no
Partido. 25
Para Lefort não há uma ruptura entre leninismo e stalinismo. O
que se ressalta neste último é um acréscimo do poder de Estado. Esta
concentração do poder também se dá no seio do Partido na qual o líder
recebe o exclusivismo na condução dos rumos do governo. Lefort não
deixa de ressaltar a “marca de uma construção ideológica”. 26 Ele localiza
tal “construção” no elemento da representação. É desta forma que o
Partido se mostra como íntegro e perfeito:

Vemos, sem dúvida, restabelecer-se nas suas fronteiras divisões internas,


uma clivagem entre setores de atividade, compartimentações, hierarquias;
mas essas divisões estão, no melhor dos casos, dissimuladas sob a represen-
tação da unidade do Partido, sob a do “Nós” comunista. 27

Não deixa de ser interessante se confrontarmos a ideia de Claude


Lefort com os exemplos concretos que nos mostra Simon Montefiore.
Quando a esposa de Stálin, Nadejda Stálin, falece, constata-se que ela

24
Arendt, 2012, p. 630.
25
A biografia de Stálin publicada por Simon Montefiore trouxe algumas novidades. O autor se beneficia
da abertura dos arquivos soviéticos na década de 1990. Uma delas muito interessante o autor encontrou
nas anotações de Vichinski: “(...) no julgamento de janeiro de 1937, Stálin dirigiu-se aos acusados assim:
“Vocês perderam a fé” – e deveriam morrer por tê-la perdido. Ele disse a Béria: “Um Inimigo do Povo não
é apenas alguém que faz sabotagem, mas alguém que duvida da correção da linha do Partido. Há muitos
deles e precisamos liquidá-los” (Apud Montefiore, 2021, p. 281).
26
Lefort, 1983, p. 102.
27
Ibid., p. 103
150 • Problemas de hermenêutica radical

cometera suicídio. No Arquivo do Estado, Montefiore encontra um “pe-


daço de papel” (provavelmente do legista) que afirma que no coração da
esposa do líder havia “um ferimento aberto”. Mas Stálin, em comum
acordo com Mólotov, Kaganóvitch e Sergo, resolve anunciar que “ela
morrera de apendicite”. 28 Ou seja, os problemas da vida particular do lí-
der não podem ser divulgados, fato este que provoca a fratura no “culto
à imagem” de Stálin.
Assim, na terceira etapa (o terror) o líder possui o monopólio da
“representação comunista do “real” e fornece ao Partido o critério do
verdadeiro e do falso, do possível e do impossível”. 29 Ideologia que no
totalitarismo soviético se intensifica, já que não há nem mesmo o debate
no seio do Partido. 30 Lefort evidencia, com propriedade, a operação ide-
ológica em torno da (falsa) representação: “Identificação do povo com o
proletariado, do proletariado com o Partido, do Partido com a direção,
da direção com o Egocrata”. 31
O que fora, talvez, uma representação autêntica (“orgânica”, na lin-
guagem marxista) nas jornadas de 1917 (envolvendo os sovietes),
transforma-se em elemento ideológico para justificar a presença do
Partido no poder. A soberania do Partido se funda sobre esta forma de
representação. Com esta base (falseada), o resto torna-se comprome-
tido, como ressaltou Edgar Morin: “Infelizmente, o comunismo não é

28
Montefiore, 2021, p. 136.
29
Lefort, 1983, p. 104.
30
Ao que tudo indica, na Alemanha nazista, o totalitarismo se inicia com a Noite dos Longos Punhais
(de 29 para 30 de junho de 1934). Sob as ordens de Hitler é executado o homem (chefe da SA) que
poderia se contrapor ao líder: Ernst Röhm. Bolívar Lamounier comenta que em agosto de 1934 outros
dois atos contribuem para a centralização política: a fusão dos cargos de presidente da República e
primeiro-ministro e o juramento do Exército à fidelidade ao líder e não à Constituição (Lamounier, 2014,
p. 96, 97).
31
Lefort, 1983, p. 114.
Dagmar Manieri • 151

comunismo. O soviético não é soviético. A URSS não é uma união das


repúblicas socialistas soviéticas”. 32 Morin utiliza o conceito de Aparelho
para pensar o fenômeno do totalitarismo. Nesse sentido, o Partido
torna-se totalitário quando o líder o transforma em Aparelho. Torna-se
um poderoso Partido porque se identifica (e absorve) os poderes do Es-
tado e, internamente, elimina os dissidentes. Então, há um terror fora
do Partido mas, também, um terror interno. Morin destaca dois exem-
plos na prática do terror no seio do Partido.
Primeiro o assassinato de Kírov em 1934, que Montefiore acompa-
nhou com atenção. Kírov era uma figura em ascensão no Partido; isto se
comprova no 17º Congresso do Partido na qual ocorre a eleição para os
membros do CC (Comitê Central): Stálin recebeu 1056 votos e Kírov 1055.
Montefiore acrescenta que “com certeza 166 votos ainda estão perdi-
dos”. 33 Ao que tudo indica foi a polícia de Estado (NKVD) que assassinou
Kírov. Montefiore tem dúvidas em afirmar a intenção de Stálin neste
ato; mas de forma astuta, o líder soviético utiliza a “tragédia” para der-
rotar seus inimigos de Partido: Zinóviev e Kámenev. No fundo, o
assassinato de Kírov foi utilizado como pretexto para se iniciar o ex-
purgo no seio do Partido.
O segundo exemplo indicado por Morin se localiza no próprio
NKVD. Após eliminar os chefes anteriores (Iagoda e Iéjov), o próprio Bé-
ria é assassinado em 1953. Nas palavras de Morin, surge “a suspeita do
ditador contra a sua própria polícia (NKVD) que, efetivamente, estava
em vias de canibalizar o Partido”. 34 Como se observa, principalmente no

32
Morin, 1985, p. 17.
33
Montefiore, 2021, p. 161.
34
Morin, 1985, p. 50.
152 • Problemas de hermenêutica radical

totalitarismo soviético, a ideologia como falsa representação é um com-


ponente fundamental na efetivação do regime.
Se no início a politização (de amplos setores da sociedade) resultou
em movimentos ativos na ordem política (os sovietes), a virada ideoló-
gica requer que a politização (uma forma de consciência da
universalidade do social) se transforme em crença: a política se converte
em religião. Assim, de certa forma, há uma regressão ante a etapa al-
cançada após o Iluminismo. O apelo aos elementos irracionais
transforma o campo político em um assunto de religião. Assim, por mais
estranho que pareça, as análises sociológicas sobre o campo religioso
são válidas para o totalitarismo, bem como para o peronismo.
Como enfatiza Pierre Bourdieu, no campo religioso há a estratégia
de inclusão/exclusão. Os “puros” são integrados, restando aos “impu-
ros” o espaço da exclusão. O líder político se destaca ante sua base; essa
distância o converte em “profeta”, “messias”, na qual a relação com a
base social se dá pela crença. 35 Bourdieu comenta sobre a “absolutização
do relativo e de legitimação do arbitrário” que ocorre neste caso espe-
cífico. 36 O líder/profeta fala em nome do “povo”, por isso suas ações não
podem ser questionadas: o denominado “culto à imagem” surge em
torno do líder. 37

35
Na Itália fascista, a imagem do Duce atingia esses limites: “Para algumas pessoas, tudo nele [Mussolini]
tinha propriedades mágicas de amuletos. Mulheres grávidas conservavam o retrato do Duce sobre a
mesinha-de-cabeceira, esperando que o bebê herdasse suas excelentes qualidades; ou, quando se
aproximava a época do parto, dirigiam-se a uma clínica das proximidades de sua terra natal, Predappio”
(Collier, 1971, p. 138).
36
Bourdieu, 2019, p. 46.
37
No exemplo do peronismo esta ideia é flagrante. O dia da libertação de Perón (17 de outubro) foi
instituído como um dia sagrado, restando ao líder a alcunha de “San Perón”. Com o adoecimento e
morte de Evita, eis que surge outra entidade divina, a “Santa Evita”. Nas palavras de Perón, “a Sra. Eva
Perón, ungida pelo próprio povo (...)” (Perón, 2002, p. 67).
Dagmar Manieri • 153

No totalitarismo, ao se eliminar a sociedade civil livre, ocorre uma


espécie de simbiose entre o social e o político. Este último ultrapassa
seus limites específicos do campo político e adquire a predominância
sobre a vida social. O partido passa a exercer o monopólio da interpre-
tação dos acontecimentos: uma exclusividade que se traduz na
expressão extra ecclesiam nulla salus (fora [do Partido] não há salvação).
O poder ao eliminar a política (o debate, o confronto, as manifestações,
as eleições livres, etc.), utiliza-se da religião como força de soberania. 38
Em sua forma extrema o populismo é uma hierocracia. Assim, a socio-
logia e a filosofia política apresentam suas leituras do líder político. Por
trás do carisma e da eficácia do discurso, constata-se que o líder tem
esta capacidade: “(...) sentir e expressar com uma força e uma coerência
particulares certas disposições éticas ou políticas já presentes, em es-
tado implícito, em todos os membros da classe ou do grupo de seus
destinatários”. 39 Observar que se trata de uma reflexão de Bourdieu so-
bre o líder religioso. Por mais estranho que pareça, ela é válida para o
peronismo:

É pela capacidade de realizar, através de sua pessoa e de seu discurso como


palavras exemplares, o encontro de um significante e de um significado que
lhe era preexistente, mas somente em estado potencial e implícito, que o
profeta reúne as condições para mobilizar os grupos e as classes que reco-
nhecem sua linguagem porque nela se reconhecem. 40

O discurso populista em sua dimensão ideológica constitui o su-


jeito. Aqui, está em jogo a interpelação que possui eficácia na medida

Enzo Travesso em As novas faces do fascismo (2011) ao estudar o fenômeno do fascismo em suas várias
38

manifestações, nos apresenta a noção de “religião civil”.


39
Bourdieu, 2019, p. 74.
40
Ibid., p. 75.
154 • Problemas de hermenêutica radical

em que o ser social do indivíduo está em condições para responder (po-


sitivamente) ao apelo discursivo. Esse jogo espelhado (ou duplificado)
em Michel Pêcheux recebe a seguinte expressão: “O paradoxo pelo qual
o sujeito é chamado a existir”. 41 Por isso Pêcheux indica o “efeito retro-
ativo” da interpelação ideológica. O efeito ideológico (em sua eficácia)
está no fato do indivíduo realizar a identificação mediada pelo discurso.
A identidade do sujeito foi criada pelo discurso desde as condições pré-
vias do contexto social. No exemplo do populismo, a pátria e o Estado
realizam a função de significante. Aqui está a habilidade do agente dis-
cursivo em articular esses elementos: pátria, movimentos de massas,
líder, as crenças, os adversários. O significante irá impregnar esses ele-
mentos de significado e “o sujeito é “captado” nessa rede”, nas palavras
de Pêcheux. 42
Como se observa - com destaque para o totalitarismo soviético - a
ideologia como falsa representação é um componente fundamental na
efetivação do regime. Por isso o discurso não deve ser entendido só ao
nível da linguagem. Sua eficácia não depende só da performance linguís-
tica do líder. De forma inicial o discurso do líder pode ser concebido
como um ato político que intenta a mobilização. O próprio movimento
da história realiza a tarefa de dispersão e fragmentação de uma deter-
minada entidade universal (a comunidade, a unidade aldeã, etc.): a
guerra ou a dominação com o avanço de uma nova ordem econômica.
Na Rússia - anterior à politização comunista - o capitalismo já re-
alizara a tarefa de deteriorar o antigo modelo campesino de produção:
“O mir é uma esplêndida palavra russa que significa não só “comuna

41
Zizek, 1996, p. 149.
42
Ibid., p. 151.
Dagmar Manieri • 155

aldeã”, mas ainda três coisas que na origem eram sinônimas para o cam-
ponês: “o mundo”, “o universo” e “paz”. Violar a comuna era quebrar a
paz”. 43 São terras coletivas que pertencem à aldeia; até a cobrança de
impostos era de responsabilidade do mir. Com a introdução do capita-
lismo no campo surge a classe de proprietários rurais enriquecidos
(kulaks). Em 1906, o primeiro-ministro da Rússia, Stolipin, foi o agente
do Estado que preparou a introdução das relações capitalistas no campo.
Como enfatiza Hill, “Stolipin outorgou aos chefes de grupos familiares
o direito de propriedade absoluta das respectivas glebas, (...)”. 44 Assim,
na Rússia anterior à ascensão dos grupos de esquerda, a autocracia não
deixou de potencializar o avanço das relações capitalistas, fragmen-
tando a antiga comunidade aldeã. Eis as condições sociais propícias para
a efetivação do discurso dos comunistas.
No exemplo do populismo na América Latina o fenômeno social
não é tão diverso das condições da Rússia. Regimes autocráticos (as de-
nominadas oligarquias) se somam ao avanço do capitalismo. Para
Francisco Weffort se trata de uma “tarefa trágica de toda democracia
burguesa”. Para ele, isto implica:

Na incorporação das massas populares ao processo político. O crescimento


das cidades e do proletariado lança à vida política amplos contingentes da
população e o processo de absorção das massas passa a constituir uma di-
mensão política essencial do novo período. 45

Weffort se concentra no populismo brasileiro e nos exemplos de


liderança deste fenômeno político. Em nosso caso, temos que enfatizar

43
Hill, 1967, p. 72.
44
Ibid., p. 76.
45
Weffort, 1989, p. 17.
156 • Problemas de hermenêutica radical

as condições gerais que sustentam o discurso populista. Na prática po-


lítica, o populismo na América Latina substitui a ausência das
revoluções burguesas de ordem nacional. Em torno deste tema a teoria
da dependência nos auxilia, pois explica esta forma de substituição. Flo-
restan Fernandes acentua que o Estado nacional brasileiro após a
Independência era um “instrumento da dominação patrimonialista”.
Nas próprias palavras de Fernandes, após a formação do Estado nacio-
nal independente, a “posição heteronômica em relação ao exterior” se
manteve. 46 Nessa perspectiva crítica da teoria da dependência, o popu-
lismo na América Latina adquire uma compreensão mais clara. O que a
burguesia nacional se recusa a realizar, o agente populista proclama
como tarefa profícua:

O paradoxo está no fato de que a “revolução nacional” não resultou de uma


“revolução econômica” nem concorreu para forjar ideais de autonomia eco-
nômica que implicassem ruptura imediata, irreversível e total com o
passado recente. Antes, consolidou e revitalizou as funções da grande la-
voura, como polo dinâmico da economia interna, servindo de base à referida
expansão limite das estruturas econômicas coloniais. 47

Nesse “capitalismo dependente” (na expressão de Fernandes), a


atuação histórica da burguesia nacional é reduzida. Por isso deve-se en-
tender a “dominação burguesa” não como um produto da “revolução
nacional e democrática”, mas do “capitalismo dependente e do tipo de
transformação capitalista que ele supõe”. 48

46
Fernandes, 2020, p. 74.
47
Ibid., p. 84.
48
Ibid., p. 217.
Dagmar Manieri • 157

Observar, dessa forma, que o populismo latino-americano reserva


para si a tarefa de fundar o Estado nacional de bases populares. No
exemplo dos E.U.A, Inglaterra e França, o nacionalismo foi necessário
para a mobilização das massas nas guerras de ascensão da burguesia
nacional. Já no populismo latino-americano o nacionalismo possui um
profundo apelo ideológico. O sujeito constituído como “homem do povo”
e “trabalhador” necessita de uma entidade que substitua o “calor” co-
munitário destruído nas relações capitalistas. Maria Helena Capelato
estudou esta face do populismo. No Estado Novo brasileiro, o livro in-
fantil Getúlio Vargas para crianças enfatiza que o líder populista era “o
Chefe do governo”, do Estado e “o chefe da grande família nacional”. 49
Na Argentina peronista, um livro para os estudantes exaltava Perón e
Eva: o primeiro como “um Condutor”; a última como “uma nova Hero-
ína”. Diante deste novo caminho “se vê” uma “legião argentina que
trabalha com capacidade, amor e sincera devoção para consolidar a
“Grande Argentina” prometida por Perón”. 50
O populismo, de forma paternalista e autoritária, empreende a for-
mação do nacionalismo. O que ocorrera em países do centro do sistema
capitalista como uma tarefa histórica da burguesia nacional, na perife-
ria do sistema passa a ser uma condução promovida pela liderança
populista. Na perspectiva do líder, trata-se de um elemento fundamen-
tal de mobilização: transforma-se em uma política de Estado. Mas se
trata de um nacionalismo reativo, incapaz de ser o herdeiro das tradi-
ções humanísticas de pós-1789. O nacionalismo populista é anti-

49
Apud Capelato, 1998, p. 246.
50
Apud Capelato, 1998, p. 266.
158 • Problemas de hermenêutica radical

Iluminista; ressentido até à raiz, no fundo pode ser entendido como um


romantismo que percorre os caminhos da política.

