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XIII Encontro Estadual de História

ANPUH-PR

Anais. Vol. I:
do Simpósio Temático 01 ao Simpósio Temático 13

A ESCRITA DA HISTÓRIA
12 a 15 de Outubro de 2012

Londrina
PR
XIII Encontro Estadual de História
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA - SEÇÃO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

12 A 15 DE OUTUBRO DE 2012

A ESCRITA DA HISTÓRIA

Anais. Vol. I:
do Simpósio Temático 01 ao Simpósio Temático 13

Londrina – Paraná – Brasil


Catalogação elaborada pela Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca Central da
Universidade Estadual de Londrina

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)


E56a Encontro Estadual de História (13. : 2012 : Londrina, PR)
Anais [do] XIII Encontro Estadual de História [livro eletrônico] / Associação
Nacional de História. Seção Paraná, Universidade Estadual de Londrina.
Departamento de História; editores : Gilberto da Silva Guizelin, José
Miguel Arias Neto. – Londrina : ANPUH : UEL, 2013.
1 Livro digital : il.

Tema central: A escrita da história.


Conteúdo: v. 1. Do simpósio temático 01 ao simpósio temático 13 - v. 2. Do
simpósio temático 14 ao simpósio temático 25.
Inclui bibliografia.
Disponível em: http://www.pr.anpuh.org
ISSN 1808-9690

1. História – Congressos. 2. Historiografia – Congressos. I. Guizelin,


Gilberto da Silva. II. Arias Neto, José Miguel. III. Associação Nacional de
História. IV. Universidade Estadual de Londrina. V. Título. VI. Título: A
escrita da história.

CDU 930.1
Realização

Patrocínio
Diretoria ANPUH-PR

Diretora: Beatriz Anselmo Olinto – UNICENTRO/Guarapuava


Vice-Diretor: Leandro Henrique Magalhães – UNIFIL
Secretario Geral: José Miguel Arias Neto – UEL
Segundo Secretário: Marcos Nestor Stein – UNIOESTE/Rondon
Primeiro Tesoureiro: Edson Armando Silva – UEPG
Segundo Tesoureiro: Oséias de Oliveira – UNICENTRO/Irati

Universidade Estadual de Londrina

Reitora: Nádina Aparecida Moreno


Vice-Reitora: Berenice Quinzani Jordão
Pró-Reitor de Pesquisa: Mario Sérgio Mantovani
Pró-Reitora de Extensão: Cristiane Cordeiro Nascimento
Diretora do CCH: Mirian Donat
Chefe do Departamento de História: Edméia Aparecida Ribeito
Coordenadora do PPGHS: Silvia Cristina Martins de Souza

Comissão Organizadora

José Miguel Arias Neto – UEL


Beatriz Anselmo Olinto – UNICENTRO/Guarapuava
Bruno Sanches – UNESP/Assis
Celina Aparecida Negrão – UEL
David Antonio de Castro Netto – UEL
Edméia Aparecida Ribeiro – UEL
Edson Armando Silva – UEPG
Érica da Silva Xavier – UEL
Gilberto da Silva Guizelin – UNESP/Franca
Leandro Henrique Magalhães – Unifil
Marcos Nestor Stein – UNIOESTE/ Mal. Cândido Rondon
Muriel Emídio Pessoa do Amaral – UNESP/Bauru
Neobi Fumiko Kayano – UEL
Oséias de Oliveira – UNICENTRO/Irati
Talita Sauer Medeiros – UNESP/Assis

Edição Dos Anais


Gilberto da Silva Guizelin
José Miguel Arias Neto
Comissão Científica

Ailton Jose Morelli – UEM


Alessandra Carvalho – UEPG
Ângelo Priori – UEM
Antonio Cesar de Almeida Santos –UFPR
Beatriz Anselmo Olinto –UNICENTRO
Carmem G. Burgert - Universidade Federal do Rio Grande
Cláudia Prado Fortuna –UEL
Cláudio DeNipoti –UEPG
Eulália de Moraes – FAFIPAR
Fabiana Cardoso Malha Rodrigues –UFF
Frank Mezzomo – FECILCAM/ Campo Mourão
Gabriel Giannattasio – UEL
Geni Rosa Duarte – UNIOESTE
Gilmar Arruda - UEL
Helena Isabel Mueller – UEPG
Hélio Rebello Cardoso Jr – UNESP/Assis-SP
Hélio Sochodolak – UNICENTRO/ Irati
Jair Antunes – UNICENTRO/ Irati
Jó Klanovicz - UNICENTRO
José Jorge Andrade Damasceno - Universidade do Estado da Bahia
José Miguel Arias Neto – UEL
Leandro Henrique Magalhães- Centro Universitário Filadélfia – UniFil
Liliane Freitag – UNICENTRO/ Guarapuava
Lúcia Helena Oliveira Silva –UNESP/Assis
Luciana Regina Pomari –Unespar/Fafipa
Luciana Rosar Fornazari Klanovicz –UNICENTRO
Márcia Elisa Teté Ramos – UEL
Marcio Santos de Santana – UEL
Marco Antonio Arantes –UNIOESTE
Marco Antonio Neves Soares – UEL
Marcos Gonçalves – UNESPAR
Marcos Nestor Stein– UNIOESTE
Maria Ignês Mancini de Boni - Universidade Tuiuti do Paraná
Méri Frotscher Kramer– UNIOESTE
Renata Cerqueira Barbosa – UEL
Renata Senna Garraffoni – UFPR
Rinaldo José Varussa-UNIOESTE
Rivail Carvalho Rolim –UEM
Roberto Massei - UENP – Jacarezinho
Rogério Ivano –UEL
Rosângela Maria da Silva Petuba-UEPG
Rosemeri Moreira -Faculdades Guarapuava/LEGH-UFSC
Sandra Regina Barbosa da Silva Souza -Universidade do Estado da Bahia
Silvia Cristina Martins de Souza –UEL
Solange Ramos de Andrade –UEM
Yonissa Marmitt Wadi – UNIOESTE
Sumário do Volume I

Apresentação
José Miguel Arias Neto; Gilberto da Silva Guizelin ..................................................... 13

ST 01: Infância, Adolescência e Juventude: História e Historiografia

Documentação escolar e a organização de fontes


para a História da Infância e da Juventude
Ailton José Morelli ........................................................................................................ 15

A infância cidadã
a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente
Daniele Ditzel Mattioli & Rita de Cássia da Silva Oliveira .......................................... 24

O universo brincante
da infância nas colônias italianas de Curitiba
Elaine Cátia Falcade Maschio ....................................................................................... 38

Entre a noção de delinquência e infração:


crianças e adolescentes sob a ótica da mídia impressa, Criciúma – SC (1980-2000)
Elisangela da Silva Machieski ....................................................................................... 49

História local e identidade histórica:


possibilidades para o ensino de História
Gerson Luiz Buczenko .................................................................................................. 63

Adolescentes jovens e viveres urbanos:


identidade e sociabilidade no Porto Madeira (Foz do Iguaçu, décadas de 1990 e 2000
João Paulo de Souza Miglioli ........................................................................................ 76

Um conflito de táticas e estratégias:


a rua como espaço cotidiano de brincadeiras da infância pobre e/ou abandoanada
de Feira de Santana/BA entre 1890 e 1940
Lívia Gozzer Costa ........................................................................................................ 84

Conjuntura política e estruturação acadêmica:


a participação juvenil nos anos 1960 r 1970
Márcio Santos de Santana .............................................................................................. 96

Instrução e trabalho:
a experiência dos ingênuos no Paraná (1871-1888)
Noemi Santos da Silva ................................................................................................. 107
Marginalização, delinquência e criminalidade infantil
na cidade de São Paulo no início do século XX
Robson Roberto da Silva ............................................................................................. 120

O abandono de crianças na História do Brasil:


um balanço aberto
Thiago do Nascimento Torres de Paula ....................................................................... 135

Os aprendizes:
recrutamento e disciplina nas Companhias de Aprendizes Marinheiros
de Pernambuco (1857-1870)
Wandoberto Francisco da Silva ................................................................................... 144

ST 03: África e Africanidades: História e Ensino

“Angolano segue em frente”:


música e nação em Angola (1960-1970)
Amanda Palomo Alves ................................................................................................ 156

A representação étnico-racial do segmento social negro:


livros didáticos de História
Cleonice de Fátima de Souza ....................................................................................... 167

Das raízes africanas à cultura afro-brasileira:


um caminho entre a lei 10.639/2003 e a produção em dança afro-brasileira
na escola
Jeancarlos Nunes Garcia .............................................................................................. 179

Representações da religiosidade afro-brasileira em O Cruzeiro 1958-1961:


indícios e interfaces
Jorge Luiz Romanello .................................................................................................. 190

Lei 10.639/2003,
uma realidade ou mais uma política curricular obrigatória?
professores de História: suas apropriações e resistência à lei
Rosimeire dos Santos ................................................................................................... 203

Haile Selassie I:
um deus ou um imperador absolutista?
Zeus Moreno Romero .................................................................................................. 214

ST 04: Cultura, Etnias, identificações

História da alimentação
numa perspectiva da genealogia Prudentópolis (PR)
Eliane Crestiane Lupepsa Costenaro ........................................................................... 227
Soldados e degredados no Povoamento de Guarapuava:
identificações, rejeições e resistências – 1820/1853
Francisco Ferreira Júnior ............................................................................................. 238

João Cândido e o discurso médico/eugênico


Gerson Pietta ................................................................................................................ 250

Envelhecer na cidade:
memórias de mulheres aposentadas oriundas do espaço rural
(Marechal Cândido Rondon – 1980-2011)
Gladis Hoerlle .............................................................................................................. 261

Representações étnicas no espaço matogrossence:


um patrimônio cultural em evidência
Janaína Rodrigues Pitas ............................................................................................... 275

Memória e construção identitária:


um estudo sobre a comunidade quilombola Manoel Criríaco dos Santos, Guaíra, PR
Jéssica de Lima da Silva .............................................................................................. 283

Problematizando identidades e histórias:


descendentes nipônicos em Assis Chateubriand – PR
Kristian Miguel Elger .................................................................................................. 297

O jornal Folha do Oeste:


imprensa, históira e identidades na região centro-sul do Estado do Paraná
Maurício de Fraga Alves Maria ................................................................................... 304

A percepção do outro:
teuto-brasileiros e a imprensa curitibana durante a Primeira Guerra Mundial
Pamela Beltramin Fabris ............................................................................................. 316

Brasil e Alemanha Imperial (1871-1918):


diplomacia, imigração e imperialismo
Wilson Maske .............................................................................................................. 328

ST 05: Memórias Contra-Hegemônicas, História e Ensino de História

Experiências contra-hegemônicas na história da Educação popular


Adriana Medeiros Farias ............................................................................................. 345

Soberania nacional vs.narcotráfico:


ameaças e fatos na Colômbia contemporânea
Anderson Guilherme Albani; Camila Zanella ............................................................. 355
Memória em fragmentos:
o Acervo Santo Dias
Carlos Alberto Nogueira Diniz .................................................................................... 367

Implantação do Estado de Israel


e gênese dos conflitos israelo/árabes na Palestina
Luciano Kneip Zucchi ................................................................................................. 379

Quando a vida parece novela:


memórias de mulheres das camadas populares
Tânia Maria Gomes da Silva ....................................................................................... 391

ST 06: Cultura e Letras no Brasil e Portugal (Séculos XVIII e XIX)

Para formar homens capazes de “Discernimento e Percepção”:


reformas educacionais em Portugal (segunda metade do século XVIII)
Antonio Cesar de Almeida Santos ............................................................................... 405

Feitiçaria, leitura e esforço editorial em Portugal no século XVIII


Cláudio DeNipoti ......................................................................................................... 417

Panacéia da dor:
o espaço social português e os preceitos reformadores da “Geração Nova” de 1870
Lucélia Rodrigues de Oliveira ..................................................................................... 433

Herança de História?
a posse do livro nos inventários post mortem de Castro entre 1800 e 1870
Luciana Cristina Pinto ................................................................................................. 446

ST 07: História e Linguagens

A Nova História Cultural e a utilização da Literatura


para pesquisa historiográfica
Bethânia C. Gaffo ........................................................................................................ 456

Dor e alegria na música de Raul Seixas


Jerferson Santana Brandão .......................................................................................... 465

O semióforo e o regime de historicidade:


reflexões sobre o objeto, cultura (i)material e tempo histórico
Lucas Trazzi de Arruda mendes .................................................................................. 477

A Assembleia de Deus é nossa:


O embate entre liderança brasileira e os missionários suecos na Convenção de 1930
Wesley Américo Bergamin Granado de Paula ............................................................ 490
ST 08: História: Cotidiano, Saberes e Práticas Tradicionais

Espaços de formação docente:


o liso e o estriado no campo do Ensino de História
Claércio Ivan Schneider ............................................................................................... 501

Resistência e saberes dominados:


alguns olhares sobre o pensamento de Foucault
Igor Guedes Ramos ..................................................................................................... 513

O papel social da leitura em uma comunidade tradicional –


Faxinal Marmeleiro de Cima (Rebouças-PR)
Jicieli Domingues Pereira ............................................................................................ 525

Escrevendo a história dos e nos entremeios:


lugar e espaço em Michel De Certeau e o papel social do historiador
João Rodolfo Munhoz Ohara ....................................................................................... 532

Entre discursos institucionais e práticas faxilenenses:


a infestação de gafanhotos e a peste suína em Irati-PR na década de 1940
Regiane Maneira; Hélio Sochodolak ........................................................................... 542

ST 09: As Multifaces do Poder na História e nas Ciências Humanas

Uma análise da imagem de rei e da nobreza


a partir dos escritos do Conde Pedro Afonso de Barcelos
Adriana Mocelim de Souza Lima ................................................................................ 554

Práticas proibidas.
Análise dos processos crimes de incesto na Comarca de Rebouças –
um estudo de caso
Eduardo Mady Barbosa ............................................................................................... 566

A construção do poder divino dos reis:


ss representações religiosas influenciando na política
Jacqueline Rodrigues Antonio ..................................................................................... 575

Poderes locais e contextos plebiscitários


no sudoeste paranaense (1960-1968)
Jonathan Marcel Scholz ............................................................................................... 586

O método biográfico e a micro-história:


relações entre indivíduo e sociedade
Lucimara Koss ............................................................................................................. 597
ST 10: História Ambiental: Questões, Temas e Perspectivas no Paraná

Pinheiro-do-Paraná:
símbolo de identificação cultural ou emblema de uma história de desfloramento?
Alessandra Izabel de Carvalho .................................................................................... 609

A Universidade Estadual de Londrina e o rio Tibagi:


a participação dos cientistas no Projeto Tibagi (1980-2000)
Eliane Aparecida Biasetto ........................................................................................... 620

A construção histórica do ecossocialismo


Jozimar Paes de Almeida ............................................................................................. 628

Sentidos em disputa:
a estrada/caminho do colono em narrativas
Nivia M. B. Grapiglia; Davi F. Schreiner .................................................................... 638

Do “lixão” ao aterro:
história das políticas públicas ambientais em Guarapuava/PR (1970-2010)
Vladson Paterneze Cunha ............................................................................................ 651

ST 11: Memórias. Identidades e Conflitos Sociais

Um olhar à Esquerda:
a Força Expedicionária Brasileira
Carlos Henrique Lopes Pimentel ................................................................................. 664

O fascismo na América do Sul:


inter-relações entre Brasil, Uruguai e Argentina na década de 1930
Daniela Moraes de Almeida; Victor Raoni de Assis Marques .................................... 676

Experiências de militantes petistas de Santa Helena-PR (1980-2012):


memórias e significados
Diná Schmidt ............................................................................................................... 688

Do bandeirante histórico ao bandeirante mítico:


a contrução do mito historiográfico paulista
Flávio Raimundo Giarola ............................................................................................ 697

Considerações sobre a cultura política literária


George Araújo ............................................................................................................. 710

Memória e identidade do Partido Comunista do Brasil


Jean Rodrigues Sales ................................................................................................... 720
A escrita da História da Cidade – memória e narrativas:
Alagoinhas como objeto de atentos viajantes e memorialistas (1889-1960)
José Jorge Andrade Damasceno .................................................................................. 732

Vida e trabalho:
memórias de pescadores sobre a pesca artesanal na ilha do Amparo
após o acidente do navio Vicuña em 2004
Priscila Onório Figueira ............................................................................................... 745

ST 12: Patrimônio Histórico-Cultural: Reflexões e Relatos de Práticas

Possibilidade de espaço para educação patrimonial:


o Parque Histórico de Carambeí
Bianca Viviane de lima Barão; Juliana Pegoraro Kus ................................................. 757

Artes no silêncio: educação patrimonial em cemitérios


Clarissa Grassi ............................................................................................................. 767

A memória dos brasileiros na Segunda Guerra Mundial:


ensino, pesquisa, extensão e o patrimônio histórico do Museu do Expedicionário
(Curitiba/PR)
Dennison de Oliveira ................................................................................................... 777

Digitalização de acervos locais:


uma proposta de fluxos de trabalho baseada em equipamentos abertos e software livre
Edson Armando Silva; Leandro Batista de Almeida; Gerson Kniphoff da Cruz;
Luiz Ernesto Merkle .................................................................................................... 785

Patrimônio histórico e educação:


narrativas históricas da Ilha do Mel contada por alunos
Evandro Cardoso do Nascimento ................................................................................ 797

Memória gastronômica:
a alimentação de imigrantes e seus descendentes, nas décadas de 1930-1950.
Londrina-Paraná
Gilberto Hildebrando; Leandro Henrique Magalhães ................................................. 809

Patrimônio imaterial:
o lugar da memória e a memória do lugar; (ICARAÍMA/PR)
Murilo Rebecchi; Lúcio Tadeu Mota .......................................................................... 815

O Monumento Nacional aos mortos da Segunda Guerra Mundial


e a memória dos ex-combatentes brasileiros
Pauline Bitzer Rodrigues ............................................................................................. 823

Os cavaleiros de São Sebastião e as práticas culturais em Cambirá, Paraná


João Paulo P. Rodrigues; Sandra C. A. Pelegrini ........................................................ 830
As perspectivas de salvaguarda do patrimônio imaterial
e o jongo em Cunha – São Paulo
Sandra C. A. Pelegrini; Welington Vilanova .............................................................. 842

Narrativa testemunhal na obra Hospício é Deus de Moura Lopes Cançado


Solange Cordeiro ......................................................................................................... 850

ST 13: História do Corpo: Masculinidades, Feminilidades e Gênero

“Tão estranho como nós”:


representações homossexuais na TV e na Internet
Caroline Stefany Depieri ............................................................................................. 860

Espaços luxuosos e espaços de dominação:


a revista Careta criando a falsa liberação feminina na Belle Époque carioca
Douglas Josiel Voks .................................................................................................... 871

A pornografia na pós-modernidade:
manutenção de discursos de gêneros
Franciele Siqueira Miotto; Edinéia Aparecida Chaves de Oliveria ............................. 884

Camoina Grande, espaço escolar e corpos masculinos no Magistério Infantil


(1909-1941): experiências modernas à contrapelo?
Hélio Santana Garcia Soto ........................................................................................... 898

Entre dona feia e concursos de beleza:


relações de gênero nos discursos sobre o corpo feminino na imprensa
de Fortaleza nos anos 1920
Luciana Andrade de Almeida ...................................................................................... 908

A relação moda/corpo:
acepções e transformações no começo do século XX na cidade de Paris
Maria Cecília Gonçalves Pimenta ............................................................................... 917

Virilidade, combatentes e um feminino tão fora do lugar


Rosemeri Moreira ........................................................................................................ 928
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 13

APRESENTAÇÃO

O Encontro de História da Associação Nacional de História – seção Paraná, é


um evento que ocorre a cada dois anos e encontra-se em sua décima terceira edição. O
evento contribui para que a ANPUH alcance seus objetivos, quais sejam: a) O
aperfeiçoamento do ensino de História em seus diversos níveis; b) O estudo, a pesquisa
e a divulgação de assuntos de História; c) A defesa das fontes e manifestações culturais
de interesse dos estudos históricos; d) A defesa do livre exercício das atividades dos
profissionais de História. O tema do XIII Encontro Estadual de História é A escrita da
história, o que implica na discussão epistemológica do conhecimento histórico na
contemporaneidade, suas especificidades e formas de integração entre investigação
empírica, estilos narrativos e capacidade de representação. Condições de possibilidade
para o conhecimento das vivências humanas nas diferentes temporalidades. Trata-se,
portanto, de investigar e debater as atividades desenvolvidas no ofício de historiador.
Envolvendo para isso, tanto os níveis de pesquisa e ensino (praticados nas universidades
e escolas), quanto as demais formas de inserção desse conhecimento e de seus
profissionais na sociedade (museus, arquivos, patrimônio, mídia, editoras).
É, portanto, com prazer que apresentamos os ANAIS DO XIII EEH, em dois
volumes, dado a extensa participação no evento e no grande número de textos enviados
à organização.
Agradecemos aos nossos financiadores e apoiadores: Coordenação de
Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior – CAPES, Fundação Araucária, Revista
de História da Biblioteca Nacional, Programa de Pós-Graduação (Mestrado) em História
Social, à Direção do Centro de Letras e Ciências Humanas e à Coordenadoria de
Comunicação Social da Universidade Estadual de Londrina bem como à Companhia de
Saneamento do Paraná – SANEPAR.

José Miguel Arias Neto


Gilberto da Silva Guizelin
(organizadores).

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


12 a 15 de Outubro de 2012
ST 01 – INFÂNCIA, ADOLESCÊNCIA E JUVENTUDE:
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 15

DOCUMENTAÇÃO ESCOLAR E A ORGANIZAÇÃO DE FONTES PARA


HISTÓRIA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE

Ailton José Morelli


Doutor História Econômica (USP)
Professor Departamento História (UEM)

As pesquisa de história da infância, da adolescência e da juventude


normalmente sofrem com falta de fontes diretamente dos seus personagens. É incomum
a guarda de documentos produzidos por eles, no caso das crianças a situação é mais
complicada. Como afirma STEARNS (2006, p. 15):
A história das crianças e da infância vem fascinando muitos
historiadores contemporâneos, e o campo,neste exato momento, está
uma vez mais ganhando terreno. Esses historiadores admitem que há
aspectos da experiência das crianças que não podemos apreender
totalmente, pela falta de evidência direta, porém sustentam que é
possível reunir sólido conhecimento sobre a condição infantil no
passado e sobre as mudanças na natureza da infância.

A preocupação em desenvolver pesquisas com fontes que permitam o


acesso às evidências diretas das crianças continua presente. Com o objetivo de superar
esse problema, pesquisadores e grupos investem na produção de fontes orais, no
recolhimento de material produzido ou utilizado por crianças que seriam descartados
(brinquedos, redações, desenhos, músicas, entre outros), principalmente nas instituições,
tais como escolas e igrejas.
A preservação de desenhos, brinquedos produzidos ou falas,
depoimentos, ainda não possui grande representatividade, porém tem aumentado com os
recursos tecnológicos. Outro problema ainda marcante é a quase inexistência de
documentos produzidos em organizações por crianças, no caso dos adolescentes e
jovens o problema é outro, existe a produção porém a preservação é muito difícil. Um
exemplo desse problema é quanto a documentação dos grêmios estudantis, a
preservação da documentação dessas organizações estudantis é dever de quem? A
escola não entende o grêmio como parte da administração escolar e, portanto, não

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arquiva e preserva essa documentação. Os próprios grêmios não vislumbram essa


necessidade.
Objetivando criar condições de armazenamento dessas fontes e contribuir
com a cultura da preservação documental foi criado o Laboratório de Apoio a Pesquisa
Histórica da Infância (LAPHIA) junto ao Departamento de História (UEM) e ao
Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente
(PCA) e desenvolvidos diferentes trabalhos, publicados, divulgados e em
desenvolvimento. Os principais são a sistematização do acervo oral do Projeto Memória
de Maringá, o trabalho com os Grêmios Estudantis (identificação da organização
municipal e identificação dos documentos), organização de acervos escolares, projeto de
produção de acervo oral com estudantes e projetos de uso de fontes no ensino de
história.
Cada projeto tem apresentado seus resultados e gerando maior
perspectiva, inclusive interagindo com outros projetos como de extensão e de
intervenção, por exemplo, o projeto Brincadeiras, esse projeto de intervenção e
abordagens com crianças e adolescentes no bairro que moram geram relatórios que
serão organizados e preparados para pesquisas. O trabalho com os grêmios produz um
relação de formação e assessoria, pois, a organização desses documentos e futuramente
do acervo oral proporciona aos grupos refletirem sobre o movimento, entenderem seu
papel nos Conselhos Escolares (previsto em Lei), além de constituir locais para
preservação dos documentos que produzem.
O trabalho com documentação escolar e relacionada com o ensino de
História ganha uma nova motivação no Estado do Paraná, o projeto Museu da Escola.
Com os trabalhos desenvolvidos até o momento e a contribuição bibliográfica é possível
passar para a fase de produção de material de apoio para trabalhar nas escolas com
alunos e professores. Pensar museu, arquivo, memória, preservação patrimonial
(material e imaterial), tudo isso envolvendo os alunos nas atividades do projeto, nas
reflexões envolvidas e no aprendizado de História. A possibilidade de organizar esses
projetos nas escolas estaduais e depois municipais possibilita, praticamente, a
organização de um laboratório de ensino de História nas escolas e a possibilidade de
constituir acervos para as pesquisas de História das crianças, adolescentes e jovens.

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As discussões historiográficas avançaram muito nas últimas décadas abrangendo


diferentes temas envolvendo crianças, adolescentes e jovens. Como já discutido em
outros trabalhos (MORELLI, 2010), as mudanças ocorridas na produção historiográfica
como o trabalho de Ariès (1981) e Perrout (1990), em um processo de revisão e
ampliação dos temas e uso de diferentes documentos contribui na produção dessa área.
Porém a produção historiográfica brasileira não ficou aguardando ou apenas
acompanhando esse processo, conforme Moura:

Ainda que essa manifestação de interesse em relação à criança –


assim como em relação à mulher e à família – tenha encontrado
estímulo no consistente referencial-teóricometodológico de que
se imbuía a historiografia estrangeira – europeia, no geral, e
francesa, em particular – não deixou, no entanto, de encontrar
alento, também, em necessidades sociais contemporâneas que,
de várias formas, convergiam para a infância. Em abordagens
alinhadas com a História Econômica, a História Social, a
Demografia Histórica, o envolvimento dos historiadores
brasileiros com a infância mostrou-se, a partir de suas
manifestações iniciais, é importante reforçar, sensível às
inquietações sugeridas pelo presente. (MOURA, 2007, p. 14-15)

A produção historiográfica sobre a infância brasileira vem apresentando,


como se pode verificar, uma quantidade um pouco mais expressiva nas últimas décadas.
Mas há vários aspectos ainda a serem estudados ou aprofundados, como, por exemplo,
instituições e problemas relacionados à saúde infantil (Marques, 1994).
Exploração no trabalho, exclusão social e situação de abandono da
criança constituem a maioria das abordagens nessas últimas décadas. Essa tendência
pode ser verificada em núcleos e grupos de estudos universitários, caso das obras
História Social da Infância no Brasil, produzida pelo Núcleo de Estudos Avançados
da Universidade São Francisco (FREITAS, 1997) e Crianças e adolescentes: a arte de
sobreviver, entre outras produções do Programa Multidisciplinar de Estudos Pesquisa e
Defesa das Crianças e dos Adolescentes da Universidade Estadual de Maringá
(MORELLI, 1996; MORELLI, 1999; MÜLLER, MORELLI, 2002; MÜLLER,
RODRIGUES, 2002; MÜLLER, 2007).
No dossiê Infância e Adolescência da Revista Brasileira de História
(1999) e na obra organizada por Mary Del Priore (1999) História das crianças no
Brasil, é possível também identificar a tendência dessas décadas. A predominância dos

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primeiros temas, relacionados à pobreza, às instituições e à menoridade, dá abertura


para outras temáticas, como do trabalho rural, de crianças de elite, das brincadeiras e
brinquedos, das memórias da infância. Porém, no Brasil, esse processo ainda exige
muitos investimentos e debates, abertura de pesquisas, assim como a estruturação de
cursos de pós-graduação a respeito do tema. Exige, enfim, um expressivo movimento
em prol da consolidação desse campo de estudo, o que inclui o levantamento e o
inventário de fontes apropriadas para o aprofundamento das pesquisas. Como afirma
Freitas:

Coordenar o Núcleo de Estudos Avançados em História Social


da Infância tem exigido esforços contínuos no sentido de
”mapear” a produção acadêmica a respeito do tema. Para além
desse “mapeamento” um outro empenho sobrelevasse, qual seja
o de organizar com rigorosos critérios arquivísticos fontes
primárias para o estudo multidisciplinar da história da infância
no Brasil. (FREITAS, 1997, p. 9)

As dificuldades apontadas para a realização de pesquisas com fontes


diretas exigem o esforço do historiador em extrair dos mais diversos documentos as
evidências relacionadas com a história das crianças. Esse esforço tem produzido bases
mais sólidas para a criança ser estudada como objeto central, como agente histórico e
não apenas como um grupo da sociedade que mereceu a atenção do Estado e de outras
instituições por sua condição de tutelado. Esse esforço, aos poucos, contribui com a
abertura para incentivos na produção e armazenamento de fontes produzidas por
crianças adolescente e jovens. E o mais importante envolvê-los nesse processo.
O Estatuto da Criança e do Adolescente representou a regulamentação de
uma conquista na Constituição Federal de 1988, a aceitação da criança e do adolescente
como pessoa detentora de direitos e merecedora de atenção especial, considerando seu
momento específica de formação intelectual e física. A noção de Prioridade Absoluta
ainda é um campo estranho, pois, o país ainda esta nas fases iniciais de todos se
reconhecerem como possuidores de direitos, pensar um grupo que mereça mais atenção
que outros ainda é motivo de reações contrárias.
O processo de identificação a criança, no adolescente e no jovem como
protagonistas de seus direitos e deveres atrapalha no avanço do levantamento,
organização e produção de fontes. Por exemplo, a produção escolar quando devolvida

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entraria em uma dificuldade da nossa população entender a importância da


documentação pessoal e dificilmente conseguimos a preservação desse documentos.
O protagonismo infanto-juvenil tem sido analisado e ganha força nas
últimas décadas. A produção historiográfica, a revisão de obras de memória ou
biografias, além de pesquisas de história oral, mostram a ação dos jovens nas decisões,
ações e participação geral nas sociedades. Um processo que aos poucos mostram
observações quase óbvias, porém que exigem análises profunda e fundação documental
apropriada. Buscar, mais uma vez, nos estudos das mulheres na História inspiração para
essa atividade parece ser um caminho frutífero.
Esmeralda Blanco Bolsonaro de Moura (1982), em sua tese de 1977,
Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do
capital, aborda em temática distinta, mas relacionada com a questão da pobreza e da
exploração econômica e social, a situação das mulheres e dos "menores" no trabalho
industrial em São Paulo, entre 1890 e 1920. Trata-se de trabalho pioneiro, em relação à
exploração tanto da mão de obra infantil, quanto da mão de obra feminina, bem como
no que se refere à discussão sobre a grande influência da mulher no mundo do trabalho.
Entre as riquezas dessa obra está uma das primeiras análises de reivindicações pelos
direitos das crianças, a luta de organizações trabalhistas para a efetivação das leis que
protegiam as crianças no trabalho, destacando-se os anarquistas (MOURA, 1982, p.
104-121).
As crianças estavam em ação, não apenas acompanhando, não apenas por
um acaso naquele dia, estavam em ação sistemática. Eram totalmente desrespeitadas sob
uma análise de direitos trabalhistas e merecedoras de cuidados especiais, como os
pediatras do início do século passado já defendiam. Fora do Brasil um trabalho ganhou
notoriedade nessa discussão, Poema Pedagógico de Anton Semianovich Makarenko. A
capacidade de auto-organização, de analisarem e opinarem é um ponto forte. É uma
obra que auxilia pensar a questão do protagonismo
No século passado e no atual, a questão do protagonismo recebeu e
recebe atenção diferenciada dependendo da área de estudo e do momento político. A
participação política ainda questionada conflita com a participação específica,
principalmente dos adolescentes e jovens. Na obra organizada por Marilia Pontes
Sposito (2009), O estado da arte sobre juventude na pós-graduação brasileira:

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educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), deixa claro como as análises
tem contribuído na compreensão que o protagonismo não é um fenômeno recente ou
que precise de autorização do adultos, mas que é efetivo na história, porém, não é visto
com um protagonismo juvenil e sim como atitude de adulto. No estudos da sociologia
rural os exemplo são claros da redução do período da adolescência, considerando as
"necessidades" que os jovens encontram nas tarefas familiares. Essa atividade nas áreas
urbanas também. (SANTANA, 2009) A prática na escola é comumente um conflito com
os adultos e a participação dos alunos nas escolas públicas na participação direta dos
conselhos escolares permanece obscuro.
A escola é, por excelência, o local adequado para desenvolver projetos
relacionados com a preservação de fontes para esse tipo de pesquisa historiográfica.
Pensando a importância da preservação documental e do fomento da memória de grupos
como forma de fortalecer laços dos grupos e difundir a questão dos direitos desses
grupos, no caso da adolescência a organização estudantil é um dos objetivos de trabalho
do LAPHIA. Os movimentos sociais infanto-juvenis nas últimas décadas recebe atenção
e possui uma bibliografia crescente, porém, essa bibliografia ainda está longe das
escolas. Como avalia Franscanelli e Silva (2007) a infância e seus direitos são quase
inexistentes nos livros didáticos, mesmo de História e dificilmente aparecem juntos na
mesma discussão, os jovens não são tratados especificamente, além de alguns "fatos"
como os movimentos de 1968, ou como usados pelas forças governamentais, infância e
juventude hitlerista. Normalmente a ideia de tutela e exploração é mais clara que
alguma referência à ação intencional buscando interesses e direitos.
É importante notar que essa quase ausência e a resistência dos
profissionais do ensino na difusão do Estatuto da Criança e do Adolescentes nos mais
de 20 anos, mudou pouco depois de 2007 com a aprovação da Lei n. 11.525 que
acrescenta o § 5º ao artigo 32 da Lei n. 9.394 de 1996 (LDB):
§ 5º - O currículo do ensino fundamental incluirá,
obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e
dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de
julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do
Adolescente, observada a produção e distribuição de material
didático adequado.

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O material produzido para distribuição do governo federal longe de


discutir a questão dos direitos e do protagonismo apresenta um balanço da história da
infância. Mesmo depois dos 5 anos de ter entrado em vigor, a lei 11.525 não reflete na
organização dos grêmios, na mudança dos livros didáticos, principalmente de História,
além de poucas referência, como já afirmado.
Em projeto recente com os grêmios estudantis do município de Maringá
essa situação foi confirmada. As escolas estaduais, mesmo possuindo em seu site oficial
a indicação dos grêmios como representantes nos conselhos escolares e mesmo assim
não possuíam informações deles. Os arquivos dos grêmios em apenas 02 casos de 36
escolas estavam guardados nos arquivos das escolas e 05 outras possuíam cópia do
regulamento do grêmio. Novamente um ponto chama a atenção, no site da Secretaria da
Educação do Paraná existe um tópico exclusivo para orientar a formação dos grêmios
nas escolas, contendo orientações, legislação, modelos de documentos e outras
informações1. O conflito entre a orientação, a divulgação dos direitos e a estranheza de
convívio nas escolas remonta os quase trinta anos da lei que autorizou a formação dos
grêmios nas escolas de "1º e 2º graus".
Organizar a documentação dos grêmios, das escolas, demonstra que
nossos professores e alunos possuem material em grande quantidade para trabalhar nas
aulas de História. O trabalho com fontes relacionadas com a criança, adolescente e
jovens permite identificar na análise dos documentos referencias diretas com suas
características, preocupações, desejos, enfim, elementos que permitem no pensar
historicamente refletir sua existência, seus relacionamentos, grupos. A organização da
documentação escolar permite, dessa forma, propiciar aos alunos refletirem pela relação
aluno escola no processo de histórico e pessoal.

1
- http://www.alunos.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=144

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REFERÊNCIAS

DEL PRIORE, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
1999.
Frascanelli EC, Silva IMS. Lesgislação e Infância: des(conhecida) em livros escolares.
Arq Mudi. 11, 227-34, 2007.(Supl.2)
FREITAS, Marcos Cezar (org.). História Social da infância no Brasil. São Paulo:
Cortez, 1997.
Marilia Pontes Sposito (2009), O estado da arte sobre juventude na pós-graduação
brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), Belo Horizonte:
Argumentum, 2009. 2 v.
MORELLI, A. J. Memórias de infância em Maringá: transformações urbanas e
permanências rurais (1970/1990). São Paulo, 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
MORELLI, Ailton J. A inimputabilidade e a impunidade em São Paulo. Revista
Brasileira de História, ANPUH, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 125-156, 1999.
MOURA, Esmeralda B. Bolsonaro de. Por que as crianças? In: CARVALHO, Carlos
Henrique; MOURA, Esmeralda Blanco B. de; ARAUJO, José Carlos Souza (org.). A
infância na modernidade: entre a educação e o trabalho. Uberlândia: UDUFU, 2007.
p. 13-48.
MÜLLER, Verônica R., RODRIGUES, Patrícia C. Reflexões de quem navega na
educação social. Maringá: Clichetec, 2002.
MÜLLER, Verônica Regina, MORELLI, Ailton José (org.). Crianças e adolescentes: a
arte de sobreviver. Maringá (PR): EDUEM, 2002.
MÜLLER, Verônica Regina. Histórias de crianças e infâncias: regitros, narrativas e
vida privada. Petrópolis (RJ): Vozes, 2007.
SANTANA, Marcio Santos de. Projetos para as novas gerações: juventudes e relações
de força na política brasileira (1926-1945). São Paulo, 2009. Tese (Doutorado) - -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
SCHREINER, Davi Félix; PEREIRA, Ivonete; AREND, Sílvia Maria Fávero (org.)
Infâncias brasileiras: experiências e discursos. Cascavel: Ed. UNIOESTE, 2009.

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SILVA, Maria Alice Setúbal Souza e; GARCIA, Maria Alice Lima; FERRARI, Sônia
Campaner Miguel. Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras
décadas do século XX. São Paulo: Cortez, 1989.
STEARNS, Peter N. A infância. São Paulo: Contexto, 2006.

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A INFÂNCIA CIDADÃ A PARTIR DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO


ADOLESCENTE

Daniele Ditzel Mattioli1


Rita de Cássia da Silva Oliveira2

1. INTRODUÇÃO

Crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos e deveres a partir
da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em 1990. A doutrina da
proteção integral apresentada pela lei delineava um novo futuro para a infância no Brasil.
No entanto, passados mais de vinte anos de vigência do ECA, continuam as discussões
relativas aos direitos de crianças e adolescentes. O desconhecimento do texto legal aliado a
uma interpretação inicial equivocada exige um movimento de defesa pela proteção da infância
e da lei que a protege.
A partir de 2007 um novo desafio se apresenta às instituições de ensino quando, por
força da Lei nº 11.525, tornou-se obrigatório no ensino fundamental conteúdo que trate dos
direitos das crianças e dos adolescentes à luz do ECA.
As duas edições (2003 e 2007) do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
afirmam em seu corpo a responsabilidade da educação como formadora de cidadãos
plenamente desenvolvidos em suas potencialidades. Para tal, sendo a escola um espaço
privilegiado, a mesma deve desenvolver práticas pedagógicas voltadas à construção de
sujeitos sociais conscientes de seus direitos e deveres.
Mais recentemente o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
CONANDA no documento preliminar para a elaboração da Política Nacional dos Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes no Brasil e do Plano Decenal dos Direitos Humanos de
Crianças e Adolescentes, define um dos objetivos estratégicos a inclusão de conteúdos

1
Mestranda em Educação pela UEPG, historiadora, advogada, professora de História da rede pública de ensino
do Estado do Paraná.
2
Doutora em Educação. Universidade Estadual de Ponta Grossa.

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relativos ao Estatuto da Criança e do Adolescente no currículo da educação básica, em


ampliação ao texto legal acima citado.
O ponto inicial deste trabalho foi a compreensão da formação cidadã da criança e do
adolescente a partir dos princípios estabelecidos no ECA, por meio de levantamento
bibliográfico e documental.
A estruturação do trabalho parte de uma pesquisa qualitativa, porque se preocupa
“com o significado dos fenômenos e processos sociais [...] que permeiam a rede de relações
sociais” (PÁDUA, 1997, p. 31), estabelecidas entre os órgãos governamentais, não-
governamentais, instituições e demais atores sociais envolvidos com as questões relacionadas
à criança e ao adolescente.
Os dados necessários à pesquisa foram coletados através da integração dos recursos
técnicos da pesquisa bibliográfica e documental.
O referencial teórico apresenta alguns autores diretamente ligados ao tema, bem como
autores que discutem temas indispensáveis a compreensão do assunto.
No desenvolvimento do trabalho será abordada a questão do direito à educação e uma
rápida análise sobre o ECA que nos darão suporte para a leitura da Lei nº 11.525/2007, do
Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e do Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos.
As considerações finais nos permitem um olhar mais amplo sobre a problemática
proposta.

2. OBJETIVO

a) Objetivo Geral:

Analisar o parágrafo 5º do artigo 32 da Lei nº 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases), que


torna obrigatório no currículo do ensino fundamental conteúdo que trate dos direitos das
crianças e dos adolescentes em consonância aos textos do Plano Decenal dos Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes 2011-2020 e do Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos 2003 e 2007.

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b) Objetivos específicos:

Entender a motivação política que levou a inclusão do parágrafo 5º no artigo 32 da Lei


de Diretrizes e Bases – Lei nº 9394/96.
Perceber a importância educativa atribuída ao Estatuto da Criança e do Adolescente
pelo Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes ao defender a
implantação do seu estudo na educação básica, bem como no ensino superior.
Reconhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente como instrumento de formação
cidadã a ser utilizado nas instituições de ensino conforme previsto no Plano Nacional de
Educação em Direitos Humanos, 2003 e 2007.

3. METODOLOGIA

O fundamento deste trabalho está no entendimento da educação como um ato político


que, nas palavras da filósofa Marilena Chauí é [...] “o modo pelo qual a sociedade [...] discute,
delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os
seus membros” (CHAUÍ, 1999, p.370).
Vale lembrar que o trabalho de pesquisa nas áreas humanas e sociais, incluindo-se aí a
educação, faz-se a partir de fenômenos complexos posto que partem da análise de
comportamentos humanos, não previsíveis. Por essa razão, inexiste a neutralidade do
observador em relação ao objeto, uma vez que o recorte é resultado da aproximação do
mesmo com o tema, também torna-se relativa a objetividade da produção.
As “metodologias qualitativas privilegiam, de modo geral, a análise de
microprocessos, através do estudo das ações sociais individuais e grupais” (MARTINS, 2004,
p. 292). Com a utilização do método qualitativo, o pesquisador é constantemente desafiado ao
analisar as unidades sociais como totalidades.
Como metodologias complementares serão utilizadas as pesquisas bibliográfica e
documental. Adota-se neste trabalho a diferenciação explicitada por Oliveira (2007) em que
“a pesquisa bibliográfica é uma modalidade de estudo e análise de documentos de domínio
científico tais como livros, periódicos, enciclopédias, ensaios críticos, dicionários e artigos
científicos” [...] é um “estudo direto em fontes científicas, sem precisar recorrer diretamente
aos fatos/fenômenos da realidade empírica” e a pesquisa documental “caracteriza-se pela

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busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como
relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras
matérias de divulgação” (OLIVEIRA, 2007, p. 69).

4. REFERENCIAL TEÓRICO

Durante muito tempo a infância não foi caracterizada como um momento especial,
merecedor de cuidados e afeto para o desenvolvimento humano. As crianças eram tratadas na
condição de adultos em miniatura, sendo desde então “orientadas para o trabalho, para o
ensino, para o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que
normalmente está a ela associada: do riso e da brincadeira” (DEL PRIORE, 2008, p.08).
Apenas em fins do século XIX, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, é
que o entendimento sobre a infância no Brasil é alterado.
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a adoção da
Doutrina da Proteção Integral crianças e adolescentes passam a ser reconhecidos como
sujeitos de direitos devendo ser respeitados com base na sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento.
O direito à educação é admitido como interesse social pela Constituição Federal de
1988, uma vez que a construção de uma sociedade justa, livre e solidária apenas será possível
quando a todos os cidadãos forem garantidos os direitos inerentes à realização da dignidade
da pessoa humana.
Este estudo tem como fundamento o pensamento de Kant de que “o homem não pode
se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”
(KANT, 2006, p.15). O desenvolvimento do caráter moral da criança será possível a partir dos
exemplos que esta recebe, bem como do cumprimento dos seus deveres. A partir destas
práticas a criança afirma em si a dignidade da natureza humana e, nesse sentido “deve-se
inculcar desde cedo nas crianças o respeito e a atenção aos direitos humanos e procurar que
assiduamente que os ponha em prática” (KANT, 2006, p.90).
Nesse sentido, crianças e adolescentes devem ser estimuladas ao exercício pleno da
cidadania e ao respeito aos direitos humanos que foram identificados com os valores mais
importantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo,
fatalmente, por um processo irreversível de desagregação (COMPARATO, 2008, p.26).

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Vale destacar aqui que os princípios existentes no ECA são os mesmos elencados pela
Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a sua organização é pautada na defesa dos
direitos fundamentais e, desta forma, dos direitos humanos.
Consideram-se direitos humanos as condições mínimas de dignidade do homem para
que o mesmo viva em sociedade e que são válidas em todos os tempos e para todos os
homens.
Quando se fala em direitos fundamentais, pode-se dizer que são os direitos humanos
(âmbito internacional) regulamentados pela norma fundamental do Estado. Diante disso,
constata-se um distanciamento entre o que está previsto legalmente e a efetivação destes
direitos. Afirma Bobbio que “o problema fundamental em relação aos direitos humanos do
homem, hoje, não é tanto o fato de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político” (BOBBIO, 1992, p.24).
A educação é reconhecida pela LDB como integrante do processo formativo das
pessoas e desta forma tem papel decisivo na emancipação humana.
Segundo Machado “o efetivo respeito aos direitos humanos no dia a dia do cidadão
comum [...] configura condição basilar da própria realização do Estado Democrático de
Direito no mundo dos fatos [...]” (MACHADO, 2003, p. 70) e, por essa razão destaca-se a
viabilidade da pesquisa, bem como a atualidade do tema.

5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

Esta pesquisa visa reconhecer o Estatuto da Criança e do Adolescente como


relevante instrumento pedagógico no desenvolvimento de cidadãos capazes de interferir no
desenvolvimento social de forma responsável, tendo como diretriz o respeito à dignidade da
pessoa humana.
Para uma melhor compreensão do tema será realizada uma breve análise dos
elementos envolvidos na ação educativa das instituições de ensino de acordo com o que prevê
a legislação educacional, no tocante aos direitos de crianças e adolescentes.

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a) O direito à Educação:

O direito à Educação está consagrado internacionalmente pela Declaração Universal


dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas – ONU de 1948 e foi ratificado no
Brasil pela Constituição Federal de 1988.
Ao afirmar a educação como um direito destaca-se sua autenticidade enquanto
interesse público e, está na ação reguladora do Estado, através da elaboração e aplicação de
uma política pública educacional um dos meios para a concretização deste direito.

b) Lei nº 9394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:

A lei nº 9394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, estabeleceu


mudanças significativas na educação básica de nosso país. A começar pela definição de
educação adotada em seu artigo 1º: A educação abrange os processos formativos que se
desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino
e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais.
O entendimento de educação expresso na LDB possui um alcance maior do que o de
educação escolar e encontra-se na raiz de questões básicas quanto a problemática da educação
como a distância entre teoria e prática, entre trabalho intelectual e manual, entre o mundo da
escola e o mundo do trabalho. No entanto, a LDB disciplina apenas a educação escolar,
conforme o parágrafo 1º: Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve,
predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
A aproximação da escola com a realidade do educando, desejada pela LDB,
fundamenta-se na idéia de que uma escola desligada de seu meio social é tanto alienada
quanto alienante. Neste sentido, a escola é percebida como um subsistema social, que é
influenciado por ela como também a influencia em seu processo evolutivo.
O princípio constitucional de que a Educação é um direito de todos e dever do Estado
é afirmado na LDB em seu artigo 2º: A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação
para o trabalho.

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Dessa forma, a educação brasileira tem como objetivo trabalhar para a formação de
pessoas independentes, de visão empreendedora e que se posicionem de modo solidário frente
à sociedade, respeitando o ser humano na construção da efetiva democracia.
Quanto às finalidades da educação, a Lei manteve o disposto no artigo 205 da
Constituição Federal: pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
As finalidades e princípios definidos pela Lei para a educação brasileira demonstram
fidelidade aos princípios da Carta das Nações Unidas e também sua adesão à luta contra a
discriminação no campo do ensino, expressa na Convenção da UNESCO de 1960 que diz que
a educação (artigo V, 1 a):

deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento


do respeito aos direitos humanos e das liberdades fundamentais que devem
favorecer a compreensão, a tolerância e amizade entre todas as nações, todos os
grupos raciais e religiosos, assim como o desenvolvimento das atividades das
Nações Unidas para a manutenção da paz.

O artigo 21 dispõe a composição da educação escolar em dois segmentos: educação


básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio e educação
superior.
A educação básica constitui o tripé responsável por uma educação de qualidade, que
prepare para o trabalho ou tenha caráter geral visando a continuidade dos estudos em nível
superior.
A prioridade dada à educação básica, tanto pela Constituição Federal quanto pela Lei
de Diretrizes e Bases é acertada, uma vez que oferecida a todas as crianças estaremos criando
a estrutura necessária para uma sociedade mais saudável e produtiva.
O artigo 32 da LDB foi alterado pela Lei nº 11.525 de 2007 com a inclusão do
parágrafo 5º

O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate


dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei nº 8069, de 13
de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a
produção e distribuição de material didático adequado.

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Justifica-se a alteração em função da relevância da proposição e também o fato de


previsão de temas como ética, cidadania, vida familiar e social e pluralismo cultural presentes
nas Diretrizes Curriculares Nacionais, considerando que nos temas acima mencionados
incluem-se os direitos das crianças e adolescentes, conforme prevê o ECA.
Questão relevante para o trabalho encontra-se nas discussões travadas no Congresso
Nacional e que antecederam a sanção da referida lei. A alteração determinada pelo Legislativo
nacional possui diversas implicações: trata de uma obrigatoriedade de conteúdo curricular de
forma abrangente, uma vez que, não propõe como este trabalho será realizado (projetos, ações
interdisciplinares ou a critério do docente de cada disciplina?) e tampouco menciona qual a
qualificação exigida do profissional. Outro ponto a ser pensado refere-se à autonomia
pedagógica (LDB, artigo 15), restringida com a obrigatoriedade de conteúdo legalmente
determinada.
Esta modificação exigirá que todo o ensino fundamental seja repensado, uma vez que
a obrigatoriedade da inclusão do Estatuto da Criança e do Adolescente como conteúdo não
necessariamente corresponderá a uma educação pautada nos princípios defendidos no texto
legal.

c) Lei nº 8069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente:

Aprovado em 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é


um instrumento jurídico que surge como resultado de um amplo movimento da sociedade em
prol dos direitos da infância.
O artigo 227 da Constituição expressa os princípios da co-responsabilidade e da
absoluta prioridade:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente,


com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão

resultados da iniciativa popular que existia à época.


Pelo princípio da co-responsabilidade família, Estado e sociedade são responsáveis em
atender a criança e o adolescente quando seus direitos são ameaçados ou violados. A família
por ser o primeiro núcleo de socialização da criança, onde ela vai iniciar o seu
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desenvolvimento afetivo, psicológico e intelectual. A sociedade será o espaço seguinte no


qual a criança vai se confirmar enquanto indivíduo, ao precisar os traços de sua personalidade
e, por fim o Estado que deve garantir os direitos sociais explicitados no artigo 6º da
Constituição Federal.
Estes dois princípios aparecem novamente no artigo 4º do ECA, em uma redação
muito semelhante àquela encontrada na Constituição Federal. A atenção oferecida à criança e
ao adolescente através desta lei visa respeitar a condição peculiar da pessoa em
desenvolvimento.
Para possibilitar à criança e ao adolescente as condições necessárias ao seu
desenvolvimento o ECA enuncia, em seu artigo 1º, a doutrina da “proteção integral”, a qual é
o ponto de partida para a lei. Desta forma temos que a criança e o adolescente como um todo
são protegidos pela legislação. Cabe, portanto, estabelecer de quem serão protegidos, o que
será protegido e como isto será feito.
Segundo Oliveira; Americano (2003),

dentro dessa doutrina da proteção integral, a referida lei vai, ao longo do seu texto,
aprofundando e especificando os direitos mencionados nos artigos 3º e 4º, bem
como discorrendo sobre o modus operandi de sua garantia (...) E, embora se
constitua em instrumento jurídico, o ECA inova por possibilitar, ao nível
pedagógico, um processo de profunda mudança sócio-cultural e política (2003,
p.14).

A percepção sobre a infância, agora enquanto sujeito de direitos, opera uma mudança
que implica numa concepção diferenciada dos seus direitos e deveres. Para tanto família,
sociedade e Estado devem passar por uma reorganização das suas estruturas tornando-se
receptivos ao novo paradigma proposto.

d) Lei nº 11.525/2007 (inclui o §5º no artigo 32 da LDB):

A instituição escolar possui como função social a transmissão do conhecimento


socialmente produzido, porém, não limita-se apenas ao simples repasse de saberes e
conhecimentos historicamente acumulados.
Nesse sentido, a proposta da Lei nº 11.525/2007, quando da inclusão dos direitos da
criança e do adolescente no currículo formal, pretende iniciar os educandos em uma vivência
de cidadania e de ordem democrática já no espaço escolar.

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O direcionamento do processo educacional deve estar voltado à formação da criança e


do adolescente para o exercício da cidadania, fundamento este encontrado no artigo 1º da
Constituição Federal e no artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei
nº 9394/1996).
A Lei nº 11.525/2007 que incluiu, obrigatoriamente, no currículo do ensino
fundamental conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como
diretriz o Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei n º 8069/1990 é resultado do Projeto de
Lei nº 5.705 de 2005, PLS nº 315/04, originário do Senado Federal e de autoria da Senadora
Patrícia Saboya Gomes.
Em um Estado Democrático de Direito, que assegura entre os princípios da educação
nacional a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte
e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, a definição do currículo
escolar é de responsabilidade dos sistemas de ensino, com exceção dos conteúdos mínimos
para o Ensino Fundamental, conforme disposto no artigo 210 da Constituição Federal. Nesse
sentido, o Poder Legislativo não possui competência para legislar sobre questões relacionadas
a currículo escolar.
No entanto, considerada a relevância da proposta, foi aprovada a lei que torna os
direitos da criança e adolescente conteúdo obrigatório no ensino fundamental.

e) Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos:

Como resultado do compromisso do Estado para a concretização dos direitos


humanos, as duas edições do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, orientam
uma prática educativa voltada ao cumprimento das finalidades definidas para a educação na
Constituição Federal e também na LDB.
A formação de sujeitos de direitos, resultado de uma ação educativa norteada pela
educação em direitos humanos é fim desejado de um Estado que determina o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para
o trabalho como finalidades da educação.
O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos consiste em política pública que
visa fomentar ações no sentido orientar a ação educativa para o desenvolvimento de princípios
de paz, liberdade e justiça social.

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f) Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes e o Plano


Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes 2011-2020:

A Política Nacional e o Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e


Adolescentes serão resultado de um esforço conjunto de diversos órgãos, entidades e da
sociedade civil organizada a ser consolidado na 9ª Conferência Nacional, prevista sua
realização para julho de 2012.
Neste momento, pretende-se perceber qual o espaço destinado às questões
educacionais, em especial a educação de direitos humanos de crianças e adolescentes,
sustentadas pelos princípios estabelecidos no ECA e nas discussões preliminares que
definirão os rumos a serem adotados pela Política Nacional e do Plano Decenal dos Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes.
A discussão referente ao trabalho com o ECA nas escolas não é recente. Na IV
Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, que teve como tema
“PACTO PELA PAZ”, realizada em novembro de 2001, teve como proposta aprovada pela
plenária final, no eixo da Educação garantir a inclusão do ECA no currículo escolar, em todos
os níveis.
Diversos são os desafios apresentados pelo Plano que se pretende articulador de
políticas setoriais, com vistas a fortalecer os postulados da universalidade, indivisibilidade e
interdependência dos direitos, como também na efetiva implementação do ECA.
A Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes oferece os
subsídios para a elaboração do Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes.
A estrutura da Política está organizada em princípios, sendo a universalidade dos
direitos com equidade e justiça social, igualdade e direito à diversidade, proteção integral para
a criança e o adolescente, prioridade absoluta para a criança e o adolescente, reconhecimento
de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, descentralização político-administrativo,
participação e controle social e intersetorialidade e trabalho em rede.
Para este estudo, nos ocuparemos das Metas 7 e 8, do Objetivo Estratégico 04, da
Diretriz 01 (Promoção da cultura do respeito e da proteção aos direitos humanos de crianças e
adolescentes no âmbito da família, das instituições, e da sociedade) do Eixo 1 (Promoção
dos Direitos de Crianças e Adolescentes).

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O Objetivo Estratégico 04 do Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e


Adolescentes é implementar o ensino dos direitos humanos de crianças e adolescentes na
educação básica, em conformidade com Lei nº 11.525/2007.
Aqui vale destacar a ousadia do Plano ao mencionar a educação básica, uma vez que a
Lei nº 11.525/2007 refere-se exclusivamente ao ensino fundamental.
No mesmo sentido a Meta 7 dispõe que “até 2020, implantado em 100% das escolas
de educação básica o ensino dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
A Meta 8, tem papel de extrema relevância, uma vez que ocupa-se do agente formador
da criança e do adolescente e prevê até 2020, incorporado em 60% das instituições de ensino
superior o ensino dos direitos humanos de crianças e adolescentes nas matrizes curriculares
das áreas de ciências humanas, jurídicas e da saúde, bem como nos demais cursos com
licenciatura.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação é tida como um dos meios capazes de formar cidadãos responsáveis e


autônomos, conhecedores de seus direitos e deveres. Para tanto, todos os envolvidos no
processo educacional devem efetivamente desfrutar do exercício da cidadania garantido
constitucionalmente.
A vivência da cidadania nos espaços democráticos exige que cada pessoa se comporte
como membro da comunidade a qual pertence e não apenas na condição de indivíduo. Nessa
situação, o respeito aos direitos e o cumprimento das normas estabelecidas socialmente é
inerente ao convívio social.
Nesse sentido, o processo de construção de um Plano Nacional de Educação em
Direitos Humanos, uma Política Nacional dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes
e de um Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes que objetiva o
trabalho com os direitos humanos de crianças e adolescentes em toda a educação básica (em
uma expansão do previsto no §5º do artigo 32 da LDB) é representativo na história do
planejamento público do Brasil por se tratar de uma inovação na área.
Iniciativas que buscam a implementação de políticas intersetoriais representam
conquistas para a área da criança e do adolescente. Isto porque, estes sujeitos transitam por
políticas que dialogam como educação, saúde, assistência social. Apenas com um trabalho de

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gestão da política pública que envolva os variados setores que atuam com a infância e
adolescência será possível a concretização dos princípios previstos no ECA.
Levando em conta que o Estado brasileiro reconhece a educação como direito humano
essencial, o ensino dos direitos humanos de crianças e adolescentes passa a ser uma prática
necessária para a concretização do preparo para o exercício da cidadania definido como uma
das finalidades da educação.
Este breve estudo pretendeu uma análise inicial a respeito do parágrafo 5º do artigo 32
da LDB, uma vez que a construção de uma sociedade democrática é um processo a ser
efetivado a partir da experiência de uma cidadania ativa.

7. REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 11ª ed. São Paulo: Ática, 1999.

COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2008.

CONANDA. Texto base da 9º Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do


Adolescente. Acesso em 22 de novembro de 2011. Disponível em:
http://www.direitosdacrianca.org.br/midiateca/publicacoes/texto-base-da-9a-conferencia-
nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988.

DEL PRIORE, Mary (org). História das crianças no Brasil. 6. ed., 1ª reimpressão – São
Paulo: Contexto, 2008.

ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

KANT, Immanuel. Sobre a Pedagogia. Tradução de Francisco Cock Fontanella. 5ª Ed.


Piracicaba: Editora UNIMEP, 2006.
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LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO NACIONAL, Lei n° 9.394 de 20 de


dezembro de 1996.

LEI nº 11.525, de 25 de setembro de 2007, que acrescenta § 5º ao artigo 32 da Lei nº 9.394,


de 20 de dezembro de 1996, para incluir conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos
adolescentes no currículo do ensino fundamental.

MACHADO, Martha de Toledo. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os


direitos humanos. Barueri, SP: Manole, 2003.

MARTINS, Heloisa H. T. de Souza. Metodologia qualitativa de pesquisa. Educação e


Pesquisa. São Paulo, v.30, n.2, p. 289-300, maio/ago. 2004. Acesso em 20 de janeiro de 2011.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v30n2/v30n2a07.pdf

OLIVEIRA, A.; AMERICANO, N. Crianças e adolescentes em situação de rua: a difícil


arte de educar. Rio de Janeiro: Nova, 2003.

OLIVEIRA, Maria M. de. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2007.

PÁDUA, Elisabete Matallo Marchesini de. Metodologia da pesquisa: Abordagem teórico-


prática. 2ª ed. Campinas, SP: Papirus, 1997.

PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Comitê Nacional de


Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Ministério da Educação, UNESCO, 2003.

PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS. Comitê Nacional de


Educação em Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos,
Ministério da Educação, Ministério da Justiça, UNESCO, 2007.

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O UNIVERSO BRINCANTE DA INFÂNCIA NAS COLÔNIAS ITALIANAS DE


CURITIBA

Elaine Cátia Falcade Maschio (PPGE/UFPR)

Orientador: Marcus Aurélio Taborda de Oliveira

PALAVRAS INICIAIS

Ao finalizar a introdução do seu livro intitulado I Bambini nella Storia, a historiadora


italiana Egle Becchi registrou suas percepções em torno da experiência de escrever a história
da infância.

As incertezas, as angústias, as frustrações são contínuas, como frequentes foram o


entusiasmo em encontrar vestígios, os contextos, as relações em que a figura da
criança se destacou clara e forte, e a alegria de experimentar que o mundo da
infância de ontem não desapareceu, mas ele ainda está lá, com seu silêncio, à espera
de nossa escuta (BECCHI, 1994, p.16).1

A leitura deste fragmento foi uma das provocações que instigaram-me a perscrutar o
mundo infantil das colônias italianas de Curitiba2. Ao refletir sobre o fato de que o universo
da infância nas colônias não havia desaparecido, mas que ele estava lá esperando por ser
revelado, visualizei a possibilidade de complementar os estudos sobre a imigração italiana
pelo viés da história da infância.

De modo geral, pouco se tem falado sobre a criança imigrante e descendente nas
regiões de colonização. Os aspectos que cercam as pesquisas realizadas principalmente a

1
Le incertezze, le inquietudini, le insoddisfazioni sono state continue, ma altrettanto frequenti sono stati gli
entusiasmi nel trovare tracce, contesti, relazioni in cui la figura bambina si stagliava nitida e forte, e la gioia di
avvertire che il mondo infantile di ieri non è scomparso, ma sta ancora lì, con i suoi non detti, che aspettano il
nostro ascolto.
2
Antonio Rebouças, Santa Maria do Novo Tyrol da Boca da Serra, Dantas (Água Verde), Santa Felicidade,
Alfredo Chaves criadas no ano de 1878. Pilarzinho, Eufrásio Correia, Maria José, Presidente Faria, Santa
Gabriela e Umbará, criadas depois do ano de 1880.

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partir da década de 1970, tem se reportado as relações econômicas, políticas, religiosas e


culturais da imigração italiana. O olhar para a infância, para o seu cotidiano, o seu cuidado, os
seus modos de brincar, a sua assistência escolar, enfim as representações, os sentimentos e as
práticas são objetos de análise dos historiadores apenas nas últimas décadas.

Neste sentido, o presente trabalho pretende apresentar uma breve análise do universo
brincante da infância nas colônias italianas de Curitiba. Busca compreender a infância
imigrante - especialmente a de seus descendentes - e a relação com os brinquedos e as
brincadeiras. Procura saber se existia um tempo lúdico nas colônias italianas e se esse tempo
era compartilhado pelo tempo produtivo do adulto. Assim, o estudo investiga qual era o
tempo do brincar nas colônias predominantemente agrícolas; que tipos de brinquedos eram
produzidos e com que recursos; quais eram as brincadeiras que permeavam o tempo da
infância e como eram aprendidas.

O recorte temporal estabelecido para esse estudo abrange as três primeiras décadas do
XX e corresponde ao período em que a primeira e a segunda geração de imigrantes instalados
nas colônias vivenciou sua infância. Momento também de grande desenvolvimento
econômico destas comunidades.

Com o propósito de analisar esta faceta da vida humana, localizei em algumas fontes
documentais vestígios da infância, mas foi na escuta das vozes que ressoam das crianças do
passado que encontrei os elementos para compreender o seu universo brincante. Assim,
recorri a memória, as lembranças do tempo da infância reveladas através de depoimentos
colhidos entre os descendentes da antiga colônia de Alfredo Chaves ou localizados em obras
bibliográficas sobre as demais colônias.
Maria Cristina Soares de Gouvêa afirma que um dos problemas para reconstruir o
passado da infância é que os documentos produzidos pelos adultos sobre a criança e sobre a
sua infância constituem se não exclusiva, a principal fonte para a escrita da história da
infância.

Dificilmente tem-se em mãos produções em que a criança seja autora do registro da


sua história. O limite dos registros da experiência social pelas crianças, ou a sua
pouca densidade, indicam privilegiar a produção de discursos e práticas sobre e para
a criança, tendo os adultos como autores (GOUVEA, 2009, p. 105).

Consequentemente, a história da infância é construída a partir da compreensão e dos


modos de representar do adulto o mundo infantil. Conforme Kuhlmann e Fernandes (2004, p.

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15) o termo infância é tomado como concepção ou representação dos adultos sobre o tempo
inicial da vida ou período vivido pela criança. A partir de representações, a infância é
materializada nas práticas cotidianas configurando os modos de tratar as crianças preparando-
as a vida adulta.
Claro está que as representações da infância coadunam-se com o contexto social,
cultural e econômico da qual está inserida. Logo, para compreender a história do passado da
infância é preciso olhar para a valorização que cada sociedade, cada época e cada ideologia
produziram sobre ela (BECCHI, 1994, p. 6). Assim, ao analisar o contexto verificou-se que a
história desta infância em específico é tecida à sombra do adulto. A definição da infância nas
colônias italianas estava estritamente relacionada à organização das famílias imigrantes nas
colônias italianas e aos seus modos de concebê-la. Os grupos de imigrantes italianos que
chegaram ao Paraná no século XIX são, na sua maioria, camponeses das províncias que
compõe a região do Vêneto, e em menor escala, da região do Trento.
Trazendo especificidades culturais provenientes de cada província, a identificação
como um grupo similar foi a condição social determinada pelo trabalho agrícola. A
organização social e cultural desses imigrantes, embora permeada por especificidades do novo
lugar, se deu de modo semelhante às comunidades rurais de suas regiões de origem.
Implantaram casas, trabalharam os lotes, reivindicaram do governo assistência médica,
religiosa e escolar.
Considerando, conforme Kuhlmann e Fernandes (2004, p. 24) que ainda que haja
certa distância entre a representação de infância sonhada pelos adultos e a infância real, cabe-
nos questionar que pistas foram deixadas por esses grupos de imigrantes, capazes de nos levar
a refletir sobre como a infância foi concebida e traduzida nas práticas.
Assim, atentando-se para as pistas, para os indícios, os sinais como denominou Carlo
Ginzburb (1998, p. 143), dos modos de brincar da infância nas colônias italianas procurou-se
trazer a tona aspectos mais notórios dessa infância. A pesquisa revelou um repertório amplo
de atividades e, além das brincadeiras espontâneas e regradas, faz parte desse conjunto lúdico
os brinquedos improvisados e produzidos com materiais recolhidos da própria natureza, as
filastrocche histórias e rimas infantis, e as atividades voltadas para a infância que evocavam
as superstições e crenças populares concebidas ainda nas regiões de origem daquelas famílias.

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AS BRINCADEIRAS, OS BRINQUEDOS E AS FILASTROCCHE INFANTIS

Como elementos socializadores “A casa, o trabalho e a escola definiam os horizontes


dentro dos quais as crianças viviam (CUNNINGHAM, 1997, p. 123).3 Com convicção é
plausível afirmar que o tempo da infância nas colônias italianas foi marcado pelas
“obrigações” domésticas, escolares, agrícolas e religiosas.
Diante disso, qual era o tempo livre da infância? O tempo de brincar, da falta de
responsabilidade com os afazeres? Conforme Marilda Checcucci Gonçalves da Silva (2005, p.
127), ao analisar os modos de brincar e as brincadeiras entre crianças de origem italiana no
Médio Vale do Itajaí, o trabalho e as obrigações com a família envolviam quase que a
totalidade do tempo da infância. Contudo, embora limitado e restrito, o tempo livre - do lazer
e do brincar - compunha uma parte importante da vida da criança.
Também nas colônias italianas aqui analisadas, ainda que os documentos pouco
orientem sobre essa questão, é possível inferir que a condição do ser criança não foi negada.
Além disso, os adultos eram capazes de compartilhar o seu tempo produtivo com as crianças
no ensino das brincadeiras.
De modo geral, o universo brincante da infância foi permeado pelas brincadeiras
espontâneas que denotavam a liberdade da infância alcançada pela criança nos cotidiano
regrado pelo trabalho e pela família. Imitando o mundo adulto ou lançando mão da
imaginação, as crianças aproveitavam os instrumentos do trabalho e os espaços extensos das
propriedades rurais para brincar. Conforme afirma Silva (2005, p. 132) “brincava-se em
muitos espaços e tempos diferenciados do cotidiano”.
Ângela lembra com satisfação às brincadeiras junto à roda movida a água no moinho
de fubá que seu pai havia construído. Alertava que a brincadeira era perigosa, porém de muita
diversão.

Nós era tudo pequeninho. Papai fez uma roda que tinha essa altura de cima mais ou
menos. Nós entrava na roda. Brincava. Pisava assim na roda, a roda rodava e nós
que pulava lá dentro. Nossa Senhora! Quanta brincadeira que nós fazia, a roda era
grande. Um dia ela desmoronou-se que queria cair e eu e o papai com vara, com
tanta coisa escoramos a roda grande que não caia, por favor (SIMIONI, 2003).

3
La casa, il lavoro e la escola definivano gli orrizzonti all’interno dei quali i bambini vivevano.

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Além das brincadeiras livres, as brincadeiras regradas também eram executadas pelas
crianças, como a de “esconde-esconde” conforme revelou Maria Pia, em um excerto exposto:
“Como crianças após o jantar e um bom recreio de esconde-esconde, participávamos da
oração e em seguida o repouso” (FIOREZE, 2006 apud AZEVEDO et. al., 2006, p. 39).
Outras brincadeiras regradas também foram apontadas pelos depoentes como a amarelinha,
pedrinhas e três marias.
Além das brincadeiras livres e regradas, o ato de brincar pressupunha alguns objetos
transformados em brinquedos que configuravam a materialidade da brincadeira. No que se
refere a produção de uma história da infância a partir da conservação dos brinquedos, Maria
Cristina Soares de Gouvêa afirma que mesmo reconhecendo as dificuldades em manter e
localizar as produções infantis do passado, a possibilidade de encontrar brinquedos
produzidos para ou pela a criança não pode ser descartada, pois “os brinquedos,
especialmente, constituem fonte privilegiada para a compreensão da produção histórica de
uma cultura material infantil” (2009, p. 113).
A precariedade financeira das famílias imigrantes não impedia as produções dos
brinquedos, mas implicava nas apropriações de materiais colhidos na própria natureza. Na
maioria das vezes esses eram produzidos unicamente pelas próprias crianças, outras vezes,
com o auxílio dos adultos. Sobre a produção dos brinquedos, mesmo que as análises indiquem
para a universalidade das produções, é necessário levar em conta a singularidade na definição
dos materiais disponíveis nos diferentes contextos históricos (BENJAMIN, 1984 apud
GOUVEA et.al., 2009, p. 114).
A palha seca do milho, por exemplo, configurou-se como um recurso disponível no
contexto da maioria das colônias e era utilizada na produção de vários brinquedos pelas
crianças, entre eles, as bonecas e a peteca. A peteca, como explicava Ângela, era feita com a
palha seca do milho e com os grãos do próprio cereal. Primeiro se montava uma espécie de
bolsinha com as palhas, depois enchendo com os grãos, formava-se a base a qual sobre ela se
encaixaria algumas penas de galinha (SIMIONI, 2003).
Os meninos também construíam seus carrinhos com pedaços de madeiras,
aproveitados no corte da lenha que servia para manter o fogo utilizado no cozimento dos
alimentos. Relacionados ao universo masculino, os brinquedos eram as bolinhas de gude
(bulica), o peão, a bola de futebol (de meia), entre outros.
João nascido em 1914, neto de imigrantes italianos provenientes da província de
Vicenza, relembra como eram produzidos os seus brinquedos na infância:

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Não tinha bola, a bola era feita com meia, enchia com qualquer coisa para ela ficar
meio dura e brincava. Depois era a bolinha de bulico. Andava com aquele bolso
cheio daquelas bolinhas que nos jogava e perdia. Tinha em Colombo um barzinho
que vendia da fábrica de vidro. Com um canudo de taquara despejava um pouco de
vidro e fazia assim, ela arredondava depois tirava colocava na toalha e deixava
esfriar e faziam assim (MASCHIO, 2003).

Narrando a simplicidade com que eram confeccionados os brinquedos de sua


infância, João demonstra a singularidade da sua construção. Com base na disponibilidade dos
recursos advindos do contexto econômico da região, como o vidro por exemplo, ou da relação
cotidiana dos recursos, como uma peça do vestuário, os brinquedos faziam o tempo livre da
infância tornar-se pleno.
Afora as especificidades quanto às produções dos brinquedos, o repertório lúdico da
infância pode ser caracterizado também por outros modos de brincar: as rimas infantis.
Conforme apontaram a maioria dos depoimentos, as rimas, conhecidas também por
filastrocche, histórias e rimas infantis em dialeto vêneto4, eram apreendidas e compartilhadas
no interior das famílias e circunscreveram parte do tempo livre da infância. Transmitidas
oralmente pelos nonos e pelos pais aos netos e filhos, as filastrocche em dialeto
permaneceram na memória das famílias. Ainda que sofressem adaptações e outras
interpretações, o que dependia das particularidades de cada comunidade, as rimas em dialeto
atravessavam as gerações, sinalizando artefatos, concepções e crenças manifestas no cotidiano
e nos costumes daquelas famílias.

De caráter eminentemente oral, algumas rimas eram simplesmente recitadas


reportando à criança ao universo religioso através do aspecto lúdico, como esta abaixo:

Patre nostro pequenino Pai nosso pequenino


Sciapa ai sucà e va tor vinho Pegue uma porunga e vá buscar vinhoo
Se le buon va via bebendo Se ele é bom vai embora bebendo
Se le tristo va via expandendo. Se for ruim vai embora derramando.

Outras delas exigiam para a sua execução uma interação física entre o adulto e a
criança. Nas filastrocche descritas abaixo, o adulto segurava uma das mãos da criança e

4
O dialeto falado pela maioria dos imigrantes e descendentes das colônias italianas aqui analisadas correspondia
ao modo de falar Vêneto devido à grande maioria daquelas famílias procederem das províncias que compunham
aquela região.

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recitava a rima acariciando-a. Ao final do último verso o adulto deveria fazer os gestos
condizentes: produzir cócegas, pequenos tapas ou um simples balanço das mãos:

Manina bea Mãozinha bonita


Fata penea Feita por pincel
Doe si tù sta? Onde você está?
Con me papa Com meu papai
Cosa ghe tù magna? O que você comeu?
Poenta e late. Polenta com leite
Gate, gate, gate. Aranha, aranha, aranha.

Peca de ngoca Pegada de ganso


Peca de nea Pegada de [?]
Dagna uma sciapa Da-me um tapa
Mea putea. Minha menina.

Careghéta d’oro, Carregador de ouro


che porti il mio tesoro, Que carrega meu tesouro
che porti il mio bambino: Que carrega meu menino
su e giù per il camino. Em cima e em baixo pelo caminho.

Man man morta Mão mão morta


Che peta su la porta Que gruda na porta
Che peta su el porton Que gruda no portão
Da’ na scifa al so paron. Da um tapa no seu patrão.

O contato físico do adulto com a criança demonstrava atitudes de carinho -


sentimento muitas vezes desconsiderado pela historiografia ao tratar da história do cotidiano
de famílias rurais - mas acima de tudo, era empregado de modo que pudesse diverti-las. O
tempo produtivo dispensado pelos adultos com as crianças no ensino das rimas e o contato
estabelecido entre eles expressava relação de diálogo e atenção com os pequenos, pois os
significados dos versos eram explicados pelos adultos enquanto brincavam. Observou-se
pelos depoimentos que as recordações e as recitações das rimas nunca foram efetuadas em
língua portuguesa. E embora soubesses sua tradução, a condição de mantê-las em dialeto era
fundamental para que o seguimento fonético no final de cada verso não comprometesse a
rima.
Algumas filastrocche previam apenas a imitação dos gestos que deveria ser efetuada
pela criança enquanto os versos eram declamados. Na rima que se segue, a criança deveria
seguir a ordem dos dedos iniciando pelo polegar até o dedo mínimo, o qual corresponderia ao
último verso da estrofe.

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Mi go fame Tenho fome


Vui magnare Vou comer
No guiné Não tem
Va so in cazetin che zé un grustoin Vá até a caixinha que há um biscoitinho
Da me o par mi che son in pecinin. Dá para mim que sou pequenininho.

Ou ainda, esta outra filastrocche, que previa a identificação de alguns órgãos do


sentido:

Ociete beli so fradeli Olhinho bonito seu irmão


Reciete bele so sorele Orelhinha bonita sua irmã
Bocheta del frate Boca do padre
Din din che bate Din din que bate.

As rimas também poderiam ser cantadas por mais de uma criança, propiciando a
interação coletiva no ato do brincar. Nesta fillastroche abaixo, na recitação do último verso da
rima, deveria-se indicar o nome de outra criança e assim sucessivamente até que todas fossem
contempladas.

Batti, batti le manine Bate, bate as mãozinhas


che arriverà il papà, Que papai vai chegar
porterà le caramelle Irá trazer doces
Angelo le magnerà. Ângelo comerá.

Seguindo para as últimas reflexões aqui expostas sobre o universo brincante da


infância, cumpre ressaltar a inserção do cotidiano infantil no contexto das crenças populares
perpetuadas junto aos costumes das famílias. Algumas datas festivas eram envoltas por
superstições que ultrapassavam os limites das simbologias originais.
Uma festividade muito esperada pelas crianças era a passagem do Ano Novo.
Desejando Buon Inizio (Bom Princípio) as crianças, nos primeiros horários do dia, realizavam
as visitas às casas arrecadando pequenas ofertas. Segundo, os costumes a arrecadação no
primeiro dia do ano significava sorte e prosperidade durante o ano todo.
Altiva Balhana (1978, p. 133), explica que na colônia de Santa Felicidade durante as
visitas, as crianças recitavam algumas filastrocche enquanto aguardavam as doações.

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Na borsa d’oro Na bolsa de ouro


È na d’argento E na de prata
Demi na bona mano Daí-me uma boa mão
Che sia in contento Que fico feliz
In contento che sia Feliz que fico
Demi na bona mano Daí-me uma boa mão
Che vado via Que vou embora.

Considerando a precariedade da infância e os meios de provê-la, às doações


recebidas pelas crianças nas visitas tinham caráter simbólico e de pouco valor: moedas novas
e antigas, doces, bolinhas de gude, entre outros. Raramente eram distribuídos importâncias ou
objetos de grande valor.
Também se caracterizava como festa de igual importância, pressupondo superstições
e doações, a festividade da Epifania. A festividade católica celebrada no dia cinco de janeiro
de cada ano rememora a adoração dos Reis Magos ao menino Jesus. Entretanto, na Itália no
mesmo dia também se comemora a Festa da Befana, celebração popular de grande relevância
ainda hoje. Originalmente, a narrativa popular tem como figura central a Befana, uma velha
feiticeira (vechia strega) que trazia presentes na noite da Epifania para as crianças que
tivessem sido obedientes. Em algumas colônias analisadas, ainda que em menor abrangência,
a Festa da Befana fazia parte do imaginário infantil rural.
Segundo Altiva Balhana em Santa Felicidade a Festa da Befana era comemorada da
seguinte forma.

No dia da Epifania a Igreja comemora a adoração do menino Deus pelos Reis


Magos. Em Santa Felicidade, entretanto, como na Itália, a festa possui o mesmo
significado do Natal, ou seja, é o dia em que as crianças costumavam receber
presentes. [...]
Estes, a fim de esperá-la, preparavam um cesto de capim bem fresquinho e
penduravam suas meias perto do fogo para que ela ao aproximar-se do mesmo,
lembrando-se de ali deixar os presentes.[...] No dia seguinte, as crianças verificam
que o capim desapareceu durante a noite e as meias são encontradas contendo um ou
dois ovos cozidos, raramente alguns doces (BALHANA, 1978, p. 134).

Como na passagem do Ano, na Festa da Befana pouco comum eram as crianças que
recebiam presentes. Geralmente, os pais providênciavam objetos que poderiam ser
encontrados nas próprias casas e no cotidiano das próprias famílias. De acordo com Silva
(2005, p. 131), “comprar e oferecer brinquedos é um hábito recente” entre os membros das
colônias rurais. A maior parte das famílias, e consequentemente, às crianças, tinham pouco
acesso a brinquedos industrializados e comprados prontos. Isso ocorria também pelo fato de
não disporem do valor dispensado na aquisição de brinquedos para um número elevado de
filhos, como era o caso da maioria das famílias imigrantes.
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Caso houvesse a possibilidade de providenciar um presente de valor, este seria


entregue na festividade do Natal, tornando-se inviável aos pais presentear duas vezes as
crianças em datas tão próximas. Segundo a maioria dos depoentes, nas famílias com forte
atributos religiosos a festa popular da Befana era reapropriada e antecipada. Sendo o
nascimento do Menino Jesus uma das principais celebrações da Igreja Católica, a preparação
das meias na janela a espera dos presentes dava-se na noite das festividades do Natal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise aqui efetuada sobre a história da infância constituída no interior das


colônias italianas nos arredores de Curitiba no início do século XX contrapôs universalidades
e singularidades. Resultado de representações, sentimentos, discursos e práticas, a infância foi
delineada a partir de elementos socializadores de grande monta como a família, a
religiosidade, a escola e o trabalho.
A atribuição dada ao trabalho colocando-o no centro da organização familiar
naturalizava a utilização da mão de obra infantil, a qual era concebida como contributo dos
filhos para com os pais. O desenvolvimento econômico da família perpassava pelas mãos das
crianças e era fruto conjunto dos trabalhos realizados pelos pequenos no auxílio dos adultos.
Contudo, essa condição não impediu a constituição de um repertório de brincadeiras livres e
imaginativas.
Revelando ao mesmo tempo a universalidade e as particularidades dos modos de
brincar, o universo brincante da infância estava associado ao seu contexto e ao cotidiano nas
colônias. Compartilhando as brincadeiras, pais e filhos, nonos e netos, estabeleciam uma
relação dialógica e uma interação física, pois o tempo e a atenção dispensados pelos adultos
no ato de brincar caracterizavam os sentimentos de desvelo que estes demonstravam ter por
aquele tempo inicial da vida.

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Marcos Leite de; D’AGOSTIN, Anadir; FIORESE, Maria Luiza. Do berço ao
mundo sob o olhar de Maria: vocações religiosas e presbiterais em Colombo. Curitiba:
Imprensa Oficial, 2006.

BALHANA, Altiva Pilati. Santa Felicidade: uma paróquia veneta no Brasil. Curitiba:
Fundação Cultural, 1978.

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BECCHI, Egle. I bambini nella storia. Roma: Laterza, 1994.

CAVALLIN, Gianfranco. Dizionario della lingua veneta. Padova: Zephyrus, 2010.

CUNNINGHAM, Hugh. Storia dell’ infanzia. Bologna: Il Mulino, 1997.

KUHLMANN, Moysés; FERNANDES, Rogério. Sobre a história da Infância. In: FARIA


FILHO, Luciano Mendes de Faria Filho. A infância e sua educação: materiais, prática e
representações. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 15-33.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1998.

GOUVEA, Maria Cristina Soares Gouvea. A escrita da história da infância: periodizações e


fontes. In. SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina Soares Gouvea (Orgs.). Estudos
da Infância: Educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 97-118.

RODRIGUES, Marlene. A boa vida de Santa Felicidade. Boletim Informativo da Casa


Romário Martins. Curitiba: Fundação Cultural, v. XVIII, nº 87, abr/1991.

SILVA, Marilda Checcucci Gonçalves da. O brincar e as brincadeiras entre crianças


camponesas de origem italiana do Médio Vale do Itajaí. RADIN, José Carlos (Org.). Cultura
e identidade italiana no Brasil: algumas abordagens. Joaçaba: UNOESC, 2005. p. 121-138.

DEPOIMENTOS

Ângela Simioni. Depoimento concedido em 15/04/2003.

Rosa Busato. Depoimento concedido em 10/05/2003.

João Maschio. Depoimento concedido em 17/05/2003.

Lúcia D’Agostin. Depoimento concedido em 22/11/2003.

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ENTRE A NOÇÃO DE DELINQUÊNCIA E INFRAÇÃO: CRIANÇAS E


ADOLESCENTES SOB A ÓTICA DA MÍDIA IMPRESSA, CRICIÚMA, SC

(1980 – 2000)

Elisangela da Silva Machieski

(Mestranda no Programa de Pós Graduação em História – UDESC)

Silvia Maria Fávero Arend

(Orientadora)

LINHAS INICIAIS

“A criança é o futuro da nação”. Esta perspectiva de futuro, presente no senso


comum, na atualidade, teve sua origem vinculada ao processo de transição do período
monárquico para o republicano. Nesse contexto, a identificação da criança e do
adolescente passou a ser vinculada as noções de fragilidade, de docilidade e sobretudo,
na atualidade, de um indivíduo em formação. Este “cenário imaginado” era ameaçado
pelo modo de vida das crianças e adolescentes pobres. Percebidas na qualidade de
futuras cidadãs, não deveriam ficar a vagar pelas ruas ou trabalhar. A criança e o
adolescente, a partir desse período passou a fazer parte de um projeto político que tinha
por objetivo transformar o Brasil em uma nação civilizada, aos moldes dos países
europeus.

Tendo em vista este processo histórico, durante o século XX, a criança e o


adolescente tornaram-se alvo do discurso médico, pedagógico, psicológico, jurídico e da
mídia entre outros. Nesse sentido, a mídia no Brasil tivera um papel importante na
difusão de um ideal de infância e de juventude, com base no pensamento burguês. Cabe
destacar o papel da mídia impressa – jornal – que, através, sobretudo, de denúncias,

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difundiu o ideário da proteção e do amparo para os infantes pobres e abandonados, bem


como da noção de menoridade penal para os considerados infratores.

O jornal, assim como as demais mídias impressas, coleta e ao mesmo tempo


alimenta a memória social. O discurso jornalístico se postula como um meio emissor e
propagador de “verdades”, porém, temos que entender o mesmo como uma apropriação
ou uma representação desse real, muitas vezes de forma fragmentada. A partir desta
percepção, os jornais são considerados como um meio capaz de criar e fixar
representações sociais acerca da sociedade.

As fontes documentais que subsidiam este artigo são as reportagens e notícias


publicadas nos jornais Tribuna Criciumense e Jornal da Manhã, entre 1980-2000, que
tratam da temática da criança e do adolescente. A opção por esses dois periódicos deu-
se por sua elevada importância na cidade de Criciúma e região. O Tribuna Criciumense
é o jornal com maior disponibilidade de acervo no longo período, fundado em 1955,
contava com uma publicação semanal e assim funcionou até 1999, quando passou a ter
publicação diária. A circulação, inicialmente, era restrita ao território municipal de
Criciúma, somente no final da década de 1970 o jornal alcançou maior espaço de
circulação, englobando grande parte da região carbonífera. Já o Jornal da Manhã teve
desde sua fundação, 1983, publicação diária e ampla circulação em toda a região
carbonífera. Ambos os jornais encontram-se no Arquivo Histórico Municipal Pedro
Milanez, Criciúma/ SC

O foco desta análise esta centrada na narrativa jornalística acerca da criança e


do adolescente considerado infrator ou infratora visando perceber como foram
construídas as imagens a respeito destes infantes. Na década de 1980, em Criciúma, os
jornais passaram a retratar o considerado problema social das crianças e adolescentes –
abandonado e delinquente - com forte veemência. Este fato esta associado às
conjunturas nacionais e internacionais. É importante lembrar que o ano de 1979 foi
instituído, pela Organização das Nações Unidas, como o Ano Internacional da Criança.
Neste mesmo sentido, na década de 1980, no Brasil, temos um conjunto de atores
sociais que lutaram em prol dos direitos da criança, que resultou na instituição do
Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990.

