Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PROBLEMAS DE
HERMENÊUTICA RADICAL
Dagmar Manieri
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Lucas Margoni
Fotografia / Imagem de Capa: Kangaroo Dreaming Puzzle - Charlie Chambers Junior
Problemas de hermenêutica radical [recurso eletrônico] / Dagmar Manieri -- Porto Alegre, RS:
Editora Fi, 2022.
228 p.
ISBN: 978-65-5917-627-4
DOI: 10.22350/9786559176274
CDD: 100
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
1 18
O ATO DE LEITURA COMO PRÁTICA HERMENÊUTICA
A PRÁTICA HERMENÊUTICA NOS MODOS DE LEITURA .............................................................................. 22
OS MODELOS PRÁTICOS DE INTERPRETAÇÃO TEXTUAL ........................................................................... 31
2 52
O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
O ABSOLUTO DA DANÇA .................................................................................................................................... 64
A DIGNIDADE DO ARTISTA ................................................................................................................................. 72
O MAL SOB CONTROLE ........................................................................................................................................ 79
A DIFÍCIL AUTONOMIA DE UMA COMUNIDADE ........................................................................................... 88
3 100
LITERALIDADE E ESCRITURA EM KAFKA: TRÊS CONTOS
A ESCRITURA EM TRÊS CONTOS DE KAFKA ................................................................................................. 110
4 140
O DISCURSO POPULISTA DE PERÓN
O DISCURSO POPULISTA E SUA IDEOLOGIA ............................................................................................... 145
O DISCURSO DE 31 DE AGOSTO DE 1955 NA PLAZA DE MAYO ............................................................ 158
5 176
LUTAS SIMBÓLICAS E REPRESENTAÇÃO
A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA ..................................................................................................................... 179
A HERMENÊUTICA NO PENSAR EM NIETZSCHE .......................................................................................... 185
OBJETIVAÇÃO E RECONHECIMENTO .............................................................................................................. 194
REFERÊNCIAS 211
INTRODUÇÃO
Teeteto, visto que não és estéril, mas engravidaste”. 1 Sócrates tem cons-
ciência de sua imagem ante seus concidadãos. Afirma que se comenta
que ele é “um indivíduo muitíssimo excêntrico” e que leva “as pessoas a
dificuldades”. Assustadora dialética que conduz as pessoas a ter consci-
ência de que vivem na ilusão. Sócrates reconhece sua arte. Ela tem a
“capacidade de testar, de todas as maneiras possíveis, se o intelecto do
jovem está gerando uma mera imagem, uma falsidade, ou uma genuína
verdade”. 2 Então não há ensinamento, mas um “parto” no qual a consci-
ência dá a luz a “belas coisas”. Através das contradições se chega às
“belas coisas”; Teeteto foi conduzido e, através de muitas dores, se cu-
rou de sua ignorância. 3 Sócrates utiliza de uma metáfora para
caracterizar o jovem antes de passar pelas “dores do parto”: o ovo sem
gema. Poderosa dialética que localiza as falsidades, os simulacros e
ideias vazias (nas palavras de Sócrates, deve-se “investigar e tentar re-
futar nossas mútuas fantasias e opiniões”).
A dialektike é a arte da superação (Aufhebung), mas não em busca de
um acordo final. Enquanto houver contradição, o movimento dialético
pode gerar uma nova negatividade. 4 Portanto, o telos na dialética é um
momento que se explica pelo término da contradição: o fim da história,
em Hegel, e o comunismo, em Marx. 5 Refutação, negatividade, eis algu-
mas posturas intelectuais da crítica dialética que almeja contornar,
1
Platão, 2013, p. 52 [148e].
2
Ibid., p. 54 [150c].
3
“Aqueles que a mim se associam são – diz Sócrates -, no que tange a essa associação, também como
mulheres por ocasião do nascimento de seus filhos; suportam dores e experimentam angústias dia e
noite, e muito mais do que o experimentam as mulheres. Minha arte é capaz tanto de despertar essas
dores quanto de fazê-las cessar” (Ibid., p. 55 [151a]).
4
Aqui nos referimos à dialética moderna, pós-hegeliana.
5
“A contradição, portanto, como foi dito várias vezes, é o motor interno da dialética, aquilo que produz
o movimento, ou seja, a passagem de uma proposição a outra” (Berti, 2013, p. 335).
Dagmar Manieri • 11
6
Esse otimismo, sem dúvida, está na perspectiva de quem manipula o método (dialético). Enrico Berti
cita uma passagem de Marx (do Posfácio de O capital), que mostra bem o alento que traz a dialética
para os marxistas: “Na sua forma racional, a dialética é escândalo e horror para a burguesia e para os
seus corifeus doutrinários, porque na compreensão positiva do estado de coisas existentes inclui-se
simultaneamente também a compreensão da negação dele, a compreensão do seu necessário ocaso,
porque concebe toda forma acontecida no fluir do movimento, portanto, também do seu lado
transeunte, porque nada pode intimidar e ela é crítica e revolucionária por essência” (Apud Berti, 2013,
p. 366, 367).
7
Marx; Engels, 2005, p. 40.
8
Apud Cohen, 1990, p. 178.
12 • Problemas de hermenêutica radical
9
Taylor, 2005, p. 124.
10
Hartog, 2014, p. 159.
11
Ibid., p. 160.
Dagmar Manieri • 13
12
Hartog, 2014, p. 362.
14 • Problemas de hermenêutica radical
13
Kafka, 1975, p. 68.
14
Ibid., p. 71.
Dagmar Manieri • 15
15
Gramsci, 1982, p. 3.
16
Ibid., p. 5.
16 • Problemas de hermenêutica radical
“A vida democrática torna-se a vida apolítica do consumidor indiferente de mercadorias, direitos das
17
21
Marcelo, 2014, p. 62.
1
O ATO DE LEITURA COMO PRÁTICA HERMENÊUTICA
1
“Esse é o caso típico em que não é necessário conhecer a intenção do autor empírico: a intenção do
texto é evidente e, se as palavras têm significado convencional, o texto não diz o que aquele leitor –
Dagmar Manieri • 19
que obedece a algum impulso íntimo – acreditava ter lido. Entre a inacessível intenção do autor e a
discutível intenção do leitor, está a intenção transparente do texto que contesta uma interpretação
insustentável” (Eco, 2019, p. 91).
2
Na interpretação do pensamento de Wittgenstein em Laurenio Sombra: “O grande avanço que a
percepção da dimensão linguística traz é que a linguagem não é meramente um conjunto de signos
que representa uma realidade exterior a ela, mas é, ela mesma, “criadora” de realidade” (Sombra, 2012,
p. 41).
3
White, 2014, p. 112.
4
“O instrumento característico de codificação, comunicação e intercâmbio de que o historiador dispõe
é a linguagem culta habitual. Isto quer dizer que os únicos instrumentos que ele tem para dar sentido
aos seus dados, tornar familiar o estranho e tornar compreensível o passado misterioso são as técnicas
de linguagem figurativa. Todas as narrativas históricas pressupõem caracterizações figurativas dos
eventos que pretendem representar e explicar. E isso significa que as narrativas históricas, consideradas
meros artefatos verbais, podem ser caracterizadas pelo modo do discurso figurativo em que são
moldadas” (Ibid., p. 111).
5
Nesses dois aforismos do Tractatus logico-philosophicus, Wittgenstein deixa clara a relação entre
“realidade” e “figuração”: “A figuração, porém, não pode colocar-se fora de sua forma de representação”
(2.174). “O que toda figuração, qualquer que seja sua forma, deve ter em comum com a realidade para
20 • Problemas de hermenêutica radical
poder de algum modo – correta ou falsamente – afigurá-la é a forma lógica, isto é, a forma da realidade”
(2.18) (Wittgenstein, 2010, p. 145).
Dagmar Manieri • 21
6
Hohden, 2005, p. 163.
7
Ibid., p. 166.
8
Ibid., p. 173.
9
Ricoeur, 2011, p. 73.
10
Ibid., p. 75.
22 • Problemas de hermenêutica radical
11
Ibid., p. 84.
12
Ibid., p. 131.
Dagmar Manieri • 23
13
Nas palavras de Jacques Rancière: “Ele [o aluno] saberá que pode aprender porque a mesma
inteligência está em ação em todas as produções humanas, que um homem sempre pode compreender
a palavra de um outro homem” (2018b, p. 37).
14
Atitude de Francis Bacon em relação à natureza exige, primeiro, a compreensão. Se isso não for
seguido, corre-se o risco de se estar amarrado aos “ídolos”. Eles são “numerosos princípios e axiomas (...)
que entram em vigor, mercê da tradição, da credulidade e da negligência” (Bacon, 1999, p. 41). Mas esta
compreensão é diversa em relação ao mundo antigo; agora o que se pretende é “o império do homem
sobre as coisas (...)”, nas palavras de Bacon. Assim, a compreensão é entendida no campo da experiência.
É um jogo sutil que envolve a dominação: “A natureza não se domina, senão obedecendo-lhe” (Ibid., p.
98).
24 • Problemas de hermenêutica radical
15
Nietzsche, 2020, p. 48.
16
Ibid., p. 49.
17
Idem.
Dagmar Manieri • 25
18
Gadamer, 2011, p. 141.
19
Neste sentido, observar esta passagem de Gadamer: “O que a reflexão faz é apenas descobrir os
condicionamentos que já estão atuando, a cada vez, sobre o compreender, condicionamentos que
sempre já estão sendo aplicados quando nos empenhamos em esclarecer um texto, visto que são
constitutivos de nossa “compreensão prévia” ” (Ibid., p. 132).
26 • Problemas de hermenêutica radical
20
Idem.
21
Marcuse, 1973, p. 109.
Dagmar Manieri • 27
pode servir para toda forma textual: “Tal como cada palavra forma parte
do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor e,
esta, por sua vez, forma parte do conjunto do correspondente gênero
literário e mesmo de toda a literatura”. 22 Nesta passagem o “gênero lite-
rário” faz o papel da totalidade. Assim, o texto (com seus conceitos)
adquire um maior sentido pela mediação da totalidade. É importante
ressaltar que a aproximação (ou apropriação) dessa totalidade não é
neutra; como ressalta Gadamer, “quem lê o texto lê a partir de determi-
nadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado”. 23
Posso apreciar ou não estar de acordo com determinado “gênero literá-
rio”: isto também ocorre em outros campos da cultura. Esta
aproximação que se traduz em uma postura perspectivista (da totali-
dade) vai propiciar o surgimento do senso crítico que se aperfeiçoa no
entendimento. A crítica tem como tarefa julgar o sentido textual pela
mediação de uma totalidade. Esta última opera como um subtexto nesta
fase do entendimento que já vislumbra a nova fase, a reflexão. Na fase
do entendimento entra em cena a razão sintética: os conceitos são es-
tudados em sua relação com a totalidade coerente. No exemplo da
filosofia, o autor adquire valor porque sua filosofia (ou seja, sua totali-
dade de pensamento) é coerente, promovendo uma visão geral dos
elementos da vida (homem, sociedade, estética, mundo, etc.).
A fase da reflexão corresponde a um desafio para muitos novatos
do campo das humanidades. Independente do talento individual, a re-
flexão envolve um quantum de criatividade, mesclada com a experiência
22
Gadamer, 2014, p. 386.
23
Ibid., p. 356.
28 • Problemas de hermenêutica radical
24
Essa “experiência textual” implica no saber adquirido pela leitura. O conhecimento de autores, assim
como de novas perspectivas, dota a experiência de maior profundidade e coesão. No fundo, a própria
prática da ação textual implica em um conhecimento das várias etapas da exegese. Há uma metodologia
que auxilia nesta experiência.
25
Sobre a presença da imaginação da tradição filosófica, ver especialmente o capítulo “A descoberta da
imaginação” In: Castoriadis, 1987, p. 333-372.
26
Ibid., p. 371.
Dagmar Manieri • 29
27
Bergson, 2005, p. 265.
28
Ibid., p. 276.
29
Ibid., p. 286.
30 • Problemas de hermenêutica radical
alçar de saída, (...)”. 30 Então, o ser humano não é subsumido pelo ser so-
cial; esse último surge como “signos exteriores e diversos de uma só e
mesma superioridade interna”. 31
Aqui se deve compreender o papel da inteligência; Bergson enfa-
tiza que “a consciência, no homem é, sobretudo, inteligência”. Daí “a
consciência é essencialmente livre; é a própria liberdade”. 32 Portanto, a
consciência é a expressão de um estado superior. 33 Mas ela necessita da
potência da inteligência para alçar novos níveis. Então, a inteligência é
a potência criativa, livre, da consciência.
Esta passagem sobre a consciência e a inteligência em Bergson é
importante, pois mostra que a prática hermenêutica da leitura corres-
ponde a um grande aprendizado. De forma apropriada se denomina esta
operação de círculo hermenêutico, pois ela expressa sempre a incom-
pletude. Na prática hermenêutica há uma expansão do “horizonte de
compreensão”. A expressão é de Paul Ricoeur, que acrescenta:
30
Ibid., p. 287.
31
Idem.
32
Ibid., p. 292.
33
“O animal encontra seu ponto de apoio na planta, o homem cavalga na animalidade e a humanidade
inteira, no espaço e no tempo, é um imenso exército que galopa ao lado de cada um de nós, na nossa
frente e atrás de nós, numa carga contagiante, capaz de pulverizar todas as resistências e franquear
muitos obstáculos, talvez mesmo a morte” (Ibid., p. 293).
34
Ricoeur, 2011, p. 87.
Dagmar Manieri • 31
peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. A razão? Mas ela nasceu de
uma maneira inteiramente “desrazoável” – do acaso. 35
35
Foucault, 1979, p. 17, 18.
36
Ibid., p. 21.
37
Foucault, 1987, p. 55.
Dagmar Manieri • 33
(...) uma história [a dos historiadores] que teria por função recolher em uma
totalidade bem fechada sobre si mesmo a diversidade, enfim reduzida, do
tempo; uma história que nos permitiria nos reconhecermos em toda parte
e dar a todos os deslocamentos passados a forma de reconciliação; uma his-
tória que lançaria sobre o que está atrás dela um olhar de fim de mundo. 39
38
Foucault, 1979, p. 26.
39
Idem.
40
Idem.
41
Ibid., p. 172.
42
Idem.
43
Ibid., p. 171.
34 • Problemas de hermenêutica radical
[Em Hegel] família e sociedade civil aparecem como o escuro fundo natural
donde se acende a luz do Estado. Sob a matéria do Estado estão as “funções”
do Estado, bem entendido, família e sociedade civil, na medida em que elas
formam partes do Estado, em que participam do Estado como tal. 45
44
Sobre esta definição, ver especialmente A escrita da história de Michel de Certeau (2017),
especialmente sua Apresentação (“Escritas e histórias”), p. XV- XXVII.
45
Marx, 2005, p. 29.
Dagmar Manieri • 35
Portanto, para se comportar como cidadão real do Estado, para obter signi-
ficado e eficácia políticos, ele deve abandonar sua realidade social, abstrair-
se dela, refugiar-se de toda essa organização em sua individualidade; pois a
única existência que ele encontra para sua qualidade de cidadão do Estado
é sua individualidade nua e crua, (...). 49
46
Ibid., p. 30.