O DISCURSO DE 31 DE AGOSTO DE 1955 NA PLAZA DE MAYO

O discurso de Perón de fim de agosto de 1955 é especial; ele está


próximo à queda do líder, após o golpe militar. Nele se percebe o drama
do peronismo ante o desafio armado: são forças internas que se opõem
ao movimento de massas. Ao perder aliados nas próprias Forças Arma-
das da Argentina, resta o “povo” como força para sustentar o regime.
Aqui já se percebe a diferença dessas “massas” comparada àquelas das
revoluções burguesas do século XVIII, principalmente a da Revolução
Francesa. No movimento de 1789 francês, as massas se sublevam com
uma impressionante autonomia. No meio urbano, antes da industriali-
zação do século XIX, surge um tipo social que se politiza, o sans-culotte;
ele é o trabalhador que não pode ser considerado o burguês da reprodu-
ção do capital. Albert Soboul indica que “a grande maioria da produção
local continuava alimentada por artesãos, produtores independentes e
vendedores diretos”. O mundo do trabalho de agentes que se transfor-
mam em sujeitos históricos. Era um mundo social abaixo da burguesia
comercial e financeira; foi este mundo do trabalho que se politiza, jun-
tamente com os trabalhadores do campo.
Em um primeiro momento da Revolução Francesa há a união des-
ses setores com a burguesia. Eles tinham inimigos em comum na
aristocracia local, bem como nos países que rejeitavam os princípios da
revolução. Mas com a radicalização do processo revolucionário, fica evi-
dente que os sans-culottes visualizam na burguesia (principalmente nos
setores legitimistas) uma inimiga de classe. No início de agosto de 1792
Dagmar Manieri • 159

as massas se sublevam novamente e se proclama a república. É uma fase


na qual se proliferam as comunas, resultando com isso a força política
dos jacobinos. Fase de glória e drama ao mesmo tempo para os sans-
culottes. Glória, pois agora o “povo” ingressa na história como sujeito;
drama, porque os jacobinos iniciam um processo de burocratização
desta forma de democracia direta denominada de comuna. Soboul
exerce seu senso crítico ante os jacobinos no momento crítico de março
de 1794: aqui se presencia a execução de vários líderes cordeliers e in-
dulgentes. O historiador francês comenta: “Rompeu-se o contrato
direto e fraternal entre as autoridades revolucionárias e os sans-culottes
das seções”. 51 Independente deste drama no seio dos grupos sociais e po-
líticos de esquerda, o que a Revolução Francesa mostra é uma enorme
vitalidade política das classes populares. As diversas comunas que se
formam nas cidades francesas (principalmente em Paris) comprovam o
grau de autonomia que adquiriu o “povo” francês. Ele só se arrefeceu no
momento em que os jacobinos instituíram os “comitês revolucionários
burocratizados”, nas palavras de Soboul.
Eis, então, um problema importante a ser estudado: qual o grau e a
qualidade da politização das massas peronistas? É evidente que a hipó-
tese de uma massa tutelada não deve ser menosprezada. Faltou
organicidade para o processo de politização das massas peronistas? Ao
que tudo indica este “calcanhar de Aquiles” do peronismo não é só uma
“falha” do movimento argentino, mas faz parte da própria natureza do
populismo. A queda do populismo brasileiro (em março de 1964) também
comprova a ideia desta fragilidade do populismo. O líder tutela as mas-
sas, restando pouco espaço para a formação de organizações autênticas

51
Soboul, 2007, p. 72.
160 • Problemas de hermenêutica radical

no seio das classes populares, como as comunas parisienses ou os sovi-


etes russos. Abaixo, o discurso de Perón.

***

Companheiras e companheiros.
Estou nesta varanda, para todos vocês tão memorável, para dirigir-
lhes a palavra em um momento de vida pública e de minha vida, tão
transcendental e tão importante, pois desejo pessoalmente atingir o co-
ração de cada um dos argentinos que me ouvem.
Nós representamos um movimento nacional cujos objetivos são
bem claros e cujas ações são bem determinadas; e nada, honestamente,
poderá afirmar com fundamento que temos intenções ou desígnios in-
confessos.
Recentemente esta Praça de Maio testemunhou uma incrível infâ-
mia dos inimigos do povo. Duzentos inocentes pagaram com sua vida a
postura infama. Todavia, nossa imensa paciência e nossa extraordinária
tolerância, nos silenciaram à imensa afronta ao povo e à nacionalidade;
adotamos uma postura pacífica e tranquila ante esta infâmia. Esses du-
zentos cadáveres destroçados significam o holocausto que o povo
oferece à pátria. Mas esperávamos ser compreendidos, ainda que eles
fossem traidores, oferecendo nosso perdão à traição. Mas há pessoas
que não reconhecem os gestos e a grandeza da maioria. Após essas ati-
tudes, oferecemos ainda aos agressores nossa mão e nossa paz. Nós
temos oferecido a possibilidade para que esses homens se reconciliem
com suas consciências.
Mas qual tem sido a resposta? Vivenciamos dois meses de uma tré-
gua que eles quebraram com atos violentos, ainda que esporádicos e
Dagmar Manieri • 161

inoperantes. Isso demonstra uma vontade criminal. Eles contestam os


dirigentes políticos com discursos superficiais e insolentes. São insti-
gadores, com seus rumores e panfletos. São executores, alvejando os
pobres vigilantes das ruas.
Eles resistem porque não desejam a pacificação que temos ofere-
cido. Daí se conclui que desejam a repressão e a violência diante do povo.
Por isso eu contesto essa intenção e na presença popular afirmo as mes-
mas palavras de 1945: contestaremos a violência através de uma
violência ainda maior. Nossa exagerada tolerância nos dá o direito de
reprimi-los violentamente. Desde já, estabelecemos uma conduta per-
manente para nosso movimento: todo aquele que procurar alterar a
ordem é contra a autoridade constituída, também é contra a lei e a Cons-
tituição. Ele, por isso, pode ser morto por qualquer argentino.
Esta conduta que todo peronista deve seguir se endereça aos exe-
cutores, como também aos que conspiram ou incitam. Temos que
restabelecer a tranquilidade entre governo, instituições e o povo; isso
será realizado através do governo, das instituições e do próprio povo. O
lema para todo peronista, isolado ou pertencente a alguma organização,
é contestar a uma ação violenta com outra mais violenta. Quando um de
nós cair, cairá cinco deles!
Companheiras e companheiros: temos dado suficientes provas de
nossa prudência. Agora daremos prova de nossa energia. Que cada um
saiba que onde houver um peronista haverá uma trincheira que defenda
os direitos do povo. E saibam também que temos que defender os direi-
tos e as conquistas do povo argentino, ainda que sejamos obrigados a
exterminar com os inimigos.
Companheiros! Desejo terminar esse discurso recordando a todos
vocês e ao povo argentino que o dilema é claro: ou lutamos e vencemos
162 • Problemas de hermenêutica radical

para consolidar as conquistas alcançadas ou a oligarquia aniquilará nos-


sas conquistas. Eles buscarão diversos pretextos. Falarão sobre as
liberdades da justiça, de religião ou qualquer outra que colocarão como
escudo para alcançar seus objetivos. Mas no geral, eles buscam retroce-
der à situação de 1943. Para que isso não se suceda, ou seja, ante a
infâmia e a traição, nós usaremos nossos seios e nossas vontades.
Temos oferecido a paz; eles não aceitaram. Agora temos que ofere-
cer a luta; eles sabem que quando intentamos a lutar, lutamos até o
final. Que cada um de vocês se recorde que agora a palavra é luta, um
sentido utilizado em todo lugar. E que eles saibam que esta luta - que
agora iniciamos - só terminará quando destruirmos o inimigo.
Agora, companheiros, devo mostrar ao povo uma condição: assim
como antes não cansei de reclamar a prudência, de aconselhar a calma
e a tranquilidade, agora conclamo que vocês se preparem para a luta.
Para esta luta, temos a arma mais poderosa que é a razão; assim como
temos para consolidar essa arma poderosa, a lei em nossas mãos. Temos
que impor a calma a qualquer preço e para isso é necessário o povo.
Eu havia dito esta tarde ao companheiro De Pietro: nossa nação ne-
cessita de paz e tranquilidade para o trabalho, porque a economia da
nação e o trabalho argentino obrigam a necessidade de paz e tranquili-
dade. Temos que conseguir isto através da persuasão ou através da
violência.
Companheiros, nossa pátria, para ser o que é deve ser submetida
ao sacrifício. Para ter nossa grandeza temos que passar pelo sacrifício.
Vejamos se com essa postura, nossos adversários e inimigos possam
compreender. Se não, pobres deles!
Povo e governo, ambos temos que reprimir com a maior energia
todo intento de alteração da ordem. Eu peço ao povo que ele seja um
Dagmar Manieri • 163

guardião. Se não conseguir fazer isto, que ele tome as medidas mais vi-
olentas contra os usurpadores da ordem. Eis o último chamamento e a
última advertência aos inimigos do povo. Depois de hoje, há de vir ações
e não palavras.
Companheiros! Para terminar quero recordar a cada um de vocês
que hoje se inicia uma vigília em armas. Cada um de vocês deve consi-
derar que o bem do povo está em vossos ombros; vocês devem ter uma
decisão importante em todos os dias e todos os atos: o bem (a causa) do
povo. 52

***

Um discurso político apresenta uma história, mas não de forma


tradicional. A história que “explica” o discurso é seu subtexto, ou seja,
são motivos concretos, da vida prática, que promovem o significado de
muitos elementos discursivos. No exemplo específico do discurso de Pe-
rón em 31 de agosto 1955, há a necessidade do conhecimento histórico
mais imediato ao discurso. De uma forma geral, pode-se destacar três
níveis no subtexto. Um mais profundo, que implica a instauração do po-
pulismo argentino em 1945. No segundo, entende-se a presidência de
Perón e seus objetivos imediatos; no último, o “calor da hora”, elemen-
tos imediatos ao ato discursivo. Assim, a história passa a desempenhar
o sentido de contraste, de fundo. O subtexto está implicado no texto na
medida em que representa a universalidade que concede coerência à
linguagem. Evitam-se, aqui, dois extremos. O primeiro que se fecha na

52
Diario La Prensa, 1 de septiembre de 1955 In: Garulli, 2000. http://archivohistorico.edu.ar. Acesso em
13/09/2021. Tradução de Dagmar Manieri.
164 • Problemas de hermenêutica radical

exclusividade linguística; o segundo, o que se denomina reducionismo. 53


Apreender a força do discurso (no sentido de seus efeitos) é, também,
considerar as forças sociais que acionam (de forma “externa”) o dis-
curso. O “externo” ao discurso é uma construção pos factum; na verdade,
há uma força histórica na linguagem na medida em que ela é um ele-
mento do confronto político. 54
No século XX, o populismo se transforma em um fenômeno político
de primeira importância na América Latina. Após o processo de inde-
pendência das colônias americanas sob o domínio de Espanha e
Portugal, a formação dos Estados nacionais se deu em torno das oligar-
quias locais. Ao contrário dos países do centro do sistema capitalista, a
América Latina não possuía uma burguesia pujante para efetivar um Es-
tado nacional com civilização (entende-se, aqui, a extensão dos
princípios do Iluminismo).
Na América Latina, parte considerável da burguesia local, bem
como das camadas populares, se encontram alijadas do centro político
(de decisões estratégicas). No México foi preciso uma revolução de bases
populares para se romper o modelo oligárquico. No Brasil, a Revolução
de 1930 confronta-se com as oligarquias de São Paulo e Minas Gerais.
São revoluções sem o amparo da burguesia local; mas podem ser consi-
deradas progressistas na medida em que ultrapassaram os estreitos
limites das oligarquias. 55

53
Sobre as objeções à exclusividade da análise linguística, ver especialmente A economia das trocas
linguística (1996), de Pierre Bourdieu. Já o reducionismo ocorre, de forma frequente, em Georg Lukács.
54
Uma das contribuições de Adorno foi ter mostrado que a história está presente, de forma intrínseca,
no objeto de estudo particular (em seu caso, a obra de arte). É o que se denomina de “valor de verdade”
de uma obra: “(...) o conteúdo social da verdadeira música está garantido, não pelo ouvido, mas tão-
somente pelo conhecimento dos diversos elementos e de sua configuração” (Adorno, 2002, p. 104).
55
Observar que na Revolução de 1930 (no Brasil) a liderança era composta por militares (os “tenentes”,
principalmente) e políticos regionais. De início, a burguesia paulista apoia o movimento;
posteriormente, ante o autoritarismo de Getúlio Vargas, rompe com os revolucionários em 1932.
Dagmar Manieri • 165

No exemplo da Argentina, a intensa oposição à influência econômica


da Inglaterra, juntamente com o descontentamento com o sistema polí-
tico oligárquico, levou um grupo de militares (GOU – Grupo de Oficiais
Unidos) a depor o presidente Ramon Castillo em 1943. É desta época que
se destaca a liderança do Coronel Juan Perón que, após o golpe, assume o
Departamento Nacional do Trabalho e Bem-Estar Social. Mas um novo
golpe em outubro de 1945 depõe o governo: Perón é detido na ilha Marin
García. Está em curso, nesse momento, a formação do próprio movimento
peronista. As classes populares exigem a libertação de Perón. Na Praça de
Maio, as massas protestam e o governo liberta o líder populista. Para o
peronismo, 17 de outubro de 1945 vai representar um acontecimento his-
tórico. Habilidoso em seu discurso, Perón indica ao povo que neste
instante ele se retirava do exército para abraçar uma nobre missão:

Com isto dou meu abraço final a essa instituição que é o esteio da Pátria: o
exército. E dou, também, o primeiro abraço a esta massa imensa que repre-
senta a síntese de um sentimento que estava morto na república: a
verdadeira civilidade do povo argentino. 56

Ao despontar como grande figura política, Perón se elege Presi-


dente em 1946. Nesse primeiro mandato, o peronismo se consolida como
um intenso movimento popular. O líder argentino aplica a política de
nacionalização de vários segmentos da economia. No meio trabalhista,
Perón tutela os operários através da CGT (Confederação Geral do Tra-
balho). É desta fase que Eva Perón, sua esposa, se destaca como figura
popular. Uma nova Constituição é apresentada em 1949, com destaque
para a possibilidade da reeleição do Presidente da República.