O recorte temporal, 1980 a 2000, foi pensado de maneira a articular os


fragmentos jornalísticos a vigência da legislação voltada ao público infanto-juvenil. Na

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primeira década do recorte temporal selecionado era vigente o Código de Menores de


1979. No segundo momento verifica-se a instituição do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Busca-se estabelecer então um paralelo entre a narrativa jornalística e as
referidas leis com o intuito de identificar se a mudança da legislação interferiu sobre o
discurso da mídia impressa em relação às crianças e adolescentes considerados
infratores e infratoras.

NAS LINHAS DAS LEIS

No Brasil, crianças e adolescentes emergem como alvo do poder judiciário na


virada do século XIX para o XX, mas é na segunda década do século XX que as
discussões são intensificadas. Em 1921 surge o primeiro Juizado Privativo do Menor,
sob o encargo do juiz Mello Mattos, responsável também pelo anteprojeto do primeiro
Código de Menores. Este foi constituído em 1927 e teve o desígnio de firmar uma
legislação específica de proteção e assistência à infância abandonada e delinquente.
Embora o não faça parte de maneira direta para a construção desse artigo, faz-se
importante entendê-lo de maneira rápida, pois ele servirá de base para o Código de
Menores de 1979. Esse conjunto de leis destinado ao público infanto-juvenil pode ser
interpretado como um estatuto ambíguo, ao mesmo tempo em que se afirmava como
protecionista, tinha em seu corpo inúmeros dispositivos inspirados no Código Penal.
Com um forte valor moralista, o primeiro Código de Menores, além de funcionar como
uma maneira de regulamentação do trabalho realizado por menores foi articulado com a
ideia de normalizar essa infância, moldá-los com base na norma familiar burguesa. Em
seu primeiro artigo definiu seu público alvo: os que se encontravam em situação
irregular, “os fora da norma”. As medidas de assistência eram destinadas aos/as
menores, abandonados/as ou delinquentes, com idade inferior a dezoito anos. Alguns
artigos lidam com a especificidade de cada tipo de menor, segregando-os em categorias:
o/a menor abandonado/a, o/a menor mendigo/a, o/a menor libertino/a, o/a menor
delinquente, assim como também, o/a menor trabalhador/a que nesse espaço não será
abordado.

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O Código de Menores de 1979, assim como o código anterior, tem sua base na
teoria da situação irregular, na qual os/as menores - crianças e adolescentes fora da
norma, ou seja, em situação de abandono e/ou de rua, carência, vitimização e de
infração penal - eram vistos como um grande problema social. Por isso pode ser
pensado como um meio de regularizar a situação do/a menor. O código dispõe sob
caráter de assistência, proteção e vigilância aos/as menores que até dezoito anos se
encontrassem em situação irregular, assim como também os com faixa etária entre
dezoito e vinte e um anos, em casos expressos em leis. Embora seja um código que trate
de forma direta o/a menor em situação irregular – a fim de normalizá-lo/a – pode ser
considerado como um meio termo em relação à proteção integral. Diferente do Código
de Menores anterior, o Código de 1979 apresentava no seu primeiro artigo que as
medidas de caráter preventivo aplicavam-se a todos os sujeitos com idade inferior a
dezoito anos, independente de sua situação.
Em seu artigo 2º, o Código de 1979, considerava o/a menor em situação
irregular quando:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência,
saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente,
em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para
provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos
pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário
aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela
falta eventual dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave
inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.

O discurso presente no segundo Código de Menores continuou a utilizar o termo


“menor” embora não fizesse uso de forma explicita das classificações, assim como no
código de 1927, quando reafirmava a concepção de anormalidade do/a menor
criminoso/a e delinquente. Embora ainda possa-se perceber um forte valor moralista, o
artigo 5º da referida lei afirmava que a proteção ao menor predominaria sobre qualquer
outro bem ou interesse. Concernente à questão de assistência e proteção aos/as menores,

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o artigo 14º apresentava como medidas aplicáveis pelo poder judiciário: a advertência, a
entrega aos pais ou responsável, colocação em lar substituto, imposição do regime de
liberdade assistida, colocação em casa de semiliberdade, internação – de acordo com as
especificidades de cada caso – em estabelecimento educacional, ocupacional,
psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico. Não podemos esquecer que toda medida
aplicável visava à integração sócio-familiar do/a menor.
A colocação em lar substituto era regulamentada por um conjunto de subseções
que agrupavam desde o artigo 17º até o 37º e poderia ser aplicado de acordo com cada
caso, variando entre delegação de pátrio poder, guarda, tutela, adoção simples e plena.
A liberdade assistida advinda do artigo 38º era aplicada com o objetivo de vigiar,
auxiliar, tratar e orientar o/a menor. Assim, a autoridade judiciária fixava regras de
conduta ao/a menor e designava uma pessoa ou serviço especializado para acompanhar
o caso. Em sequência, o artigo 39º, abordava a colocação do/a menor em casa de
semiliberdade, essa era encarada como uma forma de transição/ retorno para o meio
social, por isso deveria utilizar os recursos oferecidos pela comunidade, como
escolarização e profissionalização. Por fim, a internação, tratada nos artigos 40º e 41º,
somente poderia ser aplicada se fossem inviáveis as demais medidas, sendo que o/a
menor deveria ser enviado/a a um estabelecimento adequado e somente na falta deste
poderia ser colocado em estabelecimento destinado a maiores, desde que as instalações
fossem apropriadas e garantissem a incomunicabilidade entre ambos.

Em meio aos movimentos sociais pós-ditadura, anunciou-se o Estatuto da


Criança e do Adolescente, em 1990. Diferente dos códigos antecessores, destinados ao
público infanto-juvenil, o Estatuto tem sua base fundamentada na doutrina de proteção
integral, garantido em seu artigo 3º que afirma:

A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais


inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que
trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas
as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o
desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em
condições de liberdade e de dignidade.

Sendo assim, a partir de sancionado o Estatuto, o Estado brasileiro passou a


assumir a responsabilidade com todas as crianças e adolescentes, e não somente com os
abandonados e os/as autores/as de atos infracionais, os/as considerados/as “menores”.

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Em seu artigo 2º o Estado estabelece, para efeitos dessa legislação, uma divisão etária
entre crianças e adolescentes: no primeiro grupo ficam indivíduos com até doze anos de
idade incompletos e, no segundo, aqueles/as que tenham entre doze e dezoito anos de
idade. A divisão entre esses dois grupos, tendo por base a faixa etária, faz-se importante
para pensar a questão da infração. Para as crianças, que fazem parte do primeiro grupo,
são destinadas apenas às medidas de proteção. Enquanto o segundo grupo, os/as
adolescentes, quando considerados/as infratores, não podem ser responsabilizados/as
penalmente, somente medidas sócio-educativas podem ser tomadas, e essas têm em
vista a reinserção social e o fortalecimento de vínculo familiar.
O estigma “menor” é deixado para trás com o advento do Estatuto da Criança
e do Adolescente. Embora, no senso comum, ainda se ouça a expressão “menor”
principalmente quando relacionada aos casos de infrações. O ato infracional é
caracterizado no artigo 103º, quando a conduta descrita equipara-se ao crime ou
contravenção. Em sequência, o artigo 104º afirma que sujeitos com idade inferior a
dezoito anos são inimputáveis. Porém, quando confirmada a prática, a autoridade
competente poderá aplicar aos/as adolescentes, conforme o artigo 112º, como medidas:
advertência, a obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,
liberdade assistida, internação em estabelecimento educacional. O artigo 117º aborda a
questão da prestação de serviços à comunidade, que consiste na realização de tarefas
gratuitas, de interesse geral, em que o período não poderá exceder a seis meses e deve
acontecer de tal modo que não prejudique a frequência escolar ou a jornada de trabalho.
A liberdade assistida abrange os artigos 118º e 119º, tal medida é utilizada quando se
afigurar como mais adequada o acompanhamento, auxilio e orientação ao adolescente.
Não pode exceder a seis meses, sendo que esse período pode ser prorrogado. Ao/a
orientador/a cabe supervisionar a frequência, o aproveitamento escolar e sua inserção no
mercado do trabalho. O artigo 120º trata do regime de semiliberdade, que pode ser
determinado desde o início como forma de transição para o meio aberto e não comporta
prazo determinado. E, por fim, a internação, artigo 121º, que constitui em medida
privativa de liberdade e deve respeitar à condição de pessoa em desenvolvimento. A
medida não estabelece prazo determinado, mas sua manutenção deve ser reavaliada a
cada seis meses e em nenhuma hipótese poderá exceder três anos. O artigo 122º afirma
que a medida de internação só pode ser aplicada quando o ato infracional cometido é
considerado de grave ameaça ou de violência à pessoa, por reiteração no cometimento
de outras infrações graves ou por descumprimento da medida anteriormente imposta.

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No que diz respeito ao estabelecimento, o artigo 123º assegura que a entidade deve ser
exclusiva para adolescentes, assim como obedecer a critérios de separação por idade e
gravidade da infração. E por último o artigo 185º, que decreta que a internação não pode
ser cumprida em estabelecimento prisional.
A narrativa, a partir desse momento, focará na construção discursiva da
imprensa em relação a criança e o adolescente autor de infrações, e assim, perceber e
analisar como suas imagens são construídas, como seus comportamentos são
representados e o que esses sujeitos representam para a sociedade. Assim, as lentes
serão ajustadas para perceber as diferentes formas de lidar com a questão das infrações
cometidas por crianças e adolescentes, antes e depois do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Abre-se espaço para os personagens principais dessas linhas, as crianças e
adolescente que foram noticiados nos jornais ao cometerem algum tipo de infração.

NAS LINHAS DOS JORNAIS

Em Criciúma, na década de 1980, entram em cena os “menores” infratores/as.


Esses/as apareciam vinculados/as aos pequenos furtos, porém, algumas reportagens
abordavam, ainda, o uso de drogas. O ato de roubar aparecia de maneira expressiva, os
adolescentes infratores/as eram apresentados/as pelo discurso da mídia, como cópias de
marginais da TV, como se pode observar nessa reportagem:

Incentivados por marginais, copiando ações de “bandidos” nos filmes


da televisão, menores vem agindo em todo o sul do estado,
preocupando os policiais civis e militares, que além de suas tarefas
diárias, não tem como deslocar essas crianças para lugares diferentes
das celas comuns aos maiores. Eles agem de dia, sempre estudando
com cuidado as pessoas que despreocupadamente, deixam de lado
suas carteiras, guarda-chuvas, bolsas ou qualquer outro objeto. Mas,
estes pequenos marginais, não escolhem suas vitimas, atacam idosos,
jovens e crianças e, depois de surrupiarem o objeto, saem em louca

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disparada, com a pessoa assaltada correndo atrás e gritando


desesperadamente.1

Faz-se importante refletir que as reportagens são apresentadas de diferentes


maneiras, em algumas até antagônicas. Pode-se perceber que alguns dos fragmentos
selecionados os/as menores são apontados/as como um mal para a cidade, e por isso
seria necessário livrar a cidade do mal praticado por esses. Em outras reportagens nota-
se o contrário: abordam a temática do menor/a com um tom dramático, quando o/a
menor precisava de proteção. Mas, é dentro do contexto da década de 1980 que a
questão da criança representada como vítima do sistema social ficará mais evidente,
assim como também a questão da proteção. Como amostra, foram selecionados
fragmentos de duas reportagens. A primeira:

O menino de rua é um problema de todos. Problema estrutural fruto


da trama econômica internacional, em que se veem enredados os
países em desenvolvimento. (...) os meninos mais pobres já sofreram
demasiadamente – muitos condenados a morte, alguns a “viver”(...)
Diz-se que um menino de rua é perigoso. Talvez sejamos mais
perigosos que ele. Suas palavras, seus olhos sujos e seu mau cheiro
são reflexos da nossa própria negação em reivindicar os seus direitos
básicos.2

Com o título “Herói ou bandido?” a reportagem, datada de 1985, é a publicação de


trechos do discurso proferido por Peter Taçon no I Seminário Latino Americano sobre
alternativas de atendimento a meninos de rua. Nesse fragmento, pode-se perceber um
forte teor dramático, ao mesmo tempo em que retira o peso da culpa dos ombros
desses/as meninos/as, transfere-os para a sociedade e sua negação em reivindicar os
direitos básicos dessas crianças. Embora a fala seja proferida por um especialista na
área, ela abre nos jornais a perspectiva de mudanças. Com base nessa ideia de estimular
transformações no discurso da mídia foram selecionados dois trechos da reportagem
intitulada: “Os meninos dessa rua”:

1
Menores colocam em alerta a policia no sul. Jornal Tribuna Criciumense, 10 de novembro de 1984.
Edição 1532, p 4.
2
Herói ou bandido? Jornal da Manhã, 12 de outubro de 1985. Edição 110, p 4.

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Durante o dia eles estão na praça Nereu Ramos, no terminal de ônibus


do centro ou mesmo pelas principais ruas da cidade e são pedintes. A
noite, quando os boêmios se despedem dos últimos bares abertos e as
luminárias da “Maison” já cansaram de piscar, eles se transformam
em tomadores do alheio. (...) Os dados levantados nos distritos
policiais causam alarme. Um desses da conta que na jurisdição do 1º
Distrito, 85% dos roubos são praticados por menores de 18 anos. 3

Mesmo que não tenha sido apresentada uma solução plausível, cabe
lembrar um parágrafo do livro “Leão da chácara”, escrito por João
Antonio, e que expressa muitas vezes o que sente um delinquente
infantil: “aguentava frios nas pernas, andava de tênis furado, olhava
muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas,
quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era
ver e desejar. Parasse aí” 4

A reportagem tem um caráter ambíguo, ao mesmo tempo em que apontava os


adolescentes como “tomadores do alheio” e responsáveis por oitenta e cinco por cento
dos furtos cometidos na cidade, faz uso de uma pitada de dramaticidade ao expor o que
esses sentiam. Como se ao mesmo tempo em que os responsabilizassem pelos roubos,
buscassem justificar o mesmo, ou até mesmo ausentar a culpa total desses, dividindo-as
com a sociedade.

A década de 1980, com o final da ditadura no Brasil, foi marcada por várias
denúncias de práticas punitivas em exagero contra crianças e adolescentes. A partir
desses fatos, somados aos movimentos sociais pós-ditadura, anunciou-se o Estatuto da
Criança e do Adolescente, em 1990. A concepção de que as crianças e os adolescentes
são sujeitos de direito começa a ser percebida nos jornais da cidade de Criciúma nesse
período. Embora, não de maneira tão evidenciada. Pode-se perceber, também, a redução
da utilização termo “menor” nas páginas dos jornais. Novos termos começam a
aparecer: crianças, meninos de rua, delinquente infantil. Embora seja importante
ressaltar que o termo continuava sendo utilizado, principalmente quando vinculado aos
atos infracionais.

3
Os meninos destas ruas, Jornal da Manhã, 03 de outubro de 1989. Edição 1078, p 7.
4
Idem

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Passava da meia noite quando um grupo entrou em uma papelaria e separavam


em pacotes o material que seria roubado, não conseguiram concluir o ato, pois foram
surpreendidos pela polícia. Foram levados para a delegacia e lá permaneceram até que a
“Gang Mirim”, segundo a delegada, foi levada para o Juizado de Menores da cidade.
Ricardo, Douglas, Rafael, todos com oito anos, Diego, treze anos e Lucas, onze anos
faziam parte da “quadrilha de menores” que era noticiava na reportagem do Jornal da
manhã do dia quinze de agosto de 1990.5

Como podemos perceber as reportagens da década de 1990 continuam a


utilizar expressões pejorativas ao referir-se a criança e adolescentes que praticavam atos
infracionais. Os que eram chamados de “menores delinquentes”, nas décadas anteriores,
apresentavam nesse período uma grande variedade de titulações: delinquentes infantis,
adolescentes infratores, menores infratores, menores com desvio de conduta, membros
de gangs ou quadrilhas mirins, e continuavam tendo um grande espaço nas páginas dos
jornais. Nesse período as crianças e os adolescentes infratores tem a abreviação de seu
nome noticiada, fato que não acontecia nas reportagens anteriores.

Apesar de ser chamada de “Gang Mirim” pela delegada essas crianças que
tinham entre oito e treze anos, não podiam ser comparadas com Rodrigo, quinze anos.
Rodrigo apareceu várias vezes nos jornais, tinha várias passagens pelo Primeiro e
Segundo Distrito Policial e também na Delegacia da Mulher. “Ele era o terror dos
comerciantes do centro da cidade.” 6 Ah, o Rodriguinho, velho conhecido da população,
da polícia, dos jornais. Rodriguinho apareceu em algumas reportagens, desde os sete
anos de idade iniciou sua vida no que o jornal chamou de “submundo do crime”. Aos
doze anos já era conhecidíssimo da polícia com várias passagens em decorrência de
furtos e arrombamentos. Várias reportagens narravam os feitos de Rodriguinho, que
mesmo com tantos crimes nunca foi recolhido a um estabelecimento de reeducação para
reintegrá-lo a sociedade. Talvez, como aponta o próprio jornal, a solução seria:

No caso de Rodriguinho, quando ainda criança, ao invés de ser preso e solto


seguidamente, é de perguntar-se, não seria melhor que tivesse sido recolhido,
amparado, educado nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente ao
invés de ser agredido com prisões e alvarás de soltura que nada resolveriam,

5
Polícia prende quadrilha de menores. Jornal da Manhã. 15 de agosto de 1990. Edição 1334, p 12.
6
Menor pratica furtos e atemoriza comércio, Jornal da Manhã, 11 de novembro de 1991. Ed 1695, p 4.

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como não resolveram? Que de futuro, tenham as autoridades e a sociedade,


esta através de suas forças vivas, maior cuidado com a criança e o
adolescente pois, caso contrário, novos Rodriguinhos continuarão sendo
formados na universidade do crime, ampliando o exército de bandidos e
aterrorizando a própria sociedade. 7

A solução apresentada, pelo jornal, para o problema de Rodrigo seria a saída


para inúmeros outros casos. A reportagem “Crianças infratoras preocupam
autoridades”8 apontava que cento e vinte crianças e adolescentes estavam envolvidas
com furtos, prostituição, drogas e outros atos infracionais. Juntamente com essa
reivindicação muitas outras marcaram as páginas dos jornais na década de 1990,
exigindo das autoridades que o Estatuto fosse respeitado e adotado. O jornal, além de
ressaltar em inúmeras reportagens que a cidade de Criciúma não tinha instituições que
realizassem o atendimento aos adolescentes com práticas de atos infracionais9, também
denunciava a prática de alojar os adolescentes no presídio da cidade. Como aponta a
reportagem:

Embora a legislação penal determine que os menores infratores não


possam permanecer detidos juntamente com presos adultos, está
determinação não está sendo respeitada em Criciúma. Seis menores
estão presos no presídio Santa Augusta. Quatro meninos encontram-se
na cela 30, cela de castigo, e duas meninas foram alojadas nas celas
das mulheres. A cela 30 foi considerada pelo Judiciário e por
representantes da Ordem dos Advogados do Brasil como desumana,
pelas péssimas condições. A cela de correção não possui ventilação,
colchões e banheiro adequado, apenas uma torneira e um vaso
sanitário no chão. Os quatro adolescentes ganharam dois colchonetes
10
para dormir.

Embora, na reportagem acima, o jornal enfatize o não cumprimento da


legislação para com o público infanto-juvenil, em outras ele aponta o Estatuto como um

7
Os Rodriguinhos de nossas ruas. Jornal da Manhã, 30 de novembro de 1994. Edição 2677, p 2.
8
Crianças infratoras preocupam autoridades. Jornal da Manhã, 17 de novembro de 1994.
Edição 2666, p 8.
9
Presídio não recupera menores, Jornal Tribuna Criciumense, 17 de janeiro de 1976. Edição 1101, p 10.
Menores são soltos por falta de lugar adequado. Jornal da Manhã, 03 de agosto de 1994.
Edição 2581, p 10.
10
Menores são presos na cela 30 do Santo Augusta. Jornal da Manhã, 20 – 21 de abril de 1996.
Edição 3083, p 9.

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meio facilitador para que o adolescente infrator continue as práticas de pequenos


delitos, pois o mesmo alega a inimputabilidade desses. Isso pode ser percebido no
trecho:

Com uma população de 140 mil habitantes, Criciúma está vivendo


dias dramáticos diante do crescimento de delitos praticados por
menores. O Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 104,
diz “são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos.” Com
isto as principais ruas da cidade estão sendo invadidas por menores,
que conhecedores de seus direitos, estão furtando, roubando e pior
injetando drogas pesadas, diante de uma polícia militar e civil que
nada pode fazer, já que o Estatuto corta a ação da polícia repressiva e
judiciária. No Código de Menores antigo, estava previsto a detenção
de menor por um período de até cinco dias, a fim de que procedesse as
devidas investigações. (...) Na cidade, segundo o delegado João Melo,
titular do 2º DP 50% dos furtos são praticados por menores.(...) Em
um levantamento realizado pelo capitão Aldo Antonio dos Santos,
relações públicas da 3ª Companhia e Polícia Militar, dois menores, um
de oito e outro de treze, foram responsáveis em 91 por mais de vinte
furtos e aprontos no centro da cidade. 11

LINHAS FINAIS

Um olhar para o passado demonstra que a história das crianças está


estreitamente relacionada ao contexto social e econômico na qual estão inseridas. A
criança e o menor, ambos pertencem à mesma faixa etária, mas não à mesma classe.
Esse fator é o que caracteriza o menor como o outro, assim como afirma Edson
Passetti: “Ser menor é mais que ter menos de dezoito anos. Aliás, os que são filhos de
“famílias organizadas” são crianças e jovens, menores são os outros.”

Ao pensarmos a trajetória do conceito menor na legislação, surge no Código de


Menores de 1927, continua em 1979 e é extinto no Estatuto da Criança e Adolescente,
1990. Mas essa mudança do termo menor para criança resolveu a questão? Seria assim
tão simples, ou pode-se pensar no quanto a questão do preconceito econômico ainda se
faz presente e atual, do quão enraizado está em nosso cotidiano.

11
Menores aterrorizam a cidade com furto, tóxicos e aids. Jornal da Manhã, 03 de fevereiro de 1992,
Edição 1755, p 10.

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Nos jornais, esses menores, apontados como delinquentes, fora da norma,


infratores ou com desvio de conduta eram, ao mesmo tempo, retratados como crianças
que necessitavam de proteção. Como duas faces de uma mesma moeda, a maioria das
notícias selecionadas anunciava não apenas o menor infrator que necessitava de
proteção, mas também o constrangimento e o medo que o mesmo impunha à sociedade
na qual estava inserido. Esses discursos sintetizavam sob essas crianças e adolescentes
um estereótipo criminal, que impregnados de moral tinham entre outros objetivos, o de
livrar o espaço público desse mal social. Se nas páginas dos jornais, ao mesmo tempo
em que se buscava salvar o/a “menor” das ruas, almejava-se também livrar a ruas dessa
patologia. Fica a pergunta a ecoar: Afinal, a quem se queria proteger?

FONTES DOCUMENTAIS.

BRASIL, Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927;

BRASIL, Lei nº 6697, de 10 de outubro de 1979;

BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990;

Crianças infratoras preocupam autoridades. Jornal da Manhã, 17 de novembro de 1994.


Edição 2666, p 8.

Herói ou bandido? Jornal da Manhã, 12 de outubro de 1985. Edição 110, p 4.

Menor pratica furtos e atemoriza comércio. Jornal da Manhã, 11 de novembro de 1991.


Edição1695, p 4.

Menores aterrorizam a cidade com furto, tóxicos e aids. Jornal da Manhã, 03 de


fevereiro de 1992. Edição 1755, p 10.

Menores colocam em alerta a polícia no sul. Jornal Tribuna Criciumense, 10 de


novembro de 1984. Edição 1532, p 4.

Menores são presos na cela 30 do Santo Augusta. Jornal da Manhã, 20 – 21 de abril de


1996. Edição 3083, p 9.

Menores são soltos por falta de lugar adequado. Jornal da Manhã, 03 de agosto de 1994.
Edição 2581, p 10.

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Os meninos destas ruas. Jornal da Manhã, 03 de outubro de 1989. Edição 1078, p 7.

Os Rodriguinhos de nossas ruas. Jornal da Manhã, 30 de novembro de 1994.

Edição 2677, p 2.

Polícia prende quadrilha de menores. Jornal da Manhã, 15 de agosto de 1990. Edição


1334, p 12.

Presídio não recupera menores. Jornal Tribuna Criciumense, 17 de janeiro de 1976.


Edição 1101, p 10.

REFERÊNCIAS

ALVES, Ismael Gonçalves. Pequenos desventurados meninas e meninos em notícias:


protagonistas de um dantesco espetáculo, onde a miséria possui papel preponderante –
(Criciúma 1950-1960).

Disponível em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=301

AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de Criação: Uma História dos menores
abandonados no Brasil (década de 1930). (Tese de Doutorado) UFRGS, 2005.

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: LCT, 1981.

BORGES, Ângela. Família, Gênero e Gerações. São Paulo: Paulinas, 2007.

D’INCAO, Maia Ângela. Mulher e família burguesa. História das mulheres no Brasil.
Org PRIORE, Maria Del. São Paulo: contexto. 1997.

FILHO, Alcides Goulart. Memória e Cultura do Carvão em Santa Catarina.


Florianópolis: Cidade Futura, 2004.

FILHO, Archimedes Naspolini. Criciúma, orgulho de cidade: Fragmentos da história


de seus 120 anos. Criciúma: Ed do autor, 2000.

PRIORE, Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo. Contexto. 1996.

RIZZINI, Irene; RIZZINI, Irmã. A institucionalização de crianças no Brasil. São Paulo:


Edições Loyola, 2004.

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HISTÓRIA LOCAL E IDENTIDADE HISTÓRICA: POSSIBILIDADES PARA O


ENSINO DE HISTÓRIA

Gerson Luiz Buczenko (Mestrado em


Educação – Universidade Tuiuti do Paraná)

INTRODUÇÃO

A abordagem do presente tema, despertado durante o Mestrado em Educação


iniciado em 2011, constante também, em parte, já no bojo do projeto de pesquisa
proposto para o processo de seleção ao Mestrado na Universidade Tuiuti do Paraná,
tem por base aspectos da história do Município de Campo Largo, uma história que uma
vez estudada, apresenta detalhes muito característicos que ajudam a conhecer melhor a
própria história regional do Paraná.
Antecedendo ao Mestrado, este Município foi objeto de investigação em
trabalhos monográficos (BUCZENKO, 2009; 2010), onde se verificou a forte influência
da economia da erva mate no desenvolvimento do Município de Campo Largo e, a
presença de uma forte influência da elite local, assim como, seus esforços para obter
uma estrutura educacional possível para a época. Em ambos os trabalhos deparou-se
com a escassez de fontes locais de pesquisa, o que oportunizou assim, uma investigação
ampla no que se refere à sua história.
Com as mudanças sociais e econômicas e, com a instalação de empresas como
Incepa, Porcelanas Schmidt, Germer, Lorenzetti entre outras, Campo Largo tornou-se
um pólo de produção de cerâmica, porcelana e louça, sendo, por alguns, intitulada como
a Capital da Louça e da Cerâmica no Estado do Paraná, salientando-se ainda sua
proximidade com a capital do Estado, um fator de peso no que se refere a aspectos da
identidade dos campolarguenses.
Assim, o debate sobre o ensino da história, tendo por base os conceitos de
historia do local, história local e, identidade histórica, com foco no estudante das séries
iniciais da educação básica em Campo Largo, em função desse quadro de formação

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histórica do Município bastante diverso, vem a contribuir para uma visão sobre o ensino
da História, e suas possibilidades para a formação de uma identidade histórica, que se
desvela diariamente em sala de aula na rede Municipal.
Para tanto este trabalho está organizado da seguinte forma: inicialmente fazemos
uma breve análise da história do ensino de História na educação brasileira; em seguida,
abordamos no ensino de história os conceitos de história do local e a história local; e
finalmente buscamos os conceitos de identidade histórica, concluindo pela importância
cada vez maior da abordagem e valorização da história local, marco pontual no processo
de formação da identidade histórica para o jovem neste início de um novo século.

1. ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Na história da educação brasileira, houve inúmeras reformas educacionais ao


gosto, ora das elites dominantes, ora ao gosto de governantes, que tentaram direcionar a
educação de um modo geral, a atender seus objetivos particulares, assim afetando
também o ensino da história. Não faltaram intelectuais de renome em nossa história da
educação, que marcaram a ferro suas intencionalidades, iniciando-se com a forte
influência do ensino Jesuítico através da Ratio Studiorum; as Reformas Pombalinas; a
legislação direcionada para a educação a partir de 1824; a criação do Colégio Imperial
de Pedro II em 1837; e, em seguida as grandes propostas para a educação como: Couto
Ferraz (1854); Leôncio de Carvalho (1879); Benjamin Constant (1890); Carlos
Maximiliano (1915); Luiz Alves e Rocha Vaz (1925); Francisco Campos (1931);
Gustavo Capanema (1942), entre outros intelectuais que pensaram em aprimorar a
educação brasileira. Assim, a educação brasileira caminhou em direção ao
aperfeiçoamento, atendendo aos novos ditames da sociedade brasileira.
No que se refere às propostas curriculares de história, ainda estão presentes
velhos debates segundo Bittencourt (2006), que se iniciaram principalmente durante o
regime militar, momento em que o Brasil viveu uma separação entre a produção
historiográfica produzida nas Universidades brasileiras e estrangeiras e a produção
escolar, quadro que somente passa a mudar ao final dos anos setenta, com novos

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debates sobre o encaminhamento da educação e, ao conhecimento que passaria a ser


abordado diante daquilo que vinha sendo tradicionalmente ensinado em sala de aula.
Durante o período ditatorial, com um clima indefinido de ora medo, ora de
euforia por um crescimento econômico (GERMANO, 1993, p.160), o Brasil viu ser
aprovada e colocada em execução em tempo recorde, a Lei nº 5.692/71 que iria fixar as
bases para o ensino de 1º e 2º Graus, estabelecendo a integração das disciplinas de áreas
afins, de forma que História, Geografia, Organização Social e Política do Brasil (OSPB)
e a Educação Moral e Cívica, foram incorporadas à área de Estudos Sociais, marcando
várias gerações de estudantes em sua formação e, atendendo os pressupostos do regime
em vigor, principalmente pela demanda profissionalizante, que acabou por estabelecer
limites claros do acesso ao conhecimento.

A decadência da escola pública contribui, sem dúvida, para um


maior distanciamento entre as classes sociais. Ela é freqüentada,
via de regra, pelas classes subalternas que têm nela o único meio
de acesso à cultura letrada, função que vai deixando de ser
cumprida. A propósito disso, Balzan (1980:11-2) relata sua
experiência em uma escola pública de 2º Grau, no interior de
São Paulo. Segundo afirma, no 1º Semestre de 1980, 350
adolescentes – a grande maioria dos quais filhos de
trabalhadores – entraram na 1ª Série do 2º Grau. Desse total, 230
se evadiram ao longo do período escolar e, ao final do ano,
apenas 14 alunos foram aprovados, representando 3,2% dos 350
que entraram no início de 1980. Conclui o autor: ‘A massa do
povo chegou à escola pública de 2º Grau, mas praticamente
analfabeta’, com uma ‘cultura geral muito baixa’, o que revela
uma falência do 1º Grau. A ‘cultura geral muito baixa’ atinge
mesmo os estudantes universitários. Ela decorre, em parte, da
desqualificação do ensino, que, por sua vez, não é somente uma
conseqüência somente da falta de verbas, mas também da
repressão e censura à educação, à cultura e à imprensa. Ela é
fruto igualmente, de uma ‘cultura enlatada’, fornecida pelos
meios de comunicação de massa. A ditadura legou uma geração
de universitários pouco informada acerca da história do país e
com deficiente formação cultural. (GERMANO, 1993, p. 272).

Na década de 1990, uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de


nº 9394 de 1996, estabeleceu toda uma revisão na organização dos currículos, em seu
conteúdo mínimo, além de outras alterações fundamentais para a educação brasileira.
Atrelando-se à LDB (1996), em 1997, a Secretaria de Educação Fundamental do

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Ministério da Educação (MEC), propõe os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs)


para o primeiro e segundo ciclos da escola fundamental e, em 1998 os Parâmetros
Curriculares Nacionais para o terceiro e quarto ciclos, com a principal finalidade de se
caminhar para um currículo único para todo o país. Na área de história os PCNs,
propunham especialmente uma mudança do ensino que até então era organizado de
forma linear, para uma transformação em eixos temáticos, uma experiência já colocada
em prática na década de 1980 no Estado de São Paulo, segundo Schmidt e Cainelli
(2009).
Assim, o professor, ao presenciar o retorno da disciplina de história como
disciplina autônoma e obrigatória, passou a questionar a submissão do ensino de história
a pacotes prontos, idealizados por técnicos ou intelectuais bem intencionados, sem o
conhecimento da realidade escolar. Dessa forma, passou-se a repensar as práticas
pedagógicas em geral e principalmente no ensino de história, face ao público estudantil
que estava na escola, agora com uma diversidade cultural maior, fruto dos processos
migratórios do meio rural para o urbano e do norte e nordeste para o sul. O ensino da
história passou por um verdadeiro repensar, embora o conhecimento reconhecido como
tradicional seja obrigatório, oportunizando a reflexão sobre a abordagem dos conteúdos
de história, diante de uma nova geração de estudantes.

Nessa conjuntura surgiram novas exigências para a disciplina e,


diante de tais perspectivas, uma questão que então se colocava
ou ainda se coloca, para referenciar o ensino e a aprendizagem
de história, é a de identificar as relações entre as atuais
necessidades da sociedade contemporânea e o conhecimento
histórico a ser veiculado pelas propostas curriculares. Tem se
exigido dos textos oficiais contribuições no sentido de auxiliar o
professor em suas respostas aos alunos sobre a permanência da
História nas escolas. O momento atual tem propiciado a
introdução de algumas reflexões sobre a necessidade urgente do
ofício do historiador e do professor de história no sentido de dar
à amnésia da sociedade atual marcada por incertezas e
perspectivas indefinidas. (BITTENCOURT, 2006, p. 14).

Assim, no que se refere à função do ensino, as tendências atuais no caso da


História, segundo Schmidt e Cainelli (2009), contribuem para a construção da
cidadania, desenvolvimento de raciocínios historicamente corretos, aquisição da
capacidade de análise da relação entre o presente e o passado e, a apreensão da

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pluralidade de memórias, não somente da memória nacional. E ainda, proporciona uma


preocupação com as finalidades do ensino da História no mundo contemporâneo,
principalmente, na relação entre professor e aluno, pois, o comprometimento do
professor, que passa a ser o mediador entre o aluno e o conhecimento, torna-se
fundamental, para a produção do conhecimento histórico, onde o aluno é colocado na
condição de sujeito de seu próprio conhecimento.

2. ENSINO DE HISTÓRIA, HISTÓRIA DO LOCAL E HISTÓRIA LOCAL

Uma diferenciação fundamental e algo não muito claro ainda para muitos;
porém, fundamental para o ensino de história, principalmente nas séries iniciais da
educação básica, 1º e 2º ciclo, refere-se aos conceitos de história do local e histórica
local.
Como história do local podemos definir como a própria história do Município,
sua organização e desenvolvimento.

O município como conteúdo para a disciplina de História nas


séries iniciais do ensino fundamental é referendado também pela
teoria dos círculos concêntricos. Desta forma, é comum
justificar e/ou relacionar o estudo do local, ou mesmo um
trabalho na perspectiva da História Local, por meio dos aspectos
psicológicos da aprendizagem infantil. (OLIVEIRA;
ZAMBONI, 2008, p.176).

Segundo ainda Oliveira e Zamboni (2008, p.176), na visão dos círculos


concêntricos, buscava-se vincular o desenvolvimento da sociedade aos estágios de
desenvolvimento psicológico do aluno, com base nas teorias de Piaget. Assim, quando
do predomínio dos Estudos Sociais, uma regra a ser seguida, o ensino tinha que
obrigatoriamente partir de uma realidade concreta para a abstrata em etapas sucessivas.
A História Local esta é pontuada nos Parâmetros Curriculares Nacionais para o
ensino da História e Geografia, nos conteúdos de História para o primeiro ciclo, sendo
então um dos eixos temáticos, História Local e do cotidiano.

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Ao ingressarem na escola, as crianças passam a diversificar os


seus convívios, ultrapassando as relações de âmbito familiar e
interagindo, também, com outro grupo social – estudantes,
educadores e outros profissionais –, caracterizado pela
diversidade, e, ao mesmo tempo, por relações entre iguais. A
própria classe possui um histórico no qual o aluno terá
participação ativa. Sendo um ambiente que abarca uma dada
complexidade, os estudos históricos aprofundam, inicialmente,
temas que dão conta de distinguir as relações sociais e
econômicas submersa nessas relações escolares, ampliando-as
para dimensões coletivas, que abarcam as relações estabelecidas
na sua localidade. Os estudos da história local conduzem aos
estudos dos diferentes modos de viver no presente e em outros
tempos, que existem ou que existiram no mesmo espaço.
(BRASIL, 1997, p. 40).

Nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica – História, da Secretaria de


Estado da Educação do Paraná (PARANÁ, 2008), acompanhando os parâmetros
estabelecidos no nível Federal, também valorizou a abordagem da história local
destacando a importância e a riqueza de conhecimentos que podem ser abordados no
trabalho diário do Professor da Educação Básica.

O estudo das histórias locais é uma opção metodológica que


enriquece e inova a relação de conteúdos a serem abordados,
além de promover a busca de produções historiográficas
diversas. Segundo o historiador italiano Ivo Mattozzi (1998, p.
40)1, histórias locais permitem a investigação da região ou dos
lugares onde os alunos vivem, mas também das histórias de
outras regiões ou cidades. Esse historiador aponta alguns
caminhos para o estudo das histórias locais:
– a importância da dimensão local na construção do
conhecimento do passado e que há fenômenos que devem ser
analisados em uma pequena escala;
– a relação entre os fatos de dimensão local e os de dimensão
nacional, continental ou mundial;
– o estudo e a compreensão das histórias locais do outro (como
as histórias dos indígenas, dos latino-americanos, dos africanos
e dos povos do Oriente);
– o respeito pelo patrimônio que testemunha o passado local;
– os termos das questões relativas à administração e gestão do
território em que vivem;

1
MATTOZZI, Ivo. A História ensinada: educação cívica, educação social ou formação cognitiva?
Revista Estudo da História. Associação dos Professores de História (APH), n.3, out. 1998. Dossiê: O
Ensino de História: problemas da didática e do saber histórico.

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– a função e o valor histórico-social das instituições incumbidas


da conservação do patrimônio e do estudo do passado;
– a utilização e divulgação pública de narrativas históricas das
histórias locais. (PARANÁ, 2008, p. 71).

Ao estudar a educação, o ensino da história tem uma participação fundamental


neste processo, pois possibilita a construção de conexões entre o passado e o presente,
passando-se pela história local, regional e do mundo, assim, possibilitando ao aluno,
inúmeras conexões com o conhecimento. A educação tem sua história assim como a
Pedagogia e a própria História, entre outras ciências, franqueando ao aluno e ao
professor, da educação básica, além da multidisciplinaridade, a construção do
conhecimento histórico em sala de aula.
Na obra História na sala de aula, cujo organizador é o Professor Leandro
Karnal, entre outros merece destaque o artigo da Prof. Dra. Circe, no que se refere à
importância da relação entre a micro e a macro-história:

Mas, igualmente, revela a necessidade de refletirmos sobre a


relação entre a micro e a macro-história, um dos desafios
historiográficos e para a História escolar. Os estudos da história
local devem tentar buscar no recorte micro os sinais e as
relações da totalidade social, rastreando-se por outro lado, os
indícios das particularidades – os homens e as mulheres de carne
e osso. A história do Brasil se constitui, assim, por uma
dimensão nacional, local e regional. (BITTECOURT, 2008, p.
203).

Em A história local como estratégia para o ensino da história, Luiz Alberto


Marques Alves, destaca a ideia de um processo em construção, onde a História Local
torna-se um marco inicial, para que o aluno no futuro perceba que vai desempenhar uma
função dentro de uma sociedade em permanente mutação.

A atitude mais antiga do espírito humano consiste em rejeitar as


formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas dos outros
com quem não nos queremos identificar. Esta visão ingénua,
mas profundamente enraizada no nosso quotidiano leva-nos a
falar em ‘nossa casa’, ‘nossa rua’, ‘nossa comida’, ‘nosso
bairro’, ‘nossa música’, ‘nossa aldeia’, ‘nossa região’. A
identidade tanto se refere às raízes, como ao património, à
memória como aos valores, ao presente como ao futuro. Sendo

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assim não é um dado adquirido, mas é um processo em


construção. (ALVES, 2006, p. 70).

Na obra Ensinar história, percebe-se a preocupação das autoras com a


abordagem da História Local, tanto que destinam um capítulo para uma análise da
História Local e o ensino de História, apontando preocupações para que esta visão não
seja a única motivação do conhecimento.

O estudo da localidade ou da história regional contribui para


uma compreensão múltipla da História, pelo menos em dois
sentidos: na possibilidade de se ver mais de um eixo histórico na
história local e na possibilidade da análise de micro-histórias,
pertencentes a alguma outra história que as englobe e, ao mesmo
tempo, reconheça suas particularidades. (SCHMIDT;
CAINELLI, 2009, p. 139).

Assim este processo, dentro do ensino de História, propõe um estudo


pormenorizado da realidade vivida pelo aluno, sendo um elo fundamental para a
aprendizagem no ensino de História, assim como, as relações que professores e alunos
passam a estabelecer com o conhecimento histórico, no universo escolar.

A história local requer um tipo de conhecimento diferente


daquele focalizado no alto nível do desenvolvimento nacional e
dá ao pesquisador uma idéia muito mais imediata do passado.
Ele a encontra dobrando a esquina e descendo a rua. Ele pode
ouvir os ecos no mercado, ler o seu grafite nas paredes, seguir
suas pegadas nos campos. As categorias abstratas de classe
social, ao invés de serem pressupostas, têm de ser traduzidas em
diferenças ocupacionais e trajetórias de vidas individuais; o
impacto da mudança tem de ser medido por suas consequências
para certos domicílios. Os materiais básicos do processo
histórico devem ser constituídos de quaisquer materiais que
estejam à disposição ou a estrutura não se manterá.
(SAMUEL, 1990, p. 220)

Podemos abordar como marco inicial a história do indivíduo e daquilo que o


cerca, possibilitando as devidas conexões com a temporalidade e a valorização do
passado e, de forma consequente o presente, instrumentalizando o aluno com uma
competência interpretativa (RÜSEN, 2010), produtiva no manejo de novas experiências

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e saberes e, principalmente de novas problematizações, capacitando-o para entender as


transformações da sociedade da qual faz parte.

Para que a prática de sala de aula adquira ‘o cheiro bom do


frescor’, é preciso que se assumam definitivamente os desafios
que a educação histórica enfrenta hoje em dia. Seria uma das
maneiras de se contribuir para que os educandos se tornassem
conhecedores da pluralidade de realidades presentes e passadas,
das questões do seu mundo individual e coletivo, dos diferentes
percursos e trajetórias históricas. Os educandos poderiam
adquirir a capacidade de realizar análises, inferências e
interpretações acerca da sociedade atual, além de olhar para si e
ao redor com olhos históricos, resgatando, sobretudo, o conjunto
de lutas anseios, frustrações, sonhos e a vida cotidiana de cada
um no presente e no passado. (SCHMIDT, 2006, p. 65).

3. IDENTIDADE HISTÓRICA

No que se refere ao processo de construção de uma identidade histórica e,


especialmente ao presente trabalho, é capitular o estudo sobre a consolidação da
identidade histórica e para melhor defini-la, torna-se obrigatória a abordagem das obras
de Jörn Rüsen, um marco atual nos debates sobre a teoria da História. Assim a
consolidação da identidade

consiste na ampliação do horizonte nas experiências do tempo e


nas intenções acerca do tempo, no qual os sujeitos agentes se
asseguram da permanência de si mesmos na evolução do tempo.
O ponto extremo dessa consolidação de identidade é a
‘humanidade’, como supra-sumo dos pontos comuns em
sociedade, com respeito à qual diversos sujeitos agentes, no
processo de determinação de suas próprias identidades,
determinam as dos outros de forma tal que estes se reconhecem
nelas. Esse critério de sentido, ‘humanidade’, fornece o
parâmetro para se constatar a consolidação da identidade em que
desembocam o progresso contínuo do conhecimento mediante a
pesquisa histórica e a ampliação contínua das perspectivas
mediante a reflexão histórica sobre referenciais. (RÜSEN, 2001,
p. 126).

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Assim, no aprendizado da história está intrínseca a apropriação de uma


realidade, que começa a se construir no seio da própria família, ampliando-se aos
poucos com o processo educacional já nos primeiros anos da educação básica,
fortalecendo o processo de identidade do indivíduo e deste, com a própria realidade que
o cerca.

A apropriação da história ‘objetiva’ pelo aprendizado histórico


é, pois, uma flexibilização (narrativa) das condições
temporais das circunstâncias presentes da vida. Seu ponto de
partida são as histórias que integram culturalmente a própria
realidade social dessas circunstâncias. O sujeito não se
constituiria somente se aprendesse a história objetiva. Ele nem
precisa disso, pois já está constituído nela previamente
(concretamente: todo sujeito nasce na história e cresce nela). O
que precisa é assenhorear-se de si a partir dela. Ele necessita,
por uma apropriação mais ou menos consciente dessa história,
construir sua subjetividade e torná-la a forma de sua identidade
histórica. Em outras palavras: precisa aprendê-la, ou seja,
aprender a si mesmo. (RÜSEN, 2010, p. 107).

Assim, estabelecendo as devidas conexões entre o ensino da História e a


realidade que cerca o aluno, a História local passa a ser devidamente valorizada, estando
presente em sala de aula e nela, o aluno, inserido como partícipe da própria história,
materializando-se assim a percepção do verdadeiro sentido da história. A partir desse
contexto veremos surgir o fortalecimento de uma identidade histórica, ou seja, o
passado em plena ligação com o presente com a possibilidade de se explorar novos
laços, que vão conectar o aluno com um universo de conhecimentos cada vez maior.

A História pode ser um pretexto para o crescimento intelectual,


para a autonomia pessoal e para a solidariedade cívica. Tem de
ser ter consciência que o saber histórico pode/deve ser utilizado
para se sensibilizar os alunos para temáticas e conteúdos da
história local, para a preservação do Património, para a riqueza
da nossa identidade nacional, para a solidariedade civilizacional,
para a necessidade de não sermos indiferentes. (ALVES, 2001,
p. 28).

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4. CONCLUSÃO

O ensino de História deve continuar sendo avidamente estudado, nos diversos


níveis da educação brasileira, pois, além de fortalecer o campo da pesquisa,
fundamental para se entender as novas demandas do processo educacional, possibilita
ainda a aproximação da academia dos profissionais da educação, encarregados da
prática do ensino de História.
O estudo da História Local possibilita, uma visão sobre o formato histórico-
social local e, sua influência sobre a identidade histórica do estudante e tudo que está
em seu entorno, ainda nas séries iniciais da educação básica, elo fundamental para o
prosseguimento do ensino de História.

As identidades são produzidas em momentos particulares no


tempo. Na discussão sobre mudanças globais, identidades
nacionais e étnicas ressurgentes e renegociadas e sobre os
desafios dos “novos movimentos sociais” e das novas definições
de identidades pessoais e sexuais, sugeri que as identidades são
contingentes, emergindo em momentos históricos particulares.
Alguns elementos dos “novos movimentos sociais” questionam
algumas tendências à fixação das identidades da “raça”, da
classe, do gênero e da sexualidade, subvertendo certezas
biológicas, enquanto outros afirmam a primazia de certas
características consideradas essenciais. (SILVA, 2011, p. 39).

Assim, embora vejamos um contexto global, de afirmação de identidades


fortalecidas historicamente, também nos deparamos com novas construções sociais,
principalmente para o público juvenil, onde se pregam novas identidades. Sem apelos
tradicionais, mas pensando na criança e no jovem, que estão nos bancos escolares,
defendemos a valorização dos laços com a localidade, aos quais estão, o público escolar,
expostos diariamente como uma verdadeira raiz identitária, fundamental em sua
formação social e, conexão sem igual para o ensino de História.
Em que pese os avanços da atual tecnologia da informação e, a possibilidade de
conectividade do estudante, junto a uma sociedade que pretende ser global, a identidade
é um fator de fundamental importância para o jovem em seu processo de formação,
assim, a abordagem da História Local, torna-se um momento ímpar na formação da
identidade histórica do jovem neste início do século XXI.

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5. REFERÊNCIAS

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Universidade do Porto, 2006. Disponível em: <http://repositorio-
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KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. 5.
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BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. 11. ed. São Paulo:
Contexto, 2006.

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Brasília: MEC, 1997. Disponível em: <http://www.mec.gov.br>. Acesso em: 7 jun.
2011.

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desenvolvimento do município de Campo Largo. 2009. 83 f. Monografia (Graduação
em História) – Faculdades Integradas “Espírita”, Curitiba, 2009.

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f. Monografia (Especialização) – Associação dos Diplomados da Escola Superior de
Guerra – CPGEX/FIES, Curitiba, 2010.

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Paulo: Cortez, 1993.

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História (APH), n.3, out. 1998. Dossiê: O Ensino de História: problemas da didática e
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história. Curitiba: SEED, 2008. Disponível em:
<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br>. Acesso em: 7 jun. 2011.

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Brasília: UnB, 2001.

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SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos


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ADOLESCENTES E JOVENS E VIVERES URBANOS: IDENTIDADES E


SOCIABILIDADES NO BAIRRO PORTO MEIRA (FOZ DO IGUAÇU, DÉCADAS
DE 1990 E 2000).

João Paulo de Souza Miglioli

Mestrando Pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em História


(UNIOESTE/Campus de Marechal Cândido Rondon/PR)

Orientador: Robson Laverdi

Este trabalho tem por intuito discutir como alguns jovens da “periferia” de Foz
do Iguaçu/PR tecem suas relações entre si e com o próprio bairro. As diversas formas
pelas quais estes sujeitos organizam e pensam suas vivencias nos levaram a pensá-las
para além de alguns estereótipos e categorias que, ao que tudo indica, não servem de
instrumento de analise, e nem de modelo de explicação para pensar a multiplicidade de
experiências desses jovens.
Este trabalho está em fase inicial, grande parte das perguntas que me levaram
realizar tal pesquisa se devem ao fato de eu ser um morador dessa localidade e não
concordar com algumas abordagens que procuram sempre encontrar explicações globais
para pensar não só a questão da juventude, mas a juventude ligada a áreas ditas
periféricas. Explicações que buscam encontrar muitas vezes um “remédio” para acabar
com os males desse ambiente “nefasto” que é a periferia. Ambiente que leva quase que
sem outra sorte a maioria dos jovens dessas localidades a se tornarem potenciais
criminosos.
Miriam Abramovay (2004) ao trabalhar com jovens das cidades-satélite de
Brasília aponta que:

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A vida na periferia impõe uma existência marcada pela rotina, com graves
limitações as atividades de lazer, seja pelas precárias condições de infra-
estrutura das cidades, seja em virtude da falta de dinheiro. De fato, esses
jovens contam com poucas possibilidades de diversão, de praticar esportes e
de utilizar, de maneira geral a sua criatividades. Frequentemente restam
poucas alternativas alem da pratica de atos ilícitos e do consumo de drogas e
de bebidas alcoólicas que, ao mesmo tempo, representam uma forma de
diversão e, por outro lado, são constitutivos de um ambiente de violência que
coloca novas restrições ao exercício do lazer. (Abramovay, 2004 p.49 a 50).

Procuro romper com uma leitura pessimista sobre jovens moradores de áreas
periféricas que partem de uma perspectiva sociológica afirmando que há uma crise de
valores tanto na sociedade e na juventude. Busco traçar outro “perfil” desses jovens com
os quais procuro dialogar sobre suas experiências. Todavia não pretendo criar
simplesmente uma leitura alternativa às outras já existentes. O que quero é mostrar que
esse jovem é múltiplo, suas praticas e experiências não são unas, as formas com as quais
eles tecem suas teias de sociabilidades não são únicas e dependem de fatores que não
podem ser explicados apenas pelo viés da desilusão e da classe social ou simplesmente
pela ausência de um estado provedor de benefícios.

Assim, o lançar meu olhar sobre essa localidade e sobre as vivencias desses
jovens optei por utilizar como fontes depoimentos orais, pois é uma forma mais direta
de lidar com as trajetórias de vida desses sujeitos e como eles interpretam e dialogam
com essa realidade, como eles reelaboram e dão significado às suas vivencias. Essa
opção não se dá única e exclusivamente pelo fato de eu querer “dar voz” a estes
sujeitos, mas sim num dialogo mais próximo com suas experiências.

Dessa forma, acredito se necessário algumas de suas considerações de como


proceder no momento da entrevista, para que se possa preservar o que Yara Aun khoury
aponta como “direito de autoria de ambas as partes em interlocução”, já que assim “em
ultima instância” estes estudos são “problemáticas sociais vividas”. Então temos de
respeitar “o ponto de vista do outro”, já que “isso requer refletir sobre os elementos
históricos, culturais, intelectuais, políticos implicados nesse dialogo”. (Khoury, 2004,
p. 124).

Nesse sentido, ela aponta que devemos “lidar com as narrativas como práticas
que se forjam na experiência vivida, e que também intervêm nela”, para que, dessa
forma, possamos “apreender o trabalho da consciência e incorporá-lo na explicação

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histórica”. Pois “ao narrar, as pessoas interpretam a realidade social vivida, construindo
enredos sobre essa realidade, a partir de seu próprio ponto de vista”. Pois, isso pode nos
mostrar que os “significados que se forjam na consciência de cada um, ao viver a
experiência, que é sempre social e compartilhada, e buscamos explorar modos como
narrativas abrem e delineiam horizontes possíveis na realidade social”. (Khoury, 2004 p.
125).

Torna-se necessário também levar em conta os discursos sobre o bairro e seus


habitantes pelos jornais locais e regionais, mas principalmente jornais locais como o
jornal a Gazeta do Iguaçu e o já fora de circulação Nosso Tempo. Também pretendo
trabalhar algumas reportagens do programa de televisão conhecido como A Tribuna da
Massa veiculado diariamente pela antiga TV Naipi, atual Rede Massa de Televisão na
cidade em dois horários, programa este dedicado a televisionar os acontecimentos
relacionados ao setor policial da cidade e região. Tais textos e reportagens serão
trabalhados à luz dos depoimentos orais, não no sentido de definir veracidade ou não
dos fatos apresentados, mas contrapondo versões e modos diferentes de avaliar as
questões surgidas.

O Porto Meira – hoje conhecido como a região da Grande Porto Meira, devido
às suas dimensões se constitui com aproximadamente trinta e dois bairros, com uma
população aproximada de mais de 40 mil habitantes, – localiza-se na região sul da
cidade de Foz do Iguaçu/PR. Está separada pelos rios Paraná e Iguaçu do Paraguai e da
Argentina, respectivamente.

A sua constituição, como muitos outros da cidade se deu de forma heterogênea,


formado por ocupação de áreas de fundo de vale, ocupação da barranca do rio, como
afirma Emilio Gonzalez ao falar especificamente da formação do Porto Meira:

O bairro passou a ser incluído em projetos de construção de casas populares,


como os conjuntos Profilurb I, II e III (1978/79-1985, respectivamente), para
dar vazão ao processo de desfavelização do centro. Desde então, já incluído
no desenho da geografia social da cidade na condição de “periferia”, a região
tornou-se alvo de diversos fluxos migratórios internos (sem tetos) e externos
(especialmente de brasileiros que estavam retornando do Paraguai no início
dos anos 1980), o que passou a definir novas feições para o bairro e para sua
população. (Gonzalez, 2005, p. 74).

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Essa forma de “limpeza” do centro, com a retirada dos elementos indesejáveis


se deu muitas vezes com a simples transposição de favelas do centro da cidade para seus
arredores, como foi o caso da “Favela do Queijo”, antes situada às margens do rio
Paraná, na região da Vila Portes, próximo da Ponte da Amizade, fronteira entre Brasil e
Paraguai foi simplesmente transposta para outra localidade, até mesmo os “barracos”
que lá existiam foram desmontados e reconstruídos nessa localidade. Dessa forma as
famílias que lá viviam não trouxeram consigo somente as precárias condições de vida,
mas também um estigma, o nome de “Favela do queijo” ainda lhes acompanhava.

Numa operação que utilizou 16 caminhões do Departamento Rodoviário


Municipal, mais 500 pessoas foram transferidas da Favela do Queijo, na Vila
Portes, para as casas e o acampamento montado pela prefeitura montado no
Profilurb – conjunto residencial iniciado pelo prefeito Clovis da Cunha
Vianna para a erradicação das favelas de foz do Iguaçu. (Nosso Tempo, 12
a18 de julho de 1987, p. 2)

Durante a década de 1970 a região foi um importante local de comércio,


realizado via travessia do rio Iguaçu por balsa entre Brasil e Puerto Iguazu, Argentina.
Depois da desativação dessa balsa, após a construção da ponte Tancredo Neves, a região
passou a ser menos importante economicamente. Mas mesmo assim não deixou de ser
alvo do poder público, tendo sido realizadas a duplicação da Avenida General Meira, a
revitalização do “Laguinho”, atual parque ambiental Omar de Oliveira e a construção do
Espaço das Américas (na região próxima onde se localizava a balsa) e no mesmo local
onde está o Marco das Três Fronteiras, na foz do rio Iguaçu, bem às suas margens. Esse
monumento, que pode ser avistado do Paraguai e Argentina, assemelha-se a um castelo
medieval.

Geograficamente, essa região pode ser pensada como um grande “mosaico”, na


medida em que suas feições atuais nos permitem perceber que convivem dentro deste
grande espaço localidades distintas umas das outras, ou seja, áreas mais periféricas
separadas de outras mais bem estruturadas. Mas também podemos observar uma
mistura desses dois tipos de moradias, onde casas novas e belas se misturam a outras
com características mais simples, isso nos ajuda a perceber como se dá essa
multiplicidade de espaços distintos, nem sempre harmônicos, nem sempre possíveis de
serem pensados como um todo, embora a região esteja ainda hoje sofrendo mudanças
facilmente percebidas.

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Essa localidade pode ser entendida como um local de constante disputa pelos
espaços, tanto nas ocasiões de invasões de terrenos por parte de moradores em busca de
uma moradia, como da especulação imobiliária, com áreas reservadas para gerar
grandes lucros para seus detentores.

Atualmente podemos perceber essa disputa pelo fato de se pretender construir a


segunda ponte entre Brasil e Paraguai na região do Porto Meira, todavia, outros grupos
com outros interesses estão relutantes na sua construção naquela localidade e buscam
mudar a todo custo o local da construção. Demonstrando que apesar de todo o
estereotipo de bairro de periferia com alta taxa de criminalidade, essa localidade ainda é
fruto dessas disputas.

Outra consideração importante a ser feita, é que a própria geografia da cidade,


devido a uma serie de eventos estão tornando as feições da cidade cada vez menos
nítidas, pois podemos perceber uma mudança nas fronteiras sócio espaciais, e o que
Arantes apresenta como o rompimento do padrão centro/ periferia ao discutir estas
transformações sobre a cidade de São Paulo, alguns elementos discutidos por ele podem
ser pensados também em relação à Foz do Iguaçu, pois:

Não só no antigo centro tornaram-se mais complexas as fronteiras


socioespaciais. O padrão centro-periferia, que, desde a década de 40, vinha
estruturando o espaço paulistano e que mantinha a maioria da população
pobre distante das áreas mais afluentes da cidade, transformou-se
dramaticamente na década de 80. (ARANTES, 2000.p.145.)

Digo isto levando em conta a construção de um numero cada vez maior de


grandes empreendimentos nesse bairro especificamente. A construção da segunda ponte
entre Brasil e Paraguai, grandes condomínios residências colado em uma das mais
“famosas favelas” da cidade. E atualmente a revitalização de todas as margens do rio
Iguaçu e Paraná com o intuito de acabar com o contrabando e tráfico de drogas nessas
regiões de barranca de rio.

A região periférica de Foz do Iguaçu conhecida como Porto Meira, se constitui


num local onde os índices de criminalidade são realmente altos. Isso é um fato que não
pode ser negado. Todavia acredito não ser possível explicarmos que isso é meramente
um reflexo da relação pobreza-criminalidade e contrabando, algo constantemente
vinculado na mídia local e nacional.

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Dessa forma, como apresentado no post de um blog de autoria de Jackson


Lima, onde ele narra um episódio digno de cinema hollywoodiano, onde ele descreve
sua tentativa de adentrar em um parque ecológico criado em uma antiga área alagada na
região central do bairro, dizendo o seguinte:

O Parque Omar de Oliveira, ou Parque Remador, foi inaugurado, segundo


placa comemorativa no local, em março de 2004. Quatro anos depois, o
Parque que foi inaugurado pelo Governador do Paraná, Roberto Requião e o
prefeito de então Sâmis da Silva, já está descartado, depredado, abandonado.
Dinheiro jogado fora. Conversei com alguns moradores da região e eles se
mostraram revoltados. Revoltados mas sem poder fazer nada. Fazer o quê? A
quem processar? De quem cobrar? Devo acrescentar que eu tive medo de
entrar no Parque para chegar ao Santuário Católico. O meu medo era ser
assaltado. Fiquei meia hora em frente ao Parque tentando arranjar coragem.
Enquanto isso, o helicóptero da Polícia fazia sobrevôos baixos na região - a
Tropa de Elite local parecia estar em uma caçada séria o que aumentava ainda
mais o sentimento de estar em uma zona de guerra. (O blog de Foz, 3 de
abril de 2008).

Ao nos depararmos com tal narrativa de forma alguma teríamos coragem de


chegar perto de um local como este me sentiria amedrontado. Todavia, essa descrição
nem de perto pode ser aceita, ou minimamente dar conta de ilustrar o cotidiano das
pessoas que transitam neste local. De certa forma afirmo isso por ser morador do bairro,
e nunca ter presenciado tal cena e sequer ter ouvido falar sobre algo parecido. Por mais
contraditório que possa parecer, essa localidade apontada como muito perigosa, não é
muito frutífera nesse tipo de crime. Assaltos a pessoas e residências nessa localidade são
muito poucos e as pessoas normalmente não se sentem amedrontadas por circular em
locais públicos dentro do bairro, da mesma forma que eu ainda o faço cotidianamente
sem ser perturbado por ninguém.

Outra questão chave desta pesquisa se deve ao fato de não partilharmos de


perspectivas teóricas que olham para a juventude de localidades periféricas pelo viés da
“desilusão e não integração na sociedade e no que ela pode oferecer de melhor”. Pensar
dessa forma nos leva a uma equação muito simples de causa e efeito, ação e reação,
nasço pobre posso virar um delinquente ou bandido. A própria relação que essa cidade
estabelece entre o que é legal e ilegal é muito fluida. Pois o que vemos serem
combatidos com extrema “eficiência” atualmente, num passado não muito distante não
era “muito ilegal”, ou se era, a relação que se estabelecia localmente com essas praticas,
como o próprio contrabando e até mesmo o trafico de drogas eram diferentes.

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Dessa forma, naturalizar essas relações e simplesmente encontrar uma


explicação simplista do jovem não enquadrado socialmente e do local que é o solo fértil
para gerar as desilusões e desigualdades, que por sua vez levam estes jovens a
realizarem o que classificam como atividades ilícitas, não dão conta de perceber que por
mais que existam desigualdades econômicas, as diferenças são raciais, de gênero e etc.
Não existe um tipo ideal de jovem, um modelo, que vive essa realidade da mesma
forma, sempre repetindo as condições as quais ele encontra, alimentando um ciclo que
por sua vez não tem fim.

As trajetórias individuais destes sujeitos são mediadas por uma infinidade de


fatores que não passam simplesmente pela ligação com o crime, com as drogas e
violência com a qual convivem cotidianamente. Ser negro, homossexual, mulher ou os
três juntos fazem com que as trajetórias de vida destes jovens não possam ser
enquadradas apenas em esquemas de explicações econômicas ou de explicações de
vertente sociológicas pela desilusão crise da família e sociedade. A própria noção de
família e sociedade em crise empregados desta forma são a-históricos e precisam ser
problematizados, primeiro teríamos de aceitar o fato de que estas chegaram em seu
ápice e agora estão decaindo, algo que não acredito ser verdadeiro afirmar.

Ao que tudo indica devemos tomar alguns cuidados para não naturalizarmos a
os processos históricos nos quais estão envolvidos estes sujeitos. As trajetórias de vida
dos jovens que já entrevistei e que entrevistarei futuramente sinalizam para formas de
interação muito singulares do ponto de vista individual, mas que também não podem ser
entendidas se retiramos estes atores de seu espaço, do lugar onde vivem, entretanto
procuro salientar que o meio não determine as suas ações, mas sempre pensado estas
questões de forma relacional, já são estes sujeitos que constroem o bairro, imprimem
suas maracas e utilizam seus espaços de formas diversas.

Estas são algumas das questões que nos guiam nesta pesquisa neste momento,
muitas das afirmações feitas acima se devem ao fato de já estar trabalhando com esta
temática anteriormente, durante o meu trabalho de conclusão de curso realizado no ano
de 2009 nesta mesma instituição. Enfim, muitas das questões levantadas acima são
partes de uma reflexão anterior e estão sendo discutidas novamente levando em conta

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todas as contribuições feitas pela banca e no dialogo com as disciplinas realizadas neste
primeiro semestre no mestrado e meu orientador.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABRAMOVAY, Miriam. Gangues, Galeras, Chegados, e Rappers: Juventude, violência


e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Rio de janeiro: Gramond, 2004.

ARANTES NETO, Antonio Arantes. Paisagens Paulistanas: transformações no espaço


publico. São Paulo: Editora da Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000.

GONZALEZ, Emilio. Memórias Que Narram a Cidade: Experiências sociais na


constituição urbana de Foz do Iguaçu. São Paulo, 2005. 206 p. Tese (Mestrado em
Historia). PUC/ São Paulo.

KHOURY, Yara Aun (org). Outras Historias: Memórias e linguagens. São Paulo:
Editora Olho D’água, 2006

LIMA, Jackson. Ruínas do Parque Remador, 3 de abril de 2008. Disponível em


http://blogdefoz.blogspot.com.br/2008/04/runas-do-parque-remador.html (17/08/12)

NOSSO TEMPO. Despejo de favelados no Jardim Jupira. De 24 a 30 de maio de


1987.p.15.

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UM CONFLITO DE TÁTICAS E ESTRATÉGIAS: A RUA COMO ESPAÇO


COTIDIANO DE BRINCADEIRAS DA INFÂNCIA POBRE E/OU ABANDONADA
DE FEIRA DE SANTANA/BA ENTRE 1890 E 1945.

Lívia Gozzer Costa

Mestranda em História Social pela Universidade Estadual de Feira de Santana

sob orientação da Profª Drª. Andréa da Rocha Rodrigues.

O presente texto pretende analisar o cotidiano de brincadeiras vivenciado


pela infância pobre e/ou abandonada de Feira de Santana no período que se estende de
1890 a 1945. Paralelamente, buscamos traçar o cenário social, cultural e econômico no
qual estavam inseridas estas manifestações lúdicas e cotidianas praticadas pelos sujeitos
deste trabalho. Ver-se-á que um projeto de cidade civilizada arquitetado para a feira na
transição do século XIX para o XX esteve em diversos momentos ameaçado pelas
experiências de brincadeiras, jogos de azar e trabalhos vivenciados pelos meninos
pobres e/ou abandonados e, concomitantemente, pela inexistência de instituições
assistencialistas direcionadas ao gênero masculino, uma vez que em Feira de Santana
havia apenas um estabelecimento voltado à proteção das meninas órfãs e abandonado –
o Asilo Nossa Senhora de Lourdes.

A questão da infância pobre e/ou abandonada emergiu enquanto um


problema nas documentações aqui analisadas na transição do século XIX para o XX,
período que remonta crises de ordem econômica (secas, câmbio, carestia de alimentos,
etc.) se não determinantes, ao menos influentes no que tange o empobrecimento das
camadas mais economicamente vulneráveis da sociedade. Problema porque, até onde a
literatura e as fontes nos permitem afirmar, inexistiram quaisquer iniciativas e/ou apelos
em torno da imprensa no que tange o recolhimento, assistencialismo e filantropia às
crianças pobre e/ou abandonada da Feira de Santana de meados do século XIX. Logo, o
recorte temporal aqui proposto é particularmente importante no aspecto do despertar da

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sociedade como um todo para o destino dos sujeitos objetos deste estudo. Tal contexto
se alia a outro, não menos importante, porém pouco analisado pela produção
historiográfica feirense: a abolição da escravidão e a incorporação da mão de obra livre-
assalariada nos centros urbanos em desenvolvimento.

Também não podemos desmerecer o fato de Feira de Santana ter sido,


durante boa parte de sua história, uma cidade com índices habitacionais voltados
majoritariamente para o campo em detrimento do urbano. Das 69.911 pessoas que
habitavam a Feira de Santana de 19071, pouco mais de 22 mil localizavam-se no
perímetro urbano. O baixo índice populacional a nível urbano não contabiliza, no
entanto, as migrações pendulares, caracterizadas pela presença daquelas pessoas que se
utilizam de um espaço da cidade diariamente a fins de trabalho ou comercialização de
produtos, muito comuns em Feira de Santana, tendo em vista tratar-se esta cidade de ser
uma região de comércio próspero e localização geográfica estratégica – entre o sertão e
o recôncavo.

Tal cenário, composto pelas supracitadas crises econômicas, pela abolição


da escravidão e da necessidade da força de trabalho livre e assalariada, bem como a
predominância de uma população urbana mesclada e heterogênea (composta de sujeitos
das áreas rurais, suburbanas, de outras regiões da Bahia ou Brasil, interessados no mais
das vezes nas benesses das práticas comerciais comuns nesta cidade, retirantes advindos
das secas, etc.) é o pano de fundo onde protagonizaram os personagens desta pesquisa.
Em sua esmagadora maioria meninos, possivelmente filhos da pobreza, sobreviventes
das secas, libertos da lei do ventre livre, órfãos, abandonados ou quem sabe até donos
de seu destino, uma vez que poderiam ter escolhido as aventuras das ruas à segurança de
um lar, como possivelmente tenha sido o caso do menor Ramiro “de cor preta, de 13 a
14 anos de edade, de pouco crescimento, que desde segunda-feira 7 do corrente não
voltou á casa” de seu padrinho (Gazeta do povo, 17/11/1892, “Menor desaparecido”).

O cotidiano destes menores se deu nas ruas, nas vielas, nos becos, nas
praças, na feira. Numa Feira ansiosa por mudanças em suas estruturas físicas e hábitos
de uma população mista, uma elite econômica e letrada feirense buscava destruir certa

1
Disponível no site do IBGE, sessão Documentos Históricos. Arquivo: “População do Brazil por
Municípios e Estados (1907 – 1972)”.

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ordem rural que remontava às origens desta urbe, na intenção de prepara-la para receber
as luzes do progresso que já haviam iluminado outras cidades do Brasil. “A nova
cidade, em considerável desenvolvimento urbano, já não podia permitir que
determinadas práticas continuassem em voga pelas suas ruas” (OLIVEIRA, 2000: 14).
Mas foi no cotidiano desta cidade que os meninos pobres e abandonados sujeitos deste
trabalho inventaram as artimanhas e táticas2 necessárias para contrariar o progresso
ansiado pelos grupos dominantes locais (imprensa, políticos, intelectuais). Neste
sentido, buscamos “analisar as práticas microbianas, singulares e plurais, que um
sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu
perecimento”. Além do mais, desejamos

seguir o pulular desses procedimentos que, muito longe de ser


controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçam
numa proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinuados nas redes
da vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis, mas estáveis a tal
ponto que constituem regulações cotidianas e criatividades sub-
reptícias [...] (CERTEAU, 2009: 162).

Uma forma de trilhar o cotidiano dos meninos pobres e/ou abandonados


existentes nas ruas da cidade de Feira de Santana entre 1890 e 1945 é através dos relatos
da imprensa local. Defensores de um projeto urbanístico e progressista, os jornais
feirenses acabaram detalhando elementos cotidianos destes personagens. Neste estudo
daremos ênfase aos momentos lúdicos, de divertimento e entretenimento vivenciados
pelos menores, ocasiões estas bastante enaltecidas pela imprensa, uma vez que a
imagem a eles atrelada remontava quase sempre à ociosidade em detrimento do trabalho
– reflexos típicos do contexto pós-abolicionista3.

O pequeno Severiano, afoito em aventurar-se na prática de pongar o trem


que saia diariamente da Estação Terminal da Estrada de Ferro Central em direção à
cidade de Cachoeira “perdeu o equilíbrio e teve como consequência o esmagamento

2
Lançamos mão dos conceitos de estratégia e tática encontrados em Certeau (2009), entendendo por
estratégia o conjunto de forças possíveis na medida em que um sujeito que detém o poder (econômico,
científico, político) se isola em um ambiente próprio que o possibilita gerenciar uma exterioridade distinta
da sua através dos discursos, das leis, das regras, de códigos, etc. Por outro lado, as táticas são cálculos
que independem de um lugar próprio e de um discurso formulado. Assentam-se nas decisões, no tempo,
extraindo elementos estranhos do forte para alçar possibilidades de ganho.
3
Dentre outros, ver MATTOS (1995) e CONRAD (1978).

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dos pés. [...] Constantemente se tem victima a lastimar, que tem pago, até com a vida, o
terrível gosto de pongar os trens [...] quando em andamento”. (O Município,
30/04/1909; “Accidente”, p.1). Muito comum entre os meninos esta modalidade de
entretenimento, visto que na “ponga” são testadas qualidades típicas do ser masculino,
como a coragem, a força e a ousadia4. O personagem desta trama, diferente de outros,
como a própria notícia sugere, escapou com vida da experiência de pongar os trens. Mas
quais teriam sido as sequelas resultantes dos pés esmagados? Desconhecemos, mas
certos estamos de que tais atitudes eram reprimidas via imprensa pelos “amantes do
progresso” de Feira de Santana, uma vez que sujeitos como Severiano eram
denominados de “menores vadios a quem os paes não dão ocupação nem educação”
(idem.).

Muito além de apenas relatar o episódio, como era de se esperar, a notícia


ainda aponta os pais destes meninos como responsáveis pela situação de abandono em
que se encontram muitos deles. Provavelmente, muitos dos nossos personagens
possuíram pai e/ou mãe ou outros responsáveis, como nos sugerem diversas publicações
no Folha do Norte. Por exemplo, em 1934, este semanal clamou pela repressão policial
às peraltices dos meninos nas ruas e praças da cidade a fim de que “não mais se
registrem taes attentados aos bens alheios, principalmente quando há responsáveis por
esses menores deseducados” (Folha do Norte, 18/08/1934: “Apedrejadores de
prédios”, p.2). Em outra publicação, chamou-se a atenção para o fato das
“desaventuradas creaturas que ora perambulando pelas cidades e povoados,
andrajosas, famintas, viciosas” assim se encontrarem “por triste orphandade ou pelo
descuido e desprezo de paes desnaturados” (Folha do Norte, 04/07/1931: “Tornemos
em criaturas uteis os menores abandonados e viciosos”. p. 2 Grifo nosso). Ou ainda,
em menor proporção, atribuiu-se à massiva presença de meninos perambulando pela
cidade o excesso de trabalho assumido pelos (as) chefes dos lares. “Aos paes

4
Numa perspectiva de gênero, as sociedades distinguem, culturalmente, a partir de um processo de
naturalização sexual, os homens das mulheres e a cada um destes atribuem identidades, frutos de
construções sociais históricas. Entendemos o gênero, portanto, enquanto um constituidor social de
identidades de homens e mulheres que impõe, no âmbito do cotidiano, divisões sexuais para atributos
socioculturais (classe e etnia) na formação dos indivíduos (DIAS, 1997). Embora não desejemos engessar
a discussão em papéis atribuídos a cada um dos gêneros, enquanto as meninas trazem a marca de ser
mulher, os meninos, por sua vez, herdam como atributos identitários, dentre outros, a força, a dominação,
a responsabilidade e independência.

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proletariados, não sobra tempo para cuidares dos filhos” (Folha do Norte, 02/04/1911;
“Salvação d’almas”, p. 1).

Fato é que, independente de possuírem pais, responsáveis ou tutores, muito


provavelmente estes meninos, pobres e/ou abandonados, escolheram as ruas como
espaços de sociabilidades. FRAGA F° (1996) apontou esta mesma questão para a
Salvador do século XIX, afirmando que a vadiagem infanto-juvenil

estava muito estreitamente relacionada à existência de centenas de


meninos e meninas que, mesmo ligados a famílias, mestres de ofício
ou senhores (no caso dos escravos), faziam das ruas o espaço de
trabalho, de divertimento, de peraltice, de jogos e brincadeiras (p.111).

Na Feira de Santana da transição do século XIX para o XX e até meados


deste não foi diferente: os mistérios das ruas, os segredos da noite e a liberdade
encontrada dentre outros meninos atraíram criaturinhas de todas em idades para a
prática de atividades variadas, como a bebedeira. “Na ultima terça-feira foi encontrado
estendido na via publica um menino de 5 ou 6 annos, em manifesto estado de
embriaguez” (Folha do Norte, 13/11/1913: “Perversidade”, p. 2). Numa cidade
ambiciosa pela civilização dos hábitos e comportamentos de sua população, notícias
como esta deveriam abalar profundamente os anseios de consolidação de qualquer
projeto progressista na Feira de Santana do período em questão. A cada nova semana os
jornais publicavam notícias do cotidiano destes meninos e, paralelamente, percebíamos
que qualquer projeto intervencionista a ser implantado na urbe assentar-se-ia em bases
pouco sólidas – uma vez que o conjunto dos hábitos e comportamentos típicos dos
meninos não dificultariam a efetivação dos projetos pensados para aquela cidade.

A fragilidade das estratégias dos “donos do poder” também pode ser


verificada a partir de outra prática cotidiana muito comum entre os capitães da feira: o
futebol. São várias as publicações no Folha do Norte reclamando da presença dos
meninos nas ruas jogando o futebol, infestando ambientes familiares com palavrões e
agressões, invasões de lares em busca das bolas perdidas, etc. Atestamos tal fenômeno a
partir da notícia abaixo:

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Chamamos a attenção da autoridade competente para a grande malta


de garotos que, em todas as ruas da cidade, durante os dias, organizam
as interessantes ‘partidas’ de foot-ball, produzindo uma algazarra
infernal, que, quasi sempre, degenera em formidáveis descomposturas,
pedradas, etc.
Além do prejuízo material que trazem taes ‘partidas’ com vidraças
quebradas e canos obstruídos, temos a lamentar os vexames por que
passam as famílias residentes nas circumvisinhanças das improvisadas
‘raias’.
De ordinário as bolas desviam-se do alvo e vão cahir nos telhados das
habitações ou nos quintaes das mesmas, que são logo invadidas, sem
autorisação alguma, pelos terríveis sportmen, que se procuram
rehaver.
Si, por acaso, o proprietário lhes reclama contra o abuso, é logo
desacatado [...] (Folha do Norte, 22/02/1919: “A garotagem e o
football”, p. 2).

A notícia nos sugere muitos indícios de análises imprescindíveis. O primeiro


deles nos faz crer que a prática do futebol acontecia nas proximidades de ambientes
domiciliares, evidentemente em ruas de pouco trânsito de pedestres, carroças ou
automóveis para que não houvesse a interrupção constante do jogo. Eram casas de
famílias, compostas por pais, mães, pessoas idosas, recém-nascidos, enfim, sujeitos que
contribuíam para a consolidação de um projeto civilizador da cidade. Segundo a notícia,
tais núcleos familiares eram afetados por prejuízos de ordem material (vidraças
quebradas e canos obstruídos) e moral, visto que os meninos invadiam, sem autorização,
os quintais das casas a fim de reaver as bolas perdidas. Nem sequer uma reclamação era
engolida pelos meninos jogadores, visto que a notícia aponta a ousadia dos mesmos em
desacatar o proprietário reclamão. RODRIGUES (2003) destaca a mesma realidade para
a Salvador do início do século XX. As reclamações advindas dos moradores das
residências afetadas pelas descomposturas dos meninos desocupados eram justificadas a
partir do binômio ordem e desordem. Segundo a autora, os moradores faziam suas
queixas “utilizando a instituição familiar, símbolo de ordem e respeitabilidade, em
oposição à desordem e o caos que o lazer destas crianças representavam” (idem, p.74).

Outro ponto a ser destacado diz respeito ao adjetivo “interessante”,


utilizado logo no primeiro parágrafo da notícia transcrita. O esporte, bem como a prática
esportiva, era tido como elemento fundamental para a consolidação da modernidade nas

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grandes cidades em desenvolvimento no país. Rio de Janeiro e Salvador, urbes espelho


para a Feira de Santana progressista, incorporaram o esporte ao cotidiano da sua
população no intuito de adentrarem a era da modernidade.

Num contexto onde essas cidades passavam pela experiência da


modernidade, tentando conjugar reformas urbanas, mudanças de
comportamento, construção de novos hábitos e gestar uma nova
relação do homem com a cidade, com o espaço, com o tempo, com o
outro e consigo próprio, o esporte surgiu como uma das novas formas
de vivência, como uma prática social representativa da modernidade.
(ROCHA, JR., 2011, p. 8).

Praticar um esporte significava exercitar o corpo e a mente, trabalhá-los em


prol do desenvolvimento deste novo ser humano que deveria estar preparado para levar
o país pelo caminho da ordem e do progresso. O corpo cansado, pouco atlético e
preguiçoso do homem brasileiro de outrora deveria dar espaço, naquele período para a
mens sana in corpore sano (mente sã em um corpo são). Somente o sujeito
corporalmente e mentalmente adaptado a esta nova cidade em desenvolvimento serviria
aos seus novos desígnios. Não havia mais lugar para as raças degeneradas: a população
feirense necessitava adentrar urgentemente neste novo padrão de comportamento, tendo
por prioridade os pequeninos. Por tudo isso, “às crianças das famílias abastadas, o
poder médico recomendava o preenchimento das horas vagas com leituras
selecionadas e ginástica” (RAGO, 1987, p. 123. Grifo nosso). Estas precisariam de um
espaço apropriado onde poderiam “fazer os exercícios necessários para o preparo da
raça” (Folha do Norte, 27/04/1940: “Decreto-lei n° 3, p. 3). Para se ter ideia da
fragilidade do projeto intervencionista em prol da infância pobre e/ou abandonada em
voga na Feira de Santana de início do século XX, a primeira referência que se tem do
projeto de construção de um campo esportivo para a mocidade feirense data de 1940:
“considerando que esta cidade, já pelo seu crescente desenvolvimento, já pela sua
situação geográfica de cidade tronco, não pode e não deve mais continuar sem uma
praça de esportes” (idem). Por isso, enquanto o poder público de Feira de Santana
mantinha suas políticas no nível do discurso, as crianças pobres e/ou abandonadas da
cidade continuavam usufruindo do espaço das ruas para a prática dos esportes preferidos

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da meninada.

O que era para ser visto enquanto um desporto culto (o futebol era bem
representado pelos clubes de regatas e associações desportivas, principalmente na Bahia
e no Rio de Janeiro), passa a ser tido como elemento desagregador: o futebol praticado
pelas “maltas de garotos” nas ruas da urbe feirense em nada contribuía para o
desenvolvimento da cidade. Muito pelo contrário, atrasavam seu rumo à civilidade
graças às descomposturas dos meninos.

Vale acrescentar outro dado a este debate. Muito possivelmente estes grupos
de garotos que se utilizavam do espaço urbano para vivenciar seu cotidiano através das
brincadeiras eram compostos não só por meninos pobres, abandonados, órfãos,
mendigos, etc., mas também pelo que vamos chamar aqui de “meninos de família”. Em
notícia publicada no ano de 1926, intitulada “Repressão a vadiagem”, colhemos
indícios deste fenômeno:

[...] menores viciados entregues ao léo da sorte, em farrapos e mal


nutridos, pervagam a zona citadina, tendo porém seu ‘quartel’ ou
melhor, acampamento, no ponto em que a travessa chamada Mocó
entronca na Rua Direita [...] E o que é peor, não raro entre elles veem-
se meninos de família, numa promiscuidade, que ou illudiram a
vigilância paterna ou se aproveitaram da excessiva liberdade para
desertar o lar e fazer o aprendizado da vaia, do tiro ao alvo com
badogue, da gyria torpe e quejandos [...] (Folha do Norte, 27/02/1926,
p.1).

Fica nítida para nós leitores a decepção do redator em expor a trágica


situação na qual se encontra a infância pobre e/ou abandonada de Feira de Santana num
contexto nacional de necessário socorro a este segmento social. Como se ainda fosse
possível piorar tal situação, entre estes “capitães da feira” encontravam-se muitos
garotos em situação socioeconômica bastante privilegiada, pelo simples desejo, talvez,
da aventura, da prática esportiva, da sociabilização sob o fulgor da liberdade. Na Feira
de Santana da conjuntura aqui apresentada, podemos supor a existência de um cotidiano
marcado pela interpenetração de classes: mesclavam-se no espaço da cidade, sejam na
prática do futebol, nos banhos de lagoa ou no tiro ao alvo, os meninos pobres,
abandonados e/ou órfãos e os meninos socioeconomicamente abastados.

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Dentre as brincadeiras que marcaram o cotidiano dos nossos capitães da


feira, sem margem para dúvidas, o badogue e atirar pedras com as mãos estavam entre
as atividades mais recorrentes no conjunto das táticas presentes entre os meninos. Para
quem não conheceu o badogue, também chamado de estilingue ou atiradeira, é uma
espécie de arma feita com um pedaço de madeira talhada no formato de Y, em cujas
extremidades amarram-se uma tira de elástico ou borracha resistente. Geralmente são
utilizadas pedras para realizar o lançamento ou a badogada, ou ainda a estilingada
(dependendo de como se chama o artefato). Apara-se a pedra no meio da tira borracha,
estica-se a pedra para trás, mira-se o alvo olhando entre os extremos do Y e atira-se:
quantos passarinhos, janelas, árvores, vidraças, postes de iluminação e até pessoas não
foram alvejadas por um badogueiro de plantão na Feira de Santana da conjuntura aqui
apresentada!

A presença do badogue em mãos de garotos nas ruas da cidade de antemão


já lhes condenavam à alcunha de ociosos e mal educados. As ruas e praças mais
movimentadas da cidade, como a Praça Bernardino Bahia, Fróes da Motta, do Comércio
e da Matriz, ou as ruas da Aurora, do Meio, de Cima, Araújo Pinho, Conselheiro Franco
e da Direita, eram cenários constantes de protagonistas ansiosos pela diversão. Numa
cidade que se via civilizada e culta, as estratégias dos grupos dominantes pareciam
inexistentes diante a amplitude das táticas dos capitães da feira, o que contribuiu
decisivamente para a inserção da Feira na contramão do progresso. Podemos
exemplificar o que significava um badogue nas mãos de um sujeito a partir da notícia a
seguir:

Não há muito salientamos a necessidade da desapparição, por


completo, do badogue, espécie de funda (sic) de arremesso feita com
borracha, mercê da qual menores ociosos, que deveriam estar
povoando escolas e officinas ou internados nalgum patronato agrícola,
vizando abater passarinhos, partiam vidros de janellas, quebravam
telhas e attentavam contra os transeuntes.
A elles (os badogues) deve-se o despedaçamento de globos da
illuminação eléctrica da cidade.
Retraindo-se por um curto periodo de tempo, ei-los que volvem á
faina [...] tal como tivemos ensejo de testemunhar, há dias, nas ruas da
Aurora e do Meio, e na praça Fróes da Motta (Folha do Norte,
10/06/1926, “badogues voltam á baila”, p. 4).

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A notícia sugere que, por certo período, o badogue desapareceu das ruas de
Feira de Santana. Desconhecemos as medidas que poderiam ter efetivado tal afirmação:
teriam as autoridades policiais retirado este artefato das mãos dos meninos?! Ou a
fiscalização, nas artérias de maior circulação da cidade, passou a ser mais recorrentes,
inibindo assim a ação dos garotos? Desconhecemos e desacreditamos em qualquer uma
destas possibilidades. Possivelmente o conjunto das estratégias dos grupos dominantes
ainda não estava tão voltado assim para os meninos nas ruas enquanto um incômodo
desenfreado para os interesses civilizatórios e progressistas da Feira de Santana. Afinal
de contas, SIMÕES (2007) já havia sinalizado para as prioridades dos detentores do
poder no que tange o enquadramento da cidade no rol das urbes mais desenvolvidas do
país.

As modificações espaciais se constituíram na primeira etapa rumo à


obtenção do status de cidade civilizada, moderna e progressista, o
segundo passo obviamente seria a intervenção nos hábitos, costumes e
modos de comportamento da população, no qual este processo
civilizador/“coercitivo” procurava combater as condutas e hábitos
tidos como arcaicos e, portanto, não legítimos (idem, p. 58).

Logo, afirmar que os badogues permaneceram inexistentes no cotidiano da


cidade é recair neste conjunto de prioridades do contexto de urbanização, civilização e
desenvolvimento do qual fez Feira de Santana. Não citá-los envolve, portanto, um
desinteresse, a priori, pelos costumes e hábitos da população. No período que
compreende a notícia era evidente que os representantes do poder já respiravam os ares
progressistas no que tangem os comportamentos e hábitos dos citadinos, criticando,
assim, as “descomposturas” dos meninos. Feira já possuía iluminação elétrica, um passo
certo rumo à ansiada civilidade, mas, pelo que denota a notícia supracitada, tal
progresso se via constantemente ameaçado através da destruição destes elementos.