47
Ibid., p. 34.
48
Ibid., p. 36.
49
Ibid., p. 95.
36 • Problemas de hermenêutica radical
50
Ibid., p. 107. Sobre a concepção de sociedade civil de Hegel, ver: Kervégan, 2006, p. 181-234.
51
Marx, 2005, p. 108.
52
Ibid., p. 128.
Dagmar Manieri • 37
53
Marx, 2010a, p. 40.
54
Marx, 2010b, p. 132.
Aqui, a ausência de transformação do Si está ligada à ausência de liberdade. Sem esta última, o Si
55
A realidade não é expressa como ela mesma, mas sim como uma outra rea-
lidade. A empiria ordinária não tem como lei o seu próprio espírito, mas um
espírito estranho e, ao contrário, a Ideia real tem como sua existência não
uma realidade desenvolvida a partir dela mesma, mas a empiria ordinária,
comum. 58
56
Marx, 2005, p. 28.
57
Ibid., p. 29.
58
Ibid., p. 29, 30.
59
“Ele [Hegel] transformou um produto, em um predicado as Ideia, o que é seu sujeito; ele não
desenvolve seu pensamento a partir do objeto, mas desenvolve o objeto segundo um pensamento
previamente concebido na esfera abstrata da lógica” (Ibid., p. 36).
Dagmar Manieri • 39
60
Ibid., p. 42.
61
Peter Sloterdijk ao comentar sobre esta postura de Marx, vê no pensador dois modelos: o jovem Marx,
humanista e outro, após a presença de Max Stirner e Bakunin: “Os dois lhe mostraram limites
sistemáticos de seu ponto de partida próprio – experiências que ele não conseguiu nem integrar, nem
simplesmente desprezar” (2012, p. 143). Marx e Engels possuem “um prazer destrutivo terrível”; por isso,
ao exercerem esse poder de crítica ante Max Stirner, “eles destroem a si mesmos nele” (Ibid., p. 145).
Assim, A ideologia alemã é “indiscreta”, nas palavras de Sloterdijk; já o tom acentuadamente crítico de
Marx já visualizava o “pensador senhorial, em sua unilateralidade” (Ibid., p. 144).
40 • Problemas de hermenêutica radical
62
Marx, 2005, p. 59.
63
Ibid., p. 73.
64
Em uma passagem da Contribuição à crítica da economia política, Marx nos mostra a emancipação na
perspectiva do capital: “(...) o processo do valor de troca que a circulação desenvolve não só respeita a
liberdade e ao igualdade: ele próprio as cria e lhes serve de base real. Como ideias abstratas são
expressões idealizadas de suas diversas fases, seu desenvolvimento jurídico, político e social é apenas a
sua reprodução em outros planos” (Marx, 2011, p. 328).
Dagmar Manieri • 41
significado específico. Mas esse compreender não consiste, como pensa He-
gel, em reconhecer por toda parte as determinações do conceito lógico, mas
em apreender a lógica específica do objeto específico. 65
Vê-se com isso que certas relações de produção supõem, como condição de
sua própria existência, a existência de uma superestrutura jurídico-política
e ideológica, (...). Vê-se finalmente que a natureza das relações de produção
consideradas não apenas exige ou não exige esta ou aquela forma de supe-
restrutura, mas determina também a grau de eficácia delegado a este ou
aquele nível da totalidade social. 66
65
Marx, 2005, p. 108.
66
Althusser; Balibar; Establet, 1980, p. 127.
67
Ibid., p. 136.
42 • Problemas de hermenêutica radical
os burgueses na prática são conduzidos por seu interesse material e sua si-
tuação social. 68
68
Löwy, 1991, p. 104.
69
Observar esta passagem de Louis Althusser, que interpreta o conceito de totalidade em Marx: “Toda a
estrutura da sociedade considerada acha-se assim implicada e presente, de um modo específico, nas
relações de produção, isto é, na estrutura determinada da distribuição dos meios da produção e das
funções econômicas entre categorias determinadas de agentes da produção. Equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produção determina o econômico como tal, a definição do conceito das
relações de produção de um modo de produção determinado passa necessariamente pela definição do
conceito de totalidade dos níveis distintos da sociedade, e de seu tipo de articulação (isto é, de eficácia)
própria” (Althusser; Balibar; Establet, 1980, p. 128).
70
Marx, 2017, p. 132.
71
Ibid., p. 135.
Dagmar Manieri • 43
72
Idem.
73
Idem.
74
Deleuze; Guattari, 2013, p. 37.
44 • Problemas de hermenêutica radical
(dos que “falam senão deles mesmos”, nas palavras de Deleuze e Guat-
tari).
Se em Marx a reflexão ocorre como um encerramento de sua pos-
tura crítica, há um caso particular em Jacques Rancière, em especial em
O desentendimento. Aqui, encontra-se um discurso de ordem reflexiva.
Neste caso, ele utiliza os conceitos aristotélicos de sympheron (coisas
vantajosas) e blaberon (dano) para uma reflexão sobre a natureza da po-
lítica. O que é política?
75
Rancière, 2018a, p. 19, 20.
76
Vernant, 2016, p. 101.
77
Idem.
Dagmar Manieri • 45
Essa instituição [de uma parte dos sem-parte] é o todo da política enquanto
forma específica de vínculo. Ela define o comum da comunidade como co-
munidade política, quer dizer, dividida, baseada num dano que escapa à
aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não há polí-
tica. Há apenas a ordem da dominação ou a desordem da revolta. 81
78
Ibid., p. 103.
79
Rancière, 2018a, p. 21.
80
Ibid., p. 26.
81
Idem.
46 • Problemas de hermenêutica radical
É o conceito que opera a reflexão, por isso ele deve ser entendido
em função de um problema. Como na expressão de Deleuze e Guattari,
“um conceito tem sempre a verdade que lhe advém em função das con-
dições de sua criação”. 83 Na reflexão, há a necessidade da criação: o
pensar só é criativo quando se tem uma boa utilização dos conceitos.
Dessa forma, em alguns autores se observa a habilidade no jogo entre a
aplicação do conceito e a reflexão. Isto ocorre, particularmente, com
Gilles Deleuze. Em Lógica do sentido, há um capítulo (“Platão e o simula-
cro”) reservado à filosofia de Platão. Logo no início, Deleuze nos
apresenta a exposição do platonismo: “(...) distinguir a essência e a apa-
rência, o inteligível e o sensível, a Ideia e a imagem, original e a cópia, o
modelo e o simulacro”. 84 No platonismo há o modelo inteligível, as có-
pias e os simulacros. Ele comenta que este último corresponde aos
“falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissimilitude,
82
Deleuze; Guattari, 2013, p. 26.
83
Ibid., p. 36.
84
Deleuze, 2009, p. 262.
Dagmar Manieri • 47
85
Idem.
86
Ibid., p. 263.
87
Idem.
48 • Problemas de hermenêutica radical
88
Ibid., p. 264.
89
Ibid., p. 266. Deleuze ainda enfatiza: “Todos estes caracteres são os do simulacro, quando rompe suas
cadeias e sobe à superfície: afirma então sua potência de fantasma, sua potência recalcada” (Idem).
Dagmar Manieri • 49
90
Idem.
91
Ibid., p. 267.
92
Ibid., p. 268.
50 • Problemas de hermenêutica radical
93
Ibid., p. 269.
94
“O intempestivo se estabelece com relação ao mais longínquo passado, na reversão do platonismo,
com relação ao presente, no simulacro concebido como o ponto desta modernidade crítica, com
relação ao futuro no fantasma do eterno retorno como crença do futuro” (Ibid., p. 271).
95
“O factício é sempre uma cópia de cópia, que deve ser levada até ao ponto em que muda de natureza
e se reverte em simulacro (momento da Pop’Art)” (Idem).
96
Idem.
Dagmar Manieri • 51
97
Ricoeur, 2011, p. 86.
98
Apud Bonomi, 1974, p. 29.
2
O CINEMA COMO EXPERIÊNCIA ESTÉTICA
1
Jameson, 2006, p. 29.
2
Ibid., p. 30.
3
Marcuse, 1973, p. 69.
Dagmar Manieri • 53
4
Ibid., p. 70.
5
Ibid., p. 88.
6
Adorno, 2021, p. 55.
54 • Problemas de hermenêutica radical
7
Lipovetsky, 2017, p. 368.
8
Idem. Observar, ainda, esse acréscimo ma mesma ideia em Lipovetsky: “Não tenhamos a ingenuidade
de crer que essas “dissidências” bastarão para fazer mudar de rumo: elas assinalam apenas que a
multiplicação e a renovação perpétua dos bens mercantis não podem ser consideradas a única e
principal vocação do homem. Chegará o dia em que a procura da felicidade no consumo não terá mais
o mesmo poder de atração, a mesma positividade: a busca da realização de si acabará por se desprender
da corrida sem fim aos prazeres consumidores” (Idem).
9
Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 142.
10
Ibid., p. 145.
Dagmar Manieri • 55
oferecem a cada espectador, por mais distante que esteja desse mundo,
as “lições de vida” que quiser encontrar”. 11 Essa abertura no ato inter-
pretativo é denominada por Lipovetsky e Serroy de “avanço do
imaginário democrático”. 12
Esse pensamento inquietante de Gilles Lipovetsky nos conduz a
uma reflexão sobre a própria forma como nos relacionamos com a obra
fílmica: a experiência estética. Ela possui uma natureza semelhante ao
jogo, estudado por John Huizinga em Homo ludens. Experienciar a obra
cultural apresenta uma característica especial como ato desinteressado.
Huizinga acentua: “Visto não pertencer à vida “comum”, ele se situa fora
do processo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo
contrário, interrompe esse processo”. 13 Passagem importante, pois nos
mostra que a alegria provinda da experiência estética surge ao se rom-
per com o ciclo das necessidades cotidianas. Isso não seria uma das
características do ser humano, ou seja, o poder de se desligar das neces-
sidades do dia-a-dia? Esta é a ideia de Huizinga ao enfatizar que nas
experiências lúdicas “as leis e costumes da vida cotidiana perdem vali-
dade”. 14 No próprio termo ludus, Huizinga encontra o significado de
“ausência de seriedade”; assim, ludus pode ser compreendido como uma
experiência que nos conduz à “ilusão, simulação e derrisão”. 15 O mundo
da experiência estética tem esse poder de “encantar”, de “arrebatar”;
11
Ibid., p. 148.
12
Assim, temos a evolução da forma “documentário”. Eis o novo estágio dessa produção cultural: “Essa
força narrativa do documentário assim praticado explica que se possa considerar esses realizadores
como verdadeiros criadores cinematográficos, cujos filmes vamos ver como vamos ver uma obra de
ficção” (Ibid., p. 151).
13
Huizinga, 2019, p. 10.
14
Ibid., p. 15. Observar, também, esta passagem: “[O jogo] é uma atividade desligada de todo e qualquer
interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e
temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (Ibid., p. 16).
15
Ibid., p. 45.
56 • Problemas de hermenêutica radical
16
Nos escritos de Wilhelm Dilthey, essa experiência estética surge como “novas visões da vida”. Para a
hermenêutica trata-se de uma “revivência” (nas palavras do próprio Dilthey): “A compreensão, por sua
vez, lhe abre um vasto reino de possibilidades que não estão presentes na determinação de sua vida
real e efetiva” (Dilthey, 2010, p. 198).
17
“Não queremos com isso dizer que o jogo se transforma em cultura, e sim que em suas fases mais
primitivas a cultura possui um caráter lúdico, que ela se processa segundo as formas e o ambiente do
jogo” (Ibid., p. 59).
18
Kant, 2005, p. 200.
19
Ibid., p. 199.
20
Observar os valores dessa indústria. Com Homem-Aranha: Sem volta para Casa, a Sony Pictures gastou
(produção e distribuição) um valor estimado de US$ 160 milhões; sua arrecadação ultrapassou US$ 1,75
bilhão.
Dagmar Manieri • 57
função da criação de capital; ele se traduz como uma forma de arte que
rompe com os limites do espaço/tempo. O ser humano já experimenta
esta sensação no sonho; agora, esta experiência é produzida de forma
intencional, com efeitos culturais poderosos sobre o ser humano.
Neste sentido, a poiésis da obra fílmica apresenta um grande po-
tencial estético; ao incorporar as outras formas artísticas, o diretor tem
diante de si uma variedade enorme de opções. Há no filme o teatro, na
encenação dos atores. Há, também, a pintura com seu desenvolvimento
através dos séculos; sobre isto, pode-se dar um exemplo. Em O nome da
rosa, de Jean-Jacques Annaud, observam-se diversas tomadas de câmera
que são verdadeiras pinturas. Annaud utiliza o belo cenário do mosteiro
beneditino para proporcionar uma representação pictórica impressio-
nista. São tomadas da grande torre do mosteiro que nos faz lembrar
Monet. Mas não só o impressionismo se encontra em O nome da rosa. 21 A
inspiração para filmar o rosto assombrado de Adson é romântica. Ele,
enfim, é um personagem romântico, apaixonado pela pobre camponesa
que reside nas cercanias do mosteiro. Nesta Idade Média de luzes natu-
rais e, acrescentada, por velas, Rembrandt auxilia o diretor nos
contrastes de luz e escuridão. Como se percebe, temos em O nome da rosa
diversas estéticas pictóricas, deixando ao cinema o privilégio de ser uma
arte que sintetiza diversas formas de estética já consolidadas. Outro
exemplo dessa apreensão se localiza na música. Tanto Apocalypse now
(de Coppola), quanto Laranja mecânica (de Kubrick) apresentam a mú-
sica como parte importante de sua linguagem fílmica. 22 Nessas duas
obras a música representa um aprofundamento da cena; trata-se de
21
ANNAUD, Jean-Jacques (Dir.). O nome da rosa (Le Nom de la Rose). França, 1986.
22
COPPOLA, Francis F. (Dir.). Apocalypse now. EUA, 1979.
58 • Problemas de hermenêutica radical
23
“Supomos que todo leitor de um texto narrativo evoca continuamente uma série de imagens visuais,
à medida em que sua leitura avança, imaginando não só como são os personagens, mas também qual
será sua aparência. Dá-se o mesmo com o cenário, o espaço ou a paisagem onde a ação se desenrola”
(Snodgrass, 2004, p. 107).
Dagmar Manieri • 59
24
Na fala de Antígona: “Sem que me chorem, sem amigo algum, sem cantos de himeneu sou arrastada
– pobre de mim – por sôfrego caminho! Para desgraça minha nunca mais poderei ver a santa luz do sol!
E dos amigos nem um só lamenta esse meu doloroso fim sem lágrimas” (Sófocles, 1990, p. 239 [950]).
60 • Problemas de hermenêutica radical
25
O belo não necessita ser só um recorte da natureza. Ele é toda forma (absoluta) em sua perfeição. Para
um escritor moralista como Dostoiévski, belo é Jesus, “um homem de tal forma sublime (...)” (Dostoiévski,
2009, p. 123). Em outra passagem de suas cartas, o escritor russo nos oferece a definição de belo: “Todos
os escritores, não somente os nossos, mas também os estrangeiros, que tentaram representar a Beleza
Absoluta, foram desiguais em seus resultados, pois é algo infinitamente difícil de representar. A beleza
é o ideal; mas ideais, seja entre nós ou na civilização europeia, há muito se desfazem” (Ibid., p. 138).