56
Perón, 2002, p. 26.
166 • Problemas de hermenêutica radical

Em fins de 1951, Perón é reeleito presidente. Mas seria um mandato


difícil e conturbado, com a aproximação da crise econômica, bem como
a intensificação da oposição política. Nas Forças Armadas, forma-se um
grupo de oposição ao líder populista. É neste instante que ocorre o golpe
militar de setembro de 1955.
Mauro Domingues acompanhou os acontecimentos de setembro de
1955 e sua repercussão no Brasil através do jornal O Globo. Ele afirma
que em setembro ocorre “um novo levante militar”, pois três meses an-
tes o presidente já havia suportando outro levante “em que a força aérea
argentina lançara bombardeios sobre a capital, Buenos Aires, causando
364 mortes, número que ultrapassou a casa das 400 mortes se computa-
dos outros combatentes envolvendo a marinha e o exército”. 57 O golpe
se dá em 16 de setembro, agora com apoio da marinha. Exultante, O
Globo comemora o término da “ditadura peronista”; o jornal insinua que
o governo peronista havia realizado um acordo (secreto) com a “repú-
blica sindicalista do Brasil, articulada pelo Sr. João Goulart”. 58 O grande
destaque nos dias que se seguiram ao golpe se concentra na figura do
general Lonardi, um dos líderes do golpe. Na conclusão de Mauro Do-
mingues sobre a cobertura de O Globo (sobre o golpe de setembro de
1955), ressalta-se esta passagem: “Perón é mostrado como um líder ne-
fasto e irresponsável que levou seu país à beira da guerra civil e tornou
inevitável a intervenção militar para restaurar a ordem”. 59

57
Domingues, 2018, p. 35. O primeiro levante militar ocorrera em 16 de junho de 1955. Denominado de
“Massacre da Praça de Maio”, trinta aeronaves bombardeiam a Capital, resultando mais de trezentos
mortos e oitocentos feridos. Dois grupamentos por terra intentam invadir a Casa Rosada. A resistência
é promovida pelo general Luceno.
58
Ibid., p. 42.
59
Ibid., p. 50.
Dagmar Manieri • 167

Interpretar o discurso populista requer, além da compreensão do


contexto histórico (o subtexto do discurso), a evidência de alguns de
seus elementos. Observar que de início, Perón se localiza: “Estou nesta
varanda”. Não é um local comum; é um espaço “memorável”, pois em
tempos pretéritos esta “varanda” foi o local na qual o líder se dirigiu às
massas após sua libertação. Aqui, a territorialidade se imiscui à história.
Perón quer atingir o sentimento do ouvinte. Finge franqueza ao afirmar
que deseja “pessoalmente atingir o coração de cada um dos argentinos”.
Eis o paternalismo peronista: quem senão o Pai tem o poder de tocar os
“corações”, algo tão íntimo. Não foi ele (a figura de “pai”) que nos fez
nascer e, desde a infância, nos tratou com carinho? Assim, mais que uma
representação política, o peronismo ingressa no ambiente familiar: daí
o apelo ao “coração”.
Há de ser notado que o populismo (como movimento político de
massas), rompe com o modelo da democracia liberal. Sabe-se da demo-
cracia direta nos antigos gregos do século V a.C.; mas agora, com o
advento da burguesia e do Estado nacional, nasce a democracia repre-
sentativa. John Dunn empreende uma correta interpretação da
democracia no século XVIII. Ao comentar sobre o marquês d’Argenson
(René-Louis de V. de Paulmy), já se apreende esta formação política.
Mesmo representando a figura de monarquista, d’Argenson propõe uma
reforma na monarquia francesa, ou seja, “quanta democracia poderia
ser admitida num governo monárquico”, nas palavras do próprio d’Ar-
genson. 60 Considérations sur le gouvernement ancien et présent de la France
é uma obra datada de 1764. Eis o que d’Argenson comenta:

60
Apud Dunn, 2016, p. 137.
168 • Problemas de hermenêutica radical

A verdadeira democracia age por meio de delegados, e esses delegados são


autorizados por eleição do povo. A missão desses escolhidos do povo e a au-
toridade que lhe dá sustentação constituem o poder público. Seu dever é
afirmar e defender os interesses do maior número de cidadãos para pro-
tegê-los dos maiores males e assegurar os maiores bens. 61

Ao se romper com este modelo de democracia liberal representa-


tiva, os movimentos populistas ensaiam formas corporativas de
organização, fortemente tuteladas pelo líder. No Brasil no pós-1930,
cria-se o Ministério do Trabalho. Ao acompanhar a carreira política de
Getúlio Vargas, Paulo Brandi comenta que a questão trabalhista recebia
o “princípio da unidade sindical”, na medida em que o Ministério do
Trabalho “reconhecia em cada unidade territorial apenas um sindicato
para cada ramo de atividade”. 62 A Lei de Sindicalização de 19 de março
de 1931 apresenta uma “nítida inspiração corporativa”, nas palavras de
Brandi. Corporativismo, associado ao nacionalismo; no exemplo do Bra-
sil varguista, o trabalhador nacional é protegido pela lei de Amparo ao
Trabalhador Brasileiro Nato. Em empresas industriais e comerciais,
obriga-se a contratação de empregados em uma proporção mínima de
2/3. 63 No modelo corporativo da Itália de Benito Mussolini, o proprietá-
rio de empresa necessitava da permissão do Estado para “contratar e ou
despedir operários”. Os sindicatos são banidos, sendo que “nenhum
operário tinha o direito de fazer greve, e os salários podiam ser reduzi-
dos por decreto governamental”. 64

61
Ibid., p. 141.
62
Brandi, 1983, p. 53.
63
Idem.
64
Collier, 1971, p. 137.
Dagmar Manieri • 169

No exemplo da Argentina, Perón se ampara em uma nova repre-


sentação da nação: o peronismo se proclama como força nacional que
irá libertar a Argentina da dominação (econômica) externa. Por isso nos
discursos de Perón se elabora a associação do “povo” com a nação.
O líder se reporta aos recentes bombardeios no centro de Buenos
Aires. Os efeitos foram “duzentos inocentes” que faleceram. Ele trata o
acontecimento como uma “infâmia”. Comenta da “paciência” e “tolerân-
cia” que marcaram os peronistas até o presente. É neste momento que
o líder ingressa no campo religioso, ao associar as mortes motivadas
pelo bombardeio ao holocausto: o fato trágico representou o sacrifício
do povo à pátria. Aqui é preciso um comentário sobre o termo holo-
causto. Ao aludir sobre o campo de concentração (alemão) de Auschwitz,
Giorgio Agamben interpreta o termo “holocausto”. Ele provém do latim
holocaustum e do grego holókaustos. Neste último, a palavra indica “todo
queimado”, uma referência aos sacrifícios cruentos no mundo antigo.
No contexto da Segunda Grande Guerra, o holocausto foi utilizado como
a “referência a um massacre de judeus”. 65 No juízo crítico de Agamben,
o termo “holocausto” é infeliz para expressar “sentido ao que parece não
poder ter sentido”. 66 Como se observa no término do discurso, Perón de-
seja incentivar as massas a um movimento armado de rua. Aqui, a morte
é concebida como “bela morte”, bem ao estilo dos valores (antigos) da
aristocracia. Não se trata de uma morte em vão, comum, particular; é
uma morte que expressa a fidelidade à pátria. É desta forma que o ho-
locausto se transforma em renovação do pacto entre o povo e a divina
nação.

65
Agamben, 2021, p. 39.
66
Ibid., p. 37.
170 • Problemas de hermenêutica radical

Os adversários do peronismo são qualificados de “traidores”. Neste


instante, Perón lança mão do maniqueísmo. Os peronistas são qualifi-
cados de bons; seus adversários são homens maus: “Mas há pessoas que
não reconhecem os gestos e a grandeza da maioria”. Esse maniqueísmo
do líder é expresso em sua entrevista ao semanário Sete Dias Ilustrados.
Para o líder populista “o mundo só possui homens bons e homens maus.
São as únicas categorias que aceito”. Em seguida, confirma que “o me-
lhor que os países possuem são os povos. O resto, minha querida, se
divide em duas categorias: bons e maus”. 67
Neste momento o discurso ilumina o instante imediato. Após os
bombardeios, Perón comenta que propôs uma “trégua”; mas seus adver-
sários não assentiram, pois possuem uma “vontade criminal”. A cena
que o líder descreve se traduz, não de forma específica como guerra ci-
vil, mas a um ataque covarde: “São executores alvejando os pobres
vigilantes das ruas”. Perón prepara sua mensagem principal no dis-
curso, ou seja, conclama as massas à reação armada. Para ele trata-se de
uma ação legítima. Eis o cenário: “Todo aquele que procurar alterar a
ordem é contra a autoridade constituída, também é contra a lei e a Cons-
tituição. Ele, por isso, pode ser morto por qualquer argentino”. Desse
modo, todo peronista possui o direito à violência contra os “executores”
do mal. A coragem do peronista é elogiada na expressão: “Quando um
de nós cair, cairá cinco deles!”. Se após os bombardeios de 16 de junho
de 1955 os peronistas responderam com prudência, agora é o momento
de “energia”. Observar que no discurso a entidade “povo” adquire um
sentido especial. O que justifica a reação violenta dos peronistas? Nas
palavras de Perón, “os direitos do povo”.

67
Perón, 2020, p. 285.
Dagmar Manieri • 171

A noção de povo surge com maior efetividade após as revoluções


burguesas dos séculos XVII e XVII. Na fase da Revolução Francesa temos
o exemplo de Emmanuel Sieyès em sua obra O que é o Terceiro Estado?
Para o abade Sieyès, o Terceiro Estado se identifica com a nação: “Quem
ousaria dizer que o Terceiro Estado não tem em si tudo o que é preciso
para formar uma nação completa?”. 68 Observar que a obra O que é o Ter-
ceiro Estado? foi publicada em janeiro de 1789. John Dunn acompanha a
história imediata da obra; enfatiza que não sabe “realmente o que des-
pertou nesse clérigo de quarenta anos ódio tão visceral às pretensões
aristocráticas”. 69 Esse opúsculo de Sieyès se transforma em um verda-
deiro programa da Revolução Francesa. Nas palavras de Dunn, “no
início de 1789, o texto (...) acendeu um pavio que percorreu a França”. 70
Esta é uma fase da Revolução Francesa na qual a burguesia se alia às
classes populares. Neste instante de confronto contra a aristocracia,
burguesia e classes populares estão unidas e são compreendidas como
um bloco excluído da politeia. Sieyès comenta que a estratégia da aris-
tocracia é “manter o povo na opressão”. 71 O grande objetivo do Terceiro
Estado é instituir um “direito comum” (droit commun); portanto, contra
o “privilégio” (privilège). O “povo” que surge em O que é o Terceiro Estado?
inclui, também, a burguesia. “Povo” para Sieyès é todo aquele que não
possui privilégio. Também em torno desta luta há a valorização do tra-
balho. Aqui, o “povo” é associado a um grupo social que possui o trabalho
como valor positivo:

68
Sieyès, 2002, p. 4. A tradução é de Dagmar Manieri.
69
Fink, 2016, p. 156.
70
Ibid., p. 157.
71
Sieyès, 2002, p. 8.
172 • Problemas de hermenêutica radical

(...) que sociedade é esta no qual o trabalho se faz nulo; onde é honroso con-
sumir e humilhante produzir; ou profissões laboriosas são concebidas como
vis, como se houvesse algo mais vil que o próprio vício, fazendo com que
esta vileza se concentre na classe trabalhadora? 72

Mas a própria noção de “povo” se transforma a partir de 1792, com


a intensificação dos movimentos populares e a implantação da repú-
blica. Ficou evidente na primeira fase da Revolução Francesa que a alta
burguesia comportava um projeto de poder. O voto censitário, a proibi-
ção de associações e greves, entre outros, expressam alguns desses
elementos do projeto. Desta forma, as classes populares (organizadas
politicamente em comunas) aprofundam a revolução: aqui, a noção de
“povo” se desvincula da burguesia. Em uma passagem de Filippo Buo-
narroti em sua Histoire de la Conspiration pour l’Égalité dite de Babeuf,
essa dissociação entre “povo” e burguesia se evidencia: “Nesta mesma
época [ele se refere ao pós-1792], o confronto entre os amigos da igual-
dade e os partidários da ordem do egoísmo torna-se mais claro e mais
animado”. 73 A imagem do sans-culotte corresponde ao modelo que espe-
lha com intensidade esta figura popular. Quando Alexis de Tocqueville
em fins de 1850 escreve suas lembranças (Souvenis), o “povo” que surge
dessas experiências já não é o mesmo de Emmanuel Sieyès. De formação
aristocrática, Tocqueville concebe a burguesia desta forma:

(...) [o espírito da burguesia é] ativo, industrioso, frequentemente deso-


nesto, geralmente ordenado, vez por outra temerário por vaidade e
egoísmo, algumas vezes tímido por temperamento, moderado em todas as
coisas, exceto no gosto pelo bem-estar, e medíocre; espírito que, misturado