Além das lâmpadas e dos prédios compostos de vidraças, as praças também


simbolizavam um aspecto de civilidade da cidade. Eram compostas por jardins,
canteiros centrais, torneiras irrigadoras, árvores frondosas, pequenos postes de
iluminação, banquinhos em madeira, coretos, enfim, um deleite para os casais de
namorados e famílias de moldes burgueses que ali buscavam os ares frescos da “cidade

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de sã natureza” (SILVA, 2000). Para estes espaços também se dirigiam os nossos


meninos, em busca de aventuras e experiências únicas, tal como aconteceu na Praça
Santana, em 1933:

[...] menores desocupados, comprazem-se em damnificar as torneiras


existentes na praça Sant’Anna desta cidade para irrigação das árvores
dali, deixando-as depois abertas e jorrando água.
São duas, já, as torneiras batidas a pedra pelos pequenos iconoclastas,
mas, em continuando a faltar fiscalização efficiente naquele
logradouro publico, todas as demais virão a soffer iguaes daanos
(Folha do Norte, 30/12/1933: “Menores ociosos damnificam as
torneiras da praça Sant’Anna”, p. 4. Grifo nosso).

É perceptível que a gama de hábitos e comportamentos de grupos de


meninos pobres e/ou abandonados (e por que não incluir aqui também meninos
abastados?) gerou um conflito na Feira de Santana em vias de progresso. Muito embora
os grupos dominantes da cidade desejassem criar uma nova atmosfera citadina,
imprimindo novas configurações territoriais, estruturais e comportamentais, vimos aqui
que o conjunto de hábitos pertinentes ao ser “criança” no período recortado por este
estudo nos leva a afirmar que o projeto civilizador em voga na Feira de Santana do
século XX esteve ameaçado a todo instante. Pongas nos trens, banhos de lagoa,
pedradas, badogadas, futebol nas ruas... enfim: vivenciar plenamente a infância era
muito mais forte que sujeitar-se a normas estrategicamente implantadas pelos
administradores locais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. 2a ed Rio

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n° 170, Salvador, 1997.

FRAGA FILHO. W. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX.

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MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silencio : os significados da liberdade no

sudeste escravista, Brasil século XIX. 2. ed Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

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OLIVEIRA, C. F. R. M. De empório a Princesa do Sertão: Utopias

civilizadoras em Feira de Santana (1893-1937). (Dissertação de mestrado),

UFBA, Salvador. 2000.

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Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

ROCHA JR, Coriolano P. da. Esporte e modernidade no Rio de Janeiro e Salvador:

um estudo comparado. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais.

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RODRIGUES, A. R. A infância esquecida: Salvador 1900-1940. Salvador: EDUFBA,

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SILVA, A. J. M. Natureza sã, civilidade e comércio em Feira de Santana:

elementos para o estudo da construção da identidade social no interior da

Bahia (1833 – 1937). 2000. Dissertação (Mestrado em História) – UFBA,

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SIMÕES, Kleber José Fonseca. Os homens da Princesa do Sertão:

modernidade e identidade masculina em Feira de Santana (1918-1938).

Dissertação de Mestrado, UFBA, 2007.

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CONJUNTURA POLÍTICA E ESTRUTURAÇÃO ACADÊMICA: A


PARTICIPAÇÃO JUVENIL NOS ANOS 1960 E 1970.

Márcio Santos de Santana – História (UEL)

Três movimentos distintos estruturam a reflexão. O primeiro movimento será


uma breve reflexão sobre a categoria juventude. O segundo movimento será uma
reflexão sobre conjuntura política nacional enfatizando o cenário norte paranaense no
qual foi criada a Universidade Estadual de Londrina. O terceiro movimento analisa a
participação política da juventude, executada por meio de variados expedientes,
sobretudo em razão da ação do aparelho de repressão montado pela Ditadura Militar,
cuja ação no Paraná se deu de forma intensa e sistemática por conta das ramificações
dos órgãos de repressão.
A centralidade do conceito juventude nesta pesquisa é inegável. Tal
posicionamento demanda uma reflexão mais acurada sobre o mesmo, visando, dentre
outros objetivos, não permitir evasivas no seu uso. Nesse sentido, Marcelo Ridenti
lembrou, com muita propriedade, que o termo tem se prestado a usos um tanto incertos.
Ao ser usado com um sentido amplo, como vem ocorrendo, o termo perde o seu
potencial definidor. O referido sociólogo destaca que o termo juventude “envolve vários
grupos e classes sociais entre as faixas etárias da adolescência e os primeiros anos da
maturidade, mas sem limites precisos de idade” (RIDENTI, 2000: 266).
As ciências humanas reconhecem alguns termos como designativos do período
de transição entre a infância e a idade adulta. No âmbito das ciências médicas é comum
o uso do termo puberdade, que se refere às transformações no corpo do indivíduo. O
termo adolescência é associado com frequência ao âmbito da psicologia, psicanálise e
pedagogia tendo como referencial as mudanças na personalidade, mente ou

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comportamento do indivíduo. A sociologia, por sua vez, faz uso do termo juventude
para designar as funções sociais assumidas pelos indivíduos na sociedade.
Os termos adolescência e juventude, apesar da aparente similaridade, são
dotados de sentido bem específico, perceptíveis através de análise que considere
também o uso cotidiano dos termos. Numa abordagem desse tipo, os termos em questão
denominam fases subsequentes do desenvolvimento individual, estando “a adolescência
ainda próxima da infância, a juventude mais próxima da maturidade” (GROPPO, 2000:
13-14). O uso do termo juventude não é isento de críticas. Centremo-nos em dois
grupos específicos delas. No entendimento de alguns, o conceito é demasiadamente
generalista, carecendo de melhor definição. Outro tipo de crítica diz respeito ao caráter
ideológico do conceito. Segundo os partidários desta visão o conceito ocultaria
realidades construídas por estrutura de classe ou estratificações sociais. É ponto
consensual que juventude é mais do que uma faixa etária, pois se assim não fosse, seria
impossível a utilização do termo em casos como “Juventude Comunista”, “juventude do
samba” e outros sentidos que a sociedade vai atribuindo na vivência cotidiana. Temos,
então, que o critério etário é insuficiente para explicar o uso da categoria em questão,
embora tal critério esteja sempre presente. Uma segunda possibilidade seria a de classe
social. Essa, porém, é logo descartável, pois seria impensável uma classe social formada
por indivíduos de uma faixa etária semelhante. Apesar de todos os esforços
empreendidos em diversos setores das Ciências Humanas, as definições de juventude
giram em torno de dois critérios principais, de difícil equalização, o critério etário e o
critério sociocultural (GROPPO, 2000).
À luz das considerações traçadas e das contribuições dos autores anteriormente
mencionados, a análise terá como marco inicial o projeto de universidade proposto pela
Reforma Universitária de 1968 no Brasil. Esse projeto pode ser definido como
tecnocrático e direcionado aos interesses do capital. Podemos indicar, acompanhando a
discussão de Bomeny (1994), alguns antecedentes da reforma de 1968. A criação da
Universidade de Brasília (UnB) em 1961, bem como a elaboração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) são considerados marcos importantes desse
movimento.
O ano de 1968, tão carregado de simbologia no que concerne à participação
política juvenil, sobretudo em razão dos eventos conhecidos como Maio de 68, tem

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importância especial para se pensar a criação das universidades paranaenses, pois, a


realização da reforma universitária produziria acentuadas transformações na formação
profissional no Brasil, haja vista a reestruturação dos três níveis de ensino (o
fundamental, o médio e o superior).

A reforma educacional efetivada pelos governos militares no Brasil foi realizada


sob a égide de duas leis: a 5.540/68, responsável pela reformulação do ensino superior,
e a 5.692/71, que reformulava o ensino de 1º e 2º graus. O processo de reforma na
educação foi complexo e multifacetado, não podendo ser reduzido à promulgação
dessas leis, que devem ser consideradas “não como sinônimos da reforma educacional,
mas como instrumentos componentes de todo um processo de reordenação do sistema
educacional do país” (MARTINS, 2002: 51).
A nova legislação educacional, composta por 88 artigos, foi sancionada pelo
poder executivo em 11 de agosto de 1971, sem que recebesse qualquer veto presidente
Emílio G. Médici, mesmo porque os membros do GT haviam sido escolhidos pela
presidência, revelando a convergência de objetivos e de pensamento entre as partes
interessadas. Outros atos jurídicos complementaram reforma:

O Parecer 853/71 fixa núcleo comum para os currículos do ensino de


1º e 2º graus, e a doutrina do currículo na lei 5.692; Parecer 45/72 do
CFE fixa os mínimos a serem exigidos em cada habilitação
profissional ou o conjunto de habilitações afins no ensino de 2º grau; o
Parecer 349/72 trata da habilitação específica, de 2º grau para o
exercício do magistério, em 1º grau; Parecer 75/76 CE. o ensino de 2º
grau na lei 5692/71 (VALÉRIO, 2006: 5636-5637).

O processo de criação das universidades paranaenses possui notável sintonia


com as medidas de reordenação educacionais mencionadas anteriormente. A
historiografia do tema embasa tal leitura. O magistrado Theobaldo Cioci Navolar,
primeiro diretor da FEDL - Faculdade Estadual de Direito de Londrina (1956), e
considerado o responsável pela consolidação do prestígio institucional, explica a criação
da UEL como resultado de um longo processo de negociações e pressões sociais. Nesse
sentido, tratava-se de um desenrolar natural dos fatos a

reunião de todas estas instituições em uma universidade, anseio que se


foi firmando, primeiro, timidamente, e, depois, cada vez mais incisivo,
à medida que as elites intelectuais se conscientizavam de que esta

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cidade e a região de que era centro já contavam, de sobejo, com as


condições que se exigiam para a instalação de um estabelecimento
daquele porte (SILVA, 1996: 31).

As articulações ocorriam simultaneamente para a criação de universidades em


Londrina, Maringá e Ponta Grossa. O governo do Estado captou os interesses da
sociedade e encaminhou as providências necessárias. Uma comissão de seis membros
foi criada, por meio do Decreto nº 14.923, de 12 de abril de 1969, para executar estudos
sobre a possibilidade de serem criadas as universidades em questão. Com parecer
favorável expedido por essa primeira comissão, uma portaria (nº 3.429/69) expedida
pelo Secretário de Estado dos Negócios de Educação e Cultura designou outra comissão
para prosseguir os estudos, cujos trabalhos se estenderam até outubro de 1969.
As providências de ordem administrativa e burocrática tiveram prosseguimento
até a criação da Universidade Estadual de Londrina (UEL) pelo Decreto nº 18.110, de
28 de janeiro de 1970 e reconhecida no ano seguinte, exatamente em 07 de outubro, por
meio do Decreto federal nº 69.324. A reunião de várias faculdades isoladas,
procedimento recorrente na história brasileira, determinou seu nascimento, sendo a
primeira instituição de ensino superior a ser criada sob a égide da Lei 5.540, de 28 de
novembro de 1968, responsável pela reforma universitária (LIMA, 1991: 18).
O governador Paulo Pimentel escolheu Ascêncio Garcia Lopes (29/05/1970 a
29/05/1974) como primeiro reitor pelo expediente da lista sêxtupla, mecanismo pelo
qual o chefe do executivo escolhia aquele que considerasse o mais adequado para o
cargo. Segundo CAOBIANCO (2007:48), “a convivência do Reitor com os estudantes
foi amigável”, mas isso não significa que a dinâmica do regime político de exceção não
tenha deixado marcas, haja vista ter “o Conselho de Administração criou o Diretório
Central dos Estudantes – DCE. A mesma Resolução que criou o Diretório Central
estabelece as normas dos Diretórios Setoriais”. O regimento do DCE foi elaborado por
uma comissão nomeada pelo Reitor, procedimento que demonstrava o caráter
autoritário daquele momento. Nesse sentido, segundo análise corrente,

A criação do DCE e dos Diretórios Setoriais foi uma atitude


meramente burocrática por parte do Reitor, pois seria uma forma de
controlar as atitudes dos alunos. A questão central não era a
democracia, mas regras a serem seguidas de acordo com os ideais da

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Reitoria e consequentemente do governo ditatorial, obedecendo a Lei


5.540 (23/11/1968) (CAOBIANCO, 2007: 48).

A racionalização administrativa ocultava outros interesses do poder público, na


leitura de Enezila de Lima, historiadora e docente da UEL. Segundo a estudiosa, um
determinado grupo se regozijava da racionalização que reduziria os custos
administrativos, outros detinham sua percepção na formação de uma vida social intensa
passive de estruturação no novo campus, mas, o preço disso era o possível isolamento,
uma vez que

A prática dessa unificação significou o esvaziamento da convivência


acadêmica que se acreditava inexistente, mas que ao longo dos anos
fora construída nas sedes dos Diretórios Acadêmicos e, de modo
especial, na “Cantina da Dona Lia” (LIMA, 1991: 18).

Escrevendo no início da década de 1990 a intelectual não economiza nas críticas,


usufruindo do novo contexto político democrático que então se organizava. Os
princípios da política educacional do governo militar, do qual a reforma universitária de
1968 é parte relevante, combinaram dinamização administrativa, racionalização
econômica e esvaziamento da vida social e política, com o fito de desmantelar possíveis
focos de oposição. Nesse sentido, a síntese de Enezila, combinando vivência pessoal e
reflexão intelectual, torna-se incontestável, merecendo uma apreciação nas suas
minúcias:

A razão desse refluxo acadêmico pode ser encontrada na distância que


separa o campus da cidade, mas especialmente na organização
espacial da UEL que conduz ao isolamento dentro das diferentes
unidades, dificultando a convivência e impedindo a congregação. Não
existe no campus um restaurante universitário ou um anfiteatro que
comporte, de forma razoável, a realização de assembleia docentes, por
exemplo.
Nos Centros de Estudos se reproduz o mesmo quadro – ausência de
espaço para reuniões, palestras, cursos. O que existe, de concreto, são
salas de aula, laboratórios, espaços administrativos, salas de estudos
para os docentes e a biblioteca (LIMA, 1991: 18).

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A organização do campus universitário, na leitura de Enezila, teve como


objetivo essencial evitar que a universidade se convertesse em espaço de sedição. As
características estruturais da UEL descritas pela estudiosa vão nesse sentido. Mas sua
reflexão nos revela a resistência a esse projeto.

Não é de se estranhar, portanto, que a biblioteca tenha sido


transformada em ponto de encontro dos estudantes dos cursos diurnos
e que os amplos corredores do CLCH, por exemplo, cumpram o papel
de aglutinador das pessoas na “esquininha”, com grande prejuízo para
o debate acadêmico saudável (LIMA, 1991: 18).

O esvaziamento do espaço público foi um ponto central das ações do governo


Militar. Nesse sentido, o investimento na constituição e consolidação de um sistema de
informações teve início desde o golpe de Estado em 1964, momento no qual foi criado o
Serviço Nacional de Informações (SNI). Três anos depois o sistema foi expandido com
a criação de Divisões de Segurança e Informações (DSI), cujo funcionamento se daria
nos ministérios civis. Em 1970 dois eventos revelam nova expansão, pois o Plano
Nacional de Informações foi aprovado, assim como se deu a criação do Sistema
Nacional de Informações. Desse movimento partiu as ações que geraram as Assessorias
de Segurança e Informações (ASI) ou Assessorias Especiais de Segurança e
Informações (AESI), “subdivisões das DSI, a serem estabelecidas em instituições
subordinadas ao controle dos ministérios, normalmente empresas públicas, autarquias
ou fundações” (MOTTA, 2008: 44). Na Universidade Estadual de Londrina funcionou
uma AESI entre 1975 e 1982, cuja ação cerceou a liberdade da comunidade acadêmica
(SILVA, 1991: 217-219).

* * *

Os jovens universitários se mobilizaram de variadas formas, malgrado a intensa


repressão executada pelos órgãos de repressão. A resistência seria constituída, dentre
outros, por um grupo de estudantes que batizaram sua agremiação pelo nome “Levanta
sacode a poeira e dá a volta por cima”, frente democrática predominantemente de
esquerda que se consolidou na oposição, sobretudo em razão de sua militância na

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imprensa alternativa. Essas e outras iniciativas serão objeto central da reflexão


subsequente.
Os estudantes que fundaram o grupo ingressaram na UEL na primeira leva de
alunos que inauguraram o novo campus. Alguns deles eram originários do movimento
estudantil secundarista e deram continuidade à militância no nível superior. Ainda em
1972 concorreram às eleições para o DCE, realizadas anualmente, pois, segundo a
legislação em vigor, o mandato tinha a duração de um ano, sendo que todos os
estudantes eram obrigados a votar ou seriam punidos com a suspensão por sete dias
letivos (CAOBIANCO, 2007: 48).
A chapa foi vencedora das eleições, sendo o estudante Márcio Almeida eleito o
presidente do DCE. A fundação do jornal Terra Roxa (órgão oficial do DCE) foi a
grande marca dessa gestão. A imprensa alternativa foi o grande canal de comunicação e
de mobilização política dos estudantes, de tal modo que o Diretório estruturou cursos de
jornalismo nos finais de semana, com vistas a ampliar o número de colaboradores,
sobretudo em razão do tipo de jornalismo realizado.
Terra Roxa era produzido coletivamente pelos estudantes, publicado em formato
tabloide, sendo a impressão do mesmo realizado nas oficinas do Jornal de Londrina,
veículo de comunicação no qual o movimento estudantil mantinha a publicação de uma
coluna chamada Perspectiva, “onde se debatiam os problemas do ensino, da educação e
dos estudantes” (DEBÉRTOLIS, 1991: 21).
O grupo permaneceu na militância por um bom tempo, mesmo não tendo
conseguido a reeleição, pois a chapa liderada por Nilo Dequech foi vencedora nas
eleições de 1973. Assim sendo, a nova liderança do DCE, reputada conservadora
segundo DEBÉRTOLIS (1991: 22), assumiu o controle do jornal Terra Roxa, bem
como forçou o grupo anterior a se reorganizar e repensar o futuro no âmbito da
militância estudantil. Desse esforço nasce o jornal Levanta Sacode a Poeira Dá a Volta
por cima, cujas primeiras reuniões foram realizadas na cantina do Centro de Ciências
Humanas, sediado no colégio Hugo Simas.
O público passou a identificar o jornal apenas pelo nome Poeira, haja vista essa
palavra ser grafada em fonte bem maior que as demais, orientando tal recepção. Seus
elaboradores consideram que o diferencial do jornal estava na linguagem, na
composição e na diagramação. Nesse sentido, de acordo com o depoimento de Roldão

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de Arruda, um dos membros do grupo, “enfatizava-se a busca de uma linguagem clara,


acessível, leve, de fácil compreensão”, seguindo os passos de O Pasquim
(DEBÉRTOLIS, 1991: 23).
A elaboração do jornal confundia-se com as ações políticas, especialmente as
reuniões de pauta, como relembra Tadeu Felismino, outro participante do grupo, pois os
debates realizados tinham como alvo os grandes problemas que agitavam a vida
universitária, mas também a do país como um todo. A distribuição do Poeira era o que
mais exigia do grupo em matéria de organização, pois, como ressalta Felismino,
retiravam o jornal impresso no parque gráfico “às cinco horas da manhã com o jornal
dentro da Kombi e saía de sala em sala distribuindo o jornal. Era aquela loucura, você
via o corredor lotado d estudante e professor lendo, gerava polêmica, dava comentário”
(DEBÉRTOLIS, 1991: 23).
O primeiro número do jornal Poeira circulou em março de 1974, publicado com
o apoio dos diretórios setoriais do Centro de Ciências Humanas, do Centro de
Educação, ambos da UEL, bem como do Centro Universitário de Londrina
(CESULON), instituição superior da cidade, contou com uma tiragem de 5000
exemplares e 24 páginas. Dois temas mobilizaram o ímpeto crítico dos estudantes. De
um lado, bradaram contra o veto do prefeito ao projeto de passe universitário para o
transporte coletivo, pauta histórica do movimento estudantil; de outro, apresentam
ferrenha oposição à política educacional de Ney Braga, então ministro da Educação e
Cultura (MEC) e ex-governador do Paraná, que esteve à frente do ministério entre
15/03/1974 e 30/05/1978.
O movimento estudantil da UEL, sob a liderança do grupo Poeira, enfrentou
com relativo êxito as principais questões que marcaram os anos 1970:
 Denunciou em seu segundo número, a ação da reitoria da universidade para
criação do Código Disciplinar, com base no Decreto 477, cuja discussão teria
sido abandonada pelo Conselho Universitário;
 Realizou eleição paralela para reitor em protesto contra a indicação de Oscar
Alves;
 Promoveu discussões sobre a federalização da universidade e sobre o ensino
gratuito, inclusive por meio de negociação direta com o general Ernesto Geisel
(1974-1979), realizada em Curitiba, no segundo semestre de 1974;

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 Liderou uma campanha contra o exame obrigatório, realizado pelo estudante


quando obtivesse nota inferior a sete nas avaliações. O exame foi abolido após a
realização de um abaixo assinado com aproximadamente três mil assinaturas
(CAOBIANCO, 2007: 51-52).

O grupo Poeira venceu as eleições em 1974, conquistando novo mandato à


frente do DCE. Entretanto, a posse foi um processo traumático em razão das pressões
recebidas dos órgãos de repressão. A cerimônia fora prevista para ocorrer no Teatro
Filadélfia, mas teve de ser transferida para o Canadá Country Club, em razão de uma
suposta ameaça de bomba realizada por meio de telefonema anônimo para a Polícia
Federal (CAOBIANCO, 2007). A repressão às ações do grupo aumentou
progressivamente, uma vez que

Os anunciantes do Jornal Poeira começaram a ser visitados por


policiais militares e homens do SNI. Era um momento difícil da vida
política do país: a Universidade estava sob a ameaça do Decreto Lei
477; os estudantes eram presos ou desapareciam; as verbas para
pesquisa eram controladas pelo governo e os professores eram
demitidos. No caso dos estudantes da UEL, existiu a retenção de
verbas por vários anos; a Universidade não repassava o dinheiro que
os estudantes eram obrigados a pagar às entidades estudantis no ato da
matrícula (CAOBIANCO, 2007: 52).

O ano de 1975 foi marcado pela escalada da repressão, sobretudo nos estados de
São Paulo, Paraná e Santa Catarina, tendo por objetivo oficial desmantelar o Partido
Comunista e por resultado concreto sufocar o mínimo de liberdade de expressão que
vigorava. No plano interno, a UEL era um excelente símbolo da autonomia de Londrina
frente a política estadual e federal. Nesse sentido, segundo Silva (1996: 157), “a
Universidade apresentava-se como um território propício para servir de cabeça de ponte
para a mudança da situação”. Com o fito de realizar tal virada foi indicado Oscar Alves
(10/06/1974 a 10/06/1978) para a Reitoria (SILVA, 1996).
Entre 1976 e 1978 a repressão continuou intensa. A AESI permaneceu vigilante
e dedicada ao seu trabalho de desestabilizar a atuação do movimento estudantil. Dois
fatores explicam a desmobilização do grupo Poeira. De um lado, o grupo se dispersa em
razão da renovação em seus quadros. Conforme os veteranos concluem seus cursos,
buscam uma inserção na vida profissional, conduzindo-os a um natural afastamento da

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militância no movimento estudantil. De outro lado, a conjuntura política sofreu


importante transformação na medida em que o país se encaminhava para a reabertura
lenta e gradual planejada pelos militares. Conforme a reabertura ganhava força no
cenário nacional, com debates acalorados, passeatas e protestos tomando as ruas,
partidos políticos se formando, a repressão aos estudantes na UEL aumentava. Como
recorda Célia Regina, membro do grupo, “no número 23 achamos várias folhas do
jornal [Poeira] que tinham sido usados como assento no pátio do CCH. Era porque algo
estava errado. Começávamos a nos repetir, estávamos com dificuldades”
(DEBÉRTOLIS, 1991: 30-31). A arena de disputa política agora era outra. Os partidos
políticos conquistavam seu espaço com a reabertura.
A secundarização social englobava tanto o fator sexo quanto o fator etário,
envolvendo as crianças, os adolescentes e os jovens. As formas como se processava a
dependência das novas gerações com relação à vida adulta é um aspecto fartamente
demonstrado pela historiografia. A historiografia produziu importantes registros de
exemplos de ruptura com esse sistema excludente de secundarização social, haja vista
ser o mesmo um modelo ideológico hegemônico nas camadas dominantes da sociedade,
mas sem efeito nas camadas populares. Esses silêncios têm sido alvo de historiadores
que trabalham com a história das crianças ou dos jovens (DEL PRIORE, 1996; LEVI &
SCHMITT, 1996). A inserção dos jovens ou da juventude como objeto de estudo
sistemático da história ocorreu em tempos relativamente recentes. A chamada Nova
História foi a responsável pela introdução deste novo domínio no âmbito da disciplina
ao se concentrar nos “novos objetos”, propondo ainda “novos problemas” ou “novas
abordagens” para problemas tradicionais.
Uma marcante transformação cultural, imprescindível para o aparecimento de
uma história dos jovens e/ou da juventude, reside na aceleração do processo de
individualização no Ocidente, bem como as complexas e variadas repercussões disso
nas ciências humanas. Novos atores e papéis sociais surgem, assim como preferências,
sensibilidades, modelos éticos se transformam; novas práticas e representações culturais
vêm à tona, acompanhadas por situações, problemas e fenômenos econômicos que
podem aparecer em razão dessas novas realidades. A análise da vida em sociedade em
diversas perspectivas, com temporalidades e recortes cronológicos distintos, além da
variedade de temas e de problemas, é o efeito mais visível para a história.

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REFERÊNCIAS

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Soc., São Paulo, v. 9, n. 26, p. 51-59, Out. 1994.
CAOBIANCO, Renata Maria. Movimento estudantil na UEL – 1971/1984. Londrina:
EDUEL, 2007.
DEBÉRTOLIS, Karen Silva. Levanta sacode a poeira e dá a volta por cima.
Londrina: UEL, 1991.
DEL PRIORE, Mary (org.). História da criança no Brasil. São Paulo: Contexto, 1996.
GROPPO, Luís Antonio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e História das
Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000.
LEVI, Giovanni & SCHMITT, Jean-Claude (Orgs.). História dos jovens. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996, 2 volumes.
LIMA, Enezila de. O ensino superior em Londrina. Boletim informativo do Centro de
Letras e Ciências Humanas, Londrina, v. Especial, p. 4-22, 1991.
MARTINS, Maria do Carmo. A história prescrita e disciplinada nos currículos
escolares: quem legitima esses saberes? Bragança Paulista: EDUSF, 2002.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Incomoda memória. Os arquivos das ASI universitárias.
Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, n. 2, p. 43-66, jul./dez. 2008.
RIDENTI, Marcelo. Juventude. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos;
MEDEIROS, Sabrina Evangelista e VIANNA, Alexander Martins. Dicionário Crítico
do Pensamento da Direita: Ideias, Instituições e Personagens. Rio de Janeiro:
Tempo/FAPERJ/Mauad, 2000.
SILVA, Joaquim Carvalho da. Peroba-Rosa: memória UEL 25 anos. Londrina: Ed. da
UEL, 1996.
VALÉRIO, Telma Faltz. O Ensino de 2º grau e a lei 5.692/71: considerações sobre o
processo de implementação da Reforma no Estado do Paraná. In: VI CONGRESSO
LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2006, Uberlândia, Minas
Gerais. Anais... Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2006. p. 5632-5643.
Disponível em: http://www.faced.ufu.br/colubhe06/anais/arquivos/511TelmaFaltz
ATUAL.pdf. Acesso em: 31/03/2012.

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INSTRUÇÃO E TRABALHO:
A EXPERIÊNCIA DOS INGÊNUOS NO PARNANÁ
(1871-1888).

Noemi Santos da Silva – mestranda em História Social (UFPR)


Orientação: Profª Dr.ª Joseli Maria Nunes Mendonça

No dia 28 de Setembro de 1871 o Congresso brasileiro aprovava uma das mais


importantes medidas de cunho abolicionista do país. Tratava-se da Lei nº 2040, mais
conhecida como Lei do Ventre Livre, a qual sancionava serem livres todas as crianças
nascidas do ventre de mulheres escravas a partir de então.
Muito embora o dispositivo tenha representado um importante passo rumo à
emancipação dos cativos do Brasil, a conjuntura de sua aprovação revela a intensidade com a
qual as decisões referentes às questões de mão de obra estiveram atreladas aos interesses dos
grandes proprietários, num momento de evidente crise das relações escravistas no império 1.
Com efeito, a solução de uma Abolição gradualmente encaminhada visava proteger os
prejuízos possivelmente ocasionados por uma Abolição abrupta, qual seja, desagradáveis
modificações na ordem social derivada da implantação de indivíduos supostamente
despreparados para a vida em liberdade na sociedade e ainda um alarmante déficit de braços
para o trabalho intensivo nas lavouras 2.
A Lei 28 de Setembro abria o devido espaço de preparo para a iminente e definitiva
Abolição da escravatura que estava por vir. Contudo, a experiência de liberdade visada aos
filhos de mulher escrava (ingênuos) tal como propunha a medida legal revela a infinidade de

1
Sobre o contexto de aprovação da Lei do Ventre Livre: ALANIZ, Anna Gicelle García. Ingênuos e Libertos:
estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição. 1871-1895. Campinas: Área de Publicações
CMU/UNICAMP, 1997.
2
MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil. 2ª edição. Campinas: Ed. Unicamp, 2008, p. 48.

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restrições postas à liberdade ofertada aos egressos do cativeiro. Este modelo de liberdade
“bem dosada” propunha que as medidas abolicionistas não provocassem sérias alterações na
hierarquia social, tendendo a considerar o ingênuo unicamente como trabalhador útil ao
senhor de sua mãe, diferentemente das demais crianças livres, para as quais eram projetadas
estratégias de formação capazes de torná-las cidadãs da sociedade livre então em
desenvolvimento 3.
A experiência de liberdade dos ingênuos envolveu a inserção dos mesmos em espaços
escolares? É partindo desta indagação que me proponho a delinear a maneira como ocorreram
as relações de alguns ingênuos da Província do Paraná com as práticas de instrução ofertadas
pela esfera pública de ensino. Para tanto, parto de evidências contidas na documentação
oficial local, preferencialmente a documentação escolar contida nas correspondências de
governo armazenadas no Arquivo Público do Paraná tendo em vista compreender o modo
com o qual a presença de ingênuos pôde ser notada no cotidiano escolar da província. Além
disso, visando conhecer as propostas de instrução formal dirigidas aos ingênuos, pensadas
pelas autoridades, faço também uso da legislação e escritos de grandes abolicionistas do
período como Joaquim Nabuco e Perdigão Malheiros, buscando também resgatar a maneira
como a historiografia identificou outros pareceres sobre a questão.
A concepção moderna de infância teve íntima relação com os processos de
escolarização intensificados também nesse período. De acordo com Faria Filho 4, os sujeitos
responsáveis pela construção da instituição escolar influenciaram em grande medida a
produção do discurso da infância como fenômeno social. Sendo assim, a história da infância é
também o estudo das instituições criadas para serem espaços da infância 5. A função social da
escola atrela-se à responsabilização pela educação e instrução, vistos de maneira distinta por
se separar a amplitude de práticas educativas – referentes, de modo geral, a transferência de
conteúdos de princípios de conduta 6 – das práticas de instrução, voltadas ao ensino elementar
da leitura, escrita, cálculo, entre outros saberes, na maioria das vezes, divulgados pela escola.
3
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras: uma análise a partir do Congresso Agrícola do
Rio de Janeiro e do Congresso Agrícola do Recife, em 1878. Anais do III Congresso de História da Educação,
2004, p. 06
4
FARIA FILHO, Luciano Mendes. “Escolarização da infância brasileira: a contribuição do bacharel Bernardo
Pereira de Vasconcelos” in: FARIA FILHO, Luciano Mendes; INÁCIO, Marciliane Soares (org). Políticos,
Literatos, Professores, Intelectuais: o debate público sobre educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2009, p.21.
5
Idem, p. 22.
6
FONSECA, Marcus Vinícius. “Educação e Escravidão: um desafio para a análise historiográfica”. In: Revista
Brasileira de História da Educação. Edição de Julho/ Dezembro, 2002, p. 125

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Aqui, será priorizada a noção de instrução, por estar intimamente associada com as práticas
escolares no final do século XIX.
Esta comunicação se dividirá em três etapas. Primeiro, me dedico a discutir a Lei do
Ventre Livre de modo a compreender a categoria “filho livre de mulher escrava” como grupo
social distinto, para em seguida se aproximar daquilo que foi proposto para o futuro dos
menores então nascidos após a promulgação da lei. Nesse sentido, através da historiografia
busco conhecer os projetos pensados para esse grupo na esfera educacional. Por fim, procuro
analisar a maneira como ocorreu a inserção dos ingênuos paranaenses em espaços públicos de
instrução através da documentação escolar provincial.

A LEI DO VENTRE LIVRE: BENEFÍCIOS CONTRADITÓRIOS

A Lei 28 de Setembro denominava os contemplados pela medida legislativa de “filhos


livres de mulher escrava”. A apropriação do termo “ingênuo” para se dirigir aos filhos livres
de mulher escrava foi corrente nos anos que sucederam a promulgação da Lei, sendo
posteriormente também adotada pela historiografia para denominar a estes indivíduos 7.
Originalmente, contudo, o Direito Romano formulou a terminologia “ingênuo” para
denominar nascidos livres, independente da procedência escrava, liberta ou livre como
indicou Cretella Jr 8.
A Constituição Imperial brasileira já previa a inserção de ingênuos no âmbito da
cidadania, aja vista o artigo sexto deste documento que estabelecia serem legítimos cidadãos
brasileiros “I Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos, ou libertos, ainda que o
pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de sua Nação.” 9. O texto foi
redigido, porém, décadas antes da promulgação da Lei do Ventre Livre, por isso, o sentido da
terminologia fazia referência apenas a todos aqueles nascidos livres, no interior do Império,
sem, necessariamente possuir relação direta com a escravidão.
Os filhos livres de mulher escrava, no entanto, não gozavam da mesma esfera de
direitos desfrutada por nascidos livres na medida em que constituíram-se como uma parcela

7
ALANIZ, Anna Gicelle García.op. cit, p. 23.
8 8
CRETELLA JR. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1968. Apud. ALANIZ, A. G. G.
Ingênuos e Libertos. idem
9
“Constituição Política do Império do Brazil.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao24.htm

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social profundamente vinculada ao cativeiro. Na Lei de 1871, o ingênuo deveria permanecer


sob posse do senhor até completar a idade de 8 anos, dado este período, o senhor teria a
oportunidade de optar entre permanecer com o menor até que este completasse a maioridade,
desfrutando de seus serviços, ou entregá-lo ao Estado, o qual o indenizaria com a quantia de
600$000 réis 10. Dados referentes ao ano de 1885 demonstram que apenas 0,1% dos ingênuos
existentes no Império foram entregues ao governo em troca de indenização, o restante ficou
sob “posse” de senhores de escravos, os quais na maioria das vezes optaram pela tutela desses
menores 11.
No que concerne ao futuro proposto para os ingênuos, especialmente no aspecto
educacional, os postulados díspares também se fizeram presentes no texto da Lei nº 2040. De
acordo com Alaniz, a Lei foi recebida com insatisfação tanto pelos grandes proprietários
quanto pelos abolicionistas, pois apresentava inúmeras ambiguidades, as quais não definiam o
real caráter civil dos filhos livres de mulher escrava, estabelecendo que os mesmos devessem
viver semelhantemente a crianças cativas, contrariando em diversos aspectos determinações
contidas na Constituição Imperial referentes à categoria “ingênuo”, as quais reservavam a tais
sujeitos direitos mínimos como a participação na cidadania e o direito à instrução primária
gratuita 12.
Partindo do pressuposto de que a lei de 1871 foi formulada no sentido de se prolongar
qualquer medida drástica de erradicação da instituição escravista, reforça-se a ideia de que os
grupos dirigentes preocupavam-se amplamente com o futuro daqueles que se tornavam livres,
mesmo que gradualmente. Logo, era sustentada também a visão de que tanto cativos quanto
libertos e ingênuos deveriam aprender a viver em condição de liberdade. É dessa maneira que
surgem propostas de enquadramento desses indivíduos na sociedade livre por meio da
instrução e da disciplina ao trabalho.
Estes fatores são perceptíveis quando atentamos para as afirmativas referentes aos
ingênuos que não seriam entregues aos senhores de suas mães. Conforme já dito, neste caso
era predito pela Lei que as crianças fossem entregues ao Governo em troca de indenização.
Tal prática, contudo, foi evidentemente desestimulada pelo Estado, afinal, reconhecia-se a
deficiência da máquina pública na responsabilização por tais menores. Era previsto,

10
Lei n.º2040 de 28.09.1871; Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM2040-1871.htm
11
ALANIZ, Anna G. G. op. cit, p. 41
12
“Constituição Política do Império do Brazil.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao24.htm

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entretanto, que neste caso, o ingênuo fosse encaminhado Associações ou Juízes de Órfãos, os
quais teriam a oportunidade de explorar o trabalho dessas crianças e/ou encaminhá-las para a
educação:
Art. 2.º - O govêrno poderá entregar a associações, por êle autorizadas, os filhos
das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados
pelos senhores delas, ou tirados do poder dêstes em virtude do Art. 1.º- § 6º.
§ 1.º - As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a
idade de 21 anos completos, e poderão alugar êsses serviços, mas serão
obrigadas:
1.º A criar e tratar os mesmos menores;
2.º A constituir para cada um dêles um pecúlio, consistente na quota que para
êste fim fôr reservada nos respectivos estatutos;-
3.º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação.
§ 2.º - A disposição dêste artigo é aplicável às Casas dos Expostos, e às pessoas
a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos menores, na
13
falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.

É lugar comum na historiografia que abordou o tema defender a inaplicabilidade de


tais ações de “amparo” realizadas pelas mencionadas associações já que a grande maioria dos
filhos de mulher escrava estiveram sob posse do senhor de suas mães durante a sua
14
menoridade . É notável, contudo, a preocupação com o direcionamento dos menores a
táticas de disciplina forjadas pelo trabalho em ambos os casos: quando o ingênuo permanecia
sob a vigilância do senhor e quando entregue ao Estado. Isso se deve ainda ao fato de serem
os ingênuos um dos alvos das classificações racistas e estigmatizantes proferidas por
parlamentares durante as discussões dedicadas a debater as estratégias de aplicação do
dispositivo legal. Havia o receio de que tais menores causassem prejuízos à ordem social por
15
serem considerados indivíduos “embrutecidos” pelo cativeiro . Foi comum até mesmo a
existência de práticas de venda de ingênuos pelo império, muitas vezes sob olhar das
autoridades, o que mais uma vez evidencia o desapego do Estado para com as
responsabilidades em relação aos filhos de mulheres escravas.

13
Lei nº 2040 de 28 de Setembro de 1871. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM2040-1871.htm
14
RAMOS, Claudia Monteiro da Rocha. A escravidão, a educação da criança negra e a Lei do Ventre Livre
(1871) e pedagogia da escravidão. Dissertação de Mestrado defendida na UNICAMP. Campinas, SP: s.n, 2008.
15
MENDONÇA, Joseli M. N.op. cit.

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“FILHOS DO TRABALHO”: PERSPECTIVAS PARA A INSTRUÇÃO DOS INGÊNUOS

Tão logo a Lei 28 de Setembro foi promulgada, não demoraram ocorrer as


manifestações da imprensa, autoridades, grandes proprietários e indivíduos envolvidos na
campanha abolicionista, voltadas a discutir sobre um futuro próprio às crianças nascidas livres
no cativeiro.
Foi o caso de um juiz de órfãos de Itu, província de São Paulo, comentado por Anna
16
Alaniz em seu estudo . Em um alerta aos grandes proprietários da região, os quais haviam
criado vínculos com os ingênuos através da tutela, ele recomendava o amparo dos menores
por parte daqueles senhores:
recomendo ao tutor nomeado que crie e eduque seus pupillos como pessoas
livres [...] pondo-os a aprender a ler e escrever, sendo possível, mandando
ensinar-lhes officio mechanico, ou prendas domesticas conforme o sexo, por
cuja habilidade possao futuramente adquirir os meios de subsistência. 17

Como bem destacou Alaniz, o projeto educacional pensado para os ingênuos nesta
ocasião, em muito se diferencia daquele proposto para as outras crianças livres, na medida em
que nesse caso era recorrente um modelo de educação voltado para os conhecimentos do
aprendizado básico somente, permeado pelo aprendizado de ofícios. Considerações como esta
sustentam a ideia de um projeto de abolição caracterizado por uma perspectiva de hierarquia
social muito semelhante ao escravismo, onde os libertos permaneceriam nas condições de
subjugo.
As visões sobre a formação específica para os filhos livres de mulher escrava, voltada
para as habilidades no trabalho, se inserem na perspectiva de civilização e correção dos
egressos do cativeiro. Mendonça 18 que quando se discutiam a respeito do encaminhamento de
ingênuos e libertos para estabelecimentos especiais, os parlamentares reconheciam a
ineficiência do Estado em não promover o acolhimento daqueles que saíam da escravidão.
Pouco mais de uma década depois da aprovação da Lei do Ventre Livre, um debate falava da
19
existência de 400.000 ingênuos no território nacional , número intensificador de propostas

16
ALANIZ, Anna Gicelle Garcia. Op. cit.
17
ESCOBAR, F. R. juiz de Direito da comarca de Ytu – 11/06/1888. Apud. ALANIZ, Anna Gicelle García. Op.
cit, p. 52
18
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op cit
19
Idem, p. 109.

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que visassem o acolhimento dos ingênuos em modalidades específicas de instrução, tendo em


vista que a primeira geração de tais crianças já havia alcançado a idade escolar.
É nesse momento que surgem as propostas de educação de ingênuos em “colégios
agrícolas”. O Congresso Agrícola realizado em 1878 na Corte reforçou a questão do ensino
para os filhos de escrava.
A possibilidade da instrução de ingênuos promovida pelo Estado foi tema
recorrente nos debates acerca da questão do trabalho agrícola. No Congresso
Agrícola, em 1878, que reuniu representantes no Rio de Janeiro, representantes
de lavradores daquela província, de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, o
assunto foi debatido e recebeu apreciações distintas. Uma delas, defendendo a
“educação” promovida pelo Estado através de “estabelecimentos agrícolas e
industriais”, considerava que os ingênuos alocados nas fazendas não seriam
úteis aos fazendeiros e representariam, ainda, um “pomo de discórdia”. Outra,
que considerava a instrução promovida pelo Estado um “sorvedouro de dinheiro
público”, defendia que a instrução agrícola deveria ser promovida por
particulares nos próprios estabelecimentos, sendo a melhor escola a própria
“prática”.20

Interessante é notar o fato de menções sobre a instrução dos ingênuos aparecerem


quase exclusivamente nos debates sobre a questão agrícola. Conforme assinalou Marcus
Fonseca 21, também em estudo sobre tais reuniões, um dos aspectos mais notáveis a se inferir
sobre as declarações dos grandes latifundiários em questão é a afirmação de estratégias de
instrução peculiares para os ingênuos. Para eles, deveria ser ofertada uma educação voltada
para o trabalho, a qual os preparasse a servir devidamente, de maneira disciplinada com a
devida instrução moral, e, sobretudo, separadamente das demais crianças livres. Estes espaços
“separados” priorizavam “a formação das crianças como trabalhadores agrícolas, longe de
qualquer perspectiva de formação de cidadãos como era frequente nos discursos sobre o papel
da educação durante o Império.” 22.
Tais perspectivas também se fizeram presentes nos meios de comunicação do período,
conforme identificou a historiografia. Um periódico circulado na Corte entre 1872 e 1879 de
nome A Instrução Pública, demonstra essa tendência ao destacar a necessidade da instrução
para aqueles que nasceriam para a liberdade após a Lei do Ventre Livre:
A Lei de 28 de Setembro do ano próximo findo, que inaugurou uma nova era
nos fatos da história da pátria, reclama instantaneamente a reforma e o

20
Idem [nota 80] pp. 109-110.
21
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras: uma análise a partir do Congresso Agrícola do
Rio de Janeiro e do Congresso Agrícola do Recife, em 1878. Anais do III Congresso de História da Educação,
2004.
22
Idem, p. 06.

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melhoramento do ensino, de modo a ser ministrado também àqueles para os


quais acabam de ser quebrados os ferros da escravidão. (...) emancipar e instruir
é forma dupla do mesmo pensamento político. O que havemos de oferecer a
estes degradados que vão nascer para a liberdade? – O batismo da instrução. O
que reservaremos para suster as forças esmorecidas pela emancipação? O
ensino, esse agente invisível que centuplicando energia do braço humano, é sem
dúvida, a mais poderosa das máquinas de trabalho.23

O redator do jornal pesquisado por José G. Gondra e Alessandra Schueller sugere a


aplicação da instrução como mecanismo corretor de indivíduos “degradados” pelo cativeiro,
mesmo sendo os ingênuos, livres na condição jurídica. É evidente ainda o atrelamento entre
instrução e trabalho feito na explanação do autor do artigo, característica também recorrente
em outros veículos de imprensa ao longo do império. À exemplo, o jornal Correio Mercantil,
pesquisado por Eliane Peres, circulado em Pelotas – Rio Grande do Sul, no qual a imprensa
pelotense dirigia-se aos ingênuos e libertos denominando-os de “filhos do trabalho” 24, sendo
extremamente pessimista quanto ao futuro e inserção dos mesmos na sociedade livre. A
autora identifica também noções muito próximas contidas em documentos do Clube
Abolicionista da região, segundo os quais a instrução dos filhos de mulher escrava não
deveria transcender a esfera das primeiras letras
[...] Tratando-se de pessoas nas condições dos pretos libertos, que não
podem ter aspiração à carreira literária ou científica, é claro que o
sistema de educação a adotar-se é muito simples e muito fácil.
[...] Instrução primária acompanhada de princípios morais e religiosos 25

O material analisado por Peres sugere que mesmo entre aqueles que se propunham
defender a emancipação dos escravos a perspectiva da projeção de um futuro marcado pela
subordinação para os libertos e ingênuos permeava os discursos. É nesse sentido que as obras
dos grandes abolicionistas nos auxiliam na problematização dos ideais de abolição
predominantes nos últimos anos da escravidão nacional.
Joaquim Nabuco se insere em tais perspectivas por constituir-se como um dos mais
notáveis abolicionistas atuantes no âmbito político do período. Parlamentar da década de 1870
sintetizou suas considerações acerca da tão necessária abolição do trabalho escravo no Brasil

23
A Instrução Pública, 05/05/1872, p. 25-26; apud. GONDRA, José Gonçalves & SCHUELLER, Alessandra.
Educação, poder e sociedade no império brasileiro. Biblioteca Básica de História da Educação, v. 1, São: Paulo:
Cortez, 2008; p. 251.
24
PERES, Eliane. “Sob(re) o silêncio das fontes: a trajetória de uma pesquisa em história da educação e o
tratamento das questões étnico-raciais”. In: Revista Brasileira de História da Educação. Edição de Julho/
Dezembro, 2002
25
Material do clube Abolicionista de Pelotas. Apud, idem, p. 95

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na obra O Abolicionismo, de 1883. Nabuco defendeu a abolição com muitas ressalvas,


propondo meios de educação da população negra cativa. Entretanto, suas postulações se
pautavam em classificações racistas, as quais legitimavam a vinda de europeus para a
promoção da purificação do sangue negro e nacional. Em sua obra, afirmava que a “maldição
da cor” deveria ser corrigida através de uma séria educação, a qual potencialmente quebraria a
“maldição” e “superstição” de trezentos anos de cativeiro 26. Para ele, a educação possuía este
potencial de correção de vícios próprios da raça, os quais se encontravam ainda atrelados
àqueles adquiridos da vivencia em cativeiro, mesmo para os ingênuos “escravos provisórios”,
para os quais a liberdade, negada até os 21 anos, não os isentava do aprendizado da senzala,
potencialmente causador de vícios maléficos para a convivência social 27.
Outro importante exemplo sobre tais posturas em meio à campanha abolicionista
nacional encontra-se na figura política de Perdigão Malheiros, jurista e intelectual e um dos
principais articuladores da ideia de abolição a partir do ventre das escravas. Na obra
28
Escravidão no Brasil de 1866, Malheiros apontava para a necessidade de preparação dos
ingênuos para a liberdade:
Mas pergunta-se: que educação devem receber estas crias, que aos 21 anos, por
exemplo, têm que entrar no gozo pleno de seus direitos? Respondo que aquela
que for compatível com suas habilitações e disposições naturais, com as
faculdades dos senhores, com as circunstâncias locais. O essencial é que além
da educação moral e religiosa, tomem uma profissão, ainda que seja lavradores
ou trabalhador agrícola: ele continuará a servir aí se lhe convier, ou irá servir a
29
outrem, ou se estabelecerá por si;

Suas declarações mais uma vez evidenciam o quanto o ideal de liberdade projetado
aos ingênuos esteve atrelado posturas que defendiam uma hierarquização da sociedade de
maneira muito semelhante ao quadro social escravista. Os libertos e ingênuos assumiriam a
condição de trabalhadores úteis para servir. Portanto, de modo algum a igualdade era um
elemento que necessariamente se atrelava a liberdade. Seguindo esta perspectiva o melhor
plano para a instrução destes indivíduos era aquele caracterizado pela associação entre
aprendizado primário com o conhecimento de ofícios. Algumas experiências desta

26
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Best-Bolso, 2010, p. 38
27
Idem, p. 58.
28
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio político, jurídico e social. Petrópolis: Vozes, INL,
1897.
29
Idem, p. 156.

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modalidade educacional no Paraná podem elucidar o formato prático com que tais projeções
foram concretizadas num contexto peculiar de escravidão.

NOS BANCOS DAS ESCOLAS NOTURNAS: A PRESENÇA DOS INGÊNUOS NO


ENSINO ESCOLAR PARANAENSE

A década de 1880 marca o período em que os primeiros ingênuos do império


30
brasileiro, ao completar “idade escolar” procuraram o ensino público afim de receber a
instrução primária gratuita, um dos direitos garantidos pela Constituição para os nascidos
livres. A real condição dos ingênuos, entretanto, não era assimilada por parte de alguns
31
sujeitos do ensino público. Assim como em todo o império , no Paraná foi comum o envio
de cartas dirigidas às autoridades competentes, indagando a pertinência da matrícula de filhos
livres de mulher escrava nas escolas públicas. Em 1879, José Agostinho, professor da Cadeira
de Palmeira redigia uma correspondência à autoridade da instrução pública questionando se
devia ou não admitir um ingênuo em sua escola:
Tendo sido apresentado a matricula na escola a meu cargo um menino filho de
mulher escrava, liberto pela Lei n°2040 de 28 de Setembro de 1871, rogo a
V.Exc.ª que se digne a dizer se devo admitillo em cargo do que diz o Art.39§2
do Regulamento da Instrução Pública. 32

O trecho de legislação citado pelo professor trata-se da restrição à matrícula de


33
escravos nas aulas públicas , logo, Agostinho considerou o menor, antes como liberto,
depois como escravo. Se nascido livre, o ingênuo não era considerado liberto, tampouco
escravo. Isso denota o quanto a real condição desses menores causou imprecisão entre aqueles
que de alguma forma se envolveram com tais indivíduos.
Foi, sem dúvida, em decorrência de tais situações que as autoridades da instrução
pública finalmente adotaram uma postura legislativa perante a inclusão de ingênuos no ensino
público da província paranaense. Em 1883 após mais de uma década de aprovação da Lei n°

30
De acordo com o Regulamento da Instrução Pública da Província do Paraná a “idade escolar” se iniciava aos 8
anos de idade. Na década de 1880 esta idade se antecipa para 7 anos. in: MIGUEL, M.E.B. e MARTIN,
S.D.(org.). Coletânea da Documentação Educacional Paranaense no período de 1854 a 1889. in:.Coleção
Documentos da Educação Brasileira. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2004.
31
GONDRA, José Gonçalves e SCHUELLER, Alessandra. Op. cit, p. 250.
32
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR n.° 564, p. 12.
33
Regulamento da Instrução Pública. In: (Miguel; Martin, 2004, p. 57)

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2040, o regulamento de instrução pública da província do Paraná incluiu ingênuos no rol de


34
crianças atingidas pela obrigatoriedade escolar . Desde 1879, entretanto, os menores já
haviam atingido a idade escolar e, como crianças livres, não se encontravam juridicamente
impedidos de frequentarem escolas públicas, pelo contrário, já compunham o conjunto de
menores atingidos pela obrigatoriedade.
Esta medida, entretanto, não surtiu grandes efeitos haja vista as muitas manifestações
contrárias de professores locais à respeito da grande quantidade de ingênuos longe das aulas
ou então frequentando escolas noturnas da região, destinadas exclusivamente aos adultos. Um
deles foi o polêmico professor Pedro Saturnino da Cadeira de Castro, reclamante assíduo nas
correspondências de governo de cunho escolar da província, sempre cobrando das autoridades
maior atenção aos assuntos do cotidiano escolar. O professor, em carta ao Inspetor Geral da
Instrução Pública alertava para o “crescido número de ingênuos e libertos nas condições de
frequentarem a eschola pública de menores, e que por desleixo dos pais e tutores acham-se
35
jazendo nas trevas” . Alguns anos depois, em correspondência de mesmo teor o professor
contestava a permanência de menores ingênuos nas aulas noturnas mesmo após uma
condenação partida diretamente do imperador D. Pedro II em visita à província do Paraná que
condenou a frequência de menores no ensino noturno, ao menos que as crianças
comprovassem exercerem algum ofício durante o dia 36.
De fato, o grande número de ingênuos frequentando o ensino noturno atrela-se à
proximidade com a qual tais menores viveram do cativeiro, sendo criados pelos senhores de
suas mães, exercendo gratuitamente seus serviços. Entretanto, reflete ainda o ideal de
instrução pensado por grandes proprietários e autoridades para estas crianças: espaços
escolares separados, próprios para a formação de trabalhadores 37. Quando temos em vista que
grande parcela das escolas noturnas do Paraná foi frequentada consideravelmente por
38
escravos e libertos nos aproximamos do quanto a experiência de tais crianças esteve
associada ao trabalho e ao cativeiro. Como reforça Eliane Peres39, o que ligava esses menores

35
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR n° 662, p. 241
36
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR n° 603, p. 209
37
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras ... op. cit
38
Trato sobre este assunto no trabalho monográfico de minha autoria: SILVA, Noemi Santos. Aprendendo a
Liberdade: Escravos, Libertos, Ingênuos e instrução formal. Paraná - século XIX. Monografia de conclusão de
curso apresentada no Departamento de História da UFPR, 2010.
39
PERES, Eliane. Op. cit

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as aulas noturnas era o fato de serem trabalhadores, afinal o trabalho infantil era uma
realidade muito presente no período.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pudemos perceber que no tocante à escolarização dos ingênuos, a tendência de


“separação” dos mesmos foi evidente na medida em que, em geral, não foram escolarizados
juntamente com as demais crianças livres, havendo para eles o mesmo projeto de instrução
para o trabalho visado para a população escrava e liberta. Como indica Cláudia Ramos, isso
pode evidenciar a articulação das políticas de instrução ao problema de mão de obra
enfrentado no império com a iminência do processo abolicionista.
Foi em relação a questão do resgate da geração das crianças negras que
nasceriam livres de mães escravas, que surgiu a preocupação em garantir a
organização do mundo do trabalho, sem o recurso e as políticas de domínio
características do cativeiro. 40

Estas experiências demonstram indícios da profunda preocupação com a educação


cívica dos egressos da escravidão, a qual se desenvolveu de maneira dúbia por criar um
modelo específico de escolarização para estes indivíduos, separando-os do ideal de educação
ofertada para o restante da sociedade. Esta modalidade de inclusão parcial trazia consigo
todas as contradições inerentes aos projetos de abolição, as quais foram ainda explicitadas na
legislação vigente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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épocas de transição. 1871-1895. Campinas: Área de Publicações CMU/UNICAMP, 1997.
FARIA FILHO, Luciano Mendes. “Escolarização da infância brasileira: a contribuição do
bacharel Bernardo Pereira de Vasconcelos” in: FARIA FILHO, Luciano Mendes; INÁCIO,
Marciliane Soares (org). Políticos, Literatos, Professores, Intelectuais: o debate público sobre
educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2009

40
RAMOS, Cláudia. Op. cit, p. 74

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12 a 15 de Outubro de 2012
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_______________________. Escolas para crianças negras: uma análise a partir do Congresso
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GONDRA, José Gonçalves & SCHUELLER, Alessandra. Educação, poder e sociedade no
império brasileiro. Biblioteca Básica de História da Educação, v. 1, São: Paulo: Cortez, 2008.
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MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio político, jurídico e social. Petrópolis:
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MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da
abolição no Brasil. 2ª edição. Campinas: Ed. Unicamp, 2008.
PERES, Eliane. “Sob(re) o silêncio das fontes: a trajetória de uma pesquisa em história da
educação e o tratamento das questões étnico-raciais”. In: Revista Brasileira de História da
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Ventre Livre (1871) e pedagogia da escravidão. Dissertação de Mestrado defendida na
UNICAMP. Campinas, SP: s.n, 2008.
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formal. Paraná - século XIX. Monografia de conclusão de curso apresentada no Departamento de
História da UFPR, 2010.

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MARGINALIZAÇÃO, DELINQUÊNCIA E CRIMINALIDADE INFANTIL NA CIDADE


DE SÃO PAULO NO INÍCIO DO SÉCULO XX.

Robson Roberto da Silva

Prof. Dr. José Miguel Arias Neto

(Programa de Pós-Graduação em História Social – Mestrado. Universidade Estadual de


Londrina – PR).

1. O CRESCIMENTO URBANO E POPULACIONAL E A VIDA COTIDIANA NOS


CORTIÇOS DA CIDADE DE SÃO PAULO

A cidade de São Paulo do início do século XX já não era mais a pequena vila
provinciana do século anterior, em poucas décadas, havia-se tornado uma das cidades mais
importantes do país, rivalizando com a capital federal: Rio de Janeiro. A capital paulista
ampliou seu parque industrial e com esse desenvolvimento, atraindo levas de migrantes e
imigrantes que buscavam construir suas vidas na cidade paulistana, havendo um crescimento
populacional sem precedentes na História de São Paulo. (Tabela 1)

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Tabela – 1 Evolução percentual da população da cidade de São Paulo (1872 – 1920)1

Ano População Período Percentual


1872 26.020 1872 – 1890 124,78%
1890 64.934 1890 – 1900 200,20%
1900 260.000 1900 – 1910 60,38%
1910 314.000 1910 – 1920 92,58%
1920 581.435 —————— ——————

Progressivamente, a sociedade paulistana vai se complexificando, não somente


devidos às novas indústrias que vinham surgindo, demandando uma grande oferta de mão-de-
obra, especialmente dos estrangeiros, mas também foi crescendo a oferta de serviços no
comércio, aumento do movimento dos transportes e de grandes mudanças nos hábitos da sua
população. “De fato, nunca em nenhum período anterior, tantas pessoas foram envolvidas de
modo tão completo e tão rápido num processo dramático de transformações de seus hábitos
cotidianos.”2 Pela descrição de Raquel Rolnik:

Cidade de fronteiras abertas. Assim se configurou São Paulo no início deste século:
palco que se preparava para ser território sob domínio de capital. Em menos de 30
anos, São Paulo passa de cidade/entreposto comercial de pouca importância no país
escravocrata para cidade-vanguarda da produção industrial no País. Esta passagem se
produziu em um momento de transformações profundas na ordem social: passagem de
um Estado Império escravocrata para a República do trabalho assalariado. Esta
transição, redefinição do social, foi uma transformação multidimensional: mudaram
enredos, palcos e personagens. Podemos detectar esta transição de várias formas:
focalizando a atenção na transformação das relações económicas ou sociais ou ainda
nas instituições políticas.3

O aumento demográfico de São Paulo explicasse pela influência de dois eventos


históricos importantíssimos: a Abolição da Escravidão que permitiu aos escravos se
desvincular de seus antigos senhores nas fazendas e muitos deles migravam para a capital em

1
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 - 1915. São Paulo:
Anablume/ Fapesp, 2003, p. 33.
2
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: NOVAIS,
Fernando e SEVCENKO. História da vida privada no Brasil, Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
p. 7 – 8.
3
ROLNIK, Raquel. São Paulo – início da industrialização: espaço e política. In: KOWARICK, Lúcio. As
lutas sociais e a cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.75.

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busca de emprego e o aumento da Imigração Européia, especialmente de italianos que vinham


para São Paulo a princípio para substituir a mão-de-obra escrava nas fazendas e
posteriormente muitos deles se fixaram na capital paulista. No final do século XIX, houve um
grande incentivo, tanto do governo quanto da sociedade civil para a vinda das famílias
européias. Segundo Carlos José Ferreira dos Santos:

Apreende-se, assim, por parte dos grupos ligados ao governo em São Paulo, uma “vontade”
de que a população da urbe paulistana fosse de origem européia e branca. Isso pode ser
percebido mais expressivamente quando das raras vezes que os Anuários e Relatórios
populacionais trataram da parcela nacional. Era quase sempre para constatar com
entusiasmo a sua “inferioridade” em relação à “superioridade” da presença estrangeira,
que trazia “enormes vantagens (...) para o crescimento vegetativo de São Paulo” (...), para a
transformação da “Paulicéia numa grande cidade italiana”.4

Contudo, em poucos anos, o inicial entusiasmo com a vinda dos imigrantes e o


desenvolvimento econômico de São Paulo converteu-se em preocupações com os gravíssimos
problemas sociais e urbanísticos causados pelo aumento populacional desordenado. São Paulo
não teve estrutura para comportar esse crescimento. Um dos resultados sociais foi o aumento
do número de construções irregulares chamadas de cortiços. Segundo a definição de cortiço
do sociólogo Lúcio Kowarick:

O cortiço é a modalidade de habitação proletária mais antiga em São Paulo. (...), está
ligado aos primórdios da industrialização que se iniciou nas últimas décadas do século
XIX. A partir desta época, a população da cidade que, em 1890 tinha 65.000
habitantes, aumenta vertiginosamente em decorrência do grande fluxo de imigrantes.
(...). Assim, o cortiço desponta e expande-se em decorrência de uma nova relação de
exploração, na qual o trabalhador precisa adquirir, com o salário que aufere, os meios
de vida para sobreviver. (...). Mão-de-obra sub-remunerada, não tem condições de
adquirir ou alugar uma casa, pois o custo da mercadoria habitação transcende em
muito o preço da força de trabalho. Desta forma, (...), o cortiço, subdivisão de
cómodos em maior número possível de cubículos, aparece como a forma mais viável
para o capitalismo nascente reproduzir a classe trabalhadora, a baixos custos.5

4
SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p.40.
5
KOWARICK, Lúcio & ANT, Clara. “Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo” In:
KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 49 – 50.

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Pela descrição de Lúcio Kowarick, a criação de cortiços na cidade de São Paulo


atendia a demanda de alojamento de uma crescente população que seriam aproveitados como
mão-de-obra nas fábricas, como eram moradias de baixíssimo custo, ocuparam diversos
espaços no centro antigo paulistano. Foram nessas habitações irregulares que se fixaram a
maioria dos imigrantes, mas também teve moradores nativos que moravam nos cortiços. “Alta
intensidade de vida social em espaço exíguo. Nele se misturam trabalhadores e vagabundos,
famílias e solteiros, negros, brancos e mulatos nascidos no Brasil, bem como portugueses,
espanhóis, italianos.”6 Apesar da sua heterogeneidade, essas habitações foram mais
popularmente conhecidos como “territórios italianos” em que as pessoas de bem não
passavam por essas regiões perigosas e onde reinava a imoralidade e a promiscuidade. A
escritora Zélia Gattai descreve a formação de um identidade italiana dentro dos cortiços,
formando verdadeiros “territórios italianos”:

Devido a seus cortiços famosos, a Rua Caetano Pinto, no Brás, afastava de suas
calçadas moradores de outras ruas. Mal-afamada pelas brigas e bafafás diários,
tornara-se tabu, habitada sobretudo por italianos do Sul da Itália (...). Passei a admirar
seus moradores desde que soube terem eles destruído uma carrocinha de cachorro,
pondo os laçadores a correr debaixo de tabefes e pontapés. Nunca mais voltaram.
Polícia não circulava na Caetano Pinto, os habitantes faziam suas próprias leis. Não
havia soldado que por ali se aventurasse. População extremamente religiosa,
profundamente patriota, de sangue quente. (...). As mulheres tinham fama de valentes,
discutiam de janela a janela, batiam nos filhos, à moda italiana: violentos tapas na
cara.7

Essas aglomerações traziam nelas diversos problemas sociais, a começar pela falta de
condições higiênicas devido ao amontoamento de pessoas em um espaço exíguo. “O cortiço é
a longa fila de cómodos geminados, que dão para um pátio ou corredor comum e que tem ba-
nheiro, cozinha e tanque coletivos.”8 Essas aglomerações habitacionais eram considerados pelas
autoridades públicas e pela sociedade como a principal causa da proliferação de epidemias no
início do século XX. “Sua sujeira e promiscuidade é, (...), apontada como responsável pelas
epidemias. (...). Assim cortiços e cortiçados são imediatamente identificados com sujeira, peste,

6
ROLNIK: Op. cit. p.80.
7
GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 85 – 86.
8
ROLNIK: Op. cit. p.80.

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imoralidade e barbárie.”9 Serão também nos cortiços que encontram-se os maiores índices de
mortalidade infantil na cidade de São Paulo. “A criança pobre, mal vestida, mal nutrida, sem
resistências imunológicas orgânicas, vivendo agrupada (...) em cubículos estreitos, (...),
insalubres, estaria muito mais sujeita às enfermidades do que as mais favorecidas.”10 (Tabela
2)

Tabela 2 – Mortalidade infantil aproximada na cidade de São Paulo e no bairro operário do


Brás (1897 – 1902) 11

Total De 0 a 1 mês De 1 a 12 meses De 1 a 5 anos De 5 a 10 anos


Ano Capital - Brás Capital - Capital - Brás Capital - Brás Capital - Brás
1897 3194 1118 545
Brás 1344 489 1178 127 43
1898 2918 865 579
138 1226 311 976
448 137 35
1899 2558 767 431
193 1055 286 966
326 106 34
1900 2290 571 407
129 959 266 837
318 87 17
1901 2704 808 471
88 1092 336 1036
200 105 30
1902 3019 789 531
105 1202 315 1155
337 320 131 33
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Cotidianamente, faleciam muitas crianças devidos a falta de condições higiênicas. “O


frágil organismo de uma criança é o que oferece menor resistência aos efeitos desfavoráveis de um
modo de vida miserável.”12 Nessas condições precárias, houve dentro das famílias encortiçadas um
processo crescente de desestruturação familiar, pois num ambiente extremamente vicioso, a educação
e a formação das crianças ficava comprometida. “São os pais de família, que cedendo aos vícios
(...) acabam corrompendo os filhos, são as mulheres, que (...) trazendo ao mundo filhos sem pai,
estão minando as bases que garantem a ordem moral da sociedade.”13 A adoção do trabalho
feminino agravou a situação, pois afastou ainda mais as mães da criação de seus filhos. “Vemo-
nos no direito de concluir que essas pessoas pobres e mal alojadas sentiam um amor banal por

9
Idem: p.80.
10
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987, p. 129.
11
Anuários Estatísticos da Secção de Demografia, 1897/1919. In: MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro.
Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes,
1982, p.154.
12
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas
e Reginaldo Forti. 1ª Edição. São Paulo: Editora Global, 1985, p.127.
13
LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito do menor. In: DEL PRIORE, Mary (Org). História
da criança no Brasil. 3ª Edição. São Paulo: Contexto, 1995, p.137.

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suas criancinhas – essa forma elementar de sentimento da infância (...).”14 Segundo Friedrich
Engels

O trabalho da mulher na fábrica desorganiza (...) a família, e (...), as consequências mais


desmoralizantes, tanto para os pais como para as crianças. Uma mãe que não tem tempo
de se ocupar do seu filho, de lhe dedicar durante os primeiros meses os cuidados e a ternura
normais, uma mãe que mal tem tempo de ver o filho, que não pode ser mãe para ele, torna-se
fatalmente indiferente; trata-o sem amor, sem solicitude, como uma criança estranha. As
crianças que crescem nestas condições mais tarde estão completamente perdidas para a famí-
lia, incapazes de se sentir em casa no próprio lar que fundam, porque apenas conhecem uma
existência isolada; contribuem necessariamente para a destruição da família.15

Essa tendência à desestruturação familiar, onde inexistia amor e afeto entre os pais e
sua prole, essas crianças vão gradualmente se afastando da casa paterna. “No início do século
XIX, uma grande parte da população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias
medievais, com as crianças afastadas da casa dos pais.”16 O afastamento das famílias fazia
dessas crianças pequenos indigentes ou vadios que perambulavam pelas ruas da cidade,
praticando diabruras, vandalismo e pequenos furtos. “As brincadeiras, os jogos, as lutas, as
diabruras (...) daqueles garotos tornaram-se passíveis de punição oficial. Os meninos das ruas
17
tornaram-se meninos de rua.” O aumento da marginalização e da criminalidade infantil foi
uma das grandes preocupações das autoridades públicas e da sociedade paulista no início do
século XX.

2. INDIGÊNCIA E CRIMINALIDADE INFANTIL NAS RUAS E NOS CORTIÇOS


PAULISTANOS

Foram nos cortiços e nas ruas do centro da cidade de São Paulo que a presença da
indigência e da delinquência infantil ficavam mais visíveis para as autoridades públicas e para

14
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaskman. Rio de Janeiro:
Editora LTC, 1981, p.179.
15
ENGELS: Op. cit. p. 166 – 167.
16
ARIÈS: Op. cit. p.189.
17
SANTOS, Marco A. Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del
(org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p. 229.

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sociedade. “A rua é, (...), o espaço no qual a pobreza ganha plena visibilidade, (...), e são
tênues os limites que a separam do crime e da delinqüência.”18 A infância marginalizada
estava inexoravelmente relacionada a situação de miséria e indigência das famílias que
moravam nos cortiços. Segundo a definição de Boris Fausto:

No Brasil de fins do século XIX, a adolescência não é ainda um conceito. (...), a


expressão não tem sentido quando aplicada a base da pirâmide social. (...), “os
meninos da rua não tem tempo nem condição de serem crianças e adolescentes. Eles
vivem uma mistura de vida onde as experiências infantis, juvenis e adultas se
superpõem no mesmo momento e sempre de forma drástica: a beira da morte,
sofrendo medo, atacando ou sendo atacado”. Mas a figura do menor, (...) aplica-se em
toda a extensão aos meninos pobres. (...), podemos mesmo afirmar que a menoridade
na sua dimensão ligada à esfera do trabalho ou a pedagogia terapêutica é um conceito
aplicável à gente pobre.19

Esses menores, geralmente, tinham nas ruas seu meio de sobrevivência através da
mendicância, da prática de pequenos furtos, da gatunagem e no caso das meninas, com a
prostituição. “Assim como o menor (...) era iniciado precocemente nas atividades produtivas
(...) também o era nas atividades ilegais numa clara tentativa de sobrevivência numa cidade
que hostilizava as classes populares.”20 Ou seja, para as autoridades públicas, a rua era o
espaço por excelência do vício e da imoralidade que pervertia as crianças abandonadas. “Isso
faz pensar também que no domínio da vida real, (...), a infância era um período de transição,
logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida.” 21 Segundo Esmeralda Blanco
Bolsonaro de Moura:

Mas, a rua é, também, o espaço do ócio, do comportamento visto como imoral, o


espaço do crime, o espaço onde se reproduzem formas de sobrevivência tidas como
verdadeiramente marginais, onde as misérias sociais estão em permanente e
contundente exposição. É, enfim, o espaço no qual a ordem estabelecida tem de lidar

18
MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da
identidade da criança e do adolescente na República. In: Infância e Adolescência. Revista Brasileira de
Historia. 1999, vol.19, n.37, p.4.
19
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo: 1880 – 1924. São Paulo: Brasiliense,
1984, p.80.
20
SANTOS: Crianças e criminalidade... Op. cit. p.218.
21
ARIÈS: Op. cit. p.18.

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com sua própria vulnerabilidade: o ambiente das ruas (...) torna-se ameaçador. A rua
adquire assim, uma identidade perversa, associada ao crescimento da cidade,
identidade que se reproduz para além do universo das elites. 22

Para as autoridades, a mendicância era a porta de entrada para o mundo da


delinqüência, os menores que agiam nas ruas, pedindo esmolas, muitas vezes explorados pelos
seus próprios pais, e, consequentemente, empurrando-os para a criminalidade. As denúncias
sobre essa exploração eram publicadas nos jornais paulistanos daquela época. Veja nessa
reportagem publicada pelo jornal Folha da Noite de 08 de Março de 1921:

Às vezes, são meninos, que forçados por seus paes, se entregaram ao principio da
mendicância profissional e não conseguiram, em certo dia de pouca sorte, obter em
esmolas, a quantia a quantia que seus progenitores exigiam para admitil-os em casa,
sob pena de toda espécie de castigos corporaes. (...). No dia em que míngua o recurso
da caridade pública, perdido já todo o escrúpulo pelo exercício de uma profissão
ignóbil, e, ainda mais, acossados pela fome, esses menores não hesitam na pratica do
furto, que os conduz a frente da autoridade policial. Isto, quando são apanhados. Do
contrario, o primeiro delicto incita-os ao segundo e assim sucessivamente até a
adopção do furto como meio de “ganhar” o pão. 23

Nos jornais também publicavam inúmeras queixas e reclamaçãoes dos moradores de


bairros onde os menores delinqüentes agiam em bandos, causando arruaças e vandalismo nas
ruas e calçadas. “Pedem-nos chamar a atenção da polícia (...), para a malta de menores
vagabundos que durante o dia e noite cometem os maiores desatinos, (...), arrebentando
campainhas e atirando pedras às vidraças.”24 Tanto que tinha uma coluna no jornal O Estado
de São Paulo sobre as queixas dos bandos de delinqüentes:

Em muitas das cartas que diariamente recebemos para serem publicadas nesta secção,
pedem-nos que chamemos a attenção da policia para os garotos que de manham á
noite se agglomeram nas ruas ou arrabaldes, praticando toda sorte de diabruras num

22
MOURA: Meninos e meninas na rua... Op. cit. p.3.
23
Folha da Noite, 08 de Março de 1921 p.2 Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo (Acervo Folha)
http://acervo.folha.com.br/fdn/1921/03/08/590 (Acesso: 26/06/2011)
24
O Estado de São Paulo, 23 de Março de 1909 p.5. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.

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berreiro infernal. Ainda hontem recebemos cartas de moradores das ruas Maria Borba,
Dr. Almeida Lima, Ipanema, Oriente e outras, (...). A liberdade com que numerosas
maltas de menores vagabundos transformam as ruas de nossos bairros em campos de
“football”, riscam as paredes dos prédios e a pedradas despedaçam vidraças das casas
dos moradores há muito tempo está a reclamar uma providência enérgica das
autoridades da policia.25

A violência desses bandos de delinqüentes também era freqüente nas ruas centrais da
capital paulistana. Gilberto Freyre, através do depoimento de um morador de um cortiço
paulistano em 1900 relatava os confrontos entre esses bandos nas ruas:

(...), prevalecia em nossa cidade à organização das “troças”, constituídas de bandos de


meninos das diferentes ruas ou arrabaldes, bandos que atingiam, às vezes, as
proporções de verdadeiros exércitos. (...). Aqueles pequenos exércitos, além de outros
fins, mais ou menos inconfessáveis, para que se organizavam, como furtar e às vezes
roubar frutas pelos quintais, gêneros e garrafas nos botequins e casas comerciais, além
das depredações, quebra de vidraças e lâmpadas de iluminação pública e (...),
principalmente para cultivar as rivalidades recíprocas. E as competições
constantemente subiam às práticas de verdadeiras guerras, nas quais se distinguiam a
luta pessoal a tapas e socos e pontapés, outras vezes, a briga coletiva organizada, a
pedradas atiradas a mão livre ou por meio de setas (estilingues) ou bodoques.26

Além de aprontar molecagens, depredar janelas e danificar muros, mexer e fazer


gracejos com as moças pedestres eram suas atividades preferidas. A Folha da Noite de 31 de
Janeiro de 1923 noticiava as arruaças de menores delinqüentes no bairro do Brás:

Na rua Joaquim Carlos, no Braz, principalmente no trecho entre a que vae da avenida
Celso Garcia até a Fabrica “Orion” há tudo isso e mais alguma coisa: a reunião de uma
malta de indivíduos malcriados que fazem della posto de recreio, dirigindo graçolas
pesadas as moças e as senhoras que por essa rua tem que transitar. À noite, então, vão
até mais longe crescendo a audácia dos gracejos e o numero dos gracejadores. De uns
tempos a elles tomaram por alvo uma escola publica que há alli e em cujo curso
nocturno há diversas moças. Fazem elles em frente à citada escola um barulho

25
O Estado de São Paulo, 13 de Julho de 1916 p.5. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
26
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p.825.

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infernal, fazendo gestos obscenos e chegando a atirar pela janela pedras e outras coisas
para dentro da sala de aula, em risco de offender aos alumnos. 27

Segundo a tabela abaixo, entre 1900 a 1915, os índices de ocorrências criminais


envolvendo menores delinqüentes mais que triplicaram em São Paulo. (Tabela 3):

Tabela 3 – Quantidade aproximada de menores presos nas cadeias da cidade de São Paulo
(1900 – 1915) 28

Ano Total Maiores Menores


1900 7553 6509 1044
1902 12518 10868 1650
1904 14132 12168 1964
1905 11322 9371 1951
1906 8780 7264 1516
1907 9361 7796 1565
1908 8470 6862 1608
1909 9382 7335 2047
1910 11000 8542 2458
1911 11223 8735 2488
1912 11795 8814 2981
1913 12408 8863 3545
1914 10601 7562 3039
1915 10578 7524 3054

É importante lembrar que a natureza desses delitos cometidos pelos menores tem mais
haver com a sua sobrevivência e também com o desejo infantil pelo produto do roubo.
“Benedicto Machado, menor de 11 annos de edade, foi hontem preso na rua Direita, quando
era perseguido por um empregado da casa Lebre & Mello, por ter furtado um brinquedo que
estava no mostrados da loja.”29 Assim, sua atuação visava sempre o ataque rápido, sutil e
pouco violento sobre os pedestres. “Os dados de 1904 – 1906 indicam o caráter “não

27
Folha da Noite, 31 de Janeiro de 1923 p.6. Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo (Acervo Folha)
http://acervo.folha.com.br/fdn/1923/01/31/1. (Acesso: 26/06/2011)
28
Relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública e de Chefes de Polícia do
Estado de São Paulo, 1900/1915 apud MOURA: Mulheres e menores... Op. cit. p. 152.
29
O Estado de São Paulo, 17 de fevereiro de 1903, p.2. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.

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agressivo” dos delitos praticados por menores.”30 Marco Antônio Cabral dos Santos descreve
os delitos cometidos pelos menores delinqüentes:

A natureza dos crimes cometidos por menores era muito diversa daqueles cometidos
por adultos, de modo que entre 1904 e 1906, 40% dás prisões de menores foram
motivadas por “desordens”, 20% por “vadiagem”, 17% por embriaguez e 16% por
furto ou roubo. Se comparados com os índices da criminalidade adulta teremos:
93,1% dos homicídios foram cometidos por adultos, e somente 6,9 % por menores,
indicando a diversidade do tipo de atividades ilícitas entre ambas as faixas etárias. As
estatísticas mostram que os menores eram responsáveis neste período por 22% das
desordens, 22% das vadiagens, 26% da “gatunagem”, 27% dos furtos e roubos, 20%
dos defloramentos 15% dos ferimentos. Estes dados indicam a menor agressividade nos
delitos envolvendo menores, que tinham na malícia e na esperteza suas principais
ferramentas de ação; e nas ruas da cidade, o local perfeito para pôr em prática as
artimanhas que garantiriam sua sobrevivencia. 31

Outro aspecto preocupante sobre a delinqüência infantil na cidade de São Paulo era o
aumento da prostituição de menores, especialmente na zona do baixo meretrício. “A
prostituição nos meios pobres, (...), adquiria todo um caráter de sordidez maldita, de
descontrole desenfreado, de excesso dionisíaco que assustava as classes privilegiadas.”32
Fausto descreve as “farras” na zona do baixo meretrício paulistano:

Entre agosto e setembro de 1898, A Nação publicou uma série de artigos denunciando
a existência de diversas “farras” no centro da cidade, onde locadores sem escrúpulos
abrigavam meninos e meninas ociosos. Duas casas na Rua Santa Teresa foram alvos
de maior atenção. A primeira delas (...) tinha sido fundada pelo fuão Gouveia, “um
português baixo e gordo, reunindo em si todos os predicados para ser chefe de
farristas: estúpido velhaco, explorador e cínico.” A casa continha cerca de 30
cubículos imundos onde existiam uns 40 colchões em destroços, alugados há dez
tostões por noite. (...). A outra “farra”, também de propriedade de um português, fora
até pouco tempo atrás um antro de prostituição. Com as recentes perseguições
convertera-se em um covil de menores gatunos e vagabundos, com capacidade para
abrigar 150 indivíduos em cerca de 50 cubículos. 33

30
FAUSTO: Op. cit. p.85.
31
SANTOS, Criança e Criminalidade... Op. cit. p.214.
32
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.243.
33
FAUSTO: Op. cit. p.83.

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Vem-se que a prostituição infantil era intensa nesses casebres e cortiços.


Particularmente para as meninas, esse ambiente promíscuo das “farras” era duplamente
prejudicial, pois além de perderem sua infância, essas meninas também perderiam a sua
dignidade como mulheres, ou seja, sua virgindade. O Estado de São Paulo noticiava em 19 de
Setembro de 1917 a atuação da polícia de costumes na apreensão dessas menores:

A policia de costumes apprehendeu hontem numa garagem da rua Libero Badaró a


menor Michelina Cajás, de 17 annos de edade, residente a alameda Jahu, 4. É uma
menina que se transviou do caminho da honestidade e que, por isso, vae ser recolhida
ao Asylo Bom Pastor. A mesma policia apprehendeu hontem na ladeira S. Francisco,
12, casa de má nota, a menor Silvina Salgado dos Santos, menor de 18 annos.34

Foi no final do século XIX que as autoridades públicas montaram uma verdadeira
estrutura tutelar para os delinqüentes, onde a polícia e a justiça atuavam na contenção,
aprisionamento e internamento desses menores em instituições correcionais.

3. A ATUAÇÃO DA POLÍCIA E DAS INSTITUIÇÕES CORRECIONAIS NO COMBATE


A DELINQÜÊNCIA INFANTIL

Como foram abordados nos tópicos anteriores, devido ao crescimento demográfico


desordenado de São Paulo, os índices de delinqüência e criminalidade infantil aumentaram
bastante no final do século XIX, sendo necessário a ação do Estado para controlar essa
situação social. “Na verdade, a preocupação policial de luta contra a vagabundagem e a pequena
criminalidade urbana esteve na origem da criação das instituições de sequestro da infância.”35 A
polícia de costumes será o primeiro e principal organismo público que irá atuar na contenção
da delinqüência nas ruas e cortiços paulistanos. “Em outubro do mesmo ano foram presos
outros nove “gatunos”, (...) havia quatro garotos de 13 anos e um rapaz de 19, todos autores de

34
O Estado de São Paulo, 19 de Setembro de 1917, p.6. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
35
RAGO: Do cabaré ao lar... Op. cit. p.122.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 132

furtos no distrito de Santa Efigênia.”36 Tanto na polícia como os orgãos jurídicos tinham como
base teórica a criminologia italiana nos estudos de Cesare Lombroso. Esse estudioso fundou o
termo antropologia criminal, em que o criminoso nato poderia ser identificado pelo seus aspectos
físicos e raciais. “A fisionomia dos famosos delinqüentes reproduziria quase todos os
caracteres do homem criminoso: mandíbulas volumosas, assimetria facial, orelhas desiguais,
37
falta de barba nos homens, fisionomia viril nas mulheres, ângulo facial baixo.” Sobre a
delinqüência infantil, Lombroso da sua definição do delinqüente nato:

Outro caráter que torna semelhante o menino ao delinqüente nato é a preguiça


intelectual, o que não exclui a atividade pelo prazer e pelo jogo. Eles fogem de um
trabalho contínuo e, sobretudo a um novo trabalho a que se sentem desadaptados.
Quando constrangidos a um estudo fazem o primeiro esforço, repetem sempre esse,
mas evitam outros, pela mesma lei da inércia pela qual não gostam de mudar de
atividade ou conhecer fisionomias novas. Isto porque o intelecto nosso sofre com toda
sensação enérgica nova, enquanto se apraz com as antigas, ou com as novas que sejam
de pouca importância. Às vezes, não se revela a verdadeira preguiça muscular.
Contrasta mas não contradiz com essa tendência, a de mudar continuamente de posto,
de ter novas doidices, encontrar-se junto a muitos companheiros, malgrado sejam
pouco afeiçoados um com o outro, fazendo orgias, de vozes e movimento,
principalmente como foi notado dos meteorológicos, o dia primeiro dos temporais, e
não raras vezes nas costas dos velhos, dos cretinos e dos companheiros mais débeis. 38

Ainda não existia naquela época uma legislação específica para a questão de
delinqüência infantil, sendo esta enquadrada no Código Penal de 1890, era corriqueira a
prisão de menores nas cadeias junto com criminosos adultos. “Até 1902, era comum na cidade
a prisão de garotos efetuada por praças da Força Pública (...), os levavam para as delegacias,
onde passavam uma ou duas noites presos entre perigosos bandidos.” 39 Devido ao volume de
delinqüentes nas cadeias públicas, foi inaugurada em 1902 o Instituto Disciplinar do Tatuapé
para o atendimento aos menores em situação de vulnerabilidade social. “Afastando o menor
dos focos de contágio, correspondia depois as instituições dirigir-lhe a índole, educá-los, forma-

36
SANTOS: Crime e criminalidade... Op. cit. p.219.
37
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião Jose Roque. São Paulo: Ícone Editora,
2007 (Coleção Fundamentos de Direito), p. 197.
38
Idem: p. 67 – 68.
39
SANTOS: Crime e criminalidade... Op. cit. p.223.

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lhe o caráter, por meio de um sistema inteligente de medidas preventivas e corretivas.”40 Tanto a
polícia quanto o Juizado de Orfão empregaram constantemente o internamento de crianças que
se encontravam em estado de delinquência. Segundo essa notícia publicada pelo jornal O Estado
de São Paulo:

O sub-delegado do Cambucy teve hontem conhecimento que na casa de Raymundo de


tal, morador a rua da Assembléia, 30-A, os menores Raphael e Rosário Nasti,
sobrinhos do mesmo, estavam amarrados, um no pé da sua mesa e o outro em uma
arvore onde sofriam castigos. Comparecendo no local indicado, a autoridade verificou
a procedência da denuncia, tendo então dado a liberdade aos menores e providenciou
para que não se reproduzam aquelles factos. Os menores foram castigados por terem
furtado três mil réis de seu tio. Esses menores são muito peraltas e não poucas vezes
tem apparecido na policia como ratoneiros. O pae dos meninos pediu ao dr. chefe de
policia a internação dos mesmo no Instituto Disciplinar.41

Para finalizar, o instituto correcional criado no início do século XX na cidade de São


Paulo vai ter por finalidade a conversão de menores marginalizados e delinqüentes em
cidadãos ordeiros e trabalhadores através de uma severa disciplina militar e de uma educação
pedagógica voltada para o exercício do trabalho agrícola e industrial.

FONTES DOCUMENTAIS:

O Estado de São Paulo (1889 – 1927) Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa


Histórica (CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.

Folha da Noite (1921 – 1927) Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaskman. Rio
de Janeiro: Editora LTC, 1981.

40
LONDOÑO: Op. cit. p. 141.
41
O Estado de São Paulo, 31 de Janeiro de 1903, p. 2-3. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.

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ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa


Camargo Artigas e Reginaldo Forti. 1ª Edição. São Paulo: Editora Global, 1985.

FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo: 1880 – 1924. São Paulo:
Brasiliense, 1984.

GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Editora Record, 1984.

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São Paulo. In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 73 – 91.

LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião Jose Roque. São


Paulo: Ícone Editora, 2007. (Coleção Fundamentos de Direito)

LONDOÑO. Fernando Torres. A origem do conceito do menor. In: DEL PRIORE, Mary.
História da criança no Brasil. 3ª Edição. São Paulo: Contexto, 1995.

MOURA, Esmeralda B. Bolsonaro. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na


construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. In: Revista
Brasileira de Historia. 1999, vol.19, n.37, p. 85 – 102.

____________________________. Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores


sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes, 1982.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_______________. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em


São Paulo (1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

ROLNIK, Raquel. São Paulo - início da industrialização: o espaço e a política. In:


KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de
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SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 –
1915. São Paulo: Anablume/ Fapesp, 2003.

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– 230.

SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano: astúcias da ordem e ilusões do progresso.