62 • Problemas de hermenêutica radical
26
Na sociologia de Pierre Bourdieu esse “senso comum” é expresso pelo conceito de habitus (disposições
adquiridas no convívio social): “A lógica, essencialmente social, do que chamamos de “vocação” tem por
efeito produzir tais encontros harmoniosos entre as disposições e as posições, encontros que fazem
com que as vítimas da dominação simbólica possam cumprir com felicidade (no duplo sentido do
termo) as tarefas subordinadas ou subalternas que lhes são atribuídas por suas virtudes de submissão,
de gentileza, de docilidade, de devotamento e de abnegação” (Bourdieu, 2019b, p. 98).
27
Dostoiévski, 2009, p. 159.
Dagmar Manieri • 63
Aqui, não se pode esquecer a bela frase de Marx: “A produção [artística], portanto, não apenas produz
28
um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (Apud Vázquez, 1968, p. 256).
64 • Problemas de hermenêutica radical
O ABSOLUTO DA DANÇA
O filme como obra cultural surge como uma arte típica da moder-
nidade. Complexa, a obra fílmica de forma geral traz um herói que
também é complexo. Não se trata de uma figura que seja um modelo;
aqui se está na Antiguidade, em Homero e nas peças teatrais da tragédia
grega. Os heróis a partir da época moderna não querem mais dar exem-
plo: sua função se transforma. Muitas vezes ele comporta um tema, uma
possível saída a um impasse social. Ver o exemplo de Tony Manero em
Os embalos de sábado à noite. 29 A obra é produzida no mesmo período
histórico que anseia representar: a década de 1970, com a moda da dis-
coteca. Se a indústria cultural nos acostumou com heróis típicos, a obra
de John Badham mostra que o herói intenta em deslizes, mas traz em si
um lampejo de libertação. Tony Manero reside no Brooklin (um bairro
de classe média em Nova York), em uma família (de ascendência itali-
ana) problemática. Ele trabalha como funcionário em uma loja de
material de construção. Onde está seu heroísmo? Se fosse um persona-
gem comum, tentaria a carreira como dançarino: estaria preocupado
com seu futuro, já que parece que domina bem a arte das pistas de
dança.
29
BADHAM, John (Dir.). Os embalos de sábado à noite (Saturday night fever). E.U.A, 1977.
Dagmar Manieri • 65
Mas Tony não se preocupa com o futuro. Em uma cena, ele co-
menta: “O futuro é hoje à noite, na danceteria Oddyssey 2001”. Ele
representa a denominada “juventude transviada” (das décadas de 1960
e 1970) que só deseja o prazer de viver. Mas não só isso; em Tony Manero
há o gozo desinteressado da arte na expressão da dança. Aqui, já temos
o grande tema do filme: o absoluto da arte e a sociedade de consumo.
Assim, como relacionar esses dois temas? Já sabemos pelos vários intér-
pretes da sociedade atual que o consumismo procura transformar a arte
em mercadoria. Mas Os embalos de sábado à noite não envereda por esse
campo; a obra mostra de forma inteligente a sociedade de consumo. Os
sapatos da moda de Tony e seus amigos; o desejo de comprar uma ca-
misa que expressa a alegria da noite. Claro que há uma propaganda dos
hábitos norte-americanos, da vida agitada da grande cidade: por exem-
plo, comer um hambúrguer ou um pedaço de pizza, enquanto se
caminha pela rua. O fast-food como expressão de “não posso perder
tempo!”. Todos esses elementos estão na composição do filme. Mas o
que distingue Tony Manero de seus amigos (e outros personagens) é o
absoluto da arte que gera um profundo senso de justiça. Bem ao estilo
kantiano, o gozo estético é desinteressado neste personagem. Em um
diálogo com seu irmão (Frank), afirma que todos lhe perguntam: o que
fará com a dança? Ele responde que os membros da família afirmam que
ele “não vale muita coisa”; assim, a dança é uma forma de alegria efê-
mera para um indivíduo “derrotado” pelo determinismo social.
Por trás do tema da dança, o que John Badham nos apresenta é o
confronto entre dois mundos: as classes populares de Nova York e a elite
de Manhattan. Bobby, Joey, JJ e Tony Manero fazem parte do grupo que
frequenta a danceteria Oddyssey 2001; já Stephanie traz em suas repre-
sentações o mundo artístico de Manhattan. Há entre Tony Manero e
66 • Problemas de hermenêutica radical
30
Lipovetsky, 2016, p. 285.
Dagmar Manieri • 67
happening mais parecido com uma festa do que com os dias que abalam o
mundo. 31
31
Idem.
32
Ibid., p. 287.
68 • Problemas de hermenêutica radical
33
No filme, há de forma nítida, o conflito entre Tony Manero e seu irmão Frank, com a família. O atrito
se aprofunda quando este último decide abandonar a batina.
34
Lipovetsky, 2016, p. 300.
35
Ibid., p. 311.
36
“O legado ancestral não estrutura mais, no essencial, os comportamentos e as opiniões, a imitação
dos antepassados apagou-se diante da dos modernos, o espírito costumeiro cedeu o passo ao espírito
de novidade” (Ibid., p. 314).
37
Lipovetsky; Serroy, 2009, p. 40.
Dagmar Manieri • 69
38
Eis outra passagem de Lipovetsky e Serroy que negam a mímesis da obra fílmica: “Arte de massa, enfim,
no seu modo se consumo. De fato, o cinema se acompanha de uma retórica da simplicidade, solicitando
o menor esforço possível da parte do seu destinatário. Não é o elemento espiritual do homem que é o
objetivo, mas um consumo sempre renovado de produtos que possibilite uma satisfação imediata e não
exija formação alguma, nenhuma referência cultural específica e erudita” (Ibid., p. 40).
39
“O tom de qualquer filme, contudo, é o da bruxa que oferece a comida ao pequeno que pretende
enfeitiçar ou devorar com o assustador murmúrio: “Sopinha boa, gostosa sopinha? Que lhe faça bem,
faça bem”. Na arte, Wagner inventou esse feitiço caseiro, (...)” (Adorno, 2008, p. 197).
40
Ibid., p. 202.
41
MENDES, Sam (Dir.). Beleza americana (American beauty). EUA, 1999.
70 • Problemas de hermenêutica radical
42
Baudelaire, 2001, p. 230.
Dagmar Manieri • 71
43
Ibid., p. 236.
44
Ibid., p. 243.
45
Apud Baudelaire, 2001, p. 244.
72 • Problemas de hermenêutica radical
partes, seus nervos e músculos. A arte tem esta característica: ela pro-
cura um complemento para se tornar mais completa. A música que
procura o corpo para a dança; a dança que se sente atraída para os palcos
em busca de expressão para sua linguagem.
Assim como indicam Barbereau e Baudelaire, o artista de verdade
já apresenta um entusiasmo em si. Eis aqui que nos deparamos com o
rastro da mímesis na obra: a excepcionalidade do personagem Tony. Ele
não tem um ideal; é um herói que se sente feliz na dança. Mais que feliz
é a dança que o realiza, sem drogas ou sexo. Um herói da vida comum e
que descobre alguns talentos em sua forma de agir de forma artística. É
um herói que não deixa de ser trágico; sua miséria é a miséria social que
ele experimenta no dia-a-dia de uma grande cidade.
A DIGNIDADE DO ARTISTA
46
CHAPLIN, Charles (Dir.). Luzes da ribalda (Limelight). Inglaterra, 1952.
Dagmar Manieri • 73
O lançamento de Luzes da ribalta se dá ao mesmo tempo em que o artista se retira dos EUA. Charles
47
Chaplin em História de minha vida, nos conta a recepção do filme na Europa: “Desde que partimos da
Dagmar Manieri • 77
É penoso assinalar que Chaplin, levado por suas urgentes ocupações, dedi-
cado fervorosamente à sua obra, dando provas também desse egoísmo que
se oculta com frequência no fundo de toda natureza humana, terminou de-
sinteressando-se de Edna. Esta entregou-se à bebida e morreu
prematuramente, num hospital, abandonada e pobre. 48
América, a nossa existência ascendeu a um outro plano. Paris e Roma acolheram-nos como heróis em
triunfo. Recebemos convite para almoçar com o Presidente Vincent Auriol no Palácio l’Elisée e também
fomos convidados a jantar na Embaixada Britânica” (Chaplin, 1966, p. 476). Em outra passagem, o
ator/diretor afirma: “A estreia de Luzes da ribalta foi abrilhantada pelo público mais seleto, em que se
incluíam ministros do governo francês e embaixadores estrangeiros. Entretanto, deixou de comparecer
o embaixador dos Estados Unidos” (Ibid., p. 479).
48
Francisco Pina, “A Woman of Paris”, In: Cony, 1967, p. 281.
49
Ibid., p. 282.
50
Idem.
78 • Problemas de hermenêutica radical
51
Chaplin, 1966, p. 382.
52
Ibid., p. 282.
53
Aqui, pode se evidenciar algumas objeções a Jean-Paul Sartre em O idiota da família. Com acesso às
cartas de Gustave Flaubert, o filósofo existencialista interpreta a estética do escritor mediada pelos
complexos familiares do escritor.
Dagmar Manieri • 79
54
KUBRICK, Stanley (Dir.). Laranja mecânica (A clockwork orange). Reino Unido; EUA, 1971.
55
A revolta do grupo é uma reação ante a forma autoritária como Alex controla o grupo. Eles
ambicionam os bens materiais das vítimas, não só a aventura. Na resposta, Alex acrescenta: “Querem
carro? É só colher nas árvores. Desejam uma garota? É só pegar!”. Aparentemente, Alex não objetiva a
posse dos bens das vítimas, mas ao seu livre usufruto. No entanto em uma cena na qual a câmera o
mostra em seu quarto, observamos o líder guardando dinheiro na gaveta. Isso sugere que ele fica com
a maior parte dos bens roubados.
Dagmar Manieri • 81
Molly Malone
Que na bela cidade de Dublin
(...)
Vende seus peixes
(...)
Ela morreu de febre
(...)
Esse foi o fim da doce Molly Malone
Agora seu espírito conduz o carrinho
Através das ruas largas e estreitas
Gritando: mariscos e mexilhões, viva, viva, oh!
Dagmar Manieri • 83
56
Na vida real temos alguns exemplos na qual a cultura está lado-a-lado com a barbárie. Tzvetan Todorov
comenta que “em seu ócio, Eichmann praticava a bela música de câmara alemã do século XIX” (2010, p.
52). Adolf Eichmann era um dos chefes dos esquadrões de extermínio no regime de Hitler. Hannah
Arendt dedicou uma obra ao estudo de seu caráter, bem como ao tema do extermínio dos judeus sob
os nazistas: Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (2013).
Dagmar Manieri • 85
da visão do sacerdote. Mas ele adquire uma função importante. Eis uma
de suas falas: “A bondade vem de dentro; a bondade é escolhida. Quando
um homem não pode escolher, deixa de ser homem”. A obra de Kubrick
lança mais questionamentos do que propõe um programa positivo. Ela
problematiza a concepção de natureza humana, bem como lança a des-
confiança sobre a prática política ao apreender a cientificidade na
modernidade.
A obra nos faz pensar sobre o tipo do caráter de Alex. Ele se com-
porta como um homem em estado de natureza. É dessa forma que se
pode acompanhar Montesquieu na afirmação de que “os homens são go-
vernados por diversas sortes de leis”. 57 No exemplo de Alex, percebe-se
que ele é governado pelo princípio do prazer (esta é sua lei). Sexo, vio-
lência e aventura se transformam em meios de se sentir uma espécie de
prazer individualista.
Na acepção do programa dos contratualistas da época moderna, o
ser humano civilizado é aquele que renuncia à independência do estado
de natureza em troca de uma segurança no estado de sociedade civil.
Nas palavras de Montesquieu, “os homens renunciaram à sua indepen-
dência natural para viverem sob leis políticas, (...)”. 58 Por isso todo o
indivíduo que só age motivado por seu interesse pessoal, mesmo em es-
tado de sociedade, ainda se comporta como se estivesse em estado de
natureza: este é o exemplo de Alex (e seus companheiros).
Para alguns intérpretes de Laranja mecânica, evidencia-se o fas-
cismo em Alex. Aqui, há a necessidade de uma diferenciação entre o
regime político e o tipo de personalidade. No regime político fascista há
57
Montesquieu, 2005, p. 502.
58
Ibid., p. 516.
86 • Problemas de hermenêutica radical
o apelo romântico ao “povo” e à nação; por isso o fascismo pode ser con-
siderado uma forma extrema de populismo. Em Alex não há este anseio
a um resgate romântico do “povo”, muito menos a busca por uma nação
unitária. Seu individualismo-delinquente se confronta com qualquer
obstáculo que possa interromper o prazer. 59
O regime político fascista despertou em muitas pessoas o caráter
autoritário. É neste ponto que Alex pode ser considerado um tipo fas-
cista; há nele diversos elementos que estão presentes nos homens do
regime fascista. Em A biblioteca esquecida de Hitler, Timothy Ryback se-
gue com cuidado as leituras do líder nazista. Quando Hitler lê Fogo e
sangue, de Ernst Jünger, chama a atenção o interesse do líder pelos
“efeitos transformadores da carnificina [guerra]”. O soldado no campo
de batalha empreende “o endurecimento de coração e mente, o forja-
mento do espírito humano em algo “duro e implacável”, a experiência
aglutinante de homens avançando para a batalha, (....)”. 60 Ryback acres-
centa que “o lápis de Hitler segue essas enunciações numa
concordância”. Então, há diversos elementos da personalidade autori-
tária que são apreciados pelo regime nazista. O apreço pela tecnologia
como expressão do poder humano; a ênfase na aventura, uma espécie
de experiência que traz vigor e força a este ser. Em Tempestade de aço
(1920), Jünger enaltece o homem novo que surge do ambiente de guerra.
Jeffrey Herf interpreta esta obra:
59
Neste aspecto, este tipo de comportamento ocorre até entre seus amigos. Quando o grupo está no
bar Korova, uma cantora lírica executa uma partitura de Beethoven. Isso já é o bastante para que Alex
entre em transe. Mas seu companheiro Dim faz um som, que irrita Alex. Com seu bastão, este último
agride o primeiro, fato que dá início ao conflito entre líder e os outros companheiros.
60
Ryback, 2009, p. 114.
Dagmar Manieri • 87
que lhe faziam recordar suas viagens à África de antes da guerra. (...) Des-
truía-se casas, paredes e tetos tombavam, “como que pelo poder da magia”.
No curso de uma ofensiva, em 1918, escreveu Jünger: “Assisti à matança
como se estivesse em um camarote de teatro”. 61
61
Herf, 1993, p. 87, 88.
62
Apud Herf, 1993, p. 93.
63
Notar, neste caso, um exemplo que ficou famoso no Brasil. Em 20 de abril de 1997, o cacique Galdino
dos Santos foi morto em um ponto de ônibus, em Brasília. Cinco jovens moradores do Plano Piloto
(região central da Capital) atearam fogo ao seu corpo. O índio havia participado dos protestos contra o
governo um dia antes, 19 de abril, dia do índio.