72
Ibid., p. 39.
73
Buonarroti, 1850, p. 17.
Dagmar Manieri • 173

com o do povo ou com o da aristocracia, pode fazer maravilhas, mas, sozi-


nho, nunca produzirá mais que um governo sem virtude e sem grandeza. 74

Observar que nesta passagem o “povo” já não se imiscui à burgue-


sia. Se não temos ainda a denominada classe média da sociedade
contemporânea, o que se evidencia é a formação da classe operária no
processo de industrialização. É por isso que a noção de “povo” não pode
ser utiliza como uma categoria de análise. Ela assume diversas classifi-
cações no transcurso histórico. Isso explica o fato de que no discurso
peronista a noção de “povo” assumir uma constituição especial.
No discurso de 31 de agosto de 1955 o líder alerta as massas que se
trata de um momento decisivo. É preciso “lutar” contra a oligarquia. Pe-
rón alerta sobre o caráter ideológico dos grupos oligárquicos: eles
“falarão sobre as liberdades da justiça, da religião”. Mas o que desejam
– alerta o líder – é retroceder na história, querem viver os anos anteri-
ores a 1943.
Para Perón, a “luta” é compreendida como uma forma de sacrifício.
Observar que há duas entidades sagradas no discurso peronista: o
“povo” e a nação. O elemento ideológico está, particularmente, na iden-
tificação do peronismo com o “povo”: “Que cada um saiba que onde
houver um peronista haverá uma trincheira que defenda dos direitos do
povo”. Assim, o peronismo torna-se a representação legítima do “povo”.
Constituição (do “povo”) que só encontra sua raison d’être no universo
peronismo: eis a identificação com a função de operação ideológica.
Já o significante que opera este discurso é a nação/pátria. Tal sig-
nificante surge com uma intensa carga religiosa: “(...) nossa pátria, para
ser o que é deve ser submetida ao sacrifício”. O significante apresenta

74
Tocqueville, 1991, p. 35.
174 • Problemas de hermenêutica radical

uma função importante na ordem do discurso. É a força que dota os ou-


tros elementos de vitalidade (significado). O “povo” constituído
linguisticamente encontra no significante “pátria” sua sustentação.
Dessa forma, trabalho, sacrifício, devoção, dedicação e empenho são
justificados em nome da grandeza do significante. Em Lacan ele é o
Nome-do-Pai, fator que opera a verdadeira cadeia de significantes me-
nores. Na interpretação de Bruce Fink:

O significante do desejo do Outro, o Nome-do-Pai, é o significante binário


que foi recalcado originalmente. Esse significante é singular: é o signifi-
cante para o qual todos os outros significantes representam um sujeito.
Caso esse significante esteja faltando, nenhum dos outros significantes re-
presenta coisa alguma. 75

O sujeito constituído como parte do “povo” encontra sua bela uni-


versalidade no significante-Mestre: a nação. É o significante que faz a
operação na ordem simbólica. Sua própria constituição já traz um des-
locamento do real, pois converte o “ente” em um ser de linguagem,
simbolizado. Na expressão de Lacan, mediada por Bruce Fink: “Os sig-
nificantes são aquilo que permite que as pulsões sejam representadas:
apresentadas a nós como seres da linguagem”. 76 Inicialmente “descami-
sado”, o indivíduo é interpelado pelo discurso e se converte em um ser
social protegido: o trabalhador peronista.
Aqui reside algo importante e que não está envolvido na ordem da
linguagem. Trata-se do efeito linguístico do próprio discurso populista.
Primeiro ele constitui o sujeito; mas ao mesmo tempo dota o líder de
uma importância exagerada. O efeito linguístico produz um agente

75
Fink, 1998, p. 99.
76
Ibid., p. 98.
Dagmar Manieri • 175

protetor e desvencilhado de elementos da condição humana (o interesse


particular, principalmente). É desta forma que a prática discursiva
constitui a figura do líder.
5
LUTAS SIMBÓLICAS E REPRESENTAÇÃO

O tema da representação surge nos últimos anos como objeto de


pesquisa em diversos campos das ciências humanas. Particularmente
na área do ensino de história, a representação é estudada em sua forma
de produção iconográfica nos livros didáticos. Também na antropologia
e sociologia, encontramos o conceito de representações coletivas; ele é
um objeto de estudo que procura entender a forma como os indivíduos
compartilham do momento social.
Em Émile Durkheim ao se pensar a ação social, há o instante em
que se presencia a “força coletiva” internalizada no homem. Se a socie-
dade não existe para além das “consciências individuais”, então “é
preciso que ela penetre e se organize em nós; torna-se, assim, parte in-
tegrante de nosso ser e, por isso mesmo, eleva-o e o faz crescer”. 1 No
exemplo da moral, Durkheim visualiza a presença da sociedade, pois o
indivíduo que respeita o dever é um ser reconhecido socialmente.
Em Durkheim o que se denomina de representações coletivas apa-
rece como uma instância objetiva. Se os indivíduos, de forma particular,
são instáveis (nos sentimentos, pensamentos), a instância perene é ex-
pressa pelas representações coletivas que impõem uma padronização
comportamental. Assim, o elemento individual sente o “sistema de re-
presentações” como algo seguro (a instância objetiva, para o domínio da
sociologia). Por isso o pensar conceitual implica em subsumir o

1
Durkheim, 1996, p. 214.
Dagmar Manieri • 177

elemento variável no permanente, ou seja, o individual se reconhece na


instância social.
Como se pode notar, o estudo sociológico da representação implica
em localizar o momento da objetivação, bem como o do reconhecimento
social. Mas em Durkheim esse processo da representação/objetiva-
ção/reconhecimento implica em uma concepção reificada dos fatos
sociais: esta é a objeção de Pierre Bourdieu. Neste último, há uma con-
cepção do indivíduo em meio às lutas simbólicas; por isso as
representações coletivas são traduzidas como “crença coletiva”. Quando
o valor social se converte em autoridade reconhecida, está em curso a
“eficácia simbólica”. Bourdieu, neste caso, pensa as representações co-
letivas através da mediação das lutas simbólicas. Por isso, as pesquisas
empreendidas por pensadores de tendência mais radical conduzem o
tema das representações até ao campo político. Jacques Rancière, Er-
nesto Laclau, Michel Foucault, Slavoj Zizek, entre outros, nos mostram
que além do tema da representação, há a questão da subjetividade polí-
tica. Se observarmos com atenção, tanto as representações quanto as
subjetividades políticas compõem dois lados de um mesmo tema. A for-
mação das subjetividades não apresentaria, obrigatoriamente, a
problemática das representações?
Ver, particularmente, o enfoque de Zizek sobre o tema da subjeti-
vidade em O sujeito incômodo. Aqui não se trata, propriamente dito, de
emancipação. Zizek inicia o debate sobre dois tipos psicanalíticos: o his-
térico e o perverso. A questão de início é mostrar que o sujeito histérico
ainda é um “sujeito integrado à Lei paterna mediante a castração sim-
bólica”; já o perverso é um ser associado à “injunção superegoica de
178 • Problemas de hermenêutica radical

gozar”. 2 Deste ponto de vista, Zizek insere o pensamento de Michel Fou-


cault; para ele, este último representa “um filósofo perverso”. Isto quer
dizer que o poder atingiu até os desejos, ou melhor, ele produz desejos.
Na primeira fase dos escritos de Foucault (desde Vigiar e punir) constata-
se que “os mecanismos de poder disciplinares produzem o próprio ob-
jeto”; então, não há um “fora”, um espaço entre o poder e o objeto que
será seu efeito: “O sujeito não é apenas aquele que é oprimido pelo po-
der, mas surge como produto dessa opressão”. 3 Aqui, nos deparamos
com uma questão importante; ela reside no fato de se ter consciência
até que ponto minha tentativa de resistir ao poder já contém, em si, um
quantum de poder introjetado, alojado.
Zizek faz uma série de objeções ao último Foucault que vê no “cui-
dado de Si” dos antigos a saída à universalidade (como expressão de
poder) desde o cristianismo. Para Zizek, “a descrição foucaultiana do Si
na antiguidade pré-cristã é o necessário suplemento romântico-ingê-
nuo de sua descrição cínica das relações de poder após a Queda, em que
o poder e a resistência se justapõem”. 4 Por isso, aqui, no interior deste
debate localiza-se uma questão importante: como engendrar a subjeti-
vidade política? O próprio desafio apresentado por Zizek se refere ao
impasse: “(...) o próprio sujeito que reside a essas medidas disciplinares
e tenta se esquivar de seu domínio é, no fundo de seu âmago, marcado
por elas, formado por elas”. 5 É em torno da saída a este impasse que
propomos neste capítulo uma reflexão sobre as possibilidades de uma
nova representação, bem como a formação da subjetividade política.

2
Zizek, 2016, p. 266.
3
Ibid., p. 269.
4
Ibid., p. 270.
5
Idem.
Dagmar Manieri • 179

A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA

Antes mesmo de ingressarmos na problemática da representação é


necessário se atentar para o tema da diferença. Ele deve funcionar como
uma prévia para a efetiva prática da representação autônoma; portanto,
a diferença deve fazer parte do campo do poder simbólico. Na aprecia-
ção de Pierre Bourdieu este conceito deve ser entendido como o poder
de fazer ver, crer, produzir e “impor a classificação legítima ou legal,
(...)”. 6 Diante desta perspectiva, a diferença (social) está inscrita no
campo das lutas simbólicas. Neste momento é preciso que se evidencie
a questão: qual o sentido da expressão “ser diferente” ? Que valor há na
“diferença”? Bourdieu nos mostra que “as categorias” que tornam pos-
síveis o mundo social estão inscritas na “luta ao mesmo tempo teórica e
prática pelo poder de conservar ou de transformar o mundo social con-
servando ou transformando as categorias de percepção desse mundo”. 7
Eis, então, a grande contribuição da sociologia de Bourdieu para o tema
da representação. O nível simbólico não se aparta do modo de domina-
ção/autonomia. 8 Nesse sentido, as representações do mundo social não
são espontâneas, nem pertencem ao jogo do utilitarismo; por isso Bour-
dieu enfatiza sobre o “trabalho de representação”.
Este “trabalho de representação” pode ser subdividido, segundo
Bourdieu, em uma face objetiva, outra subjetiva. Objetivamente, as “au-
toridades” e os agentes das diversas instituições sancionam uma “visão
de mundo legítima”; subjetivamente, os sujeitos comportam “categorias

6
Bourdieu, 1989, p. 151.
7
Ibid., p. 142.
8
“Se as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas visões do mundo social que contribuem
para a permanência dessas relações, é porque os princípios estruturantes da visão do mundo radicam
nas estruturas objetivas do mundo social e porque as relações de força estão sempre presentes nas
consciências em forma de categorias de percepção dessas relações” (Ibid., p. 142).
180 • Problemas de hermenêutica radical

de percepção do mundo social” que são “produto da incorporação das


estruturas objetivas do espaço social”. O efeito desta incorporação é
descrito, dessa forma, por Bourdieu:

Em consequência, levam [as categorias de percepção do mundo social] os


agentes a tomarem o mundo social tal como ele é, a aceitarem-no como na-
tural, mais do que a rebelarem-se contra ele, a oporem-lhe possíveis
diferentes, e até mesmo antagonistas (...). 9

Assim, o poder simbólico pode ser entendido como uma modali-


dade de capital. Bourdieu amplia a noção de capital, originalmente em
Marx; essa “força social” continua sendo uma forma de expropriação, só
que agora presente em vários campos sociais como “capital cultural”,
“capital político”, etc. Nas palavras de Bourdieu, “cada campo ou sub-
campo corresponde uma espécie de capital particular, que ocorre como
poder e como coisa em jogo, neste campo”. 10
Essa breve incursão na sociologia de Bourdieu é importante, pois
nos mostra como as representações estão inscritas nos conceitos de câ-
non e organon. O que Bourdieu denomina de face subjetiva pode ser
entendida como cânon incorporado; já o organon é face objetiva, com
seus agentes (institucionalizados) que realizam a tarefa de inculcação. 11

9
Ibid., p. 141. Em A economia das trocas simbólicas, habitus surge como um “sistema de esquemas” que
orienta “de maneira constante escolhas que, embora não sejam deliberadas, não deixam de ser
sistemáticas e, embora não sejam ordenadas e organizadas expressamente em vista de um objetivo
último, não deixam de ser portadoras de uma espécie de finalidade que se revelará só post festum”
(Bourdieu, 2019a, p. 356).
10
Bourdieu, 1989, p. 134.
11
Para efeito de exemplo (literário), ver o conto de Franz Kafka, A colônia penal. Aqui, há uma máquina
infernal que tortura e mata o condenado. Neste “presídio” há um oficial que opera a máquina. Kafka
afirma que ele é “um admirador ardente daquela máquina, (...)” (1989, p. 100). Ocorre que o contexto
histórico do conto se passa no momento em que um novo chefe é designado para comandar a
instituição; ele é “progressista” e intenta abolir a máquina. O oficial incorpora a “justiça” punitiva que
rejeita outros métodos: ele até desenvolve um gosto estético pela máquina. No final, ele mesmo se
Dagmar Manieri • 181

Diante disso, a diferença para se afirmar (em sua positividade) necessita


se diferenciar (ou se libertar) do cânon (legítimo).
Gilles Deleuze nos apresentou uma filosofia da diferença; ela pode
nos auxiliar na tarefa de positivar uma prática que se assume no ato de
transgressão. Isto porque ingressa no jogo das representações uma nova
potência singular. Deleuze comenta que a tarefa da filosofia da diferença
é tirar esta última “de seu estado de maldição”. 12 Então, se a “diferença
deve sair de sua caverna e deixar de ser um monstro” (Cf. Deleuze), há de
ocorrer em torno dela um trabalho cuidadoso em si (a própria subjetiva-
ção política em sua gênese). Deleuze se refere em demasia à noção de
“afirmação”. Assim, a grande questão em torno da diferença é o trabalho
de afirmação que irá se constituir. Em Diferença e repetição há uma série
de advertências sobre o perigo da subordinação da diferença junto às po-
tências de dominação. O grande problema, neste caso, é afirmar a
diferença sem cair nas estratégias das potências dominadoras. 13
A diferença em sua fase de afirmação constitutiva deve estar pre-
parada para a reação de “um modelo ou de uma posição privilegiada”,
ou seja, o organon. A imagem de maldita que recebe a “diferença” repre-
senta a sentença do cânon; já o organon, através de sua prática
institucionalizada lançará a sentença ao nível da transgressão - algo que
ameaça a coesão social. São dois momentos que devem ser confronta-
dos, sem que a diferença afirmativa caia presa nas interpelações das

submete àquele “suplício requintado”. Bem ao estilo de Kafka, o conto nos mostra o extremo de uma
incorporação na figura do oficial.
12
“O pensamento “estabelece” a diferença, mas a diferença é o monstro. Não deve causar espanto o fato
de que a diferença pareça maldita, que ela seja a falta ou o pecado, a figura do Mal destinada à expiação”
(Deleuze, 2009, p. 56).
13
“Em vez de pensar a diferença em si mesma, ele [o platonismo] já a remete a um fundamento,
subordina-a ao Mesmo e introduz a mediação sob a forma mítica. Subverter o platonismo significa o
seguinte: recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem” (Ibid., p. 106).
182 • Problemas de hermenêutica radical

potências. Assumir-se como “rebelde” parece ser um sinal de luta no


interior do organon. As potências não esperam da diferença uma luta
travada com as mesmas armas. Quando Pierre Grimal em História de
Roma explica a greve dos plebeus, mostra a reação dos patrícios. Ele co-
menta que a concórdia se efetivou “para acalmar a cólera dos plebeus,
(...)”. 14 Mas, que “cólera” se traduz nesta forma de luta? De forma astuta
e inteligente, os plebeus politizados conquistam um espaço de repre-
sentação política. Eles lutam com as mesmas armas dos patrícios:
mostram, de forma universal, que são úteis ao Estado. 15 A greve é uma
experiência política que visa dar visibilidade (daí seu valor) ao trabalho
da plebe. A tática é mostrar que os plebeus são úteis ao Estado: a plebe
inventa a greve para se afirmar de forma positiva. Nesta mesma con-
cepção, observar esta passagem de Axel Honneth:

Para a questão acerca das condições do autorrespeito, resulta daí que um


indivíduo só é capaz de respeitar-se a si mesmo de um modo integral
quando, no quadro da distribuição objetivamente dada de funções, pode
identificar a contribuição positiva que ele traz para a reprodução da coleti-
vidade. 16

Por isso a grande questão em Diferença e repetição (de Deleuze) se


resume desta forma: “Em que outras condições a diferença desenvolve
este Em-Si como “diferenciador” e reúne ao diferente para além de toda
representação possível?” 17 Esse Em-Si que se pergunta é o Ideal, conceito

14
Grimal, 2008, p. 26.
15
E como os patrícios justificam a dominação? Mateus Wesp localiza com propriedade esta justificação;
ela está na “auctoritas divina da autoridade sacerdotal incrustada no Senado, (...)” (2018, p. 242). Ver que
quando Wesp se refere aos concílios da plebe (Concilium Plebis), não deixa de enfatizar que essas
assembleias se formavam “sem ritos sagrados”. Ou seja, na assembleia popular “não haviam auspícios
ou ritos religiosos: eram reuniões puramente políticas, sem caráter religioso (inauspiciata)” (Ibid., p. 250).
16
Honneth, 2009, p. 150.
17
Deleuze, 2009, p. 172.
Dagmar Manieri • 183

importante na filosofia de Deleuze. Na interpretação de Regina


Schöpke, em Deleuze “a representação reduz à diferença”. 18 Por isso a
diferença necessita de uma potência. David Lapoujade, de forma apro-
priada, em Deleuze, os movimentos aberrantes, resgata a concepção de
Ideia no filósofo francês. Em sua interpretação, a diferença necessita da
Ideia, pois esta é “um plano diferencial genético: um corte do sem-
fundo, perfeitamente determinado, diferenciado em si mesmo”. 19 Essa é
a consistência que requer a diferença, mas não uma “consistência” ide-
alista como em Platão ou transcendental, em Kant. Lapoujade enfatiza
que “a Ideia deve se encarnar, se atualizar, se efetuar”. 20 Observar na
interpretação de Lapoujade, a importância da Ideia:

Isso não impede que ela [Ideia] seja real e que, como tal, obedeça a uma ló-
gica, justamente enquanto Ideia. Pois essa matéria não é informe; pelo
contrário, é diferenciada em si mesma, animada pela lógica de uma dife-
renciação interna, ainda virtual. Nesse sentido, a matéria da Ideia é uma
matéria expressiva. O que ela exprime através dos indivíduos é essa lógica
diferencial. A Ideia é, ao mesmo tempo, a matéria intensiva e alógica dessa
matéria – desde que se conceba essa lógica como estritamente imanente a
essa matéria, pois é a expressão dela. 21

Passagem significativa, pois mostra como a Ideia é a própria “lógica


de uma diferenciação interna”. Outro detalhe importante em relação à
Ideia é que ela constitui uma potência: o que se atualiza são as “potencia-
lidades da Ideia”. Lógica interna e potencialidade na Ideia são os fatores

18
Schöpke, 2004, p. 148. Observar, assim, a importância da diferença: “O diverso é o dado, mas a diferença
é aquilo que faz com que algo seja diverso. Daí podermos dizer que, vista sob um outro ângulo, a
representação jamais apreende a diferença” (Ibid., p. 149).
19
Lapoujade, 2017, p. 110.
20
Ibid., p. 111.
21
Ibid., p. 112, 113.
184 • Problemas de hermenêutica radical

que permitem a individuação. Lapoujade explica que a individualização


em Deleuze “é o lugar de uma espécie de teatro, o lugar onde opera o in-
formal, o momento em que as relações diferenciais que coexistem na
Ideia se encarnam segundo esta ou aquela relação característica; (...)”. 22
Por isso o individuar-se requer a expressão da Ideia e o vir-a-ser
das “potências intensivas”. Lapoujade afirma que “a Ideia é o próprio
princípio de individuação”. 23 Aqui, fica evidente o obstáculo (ou perigo)
que a individuação deve superar: o instante em que o Outro se pensa
nele. Em Cornelius Castoriadis isso se expressa como o discurso do Ou-
tro: “O sujeito não se diz, mas é dito por alguém, existe pois como parte
do mundo de um outro (certamente, por sua vez, travestido)”. 24 É nesse
sentido que se deve considerar a filosofia da diferença em Deleuze uma
grande contribuição para se pensar o tema da representação. Isto por-
que nesta filosofia descobre-se o potencial da diferença que está na
Ideia. 25 Eis por que Deleuze vê como uma das tarefas da filosofia pensar
as singularidades:

As singularidades são acontecimentos ideais. É impossível que as noções de


singular e de regular, de notável e de ordinário, tenham para a própria filo-
sofia uma importância ontológica e epistemológica muito maior do que as
de verdadeiro e falso, pois o sentido depende da distinção e da distribuição
desses pontos brilhantes na Ideia. 26

22
Ibid., p. 115, 116. Lapoujade ainda acrescenta: “É uma das características essenciais da individuação
em Deleuze: ela faz o sem-fundo ideal ascender como campo de experimentação no indivíduo a fim de
transformá-lo, de submetê-lo a metamorfoses, de arrancá-lo de suas territorialidades” (Ibid., p. 116).
23
Ibid., p. 118.
24
Castoriadis, 1986, p. 124.
25
“A Ideia, a descoberta da Ideia, é inseparável de um certo tipo de questão. Primeiramente, a Ideia é
uma “objetividade” (objectité) que, como tal, corresponde a uma maneira de levantar as questões”
(Deleuze, 2006, p. 130).
26
Ibid., p. 135.
Dagmar Manieri • 185

Deleuze evoca o pluralismo e confidencia que ele é “um pensa-


mento mais perigoso e mais arrebatador”. 27 Não se trata de uma questão
de “oposição” ou de uma tendência “negativa”; a diferença já denuncia
essas últimas “como aparências em relação ao campo problemático de
uma multiplicidade positiva”. 28 Uma sutil diversidade, mas que é funda-
mental, já que são inúmeros os elementos do jogo que intentam subtrair
o potencial da diferença. 29

A HERMENÊUTICA NO PENSAR EM NIETZSCHE

Friedrich Nietzsche pode ser entendido como um pensador que


promoveu uma virada epistemológica, fundando a denominada moder-
nidade filosófica. Como bem ressaltaram seus intérpretes Greta Kamaji
e Gianni Vattimo, pensar os escritos de Nietzsche implica em uma con-
cepção de mundo na qual se problematizam as noções de “realidade”,
“verdade” e “fato”. A radicalidade de Nietzsche se caracteriza como uma
“hermenêutica da suspeita”, nas palavras de Kamaji. Para esta última é
possível pensar a “dimensão hermenêutica do pensamento de Nietzs-
che”. 30 A prática é hermenêutica – no exemplo de Nietzsche – porque
não há “nenhuma posição pura” referente à interpretação. Assim, se não
há uma posição superior ou neutra, então toda interpretação provém de
uma dimensão perspectivista. 31

27
Deleuze, 2009, p. 288.
28
Idem.
29
“Quando se lê a diferença como uma oposição, ela já foi privada de sua espessura própria, em que
afirma sua positividade” (Ibid., p. 289).
30
Kamaji; Weber; González-Valerio, 2004, p. 54.
31
No início de A gaia ciência, Nietzsche apresenta seu “Prelúdio em rimas alemãs”. Em uma delas - O
pintor realista - , escreve: “ “Fiel à natureza inteira” – Como faz ele então: desde quando a natureza acabou
na imagem? Pois é infinita a mais ínfima parcela do mundo! Afinal, deste ele pinta o que lhe agrada. E o
que lhe agrada? O que é capaz de pintar” (Nietzsche, 2001, p. 43, 45).
186 • Problemas de hermenêutica radical

É nesse sentido que ao romper com a modernidade capitalista na


tradução de “niilismo”, “noção de progresso”, “cientificismo” e “demo-
cracia”, Nietzsche funda uma nova senda para futuros radicais como
Michel Foucault, Gilles Deleuze, entre outros. Por isso a inserção de Ni-
etzsche na modernidade se dá de uma forma conflituosa. No primeiro
momento há uma admiração do jovem filósofo ante as formas culturais
da Grécia antiga, particularmente o teatro trágico anterior a Eurípides.
O que chama a atenção do jovem Nietzsche é a forma como os gregos
antigos concebem a vida, expressa através do teatro trágico. Neste úl-
timo, há uma conjugação entre duas vontades: apolínea e dionisíaca.
São textos da juventude escritos por volta de 1870, quando Nietzs-
che tinha 25 anos, como A visão dionisíaca do mundo. Neles, presencia-
se o jovem pensador entusiasta pelo artista conformado pelo teatro de
Dioniso. Mas, que tipo de homem é este? Um homem que não é só prin-
cipium individuationis, mas um ser que se abre a novas forças:

As festas de Dioniso não firmam apenas a ligação entre os homens, elas


também reconciliam homem e natureza. Voluntariamente a terra traz os
seus dons, as bestas mais selvagens aproximam-se pacificamente: coroado
de flores, o carro de Dioniso é puxado por panteras e tigres. 32

Dioniso representa uma intensa força que provém da natureza.


Mas, aqui, não podemos nos distanciar do jovem Nietzsche, de sua atra-
ção pela arte dionisíaca. Ela rompe o nexo do homem com o “mundo
vulgar e ruim” e lhe devolve uma visão trágica do mundo: “Na consci-
ência do despertar da embriaguez, ele [o espírito dionisíaco] vê por toda

32
Nietzsche, 2010, p. 8.
Dagmar Manieri • 187

parte o horrível ou absurdo do ser humano: esse o repugna. Agora ele


entende a sabedoria do deus silvestre”. 33
Neste ponto já nos deparamos com uma característica importante
do nietzschianismo: o pessimismo trágico ante o orgulho racional oti-
mista (Sócrates). Por isso há no Nietzsche deste período um ideal de
grandeza. Sua admiração ante a tragédia grega significa que o palco do
teatro mostra que o grego se vê como descendente de “deuses e semi-
deuses”. Isso mostra a inferioridade do teatro de Eurípides: ele
introduziu no palco “o homem na realidade da vida cotidiana, (...)”. 34 Com
Eurípides se perde a sublimidade das forças divinas: “Com ela [arte de
Eurípides] o heleno abandonou a crença em sua imortalidade, não so-
mente a crença em um passado ideal, mas também a crença em um
futuro ideal”. 35
Nesta fase da juventude já se presencia em Nietzsche o filósofo-
artista. Para ele a arte é uma força que auxilia o homem a viver, isto
ocorre para não se sentir o horror da vida. Rüdiger Safranski acompa-
nha o pensamento de Nietzsche desde os tempos da Universidade da
Basileia. Ele indica que um acontecimento importante na trajetória in-
telectual do jovem alemão foi a descoberta de Arthur Schopenhauer. 36
Na interpretação de Safranski, a filosofia deste último se expressa, as-
sim:

33
Ibid., p. 25.
34
Ibid., p. 73.
35
Ibid., p. 75.
36
Scarllet Marton comenta: “Certo dia de 1865, Nietzsche encontra a obra [de Schopenhauer, O mundo
como vontade e representação, de 1818] numa livraria; compra um exemplar e entusiasma-se com o
pensamento de Schopenhauer: nenhuma Providência, nenhum Deus dirige o universo; todos os
fenômenos não passam de aspectos de uma cega vontade de viver; essa vontade de viver absurda, sem
razão ou finalidade, revela-se como a essência do mundo; (...)” (1993, p. 24, 25).
188 • Problemas de hermenêutica radical

(...) a ideia de que o mundo em sua natureza interior não é algo racional ou
espiritual, mas impulso e tendência obscura, uma realidade dinâmica e
carente de sentido, quando a julgamos segundo o padrão de nossa razão. 37

Além de Schopenhauer, outra figura que exercerá forte influência


sobre Nietzsche é Richard Wagner. Rüdiger Safranski comenta que o
primeiro encontro de Nietzsche com o compositor alemão se deu em
1868; essa relação cultural se transcorreu até o final de 1876, instante
em que se dá o rompimento. 38 O compositor alemão representava uma
arte gloriosa; evidentemente, como afirma Safranski, Nietzsche vislum-
brava em Wagner o “renascimento da tragédia grega”. Em 1878,
Nietzsche lança Humano, demasiado humano, uma obra que já mostra a
ruptura com Wagner. 39 A partir deste instante, o filósofo alemão empre-
ende uma espécie de auto-crítica; por isso surge em seus futuros
escritos os termos “idealismo” ou o “sonho de um mito estético”. Na in-
terpretação de Safranski, por volta de 1875 há uma “crise
transformadora” em Nietzsche: “O triunfo da vontade de conhecimento
sobre a vontade de arte e do mito”. 40 As sementes de uma visão herme-
nêutica da “realidade” do mundo já estão em Humano, demasiado
humano. No início da obra, o pensador enfatiza:

37
Safranski, 2004, p. 50. Tradução é de Dagmar Manieri.
38
O próprio Nietzsche em Nietzsche contra Wagner, comenta: “Foi no verão de 1876, durante o primeiro
Festival, que me despedi interiormente de Wagner. Eu não tolero nada ambíguo; depois que Wagner
mudou-se para a Alemanha, ele transigiu passo a passo com tudo o que desprezo – até mesmo o
antissemitismo... Era de fato o momento para dizer adeus: logo tive a prova disso. Richard Wagner,
aparentemente o mais triunfante, na verdade um décadent desesperado e fenecido, sucumbiu de
repente, desamparado e alquebrado, ante a cruz cristã...” (2009, p. 66).
39
Marton comenta: “Transcorridos quase três anos [após a ruptura de 1876], ao receber o exemplar de
Humano, demasiado humano, o compositor [Wagner] silencia. Mas nas Folhas de Bayreuth aparece um
artigo condenando o livro” (1993, p. 29).
40
Safranski, 2004, p. 169. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche comenta: “Mas os homens pode
conscientemente decidir se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes se desenvolviam
inconsciente e acidentalmente (...). Quero dizer: é precipitado e quase absurdo acreditar que o progresso
deva necessariamente ocorrer; mas como poderia negar que ele seja possível?” (2000, p. 33).
Dagmar Manieri • 189

Quem nos desvendasse a essência do mundo nos causaria a todos a mais


incômoda desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo como
representação (como erro) que é tão rico em significado, tão profundo, ma-
ravilhoso, portador de felicidade e infelicidade. 41

Para Safranski, nesta obra já estamos próximos da “relatividade” e


do perspectivismo nietzschiano; um pensador que “mais tarde (...) for-
mulará assim este pensamento: só há interpretações, não conhecemos
nenhum texto originário”. 42 Também em Humano, demasiado humano já
se presencia a crítica aos valores, na expressão do cristianismo. 43 Na
análise de Martin Heidegger a questão do valor em Nietzsche se dá,
desta forma:

(...) enquanto ponto de vista, o valor é sempre posicionado pela visão; para
o olhar voltado intencionalmente para algo, é por meio do posicionamento
que o valor se torna pela primeira vez um “ponto” pertencente ao canal de
visão desse olhar. Portanto, os valores não coisas que se encontram de an-
temão e em si presentes, de modo que também podem se transformar
ocasionalmente em pontos de vista. 44

Passagem interpretativa importante de Heidegger, na medida em


que mostra que não há uma positividade (como no caso da religião) por
trás dos valores. Esses últimos representam “as condições das

41
Ibid., p. 37.
42
Safranski, 2004, p. 171.
43
“Já o cristianismo esmagou e despedaçou o homem por completo, e o mergulhou como num lodaçal
profundo: então, nesse sentimento de total abjeção, de repente fez brilhar o esplendor de uma
misericórdia divina, de modo que o homem surpreendido, aturdido pela graça, soltou um grito de
êxtase e por um momento acreditou carregar o céu dentro de si” (Nietzsche, 2000, p. 94).
44
Heidegger, 2014, p. 530.
190 • Problemas de hermenêutica radical

“conformações de domínio” no interior do devir, (...)”. 45 Assim, os valores


são figuras da vontade de poder. 46
É neste instante que é necessário visitarmos dois escritos do Nietzs-
che tardio. Eles retomam o debate em torno da figura de Richard Wagner.
No Prólogo de O caso Wagner, Nietzsche já define seu objeto. No fundo, os
escritos sobre Wagner representam uma reflexão sobre o “valor do mo-
derno”. 47 Assim, pode-se interrogar: o filósofo foi atingido pelo moderno
(por ser valor)? Nietzsche responde que “ninguém, talvez, cresceu tão pe-
rigosamente junto ao wagnerismo” do que ele; por isso, pensar em
Wagner é fazer uma reflexão sobre a modernidade. Nietzsche se confessa
ao leitor que como filho de seu tempo compartilhou da decadência da mo-
dernidade. Então, ao ser wagneriano o filósofo se torna um décadent.
Houve reação? Sim, Nietzsche responde que ele se defendeu: “O filósofo
em mim se defendeu”. 48 A grande tese de O caso Wagner (escrito em 1888)
se traduz na expressão: “Wagner é danoso”. O perigo de sua música é que
ela corrompe o gosto; por isso em um tom irônico, Nietzsche afirma que
Wagner não é um ser humano, mas uma doença. Wagner representa a
décadence européia; o filósofo comenta que o compositor é o maior pro-
tagonista desta fase, pois logo o fato de ninguém lhe opor resistência já é
um sintoma da décadence: “Colocá-lo nas nuvens é honrar a si mesmo. (...)

45
Ibid., p. 533.
46
“Com freqüência, Nietzsche não denomina “valores” apenas as condições dessas conformações de
domínio, mas também as próprias conformações de domínio; e isso com razão. Ciência, arte, Estado,
religião, cultura são considerados como valores, na medida em que são condições por meio das quais
se realiza a ordem daquilo que vem a ser enquanto a única coisa real. Como conformações de poder,
esses valores instauram, por sua vez, uma vez mais determinadas condições para o próprio
asseguramento de sua consistência e para o seu próprio desdobramento. O devir mesmo,contudo, isto
é, aquilo que é real na totalidade, “não possui valor Algum” ” (Ibid., p. 533, 534).
“Antes de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu
47

mal, desaprendeu todo pudor. E, inversamente, teremos feito quase um balanço sobre o valor do
moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal em Wagner” (Nietzsche, 2009, p. 10).
48
Ibid., p. 9.
Dagmar Manieri • 191

O instinto está debilitado. O que se deveria evitar, atrai. Leva-se aos lábios
o que conduz mais rapidamente ao abismo”. 49
O adoecimento que provoca a música de Wagner é devido ao fato de
ela “excitar nervos cansados”. Uma música grandiosa, elevada e gigan-
tesca é uma arte feita para as massas. 50 O engano desta arte está em seu
intento: “A procura pelo baixo excitamento dos sentidos, pela assim cha-
mada beleza, (...)”. 51 Há, também, em torno de Wagner a imagem que foi
criada pelos críticos; o que hoje agrada em Wagner “foi inventado para
convencer as massas”; por isso um wagneriano é um ingênuo. 52 O Nietzs-
che que se mostra em O caso Wagner é o artista aristocrático. Como bem
expressa Nietzsche contra Wagner (textos selecionados a partir de 1877), há
uma rejeição do filósofo ante o “populacho culto”. Para ele, a boa arte deve
ser “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artifi-
cial”. Arte que se traduz “como uma pura flama” que “lampeja num céu
limpo!”. Enfim, “uma arte para artistas, somente para artistas!”. 53
Uma das características do nietzschianismo é o perspectivismo; esta
situação de perspectiva é ressaltada por Nietzsche em A vontade de poder.
Ele comenta que “a questão dos valores é mais fundamental do que a
questão da certeza, (...)”. 54 Nesse horizonte teórico, não há nenhum crité-
rio seguro para a “realidade”. Nietzsche ainda acrescenta: “As

49
Ibid., p. 18, 19.
50
Heidegger comenta sobre essa fase wagneriana de Nietzsche: “O que cativou o jovem Nietzsche no
homem Richard Wagner e em sua obra foi esse arrebatamento que impelia para o todo a partir da
embriaguez” (Heidegger, 2014, p. 71).
51
Nietzsche, 2009, p. 22.
“O wagneriano, com seu estômago crédulo, chega a saciar-se do alimento que o mestre o faz enxergar.
52

Nós, porém, que dos livros e da música exigimos sobretudo substância, estamos mal servidos em mesas
apenas “representadas”, e nos vemos em situação pior. Falando mais claro: Wagner não nos dá o
bastante para mastigar” (Ibid., p. 26).
53
Ibid., p. 72, 73.
54
Nietzsche, 2008, p. 310.
192 • Problemas de hermenêutica radical

representações e as percepções não travam uma luta pela existência, mas


sim pelo domínio: a representação superada não é aniquilada, mas so-
mente empurrada para trás ou subordinada”. 55 Assim, no pensamento
nietzschiano, a interpretação é uma forma de introduzir valor nas coisas.
Em Nietzsche, valor do mundo não difere das interpretações; esta
última pode ser entendida como uma “apreciação perspectiva”. Está em
jogo, aqui, a situação de uma fonte de interpretação que o filósofo ca-
racteriza como vontade de poder. Para ele, “cada elevação do homem
traz consigo a superação de interpretações mais estreitas; que cada for-
talecimento e extensão de poder alcançados abre novas perspectivas e
nos convoca a crer em novos horizontes (...)”. 56 Percebe-se que em Ni-
etzsche, “sentido” e “representação” surgem como efeitos do ato
interpretativo. Na compreensão de Gianni Vattimo:

Até mesmo aquilo que julgamos ser a realidade e que distinguimos das in-
terpretações já é o produto de uma atividade metafórica, “livremente
criativa e poetante”; só que essas metáforas não são mais reconhecidas
como tais porque se tornaram as bases de toda uma sociedade, época ou
unidade histórica. 57

Neste caso, a filosofia em seu instante metafísico deixa de ser uma


ontologia; filosofia que em Nietzsche se transforma em hermenêutica
na medida em que “um único texto permite inúmeras interpretações:
não existe nenhuma interpretação “certa” ”, nas palavras do próprio Ni-
etzsche. 58 Para Vattimo, Nietzsche inaugura uma hermenêutica
ontológica. Isso implica em dizer que na prática hermenêutica de

55
Idem.
56
Ibid., p. 316.
57
Vattimo, 2010, p. 103.
58
Apud Vattimo, 2010, p. 117.
Dagmar Manieri • 193

Nietzsche a “realidade” adquire um caráter interpretativo. Mas se o


termo “ontológico” é problemático no nietzschianismo, não se pode es-
quecer que na genealogia proposta (pelo filósofo alemão) há uma
intenção no sentido de se buscar a racionalidade que pensa os valores
do presente.
Na Genealogia da moral há uma espécie de programa para se abordar
um objeto em seu sentido histórico. No exemplo do estudo sobre a “ori-
gem da moral”, deve-se evocar os “juízos de valor (do “bom” e do “mau”)”.
Então, o tema da moral só encontra seu objeto de estudo quando se pro-
blematiza o juízo através do conceito de valor; ele é um produto da ação
humana. No sentido temporal, Nietzsche apreende os modos de valora-
ção: aqui, descobre-se um campo de estudo seguro. É na Primeira
Dissertação da Genealogia da moral que surge o modo de valoração aristo-
crático. Agathós é o “bom” na perspectiva da aristocracia; ele implica
“alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro; depois, numa
mudança subjetiva, significa o verdadeiro enquanto veraz (...)”. 59
Já na Segunda Dissertação, encontra-se a grande reflexão. Ele
acentua que há uma lacuna entre “a causa da gênese de uma coisa” e sua
“utilidade final”. Isso ocorre porque o assenhoriar (de algo) por um po-
der superior implica em uma nova interpretação visando novos fins,
“requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma
nova utilidade, (...)”. 60 Assim, destrói-se a noção de processo; Nietzsche
complementa sua reflexão:

Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma von-
tade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o

59
Nietzsche, 2005, p. 22.
60
Ibid., p. 66.
194 • Problemas de hermenêutica radical

sentido de uma função; e toda a história de uma “coisa”, um órgão, um uso,


pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas
interpretações e ajustes, cujas causas nem precisam estar relacionadas en-
tre si, antes podendo se suceder e substituir de maneira meramente
casual. 61

Segundo esta postura teórica, o estudo de um objeto (na perspec-


tiva genealógica) torna-se uma espécie de reconstrução. Como ressalta
Michel Foucault, na genealogia se rompe com a visão “meta-histórica
das significações ideais e das indefinidas teleologias”. 62 Não é possível
uma história do objeto no plano da continuidade, como se ela manti-
vesse algo “substancial”. O objeto de estudo da genealogia é concebido
como algo “sem essência”; ele é construído “peça por peça a partir de
figuras que lhe eram estranhas”. 63

OBJETIVAÇÃO E RECONHECIMENTO

No estudo sobre as representações não se pode esquecer duas di-


mensões importantes do fenômeno representacional; sem eles, o objeto
pode ser caracterizado como algo abstrato, um ente que cai no âmbito
geral. Primeiro, o momento hegemônico do ato representativo. Ernesto
Laclau estuda este aspecto com propriedade ao mostrar que nas repre-
sentações há uma luta hegemônica. Assim, a eficácia simbólica implica
em um domínio do significante na medida em que há o agenciamento
de grupos e setores excluídos. Laclau utiliza o termo “momento de to-
talização representativa”, ou seja, a eficácia da prática hegemônica

61
Idem.
62
Foucault, 1979, p. 16.
63
Ibid., p. 18.
Dagmar Manieri • 195

implica em converter a representação em um “momento de totaliza-


ção”. 64
Esse processo de “totalização” ocorre porque se deve ocultar a na-
tureza social do capitalismo; as contradições sociais assumem a forma
de “diferenças” que Laclau denomina de “excesso de sentido do “social”
– e as dificuldades encontradas por qualquer discurso que tenta fixar
essas diferenças como momentos de uma estrutura articulatória está-
vel”. 65 Construções simbólicas sempre precárias (embora erigidas com
eficácia), pois o Real do social se esquiva de uma representação possível:

Se o social não consegue fixar a si mesmo nas formas inteligíveis e institu-


ídas de uma sociedade, o social só existe, no entanto, como um esforço para
construir esse objeto impossível. Qualquer discurso se constitui como ten-
tativa de dominar o campo da discursividade, de deter o fluxo das
diferenças, de construir um centro. 66

Neste caso, se o sistema social “não pode ser representado”, toda


forma de totalidade social passa a ser inadequada, isto porque são re-
presentações provindas de um sentido particular. Laclau acrescenta que
“o momento [do social] de sua totalização impossível será simbolizado
por particulares que assumam contingentemente essa função represen-
tativa”. 67 O particular em seu “papel hegemônico” realiza a função “de
representar o universal”. Ele faz de sua própria “particularidade o corpo
significante de uma representação universal, (...)”. 68 Então, em um

64
Laclau, 2013, p. 237.
65
Laclau, 2015, p. 167.
66
Ibid., p. 187.
67
Laclau, 2011, p. 89.
68
Idem.
196 • Problemas de hermenêutica radical

sistema social de diferenças esse particular exerce um poder hegemô-


nico ao nível das representações.
Na segunda forma de se abordar as representações, há o poder. Na
apreciação de Stuart Hall, desde Gramsci e Foucault, encontra-se uma
nova concepção de poder que, agora, “envolve o conhecimento, a repre-
sentação, as ideias, a liderança e autoridade cultural, (...)”. 69 Rompe-se,
nesse caso, com uma forma de apreciação que entende o poder como
uma força de coação e que se expande de cima para baixo do estrato
social. Com os estudos de Foucault, principalmente, sabe-se que “o po-
der não só restringe e inibe: ele também é produtivo; gera novos
discursos, novos tipos de conhecimento (...)”. 70
No estudo das representações na perspectiva dos grupos dominan-
tes, portanto, deve-se apreciar essa dimensão: o instante da hegemonia
como prática de poder. Em sentido inverso, a possível autonomia dos
grupos e setores excluídos deve ser pensada como uma espécie de con-
quista política; no âmbito simbólico, ela implica o controle da dimensão
representativa. Na acepção de Jacques Rancière, a política nos conduz a
uma forma de atividade “que tem por racionalidade própria a raciona-
lidade do desentendimento”. 71 A política pode ser expressa como uma
forma de consciência de que a “parte” (da comunidade) possui “valor”:

A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela


instituição de uma parte dos sem-parte. Essa instituição é o todo da política
enquanto forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade
como comunidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que

69
Hall, 2016, p. 196.
70
Idem.
71
Rancière, 2018, p. 12.
Dagmar Manieri • 197

escapa à aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não
há política. Há apenas a ordem da dominação ou a desordem da revolta. 72

Rancière se refere aos “mundos de dissentimento” no caso de lití-


gios institucionalizados. Aqui, fica evidente que o movimento que
acompanha a conquista política é o do reconhecimento. A luta simbólica
em torno da representação equivale ao ser que é reconhecido em sua
autonomia; ao contrário, podemos ter uma forma de identidade intrusa
que ao mesmo tempo toma o lugar das formas autônomas. Como no ins-
tante político evidenciado pelo hegelianismo, o reconhecimento
(Anerkemmen) se caracteriza como uma das definições que fundamen-
tam o ser humano. Observar esta passagem de Kojève, ao interpretar o
pensamento de Hegel:

É possível afirmar que o reconhecimento social é que distingue o homem,


como entidade espiritual, do animal e de tudo o que é apenas natureza. Ora,
é no e pelo reconhecimento universal da particularidade humana que se re-
aliza e manifesta a individualidade. 73

Ao que tudo indica, há duas formas de reconhecimento. Uma que


implica na institucionalização da “parte”; outra, que pode ser considerada
como a hegemonização da “parte”. Na leitura de Paul Ricoeur o tema do
reconhecimento está vinculado à estima social. Como no modelo familiar,
a nomeação corresponde a uma espécie de transmissão: “Como compen-
sação para essa autorização para me nomear, eu sou autorizado a
continuar a transmissão, em nome daqueles que fizeram de mim seu her-
deiro, e a ocupar no momento apropriado o lugar do pai ou da mãe”. 74

72
Ibid., p. 26.
73
Kojève, 2014, p. 474.
74
Ricoeur, 2006, p. 208.
198 • Problemas de hermenêutica radical

Portanto, as duas formas de reconhecimento nos conduzem a dois


sentidos no modelo de representações. São sentidos que podemos iden-
tificar na polaridade subjetivo/objetivo. Pierre Bourdieu em A economia
das trocas linguísticas nos auxilia nesta reflexão. Para ele a linguagem
contém, na dimensão das representações, “uma eficácia propriamente
simbólica de construção da realidade”. 75 Trata-se de um poder de nome-
ação “em indivíduos que agem em seu próprio nome ou em nome de um
grupo”. Neste caso, constitui-se a “autoridade simbólica enquanto po-
der socialmente reconhecido de impor uma certa visão do mundo social,
ou seja, das divisões do mundo social”. 76
Bourdieu qualifica a representação como uma espécie de “alqui-
mia”. Isto ocorre porque “o representante constitui o grupo que o
constitui”. Como no exemplo do intelectual orgânico no marxismo,
Bourdieu comenta sobre esta espécie de agente da representação:

O porta-voz autorizado consegue agir com palavras em relação a outros


agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida
em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe
conferiu o mandato e do qual ele é, por assim dizer, o procurador. 77

Mas, se por diversas razões, ocorrer de o grupo não possuir um


“porta-voz” com capital simbólico, pode surgir o fenômeno em sentido
inverso. A representação se proclama como autoridade e através de me-
canismos sociais, inicia a produção da cumplicidade, “fundada por sua
vez no desconhecimento o princípio de toda e qualquer autoridade”. 78

75
Bourdieu, 1996, p. 81.
76
Ibid., p. 82.
77
Ibid., p. 89.
78
Ibid., p. 91.
Dagmar Manieri • 199

Assim, a autoridade provém da capacidade de produção/reprodução das


formas de representação que geram o reconhecimento (neste caso, a he-
gemonização da “parte”).
Neste modelo teórico, a subjetivação política (enfatizada por Ran-
cière) adquire uma melhor compreensão: “Por subjetivação entenda-se
a produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma capaci-
dade de enunciação que não eram identificáveis num campo de
experiência dado, (...)”. 79 Subjetivação que rompe com uma antiga iden-
tificação e questiona a “naturalidade” das representações sociais: ela
produz uma abertura capaz de gerar um novo sujeito. Ainda nas pala-
vras de Rancière:

Uma subjetivação política é uma capacidade de produzir essas cenas polê-


micas, essas cenas paradoxais que revelam a contradição de duas lógicas, ao
colocar existências que são ao mesmo tempo inexistências ou inexistências
que são ao mesmo tempo existências. 80

Se de um lado pode-se indicar a autonomia, por outro a sociologia


de Bourdieu ressalta a heteronomia no instante social (que constrói a
“representação do real”). No processo de socialização nos tornamos
agentes investidos. Na investidura, ocorre uma transformação da “re-
presentação que os demais agentes possuem dessa pessoa e ao
modificar, sobretudo, os comportamentos que adotam em relação a ela
(...)”. 81 Neste caso, há uma objetivação do instante subjetivo na medida
em que se é instituído:

79
Rancière, 2018, p. 49.
80
Ibid., p. 55.
81
Bourdieu, 1996, p. 99.
200 • Problemas de hermenêutica radical

A instituição de uma identidade, que tanto pode ser um título de nobreza


ou um estigma (“você não passa de um...”) é a imposição de um nome, isto
é, de uma essência social. Instituir, atribuir uma essência, uma competên-
cia, é o mesmo que impor um direito de ser que é também um dever ser (ou
um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe
fazer ver que tem de se comportar em função de tal identidade. 82

Desse modo, o sentido da autonomia (a subjetivação política) im-


plica em um domínio sobre a representação. Objetiva-se socialmente
através do reconhecimento (social); eis o nível objetivo. Já o sentido in-
verso pode ser compreendido como heteronomia, elucidada pela
sociologia de Bourdieu. Por isso o poder de nomeação corresponde a
uma constituição; no outro sentido, a inculcação equivale à “imposição
duradoura do limite arbitrário [que] visa naturalizar as rupturas deci-
sórias constitutivas de um arbitrário cultural (...)”. 83
Como podemos verificar, o tema da representação nos conduz até
ao debate sobre o sentido da realidade social. Ao se rejeitar a neutrali-
dade, bem como a universalidade das representações, Nietzsche e
Laclau nos mostraram que a representação faz parte de uma luta sim-
bólica. Já Pierre Bourdieu elucidou o fato de que o poder simbólico
implica em um domínio sobre as categorias (ou “princípios”) que defi-
nem o mundo social.
O tema da representação se converteu em uma das grandes proble-
máticas da atualidade. Trata-se de uma forma de pensar a
representação como uma espécie de “representação coletiva” (objeto de
estudo da sociologia), segundo a linha de pensamento de Pierre Bour-
dieu. Não se trata de enveredar na perspectiva da linguística (Cf. White)

82
Ibid., p. 100.
83
Ibid., p. 103.
Dagmar Manieri • 201

que realiza outra forma de análise crítica. Para esta última, o impor-
tante é pensar a linguagem em sua dimensão figurativa; portanto, há
nos trabalhos de Hayden White uma espécie de crítica ante a concepção
da linguagem como “representação do mundo”. 84
O enfoque que adotamos neste capítulo procura responder a algu-
mas indagações como as de Peter Burke, por exemplo, que indica que “a
crítica de evidência visual permanece pouco desenvolvida, (...)”. 85 Para
teóricos como Bourdieu, Laclau, Foucault, Hall e Rancière percebe-se
que o tema da representação torna-se o verdadeiro objeto de pesquisa.
Isto ocorre porque no pensamento desses autores há um enfoque sobre
as representações no campo das lutas simbólicas. Eles fazem parte da
grande tradição que surge desde Nietzsche, pensador que inaugura uma
postura hermenêutica diante das representações sociais. Tal concepção
afirma que as interpretações de mundo nascem de forças de dominação
e que uma transformação no regime interpretativo depende de altera-
ções nas relações de força de potências sociais (grupos sociais).
Seguindo este horizonte teórico, constata-se que os grupos exclu-
ídos em busca de autonomia necessitam de um trabalho simbólico; tal
prática emancipatória objetiva uma nova representação social infensa
às formas heterônomas. Isto só é possível através de uma objetivação da
ordem representativa (autônoma) e um processo de subjetivação polí-
tica.
E convenhamos, não são tarefas fáceis, já que o efeito de emanci-
pação passa por riscos, sem contar o complexo jogo de agenciamentos.
Os intelectuais que teorizam em torno da representação, embora

84
White, 2014, p. 121.
85
Burke, 2017, p. 26.
202 • Problemas de hermenêutica radical

conheçam a teoria da hegemonia no marxismo, não compartilham mais


de uma saída através do partido revolucionário. Os efeitos do poder da
Nomenklatura nos regimes socialistas afetaram o modo de pensar desses
intelectuais libertários. 86 Como bem ressalta Deleuze, a função do inte-
lectual é preparar a voz dos excluídos, sem cair no jogo do
humanitarismo burguês. Na entrevista concedida em 1986 à History of
the present, Deleuze comenta que uma das funções do intelectual é au-
xiliar a se “produzir novas condições de enunciação”. 87 Na conversa com
um operário da Renault (publicado no jornal Libération de 26 de maio de
1973), Foucault comenta que “os operários não precisam de intelectuais
para saber o que fazem, eles sabem muito bem”. Neste caso, o intelectual
– ainda, segundo Foucault – está ligado “ao aparelho de informação” e
sua função não é “formar a consciência operária” (algo que já existe),
mas “permitir que essa consciência, esse saber operário entre no sis-
tema de informação, se difunda e, por conseguinte, ajude outros
operários ou gente que de outro modo não tomaria consciência do que
acontece”. 88
Com esses novos intelectuais, rompe-se com a prática de saber que
havia sido inaugurada com Lênin: a tendência de “dirigir as massas na
grande luta revolucionária, (...)”. 89 O intelectual orgânico em Lênin é o
organizador (profissional), tendo em vista que a política deve ser

86
Na biografia de Michel Foucault elaborada por Didier Eribon, temos a passagem: “(...) Foucault saiu do
PCF (Partido Comunista Francês) e se desligou do marxismo antes de partir para a Suécia no verão de
1955” (1990, p. 70).
87
Deleuze, 2016, p. 295. Sobre a experiência no GIP (Groupe d”Information sur lês Prisons), criado por
Foucault, Deleuze comenta: “Não se tratava de encontrar a verdade sobre a prisão, mas de produzir
enunciados sobre a prisão, uma vez dito que os prisioneiros, nem as pessoas de fora da prisão souberam
produzir. Soube-se fazer discursos sobre a prisão etc., mas não produzi-los” (Ibid., p. 295).
88
Apud Eribon, 1990, p. 234, 235.
89
Lênin, 2014, p. 124.
Dagmar Manieri • 203

realizada de forma eficiente. 90 Então, há uma desconfiança desses novos


intelectuais de esquerda quanto à verdadeira emancipação sob um par-
tido de orientação leninista. Observar que Lênin defendia (antes da
revolução) a participação ativa do intelectual comunista no parlamento
(burguês). Mas por que tal participação? Lênin responde que o objetivo
é “decompor o parlamentarismo a partir de dentro”, ou seja, o êxito dos
sovietes está na proporção inversa do ato “de acabar com o Parla-
mento”. 91
Mas ao se seguir esta lógica, encontra-se uma nova forma de de-
bate no seio dos comunistas, na ordem dos sovietes. 92 Mas o que se
passou na ex-URSS foi um estreitamento cada vez maior do debate po-
lítico. Isaac Deutscher acompanhou esse fechamento do espaço político.
Uma das grandes questões no novo regime é que o debate político
(mesmo no interior do partido) não foi institucionalizado. 93 Após a
morte de Lênin, a política, ausente do espaço social, ficou representada
pelo conflito entre os vários líderes da Revolução de 1917: Stálin, Zino-
viev, Trotski, Kamenev, entre outros. Assim, um dos aspectos do
totalitarismo na ex-URSS corresponde à eliminação da política. Nas

90
“(...) a política é uma ciência e uma arte que não caem do céu, que não se obtêm gratuitamente, e que
se o proletariado quiser vencer a burguesia deve formar seus “políticos de classe”, proletários, e de tal
envergadura que não sejam inferiores aos políticos burgueses” (Ibid., p. 125).
91
Idem.
92
Na França, Raymond Aron (um intelectual conservador) escreve, entre 1952 e 1954, L’opium des
intellectuels. O debate está em torno da ideia de que, realmente, após a revolução socialista, de verdade
é o proletariado que está no poder. Houve de fato uma emancipação da classe operária? Em suas
Memórias, Aron cita os “processos” de Moscou: “Curiosamente, os processos denominam-se Debates
como se Vichinsky e Bukharin discutissem, na qualidade de professores de filosofia (...). Autor e leitor
acabam por esquecer que os processos são forjados antecipadamente, os papéis distribuídos, e que
todos, juízes e acusadores, recitam discursos previamente escritos” (1986, p. 342).
93
“Quanto à facção stalinista, sua força estava não no tamanho, mas no domínio completo que seu líder
tinha da máquina partidária e que permitia valer-se dos recursos do Partido, violar eleições, manufaturar
maiorias, disfarçar o caráter seccional e pessoal de sua política – numa palavra, identificar sua facção
com o Partido” (Deutscher, 1968, p. 296).
204 • Problemas de hermenêutica radical

palavras de Deutscher: “A máquina do Partido funcionava com uma efi-


ciência mortal, quebrando toda resistência que surgisse ou esmagando-
a antes que aparecesse”. 94
É nesse sentido que a política de emancipação dos grupos excluídos
necessita visar um conteúdo (geral) de pluralismo. Se na fase anterior
(de exclusão) os grupos estavam ausentes da forma política, com o re-
conhecimento é preciso de uma arte política. Isto não significa só a
defesa dos interesses exclusivos do grupo (emancipado juridicamente);
implica em uma concepção de universalidade (a denominada politeia
grega) que vá além de uma visão exclusiva aos limites do grupo. 95 O novo
universal (politeia) obriga a diferença (em sua fase afirmativa) a uma
nova recomposição; agora a honra (tymós) estará ao lado de outras re-
presentações, sendo que a política se dá porque existem essas lacunas. 96
A política não é arte de encobrir ou mascarar a cisão, a lacuna; ela é a
tentativa, sempre provisória, de curar a ferida no seio da politeia. 97 Por