In: NOVAIS, Fernando e SEVCENKO, Nicolau, História da vida privada no Brasil, Vol.
3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 7 – 48.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 135

O ABANDONO DE CRIANÇAS NA HISTÓRIA DO BRASIL: UM BALANÇO


ABERTO

Thiago do Nascimento Torres de Paula


(Doutorando em História na UFPR, bolsista Capes)
Professor Doutor Luiz Geraldo Silva
(Orientador)

O objetivo deste texto, é apresenta um balanço sinteco sobre a produção


historiográfica nacional relativo ao abandono de crianças recém-nascidas. Dessa forma a
criança, não especificamente a recém-nascida abandonada, tornou-se objeto de estudo na
década de 1960, no trabalho do historiador francês Philippe Ariès, que buscava construir uma
história da criança, a partir da organização da família burguesa e da escola, foi gestando o
sentimento de infância.1 Após as análises investigativas de Ariès, muitas pesquisas sobre a
criança surgiram, várias delas contestando as informações do estudioso. Colin Reywood,
historiador inglês é um dos exemplos de contraponto à Ariès, pois defende a existência de um
sentimento de infância ainda na Idade Média. Afirmando ainda, que a infância é a impressão
que os adultos têm das crianças, dessa forma em temporalidades diferentes, havia distintas
formas de infância.2
No Brasil, ainda na primeira parte do século XX, Gilberto Freyre já fazia menção
muito superficialmente aos recém-nascidos abandonados.3 No desenvolver de sua longa
produção intelectual, Freyre voltou a fazer referência aos pequenos expostos4 na cidade do
Recife no século XVIII. Registrou que, apesar de muitas igrejas e conventos, que poderiam
acolhe-los, havia um verdadeiro desleixo para com as crianças recém-nascidas abandonas e

1
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.
2
HEYWOOD, Colin. Uma História da infância: da Idade Média à época contemporânea no ocidente.
3
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal.
4
Exposto era a palavra utilizada para referi-se a um recém-nascido abandonado até o final do século XIX.

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que a situação era tal que “algumas pobrezinhas eram estraçalhadas pelos bichos imundos,
que de noite vagavam pelas ruas”.5
Estudos sobre o abandono de crianças no Brasil surgiram como temas secundários em
trabalhos sobre a prática de assistência à sociedade. Podemos citar, Tolstoi de Paula Ferreira,
que na década de 1940 analisou as ações da Santa Casa da Misericórdia em São Paulo e entre
os objetivos da pesquisa estava a atitude do recolhimento dos recém-nascidos enjeitados.6
Na década de 1960, Russel-Wood desenvolveu também uma pesquisa sobre as práticas
assistenciais na América portuguesa, discutindo os documentos da Santa Casa da Misericórdia
da Bahia.7 Segundo a historiadora Alcileide Cabral do Nascimento,

“O trabalho de Russel-Wood tornou-se um tipo de discurso fundador sobre a


assistência aos expostos. Seus temas, seus enfoques, suas teses marcaram as
pesquisas posteriores sobre o aparelho assistencial destinado a preservar a vida
e amparar as crianças abandonadas. Algumas questões como as motivações do
abandono, os altos índices de mortalidade, a origem social das amas e das
crianças, os destinos das crianças que seriam depositadas na roda passaram a
fazer parte de vários estudos em diferentes regiões e cidades do Brasil”.8

A Santa de Casa de Misericórdia de São Paulo, também foi alvo de pesquisa de


doutoramento de Laima Mesgravis, que apresentou seus resultados no Brasil na década de
1970.9 Tal como Russel-Wood, os expostos, ou melhor, o recolhimento e o amparo dos
recém-nascidos enjeitados não eram o eixo central de seu trabalho. Porém, é ela que cria a
tese de que a Roda10 tinha a função de evitar o infanticídio, garantindo o segredo da

5
FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.
p. 175.
6
FERREIRA, Tolstoi de Paula. “Subsídios para história da assistência social em São Paulo”. Revista do
Arquivo Municipal.
7
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755.
8
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a institucionalização
da assistência as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). p. 8.
9
MESGRAVIS, Laima. Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884).
10
Sobre a Roda dos expostos comenta-se que era: “Uma inovação caracteristicamente mediterrânea na
assistência aos enjeitados [...]. Era uma caixa cilíndrica de madeira, colocada dentro da parede de um prédio.
Girava num pino colocado sobre seu eixo vertical, e era repartida ao meio. Originalmente, essas rodas giratórias
eram comuns nos conventos; alimentos, remédios e mensagens eram colocadas na repartição do lado de fora da
parede. A roda era então girada, transportando os artigos para a parte de dentro, sem que as reclusas vissem o
lado de fora, e sem que fossem vistas. Ocasionalmente, uma mãe pobre colocava o filho nessa roda, confiando na
caridade das freiras para que criassem o bebê. A primeira instituída especialmente para receber crianças foi a do
Hospital do Espírito Santo em Roma, em 1198. Já no século XV, a instalação de tais rodas em hospitais tornara-
se prática corrente. Havia vários métodos de informa aos internos de que um bebê tinha sido colocado na roda.
Normalmente, existia um pequeno sino do lado de fora da parede, junto à roda, para ser tocado pela mãe; havia
também as rodas mais sofisticadas, em que o peso do bebê fazia soar automaticamente um sino dentro do

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identidade de quem abandonava e “garantir a honra” da mulher branca que tinha filhos
ilegítimos. Mesgravis inicia uma discussão sobre a relação entre abandono de recém-nascidos
e ilegitimidade.
A partir da década de 1980, a criança e a prática de seu abandono e recolhimento
tornaram-se objeto de estudo específico no Brasil. Maria Luiza Marcílio com sólida formação
na área de Demografia histórica, organizou na Universidade de São Paulo (USP), o Centro de
Estudos de Demografia da América Latina, conhecido como CEDHAL. Marcílio, à frente do
centro de pesquisa citado, com ajuda de seus bolsistas realizou o levantamento de documentos
e textos sobre a criança e seu abandono em vários arquivos e bibliotecas do país. Iniciando a
construção de uma História Social da criança abandonada pelo método da Demografia
histórica.
Os esforços de pesquisa realizados por Marcílio e por seus assistentes, que se
tornariam posteriormente professores universitários e escritores renomados, como Renato
Pinto Venâncio, resultou na constituição de um livro síntese que teve sua primeira edição em
1998, onde trabalhou com a longa duração.11 No primeiro momento, a pesquisadora
demonstra como se dava o abandono de recém-nascidos na Europa, da antigüidade ao século
XX, e, na segunda parte, discute o tema na História do Brasil, desde o período colonial,
passando pelo Império e chegando à República. Ainda na década de 1970, a mesma estudiosa
já dava notícia do abandono de recém-nascidos em São Paulo, a partir do método quantitativo,
no entanto este aspecto da população era apenas um tema secundário de sua pesquisa de
doutorado.12
No final dos anos de 1980, uma segunda geração da Demografia histórica começou a
apresentar os resultados de suas pesquisas em arquivos e sistematizadas no CEDHAL. Em
1988, Renato Pinto Venâncio defendeu na Universidade de São Paulo, uma dissertação em
que analisava especificamente o abandono de crianças recém-nascidas na cidade do Rio de
Janeiro do século XVIII, tendo por base, principalmente, a documentação da Santa Casa de
Misericórdia.13
Na última década do século XX, muitas foram as contribuições na produção
historiográfica referente à criança e seu abandono. Em 1993, Venâncio defendeu sua tese na

hospital”. (RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-


1775. p. 233)
11
MARCILIO, Maria Luiza. História social da criança abandonada.
12
MARCILO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850.
13
VENÂNCIO, Renato Pinto. Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro do século XVIII.

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Universidade de Paris X, que só foi publicada no Brasil em 1999. No seu trabalho,


fundamentado nos métodos da Demografia histórica, o pesquisador construiu uma História
Social, comparando a assistência aos recém-nascidos abandonados nas cidades do Rio de
Janeiro e Salvador nos séculos XVIII e XIX. Venâncio demonstra como as famílias pobres de
ambos espaços faziam diferentes usos da Roda dos expostos, como a única maneira do Estado
contribuir na criação de seus filhos. 14
Ainda nos anos de 1990, a historiadora Mary Del Priore, organizou dois grandes
trabalhos sobre a história das crianças, onde reuniu pesquisadores das mais variadas
tendências da historiografia. O primeiro foi publicado em 199115 e o último em 1999.16
Outros estudos contribuíram, como a dissertação de João Alfredo dos Anjos, defendida na
Universidade Federal de Pernambuco em 1997. Destacando-se por ser o primeiro trabalho
acadêmico sobre a Roda dos expostos da cidade do Recife. Porém, ainda afirmando a relação
entre abandono e ilegitimidade, construída por Laima Mesgravis nos anos de 1970.17
André Luiz M. Cavazzani, em 2005 apresentou e defendeu uma dissertação na
Universidade Federal do Paraná, que contribuiu para compreender as relações de matrimônio
dos recém-nascidos abandonados em Curitiba na segunda metade do século XVIII, assumindo
um víeis de pesquisa pouco trabalho. No ano de 2006, Renato Junior Franco defendeu na
Universidade Federal Fluminense, sua dissertação em História, contribuindo para o panorama
da história dos recém-nascidos abandonados na América portuguesa. Nela, ele estuda como
ocorreu a exposição de crianças em Vila Rica nos anos de setecentos, frisando principalmente
as atitudes da Câmara diante a existência nos enjeitados.18
Em uma perspectiva diferente da História Social, galgada na Demografia histórica
para o tema em questão, temos alguns poucos trabalhos na linha da História Cultural baseados
nas ideias foucaultianas. Um destes estudos é de Henrique Luiz Pereira Oliveira, dissertação
defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 1990, em que analisa o
abandono de recém-nascidos na cidade de Desterro, hoje Florianópolis, no século XIX. O

14
VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à crianças de camadas populares no Rio de
Janeiro e em Salvador – século XVIII e XIX.
15
DEL PRIORE, Mary (Org.). Historia da criança no Brasil.
16
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil.
17
ANJOS, João Alfredo. A Roda dos enjeitados: enjeitados e órfãos em Pernambuco no século XIX.
18
FRANCO, Renato Junior. Desassistidas Minas – a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII.

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mesmo observou que a ação do Estado no ato de prestar assistência aos expostos seria uma
forma de disciplinar os indivíduos e sociedade. 19
Ainda no víeis foucaultiano, a pesquisa mais recente que temos conhecimento é a tese
de Alcileide Cabral do Nascimento, apresentada e defendida em 2005 na Universidade
Federal de Pernambuco. A pesquisadora em vários momentos de seu trabalho faz uso de
elementos da Demografia histórica, mas sua base teórica nitidamente esta em Michel
Foucault. Ela investiga a institucionalização do acolhimento dos expostos em Recife na
transição do século XVIII para o século XIX, na mudança de uma ação caritativa cristã, para
uma ação mais racional com um apoio do Estado, que buscava disciplinar a sociedade, tendo
em vista que a população de expostos, uma vez livre do infanticídio, seria um risco para
coletividade.20
Por último queremos deixar claro que o grupo de historiadores que estuda a criança e
especificamente o abandono e a inserção dessas crianças na sociedade, ainda é muito
reduzido. Por fim, a produção historiográfica neste tema é complementada pelos outros
artigos que são publicados nas Revistas acadêmicas ou em Anais de congresso científicos.21
No Rio Grande do Norte, no ano de 2002, foi apresentado ao Departamento de
História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó, um
monografia com o seguinte título – Vivências índias, mundo mestiço: relações interétnicas na
Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e inicio do
século XIX. O seu autor, Helder Alexandre Medeiros de Macedo, foi o primeiro historiador a
fazer menção a existência de crianças recém-nascidas abandonadas na Capitania do Rio
Grande Norte, frisando que esse não era seu objeto de estudo.
Foi somente em 2005 que apresentamos ao Departamento de História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Natal, um trabalho monográfico que tinha como
objetivo investigar o processo de abandono e recolhimento de recém-nascidos na Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, na segunda metade do século XVIII, intitulada, Filhos da

19
OLIVEIRA, Henrique Luiz Pereira. Os filhos da falha: assistência aos expostos e remodelação das condutas
em desterro (1828-1887).
20
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a
institucionalização da assistência às crianças abandonadas no recife (1789-1832).
21
PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. “Recém-nascidos expostos: os enjeitados da Freguesia de Nª Srª da
Apresentação, Capitania do Rio Grande do Norte (século XVIII)”. Revista Educação em Questão. Ver
também, NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. “Casar, trabalhar, estudar: as estratégias de inserção social das
mulheres expostas no Recife, 1830-1860”. Dimensões – Revista de História. SILVA, Gian Carlo Melo. “Um
novo lugar social: casamento de expostos no Recife”. In: Anais do I Congresso Nordestino de História
Colonial.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 140

escuridão. Nele arrolamos um índice relativamente baixo de expostos e uma alta percentagem
de filhos bastados.
A escassez dos estudos históricos sobre os expostos no Brasil, fez Carlos de Almeida
Prado Bacellar, refletir sobre o abandono de crianças recém-nascidas como objeto de estudo
da história: “No Brasil, os poucos trabalhos que se interessaram pela questão são ainda
insuficientes e pontuais, mas ao menos permitem que se esboce um panorama provisório da
prática do abandono”.22
No entanto uma pergunta pode ser elaborada: o que leva a que sejam insuficientes e
pontuais as pesquisas voltadas para estudar o abandono de recém-nascidos, em outras
temporalidades, apesar de, como Diane Valdez afirma, “a história de crianças abandonadas
não é recente. No decorrer da história, o abandono é uma constante, em diferentes
sociedades”.23
Mediante a indagação feita por nós, e ao contraponto apresentado por Valdez, o
próprio Bacellar responde:

“A exemplo dos estudos europeus, as análises se concentram na investigação


do fenômeno sob dois vieses distintos. Um, mais recorrente, interessado na
atuação das Santas Casas de Misericórdia no recolhimento dos pequenos
inocentes; outro, preocupado com a intervenção das Câmaras Municipais no
controle da recepção e envio dos enjeitados para os cuidados das amas-de-leite.
Ambos se dedicaram a entender o funcionamento de instituições que, dentre
suas inúmeras atividades, dedicaram-se a remediar o sempre onipresente (...)
abandono de crianças”.24

Por outro lado, tais vertentes de pesquisa encerram duas limitações básicas: a primeira,
está relacionada aos recortes geográficos admitidos pelos projetos de investigação. Pois os
mesmos se restringiram a trabalhar localidades onde houve a atuação de Santas Casas de
Misericórdia devidamente instaladas e as raras Câmaras que marcadas por sua pujança
econômica, se preocuparam em cuidar dos expostos. Dessa maneira, esses estudos resumiram-
se ao espaço das poucas cidades que apresentavam as características mencionadas. A segunda
limitação desse gênero de pesquisa se relaciona aos resultados obtidos, que são
definitivamente limitados em sua perspectiva temporal, pois tanto as Santas Casas como as

22
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Abandonados nas soleiras das portas: a exposição de crianças nos
domicílios de Sorocaba, século XVIII e XIX”. In: FUKUI, L. (Org.). Segredos de família. p. 15.
23
VALDEZ, Diane. História da infância em Goiás: séculos XVIII e XIX. p. 40.
24
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Op. cit. p. 15

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Câmaras, documentavam e cuidavam da vida dos enjeitados até sete anos de idade. Deixando
na total escuridão as informações sobre sua inserção na sociedade.25

Por fim, Venâncio em 2010 organizou um livro que congrega historiadores brasileiros
e portugueses, desde os mais experientes até as mais novas gerações de pesquisadores. Neste
trabalho, sob o título Uma história social do abandono de crianças - De Portugal ao Brasil -
século XVIII-XX, encontramos as investigações mais recentes sobre os expostos e a exposição
de crianças. Tal trabalho é o primeiro da historiografia brasileira, que faz um balanço sobre as
pesquisas do abandono de crianças recém-nascidas, buscando refletir sobre está triste
realidade de nosso tempo presente26.

BIBLIOGRAFIA

ANJOS, João Alfredo dos. A Roda dos Enjeitados: enjeitados e órfãos em Pernambuco no
século XIX. Recife: UFPE, 1997. (Dissertação de mestrado em História)

ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. LTC,
1981.

BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Abandonados nas soleiras das portas: a exposição
de crianças nos domicílios de Sorocaba, Século XVIII e XIX”. In: FUKUI, Lia (org.).
Segredos de família. São Paulo: Ed. Annablume/Menge-USP/Fapesp, 2002. p. 15-41.

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OS APRENDIZES: RECRUTAMENTO E DISCIPLINA NAS COMPANHIAS DE


APRENDIZES MARINHEIRO DE PERNAMBUCO (1857-1870).

Wandoberto Francisco da Silva.


Orientadora: Profª. Dra. Alcileide Cabral do Nascimento
Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura- UFRPE

O engajamento de menores em atividades ligadas ao mar é uma herança que vem


desde o período colonial. Todavia, foi durante o século XIX, especificamente, a partir do
segundo reinado, que essa prática aparece acompanhada do estabelecimento de instituições de
formação de marinheiros. O alistamento de crianças para as Companhias de Aprendizes
Marinheiro inauguraria outra forma de pensar a formação de homens para Marinha. Nesse
formato, seria priorizado, pelo menos em tese, a construção de tropas que fossem desde cedo
disciplinadas e ambientadas as atividades náuticas. Levando em consideração, que o
recrutamento forçado acabava trazendo uma gama de homens que não tinham habilidade
alguma para o ambiente militar. O despreparo para vida no mar, os atos de indisciplina dentro
dos navios de guerra e as constantes deserções, trouxeram à tona os males de um modelo
arcaico e violento de mobilizar homens para Marinha brasileira.
O alistamento de menores para as Companhias de Aprendizes da Marinha, por outro
lado, criava a possibilidade de formar tropas profissionais. Os aprendizes dessas instituições
recebiam o treinamento específico de um marinheiro. Eram apresentados, logo cedo, a rotina
e a disciplina próprias de um homem do mar. Meninos que ainda na juventude seriam
destinados a ocuparem os espaços vazios que o recrutamento forçado e o alistamento de
voluntário não conseguiriam preencher. Nesse caso, essa alternativa apresentava não só uma
forma viável de suprir as tropas da Marinha de Guerra, mas, sobretudo, a possibilidade de ter
marinheiros habilitados e disciplinados para atuarem de forma eficiente nessa força militar.
O alistamento de crianças para Armada aconteceu por diferentes caminhos. Os
enjeitados das casas de caridades foi uma das fontes que contribuiu para alimentar os quadros

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dessas instituições. Enviados pelos responsáveis da Santa Casa de Misericórdia ou por outros
estabelecimentos semelhantes, os meninos eram inseridos na vida militar ainda nos primeiros
anos de juventude. Os voluntários matriculados pelos pais e os enviados pela polícia seriam
outras possibilidades de se conseguir menores para Companhias.
Vale salientar, que muito desses meninos enviados pela polícia eram recolhidos nas
ruas sob o uso de força, configurando-se não como alistamento voluntário, mas como
recrutamento forçado. Os chefes de polícia, responsáveis por esse tipo de recrutamento, agiam
como braço forte dos presidentes de província nos assuntos ligados à formação de reserva de
marinheiros. A força era um mecanismo que essas e outras autoridades não hesitaram em
utilizar para recolher das ruas os pequenos peraltas ou larápios, como eram chamados por
essas autoridades. Essa medida foi autorizada pelo regulamento das Capitanias dos portos,
que não isentavam do recrutamento, os menores que apresentassem algum tipo de capacidade
para o ingresso na “profissão marítima”.1
O inspetor do Arsenal da Marinha do Pará, chamando a atenção para questões que
impedia o preenchimento da Companhia de Aprendizes que estava confiada ao seu comando,
destacou a importância de se adotar o recrutamento forçado em uma província que, segundo
ele, era em geral apta para a vida marítima. De acordo com inspetor, era conveniente o
recrutamento na província, porque abundava no litoral da capital, crianças vivendo na
orfandade e na miséria.2 Para essas autoridades, tornou-se um clichê pensar, que o envio de
menores para as instituições militares fazia de meninos vadios e desocupados, homens úteis e
sãos para sociedade. 3
Eram retirados das ruas aqueles garotos que estavam, segundo o discurso das
autoridades, aumentando as fileiras dos desocupados ou ameaçando as propriedades e as vidas
dos cidadãos. Esses tinham que ser afastados da mendicância ou vadiagem e serem colocados
como reserva útil ao Estado. A preocupação de não deixar esses meninos na condição de
vadio, dando-lhes uma ocupação, era visível mesmo quando esses eram retidos nas
companhias temporariamente com a finalidade apenas de correção. Talvez esse tenha sido o
caso de João Batista dos Santos visto na citação abaixo:

1
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
2
Idem.
3
FRAGA FILHO. Op.Cit., p. 128.

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Não é exato o que alega a suplicante Joana Maria da Conceição no requerimento


junto com referência João Baptista dos Santos, visto que este não se acha recrutado,
mas servindo como aprendiz de 7° classe da oficina de carpinteiro deste Arsenal a
bordo da Curveta-União – a fim de corrigir-se em consequência de sua qualidade de
vadio, pelo qual tem que ser aí retido temporariamente. 4

De alguma maneira, é perceptível que antes da preocupação de acolher crianças com o


intuito de oferecer amparo a seres desvalidos, existia o cuidado de recolher das ruas meninos
que precisavam ser reprimidos em seus hábitos de não-trabalho e vadiagem. Menores que por
não estarem ocupados em alguma atividade, considerada produtiva, corriam o risco de se
envolverem com a vadiação e ociosidade do mundo das ruas, incorporando hábitos e
costumes que não eram aceitos pelos poderes públicos. Assim, fazer uso do recrutamento
dava ao governo provincial a possibilidade de varrer das cidades os pequenos vadios ou
garotos delinquentes que habitavam o espaço urbano. É bem provável que assim entendesse o
Juiz municipal de Olinda ao enviar à Companhia de Aprendizes Marinheiro o menor José
Maria da Paz:

O menor José Maria da Paz, que a suplicante Rita Maria da Rocha diz ser seu filho,
foi remetido a esta inspeção pelo juiz municipal de Olinda, em 13 de janeiro do ano
próximo passado, com o ofício da cópia junta, como apto para servir na Companhia
de Aprendizes Marinheiro desta província, por não existirem os pais e vagar nas
ruas, isto, além de entregar-se ao crime de furto, e ser de gênio irascível e maleveado
; o que tudo for dar o seguinte destino, mesmo em vista destas últimas causas, para o
bem da sociedade. 5

Em suma, segundo o inspetor do Arsenal da Marinha, era justificável que o menor


fosse remetido a Companhia de Aprendizes Marinheiro, primeiro por mostra-se apto para
ingressar na vida militar. Segundo, o fato de encontrar-se sem a tutela dos pais, vagando pelas
ruas cometendo o crime do furto, evidencia na análise do documento, outra razão para o
recrutamento do garoto. Fica claro, nesse exemplo, que as instituições de serviço militar
cumpriram tarefa de recolher em suas divisões os pequenos larápios que precisavam ser
disciplinados e afastados das cidades. O serviço das armas se empenharia em fazer dos
meninos de “gênio irascível”6, como exposto nas palavras do inspetor, marinheiros prontos

4
Ofício de Antonio dos Santos, Inspector do Arsenal da Marinha para o Presidente da Província, Conselheiro
Sergio Pereira de Macedo. APEJE, Série A.M. 1857. n° 9.
5
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Inspetor do Arsenal da Marinha, ao Presidente da Província,
Conselheiro Luiz Barbalho Muniz Souza. APEJE, série A.M. 1859. n° 436.
6
O termo esteve ligado a diferentes significados, mas é provável que no documento estivesse fazendo referência
aos meninos que tinha facilidade a ira e ao comportamento colérico. SILVA, Antonio de Morais. Diccionário da
Lingua Portugueza. Vol.2, p. 181. Material disponível em <
http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/2/irascivel > Acesso em maio de 2012.

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para servir a nação. A disciplina militar seria um meio de correção a essa parcela da
população que também se tornara alvo da administração pública.
Assim, percebe-se que o recrutamento de menores se tornava uma prática significativa
para os governos provinciais e as suas autoridades locais. Era através dele, que os presidentes
de província, chefes de polícia e delegados conseguiriam tirar das cidades parte de uma
infância vista como problema. Uma estratégia que beneficiava de um lado administração
pública e de outro a Armada imperial que era suprida com braços para o serviço militar. No
entanto, os esforços para o alistamento e captura desses meninos, não seria uma tarefa fácil de
ser executada.
Segundo Nascimento, para conseguir alcançar o número de alistamento estipulado
pela Corte, saiam ofícios do ministro da justiça e dos presidentes de província para os chefes
de polícia, informando da necessidade de homens para Marinha. Por outro lado, os chefes de
polícia enviavam ofícios aos delegados e subdelegados da capital e das demais localidades da
província. 7Segundo o autor, esses avisos conseguiam viajar os diferentes lugares do país,
alcançando do mais simples policial até aqueles que se ofereciam para o serviço de captura de
novos marinheiros. Não há dúvidas que o recrutamento e o alistamento de menores foram
parte dessa difícil conjuntura de mobilização de pessoas para Marinha de Guerra. Eles
também seriam alvo dos recrutadores, além de se tornarem peças centrais no processo de
reposição das fileiras da Armada durante o século XIX.
A Capitânia dos Portos estava na direção dos garotos que passavam pelo recrutamento
forçado ou aqueles que eram enviados pelos pais, tutores e pelas casas de caridade. 8 Até a
criação da Companhia de Aprendizes de Pernambuco em 24 de outubro de 1857, parte dos
garotos e jovens que chegavam à Capitânia dos Portos, localizada no Arsenal da Marinha,
eram remetidos à Companhia de Aprendizes Marinheiro da Corte, que funcionava desde
1840. Diferente disso, os menores que não seguiam para Corte, permaneciam no Estado e
serviam como educandos da Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal.
Porém, quando criada, a Companhia de Aprendizes Marinheiro de Pernambuco passou
apresentar significativas contribuições a Força Naval brasileira. A mobilização de crianças
para esse estabelecimento vinha das diferentes comarcas da província e até de províncias

7
ÁLVARO NASCIMENTO Op. Cit., p. 68.
8
Coleção de leis do Império brasileiro. Decreto n° 1.591 de abril de 1855. Disponível em: <
http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em junho 2010.

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vizinhas.9 Era comum a essa companhia, assim como as outras, entregar parte dos seus
efetivos para serem enviados à corte. O caso do menor Manoel Ramos da Cunha e o menor
Euzébio Barbosa nos ajuda elucidar essa questão. Os garotos foram recrutados pelo
subdelegado da Freguesia de São José e tiveram seus nomes mencionados em ofício do
Inspetor do Arsenal da Marinha ao presidente da província. Na ocasião, o chefe do Arsenal
pedia que os recrutados fossem enviados à Corte no próximo vapor que chegaria dos portos
do Norte.10 Assim como eles, outros jovens garotos seriam enviados à Marinha de Guerra
todos os anos, cumprindo a difícil tarefa de manter vivos os efetivos dessa força.
Contudo, foi observado nos relatórios do Ministério da Marinha, que a maior parte das
crianças que seguiram para as fileiras da Fortaleza de Willegaignon, resultou de uma
mobilização voluntária e não do recrutamento forçado.

Gráfico 2: Dados dos menores recrutados e dos voluntários enviados à Fortaleza de


Willegaignon entre os de 1860 a 1864.

Fonte: Ministério da Marinha. Disponível em


< http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> Acesso em maio de 2012.

9
Mapa nominal dos menores admitidos no Arsenal da Marinha de Pernambuco. APEJE, série A.M. Inspeção do
Arsenal da Marinha de Pernambuco em 4 de abril de 1857. p. 164.
10
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Capitão do Porto para o Presidente da Província, Conselheiro Sergio
Pereira de Macedo. APEJE, Série A.M. 1857. n° 49.

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É importante levarmos em consideração que os dados do gráfico possivelmente não


revelam o que de fato foi à prática de engajamento de menores no Brasil. O aparente
predomínio de voluntários em Pernambuco e nas demais províncias, não tornam o envio de
crianças ao serviço militar uma realidade mais branda ou menos violenta do envio de adultos
a essa mesma atividade. Parte desses meninos que aparecem como voluntários, na verdade,
foram tomados à força nas ruas pelas mãos arbitrárias da polícia e de outras autoridades
responsáveis pelo recrutamento. Walter Fraga Filho, em seu trabalho, faz aparecer uma
situação que atesta bem essa questão. O aprisionamento de cinquenta menores vadios, sendo
alguns devolvidos para os pais, mestres e senhores, enquanto outros recrutados para a
Companhia de Aprendizes Marinheiro da Bahia.11 Situações iguais a essas, permite-nos
entrever o quanto as autoridades responsáveis pela vigilância da cidade contribuíram para
aumentar os números dos supostos voluntários.
O elevado número de crianças voluntárias em relação ao número de recrutas torna-se
ainda mais problemático, porque não dizer suspeito, quando observamos as dificuldades que
Armada teve durante a maior parte do oitocentos com a mobilização voluntária. É uma
presença constante nos relatórios do Ministério da Marinha a exposição da falta de êxito que
as autoridades envolvidas no processo de engajamento de menores enfrentavam. Para Renato
Pinto Venâncio, os pais e tutores atendiam prontamente aos chamados dos administradores do
Arsenal, visto que, enviá-los para essa instituição podia significar uma atitude de preocupação
e desvelo familiar. 12
Em oposição a isso, vemos que em Pernambuco não eram todos os pais e tutores que
atendiam prontamente aos chamados daqueles que se desdobravam para atingir os números de
recrutas esperado pela Corte. Apesar dos prêmios oferecidos para os meninos que se
apresentavam voluntariamente e do aprendizado profissional, ainda existiam aquelas famílias
que se mostravam resistentes a entregar seus filhos à vida militar. As palavras adiante do
inspetor do Arsenal da Marinha tornam-se exemplar para demonstrar como essas autoridades
tinham a necessidade de espalhar para as famílias as vantagens oferecidas pelas Companhias
de Aprendizes. Era no apelo aos diversos setores da sociedade, inclusive às famílias, que os
responsáveis dessas instituições visavam atrair e arregimentar as forças necessárias para os
seus quadros:

11
FRAGA FILHO. Op. Cit.,p 117.
12
VENÂNCIO. Renato Pinto. Os aprendizes de guerra. In: Mary Del Priore (org.). História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 199.

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Como seria fácil, se pela população espalhassem as vantagens delas para as famílias
e para o país, ou se mesmo arrancassem da perdição tantos meninos desvalidos, que
13
vagam pelas ruas e tabernas sem meio de se educarem.

O intendente da Marinha da Bahia e o Inspetor do Pará nos ajudar a pensar a


insatisfação e a resistência dos pais de entregarem seus filhos as fileiras das companhias de
aprendizes. Segundo eles, era lamentável que os responsáveis por esses meninos preferissem,
“antes ver seus filhos e pupilos na miséria, do que oferecê-los ao serviço nacional”. Alguns
pais e tutores, nas queixas das autoridades, davam prioridade ao serviço de particulares, mas
não entregavam seus garotos a vida militar. 14
Em Pernambuco, torna-se compreensível que muitos pais vissem com maus olhos a
entrada de seus filhos nos estabelecimentos do Arsenal da Marinha, após saber, que das oito
profissões discriminadas numa lista de gente que passou pela cadeia em 1838, estava entre
elas, a de marinheiro.15 As próprias autoridades do Colégio dos Órfãos resistiam em mandar
suas crianças para as Companhias de Aprendizes, argumentando, ser aquele local um lugar
aviltante. É o que se pode constatar no pedido do desembargador, provedor da Santa Casa de
Misericórdia do Recife, que exigiu a devolução de um órfão após o seu alistamento, alegando,
segundo uma junta, poder dar-lhe um “destino mais conveniente e esperançoso”. 16
Em algumas situações, a própria rotina de confinamento e distanciamento causado
pela atividade militar impedia que os pais entregassem suas crianças, ou até mesmo os filhos,
optassem pela profissão de marinheiro. Os longos anos de dedicação e entrega era uma marca
indelével do serviço militar na Marinha e no Exército. Isso certamente causava medo e
assustava muitos menores, quando pensavam na possibilidade de afastarem de seus familiares
por longas datas, sobretudo, aqueles que eram levados ao Rio de Janeiro para compor as
tropas do serviço nacional. O testemunho do Comandante da estação do Rio de Janeiro em
1855 abre bem o leque para compreendermos a dimensão do que estamos tratando. Na
ocasião, estava incumbido de contratar na província de Santa Catarina o alistamento de

13
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 328.
14
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
15
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2002. p.32.
16
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 329.

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menores para Armada. Para isso, publicou no jornal O Mensageiro os artigos 19 e 20 do


regulamento de 14 de abril de 1855, legislação que tratava da mobilização de voluntários. O
uso desses artigos provavelmente visava atingir os menores em suas necessidades, levando
em conta, que tratavam do prêmio que era oferecido aos que se apresentavam
voluntariamente. Segundo o comandante, depois da publicação se apresentaram algumas
crianças querendo ser contratadas. No entanto, a ideia de separação imediata de seus pais
gerou um desanimo tal, que rendeu apenas quatros garotos aos esforços do comandante.17
Em suma, por mais que admitimos que o prêmio em dinheiro fosse uma proposta que
atraísse as famílias pobres a entregarem seus filhos aos chamados de alistamento, é
compreensível também a recusa de alguns pais a esse chamado. Em alguns casos, prevalecia o
interesse de segurar a criança com intuito de utilizá-la para arrimo da família e sustento da
casa. No entanto, para alguns pais ou tutores, a própria razão do distanciamento e quebra do
contato com os filhos se tornavam razões significativas da não entrega dos menores. O
relatório do Ministério da Marinha de 1856 descreve que mesmo sem conseguir oferecer
sustento cotidiano aos meninos, muito responsáveis, negavam-se a entregá-los para o serviço
do Estado “pela pena da separação imediata” e pela pouca confiança que tinham nesse tipo de
atividade.18 Ou seja, vale repetir que os laços de família apresentavam verdadeiramente um
peso considerável frente aos chamados e propostas de alistamento.
A desconfiança no serviço das Armas causa uma verdadeira repulsa e medo naqueles
que se torvam alvo do recrutamento. Como já dito, na maior parte dos oitocentos o serviço
militar era considerado perigoso e violento, voltando-se no geral, para os indivíduos
socialmente indesejáveis. Aqueles que, sem alternativa, arriscavam-se ou eram obrigados a
cumprir o serviço militar, estavam sujeitos a implicações penais e uma rigorosa disciplina. Os
maus tratos e castigos por meios de chibatadas, prisão a ferro e palmatórias não fugia a lógica
da legalidade. Eram em mecanismos legais que alguns oficiais como destaca Álvaro do
Nascimento, “procurava demarcar os limites entre aqueles que ordenam e os que obedecem”.
A subordinação aos regulamentos e o pleno cumprimento das atividades “eram a melhor
prova de que havia disciplina na unidade naval”19

17
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
18
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
19
NASCIMENTO, Op. Cit.,p 46.

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Portanto, o rigor e a forte disciplina da vida militar foram outras razões para que
alguns pais ou os próprios garotos resistissem ao processo de recrutamento em Pernambuco.
O medo pela vida no mar preocupava algumas autoridades ligadas ao alistamento de crianças
durante o século XIX, visto que, percorria entre a população o receio pelo violento processo
disciplinar, tão comum em unidades navais. O recrutamento era uma verdadeira “guerra
civil”. Evitá-lo exigia muitas artimanhas e astúcias das camadas populares no enfrentamento
dos mecanismos e das estratégias de controle do Estado. Esconder seus filhos do processo de
mapeamento e contagem da população foi uma das formas que as famílias encontraram de
isentá-los do serviço militar.
O calabrote, corda grossa, transformada em instrumento de açoite para marujada20,
tornou-se uns dos medos que circulava no imaginário da população, prejudicando os
recrutadores:

O recrutamento é hoje quase o meio exclusivo para conseguir menores para


companhia, visto que ainda vagam pela população as antigas idéias de que o
calabrote persegue de continuo os nossos marinheiros a bordo dos navios de guerra;
Ideias que só as autoridades territoriais e os parocos poderiam fazer desaparecer,
mostrando sempre a falsidade delas, e mesmo despertando a curiosidade dos pais
para observarem nos quartéis a maneira porque são tratados os meninos. 21

É evidente que por mais que as autoridades do Arsenal da Marinha tentassem evitar
que se propagassem ideias como essas descritas acima, os maus tratos e a rígida disciplina nos
navios de guerra, não passavam despercebidos pelas camadas populares do Recife e seus
arredores. A resistência em enviar seus filhos para Marinha mostra que os mecanismos
assistenciais do Estado nem sempre eram aceitos pelas famílias pobres e também não se
tornaram as únicas válvulas de escape para sobrevivência.
A investigação sobre o tema do alistamento e recrutamento de menores possibilita
compreendermos que o serviço militar ganhou múltiplos significados durante a maior parte do
século XIX. Na maioria das vezes, como foi descrito nesse trabalho, a vida na Marinha se
confundia com as duras imagens dos castigos físicos, confinamento, trabalho pesado, rígida
disciplina, além das associações que colocavam o recruta, em algumas situações, em pé de
igualdade com criminosos de toda sorte. Porém, cabe destacar que diante do tom obscuro

20
Ver o dicionário Antonio de Moraes Silva disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/1,2,3/calabrote> Acesso em junho de 2010.
21
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 329.

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dado ao serviço militar, havia também, aqueles que recorriam a essa atividade, não como um
“tributo de sangue”, mas antes, como uma resposta a diferentes situações de vida.
Álvaro Pereira do Nascimento converge a essa ideia ao perceber o envolvimento
estratégico dos capoeiras com a vida militar para fugirem de uma realidade possivelmente
mais dura. Segundo o autor, os capoeiras faziam parte “da buliçosa fauna das ruas do tempo
22
da Corte, que assustava as camadas médias e também a elite dirigente”. Diante disso,
tornavam-se presença constante nas ocorrências policias e crimes do século XIX. Perseguidos
pelo o aparato policial esse grupo, visto com um prejudicial ao sossego público, acabavam
escolhendo a carreira militar para não continuarem presos na polícia. De acordo com
Nascimento, alguns faziam essa escolha para não perderem a liberdade, procurando manter a
possibilidade de transitarem nas cidades nos horários livres, encontrar como amigos, além de
receber os soldos que eram pagos pela Marinha. Alternativa que certamente não teriam se
caíssem em uma cela do complexo prisional da Corte.
Recorrer a Marinha para fugir de uma situação difícil ou até mesmo aviltante também
foi um mecanismo utilizado pelos escravos durante o período oitocentista. Ocupar a posição
de marinheiro em um navio da Marinha de Guerra fazia o escravo ascender socialmente,
principalmente frente a difícil condição escrava. Se apresentar como voluntário, passando-se
por livre, ou até mesmo por engano de algum recrutador- dava ao cativo uma nova condição e
o tirava definitivamente ou temporariamente das mãos de seu senhor. Para uma criança
escrava, a possibilidade de engaja-se nas Companhias de Aprendizes, possivelmente,
representava um futuro bem diferente daquele oferecido aos que cresciam como cativo no
Brasil do século XIX. Talvez fosse isso que vislumbrava o ainda menino e escravo João que,
quando preso pelo chefe de polícia apresentou-se como Manoel, conquistando de forma muito
breve a praça efetiva da Companhia de Aprendizes Marinheiro de Pernambuco. Após ser
investigado pelo comandante da dita Companhia, João revelou que tinha fugido do poder de
seu senhor, além de ter escondido a condição escrava e feito a troca de nome para ajudar no
seu disfarce. 23
O caso de João e de outros menores cativos, que com frequência encontramos na
documentação, sendo enviados pela polícia a Companhia de Aprendizes Marinheiro, nos
permite especular que, de alguma maneira, alguns obtiveram êxito no plano de se passar por

22
NASCIMENTO, Op. Cit., p. 86-88.
23
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da Província,
Conselheiro José Antonio Saraiva. APEJE, Série A.M -1859. N° 101.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 154

livre e conquistar uma praça nessa instituição. Nesse caso, fica claro, que o imposto de
sangue apareceria, em várias situações, como ferramenta ou estratégia para burlar condições
de vida bem mais difíceis. A possibilidade de vê a criança aprendendo um ofício, o ingresso
na vida militar pela Marinha ou até mesmo o simples fato da garantia de uma refeição diária,
que bem ou mal, existia nas companhias de aprendizes, tornaram-se algumas das razões para
que os pais e tutores enviassem seus filhos aos pedidos de alistamento. Eram nessas
instituições militares que “consistia uma das pouquíssimas alternativas de aprendizado
profissional” para os garotos de famílias pobres durante o Brasil Império.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife,


1822-1850. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2002.

FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São
Paulo, SP/ Salvador, BA: HUCITEC-EDUFBA,1996.

NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da Marujada: recrutamento e disciplina na


Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.

VENÂNCIO. Renato Pinto. Os aprendizes de guerra. In: Mary Del Priore (org.). História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.

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ST 03 – ÁFRICA E AFRICANIDADES:
HISTÓRIA E ENSINO
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 156

“ANGOLANO SEGUE EM FRENTE”:


MÚSICA E POLÍTICA EM ANGOLA (1960-1970)

Amanda Palomo Alves


(Doutoranda em História - Universidade Federal Fluminense)
Marcelo Bittencourt Ivair Pinto (Orientador)

O presente artigo apresenta as primeiras reflexões acerca do nosso projeto de


pesquisa sobre a musicalidade em Angola durante os anos sessenta e setenta do século XX.
Assim, em um primeiro momento abordaremos o contexto colonial naquele país, para então,
apontarmos questões referentes à música produzida no período supracitado.
Em sua obra “Angola: nascimento de uma nação”, Carlos Serrano 1 realiza uma
análise sucinta das pesquisas efetuadas na área de ciências humanas que se referem à África
lusófona. De imediato, o pesquisador constata que esses estudos se fortalecem a partir dos
anos 1960 devido a generalização da Luta de Libertação Nacional em todos os territórios do
sistema colonial português. O estudioso comenta, ainda, que entre as décadas de 1960 e 1980,
muitas análises acerca do espaço africano lusófono foram realizadas fora dele, ou seja, por
cientistas sociais de países como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França, Portugal,
Canadá, Itália, Suécia, Bélgica e Brasil.
Serrano argumenta que na fase contemporânea dos estudos feitos sobre Angola
os conteúdos se baseiam, sobretudo, em temas do ponto de vista geográfico, a respeito das
relações raciais, de aspectos étnicos e socioeconômicos ou sobre as problemáticas e as
vicissitudes relativas ao próprio colonialismo português. Pudemos verificar que são raros os
estudos sobre cultura e, em especial, sobre música. Tal cenário se modifica a partir de 2008
com a publicação da obra “Intonations: a social history of music and nation in Luanda,
Angola, from 1945 to recente times” 2, da historiadora estadunidense Marissa J. Moorman.
Contudo, antes de compartilharmos algumas reflexões sobre a musicalidade em Angola,
faremos uma breve contextualização acerca do período colonial naquele país.

1
SERRANO, Carlos. Angola: nascimento de uma nação – um estudo sobre a construção da identidade nacional.
Luanda: Edições Kilombelembe, 2008, p. 61-64.
2
MOORMAN, Marissa J. Intonations: a social history of music and nation in Luanda, Angola, from 1945 to
recent times. Athens, Ohio: Ohio University Press, 2008.

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A história de Portugal em Angola, remonta aos tempos da expansão


ultramarina. De acordo com Marcelo Bittencourt3, a expansão político-militar portuguesa foi
nomeada pelos seus executores de “guerras de pacificação” e se estendeu até as duas
primeiras décadas do século XX4. Em outro trabalho, o autor assevera que na segunda metade
da década de 1950, consolidado o controle político-militar por Portugal, a Polícia Política
Portuguesa (PIDE) se instalou em Luanda a fim de investigar e cessar as movimentações dos
angolanos envolvidos com a divulgação de panfletos que continham mensagens anticoloniais.
Norrie Macqueen esclarece: “Qualquer manifestação de protesto nas colônias era sujeita a
sistemática e violenta repressão. Em 1957, a polícia política do regime, a Polícia Internacional
e de Defesa do Estado (PIDE), abriu delegações em todos os territórios africanos e começou a
organizar uma enorme rede de informadores” 5.
De toda maneira, é no meio urbano clandestino, isolado e jovem que surgirá
uma das correntes de contestação que mais tarde irá ingressar no Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA)6. Vale lembrar que no que se refere à contestação ao
colonialismo português, a alteração na forma de reivindicação esteve intimamente relacionada
ao clima geral de descolonização presente na África e, também, na Ásia. Em 1960, conhecido
pela literatura que trata do tema como o “ano da África”, dezoito ex-colônias proclamaram a
independência no continente. Apesar da tentativa das forças repressoras do regime português
em evitar a penetração dessa influência nas regiões africanas sob seu domínio, o clima de
efervescência era pulsante. O autoritarismo e o sistema de partido único adotado por Portugal
agravaram a situação colonial, condicionando o tipo de luta que seria levado adiante pelas
forças independentistas7.

3
BITTENCOURT, Marcelo. As linhas que formam o “EME”: Um estudo sobre a criação do Movimento
Popular de Libertação de Angola. 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade de São Paulo,
1996, p. 27-28.
4
Consideramos importante ressaltar que a intensificação da presença portuguesa em Angola, no século XX, não
teve apenas um perfil militar. Ela foi, sobretudo, física e econômica. A população branca de Angola salta de
9.198 indivíduos em 1900 para 20.700 em 1920; 44.083 em 1940 e 172.529 em 1960. Em 1974, este número
alcança mais de 300.000 habitantes (Idem, p.28).
5
MACQUEEN, Norrie. A descolonização da África portuguesa: a revolução metropolitana e a dissolução do
império. Lisboa: Editorial Inquérito, 1998, p. 38.
6
BITTENCOURT, Marcelo. “Estamos juntos”: o MPLA e a luta anticolonial (1061-1974). 2002. Tese
(Doutorado). Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002, p. 28.
7
A ditadura salazarista implicava a impossibilidade de se travar a disputa política na esfera da legalidade, tanto
na metrópole quanto nas colônias. Contra esse tipo de colonialismo adotado por Portugal, as opções não eram
muitas. A luta teria que ser necessariamente clandestina e, consequentemente, pela via armada
(BITTENCOURT, Idem, p. 48-49).

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Sabemos que desde os princípios da colonização, a colônia foi dividida em


dois campos distintos e desiguais: a sociedade colonial e a sociedade colonizada. Na situação
colonial em África, a dominação foi imposta por uma minoria estrangeira em nome de uma
superioridade étnica e cultural dogmaticamente afirmada. A sociedade colonial compreende
os estrangeiros e aqueles comumente denominados indígenas8 ou nativos. Embora superior
numericamente, a sociedade colonizada era considerada minoria sociológica. Frantz Fanon9
atesta que o mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar
fisicamente, isto é, com seus policiais e guardas, o espaço do colonizado, pois para ilustrar o
caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de
“quintessência do mal”: “Declarado impermeável à ética, ele é o mal absoluto. Elemento
corrosivo, destruindo tudo de que se aproxima, elemento deformante, desfigurando tudo o que
se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e
irrecuperável de forças cegas” 10.
Em prefácio à obra de Fanon supracitada, Jean-Paul Sartre explica que a
violência colonial não se atribui, apenas, ao objetivo de controlar esses homens dominados,
ela procura desumanizá-lo: “Nada será poupado para liquidar suas tradições, para substituir
suas línguas pelas nossas, para destruir sua cultura sem dar-lhe a nossa; nós os
transformaremos em brutos pela fadiga11”. Sob esta ótica, Serrano12 declara que na relação de
dominação, a identidade do outro é determinada pelo dominador. O colonizador, ao
estabelecer categorias, como o “indígena”, o “nativo” ou o “assimilado” prescreve categorias
de identidade e define o caráter da relação de si próprio com os que estão na situação de
dominados.
Ao atentarmos para os países de colonização portuguesa poderemos observar
que os quatrocentos anos da presença portuguesa em África são marcados pelas diversas
formas de resistência, como a produção literária de protesto, denúncia escrita por intelectuais,
movimentos, greves e desobediência civil. Todavia, novas formas de luta permitirão forjar a
8
A decisão portuguesa em avançar de fato com o projeto colonial em Angola implicou na elaboração de uma
legislação para dar conta desse processo, que envolveu a classificação e delimitação dos espaços mais amplos da
sociedade colonial angolana. Surgem, assim, os “civilizados” e os “indígenas” - categorias de indivíduos
juridicamente definidos e que dividiam e, ao mesmo tempo, compreendiam toda a população do território
angolano, tal como acontecia em outras colônias portuguesas (Ibidem, p. 34-35). Cabe acrescentar, ainda, que
eram considerados indígenas os africanos não assimilados que, na avaliação das autoridades coloniais, não
dominavam os códigos culturais europeus.
9
FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005, p. 58.
10
_____________. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
11
SARTRE, Jean-Paul, apud, FANON, op.cit., 2005, p.31-32.
12
SERRANO, op.cit., p. 47.

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unidade desses povos dentro das fronteiras impostas pelo colonialismo. Em um primeiro
momento, através de movimentos culturais, onde jovens intelectuais começam a conscientizar
parte da população dentro das raras possibilidades legais existentes para mais tarde nascerem,
dentro da clandestinidade, os partidos políticos que iriam conduzir a luta pela
independência13. Julgamos importante destacar que paralelamente a essa luta política de
características locais, grupos de estudantes das diversas colônias que tinham emigrado para
Portugal a fim de realizar seus estudos universitários (dada a ausência de instituições em seus
países de origem) também se organizaram em torno de associações culturais legais.
Durante os anos 1940 e 1950 jovens angolanos se reuniam em Lisboa com
demais estudantes das colônias de Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe a fim de formarem organizações que combatessem o jugo colonial e em prol da
independência. Em 1951 surge em Lisboa o Centro de Estudos Africanos (CEA), que reuniu
os principais futuros líderes dos movimentos pela descolonização das colônias portuguesas:
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade. O
governo salazarista pôs fim às atividades do Centro, mas não findou os encontros daqueles
estudantes que deram continuidade à luta politica anticolonial na Casa dos Estudantes do
Império (CEI), através de uma intensa atividade cultural de reabilitação do patrimônio
histórico e cultural dos seus povos.
Marcelo Bittencourt afirma que uma forma de driblar a censura e as limitações
impostas pela ditadura foi a construção de uma visão nacionalista da cultura com o objetivo
de: “recuperar o patrimônio africano, sistematicamente relegado pelas autoridades coloniais
14
ao esquecimento, por meio da fundação de revistas e jornais culturais” . É fundamental
destacar que o material15 divulgado por essas publicações forneceu a base para as discussões
políticas dos grupos independentistas, muitos deles, inclusive, já organizados de forma

13
São nos centros urbanos que nascem - através de jornais escritos por intelectuais africanos - as primeiras
denúncias do modo violento com que se impôs a dominação colonial. Duas associações formadas a partir de
1929 foram importantes neste contexto: a Liga Nacional Africana e o Grêmio Africano. Com a chegada de
Salazar ao poder, em 1928, surgem condições para aqueles indivíduos que lutavam dentro das associações legais
e que procuravam de uma forma clandestina estabelecer linhas de ação que pudessem conduzir à formação de
uma consciência nacional (Idem, p.132-133).
14
BITTENCOURT, Marcelo. Angola: tradição, modernidade e cultura política. In: REIS, Daniel A.; MATTOS,
Hebe; OLIVEIRA, João P.; MORAES, Luís Edmundo S. e RIDENTI, Marcelo (orgs). Tradições e
Modernidades. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2010, p. 134.
15
Na passagem da etapa de divulgação cultural para o momento de criação e organização de pequenos grupos de
ação política clandestina, a influência do pensamento de orientação marxista foi basilar. Ele era transmitido aos
angolanos independentistas através de trabalhadores marítimos exilados do regime e por intermédio de
estrangeiros. O material a que tinham acesso incluía panfletos, revistas brasileiras e romances de escritores
identificados com o marxismo, como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Idem, p. 136-137.

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clandestina. O reconhecimento político e a tomada de posição política implícita nessa postura


resultaram numa tomada de consciência verdadeiramente nacional em relação a sua
“angolanidade”, pois a juventude de Angola buscou uma nova mensagem que era
consubstanciada num sentimento nacional e numa consciência política nacionalista.
Em 1959, o colonialismo português reagiu de forma repressiva às atividades
dos militantes do MPLA. Alguns dirigentes do movimento foram presos, julgados e
deportados para as ilhas de Cabo Verde16. Em março daquele ano a PIDE realizou uma ampla
operação em Luanda e em demais cidades, culminando com a prisão de vários suspeitos de
conspirarem contra a soberania portuguesa. Segundo Bittencourt17, apesar do retrocesso que
essas ações simbolizavam para o movimento de contestação colonial, elas proporcionaram o
reconhecimento, por parte de Portugal, de que havia grupos organizados, lutando pela
independência das colônias.
Uma nova fase de luta acontece a partir de quatro de fevereiro de 196118,
quando várias ações são desencadeadas na capital angolana, gerando repressão violenta e a
morte de três mil pessoas pelas forças coloniais. Com o início da luta armada nas diversas
colônias, a prisão de militantes nacionalistas, a fuga de outros para o exterior e o
encerramento, em 1964, da Casa dos Estudantes do Império, os intelectuais se dedicam às
atividades político-militares dos seus partidos na luta pela independência. Apesar dos
problemas e obstáculos surgidos começa-se a forjar uma nova consciência unitária:

A Luta Armada de Libertação Nacional vai trazer ao seu seio diferentes


grupos étnicos dentro do espaço, dentro do território angolano na luta contra
um inimigo comum: o colonialismo português. Desde logo, começa-se a
forjar uma unidade nacional para além dos diferentes grupos étnicos. Tal
mobilização dos indivíduos combatentes dentro do território nacional, bem
como a luta comum travada num período prolongado, constituirá um dos
pontos fundamentais na construção da identidade nacional angolana19.

16
“Tarrafal” é o nome de uma das prisões onde eram enviados presos políticos. Alguns documentários foram
feitos sobre a prisão, dentre eles, “Há setenta anos, o Tarrafal: os últimos sobreviventes” e “Tarrafal: memórias
do campo da morte lenta”.
17
BITTENCOURT, op.cit., 1996, p. 117.
18
Ao dissertar sobre a última fase do colonialismo Gervase Clarence Smith atesta que quando, em 1961, a
revolta armada angolana abalou o império português até aos seus alicerces, muitos observadores esperavam que
Salazar fosse derrubado e que se iniciasse a descolonização. Em vez disso, Salazar sobreviveu às tentativas do
seu afastamento, optando por ficar e aguentar uma longa e desgastante guerra de guerrilhas em África. SMITH,
Gervase Clarence. A última fase do colonialismo. In: O III Império Português (1825-1975). Teorema. Lisboa,
1985, p. 201.
19
SERRANO, op.cit., p. 139.

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Com os movimentos de independência travados e a luta armada fora de Angola


e ao longo de suas fronteiras, as autoridades coloniais reconheceram que a cena cultural no
interior do país politizou os angolanos, alimentando um sentimento generalizado de revolta.
Durante este período foi gravada uma série de canções que sinalizavam a necessidade de
descolonizar e enalteciam o sentimento nacional. Esta fase ficou conhecida como a “fase de
ouro da música popular angolana” e os musseques foram espaços fundamentais neste
contexto.
Nos anos 1960, Luanda poderia ser caracterizada pela dualidade: de um lado, a
cidade habitada pelos colonizadores, de outro, os musseques. “Musseque” é um termo
originário do kimbundu que significa “lugar de areia”. Tal defnição foi cunhada por Ramiro
Ladeiro Monteiro em sua obra antropológica “A família nos musseques de Luanda”,
publicada em 1973. Monteiro foi um administrador colonial na circunscrição de São Paulo,
em Luanda. Em 1962 foi tranferido para os serviços de Centralizações e Coordenação de
Informações, também em Luanda, cujo objetivo era “reunir, estudar e difundir informações
que interessassem a política, a administração e a defesa das respectivas províncias e prestar
apoio aos seus governos”. A obra de Monteiro nos fornece características interessantes dos
musseques, mas a literatura de José Luandino Vieira, especialmente a obra “Nosso
musseque”20, nos apresenta uma abordagem diferenciada desses bairros. O autor, nascido em
Portugal, passou sua infância e adolescência nos musseques de Luanda. Tal vivência fez com
que sua produção literária testemunhasse um conhecimento vivido no universo desses bairros
periféricos e avaliasse as consequências do sistema colonial.
A expressão musseque ganhou sentido pejorativo ao qualificar os moradores
desse local. A precariedade das residências, a falta de infraestrutura básica como luz elétrica,
saneamento e água encanada são algumas características destes lugares que foram temas de
várias canções, e dentre elas “Chofer de Praça” de Luiz Visconde:

Mandei parar um carro de praça


Ancioso em ver meu amor
Chofer de praça então reclamou
Quando eu lhe disse que meu amor
morava no subúrbio:
“Tempo chuvoso no subúrbio, não vou
Pois sou chofer de praça, não barqueiro”.

20
Em 20 de novembro de 1961 Luandino Vieira foi preso sob a acusação de atividades subversivas. Estava
preso, aliás, quando escreveu grande parte dos seus livros, incluindo “Nosso Musseque”, redigido entre os anos
1961 e 1962.

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Então emplorei:
“Peço o senhor chofer leve-me por favor
Ela não tem culpa de morar no subúrbio
Enquanto a chuva é obra de natureza”.

Rogério da Silva Guimarães21 aponta que ao evidenciar as vulnerablidades dos


musseques percebemos a sua fragilidade em relação ao caráter opressor do colonialismo. Tal
situação ganha contornos mais graves com o início da luta anticolonial, pois a repressão
contra os movimentos favoráveis a independência se intensifica junto às populações dos
musseques. Antes vistos como lugares de bandidos e vagabundos, seus moradores passaram a
ser comparados a terroristas - inimigos de Portugal. Em outra perspectiva, Marissa Moorman
assinala que uma análise da cena musical abre novos caminhos para a compreensão desses
22
espaços. Nas palavras da autora: “é dado aos musseques, um valor histórico novo” . Jomo
23
Fortunato explica que os musseques seriam o espaço de transição entre o universo rural e a
cidade, um “laboratório” de canções que iria absorver as expectativas do ambiente da cultura
urbana. As letras sinalizavam as experiências vividas no cotidiano, como a perda de pessoas
queridas e problemas no trabalho. A nova forma de música se tornou uma espécie de
linguagem comum, orientando um público urbano que forjou a sua angolanidade com sons e
símbolos desenhados a partir da Angola rural.
Ao refletirmos sobre a música angolana no período colonial os clubes revelam-
se lugares importantes. Lucio Lara observa que vários sujeitos envolvidos com o MPLA
(músicos da banda “Ngola Ritmos”, inclusive) participaram de reuniões em clubes como o
“Bota Fogo”. O agrupamento musical surgiu em 1947 por iniciativa do músico Liceu Vieira
Dias. O objetivo era preservar a cultura angolana e afirmar a identidade nacional numa
tentativa de reação à imposição colonialista. Deste modo, cantavam em kimbundu com a
intenção de elevar a cultura dos seus antepassados e de estabelecer uma relação entre o campo
e a cidade, cujas diferenças eram muito acentuadas. Dada a dificuldade em transmitir a sua
música através do rádio ou televisão, o grupo se apresentava para amigos em aniversários,
festas e espetáculos no Bairro Operário, local onde a banda foi formada. Moorman comenta

21
GUIMARÃES, Rogério da Silva. As vulnerabilidades dos musseques luandense na década de 1960. Anais do
XIV Encontro Regional da Anpuh-Rio: memória e patrimônio, relizado na cidade do Rio de Janeiro, entre os
dias 19 e 23 de julho de 2010.
22
MOORMAN, op.cit., p.28-55.
23
FORTUNATO, Jomo. Processo de formação da música popular angolana. Jornal de Angola. 19 de outubro
de 2009. Disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/35/processo_de_formacao_da_musica_popular_angolana. Acesso em julho de
2012.

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que o “Ngola Ritmos” simbolizou a ligação entre música e política, pois alguns de seus
membros foram presos em 1959 e, também, porque utilizaram a música como uma
‘cobertura’ para a política. Em outras palavras, o “Ngola Ritmos” 24 foi fundamental para
relação entre cultura e nacionalismo, ultrapassando interpretações baseadas, exclusivamente,
em textos literários e líderes políticos25.
Pudemos verificar até o momento que em nome da independência política, os
artistas manifestaram uma soberania cultural que os moveu em direção à nação e ao
nacionalismo. Em outras palavras, o sentido da nação foi forjado no cenário musical. A autora
supracitada entrevistou vários músicos e estes argumentaram que a música estava voltada para
os problemas que tiveram e o sofrimento que passaram. Muitos cantavam em Kimbundu26 e
assim foram capazes de criticar o sistema colonial português. Neste sentido, a música figurou
como uma forma de resistência.
Sob a ótica de Marissa Moorman a música foi a prática cultural, onde os
angolanos imaginaram a nação27. Contudo, todas as canções produzidas teriam pouca
repercussão se não fossem os recursos tecnológicos, responsáveis pela gravação e divulgação
desse material. Nesta direção, o programa de rádio do MPLA “Angola Combatente” foi
basilar. Bittencourt explica:

O programa “Voz Combatente” [...] foi um dos mais importantes


instrumentos de divulgação da luta e das propostas do MPLA e o único canal
de ligação regular e de risco não muito elevado com os que estavam em
território angolano [...]. Esse programa radiofônico do MPLA [...] passa a ser
transmitido às quartas e domingos com cerca de uma hora de duração [...].
Nesta fase teria como música de abertura a canção “Muxima” – depois,
substituída pelo hino do MPLA28.

As canções de abertura do programa eram, na maioria das vezes, compostas e


interpretadas por soldados angolanos do MPLA com inclinação musical. O grupo mais citado

24
Em 2009 foi lançado um documentário sobre a banda: “O Lendário Tio Liceu e os N’gola Ritmos” (Beta
Digital PAL, 52 min.).
25
MOORMAN, op.cit., p. 60-70.
26
Neste período, canções foram interpretadas em quase todas as línguas locais angolanas, mas o kimbundu foi
predominante.
27
A pesquisadora toma como referencial teórico a obra “Comunidades Imaginadas”, de Benedict Anderson.
28
BITTENCOURT, op.cit., 2002, p. 308-309. É importante ressaltar que membros ligados a PIDE passaram a
rastrear esses programas e fizeram transcrições das locuções, o que hoje nos permite consultar todo esse
material.

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foi o N'zaji29. Ao atentar para a música de Angola do pós-independência Moorman tece,


relativamente, poucos comentários, mas cita que os cantores entrevistados por ela recordam
esta época com nostalgia, pois segundo eles foi um momento em que o Estado apoiou e
respeitou os músicos. Descreveram a música desta fase como "revolucionária", cuja missão
seria "mobilizar a massas, contribuir para a educação dos jovens no enfrentamento dos
problemas da guerra e do analfabetismo” 30.
O envolvimento e intervenção estatal na música angolana do período pós-
independência vem nos chamando muito a atenção. Neste contexto, o agrupamento musical
“Kissanguela” teve um papel de suma importância:

O Kissanguela foi constituído em 1974, em Luanda, um ano antes da


Independência Nacional, pela secção cultural da JMPLA, na perspectiva de
se constituir no seu braço cultural. O seu objetivo principal era servir de
veículo transmissor das orientações e da estratégia política do MPLA31.

Autor de clássicos como “Avante o poder popular”, “Invasores de Angola”,


“Kitadi kyá Ngola”, “Poema”, “Estrangeiro”, “Noite Longa”, “Camarada”, “Rumo ao
socialismo” e “Twa na Ngola”, o agrupamento foi, durante alguns anos, responsável pela
disseminação das mensagens do MPLA dentro e fora do país. A discografia do “Kissanguela”
é constituída pelos LP’s “Vitória Certa”, onde consta as canções “Twa kwá Divua” (Fató),
“Avante o poder popular” (Calabeto), “Invasores de Angola”, “Kitadi kyá Ngola” e
“Estrangeiro” (Santos Júnior) e, ainda, “Noite longa” e “Rumo a independência”. Foram
gravados, também, os álbuns “Agrupamento Kissanguela”, “Rumo ao Socialismo” e
“Progresso, disciplina, produção, estudo” - títulos que revelam o compromisso político e
partidário do conjunto, assim como as capas dos discos.
Outros agrupamentos que merecem destaque e serão pesquisados por nós são
“Angolenses” e “Fapla Povo”. Normalmente, a crítica estabelece comparações muito
próximas entre os “Angolenses” e o agrupamento “Kissanguela” pelo perfil das canções de
caráter intervencionista. O agrupamento “Fapla Povo” esteve ligado à Direção Política Militar
e integrou músicos como David Zé, Urbano de Castro32 e Artur Nunes.

29
A primeira faixa do disco “Música Popular Angolana” do Conjunto N’zaji é “MPLA invulusi”.
30
MOORMAN, op.cit., p. 165-189.
31
Relembrar o agrupamento Kissanguela. Jornal de Angola. 01 de abril de 2010. Matéria disponível no site:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/relembrar_o_agrupamento_kissanguela. Acesso em julho de 2012.
32
Em 1970 Urbano de Castro foi preso pela PIDE onde esteve recluso durante três anos, na sequência de uma
tentativa de fuga para Cabinda, com o intuito de se juntar aos guerrilheiros do MPLA. A segunda tentativa

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Gostaríamos de destacar, por fim, que a pesquisa encontra-se em fase inicial de


investigação. As fontes coletadas até o momento têm nos feito refletir e repensar a
problemática relacionada à música produzida em Angola no período pós-independência, em
especial, a chamada “música de intervenção”. A análise da discografia destes intérpretes e
agrupamentos será nossa próxima tarefa. Lembramos, ainda, que parte das fontes33 já foi
coletada e o restante conseguiremos nas cidades de Luanda e Lisboa.

REFERENCIAIS:

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ocorre em 1973. a partir daí, o cantor se juntou “Esquadrão Maiombe” com Sabata, Kiamuchi, David Zé,
Francisco Vasco Vigário e Passarão - guerrilheiros do conhecido esquadrão Mayombe. A canção “Angola
liberté” (editada em single) é desta época e angariou um grande efeito mobilizador. Castro foi um dos principais
vocalistas do conjunto musical “Fapla-Povo” (FORTUNATO, Jomo. Angola: o percurso musical de Urbano de
Castro. Jornal de Angola. 16 de janeiro de 2012. disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/o_percurso_musical_de_urbano_de_castro. Acesso em julho de 2012.
33
Nossas principais fontes são: a discografia dos agrupamentos; as capas dos álbuns; o material de arquivo da
Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE); arquivos de rádios e gravadoras; matérias jornalísticas
publicadas em periódicos e entrevistas.

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identidade nacional. Luanda: Edições Kilombelembe, 2008.
S/autor. Relembrar o agrupamento Kissanguela. Jornal de Angola. 01 de abril de 2010.
Matéria disponível no site:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/relembrar_o_agrupamento_kissanguela. Acesso em julho de 2012.

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A REPRESENTAÇÃO ÉTNICO-RACIAL DO SEGMENTO SOCIAL NEGRO: LIVROS


DIDÁTICOS DE HISTÓRIA

¹CLEONICE de Fátima de Souza

Professora da SEED do Paraná – Mestre em Educação (UNISO)


cleonicesouza7@gmail.com

INTRODUÇÃO

Para este trabalho foram escolhidos livros selecionados pela SEED do Paraná e
professores da rede estadual de ensino, analisando seus textos e imagens, a partir da visita in
loco em uma escola estadual no interior do estado do Paraná, deste início de século XXI.

Os livros didáticos selecionados para a pesquisa trazem abordagens equivocadas,


depreciativas e negativas à população negra, o que além de ocasionar constrangimentos às
crianças e jovens, contribui para a constituição de idéias de superioridade étnicas de um grupo
sobre outro.
Em consonância com os conceitos discutidos, o trabalho revela que é possível
vislumbrar uma resposta à questão que se levanta sobre a possibilidade de se articular
mudanças no cotidiano da escola pública no Estado do Paraná. O Estado, por muitos anos, foi
apresentado como um local de descendentes de europeus, com uma pequena parcela de
orientais e outra, menor ainda, de negros.
A invisibilidade era sentida e vivida pelo segmento social negro. Porém, pesquisas
recentes do Grupo de Trabalho Clóvis Moura, FUNPAR (Fundação da Universidade Federal
do Paraná), Fundação Palmares, confirmam a existência de comunidades tradicionais negras e
comunidades quilombolas na região onde foi desenvolvida a pesquisa. O que não se esperava
é que o Paraná historicamente considerado europeu ou europeizado, além de ser reconhecido
como de expressiva população negra, se descobrisse com uma geografia na qual a existência
de Comunidades Negras Tradicionais, de Comunidades Remanescentes de Quilombos é
relevante em seu território.
Este trabalho é um estudo sobre uma perspectiva reflexiva acerca da
representação histórica e social dos negros nos livros didáticos das séries finais do Ensino

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Fundamental. Também é uma maneira de compreender as conseqüências do racismo


brasileiro, quando se leva o outro (discriminado) a rejeitar a si mesmo e a desejar se
assemelhar ao padrão considerado como o ideal de beleza, normal: o branco, no caso.
Durante a prática pedagógica foi percebido que os saberes instituídos pelos livros
didáticos ou pelo professor eram tratados, pela maioria dos alunos, como saberes
sedimentados e inquestionáveis. Constatou-se que elementos alienantes presentes em livros
didáticos de História podem conduzir os educandos a sentimentos, valores e posicionamentos
de negação de sua história, em destaque pelos próprios afro descendentes.
Os livros didáticos ainda trabalham a questão da história tradicional, notadamente
eurocêntrica, onde os negros são apresentados sempre como escravos, desprovidos e
desmotivados de resistência, e que não possuem significativa atuação em movimentos sociais,
como também, na vida cultural de comunidades africanas ou mesmo no Brasil.
Algumas questões e reflexões são norteadoras deste trabalho, por que os personagens
negros são tecidos de maneira inferiorizada e sujeito à violência verbal ou física. Observou-se
que isso não se dá igualmente; há diversas formas de inferiorizá-los. Logo, foram
caracterizados através de predicações pejorativas, aproximação de incapacidade intelectual de
aprendizagem até a higiene pessoal dos envolvidos.
O estudo do cotidiano escolar é fundamental para melhor se compreender como a
escola desempenha o seu papel socializador, seja na transmissão dos conteúdos escolares,
sejam na veiculação das crenças e valores que aparecem nas ações, interações, nas rotinas e
nas relações sociais que caracterizam o cotidiano da experiência escolar.
A escola é um espaço privilegiado como instituição social, no qual é possível o
encontro das diferentes presenças. Também é espaço sócio-cultural marcado por símbolos,
rituais, crenças, culturas e valores diversos.
Neste ambiente observou-se a quantidade reduzida de alunos afrodescendentes
matriculados no Ensino Fundamental e Médio. Alunos afrodescendentes, geralmente são
retidos por anos na mesma série, ou não concluem o Ensino Fundamental. No Ensino Médio
os índices de repetência e evasão aumentam; há uma segregação da própria instituição
estudada em relação aos afrodescendentes.
As ações frustradas empreendidas pelos sujeitos são justificadas pelo destino e
ocorrem em forma de fracasso individual, culpabilizando os mesmos pela ausência de sucesso

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e de perspectivas de ascensão social, quando efetivamente estes são fracassos coletivos, visto
que são resultantes de um modelo social excludente e seletivo.
Metodologicamente destacamos que nosso estudo partiu da análise de livros didáticos
de História do Ensino Fundamental, séries finais, restringindo-se ao racismo e estereótipos
presentes nos livros de História. Observando-se os textos e ilustrações propõem atividades
que valorizem as diferenças entre as raças e reflexões acerca de questões étnico-raciais.
Observando a maneira como o assunto é tratado por esses livros, foi aplicado questionários
aos alunos e professores, tendo como ponto comum a ser investigada, a visão e a formação
destes alunos frente à diversidade étnico-racial.
Do universo de alunos da escola, focou-se nos matriculados nos dois últimos anos do
Ensino Fundamental (sétima e oitava séries). No total, foram 62 alunos participantes da
pesquisa, distribuídos em duas turmas, sendo os mesmos adolescentes de 13 a 17 anos.
Do universo de professores que trabalham com as turmas selecionadas apenas sete
participaram da pesquisa.
O trabalho de campo teve duração de sete meses, de junho a dezembro de 2009. As
reflexões sobre os conteúdos referentes ao segmento social negro tomaram como referência a
experiência escolar direta de seus legítimos participantes: professores e alunos.
A pesquisa norteou-se numa abordagem qualitativa e a coleta de dados e apoiou-se em
questionários com questões fechadas e abertas para caracterizar os entrevistados nos aspectos
profissionais e pessoais.
Os livros analisados foram escolhidos pelos professores da rede estadual de ensino em
2007, e distribuídos aos alunos no ano de 2008, conforme as determinações estabelecidas pelo
(Programa Nacional do Livro Didático), sendo um dos recursos utilizados para o ensino de
História.
Na tentativa de colaborar nas discussões, reflexões e estudos sobre o estereótipo e
preconceito em relação ao segmento social negro no livro didático de História do Ensino
Fundamental, a pesquisa foi conduzida entre as indagações iniciais e as que foram surgindo.

LIVRO DIDÁTICO, TEXTOS E IMAGENS: O SEGMENTO SOCIAL NEGRO

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Para realização da pesquisa, foram examinadas três coleções do Ensino Fundamental.


Nos livros pesquisados: Saber e Fazer História de Gilberto Cotrim (2007), Editora
Saraiva; História e Vida Integrada, de Claudino Piletti e Nelson Piletti (2007), Editora Ática e
História- Conceitos e Procedimentos de Eliete Toledo e Ricardo Dreguer (2007), Editora
Saraiva, não há informações narrativas acerca dos povos africanos, seus costumes e cultura,
como há sobre as demais civilizações ocidentais e do Oriente Próximo. Analisando os livros,
percebeu-se que os personagens apresentados estavam relegados ao passado, nos séculos
XVIII e XIX. Nas obras História e Reflexão, Saber e Fazer História do autor Gilberto Cotrim,
o Continente Africano é apresentado como sendo fonte de matérias-primas e mão-de-obra,
sem ao menos mencionar quais povos estavam sendo retratados em textos e ilustrações.
Dessa maneira, associou-se a imagem do negro, como sinônimo de escravidão, apenas
como trabalhador braçal. Reproduziram-se a invisibilidade de seres humanos portadores de
uma diversidade histórica e cultural, eliminando-se a possibilidade do negro aparecer na
sociedade, como portador de novos pensamentos, de organizador de um modelo de política
alternativa, como agente transformador.
Vejamos o que se pode romper com essa construção casual ao analisarmos a letra da
lei, após décadas de lutas por políticas educativas de inclusão da história da população negra
na História Oficial do Brasil. Em 9 de janeiro de 2003 entrou em vigor, a Lei Federal
10639/003 (Brasil,2003), onde, em seu artigo 26-A, torna obrigatória a inclusão do estudo das
“Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. A Lei
10639 é um grande avanço, porém, não significou uma mudança do Estado na forma de agir e
ver a população negra. Existe uma grande resistência por parte das escolas para que a lei seja
aplicada de fato. Por ser professora de escola pública, interessei-me em compreender por que
os livros didáticos utilizados nas escolas públicas continuam produzindo e veiculando um
discurso racista.
Verificou-se que há uma grande quantidade de textos e gravuras nos livros de Ensino
Fundamental. Ao abordar o tema escravidão, observou-se a abundância de imagens que
parecem não apenas informar, mas reforçar as condições de vida dos cativos.
No Ensino Fundamental, o assunto é tratado com mais ênfase na sétima série quando é
apresentado ao aluno o mundo colonial. O escravo aparece neste contexto vinculado ao
sistema colonial como uma peça. A vida destes trabalhadores só será mencionada novamente

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nos currículos na ocasião da abolição da escravidão final do século XIX, sendo um dos
últimos temas abordados na sétima série.
Este fato nos transporta a pensar de que forma as bases curriculares estão organizadas
e como, em sua fragmentação pode revelar ou silenciar sobre aspectos relevantes que
interferem na produção do conhecimento. À medida que delega diferentes valores a
determinados atores sociais, estabelece o lugar que outros devem ocupar. A historiografia
centrada na visão européia, onde os elementos negros e índios aparecem como os
“diferentes”, naturaliza a idéia de que o normal é ser branco. A História da África ou mesmo
da América antes da chegada dos europeus é abortada dos compêndios escolares.
O uso intensivo do livro didático, que constitui-se em um recurso amplamente
utilizado pelo professor, tornou-se comum no Ensino Fundamental nas escolas públicas,
principalmente, a partir da distribuição gratuita pelo Governo Federal, através do PNLD
(Programa Nacional do Livro Didático).
Segundo a pesquisadora Circe Bittencourt (1997, p. 72-73), o livro didático representa
um dos principais recursos para o professor de História:

O livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de trabalho
de professores e alunos, sendo utilizados nas salas de aula e servindo como
mediador entre a proposta oficial do poder e expressa nos próprios currículos e o
conhecimento escolar ensinado pelo professor.

O livro didático funciona também como mediador entre o saber acadêmico e o


conhecimento escolar. Neste caso, os autores tentam veicular informações numa linguagem
mais acessível ao leitor, aproximando-se mais de sua realidade. Muitas vezes, o resultado é a
simplificação exagerada descaracterizando determinados conceitos, ou mascarando outros.
Dessa forma, ele pode estar contribuindo, para que no processo cognitivo de apreensão do
conhecimento, determinados valores sejam reforçados de forma estereotipada, influenciando
negativamente na formação identitária de alunos e professores. Por isso, considera-se de
extrema importância a análise de seus textos e imagens.
Ao analisar a relação texto-imagem, concluí-se que as gravuras reproduzidas estão em
consonância com o conteúdo do texto. Elas explicam a trajetória de vida dos escravos
africanos explícita no texto verbal, caracterizando a visão historiográfica de seus autores. Nos
livros examinados há a predominância de um discurso que prioriza as estruturas econômicas
atribuindo a elas o desenvolvimento político e social.

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Nesta visão, a escravidão está inserida a um contexto mais abrangente, apresentando o


escravo como uma simples peça da engrenagem: o escravo passivo e massacrado pelo
sistema. Esses estudos reduziram a escravidão a um insignificante aspecto do sistema colonial
a serviço do capitalismo, produzindo conceituações teóricas generalizantes. Nesta ótica, a
imagem do escravo aparece como objeto ou mercadoria, o escravo tratado como simples peça
imóvel e passiva. O elemento escravo aparece somente vinculado ao latifúndio e à
monocultura, estabelecendo uma relação direta com o mercado externo. A sociedade
escravista se apresenta polarizada entre senhores e escravos, sem considerar as
especificidades nascidas ao longo do tempo.
Na tentativa de denunciar o escravismo, essa visão acaba por reproduzir o discurso da
classe dominante, que se valia de tais argumentos para justificar os maus tratos.
As imagens, reproduzidas reforçam a trajetória de vida sofrida, reduzindo os quase
quatro séculos de escravismo a momentos de permanente dor. A própria condição de escravo,
já retira do homem o que se pode ter de melhor: a dignidade.
Mesmo sob o cativeiro, os escravos criaram relações específicas de amizade e
solidariedade.
A discussão sobre a prática docente e a produção curricular não estão presentes tanto
em nível acadêmico como no espaço escolar. As inovadoras propostas curriculares e as novas
tecnologias disponíveis como recurso pedagógico, não deram conta das deficiências do
sistema educacional como um todo.
A simples gravura estampada em um dos muitos livros de História pode ter muito a
nos dizer. Dessa forma, a representação elaborada sobre o papel do negro na sociedade
brasileira desde os tempos da escravidão repassada pela escola, pode afetar a representação
que o adolescente faz de si mesmo. Pode reforçar preconceitos em relação ao papel social do
negro.
A imagem é um importante recurso pedagógico sendo amplamente utilizada nas edições mais
recentes dos livros didáticos de História para o Ensino Fundamental.

“As crianças têm necessidade de ver as cenas históricas para compreender a história. É por
essa razão que os livros de história estão repletos de imagens”. (LAVISSE apud BITTENCOURT,
1997).
Para Ernest Lavisse, historiador francês do século XIX e autor de livros didáticos, “ver
as cenas”, possibilita uma melhor compreensão dos conteúdos escritos além de facilitar a

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memorização dos fatos. A utilização de imagens de uma maneira geral nos livros didáticos
cumpre os objetivos de reforçar o texto e torná-lo mais atraente para o mercado.
O caráter mercadológico e as questões técnicas de fabricação da obra didática
interferem no processo de seleção e organização das imagens e delimitam os critérios de
escolha, na maioria das vezes, das ilustrações. Os livros didáticos não podem ser caros, mas
necessitam de gravuras, como pressuposto pedagógico da aprendizagem, principalmente para
alunos do ensino elementar.
Verificamos que há uma grande quantidade de gravuras nos livros de Ensino Fundamental,
diminuindo consideravelmente nos livros de ensino médio.
Considerando que, desempenha um papel significativo na formação ideológica e cultural no
cotidiano escolar, seus textos e imagens passam a ser um forte referencial para quem o lê. Como um
importante instrumento de trabalho em sala de aula, constata-se que, muitas vezes, professores e
alunos o têm como única fonte de informação, e que funciona como sistematizador dos conteúdos da
proposta curricular oficial.
Nos livros, as imagens selecionadas reproduzem apenas cenas dramáticas: castigos corporais,
fugas e torturas. O título de um capítulo dedicado à escravidão da coleção História e Vida Integrada de
Nelson Piletti e Claudino Piletti (2007) para a sétima série reforça essa visão: Escravidão, o sofrimento
que produz riqueza. As denúncias podem ser interessantes, mas relega ao escravo o papel de agente
absolutamente passivo.
O livro didático é um instrumento importantíssimo para a efetivação do processo de ensino-
aprendizagem. Chega a ser atualmente, em muitos momentos, mais relevante que o tempo em sala de
aula, para o aluno. E suas vantagens para o professor são também bastante significativas, pois o livro
didático lhe possibilita organizar suas atividades em etapas, seleciona a abordagem ou o método a ser
usado, obedecendo a certos princípios, apresenta o que deve ser ensinado, organizando
sistematicamente o conteúdo programático.
O livro didático, portanto, pode garantir ao professor o ensejo de preencher lacunas, de
corrigir deficiências, de superar dificuldades de acrescentar informações e de conduzir reflexões
acerca dos saberes históricos difundidos pelos autores e, por outro lado, pode orientar no planejamento
das aulas, desde que não seja o único organizador e transmissor do conteúdo histórico, deixando de ser
entendido como material fundamental às práticas de professores e alunos.
Numa perspectiva histórica o livro didático de História assume funções diferentes ao longo do
processo histórico. Nas primeiras décadas da República ele tinha uma importância nacional, isto é, era
uma das falas do projeto nacional liderado pelo governo republicano, produzido por intelectuais
ligados às elites dominantes. A partir de 1930, com o início da expansão das escolas passa a chegar a
um número maior de pessoas, sendo também utilizado como divulgador das idéias nacionalistas. A

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partir de 1950 e principalmente em 1970 sua produção descentraliza-se e outros grupos sociais
também participam da sua produção.
Além disso, sua repercussão muda de caráter e seus autores não mais têm a importância no
cenário político dos anteriores.
É um instrumento importantíssimo para a consolidação e disseminação de uma memória
histórica determinada que, por sua vez, marca fortemente a representação de passado de gerações
inteiras que passa pela escola. Assim sendo, através da trajetória do livro didático é possível identificar
as abordagens/memórias privilegiadas e silenciadas em seus desdobramentos. Logo, o percurso do
livro didático de História nos permite analisar diversas questões, entre elas o tratamento dado à
experiência escrava brasileira.
A maioria dos livros didáticos de História mantém, ao longo desses anos, uma história da
escravidão sustentada na análise econômica (escravo como mão-de-obra), na qual os escravos são
meros objetos e mercadorias, apresentando mudanças pontuais e secundárias no texto. Não permite a
construção de uma memória histórica mais complexa, o que certamente provoca desdobramentos na
concepção de mundo dos brasileiros ainda hoje.
Os dados apresentados a seguir comprovaram nossa hipótese inicial os textos e imagens
presentes nos livros de História trazem abordagens equivocadas, depreciativas e negativas à população
negra:

 Mulher negra como empregada doméstica;


 Homens, mulheres e crianças como escravos;
 Serviçal;
 Moradores de rua;
 Favelados;
 Castigos físicos;
 Humilhados.
Há existência de estereótipos em relação aos negros nos textos dos livros de história:
 Descrito como incapaz;
 Vítima de rejeição e zombaria;
 Passivo;
 Vivendo em condições precárias;
 Analfabetismo;
 Ocupações de trabalho inferiores em relação aos outros segmentos sociais.

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Nas imagens selecionadas e pesquisadas as condições de vida da população afrodescendente


em relação à moradia, escolaridade, saúde, segurança, eram marcadas pela desigualdade e
exclusão.
Nas três coleções selecionadas foram encontradas 120 imagens representando o segmento
social negro. A maioria das imagens retratava cenas de escravidão e castigos; apenas 17 imagens
apresentavam aspectos positivos do povo negro: líderes políticos, ativistas em movimentos sociais,
esportistas e artistas.
Selecionou-se as imagens que estão em consonância com os conteúdos dos textos:

Figura 1: Livro: História – História e Vida Integrada – volume 3


Fonte: BRASIL. MEC (2010, p. 181)

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Figura 2: Livro: História – História e Vida Integrada – volume 2


Fonte: BRASIL. MEC (2010, p.182)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os apontamentos aqui realizados, não devem ser considerados como conclusões ou


discussões finalizadas, eles constituem a iniciativa de dar visibilidade à multiplicidade de
livros didáticos disponíveis, fato que se constata antes das avaliações do PNLD assim como
em 2007. Visando contribuir para a mudança deste fato e ainda para a formação de uma
escola voltada para a diversidade cultural pronta a respeitar as diferenças étnicas, tomando
como ponto de partida o livro didático, tendo em vista que o mesmo exerce forte influência na
formação do aluno e do cidadão brasileiro. Se os livros didáticos apresentarem imagens do
segmento social negro, como integrante ativo da sociedade brasileira, no mundo dos negócios,
artes, família, pesquisadores, estudantes, certamente as crianças negras vão internalizar essas
imagens positivas em suas vivências e experiências cotidianas.

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DAS RAÍZES AFRICANAS À CULTURA AFRO-BRASILEIRA: UM CAMINHO ENTRE


A LEI 10.639/2003 E A PRODUÇÃO EM DANÇA AFRO-BRASILEIRA NA ESCOLA

Proponente: Jeancarlos Nunes Garcia (UEL)

Orientador: DR Ronaldo Alexandre de Oliveira (UEL)

Este artigo apresenta, com base na inserção da Lei 10.639, de 9 de janeiro


de 2003, que tornou obrigatório no currículo oficial da rede de ensino, a temática História e
Cultura Afro-Brasileira. Após os levantamentos dos documentos existentes na escola sobre a
normatividade desse tema nas (DCEB - Arte) Diretrizes Curriculares da Educação Básica de
Arte, (DCEB - História) Diretrizes Curriculares da Educação Básica - História, e nos
Cadernos Temáticos dos desafios Educacionais Contemporâneos - Educando para as Relações
Étnico-Raciais. As experiências de estudos e práticas vivenciadas em um trabalho de
produção de dança afro-brasileira na escola, que apontou um caminho na direção de
aproximação entre o direito do aluno de ter acesso ao conhecimento sobre esse assunto e as
possibilidades pedagógicas desenvolvidas nessa produção. Este trabalho envolveu a área da
arte e também outras áreas do conhecimento, com o acompanhamento da equipe pedagógica,
a direção escolar, ultrapassou os limites dos muros da escola, culminando na participação de
pais de alunos inseridos no projeto, que eram de 5ª série do ensino fundamental a 3ª série do
ensino médio, realizado no Colégio Estadual Comendador Geremias Lunardelli no Município
de Grandes Rios – PR.

Nas Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Arte na sua organização,


encontramos em seus conteúdos estruturantes especificamente nos movimentos e períodos, a
presença da Arte Africana inserida nas quatro linguagens da arte: Artes Visuais, Teatro,
Música e Dança. Em sua proposta metodológica percebemos as possíveis relações entre essas

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linguagens com os elementos formais1, composição2 e nos movimentos e períodos3. Nesse


sentido as DCEB de Arte apontam para a liberdade do professor em articular e relacionar
conteúdos apontados nesses esquemas.

Afirmando que em toda prática pedagógica estejam interligadas as relações


dos conhecimentos com as práticas artísticas

[...] dessa forma, devem-se contemplar, na metodologia do ensino da arte, três


momentos da organização pedagógica:

• Teorizar: fundamenta e possibilita ao aluno que perceba e aproprie a obra


artística, bem como, desenvolva um trabalho artístico para formar conceitos
artísticos

• Sentir e perceber: são as formas de apreciação, fruição, leitura e acesso à obra de


arte

• Trabalho artístico: é a prática criativa, o exercício com os elementos que compõe


uma obra de arte

O trabalho em sala poderá iniciar por qualquer um desses momentos, ou pelos três
simultaneamente. Ao final das atividades, em uma ou várias aulas, espera-se que o
aluno tenha vivenciado cada um deles. (DCE Arte, 2008, p.70).

Na (DCEB – História) Diretrizes Curriculares da Educação Básica de


História, são evidenciados em seus Conteúdos Estruturantes três eixos: Relações de Trabalho,
Relações de Poder e Relações Culturais. Por meio da utilização desses, o professor poderá
inserir o tema História e Cultura Afro-Brasileira e Africana em suas aulas.