88 • Problemas de hermenêutica radical
64
VISCONTI, Luchino (Dir.). A terra treme (La terra trema). Itália, 1948.
Dagmar Manieri • 89
65
Sartori, 1982, p. 162.
66
Ibid., p. 168.
Dagmar Manieri • 95
67
Santos, 2013, p. 224.
68
Couto, 1995, p. 87.
96 • Problemas de hermenêutica radical
69
Ibid., p. 91.
70
Magalhães, 1995, p. 41.
71
Quando Margaret Keck se refere ao candidato à Presidência da República em 1989 Fernando Collor de
Melo, afirma: “Collor, herdeiro de uma das mais importantes famílias oligárquicas de Alagoas, entrou na
política como prefeito nomeado de Maceió durante o Regime Militar. Foi eleito para o Congresso em
1982 pelo PDS e ganhou o governo de Alagoas sob a sigla do PMDB” (Keck, 1991, p. 185).
72
Ibid., p. 174.
73
Ibid., p. 172.
Dagmar Manieri • 97
(...) o ato político (intervenção) propriamente dito não é apenas aquilo que
funciona bem no interior da estrutura das relações existentes, mas o que
muda a própria estrutura que determina como as coisas funcionam. (...)
Também podemos dizer isso nos termos da conhecida definição de política
como “a arte do possível”: a política autêntica é justamente o oposto, isto é,
74
Apud Keck, 1991, p. 148.
98 • Problemas de hermenêutica radical
75
Zizek, 2016, p. 220.
76
Marcuse, 1999, p. 272.
77
Observar esta passagem em Marcuse: “A obra de arte deve, em seu ponto de ruptura, expor a absoluta
nudez da existência do homem (e da natureza), despida de toda a parafernália da cultura de massas
monopolista, completa e absolutamente só, num abismo de destruição, desespero e liberdade” (Ibid.,
p. 271).
Dagmar Manieri • 99
1
Derrida, 2011, p. 340.
2
Ibid., p. 342.
Dagmar Manieri • 101
3
“O palco é teológico enquanto a sua estrutura comportar, segundo toda a tradição, os seguintes
elementos: um autor-criador que, ausente e distante, armado de um texto, vigia, reúne e comanda o
tempo ou o sentido da representação, deixando esta representá-lo no que se chama o conteúdo dos
seus pensamentos, das suas intenções, das suas ideias” (Ibid., p. 343).
4
Idem.
5
Apud Derrida, 2011, p. 347.
102 • Problemas de hermenêutica radical
6
Nietzsche, 2010, p. 66.
7
Ibid., p. 66, 67.
8
Bourdieu, 2019, p. 105.
Dagmar Manieri • 103
9
Williams, 2014, p. 271.
10
Ibid., p. 272.
11
Barthes, 2010, p. 39.
104 • Problemas de hermenêutica radical
percebe que é através das relações pessoais que o caso pode ter uma so-
lução feliz.
Assim, vamos focar uma cena de O processo e que testemunha a re-
lação entre literalidade e escritura. Esta cena mostra o pintor Titorelli;
esse artista surge na vida do protagonista por indicação de um “fabri-
cante”, cliente do banco em que K. trabalha. O cliente havia
confidenciado que esse “quase mendigo” (o pintor) havia-lhe dito sobre
o processo de K. Por isso, o herói resolve procurar o artista em sua re-
sidência no subúrbio da cidade. O romance descreve com habilidade as
condições degradantes do local. Já na residência do pintor, essa é a sen-
sação de Josef: “Nesse ínterim, K. se pusera a observar a habitação;
nunca havia imaginado que pudesse chamar estúdio a esse quartinho
miserável e pequeno”. 12 Nesse primeiro encontro de K. com o pintor, te-
mos uma visão exata das ramificações do poder judicial; Titorelli é o
pintor da justiça, profissão que herdou do pai. Mas, aqui, não se trata
simplesmente da especialização artística; Titorelli revela que recebeu
do pai o segredo da forma de representar (na expressividade artística da
pintura) os juízes:
Ali, em minha gaveta, por exemplo, tenho as instruções de meus pais que
não mostro a ninguém. Pois bem, unicamente aquele que as conhece é capaz
de pintar os juízes. Contudo, mesmo que as perdesse, existem tantas regras
que somente eu sei de memória, que ninguém poderia disputar-me o posto.
É necessário representar os juízes tais como foram pintados os antigos, os
grandes juízes, e isso é algo que somente eu posso fazer. 13
12
Kafka, 1975, p. 157.
13
Ibid., p. 165, 166.
Dagmar Manieri • 105
É preciso que você não confunda essas duas coisas. Certamente que não li
em nenhuma lei, embora naturalmente deve estar estabelecido ali que o
inocente deve ser absolvido, portanto, não se estabelece nela que se possa
influir sobre os juízes por meio de relações pessoais. Pois bem; inteirei-me
de que precisamente acontece tudo o contrário, porque o certo é que não
14
Ibid., p. 168. Observar esta passagem em O processo: “Os juízes inferiores – na fala de Titorelli -, entre
os quais se acham os meus conhecidos, não têm o direito de absolver definitivamente; esse direito
corresponde à justiça superior totalmente inacessível para você, para mim e para todos nós. Não
sabemos o que acontece nessa esfera superior e, seja dito de passagem, tampouco queremos saber.
Quer dizer então que nossos juízes não possuem o direito de absolver definitivamente o acusado, mas
em troca sim têm o direito de pô-lo em liberdade” (Ibid., p. 172).
106 • Problemas de hermenêutica radical
Pois bem, o caso é que [o juiz] tem o costume de vir de manhã muito cedo
quando ainda estou dormindo. De modo que sempre me arranca do mais
profundo de meus sonos quando abre a portinha que está junto à cama.
15
Ibid., p. 167.
16
“Além disso, parecia que o pintor não chegava a compreender por que K. permanecia simplesmente
na borda do leito, já que ele mesmo lhe dizia que se instalasse comodamente, de modo que, como visse
que K. hesitava, foi ele mesmo metê-lo profundamente dentro da cama” (Ibid., p. 162).
Dagmar Manieri • 107
17
Ibid., p. 170.
18
Ibid., p. 178.
19
Ao ser admitido em outra função (um servente de uma escola pública), K. recebe como moradia uma
sala de aula na escola que deve trabalhar. Diante de seu status de agrimensor, trata-se de uma forma de
rebaixamento. De manhã, os alunos e a professora adentram no espaço, causando uma cena curiosa de
“invasão” de um espaço privativo.
108 • Problemas de hermenêutica radical
20
Kadota, 1999, p. 52.
21
Jogo perigoso e que pode reificar a obra de arte. Na Contribuição à crítica da economia política, Marx
conjuga reificação com o fetichismo. Há objetos (as mercadorias) que assumem um “efeito mágico”.
Neste fenômeno, “resulta necessariamente da imagem totalmente invertida que os agentes do mundo
das mercadorias têm de seu próprio trabalho social; (...)” (Marx, 2011, p. 157).
22
Sartre, 1999, p. 95.
23
Adorno, 1993, p. 13.
24
Ibid., p. 23.
Dagmar Manieri • 109
25
Ibid., p. 29.
26
Ver esta passagem de Adorno, na Teoria estética: “Em última análise, deveria derrubar-se a doutrina da
imitação; num sentido sublimado, a realidade deve imitar as obras de arte” (Ibid., p. 153).
27
Certeau, 2014, p. 204.
28
Ibid., p. 209.
110 • Problemas de hermenêutica radical
29
Ibid., p. 210.
30
Certeau comenta que o ser vivo humano para se transformar em ser social, necessitam ser “impressos
da ordem”. Eis, aqui, outra bela reflexão de Certeau: “A escritura adquire um direito sobre a história, em
vista de corrigi-la, domesticá-la ou educá-la. Ela se torna poder nas mãos de uma “burguesia” que coloca
a instrumentalidade da letra no lugar do privilégio do nascimento, ligado à hipótese de que o mundo
dado é razão” (Ibid., p. 215).
31
Kafka, 2011, p. 29.
Dagmar Manieri • 111
32
Ibid., p. 32.
33
Ibid., p. 36.
112 • Problemas de hermenêutica radical
34
Ibid., p. 44.
Dagmar Manieri • 113
35
Ibid., p. 40.
36
Ibid., p. 46.
114 • Problemas de hermenêutica radical
37
Ibid., p. 53.
38
Foucault, 1986, p. 93.
Dagmar Manieri • 115
39
Ibid., p. 217.
40
“Estamos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do “assistente-social”-juiz;
todos fazem reinar a universalidade do normativo; e cada um no ponto em que se encontra, aí submete
o corpo, os gestos, os comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos. A rede carcerária,
em suas formas concentradas ou disseminadas, com seus sistemas de inserção, distribuição, vigilância,
observação, foi o grande apoio, na sociedade moderna, do poder normalizador” (Ibid., p. 266).
41
Foucault, 1979, p. 138.
42
Ibid., p. 142.
116 • Problemas de hermenêutica radical
43
Kafka, 2011, p. 36.
44
Ibid., p. 44.
Ibid., p. 65. Essa estranha admiração de um ser social absorvido pelo poder heterônomo é apresentada
45
por Hannah Arendt em um exemplo concreto do nazismo alemão. Ela narra o caso de uma mulher da
Baviera (ela extrai esse exemplo de Friedrich Reck-Malleczewen, em Diários de um homem desesperado).
Em Königsberg, em janeiro de 1945, a cidade está próxima da invasão soviética. Diante do apelo para
Dagmar Manieri • 117
que ela saia da cidade, a mulher responde: “Os russos nunca vão nos pegar. O Führer nunca vai permitir.
Antes disso ele nos põe na câmara de gás” (Apud Arendt, 2013, p. 127).
46
Ibid., p. 66.
47
Apud Cohen,1990, p. 407, 408.
48
Em muitos casos de execução, o poder punitivo forçava uma falsa confissão. No exemplo de Bukharin,
a confissão (que Stephen Cohen denomina de “bizarra confissão”) é a própria expressão de uma fina
ironia. Ele diz que “a confissão do acusado é um princípio medieval de jurisprudência”. Em seguida,
acrescenta: “Confesso-me culpado de (...) todos os crimes cometidos por esta organização contra-
revolucionária, independente de conhecê-los ou não, de ter ou não participado de qualquer ato em
especial” (Apud Cohen, 1990, p. 423).
118 • Problemas de hermenêutica radical
49
Em uma passagem de O príncipe, Maquiavel comenta sobre o líder político: “Depois de vencerem esses
perigos e passarem a ser venerados, tendo aniquilados os que tinham inveja de suas qualidades, tornam-
se poderosos, seguros, honrados e felizes” (Maquiavel, 2001, p. 26).
50
Montefiore, 2021, p. 231.
51
Apud Montefiore, 2021, p. 244.
52
Ibid., p. 245.
Dagmar Manieri • 119
53
Montefiore, 2021, p. 245.
54
Aliás, o romantismo conservador que há na estética dos nazistas necessita ser compreendido em uma
corrente mais ampla. O romantismo alemão surge como reação ao Iluminismo francês. Irracional,
vitalista, sensualista, esta estética torna-se complexa na medida em que adquire várias tendências (não
se esquecer do romantismo revolucionário marxista, nas figuras de Benjamin e Bloch). Encontra-se uma
espécie de esteticismo nazista em agentes mais intelectualizados, como no “romantismo de aço” de
Gobbels: “Vivemos em época que é romântica e também de aço, a qual não perdeu a profundidade do
seu sentir” (Apud Herf, 1993, p. 219).
55
Ibid., p. 88.
120 • Problemas de hermenêutica radical
56
Herf, 1993, p. 93.
57
Eis os dados eleitorais da Alemanha, antes da ascensão de Hitler: “Em julho de 1932, os social-
democratas perdiam 3% nas eleições legislativas em relação a 1930. Os comunistas ganhavam um
pouco mais de 1%. Os nazistas passavam de 18,3% para 37,3% e seu partido se tornava o mais forte no
Parlamento” (Richard, 1988, p. 115).
58
Sérgio Kokis não deixou de notar essa similitude entre a ficção kafkaniana e a vida cotidiana: “Em Kafka,
as coisas são símbolos para a vivência pessoal do leitor, que era ele mesmo, não tendo nunca um
significado delimitado e preciso. Mas apresentam-se sempre como uma porta aberta à reflexão e à
tomada de consciência de uma situação vital” (Kokis, 1967, p. 63).
Dagmar Manieri • 121
59
Kafka, 2019, p. 78, 79.
122 • Problemas de hermenêutica radical
por poderes obscuros. Esta é sua ficção estética, o exagero que cria a
distância necessária para se gerar o “real” literário.
Nos contos de Kafka sentimos a humanidade em poucos persona-
gens. Mas não é uma humanidade como Ideal, ao estilo Iluminista, nem
mesmo utópica no modelo marxiano. Trata-se de uma humanidade na
própria literalidade; uma forma de linguagem que ilumina os efeitos dos
micropoderes naqueles que foram excluídos. É uma escrita que faz a ge-
ografia da desumanidade na tentativa de se ter outra sensibilidade, já
que os micropoderes interferem nos pequenos detalhes de nossa forma-
ção autônoma. Em Kafka o requinte estético não faz parte da distinção
de uma classe superior (a “comunidade de leitores”); o gosto estético em
Kafka é político em sua essência na medida em que engendra um “olhar”
sobre os problemas da formação humanística. 60
No exemplo de Um artista da fome, notar o intenso historicismo do
conto que concebe o ser humano como um tipo social temporal. Só que
em Kafka, trata-se de uma temporalidade que nos oprime (ela está “rei-
ficada”, como diriam os marxistas). Observar que no início do conto há
um “antes” e o tempo “presente”. O passado surge nesses termos: “os
tempos eram outros”. Kafka nos mostra como o artista da fome cha-
mava a atenção dos espectadores. É neste instante que o narrador volta
ao passado:
60
Sobre a “comunidade de leitores”, ver especialmente Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano.
Nesta resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, Sloterdijk localiza a tradição da humanitas:
“Encontramos, no núcleo do humanismo assim entendido, a fantasia de uma seita ou clube – o sonho
da predestinada solidariedade dos que foram eleitos para saber ler” (2018, p. 10). Humanitas que se
converte em uma apropriação da literatura por parte da classe dominante. O que antes fora a função
ideológica da religião, agora passa para o setor cultural.
Dagmar Manieri • 123
mínimo uma vez por dia; nos últimos, havia espectadores que ficavam sen-
tados dias inteiros diante da pequena jaula; (...). 61
61
Kafka, 1995, p. 24.
62
Idem.
63
Ibid., p. 27.
64
Ibid., p. 30.
124 • Problemas de hermenêutica radical
Quem tinha sido aclamado por milhares de pessoas não podia exibir-se em
barracas nas pequenas feiras, e para adotar outra profissão o artista estava
não só muito velho, mas sobretudo entregue com demasiado fanatismo ao
jejum. Sendo assim, demitiu o empresário, companheiro de uma carreira
incomparável, e se empregou num grande circo; para poupar a própria sus-
cetibilidade, nem olhou as condições do contrato. 65
65
Idem.