94
Ibid., p. 281.
95
Axel Honneth cita uma passagem de Hegel do System der spekulativen philosophie que parece
expressar bem esta ideia de “totalidade”: “Mas eu não posso saber se minha totalidade, como de uma
consciência singular na outra consciência, será esta totalidade sendo-para-si, se ela é reconhecida,
respeitada, senão pela manifestação do agir do outro contra minha totalidade, e ao mesmo tempo o
outro tem de manifestar-se a mim como uma totalidade, tanto quanto eu a ela” (Apud Honneth, 2009,
p. 63).
96
Observar que na interpretação de Hegel, Axel Honneth expressa uma fase importante da subjetivação
política, ou seja, o surgimento (como construção) da honra: “Honra é a postura que adoto em relação a
mim mesmo quando me identifico positivamente com todas as minhas qualidades e peculiaridades”
(Honneth, 2009, p. 55).
97
Eis uma descoberta pós-moderna (que está presente mesmo em autores que rejeitam o pós-moderno,
como Slavoj Zizek). Neste último é recorrente a expressão: a “lacuna de impossibilidade que impede o
fechamento final dessa ordem (...)” (2016, p. 255). Evidentemente que o pensamento de Zizek vê com
desconfiança a universalidade sob o capitalismo (como “noção universal abstrata” frente ao Real do
capital). Mas se atentarmos para a definição de realidade em Zizek, obteremos uma excelente ideia da
política e da universalidade (politeia), em um deslocamento (não autorizado pelo autor): há uma
“incompletude ontológica da própria realidade: só há “realidade” na medida em que existe uma lacuna
ontológica, uma fissura em seu âmago (...)” (Ibid., p. 82). A precariedade da politeia e da ação política se
conjugam: “Kant foi o primeiro a detectar essa fissura no edifício ontológico da realidade: (...) (aquilo
que experimentamos como) a “realidade objetiva” não está simplesmente posta “lá fora”, esperando ser
Dagmar Manieri • 205

isso quando Zizek afirma que “o político é o princípio estruturador en-


globante, (...)”, ele confunde a política com a politeia. 98 Ao se mostrar
como uma universalidade provisória, sempre precária, a politeia eviden-
cia a “vivacidade”, o “real”; a ideologia se inicia quando a politeia (através
de algum organon que se forma em seu interior) procura a estabilidade,
um fechamento simbólico que encobre algum interesse.
Por isso a política tende a alterar a politeia. Esta última, neste caso,
não se define só como “forma de poder” de uma determinada sociedade;
ela também é o fundamento das representações possíveis do mundo so-
cial. Quando Jacques Rancière comenta sobre a noção de democracia,
enfatiza que ela não quer dizer que os indivíduos só se empenham na
busca da felicidade privada. A democracia requer este objetivo:

Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso li-
beral, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar
contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da
oligarquia no Estado e na sociedade. 99

Essa luta perene que requer a prática política equivale a dizer que
se procura “conseguir que [seja] reconhecida a qualidade de iguais e de
sujeitos políticos àqueles que a lei do Estado repelia para a vida privada
dos seres inferiores; (...)”. 100 Por isso a politeia enriquecida é o produto do
trabalho sobre a representação. 101 O estudo sobre este última indica que

percebida pelo sujeito, mas é um composto artificial constituído pela participação ativa do sujeito (...)”
(Ibid., p. 77).
98
Ibid., p. 212.
99
Rancière, 2020, p. 72.
100
Ibid., p. 73.
101
A politeia enriquecida supera a antiga forma de representação: “É, de pleno direito, uma forma
oligárquica [a antiga forma de representação], uma representação das minorias que têm título para se
ocupar dos negócios comuns” (Ibid., p. 69).
206 • Problemas de hermenêutica radical

o pensar reflexivo deve encontrar novos conceitos por detrás deste ob-
jeto (a representação). Se isto ocorre, então a representação se converte
em uma categoria de visibilidade social. Neste passo epistemológico (de-
cisivo), constata-se a importância de se pensar dois conceitos: a
diferença e a politeia.
Ao encontrarmos no conceito de politeia uma problemática que
fundamenta o estudo da representação, compreende-se melhor a afir-
mação de Althusser: “(...) a transformação do objeto torna visíveis, no
objeto, “novos aspectos” que antes não eram absolutamente visíveis;
(...)”. 102 A politeia introduz no tema da representação uma “nova proble-
mática”. Nas palavras de Althusser, “toda teoria é, pois, em sua essência,
uma problemática, (...)”. 103 Para se deixar esta ideia mais didática, apre-
sentaremos dois exemplos históricos concretos.
Na Atenas antiga, a cidade-Estado é representada pelo termo pólis.
Muitos intérpretes da forma política ateniense remetem a Aristóteles.
Ao se seguir esta representação, a pólis surge como uma “comunidade
de cidadãos”. Estão ausentes desta representação da comunidade polí-
tica as mulheres, os metecos e os escravos; o polités (cidadão) é o homem
adulto, livre, com filhos de pais atenienses. Assim, a representação aris-
totélica da pólis condiciona uma definição de política ao mostrar que só
o polités tem a capacidade de fazer política. Mas estudos mais recentes
têm questionado esta representação da pólis. Na pesquisa de Fábio Mo-
rales, A democracia pelo avesso, enfatiza-se a participação dos metecos
em vários eventos históricos de Atenas. 104 O esforço de restauração da

102
Althusser, Balibar, Establet, 1980, p. 103.
103
Ibid., p. 102.
A ideia de Fábio Morales é que a representação deve se afastar da “multidão de cidadãos”. Como ele
104

enfatiza: “O estudo do modo de articulação dessas contradições dentro da pólis permitiria, inclusive,
Dagmar Manieri • 207

democracia em Atenas em 403 a.C. contou com a participação de vários


metecos; assim, esse novo trabalho de redefinição da pólis implica em
dizer que a politeia pode ser ampliada no reconhecimento do meteco
como polités. 105
Outro exemplo histórico que ampliou a formação da politeia ocor-
reu na França do século XVIII, no decorrer da Revolução Francesa.
Burgueses e classes populares (pertencentes ao Terceiro Estado) irão
questionar a representação da formação política do Estado e propor
uma nova politeia. Agora, são valorizados os “cidadãos trabalhadores e
úteis”, em detrimento de homens privilegiados que nada produzem. 106 O
texto de Emmanuel Sieyès, O que é o Terceiro Estado? é o mais flagrante
testemunho do trabalho de ressignificação da imagem do Estado. Neste
instante, os deputados que representam as ordens privilegiadas (Pri-
meiro e Segundo Estados) deixam de simbolizar a nação. É a maioria da
classe produtora que, de verdade, representa o “interesse geral”:

O corpo de deputados se reúne, separadamente; e, mesmo que se reunisse


no mesmo recinto com os deputados dos simples cidadãos, não seria menos
verdadeiro que sua representação (représentation) é essencialmente distinta
e separada. Ela é estranha à nação (nation), primeiro por princípio, pois sua
missão não provém do povo (peuple); em seguida, porque seu objetivo, pois

repensar o conceito de política e de cidadania na Atenas clássica, para além da “multidão de cidadãos””
(Morales, 2014, p. 50).
105
O próprio Fábio Morales reproduz em sua obra um texto de Xenofonte (Poroi) na qual se propõe o
reconhecimento da importância dos metecos: “Penso que devemos considerar seus interesses [dos
metecos] suficientemente, se os liberássemos dos deveres que parecem impor sobre eles uma desonra
sem conferir qualquer benefício à pólis, e também da obrigação de servir na infantaria junto dos
cidadãos: pois grande é o perigo para aquele que o faz, e não é pouca coisa deixar seus ofícios e seus
negócios privados. (...) Se, além disso, concedermos aos metecos o direito de servir na cavalaria e vários
outros privilégios próprios lhes serem concedidos, penso que encontraremos sua lealdade aumentada
tanto quanto como a força e grandeza da pólis” (Apud Morales, 2014, p. 83, 84)
106
Sieyés, 2002, p. 2. A tradução é de Dagmar Manieri.
208 • Problemas de hermenêutica radical

não consiste em defender o interesse geral (intérêt général), mas o interesse


particular. 107

Observar a habilidade de Sieyès em definir o grupo que se eman-


cipa (cidadãos úteis), bem como em justificar a nova representação do
povo (peuple), expressa na noção de interesse geral (intérêt général). Uma
nova politeia está em curso com a Revolução Francesa. Agora o Estado
se transforma em Estado-nação, com a presença ativa da burguesia e
das classes populares na imagem de “povo”. 108
No contexto histórico prático a nova politeia não surge sem uma
intensa resistência. 109 Afinal, a antiga politeia animada pelo “espírito da
nobreza” provinha de uma longa duração. Neste ponto o discurso de Ed-
mund Burke - em objeção à nova politeia - é interessante, pois nos
mostra os valores deste velho mundo da nobreza. Em seu argumento o
poder deve ser reservado aos homens superiores, pessoas de “mérito”:
“Todos os postos deveriam estar disponíveis, mas não indistintamente,
para todos os homens”. 110 Assim, para que haja o bom ordenamento da
sociedade, alguns cidadãos devem estar em uma situação mais elevada.
Ele se indigna de que “a associação de alfaiates e carpinteiros” deseje

107
Ibid., p. 5.
108
Assim como enfatizamos no capítulo anterior, nesta fase gloriosa da Revolução Francesa, burguesia
e classes populares representam o “povo”. Em uma fase posterior (século XIX, principalmente), a
burguesia em busca de hegemonia, inicia um novo trabalho de representação, sem utilizar-se da
imagem de “povo”. Na medida em que as classes populares conquistam mais autonomia (nos
movimentos sociais, bem como na ordem de representação), a burguesia torna-se uma classe inimiga.
Uma grande testemunha desta divisão é a obra de Philippe Buonarroti, Histoire de la Conspiration pour
l’égalité dite de babeuf. Aqui, a burguesia é representada como a “ordre d’égoïsme” contra a “ordre
d’égalité” das classes populares sem propriedade. Na visão de Buonarroti, a partir de 1792 ocorre a “lutte”
(luta) entre “lês amis de l’égalité” contra os “partisans de l´ordre d’égoisme” (Buonarroti, 1850, p. 17).
A obra de Arno Mayer estuda esta resistência. Ele enfatiza que por volta de 1914, “entre as grandes
109

potências, apenas a França tinha um regime republicano” (Mayer, 1990, p. 133).


110
Burke, 2017, p. 90.
Dagmar Manieri • 209

exercer o poder, na denominada “república de Paris”. 111 Para Burke, os


princípios Iluministas que animaram os trabalhadores são teóricos e
abstratos; são em si, uma “ficção monstruoso que [inspira] falsas idéias
(...)”. 112 Eis, então, a politeia antiga defendida por Burke:

[Se os franceses seguissem o exemplo dos ingleses] teriam uma constituição


livre, uma monarquia potente, um exército disciplinado, um clero refor-
mado e venerável, uma nobreza mitigada, mas intrépida para liderar sua
virtude, e não a suprimir; uma burguesia liberal para emular e recrutar essa
nobreza; um povo protegido, satisfeito, laborioso e obediente, ensinando a
buscar e reconhecer a felicidade que pode ser alcançada pela virtude em
todas as condições. 113

A politeia distribui um quantum de reconhecimento para cada agru-


pamento social. Burke concebe como indigno os párocos aderirem à
Revolução Francesa (como o abade Sieyès, por exemplo). Eles despreza-
ram sua própria ordem e subverteram a regime natural da sociedade:
“Ter afeição à subdivisão, amar o pequeno pelotão a que pertencemos
na sociedade é o primeiro princípio (o germe, se preferir) da afeição às
coisas públicas”. 114 Burke observa a condição social de muitos padres
franceses rebeldes. Aqui, a ironia está ao lado da visão conservadora ao
descrever esses homens que desejam “modelar um novo Estado”. Esses
“párocos de aldeia” são “homens que não sabiam nada do mundo além

111
Ibid., p. 89. Observar, também, esta afirmação de Burke: “A ocupação de um cabeleireiro ou de um
fabricante de velas não pode ser uma questão de honra para ninguém, sem mencionar uma série de
outros empregos mais servis” (Ibid., p. 89).
112
Nas palavras de Burke, o Iluminismo francês se traduz em “especulações presunçosas e extravagantes
(...)” (Ibid., p. 73).
113
Ibid., p. 72.
114
Ibid., p. 85.
210 • Problemas de hermenêutica radical

dos limites de uma obscura aldeia”; são pessoas imersas “na pobreza de-
sesperada, (...)”. 115
O conceito de politeia não pode ser entendido como a vontade geral
de Rousseau; ela só se assemelha a esta última por expressar algo da
comunidade, mas não no sentido ideal, absoluto. A politeia sempre está
em construção e as batalhas de representação se traduzem nos jogos de
legitimação, contestação ou novas afirmações. A politeia renovada é o
objetivo (ainda que relativo) dos grupos excluídos na nova modelagem
política do mundo social. 116 É neste nível que se pode relacionar a subje-
tivação política e o Si-mesmo. Na medida em que a disposição é acionada
pela subjetividade política, o Si-mesmo desperta. Eis, então, a face sub-
jetiva da politeia (como bem mostrou Platão, na relação entre a forma de
regime e o tipo de cidadão). Ela se sustenta não só através da ordenação
jurídica, mas também pelo sentido de pertencimento que está na pró-
pria natureza do Si-mesmo. 117

115
Ibid., p. 84.
116
Em uma passagem de Luta por reconhecimento, Axel Honneth enfatiza sobre esta ideia de que “os
direitos existentes numa determinada coletividade são transmitidos a um círculo cada vez maior de
pessoas; (...)”. Aqui, surge a própria politeia em sua expressão objetiva na qual “a comunidade se “amplia”
no sentido social de que são incluídos nela um número crescente de sujeitos pela adjudicação de
pretensões jurídicas” (Honneth, 2009, p. 146).
117
Aqui é interessante observarmos um provável discurso de Lísias (como logógrafo). Nele há a objeção
ao comportamento de Filon. O que não é louvável para a cultura política ateniense é abandonar o Si-
mesmo em busca da satisfação do Ego: “Eu simplesmente digo que somente têm o direito de deliberar
[ser conselheiro] sobre nossos assuntos aqueles que não apenas têm o título de cidadãos, mas que
também o são realmente. Pois, para estes, existe uma grande diferença se a pólis é próspera ou não –
eles se sentem obrigados a participar de suas desgraças, assim como de seus benefícios. Mas aqueles
que, cidadãos de nascimento, têm por princípio que a pátria está em todo lugar onde eles possuem
negócios, estes serão evidentemente os que trairão os bens coletivos da pólis em nome de suas
vantagens privadas: aos olhos destes, não é a pólis a pátria, mas sua propriedade. Eu, portanto, mostrarei
que Filon pôs sua segurança pessoal acima do perigo comum, e que preferiu bem mais passar a vida
sem risco que enfrentar o perigo pela salvação da polis, como fizeram os outros cidadãos” (Apud
Morales, 2014, p. 114).
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