[...] Por meio destes Conteúdos Estruturantes, o professor deve discorrer acerca de
problemas contemporâneos que representam carências sociais concretas. Dentre
elas, destacam-se, no Brasil, as temáticas da História local, História e Cultura Afro

1
Caracteriza-se pelo contexto histórico relacionado ao conhecimento em Arte. Esse conteúdo revela aspectos
sociais, culturais e econômicos presentes numa composição artística e explicita as relações internas ou externas
de um movimento artístico em suas especificidades, gêneros, estilos e correntes artísticas. (DCE Arte p.63)
2
É o processo de organização e desdobramento dos elementos formais que constituem uma produção artística.
Num processo de composição na área de artes visuais, os elementos formais – linha, superfície, volume, luz e
cor. (DCE Arte p.63)
3
Caracteriza-se pelo contexto histórico relacionado ao conhecimento em Arte. Esse conteúdo revela aspectos
sociais, culturais e econômicos presentes numa composição artística e explicita as relações internas ou externas
de um movimento artístico em suas especificidades, gêneros, estilos e correntes artísticas. (DCE Arte. p.63)

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Brasileira, da História do Paraná e da História da cultura indígena, constituintes da


história desse país, mas, até bem pouco tempo, negadas como conteúdos de ensino.
(DCEB - História, 2008, p.64).

Podemos perceber que tanto nas DCEB - Arte como nas DCEB - História o
professor tem a liberdade metodológica para lidar com a História e a Cultura Afro Brasileira,
aprofundando aspectos que sejam pertinentes ao conhecimento dos alunos e suas relações
com outros conteúdos específicos relacionados a cada disciplina, sendo possível a todas as
séries e a qualquer momento no contexto pedagógico.

Nos cadernos Temáticos, Educando para as Relações Étnico-Raciais


encontramos uma coletânea de produções que auxiliam o professor em sala de aula. Nessas
produções encontramos textos, artigos, estudos, debates, elaboração e acompanhamento de
propostas, realização de seminários, simpósios, sugestões de filmes, vídeos, livros, revistas,
sítios, etc.

Este material tem a intenção de focalizar as relações étnico-raciais de modo a


colaborar para uma compreensão crítica dos condicionantes que determinam a
situação que observamos atualmente no Brasil em relação aos afrodescendentes e
africanos. Propõe-se, dessa forma, o necessário enfrentamento ao pensamento
eurocêntrico, enfrentamento este que, segundo entendemos, precisa ser feito
cotidianamente no interior de nossas escolas estaduais. (CADERNOS
TEMÁTICOS, 2008, p. 6).

Conforme a realidade de cada escola em suas organizações curriculares,


seus planejamentos, os conteúdos relacionados aos temas contemporâneos, especifico sobre a
cultura afro-brasileira e africana deve ser contemplada a todas as disciplinas, em perspectivas
que favoreçam os alunos a repensarem a própria história.

Esta publicação, resultante de um processo encaminhado pelo Departamento da


Diversidade, através da Coordenação de Desafios Educacionais Contemporâneos
por meio da Equipe de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com a
assessoria de outros profissionais, teve seu ponto de partida nas necessidades reais
dos/as educadores/as da Rede Estadual de Ensino. Dividida em três partes – Artigos,
Inventários de Experiências e Sugestões de Filmes, Músicas, Bibliografi as e Sítios –
seu formato segue a mesma linha dos Cadernos Temáticos, publicados

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anteriormente, mas não é uma seqüência dos mesmos. Seu conteúdo inédito traz
informações que são encaminhadas por diferentes linhas de expressão – histórica,
sócio-filosófica, antropo-teológica, artística, literária e didático-pedagógica – através
de reflexões de teóricos/as oriundos/as de diversos meios (CADERNOS
TEMÁTICOS, 2008, p. 11).

Percebemos que este caderno fornece aos professores da rede pública de


ensino do estado do Paraná uma série de produções que poderão contribuir como recursos
didáticos a serem discutidos e refletidos em sala de aula com os alunos. Esses cadernos foram
produzidos após a Lei 10.639/03 que torna obrigatório a inclusão do ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação básica, construindo um novo olhar sobre o
passado e a partir de novos referenciais valoriza a cultura de matriz africana. Encontramos
dessa forma uma comparação no ensino de historia anterior e posterior Lei 10.639/03:

Ensino de história no Brasil anterior a Lei 10.639/03: Referenciais eurocêntricos e


etnocêntricos, criam representações estereotipadas do povo negro que geram praticas
de preconceito, discriminação e racismo que reproduzem as representações
existentes. Ensino de historia no Brasil na perspectiva da lei 10.639/03: Novos
referenciais (africanidades) viabilizam novas representações do povo negro que
geram praticas de respeito e valorização que criam e passam a reproduzir novas
representações. (CADERNOS TEMÁTICOS, 2008, p. 78).

Com base nesses conceitos e reflexões apontados nas (DCEB – Arte)


Diretrizes Curriculares da Educação Básica – Arte, (DCEB – História) Diretrizes Curriculares
da Educação Básica – História e nos Cadernos Temáticos Educando para as Relações Étnicos
Raciais, desenvolvemos uma pratica educacional, por meio de um projeto intitulado
“DANÇA-Viagem ao Mundo Através do Corpo” vinculado ao programa Viva Escola (um
programa que traz novas possibilidades ao professor em trabalhar com um grupo de alunos os
conteúdos de sua disciplina em horários de contra-turno, com 4 horas/aula semanais,
ampliando as necessidades do professor e dos alunos em aprofundar e explorar determinados
conhecimentos sistematizados na disciplina em questão) em nosso caso um projeto na área de
arte, especifico da linguagem da dança.

Sobre a linguagem da dança inserida no contexto escolar a DCEB –Arte


aponta que é “fundamental buscar no encaminhamento das aulas a relação dos conteúdos

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específicos próprios da dança com os elementos culturais que a compõem” (DCEB – Arte,
2008, p. 73). A DCE-Arte aponta conceitos de dança, definindo que “o elemento central da
dança é o movimento corporal, por isso o trabalho pedagógico pode basear-se em atividades
de experimentação do movimento, improvisação, em composições coreográficas, e processo
de criação (trabalho artístico)”, de forma que devemos “entender a dança como expressão,
compreender as realidades próximas e distantes, perceber o movimento corporal nos aspectos
sociais, culturais e históricos (teorizar). Nas aulas de arte devem ser levantados
questionamentos de maneira que o aluno reflita sobre o “sentir e perceber” a dança, tais
como: “De que maneira o corpo se movimenta no espaço? Que relações há entre movimento e
tempo? Quais passos se repetem com mias frequência na coreografia?” (DCEB - Arte, 2008,
p74)

A linguagem da dança se manifesta por meio de emoções físicas,


impulsionadas pelas sensações musculares e pelas articulações do corpo, sendo o corpo uma
forma de expressão. Como afirma Martins, Picosque e Guerra:

Praticar o pensamento sinestésico tornando o presente por meio de ação corporal,


poetizado pela criação de movimentos expressivos.

Aprender a estrutura e o funcionamento corporal por meio de diferentes formas de


locomoção, deslocamento e orientação do espaço.

Criar, improvisando, movimentos expressivos a partir de diferentes formas


corporais, como curvas, esticar, torcer, balançar, sacudir, respondendo as pulsações
internas rítmicas, mudança de tempo, etc.

Registrar as sequências de movimentos expressivos criados em coreografias simples.

Perceber e ler as soluções expressivas encontradas pelo grupo para comunicar pelo
movimento e sua ideia de sentimento/ pensamento. (MARTINS; PICOSQUE;
GUERRA, 1998, p. 138).

Encontramos em Iavelberg uma relação entre conteúdos escolares e


culturais dos alunos:

O próprio contexto educativo pode gerar conteúdos com a inclusão das culturas
locais nos planejamentos escolares. A escola não deve isolar-se das culturas de sua
comunidade sem privar o aluno do acesso aos conteúdos universais, pois se o fizer,

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correra o risco de esses alunos preferirem a vida extra-curricular. A integração da


escola com as famílias e com a instituição fornece a identidade dos seus agentes
educativos que desenvolvem projetos culturais. (IAVELBERG, 2003, p. 22).

O projeto, dentre outros descrevia em seus objetivos a intenção de


apresentar a linguagem da dança desprendida de pré-conceitos, considerando a presença da
dança inserida culturalmente em diferentes lugares do mundo, proporcionando aos educandos
o contato com as artes como forma de conhecimento, contribuindo assim em sua formação
pessoal de vida em sociedade.

A expressão individual de cada aluno era valorizada em propostas criativas


nas construções coreográficas individuais e coletivas, em sua metodologia havia uma
transposição de informações adquiridas por várias fontes de conhecimento, como livros,
revistas, internet, vídeos, músicas, entre outros, para as práticas artísticas. Nesse contexto,
fomos idealizando um estudo sobre a cultura africana e afro-brasileira tanto no campo teórico
como nas práticas corporais, resultando na produção em dança que nominamos de “Das
Raízes Africanas à Cultura Afro-Brasileira” organizada em uma sequência que representaria
esse título.

A proposta de trabalho estava sempre lidando com interpretações das


informações, e com a criatividade, e aos pouco foram surgindo os movimentos corporais em
sequências coreográficas; o próprio grupo fazia experimentos e decidiam quais eram mais
interessantes naquele momento, dessa forma a construção do conhecimento era de forma
coletiva relacionando as informações adquiridas com as criações coreográficas.

A dança não é um adorno na educação, mas um meio paralelo a outras


disciplinas que formam em conjunto a formação do homem, com menos medo e com a
percepção de seu corpo como meio expressivo em relação com a sua própria vida (FUX,
1993, p. 40).

Nossa intenção era transitar entre a área específica da dança e a construção


de saberes advindos por diversas fontes de conhecimento no âmbito histórico, social, cultural,
econômico. Nesse contexto, acreditamos em metodologias que diferem daquelas mais
frequentes em sala de aula, onde o professor é detentor de todo o conhecimento e os alunos
meros receptores de informações, em um caminho contrário experienciamos ações de

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coletividade na construção de saberes significativos tanto em âmbitos educacionais quanto


sociais.

Durante as ações teóricas e praticas, inserimos atividades que favoreciam


aos participantes a aquisição e apreensão de conhecimentos amplos. Duarte Junior, ao se
referir sobre o aprendizado, afirmando que a única maneira de se aprender algo é por meio da
preservação de uma experiência simbolizada e armazenada por meio de uma linguagem a qual
nos apresenta os mecanismos básicos para o processo de aprendizagem:

A) O interesse (ou motivo) – somente se aprende aquilo que se considera útil à


tarefa de sobrevivência. No caso humano a sobrevivência é interpretada a partir dos
valores que o homem atribui ao mundo.
B) A memória – permite a retenção dos significados (valores) atribuídos à
experiência.
C) A transferência – que consiste em interpretar e agir em novas situações com base
nos significados reunidos de experiências anteriores. (DUARTE, 1988, p. 31).

Encontramos em Vigotsky apontamentos, que o aprendizado pode despertar


processos internos de desenvolvimento, nos quais a criança interage com as outras em seu
ambiente e quando em cooperação com seus companheiros uma vez internalizados esse
processo torna-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança.
(VIGOTSKY, 1998, p. 118).

O projeto envolvia crianças de diferentes idades, que apresentavam níveis


de conhecimentos diferenciados uns dos outros, também havia ali diferenças de estaturas
corporais e características físicas, alguns apresentavam facilidade em lidar com a linguagem
da dança e outros com dificuldades, mas essas e outras diferenças eram minimizadas
conforme o desenvolvimento das ações propostas no projeto, especificadamente na
construção da dança africana, uma vez, que, a dança necessita das relações uns com os outros,
nesse sentido todos eram iguais, pois ali não havia individualidades, mas, um grupo confiante
em realizar aquilo que se propuseram a fazer.

Na Cultura africana encontramos a integração da música com a vida social e


religiosa, tendo uma funcionalidade, isto é, não existe por ela mesma. Canto, instrumentos,
fala, ritos, festas, danças, natureza e afazeres do cotidiano fazem parte de um mesmo
contexto, interagem entre si e formam um todo que dificilmente é desmembrado.

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(ALMEIDA: PUCCI, 2002, p.95)

Quando lidamos com a linguagem da dança é evidente a exploração de outra


linguagem artística, a musical, sendo uma completando a outra por meios dos sons que
estimulam os movimentos corporais e também as letras das músicas que aproximam o público
em sua compreensão quando assiste as apresentações.

Também as generalizações relativas a música africana devem ser entendidas


como traços gerais dessas músicas e que muitas diferenciações acontecem, de acordo com as
diversas religiões desse imenso continente. (ALAMEIDA; PUCCI, 2002, p. 95).

A mesma autora considera a música africana como parte integrante na sua


cultura, ela não existe como um adorno tem uma funcionalidade.

A música africana para os africanos é parte integrante da vida social e religiosa,


tendo o sentido básico de comunicação, seja ela espiritual, mística ou cotidiana. Por
isso se diz sempre que a musica africana é funcional, isto é, não existe por ela
mesma. Canto, instrumentos, fala, ritos, festas, danças, natureza e afazeres do
cotidiano fazem parte de um mesmo contexto, interagem entre si e formam um todo
que dificilmente é desmembrado. (ALMEIDA; PUCCI, 2002, p. 95).

Percebemos a integração das expressões e linguagens dessa cultura sendo


elas características muito peculiares e marcantes, os ritmos dos tambores são os sons mais
difundidos entre nós, mas percebe-se uma riqueza sonora e rítmica peculiares, alternando sons
instrumentais, palavras e palmas. A música e dança fundem-se em uma simbiose nas
celebrações, ritos, cultos, presentes no candomblé, os tambores de Mina, a capoeira, as
congadas, os maracatus, o moçambique, os catumbis, entre outras manifestações populares
envolvendo o sagrado e o profano.

No Brasil esse contexto vai se alterando, incorporando-se aos poucos


estruturas da cultura européia, partindo daí outras formas de expressão, caracterizando-se
como brasileiras. “Os sincretismos nascem assim do entrelaçamento e das influencias mútuas
no processo de aculturação” (ALMEIDA; PUCCI, 2002, p.97).

No contexto escolar os conteúdos e conhecimentos sobre a cultura africana e


sua influencia na cultura brasileira, tornaram-se estereotipadas, vista muitas vezes sob um

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olhar discreto e embaçado, desfavorecendo uma história que evidencia a importância da


cultura africana em nossa cultura. Encontramos em Silva reflexões sobre a construção
histórica desse assunto tanto na nossa cultura quanto nas relações educacionais.

Uma gênese da história da África é uma possibilidade bastante atraente mas, alem de
ser um conteúdo muitíssimo extenso, foge ao objetivo de trabalhar uma concepção
que ligue à história dos africanos no Brasil. Ao trabalharmos tal concepção podemos
ampliar as leituras de mundo dos nossos alunos discutindo a diversidade, uma vez
desde as primeiras séries do ensino fundamental é nítida a influencia judaico-cristã,
geralmente trabalhada como uma única possibilidade de concepção cosmológica de
mundo.(SILVA, 2006, p. 32).

Durante o desenvolvimento do projeto especificamente na criação da dança


africana fomos organizando uma sequência histórica dos fatos que no momento acreditamos
ser mais coerente naquilo que propomos a fazer, bem como o entendimento do público em ver
as apresentações.

Inicialmente, a dança representa os movimentos típicos da cultura africana


em sua origem, apresentadas por quatro duplas de alunos (quatro meninas e quatro meninos),
conforme o ritmo da musica vão fazendo evoluções corporais característicos e específicas
dessa cultura. Na sequência, outro grupo de alunos (12 alunos) se juntam para interpretar a
vinda dos africanos ao Brasil (luta e sofrimento), por meio da realidade do trabalho escravo, a
letra da música fala sobre o despertar dos escravos “Tava durumindo cangoma me chamou.
Disse “levanta povo! Cativeiro já acabou.”4 Em seguida abre-se uma roda, aparecendo alguns
dos orixás mais cultuados no Brasil que são incorporados (em forma de representação) tais
como: Iemanjá, Oxum, Oxossi, Xangô, Nanã e Oxalá, um personagem com uma roupa
estampada (imitando pele de animal) representa os homens e os animais da África; e outro
com roupas brancas que representa o candomblé. Em sequência os sons do berimbaus avisa o
recuo dos orixás e anuncia a entrada dos capoeiristas que fazem suas evoluções de dança e
luta, finalizando a dança com um toque mais abrasileirado do samba, um casal de dançarinos
faz evoluções de cortejos no centro de um semicírculo, após, chama todos os participantes da
dança para caírem no samba, os orixás se aproximam novamente e é finalizada a dança como

4
Refrão da música: Tambores de Minas (Cangoma e Sansa kroma) faixa 20, do livro Outras Terras outros sons
que acompanha o um CD.

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uma grande festa de miscigenação numa união entre africanos, brasileiros e afro-brasileiros.

A confecção dos figurinos, adereços de mãos, colares, entre outros


utensílios usados para a caracterização da dança, foram construídos coletivamente, pelos
participantes do projeto e também a colaboração de outros alunos e professores da nossa
escola. Ouve a colaboração e acompanhamento da equipe pedagógica durante a execução do
projeto, a equipe administrativa organizava os figurinos de providenciava as autorizações
quando os alunos eram convidados a se apresentarem em outras localidades fora do espaço
escolar, a direção escolar acompanhava o grupo em sua administração, quanto as despesas, na
organização dos transportes e do lanche, quando viajamos para participar de festivais em
outras cidades. Alguns pais de alunos inseridos ao projeto contribuíram no acompanhamento
dos alunos, na confecção dos figurinos e também como participante nas praticas em dança.

Percebendo o envolvimento dos alunos nesse projeto de trabalho,


concluímos que os conhecimentos sobre a História e a Cultura Afro-Brasileira vieram de
encontro às necessidades educacionais, sociais e ao cumprimento da Lei 10.639/2003. O
aprendizado vivenciado pelos participantes, tanto no campo teórico como nas práticas
artísticas, foram visíveis por meio de acompanhamento de todo o processo.

Desta forma, podemos concluir que as metodologias, por meios de projetos,


e práticas coletivas, são mais significativas para o professor e para os alunos, por
apresentarem um maior comprometimento de ambas às partes em toda a construção do saber.

Com o tempo, os alunos foram compreendendo esses conteúdos e conceitos


através de suas próprias ações e dedicação com o trabalho, em seus depoimentos eram
percebidos uma evolução de saberes sobre o assunto, no campo teórico e pratico corporal e
artístico. Esse trabalho não envolveu somente a comunidade escolar, foi além dos portões da
escola. Logo após as apresentações, a comunidade do nosso município que se fazia presente,
reagiu com muitas palmas e principalmente com depoimentos emocionados que fizeram a
nós, professores. Uma das principais observações vinda de outros professores era a admiração
de certos alunos que são considerados “problemas” na escola estavam ali inseridos na dança,
questionando a própria capacidade do aluno. Poderíamos aqui descrever inúmeros
depoimentos por parte dos alunos e do publico, mas independente disso, as ações
desenvolvidas por esse projeto vão alem dos saberes escolares, há aqui uma convivência entre

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os participantes que tornam o conhecimento uma possibilidade de se (re) pensar a realidade e


a amplitude em possíveis transformações sociais.

REFERÊNCIAS:

ALMEIDA, M. Berenice de; PUCCI, Magda Dourado. Ouras terras, outros sons. São
Paulo: Callis, 2002.

DUARTE JUNIOR, J. F. Porque arte-educação? 2 Ed. Campinas. SP: Papirus, 1998.

Fux, Maria. Dança experiência de vida. (trad. Norberto Abreu e Silva Neto) São Paulo.
Summus, 1983.

IAVELBERG, R. Para gostar de aprender arte. Sala de aula e formação de professores.


Porto Alegre: Artmed, 2003.

PARANÁ, Secretaria de estado da Educação. Educando para as Relações Étnicos -Racias


II / Superintendência da educação. Diretoria de Políticas e Programas Educacionais,
Coordenação de desafios Contemporâneos, - Curitiba: SEED – PR., 2008.

PARANÁ. Secretaria de Estado da Educação do. Diretrizes Curriculares de Arte para a


Educação Básica. Departamento de Educação Básica. Curitiba, 2008.

__________________. Diretrizes Curriculares de História para a Educação Básica.


Departamento de Educação Básica. Curitiba, 2008.

SILVA, Lucia Helena Oliveira (org): Caderno Uniafro 1: Cultura afro-brasileira,


expressões religiosas e questões escolares. Londrina: UEL, 2006.

VIGOTSKI, Lev Semenovich, A formação social da mente: o desenvolvimento dos


processos psicológicos superiores [et al.]; 6ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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REPRESENTAÇÕES DA RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA EM O CRUZEIRO


1958-1961: INDÍCIOS E INTERFACES

Jorge Luiz Romanello


Doutor – UNICENTRO – Irati

A revista O Cruzeiro circulou praticamente sem interrupções desde seu estrondoso


lançamento em 04 de maio de 1928, até o momento de seu fechamento, em 1974. Pertencente
ao conglomerado de mídias “Diários Associados”, de propriedade do poderoso empresário e
jornalista Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, mais conhecido como Chatô.
A revista foi considerada “a menina dos olhos” do conglomerado, dada sua aceitação pelo
público, as grandes tiragens que atingiu com o decorrer dos anos entre outros fatores.
A variedade e a profusão de imagens foram suas principais marcas. Semanalmente a
revista era ilustrada com uma grande variedade de fotos, cartoons, charges e desenhos de
todos os tipos, o que a tornava bastante atraente.
Na constituição daquela publicação associaram-se: um prodigioso elenco de
profissionais como editores, fotógrafos, repórteres, gráficos e outros; uma poderosa estrutura
material que conjugava equipamentos gráficos de última geração e um invejável esquema de
distribuição em bancas e de assinaturas em todo o país, chegando mesmo a circular uma
Edição Internacional de O Cruzeiro, a partir da segunda metade da década de 1950,
experiência abandonada após um breve período.
Em meados daquela década, o Brasil vivia uma era de mudanças que atingia quase
todos os aspectos da vida do país. Em 1954 Vargas se suicidara e após uma seqüência de
crises institucionais e políticas assumia a presidência, por eleição, em 1956, Juscelino
Kubitschek, prometendo banir do país o subdesenvolvimento, o atraso e a pobreza. JK
Pregava o desenvolvimento através de um Plano de Metas cientificamente traçado, que
segundo seus planos deveria promover no país o avanço em ritmo de “50 anos em 5”.
Presente também na publicidade de inúmeros produtos “modernos”, e em matérias e
reportagens que pregavam a urgência da mecanização acelerada da agricultura, o
aproveitamento econômico das riquezas naturais regionais, ao mesmo tempo este discurso

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enchia páginas e mais páginas da revista com fotos de grandes edifícios e outros aspectos que
evocavam a modernidade das grandes cidades, além é claro das praias cariocas tomadas de
todos os ângulos e perspectivas, aproveitadas para promover um contraste com os edifícios
(símbolos da modernidade também) da orla da Cidade Maravilhosa.(Cf. Romanello 2006)
Marlise Meyrer, aponta em sua pesquisa, que na [época houve uma multiplicação de
exposições, de pintura, montagens de peças de teatro, atividades que recebiam grande
divulgação nas páginas de O Cruzeiro, práticas que esboçavam um “projeto civilizador”
defendido particularmente por Chateaubriand, desenvolvido por meio da revista:

“[...] Para O Cruzeiro, o desenvolvimento se constituía num projeto civilizatório.


Conforme os autores que estudaram o perfil de Assis Chateaubriand, ele acreditava
no “poder civilizatório do capital internacional” (Tavares, 1982, p. 152) ou ainda na
“reeducação pelo capitalismo” (Carneiro, 1999). O objetivo era inserir o Brasil no
mundo civilizado, integrando um momento importante do processo civilizador pelo
qual, acreditava-se, passava o país. Para pôr em prática tal objetivo, empenhou-se
em difundir padrões de comportamento e cultura mais adequados ao modelo de
desenvolvimento que defendia, participando, assim, da luta simbólica pela
imposição de uma determinada visão do Brasil.” (MEYRER, 2009, p.200)

Ainda segundo a autora, este discurso possuía características populistas e debatia-se


com um Discurso Folclorista,

[...] Concomitantemente a essa visão populista, vigorava, ainda, a romântica,


representada, sobretudo, pelos intelectuais da Academia Brasileira de Letras. Para
Velloso (2002), este grupo, diante da “ameaça da modernidade”, preocupou-se em
fazer do folclore uma ciência que criasse métodos de registro e análise das tradições
populares. Para eles, a idéia de povo ‘só adquire sentido no mundo do folclore’, e a
cultura popular é [assim] entendida como documento que fala sobre a nação” de
uma forma quase mítica. Este ideário distingue o popular rural, visto como positivo,
do popular urbano, negativo. Para eles, o popular seria a essência da nacionalidade,
porém era necessário lapidá-lo, tarefa que caberia aos intelectuais. Não
compactuavam com a ideia politizada de cultura proposta pelo ISEB, pois, para eles,
o povo não teria capacidade nem disponibilidade para apreciar a estética (Velloso,
2002, p. 191). (MEYRER, 2009, p.204)

Opinião defendida também por Gilmar Rocha, para quem

“[...] Durante os anos 40 e 50, o folclore era considerado um “tema quente” Tanto é
verdade que se tornou movimento organizado, produtivo e influente no cenário
cultural brasileiro, segundo o estudo de Vilhena (1997). À frente desse movimento
estava Renato de Almeida, um intelectual dinâmico e bem relacionado no meio
político nacional, cuja atuação política e intelectual ainda espera um estudo à parte.
Entre os anos de 1947 e 1964, a atuação da Comissão Nacional de Folclore e a
Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro não deixam dúvida quanto à
importância política deste tema no cenário nacional, inclusive, na produção da
Cultura Brasileira.” (ROCHA, 2009, p. 222).

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Acredito, portanto, que um grande número daquelas imagens veiculadas naquele


período, contribuíram para divulgar de alguma forma, discursos sobre a modernidade.
Nesse contexto é importante notar o papel desempenhado por algumas concepções
difundidas pela revista, que relacionavam freqüentemente Desenvolvimento, Progresso e
Cultura, como parte de um modelo.
Às imagens do Moderno e do Progresso construídas a partir da canonização das
grandes obras de engenharia, dos discursos emitidos pelas propagandas e etc., associavam-se
também alguns modelos elitizados de cultura, representados pela música erudita, pintura
moderna, literatura clássica universal e até mesmo pelos projetos defendidos pelas vanguardas
artísticas, ainda que previamente sancionados nos restritos circuitos de especialistas nacionais
e internacionais.
Mesmo de maneira indireta, estas tensões e debates refletiam-se, nas edições de O
Cruzeiro que, se por um lado, publicava grandes quantidades de representações da chamada
Alta Cultura, por outro publicava umas poucas matérias e reportagens de cunho folclorista, ao
que parece, tentando amalgamar tendências até mesmo opostas.

Por sua vez a antítese do desenvolvimento – que concorria para referenciá-lo enquanto
discurso civilizador – era representado nas matérias e reportagens, pelas pequenas cidades e
localidades afastadas. Lugares em que as boas estradas não chegavam onde as comunicações
eram precárias; não havia serviços públicos de saúde e saneamento; eletricidade disponível
em quantidade e etc.. Em suma: lugares onde o “desenvolvimento” não havia chegado.
Apresentadas dessa maneira representavam o “Brasil Atrasado”.

Tendo em vista este ambiente editorial, este artigo foi desenvolvido a partir da
hipótese de que o mesmo tipo de construção dualista – particularmente apoiado em imagens –
caracterizou-se também nos discursos sobre as religiões e as religiosidades.
Os dados levantados a partir desta pesquisa (que ainda se encontra em
desenvolvimento) mostram que nas páginas de O Cruzeiro circuladas no período de 1958 a
1961, as representações do Catolicismo eram a maioria e apareceram na maior parte das vezes
como um tipo de invocação da Civilização, ao mesmo tempo em que outras práticas religiosas
ou espirituais, recebiam um tratamento bastante resquicial – como era o caso das
religiosidades Afro-Brasileiras, do espiritismo além de outras.
As poucas representações das religiosidades Afro-Brasileiras circuladas no período
por vezes evocavam tolerância como no caso das comemorações da festa de Iemanjá. Esta foi

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caracterizada pela revista como única manifestação de repercussão nacional, pública, visível,
“oficial” por assim dizer da Umbanda, qualificada mesmo que indiretamente enquanto uma
tradição popular. Ao que tudo indica, foi tratada como um tipo de folclore.
Encontramos este tipo de abordagem, por exemplo, na cobertura das comemorações de
Iemanjá, ocorridas no reveillon 1958, e publicada na edição de 18 de janeiro. Foi uma
cobertura reduzida a três fotos, com suas respectivas legendas e um comentário, dispostas em
meio a uma síntese1 dos principais eventos que marcaram o final do ano anterior, intitulada
1957 morreu entre chamas e risos. (O Cruzeiro de 18/01/ p.6-13), (ver figura 2).

Nela não há textos significativos, as três fotos cumorem ali o principal papel na
comunicação dos eventos da festa. A primeira ocupa a maior parte da página 09 e uma
pequena parte da página 08, é uma foto “genérica” que apenas mostra em foco fechado, de
costas quatro mulheres – uma em primeiro plano, uma em segundo e duas em terceiro –
vestidas de branco em meio à espuma da ondas e ramalhetes de flores. O título afirma:
Vestidos brancos sobre as águas homenagem do povo a Iemanjá, a pitoresca Rainha do Mar.
Flores, Velas, Doces. (O Cruzeiro 18/01/1958, p.7)

A segunda, ao que tudo sugere tenha sido posada, devido á organização dos
retratados, mostra um grupo majoritariamente vestido de branco, formando um semi-círculo
em torno de um prenda á Iemanjá, em primeiro plano ao lado direito, uma jovem ou um rapaz
(a imagem não possui uma qualidade que permita definir melhor o personagem) com as costas
envergadas para trás, vira na boca uma garrafa que tem nas mãos, enquanto olha em direção
ao céu. A legenda superior informa que eram: Prendas para Iemanjá numa das praias
cariocas. (ver figura 3). (O Cruzeiro 18/01/1958, p.7),

Já na terceira a legenda superior lembra que: Não faltou na festa as figuras dos
‘Negros Velhos’, a foto em foco fechado mostra um deles trajado a rigor, acompanhado por
uma jovem que estava de costas na hora da tomada.

O campo, composto pelas duas páginas, se completa com uma foto na lateral: texto de
aproximadamente dez linhas a respeito das festividades carnavalescas ocorridas no mesmo dia

1
Procedimento típico das revistas, na concepção de Ana Cristina Teodoro da SILVA: em seu livro:
Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos. (2011),
estas sínteses têm vários objetivos, entre eles abrir e fechar ciclos simbólicos e também organizar o tempo e a
memória.

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(O Cruzeiro de 18/01/1958, p.7). Todo terço inferior das páginas 08 e 09 são ocupados por
fotos dos bailes de carnaval, que ocorreram em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro.

Figura 2 - O Cruzeiro 18/01/1958, p.6 e7 Figura 3 - O Cruzeiro de 18/01/ 1958 p.8 e 9

O mesmo tipo de abordagem também forneceu o tom da cobertura dos eventos do


reveillon de 1959. Sob o título genérico (para mais uma síntese) de: Os últimos dias de 1958
(ver figura 4), (O Cruzeiro 17/02/1959, p 89-94), mais uma vez se fez alusão ás
comemorações de Iemanjá. Nela novamente duas páginas e três fotos cujo título destaca: Foi
entre “preces’ e pontos o adeus a 1958. (ver figura 5) No meio do breve texto que ressalta o
transito pelas igrejas da cidade, o comentário: [...] Da praia de Ramos a praia de Copacabana
milhares de flores foram lançadas ao mar. [...] aludindo a “agenda dos famosos” o repórter
comenta ainda a respeito: [...] Já a atriz Iracema Vitória bem em frente ao posto 3 foi
ascender uma vela a Iemanjá e revelou o seu pedido [...], e conclui dizendo que

[...] Entre preces e pontos a alegria foi o denominador comum entre a última hora do
ano que morria e a primeira que estava nascendo. Os centros de Umbanda desceram
os morros e gente de todas as categorias sociais homenagearam Iemanjá no dia em
que seu nome, o mar é divinizado. Milhares de velas iluminaram a orla da praia e
milhares de ramalhetes de flores evoluíram ao sabor das ondas produzindo poética
coreografia. (O Cruzeiro 17/02/1959, p 91)

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Fig. 4-O Cruzeiro de 17/02/1959. p.89 e 90 Fig. 5 O Cruzeiro de 17/02/1959. p.91 e 92

As fotos traduzem tranqüilidade, os fotógrafos apelam para as tomadas sem


flashes, explorando o efeito cênico criado pelo contraste suave das luzes de velas ora
mostradas à distância por meio de tomadas panorâmicas ora em detalhes com o foco fechado
no tema. Os textos apelam para o ecumenismo e a poesia que ajudam a completar a calma
cena criada.
Em outras ocasiões, as escassas matérias e reportagens sobre o assunto relacionavam
as religiosidades Afro-Brasileiras entre os temas do cotidiano e as apresentavam como tipos
de “crendices” ou superstições, casos de estudos antropológicos ou mesmo simples casos de
polícia, o tom era em geral pejorativo e desta forma reforçavam estereótipos negativos que
deduz-se circulavam na sociedade brasileira a respeito.
PSICANÁLISE BAIXOU EM TERREIRO: ‘O Cruzeiro’ levou Karl Weissmann à
Umbanda (ver figura 8) (O Cruzeiro de 07/03/1959 p.44-49). Promovido pelo “Bureau” de O
Cruzeiro de Belo Horizonte, foi um “encontro”, em que a revista pretendeu mostrar as “raízes
hipnóticas” envolvidas no ritual de incorporação da Umbanda.

A matéria realça o aspecto de fenômeno sociológico ou antropológico envolvidos na


prática religiosa – que desta maneira se torna passível de ser entendido pela ciência – a partir
da análise do psicanalista Karl Weissmann, que para todos os efeitos, ali aparece encarnado
na figura de um médico, que entre outras funções exerceu o cargo de psicanalista da
Penitenciária das Neves em Minas Gerais.

Na ocasião Weissmann interpretou que os fenômenos presenciados ocorriam em


função de um tipo de “hipnose ritual” e realçava tratar-se de uma das mais primitivas relações
culturais do homem, mas também procurava mostrar que se tratava de um fenômeno cultural
complexo e rico, sempre a partir da ótica da Ciência.

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Várias fotos mostram cenas de grupos realizando cerimoniais em uma delas, uma
mulher se arrasta na beira de um lago, parecendo imitar uma cobra, durante a incorporação de
uma entidade; outras procuravam mostrar os aspectos gerais do ritual. (ver figuras 8 e 9) Uma
delas chama particularmente a atenção: a foto de uma jovem, vestida de branco, com um
lenço na cabeça, que durante o transe conversa com um homem trajando terno e gravata –
Weissmann. É ela que caracteriza, de forma indefectível o encontro entre a religiosidade
popular e a ciência. Dois lados opostos onde o popular é traduzido pela simplicidade –
simbolizado pelas roupas e gestos simples da mulher “em transe” – e o científico, revelado
por um homem elegante, vestindo uma roupa que de várias maneiras simboliza a civilização.
(ver figura 10)

Aparecendo nesta única foto - cuja legenda enfatiza que, A jovem está, segundo Karl
Weissmann, hipnotizada – o médico caracteriza desta forma os dois lugares o da Ciência e o
da Umbanda (ver figura 10). Considero que seja esta imagem, portanto, a responsável pela
definição do caráter de exploração antropológica da reportagem, conferindo às páginas de O
Cruzeiro a condição de veículo de popularização científica, reduzindo para isto as práticas da
Umbanda, retratadas pela reportagem, uma manifestação de religiosidade popular, a um frio
objeto de estudo científico, que despreza sua riqueza cultural, as fotos – de pessoas se
arrastando pelo chão e com aparência de transtornadas durante as incorporações – reforçam
por sua vez os estereótipos negativos vinculados ás práticas da Umbanda, que se caracteriza
como prática primitiva.

Fig. 7 O Cruzeiro de 07/03/1959 p.44-45 Fig.8 O Cruzeiro de 07/03/1959 p.46-47

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Fig. 9 O Cruzeiro de 07/03/1959 p. 48-49 Fig.10 O Cruzeiro de 07/03/1959, p.46

Macumba Paulista Fabrica Viúva publicado em 07 de fevereiro de 1959 (ver figura


11). (O Cruzeiro, 07/02/1959, p.39-43), uma reportagem de E. Pacote e Ronaldo de Moraes,
que tratou de um assassinato premeditado de João Rosa da Cunha, pela “falsa macumbeira”
[...] D. Cesarina, preta velha com cara de boa cozinheira, baiana de nascimento e
macumbeira de profissão [...]. (O Cruzeiro, 07/02/1959, p.39 grifos nossos)

A reportagem destaca a exploração da crença de uma mulher de origem humilde,


Maria de Lourdes da Cunha, que queria separar-se do marido e que acabou por assassiná-lo
com a ajuda das “poções” (que incluíam pinga com cobra coral e raspas de unha, vidro moído
e mais tarde formicida) preparadas pela “macumbeira”.

O interessante é que as fotos que compõe a reportagem foram realizadas na delegacia


de polícia onde estavam detidos Cesarina e seu companheiro Ezequiel Lúcio do Nascimento –
parceiro no crime e denunciante da mesma – o que demonstra tratar-se de um espetáculo
montado para os fotógrafos e que se enquadrasse nos modelos próprios das fotorreportagens
sensacionalistas de O Cruzeiro.

As tomadas mostram Cesarina – que segundo a reportagem confessou ao delegado ser


uma charlatã – com as feições do rosto transtornadas, caracterizando uma (falsa)
incorporação, o uso desse expediente produz um excelente efeito cênico para a Foto Manchete
da reportagem. (ver figura 11) (O Cruzeiro, 07/02/1959, p.39)

Por ser o elemento de maior comunicabilidade na elaboração de uma Fotorreportagem


a Foto Manchete é em geral resultado de uma escolha cuidadosa e no caso específico

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desempenhou um papel importantíssimo na elaboração da narrativa esteriotipada e


sensacionalista da mesma.

Uma foto do ALTAR da Tenda de Umbanda São Judas Tadeu, onde agia a mãe de
santo homicida, imagens de santos católicos confundiam-se com figuras de Caboclos,
completa o quadro do campo de abertura da reportagem (ver figura 11) (O Cruzeiro,
07/02/1959, p.39). Em outras aparecem Ezequiel com o rosto assustado entre as mãos e
Cesarina, representando outros atos da “confessada falsa incorporação”, o conjunto é
reforçado pelo subtítulo que destaca: Na delegacia de Homicídios o último ato do “show‘.
(ver figura 12) (O Cruzeiro, 07/02/1959, p.41)

Fig.11 O Cruzeiro 07 /02/1959, p.39-40 Fig. 12 O Cruzeiro 07 /02/1959, p.41-42

Encontraremos ainda última mensagem impactante relacionada ao tema, desta vez


publicada na capa da edição de 01 de abril de 1961 (ver figura 13). Nela a foto manchete
destaca Irma Alvarez, atriz argentina radicada no Brasil. Trata-se de uma foto colorida em que
Alvarez aparece submetendo-se ao ritual de iniciação do Candomblé (ver figura 1). A
imagem, que ocupa cerca de 85% do espaço da capa, mostra: “[...] uma jovem branca que
posava ajoelhada enquanto as mão de duas outras pessoas – que não integram o quadro –
espalham sangue de um animal sobre sua cabeça completamente raspada [...]”.
(ROMANELLO, 2009, p.1067)

O título, bastante significativo – e em minha visão, pejorativo – afirma: “Irma Alvarez


no bárbaro ritual da linha de Oxumaré”. (O Cruzeiro, 01/04/1961, capa).

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Paradoxalmente apesar da chamada de capa sugerir que a reportagem no interior da


revista tratava de um tema religioso, relacionado ao ritual de iniciação do Candomblé, tudo
não passava de uma propaganda do lançamento de um polêmico filme de Rui Guerra, em que
a atriz contracena com um ator negro, intitulado “Cavalo de Oxumaré”. (ROMANELLO,
2009, p.1064)

Figura 13 O Cruzeiro, 01/04/1961, capa.

Considero que nesta capa, a organização da mensagem produziu

“[...] a defesa de uma visão cultural eurocêntrica. Pois se alguns são bárbaros é
porque outros são civilizados e neste caso podemos deduzir que estes são
participantes de uma religião culta, fina e humana. Por exclusão este seria o
cristianismo principalmente o católico, a religião praticada pela maioria da
população da época. (ROMANELLO, 2009 (b), p.1068)

O desenvolvimento desta primeira parte da pesquisa permitiu ainda perceber que tais
manifestações tendiam a ocupar um espaço resquicial, nas edições um tema abordado muito
raramente enquanto uma “curiosidade” ou “crendice”. Um tipo de representação distorcida de
folclore. A escassez na cobertura do assunto tendeu a relegar as religiosidades Afro-
Brasileiras a um tipo de “discurso do silêncio”.

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As religiosidades Afro-Brasileiras, naquele contexto, também eram indiretamente


associadas á “outras práticas populares” apresentadas com caráter negativo muitas vezes
taxadas de perigosas: práticas que nasciam e prosperavam nas pequenas localidades distantes
do interior do Brasil – sob o ponto de vista da revista ao menos – um terreno fértil para os
falsos líderes religiosos milenaristas, loucos algumas das vezes, e mesmo simples
exploradores da boa fé em outras, que propunham curas milagrosas por meio da prática de
operações espirituais e imposição de mãos, a que se expunham a “gentes simples”, que
representavam em si e por si, o “Brasil Atrasado”, carente de Civilização.
Estas conclusões tornaram-se possíveis, por meio da análise das fotografias, títulos e
subtítulos e textos das reportagens.
Ao tratar de temas ligados ao catolicismo, encontram-se desde títulos mais diretos e
sugestivos, como nas edições de: 18 de janeiro de 1958: Na Santa Missa a Alma Cristã do
Nosso Povo (O Cruzeiro 18/01/1958, p.6-13), edição de fevereiro de 1958 Os milagres de
Nossa Senhora da Penha; (O Cruzeiro 15/02/1958, p.65), 29 de março: Tarde sagrada para
um milagre (O Cruzeiro 29/03/1958, p.49), até Galiléia (O Cruzeiro, 28/04/1958, p.92-95);
Profeta em casa não faz milagre (O Cruzeiro, 21/06/1958, p.60-61). E genéricos como foram
os casos das edições de: 05 de abril: El Greco e a arte religiosa (O Cruzeiro, 05/04/1958,
p.24) 27 de Dezembro: Santa missa; O primeiro presépio; História de Natal. (O Cruzeiro,
27/12/1958, p.86 e 126 respec.). Destaque-se que estes padrões encontrados no farto material
circulado sobre o assunto, repetiram-se no decorrer dos anos seguintes.
As fotos que compunham as matérias e reportagens, de uma maneira geral mostravam
pessoas bem vestidas, ambientes agradáveis, Igrejas barrocas, e uma série de outros elementos
indicativos, mesmo que muitas vezes de forma indireta, de um modelo de cultura “civilizada”,
segunda a perspectiva construída.
Exemplo do “discurso civilizador”(segundo proposto por MEYRER: p.197-212)
associado à expressões da religiosidade católica presentes nas páginas de O Cruzeiro, pode ser
encontrado na reportagem Ginástica Veste Hábito em Minas de 22 de Agosto de 1959 (ver
figura 16) (O Cruzeiro 22/08/1959. p. 46-49). O Cruzeiro na ocasião cobria um evento
comum realizado em Belo Horizonte. Segundo o texto, centenas pessoas reuniam-se em uma
praça para praticar exercícios físicos ao ar livre, o subtítulo por sua vez enfatizava que a
atividade: [...] Foi um belo espetáculo de disciplina. A religião esteve também presente: vinte
freiras e seis sacerdotes deram aula de entusiasmo. A reportagem focou sua atenção em um

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fato aparentemente curioso, a de que padres e freiras – tradicionalmente vistos como reclusos
e formais – praticassem ginástica. Nas fotos extremamente plásticas, bambolês ajudam a
destacar o movimento e a sincronia.
Em contraste – artifício típico também do fotojornalismo – todos os padres e freiras
trajam hábitos pretos, uma vestimenta formal – enquanto algumas freiras usam chapéus
brancos que fornecem contraste á cena. O lugar das atividades era um amplo parque público
arborizado e limpo concorrem também para reforçar os aspectos positivos da cena. O discurso
escrito, por sua vez, enfatizava a organização e a ordem, bons exemplos de religiosos que
participam de práticas saudáveis, no caso a ginástica ao ar livre.

Figura 16 O Cruzeiro 22/08/1959. p. 46 e 47

A título de considerações finais, fica evidente que as fotos – o elemento de maior


comunicabilidade das fotorreportagens – mostravam um catolicismo associado a higiene
física e mental, organização e caridade entre outras imagens positivas, ao passo que as
referentes às religiosidades Afro-Brasileiras por sua vez mostravam nas reportagens, pessoas
se arrastando pelo chão, com rostos transtornados entre uma série de outras imagens
descontextualizadas dos rituais e situações de engodo e primitivismo, concorrendo desta
maneira para reforçar estereótipos negativos do Afro-Brasileiro e das classes menos
favorecidas.

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Referências

MEYRER, MarIise. Revista O Cruzeiro: um projeto civilizador através das


fotorreportagens (1955 -1957). Revista UNISINOS - Vol. 14 Nº 2, p. 197 - 212 -
maio/agosto de 2010. Capturado em 05/2011.Disponível
em:http://www.unisinos.br/publicacoes_cientificas/images/stories/pdfs_historia
/vol14n2/art08_meyrer.pdf

ROCHA, Gilmar. Cultura popular: do folclore ao patrimônio. In Mediações, Londrina


Editora da UEL v. 14, n.1, p. 218-236, Jan/Jun. 2009.

ROMANELLO. J. L. A natureza no discurso fotográfico da revista O Cruzeiro: paisagens e


imaginários no Brasil desenvolvimentista 1954-1961. Assis, 2006. 200p. Tese (Doutorado em
História) Universidade Estadual Paulista.

ROMANELLO, J. L. Uma história da Revista O Cruzeiro 1930-1960 MOLINA, Ana


Heloísa, GAWRYSZEWSKI, A., In: O Cruzeiro: uma revista (muito) ilustrada.ed.Londrina :
EDUEL, 2009 (a), v.01, p. 55-88.

________ Considerações sobre a representação de um bárbaro ritual em uma capa da


revista O Cruzeiro. Anais do II encontro nacional dos Estudos da Imagem realizado em
Londrina PR de 12 a 14 de maio de 2009 (b) Disponível em
http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais/trabalhos/pdf/Romanello_Jorge.pdf

ROMANELLO, J. L., ZAMMATARO, A. F. D, GAWRYSZEWSKI, A. O Cruzeiro: uma


revista de imagens In: O Amigo da Onça:uma expressão da alma brasileira ed.Londrina :
EDUEL, 2009 (c), v.01, p. 11-36

SILVA, Ana Cristina Teodoro da. Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de


revistas como signos de olhares contemporâneos. Maringá: EDUEM, 2011, 273p.

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LEI 10.639/20031, UMA REALIDADE OU MAIS UMA POLÍTICA CURRICULAR


OBRIGATÓRIA? PROFESSORES DE HISTÓRIA: SUAS APROPRIAÇÕES E
RESISTÊNCIA À LEI.

Rosemeire dos Santos

(Programa de Pós Graduação em História Social ─Universidade Estadual de Londrina)

Orientadora: Maria de Fátima da Cunha

Esse artigo tem como objetivo analisar de que maneira o currículo, com a
denominação de Lei 10.639/03, tem sido recebido pelos professores, enfocando nas
especificidades curriculares e no quanto a efetivação ou não de uma política curricular se
sujeita a decisões dos professores. Ao mesmo tempo, buscaremos contemplar a importância
das experiências formativas, no âmbito pessoal e profissional, sobre as ações, as resistências e
apropriações feitas para o trabalho em sala de aula. O universo escolar é regulado por uma
série de leis e normatizações que, teoricamente, limitam o trabalho docente e o disciplina. Há
cronogramas a serem cumpridos, conceitos a serem trabalhos, enfim, o currículo mínimo a ser
seguido, todos esses aspectos se encontram dentro dos limites físicos do espaço escola e,
deverá atingir o maior número possível de educandos. Dentro de uma concepção teórica
certeauniana, o currículo e nesse caso a Lei 10.639/03, seriam as estratégias institucionais e
governamentais, para que os professores ensine aos educandos aquilo que essas esferas
esperam que eles saibam. No entanto, essas estratégias governamentais carecem da aceitação
dos docentes para se efetivarem. Os estudiosos em currículo como Godson, por exemplo,

1
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faz saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A 79-A e
79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

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atentam para o fato de que “[...] o currículo escrito não passa de um testemunho visível,
público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar
uma escolarização.” (GOODSON, 2005, p. 21). A compreensão dos mecanismos de
realização curricular esta sujeita à análise das ações dos sujeitos sobre elas, nesse caso à ação
dos professores de história sobre a Lei 10.639/03, não havendo a validação de uma proposta
curricular pelos professores, essa estratégia governamental não ultrapassa as fronteiras da
prescrição, criando uma lacuna entre o esperado e o realizado.
Tomarei a liberdade de no início desse artigo citar de Jorn Rüsen, para quem “a
história é o espelho da realidade passada na qual o presente olha para aprender sobre o futuro”
(RÜSEN). Desde nove de janeiro de 2003, olhar para o passado de mais da metade da
população brasileira─ já que, de acordo com o censo 2010 do IBGE, 50,7% da população se
declara negra ou afrodescendente─ tornou-se obrigatório, ao menos, para o sistema nacional
de ensino fundamental e médio. A Lei 10.639/03 veio em respostas às antigas reivindicações
do movimento negro, que almejava há muito a inserção de um conteúdo abrangendo história e
cultura africana e afrobrasileira na formação educacional. Muitas foram às críticas e os
questionamentos acerca da real necessidade de tal medida, o sistema, aparentemente,
funcionava sem que precisasse contemplar, de forma mais aprofundada, as questões
relacionadas aos negros no Brasil e a seus antepassados África. Exceção feita aos conteúdos
relacionados à escravidão sempre presentes nos estudos de história do Brasil, embora neles, o
elemento negro apareça destituído de historicidade, não chegando a se tornar sujeito de sua
história e, ainda nesse caso o processo histórico é cronologicamente definido e fechado, como
um ciclo que se iniciou no século XVI, com as primeiras plantações de cana-de-açúcar, e
chegou ao fim com a abolição no século XIX. Findado esse período fez-se silêncio, na
disciplina escolar história, sobre os caminhos e descaminhos tomados pela população negra
brasileira, as questões passaram a ser discutidas sob a ótica das mazelas sociais sem qualquer
conotação étnica-racial. Essa lacuna é resultante do emudecimento que se fez em relação a
esse passado ainda tão recente, quando considerado por meio de uma perspectiva histórica,
contudo novas corrente educacionais e historiográficas tem, desde a década de 1990, insistido
em teses que privilegiam uma educação multicultural para despertar discussões acerca dos
problemas étnicos no Brasil, e principalmente, gerar um sentimento de pertencimento
histórico aos meninos e meninas afrodescendentes matriculados na rede de ensino brasileira.
Circe Bittencourt, corroborando com essas prerrogativas nos diz que:

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 205

Na atualidade, os estudos históricos nas escolas estão associados ao


desenvolvimento intelectual dos alunos dos diferentes níveis de escolarização, além
de ligados a seus processos de socialização em diversas esferas, fornecendo
legitimidade à constituição da vida social, aos conflitos e projetos políticos. Esse
compromisso do ensino de história, ao lado da sua inerente condição de formador de
valores, juntamente com os demais componentes escolares, situa com precisão o
atual momento da história da disciplina.

A autora segue ressaltando a importância para disciplina de história de se


aprender e ensinar os conteúdos propostos pela Lei 10.639/03.

A introdução da história da África e da cultura afro-brasileira e africana insere-se


nessa condição contemporânea do papel da história escolar, tendo como pressuposto
a constituição de identidades sociais e de uma redefinição de uma identidade
nacional. (BITTENCOURT, 2007 p.50).

Abre-se, a partir da Lei, novas possibilidades de se criarem para os educandos


uma rede histórica na qual passado e presente se ligam e tem nexo, a interpretação de uma
realidade histórica passada que consiga manter laços indenitários, sociais e culturais com os
quais os alunos afrodescendentes se identifiquem. No entanto, essa visão, na qual está
incutida a necessidade de redefinição da identidade nacional e, por conseguinte, do que é ser
brasileiro, não é unânime entre os brasileiros em geral, tampouco, entre os professores. A
maioria de nós professores, negros ou brancos, partilhamos de uma formação alicerçada sobre
o mito da democracia racial, segundo o qual não temos preconceitos de qualquer natureza e as
diferenças são bem aceitas e respeitadas. Algumas marcas são difíceis de serem superadas na
história de um povo ou nação, versões históricas se criam com o objetivo de produzir o
esquecimento ou superação, outras surgem visando a reconstrução do passado como elemento
indenitário capaz de gerar um presente renovado. Não é objetivo desse trabalho adotar uma
postura maniqueísta diante dos usos e interpretações que se tem realizado da escravidão no
Brasil. Porém, é inegável que lidar com esse passado não é tarefa fácil mesmo depois de mais
de um século da “oficialização” da liberdade, por meio da Lei Áurea de 1888. A delicadeza
envolvendo o assunto perpassa às abordagens que se faz do passado e as questões presentes
resultantes desse processo.

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Quando buscamos localizar o momento em que o mito da democracia racial e


das três raças ganhou notoriedade no Brasil e depois se solidificaram no imaginário popular,
em oposição à construção de uma identidade afirmativa dos egressos da escravidão, vemos
que ele remonta ao imediato pós-abolição. No final do século XIX início do XX, os recém-
libertos buscavam a construção de uma nova identidade alicerçada, agora, na liberdade. Hebe
de Castro em sua tese, Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste
escravista- Brasil século XIX, defende que os ex-escravos se empenharam numa luta para a
obtenção da cidadania, por entendê-la como símbolo máximo de seus novos direitos. Castro,
concluiu que na busca da cidadania houve uma opção de silêncio sobre a cor e as lembranças
do cativeiro, a identidade que se almejava construir naquele momento era a de cidadão livre,
sem o estabelecimento de definições étnicas ou raciais.

O silêncio sobre a cor e a redução desta a uma categoria meramente


descritiva perdem, nesta inversão, seu sentido possível de crítica radical do
próprio conceito de raça, quando se preserva o sentido pejorativo da palavra
‘preto’ (liberto) e a identidade essencialmente branca da ‘elite’. A ideologia
do branqueamento [...], não se construiu, entretanto, sobre a tábula rasa de
‘negros’ subsocializados pela experiência do cativeiro, mas sobre uma
experiência de luta pela cidadania, nos quadros de uma sociedade que, mais
que hierarquizada, definia-se (e de certa forma ainda se define) a partir do
mais rigoroso apartheid social. (CASTRO, 1995, p.405)

Os motivos que levaram brancos e negros, do final do século XIX início do


XX, aceitarem desde uma ideologia do branqueamento até a ideia de democracia racial
diferem entre si, para os negros tratava-se de uma estratégia de sobrevivência, de se agarrar as
possibilidades que se apresentavam na construção, daquilo que era mais urgente, a cidadania.
Fato é, a disciplina de história no Brasil se consolidou e em seus diferentes momentos
excluíram das abordagens escolares as discussões relacionadas ao pré e ao pós-escravidão no
Brasil. Também é fato que alguns anos depois da abolição, à medida que foram percebendo
que a presença do apartheid social, e tomaram consciência de que a cidadania carecia de
educação e de uma educação inclusiva, na qual eles atuassem como personagens de seus
processos históricos, emergiram entre os ex-cativos e seus descendentes, movimentos
organizados reivindicando uma educação de qualidade, capaz de contemplá-los. A
experiência forjada durante e depois da escravidão levaram-nos, nos termos thompsonianos a
uma experiência de reivindicação nova e transformada:

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A experiência chega sem bater na porta e anuncia mortes, crises de subsistência,


guerras, desemprego, inflação, genocídio. Pessoas passam fome: os que sobrevivem
pensam o mercado de outra forma. Pessoas são presas: na prisão meditam sobre a lei
de novas maneiras (...). Dentro do ser social ocorrem mudanças que dão origem a
uma experiência transformada: e essa experiência é determinante, no sentido de que
exerce pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e
oferece grande parte do material com que lidam os exercícios intelectuais mais
elaborados. (THOMPSON, 2004, p. 200-201).

Não temos a intenção de traçar um painel histórico da disciplina de história,


portanto, essa discussão se manterá restrita a primeira década dos anos 2000, apenas,
atentando para o fato de que a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996, já propunha um
ensino de história que contemplasse multiculturalismo. Ou seja, a Lei 10.639/03 ratifica e
intensifica a LDB, ao tornar uma obrigatoriedade à indicação anterior. Nessa perspectiva, o
currículo foi o primeiro dos instrumentos da educação que sofreram alterações para se
adequar a nova Lei. Pois, como afirmam Canen e Moreira:

Se o currículo constitui o cerne da relação educativa, corporificando os nexos entre


saber, poder e identidade, será em grande parte por seu intermédio que as escolas
buscarão atribuir novos sentidos e produzir novas identidades culturais, auxiliando a
conformar novos modos de reação à realidade social contemporânea, inegavelmente
multicultural. (CANEN & MOREIRA, 1999, p.20)

Contudo, é inegável, que muitas vezes o currículo não consegue responder de


forma satisfatória as expectativas nele depositadas quando se trata de alterar práticas
educacionais, (...) disseminou-se a ideia de que, ao se mudar o currículo por meio de políticas
curriculares, mudar-se-iam as práticas, e os problemas relacionados à qualidade de ensino
praticado nas escolas brasileiras seriam superados. (MONTEIRO, p.176). Na discussão, em
questão esperava-se que os conteúdos relativos às propostas da Lei 10.639/03, se efetivariam
por terem se tornado currículo escrito, desconsiderou-se que:

Como tal, o currículo escrito promulga e justifica determinadas intenções básicas de


escolarização, à medida que vão sendo operacionalizadas em estruturas e
instituições. Tomemos esta convenção comum, que é a matéria escolar, num
currículo pré-ativo: enquanto o currículo escrito estabelece a lógica e a retórica da
matéria, o que aparece é apenas o aspecto mais tangível, abrangendo padronização
de recursos, meios financeiros, exames, iniciativas correlatas e interesses de carreira.

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Nesta simbiose, é como se o currículo escrito oferecesse um roteiro para a retórica


legitimadora da escolarização, à medida que esta mesma retórica fosse promovida
através de padrões para a alocação de recursos, atribuição de status e classificação
profissional. Em síntese, o currículo escrito nos proporciona um testemunho, uma
fonte documental, um mapa do terreno sujeito a modificações; constitui também um
dos melhores roteiros oficiais para a estrutura institucionalizada da escolarização
(GOODSON, 2005, p. 21).

Tomando o argumento de Goodson, o currículo escrito é um roteiro, contém as


indicações daquilo que há para ser realizado, é uma fonte documental que apresenta as
intenções e, não necessariamente as práticas, essas se manifestam para além do currículo
escrito e nem sempre são documentadas.

Para Sacristan o currículo pode ser entendido como um conceito polissêmico,


pois:

O conceito de currículo é bastante elástico; poderia ser qualificado de impreciso porque


pode significar coisas distintas, segundo o enfoque que o desenvolva, mas a polissemia
também indica riqueza neste caso porque, estando em fase de elaboração conceitual,
oferece perspectivas diferentes sobre a realidade do ensino.

Para tanto é fundamental o entendimento de que, independente, da variante que


se apresente do currículo ele somente é imbuído de valor prático ou ativo, quando e se os
professores escolhem realizá-lo. E, ainda usando os conceitos de Sacristán, se considerarmos
os conteúdos propostos pela Lei, eles são complexos, imprecisos e amplos, porque essas
características são intrínsecas a quaisquer conteúdos.

Em primeiro lugar, se o currículo faz alusão aos conteúdos do projeto educativo e


de ensino, a imprecisão provém da própria amplitude desses conteúdos, já que
ensinar, num sistema escolar tão complexo e prolongado para os alunos/as, engloba
níveis e modalidades que cumprem funções em parte semelhantes e em parte
bastante distintas─ a escolarização cumpre fins muito diversos. Em segundo lugar,
esses fins educativos tendem a se diversificar ou se traduzir em projetos educativos
que implicam interpretações diferentes das finalidades educativas. (SACRISTAN,
2000, p.126).

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Ademais, o modelo de significação a se aplicar no momento de se efetivar os


conteúdos da Lei, tende a variar bem mais quando comparado a outros conteúdos, isso porque
envolve, em um nível maior, do que em relação a outros conteúdos, a empatia e as
idiossincrasias de cada professor. Não é novidade que a decisão de ensinar ou não
determinado currículo é do professor. Em última instância ele decide como, quando e o que,
então o que tem diferenciado a prática docente na efetivação do currículo proposto pela Lei
10.639/03? Algumas hipóteses são aventadas, a primeira delas é de que para se trabalhar com
a Lei a decisão não é apenas de ensinar ou não ensinar, ela é também de aprender ou não
aprender, essa afirmação é decorrente do fato de que para a maioria dos professores, formados
no período que antecedeu a Lei, não houve uma formação que lhes colocassem em contato
com os conteúdos a serem ensinados. Tal situação quando combinada as outras dificuldades
que cercam a prática docente desencadearem a decisão de não realização desse currículo. A
outra hipótese é a de que alijados do processo de construção do currículo, alguns professores,
resistiram a ele pelo caráter impositivo e pela ausência de identificação com as propostas que
ele traz. E finalmente, considerando as duas hipóteses anteriores elas podem se combinar a
uma terceira, os gestores da educação deixam de considerar que “o tempo e a história de vida
são fundamentais para a prática do professor”, muitos professores partilham da tradição de
que no Brasil há uma democracia racial, porque sua formação profissional e de vida pessoal
se construiu alicerçada nesses pressupostos, nesse sentido Tardif e Raymod nos dizem que:

Na realidade, os fundamentos do ensino são, a um só tempo existenciais, sociais e


pragmáticos. [...] São existenciais, no sentido de que um professor não pensa
somente com a cabeça, mas com a vida, com o que foi, com o que viveu, com aquilo
que acumulou em termos de experiências e lastros de certezas. Em suma, ele pensa a
partir de sua história de vida não somente intelectual, no sentido rigoroso do termo,
mas também emocional, afetiva, pessoal e interpessoal. [...] Ele é um “sujeito
existencial” no sentido forte da tradição fenomenológica e hermenêutica, isto é, um
ser-no-mundo, [...], uma pessoa completa, com seu corpo, suas emoções, sua
linguagem, seu relacionamento com os outros e consigo mesmo. (TARDIF &
RAYMOND 2000, p.235).

Esses são pontos de confluência entre Tardif & Raymond e Thompson, ambos
concordam e ressaltam a importância das experiências, e o efetivamente vivido não é um fator
excludente das possibilidades de mudança, mas é determinante das práticas. Um currículo não
vivenciado, imposto, sem prévia consulta, mesmo quando se entende a importância social e
cultural de sua realização está sujeito à rejeição, especialmente, se ele tem implícito lidar com
o diferente, com o não conhecido, o não vivido. Qualquer discussão envolvendo a Lei

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10.639/03 e os novos valores que se planejou construir a partir de um olhar inovador sobre o
passado dos negros e descendentes no Brasil prescinde da aceitação e análise de que, no
campo da educação, até 2003 o Estado não se interessou pelo passado desses milhões de
brasileiros. Portanto, ao privilegiarmos a experiência presente em Thompson, temos uma
ausência de vínculo, de relação entre a maioria dos professores e essa proposta que visa rever
os conteúdos sobre a África e a cultura afrobrasileira, uma vez que:

Os valores não são apenas “pensados”, nem “chamados”; são vividos e emergem no
interior do mesmo vínculo com a vida material e as relações.

materiais em que surgem nossas idéias. São as normas, regras, expectativas etc.,
necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento), no habitus de viver; e
aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na comunidade imediata.
(THOMPSON, 2004, p. 367).

Quando não se partilha do processo de construção de novos valores, nesse caso


uma nova política curricular, as resistências e apropriações se manifestam de diferentes
formas: os professores, não raramente, aplicam essa política, ainda, de forma folclorizada, em
datas comemorativas ou nas chamadas semanas culturais, abandonando a prerrogativa de se
tornar natural a relação com esses conteúdos, aplicando-os e os desenvolvendo da maneira
como se faz com os demais conteúdos. Esse processo de naturalização na abordagem de
história e cultura africana e afrobrasileira não faz parte do universo da maioria dos
professores, independente inclusive da origem étnica, ficando, portanto, muito dependente da
empatia do professor para que seja desenvolvido, não que haja um modelo preestabelecido da
maneira correta de trabalho com a Lei, porém, o que se tem visto são posturas extremadas
quando se refere a discutir essa questão. Para Gomes:

Como já era de se esperar, muitos nem procuram compreender o contexto do


surgimento dessa nova lei e já a criticam. Há até mesmo aqueles que chamam de
autoritarismo de Estado e, outros, de racismo às avessas. Mas, para além de opiniões
precipitadas e preconceituosas sobre o tema, é importante refletir sobre o que essa lei
representa no contexto das relações raciais no Brasil e, sobretudo, no momento que as
ações afirmativas começam a fazer parte do cenário nacional, extrapolando os fóruns da
militância negra e dos pesquisadores interessados pelo tema. Essa reflexão é um
caminho interessante para ponderamos sobre os limites e as possibilidades da lei, suas
implicações na formação de professores e na sala de aula. (GOMES, 2010, p.69).

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A questão principal se encontra no fato de que a escola e a escolarização se


constroem para além da estrutura institucionalizada, são as práticas cotidianas, únicas muitas
vezes, as experiências que se fabricam “por uma multiplicidade de táticas articuladas sobre os
detalhes do cotidiano; [...] pela criatividade dispersa” (CERTEAU, 1994, p. 41) os elementos
capazes de permitir a elaboração de um perfil representativo da escola. Diante disso, os
currículos escritos são norteadores quando desejamos entender as políticas educacionais de
um determinado momento, contudo não nos ofertam uma visão mais detalhada e crítica da
situação, somente possível in loco, na observação de como são tecidas as redes de estratégias
e usos das teorias curriculares.

Sob essa perspectiva, nos deparamos com um quadro, cujo desenho se


configura porque “ a presença e a circulação de uma representação [...] não indicam de modo
algum o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos
praticantes que não a fabricam”. (Idem, 1994, p.40). Ou seja, a legitimidade das práticas
escolares cotidianas se articula dentro do cotidiano escolar e independem da oficialidade para
acontecerem.

De outro lado, os historiadores e cientistas sociais não podem se furtar à tentativa de


compreender, enquanto complexas construções históricas e culturais, os esquemas
sociológicos que adquirem realidade na vida cotidiana e nos sistemas sociopolíticos.
Compreender como a sociedade constrói a si mesma a partir de determinadas condições
concretas e objetivas e como esta mesma sociedade constrói a percepção de si mesma é
certamente uma das tarefas fundamentais das ciências humanas. (BARROS, 2009,
p.11).

A insistência em ressaltar as experiências e suas ações para configurar a


atuação dos professores na implementação da Lei 10.639/03 decorre da tentativa de pensar o
professor de história imerso num universo que extrapola os muros escolares, e também, age
como norteador das práticas do professor, o profissional lida no cotidiano com suas
idiossincrasias e se, como preconizava De Certeau, sempre falamos de um lugar social,
articulando com ele nossas decisões de pesquisa e ensino, o lugar social no qual a Lei se
insere ainda não é partilhado por todos estando em processo de construção, seria leviano
afirmar que a Lei 10.639/03 é apenas mais uma política curricular, que estando sujeita, como
todas as outras, a aceitação ou não dos professores, poderá não atingir a categoria de currículo
ativo, se mantendo num estágio escrito ou pré-ativo. Mas desconsiderar que [...] “é em função

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 212

deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os
documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam”, implica em ignorar a
realidade contribuindo para a não mudança. (Certeau, 1982, p.57)

BIBLIOGRAFIA:

BARROS, J.A. A construção social da cor: diferença e desigualdade na formação da


sociedade brasileira. Petrópolis: Vozes, 2009.

BITTENCOURT, C. Identidades e ensino de história no Brasil. In: CARRETERO, A; ROSA,


A; GONZÁLEZ, M.F (Org.). Ensino da História e Memória Coletiva. Trad. Valério
Campos, Porto Alegre: Artmed, 2007.

CANEN, A e MOREIRA, A.F.B. Reflexões sobre o multiculturalismo na escola e na


formação docente. In: Educação em Debate, Fortaleza, n.38, vol. 2, 1999.

CASTRO, Hebe. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista-


Brasil século XIX. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Trad. Ephraim Ferreira Alves,


2ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.

________________. A escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes, Rio de Janeiro:


Forense Universitária, 1982.

GOMES, N.L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2 ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

GOODSON, Ivor. F. Currículo: Teoria e História. Petrópolis: Vozes, 2005. (Trad. Atílio
Brunetta)

MONTEIRO, A.M. Professores e livros didáticos: narrativas e leituras no ensino de história.


In: A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

SACRISTÁN, J.G. e GOMES, A.I.P. Compreender e transformar o ensino. Porto Alegre,


Artmed, 2000.

TARDIF, M e RAYMOND, D. “Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério”.


In: Educação e Sociedade, ano XXI, nº73, Dez/2000.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 213

THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
(Trad. Waltensir Dutra).

________________. A formação da classe operária inglesa I: a árvore da liberdade. Trad.


Denise Buttmann. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 214

HAILE SELASSIE I: UM DEUS NEGRO OU UM IMPERADOR ABSOLUTISTA?

Zeus Moreno Romero


Historiador (Universitat de Barcelona)
Mestrando em História (Universidade Estadual de Maringá)

1. INTRODUÇÃO

Neste exato momento alguém está escutando música reggae, ouvindo alguma letra que fala de
paz, amor, igualdade e de um mundo unido pelo respeito dos seres humanos, através de
mensagens que se repitem em todos os continentes e em quase todas as línguas. A música
reggae é apreciada por milhões de pessoas em todo planeta, mas nem todas conhecem quem
foi o tão nomeado Haile Selassie ou Jah Rastafarai. Este texto tem como objetivo esclarecer a
tão controvertida figura do Imperador da Etíopia Haile Selassie I. Quem foi Haile Selassie,
um Deus negro ou um Imperador absolutista que governou seu povo com mão de ferro? Seja
quem for não podemos negar que o último Negus Neguest1 Etíope é uma das personalidades
mais importantes na história da África e consequentemente na história da humanidade, já que
a música reggae a tornou conhecida em todos os continentes. Por isso, o texto abordará temas
como: a história da Etiópia, uma breve biografia do Haile Selassie I e uma abordagem sobre o
movimento rastafári e a música reggae, já que esta foi transmissora da mensagem rasta e
ferramenta para contar a história da África e da escravidão aos mais diversos povos.

2. ETIÓPIA: O REINO CRISTÃO NEGRO

Para analisar brevemente a história da Etiópia é conveniente esclarecer um conceito


fundamental sobre a história do continente africano relacionado à questão da historicidade das
culturas da África negra. Conforme afirma Luis César Bou em seu texto África y la história:
“La cuestión de la historicidad de las culturas del África subsahariana es
algo que ha entrañado un largo debate en Occidente. Desde ya que todas las

1
Negus era o título usado pelos antigos monarcas etíopes desde a antiga Abissínia. Negus Nagast significa: rei
dos reis.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 215

culturas humanas son culturas históricas, pero la propia humanidad del negro
africano es algo que ha sido puesto en cuestión. Y aún cuando ese no fuera el
caso, las culturas negras fueron consideradas como ahistóricas en tanto
ágrafas, perspectiva ésta de dudosa legitimidad, no sólo por la frecuente
existencia de documentación escrita, sino también porque, de ninguna
manera, puede considerarse a la escritura como el único elemento productor
de historicidad.” (2001, p.5)

O caso de Etiópia deve ser analisado com outros olhares. Nos tempos da Grécia antiga,
concretamente já nos tempos do Homéro, existia o Estado de Kush. Nessa época os etíopes
eram, segundo Ferran Iniesta, “todos aqueles negros que moravam no sul do império egípcio e
que eram nomeados como cara queimada” (2007, p.269). As principais fontes historiográficas
que podemos utilizar para reconstruir a história da Etiópia antiga datam do século II e III. A
primeira fonte, que faz referência aos povos etíopes, é o escrito de Claudio Ptolomeu, que
apesar de ignorar a existência do reino de Axum conhecia as cidades de Meroe e Adulis. A
segunda foi o romance escrito em grego antigo, Aethiopica, do Greco-fenicio Heliodoro, onde
se relata a chegada de embaixadores axumitas em Meroe. A maioria dos habitantes do
Império de Axum dedicava-se à agricultura e a criação de animais, um tipo de vida que
poderíamos observar hoje em dia na região do Tigre. O judaísmo também teve presença na
Etiópia daquele tempo, como menciona de forma breve o Tarike Neguest (História dos Reis),
onde se constata que um grupo hebraico teria inclusive governado. Segundo a História dos
Reis, o cristianismo foi introduzido na Etiópia, no século IV, por Frumêncio,2 quem seria
chamado Kessate Brhan (Iluminador) ou Abba Selama (Pai da Paz). Furmêncio, que conhecia
bem sua cultura grega, se converteu em tesoureiro, conselheiro e tutor dos filhos do rei. A
educação dada por Frumêncio ao jovem príncipe fez com que ele abraçasse a nova religião
cristã. Graças à visita do Frumêncio ao patriarca Atanasio de Alexandria, este teve notícias da
boa acolhida do cristianismo pela família real da Axum e decidiu consagrar Frumêncio como
bispo de Axum. Já como Bispo, batizou toda a família real, iniciando assim a longa tradição
cristã na Etiópia.

A aparição do Islã, no século VII, fez mudar as relações dos povos que viviam entre as duas
margens do Mar Vermelho. Há alguns documentos que nos permite analisar o que ocorreu
nessa época, como por exemplo, a carta enviada pelo profeta Maomé ao Negus etíope, para

2
Frumêncio era Sírio-grego-fenício, faleceu em 383 e foi considerado o primeiro missioneiro na África.
Venerado como um santo pelas igrejas: Católica Romana, Copta, Etíope e a Ortodoxa (por ter expandido o
cristianismo pela Etiópia).

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intentar converte-lo ao Islã. Entretanto, nos tempos em que Maomé ainda estava vivo as
relações entre os muçulmanos e os etíopes nem sempre foram amistosas. Entre os embates
sucedidos, o mais relevante se refere ao fato de que os muçulmanos acabaram controlando o
comércio no Mar Vermelho e espalhando o Islã pela África, conseguido assim isolar reino da
Etiópia (Cerrulli, 2010).

Um fato histórico que marcou a história de Etiópia foi o cambio de dinastia, ocorrido em
1270, de Zagwe se passou a Dinastia “Salomônida”. Essa é uma das bases do movimento
rastafári e do poder de Haile Selassie I, já que foi considerado descendente do rei Salomão.
Nesse tempo havia no país: judeus (falaches) e muçulmanos. O historiador italiano Conti
Rossini descreve a Etiópia como um “museu de populações”, devido à complexidade do
quadro étnico e linguístico etíope. Os Imperadores consideravam que ao estarem associados à
dinastia “Salomônida” e ao cristianismo estariam ligados animicamente a culturas ocidentais,
situada geograficamente distante deles, separando-lhes do potente mundo muçulmano que
dominava o Indico no século XIV. O contato com Portugal ajudou a ter uma continuidade no
sistema político, que era ameaçado pela nova religião do profeta Maomé, marcando o ideário
do Estado Abissínio e a sua inserção no mundo cristão ocidental (Iniesta, 2007).

Nos inícios do século XIX, os Imperadores tinham perdido poder frente aos senhores feudais,
porém ainda conservam o poder nominal. O Negus Teodoro II (1855-1868) conseguiu
unificar o Império frente ao poder dos senhores feudais, graças a superioridade do seu
armamento de origem estrangeiro. Essas mesmas armas em mãos dos ingleses derrotaram o
Imperador numa expedição punitiva. Esse fato fez com que os dirigentes da Etiópia
compreendessem que precisavam de mais armas modernas para dominar o Império e para se
defender dos embates coloniais estrangeiros. João ou Yohannes IV foi o sucessor do Teodoro
II e governou a Etiópia entre 1872 até 1889. Ele definiu sua estratégia de governo através de
uma aliança com os colonialistas, afirmando que Abissínia era cristã e civilizada. No período
entre 1889 e 1913, quem dirigiu o Estado foi o Imperador Menelik II, corresponde a um
tempo em que a entrada dos europeus na África foi intensa. No dia 1 de Março de 1896, na
batalha de Adua, a mas importante da guerra Italo-Abissínia, as tropas do Imperador
derrotaram os planos imperialistas italianos deixando 10.000 mortos no campo de batalha.
Esse fato obrigou as potências europeias a reconhecerem internacionalmente Abissínia com o

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12 a 15 de Outubro de 2012
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novo nome de Etíopia. De acordo com Iniesta (2007, p.269), “Etiopía surgiu assim como
entidade antiga, civilizada e poderosa no âmbito militar”.

O reinado do Menelik se caracterizou pela abertura a todo tipo de inovações tecnológicas da


época e pela fundação da nova capital Adis Abeba (flor nova) em 1880, assim como também
pela forte inversão em infraestruturas como, por exemplo: pontes, um sistema postal (1890), a
primeira moeda nacional etíope (1894), linhas telegráficas (1900), uma estrada de ferro que
unia a capital com Akaki (1902), o Banco de Abissinia como filial do Banco do Egito em
mãos britânicas (1905), o primeiro hotel moderno (1907), a Escola Menelik II que tinha
professores coptos do Egito (1908), o Hospital Menelik II (1910). Segundo o médico italiano
De Castro (1915, p. 162.), o Imperador era “um soberano verdadeiramente amigo do
progresso” e conforme o historiador etíope Gabre Sellassie (1930, p.527), ele conseguiu
“implantar na Etiópia os costumes europeus”. Menelik II morreu em 1913 e Lij Yassu foi o
seu sucessor, governando entre 1913 e 1916. Em seguida, o poder passou para as mãos da
primeira mulher em governar Etiópia, Zewditu I, que foi Imperatriz entre 1916 até 1930. O
sucessor de Zewditu I foi o Negus Tafari, quem em 1930, graças ao seu exercito moderno,
derrotou a rebelião do Ras Gugsa, marido da Zewditu, na batalha de Achem. Assim
prevaleceram as políticas modernizadoras do Negus Tafari, frente às políticas conservadoras,
mas próximas à igreja etíope. O nome de nascimento do novo Negus Nagast foi Tafari
Makonen, mudando-se depois para Haile Selassie I (Poder da Trindade).

3. HAILE SELASSIE I: O REI DOS REIS

No dia 23 de Julio de 1892, nasceu na vila de Ejersa Goro, na província de Harar, uma das
figuras mais importantes da historia contemporânea africana, Haile Selassie I. Foi regente da
Etiópia desde 1916 até 1930 e Imperador da terra cristã negra entre 1930 e 1975. O seu nome
de nascimento era Lij Tafari Makonnen (Lij significa “criança”, foi utilizado para identificá-lo
como jovem de sangue nobre, e Tafari quer dizer “aquele que é respeitado”). Mais tarde o
nome Lij foi incluído por Ras, que seria equivalente a duque e literalmente significa “cabeça”
(Murrell et al, 1998). Dessa forma, seu nome completo, antes da coroação, ficou sendo: Ras
Tafari Makonen. Assim, se pode identificar a origem do nome do movimento Rastafari.

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O jovem Tafari Makonen era filho de um general etíope e sobrinho-neto do Imperador


Menelik II, teve suas origens no grupo étnico dos Amharas, tendo também raízes Oromo e
Gurage (Mockler, 2003). Segundo a tradição da família real, ele era herdeiro daquela dinastia
que surgiu no século XIII relacionada com o rei Salomão e rainha Makeda (Imperatriz de
Axum e conhecida como a Rainha de Sabá). Tafari começou a assumir cargos de governador
em 1906, no início controlou Selale (uma província não muito importante), o que lhe permitiu
dar seguimento aos seus estudos. Já em 1907, foi nomeado governador de uma parte da
província de Sidamo e em 1910/1911 governou a importante província de Harar. Para sua
educação, Tafari teve como tutores o Dr. Vitalein da ilha caribenha Guadalupe (departamento
ultramarino Frances), quem o instruiu em língua francesa, e o monge Abba Samuel Wolden
Kahin, um etíope da Missão dos Capuchinos franceses em Harar, sendo, portanto, católico
romano. Segundo Marcus (1987), o fato de ter sido educado por um católico romano causou
desconfiança entres os nobres etíopes, o que lhe obrigou em 1906 ter um novo batizado pela
igreja ortodoxa etíope. Em sua autobiografia, Haile Selassie se refere à Abba Samuel Wolden
Kahin da seguinte forma:
Abba Samuel era um bom homem que possuía um grande conhecimento,
que se dedicou à aprendizagem e ao ensino, que, na bondade e humildade,
reunia conhecimento de todos como uma abelha, que era devoto ao amor de
Deus e do seu vizinho, e que não fez se esforçam para encontrar prazer da
carne, mas da alma. Eu estou dizendo isso porque eu o conhecia muito bem
enquanto estávamos juntos há uns dez anos (SELASSIE, 2003, p.18,
tradução nossa).

O jovem Tafari participou ativamente no movimento para derrocar ao Imperador Lij Iyasu
(que governou entre 1913 e 1916, mantendo estreita relação com a religião muçulmana). Com
a derrota do Imperador Lij Iyasu, a Imperatriz Zewditu assumiu a regência enquanto Tafari
era menor de idade. Durante esse período, Ras Tafari se responsabilizou pela administração
do império (Marcus, 1994). O novo príncipe herdeiro continuou a política iniciada por
Menelik II para a modernização do país e conseguiu (em 1923) a admissão da Etiópia na Liga
das Nações, com a promessa de acabar com a escravidão (que apesar de ter sido abolida
oficialmente, ainda perdurou por muitos anos). O futuro Negust de Etiopia iniciou em 1924
uma grande turnê que lhe levaria até Jerusalém, Cairo, Alexandria, Bruxelas, Amsterdã,
Estocolmo, Londres, Genebra e Atenas. Durante essa viagem visitou escolas, fábricas,
hospitais e igrejas com o propósito de adquirir conhecimento para a modernização de seu

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país. Haile Selassie, segundo seus próprios escritos, acreditava que “precisamos de progresso
europeu só porque estamos cercados por ele. Isso é ao mesmo tempo um beneficio e uma
desgraça” (apud Rogers, 1936, p.27). A atenção da mídia europeia a princípio esteve voltada
para a pitoresca vestimenta que utilizava o futuro Imperador e sua comitiva, segundo Anthony
Mockler (2003, p.3), “raramente uma turnê inspiraram tantas anedotas”.

Em seu país, o futuro Imperador teve que controlar a política interna lutando contra o
governador da província de Sidamo (rica produtora de café), Dejazmatch Balcha Safo, e
contra um golpe de estado realizado por alguns nobres etíopes. Porém, a superioridade
armamentista do exército do Ras Tafari, juntamente com o suporte popular e da polícia
nacional, ajudou a controlar o golpe (Roberts, 1986). No dia 7 de outubro de 1928, a
Imperatriz Zewditu I coroou Ras (príncipe) Tafari, que passaria a ser Negus (Rey) Tafari. O
primeiro grande problema que teve que afrontar o novo Imperador foi a invasão da Etiópia
por parte da Itália fascista de Musolini (de certa forma como represália à dura derrota sofrida
pelo exército italiano em 1886, em Adwa, que segundo Sbacchi (1985), “foi a maior derrota
sofrida por uma potência europeia por parte de um exercito africano”). Benito Mussolini nos
seus planos de glorificar a Itália emulando o antigo Império romano dirigiu as suas ânsias
imperialistas contra África. Sobre Etiópia o líder fascista proclamou: “prefiro declarar a
guerra na Grã Bretanha e França antes que abandonar a conquista de Etiopía” (ARON, 1996,
p.67).

A guerra entre a Itália fascista e a Etiópia imperial foi bastante desigual, já que a potência
europeia contava com um armamento superior. Em princípios de outubro de 1935, se deu
início à invasão italiana, com o plano de conquistar rapidamente o território. Diante da brava
resistência etíope, Mussolini decidiu que o seu exército utilizasse gás mostarda, proibido pelo
Protocolo do Gás em Genebra, assinado por Itália e Etiópia, ademais de outros países, em
1925. As armas químicas, usadas não só contra o exército etíope, mas também contra a
população civil, causou milhares mortos. O transcurso da guerra foi relatado por Haile
Selassie em sua autobiografia:
Mesmo que os italianos fossem superiores no manejo do armamento
moderno, nossos soldados tinham a vantagem devido a sua coragem.
Tínhamos ganhado as batalhas nas regiões de Tambien e Shiré, e apesar de
combater com rifles obsoletos, como o fuzil Gras, conseguimos apropriar de

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mais de 300 metralhadoras e muitos canhões e tanques (HAILE SELASSIE,


1976, p.119, tradução nossa).

Todo isso porque o Marechal Graziani prometeu a Mussolini dar-lhe a Etiópia “com etíopes
ou sem eles” (Boca, 1969, p.113). O objetivo final dos italianos era trasladar um grande
número de camponeses italianos para as terras fértil da Etiópia. Graziani massacrou civis nas
batalhas de Ogaden (em 1936) e bombardeou o país com gás mostarda. No dia 30 de Abril de
1936, Haile Selassie fugiu para a capital Adis Abeba devido à pressão militar da invasão
imperialista, lá na capital reuniu a todos os nobres e ministros para aprovação dos acordos.

Dentro do contexto da segunda guerra mundial, os britânicos junto com os resistentes etíopes
conseguiram acabar com a invasão italiana. Os etíopes não quiseram uma grande vingança
pelas matanças, devido sua cultura religiosa de tolerância e dignidade e graças também a
pressão internacional de Grã-Bretanha e dos EUA. A ocupação italiana acabou com
instituições tradicionais e com o mito da divindade do Imperador. Porém, Haile Selassie,
depois de uma grande campanha de propaganda, voltou para restaurar seu poder em 5 de
Maio de 1941 (desta vez para governar por mais 30 anos). A ausência do Negus e a
resistência dos “Patriotas” deram entrada a novos ideais de justiça social para o povo etíope,
ideias estas que o novo governo tinha que considerar com seriedade. Mas, a modernização
política não ocorreu com a força desejada pelos antigos combatentes da resistência, dessa
forma a política absolutista tradicional do regime imperial continuou.

Durante a guerra, houve um grande suporte da comunidade afro-americana. Segundo Harris


(2010), o apoio moral e a ajuda material dos africanos da diáspora foram mais importantes
que a sua ajuda militar. Tanto os negros da diáspora como os das colônias africanas, lutaram
no território, organizaram manifestações e multiplicaram os artigos e clamores em favor da
Etiópia. Ao terminar a guerra muitos afroamericanos retornaram nos seus países e outros
permaneceram na Etiópia, trabalhando como médicos, jornalistas, pilotos e professores.
Segundo Iniesta (2007), acabada a ocupação e com o retorno do Imperador ao poder:
“uma dura política repressiva contra os oponentes do governo imperial, uma
rejeição absoluta a qualquer modificação do regime de posse da terra dos nobres e
uma absorção –ilegal mas, permitida- da Eritrea compensou-se no exterior com
uma publicidade enganosa sobre a bondade do Nagast e o seu trabalho diplomático
de mediação para a fundação, em 1963, da Organização da Unidade Africana, que
teria a sede permanente em Addis Abeba. O exílio mediático de Haile Selassie foi
tal que inclusive passou das emotivas fotos familiares na prensa a ser figura de
devoção para o radicalismo dos rastas” (2007, p.270).

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Em 1960, Haile Selassie visitou Brasil, o país com mais população negra fora da áfrica. No
dia 02 de dezembro, chegou a Recife com uma comitiva de 25 pessoas, depois se foi a
Brasília onde teve uma audiência com o então presidente Juscelino Kubitschek e visitar o
Congresso Nacional e o Superior Tribunal de Justiça. Logo se foi a São Paulo para audiência
com o então governador Carvalho Pinto e para um encontro com as lideranças populares do
ABC paulista. No dia 15 de dezembro, foi obrigado a voltar ao seu país para controlar um
Golpe de Estado perpetrado pelo político Germane Neway3, que pretendia implantar políticas
mais progressistas e afastadas dos velhos privilégios nobiliários, acabando assim com o antigo
sistema político e a corrupção. O golpe foi sufocado por as forças leais ao Imperador, que
voltou do Brasil com o seu poder reconstituído.
No dia 25 de Maio de 1963, o impulso de Haile Selassie, junto com Kwame Nkrumah e
Gamal Abdel Nasser, ajudou a fundar a Organização da Unidade Africana (OUA) com sede
permanente em Adis Abbeba. A Organização tinha como meta promover a unidade e a
solidariedade entre os estados africanos, ser a porta-voz da África, lutando contra o
colonialismo e promovendo a cooperação Internacional. O Negust etíope tinha um grande
prestígio internacional fazendo parte da cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados. Na
Etiópia, a popularidade do Imperador teve uma queda significativa, devido aos protestos dos
estudantes, à repressão, às desastrosas propostas de reforma agrária, os intentos de
enfraquecer os sindicatos, mantendo assim intactos os privilégios da nobreza e do clero. Em
1974, o Derg (comitê de militares) conseguiu deter a maior parte dos políticos e oficiais e, no
dia 12 de setembro desse mesmo ano o Imperador foi preso no seu palácio, acabando-se assim
com a Monarquia e o absolutismo. No dia 27 de Agosto de 1975 a mídia estatal informou que
o Imperador Haile Selassie havia morrido devido a uma insuficiência respiratória, após
complicações em uma operação de próstata4.