66
Ibid., p. 33.
Dagmar Manieri • 125
67
Ibid., p. 35.
126 • Problemas de hermenêutica radical
68
Ibid., p. 37.
69
Ibid., p. 38.
70
Ibid., p. 40.
71
Ibid., p. 41.
Dagmar Manieri • 127
72
Ibid., p. 47.
73
Ibid., p. 48.
128 • Problemas de hermenêutica radical
comenta que logo “as crianças” são jogadas na “luta pela existência”. A
isso se acrescenta a alta taxa de fertilidade: uma geração logo empurra
a outra, assim “as crianças não tem tempo de ser crianças”. 74 É desta
forma que o narrador, ele mesmo um camundongo, expõe a vida cotidi-
ana de um povo que não educa as crianças. Ele afirma: temos uma
“infantilidade inextinguível, inerradicável” e “agimos muitas vezes de
maneira completamente tola”, como no mundo infantil. Assim, este úl-
timo se imiscui com o mundo dos adultos: temos uma “alegria infantil”,
comenta o narrador.
Sem infância, a fase adulta está impregnada de uma espécie de ve-
lhice prematura. Por esta característica do povo dos camundongos, o
narrador conclui sobre a “amusicalidade” na comunidade: “Somos ve-
lhos demais para a música; sua excitação, seu enlevo, não se ajustam à
nossa gravidade e é com cansaço que nós a rejeitamos; recolhemo-nos
ao assobio, para nós a medida certa é um pouco de assobio aqui e ali”. 75
Cansaço de que? Observar que se trata de uma comunidade ativa e que
não conhece a face lúdica da vida. Daí a dificuldade em se identificar a
ação cultural na prática de Josefina: ela seria assobio ou canto? Na ver-
dade, o narrador afirma que para o povo é indiferente esta distinção.
Mesmo se for um canto, isto não incomodará a comunidade: o canto,
como arte (música) se reduzirá “a mais completa insignificância; (...)”. 76
Quando ocorrem as apresentações de Josefina, são os mais jovens
que apreciam seus sons; a multidão já se “recolheu-se em si mesma”.
74
A descrição do narrador, ainda esclarece esses detalhes: “Não temos escolas, mas de nosso povo
jorram, em intervalos brevíssimos, os bandos infinitos dos nossos filhos, chiando ou pipilando
alegremente enquanto ainda não sabem assobiar, rodando ou, graças à pressão, rolando
continuamente enquanto ainda não sabem andar, arrastando atabalhoadamente tudo por força da sua
massa enquanto ainda não podem enxergar – nossos filhos!” (Ibid., p. 48).
75
Ibid., p. 49.
76
Ibid., p. 50.
Dagmar Manieri • 129
77
Ibid., p. 51.
78
Ibid., p. 52.
130 • Problemas de hermenêutica radical
Josefina aponta, por exemplo, que o esforço do trabalho prejudica sua voz,
que na verdade ele é pequeno em comparação com o esforço do canto, mas
tira-lhe a possibilidade de descansar o suficiente depois e de renovar as
energias para um novo recital; com isso ela tem que se esgotar por completo
e nessas circunstâncias não pode nunca atingir o seu rendimento máximo. 79
Mas o povo não consente esta liberdade excessiva que almeja Jose-
fina. O narrador assinala que, de verdade, a cantora deseja o
reconhecimento por sua arte. A veneração do povo é algo honesto; daí a
conclusão de que o reconhecimento ser “tão desmedido”. Parece estar
na própria natureza da artista essa exigência: é esta a perspectiva do
narrador. Muitos dizem que ela está envelhecendo, contudo o narrador
comenta que é a própria singularidade de Josefina:
Para ela não existe nem envelhecimento nem debilitação da voz. Quando
exige alguma coisa, não é levada a isso por coisas externas, mas por uma
lógica interna. Ela almeja a coroa máxima não porque no momento esta se
entre um pouco mais baixo, mas porque é a mais alta de todas; se estivesse
no seu poder decidir, ela a penduraria mais alto ainda. 80
79
Idem.
80
Ibid., p. 55.
Dagmar Manieri • 131
81
Ibid., p. 58.
82
Idem.
132 • Problemas de hermenêutica radical
83
Tzvetan Todorov nos apresenta uma bela reflexão sobre a importância da arte: “Por isso, incumbe ao
indivíduo de superar o peso das antigas maneiras de pensar e ver, para descobrir soluções inéditas;
compete-lhe analisar a condição humana com novo olhar, impelindo mais longe o trabalho do espírito,
ou seja, aquilo que Wilhelm von Humbold designava por Bildung ou formação espiritual do indivíduo”
(2010, p. 51).
84
Eagleton, 2011, p. 9, 10.
Dagmar Manieri • 133
Pessoas que pertencem ao mesmo lugar, profissão ou geração nem por isso
constituem uma cultura; elas o fazem somente quando começam a
85
Ibid., p. 15.
86
Sófocles, 1990, p. 215.
87
Idem.
134 • Problemas de hermenêutica radical
88
Eagleton, 2011, p. 59.
89
Shakespeare, 1997, p. 33.
90
Ibid., p. 35.
91
Ibid., p. 29.
Dagmar Manieri • 135
92
Apud Lyotard, 1986, p. 51.
93
No campo filosófico, Martin Heidegger não deixou de pensar o saldo cultural: “Pois, se de um lado, ele
[reino animal] nos é o mais próximo, de outro lado, está separado de nossa Essência ec-sistente por um
abismo. (...) Porque os vegetais e os animais, embora se achem numa tensão com seu ambiente, nunca
estão postos livremente na clareira do Ser – e só essa é “mundo” -, por isso lhes falta a linguagem (2009,
p. 44).
94
“As neuroses mostram, por um lado, notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções
sociais que são a arte, a religião e a filosofia, e, por outro lado, aparecem como deformações delas. Pode-
se arriscar a afirmação de que uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte, uma neurose obsessiva,
a caricatura de uma religião, e um delírio paranóico, de um sistema filosófico” (Freud, 2015, p. 72).
95
Ibid., p. 125.
136 • Problemas de hermenêutica radical
interdição sobre a antiga liberdade sexual que funda o ser social. Aqui,
ele lança a ideia da associação do totemismo com a economia libidinal.
Se o animal totêmico é o pai e, com isso, surge a proibição de “não ter
relações sexuais com uma mulher do totem”, conclui-se que as duas
transgressões de Édipo (que assassinou o pai e casou-se com a própria
mãe) estão presentes nos “desejos primordiais da criança”. Eles formam
“o núcleo de talvez todas as psiconeuroses”. 96
Independente da questionável tese de Freud, o importante é a pro-
blemática do salto cultural primordial que instaura o ser social. Na tese
de Freud a moralidade inicial se explica através de “dois tabus do tote-
mismo”. Se os irmãos (em revolta) assassinam o pai, há a necessidade da
proibição do incesto: “Os irmãos haviam se aliado para vencer o pai, mas
eram rivais uns dos outros no tocante às mulheres”. 97 Surge uma espécie
de pacto entre os irmãos ao se instituir a proibição do incesto e salvar a
nova organização social. Sem dúvida uma conquista cultural, mas que
tem um custo para a formação da psique:
96
Ibid., p. 136.
97
Ibid., p. 150.
98
Ibid., p. 152.
Dagmar Manieri • 137
99
Eagleton, 2011, p. 83.
100
Idem.
101
Idem.
102
Todorov, 2010, p. 54.
“Dizemos que, para Kafka, a essência animal é a saída, a linha de fuga, mesmo no local ou na gaiola.
103
Uma saída, não a liberdade. Uma linha viva de desaparecimento e não um ataque” (Deleuze; Guattari,
1975, p. 63, 64). Tradução de Dagmar Manieri.
104
Ricoeur, 2010, p. 419.
138 • Problemas de hermenêutica radical
105
Idem.
106
Idem.
Dagmar Manieri • 139
107
Um bom exemplo dessa regressão do Si-mesmo pode ser flagrado em uma declaração de Himmler,
de 4 de outubro de 1943: “A maioria de vocês deve saber o que significa 100 cadáveres, ou 500 ou 1000.
O fato de termos suportado a situação e, ao mesmo tempo, apesar de alguma exceção devida à fraqueza
humana, termos continuado sendo homens honestos, nos endureceu. É uma página de glória da nossa
história que nunca foi escrita e nunca o será” (Apud Agamben, 2021, p. 84).
108
Sobre o nascimento do compromisso (ou responsabilidade moral), ver especialmente a peça de
Sófocles, Filoctetes (2008).
4
O DISCURSO POPULISTA DE PERÓN
1
Em uma passagem significativa, Claude Lefort comenta sobre os fundamentos de um regime
democrático (de direito): “A mesma razão faz com que o poder seja limitado, de direito, e não possa se
confundir com a potência dos que o exercem; e a mesma razão faz com que não haja povo em ato fora
da operação regulamentada do sufrágio e com que não haja poder susceptível de encarná-lo. O lugar
do poder encontra-se, assim, tacitamente reconhecido como um lugar vazio, por definição inocupável,
um lugar simbólico, não um lugar real” (Lefort, 1983, p. 100).
2
Nesta passagem de Giorgio Agamben, fica evidente a personalização do regime dos romanos antigos:
“A novidade constitucional do principado pode então ser vista como uma incorporação do estado de
exceção e da anomia diretamente na pessoa do soberano, que começa a desligar-se de qualquer
subordinação ao direito para se afirmar como legibus salutos” (Agamben, 2015, p. 106).
3
Agamben, 2015, p. 107.
142 • Problemas de hermenêutica radical
4
Em 3 de julho de 1967, Perón concede uma entrevista para Adriana Civita, do semanário Sete Dias
Ilistrados. Sobre seu perfil, ele comenta: “Sou igual a Alexandre, o Grande: um profissional da liderança.
Isso é o que me caracteriza toda minha atividade. Sempre esteve em meu ofício, conduzir. Conduzir
povos, conduzir exércitos, conduzir gente...” (Perón, 2020, p. 286).
5
Thompson, 2021, p. 30.
6
Na interpretação (na perspectiva marxista) de Thompson, o paternalismo desta fase inicial da
industrialização capitalista se explica como uma espécie de saudosismo na qual “os trabalhadores
muitas vezes retornavam aos valores paternalistas perdidos” (Ibid., p. 30).
Dagmar Manieri • 143
7
Em discurso de 17 de outubro de 1947, Perón comenta: “Povo maravilhoso de uma pátria imortal, que
está construindo, como exemplo para os séculos, uma nova doutrina e uma nova idealidade que o
mundo não se esquecerá jamais” (Perón, 2002, p. 38).
8
Bourdieu, 2019, p. 92.
144 • Problemas de hermenêutica radical
9
Idem.
10
Freud, 1976, p. 401.
11
Bourdieu, 2019, p. 93.
Dagmar Manieri • 145
12
Kamel, 2007, p. 129.
13
Este princípio de tolerância pode ser encontrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão,
de 1789. No Artigo X, afirma-se: “Ninguém pode ser molestado por suas opiniões, inclusive opiniões
religiosas, desde que sua manifestação não perturbe a ordem pública estabelecida pela lei” (Jellinek,
2015, p. 110). Também no Artigo XI, temos a afirmação de que “a livre comunicação das ideias e das
opiniões é um dos mais preciosos direitos do homem; (...)” (Idem).
146 • Problemas de hermenêutica radical
14
Hill, 1967, p. 60.
15
Ibid., p. 61.
16
Observar este comentário de Hill sobre o Partido Bolchevique: “Depois de alguém ser admitido [no
Partido], não era fácil continuar sendo membro, a menos que o justificasse pelo trabalho e pela fé. O
Partido era considerado como uma equipe de pessoas altamente treinadas, abnegadas e enérgicas,
capazes de planificarem a edificação do socialismo e convencerem a massa inculta de seus
compatriotas” (Ibid., p. 65).
Dagmar Manieri • 147
Nós devemos assumir a organização de uma ampla luta política sob a dire-
ção de nosso Partido, a fim de que todas as camadas da oposição, quaisquer
que sejam, possam prestar e prestem efetivamente a essa luta, assim como
a nosso Partido, a ajuda de que são capazes. 18
17
Lênin, 1978, p. 19.
18
Ibid., p. 67.
19
Ibid., p. 100.
20
Ainda em Que fazer?, Lênin enfatiza: “E nós, Partido de luta contra toda a opressão econômica, política,
social, nacional, que podemos e devemos encontrar, reunir, instruir, mobilizar e pôr em marcha esse
exército de homens oniscientes” (Ibid., p. 115).
148 • Problemas de hermenêutica radical
desta época são uma prova deste tipo de marxismo. Primeiro, Trotsky
esclarece que “os sovietes são uma organização proletária revolucioná-
ria”; eles são compreendidos “como instrumentos de poder da classe
trabalhadora”. 21 No topo desta organização está o Partido. Trotsky co-
menta da “disciplina do regime soviético” e acentua que “a autoridade
do partido é indiscutível” e que sua disciplina não pode deixar “nada a
desejar”. 22 Eis a formação da “identidade” na ordem da representação
política, nas palavras de Trotsky:
Graças à clareza de suas ideias teóricas, graças à sua forte organização re-
volucionária, o Partido deu aos sovietes a possibilidade de se
transformarem, de informes parlamentos operários que eram, num instru-
mento de dominação do trabalho. Nesta substituição do poder da classe
operária pelo poder do Partido, não houve nada de casual, e mesmo no
fundo, não existe nisso nenhuma substituição. 23
21
Trotsky, 1969, p. 111.
22
Ibid., p. 113.
23
Ibid., p. 115.
Dagmar Manieri • 149
24
Arendt, 2012, p. 630.
25
A biografia de Stálin publicada por Simon Montefiore trouxe algumas novidades. O autor se beneficia
da abertura dos arquivos soviéticos na década de 1990. Uma delas muito interessante o autor encontrou
nas anotações de Vichinski: “(...) no julgamento de janeiro de 1937, Stálin dirigiu-se aos acusados assim:
“Vocês perderam a fé” – e deveriam morrer por tê-la perdido. Ele disse a Béria: “Um Inimigo do Povo não
é apenas alguém que faz sabotagem, mas alguém que duvida da correção da linha do Partido. Há muitos
deles e precisamos liquidá-los” (Apud Montefiore, 2021, p. 281).
26
Lefort, 1983, p. 102.
27
Ibid., p. 103
150 • Problemas de hermenêutica radical
28
Montefiore, 2021, p. 136.
29
Lefort, 1983, p. 104.
30
Ao que tudo indica, na Alemanha nazista, o totalitarismo se inicia com a Noite dos Longos Punhais
(de 29 para 30 de junho de 1934). Sob as ordens de Hitler é executado o homem (chefe da SA) que
poderia se contrapor ao líder: Ernst Röhm. Bolívar Lamounier comenta que em agosto de 1934 outros
dois atos contribuem para a centralização política: a fusão dos cargos de presidente da República e
primeiro-ministro e o juramento do Exército à fidelidade ao líder e não à Constituição (Lamounier, 2014,
p. 96, 97).
31
Lefort, 1983, p. 114.
Dagmar Manieri • 151
32
Morin, 1985, p. 17.