O regime que sucedeu a monarquia etíope veio em seguida declarar-se marxista-leninista. O


Golpe de Estado acabou com a figura controvertida de Haile Selassie, que no exterior era
reconhecido como um Rey justo, benévolo, um líder pan-africanista, um incansável lutador

3
Germane Neway foi nomeado governador da província de Sidamo (a maior produtora de café), quando voltou
dos seus estudos nos Estados Unidos. Durante o seu governo iniciou um programa de construção de escolas e
defendeu a entrega de terras não cultivada ao “sem-terra”, coisa que fez que a oligarquia da província provoca-se
a sua substituição e o envio do político para uma das áreas menos povoadas do pais, Djidjiga.
4
Essa é a versão oficial, mas existe uma grande polêmica com relação à morte de Haile Selassie. Há inclusive
suspeitas de assassinato.

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pelos direitos dos africanos, enquanto que seu país continuava controlado pela oligarquia
tradicional, o feudalismo e o absolutismo do Negust, que não media esforços em reprimir
protestos ou lideranças opositoras. No dia 5 de Novembro de 2000, Haile Selassie teve um
funeral ao estilo imperial realizado pela igreja Ortodoxa Etíope. Algumas figuras do
movimento rastafári, como Rita Marley (esposa de Bob Marley) assistiram ao funeral,
daquele que governou Etiópia e foi considerado um Deus pelos rastafáris.

4. MOVIMENTO RASTAFÁRI E A MÚSICA REGGAE

Na década de 1930, apareceu nas favelas da Jamaica (país com aproximadamente 98% de
descendentes de escravos) o movimento espiritual chamado Rastafári ou Rasta. Na concepção
dos Rastas, o Imperador Haile Selassie era um Deus encarnado, o “Segundo Advento”, a
“reencarnação de Jesus” ou “o rei escolhido por Deus na terra”. O movimento ficou
reconhecido pelo nome que possui Haile Selassie antes de se tornar rei: Ras Tafari. Devido
sua difusão principalmente através da música reggae, Haile Selassie foi conhecido também
como o Deus “Jah Rastafári”. O movimento tem como temas principais: a proclamação da
África (e também Zion ou Etiópia) como berço original da humanidade; a rejeição da
sociedade ocidental (que chamam de Babilônia, fazendo uma metáfora com o novo
testamento cristão); o uso espiritual do cannabis; a paz; o amor; a unidade; a solidariedade e a
igualdade entre os povos. Também se destacam como temas centrais a repatriação dos afro-
americanos à África e as várias reivindicações sociais e políticas, como, por exemplo, o Pan-
africanismo – uma das reivindicações que surgiu com Marcus Garvey, considerado pelos
Rastas o profeta do movimento, seu correspondente no Cristianismo seria João Batista.

Não é objetivo de este trabalho aprofundar na história do movimento Rastafári, assim que
limitaremos a relatar sua criação relacionada ao fato de possuir como Deus o Imperador
Etíope Haile Selassie. Sendo um movimento quase religioso criado por afro-americanos, a
filosofia Rasta se espalhou pelo mundo devido à música reggae e ao seu máximo
representante, Bob Marley (1945-1981). Atualmente pessoas de todos os continentes escutam
a música reggae (desde Mongolia até Fiji), propagando-se assim a mensagem de paz, amor,
unidade, solidariedade, igualdade, respeito, etc. Uma das músicas mais revindicativas de Bob
Marley, a canção “War” de 1976, é uma versão sobre o discurso Haile Selassie na

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Conferência das Naçoes Unidas em Nova York (em 1963). Como portador da mensagem dos
32 chefes de Estado africanos, Haile Selassie fazia uma chamada à paz mundial, à justiça, à
igualdade e ao fim da exploração dos povos africanos. No fim do discurso o Imperador
ressalta que o que estava dizendo eram somente palavras e que dependeria da vontade de cada
um colocá-las um valor. O discurso estava baseado portanto em como a discriminação afeta
negativamente a Paz.

A visita que realizou Haile Selassie à Jamaica, em 21 de Abril de 1966, foi histórica para o
movimento rastafári. Milhares de pessoas afro-americanas receberam o seu “Deus negro” com
cantos espirituais religiosos. O Imperador declarou no parlamento da Jamaica que “onde quer
que exista sangue africano, haverá a base de uma maior unidade” (EDMONDSON, 2010,
p.1034). Se poderia dizer que a música reggae contribuiu para a globalização de uma filosofia,
de um jeito de pensar, de uns valores universais que unificam pessoas dos mais variados tipos
e lugares. Esse estilo musical é fruto da espiritualidade e também um canto de lamento pelos
quatrocentos anos de escravidão, pela Apartheid, a discriminação racial, e outros “inventos”
das elites que tentam justificar o seu domínio sobre a maior parte da população. A música
serve também como ferramenta de luta pacifica, mostra passagens intolerantes da história
humana e serve para conscientizar as pessoas.

5. CONCLUSÃO

A controvertida figura de Haile Selassie pode ser analisada desde diferentes prismas, porém
cabe ressaltar que no âmbito internacional o Imperador teve um grande reconhecimento entre
as potências mundiais. Conseguiu “unificar” a África na Organização da Unidade Africana
(OUA) que tinha sede permanente em Adis Abbeba e estimulava a unidade e solidariedade
entre os estados africanos. Esta organização seria a porta-voz da África na lutar contra o
colonialismo e promoção da cooperação Internacional. O Negast também teve protagonismo
no Movimento dos Países Não Alinhados e realizou inúmeras visitas oficiais onde foi tratado
com o máximo respeito. Porém, o último membro da dinastia salomônica (como ele mesmo se
referia), governou duramente o seu povo, reprimindo e obstaculizando os avanços políticos e
perseguindo os opositores. Modernizou a capital e deixou à margem de seus interesses a zona

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rural, que continuava sob o domínio das elites tradicionais. O país se constituía, portanto, em
um regime absolutista, onde o poder do Imperador era indiscutível e sagrado, a igreja
ortodoxa etíope conservava os seus benefícios e o sistema feudal continuava sendo mantido.

O Negast etíope representa uma figura central no movimento rastafári jamaicanos como um
Deus negro. Porém, Haile Selassie recusava esse pensamento, afirmando que ele era um
devoto cristão etíope e por esse motivo não podia ser um Deus. Não é trabalho de um
historiador julgar a Fé dos Rastas, mas sim analisar o impacto desse movimento através da
música reggae. A Etiópia, o reino cristã da África, com uma grande história percorrida, teve
visibilidade no mundo devido ao trabalho diplomático do Imperador. O movimento rastafári,
por sua vez, uniu os afrodescendentes americanos com África e a musica reggae o conectou
com o resto do mundo, através das mensagens pacifistas, de respeito e tolerância, temas
validos em qualquer lugar do mundo.

Constata-se, portanto, que Haile Selassie representa uma figura contraditória. Foi um
Imperador absolutista, que governou com “mãos de ferro” e ao mesmo tempo um Deus negro,
para muitos seguidores do movimento rastafári. Considerando que cada indivíduo tem sua Fé,
não podemos desprezar os sentimentos ou formas de pensar de qualquer outra cultura alheia a
nossa.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nicolson, 1966.

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ST 04 – CULTURA, ETNIAS, IDENTIFICAÇÕES
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 227

HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DA GENEALOGIA,


PRUDENTÓPOLIS (PR)

Eliane Crestiane Lupepsa Costenaro


Mestranda em História na Universidade Estadual do Centro- Oeste (UNICENTRO-PR)
Orientador: Dr. Valter Martins

Palavras-chave: História; alimentação; Prudentópolis.

Este texto diz respeito à alimentação, concebida enquanto constituinte do sujeito, a


partir da perspectiva da genealogia de Michel Foucault. Discute-se como os discursos
produzidos sobre a alimentação, receitas culinárias e dicas para a dona de casa, repercutem na
constituição de modos de ser e agir dos indivíduos. Indivíduos enquanto produtos do poder e
do saber. Para tanto, é importante apresentar, caracterizar e contextualizar as principais fontes
documentais analisadas e deixar explícita a perspectiva de história da alimentação aqui
considerada, além de estabelecer um entendimento sobre a genealogia de Foucault e de que
modo esta proposição auxilia na compreensão do corpo e da alimentação, num recorte
espacial e temporal específico. Para identificar o processo de construção do corpo pela
alimentação, se discute as relações de saber-poder no âmbito da história da alimentação. Com
este objetivo é possível estabelecer uma reflexão sobre as relações dos indivíduos com as
“verdades” de seu tempo.
Estudos com esse viés já foram empreendidos como o de Tatiane Souza de Camargo
(2008) que analisou as relações entre os discursos, na perspectiva de Foucault, a respeito dos
cuidados com a alimentação e as normas de conduta que propõem suscitando modos de ser e
estar no mundo e suas configurações na atualidade. A autora utilizou como fontes rótulos das
embalagens de alimentos diet e light vendidos em uma rede de supermercado de Porto Alegre,
buscando demonstrar de que modo as “verdades” implícitas nesses rótulos se integram no

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processo constitutivo das subjetividades e ajudam na construção de padrões de saúde, beleza e


boa forma.
Contudo, nesse estudo as fontes priorizadas são textos, receitas e dicas culinárias
publicadas semanalmente no Jornal Prácia (Trabalho), editado em língua ucraniana na cidade
de Prudentópolis-PR entre 1963 e 1995. Considera-se aqui a possibilidade de uma leitura
desses textos à luz da genealogia de Focault a fim de observar que sujeitos esses discursos
percorrem e visam constituir.
No jornal Prácia há uma coluna dedicada às donas de casa, sob o título “Дгя Пaнь
Дoмy” - “Para a Dona de Casa”. Elas foram fotografadas, catalogadas e traduzidas para o
português somando em torno de duzentas. O jornal Prácia de Prudentópolis representa uma
contribuição significativa à imprensa de língua ucraniana no Brasil. Essa imprensa teve início
em 1904, no momento da fundação do “Comitê da Imprensa”, criado com o intuito de
difundir textos destinados aos imigrantes ucranianos em sua própria língua. Esse jornal tem
amplitude nacional e internacional, pois além de possuir assinantes no Paraná e outros estados
brasileiros o jornal chega a países como Argentina, Uruguai, Paraguai, Canadá e Ucrânia.
Essas informações fazem parte de um mapeamento ainda em andamento.
De acordo com Gomes e Polak (2008, p. 739), surgiram em Prudentópolis no início do
século XX três jornais em língua ucraniana: “Zoriá” (Estrela), “Prapor” (Estandarte) e
“Prácia” (Trabalho). Dentre eles apenas o Prácia continua em atividade. Em 1912 quando
iniciou o jornal era quinzenal. A partir de 1915 tornou-se semanal, editado em Prudentópolis
na Tipografia dos Padres Basilianos, o que ocorre até os dias atuais.1 O jornal tinha por
objetivo incentivar os imigrantes ao trabalho, à leitura e a mantê-los informados sobre temas
políticos, culturais e também religiosos. Em 1933 o Prácia ganhou duas páginas em português
tornando-se bilíngüe.
A imigração ucraniana no Paraná ocorreu no final do século XIX e início do XX. Em
Prudentópolis os imigrantes se instalaram em lotes, com o tamanho de 10 a 12 alqueires
praticando uma agricultura de subsistência. Schneider afirma que:

Os descendentes de ucranianos seguem uma lógica camponesa que pode ser


observada também em outros grupos, como os colonos teuto-brasileiros do sul, os
sitiantes do nordeste, bem como os poloneses de Contenda no Paraná. Destacando as
peculiaridades de cada um, percebe-se que a essência do campesinato ocorre de

1
Basilianos por pertencerem à Ordem de São Basílio Magno.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 229

forma muito parecida, no modo de conceber a terra, de relacionar-se com a família,


na forte religiosidade, na busca pela auto-subsistência. (SCHNEIDER, 2002, p.32)

Os textos publicados no Jornal Prácia compõem uma rede discursiva sobre diferentes
assuntos. Nesse trabalho nos interessam aqueles ligados à alimentação. Entende-se que essa
rede discursiva cria e ensina saberes a respeito do paladar e da comensalidade e estão
relacionados com os jogos de verdade da respectiva época. Considera-se a noção de verdade
associada aos discursos, essa noção é fundamentada por Foucault (1999):

A verdade é desse mundo, ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns aos outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(p.12).

Os textos e imagens inscritos no Prácia convertem-se em saberes culturais divulgados


e passam a fazer parte dos enunciados que de certa forma orientam os indivíduos no processo
ativo de constituição de suas subjetividades. Os padres da Igreja Católica têm o estatuto e o
encargo de dizer aos ucranianos e descendentes, por meio do jornal Prácia, o que funciona
como “verdadeiro”.
A importância da alimentação é habitualmente associada à garantia de sobrevivência
ao cotidiano por fazer parte da rotina dos indivíduos. Mas, “além de um ato biológico, comer
é antes de tudo um ato simbólico” (LODY, 2004, p. 14). Nos estudos relacionados à História
e Cultura da Alimentação, a comida e o comer aparecem como um universo no qual se
preservam tradições sociais, sejam elas coletivas ou familiares. Carlos Roberto Antunes dos
Santos (2005) apresenta o alimento como uma categoria histórica, referindo-se a diversos
aspectos da sociedade principalmente nos campos cultural e econômico. A alimentação
representa um elo entre o presente e o passado por meio da memória gustativa e dessa forma
contribui para a reafirmação da identidade. De acordo com Santos (2005), muitas práticas de
grupos sociais podem constituir tradições culinárias e fazer com que os indivíduos se
considerem inseridos em um contexto sócio-cultural que lhes confere uma identidade,
reafirmada pela memória gustativa. Essa questão remete à idéia de Norbert Elias (1993), de
que toda e qualquer modificação na vida ou na rede social não pode ser analisada dissociada
de seu contexto ou sem analogia com as motivações e interesses da época estudada. O mesmo

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se dá com relação aos hábitos alimentares, ao comportamento à mesa e às formas de vivenciar


a comensalidade pelos indivíduos. Considera-se a culinária como um fator importante para a
manutenção e fortalecimento da cultura local. A reafirmação de uma identidade pode ocorrer
por meio do paladar.
A discussão empreendida nesse texto indica uma intersecção dos estudos culturais e os
enunciados de Michel Foucault. A alimentação se vincula aos estudos da Nova História
Cultural. Essa perspectiva de análise histórica adquiriu vigor, sobretudo a partir da década de
1950 e corresponde ao modo de se compreender a história caracterizado pelo desprezo aos
esquemas teóricos e generalizantes. De acordo com Hunt (1993), as concepções marxistas,
que inseriam a cultura como integrante da superestrutura, bem como as que opunham a
cultura erudita à cultura popular foram superadas. Houve, por outro lado, um direcionamento
aos valores de grupos particulares, em períodos e locais específicos. Desse modo, entram em
cena as categorias explicativas de caráter regionalizado, em que as diferenças culturais
assumem uma importância maior que os elementos políticos e econômicos. As interpretações
e a abrangência simbólica passam a fazer parte de um campo comum sobre o qual os
historiadores se debruçam, possibilitando a multiplicação dos possíveis objetos de estudo.
Isso pressupõe uma maneira diferente de pensar a cultura e considerá-la como um conjunto de
significados que os homens constroem e compartilham para explicar o mundo. Desse modo, a
História Cultural constituiu um campo no qual os historiadores alargaram suas problemáticas,
metodologias e objetos. O alimento é um desses objetos. Da Matta (1986) ressalta o
significado de alimento e comida, para ele,

o alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos:
amigos ou inimigos, gente de perto ou de longe, da rua ou da casa, do céu ou da
terra [...] Por outro lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa
que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe
ou pessoa (p.55).

Embora Da Matta estabeleça uma distinção entre comida e alimento, Santos (2005)
reforça que o alimento constitui uma categoria histórica já que os padrões de permanência e
mudanças dos hábitos e práticas alimentares fazem parte da dinâmica social. “Os alimentos
não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois
constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum
alimento que entra em nossas bocas é neutro” (SANTOS, 2005, p. 165). Assim, é possível
traçar uma relação entre o que se come e os sentimentos, “sempre representados nas histórias

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individuais, dos momentos ritualizados que começam com a escolha dos ingredientes,
processos culinários, maneiras de servir e de comer” (LODY, 2004, p. 14). Nessa perspectiva,
as manifestações culturais e sociais dão conta de explicar a historicidade da sensibilidade
gastronômica, pois são reflexos de seus respectivos contextos. Desse modo, “o que se come é
tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come”
(CARNEIRO, 2003, p.2). Estes enunciados ilustram bem o lugar da alimentação na História.
Conforme uma das proposições iniciais desse texto, nesse momento destaca-se o que
se entende por genealogia, um conceito aqui considerado como ferramenta de análise dos
sujeitos. A idéia de genealogia em Foucault representa uma forma peculiar de análise para
compor críticas a instituições específicas e para a teorização de uma ampla gama de diferentes
práticas. No capítulo 2 do livro Microfisica do Poder, ele trabalha com o conceito de
genealogia de Nietzsche, apropria-se dele para fundamentar sua própria perspectiva de análise
genealógica. Ele defende que a finalidade da genealogia é trabalhar com aquilo que não é
histórico propondo um proceder histórico de se ater às lacunas, às descontinuidades em
oposição à metafísica enquanto pesquisa da origem (Ursprung). Foucault estabelece sua
própria noção de origem, proveniência e emergência. A pesquisa de proveniência revela que
na origem não se encontra pureza, mas sim o acidente, a descontinuidade. Associa também a
herkunft, essa proveniência ao corpo, na forma de marcas e práticas que nos foram deixados
pelos ancestrais, articulando assim o corpo com a história, que inscreveria no corpo a marca
dos acontecimentos. “A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, no ponto de
articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de
história e a história arruinando o corpo.” (FOUCAULT, 1999, p. 22)
Os enunciados de Foucault contribuem para o entendimento do processo de
constituição dos corpos marcados pela história. Nessa perspectiva considera-se o corpo como
passível de historização, que traz em si as mais diversas acepções humanas, dores, prazeres,
paixões, enfim, forças e fraquezas em contextos específicos.

O corpo – é tudo que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo – é o lugar
da Herkunft: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do
mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele
também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam,
entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito.
(FOUCAULT, 1995, p. 22).
A partir dessa perspectiva considera-se que nos discursos do jornal Prácia em questão,
há sentidos que podem ser tomados como verdades e que em determinados contextos

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inscreveram nos corpos comportamentos, valores e sentimentos. As questões daí recorrentes


são: quais comportamentos, que tipo de valores e sentimentos decorrem dos enunciados
desses textos? Percebe-se que predominam nesses enunciados proposições de cunho religioso.
Pois, neles são recorrentes receitas associadas a práticas litúrgicas, conforme se percebe a
seguir.

O jejum de quaresma é obrigatório a partir de 10 de fevereiro. Por isso as donas de


casa devem tomar cuidado na preparação das comidas deste período. Os legumes e
as massas são os que melhor se adaptam. Não faltam peixes. Tem várias maneiras de
preparar pratos e frutas para preservar o jejum prescrito pela igreja com abstenção
de carne e leite e ainda seguir uma dieta. (JORNAL PRÁCIA, 06 de fevereiro de
1964, número 5, p. 6)

Textos como esses que estimulam uma dieta voltada ao religioso que é seguida no
período da quaresma por boa parte dos descendentes de ucranianos. Aparecem ainda no
Prácia sugestões que ajudam a “construção” da dona de casa: como arrumar a casa ressaltando
a fé.

Que as nossas donas de casa cuidem de suas casas, para que torne-se agradável
entrar nelas [...] Quadros com imagens de Deus, de Jesus e de algum Santo devem
ser grandes e devem ser pindurados acima de todos os demais quadros ou fotos.
Deus é o todo grandioso por isso merece o primeiro lugar. Nem um outro quadro
deve ser pindurado acima das íconas [...] (JORNAL PRÁCIA, 23 de janeiro de
1964, número 3, p. 6)

A partir desses fragmentos nota-se que não só os alimentos são associados à


religiosidade, como também a maneira de arrumar a casa, organizar os quadros na parede de
modo que seja respeitada a hierarquia dos santos. As “íconas” ou quadros que representam
Deus ou Jesus aparecem como mais importantes que os demais quadros. Atualmente é comum
encontrar em casas do interior de Prudentópolis, nas paredes inteiras da sala, quadros de
santos e fotos da família.

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Casa da família Voratczy


Fonte: Eliane Lupepsa Costenaro (2008)

Conforme Costa (2010, p. 77), “a vida doméstica, as obrigações com os filhos, a


atenção para o marido e os cuidados com a beleza regulavam o tempo da mulher nas décadas
de 60 e 70.” Dentre as diversas receitas publicadas pelo jornal Prácia são alguns pratos
popularmente considerados como “ucranianos”, tais como, Borch, Holupti, Babka, Kapusniak
2
, também associados à religiosidade. Isso denota que tais pratos têm raízes na Ucrânia e
continuam sendo preparados no Brasil desde a chegada dos imigrantes no final do século
XIX. Por isso são considerados e designados como pratos ucranianos, tanto pelos
descendentes como pelos não descendentes de ucranianos e adquiriram diferentes sentidos.

Os colonos ucraíno-brasileiros definem-se como “colonos”. São essencialmente


agricultores, vivem em pequenas vilas na área rural do município e a lavoura
principal de cada família situa-se num lugar mais afastado, em média 5 a 10 km da
casa [...] O cultivo principal é feijão, cebola, alho, batata, fumo e milho. Além
desses há outros produtos que são cultivados para consumo próprio, e,
eventualmente podem ser vendidos, que são os produtos do quintal: beterraba, batata
doce, repolho, pepino, alface, couve, cenoura, rabanetes, amendoim, temperos, ervas
medicinais – endro, camomila, capim limão, erva cidreira, erva doce, gengibre, raiz
forte, alecrim, sálvia etc. (SCHNEIDER, 2002, p. 33)

Esses cultivos acabaram por se converter em ingredientes de diferentes receitas e são


frutos da produção de subsistência praticada por pequenos agricultores. Sendo incorporados a
eles também a carne de animais criados nas propriedades. Na receita de Borsch a seguir é

2
Borch: sopa a base de repolho, carne suína e beterraba. Holupti: folha de repolho recheada com carne moída e
arroz. Babka: pão doce. Kapusniak: folhas de repolho azedo e temperado.

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possível associar a tentativa de substituição dos ingredientes “originais”, da receita matriz, por
elementos disponíveis na própria propriedade rural, o que denota uma adaptação na culinária.

Na fervura com os ossos junte algumas verduras e 5 ou 6 batatas. Escolha urtiga


fresca, escaldar com água quente, picar, fritar na gordura, juntar 2 colheres de
farinha, formar um molho e misturar com o caldo de ossos. Acressentar nata ou
vinagre, ou soro de leite para que fique com sabor azedo. Servir com arroz, macarão
ou ovos bem cozidos. (JORNAL PRÁCIA, 20 de abril de 1964, número 27, p.6.)

O Borsch, assim como outros pratos varia de acordo com cada região da Ucrânia.
Existem muitas variações de receita dessa sopa. Trata-se de um dos pratos fundamentais da
mesa natalina. Também é um prato que contempla ingredientes ricos em nutrientes, como
raízes, repolho e carne suína. Receitas como essa instigam analisar como esses enunciados
implicam em discursos a ponto de constituírem condutas e como essas noções constituem o
corpo, não um corpo dado, pré-determinado pela genética, mas inserido em espaço e tempo
específicos, imbricado nas maneiras e condições de vivência de sua época. O apontamento de
como servir tal sopa e também os acompanhamentos sugeridos, macarrão, arroz ou ovos bem
cozidos levam a pensar também as ocasiões, a comensalidade em que era servido esse prato.
As receitas constituem saberes culinários que são convertidos em práticas e
procedimentos regulados para a produção e manutenção dos enunciados, receitas culinárias e
dicas para a dona de casa e para a construção de sujeitos, ordeiros, trabalhadores e, acima de
tudo, religiosos. Muitas das receitas do Jornal Prácia correspondem a alimentos do corpo e da
alma sendo que tal concepção é reafirmada, sobretudo, nos períodos do natal e da páscoa.
O comportamento e os valores decorrentes da maneira de se preparar os alimentos
associam-se às práticas que envolvem o preparo e o consumo dos mesmos. Aparecem vivas
no cotidiano, tanto na área urbana quanto na área rural de Prudentópolis. No período da
páscoa, milhares de descendentes de ucranianos concentram-se em orações nas igrejas e em
suas casas. No sábado que antecede o dia da ressurreição, prostram-se ao redor das mais de
vinte igrejas de rito ucraniano do município levando cestas com alimentos para serem
abençoados pelo sacerdote. Durante o natal as donas de casa se agitam na cozinha preparando
os “doze pratos”. “O número 12 simbolizava os doze meses do ano e passou a simbolizar os
Apóstolos de Cristo” (PROCEK, 1998, p.7). As famílias se reúnem em torno da mesa
colocando uma vela acesa entre as iguarias. Todos rezam em voz alta, geralmente em
ucraniano. Nem todos falam a língua fluentemente, mas aprendem desde pequenos as
principais orações em ucraniano.

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Já a festa da Páscoa cristã oferece também muitos elementos culturais que, no decorrer
do tempo, “foram surgindo paralelamente com a fé e criam raízes entre os povos, sendo em
seguida, transportados com as emigrações, de um país para outro, constituindo assim um rico
acervo de tradições, práticas e costumes decorrentes da celebração religiosa e cultural da
Páscoa” (ZALUSKI, s/d). A páscoa em Prudentópolis é marcada pelas as melodias do
“Christós Voskrés” (Cristo ressuscitou) cantadas e ouvidas em todo o município. Ocorrem
também as brincadeiras populares acompanhadas de danças e cânticos, as “Ghaghílky” 3,
símbolos da primavera, da vida e da alegria e que remetem ao período anterior ao cristianismo
na Ucrânia.
Atualmente a páscoa do rito católico oriental ucraniano compõe-se de dois momentos
essenciais: celebração da paixão de Cristo durante a Quaresma e da sua glorificação no
Domingo da Ressurreição. No sábado que antecede a Ressurreição são elaboradas e benzidas
as “Paschas”, que são pães especiais preparados somente para essas ocasiões e demandam
todo um ritual para a sua confecção. A pascha é o principal alimento pascoal e ocupa o centro
da cesta levada para ser abençoada pelo sacerdote no sábado, junto com outros alimentos
como carne, manteiga, queijo ou requeijão, sal e raízes amargas, o “Hrin”.
Os alimentos ou pratos considerados da tradição culinária ucraniana são preparados e
consumidos pelos descendentes ao longo de todo o ano, não apenas nas principais datas do
calendário litúrgico: páscoa e natal. Entretanto, é nessas datas que adquirem maior
visibilidade, ao lado dos demais pratos que as donas de casa preparam. Esses alimentos, que
demandam um preparo cuidadoso e ritualizado, representam a tríade base do cristianismo:
nascimento, morte e ressurreição do Cristo.
Nesse texto, portanto, compreendemos os alimentos enquanto categoria histórica,
como parte de saberes e fazeres construídos culturalmente. A culinária colocada como de
origem ucraniana possui um arcabouço culinário marcado por rituais de preparo e
simbolismos que distinguem as circunstâncias do comer e os lugares da sociabilidade e da
comensalidade. Práticas que remetem a uma tradição.
Na páscoa e no natal a comida assume um caráter central nas celebrações, se
revestindo de rituais, benzimentos, rezas e cantigas. Envolvendo os alimentos, o cristianismo
acrescentou aos mesmos o poder simbólico de nutrir também a alma. A partir dessas

3
Ghaghílky significa brincadeiras e cantigas de roda.

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percepções, os alimentos, a comida e tudo o que os envolve tornam-se instrumentos para a


manutenção de uma cultura local.
Uma coluna do jornal voltada à dona de casa revela um tipo de mulher que a igreja
espera encontrar como boas esposas, mães e donas de casa exemplares, religiosas sob o ponto
de vista da igreja e até mesmo da sociedade no referido contexto. O modo de preparo e de
consumo dos pratos se reelabora constantemente ao longo do tempo em função de diferentes
transformações e necessidades, mas nem por isso deixam de constituir um patrimônio
culinário e gustativo que pode assumir diferentes contornos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMARGO, Tatiana Souza de. Você é o que você come? Os cuidados com a alimentação:
implicações na constituição dos corpos. (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química da vida e saúde), UFRS, 2008.

CARNEIRO, Henrique. Comida e sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro:


Elsevier, 2003.

COSTA, Maria Paula. O espetáculo do consumo: os anúncios publicitários e as


representações do cotidiano familiar na imprensa feminina (1961-1985). In: SEBRIAN,
Raphael N. Nicoletti (Org.) Perspectivas historiográficas. Campinas: Pontes, 2010.

DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

ELIAS, Nobert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.


FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 10ª edição. São Paulo: Graal; 1999.

GASPERIN, Neomir. Colônia Legru: identidade, cultura e religiosidade. (Monografia de


Filosofia). Studium São Basílio Magno, Curitiba, 2010.

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GOMES, Andréia. POLAK, Avanilde. Prácia: identidade e memória. In: 1ª JIED. Jornada
Internacional de Estudos do Discurso. Mar./2008. Universidade Estadual de Maringá –
UEM. Disponível em: http://www.dle.uem.br/jied/trab.html. Acesso em: 23/07/2011.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro, DP&A, 2006.

HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LODY, Raul Giovanni da Mota (Org.). À mesa com Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Ed.
Senac Nacional, 2004.

SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos. A alimentação e seu lugar na história: os
tempos da memória gustativa. História: questões e debates, Curitiba, n. 42, Editora UFPR,
2005, p. 103-124.

PROCEK, Felomena. Motivos pagãos em costumes natalinos ucranianos. (Artigo do


Curso de Pós-Graduação em Língua e Literatura Ucraniana), Unicentro, 1998.

SCHNEIDER, Ciomara. Os rituais do ciclo natalino. A identidade renovada entre os


camponeses ucraíno-brasileiros. UNB, Brasília, 2002.

FONTES PRIMÁRIAS

JORNAL PRÁCIA. Borsch de urtiga. 20 de abril de 1964, número 27, p.6.

JORNAL PRÁCIA. Como preparar a mesa. 28 de abril de 1975, número 35, p. 4.

JORNAL PRÁCIA. Decore bem sua casa. 23 de janeiro de 1964, número 3, p. 6.

ZALUSKI, Padre. Tarcísio, (OSBM – Ordem de São Basílio Magno). Jornal da Paróquia
Ucraniana. S/D.

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SOLDADOS E DEGREDADOS NO POVOAMENTO DE GUARAPUAVA:


IDENTIFICAÇÕES, REJEIÇÕES E RESITÊNCIA – 1820/1853

Prof. Ms. Francisco Ferreira Junior

Departamento de História da UNICENTRO – PR

Palavras-chave: soldados, degredo, povoamento.

Minhas pesquisas tem se desenvolvido no sentido de entender a importância de


determinados elementos no período inicial de povoamento da cidade de Guarapuava, região
central do Paraná, na primeira metade do século XIX1. Em trabalhos anteriores analisei a
relação entre degredados, soldados e vadios no processo de ocupação da cidade. Ficou
evidente que, devido as diversas politicas de povoamento utilizadas pela coroa portuguesa
para conquista da região2, as três categorias citadas acima se amalgamavam de diversas
formas na lide colonizadora, sendo extremamente uteis, em sua presença forçada, para a
guarnição do povoamento e afazeres cotidianos.

Os soldados da tropa de linha que acompanharam o Tenente Coronel Diogo Pinto de


Azevedo Portugal nos primeiros anos da expedição colonizadora de Guarapuava foram
substituídos, no início da década de 1820, por soldados ordenanças. Esses soldados eram
recrutados principalmente de três formas: utilizando os condenados a degredo que vieram de
diversas regiões para Guarapuava, muitos deles já em serviço militar antes da condenação;
entre a população pobre da região, muitas vezes recorrendo-se aos chamados “vadios”; entre
os indígenas que melhor se adaptavam a presença dos colonizadores.
1
Vide FERREIRA JUNIOR, Francisco. A Prisão sem Muros: Guarapuava e o degredo no Brasil do século XIX.
Guarapuava: Editora Unicentro, 2012.. E FERREIRA JÚNIOR, Francisco. Soldados, Vadios e Degredados:
experiência de povoamento nos Campos de Guarapuava. Texto Completo, Anais da XXVI SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA, São Paulo, 2011.
2
Vide Carta Régia de 1 de Abril de 1809 in Coleção das Leis do Brasil.

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As atividades desenvolvidas por esses soldados ordenanças, oriundos de tão diferentes


realidades, era também bastante diversa, como pude entrever das fontes administrativas sobre
o período. Observa-se que conforme a função e o desempenho dos soldados eles também
recebiam tratamento diferenciado, que ia desde uma liberdade aparente, no caso de bom
comportamento, até situações de extrema crueldade, como os degredados que trabalhavam
presos com “calceta”. Os modelos diferentes de tratamento também implicavam em atitudes
diferentes por parte dos soldados, que ora evoluíam de função, ora sofriam duras represálias,
ora desertavam, entre outras possibilidades.

É o mapeamento dessas diferentes atitudes e possibilidades dos soldados/degredados


na vida cotidiana da lide de povoamento dos campos de Guarapuava na primeira metade do
século XIX que essa pesquisa pretende dar conta.

Tem-se como objetivo principal mapear as diversas funções, a diversidade de


tratamento e os desdobramentos disso na vida cotidiana dos soldados ordenanças, recrutados
entre degredados, vadios e indígenas, que participaram do processo de povoamento da
Freguesia de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava entre as décadas de 1820 e 1850.

A partir de vencida a resistência inicial dos índios no princípio do povoamento de


Guarapuava, após 1810, e organizadas as necessidades básicas para que o povoamento se
efetivasse, correspondências administrativas começaram a ser trocadas entre a expedição
colonizadora e a presidência da Província de São Paulo. Tais correspondências, das quais
consegui junto ao Arquivo do Estado de São Paulo um número significativo a partir de 1823,
são assinadas geralmente pelo capitão militar da expedição, Antonio da Rocha Loures, ou
pelo vigário Francisco das Chagas Lima, e tratam de informar as autoridades superiores sobre
o andamento das tarefas colonizadoras, prestar contas e também solicitar providências em
relação as atividades de Guarapuava junto a essas autoridades. Essa correspondência é
dirigida quase exclusivamente à administração da província de São Paulo até 1853, data da
emancipação da Província do Paraná. Em alguns momentos, a partir de 1823, são enviadas à
presidência da província listas nominativas dos habitantes de Guarapuava; prática comum nas
freguesias e vilas da Província de São Paulo desde a segunda metade do século XIX, as quais
tinham a função principal de informar uma estimativa dos possíveis soldados que poderiam
ser recrutados pelas ordenanças em momentos de necessidades. Tais listas se constituem em
uma fonte privilegiada para se analisar as vicissitudes populacionais de Guarapuava no século

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 240

XIX, inclusive da população de soldados e degredados. Tais correspondências enviadas, por


se encontrarem centralizadas no Arquivo Municipal do Estado de São Paulo, foram fáceis de
acessar.

As fontes descritas acima se tratam, na sua esmagadora maioria, de fontes produzidas


pelas autoridades locais da região. Seria ingenuidade acreditar que tais fontes reproduzem
relatos fiéis da realidade dos soldados e degredados de Guarapuava no século XIX. De fato,
em grande parte das vezes, elas sequer os mencionam. Porém são recheadas de pistas que
permitem vislumbrar aspectos da vivência cotidiana e das relações sociais do povoado nesse
período onde, via de regra, esses elementos estão presentes. Cumpre então tentar ultrapassar
os preconceitos e visões de mundo presentes nos discursos dos documentos oficiais para
chegar a uma visão mais próxima desses marginalizados, que por sua própria voz não chegam
às fontes. Mas como nos fala Michele Perrot - ao tratar de um objeto muito semelhante aos
soldados e degredados, porém distante no espaço e no tempo - em seu livro que já é celebre
por trazer a tona os “excluídos da história”: “Esses prisioneiros, desaparecidos de sua história,
tem que ser rastreado no que se diz deles”. Então, à medida do possível, é nessas fontes que
procurarei enxergar a vida dos soldados ordenanças na Guarapuava do século XIX. Na
interpretação da fala dos dominadores, quero desvendar os conflitos e as dificuldades da
vivência dessas pessoas que, entre elementos tão heterogêneos vieram povoar essa região,
bem como os efeitos que o recrutamento ou a execução da pena teve sobre os condenados e
sobre a sociedade que os “acolheu”. Também, quando as fontes possibilitarem, farei
cruzamentos entre elas, que permitirão um alcance mais profundo e digno de confiança ao
passado que elas revelam.

Como referencial teórico para esse texto utilizaremos principalmente Antônio Manuel
Hespanha e Gizlene Neder3, em suas interpretações sobre a permanência da cultura jurídica
portuguesa no Brasil do século XIX e a maleabilidade da aplicação dessa justiça conforme as
necessidades das autoridades locais. Pesa também sobre essa pesquisa as ideias sobre a
inserção das formas de punição dentro dos mecanismos socioeconômicos de cada momento

3
HESPANHA, António Manuel, “Da ‘Iustitia’ à ‘disciplina’ — Textos, poder e política penal no antigo
regime”, in HESPANHA, António M. (org.), Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva, Lisboa, Gulbenkian,
1993. E NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro:
Freita Bastos, 2000.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 241

histórico, assim como aparece em Punição e Estrutura Social, de Rush e Kirchheimer e


também em Vigiar e Punir de Foucault4.

Um motivo de controvérsias bastante presente na documentação é a estadia e a situação dos


soldados que guarneciam o quartel da freguesia de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava. Já
mencionamos a substituição das tropas iniciais por ordenanças. Tal substituição foi alvo de
reclamações por parte do padre Francisco das Chagas Lima, capelão da expedição. Por um relato do
capitão Antônio da Rocha Loures, que substituiu Azevedo Portugal no comando da expedição,
encontrado numa correspondência de 1824, sabemos que o efetivo dos soldados da expedição, que era
de “quaze duzentos homens” , no ano de 1816 “conhecida que fosse pouca a força do gentio (...) se
reduzio a trinta homens.(sic)5” Ao que parece, a necessidade de soldados foi uma constante nas
décadas seguintes, principalmente nos serviços relacionados aos indígenas. Em documento de 1823 o
capitão relata à administração da província a utilização de indígenas como soldados, para suprir a
necessidade de algumas tarefas: “Os índios empregados no serviço tal o qual vão comprindo os seus
deveres de soldados, tambores: hum destes já se acha exercitado nos toques (sic)” 6Nota-se que a
necessidade de mais soldados e a prática de recrutamento português vão se arranjado sob novas
formas, utilizando os elementos disponíveis na nova sociedade que está se formando. Mas apesar de
irem “comprindo seus deveres”, o comandante faz uma ressalva a respeito dos índios-soldados de
Guarapuava: “A respeito dos soldados índios há somente uma cousa inconveniente, isto he dizer que
helles não são de fiansa em deligencias que dizem respeito aos outros índios.” No mesmo documento,
a respeito da necessidade de enviar soldados pra cuidar do aldeamento do Atalaia, que fica distante do
povoamento, Rocha Loures revela a sua carência de soldados de primeira linha, justificando que não
enviou “mais soldados porque no destacamento não tenho mais do que nove soldados portugueses”.
Dois anos depois, em novo contato com a província de São Paulo, o comandante especifica melhor a
situação dos seus soldados:

Este destacamento presentemente se acha com dous cabos de esquadras e nove


soldados do regimento de caçadores da Villa e Praça de Santos os quais estando aqui
pela maior parte desde anno de 1816 ainda não tiveram fardamentos senão no tempo

4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir :nascimento da prisão. 30º Ed, tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 1987. E RUSCHE, George. & KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social..2ª. Ed. Primeira edição
em inglês de 1839, tradução Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Editora Revan,
2004.
5
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 11 de Janeiro
de 1824, AESP – C 192, P 1, D 69, O 987.
6
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1 de Maio de
1823, AESP – C 192, P 1, D 66, O 987.

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em que vierão e no anno de 1820 pela mão do falecido Tenente Coronel


7
Comandante em chefe Diogo Pinto de Azevedo Portugal.

Poucos e mal vestidos soldados, é o que sobrou da expedição colonizadora de Guarapuava em


meados da década de 1820. No mesmo ano de 1825, Francisco das Chagas Lima escrevia a
presidência da província também com ar queixoso sobre a necessidade de cuidado com os índios
aldeados “para cujo fim (...)não será bastante o número de soldados de primeira linha , e officiais
indicados na minha informação datada de 31 de dezembro de 1824 (sic)”8Não temos conhecimento
da informação do padre sobre o numero de soldados, mas levando em conta que o documento é do
mesmo ano em que o capitão expunha seu destacamento, na citação acima, concluímos que sejam
informações similares. Fica claro que a maior necessidade de soldados nesse momento é para a lide da
manutenção e proteção do aldeamento indígena presente no Atalaia - local onde se estabeleceu o
primeiro povoamento português, que se encontrava alguns quilômetros distante da sede da freguesia -
contra possíveis invasões de tribos hostis.

Em 1826 aparece uma lista bem mais detalhada dos efetivos do destacamento militar da
freguesia de Guarapuava, produzida pelo então Cabo da Esquadra Elias de Araújo e enviada junto com
correspondência do vigário Chagas Lima ao presidente da província de São Paulo, Lucas Monteiro de
Lima9. Tal lista, de 8 de abril de 1826, trás discriminados três categorias de funcionários: tropa de
linha, ordenanças e “presos sentenciados”. Além dos nomes de cada funcionário, estão descritas as
suas ocupações e algumas outras informações que analisadas expõe uma série de ambigüidades na
formação do destacamento.

A começar pela “tropa de linha”, que teoricamente deveria ser formada pelos oficiais da
primeira linha, soldados profissionais destacados na localidade.10 Entre os doze componentes da tropa,
encontramos dois índios, “Tambor Mathias Indio” e “D. Daniel Índio”. Ao lado dos nomes dos
soldados indígenas consta a informação “preso em calceta”, o que demonstra que não estavam na
função por vontade própria, ou não mereciam confiança suficiente para permanecerem livres. Ora, tal
prática, além de não condizer com as formas de composição das tropas de linha portuguesas, ainda

7
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1 de Maio de
1823, AESP – C 192, P 1, D 66, O 987.
8
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à Lucas Antonio Monteiro de Barros de 20 de maio de 1825,
AESP – C 192, P 1, D 32, O 987.
9
AESP – Relação de Tropas de Linha, Ordenanças e Presos Sentenciados de 13 de maio de 1826. C 192, P 1, D
48, O 987.
10
Sobre a composição do exercito português no século XIX ver MENDES, Fábio Faria. Encargos, privilégios e
direitos: o recrutamento militar no Brasil nos séculos XVIII e XIX. In CASTRO, C., IZECKSOHN, V. &
KRAAY, H.nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004 e LEONZO, Nanci. As
companhias de ordenanças na capitania de São Paulo: das origens ao governo do Morgado de Matheus.
Coleção Museu Paulista, SP, v6, 1977. p. 125-239.

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atenta com a discutida liberdade que deveriam ter os indígenas, a não ser em caso de guerra justa. Fica
a dúvida se esses índios cumpriam a função de soldados forçados por uma medida arbitrária das
autoridades locais, levada a cabo pela necessidade de soldados, ou teriam sido condenados a isso por
um delito qualquer. Não se pode saber. Mas sobre o caso cabe ainda uma interpretação: nos parece que
a utilização de índios na função de “tambores” – que são soldados responsáveis por vigiar e dar o sinal
sonoro em caso de ataque inimigo, foi uma estratégia militar interessante pelo fato dos indígenas
apresentarem os sentidos mais treinados para detectarem o inimigos de quem se temia o ataque, que
eram as tribos de índios ainda hostis. O treinamento dos indígenas na detecção do inimigo teria se feito
em uma vida inteira de guerras intertribais. Restava aos portugueses convencer o indígena a utilizá-la
em seu benefício.

Além da interessante e ambígua utilização dos índios como soldados, a lista nos trás algumas
funções praticadas pelos soldados da tropa de linha: guarda, cavalherisso, ajudante de cirurgia e
destacado na aldeia do Atalaia. Dois soldados da tropa de linha estavam em “deligência com o Sr.
Capitão Comandante”. Vê-se portanto o emprego dos soldados nas mais em diversas tarefas
cotidianas. É preciso entender que nesse momento histórico a Freguesia de Nossa Senhora do Belém
de Guarapuava não conta com nenhuma administração local além das autoridades eclesiástica e
militar, sendo esta última responsável por, além de prestar a proteção necessária ao desenvolvimento
da lide colonizadora, todos os serviços públicos necessários para o bom andamento da povoação,
como a construção e manutenção dos alojamentos, estradas e obras públicas, produção de alimentos e
proteção do povoamento.

Os ordenanças, soldados recrutados entre os moradores da localidade ou nas vizinhanças, eram


seis na lista de 1826. Entre eles encontramos mais dois índios, que aparentemente não estão presos em
calcetas, cujas profissões não conseguimos decifrar com exatidão. Além deles, constam quatro
“paisanos”, provavelmente povoadores recrutados.

Na correspondência que acompanhou a lista dos destacados até São Paulo11, Chagas Lima
ainda menciona a entrada para o serviço da ordenança mais dois índios e um paisano, dos quais não dá
maiores informações. E também sobre o destacamento de um novo cabo da Esquadra, Manuel Antonio
Vila Nova. Quanto aos “presos sentenciados” referidos na lista, são degredados, que também
serão utilizados nos serviços públicos.

As reclamações pela falta de soldados continuam a acontecer nas correspondências dos anos
seguintes, e até onde as fontes nos permitem enxergar, inicio da década de 1850, elas não são

11
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência a Lucas Antonio Monteiro de Barros de 8 de Abril de 1826,
AESP – C 192, P 1, D 48, O 987.

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solucionadas. Mas no que concerne as soldados, além dos constantes pedidos para o aumento da tropa
presente em Guarapuava, encontramos diversas criticas por parte do vigário contribuem para acentuar
as tensões entre a autoridade religiosa e a militar. Na mesma correspondência de 1826, citada acima, o
padre, que se acha responsável pelo comando da povoação pela ausência temporária de Rocha Loures,
referindo-se aos soldados critica o “systema em que estão de desfructarem quanto podem a Expedição
que os sustenta; sem trabalharem para ella, se não no serviço das armas; e esse mesmo serviço feito
com muita negligência(sic)”12. A fala do padre reafirma que a utilização dos soldados não deveria se
restringir as armas, mas também em outros serviços benéficos a expedição, os quais não estão
cumprindo a contento. Em seguida, no mesmo documento, no momento em que reclama dos descuidos
do capitão para com a boa ordem da povoação, Chagas Lima Reitera as críticas aos soldados:

O mesmo posso eu dizer dos soldados de primeira linha, aqui retidos muitos annos,
sem rendimento. Estes soldados nos primeiros tempos de seus destacamentos tem
hum procedimento sofrível, mas passados estes, communmmente se tornão maos
soldados, e maos homens dando-se a vícios especialmente a freqüentes bailles, tão
indignos, como promíscuos de homens e mulheres; e a bebedeiras, de que tantos
13
males tem resultado e o socego desta Povoação (sic).

O trecho da citação da margem parA entendermos um pouco mais da vivência desses


soldados. O fato de estarem em Guarapuava seguindo ordens, “a muitos annos sem rendimento” com
certeza deve contribuir para a propalada negligência em seus serviços. De fato, pelas reclamações e
prestação de contas apresentadas pelo capitão ao longo das décadas de 1820 e 1830, podemos observar
que financeiramente a “expedição” ainda não era auto-sustentável, quer pela pobreza da maioria dos
moradores quer pela isenção de impostos de que alguns ainda gozavam pelo exposto na Carta Régia de
1809. As poucas rendas conseguidas pelo comandante para manter a expedição eram de impostos
cobrados dos fazendeiros dos Campos Gerais e Campos de Curitiba, além de um imposto que a mesma
Carta Régia impunha a passagem de animais em Sorocaba, que deveria ser destinado ao povoado, mas
os documentos não demonstram se esse mesmo foi efetivado. Ainda em correspondência de 1831,
observamos o capitão informando a administração não ter condições para pagar os soldados em dia.14

É natural que com o passar do tempo, sendo obrigados a residirem em um lugar isolado e
perigoso e não recebendo para isso recompensa suficiente, nem salários e nem sequer fardas, os
destacados do quartel de Guarapuava começassem a descorçoar. Quanto aos bailes referidos pelo
vigário, no que se pode perceber pelos relatos de alguns viajantes, eles parecem ser um costume
bastante difundido no sul do Brasil no século XIX, tornando-se um dos poucos espaços de lazer e

12
Ibdem.
13
Ibdem.
14
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência a administração da Província de São Paulo de 16 de Julho de
1831, AESP – C 192, P 2, D 47, O 987.

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sociabilidade disponíveis em regiões afastadas dos grandes centros. É um costume que se associa com
a chamada “sociedade campeira” 15que se desenvolveu do comercio de animais entre a região sul e a
região das minas. Porém, para a moral religiosa do século XIX, é natural que a simples presença de
homens e mulheres em conjunto num recinto de festa deva ser reprovado.

Já sobre o consumo de bebidas alcoólicas de que fala Chagas Lima, o fato nos fornece uma
ponte para entendermos um pouco as regras internas da povoação, que eram discutidas pelas
autoridades e postas em vigor conforme as necessidades. Segundo o padre:

Para precaver de algum modo estes males [os causados pela bebida], no ano de
1819, quando se punhão os primeiros fundamentos desta Freguesia de Belém, de
acordo com o comandante, fizemos por escripto certas regras por onde se
16
governasse a sua policia (...) (sic).

Em anexo a correspondência o padre envia o Capitulo V das “Regras de Policia” que forma
feitas na povoação aos 9 de dezembro de 1819:

Em contemplação destes índios, que naturalmente amão (...) todas a bebidas, que
podem embriagar; e não menos dos Soldados, que tem feito manifesto abuzo das
agoas ardentes, que para aqui trazem os Negociantes; de onde tem nascido
innumeras desordens; he indispensável que se proíba a importação deste genero para
17
esta Conquista (...)

Tal o teor da regra que proibia as bebidas alcoólicas em Guarapuava, sob pena de confiscação
para utilização na “cura dos enfermos unicamente”. O texto da “lei” sugere que tal prática estava
disposta no Diretório dos Índios observado na comarca, do qual não temos conhecimento. O que de
mais interessante sugere a questão, é que além de uma vida precária e com poucos recursos, os
povoadores iniciais dos campos de Guarapuava sofriam algumas sanções, e o povoado, ainda que
incipiente, não estava totalmente destituído de justiça. O significado que melhor se encaixa no termo
polícia, que denomina as normas, parece ser o de conjunto de leis e regras impostos aos cidadãos
visando a moral, a ordem e a segurança pública. Cedo porém tal regra passou a ser letra morta, pelo
menos entre os soldados, de acordo com o vigário.

Essa natureza de acontecimentos, que ao que nos parece traz à tona a tentativa dos soldados
para tornar a vida na “conquista” menos monótona, por um lado, e a preocupação de Chagas Lima

15
Termo utilizado para designar a forma de sociedade pecuarista que se desenvolveu no Paraná central nos
século XVIII e XIX. WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do
Paraná, 2002.
16
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à Lucas Antonio Monteiro de Barros de 8 de Abril de 1826,
AESP – C 192, P 1, D 48, O 987.
17
Ibdem.

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com a manutenção da ordem e da integridade da freguesia, ressaltam a tensão ocasionada pela reunião
de pessoas de diferentes categorias em um mesmo ambiente.

Para além das tensões internas, algumas correspondências do final da década de 1820 e início
da década de 1830 apontam para uma certa negligência por parte da administração da província para
com a freguesia. Em documentos de 1829, o capitão continua pedindo homens para ajudar na
expedição, dinheiro para comprar animais e para pagar funcionários. Os pedidos se repetem em
correspondência de 1831, onde notamos que dois anos passados as solicitações não haviam sido
atendidas.18Nessas mesmas correspondências estão reclamações pelas condições precárias da
freguesia, dificuldades de arrecadar rendas, ataques de índios, falta de animais para transporte e
alimentação. Temos que considerar a possibilidade das reclamações do capitão serem exageradas, para
angariar maiores contribuições por parte da província, mas mesmo assim as situação de Guarapuava
entre a década de 1820 e 1830 parece sempre bastante difícil.

A situação de tensão entre povoadores e indígenas chega a tal ponto em 1825, após um ataque
indígena que destrói a aldeamento do Atalaia, que os povoadores produzem um requerimento para a
extinção total dos índios. Não tivemos acesso a tal documento, porém uma resposta do padre Chagas
Lima, em texto bastante exaltado, trás um interessante panorama, aos olhos do padre, da população
que compunha a freguesia na época. Após recriminar veementemente a atitude dos povoadores e
defender a situação dos índios aldeados, Chagas Lima, ironicamente, ao comentar sobre de que forma
se efetuaria as invasões das aldeias para a requerida extinção dos índios pergunta:

Quais “hão” de ser os agentes dessas invasões? Mea dusia de soldados, outro tanto
de degradados e outros tantos de vadios dos campos gerais de Corytyba, que por
aqui se juntam; dos quais sendo huns efeminados e outros temerários, todos sem
experiência, que partido terão com aquelas feras humanas dentro dos bosques?
19
(sic)

No calor de sua indignação Chagas Lima, insinuando a incapacidade dos povoadores para
enfrentar os indígenas, coloca novamente lado a lado as três categorias de povoadores que já
analisamos no capítulo anterior, os soldados, os vadios e os degredados, como sendo elementos
presentes, e arriscamos dizer, preponderantes na emergente Freguesia de Nossa Senhora do Belém de
Guarapuava em meados da década de 1820.

18
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência a administração da Província de São Paulo em 6 de outubro
de 1829, AESP – C 192, P 2, D 20, O 987, de 6 de abril de 1831, C 192, P 2, D 46, O 987 e de 16 de julho de
1831, C 192, P 2, D 47, O 987.
19
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1825, AESP –
C 192, P 1, D 33, O 987.

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Nesse ponto, na lide da ocupação inicial do território de Guarapuava no início do século XIX,
a história une estas três categorias de pessoas: soldados, degredados e vadios. Com o foco principal
nos soldados, é interessante promover tal comparação para demonstrar a fluidez dessas categorias e a
profunda relação entre elas durante o período, como métodos associados de transposição de população
para áreas de interesse da Coroa. Essas técnicas ressaltam a característica pragmática da política
portuguesa no tratamento de suas populações, que sempre serviram aos interesses do Estado. No caso
da região sul do Brasil, esse pragmatismo se acentua a partir do governo do Morgado de Matheus na
capitania de São Paulo, por este ser o maior representante da política do Marques de Pombal, então
Conde de Oeiras, na administração da colônia. Nessa prática de conquista de fronteira levada a cabo
na região de Guarapuava, onde por motivos diversos se mesclam diferentes estratégias de transposição
de população, encontramos os ecos da leitura autoritária e hierárquica do iluminismo em Portugal,
segundo Neder muito característica das reformas do período pombalino. Procura-se liberalizar e
otimizar a administração do Estado em modelo liberal, mesmo que pra isso se precise utilizar medidas
coercitivas extremas.

A utilização de soldados, a prática do recrutamento forçado, e a tentativa de aproveitamento


econômico dos ditos vadios foram uma constante durante todo o século XIX, de modo a criar
possibilidades diversas de combinações na povoação de Guarapuava. Numa análise mais profunda,
essas categorias se desdobram nas várias possibilidades políticas de utilização de pessoas por um
governo, conforme as necessidades deste. E também a abrupta entrada de disputas territoriais e
políticas de conquista, de origem distante, no cotidiano de sobrevivência desses sertanejos
paranaenses.

FONTES:

AESP - ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Caixa: 230. Ordem: 1025

Caixa: 193. Ordem: 988

Caixa: 192. Ordem: 987

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 250

JOÃO CANDIDO FERREIRA E O DISCURSO MÉDICO/EUGÊNICO

Gerson Pietta (PPGH- UNICENTRO-Irati)

Palavras-chave: João Candido Ferreira; eugenia; medicina.

INTRODUÇÃO

Qual a significação deste vocábulo – “Eugenia” que muita gente ainda


desconhece? (FERREIRA, 1923:4)

Em 25 de fevereiro de 1923, dr. João Candido Ferreiro infere uma conferência


realizada no “Theatro Guayra”, Curitiba, capital do Paraná e centro político e intelectual do
início do século, diante aos auspícios do Centro de Letras do Paraná, fazendo a seguinte
interrogação: qual é a significação do termo eugenia, de modo a estimular o público à refletir
sobre o terminação, que naquele dado instante não se apresentava de forma nítida para o
público diversificado que se fazia presente.
É interessante notar que esta palestra do médico João Candido é um dos textos
fundadores para refletir a eugenia no estado do Paraná, e que o momento acima narrado se
torna a apresentação desta pseudo-ciência ao público que se fazia presente. Nesse contexto, o
médico expõe os devidos cuidados que deveria ter com a explanação.

Esta conferencia devia evitar dois grandes escolhos: - não se elevar tão alto
nas azas da sciência, que o povo não a pudesse comprehender: nem baixar
tanto o seu nível, de forma a enfastiar a parte letrada dos ouvistes. Era
preciso pairar em uma certa mediania, que servisse a todos os paladares.
(FERREIRA, 1923:3)

Apesar do seu devido cuidado com o público, porém, o que se coloca como
interrogação é o por que João Candido deveria ser o escolhido para explanar sobre tal assunto,
e desta forma, percebe-se que durante seu discurso, João Candido legitima sua presença, e
justifica sua empreitada pela salvação da humanidade, legitimando assim sua função, seu

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papel social como médico, detentor de um poder, de uma prática científica que poucos têm
acesso.
Em uma serie de publicações tenho me occupado dos grandes flagellos, que
mais damnos causam à espécie humana. Com a divulgação, hoje, deste
pequeno trabalho levo a termo esses estudos, que visam a mesma finalidade.
De facto, estudei a prophylaxia e o tratamento da tuberculose, e peste
branca: o alcoolismo, suas funestas conseqüências e os meios de evital-o: a
syfhillis, sua diffusão alarmante e os recursos seguros para extinguil-a.
São estes, sem duvida, os três formidáveis inimigos da grandeza e pujança
de nossa raça e eu os combati, com toda energia e convicção de quem
cumpre um dever imperioso.
Agora fecho, com este ultimo elo da cadeia, o cyclo de um modesto acervo
de publicações, com o mesmo objectivo: - melhorar os destinos da
humanidade, profligando os grandes males que a flagellam.

Nesta fala torna-se clara a relação efetuada entre ciência médica e sociedade, onde
verifica-se uma relação mútua e paralela entre ambas. Assim, médicos justificam sua
existência e seu árduo trabalho em função de uma sociedade doente, que é primeiramente
diagnosticada pela classe médica, e em seguida é curada, é sanada, sua saúde é retomada. De
fato João Candido efetuou tais pesquisas sobre os “grandes flagelos”, e aqui se colocam em
ordem cronológica. O primeiro é “Profilaxia da Tuberculose”, datado de 1897. Em seguida
temos dois trabalhos datados em 1922, são eles “A Sífilis Como Problema Social” e “O
Álcool Não é Aperitivo, Nem Termogênico”. O que de fato chama a atenção é o discurso
conciso em afirmar o papel social do médico com o objetivo, o “dever imperioso” de
“melhorar os destinos da humanidade”, e que com o trabalho sobre “A Eugenia”, seu metier
estaria por finalizado. João Candido assim a delimita (grifo nosso):
Os trabalhos anteriores representam apenas o delineamento de uma grande
fabrica da qual este opúsculo é o remate: obreiros da palavra, com outra
capacidade, levarão a effeito o magestoso templo da nossa era, e do qual a
Eugenia será ainda o zimbório refulgente.

Percebemos na analise da fonte que a eugenia, conceito moderno cunhado pelo inglês
Francis Galton na segunda metade do século XIX, terá com João Candido outro significado e
será reapropriado, de forma que este dará novas denotações ao termo, e aqui encontra-se a sua
especificidade, o diferencial de sua abordagem que neste momento é analisada. Para João
Candido Ferreira a “Eugenia é a sciencia que trata do aperfeiçoamento moral e physico da
espécie humana”, “Eugenizar quer dizer – cuidar de nossos semelhantes para que o mundo se
povoe de gente forte, san, esclarecida e bella”(1923:4).

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 252

Olinto (2007:136) seu livro “Pontes e Muralhas”, no capítulo “Identidade


medicalizada: médicos, eugenia e lepra” afirma que os médicos apresentavam em suas falas
explicações que:
(...) baseadas na hereditariedade, o engedrar biológico apresentava-se como
essencial para a solução da problemática social por eles analisada. Mesmo
quando o que estava em discussão era a educação, o debate estava
mergulhado em concepções deterministas. As elites intelectuais do país
estavam buscando construir um futuro, por isso pretendiam conhece-lo a
priori para poder coordená-lo, dando os traços que deveriam compor sua
face identitária.

A partir de Pierre Bourdieu (1989) faremos a interpretação dos textos de João


Candido, onde entende-se que o conhecimento histórico é tecido em um campo de saber cujas
lutas simbólicas que visam definir as verdades são inerentes àquele espaço. Porém, partimos
do pressuposto que não existe uma escrita controlada por uma estrutura que dominaria o
campo científico e sim disputas internas, no interior do campo de saber, pois o sujeito não é
ingênuo, nele percebe-se a “criatividade” e a “invenção”(CERTEAU, 1998:120)
Compartilhamos que existem conflitos entre saberes performativos que visam instaurar suas
próprias verdades. Assim, diante desta analise crítica, Michel de Certeau também nos auxilia
ainda a entender que os sujeitos não são meros reprodutores de estruturas dotadas de poder.
A tentativa é fazer uma analise da eugenia em João Candido, porém, não deixaremos
de lado a analise comparativa no âmbito nacional e internacional, a idéia é diminuir a escala,
analisando a eugenia através de João Candido Ferreira, levando em conta seu lugar social, e
entendendo suas particularidades.
Porém, anteriormente devemos trabalhar alguns traços biográficos de João Candido
Ferreira (1864-1948), intelectual natural da cidade da Lapa, no Paraná, e que durante as
primeiras décadas do século XX esteve envolvido com a política e a sociedade de Curitiba e
do Estado, e em harmonia com a intelectualidade brasileira, se coloca como um
agente/intelectual preocupado com os assuntos nacionais, de modo a discutir os melhores
caminhos para a saúde da sociedade paranaense. João Cândido formou-se em medicina pela
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tendo atuado como professor de Clínica Médica na
Faculdade de Medicina da Universidade do Paraná. Tendo assumindo também grandes
posições políticas, dentre eles Prefeito Municipal da Lapa em 1892, Deputado Estadual em
1896, Deputado Federal em 1901, Vice-Presidente do Estado em 1903, e Presidente do Estado
no ano de 1907, ano em que Vicente Machado falece subitamente. Foi eleito Presidente do

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Estado no quadriênio de 1908 a 1912, tendo renunciado ao cargo pouco tempo depois, por
conflitos internos de seu partido. (FERNANDES,1988:6)

A POLÍTICA COMO BIOPOLÍTICA

Certeau afirma que as inscrições da lei se dão sobre o corpo, seja ele individual ou
social, e sobre ele fazem sua escritura. Em seu livro “A Invenção do Cotidiano: As Artes de
Fazer”, no capítulo A Economia Escriturística, o autor consegue de forma esplendorosa
demostrar como esta escrituração sobre o corpo se dá na instância jurídica e médica,
paralelamente1.

Não há direito que não se escreva sobre os corpos. Ele domina o corpo. A
própria idéia de indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade,
sentida pela justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo
e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um
preço nas transações entre coletividades. Do nascimento ao luto, o direito
se “apodera” dos corpos para fazê-los seu texto. Mediante toda sorte de
iniciações (ritual, escolar, etc.), ele os transforma em tábuas da lei, em
quadros vivos das regras e dos costumes, em atores do teatro organizado por
uma ordem social. E até para Kant e Hegel, não há direito sem pena de
morte, ou seja, sem que, em casos extremos, o corpo assinale por sua
destruição o absoluto da letra e da norma. Afirmação discutível. Seja como
for, sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos. Ela se grava nos
pergaminhos feitos com pele de seus súditos. Ela os articula em um corpo
jurídico. Com ele faz o seu livro. (CERTEAU, 1998:231)

Assim, temos o corpo como objeto de escrituração, texto maleável e por isso motivo
de luta pelo poder de dominá-lo. Certeau afirma que este trabalho de inscrição sobre o corpo
antecede a figura histórica adquirida pela escritura na modernidade e ainda resistirá a esta,
empilhando-se nela e a determinando “como uma arqueologia contínua à qual não sabemos
mais que nome nem que estatuto dar”.
Outra maquinaria de escrituração de suma importância é a de tipo médica ou cirúrgica,
uma espécie de terapêutica do indivíduo e não do grupo. Surgida entre os séculos XV e
XVIII, isolando o corpo individual, para que este possa se transformar em unidade básica da
sociedade.

1
Certeau nos alerta que “Essas escrituras efetuam duas operações complementares: graças a elas, os seres vivos
são “postos num texto”, transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a
razão ou o Logos de uma sociedade “se faz carne” (trata-se de um encarnação).” (CERTEAU, 1998:231)

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Ocorre uma mudança dos postulados sócio-culturais, quando a unidade de


referência progressivamente deixa de ser o corpo social para torna-se o corpo
individual, e quando o reino de uma política jurídica começa a ser sucedido
pelo reino de uma política médica, da representação, da gestão e do bem-
estar dos indivíduos. (CERTEAU, 1998:234)

Portanto, é esta forma de escrituração de corpos que percebemos nas políticas


modernas, centradas unicamente no indivíduo, e que dará mais poder a comunidade médica.
Ao Estado e não á vontade das partes está reservado o direito de regular as
uniões, si se quer consultar aos interesses geraes da Republica. (Platão, apud
FERREIRA, 1923)

É apoiando-se simplesmente em Platão, que dr. João Cândido demostra em sua fala
como o Estado deveria portar-se diante das uniões entre os concidadãos brasileiros. Percebe-
se que a utilização de escritos de filósofos gregos referentes à melhoria da raça foi utilizada
pelos autores do último quarto do século XIX e início do XX. Estes intelectuais buscavam
assim justificar a retomada do pensamento eugênico, como forma de atingir um progresso
para a nação em formação. A interpretação do discurso de Cândido é revelador desta
afirmação. Porém, é somente com o advento da biologia moderna, do darwinismo, e das
teorias de eugenistas e de cunho racista, que estas ideias puderam florescer.
O surgimento da eugenia se dá na Inglaterra vitoriana, após a publicação de Charles
Darwin, “Origem das Espécies”, e em meio a um contexto onde a multidão se fazia presente,
momento de industrialização, mecanização, onde os operários viviam em péssimas condições
de higiene, e a pobreza era vista como degeneração física. Data desta época a tomada de
consciência por parte dos trabalhadores enquanto sua condição social, onde greves e
manifestações começam a fazer parte do cotidiano. E a burguesia, em oposição a este
situação, buscava alienar a multidão e diferenciar-se dela. Assim, a reurbanização, a disciplina
e as políticas de higiene pública foram aplicadas como finalidade prevenir a degradação
física. Diante desse quadro de crise social e política, higienistas e eugenistas entram em cena,
colocando em prática suas teorias. Pietra Diwan afirma que os higienistas pregavam “a
higiene moral da sociedade. Não somente a saúde, mas também a conduta passa a ser objeto
de estudo da higiene”. (2011:36)

Percebemos em João Candido um pensamento muito próximo dos higienistas e


sanitaristas, e destoando um pouco do discurso eugenista de Galton, ao afirmar que a eugenia
era o aperfeiçoamento moral e físico da população. Na visão de Galton, esses ideais de
reformas urbanas, de higiene moral e educação das condutas eram desagradáveis, pois iam de

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encontro aos preceitos da lei da seleção natural, o que não é perceptível no discurso de João
Candido. Para Francis Galton:

Melhorar as condições de vida dos grupos degenerados era o mesmo que


incentivar a degeneração da raça inglesa. Londres tornou-se um mau
exemplo da vida social e disciplina. Ali morava todo o resíduo social, a
escória, a multidão fora da norma. Uma ameaça ao desenvolvimento
econômico e humano. (DIWAN, 2011:36)

Por isso o “estado de bem estar social” (welfare state) era visto por Galton como
antinatural, uma espécie de parasitismo, um fardo social para o Estado, e deveria ser
combatido. Assim, o sucesso da eugenia dependeria de poupar o nascimento de cidadãos que
constantemente viveriam sob a tutela do governo, além de incitar uniões e a procriação
daqueles que elevariam a prole da progênie inglesa. Neste aspecto, em relação aos
casamentos, João Candido toma por opção a proibição de casamentos que poderão
eventualmente gerar filhos com os mesmos males dos pais. Afirma ele:
Criar a dor é um crime perante a humanideade; criar a monstruosidade é um
crime perante a raça. O casamento dos doentes de espírito e de corpo, dos
monstriparos e de martyres – deve ser prohibido, ou pelo menos, não deve
ser sanccionado pela lei.

Porém, Candido não se abstém ao fato de estes indivíduos estarem em um futuro


próximo sob a tutela do Estado. O que fica claro é sua política profilática em relação
reprodução de homens e mulheres degenerados fisicamente e moralmente.
Galton em seus estudos tentou provar, em síntese, que o talento é herdado. Através da
análise dos dados da elite inglesa, sua preocupação voltou-se em demostrar como a doença
mental, o crime e a marginalidade eram resultados da herança genética. Em seu livro Inquires
into Human Faculty and its Developmesnt (1883), Galton delimita o conceito da eugenia.
Mencionar vários tópicos mais ou menos conectados com aquele do cultivo
da raça, ou, como podemos chamá-los, com as questões “eugênicas”. Isto é,
com problemas relacionados com o que se chama em grego “eugenes”, que
dizer, de boa linhagem, dotado hereditariamente com nobres qualidades.
Esta e as palavras relacionadas, “eugeneia” etc. são igualmente aplicáveis
aos homens, aos brutos e às plantas. Desejamos ardentemente uma palavra
breve que expresse a ciência do melhoramento da linhagem, que não está de
nenhuma maneira restrita a união procriativa, senão, especialmente no caso
dos homens, a tomar conhecimento de todas as influências que tendem, em
qualquer grau, por mais remoto que seja, dar às raças ou linhagens
sanguíneas mais convenientes uma melhor possibilidade de prevalecer
rapidamente sobre os menos convenientes, que de outra forma não haja
acontecido. (GALTON, apud DIWEN, 2011:42)

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Cultivo da raça, da boa linhagem, das nobres qualidades, tudo isso deveria ser levado
em conta pela nova ciência intitulada eugenia. De modo que esta poderia ser aplicada as
plantas, aos animais, e ao homem. João Candido Ferreira, em seu texto traz por meio de
Coelho Netto, uma reflexão que demonstra as aplicações da eugenia, de modo a criticar o
esquecimento pela procriação da boa linhagem do homem.
O homem, diz elle, cuida de tudo, menos de si. Fundam-se sociedades para o
aperfeiçoamanto de todos os animaes, organizam-se e inauguram-se
exposições, com premios, de todas as castas de bichos; exhibem-se em
mostruários animalejos repugnantes, como ratos brancos; publicam-se
monographias eruditas sobre o Cavallo de guerra, sobre o boi de carro, sobre
os gatos de Angorá, até sobre os lagartos, – e sobre o homem, nem palavra.
Parece que se trama, às surdas, uma conspiração contra o rei dos
animaes...’’(FERREIRA, 1923:4)

No fim dos Oitocentos, “a representação do corpo com visão científica, positivista e


integrada às gerações acabou por revitalizar crenças na hereditariedade como causação das
doenças, muito intensamente em agravos como a sífilis e o alcoolismo, consideradas por
alguns degenerações sociais. (...) O espectro da hereditariedade, somado ao medo do contágio,
justificou e aumentou os sonhos e as políticas de saúde pública, sendo de destaque o
eugenismo, que se pretendia científico e protetor.” (LAROCCA, 2009:28)
No que diz respeito à hereditariedade, que nesta época já é um dado científico2, João
Candido não a pensa como Galton, que se debruçou em como a marginalidade, a doença
mental, e o crime estavam ligados como herança genética. Candido se detém aos fatores
patológicos.

A herança é a lei da biológica, segundo a qual todos os seres dotados de vida


tendem a repetir-se em seus descendentes. Esta definição de Ribot,
metaphysica, é incompleta sob o ponto de vista medico, não abrangendo
todo o definido, deixando de lado os phenomenos hereditários de ordem
pathologica, que são os que mais interessam neste estudo. (FERREIRA,
1923:11)

Em Candido “educar, instruir, fortificar, sanear – tudo é eugenizar” (FERREIRA,


1923:4). E no que diz respeito às uniões, é favorável à proibição do casamento entre parceiros
doentes.

2
“O monge Gregor Johan Mendel é hoje conhecido como o “pai da genética” por ter sido o primeiro a demostrar
as leis da hereditariedade. Através da observação dos cruzamentos de ervilhas, ele concluiu que as combinações
dos caracteres das partes cruzadas eram imutáveis, podendo ser dominantes ou recessivas, dependendo da
combinação dos pares. O mendelismo só foi conhecido em 1900 com a popularização das pesquisas efetuadas
por Mendel, que influenciarão decisivamente os darwinistas sociais.” (DIWAN, 2011:31)

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Os seres vivos não transmittem somente suas propriedades anatômicas e


physiologicas, seu modo de viver; transmittem igualmente sua maneira de
ficar doente.
A herança pathologicas é um facto que ninguém ousa contestar.
(FERREIRA, 1923:12)

Percebe-se que as preocupações de Candido enquanto a hereditariedade se encontra na


doença, se se é favorável à proibição dos casamentos, é por que a união destes poderá causar
danos, enfermidades á prole. Na sequencia, Candido faz locução à sífilis, assunto por ele
estudado.
Ora os filhos herdam a mesma moléstia do progenitor, assim um
syphilitico póde procrear um syphilitico; ora herdam apenas a
predisposição, assim um tuberculoso póde transmitir apenas o terreno
preparado para o contagio; ora herdam um estado pathologico sem
connexão, a primeira vista, com o que sofre o progenitor, assim, o
mesmo syphilitico pode dar nascimento a uma affecçao assaz
differente, como a tabes e a paralysiaa geral.

Candido também faz locução aos males do álcool, onde segundo ele “o filho do
alcoolista ou soffre de eclampsia, de imbecilidade, de idiota, ou de epilecsia, ou é um
criminoso, um vagabundo e quasi sempre bado como o pai.” (1923:12)

Se o alcoolista lega á prole tantos males e a torna degenerada, se as moléstias


infectuosas, como a syphilis, tuberculose, lepra etc., são transmitidas aos
descendentes, abastardando a raça, porque motivo não se prohibe o
casamento desses indivíduos?

Renato Kehl, médico e farmacêutico paulista, que dedicou sua vida à divulgação da
eugenia no Brasil, afirma em seu livro “Por que sou eugenista” como a política naquele época
estava ligada à política biológica:
Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não há
política racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz
e felicidade aos povos. Eis, porque, a política, por excelência, é política
biológica, a política com base na eugenia. (KEHL, 1937:13)

Pietra Diwan em seu livro “Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo”,
refletindo a analogia da árvore como representação da vida, onde folhas verdes diziam
respeito à corpos saudáveis e eugênicos, afirma que esta árvore não deixará de funcionar
como rede, uma rede de poder, com formas dominação e de exclusão, e que sugere contatos
entre eugenistas de todo o globo.
Embora se pretenda a-histórica e una, essa rede é histórica e diversificada.
Com a proposta de identificar alianças, as formas de visibilidade e de

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publicidade, é possível ver que em seu interior há relações entre os poderes


público e privado, relações entre o exterior e o Brasil, entre médicos,
políticos e intelectuais e muitos outros profissionais. Essa rede expressará a
particularidade do tema (...): a consolidação de um eugenismo sui generis,
diferente em cada local onde se instalou. Seja no Brasil, nos Estados Unidos,
na Alemanha, na Escandinávia, na América Latina ou mesmo na Ásia.

Assim, trata-se de entender como e com qual discurso a medicina legitimou-se,


colocou-se no centro das discussões como discurso unitário de verdade, e por muitas vezes
apresentando-se de forma autoritário, delegando ao Estado o dever, e justificando por meio da
ciência médica a intervenção deste no corpo populacional. E como o Estado, juntamente com
os intelectuais e as instituições médicas, tratavam o internato de pessoas infectadas pela
tuberculose, sífilis e até mesmo pelo uso do álcool, que eram tidos como um mal
degenerativo. E ainda, compreender como legitimou-se o discurso da medicina moderna
como ciência, dotada de um discurso formal e unitário, e que tinha por fim a defesa da
sociedade. Aqui a interrogativa se coloca da seguinte maneira: defender a sociedade de que
mal? Foucault ressalta em seu livro “Em Defesa da Sociedade” que:
(...) a genealogia seria, pois, relativamente ao projeto de uma inserção dos
saberes na hierarquia do poder próprio de ciência, uma espécie de
empreendimento para dessujeitar os saberes históricos e torna-los livres, isto
é, capazes de oposição e de luta contra a coerção de um discurso teórico
unitário, formal e científico. (FOUCAULT, 2005, p.15)

Para compreendermos melhor a complexidade do discurso médico, partimos do


pressuposto que os saberes são construídos a partir do biopoder, conceito cunhado por
Foucault, que diz respeito a uma prática do fim do século XVIII. Porém, esta não pode ser
confundida com as normas dos sistemas disciplinares, que tem sua essência centrada no corpo
e que por meio de “sistemas de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escrituras, de
relatórios”, pretendia-se aumentar a força útil do indivíduo através do exercício, do
treinamento como forma de racionalizar o trabalho e disciplinar o trabalhador. A biopolítica
diferentemente, se “dirige à multiplicidade dos homens, (...) uma massa global, afetada por
processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o nascimento, a
morte, a produção, a doença, etc.” (FOUCAULT, 2005:289)
Assim, a medicina no século XVIII terá como característica e função maior a higiene
pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos, de centralização da
informação, de normalização do saber, e que adquire também o aspecto da campanha de
aprendizado da higiene e de medicalização da população.

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Para que este trabalho se torne possível, partimos do pressuposto de que todo discurso
proferido pelo autor aqui em análise, é em seu fundo, político, ou seja, tomaremos a
biopolítica aqui analisada como política. Giogio Agamben em seu texto “Homo Sacer: O
Poder Soberano e a Vida Nua I”, traz relevantes contribuições para esta interpretação, onde
segundo o autor as decisões políticas são sobre a vida nua, que se encontra entre meio a Zoé
(vida natural) e a Bios (vida natural captada pela política), ou seja, entre o natural e o político.
Desta forma, para Agamben, a novidade não é a biolítica que para ele existe desde a
antiguidade, e sim a indistinção entre o natural e o político, a vida nua.

O que se colocava como necessário era purificar a raça, e foi por meio do estudo, da
anatomização de todas as partes dos grupos éticos que isso se tornou possível. Foucault
afirma que:

o que vemos como polaridade, como fratura binária na sociedade, não é o


enfrentamento de duas raça exteriores uma à outra; é o desdobramento de
uma única e mesma raça em uma super-raça e uma sub-raça. Ou ainda: o
reaparecimento, a partir de uma raça, de seu próprio passado. Em resumo, o
avesso e a parte de baixo da raça que apareceu nela. (FOUCAULT, 2005:72)

Ou seja, o Estado deveria ter a pretensão de acomodar a sociedade deste início do


século XX, época em que preocupações com o corpo do Estado, ou seja, a sociedade era
corrente e os médicos e a medicina se colocavam no centro das discussões.

FONTES:

CANDIDO, João. A Eugenia. Curitiba: Econômica, 1923.

KEHL, Renato. Por que sou eugenista? Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1937.

BIBLIOGRAFIA:

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
1998.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 260

DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no Mundo. São Paulo:
Contexto, 2011.

FERNANDES, Loureiro. João Candido Ferreira: uma existência glorificada na prática e no


ensino da medicina : opera omnia / orgainzado por Eduardo Corrêa Lima. Curitiba: Scientia et
Labor: Fundação Santos Lima, 1998.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). São


Paulo: Martins Fontes, 2005.

LAROCCA, L. M. Higienizar, cuidar e civilizar: o discurso médico para a escola paranaense


(1886-1947). Curitiba, 2009. Tese (Doutorado) UFPR.

OLINTO, Beatriz Anselmo. Pontes e Muralhas: Diferença, lepra e tragédia no Paraná do


início do século XX. Guarapuava: UNICENTRO, 2007.

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ENVELHECER NA CIDADE:
MEMÓRIAS DE MULHERES APOSENTADAS ORIUNDAS DO ESPAÇO RURAL
(MARECHAL CÂNDIDO RONDON – 1980-2011)

Gladis Hoerlle (Mestranda PPGH Unioeste)

Prof. Dra. Méri Frotscher Kramer (Orientadora)

Palavras-chave: mulheres, aposentadas, campo-cidade

Este texto se baseia em trajetórias de vida construídas através de entrevistas de


História Oral com mulheres idosas que trabalharam como agricultoras e, após a
aposentadoria, se mudaram para o espaço urbano de Marechal Cândido Rondon, extremo-
oeste do estado do Paraná, Sul do Brasil. O interesse pela pesquisa surgiu a partir de
conversas com algumas destas mulheres, em que pude perceber significativas transformações
nos modos de vida e de trabalho experimentados por elas desde sua fixação no local.

Foram ouvidas sete mulheres e selecionados quatro relatos orais para compor as
questões a serem analisadas neste artigo. Os relatos trazem importantes elementos para pensar
como elas narram suas experiências em relação ao cotidiano, trabalho, família, saúde,
aposentadoria, tempo de lazer e sobre o próprio processo de envelhecimento.

Todas as entrevistadas viveram no campo, são filhas e esposas de pequenos


agricultores, que casaram jovens e migraram dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa
Catarina para o Paraná nos anos 50 e 60 em busca de melhores condições de vida para sua
família através da reprodução de seu modo de vida camponês.

O município de Marechal Cândido Rondon, lugar em que atualmente residem as


mulheres entrevistadas, localiza-se nas margens do Lago da hidrelétrica Itaipu e abrange uma
população de 46.799 habitantes. Na época da chegada dos primeiros agricultores, através da
ação da companhia colonizadora MARIPÁ, a região era praticamente coberta pela mata

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virgem, sofrendo um processo rápido de transformação da paisagem. A estrutura fundiária da


região era baseada na pequena propriedade rural, utilizando a mão-de-obra familiar para
plantar a terra e criar animais como porcos, galinhas e vacas, para o sustento da família, e
vender alguns produtos excedentes.

O historiador Davi Félix Schreiner observa que o maior fluxo migratório ocorreu entre
1940 e 1960 e, a partir de então, a região passou a se destacar na produção agropecuária,
principalmente através de pequenas propriedades rurais. Ao se referir às migrações, ele
acredita que, “as pessoas se deslocam segundo as possibilidades abertas pelo contexto
socioeconômico de seu tempo”.1 O autor destaca a importância da conquista da terra para
estes migrantes sulistas, para quem o trabalho familiar na terra é um “elemento central na
ética camponesa”.2 Terra, família e trabalho eram valores partilhados por aqueles agricultores
que migraram para o Oeste do Paraná na busca de possibilidades de reprodução de seus
modos de vida.

A partir de 1970 ocorreram sucessivas transformações no modo de produção agrícola.


A mecanização levou à ampliação das áreas cultivadas com a produção principalmente de soja
e milho, integrando a região ao mercado internacional e subordinando a agricultura às
exigências da produção capitalista e do mercado consumidor. Atualmente a região constitui
importante área agrícola do estado do Paraná, absorvendo novas tecnologias. Em meio a este
processo se percebe a implantação de diversas agroindústrias nos municípios da região.

Apesar de não ter ocorrido uma ruptura entre campo e cidade, ou a substituição total
do primeiro pelo espaço urbano, a mecanização da agricultura causou alterações na vida e no
cotidiano dos agricultores, promovendo mudanças no seu modo de viver e trabalhar. Exigiu,
da parte destes, novas maneiras de viver para se adaptarem às transformações presentes na
sociedade. Outros fatores intensificaram as mobilidades decorrentes da migração do mundo
rural para o urbano na região, como aponta o historiador Robson Laverdi:

No caso do Oeste, as políticas de modernização da agricultura, bem como as relações


de trabalho e produção, somavam-se às desapropriações de terras dos pequenos
agricultores para a construção da usina hidrelétrica de Itaipú no limiar dos anos 1980,
que agravou sobremaneira a situação daqueles que tinham migrado em passado tão

1
SCHREINER, Davi Félix. Memórias da luta pela terra: de sem-terra migrantes às ocupações coletivas. Espaço
Plural. Ano X, nº 20, 1º semestre 2009, p. 95
2
Idem, p. 96.

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recente. A fronteira agrícola que havia sido planejada como um modelo de agricultura
minifundiária de produção familiar e por migrantes sulinos, selecionados entre aqueles
de origem européia, começara assim a se esfacelar, antes de mostrar seus primeiros
resultados.3

Assim, muitos dos colonos, contando já com uma idade mais avançada e com os filhos
adultos resolveram mudar-se para a cidade e deixar a propriedade ao cuidado dos filhos, ou,
então, no caso dos proprietários de áreas de terra menores, acabaram vendendo-as para
grandes produtores e investindo em outro tipo de atividade ou simplesmente vivendo de sua
aposentadoria.

A maior parte das mulheres entrevistadas migrou para a cidade devido ao avanço da
idade e por não poder mais trabalhar na agricultura, em razão da saúde frágil. Algumas saíram
do campo por conta da desapropriação de suas terras, em todo ou em parte, por ocasião da
construção da usina hidrelétrica de Itaipu. Outras, buscavam oportunidades de estudo para os
filhos na cidade.

A forma de falar e dificuldade de se expressar através de um português


gramaticalmente correto denotam a origem social humilde e a baixa escolaridade destas
mulheres, pois em geral freqüentaram pouco a escola de modo que mal sabem ler e escrever.
Em diversos casos a forma de se expressar denota a ascendência alemã, uma vez que ainda
falam aquela língua, por serem descendentes de imigrantes alemães.

Nas entrevistas é narrado todo um percurso de experiências vividas no passado,


construído a partir do presente. Ao refletir sobre o significado da entrevista, em sua pesquisa
sobre memórias de velhos, afirma a psicóloga social Ecléa Bosi: “o vínculo com outra época,
a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma
ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos
atentos, ressonância”.4 Ecléa Bosi, também acredita que “a arte da narração não está
confinada nos livros, seu veio épico é oral. O narrador tira o que narra da própria experiência
e a transforma em experiência dos que o escutam”.5

3
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas; trajetórias itinerantes de trabalhadores no
extremo-oeste do Paraná. Curitiba: 2005, p.58-59.
4
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
p.85.
5
Idem, p.82

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Por mais que as mulheres por mim entrevistadas compartilhem de experiências


relativamente semelhantes, seus relatos orais são sempre únicos, porque carregados de
subjetividade. Mesmo que uma história seja contada diversas vezes pela mesma pessoa, ela
sempre será contada de uma maneira diferente, de acordo com o momento de sua vida. A
história oral nos possibilita conhecer o sujeito na sua singularidade, o que, no dizer de
Alessandro Portelli, nos revela “(...) muito mais que documentos escritos, que frequentemente
carregam a aura impessoal das instituições que os editam - mesmo se, naturalmente, composto
por indivíduos, de quem sabemos pouco ou nada - as fontes orais envolvem o relato inteiro
em sua própria subjetividade”. 6

A marcação das mudanças ocorridas nos modos de vida na própria narrativa pode ser
apreendida através das lembranças de dona Irmélia, de 72 anos, casada e mãe de quatro filhos.
Ela mora no espaço urbano de Marechal Cândido Rondon há 30 anos. Anteriormente, morava
com o marido e os filhos, no interior do município, no espaço rural. Ela compara o tempo
passado com o tempo presente, considerando as mudanças que ocorreram na forma de trabalhar
e as novas relações de trabalho existentes na família hoje em dia:

E quando a gente veio morar aqui pro Paraná em 1972, no meio do mato, no meio dos
tocos. Fazia as queimadas na roça e as crianças ajudavam, as crianças eram pequeno e
tinham que ajudar, não era que nem hoje, fala que a criança não pode trabalhar, né.
Antigamente não era assim, criança quando já sabia caminhar, já tinha que ajudar, levar
os cavaquinho para fazer fogo na cozinha, fazer almoço, descascar batatinha, ajudar em
tudo, não era..., tanto fora da casa quando dentro da casa. E hoje em dia a moleza que as
crianças tem, inclusive a gente acha assim que se hoje em dia as crianças tivesse que
ajudar, em vez de ficar só na frente do computador, ou só fazendo brincadeira e essas
coisas, a criminalidade diminuía muito. Que a criança se preocupava com coisas que
tem valor, não iam olhar na televisão essas bobagens que enxergam, as coisas que
assistem e depois querem viver isso, né. Eu acho assim que é muito diferente, da vida
que a gente levava, que os nossos filhos levavam quando eram pequeno e que os netos
levam hoje.7

Percebe-se a comparação entre o cotidiano dos netos e dos filhos ao falar sobre o
passado cheio de dificuldades. O relato do passado é permeado pela análise de situações
vividas no cotidiano das gerações posteriores na família, pois, como ela afirma, “não era que
nem hoje”, pois antigamente as crianças “tinham que ajudar” nas pequenas tarefas de casa.

6
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, 14, fev. 1997, p. 37.
7
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/2011.

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Davi Félix Schreiner, referindo-se ao trabalho nas propriedades dos pequenos


agricultores na região Oeste do Paraná, afirma que toda a família participava da produção. 8 O
homem cuidava da lavoura e da criação de animais, a mulher tomava conta dos filhos e dos
serviços domésticos e era responsável pela alimentação da família, desde o cultivo das hortas,
criação de animais como frangos e vacas leiteiras até a preparação dos alimentos. Os filhos
eram ensinados desde pequenos a contribuírem com as tarefas na propriedade.

Dona Irmélia acha que se as crianças tivessem que ajudar os pais ao invés de ficar na
frente do computador ou assistindo televisão a criminalidade diminuiria muito. Falar da
“moleza que eles têm” mostra que na percepção dela, eles não estão acostumados a trabalhar
duro e enfrentar dificuldades. Assim, o trabalho é visto por ela, como um valor a ser cultivado
desde cedo, moldando o caráter das crianças para enfrentar desafios maiores no futuro.

Em seu relato, rico em termos de comparação, ela diz que a vida das crianças “é muito
diferente da vida que a gente levava”. Os valores mudaram. Para ela, a terra, o trabalho e a
família, valores fundamentais na vida desses camponeses, não seriam mais tão valorizados na
sociedade atual. A preocupação em relação ao futuro das gerações posteriores da família está
presente em sua fala:

O que os bisnetos vão aprender e levar da vida a gente não sabe como vai ser daqui pra
frente, porque não foi fácil. A gente tinha vaca pra cuida, tinha galinha pra cuida, tinha
a roça pra cuida, tinha a casa... Só um detalhe que era bem legal, que a gente tinha mais
tempo pros amigos do que hoje. Por que hoje a gente não vai visitar ninguém, né. Ah,
porque não dá tempo. Na época que a gente morava na roça, quando era dia de chuva,
pegava uma trouxinha de roupa embaixo do braço e ia na casa da vizinha, enquanto
remendava roupa, conversava, tomava chimarrão e era uma visita, né. E hoje, você nem
remenda roupa e nem visita a vizinha.9

Apesar de afirmar que a vida não era fácil, ela recorda que as vizinhas sempre davam
um jeito de se encontrar para conversar e tomar chimarrão, mesmo que fosse enquanto
costuravam e remendavam a roupa. Ela seleciona este fato para acentuar a sentida falta de
sociabilidades vivida por ela no presente. Para ela, hoje em dia não há trabalho nem lazer,
apesar do tempo livre proporcionado pela aposentadoria.

8
SCHREINER, Davi Félix. Cotidiano, Trabalho e Poder: a formação da cultura do trabalho no Extremo Oeste
do Paraná. 2 ed. Toledo: Editora Toledo, 1997, p.89.
9
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/2011.

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Segundo a entrevistada, nas dificuldades, os vizinhos cooperavam uns com os outros,


criando muitas vezes laços de amizade. Para ela, era diferente da vida na cidade hoje, em que
muitos vizinhos não se visitam. Sua fala idealiza o tempo passado vivido na colônia. A
sociedade atual é representada como uma sociedade da pressa e do consumo, na qual ninguém
teria tempo para se visitar, ninguém mais consertaria roupa, diferente “daquela época”.

Também dona Valéria, de 71 anos, representa o tempo em que morava em uma chácara
nas proximidades da cidade como de dificuldades. Viúva, mãe de 5 filhos, mora na cidade há
33 anos. Não é aposentada, mas recebe pensão por viuvez. Em suas memórias, o espaço rural
aparece como um lugar de muito trabalho. Por terem na época uma área pequena de terra,
apenas três hectares, não podiam possibilitar aos filhos a perspectiva de uma vida melhor. Seu
marido trabalhava como pedreiro na cidade para complementar a renda da família. Assim,
depois que os filhos cresceram, eles acabaram trocando a chácara em que moravam por um
terreno e uma casa na cidade para que os filhos pudessem estudar e trabalhar no comércio.
Assim ela rememora:

Daí pra ele [marido] era melhor e pros filhos era melhor, e os filhos depois, daí já eram
mais grandes, os dois mais velhos, daí eles começaram a trabalhar e daí o terceiro
também começou e aqui era melhor pra nós, só que nos primeiro tempo não era fácil,
não tinha muito serviço na cidade, sabe, a cidade não era como hoje. Hoje, os pedreiros
não ficam sem serviço, né, e naquela época não era assim, era umas época bem “braba”,
sabe.10

Ela comenta sobre a situação financeira vivida pela família no período em que
dependiam da agricultura para sobreviver. De acordo com ela, apenas “tinha pra viver”, apesar
de não terem passado fome, não sobrava muita coisa. Aquilo que produziam dava “pro gasto”
da família:

Porque na colônia, o que que a gente tinha? Não tinha muita coisa, sabe? A gente
trabalhava mais assim, pro gasto, né, corria pro gasto, vendia, tinha coisa, mas se virava,
daí só mais assim pro gasto, porque ele [marido] trabalhava fora.(...) Sempre, não era
pra dizer que nós passemo fome, mas também não tinha que sobrasse coisa, né. Tinha
pra viver.11

Ao ser perguntada sobre os produtos que cultivava e os animais criados para fornecer
alimentos e se ela vendia o excedente, respondeu:

10
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.
11
Idem.

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Sim, vendia, mas, só tinha umas duas vaquinha pra vender leite, não dava muito, né. E
hoje em dia, tudo assim na colônia já é melhor, eu que acho, eu não sei também... E ali
na cidade também, hoje é mais fácil, porque tem mais serviço, sabe, naquela época não
ganhava muito serviço. Porque quando nós viemo morar pra cá, quando nós morava na
colônia, eu mandava, às vez, os filho leva uns ovos pra vender, uma dúzia de ovos, nem
achava onde vender, pra comprar um pouquinho de coisa assim, como açúcar, farinha,
uma coisa..., isso nem achava de vender, porque tinha muito sabe e poucos que
compraram, né. Depois eu comecei de vender leite aqui, mas não pra leiteiro, porque
não passava, daí os filhos fizeram assim, entregavam nas casas um pouquinho, sempre
ajudava um pouco.12

Lembranças de um tempo em que era tudo diferente, não havia ruas asfaltadas, “não
tinha nada”, comparado com a cidade atual onde, segundo ela, “mudou tudo”, pois “cresceu
bastante”.

Estratégias de sobrevivência entre o campo e a cidade ajudaram a família a sobreviver


até os filhos crescerem e arrumarem emprego na cidade, para assim ajudar na renda familiar.
Ela também compara a vida de antes e a vida de agora, tanto no campo quanto na cidade,
dizendo que atualmente “é bem melhor”, “tá mais fácil”, “tem mais serviço” do que há alguns
anos atrás. Para ela, a oferta de trabalho na cidade proporciona uma vida melhor, tanto para os
habitantes urbanos, quanto para os agricultores. O comércio de produtos excedentes seria bem
mais fácil no tempo presente do que no passado.

Quando perguntada sobre se a vida dela mudou, ela respondeu:

Minha nossa!! E como. Sim, mudou bastante. Deus o livre!! Quando nós
viemos morar pra cá [para a cidade de Marechal Cãndido Rondon], não tinha
asfalto, não tinha nada. Assim, quando nós morava ali numa chácara, né. Isso
ali na cidade não tinha asfalto nem um pouquinho. E agora, desde que nós tamo
morando aqui na cidade mesmo, nossa como mudou tudo, como mudou, Deus o
livre!! Cresceu bastante a cidade.13

Lembranças de uma outra época, cheia de dificuldades, também podem ser percebidas
no relato de dona Olinda, que mora no espaço urbano de Marechal Cândido Rondon há cerca
de trinta anos, ao comparar o tempo passado em que vivia no campo com o presente:

No sítio, então de manhã, levantou as 4 hora, tomava chimarrão, ainda não ficou claro,
pegou o serrote e cortou lenha. Antigamente não era fogão a gás, agora tem tudo, por
isso acha tudo tão fácil agora.

12
Idem.
13
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.

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Entrevistadora: Água também, né?

Dona Olinda: Aqueles tempo tudo carregar com balde. E quando era seca. Longe,
longe... O que que é dois balde de água, assim é muito, mas daqueles tempo...

Entrevistadora: Tinha que puxar do poço?

Dona Olinda: Do poço. E pra limpar, nós tinha casa grande lá embaixo [na colônia]
tudo calçada. Eu sei que o Harto [filho] muitas vezes, quando ele tava em casa, ele
ficou bravo, as meninas limpando a casa e ele tendo que levar água pra cima, com
esses dois baldes e já tem que correr. [risos]14

Dona Olinda 82 anos, casada e mãe de quatro filhos, lembra das dificuldades
enfrentadas no período em que era preciso fazer fogo no fogão à lenha, sendo necessário
primeiro serrar a lenha que seria usada para o fogo, processo demorado e trabalhoso, muito
diferente da praticidade do fogão a gás usado atualmente. Ainda descreve a necessidade de
puxar água do poço, para o consumo e a limpeza da casa, muito mais difícil do que
simplesmente abrir a torneira. Era um tempo em que a eletricidade ainda não havia chegado ao
campo. O modo de viver e de trabalhar mudou muito em poucos anos. A realidade vivida por
estas mulheres há alguns anos passados é muito diferente da forma como vivem atualmente as
gerações mais jovens da família.

Apesar das dificuldades apontadas nos modos de vida no campo no passado, muitas
delas ainda mantém alguns elementos que as vinculam aos modos de vida rurais vividos no
passado. É perceptível na fala dessas mulheres o vínculo que ainda permanece com a vida no
campo, seja pela propriedade rural que ainda possuem e que é cuidada por um dos filhos ou
familiares, ou, simplesmente pelos hábitos que ainda mantém.

Dona Rení, com 76 anos de idade, casada, mãe de 6 filhos, apesar de morar na cidade
há 17 anos e ser aposentada, ainda conserva hábitos comuns aos trabalhadores do campo,
como acordar bem cedo, molhar as plantas, cuidar da horta, cultivar as verduras para o
consumo próprio e cuidar da limpeza da casa.

Quando perguntada pela entrevistadora sobre o seu dia-a-dia na cidade Dona Rení diz:

Eu gosto muito de ir de manhã cedo no lotezinho, eu planto feijão, planto mandioca,


verdade... de tudo, pepino, cebola, de tudo...E a gente é acostumado e isso é um prazer

14
Olinda Camila Witech, 82 anos. Entrevista realizada em 26/08/2011.

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pra eu ir olhar isso de manhã. Ver se já cresceu um pouco e as flor ali [no jardim]. Isso,
eu nunca vou querer fica sem um pedacinho de terra. Acostumado.15

Ela prossegue em sua narrativa discorrendo sobre as suas atividades diárias:

Ah... De manhã, eu levanto bem cedo, bem cedo, ás vez 5 horas, faço a limpeza, faço
tudo, molho tudo [rega as plantas]. Ás vez eu vou no mercado, as vez eu vou correr um
pouco ali na vizinha [visitar]. E de tarde eu vou ir jogar, o meu dia, quando é o meu dia
[de receber as amigas], se eles chegam ali, eu fico contente, mas se eu posso correr [sair
para jogar], eu já falei antes pra ele [marido]: “Hoje a tarde, na hora do meio dia eu tem
que ir renovar meu cartão [no banco] e depois de lá, eu vou ir [jogar baralho com as
amigas].16

Percebe-se que para dona Rení o prazer de trabalhar faz com que ela se sinta útil e
produtiva, possibilitando que no período da tarde ela se sinta livre e saia para se encontrar
com suas amigas para jogar baralho. Seu comportamento está pautado por um ethos do
trabalho, segundo o qual, primeiro está o trabalho, depois o prazer.

A valorização do trabalho e o orgulho que sentem ao terminar a vida, ao ver os frutos


desse trabalho, faz com que estas mulheres expressem a sensação de dever cumprido. Elas
não imaginavam chegar à velhice e poder usufruir de um tempo livre, só para si. É o que se
percebe na fala de D. Rení, quando perguntada se a sua vida mudou depois que veio morar
para o espaço urbano:

Mudou. Eu já falei pros filho, pros parente de Rio Grande, eu nunca achei que
ia ganhar um tempo que nem como eu tenho agora. Livre. Posso sair quando tu
quer.

A gente na colônia, não tinha nem domingo. Em domingo remendei roupa,


adiantei comida pra... Eu sempre, sempre tava na roça, de manhã até de noite.
As crianças deitadas embaixo do pé de mandioca, com sombra. Uma na caixa,
aquela que fugiu [risos] e outra, pequeninha fora. E assim nós se viremos.17

E, como expresso na fala de dona Rení “assim nós se viremos”, é perceptível que para
ela todo o esforço valeu à pena. O trabalho na roça, inclusive nos domingos, remendando roupa
ou adiantando a comida pra semana possibilitou que agora na velhice ela possa ter uma vida
mais confortável, para usufruir de um tempo só para si, livre das obrigações que não permitiam
que ela saísse para se divertir quando mais jovem.

15
Rení Riffel, 76 anos. Entrevista realizada pela autora em 17/08/2011.
16
Idem.
17
Rení Riffel, 76 anos. Entrevista realizada pela autora em 17/08/2011.

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Todas as entrevistadas se consideram colonas ou agricultoras, além de donas de casa,


apesar de também se reconhecerem e incorporar o papel social de aposentadas. Percebe-se
assim, que as novas experiências adquiridas na cidade e após a aposentadoria lhes permitem a
construção de novas identidades sociais.

A aposentadoria simboliza um período de maior independência financeira para estas


mulheres, as quais, através do benefício fornecido pela Previdência Social, conquistam uma
vida mais independente financeiramente do marido. Embora elas tenham trabalhado lado a
lado com seu marido, era ele quem controlava as finanças da família. É o que nos revela dona
Rení ao ser perguntada se a aposentadoria foi algo de bom na sua vida:

Ih... Foi... Bom... Isso é um dinheirinho pra... Porque antigamente a gente sempre
tinha que..., eu precisava comprar isso, eu quero comprar isso... agora, não precisa
mais pedir, pra ele [pro marido]. Eu tenho agora meu dinheiro, quando quer comprar
uma coisinha. [risos] e comprar as vez um presentinho, né. Ele deu dinheiro mas ele
era assim, muito seguro. Eu também cuida, a gente era criado assim.18

Porém, em alguns casos, o dinheiro da aposentadoria é usado para o pagamento de


planos de saúde e compra de medicamentos necessários para a manutenção da saúde física da
aposentada, como é o caso da dona Irmélia. Quando perguntada sobre onde gasta o dinheiro
que recebe como aposentada, comenta ser esta uma ajuda muito bem vinda para cobrir as
despesas com convênio médico e despesas da casa. Ela prefere pagar um convênio particular
para não depender do atendimento do SUS (Sistema Único de Saúde), mesmo que para isso
tenha que abrir mão de participar de festas e outras atividades como viagens:

Ajuda, se eu não tivesse essa pensão, essa aposentadoria, não teria o convênio. Não
teria, porque com o que eu ia pagar o convênio? Então essa, se eu não tivesse o
convênio ia depender do SUS, né, daí eu taria [sic] perdida, porque... A prefeitura,
ela ajuda muito, a gente não pode se queixar, eles ajudaram muito a gente já, quando
ele [marido] teve problema de saúde também. Mas se você depender de uma
consulta da prefeitura, você tem que esperar, às vezes uma semana, às vezes um mês,
às vezes dois, três, né, e assim no meu convênio, o dia que eu preciso, eu vou lá, eu
tenho a consulta, eu tenho os exames tudo na mão, por isso que eu tenho que manter
o convênio, se não, não teria o convênio, se não tivesse a aposentadoria. E pagar a
luz e água e telefone também, né. Mas dá exatamente isso, pagar o convênio, a luz, a
água e o telefone, e daí o resto, sustentação da casa, por isso que não dá pra sair

18
Idem.

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muito, daí vai na festa, vai gastar, vai viajar, vai gastar, então a gente tem que se
manter .19

No Brasil, a questão do envelhecimento tem sido objeto de preocupação de diferentes


áreas do conhecimento como a medicina, educação física e nutrição. A mídia, em geral,
divulga que um corpo saudável e ativo faz parte da arte de bem envelhecer. Esta concepção
foi incorporada pelos grupos de idosos que se difundiram no Brasil nos últimos anos e
movimenta um mercado voltado para este público. Muitas mulheres idosas que entrevistamos
participam de diversas atividades sociais que as integram em grupos, como no Clube de
Idosos, o qual promove encontros semanais. Ali a prática de dança de salão lhes possibilita,
além da integração social, movimentar o corpo, gerando bem-estar físico e psicológico.

Dona Olinda participa do Clube de Idosos, muitas vezes vai para dançar mesmo sem
que o marido a acompanhe. Fala do prazer que sente ao dançar, apesar de sentir dor algumas
vezes e das limitações decorrentes da idade e de uma cirurgia sofrida no joelho recentemente:

Dona Olinda: E eu gosto de escutar rádio, tem música..., e quando eu to sozinho eu


danço sozinho.

Entrevistadora: Dança sozinha?

Dona Olinda: Aham e todo o pessoal acha que eu posso dançar com esse joelho. [ela
fez cirurgia no joelho] Eu não noto nada. E tem muitos se queixa de dor. Eu não. Eu
tinha dor antes. (...) Porque eles arrumaram esse osso, [mostrou a perna e o lugar em
que foi feita a cirurgia] isso muitas vez dói. 20

A antropóloga Josimara Delgado em artigo em que analisa narrativas de história de


vida de trabalhadores aposentados em Juiz de Fora, Minas Gerais, afirma que nesta fase da
vida da mulher, a atividade doméstica de ajudar os filhos não se faz mais necessária,
rompendo com uma dinâmica vivenciada durante boa parte de suas vidas. Isso propicia a
procura por outras formas de se manter ativas e a integração com outras pessoas da mesma
idade. Para ela, o envolvimento em atividades sociais, evoca o sentimento de liberdade
proporcionado pela ausência de compromissos, obrigações e horários, dando oportunidade a

19
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/ 2011.
20
Olinda Camila Wittech, 82 anos. Entrevista realizada pela autora em 26/08/2011.

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estas mulheres de “explorar novos espaços da cidade, dar novas funções ao corpo e,
sobretudo, “para não ficar dentro de casa””.21

Ecléa Bosi pondera que na sociedade capitalista em que vivemos, muitos dos velhos,
esgotados de sua força de trabalho, se desesperam com a falta de sentido da vida presente.
Quando não podem mais trabalhar, se sentem desvalorizados. Para ter uma sobrevivência
digna, a autora acredita que “durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas
que nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significado a nossos gestos
cotidianos”.22 Ou seja, levar uma vida ativa, partilhando interesses e prazeres com outras
pessoas da mesma geração.

A organização de grupos para jogar cartas e bolãozinho faz estas mulheres


desenvolverem novas formas de sociabilidade. Elas procuram se adaptar à condição de
mulher aposentada, a qual dispõe de tempo livre para cuidar de si mesma e dos seus
interesses, depois de toda uma vida de trabalho na lavoura, na casa e de cuidado e criação dos
filhos.

É o que faz dona Valéria. Ela mora com a filha solteira que fica fora o dia inteiro
devido ao trabalho. Para ela, “não adianta ficar só em casa e pensar no passado”, por isso ela
sai bastante, conversa com as amigas e se distrai. Ao ser perguntada pela entrevistadora se
não se sente muito sozinha ou se sai bastante, fala do seu cotidiano e de sua vida na cidade:

Eu sim, e vou na OASE (Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas) eu vou no


Bolãozinho, vou nos Idosos, jogo um baralhozinho. [risos] Não adianta sentar em casa
e só ficar pensando no passado, porque isso passou, né. Aí, eu saio pra nem me
lembrar das coisas. O que passou, passou, né. Eu sei de muitas que contam assim que
não saem de casa e daí só ficam pensando no passado e daí só pensam que tão doente,
mas isso é como eu já falei pra elas: “Não adianta senta em casa, vocês tem que sair
mais”, nem que vão passear, tomar um chimarrão, com outras amigas, né. Sempre tem
um outro assunto, porque se tu tá em casa é sempre a mesma laia o dia inteiro, fazer o
serviço e a mesma coisa isso, né.23

Através de sua narrativa percebe-se que ela tem uma vida repleta de atividades,
estando constantemente em contato com outras mulheres de sua idade, com as quais
compartilha momentos de diversão e de conversa, que faz com que se esqueça da solidão e

21
DELGADO, Josimara. Velhice, corpo e narrativa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34,
jul/dez. 2010, p.204.
22
BOSI, Ecléa. Op. Cit. p. 80.
23
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.

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dos problemas e dificuldades vividos no passado. De acordo com ela, não vale à pena ficar
em casa só “pensando no passado” ou em doenças, porque “o que passou, passou”. É preciso
esquecer as dificuldades físicas e a solidão. É preciso seguir em frente e procurar novas
formas de se distrair e socializar. Viver o presente e dar um novo sentido à vida. Aproveitar
as oportunidades que a vida oferece.

Ao ouvir as histórias de vida dessas mulheres, percebemos como narram suas


experiências a partir do vivido hoje. Com a aposentadoria, muitas destas mulheres tem o seu
próprio dinheiro, mas ao mesmo tempo tem a doença, tem a velhice e suas conseqüências
como as dificuldades físicas e a solidão... Como lidar com estas questões?

Agora aposentadas, ao relatar suas experiências esperam transmitir às futuras gerações


o significado e o valor do trabalho, considerando que elas sentem uma “estranheza em face de
certos costumes atuais”.24 Ou como analisa Ecléa Bosi, “aquilo que se viu e se conheceu bem,
aquilo que custou anos de aprendizado e que, afinal, sustentou uma existência, passa (ou
deveria passar) a outra geração como um valor”.25 Afinal, para os mais velhos “a memória do
trabalho é o sentido, é a justificação de toda uma biografia”.26

FONTES ORAIS

Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/2011.

Olinda Camila Wittech, 82 anos. Entrevista realizada pela autora em 26/08/2011.

Rení Riffel, 76 anos. Entrevista realizada pela autora em 17/08/2011.

Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.

24
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 480.
25
Idem, p. 481.
26
Idem, ibidem.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.

DELGADO, Josimara. Velhice, corpo e narrativa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre,


ano 16, n. 34, jul/dez. 2010, p. 189-212.

LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas: trajetórias itinerantes de


trabalhadores no extremo-oeste do Paraná. Curitiba: 2005.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, 14,
fev. 1997.

SCHREINER, Davi Félix. Cotidiano, Trabalho e Poder: a formação da cultura do trabalho


no Extremo Oeste do Paraná. 2 ed. Toledo: Editora Toledo, 1997, 191p.

SCHREINER, Davi Félix. Memórias da luta pela terra: de sem-terra migrantes às ocupações
coletivas. Espaço Plural. Ano X, nº 20, 1º semestre 2009, p 94-102.

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REPRESENTAÇÕES ÉTNICAS NO ESPAÇO ESCOLAR MATOGROSSENSE: UM


PATRIMÔNIO CULTURAL EM EVIDÊNCIA

Janaina Rodrigues Pitas (Mestranda em História Social – UEL)


Orientadora: Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez

Palavras-chave: Etnias, espaço escolar, patrimônio cultural.

Nos meados da década de 70, no sudeste do Mato Grosso, ocorreram novas ocupações
territoriais, em especial, a expansão do plantio da soja, no intuito de desenvolver
economicamente a região. É a partir desse fluxo migratório que visualizamos no espaço
escolar do município de Primavera do Leste, á 240 km da capital Cuiabá, uma comunidade
bastante heterogênea, em que educadores e alunos advindos de outras regiões do país
(sulistas, nortistas, goianos, indígenas, etc.), somando-se a permanente transitoriedade de
alguns alunos que percorrem os caminhos dos pais, na busca de oportunidade de trabalho, e
por isso alguns autodenominam-se “pés-inchados”, “peões de trecho” ou “turistas forçados”1.
Além disso, a proximidade do município á algumas aldeias indígenas, entre elas a reserva
Sangradouro, torna relevante o número de alunos indígenas que perpassam as escolas
estaduais de Primavera do Leste e apresenta múltiplas relações sociais, num longo percurso
dividido, de forma desigual, entre memórias, identidades, e quiçá de percepções de
patrimônio cultural.
Juntamente ao cenário matogrossense, aos movimentos migratórios na região,
precisamos considerar suas consequências na (re)construção das identidades e memórias que
transitam nas E. E. João Ribeiro Vilela e E. E. Getúlio Dorneles Vargas no município de
Primavera do Leste, composta pela diversidade étnica, uma especificidade que poderá
contribuir nas múltiplas percepções de Patrimônio cultural na escola.
Os aportes teóricos que referenciam essa pesquisa circundam a História cultural,
alavancada nos idos da década de 80 pela historiografia francesa, da Escola dos Annales, a

1
CERUTTI, Leandro Genoino. Deslocamento social e trabalho temporário: práticas e Relatos de trabalhadores
em Primavera do Leste-MT /Leandro Genoino Cerutti. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2004, pg. 02.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 276

qual amplia o campo das pesquisas, estabelece diálogos com a antropologia, valoriza as
minúcias do cotidiano e utiliza-se variadas fontes e metodologias de pesquisa.2
A história do tempo presente auxilia na percepção ramificada dos eventos atuais com
outras temporalidades, em particular intenciona articular o tempo imediato ao passado, sair da
superficialidade e mergulhar numa relativa profundidade histórica como indica Le Goff:
[...] tentar hierarquizar os fatos, distinguir o incidente do fato significativo e
importante, fazer do acontecimento aquilo que permitirá aos historiadores do
passado reconhecê-lo como outro, mas também integrá-lo numa longa duração e
numa problemática na qual todos os historiadores de ontem e de hoje, de outrora e
do imediato, se reúnam.3

Neste trabalho foram analisados e confrontados informações por meio de questionários


socioeconômico e temático no intuito de reconhecer semelhanças e diferenças que
caracterizam as percepções dos grupos que compõem o objeto de pesquisa nas escolas. O uso
de mapas étnicos, fotografias de algumas práticas e espaços escolares, somados a alguns
relatos e anotações do caderno de campo serão outros instrumentos recorrentes nesta pesquisa.
Sem dúvida, não devemos exagerar o silêncio dos arquivos escolares. O historiador
sabe fazer flechas com qualquer madeira: quanto ao século XIX , por pouco que
procure e que se esforce em reuni-los, os cadernos de notas tomadas pelos alunos
(mesmo sendo grande o risco de se verem conservados apenas os mais bonitos
deles) e os cadernos de preparações dos educadores, não são escassos e, na falta
destes, pode-se tentar reconstituir, indiretamente, as práticas escolares a partir das
normas ditadas nos programas oficiais ou nos artigos das revistas pedagógicas.Mas
estamos menos equipados para perceber as diferenças – diversas segundo as classes
sociais de origem – que separam as culturas familiares ou profissionais da cultura
escolar.4

Ao alavancarmos o registro de expressões culturais surgem conceitos essenciais na


compreensão do patrimônio brasileiro, como o de identidade e memória. Para Meneses falar
sobre identidade implica em visualizar juntamente semelhanças, diferenças e poder, aspectos
que apresentam hierarquias sociais, classificações, exploradas nos conflitos étnicos, culturais
e políticos. A dinâmica sócio-cultural, a interação entre as sociedades também compõe a
construção e reconstrução da identidade, pensar em perda ou em resgate são objetivos
equivocados, enquanto identificar e analisar sua historicidade propõe um desafio na
compreensão do fenômeno, o qual perpassa por necessidades e relações com o presente.5

2
BURKE, Peter. O que é história Cultural? Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.191p.
3
CHAVEAU, TÉTART, (orgs.). Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999, p. 101-102.
4
JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. Revista Brasileira de História da Educação,
n°1, p. 09-44, jan./jun. 2001, pg. 17.
5
MENESES, Ulpiano Bezerra. “A Problemática da Identidade Cultural nos Museus: De Objetivo (de Ação) a Objeto
(de Conhecimento)”. “Anais do Museu Paulista da USP - História e Cultura Material”. Nº 1, 1993, pg. 12.

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Para Canclini ocorre um processo intercultural nas instituições, em que coexiste conflito
e a negociação, onde:

As identidades se constituem não só no conflito bipolar entre classes, mas também


em contextos institucionais de ação – uma fábrica, um hospital, uma escola – cujo
funcionamento se torna possível na medida em que todos os seus participantes
hegemônicos ou subalternos, os concebem como uma “ordem negociada. 6

Para dialogar com tais proposições, articulamos o conceito de memória, em que


utilizaremos como referencial Pollak, para pensarmos a função da memória e sua relação aos
pontos de referencia na sociedade:
A memória, essa operação dos acontecimentos e das interpretações do passado que
se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos
conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais
entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias,
regiões, clãs, famílias, nações etc. A referencia ao passado serve para manter a
coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu
lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. 7

Utilizaremos aqui um relato de uma educadora, Gleibiane David Rech Silva, oriunda de
Caiapônia/Goiás, a qual atuou nos anos de 1996 até 2008 como professora de Ciências
Biológicas, na E. E. João Ribeiro Vilela para alunos de EJA, em seu relato sobre a percepção
de Patrimônio cultural na referida escola ela diz:
O aluno trás experiências do seu dia a dia para escola (...) por exemplo, senhor
Antonio e senhor Jarismar trouxeram todo conhecimento passado pelos pais sobre as
plantas do cerrado e esse conhecimento eles utilizaram para desenvolver um projeto
na escola, e ganharam até um prêmio8

A experiência familiar do aluno somada ao conhecimento escolar são elementos do


cotidiano que passaram a ser reconhecidos como “patrimônio vivo”, pela educadora, onde as
práticas, a recepção e manipulação do saber são transformadas.9
Tais experiências, segundo Meihy10, apresentam um conjunto de fontes orais,
reconhecida como história viva, que permite captar diferentes histórias, formulação de
consciência comunitária. Entre elas o gênero de História Oral Temática é uma metodologia

6
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 7 ed. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2008, pg. 202.
7
POLLAK, Michael. Estudos Históricos. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 3-15.
8
Relato da pesquisa sobre a Temática: Patrimônio cultural na escola, 2012.
9
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2004.
10
MEIHY, José Carlos Sebe; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo:
Contexto, 2010.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 278

que segue em entrevistas que esclarecem situações contraditórias, assim, os pontos específicos
da vida pessoal do narrador devem estar ligados a temática central desta pesquisa.
Segundo Cabral o Patrimônio é um espaço em construção, campo de combate, de
educação, pois para que se preserve é preciso conhecer. Desse modo um bem cultural amplia-
se para um bem social, com usos que delineiam significado ao patrimônio para o presente e
futuro.11
Através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), e posteriormente
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (2005) que almejavam valorizar a cultura regional
trouxeram algumas perspectivas voltadas para questões sobre patrimônio:
Importa registrar, no entanto, que a educação é uma prática sócio-cultural. Nesse
sentido é que se pode falar no caráter indissociável da educação e da cultura ou
ainda na inseparabilidade entre educação e patrimônio. Não há hipótese de se pensar
e de se praticar a educação fora do campo do patrimônio ou pelo menos de um
determinado entendimento de patrimônio. 12

De forma prática as questões patrimoniais devem promover além de uma visão crítica,
uma maior participação na realidade, adquirida como estratégia na transmissão dos valores
que permeiam os bens culturais. Sua eficiência concretiza-se no desenvolvimento de
formação e informação que reúne identidades plurais, reflexões sobre a História e ações de
preservação patrimonial.
O ensino nesse campo visa tratar os estudantes e a população como agentes
histórico-sociais e como produtores de cultura. Para isso valoriza os artesanatos
locais, os costumes tradicionais, as expressões de linguagem regional, a
gastronomia, as festas, os modos das diversas etnias viverem e se relacionarem com
o meio e com as outras culturas que deram origem à sociedade atual. 13

O seu exercício via percepção dentro das escolas em parceria com diversas esferas
institucionais trouxeram a perspectiva de reconhecimento e compartilhamento dos seus bens
culturais na e com a comunidade local, as quais fornecem sentido ao patrimônio cultural,
tornando-o visivelmente representativo, valorizado e consequentemente preservado.

11
CABRAL, Magaly. Memória, Patrimônio e Educação. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura.
Campinas, SP:UNICAMP, n° 13, 2004.
12
CHAGAS, Mário. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In: Revista Eletrônica
do Iphan. Dossiê Educação Patrimonial º 3 - Jan. / Fev. de 2006. Disponível em:
http://www.revista.iphan.gov.br/ma. php?id=145 . Acessado em: 26/01/2012.
13
PELEGRINI, Sandra C. A. Patrimônio Cultural: consciência e preservação. São Paulo: Brasiliense,
2009, pg. 114.

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Gusmão argumenta sobre a necessidade de falarmos da escola na escola, comumente as


disciplinas problematizam outros lugares e inserções sociais, discutem história do bairro, dos
marginalizados, dentre outros, no entanto:
sem refletir a historicidade de suas práticas, o sentido e o significado de seu trabalho
diário e de atos aparentemente banais, tais como escrever na lousa, fazer chamada,
ler, analisar(...) O quadro negro fixado na parede a transmitir lições comuns a toda a
sala generalizou-se há pouco mais de cem anos, em substituição às pedras
individuais de ardósia, para consolidar metodologias de ensino capazes de fazer com
que todos os alunos aprendam as mesmas
coisas a um só tempo;14

Segundo Fernandes a escola está composta pelo enquadramento material da ação


escolar e pelo tecido de relações interpessoais que sustentam a mesma ação, além do seu
formato e localização que delimitam comportamentos e valores.
Os rituais das escolas repercutem por vezes na esfera dos equipamentos. Desde logo
no vestuário de professores e alunos: fardas, bibes, batas brancas, ostentando, por
vezes, emblemas bordados, que reproduziam ou duplicavam insígnias e bandeiras,
ao lado de instrumentos musicais destinados a bandas ou orquestras, a grupos corais,
a equipas desportivas. O universo escolar pode representar todo um mundo numa
rede de documentos que descrevem toda uma rede paralela de significações. 15

A escola apresenta outra face, além do material, um mundo de pessoas, histórias de


vida, fotografias que evocam muitas narrativas. Felgueiras sublinha o significado da cultura
material na escola e a importância da sua preservação, para isso:
Na abordagem da materialidade das culturas escolares, partimos das noções de
recordação, memória e passado no que elas estruturam e limitam a visão que os
actores sempre têm da realidade vivida, desejada, justificada. Em simultâneo com a
identificação dos espólios das escolas procuramos resgatar recordações do passado,
quer através de histórias de vida, quer pela recolha de lembranças da infância. (...)
Nos trabalhos que temos desenvolvido, consideramos as memórias individuais na
sua interacção com as memórias histórica e colectiva. Valorizamos as informações
recolhidas e os significados que os actores Ihes atribuem, como parte de um
património imaterial da escola, indispensável à compreensão não só dos artefactos,
16
mas também da própria sociedade que os produziu.

14
GUSMÃO, Emery. Arquivos escolares, memória e cultura. UNESP – Patrimônio e memória, FCLAs –
CEDAP, V.1, n.1, 2005 pg. 64-65. Disponível em: <
http://www.cedap.assis.unesp.br/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v1.n1/Artigos/Emery%20Marq
ues%20Gusmao.pdf>. Acessado em 15 de maio de 2012.
15
FERNADES, Rogério. Cultura de escola: entre as coisas e as memórias. Pro-Posições. v. 16, n. I (46) -
jan./abr. 2005. Disponível em:<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/46-dossie-
fernandesr.pdf>.Acessado em 19 de junho 2012.
16
FELGUEIRAS, Margarida. Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na
conservação/comunicação da herança educativa. Pro-Posições. v. 16, n. I (46) - jan./abr. 2005. Disponível em:
<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/46-dossie-felgueirasml.pdf>. Acessado em 19 de junho de 2012.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 280

Para Felgueiras falar sobre patrimônio ou herança educativa remete a refletir sobre as
ressignificações, atribuídas pelas comunidades, na criação de laços afetivos no âmbito escolar
material e imaterial.
Na herança educativa incluímos, assim, tanto os edifícios, o mobiliário, os materiais
didácticos, os materiais dos alunos, os elementos decorativos e simbólicos presentes
nas escolas, quanto as práticas de ensino, as tácticas dos alunos, as brincadeiras e as
canções no recreio, as recordações do quotidiano escolar, que as memórias de
professores e alunos podem revelar. Da cantina ao gabinete médico, à actividade
administrativa, pretende-se ver a escola como lugar de interacções em que
professores, alunos, funcionários e famílias construíram e constroem um espaço
relacional (...).17

Tais aspectos nos levam a pensar a escola como um espaço simbolizado, mais que uma
peça do sistema, ela é viva, partilha de outras instituições, que regulam sua funcionalidade,
pesquisar seu patrimônio cultural implica em pensa-la na sua complexidade, na comunidade
que a envolve, relacionada a outras sociedades e aos sentidos que lhe são apontados, um bem
cultural, repleto de memórias.
Nesta pesquisa foram investigadas as percepções de Patrimônio Cultural escolar entre as
comunidades da E. E. João Ribeiro Vilela e da E. E. Getúlio D. Vargas através de dados
fornecidos nos questionários socioeconômico e cultural.
Podemos constatar por meio da coordenação das duas escolas que entre os anos de 2008
e 2011 foram trabalhados projetos pedagógicos que diretamente ou indiretamente buscaram o
reconhecimento das memórias, identidades e patrimônio em suas comunidades. A pesquisa
contou com relato de uma educadora (uma professora que atuou nas duas escolas), visando
dar sentido qualitativo a pesquisa e no intuito de somar esta entrevista aos questionários e
fotografias colhidos nos acervos escolares.
Esta pesquisa, em aberto, pretende ainda aprofundar debates teóricos e legislativos
sobre patrimônio cultural, além de inserir outros pontos da fonte oral temática.
Encontramos durante esse trabalho grupos diversificados no âmbito profissional, etário,
étnico, e econômico, os quais enriquecem e ampliam nosso campo de visão sobre o universo
escolar e patrimonial.
A escola como Patrimônio cultural auxilia na percepção dos simbolismos que por ela
transitam, dá visibilidade a referenciais históricos que perpassam por diferentes famílias,
comunidades que recriam identidades a partir de campos de conflitos sociais, compõem um
patrimônio cultural em evidencia, mas ainda em exploração.

17
IDEM, pg. 92.

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REFERENCIAS

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MEMÓRIA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA: UM ESTUDO SOBRE A COMUNIDADE


QUILOMBOLA MANOEL CIRÍACO DOS SANTOS, GUAÍRA, PR

Jéssica de Lima da Silva (UNIOESTE)

Essa pesquisa surgiu ainda durante a graduação, tendo sido objeto de Iniciação
Científica e Trabalho de Conclusão de Curso. Em decorrência da necessidade de
aprofundamento dessa discussão, ela também é objeto do atual curso de mestrado. O interesse
pela pesquisa veio da curiosidade pela temática étnica e pelo constante debate nos últimos
anos em torno dos quilombolas, bem como dos indígenas. Em 2007, ao responder a uma
chamada de matéria no jornal em que trabalhava na cidade de Guaíra/PR, tive o primeiro
contato com a família Ciríaco dos Santos, organizada como Comunidade Quilombola Manoel
Ciríaco dos Santos, que leva o nome de seu patriarca. Como o grupo se identifica sob a
nomenclatura de Comunidade Quilombola, também me utilizarei dela durante o exposto. Com
algum conhecimento prévio de discussões em torno da(s) cultura(s) negra(s) e da
problemática de sua homogeneização/unidade, tendo em vista que essa cultura não é una,
fiquei bastante interessada ao perceber o interesse da Comunidade em aprender capoeira ou
artesanato com fibra de bananeira. Afinal, o que levaria essas pessoas a se declararem
quilombolas, algo que não ocorria antes, e reivindicar um tratamento diferenciado do poder
público? Esse meu estranhamento motivou a pesquisa que pretendo expor. Para isso,
organizarei o texto de forma a abordar a trajetória da comunidade, a problemática do conceito
de quilombo, uma análise das políticas públicas, a preocupação teórico-metodológica do
trabalho, sempre dialogando com a análise de fontes.

A problemática básica dessa pesquisa é, através de fontes orais (mas também de


jornais, em que é possível perceber, através das falas orais ou escritas, a posição do grupo
não-quilombola na localidade de Maracaju dos Gaúchos), discutir questões referentes à
construção de identidades negras/quilombolas na comunidade quilombola Manoel Ciríaco dos
Santos, localizada no distrito de Maracaju dos Gaúchos, área rural de Guaíra, região Oeste do
Paraná. Propõe analisar como uma “nova realidade quilombola” tem gerado disputas neste

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espaço, já que desde o reconhecimento, o que era de início um estranhamento passou a


reelaborar identidades, especialmente pautadas pela ideia de “cultura negra”, relativa a um
passado escravo que precisa ser reparado. Mais do que uma condição quilombola, o grupo
passou a se assumir como negro, apesar do crescente conflito por terras na região, violento
inclusive, gerado por uma pesquisa do INCRA, com objetivo de titular a terra como
propriedade coletiva. As diferenças têm sido evidenciadas nesse contexto, uma vez que o
conflito também se constitui no campo das identidades, que se constroem e reconstroem
constantemente. E neste escopo, há diferenças dos dois lados, seja pela afirmação de uma
identidade negra merecedora de reparação, seja pela afirmação de uma identidade “agrícola”,
não-quilombola, responsável pelo sustento da cidade, e por sua vez merecedora de direitos
sobre a terra. De outro modo, também, o reconhecimento abriu caminho para políticas
públicas, que têm melhorado as condições de vida do grupo, marcadas pelo trabalho como
bóias-frias para produtores rurais da região.

Um dos primeiros aspectos que devem ser pensados nesse trabalho é discutir o
conceito de quilombo, ainda que de forma rápida, para situar de onde eu parto para considerá-
los quilombolas. A comunidade em questão difere da definição tradicional de quilombo,
pautada no “binômio fuga-resistência” (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002. p. 2.),
mas está inserida na atual conceituação de quilombolas, modificada com o intuito de garantir
o acesso às políticas públicas pelos quilombolas, cuja formação está relacionada aos mais
diferentes processos (posse de terra por fuga, ocupação, doação e mesmo compra, durante o
período escravista ou após seu final). Sendo assim, considero quilombolas os grupos que
possuem “identidade social e étnica por eles compartilhada” (SCHMITT, TURATTI,
CARVALHO, 2002. p. 4) e ainda considero a auto-definição, o que também é considerado
pelo Governo Federal, como podemos ler em seu documento sobre o Programa Brasil
Quilombola1 “quando se fala em identidade étnica, trata-se de um processo de auto-definição
bastante dinâmico e não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos, como
cor de pele, por exemplo” e ainda “A maneira pela qual os grupos sociais definem sua
identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos: de uma
ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos e

1
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/ Secretaria Especial para Políticas de Promoção de
Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: 2005.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 285

religiosos”2. Essa redefinição faz-se importante se refletimos sobre os processos bastante


diversos de constituição dos quilombos, que não eram compreendidos pelo conceito anterior.
Este conceito era pautado na ancestralidade da presença no território e excluía muitos
quilombos, já que a questão fundiária no Brasil foi marcada pela posse de terras por grandes
proprietários, o que obrigou grupos como indígenas e quilombolas a se deslocarem
espacialmente para prevenir ou fugir de confrontos violentos. Dessa forma, uma minoria dos
quilombos, por exemplo, está no mesmo local desde a época da escravidão, como o conceito
anterior previa.

A Comunidade Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos foi reconhecida como


quilombola em 2007, pela Fundação Palmares, depois de uma pesquisa realizada pelo Grupo
Clóvis Moura, durante o ano de 2006, órgão criado pelo governo do Estado do Paraná para
mapear comunidades quilombolas no Estado. Desde então, a comunidade está em contato
constante com outras comunidades quilombolas, o movimento negro e outros órgãos
responsáveis pelo processo de reconhecimento, demarcação territorial, etc, tendo incorporado
o “ser negro, quilombola”. Essa postura aparece em oposição ao que acontecia antes do
reconhecimento do Grupo Clóvis Moura e mesmo no primeiro momento após ele, em que um
dos membros da Comunidade afirma “a gente teve medu, tudu nóis, purquê num sabia u qui
era quilombola, nóis nunca tinha ouvidu falá nissu”3. Em outras entrevistas, é traçada toda
uma trajetória da família, com ênfase no sofrimento desde Minas Gerais, até fixar residência
em Guaíra, da discriminação que sofriam por serem negros e da necessidade de “ficar no seu
canto”, bem como a constante vinculação de sua trajetória a cidades históricas (“i na cidadi du
Serru, Minas Gerais... sô di uma cidadinha pertu chamadu Itambé... nu Serro... Serru é uma
cidadi histórica... uma cidadi histórica de Minas Gerais”4) e à África (“i minha vó falava qui
minha bisavó falava muito di... falava assim qui... é... im Angola, falava na Guiné, né...”5).

A Comunidade Quilombola está localizada no Maracaju dos Gaúchos, área rural de


Guaíra, onde também moram outros proprietários de terra, a maioria vinda de Santa Catarina
ou Rio Grande do Sul, por isso o nome da localidade. Antes do reconhecimento, os
quilombolas trabalhavam basicamente como bóias-frias nas terras dos outros moradores do

2
Id. Ibidem, p.9.
3
Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian Aguazo, em agosto
de 2007, Guaíra/PR.
4
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
5
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 286

Maracaju, tendo inclusive que arrendar parte de suas terras para sobreviver. A terra que eles
possuem era (e ainda é) pouca para os membros da família (hoje apenas 40 pessoas), que,
além disso, possuíam dívidas com bancos, que os impossibilitava de adquirir sementes,
adubos e os demais materiais necessários para ter uma produção própria. Assim, o
reconhecimento surge como forma de melhorar sua condição de vida, principalmente através
do incentivo à produção própria (a comunidade conta com uma horta e revende seus produtos
no município) e à educação, possibilidade que foi negada a muitos quilombolas, em razão da
necessidade de trabalhar para o próprio sustento.

Percebe-se um processo de construção/reconstrução de identidade étnica, pautada na


consciência de ser negro como algo que acarreta políticas públicas, que os diferencia dos não-
negros por conta de um passado escravista que deve ser reparado. Esse processo não deve ser
encarado como oportunismo, mas como única alternativa vislumbrada por essa família para
sair da condição em que eles se encontram há tantos anos, tendo que deixar sua própria terra
para trabalhar na terra de outras pessoas, por um pagamento que os possibilitava sobreviver.

É importante refletir sobre a questão da necessidade de construção identitária para esse


grupo. Seguindo a idéia exposta por SCHMITT, TURATTI e CARVALHO em seu texto,
utilizando a obra de Boaventura S. Santos, “quem é obrigado a reivindicar uma identidade
encontra-se necessariamente em posição de carência e submissão” (SCHMITT, TURATTI e
CARVALHO, 2002, p.5). As autoras discutem que em situações de desigualdade, como é o
caso dos grupos quilombolas, mas dos grupos “minoritários” (em direitos) em geral, esses
grupos ressaltam elementos culturais peculiares, além da relação de coletividade em seu
interior, construindo também uma relação com a terra, que não obedece à lógica do mercado
de terras, mas com o passado desse grupo, com sua trajetória de vida e de resistência (não
apenas ao escravismo, mas às exigências do mercado).

Memória e identidades são, portanto, conceitos-chave para refletir sobre essa


problemática. É através da memória que o grupo em questão ressignifica/relê seu passado,
estabelecendo um diálogo com inquietações do presente e com projetos para o futuro. A
memória constitui-se como um campo de conflitos, correlação de forças, em que há sempre
grupos disputando determinados espaços. No caso dessa pesquisa, isso fica evidente tanto na
postura assumida pelos quilombolas de procurar se legitimar como tal, a partir da
reivindicação para si de uma identidade negra, disputando um espaço físico, mas

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 287

especialmente político; como na postura dos demais proprietários de terras no Maracaju, que
ao verem a ameaça do “outro” (no momento em que o INCRA começa a pesquisa para
titulação da terra quilombola) reagem de forma violenta, numa tentativa de manter seu espaço,
sua posição de dominação. Como a marca da família Círiaco sempre foi o silêncio, o “ficar no
seu canto”, esse “aparecer” gera incômodo e incentiva, dos dois lados, uma resposta em forma
de afirmação identitária, em que um grupo se opõe ao outro para fazer uma imagem de si
mesmo.

Com base em um artigo publicado no Jornal Ilha Grande, de 14 de novembro de 2009,


escrito por L., (membro de uma família que possui terras próximas à comunidade quilombola
e que foi notificada pela INCRA sobre o estudo na área), a comunidade quilombola enviou
um pedido ao INCRA em 03 de dezembro de 2007. O documento com o pedido feito ao Incra
é reproduzido no texto de L.. Vejamos um trecho dele, em que podemos visualizar o que pede
a Comunidade:

(...)solicitar a demarcação da área denominada Comunidade Negra Manoel


Ciríaco dos Santos, localizada no município de Guaíra no Estado do Paraná
e em seguida a expedição do título de reconhecimento de domínio das terras
que ocupamos, como nosso território de modo coletivo nos termos do art.
68. 6

Todo o documento segue nesse tom, de reconhecer a propriedade em que eles estão
como terra quilombola, de uso coletivo. Apesar disso, o autor do artigo acusa o INCRA de
querer desapropriar os pequenos proprietários das redondezas, em favor dos quilombolas,
pedindo que o pedido enviado ao INCRA seja refeito para que “as terras sejam demarcadas
segundo os títulos que possuem por ser mais que o suficiente a desenvolver as atividades que
desenvolvem” e ainda diz aos quilombolas que “se restrinjam tão e somente as terras
adquiridas pelo Sr. Manoel”. O autor usa esse tom acusatório, muito embora não haja menção
alguma a aumentar as terras quilombolas, mas apenas a demarcar e titular as terras já
ocupadas, com o objetivo de tornar as terras coletivas.

O autor do artigo ainda cita o arrendamento, dizendo que se ele acontece é porque,
certamente, os quilombolas não precisam das terras, insinuando que o interesse é capitalizar a
terra aos “Brancos”. Nas palavras do articulista, “a falta de terra para o trabalho não serve

6
GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos. Jornal Ilha
Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.

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como tese para os Requerentes já que possuem aproximadamente onze alqueires e arrendam
aproximadamente seis alqueires aos vizinhos”7. A díspar de uma análise mais aprofundada
que essa fonte merece, o que podemos perceber nesse momento é uma caracterização do
“outro”, “eles”, em oposição ao que é o “eu” ou o “nós”.

Nessa perspectiva, Pollack, em Memória e identidade social, de 1992, discute


exatamente essa questão da alteridade, do ser em relação ao outro, no trecho seguinte:

Ninguém pode construir uma auto-imagem isenta de mudança, de


negociação, de transformação em função dos outros. A construção de
identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em
referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de
credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com outros.

Assim, compreendo que discutir a construção da identidade quilombola não é apenas


discutir como os quilombolas se vêem (ou querem ser vistos), mas como eles são vistos pelo
outro (não-quilombola) e como eles vêem o outro. As identidades são mutáveis e obedecem a
determinados objetivos. A identidade é uma disputa, como acontece no caso estudado, em que
um grupo (re)constrói sua identidade, a partir da inserção em novos grupos e uma nova
perspectiva de futuro, e reivindica através dela uma série de benefícios, um tratamento
diferenciado.

A memória pode ser entendida como individual e coletiva, mas, em ambos os casos,
ela é socialmente construída. Mesmo as memórias individuais são construídas através das
relações que construímos em nossa vivência; ainda que voltemos a um mesmo lugar depois de
anos e recordemos dele, essas lembranças de algo passado serão mediadas pelas experiências
vividas no presente, os diferentes lugares que conhecemos ao longo da vida, por exemplo.
Assim como as memórias individuais não são iguais, mesmo que os indivíduos pertençam aos
mesmos grupos, as memórias coletivas não significam em absoluto que haja unidade dentro
do grupo. As memórias de grupos políticos ou organizados de alguma forma pretendem essa
unidade e utilizam um discurso que, por vezes, pode dar a impressão de uma unidade, apesar
disso, os diferentes sujeitos desses grupos possuem diferentes conceitos sobre si e os outros,
ainda que suas memórias sofram influência dos grupos aos quais pertençam. (POLLAK,
1992, p. 2.)

7
GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos. Jornal Ilha
Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.

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Com a pesquisa, não objetivo avalizar o grupo estudado como quilombolas (ou não), o
foco é lidar com a construção de uma identidade étnica negra e seus sentidos/intenções. Para
entender esse processo, também podemos recorrer a Stuart Hall, em seu ensaio intitulado
Quem precisa de identidade?. Para ele, as identidades não são únicas, homogêneas (nem
mesmo dentro de um grupo que se pretende homogêneo), mas fragmentadas em inúmeras
outras identidades, construídas através da narrativa, das “práticas e posições”(HALL, 2000,
p.108), estando em constante processo de mudança e obedecendo à necessidade de se integrar
e se posicionar diante de outros grupos, modificando as relações de poder existentes,
tornando-se “dominante, subalterno, igual, diferente” (PRAXEDES, 2004). As narrativas do
grupo se pretendem homogêneas, na rememoração do passado negro, escravo, que merece
reparação, ainda assim, não podemos pensar esse discurso como real representante de uma
unidade identitária. Além disso, Hall ainda nos aponta, em seu A identidade cultural na pós-
modernidade, que o sujeito pós-moderno vive um processo de fragmentação de identidade,
resultado de uma contemporaneidade marcada por descentramentos. A partir disso, os sujeitos
se constituem não de uma identidade, mas de várias identidades, construídas a partir de sua
vivência (HALL, 2000). Os quilombolas de que esse estudo trata tem o objetivo definido de
se reivindicar enquanto tal, trazendo o passado de sua família como meio de legitimar suas
lutas por terra, dentre outros direitos, formando uma narrativa que se pretende homogênea,
ainda assim, devemos ficar atentos para não essencializar a identidade esse grupo, mas tratar
dos sentidos dessa tentativa de homogeneização.

Quanto ao uso de relatos orais, parto da concepção de que eles são o meio através do
qual podemos “acessar” as memórias de grupos, como a comunidade quilombola, em que o
processo da fala constitui a principal fonte na construção de identidades. Dessa forma, não
trato essas fontes como a verdade, registro do passado ou fatos, mas como fonte para
compreender/analisar o processo no qual a comunidade está inserida e através do qual
reconstrói uma imagem de si e dos outros. Para Portelli, a fonte oral “conta menos sobre
eventos que sobre significados” (PORTELLI, 1997, 31). Assim, a preocupação não é com a
afirmação ou negação da comunidade como quilombola, por exemplo, mas pensar os sentidos
que os membros dessa comunidade creditam ao se considerarem quilombolas, os significados
da construção de uma trajetória de vida marcada pela negritude.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 290

Com a Constituição de 1988 e a constante pressão (inclusive pelo centenário da


abolição) por pensar a questão dos quilombolas, em especial a questão fundiária, o Artigo 68
inicia um debate mais acirrado no âmbito jurídico no que concerne aos direitos dos
remanescentes de quilombos. Nele, podemos ler “Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Percebemos a fragilidade (ou ausência) de
conceituação dos remanescentes de quilombos, que não compreende a complexidade de
situações desses grupos e, portanto, gera mais confusão do que solução para as questões
latentes, já que as ações judiciais decorrentes dessa (in)definição acabaram por não solucionar
os conflitos fundiários, por não prever a desapropriação de terras, por exemplo.

Depois de um longo processo entre definição desses grupos remanescentes (com o


propósito de incluir as mais variadas gêneses deles), quais seriam os órgãos responsáveis por
fazer as titulações, etc, em 2003, através do Decreto 4.887 adotou-se uma nova perspectiva
para as titulações. Essa perspectiva se dá pela reconceituação de quilombo, considerando a
auto-identificação do grupo, além de possibilitar a desapropriação de terras quando
necessário, atribuindo ao INCRA a responsabilidade pelas titulações. Vigora também a
Instrução Normativa 57 de 2009 (antiga Instrução Normativa 49 de 28 de setembro de 2008),
do INCRA, que regulamenta a identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,
desintrusão, titulação e registro de terras ocupadas por quilombolas.
O título de terra expedido pelo INCRA, após minucioso estudo, que leva em consideração
análises “cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, sócio-econômicas,
históricas, etnográficas e antropológicas”8 (estudo criticado por membros do movimento
negro por ser muito burocrático), é um título coletivo e pró-indiviso, o que torna as terras
usufruto de todos os membros da comunidade quilombola, bem como possui cláusulas de
inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, tornando essa terra quilombola à
margem do mercado de terras.

8
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E
REFORMA AGRÁRIA. Instrução Normativa n°57, de 20 de outubro de 2009. Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de
2003.Disponível em:
http://www.mds.gov.br/sobreoministerio/legislacao/segurancaalimentar/instrucoesnormativas/PCT%20Intrucao
%20Normativa%20no%2057-%20de%2020%20de%20outubro%20de%202009.pdf. Acesso em: 1 de setembro
de 2010.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 291

A questão da regularização fundiária é imprescindível no caso da comunidade Manoel


Ciríaco, haja vista que alguns membros da família já tiveram que vender suas terras em
períodos anteriores ao processo de reconhecimento, devido a dificuldades financeiras. Assim,
o título coletivo, juntamente com outras políticas de incentivo, se constitui como uma
segurança de que essa terra não saíra das mãos da família. Em entrevistas, dois dos membros
da família me contam sobre a importância da terra para eles, demonstrando inclusive, uma
lógica bastante diversa da lógica das grandes propriedades (que circundam a comunidade
quilombola), em que terra é mercadoria. Na fala de um deles, ao tratar da venda da terra por
outros irmãos, fica claro que:

então a genti já sofreu muito aqui...então é por isso que os irmão sofreram i
desistiram i foram embora, não agüentaram tanto sofrimento aqui...nóis
fiquemo porque nóis agarremo esse pedacinho de terra que o pai sofreu,
sofreu i dexo pra genti, intão a genti não qué vendê...9

outro entrevistado completa:

hoje nóis num vende mais purquê nóis... a dificuldade qui passêmo, num
vendêmo... hoje num vende mais...eh...hoje já nem presta pra vendê...pra
vendê...si a pessoa tendo uma mandioca pra fazê a farinha pra fazê um
tutu...ah...a pesso véve sussegado né...véve sussegado...10

A terra aparece como resultado de muito sofrimento por parte do pai dos entrevistados,
por isso lhe é atribuída um valor ainda mais forte de pertencimento. A terra também é vista
como meio de sobrevivência, ainda que dela só seja possível retirar a mandioca para a farinha,
sem luxos, apenas o necessário para sobreviver. Outra entrevista ainda explicita que a luta
pela terra é uma das maiores reivindicações, deixando claro que a questão de tornar a terra
produtiva é o mais importante, juntamente com o apoio dos governos municipal e estadual.

A gente tem saúde, tem força, tem inteligência... achu qui si a gente tivesse
apoio... a gente não tem recurso financeiro... a terra que a gente tem é poca,
a gente tem dívida com o Banco do Brasil... purque se a gente tivesse hoje
acesso ao banco, a gente pudia montar alguma coisa pra gente tá
trabalhano... por isso qui a gente ta precisano di apoio...11

9
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
10
Depoimento oral de João, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
11
Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian Aguazo, em
agosto de 2007, Guaíra/PR.

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Fica mais claro nessa fala, até por se tratar do representante escolhido pela
comunidade para representá-la, uma fala mais politizada, em que fica claro o projeto de futuro
do grupo, marcado pela necessidade de apoio para trabalhar e gerar renda. Em outra
entrevista, é possível entender através de que processo esse apoio se faria possível. Ao tratar
sobre o reconhecimento da comunidade como quilombola e depois de deixar claro que eles
tem o certificado de reconhecimento, um entrevistado me fala sobre os benefícios que eles
teriam “benefícios todos...”, “nóis tem tudo... todos os direitu duma pessoa que véve bem...
imbora nóis já tem us papel tudu bem feitinhu... qui véve bem... intão nóis tem o direito... até
mais... té mais... até mais nóis já tem”. Esse papel seria o Certificado da Fundação Palmares e
também a pesquisa que o precedeu, realizada pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura e que
resultou em uma espécie de livro, em que estão compiladas todas as informações recolhidas à
época, que envolvem o “processo de produção autônomo”, “capacidade de organização
político-administrativa”, “critério ecológico de preservação dos recursos”, “auto-definição dos
agentes e da coletividade”, “grau de conflito e antagonismo”, “formas de uso comum;
combinação de domínios privados (familiares, domésticos) e públicos”12, critérios do Grupo
Clóvis Moura para o reconhecimento. Esses documentos são muito importantes para a
comunidade, por constituírem um meio palpável e uma fala especializada e, por isso,
autorizada, que os reconhece como quilombolas e garante o acesso às políticas públicas.

Além da regularização fundiária, a presente pesquisa analisa a inclusão do grupo,


através do reconhecimento, nas demais políticas públicas advindas do processo de incentivo
às comunidades remanescentes, especialmente no que tange à produção de renda, que aparece
sempre no centro das preocupações da Comunidade em questão. Para isso, utilizo os
documentos governamentais no que tange à questão, como o documento do Programa Brasil
Quilombola, iniciado em 2005, sob a coordenação da Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e em uma ação conjunta entre Ministério do
Desenvolvimento Agrário/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e o Ministério da Cultura/Fundação Palmares.
O Programa visa sistematizar as políticas públicas (a nível federal, mas contando com a

12
GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Resumo de Projeto de levantamento histórico educacional,
sócio-econômico e cultural elaborado em novembro de 2004. Disponível em:
http://quilombosnoparana.spaceblog.com.br/321649/RESUMO-DO-PROJETO-DE-LEVANTAMENTO-
HISTORICO-EDUCACIONAL-SOCIO-ECONOMICO-E-CULTURAL-NOVEMBRO-2004/. Acesso em: julho
de 2010.

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participação dos governos estaduais e municipais) para as comunidades quilombolas e está


centrado em quatro eixos centrais: regularização fundiária, através da emissão do título de
posse e conseqüente garantia de reprodução social, cultural e física; infra-estrutura e serviços,
a fim de atender as demandas das comunidades; desenvolvimento econômico e social,
implantando/estimulando um modelo que preserve as características tradicionais do grupo e
que seja sustentável ambiental, social, econômica, política e culturalmente; controle e
participação social, através de representantes locais, que participem ativamente da construção
de propostas junto aos governos e a fiscalização de sua realização.

O documento que inaugura essa perspectiva ressalta aspectos como a geração de


renda, seja pelo incentivo da produção agrícola, seja através de cursos profissionalizantes,
produção de “artesanato quilombola” (como o caso de artesanato de fibra de bananeira), assim
como acesso amplo à saúde, educação, tecnologia, etc. Na comunidade Manoel Círiaco, além
da questão do artesanato, também podemos perceber o incentivo à produção, com a facilitação
da aquisição dos materiais necessários à produção agrícola (sementes, fertilizantes, etc) e
ainda a introdução de um telecentro comunitário, projeto a nível municipal, que consiste em
uma “sala tecnológica” com computadores, acesso a internet, etc, e ainda a Arca das Letras,
programa federal, com um acervo significativo de obras literárias, na perspectiva de permitir
acesso a uma “cultura letrada”.

Na questão específica da produção agrícola, é possível perceber a importância também


de algumas leis reguladoras desse problema. A PNATER (Política Nacional de Assistência
Técnica e Extensão Rural) foi instituída pela lei 12.188/10, de 11 de janeiro de 2010 e prevê
recursos financeiros, com prioridade à Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER), para os
beneficiários do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar e do Programa
de Reforma Agrária. A ATER é um serviço de educação não-formal realizado no meio rural,
formado por “processos de gestão, produção, beneficiamento e comercialização das atividades
e dos serviços agropecuários e não agropecuários”13, o que inclui atividades florestais,
artesanais e extrativistas.

E ainda a Lei 12.188/10, que prevê destinação de recursos e serviços de assistência


técnica e extensão rural aos assentados da Reforma Agrária, aos remanescentes de quilombo,

13
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
para agricultores familiares e assentados no Brasil. Brasília: Convênio de Cooperação Técnica MDA/FAO, 2003.

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indígenas e demais povos tradicionais com produção familiar. A perspectiva é a de “respeito à


pluralidade e às diversidades sociais, econômicas, étnicas, culturais e ambientais do país”,
incluindo “enfoques de gênero, de geração, de raça e de etnia nas orientações de projetos e
programas” (BRASIL, 2004). Dentre os objetivos dela estão o apoio ao associativismo e
corporativismo e o aumento de renda dos grupos beneficiários e agregação de valor a sua
produção.

Levando em conta esse contexto a nível nacional e as entrevistas realizadas na


comunidade, que expressam conhecimento de muitas dessas discussões e da legislação,
parece-me pertinente pensar a relação entre apoio governamental e o assumir-se como
quilombola. Uma vez que o apoio governamental aparece como a única solução (ou ao menos
a mais organizada) para que esse grupo se torne independente financeiramente, deixe de
trabalhar para outros proprietários rurais e passe a investir nas terras conquistadas com muito
sofrimento pelo senhor Manoel Ciríaco, patriarca da família, tal como eles me relatam, que
veio para Guaíra na tentativa de deixar de trabalhar “para os outros”, de poder ter um pedaço
de terra próprio e tirar dele o sustento.

BIBLIOGRAFIA

HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. IN: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade
e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5,
n. 10, 1992, p. 2.

PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista Projeto História, São
Paulo, fevereiro/2007.

PRAXEDES, Rosângela Rosa. Pensando raça e cor com Stuart Hall: algumas reflexões a
partir do significado de negro. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, ano 3, n. 36, maio de
2004.

SCHMITT, Alessandra, TURATTI, Maria Cecília Manzoli e CARVALHO, Maria Celina


Pereira de. A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições
teóricas. Revista Ambiente e Sociedade, Campinas, nº 10, jan/jun 2002. p. 2. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/asoc/n10/16889.pdf>. Acesso em: 4 de janeiro de 2009.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 295

FONTES

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/ Secretaria Especial para Políticas de


Promoção de Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: 2005.

BRASIL. Artigos 68. Constituição de 1988. Disponível em:


http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf061a069.htm. Acesso em: 1° de setembro de
2010.

BRASIL. Artigos 215 e 216. Constituição de 1988. Disponível em:


http://www.dji.com.br/constituicao_federal/cf215a216.htm. Acesso em: 1° de setembro de
2010.

BRASIL. Decreto N.° 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para


identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 01 de setembro de
2010.

BRASIL. Lei 12.188/10, de 11 de janeiro de 2010. Institui a Política Nacional de Assistência


Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária – PNATER e o
Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural na Agricultura Familiar e na
Reforma Agrária – PRONATER, altera a Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, e dá outras
providências. Disponível em: http://nossodireito.wordpress.com/2010/02/21/lei-12-18810-
pnater-programa-nacional-de-assistencia-tecnica-e-extensao-rural-na-agricultura-familiar-e-
na-reforma-agraria-lei-8-66693-foi-modificada/. Acesso em: 01 de setembro de 2010.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. INSTITUTO NACIONAL DE


COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA. Instrução Normativa n°57, de 20 de outubro de
2009. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação, desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas por remanescentes das
comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de
2003. Disponível em:
http://www.mds.gov.br/sobreoministerio/legislacao/segurancaalimentar/instrucoesnormativas/
PCT%20Intrucao%20Normativa%20no%2057-
%20de%2020%20de%20outubro%20de%202009.pdf. Acesso em: 1 de setembro de 2010.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Política Nacional de Assistência Técnica e


Extensão Rural para agricultores familiares e assentados no Brasil. Brasília: Convênio de
Cooperação Técnica MDA/FAO, 2003.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/ Secretaria Especial para Políticas de


Promoção de Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: 2005.

Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian
Aguazo, em agosto de 2007, Guaíra/PR.

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Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em
Guaíra/PR.

Depoimento oral de João, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em


Guaíra/PR.

GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Resumo de Projeto de levantamento histórico


educacional, sócio-econômico e cultural elaborado em novembro de 2004. Disponível em:
http://quilombosnoparana.spaceblog.com.br/321649/RESUMO-DO-PROJETO-DE-
LEVANTAMENTO-HISTORICO-EDUCACIONAL-SOCIO-ECONOMICO-E-
CULTURAL-NOVEMBRO-2004/. Acesso em: julho de 2010.

GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos.
Jornal Ilha Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.

PARANÁ. Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005/2008. Curitiba, 2008.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 297

PROBLEMATIZANDO IDENTIDADES E HISTÓRIAS: DESCENDENTES NIPÔNICOS


EM ASSIS CHATEAUBRIAND – PR.

Proponente: Kristian Miguel Elger


Orientador: Prof. Dr. Marcos Stein
(Programa de pós-graduação Stricto Sensu em História. História poder e práticas sociais da
UNIOESTE.)

PALAVRAS-CHAVE: Imigração, Nipônicos, Assis Chateaubriand.

MARECHAL CÂNDIDO RONDON, 2012

O objetivo deste trabalho é problematizar a construção identitária da comunidade


nipo-brasileira em Assis Chateaubriand. Para tanto parto do recorte temporal constituído pelo
intervalo cronológico entre 1964, data da fundação da ACEAC1, até os dias atuais. Utilizarei
duas possibilidades principais: O diálogo com as memórias dos migrantes, a partir da história
oral, e a visão de grupos de citadinos a respeito desse grupo social, expressa no jornal O
Regional, sediado nesta cidade.
A cidade referente à pesquisa tem um histórico de migração de diferentes grupos, que
se distinguem culturalmente (o grupo de descendentes de imigrantes japoneses talvez seja um
exemplo eloquente). Sobretudo, existe uma forte diferenciação social entre os moradores,
especialmente quando se considera determinadas áreas ou bairros da municipalidade, onde
residem pessoas com renda sensivelmente menor, bairros estes considerados pelos moradores
da cidade (e muitas vezes do próprio lugar em questão) “vila” e “periferia”. Um problema
contemporâneo compartilhado por várias cidades. É possível até mesmo falar em um conflito
de valores, promovido pela dicotomia entre as informações que chegam até as casas pelas
diversas mídias, com um alcance quase universal, e as crenças e costumes próprios de

1
Associação cultural e esportiva Assis Chateaubriand

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pequenas aglomerações urbanas. Podemos então pensar o espaço citadinos não enquanto um
conceito unicamente geográfico, como diz Roncayolo:
Por um lado, a cidade não pode ser entendida unicamente no interior dos
seus limites: ela está em relação mais ou menos estreita com o espaço que a
circunda, com outras cidades e, eventualmente, com outros espaços mais
distantes, e apresenta-se, pois, a níveis diferentes, como o centro de um
controle territorial. Assim se desenvolvem as noções de “rede urbana” e de
“estrutura urbana”. Por outro lado, a cidade não pode reduzir-se nem a um
conjunto de objetos urbanos nem a uma combinação de funções: agrupa uma
população caracterizada por uma certa composição demográfica, étnica, ou
social; é uma forma de comunidade (em certos casos, de coexistência de
comunidades) ou de coletividade; é, por principio, essencialmente política.2
Como tal a cidade é um espaço historicamente constituído, de fato ela está
intrinsecamente ligada à concepção tradicionalista de civilização que o ocidente tem. A sua
definição como um possível local de coexistência de comunidades, em especifico me parece
interessante, pois permite pensar em um provável arranjo social, e talvez político, ou uma
determinada ‘morfologia’ do espaço urbano, segundo a definição do próprio Roncayolo3. Em
outras palavras a cidade, enquanto resultado da sociedade ‘urbanizante’ teria a capacidade de
influir nos seus habitantes cristalizando “certos hábitos e interesses4” ao mesmo tempo em
que herdaria as marcas da vivência urbana de seus habitantes. Penso que a existência de
diferentes grupos, sejam eles fruto da diferenciação por critério social, demográfico ou étnico,
imprime no espaço diferentes formas de arquitetura.

Nesta perspectiva, pretendo problematizar relacionalmente a comunidade com a


existência, e desenvolvimento da cidade em seus diversos níveis. Algumas possibilidades
despontam neste caminho, uma delas é a análise de como os integrantes da população nipo-
brasileira aparecem nos documentos oficiais referentes à municipalidade, tais como censos
demográficos e outros documentos judiciais e processos variados, entre estas opções,
trabalharei com uma forma extra-oficial de registro, o arquivo de um jornal local. A cidade
tomada como uma organização não apenas geográfica apresenta possibilidades de relação
cidade-comunidade que podem ser investigadas.

As ondas imigratórias podem ser vistas como um dos efeitos da globalização, Graças a
ela as identidades nacionais sofreram uma interposição, tal fenômeno propiciado pela

2
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda, 1986. 396-487.
3
Idem, Ibidem. P. 432
4
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda, 1986. 396-487. P.
433

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experiência da emigração, tende a causar mudanças na forma como os indivíduos vivem as


suas identidades, especialmente as ligadas à nacionalidade. O conceito de fragmentação da
noção de identidade é útil, pois ele é concernente à situação das populações que adotam uma
nova nacionalidade, ou resistem em fazê-lo. Como tal pretendo usá-lo na análise das
vivências do grupo.

O grupo estudado constitui-se basicamente de Homens e Mulheres que participam de


uma agremiação local de nipo-brasileiros, a A.C.E.N.B.A.C5. Em minha visão a referida
agremiação tem um intuito positivamente promocional. Quando uso a palavra promocional,
refiro-me a particularidade da associação descrita pela sigla que nos dias de hoje a descreve:
Nipo-brasileira. A instituição foi concebida não só como um espaço onde seus integrantes
podem conviver uns com os outros, e eventualmente trocar experiências, mas também como
promotora de festivais, ou Matsuris.

A comemoração tem especial importância, pois muitas vezes a mesma serve como um
elo dos sujeitos com a instância maior: O grupo. Neste sentido, as comemorações herdadas da
religião e cultura japonesa, se mostram como um instrumento que remete os sujeitos a
lembrança de seu passado comum.

No quadro da combinação complexa entre história memorizada,


reencontrada e inventada, é uma memória supostamente compartilhada que é
selecionada, evocada e invocada e proposta à celebração em um projeto
integrador que busca forjar uma unidade: aquela imaginada do
acontecimento comemorado e do grupo que o comemora.6
No caso do seguinte estudo, o acontecimento, na sua forma estritamente
compreendida, não existe. Porém se analisarmos as comemorações como se referindo
indiretamente ao fato de que os integrantes do grupo são descendentes de imigrantes, sendo
estes de uma cultura alienígena, então concluiremos que o fato celebrado não é só o indicado
nas festividades, e sim a diáspora. Assim as comemorações serviriam para relembrar aos
integrantes o seu pertencimento comum a um fato passado, não o que é diretamente
comemorado, mas sim a sua identidade diásporica.

As associações com fins de promoção cultural não são algo novo, quando se trata da
população de imigrantes e descendentes japoneses no Brasil. Desde o início da imigração no

5
Associação Cultural e Esportiva nipo-brasileira de Assis Chateaubriand. Sigla pela qual ficou conhecida a
A.C.E.A.C após a Década de 1990.
6
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo : Ed.Contexto, 2001, P.105-180.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 300

país, os nipônicos assumiram uma postura que contribuiu para a fundação de muitas
associações culturais.

Tal Postura pode ser relacionada em parte à situação de estrangeiros dos recém-
chegados. Como dependentes dos laços de colaboração que as associações davam a seus
membros na sociedade brasileira, era do interesse dos nipônicos fazerem parte de um circulo
social que ajudasse a promover sua progressão econômica e profissional no novo país.

Também podemos relacionar o fato ao grande nacionalismo japonês, especialmente


entre as duas guerras mundiais, durante o período o governo japonês tentou inculcar em sua
população a espírito de fidelidade absoluta ao imperador, ao mesmo tempo em que os ideais
de glorificação da guerra apareciam na mídia e entre a intelectualidade. Uma vez em solo
estrangeiro, os nipônicos teriam buscado uma forma de continuarem ideologicamente ligados
ao que então era a “nação” japonesa.7

A fundação de associações culturais pode ser explicada, então, a partir destas duas
considerações. O grupo estudado pode ser entendido como uma continuação de experiências
que os migrantes Nikkeis tiveram, quando saídos de suas naturalidades em outras regiões do
Brasil, e então chegados à cidade. Tal fato pode explicar porque as associações culturais
sobreviveram após 1945, e depois da década de 1980, quando a imigração japonesa no Brasil
a muito já não era massiva, e quando se começou a verificar o fenômeno decasségui.

Porém a própria definição de identidade, enquanto pertencimento a um grupo está


sendo posta em causa. A idéia de comunidade parece não fazer mais parte do mundo
contemporâneo.
Há um preço a pagar pelo privilegio de “viver em comunidade”- ele é
pequeno e até invisível só enquanto a comunidade for um sonho. O preço é
pago em forma de liberdade, também chamada “autonomia”, “direito a auto-
afirmação” e “à identidade”. Qualquer que seja a escolha ganha-se alguma
coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa não ter proteção;
alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em breve significar perder a
liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores preciosos e desejados
que podem ser mal ou bem equilibrados, mas nunca ajustados e sem atrito.
De qualquer modo, nenhuma receita foi inventada até hoje para esse ajuste.
O problema é que a receita a partir da qual as “comunidades realmente

7
KIMURA, Rosangela. Políticas restritivas aos Japoneses no estado do Paraná 1930-1950: (De cores proibidas
ao perigo amarelo). Maringá, 2006. P.146, Dissertação. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá, UEM.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 301

existentes” foram feitas torna a contradição entre segurança e liberdade mais


visível e mais difícil de consertar.8

Vale destacar sobre o conceito de comunidade, que ele, assim como outros (classe, por
exemplo) é dificilmente definível como algo palpável e fechado. Aparentemente o mundo
atual não é o palco ideal para a atuação da comunidade, como o próprio Bauman assinala 9. É
mais concernente, aparentemente, ao nosso tempo a noção de insegurança perante a mudança
constante, e a fluidez dos relacionamentos, do que o lugar paradisíaco onde é possível
encontrar apoio mútuo.

Os imigrantes encontram-se frente a uma experiência muitas vezes confusa e algo


assustadora: a convivência com a diferença. Esta diferença no caso é explicitamente de caráter
nacional. Para lidar com o encontro face à diferença, os sujeitos encontram formas de
comportamento que podem ir desde o recuo a uma forma de purismo identitário, que na
maioria das vezes é uma construção recente; até a aproximação, ou distorção, dos valores
culturais dos indivíduos com o objetivo de deixá-los inteligíveis.

Tais tendências foram mapeadas por Stuart Hall, e segundo os apontamentos em sua
obra, esses comportamentos são classificados como tradição, para o primeiro caso, e tradução
para o segundo.

Algumas identidades gravitam em torno do que Robins chama de


‘tradição’,tentando recuperar sua pureza anterior e redescobrir as unidades e
certezas que são sentidas como sendo perdidas.Outras aceitam que as
identidades estão sujeitas ao plano da historia,da política,da representação e
da diferença e, assim é improvável que elas sejam outras vez unitárias ou
“puras”; e essas conseqüentemente,gravitam ao redor daquilo que
Robins(seguindo Homi Bhaba) chama de “tradução”.10
Dentro destas duas concepções, podemos pensar a população nipônica e as suas
formas de interlocução com a sociedade mais vasta. Nos casos a seguir, podemos relacionar
duas formas culturais que se delineiam na pesquisa como tradução e tradição.

Uma delas é a referida associação nipo-brasileria local, como já abordado antes, a


agremiação citada visaria solidificar os laços entre os membros, e assim formar uma

8
BAUMAN, Zygmunt. Comunidades: a busca por segurança no mundo atual. 1° ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. P. 10.
9
Idem, Ibidem P. 18
10
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade,. 10. ed. Rio de Janeiro: dp&a, 2005. P. 86

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identidade. Esta identidade além de ser reconhecida localmente também teria um valor
simbólico fora da região. Podemos afirmar que a associação cumpriria assim o papel de
outorgar ao individuo uma forma característica do mesmo relacionar-se com a sociedade e as
instituições.

Mas, além disso, a mesma configurar-se-ia como um meio de preservar uma cultura
que pode hoje ser esquecida, resgatando-a do oblívio. Assim a mesma poderia encaixar-se na
definição apontada como uma forma de tradição. Como tal ela constituir-se-ia de um retorno a
uma forma de heterodoxia cultural.

Outra forma de caracterização cultural é a tradução. No Brasil, e especificamente na


região onde se situa a pesquisa, a melhor forma de exemplificar a tradução, é com o relato da
vivência dos religiosos da Sukyo Mahikari. Denominação religiosa fundada em 1959, por
Yoshikazu Okada, um ex-militar e industrial Japonês, nos últimos 50 anos, a Sukyo Mahikari
vem ganhando muitos adeptos pelo globo. Apesar disso ela pode ser ainda vista como uma
religião essencialmente japonesa, as orações são feitas nessa língua. O que não impede a
participação massiva de pessoas que não tiveram qualquer contato com essa cultura antes.

Os descendentes de imigrantes japoneses no país tiveram um importante papel na


introdução da religião em terras brasileiras. Porém, no espaço citadino onde a pesquisa foi
realizada, os Nikkeis não compõem (nem de longe) a maioria dos adeptos. Parte do sucesso
da Sukyo Mahikari reside em fazer-se universal, adaptando-se as diferentes realidades em que
estacionava.

Por fim, desejo ressaltar o caráter provisório das considerações aqui feitas.
Considerando-se que os resultados da pesquisa são apenas parciais, os temas abordados aqui
fazem parte principalmente da discussão teórica e de como essa se aplica na realidade
pesquisada.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 303

BIBLIOGRAFIA

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade,. 10. ed. Rio de Janeiro: dp&a, 2005

BAUMAN, Zygmunt. Comunidades: a busca por segurança no mundo atual. 1° ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003

KIMURA, Rosangela. Políticas restritivas aos Japoneses no estado do Paraná 1930-1950: (De
cores proibidas ao perigo amarelo). Maringá, 2006. Dissertação. Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá, UEM

RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda,
1986. 396-487

CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo : Ed.Contexto, 2001, P.105-180.

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O JORNAL FOLHA DO OESTE: IMPRENSA, HISTÓRIA E IDENTIDADES NA REGIÃO


CENTRO-SUL DO ESTADO DO PARANÁ.

Mauricio de Fraga Alves Maria


(Mestre em História pela UNESP/Assis, Professor da Faculdade Unilagos, Mangueirinha, PR)

PALAVRAS-CHAVE: Folha do Oeste; produção jornalística; identidades.

Os jornais, desde o final do século XIX, foram um dos principais canais de divulgação
da vida cotidiana Guarapuavana. Sobrevivendo aos momentos de crise enfrentados durante as
décadas de 1930 e 1940, e à mudança das elites no poder, os jornais tornaram-se parte do
cotidiano da cidade até os dias atuais.

Instrumentos de difusão de valores políticos, culturais e sociais esses jornais


representaram não apenas um elemento moderno presente no cotidiano da cidade mesmo que
as dificuldades em se manter um jornal em Guarapuava fossem extremamente grandes, como
ressalta Planalto, um dos cronistas locais:

Poucos são os que sabem das mil e uma dificuldades a serem vencidas para
a orientação e manutenção de um jornal em cidade do interior. É preciso o
seu diretor “contar até sete”, possuir verdadeiro espírito de renúncia e de
sólida vontade de ser útil ao município e à sua gente. Só assim, o jornal
local, poderá ser autêntico veículo orientador da opinião pública, usando
linguagem comedida, atendo-se unicamente a exercitar a defesa
intransigente dos problemas que interessem, direta ou indiretamente, a
coletividade. Nada de manchetes escandalosas, de linguagem desabrida,
tendenciosa, indigna de penetrar no recesso de um lar honrado, de família 1

1
PLANALTO, João do. Do meu canto (recordações de outros tempos): v. 2. Curitiba: O Formigueiro, 1981,
p.51.

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O primeiro jornal criado em Guarapuava foi O Guayra. Fundado em 4 de abril de


1893 e redatoriado pelo Cel. Luiz Daniel Cleve, fazendeiro abastado da região. O jornal era
editado, segundo Planalto em um antigo e pesado prelo que chegou a cidade transportado de
Curitiba até Guarapuava em lombo de muares pelo seu proprietário Serafim de Oliveira
Ribas.2

Foram publicados ainda na cidade uma série de outros jornais, em sua grande maioria
de curta duração, como o Jornal das Crianças (1893), O Paraná (1894), A Lide (1894), O
Guarapuavano (1902), O Guayra (fase de 1917), O Pharol (1919), O Momento (1924), A
Cidade (1932), O Independente (1935), Brasilidade (da Propaganda Integralista Brasileira -
1935), Folha do Oeste (1937), O Liberal (órgão da Revolução de 1930), A Época (1958), O
Combate, O Carrapicho, O Jacobino, O Paraná Matutino, Ideal, O Trevo, Alerta, O Arauto,
O Marrete, O Independente, Alfinete, Carga, Torpedo, O Planalto, O leão da Serra da
Esperança, Oeste Paraná, Jornal de Guarapuava, Sentinela do Oeste, Jornal de Notícias,
Tribuna Paranaense, Folha de Guarapuava, Comarca, A Columna, O Paraná, Correio do
Oeste, em sua grande maioria com data de fundação e de duração desconhecida. Além disso,
também foram editados na cidade uma série de jornais literários e críticos como A Alvorada
(1896) O Lyrio, A Pena, O Serrote e O Farolete (1928/1929), entre outros.3

Não existem exemplares disponíveis em Guarapuava de grande parte destes


periódicos, com raras exceções também aos exemplares disponíveis na Biblioteca Pública do
Paraná em Curitiba. Entretanto, alguns exemplares do jornal O Guayra estão disponíveis no
acervo do Centro de Documentação da Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná.
Segundo as memórias de um de seus redatores, o Fazendeiro Cel. Luiz Daniel Cleve, o
isolamento da cidade e a falta de boas estradas foram fatores decisivos na produção dos
periódicos locais, dificultando a produção jornalística na cidade em seus primeiros tempos4:

2
PLANALTO, João do. Op. Cit.1981, p.234.
3
Fontes: CARDOSO, Rosy de Sá. “Breves notas sobre a imprensa do Paraná”. In: História do Paraná. v.3,
Curitiba: Grafipar, 1969, p.207-237; PLANALTO, “Do meu Canto”, Folha do Oeste, 19 de janeiro de 1941,
p.3; MARCONDES, Gracita Gruber. Guarapuava: história de luta e trabalho. Guarapuava: Gráfica da
UNICENTRO, 1998. p.129.
4
As dificuldades de acesso a cidade acabou por incorporar entre as primeiras décadas do século XX no
imaginário local o isolamento como fator a ser superado. Este sentimento foi recorrente entre os discursos
veiculados pela imprensa local e encontrou o auge de sua discussão na questão do atraso na chegada da estrada
de ferro de Irati a Guarapuava.

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O Guayra que tinha como seu redactor chefe o venerado cidadão Luiz
Daniel Cleve iniciou sua publicação a 4 de abril de 1893, causando
extraordinário sucesso por ser o documento vivo de uma grande e
assignalada vitória contra as maiores dificuldades consideradas então como
insuperáveis, pois que Guarapuava não dispunha naquella época nem siquer
de uma estrada de rodagem que a ligasse aos outros centros civilizados do
paiz (sic) 5

Além de O Guayra, outros jornais também tiveram duração não tão curta, como foi o
caso do hebdomadário O Pharol, fundado em 1919 por um membro da elite campeira
guarapuavana, Antonio Lustosa de Oliveira, na época com apenas 18 anos.

Como o próprio Lustosa afirma em seus “traços biográficos do guarapuavano Antonio


Lustosa de Oliveira”, publicado por Heitor Francisco Izidoro, ele instalou uma oficina
tipográfica para confecção de impressos comerciais em 1918. Em seguida depois de uma
conversa com um amigo, Mário Edmundo de Barros, combinou fundar um jornal que
ressoasse o progresso vivido pela cidade naquele momento.6 Desta forma em 10 de Abril de
1919 o primeiro número de O Pharol foi posto em circulação, sendo que o jornal surgiu como
hebdomadário. Depois de seis meses de seu lançamento, o jornal passou a circular como
semanário durante nove anos, sendo extinto em 1929.

Este jornal seria o marco inicial da vida jornalística de Lustosa. Durante a década em
que o jornal foi editado a questão do já referido isolamento da cidade viveu sua fase mais
aguda. Nesse sentido, não é estranho notar que a maioria dos editorais estavam voltados à
questão da estrada de ferro. A estrada de ferro se consubstanciou no grande ideal a ser
perseguido, uma vez que se apresentava como a grande solução para as mazelas da cidade.
Segundo Lustosa, a estrada de ferro era uma promessa desde a época do Brasil- Império. 7

Em 1922, depois de alguns problemas enfrentados pela redação do jornal, os quais se


mantêm para nós obscuros, Lustosa reassume integralmente O Pharol, “jornal consagrado aos
interesses gerais”, e para tanto alegando ter como princípio os ideais de profissionalismo,
justiça e moral, “em prol do nosso progresso futuro” (O Pharol, 30 de Julho de 1922).