33
Montefiore, 2021, p. 161.
34
Morin, 1985, p. 50.
152 • Problemas de hermenêutica radical
35
Na Itália fascista, a imagem do Duce atingia esses limites: “Para algumas pessoas, tudo nele [Mussolini]
tinha propriedades mágicas de amuletos. Mulheres grávidas conservavam o retrato do Duce sobre a
mesinha-de-cabeceira, esperando que o bebê herdasse suas excelentes qualidades; ou, quando se
aproximava a época do parto, dirigiam-se a uma clínica das proximidades de sua terra natal, Predappio”
(Collier, 1971, p. 138).
36
Bourdieu, 2019, p. 46.
37
No exemplo do peronismo esta ideia é flagrante. O dia da libertação de Perón (17 de outubro) foi
instituído como um dia sagrado, restando ao líder a alcunha de “San Perón”. Com o adoecimento e
morte de Evita, eis que surge outra entidade divina, a “Santa Evita”. Nas palavras de Perón, “a Sra. Eva
Perón, ungida pelo próprio povo (...)” (Perón, 2002, p. 67).
Dagmar Manieri • 153
Enzo Travesso em As novas faces do fascismo (2011) ao estudar o fenômeno do fascismo em suas várias
38
41
Zizek, 1996, p. 149.
42
Ibid., p. 151.
Dagmar Manieri • 155
aldeã”, mas ainda três coisas que na origem eram sinônimas para o cam-
ponês: “o mundo”, “o universo” e “paz”. Violar a comuna era quebrar a
paz”. 43 São terras coletivas que pertencem à aldeia; até a cobrança de
impostos era de responsabilidade do mir. Com a introdução do capita-
lismo no campo surge a classe de proprietários rurais enriquecidos
(kulaks). Em 1906, o primeiro-ministro da Rússia, Stolipin, foi o agente
do Estado que preparou a introdução das relações capitalistas no campo.
Como enfatiza Hill, “Stolipin outorgou aos chefes de grupos familiares
o direito de propriedade absoluta das respectivas glebas, (...)”. 44 Assim,
na Rússia anterior à ascensão dos grupos de esquerda, a autocracia não
deixou de potencializar o avanço das relações capitalistas, fragmen-
tando a antiga comunidade aldeã. Eis as condições sociais propícias para
a efetivação do discurso dos comunistas.
No exemplo do populismo na América Latina o fenômeno social
não é tão diverso das condições da Rússia. Regimes autocráticos (as de-
nominadas oligarquias) se somam ao avanço do capitalismo. Para
Francisco Weffort se trata de uma “tarefa trágica de toda democracia
burguesa”. Para ele, isto implica:
43
Hill, 1967, p. 72.
44
Ibid., p. 76.
45
Weffort, 1989, p. 17.
156 • Problemas de hermenêutica radical
46
Fernandes, 2020, p. 74.
47
Ibid., p. 84.
48
Ibid., p. 217.
Dagmar Manieri • 157
49
Apud Capelato, 1998, p. 246.
50
Apud Capelato, 1998, p. 266.
158 • Problemas de hermenêutica radical
51
Soboul, 2007, p. 72.
160 • Problemas de hermenêutica radical
***
Companheiras e companheiros.
Estou nesta varanda, para todos vocês tão memorável, para dirigir-
lhes a palavra em um momento de vida pública e de minha vida, tão
transcendental e tão importante, pois desejo pessoalmente atingir o co-
ração de cada um dos argentinos que me ouvem.
Nós representamos um movimento nacional cujos objetivos são
bem claros e cujas ações são bem determinadas; e nada, honestamente,
poderá afirmar com fundamento que temos intenções ou desígnios in-
confessos.
Recentemente esta Praça de Maio testemunhou uma incrível infâ-
mia dos inimigos do povo. Duzentos inocentes pagaram com sua vida a
postura infama. Todavia, nossa imensa paciência e nossa extraordinária
tolerância, nos silenciaram à imensa afronta ao povo e à nacionalidade;
adotamos uma postura pacífica e tranquila ante esta infâmia. Esses du-
zentos cadáveres destroçados significam o holocausto que o povo
oferece à pátria. Mas esperávamos ser compreendidos, ainda que eles
fossem traidores, oferecendo nosso perdão à traição. Mas há pessoas
que não reconhecem os gestos e a grandeza da maioria. Após essas ati-
tudes, oferecemos ainda aos agressores nossa mão e nossa paz. Nós
temos oferecido a possibilidade para que esses homens se reconciliem
com suas consciências.
Mas qual tem sido a resposta? Vivenciamos dois meses de uma tré-
gua que eles quebraram com atos violentos, ainda que esporádicos e
Dagmar Manieri • 161
guardião. Se não conseguir fazer isto, que ele tome as medidas mais vi-
olentas contra os usurpadores da ordem. Eis o último chamamento e a
última advertência aos inimigos do povo. Depois de hoje, há de vir ações
e não palavras.
Companheiros! Para terminar quero recordar a cada um de vocês
que hoje se inicia uma vigília em armas. Cada um de vocês deve consi-
derar que o bem do povo está em vossos ombros; vocês devem ter uma
decisão importante em todos os dias e todos os atos: o bem (a causa) do
povo. 52
***
52
Diario La Prensa, 1 de septiembre de 1955 In: Garulli, 2000. http://archivohistorico.edu.ar. Acesso em
13/09/2021. Tradução de Dagmar Manieri.
164 • Problemas de hermenêutica radical
53
Sobre as objeções à exclusividade da análise linguística, ver especialmente A economia das trocas
linguística (1996), de Pierre Bourdieu. Já o reducionismo ocorre, de forma frequente, em Georg Lukács.
54
Uma das contribuições de Adorno foi ter mostrado que a história está presente, de forma intrínseca,
no objeto de estudo particular (em seu caso, a obra de arte). É o que se denomina de “valor de verdade”
de uma obra: “(...) o conteúdo social da verdadeira música está garantido, não pelo ouvido, mas tão-
somente pelo conhecimento dos diversos elementos e de sua configuração” (Adorno, 2002, p. 104).
55
Observar que na Revolução de 1930 (no Brasil) a liderança era composta por militares (os “tenentes”,
principalmente) e políticos regionais. De início, a burguesia paulista apoia o movimento;
posteriormente, ante o autoritarismo de Getúlio Vargas, rompe com os revolucionários em 1932.
Dagmar Manieri • 165
Com isto dou meu abraço final a essa instituição que é o esteio da Pátria: o
exército. E dou, também, o primeiro abraço a esta massa imensa que repre-
senta a síntese de um sentimento que estava morto na república: a
verdadeira civilidade do povo argentino. 56
56
Perón, 2002, p. 26.
166 • Problemas de hermenêutica radical
57
Domingues, 2018, p. 35. O primeiro levante militar ocorrera em 16 de junho de 1955. Denominado de
“Massacre da Praça de Maio”, trinta aeronaves bombardeiam a Capital, resultando mais de trezentos
mortos e oitocentos feridos. Dois grupamentos por terra intentam invadir a Casa Rosada. A resistência
é promovida pelo general Luceno.
58
Ibid., p. 42.
59
Ibid., p. 50.
Dagmar Manieri • 167
60
Apud Dunn, 2016, p. 137.
168 • Problemas de hermenêutica radical
61
Ibid., p. 141.
62
Brandi, 1983, p. 53.
63
Idem.
64
Collier, 1971, p. 137.
Dagmar Manieri • 169
65
Agamben, 2021, p. 39.
66
Ibid., p. 37.
170 • Problemas de hermenêutica radical
67
Perón, 2020, p. 285.
Dagmar Manieri • 171
68
Sieyès, 2002, p. 4. A tradução é de Dagmar Manieri.
69
Fink, 2016, p. 156.
70
Ibid., p. 157.
71
Sieyès, 2002, p. 8.
172 • Problemas de hermenêutica radical
(...) que sociedade é esta no qual o trabalho se faz nulo; onde é honroso con-
sumir e humilhante produzir; ou profissões laboriosas são concebidas como
vis, como se houvesse algo mais vil que o próprio vício, fazendo com que
esta vileza se concentre na classe trabalhadora? 72
72
Ibid., p. 39.
73
Buonarroti, 1850, p. 17.
Dagmar Manieri • 173
74
Tocqueville, 1991, p. 35.
174 • Problemas de hermenêutica radical
75
Fink, 1998, p. 99.
76
Ibid., p. 98.
Dagmar Manieri • 175
1
Durkheim, 1996, p. 214.
Dagmar Manieri • 177
2
Zizek, 2016, p. 266.
3
Ibid., p. 269.
4
Ibid., p. 270.
5
Idem.
Dagmar Manieri • 179
A CONSTRUÇÃO DA DIFERENÇA
6
Bourdieu, 1989, p. 151.
7
Ibid., p. 142.
8
“Se as relações de força objetivas tendem a reproduzir-se nas visões do mundo social que contribuem
para a permanência dessas relações, é porque os princípios estruturantes da visão do mundo radicam
nas estruturas objetivas do mundo social e porque as relações de força estão sempre presentes nas
consciências em forma de categorias de percepção dessas relações” (Ibid., p. 142).
180 • Problemas de hermenêutica radical
9
Ibid., p. 141. Em A economia das trocas simbólicas, habitus surge como um “sistema de esquemas” que
orienta “de maneira constante escolhas que, embora não sejam deliberadas, não deixam de ser
sistemáticas e, embora não sejam ordenadas e organizadas expressamente em vista de um objetivo
último, não deixam de ser portadoras de uma espécie de finalidade que se revelará só post festum”
(Bourdieu, 2019a, p. 356).
10
Bourdieu, 1989, p. 134.
11
Para efeito de exemplo (literário), ver o conto de Franz Kafka, A colônia penal. Aqui, há uma máquina
infernal que tortura e mata o condenado. Neste “presídio” há um oficial que opera a máquina. Kafka
afirma que ele é “um admirador ardente daquela máquina, (...)” (1989, p. 100). Ocorre que o contexto
histórico do conto se passa no momento em que um novo chefe é designado para comandar a
instituição; ele é “progressista” e intenta abolir a máquina. O oficial incorpora a “justiça” punitiva que
rejeita outros métodos: ele até desenvolve um gosto estético pela máquina. No final, ele mesmo se
Dagmar Manieri • 181
submete àquele “suplício requintado”. Bem ao estilo de Kafka, o conto nos mostra o extremo de uma
incorporação na figura do oficial.
12
“O pensamento “estabelece” a diferença, mas a diferença é o monstro. Não deve causar espanto o fato
de que a diferença pareça maldita, que ela seja a falta ou o pecado, a figura do Mal destinada à expiação”
(Deleuze, 2009, p. 56).
13
“Em vez de pensar a diferença em si mesma, ele [o platonismo] já a remete a um fundamento,
subordina-a ao Mesmo e introduz a mediação sob a forma mítica. Subverter o platonismo significa o
seguinte: recusar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem” (Ibid., p. 106).
182 • Problemas de hermenêutica radical
14
Grimal, 2008, p. 26.
15
E como os patrícios justificam a dominação? Mateus Wesp localiza com propriedade esta justificação;
ela está na “auctoritas divina da autoridade sacerdotal incrustada no Senado, (...)” (2018, p. 242). Ver que
quando Wesp se refere aos concílios da plebe (Concilium Plebis), não deixa de enfatizar que essas
assembleias se formavam “sem ritos sagrados”. Ou seja, na assembleia popular “não haviam auspícios
ou ritos religiosos: eram reuniões puramente políticas, sem caráter religioso (inauspiciata)” (Ibid., p. 250).
16
Honneth, 2009, p. 150.
17
Deleuze, 2009, p. 172.
Dagmar Manieri • 183
Isso não impede que ela [Ideia] seja real e que, como tal, obedeça a uma ló-
gica, justamente enquanto Ideia. Pois essa matéria não é informe; pelo
contrário, é diferenciada em si mesma, animada pela lógica de uma dife-
renciação interna, ainda virtual. Nesse sentido, a matéria da Ideia é uma
matéria expressiva. O que ela exprime através dos indivíduos é essa lógica
diferencial. A Ideia é, ao mesmo tempo, a matéria intensiva e alógica dessa
matéria – desde que se conceba essa lógica como estritamente imanente a
essa matéria, pois é a expressão dela. 21
18
Schöpke, 2004, p. 148. Observar, assim, a importância da diferença: “O diverso é o dado, mas a diferença
é aquilo que faz com que algo seja diverso. Daí podermos dizer que, vista sob um outro ângulo, a
representação jamais apreende a diferença” (Ibid., p. 149).
19
Lapoujade, 2017, p. 110.
20
Ibid., p. 111.
21
Ibid., p. 112, 113.
184 • Problemas de hermenêutica radical
22
Ibid., p. 115, 116. Lapoujade ainda acrescenta: “É uma das características essenciais da individuação
em Deleuze: ela faz o sem-fundo ideal ascender como campo de experimentação no indivíduo a fim de
transformá-lo, de submetê-lo a metamorfoses, de arrancá-lo de suas territorialidades” (Ibid., p. 116).
23
Ibid., p. 118.
24
Castoriadis, 1986, p. 124.
25
“A Ideia, a descoberta da Ideia, é inseparável de um certo tipo de questão. Primeiramente, a Ideia é
uma “objetividade” (objectité) que, como tal, corresponde a uma maneira de levantar as questões”
(Deleuze, 2006, p. 130).
26
Ibid., p. 135.
Dagmar Manieri • 185
27
Deleuze, 2009, p. 288.
28
Idem.
29
“Quando se lê a diferença como uma oposição, ela já foi privada de sua espessura própria, em que
afirma sua positividade” (Ibid., p. 289).
30
Kamaji; Weber; González-Valerio, 2004, p. 54.
31
No início de A gaia ciência, Nietzsche apresenta seu “Prelúdio em rimas alemãs”. Em uma delas - O
pintor realista - , escreve: “ “Fiel à natureza inteira” – Como faz ele então: desde quando a natureza acabou
na imagem? Pois é infinita a mais ínfima parcela do mundo! Afinal, deste ele pinta o que lhe agrada. E o
que lhe agrada? O que é capaz de pintar” (Nietzsche, 2001, p. 43, 45).
186 • Problemas de hermenêutica radical
32
Nietzsche, 2010, p. 8.
Dagmar Manieri • 187
33
Ibid., p. 25.
34
Ibid., p. 73.
35
Ibid., p. 75.
36
Scarllet Marton comenta: “Certo dia de 1865, Nietzsche encontra a obra [de Schopenhauer, O mundo
como vontade e representação, de 1818] numa livraria; compra um exemplar e entusiasma-se com o
pensamento de Schopenhauer: nenhuma Providência, nenhum Deus dirige o universo; todos os
fenômenos não passam de aspectos de uma cega vontade de viver; essa vontade de viver absurda, sem
razão ou finalidade, revela-se como a essência do mundo; (...)” (1993, p. 24, 25).
188 • Problemas de hermenêutica radical
(...) a ideia de que o mundo em sua natureza interior não é algo racional ou
espiritual, mas impulso e tendência obscura, uma realidade dinâmica e
carente de sentido, quando a julgamos segundo o padrão de nossa razão. 37
37
Safranski, 2004, p. 50. Tradução é de Dagmar Manieri.
38
O próprio Nietzsche em Nietzsche contra Wagner, comenta: “Foi no verão de 1876, durante o primeiro
Festival, que me despedi interiormente de Wagner. Eu não tolero nada ambíguo; depois que Wagner
mudou-se para a Alemanha, ele transigiu passo a passo com tudo o que desprezo – até mesmo o
antissemitismo... Era de fato o momento para dizer adeus: logo tive a prova disso. Richard Wagner,
aparentemente o mais triunfante, na verdade um décadent desesperado e fenecido, sucumbiu de
repente, desamparado e alquebrado, ante a cruz cristã...” (2009, p. 66).
39
Marton comenta: “Transcorridos quase três anos [após a ruptura de 1876], ao receber o exemplar de
Humano, demasiado humano, o compositor [Wagner] silencia. Mas nas Folhas de Bayreuth aparece um
artigo condenando o livro” (1993, p. 29).
40
Safranski, 2004, p. 169. Em Humano, demasiado humano, Nietzsche comenta: “Mas os homens pode
conscientemente decidir se desenvolver rumo a uma nova cultura, ao passo que antes se desenvolviam
inconsciente e acidentalmente (...). Quero dizer: é precipitado e quase absurdo acreditar que o progresso
deva necessariamente ocorrer; mas como poderia negar que ele seja possível?” (2000, p. 33).
Dagmar Manieri • 189
(...) enquanto ponto de vista, o valor é sempre posicionado pela visão; para
o olhar voltado intencionalmente para algo, é por meio do posicionamento
que o valor se torna pela primeira vez um “ponto” pertencente ao canal de
visão desse olhar. Portanto, os valores não coisas que se encontram de an-
temão e em si presentes, de modo que também podem se transformar
ocasionalmente em pontos de vista. 44
41
Ibid., p. 37.
42
Safranski, 2004, p. 171.
43
“Já o cristianismo esmagou e despedaçou o homem por completo, e o mergulhou como num lodaçal
profundo: então, nesse sentimento de total abjeção, de repente fez brilhar o esplendor de uma
misericórdia divina, de modo que o homem surpreendido, aturdido pela graça, soltou um grito de
êxtase e por um momento acreditou carregar o céu dentro de si” (Nietzsche, 2000, p. 94).
44
Heidegger, 2014, p. 530.
190 • Problemas de hermenêutica radical
45
Ibid., p. 533.
46
“Com freqüência, Nietzsche não denomina “valores” apenas as condições dessas conformações de
domínio, mas também as próprias conformações de domínio; e isso com razão. Ciência, arte, Estado,
religião, cultura são considerados como valores, na medida em que são condições por meio das quais
se realiza a ordem daquilo que vem a ser enquanto a única coisa real. Como conformações de poder,
esses valores instauram, por sua vez, uma vez mais determinadas condições para o próprio
asseguramento de sua consistência e para o seu próprio desdobramento. O devir mesmo,contudo, isto
é, aquilo que é real na totalidade, “não possui valor Algum” ” (Ibid., p. 533, 534).
“Antes de Wagner, a modernidade fala sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu
47
mal, desaprendeu todo pudor. E, inversamente, teremos feito quase um balanço sobre o valor do
moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal em Wagner” (Nietzsche, 2009, p. 10).
48
Ibid., p. 9.
Dagmar Manieri • 191
O instinto está debilitado. O que se deveria evitar, atrai. Leva-se aos lábios
o que conduz mais rapidamente ao abismo”. 49
O adoecimento que provoca a música de Wagner é devido ao fato de
ela “excitar nervos cansados”. Uma música grandiosa, elevada e gigan-
tesca é uma arte feita para as massas. 50 O engano desta arte está em seu
intento: “A procura pelo baixo excitamento dos sentidos, pela assim cha-
mada beleza, (...)”. 51 Há, também, em torno de Wagner a imagem que foi
criada pelos críticos; o que hoje agrada em Wagner “foi inventado para
convencer as massas”; por isso um wagneriano é um ingênuo. 52 O Nietzs-
che que se mostra em O caso Wagner é o artista aristocrático. Como bem
expressa Nietzsche contra Wagner (textos selecionados a partir de 1877), há
uma rejeição do filósofo ante o “populacho culto”. Para ele, a boa arte deve
ser “ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artifi-
cial”. Arte que se traduz “como uma pura flama” que “lampeja num céu
limpo!”. Enfim, “uma arte para artistas, somente para artistas!”. 53
Uma das características do nietzschianismo é o perspectivismo; esta
situação de perspectiva é ressaltada por Nietzsche em A vontade de poder.
Ele comenta que “a questão dos valores é mais fundamental do que a
questão da certeza, (...)”. 54 Nesse horizonte teórico, não há nenhum crité-
rio seguro para a “realidade”. Nietzsche ainda acrescenta: “As
49
Ibid., p. 18, 19.
50
Heidegger comenta sobre essa fase wagneriana de Nietzsche: “O que cativou o jovem Nietzsche no
homem Richard Wagner e em sua obra foi esse arrebatamento que impelia para o todo a partir da
embriaguez” (Heidegger, 2014, p. 71).
51
Nietzsche, 2009, p. 22.
“O wagneriano, com seu estômago crédulo, chega a saciar-se do alimento que o mestre o faz enxergar.
52
Nós, porém, que dos livros e da música exigimos sobretudo substância, estamos mal servidos em mesas
apenas “representadas”, e nos vemos em situação pior. Falando mais claro: Wagner não nos dá o
bastante para mastigar” (Ibid., p. 26).
53
Ibid., p. 72, 73.
54
Nietzsche, 2008, p. 310.
192 • Problemas de hermenêutica radical
Até mesmo aquilo que julgamos ser a realidade e que distinguimos das in-
terpretações já é o produto de uma atividade metafórica, “livremente
criativa e poetante”; só que essas metáforas não são mais reconhecidas
como tais porque se tornaram as bases de toda uma sociedade, época ou
unidade histórica. 57
55
Idem.
56
Ibid., p. 316.
57
Vattimo, 2010, p. 103.
58
Apud Vattimo, 2010, p. 117.
Dagmar Manieri • 193
Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma von-
tade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o
59
Nietzsche, 2005, p. 22.
60
Ibid., p. 66.
194 • Problemas de hermenêutica radical
OBJETIVAÇÃO E RECONHECIMENTO
61
Idem.
62
Foucault, 1979, p. 16.
63
Ibid., p. 18.
Dagmar Manieri • 195
64
Laclau, 2013, p. 237.
65
Laclau, 2015, p. 167.
66
Ibid., p. 187.
67
Laclau, 2011, p. 89.
68
Idem.
196 • Problemas de hermenêutica radical
69
Hall, 2016, p. 196.
70
Idem.
71
Rancière, 2018, p. 12.
Dagmar Manieri • 197
escapa à aritmética das trocas e das reparações. Fora dessa instituição, não
há política. Há apenas a ordem da dominação ou a desordem da revolta. 72
72
Ibid., p. 26.
73
Kojève, 2014, p. 474.
74
Ricoeur, 2006, p. 208.
198 • Problemas de hermenêutica radical
75
Bourdieu, 1996, p. 81.
76
Ibid., p. 82.
77
Ibid., p. 89.
78
Ibid., p. 91.
Dagmar Manieri • 199
79
Rancière, 2018, p. 49.
80
Ibid., p. 55.
81
Bourdieu, 1996, p. 99.
200 • Problemas de hermenêutica radical
82
Ibid., p. 100.
83
Ibid., p. 103.
Dagmar Manieri • 201
que realiza outra forma de análise crítica. Para esta última, o impor-
tante é pensar a linguagem em sua dimensão figurativa; portanto, há
nos trabalhos de Hayden White uma espécie de crítica ante a concepção
da linguagem como “representação do mundo”. 84
O enfoque que adotamos neste capítulo procura responder a algu-
mas indagações como as de Peter Burke, por exemplo, que indica que “a
crítica de evidência visual permanece pouco desenvolvida, (...)”. 85 Para
teóricos como Bourdieu, Laclau, Foucault, Hall e Rancière percebe-se
que o tema da representação torna-se o verdadeiro objeto de pesquisa.
Isto ocorre porque no pensamento desses autores há um enfoque sobre
as representações no campo das lutas simbólicas. Eles fazem parte da
grande tradição que surge desde Nietzsche, pensador que inaugura uma
postura hermenêutica diante das representações sociais. Tal concepção
afirma que as interpretações de mundo nascem de forças de dominação
e que uma transformação no regime interpretativo depende de altera-
ções nas relações de força de potências sociais (grupos sociais).
Seguindo este horizonte teórico, constata-se que os grupos exclu-
ídos em busca de autonomia necessitam de um trabalho simbólico; tal
prática emancipatória objetiva uma nova representação social infensa
às formas heterônomas. Isto só é possível através de uma objetivação da
ordem representativa (autônoma) e um processo de subjetivação polí-
tica.
E convenhamos, não são tarefas fáceis, já que o efeito de emanci-
pação passa por riscos, sem contar o complexo jogo de agenciamentos.
Os intelectuais que teorizam em torno da representação, embora
84
White, 2014, p. 121.
85
Burke, 2017, p. 26.
202 • Problemas de hermenêutica radical
86
Na biografia de Michel Foucault elaborada por Didier Eribon, temos a passagem: “(...) Foucault saiu do
PCF (Partido Comunista Francês) e se desligou do marxismo antes de partir para a Suécia no verão de
1955” (1990, p. 70).
87
Deleuze, 2016, p. 295. Sobre a experiência no GIP (Groupe d”Information sur lês Prisons), criado por
Foucault, Deleuze comenta: “Não se tratava de encontrar a verdade sobre a prisão, mas de produzir
enunciados sobre a prisão, uma vez dito que os prisioneiros, nem as pessoas de fora da prisão souberam
produzir. Soube-se fazer discursos sobre a prisão etc., mas não produzi-los” (Ibid., p. 295).
88
Apud Eribon, 1990, p. 234, 235.
89
Lênin, 2014, p. 124.
Dagmar Manieri • 203
90
“(...) a política é uma ciência e uma arte que não caem do céu, que não se obtêm gratuitamente, e que
se o proletariado quiser vencer a burguesia deve formar seus “políticos de classe”, proletários, e de tal
envergadura que não sejam inferiores aos políticos burgueses” (Ibid., p. 125).
91
Idem.
92
Na França, Raymond Aron (um intelectual conservador) escreve, entre 1952 e 1954, L’opium des
intellectuels. O debate está em torno da ideia de que, realmente, após a revolução socialista, de verdade
é o proletariado que está no poder. Houve de fato uma emancipação da classe operária? Em suas
Memórias, Aron cita os “processos” de Moscou: “Curiosamente, os processos denominam-se Debates
como se Vichinsky e Bukharin discutissem, na qualidade de professores de filosofia (...). Autor e leitor
acabam por esquecer que os processos são forjados antecipadamente, os papéis distribuídos, e que
todos, juízes e acusadores, recitam discursos previamente escritos” (1986, p. 342).
93
“Quanto à facção stalinista, sua força estava não no tamanho, mas no domínio completo que seu líder
tinha da máquina partidária e que permitia valer-se dos recursos do Partido, violar eleições, manufaturar
maiorias, disfarçar o caráter seccional e pessoal de sua política – numa palavra, identificar sua facção
com o Partido” (Deutscher, 1968, p. 296).
204 • Problemas de hermenêutica radical
94
Ibid., p. 281.
95
Axel Honneth cita uma passagem de Hegel do System der spekulativen philosophie que parece
expressar bem esta ideia de “totalidade”: “Mas eu não posso saber se minha totalidade, como de uma
consciência singular na outra consciência, será esta totalidade sendo-para-si, se ela é reconhecida,
respeitada, senão pela manifestação do agir do outro contra minha totalidade, e ao mesmo tempo o
outro tem de manifestar-se a mim como uma totalidade, tanto quanto eu a ela” (Apud Honneth, 2009,
p. 63).
96
Observar que na interpretação de Hegel, Axel Honneth expressa uma fase importante da subjetivação
política, ou seja, o surgimento (como construção) da honra: “Honra é a postura que adoto em relação a
mim mesmo quando me identifico positivamente com todas as minhas qualidades e peculiaridades”
(Honneth, 2009, p. 55).
97
Eis uma descoberta pós-moderna (que está presente mesmo em autores que rejeitam o pós-moderno,
como Slavoj Zizek). Neste último é recorrente a expressão: a “lacuna de impossibilidade que impede o
fechamento final dessa ordem (...)” (2016, p. 255). Evidentemente que o pensamento de Zizek vê com
desconfiança a universalidade sob o capitalismo (como “noção universal abstrata” frente ao Real do
capital). Mas se atentarmos para a definição de realidade em Zizek, obteremos uma excelente ideia da
política e da universalidade (politeia), em um deslocamento (não autorizado pelo autor): há uma
“incompletude ontológica da própria realidade: só há “realidade” na medida em que existe uma lacuna
ontológica, uma fissura em seu âmago (...)” (Ibid., p. 82). A precariedade da politeia e da ação política se
conjugam: “Kant foi o primeiro a detectar essa fissura no edifício ontológico da realidade: (...) (aquilo
que experimentamos como) a “realidade objetiva” não está simplesmente posta “lá fora”, esperando ser
Dagmar Manieri • 205
Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso li-
beral, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar
contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da
oligarquia no Estado e na sociedade. 99
Essa luta perene que requer a prática política equivale a dizer que
se procura “conseguir que [seja] reconhecida a qualidade de iguais e de
sujeitos políticos àqueles que a lei do Estado repelia para a vida privada
dos seres inferiores; (...)”. 100 Por isso a politeia enriquecida é o produto do
trabalho sobre a representação. 101 O estudo sobre este última indica que
percebida pelo sujeito, mas é um composto artificial constituído pela participação ativa do sujeito (...)”
(Ibid., p. 77).
98
Ibid., p. 212.
99
Rancière, 2020, p. 72.
100
Ibid., p. 73.
101
A politeia enriquecida supera a antiga forma de representação: “É, de pleno direito, uma forma
oligárquica [a antiga forma de representação], uma representação das minorias que têm título para se
ocupar dos negócios comuns” (Ibid., p. 69).
206 • Problemas de hermenêutica radical
o pensar reflexivo deve encontrar novos conceitos por detrás deste ob-
jeto (a representação). Se isto ocorre, então a representação se converte
em uma categoria de visibilidade social. Neste passo epistemológico (de-
cisivo), constata-se a importância de se pensar dois conceitos: a
diferença e a politeia.
Ao encontrarmos no conceito de politeia uma problemática que
fundamenta o estudo da representação, compreende-se melhor a afir-
mação de Althusser: “(...) a transformação do objeto torna visíveis, no
objeto, “novos aspectos” que antes não eram absolutamente visíveis;
(...)”. 102 A politeia introduz no tema da representação uma “nova proble-
mática”. Nas palavras de Althusser, “toda teoria é, pois, em sua essência,
uma problemática, (...)”. 103 Para se deixar esta ideia mais didática, apre-
sentaremos dois exemplos históricos concretos.
Na Atenas antiga, a cidade-Estado é representada pelo termo pólis.
Muitos intérpretes da forma política ateniense remetem a Aristóteles.
Ao se seguir esta representação, a pólis surge como uma “comunidade
de cidadãos”. Estão ausentes desta representação da comunidade polí-
tica as mulheres, os metecos e os escravos; o polités (cidadão) é o homem
adulto, livre, com filhos de pais atenienses. Assim, a representação aris-
totélica da pólis condiciona uma definição de política ao mostrar que só
o polités tem a capacidade de fazer política. Mas estudos mais recentes
têm questionado esta representação da pólis. Na pesquisa de Fábio Mo-
rales, A democracia pelo avesso, enfatiza-se a participação dos metecos
em vários eventos históricos de Atenas. 104 O esforço de restauração da
102
Althusser, Balibar, Establet, 1980, p. 103.
103
Ibid., p. 102.
A ideia de Fábio Morales é que a representação deve se afastar da “multidão de cidadãos”. Como ele
104
enfatiza: “O estudo do modo de articulação dessas contradições dentro da pólis permitiria, inclusive,
Dagmar Manieri • 207
repensar o conceito de política e de cidadania na Atenas clássica, para além da “multidão de cidadãos””
(Morales, 2014, p. 50).
105
O próprio Fábio Morales reproduz em sua obra um texto de Xenofonte (Poroi) na qual se propõe o
reconhecimento da importância dos metecos: “Penso que devemos considerar seus interesses [dos
metecos] suficientemente, se os liberássemos dos deveres que parecem impor sobre eles uma desonra
sem conferir qualquer benefício à pólis, e também da obrigação de servir na infantaria junto dos
cidadãos: pois grande é o perigo para aquele que o faz, e não é pouca coisa deixar seus ofícios e seus
negócios privados. (...) Se, além disso, concedermos aos metecos o direito de servir na cavalaria e vários
outros privilégios próprios lhes serem concedidos, penso que encontraremos sua lealdade aumentada
tanto quanto como a força e grandeza da pólis” (Apud Morales, 2014, p. 83, 84)
106
Sieyés, 2002, p. 2. A tradução é de Dagmar Manieri.
208 • Problemas de hermenêutica radical
107
Ibid., p. 5.
108
Assim como enfatizamos no capítulo anterior, nesta fase gloriosa da Revolução Francesa, burguesia
e classes populares representam o “povo”. Em uma fase posterior (século XIX, principalmente), a
burguesia em busca de hegemonia, inicia um novo trabalho de representação, sem utilizar-se da
imagem de “povo”. Na medida em que as classes populares conquistam mais autonomia (nos
movimentos sociais, bem como na ordem de representação), a burguesia torna-se uma classe inimiga.
Uma grande testemunha desta divisão é a obra de Philippe Buonarroti, Histoire de la Conspiration pour
l’égalité dite de babeuf. Aqui, a burguesia é representada como a “ordre d’égoïsme” contra a “ordre
d’égalité” das classes populares sem propriedade. Na visão de Buonarroti, a partir de 1792 ocorre a “lutte”
(luta) entre “lês amis de l’égalité” contra os “partisans de l´ordre d’égoisme” (Buonarroti, 1850, p. 17).
A obra de Arno Mayer estuda esta resistência. Ele enfatiza que por volta de 1914, “entre as grandes
109
111
Ibid., p. 89. Observar, também, esta afirmação de Burke: “A ocupação de um cabeleireiro ou de um
fabricante de velas não pode ser uma questão de honra para ninguém, sem mencionar uma série de
outros empregos mais servis” (Ibid., p. 89).
112
Nas palavras de Burke, o Iluminismo francês se traduz em “especulações presunçosas e extravagantes
(...)” (Ibid., p. 73).
113
Ibid., p. 72.
114
Ibid., p. 85.
210 • Problemas de hermenêutica radical
dos limites de uma obscura aldeia”; são pessoas imersas “na pobreza de-
sesperada, (...)”. 115
O conceito de politeia não pode ser entendido como a vontade geral
de Rousseau; ela só se assemelha a esta última por expressar algo da
comunidade, mas não no sentido ideal, absoluto. A politeia sempre está
em construção e as batalhas de representação se traduzem nos jogos de
legitimação, contestação ou novas afirmações. A politeia renovada é o
objetivo (ainda que relativo) dos grupos excluídos na nova modelagem
política do mundo social. 116 É neste nível que se pode relacionar a subje-
tivação política e o Si-mesmo. Na medida em que a disposição é acionada
pela subjetividade política, o Si-mesmo desperta. Eis, então, a face sub-
jetiva da politeia (como bem mostrou Platão, na relação entre a forma de
regime e o tipo de cidadão). Ela se sustenta não só através da ordenação
jurídica, mas também pelo sentido de pertencimento que está na pró-
pria natureza do Si-mesmo. 117
115
Ibid., p. 84.
116
Em uma passagem de Luta por reconhecimento, Axel Honneth enfatiza sobre esta ideia de que “os
direitos existentes numa determinada coletividade são transmitidos a um círculo cada vez maior de
pessoas; (...)”. Aqui, surge a própria politeia em sua expressão objetiva na qual “a comunidade se “amplia”
no sentido social de que são incluídos nela um número crescente de sujeitos pela adjudicação de
pretensões jurídicas” (Honneth, 2009, p. 146).
117
Aqui é interessante observarmos um provável discurso de Lísias (como logógrafo). Nele há a objeção
ao comportamento de Filon. O que não é louvável para a cultura política ateniense é abandonar o Si-
mesmo em busca da satisfação do Ego: “Eu simplesmente digo que somente têm o direito de deliberar
[ser conselheiro] sobre nossos assuntos aqueles que não apenas têm o título de cidadãos, mas que
também o são realmente. Pois, para estes, existe uma grande diferença se a pólis é próspera ou não –
eles se sentem obrigados a participar de suas desgraças, assim como de seus benefícios. Mas aqueles
que, cidadãos de nascimento, têm por princípio que a pátria está em todo lugar onde eles possuem
negócios, estes serão evidentemente os que trairão os bens coletivos da pólis em nome de suas
vantagens privadas: aos olhos destes, não é a pólis a pátria, mas sua propriedade. Eu, portanto, mostrarei
que Filon pôs sua segurança pessoal acima do perigo comum, e que preferiu bem mais passar a vida
sem risco que enfrentar o perigo pela salvação da polis, como fizeram os outros cidadãos” (Apud
Morales, 2014, p. 114).
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. Filosofia da nova música. 3ª Ed. Tradução de Magda França. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
ADORNO, Theodor W. Sem diretriz- parva aesthetica. Tradução de Luciano Gatti. São
Paulo: Editora UNESP, 2021.
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993.
ANDERS, Günther. Kafka: pró e contra. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1969.
ARON, Raymond. Memórias. 2ª Ed. Tradução de Octávio A. Velho. Rio de Janeiro: Editora
Nova Fronteira, 1986.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. 5ª Ed. Tradução de Jacó Guinsburgl. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2010.
BECKETT, Samuel. Molloy. Tradução de Ana H. Souza. São Paulo: Editora Globo, 2014.
BERGSON, Henri. A evolução criadora. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
BERTI, Enrico. Contradição e dialética nos antigos e nos modernos. Tradução de José
Bortolini. São Paulo: Paulus, 2013.
BIDET, Jacques; TEXIER, Jacques (Orgs.). L’idée du socialisme a-t-elle um avenir? Paris:
Presses Universitaires de France, 1992.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. Tradução
de Sergio Miceli [et. all.]. São Paulo: EDUSP, 1996.
Dagmar Manieri • 213
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Tradução de Segio Miceli [et. all.].
São Paulo: Perspectiva, 2019a.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz. Lisboa: DIFEL; Rio
de Janeiro: Editora Bertrand Brasil S.A, 1989.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. 10ª Ed. Tradução de Mariza
Corrêa. Campinas: Papirus, 2010.
BRANDI, Paulo. Vargas: da vida para a história. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.
BURKE, Peter. Testemunha ocular: o uso de imagens como evidência histórica. Tradução
de Vera M. X. dos Santos. São Paulo: Editora da UNESP, 2017.
BURNETT, Henry. Para ler “O nascimento da tragédia” de Nietzche. São Paulo: Edições
Loyola, 2012.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 3ª Ed. Tradução de Maria de L. Menezes. Rio
de Janeiro: Forense-Universitária, 2017.
214 • Problemas de hermenêutica radical
CHAPLIN, Charles. História da minha vida. 5ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora,
1966.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta e outros textos. Tradução de Luiz B. l. Orlandi [et. all.]. São
Paulo: Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: pour une literature mineure. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1975.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é filosofia? Tradução de Bento Prado Jr. E
Alberto A. Muñoz. São Paulo: Editora 34, 2013.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. 2ª Ed. Tradução de Sandra C. Branco. São Paulo:
Editora da UNESP, 2011.
ECO, Umberto. A definição da arte. Tradução de José M. Ferreira. São Paulo: Martins
Fontes, 1981.
ERIBON, Didier. Michel Foucault (1926-1984). Tradução de Hildegard Feist. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
FREUD, Sigmund. Obras completas - Edição Standard Brasileira – Vol. XVI - Conferências
introdutórias sobre psicanálise/Teoria geral das neuroses. Tradução de Jayme Salomão.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976.
FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos
homens primitivos e a dos neuróticos. Tradução de Paulo C. de Souza. São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.
GARULLI, Liliana [Et. all]. Memoria de la Resistencia Peronista (1955-1972). Buenos Aires:
Editorial Biblos, 2000.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
GRIMAL, Pierre. História de Roma. Tradução de Rita C. Mendes. Lisboa: Edições Texto &
Grafia, 2008.
HELLER, Erich. Kafka. Tradução de James Amado. São Paulo: Cultrix; EDUSP, 1976.
HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa. 2ª Ed. Tradução de Geir Campos. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1967.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais.
Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2009.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. 9ª Ed. Tradução de
João P. Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Civilização
Brasileira, 1971.
KAFKA, Franz. O veredicto/Na colônia penal. Tradução de Modesto Carone. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
KAFKA, Franz. América. Tradução de Jorge Rosa. Lisboa: Edição Livros do Brasil, 1974.
KAFKA, Franz. Carta ao pai. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das
Letras, 2014.
Dagmar Manieri • 219
KAFKA, Franz. O castelo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril cultural,
1975.
KAMAJI, Greta R.; WEBER, Paulina R.; GONZÁLEZ-VALERIO, María. Entre hermanéuticas.
México: Facultad de Filosofía y Letras, 2004.
KOKIS, Sérgio. Franz Kafka e a expressão da realidade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1967.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução de Carlos Eugênio M. de Moura. São Paulo:
Três Estrelas, 2013.
LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política
democrática radical. Tradução de Joanildo A. Burity, Josias de Paula Jr e Aécio
Amaral. São Paulo: Intermeios; Brasília: CNPq, 2015.
220 • Problemas de hermenêutica radical
LAMOUNIER, Bolívar. Tribunos, profetas e sacerdotes. São Paulo: Companhia das Letras,
2014.
LÊNIN, Vladimir I. Que fazer? Tradução de Kyra Hoppe e Alexandre Roudnikov. São
Paulo: Editora Hucitec, 1978.
LIMA NETO, Avelino A, de. O cinema como educação do olhar. São Paulo: LiberArs, 2018.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A tela global: mídias culturais e cinema na era
hipermoderna. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009.
MARCUSE, Herbert. Tecnologia, guerra e fascismo. Tradução de Maria C. Vidal Borba. São
Paulo: Editora da UNESP, 1999.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. Tradução de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2010.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Tradução de Álvaro Pina. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2005.
MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Tradução de Pedro Madeira. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011.
MUHLSTEIN, Anka. A ilha prometida: a história de Nova York do século XVIII aos nossos
dias. Tradução de Júlio C. Guimarães. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
NAGEL, Ernest; NEWMAN, James R. A prova de Gödel. 2ª Ed. São Paulo: Editora
Perspectiva, 2003.
NIETZSCHE, Friedrich W. Além do bem e do mal. Tradução de Márcio Pugliesi. São Paulo:
HEMUS, 1981.
RANCIÈRE, Jacques. O destino das imagens. Tradução de Mônica C. Netto. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2016.
RANCIÈRE, Jacques. O fio perdido: ensaios sobre a ficção moderna. Tradução de Marcelo
Mori. São Paulo: Martins Fontes, selo Martins, 2017.
RAWLS, John. O direito dos povos. Tradução de Luís C. Borges. São Paulo: Martins Fontes
– Selo Martins, 2019.
RICHARD, Lionel. A república de Weimar. Tradução de Jônatas Batista Neto. São Paulo:
Companhia das Letras; Círculo do Livro, 1988.
RICOEUR, Paul. O Si-Mesmo como Outro. Tradução de Ivone C. Benedetti. Wmf Martins
Fontes, 2014.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa III - o tempo narrado. Tradução de Claudia Berliner.
São Paulo: wmf Martins Fontes, 2010.
SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? 3ª Ed. Tradução de Carlos F. Moisés. São Paulo:
Editora Ática, 1999.
SCHÖPKE, Regina. Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade. Rio
de Janeiro: Contraponto; São Paulo: EDUSP, 2004.
SEARLE, John R. Consciência e linguagem. Tradução de Plínio J. Smith. São Paulo: wmf
Martins Fontes, 2010.
SHAKESPEARE, William. Macbeth. 2ª Ed. Tradução de Manuel Bandeira. São Paulo: Paz
e Terra, 1997.
226 • Problemas de hermenêutica radical
SIEYÈS, Emmanuel J. Qu’est-ce que le Tier e’tat? Paris: Éditions du Boucher, 2002.
SLOTERDIJIK, Peter. Crítica da razão cínica. 3ª Ed. Tradução de Marco Casanova [et.all].
São Paulo: Estação Liberdade, 2012.
SLOTERDIJIK, Peter. Regras para o parque humano: uma resposta à carta de Heidegger
sobre o humanismo. 4ª Ed. Tradução de José O. de A. Marques. São Paulo: Estação
Liberdade, 2018.
SÓFOCLES. Filoctetes. Tradução de Fernando B. dos Santos. São Paulo: Odysseus Editora,
2008.
TAYLOR, Charles. Hegel e a sociedade moderna. Tradução de Luciana Pudenzi. São Paulo:
Editora Loyola, 2005.
TAYLOR, Charles. Hegel: sistema, método e estrutura. Tradução de Nélio Schneider. São
Paulo: É Realizações Editora, 2014.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. 9ª Ed. Tradução de Carmen Grisci [et. all]. Petrópolis:
Editora Vozes, 2011.
TODOROV, Yzvetan. O medo dos bárbaros: para além do choque das civilizações. Tradução
de Guilherme J. de F. Teixeira. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
VATTIMO, Gianni. Diálogos com Nietzsche. Tradução de Silvana C. Leite. São Paulo: wmf
Martins Fontes, 2010.
WILLIAMS, Raymond. A produção social da escrita. Tradução de André Glaser. São Paulo:
Editora da UNESP, 2014.
ZIZEK, Slavoj (Org.). Um mapa da ideologia. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1996.
ZIZEK, Slavoj. Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético. Tradução de
Rogério Bettoni. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
www.editorafi.org
contato@editorafi.org