5
CLEVE, Jeorling J. Cordeiro. Coronel Luiz Daniel Cleve – Memória Histórica. Curitiba: Juruá, 2005, p.30.
6
IZIDORO, Heitor Francisco. Guarapuava: das Sesmarias a Itaipu. Curitiba: Vicentina, 1976. p.165-166.
7
SILVA, Walderez Pohl da. Entre Lustosa e João do Planalto: a arte da política na cidade de Guarapuava
(1930-1970). 2008. 209f. Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
p.54.

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Paralelamente a produção de O Pharol, Lustosa também editou um jornal literário


denominado A Alvorada. Enquanto o primeiro era voltado aos assuntos ditos de interesse do
município, o segundo dirigia-se a um publico mais jovem, trazendo poesias, recados
amorosos e capítulos de folhetins. 8

Com uma vida jornalística extremamente ativa, ainda antes do fim de O Pharol,
Lustosa publicou outro jornal denominado de O Movimento. Após o fim de O Movimento, O
Pharol e A Alvorada, Lustosa, com mais dois amigos, David Moscalesque e Amarilio
Rezende, que pertenciam ao Movimento Integralista Brasileiro, fundou um pequeno jornal
chamado A Brasilidade (1935-1936). Os objetivos deste pequeno jornal estavam em difundir
os valores do Integralismo, que haviam adquirido um grande sucesso entre a juventude da
cidade, sobretudo entre os fazendeiros, dentro dos princípios de defesa da propriedade, da
família e da religião católica, muito caros as famílias mais tradicionais da cidade. Nesse
sentido, o “Estado Integral”, idealizado por Plínio Salgado, líder da Aliança Integralista
Brasileira, representava para os amigos e para o próprio Lustosa um ideal a ser buscado. Além
disso, por esses companheiros trazerem uma bagagem cultural acima da média para o
Guarapuavano, expressavam um ideário de “ser moderno” para Lustosa. Sob esse prisma,
para Lustosa o “Ideal Integralista” de David e Amarílio representava estar em sintonia com os
acontecimentos que agitavam o cenário nacional. 9

Os motivos do fim de A Brasilidade em 1936 são obscuros. Nenhum exemplar do


jornal foi encontrado e as únicas informações sobre o mesmo encontram-se nas memórias de
Lustosa. 10

A importância da vida jornalística de Lustosa não se faz apenas pela sua intensa
atividade jornalística na cidade. Lustosa, além de jornalista, cronista (suas crônicas intituladas
“Do meu canto” e assinadas com o pseudônimo de João do Planalto foram publicadas por
mais de 30 anos), também foi presidente do Clube Guaíra, um político influente na cidade,
sendo prefeito municipal na década de 1940, mais especificamente entre 1944 a 1946 e por
três vezes eleito deputado estadual e primeiro suplente a deputado federal pelo Partido Social
Democrático, PSD. Ainda foi presidente do Conselho Administrativo da Caixa Econômica

8
SILVA, Op. Cit., 2008, p.50.
9
SILVA, Op. Cit., 2008, p.69.
10
OLIVEIRA, Antonio Lustosa de. Passos de uma longa caminhada (Reminiscências). Curitiba: O
Formigueiro, 1978.

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Federal do Paraná, até 1964 quando foi preso e levado a depor no DOPS por acusações
diversas, sendo inocentado das acusações.11

Lustosa foi um defensor convicto de que Guarapuava deveria ser governada pelos
guarapuavanos natos, como fica explícito em uma de suas crônicas editadas sobre o nome de
“Do meu canto” e assinadas sob o pseudônimo de João do Planalto 12 e publicadas no jornal
Folha do Oeste:

Do regime ditatorial implantado no país, em 1930, para cá, isto há 46 anos,


Guarapuava teve somente quatro Prefeitos ‘guarapuavanos natos’: o cel.
Aníbal Virmond, Generoso de Paula Bastos (por poucos dias), Antonio
Lustosa de Oliveira e Juvenal de Assis Machado, este, já no regime
constitucional (1947/1951). De 1959 até janeiro de 1977, portanto, há 18
anos, a terra guarapuavana vem sendo administrada por dois guarapuavanos
por afeição: Moacir Júlio Silvestre e Nivaldo Passos Krüger, tendo nesse
lapso de tempo, havido um mandato tampão, em 1963, exercido pelo
também guarapuavano por afeição, Dr. Elói Pimentel. Pois bem. Agora, o
povo guarapuavano acaba de eleger um guarapuavano nato, descendente da
sesquicentenária cepa dos Alves-Rocha Loures-Pacheco Bastos.
Guarapuava de outros tempos, pacata, semi-colonial, sem estradas que
permitissem boas e rápidas comunicações para fora do município, vivia
feliz e tranqüila, aguardando, esperançosamente, pela chegada do sonhado
progresso, o qual começou a chegar, aqui, após serem ouvidos em 1954, os
estridentes apitos das locomotivas do Ramal Ferroviário Riosinho-
Guarapuava, da construção da Rodovia 277, da fixação da Colônia Agrária
dos Suábios, nos magníficos campos de Entre Rios, em 1951, partindo
desses auspiciosos eventos, o extraordinário surto expansionista que, neste
último quarto de século, acabou transformando a sesquicentenária e
histórica Guarapuava do Padre Chagas e do Capitão Rocha Loures, nesta
atual Guarapuava, verdadeira forja de trabalho construtivo, com os seus
campos verdejantes, outrora de pastagens nativas, pejados de gado de
diferentes espécies e raças e hoje, também verdejantes, com suas infindas
plantações de trigo, de arroz, de batata, de soja e de outros inúmeros cereais,
ensejando ao privilegiado planalto guarapuavano, ser transformado em uma
nova Canaan, na opulenta região ocidental do Paraná. E é essa Guarapuava
intensamente progressista, que vai de janeiro de 1977 até janeiro de 1981,
ter como seu governante, um seu filho nato, a quem por essa mesma razão,
tem uma enorme responsabilidade moral e administrativa e, principalmente,
de exemplar austeridade e dignificação da função púbica, governando com

11
SILVA, Walderez Pohl da. Op. Cit., 2008.
12
A escolha do nome João não é aleatória, para Lustosa, João representava um nome comum, logo assinar como
João do Planalto era tornar-se porta-voz do cidadão comum do planalto, no caso, do terceiro planalto paranaense,
onde encontra-se Guarapuava.

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o povo e para o povo” (“Do meu Canto”, Folha do Oeste, 28 de novembro


de 1976).

No trecho transcrito quase que na íntegra, justamente pela riqueza de informações


presentes no mesmo, Lustosa faz uma intensa defesa e elogio a eleição do que ele chama de
“Guarapuavano nato”, ou seja, não apenas a uma pessoa nascida na cidade, mas a um
descendente direto dos primeiros povoadores da região. O prefeito eleito em questão foi
Cândido Pacheco Bastos, que havia concorrido com outros três candidatos a prefeitura da
cidade no ano de 1976. Lustosa articula genealogicamente o prefeito eleito a algumas das
principais famílias de fazendeiros da cidade, a família Alves, a família Rocha Loures e os
Pacheco Bastos, ligando-o inclusive ao considerado conquistador da região e construtor da
vila de Nossa Senhora do Belém de Guarapuava o Capitão Rocha Loures. Para Lustosa, a
eleição de Candido Pacheco Bastos, representava o “retorno” do poder local da elite campeira
da qual ele fazia parte, mas, ao mesmo tempo, simboliza o retorno do poder local às mãos do
povo guarapuavano, mesmo que, segundo Lustosa, os estrangeiros Moacir Júlio Silvestre,
Nivaldo Passos Krüger e Elói Pimentel fossem considerados guarapuavanos “por afeição”.

Ainda na continuação do trecho acima, Lustosa aponto ao prefeito eleito uma tarefa:
“Você é o herdeiro de uma tradição histórica, legada pelo seu denodado ancestral Capitão
Rocha Loures, fundador desta nossa mui nobre cidade, que foi, é e sempre será ‘Rainha do
Oeste do Paraná’” e, por essa razão, uma enorme responsabilidade. Herdeiro da tradição
histórica, ao prefeito eleito caberia a função exercida pelos demais guarapuavanos natos,
inclusive o próprio Lustosa, que pela administração passaram e buscaram levar a cidade ao
progresso.

Esse discurso pode ser mais claramente demonstrado observando uma pequena nota
publicada na parte inferior da “página social”, segunda página do Folha do Oeste de 12 de
Agosto de 1962 na qual está escrito: “Raciocínio sensato” votar em ‘candidatos de fora’, é a
mesma cousa que ‘brasileiros votassem em candidatos russos’, para estes, defenderem as
causas do Brasil. Por isso, é aconselhável que sufraguemos em 7 de outubro os ‘candidatos do
lugar’, para o bem de Guarapuava.”.

As críticas de Lustosa em seu jornal não se fazem apenas sobre os “de fora”, mas em
inúmeros casos da a entender que os madeireiros, instalados na cidade por volta da década de

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1930, seriam um exemplo dos traços negativos que trouxeram a paisagem de cidade, como
podemos perceber em um artigo assinado com o pseudônimo de João do Planalto:

Há tempos, tive a oportunidade de lançar um apelo ao dinâmico Prefeito


Nivaldo Krüger, para que fosse colocado na Praça 9 de Dezembro, de nossa
Guarapuava, uns três troncos de imbuia, a fim de que as próximas vindouras
gerações de guarapuavanos ou de quem quer que seja, que visitarem esta
terra, que outrora, foi o maior parque florestal do Brasil, [...] hoje, em fase
de completo extermínio, antigamente pelas criminosas queimadas das
matas, depois pelo machado e pelas serrarias devastadoras dessa valiosa
árvore secular, que leva 500 anos para crescer e tornar-se grossa, com até
dois metros de diâmetro, como existiam em nossas matas (“Do meu canto”,
Folha do Oeste, 7 de dezembro de 1976 – grifos nossos).

Embora faça um elogia a Krüger, o texto de Lustosa embute uma crítica aos
madeireiros. Segundo Lustosa, a presença dos troncos de imbuia, representando as grandes
árvores que se erguiam pelo território guarapuavano serviria para que as próximas gerações
tivessem a consciência da grandiosidade da natureza local e do estrago causado pelas serrarias
devastadoras. Desta forma, simbolicamente buscou-se inscrever no imaginário local a noção
de que as madeireiras trouxeram muito mais estragos do que benesses para a cidade.

Ambos os trechos foram retirados do maior e mais duradouro periódico de propriedade


de Antonio Lustosa, o jornal Folha do Oeste. Criado em 28 de fevereiro de 1937, pelos
mesmos componentes do antigo jornal A Brasilidade, David Moscalesque (gerente), Amarílio
Rezende (Redator-chefe) e o próprio Lustosa (Diretor), não é a toa que em seu ano inicial o
jornal persistisse em reservar a página 3 à campanha Integralista. Porém, a diversidade e o
sucesso alcançado pelo Folha do Oeste estendeu-se a diversas outras áreas tanto que, com o
fim da publicação das páginas sobre o Integralismo no mesmo ano, devido a abolição dos
partidos decretada por Vargas em 2 de dezembro de 1937, não esmoreceram nem
prejudicaram o jornal. Além disso, o Folha do Oeste, assim como O Pharol, insistia na
questão da estrada de ferro, entre outros assuntos de interesse do município.

As grandes dificuldades encontravam-se efetivamente na produção do jornal. Para


produzir o jornal, Lustosa comprou uma Lynotipe que, segundo ele, teria sido a primeira a
subir a serra da Esperança, especialmente para a confecção do semanário. Esse tipo de
equipamento, moderno para a região, facilitava em muito o trabalho dos gráficos, para o
barateamento da produção do jornal e contribuiu para a durabilidade do Folha do Oeste.

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Enquanto os métodos de confecção dos jornais até então existentes na cidade eram
demorados, a Lynotipe com apenas um empregado fazia o trabalho aproximadamente de seis.
Além disso, dispunha também da habilidade gráfica de David Moscalesque, que segundo
Lustosa era um primoroso artífice gráfico (Folha do Oeste, 3 de março de 1974, p. 2). O
jornal era produzido na mesma gráfica onde O Pharol havia sido editado, gráfica esta, que
havia surgido inicialmente com o intuito de produzir material publicitário, recebeu o nome de
“Gráfica Guairacá”, localizada na rua Dr. Vicente Machado, 1068, próxima ao centro da
cidade.

O jornal inicialmente não dispunha de uma composição estética muito aprimorada,


porém, superava em muito as publicações até então existentes na cidade, inclusive sendo
dificilmente acompanhada por outros jornais contemporâneos durante os seus anos de
duração.

Além de uma edição mais clara e mais organizada, Lustosa ainda buscou trazer para o
jornal outros aprimoramentos técnicos, como as clicherias. É óbvio que não existiam na
cidade condições de se construir uma clicheria para a publicação de fotos no jornal. Para
realizar esse trabalho, Lustosa comprava os clichês em São Paulo ou em Curitiba, onde esses
eram produzidos. Desta forma, era algo inédito para a cidade a Folha do Oeste publicar
fotografias. Durante toda a existência do jornal sua publicação deu-se em preto e branco e a
presença das fotografias tornou-se cada vez mais freqüente.

Geralmente na sua primeira página trazia uma matéria de cunho político, discutindo os
problemas do município, em seguida, matérias econômicas, policiais , sociais, religiosas,
integravam aleatoriamente as páginas seguintes. Não existia uma organização dos conteúdos
por assuntos. Nesse sentido, o Folha do Oeste inicialmente distribuía os assuntos de acordo
com o tamanho dos textos, tendo em vista que o espaço de publicação era pequeno, de apenas
quatro páginas.

Os ideais de Lustosa quando da fundação do jornal eram muito claros. Para ele o
jornal deveria ser pautado na atitude imparcial e noticiosa, sem ligações partidárias e
intransigente na defesa dos interesses do município e sua gente. Ao mesmo tempo, o jornal
claramente deveria assumir uma postura, “dentro dos elevados postulados da doutrina cristã,
batendo-se pela integridade e amor à pátria, intangibilidade da família numa sociedade onde

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imperem os bons costumes, sob a égide protetora do Supremo Arquiteto do Universo”


13
(“Aniversário da Folha”, Folha do Oeste, 3 de março de 1974, p.2) . Além da clara opção
religiosa, ao ideal de intangibilidade da família bem como dos “bons costumes”, o jornal
entrava em grande contradição com a idéia de ser “sem ligações partidárias”, tendo em vista
que o espaço ocupado pela Aliança Integralista Brasileira era no mínimo privilegiado. Mais
tarde, os espaços dados a campanha dos partidários do PSD, partido de Lustosa durante o
período democrático, também atestariam essa contradição.

Contradição esta, é também encontrada na primeira edição do jornal no editorial: “é no


conflito das horas inquietantes que vivemos, a imprensa não poderá ser jamais um campo
radicalmente neutro, fechado à ressonância dos clamores que agitam os ares” (Folha do
Oeste, 28 de fevereiro de 1937, p.1). Na continuidade ao trecho acima Lustosa demonstra
delinear o seu ideal jornalístico:

O jornal sempre foi, desde os mais recuados tempos, um elemento constante


de cooperação no meio guarapuavano. A história de Guarapuava é, por
assim dizer, a história de sua imprensa. Na verdade, as páginas envelhecidas
das gazetas locais ainda hoje retratam, ao vivo, o tumulto de todos os
acontecimentos, de que foram contemporâneos, na sucessão ininterrupta dos
fatos e dos homens. Nada justificava, portanto, o silêncio que, ao jornalismo
guarapuavano, trouxera o desaparecimento do último semanário. E muito
menos a prolongação desse silêncio, por tempo que viesse significar a morte
da imprensa local. Daí a inevitabilidade do impulso que lança à publicidade
esta folha. Pelo seu destino ela vem reatar a série de publicações que
intermitentes ou efêmeras, asseguravam a perenidade do periodismo
guarapuavano. Pelo seu programa, ela pretende ser o órgão interessado das
aspirações de Guarapuava e servir ao mesmo tempo à causa sagrada da
renovação nacional. Folha do Oeste surge numa época de profunda
inquietação. O vulcão das reformas sociais e políticas incendeia e avassala
as consciências dividindo os homens. Todos os valores morais e espirituais
sofrem a mais angustiosa das revisões” (Folha do Oeste, 28 de fevereiro de
1937, p,1).

13
A presença no texto a elementos que remetem ao Integralismo e a prática da Maçonaria não são fruto do acaso.
Lustosa, mesmo após o fim da Ação Integralista, sempre se posicionou em relação a alguns dos elementos que
moldaram sua vida política e jornalística em períodos anteriores, tendo em vista sua ativa participação na
campanha do “Sigma” presente nos primeiros anos do Folha do Oeste. Quanto a maçonaria, esta não apenas foi
presente na vida de Lustosa, um de seus membros ativos, mas até hoje configura-se como um grupo importante e
numeroso na cidade.

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Portanto, o que se insere nesse trecho é que, segundo Lustosa, “a história de


Guarapuava é, por assim dizer, a história de sua imprensa”. Para ele, a existência de um jornal
era fundamental para a cidade e representava a continuidade dos jornais antes editados, um
instrumento do progresso com o objetivo de também assegurar a perenidade da obras
realizadas no passado em tempos de mudança, como eram aqueles dias da fundação do jornal,
não apenas para a cidade, mas para o Brasil no ano de efetivação do Estado Novo e que se
estenderia por longos anos.

O Folha do Oeste acabou conquistando em seus quarenta anos de existência uma


circulação razoável. Era distribuído a praticamente todo o Oeste do Estado. Além disso,
possuía também representantes no Rio de Janeiro e São Paulo, administrados por uma
empresa denominada A.S. Lara Ltda., que provavelmente atendia pessoas que haviam
deixado Guarapuava, mas que ainda buscavam obter informações sobre sua a cidade.

Os meios de sustentação do jornal eram variados, sobretudo fixados sobre a


propaganda e as assinaturas. As propagandas ocupavam grande espaço no jornal, sendo
distribuídas aleatoriamente pelas páginas. Grande parte dos anúncios referia-se a serviços de
profissionais autônomos como médicos e advogados, à publicidade político partidária, a
prestação de serviços gerais e aos produtos comercializados pelas lojas que se espalhavam
pela cidade, trazendo ao público a oportunidade de comprar eletrodomésticos, automóveis e
as roupas da moda nos grandes centros, que novamente tornavam-se bens possíveis de serem
adquiridos na cidade, a exemplo do que acontecia anteriormente na Casa Missino. Porém, até
o final da década de 1950 elas concentravam-se mais na segunda página do jornal ou em
colunas ou box localizados na lateral direita ou na parte inferior das páginas. Os anúncios
eram cobrados antecipadamente e eram regulados por tabela. Segundo Lustosa, a dificuldade
de sobrevivência do jornal era agravada nas cidades interioranas. Para ele,

para que um jornal interiorano possa ter sua circulação normal efetiva, é
imprescindível contar com o apoio populacional do município,
principalmente, sob a modalidade de assinaturas anuais, visto que a venda
avulsa do exemplar somente poderá ser efetuada na sede municipal, e a
notícia, o edital, o anúncio comercial, deverão ser amplamente divulgados,
para conhecimento das pessoas que passam a maior parte do tempo vivendo
nas Fazendas, cuidando das suas labutas do campo ou do amanho da terra
(Folha do Oeste, 25 de junho de 1978, p.2)

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Nessa perspectiva, existia uma necessidade muito grande da adoção do periódico pela
população local, tendo em vista as dificuldades financeiras em torno de sua publicação. Dessa
forma, as assinaturas, além de agilizarem a distribuição do jornal e a sua amplitude de
circulação, também favoreciam a venda de propaganda, que tornava-se um bom negócio para
o comércio local.

O Folha do Oeste sofreu grandes transformações a partir da década de 1950, sobretudo


nos anúncios, uma indicação da expansão do comércio local. Outros semanários também
surgem nesse período, como é o caso do jornal A Época de propriedade do então vereador
Nivaldo Passos Krüger. De formato mais simples rudimentar frente ao Folha do Oeste,
contribuiu para o estabelecimento de Krüger em meio a opinião pública, divulgando suas
atitudes enquanto vereador e viabilizando suas opiniões em torno da política local, tendo em
vista o seu pouco acesso a jornais como o Folha do Oeste. Desta forma, ao criar o seu próprio
jornal, Krüger adquiria um meio político eficaz de oposição a idéias que viessem a ser
vinculados em outros periódicos contra suas ações e ideais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta forma, a concorrência pela legitimidade nas notícias foi uma constante na cidade
e envolveria outros periódicos como a Tribuna Paranaense fundado em 1956 pelo também
político local João Ferreira Neves. Assim, o início da década de 1950 representou um novo
cenário jornalístico na cidade, tendo em vista que por mais de uma década o Folha do Oeste
foi o único jornal constante na cidade. Além disso, estabeleceu-se na cidade uma “batalha em
letras de forma” 14, onde políticos de oposição, madeireiros e fazendeiros, puderam expressar
suas idéias políticas e suas posições frente aos caminhos que o desenvolvimento da cidade
deveria tomar, sobretudo quanto a quem deveria guiar o povo Guarapuavano: aqueles que
adotaram Guarapuava de coração e buscavam uma visão mais desprendida e autônoma do

14
Referência ao capítulo escrito pela jornalista Ana Maria de Abreu Laurenza – “Batalhas em letra de forma:
Chatô, Wainer e Lacerda” – presente no livro História da Imprensa no Brasil, organizado pelas historiadoras
Ana Luisa Martins e Tânia Regina de Luca (MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de (orgs). História da
Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 179-205).

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progresso ou aqueles que viam na contemplação das atitudes do passado a melhor forma para
se estabelecer os passos rumo ao progresso? . 15

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Rosy de Sá. “Breves notas sobre a imprensa do Paraná”. In: História do
Paraná. v.3, Curitiba: Grafipar, 1969.

CLEVE, Jeorling J. Cordeiro. Coronel Luiz Daniel Cleve – Memória Histórica. Curitiba:
Juruá, 2005.

IZIDORO, Heitor Francisco. Guarapuava: das Sesmarias a Itaipu. Curitiba: Vicentina, 1976.

MARCONDES, Gracita Gruber. Guarapuava: história de luta e trabalho. Guarapuava:


Gráfica da UNICENTRO, 1998.

OLIVEIRA, Antonio Lustosa de. Passos de uma longa caminhada (Reminiscências).


Curitiba: O Formigueiro, 1978

PLANALTO, João do. Do meu canto (recordações de outros tempos): v. 2. Curitiba: O


Formigueiro, 1981.

SILVA, Walderez Pohl da. Entre Lustosa e João do Planalto: a arte da política na cidade de
Guarapuava (1930-1970). 2008. 209f. Tese (Doutorado em História Social), Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2008.

15
Enquanto os madeireiros e outros políticos de oposição aos políticos fazendeiros representados pelo A Época e
o Tribuna Paranaense buscavam romper com poder nas mãos das elites tradicionais da cidade, os fazendeiros
buscavam legitimarem-se no passado e na afirmação dos valores dos pioneiros da cidade presentes no imaginário
local.

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A PERCEPÇÃO DO OUTRO: TEUTOS-BRASILEIROS E A IMPRENSA CURITIBANA


DURANTE A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Pamela Beltramin Fabris. História Universidade Federal do Paraná.


Orientador: Sergio Odilon Nadalin. Universidade Federal do Paraná.

PALAVRAS-CHAVE: Primeira Guerra Mundial, Identidade Teuto-Brasileira, Imprensa de


Curitiba

INTRODUÇÃO
Passa hoje o aniversário de S.M. Guilherme II, o kaiser
Allemão. Esta data sem a mínima dúvida é altamente
auspiciosa para a numerosa colônia allemã que entre nós
estabeleceu seu lar e sua tenda de trabalho. A Allemanha
sempre foi um país amigo do Brasil; numerosos dos seus
filhos concorrem para o nosso progresso, seja ensinando
em nossas escolas, seja militando em nossos exércitos. E
devemos também confessar: a Allemanha é quase que a
única das grandes potencias da Europa da qual jamais
recebemos qualquer agravo [...] Estampando hoje em
nossas colunas o retrato do kaiser; a figura de maior
destaque no cenário europeu, desejamos com isso enviar
nossas felicitações, não só a colônia allemã entre nós
domiciliada, como também a sua grande pátria, cuja
felicidade na paz e no trabalho ardentemente desejamos.
(Diário da Tarde, 27 janeiro 1917)

Aos leitores do “Diário da Tarde” já era comum nos dias 27 do mês de janeiro
deparar-se com a notícia do aniversário do Kaiser Guilherme II. Contudo, o ano apresentado
na epígrafe acima contem marcantes peculiaridades. O mundo estava envolto nos
acontecimentos gerados pela Primeira Guerra Mundial. O conflito, cuja duração muitos
acreditavam que não se estenderia, já estava entrando em seu terceiro ano. A posição
diplomática brasileira era de neutralidade e a imprensa, ao menos teoricamente, seguia a
mesma orientação. Logo, não era de se admirar que o aniversário de Guilherme II fosse
mencionado no jornal curitibano, tendo em vista que habitavam na cidade dezenas de alemães
e seus descendentes, denominados pela imprensa como membros de uma colônia.
Três meses depois do aniversário do Kaiser o mesmo jornal, ao tratar de certos boatos,
que circulavam pela cidade fez a seguinte observação:

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Nós sabemos quanto o povo allemão é ousado, e disso ele deu provas
nessa grande guerra da Europa. E os seus compatriotas que habitam o
sul do Brazil, não desmentem o gênio perseverante e audacioso do
allemão europeu. E d´elles temos a temer.
(Diário da Tarde, 21 abril 1917)

O que a sociedade curitibana deveria temer da, outrora, “auspiciosa colônia alemã”?
Quais poderiam ser os motivos de tal desconfiança quanto às pessoas de origem germânica
naquele momento? No dia 5 de abril de 1917 a Alemanha torpedeou o vapor “Paraná” e, a
partir dessa data até o final da Primeira Guerra Mundial notamos uma radical mudança de
discurso por parte da imprensa da capital do Paraná. Isso se deu, interligado ao fato de que a
própria sociedade curitibana assumia uma nova postura quanto aos alemães e seus
descendentes. Uma postura sintomática de quem parecia ter identificado um elemento a ser
“temido”, e, em alguns momentos, até um verdadeiro inimigo de guerra.
A suspensão da neutralidade do Brasil e depois a declaração de guerra à Alemanha,
em outubro de 1917, desencadearam reações em diversos locais, inclusive em Curitiba. Como
o elemento germânico foi visto naquele momento, juntamente com a análise dos demais
eventos ocorridos na capital desde a eclosão da “Grande Guerra”, foram nosso objeto de
estudo neste Artigo.
Os periódicos, “Diário da Tarde”, “A República” e o “Commércio do Paraná”, foram
utilizados como fonte para tentar elucidar um momento de bastante tensão na história dos
contatos entre alemães e seus descendentes com o restante da sociedade curitibana. Além dos
jornais, o documento “Crônicas das Irmãs da Divina Providencia”1, cujo conteúdo registrou
fatos do cotidiano das Irmãs que congregavam essa Ordem em Curitiba, incrementa a
percepção da situação, pois, nos apresenta o outro lado. Ou seja, apresenta o lado dos que
estavam sendo perseguidos pela conjuntura do momento.
Ao tratar deste objeto adentramos em alguns temas já recorrentes na historiografia,
mas outros menos privilegiados. Muito se escreveu a respeito dos benefícios do contato dos
imigrantes alemães e seus descendentes com a sociedade curitibana e, de suas contribuições
para o desenvolvimento econômico, cultural e social da capital paranaense. Ao passo que,
aspectos conflituosos do contato entre diferentes grupos, na mesma região, foram pouco
explorados pela historiografia. Para Maria Tarcisa da Silva Bega (2001), nos últimos anos há
um esforço em criar uma imagem de Curitiba pautada, quase que exclusivamente, nos moldes

1
Chronik Unserer Niederlassung in Coritiba. 1895-1944 (manuscrito).

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europeus; ou seja, a boa imagem do imigrante europeu é resgatada, ficando as situações de


conflitos gerados desde o início da imigração até os momentos como os das duas guerras
mundiais em relativo esquecimento.
Ao falar de imigrantes germânicos outros aspectos emergem na abordagem.
Destacamos a percepção de uma construção e manutenção de uma cultura imigrante pautada
na formação e consolidação de uma identidade de cunho étnico, a identidade teuto-brasileira.
Ao tratar de identidades recorremos, também, ao diálogo com outros campos do saber, logo,
Etnologia, Sociologia e Antropologia nos oferecem instrumentos de auxílio para compressões
mais apuradas. Neste sentido, autores como Frederik Barth e Giralda Seyferth, são, a nosso
ver, de valorosa contribuição. Também no campo das identidades, recorremos aos estudos de
Cardoso de Oliveira. Para Oliveira, o fato de perceber diferenças gerais entre o “nós” e “eles”
gera a percepção do outro, do diferente, é o que o autor chama de “identidade contrastiva”.
Imersos nas balizas da história social buscamos, então, contribuir para a história dos
contatos sociais, tendo em vista relações conflitantes geradas a partir dos mesmos, durante a
conflagração de um evento de ordem internacional, a Primeira Guerra Mundial.

1. CONCEPÇÕES ACERCA DA IDENTIDADE TEUTO-BRASILEIRA

A maior parte da historiografia, cuja abordagem considerou aspectos da imigração


alemã em geral, apontou para certa dificuldade dos germânicos em se integrarem com a
sociedade receptora, resultando, então, em uma espécie de resistência étnica. No cerne da
questão da não integração dos germânicos com outros grupos encontram-se questões de
identidade. Para Denys Cuche (2002) o estabelecimento de “fronteiras” da identidade exprime
uma vontade de diferenciar o “nós” e “eles”. Logo aspectos culturais são utilizados como
ferramentas de identificação. Para diversos autores, os imigrantes germânicos e seus
descendentes desenvolveram e sustentaram em diversos locais do Brasil uma identidade, a
identidade teuto-brasileira (deutschbrasilianertum). Esta, no geral, “[...] surgiu no decorrer de
um processo histórico de ocupação territorial, para construir uma individualidade étnica
diante dos outros, especialmente os brasileiros classificados como ‘lusos’” (SEYFERTH,
2006, p.152). Segundo Seyferth, a base da identidade teuto-brasileira era a separação da noção
de cidadania da de nacionalidade. Os teuto-brasileiros que assumiam essa identidade

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compreendiam que era necessário cumprir todos os direitos e deveres de cidadãos no Brasil,
pois, precisavam estar inseridos politicamente em sua nova pátria. Contudo, se por um lado
assumiam a cidadania brasileira, por outro, não deixavam de ser um povo pertencente à nação
alemã (SEYFERTH, 2006). Juliana Reinhardt, escrevendo sobre a etnicidade do grupo teuto-
brasileiro em Curitiba, apontou que “[...] mesmo as diferenças regionais, de classe social e
econômica teriam sido suplantadas em detrimento a uma identidade: a de ser alemão.”
(REINHARDT, 2007, p. 87).
Faz-se necessário um esclarecimento a cerca do termo teuto-brasileiro. Esse termo é
atribuído, pela grande maioria dos estudiosos da imigração alemã, para denominar os filhos
de imigrantes alemães nascidos no Brasil. Contudo, a identidade teuto-brasileira não é
necessariamente apenas para os teuto-brasileiros, ou seja, assim como outras, essa identidade
foi construída, no caso em questão a partir da relação de contatos entre pessoas de origem
germânica com a população majoritária no Brasil. Sendo assim, por vezes, também imigrantes
vindos da Alemanha poderiam se ver, ou manifestar signos da identidade teuto-brasileira. Da
mesma forma, nem todos os teuto-brasileiros poderiam assumir essa identidade. André
Voigt (2008), em sua tese, critica justamente uma possível generalização desse “ser” teuto-
brasileiro. Para Voigt, esse conceito é uma construção, na qual muitos autores a utilizam ser
maiores reflexões, tomando a mesma como elemento a priori em suas análises. Ora,
compreendemos que assim como diversos conceitos, de fato, teuto-brasileiro como identidade
foi, e continua sendo, um conceito construído a partir da constatação da experiência dos
contatos entre diferentes. Contudo, sem pretender maiores generalizações, identificamos sim
elementos que constituem a formação e manutenção de uma identidade teuto-brasileira no
ambiente curitibano por nós trabalhado.
Feitas essas considerações acerca da identidade teuto-brasileira, passaremos a analisar
de que forma a mesma se inseriu no contexto curitibano quando as consequências da Primeira
Guerra Mundial foram sentidas de forma mais intensa pelos germânicos e seus descendentes
na cidade.

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2. A ECLOSÃO DA GUERRA E SUAS CONSEQUÊNCIAS EM CURITIBA

Com os avanços da Grande Guerra a Alemanha declarou, em fevereiro de 1917, que os navios
neutros passariam a serem alvos de ataques sem avisos prévios, o que ocorreu com quatro navios
mercantes brasileiros.

No dia 05 de abril de 1917 o “Diário” recebeu um telegrama, cujo conteúdo iria abalar de forma
visível o cotidiano da cidade de Curitiba, marcando o inicio de um período de tensões. Foi informado
naquele dia, a perda do mercante brasileiro “Paraná”. Nessa mesma edição o jornal lamentou o ato,
mas, afirmou que, preferia não discutir se a Alemanha tinha ou não o direito de torpedear navios de
países neutros no conflito.

Poucos dias depois esse fato, manifestantes indignados com a postura da Alemanha passaram
a organizar os chamados meetings2. Ao comentar sobre os primeiros meetings, o “Diário” apontou que,
eram organizados por acadêmicos. Estes, juntamente com o restante da população, reuniam-se nas
praças, principalmente na Praça Tiradentes e na Praça Osório, promoviam longos discursos, cantavam
hinos dos países aliados e a Marselhesa, e saíam pelas ruas de Curitiba carregando bandeiras das
nações amigas do Brasil. Fazia parte do ritual dos manifestantes seguir vaiando no decorrer do
caminho os estabelecimentos alemães, até as sedes dos jornais e dos consulados dos países aliados.
Quando esses atos ocorriam, os representantes dessas instituições discursavam para os manifestantes;
geralmente, expressavam suas opiniões sobre a guerra e sobre os alemães que se encontravam na nossa
cidade.

O “Der Kompass”, jornal de orientação católica mantida pelos padres franciscanos, pelo que
as fontes indicam, foi o primeiro alvo identificado pelos manifestantes para exteriorizarem sua
indignação contra a Alemanha; a sede desse jornal foi apedrejada logo no primeiro dia de
manifestações. Contudo, outros estabelecimentos também sofreram represálias nesse primeiro dia, a
saber: o “Teatro Hauer”, a “Escola Allemã”, a “Sociedade Teuto-Brasileira” e algumas casas
residenciais.

Nos dias de abril que se seguiram foram organizadas diversas manifestações. Segundo os
jornais, mais de dois mil pessoas caminhavam pelas ruas de Curitiba cantando hinos e carregando
bandeiras. Em um dos meetings, o orador Domingo Petrelli convidou o povo a fazer uma visita ao
“sapateiro Elias”. Segundo boatos que circulavam na cidade, este senhor de origem germânica, estava

2
“Meetings” era o termo utilizado pela imprensa para se referir as manifestações do contexto que estamos
trabalhando.

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despedindo de suas oficinas os trabalhadores brasileiros. O povo seguiu o orador e, no caminho


protestavam e esbravejavam “disposições menos louváveis”. Um grande tumulto se formou na frente
da casa do “sapateiro”, e a presença do Chefe de policia dispersou a multidão. No dia seguinte, os
funcionários brasileiros da sapataria de “Elias” foram à redação do “Commércio do Paraná” para
declarar que até o presente momento ninguém havia sido despedido.

No dia 15 de abril ocorreu um grande comício3 que, segundo os jornais, chegou a reunir mais
de 20 mil pessoas nas ruas que, cantavam e se emocionavam carregando bandeiras dos países aliados e
protestando contra a Alemanha. É difícil sugerir uma precisão quanto a essa quantidade numérica de
participantes realmente ativos nos atos, ou seja, levamos em conta aqui, também a enorme quantidade
de gente que acompanhava os protestos por curiosidade ou outro motivo qualquer, não estando todos,
necessariamente envolvidos politicamente e/ou ideologicamente aos atos contra estabelecimentos e
instituições de origem germânica na cidade.

Se por um lado não podemos precisar a real intenção de todos os manifestantes, por outro, foi
possível constatar que a multidão despertou medo na população alemã e teuto-brasileira. No dia 12 de
abril, por exemplo, o jornal “A República” publicou que diversos negociantes alemães e teuto-
brasileiros haviam solicitado ao Chefe de Polícia garantias aos seus estabelecimentos, entre eles
Antonio Schneider, diretor do outro jornal alemão de visibilidade na cidade, o “Der Beobachter”.

Atos de violência também pareciam, de certa forma, ser tolerados por órgãos da imprensa
naquele momento. Exemplificamos com a publicação do “Commércio do Paraná” com a notícia
“Aventuras do Anacleto”, um:

[...] minúsculo homem, falador e beberrão, que quando bebe tem a mania de se
preoccupar com as cousas magnas da política nacional [...] Anacleto fôra preso. E
sabem os leitores porque? Pelo facto de ser patriota em excesso. Meio alcoolisado,
o nosso heroe tentou aggredir aos teutos aqui residentes. Pobre Anacleto, nem
patriota pode ser! (Commércio do Paraná, 10 abril 1917)

Ainda no mês de abril constatamos mais alguns eventos marcantes. No dia 18 de abril de 1917
foi publicado no “Diário da Tarde” a matéria “O germanismo no Paraná”. Nesta havia as seguintes
informações: os três deputados teuto-brasileiros, Bertholdo Hauer, Alfredo Heisler e Nicolau Mader,
agiam de acordo com os ideais do Kaiser; entre os redatores do “Der Kompass” estava um oficial
reformado da marinha alemã, e este junto com os padres franciscanos conspiravam contra a segurança
nacional; tanto o “Der Kompass” quanto o “Der Beobachter” funcionavam como órgãos do
imperialismo alemão; as filhas do comerciante alemão Carlos Quentel, residentes em Curitiba,
desejavam ver a Alemanha dominar “[...] o sul do Brasil para cuspir no rosto dos brazileiros.” (Diário

3
Nesse mesmo mês s jornais registraram meetings nos dia: 09, 10, 11, 12, 15, 18, 24 e 25.

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da Tarde, 18 abril, 1917) Pouco tempo após essa matéria, o “Commércio da Tarde” afirmou ter
recebido informações de que na redação do “Der Kompass” funcionava uma estação radiotelegráfica.
Para tentar imaginar o alcance e a seriedade que esses fatos pareciam assumir na época, apontamos a
reação do Chefe de Polícia: este não permitiu que os manifestantes “empastelassem” o “Der Kompass”
após a circulação dessas notícias, isso porque, era preciso averiguar os fatos e revistar o local.

Ora, de fato, todas essas noticias e boatos elucidam um ambiente tomado por uma emergente
desconfiança que a sociedade atribuía aos indivíduos de origem germânica. A desconfiança também
surgia do não entendimento, ou da não aceitação, naquele momento, de ter que conviver com pessoas
que se autodenominavam “teuto-brasileiras”. Nesse sentido, o “Commércio da Tarde” elaborou um
intrigante apontamento, com a seguinte matéria, “Pão pão, queijo queijo – Não há teuto-brasileiros”:

A denominação teuto-brasileira aos descendentes de allemães não se justifica nem


perante a lei, nem em face do sentimento cívico que deve ser definido e único. Com
a permanência de semelhante situação moral, fica o chamado teuto-brasileiro com
duas meias pátrias e, conseqüentemente, com duas portas abertas para a defecção,
para a traição. [...] Assim, a expressão teuto-brasileira sobre ser anphibia é a todo
ponto perigosa naquilo que diz respeito a integridade do carácter nacional.
Chegamos ao instante de definir posições: ou brasileiro ou allemão. Pão pão, queijo
queijo. (COMMÉRCIO DA TARDE, 21 abril 1917)

Na última semana de abril sugiram diversas notícias relacionadas à atuação da igreja católica
alemã em Curitiba. Para o “Diário”, os franciscanos e as freiras da ordem da Divina Providência
estavam agindo de acordo com as ambições do Kaiser. O jornal acusou os membros da igreja de
“teuto-brasileiros de caráter dúbio e agressivo”, demonstrando, novamente, que o descontentamento
com pessoas “teuto-brasileiras”. Além disso, o jornal constatou que essa identidade “dúbia” fazia parte
de mais uma das artimanhas do “perigo alemão”.

As freiras da Divina Providência, após uma série de “ataques”, manifestavam sua opinião:

Nos primeiros três meses tudo ocorreu conforme estávamos acostumadas. Ninguém
imaginava a tormenta que estava formando devido a situação política brasileira,
ocasionando o corte das relações diplomáticas entre a Alemanha e o Brasil. O povo
brasileiro aproveitou a ocasião para demonstrar o seu ódio o qual já estava
escondido (grifo nosso) contra o povo alemão. Diversas manifestações de rua
aconteceram naquele tempo, principalmente na Rua do Rosário, uma vez até com
apedrejamento da nossa casa. Mas graças a rápida intervenção da polícia somente
uma das janelas foi quebrada. Em uma das classes nós achamos também uma bala
de pistola a qual tinha sido atirada contra nossa casa. (Chronik Unserer
Niederlassung in Coritiba, 1917)

Esse trecho das “Crônicas” nos parece bastante significativos. Ora, é bem provável que essas
memórias tenham sido escritas no calor dos acontecimentos. Logo, precisamos levar em conta que os
sentimentos dos teuto-brasileiros e alemães certamente estavam abalados diante da complexidade da

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situação. Contudo, aponta um fator que, no mínimo, levanta uma série de questões. O que poderia
significar a afirmação, de que a população brasileira já carregava um ódio aos alemães antes da
guerra? Qual a imagem que a população brasileira foi formando no decorrer dos anos em relação aos
imigrantes alemães e seus descendentes? Esse artigo não tem como responder essas questões, mas ao
apontá-las acreditamos estar cumprindo parte do dever do historiador, a saber: apontar novas questões
a partir da interpretação.

De maio a outubro acompanhamos a explosão de notícias relacionadas a necessidade de


nacionalizar as escolas alemãs, além de ressurgirem, com mais intensidade, as notícias relacionadas as
ambições pangermânicas no sul do Brasil.

Em outubro, após o torpedeamento de mais dois navios, o Brasil declarou guerra à Alemanha.
Parece-nos que, esse período pode ser caracterizado como o momento de maior tensão na história dos
alemães e seus descentes até, aproximadamente, o desenrolar da “Era Vargas”, momento com outra
conjuntura, mas igualmente marcado por tensões entre os grupos.

Nas palavras das Irmãs da Divina Providência:

Nos últimos dias de outubro aconteceu a declaração de guerra do Brasil para com a
Alemanha. Agora estourou o ódio e a perseguição contra a descendência alemã.
Diariamente apareciam nos jornais artigos difamadores contra imigrantes alemães
e a Alemanha, em geral. Também nós não fomos poupadas. Os jornais e
principalmente o Diário da Tarde, a República e o Commércio do Paraná,
publicavam as maiores difamações contra nós e a nossa escola. Pior ainda acontecia
aos sacerdotes alemães e principalmente aos franciscanos. Líamos e ouvíamos
diariamente expressões como esta: Morra a Alemanha. Morra o Kaiser. Morram as
freiras alemãs. Abaixo os padres. A língua alemã foi proibida. Em qualquer lugar
público, bonde, ônibus ou casa, estavam anexadas as palavras “é proibido falar em
língua alemã.” Também na nossa querida igreja alemã silenciou a oração em
alemão e também os hinos em alemão como também os sermões. (...) Era a lei do
silêncio que tomava conta de nós. O martírio se tornava cada vez mais sério (...).
Curitiba, a tão querida, se tornou uma cidade muito difícil para todos os
descendentes de alemães.

(Chronik Unserer Niederlassung in Coritiba, 1917)

Os meetings após a entrada do Brasil na guerra tornaram-se mais violentos. No dia 28 de


outubro de 1917, as associações Verein Thailia e Handwerker Unterstützungs Verein, o Teatro Hauer,
e a “Escola Allemã” foram invadidos pela multidão. Bandeiras da Alemanha, retratos do Kaiser, e
outros ornamentos foram arrancados desses locais e queimados em uma grande fogueira na Rua XV.
Em seguida a multidão dirigiu-se até o “Der Kompass” que foi “empastelado” e incendiado.

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Após o decreto de medidas oficiais as manifestações e atos contra alemães e teuto-brasileiros


diminuíram. As autoridades cumpriam seu dever, e, por vezes, chegaram a efetuar prisões, como essa
descrita pelo “Diário”:

E toda vez que seis súbditos do Kaiser, se reúnem e esgotam seis dúzias de bier, lá
vai Deutschland über alles... Os guardas passaram pelos boches e pediram para as
manifestações cessar, mas... ‘Goth unter uns, und bier auch’. Foram presos.
(Deutschland über alles..., 29 outubro 1918).4

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na elaboração desse artigo buscamos resgatar resquícios de um evento pouco conhecido na


história dos contatos sociais no ambiente curitibano da segunda década do século XX. Os debates em
torno das situações conflituosas em relação aos germânicos e seus descendentes no Brasil foram mais
visados pela historiografia no contexto que abrange as décadas de 20 e 30, incluindo o Estado Novo,
até a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

Se por um lado, o Brasil pouco se envolveu diretamente nas batalhas que ocorriam no “Velho
Continente”, por outro, as consequências desse evento internacional foram duramente sentidas no
cotidiano da capital paranaense, sobretudo para pessoas de origem alemã. Estudar imigrantes alemães
e seus descendentes no período da Primeira Guerra Mundial significa adentrar em um campo repleto
de estigmas e particularidades. Ao esmiuçar as fontes, elementos que compõe a complexidade da
conjuntura emergiram. O olhar do historiador direcionado para uma análise crítica dos documentos
nem sempre acha respostas concretas e objetivas para suas indagações. No entanto, também se insere
no oficio historiográfico o levantamento de novas abordagens, e/ou problematização de novas ou
velhas questões. Nesse sentido atentamos para a questão em torno da categoria teuto-brasileira
enquanto elemento constituinte de identidade, dentro, por exemplo, de um espaço urbano como
Curitiba. Também nessa perspectiva, chamamos atenção para os periódicos, almanaques e outras
publicações escritas em alemão, enquanto formadores de opinião e influenciando na construção de
identidades. Esta questão já foi vista, por exemplo, por Giralda Seyferth em colônias de Santa
Catarina. A mesma autora chegou a citar o periódico Der Kompass editado em Curitiba, como um dos

4
A frase “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) faz parte da canção “Das Lied der Deutschen” (A
canção dos alemães), criada por August Heinrich Hoffmann Von Fallersleben, em 1841.Mais tarde, trechos da
mesma, formaram o hino nacional da Alemanha. Goth unter uns, und bier auch, poder ser traduzido como: Deus
entre nós, e cerveja também.

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jornais que preservavam o Deutschtum (SEYFERTH, 2003, p.41), contudo, no Paraná este ainda não
foi devidamente explorado. Logo, acreditamos que para uma melhor compreensão da história da
formação dos contatos entre grupos diversos, é preciso que, o universo que compõe os imigrantes
alemães e seus descendentes seja mais bem vislumbrado. Nesse sentido, apontamos para a necessidade
de novos estudos a respeito desse tema.

Grande parte dos estudiosos que notaram na imigração alemã diversos elementos para análises
concordaram, ao menos em partes, que a inclusão do imigrante germânico na cidade de Curitiba foi
um processo, no mínimo, carregado de polêmicas. E, neste sentido, parece-nos que este artigo não
fugiu a esta perspectiva. Contudo, acrescentamos que as consequências em torno deste complexo
período de inserção, de diversas formas, permaneceram visíveis, ou presentes, nas relações do
cotidiano. Nessa conjuntura, levando em conta que os fatos por si só não se explicam, acreditamos que
os atos hostis provocados em Curitiba, durante os meses de abril e outubro de 1917, foram também
compostos de fragmentos formados durante anos de relações étnicas.

FONTES PRIMÁRIAS

JORNAL Diário da Tarde. Curitiba. 1914-1918

JORNAL A República. Curitiba. 1914-1918

JORNAL O Commércio do Paraná. 1914-1918

Crônicas das irmãs da divina providência (Chronik Unserer Niederlassung in Coritiba). Curitiba.
1914-1918

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Brasil e Alemanha Imperial (1871-1918):

Diplomacia, Imigração e Imperialismo

Wilson Maske (PUCPR)

PALAVRAS-CHAVE: Política Externa Brasileira; Imigração Alemã; Imperialismo Alemão; Relações Brasil-
Alemanha.

1. BRASIL E ALEMANHA: JOGO DE INTERESSES E ExPANSÃO ECONÔMICA

As relações entre Brasil e Alemanha vão para muito além do café, principal produto
brasileiro durante a Primeira República em termos de exportação, considerando que as
relações diplomáticas estabelecidas entre países envolvem motivações políticas, ideológicas e
interesses econômicos. Esses interesses estão inseridos em um contexto de mudanças
estruturais ocorridas no Brasil, como a mudança de regime político para a República em 1889.
O Brasil, apesar de grande, era ainda um ator secundário no quadro mundial, fornecendo
matérias-primas, café, açúcar, tabaco, borracha e outros produtos básicos, gravitando entre a
Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Desta forma, a diplomacia brasileira se esforçou para
divulgar seus produtos na Europa visando às exportações, à atração de imigrantes e de
capitais.

Ao analisar a reorientação da política externa brasileira com o advento da República,


foi possível notar que houve por parte do governo brasileiro principalmente com a gestão de
Rio Branco, um grande esforço por colocar o Brasil em uma posição mais representativa no
quadro internacional, assim como, fugir do predomínio da Grã-Bretanha, que exercia sobre o
Brasil grande influência econômica. Neste contexto, a americanização das relações
internacionais se mostrava para o Brasil algo vantajosa, já que além de encontrar mercado
para seus produtos de exportação, recebia benefícios em sua relação com Estados Unidos.

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Com uma política exterior de viés pacifista, o Brasil igualmente teve a possibilidade de
estabelecer relações com outros países, como a Alemanha, com quem passou a ampliar o
comércio de importação e exportação e atrair mão-de-obra imigrante, algo que traria grandes
transformações à economia nacional, mas também fazia parte do projeto de modernização do
país com o advento do regime republicano.

Na Alemanha, foi primeiramente o Zollverein em 1834, união aduaneira dos estados


alemães com exclusão da Áustria, que demonstrava a aceleração da Segunda Revolução
Industrial nos territórios de língua alemã, situados na Europa Central, em especial as regiões
do Ruhr, do Sarre e da Saxônia. As dificuldades de unificar o país estenderam-se até a década
de 1860, quando o Reino da Prússia passou a liderar o movimento de unificação, por meio de
uma estratégia militar. Maria Luisa Renaux Hering nos oferece um panorama dessa situação:

O processo de unificação do reino alemão favoreceu o desenvolvimento


econômico e a “revolução industrial’ alemã, que se iniciou propriamente em
1850 e que teve nos anos subseqüentes à unificação, conhecidos como”
Gründerjahre”, “ Anos de Fundação”, o seu “boom”. Nesses anos, a
emigração foi desmotivada – o Estado necessitava de mão-de-obra para sua
indústria pesada e para construção de ferrovias. A burocratização e a
militarização da vida pública, mais uma política interna imperialista,
juntaram na Alemanha do II Reich nacionalismo, militarismo e monarquia e
a tornaram economicamente a nação mais poderosa da Europa. O próximo
Kaiser, Guilherme II, ambicionando tomar as rédeas do estado, exigiu a
demissão de Otto von Bismarck. Seu governo caracterizou-se por uma linha
política mais conciliatória e assegurou a posição da Alemanha como
“Weltmachtstellung”, potência mundial. (HERING, 1995, p. 32, grifo do
autor).

Com a saída de Bismarck, a Alemanha guilhermina passou então a desenvolver uma


política externa ambiciosa, especialmente voltada para o imperialismo. Contudo, não
dispunha de espaço econômico suficiente para a dimensão que o desenvolvimento econômico
de sua força produtiva alcançou. Houve assim, uma grande necessidade por parte da elite
política e econômica alemã de dilatar as áreas de influência do capitalismo alemão, para obter
fontes de matérias primas, mercados para vendas de manufaturas e inversão de capitais
acumulados. Nisso, podemos incluir o esforço em obter melhores mercados consumidores
para os produtos industriais alemães, colônias que pudessem também oferecer fontes de
matérias-primas e locais para investimento dos capitais auferidos com o desenvolvimento
industrial. A Europa Oriental, da Ásia e da América Latina, notadamente o Brasil figuravam a

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partir de então como áreas de interesse para os alemães. Além disso, o Brasil em especial, em
função da grande presença de imigrantes alemães, representava uma área de especial interesse
para a diplomacia e o comércio do Império Alemão.

Por sua vez, o Brasil tinha grande interesse em ampliar seu escopo de parceiros
internacionais, tanto para fomentar seu mercado de produtos tropicais, quanto para fornecer
mão-de-obra para lavouras de café, ocupar espaços demográficos vazios, além da formação de
pequenos proprietários agrícolas que com seu trabalho abasteceriam as grandes cidades,
construindo juntamente obras públicas. As colônias eram criadas por iniciativa de particulares
ou iniciativa dos governos, porém existiam divergências entre a política imigratória do poder
central e as reações tomadas pelos governos das províncias·

2. A IMIGRAÇÃO COMO UMA EMPRESA

De acordo com Willems (1980) o povoamento sistemático do Brasil meridional com


imigrantes germânicos iniciou-se em 1824. Os imigrantes germânicos abandonaram uma
cultura em plena mudança, com ritmos variados, a sociedade rural estava se secularizando, e
as comunidades vinham se articulando aos mercados urbanos e a industrialização crescente.
Portanto, a imigração esteve ligada a motivos políticos religiosos, mas também a uma forma
de resolver dificuldades econômicas, prevenindo ou modificando situações indesejáveis.

Um dos fatores motivadores da colonização privada é o comércio de terras, fundadas


com capital estrangeiro ou brasileiro, organizadas individual ou socialmente, as terras eram
vendidas pelo menor preço possível, adotando o sistema de colonização adequado a seus
desígnios econômicos. Os imigrantes alemães trouxeram um padrão econômico que influiu
decisivamente sobre a cultura do Brasil meridional, pois eram em geral camponeses
habituados com a exploração capitalista das terras, produzindo não apenas para sua
subsistência, mas também para atender as demandas de um mercado em crescente demanda
por variados produtos, em especial os ligados à produção de alimentos, laticínios e embutidos.
Os imigrantes também representavam uma considerável mão-de-obra urbana, como
trabalhadores relacionados a ofícios necessários para o fomento ao crescimento das cidades

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no Brasil. Trabalhavam como marceneiros, alfaiates, pedreiros, pintores, padeiros, cervejeiros


e em outras atividades. Além disso, apareciam como comerciantes de atacado e varejo,
profissionais liberais e empreendedores, em especial como industriais.

No tocante às relações entre Alemanha e Brasil, as conexões são já bastante antigas e


precedem a unificação alemã de 1871. Descontando a presença de alemães no Brasil desde o
período colonial (Hans Staden, Erasmo Schetz, João Maurício de Nassau-Siegen, Barão de
Eschwege, entre outros), as relações diplomáticas e comerciais foram pela primeira vez
estabelecidas em 1827, quando as cidades-livres de Hamburgo, Bremen e Lübeck
estabeleceram relações diplomáticas com o Império do Brasil, seguidas pelo Reino da Prússia.
Entre 1827 e 1871, houve um intenso relacionamento entre os Estados Alemães e o Brasil,
relacionados a uma infinidade de áreas de interesse, desde o comércio de cacau e madeiras,
até o agenciamento de imigrantes para o povoamento e provimento de mão-de-obra no Brasil.
Havia pois, uma vasta gama de interesses que motivaram as relações entre o Brasil e a
Alemanha.

Para que seja possível analisar e compreender os fatores que levaram ao


estabelecimento das relações entre Brasil e Alemanha consideramos a teoria das forças
profundas, elaborada por Pierre Renouvin e Jean-Batiste Duroselle, que avaliam que

as forças profundas são aqueles eventos, tendências e características de longa


duração que influenciam ou determinam as relações externas de uma
determinada unidade estatal. Essas forças profundas podem estar
relacionadas com condições geográficas do território do estado, com suas
características demográficas, com seus interesses econômicos, com o jogo de
sua política interna, com a questão da psicologia coletiva, com o
nacionalismo, com a opinião publica, com a influência da mídia e seu
controle, com influência das religiões e dos líderes religiosos, com o papel e
a ação do estadista, entre outras. Nessas condicionantes é que poderemos
encontrar os fatores que determinam as relações internacionais e que servem
de interpretação e de análise para a historiografia das relações internacionais
(RENOUVIN & DUROSELLE, 2000, p.15).

Partindo desta teoria, é possível considerar que os imigrantes se tornaram um


importante fator econômico tanto para a Alemanha pela importância atribuída ao papel dos
imigrantes alemães vistos como porta de entrada para produtos industriais alemães no Brasil,
assim como elementos facilitadores nas negociações com o governo brasileiro. No Brasil, os
imigrantes são vistos como importante fonte de mão-de-obra e posteriormente elemento

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impulsionador para indústria com inovações técnicas e nova mentalidade trazidas,


conseqüente progresso econômico nas regiões em que se estabeleceram como analisaremos
adiante.

As ”forças profundas” se fazem presente também na formação da psicologia coletiva


alemã com a consolidação do nacionalismo e do imperialismo, interesses econômicos que
motivaram o governo alemão e as decisões do chefe de estado, considerando as ambições do
Kaiser Guilherme II, a opinião pública e sua manipulação através das propagandas de
emigração e dos grupos de pressão que exercem influência sobre as decisões do chefe de
estado, como representantes da burguesia, empresários e políticos alemães que lucrariam com
a emigração, isso fica evidente nos escritos de Klaus Richter que analisou fontes alemãs em
Hamburgo:

adeptos do imperialismo e nacionalismo da época consideravam de interesse


nacional que pela emigração os emigrantes não perdessem a sua etnia,
cultura, língua e nacionalidade, mas, sim, formassem poderosos quistos
étnicos no além-mar. Para tal fim, recomendavam que fossem fundadas
colônias agrícolas em regiões que:

Sendo pouco habitadas pelos nativos e possuindo condições climáticas


vantajosas, favorecessem uma imigração alemã em grande escala com boas
possibilidades de desenvolvimento.

Pelo fato de a população nativa ser de “raça inferior” garantissem que a


etnia, cultura, língua e nacionalidade dos imigrantes ficariam preservadas.

A longo prazo fornecessem matérias primas para a Alemanha; e,

No inicio não desenvolvessem indústria própria, dependendo, portanto, da


importação de produtos industriais da Alemanha. (BRUNN, 1971 apud
RICHTER, 1986, p.13)

Ainda de acordo com Richter, em 1891, segundo estimativa do Ministério das


Relações Exteriores Alemão, estavam vivendo cerca de 200 mil pessoas de língua alemã, no
Sul do Brasil. Entusiastas pela fundação de colônias agrárias alemãs demonstravam suas
intenções:

um deles, Karl Ballod, achava em 1899, que seria possível estabelecer de


500 a 750 mil famílias de pequenos camponeses alemães no sul do Brasil.
Um outro, Robert Jannasch, em 1902 calculava que seria possível
estabelecer 500 a 750 mil imigrantes por ano, dentro de 16 a 20 anos, já
estariam vivendo naquelas regiões brasileiras, 100 mil colonos alemães, os
quais então, comprariam artigos importados da Alemanha, num valor de
aproximadamente, 10 milhões de marcos. Eis aí, a importância que muitos

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na época estavam atribuindo à colonização alemã no Brasil meridional para a


indústria e comercio da época. Segundo eles, os colonos alemães até então
introduzidos lá, já estariam formando uma classe dominante na economia
sul-brasileira. Esperava-se que ele, embora cidadãos brasileiros ficassem
economicamente vinculados ao império alemão. (BRUNN, 1971 apud
RICHTER, 1986, p.14)

Contudo, apesar dessas intenções, muitos desses planos não se mostravam viáveis por
uma série de condições, a grande maioria dos alemães estabelecidos no Brasil aceitavam a
soberania nacional e seus filhos se reconheciam como cidadãos brasileiros, sem que esse
domínio econômico alemão fosse imposto, mas se preservassem os valores de vida alemães.
Além disso, existiam divergências entre imperialistas alemães, ministros de relações
exteriores e ministros do comércio na Alemanha. Este último considerava urgente a
exploração de novos mercados transatlânticos e mercados consumidores de produtos alemães.
De outro lado, o ministro do interior não estava interessado na emigração, pelo receio de falta
de mão-de-obra na Alemanha. Assim, vários planos de imigração e colonização com colonos
alemães não foram levados adiante:

ao mesmo tempo, o embaixador alemão no Brasil, Krauel, visitara as áreas


de colonização teuta. Em 1895, compilou um relatório extremamente
positivo sobre a situação dos alemães e seus descendentes no sul do país.
Teriam alcançado posição econômica fortíssima em Santa Catarina,
dominando o comércio de importação. Joinville seria uma cidade alemã.
Mesmo assim, Krauel lamentava que os teuto-brasileiros ainda não
exercessem grande influência política e que, devido ao numero insuficiente
de imigrantes, até então não teriam conseguido penetrar a região de forma
favorável aos interesses alemães. (BRUNN, 1971 apud RICHTER, 1986,
p.17).

3. AS SOCIEDADES COLONIZADORAS

Por trás da iniciativa particular de recrutamento de emigrantes estavam os interesses


das companhias colonizadoras. Havia interesse na exploração de novas áreas, movimentação
de pessoas e venda de propriedades fazendo da emigração uma empresa e dos emigrantes uma
espécie de “mercadoria”. Havia competição entre as agências que ganhavam por emigrante
embarcado, utilizavam-se então de propagandas. A cidade de Hamburgo era um importante
porto de embarque de emigrantes, não apenas de alemães, mas também de indivíduos

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originários da Europa Oriental, como poloneses, judeus, russos, interessados em uma vida
melhor na América.

Segundo Hering (1995) a emigração teve papel decisivo no florescimento da


navegação alemã. Todas as firmas marítimas importadoras tinham sua quota nos negócios
emigratórios. O desenvolvimento das companhias “Hapag” e do “Nordeutscherlloyd” estava
relacionado à emigração. O recrutamento de passageiros virou uma cadeia de negócios à qual
os imigrantes tinham de se sujeitar. As atividades das sociedades colonizadoras estavam
ligadas a interesses econômicos alemães, apoiados no capitalismo comercial liberal. Como
citado anteriormente, desde 1827 já existia entre o Brasil e Hamburgo um tratado de comercio
e navegação fechado com as três cidades de Bremen, Lübeck e Hamburgo, visando ampliar as
relações econômicas entre ambos. Os empresários hamburgueses, vendo possibilidades de
negócios com a imigração, e em apoio aos interesses brasileiros, fundaram a “Sociedade de
Fomento à Emigração Alemã para o Brasil, posteriormente se transformando na “Sociedade
de Fomento à Emigração Alemã para o Brasil” 1.

3.1 AS COLÔNIAS E SEUS REFLEXOS ECONÔMICOS

Por iniciativa particular ou governamental formaram-se no Brasil vários tipos de


colônias, como as de companhias de colonização e as colônias surgidas pela iniciativa privada
de pessoas físicas. Conforme Pinheiro e Holanda (2006, p. 107-108) a posição do governo
brasileiro frente aos problemas de imigração e colonização dependia em grande parte dos
recursos disponíveis e também da política econômico-financeira adotada. Um mês após a
proclamação da República, o governo provisório atendendo a interesses a imigração, decretou
que fossem considerados cidadãos brasileiros todos os estrangeiros aqui residentes a 15 de
novembro de 1889 e aqueles que tivessem residência no país por dois anos. O decreto de

1
Conforme Renaux (1995, p.39) É em nome dessa sociedade que em 1848 o Dr. Blumenau, como passou a ser
chamado o pratico de química que defendeu tese sobre alcalóides, chegou ao Brasil, financiado por grupo
hamburguês que lhe garantiu a devolução de suas despesas de viagem e o pagamento de um bom ordenado
mensal. No sul do Brasil deveria fazer o levantamento de tudo que dizia respeito à colonização e a transferência
de imigrantes europeus, para em seguida prestar informações sobre os meios de transporte, preço dos gêneros e
sistema de comércio locais.

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janeiro de 1890 procurava atrair o “proletário agrícola nacional” para a tarefa de colonização
e chamava a atenção sobre a necessidade de povoamento das fronteiras.

Foi pela lei orçamentária de 1894 que a colonização e imigração passaram a ser
atribuições dos estados. Uma vez estabelecidos os imigrantes alemães interferiram
grandemente no processo econômico brasileiro, especialmente passaram a desenvolver
indústrias próprias importando maquinismos e promovendo novas técnicas, além do
comércio, fator propulsionador de progresso para o Brasil. Conforme Oberacker (1968) os
empreendimentos industriais frequentemente se associavam a casas de importação e
exportação, que passaram a adotar novos rumos de comércio no país e assim foram
proporcionadas novas possibilidades de negócios com os alemães 2. Logo, a participação
econômica de empresários ligados ao comércio de exportação e importação se tornou
fundamental para os estados meridionais do Brasil e para a formação de um segmento
empresarial num mundo burguês em expansão.

Devemos notar que a iniciativa privada fomentou o surgimento de uma indústria


bastante diversificada para os padrões da época, e que se concentrou no Rio Grande do Sul,
no Paraná e em Santa Catarina3. Destarte, é possível pontuar regiões específicas de
empreendimentos empresariais como o vale do Itajaí, em Santa Catarina, por exemplo, foco
de estudo da historiadora Maria Luiza Renaux Hering, já citada anteriormente.

Conforme Hering (1987, p.13) as empresas têxteis do Vale do Itajaí caracterizaram-se


pelo investimento exclusivo de recursos particulares, provenientes de recursos dos próprios

2
A firma de Theodor Wille, fundada em Santos, em 1844, pelo comerciante Hamburguês, introduziu no
mercado interno grande copia de materiais até então desconhecidos, além das máquinas, conquistou também o
mercado mundial para muitos produtos brasileiros. Na Bahia, comerciantes teutos como Suerdick, Gerardo
Danemann, Hermann Stoltz abriram o mercado mundial para o cacau e o tabaco.
3
Segundo Fouquet (1974) No Rio Grande do Sul, nomes como Becker, Bins, Berta, e Wallig lembram fundições
e metalurgia; Ritter, Bopp, Thofehrn e Becker bebidas; Oderich conservas; Dreher vinhos; Neugebauer,
chocolates; Poock, fumo; Strassburger artigos de couro; Gerdau, móveis; Sperb e Renner, produtos têxteis. No
comércio aparecem os nomes Fraeb, Bromberg, Mentz, Ullmann e Bier.
Em Santa Catarina igualmente se apresentam famílias e pessoas que se notabilizaram, como: Hering, Renaux,
Karsten, Zadrozny, Cremer, Kühnrich e Schlösser, na indústria têxtil; Albano Scmidt e Paul Werner. Em
atividades diversas, as famílias Feddersen, Lorenz, Weege, Jensen, Colin, Wetzel, Lepper, Stein, Bornschein e
Käsemodel, sendo que no comércio o primeiro lugar cabe a família Hoepke, a casa Möllmann, fundada em 1869,
é uma das mais antigas firmas comerciais.
Em Curitiba, no Paraná, a família de Gottlieb Müller desde 1878 era proprietária da indústria de ferro Marumby,
sempre em expansão, e Florian Essenfelder fundou em 1911 uma fábrica de pianos. Hauer, Boutin, Heissler e
Hatschbach, eram nomes proeminentes na indústria e no comércio. Schrappe pertencia ao ramo editorial, com a
conhecida Impressora Paranaense, enquanto os Stellfeld no ramo farmacêutico e os Johnscher no ramo hoteleiro.

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empreendedores, o que os tornou economicamente independentes e com certo grau de


estabilidade. Constata-se sua independência em relação ao governo pela ausência de subsídios
e favores (isenções fiscais, licenças especiais) que as empresas mais próximas dos grandes
centros recebiam e em relação às instituições bancárias, inexistentes localmente. Decorre
dessa auto-suficiência e solidez a capacidade de manter-se no mercado e de resistir a
conjunturas difíceis.

Baseando-se ainda nos estudos de Hering, houve uma integração do vale do Itajaí ao
quadro amplo da industrialização brasileira, na forma de pequenas e médias empresas
familiares, independentes com relação à instituições financeiras, e que possuíam mão-de-obra
qualificada, treinada no ambiente do artesanato e da revolução industrial alemã, e que trazia
consigo a valorização da qualidade do produto final e do cooperativismo desenvolvido nas
dificuldades surgidas nos primeiros anos da imigração. Estas atitudes tiveram prolongamento
nas relações empresariais que se transformaram em empreendimentos sólidos e se expandiram
nacionalmente de forma autônoma:

se existiu algum fator de ligação externa, como muitos o querem, este não se
teria ligado através das regiões economicamente mais desenvolvidas do país,
mas sim pela expansão da economia catarinense para os projetos
internacionais. Tratava-se de relações pessoais no intercambio entre os
comerciantes alemães e os imigrantes da mesma origem. (HERING, 1987,
p.13)

Logo, mapeando tais reflexos para economia brasileira, pontuando espacialmente a


localização de empreendimentos alemães, foi possível perceber casos específicos e
diferenciados de desenvolvimento econômico principalmente na região Sul do Brasil. Com
desenvolvimento próprio, de acordo com recursos disponíveis e como forma de resposta a
problemas que se apresentaram para estes imigrantes, que através de muito trabalho e de sua
mentalidade de iniciativa, transformaram suas fábricas em grandes empreendimentos
industriais.

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4. IMIGRAÇÃO E RELAÇÕES EXTERIORES

Como já explicitado, o objetivo do presente estudo é analisar os reflexos econômicos


da imigração alemã para o Brasil e o jogo de interesses que nortearam sua relação com a
Alemanha. Com este intuito, utilizamos a teoria das forças profundas, desenvolvida por
Renouvin e Duroselle, o que propiciou perceber que a imigração de alemães para o Brasil foi
um fator que auxiliou em grande medida o processo de desenvolvimento industrial no Sul do
Brasil. Considera-se então um quadro complexo que envolve interesses nacionais
influenciados por diferentes grupos de pressão no seio do estado. A Alemanha, no período
analisado, se preparava para desempenhar um papel preponderante no quadro internacional,
levando em conta a força do nacionalismo que era comum em grupos políticos que
ascenderam ao poder logo após a ascensão ao trono imperial do príncipe Guilherme, neto de
Guilherme I, em 1888. Grandes grupos econômicos alemães, ligados aos grandes negócios
internacionais, começaram a pressionar o novo imperador a assumir uma postura mais
agressiva no cenário internacional, para ampliar o poderio econômico do país e fomentar o
expansionismo do capitalismo alemão.

Foi nessa perspectiva que o Brasil interessou à Alemanha, dados os grandes


empreendimentos imigratórios, também bastante lucrativos para donos de agências de
emigração, cujos interesses, tanto públicos quanto privados, motivaram empreendedores
alemães a estabelecer relações com o governo brasileiro. As várias formas de colonização,
ainda que algumas não tenham alcançado o êxito esperado, serviram para contemplar, ao em
parte, os interesses de ambos os países.

Assim, com base principalmente na leitura de Richter, podemos avaliar que as


atividades de colonização não foram financeiramente vantajosas para os alemães, de início a
Sociedade Colonizadora Hamburguesa, apoiada por interesses capitalistas, lucrava com o
crescimento da marinha mercante alemã em virtude da emigração. Comerciantes de cidades
alemãs também lucravam, firmando contratos com governos de estados brasileiros para a
instalação de colônias. Logo, surgiram empreendimentos coloniais pela iniciativa privada de
particulares, como o exemplo do Dr. Hermann Blumenau, fundador da grande colônia que
levou seu nome e que representa o empreendimento de maior sucesso na história da imigração

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alemã para o Brasil. Também surgiram colônias de parceria, pela iniciativa de latifundiários
que subdividiram suas terras para fins de colonização. De forma semelhante, podemos notar o
aparecimento de colônias de companhias de colonização, fundadas por sociedades
colonizadoras, sendo especialmente notadas no Estado de Santa Catarina, onde foi um dos
mecanismos mais utilizados pelo governo estadual para promover o povoamento e a
colonização de seu território. No entanto, é necessário considerar que muitos desses
empreendimentos fracassaram, e muitos colonos enfrentaram situações adversas, alguns
sendo enganados pela propaganda que colocava a América como um lugar ideal, por vezes os
programas de colonização foram pouco eficientes. Mesmo nos casos em que a administração
era séria e os colonos eram colocados a par das dificuldades que iriam ser enfrentadas de
antemão, os casos de insucesso também predominavam.

Ao buscar a perspectiva brasileira em tais relações se mostra importante considerar a


avaliação de Klaus Richter, de que, pelo ponto de vista financeiro, atividades como a da
Sociedade Colonizadora Hanseática acabaram por perder o capital nela investido,
principalmente considerando os ambiciosos interesses dos círculos imperialistas e
nacionalistas alemães, de criar vastos quistos étnicos no Sul do Brasil. No entanto, foi através
destas sociedades colonizadoras que várias regiões puderam ser colonizadas e tiveram a
médio e longo prazo, efeitos econômicos positivos sobre o quadro econômico das regiões em
que se instalaram. Ainda que o sucesso esperado não logrou ocorrer, o empreendimento de
povoamento do território e sua ocupação econômica de fato se fundamentaram. De acordo
com a leitura do pastor Fugmann, analisando a colonização alemã, podemos afirmar que:

a contribuição dos alemães na economia e cultura do Paraná foi significativa.


Mesmo que não possamos apresentar dados estatísticos específicos do
passado distante, as fábricas, as casas comerciais, que ao longo do tempo, a
partir de um começo humilde, se desenvolveram, bem como a história desse
desenvolvimento, isoladamente ou como um todo, constituem uma parcela
da história econômica paranaense (Fugmann, 2008, p. 159).

Dessa mesma forma, Hering estudando o desenvolvimento econômico do Vale do


Itajaí, avalia que nesta região do nordeste de Santa Catarina, a fase rural foi superada após os
primeiros trinta anos desde a fundação das colônias de Blumenau e de Brusque. O modelo
colonial não havia se esgotado, apenas delinearam-se na época os traços de uma nova
atividade, a agricultura fomentou a indústria de beneficiamento, fazendo surgir fábricas
conhecidas em todo o país. O progresso do comércio acumulou capitais, que foram investidos

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na experiência artesanal e fabril dos imigrantes alemães. A indústria têxtil criada se tornou a
identidade econômica da região.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a situação industrial do Brasil se modificou


consideravelmente. Nessas ocasiões, a importação de mercadorias de determinados países
chegou a ser sustado. Logo, o exterior já não podia satisfazer as necessidades do mercado
consumidor brasileiro. Assim, as indústrias existentes no país, foram estimuladas a se
expandir e os empresários puderam se dedicar a ampliar as instalações de seus
empreendimentos. Foi então, da iniciativa particular que surgiu uma indústria bastante
diversificada, originada numa indústria artesanal, em sua maioria foi criada por imigrantes e
suas famílias enraizadas no país. Nos três estados do sul do Brasil, os alemães ocupavam a
liderança, com relação à industrialização, se incorporando à indústria nacional e estimulando
a economia brasileira, o que vinha atender às necessidades brasileiras e aos interesses de
desenvolvimento econômico e de plena ocupação territorial do espaço geográfico do Estado
Brasileiro.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através dos resultados obtidos foi possível mapear interesses alemães e brasileiros no
estabelecimento de relações diplomáticas que envolveram questões complexas como pressões
internas, necessidades econômicas e ideologias relacionadas ao imperialismo de fins do
século XIX e início do XX. Nesse jogo de poder, entre divergências, lucros e fracassos pode-
se avaliar de forma positiva os reflexos da imigração alemã para o Brasil. Os núcleos
coloniais podiam ser organizados pelos governos Federal, Estadual e mesmo Municipal.
Particulares e companhias da mesma forma participaram desse processo, visando lucros
trazidos pela venda de terras aos imigrantes, e assim, ocuparam-se áreas escassamente
povoadas.

Dessa forma a imigração esteve ligada às rápidas mudanças políticas e econômicas


ocorridas na Alemanha. Os imigrantes, como agentes econômicos e sociais, trouxeram para o
Brasil mudanças em relação à visão que se tinha frente ao trabalho. As firmas estabelecidas

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pelos alemães, em casos específicos, em muito contribuíram para o desenvolvimento da vida


econômica brasileira se integrando no quadro econômico nacional.

Por outro lado, em relação à questão de que papel o Brasil poderia ter tido no tocante à
expansão do capitalismo imperialista alemão, podemos afirmar que havia sim um interesse
alemão de integrar o Brasil à sua esfera de influência. A rica e diversificada indústria alemã,
especialmente ligada à indústria eletro-mecânica, siderúrgica, de ferramentas, de produtos
químicos e farmacêuticos, tinha um interesse bastante grande de marcar sua presença no
mercado brasileiro. Também o setor financeiro e de investimentos demonstrava interesse pelo
Brasil. Nosso país ainda era em grande parte inexplorado e necessitava de investimentos para
criar uma infraestrutura física para possibilitar o desenvolvimento econômico. Investidores
alemães queriam estar presentes e participar desse empreendimento, pois significava acesso a
novas oportunidades de negócio. As próprias colônias eram em si um lucrativo negócio. A
arregimentação dos colonos, seu transporte, a criação de facilidades físicas para a colonização
e o povoamento eram empreendimentos muito interessantes em termos econômicos para
comerciantes, armadores de frotas, banqueiros e todos aqueles que estavam envolvidos no
negócio da imigração, em especial, em cidades portuárias como Hamburgo e Bremen.

No entanto, quanto à questão de os imigrantes serem vistos como porta de entrada para
produtos alemães no Brasil, as fontes pesquisadas não levam nessa direção. É certo que nos
primeiros tempos de colonização, quanto os colonos ainda não conseguiram por se estabelecer
plenamente e ainda não há uma infraestrutura montada, não existe outra opção a não ser
consumir os produtos fornecidos pela Alemanha. Muitos, inclusive se tornaram grandes
importadores de artigos alemães para o mercado brasileiro.

Mas não podemos perceber a permanência dessa fidelidade com o desenvolvimento de


uma indústria local nas regiões coloniais. Talvez pelo preço ou pela dificuldade de se ter
acesso a produtos manufaturados, a indústria local prospera e os imigrantes alemães que se
tornaram industriais locais, muitas vezes concorriam com produtos importados da Alemanha.
Isso nos sugere que a situação do jogo imperialista era mais complexa. Muitas vezes os
imigrantes eram sim porta de entrada para produtos alemães e atendiam aos interesses
geopolíticos e econômicos do imperialismo alemão na América do Sul. Mas, em muitas
outras vezes, eles podiam ser concorrentes e estar trabalhando contra os interesses alemães em
suas regiões. Principalmente com a Primeira Guerra Mundial, com a diminuição do comércio

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com a Alemanha e com as pressões do governo brasileiro para que fosse acelerada a
integração dos imigrantes alemães e de seus descendentes teuto-brasileiros, houve uma
ampliação dos interesses econômicos de empresários teuto-brasileiros em relação às
possibilidades de negócios no próprio cenário brasileiro e isso demonstra que as ligações com
a Alemanha, lentamente começaram a se enfraquecer.

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ST 05 – MEMÓRIAS CONTRA-HEGEMÔNICAS,
HISTÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 345

EXPERIÊNCIAS CONTRA-HEGEMÔNICAS NA HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO


POPULAR

Adriana Medeiros Farias1 (UEL)

Palavras- chave: Educação Popular. Movimentos sociais e populares. Educação de Adultos.

1 INTRODUÇÃO

Na década1960, no Brasil, os movimentos sociais e populares, num contexto


de efervescência cultural, política e social, destacaram-se por desempenhar um papel
importante nas disputas contra-hegemônicas no que tange à construção da proposta de
educação e de sociedade comprometidas com os interesses das classes subalternas. Referimo-
nos às experiências do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP) (1960), da Campanha
“De pé no chão também se aprende a ler”, da Prefeitura de Natal (1961) e dos Centros
Populares de Cultura (CPCs), criados em todo o país, com o apoio estrutural da União
Nacional dos Estudantes (UNE) nos anos de 1961 e 1962.
As experiências destacadas anteriormente pretendiam atender as demandas
educacionais da população pobre valorizando os saberes construídos na cotidianidade da
cultura popular e conduzindo à reflexão social acerca dos problemas locais. Os trabalhadores
se reuniam nos círculos de cultura, clubes de pais, teatros, teleclubes e cineclubes, onde eram
veiculados programas de alfabetização e de educação de base por meio das escolas
radiofônicas e outras formas de Educação Popular. Nesse contexto, a alfabetização de adultos
se constituiu numa tarefa política e legítima de cultura popular com o objetivo de “libertação
das massas”.
Nesse mesmo período, as idéias de Paulo Freire apontavam com força na
primeira experiência extensiva realizada em Angicos/RN que marcou a história da Educação
1
Doutora em Educação pela UNICAMP. Docente do Departamento de Educação da Universidade Estadual de
Londrina. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação Popular e Educação de Jovens e Adultos
da UEL.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 346

de Adultos e da Educação Popular. A alfabetização de trabalhadores do campo em 40 horas


demonstrou a pertinência do “método”, do “sistema” Paulo Freire, fundamentado nos
princípios dialógicos e humanísticos de educação. Essa experiência contribuiu para o
alargamento do conceito de analfabetismo, questionando a sua relação de causalidade, ou seja,
o analfabetismo como efeito e não causa dos problemas sociais e econômicos do país.
Destacou-se também, a atuação do Movimento de Educação de Base (MEB) na organização e
formação continuada dos animadores e monitores populares, conferindo novos contornos na
condução teórico-metodológica da formação de seus quadros (FÁVERO, 1983). A formação
conduzida pelo MEB enfatizava a metodologia que considerava os conhecimentos e
experiências da escola da vida. Todavia, com o golpe militar de 1964 a disputa em torno do
projeto societário se acirrou e a resistência dos movimentos populares foi relevante para a
construção de referências contra-hegemônicas no enfrentamento da realidade sócio-
educacional. Posteriormente, na década de 1990, identificaremos uma experiência singular de
escola pública democrática e popular na cidade de São Paulo, em especial a experiência do
Movimento de Alfabetização (MOVA), uma parceria entre os movimentos sociais e o poder
público municipal, ressignificando algumas das proposições presentes nas décadas de 1950 e
1960. Com base no exposto, o presente texto tem por objetivo analisar as experiências
situadas no tempo de sua proposição com o intuito de problematizar as suas características
contra-hegemônicas e os desdobramentos para a constituição da história da Educação Popular
e sua vigência na contemporaneidade. Para tanto, utilizaremos da literatura e acervo
documental produzido como referência inicial para a escrita da narrativa da memória destas
experiências, comprometendo a Educação Popular com o legado histórico, crítico e
emancipatório.

1.1 A EDUCAÇÃO POPULAR EM FOCO

As experiências de Educação Popular, das décadas de 1960 a 1980, foram


construídas nas diversas práticas educativas realizadas na América Latina. Nesse tempo, a
ênfase estava na disputa por um projeto coletivo de sociedade, protagonizado por sujeitos
coletivos. Nas décadas seguintes, com destaques para os anos 1990, teóricos e militantes

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latino-americanos debateram a respeito da Refundamentação da Educação Popular com o


objetivo de delimitar a sua vigência na contemporaneidade. A discussão polarizou
equivocadamente defesas em torno do papel político e do aspecto metodológico.
O debate realizou-se na virada do século XX/ XXI, tempo nas quais muitas
organizações da sociedade civil integraram-se à lógica social capitalista em sua etapa de
desenvolvimento neoliberal.
Com as mudanças empregadas na história da Educação Popular é
importante ressaltar que a sua conceituação abarca a complexidade e diversidade das
experiências tecidas ao longo do tempo em diferentes espaços: nas igrejas, nos centros de
educação, movimentos sociais, sindicais e partidários, na gestão pública, nas escolas públicas,
dentre outros. Do mesmo modo, com diferentes sujeitos: camponeses, trabalhadores urbanos,
mulheres, crianças, jovens e adultos, todos pertencentes às classes subalternas.
Contudo, na multiplicidade de conceitos destacamos dois eixos
dialeticamente relacionados que sustentam as práticas sociais enraizadas na Educação
Popular: a natureza política e transformadora e a dimensão político-pedagógica de suas ações.
Trata-se de afirmar o caráter desafiador da Educação Popular como prática social e política
que desafia grupos populares no cotidiano de suas lutas.
A Educação Popular por sua natureza política está associada às formas de
participação popular com o intuito de transformar a realidade social vivida e a condição dos
sujeitos para que estes possam se apropriar dos bens materiais e imateriais, produzidos pela
humanidade. Coaduna com esta perspectiva a concepção freireana que enfatiza:
A educação popular pode ser socialmente percebida como facilitadora da
compreensão científica que grupos e movimentos podem e devem ter acerca
de suas experiências. Esta é uma das tarefas fundamentais da educação
popular de corte progressista, a de inserir os grupos populares no movimento
de superação do saber de senso comum pelo conhecimento mais crítico, mais
além do “penso que é”, em torno do mundo e de si no mundo e com ele
(FREIRE, 2001, p.29).

Confirmando o aspecto destacado por Freire, Tomaz Tadeu da Silva


conceitua Educação Popular como

[...] uma gama de atividades educacionais cujo objetivo é estimular a


participação política de grupos sociais subalternos na transformação das
condições opressivas de sua existência social. Em muitos casos, as
atividades de educação popular visam o desenvolvimneto de habilidades

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básicas, como leitura e a escrita, consideradas como essenciais para uma


participação política e social mais ativa. Em geral, seguindo a teorização de
Paulo Freire, busca-se utilizar métodos pedagógicos - como o método
dialógico, por exemplo - que não reproduzam, eles próprios, relações sociais
de dominação (SILVA, 2000 apud BRANDÃO, 2002, p. 130).

Com base no exposto, o legado da história da Educação Popular se confunde


com o da Educação de Adultos, sobretudo com as experiências de alfabetização de adultos.
Todavia as duas não são sinônimas. As experiências de Educação de Adultos integram o
conjunto complexo de ações culturais, políticas e educativas que congrega os fazeres da
Educação Popular. Esta relação pode ser compreendida quando destacamos algumas
experiências significativas para representar a luta contra-hegemônica à lógica do Estado que
atende aos interesses das classes hegemônicas no poder, no que tange ao atendimento da
demanda de jovens, adultos e idosos.
Refiro-me aos movimentos sociais e populares identificados historicamente
com o projeto coletivo de sociedade dentro dos princípios da Educação Popular,
comprometidos com o projeto de transformação da sociedade denominado projeto de
sociedade socialista. No campo ou na cidade, os movimentos foram representativos da luta
em defesa da democracia e contra a ditadura militar nas décadas de 1960, 1970 e 1980. A esse
respeito, Paulo Freire afirma:

A leitura crítica da realidade, dando-se num processo de alfabetização ou


não e associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de
mobilização e organização, pode constituir-se num instrumento para o que
Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica (FREIRE, 1996, p.24).

As ações contra-hegemônicas a que se refere Freire podem ser


materializadas nas práticas de alfabetização de adultos e de mobilização da cultura popular.
Os princípios da Educação Popular, especificamente incorporados à Educação de Jovens e
Adultos, ressalta a natureza política da prática educativa, negando um fazer pedagógico que se
diz neutro e afirmando a sua intencionalidade política transformadora, dentro de um projeto
coletivo de sociedade.

Contudo, sem a concomitante alteração radical das estruturas societárias, um


sujeito alfabetizado pode permanecer autoalienado do trabalho. Isto é, a
aquisição da leitura e da escrita só faz sentido se for acompanhada da
dimensão política da constituição desse sujeito. O processo educativo na
Educação de Jovens e Adultos não pode se reduzir às ações compensatórias,

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consagradas no espaço da educação formal, sobretudo no espaço escolar,


com as ações supletivas. A dimensão política da EJA exige de suas práticas
educativas a instrumentalização dos seus sujeitos, apropriando-se dos
conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade com o intuito de
compreender, em profundidade, a sua condição subalterna aos meios de
produção e fazer da leitura e da escrita instrumentos de desvelamento da
realidade (FARIAS, 2009, p.19-20).

Embora a aquisição de conhecimentos seja fundamental à emancipação das


classes populares, esta não é suficiente se não estiver atrelada ao projeto amplo de sociedade
que proponha a ruptura com os interesses do capital.

2 EXPERIÊNCIAS CONTRA-HEGEMÔNICAS DE EDUCAÇÃO POPULAR

O Brasil dos 1950 e 1960 viveu sob a égide do nacionalismo


desenvolvimentista. O período denominado “anos dourados” que simbolizaram o governo de
Juscelino Kubitscheck (JK), identificado com a construção e personificação do imaginário
nacional de esperança no futuro e de relativo equilíbrio político, não resolveu as contradições
entre desenvolvimento e capital estrangeiro, tampouco alterou as condições sociais de
miserabilidade que assolava a população brasileira.
As medidas tomadas nos setores da saúde pública, da previdência social, da
assistência social e habitação popular foram inexpressivas. No setor da educação, por
exemplo, os índices indicavam que 50% da população brasileira, que totalizava 30.249.423
pessoas, era analfabeta. Para o governo, tal situação feria o projeto desenvolvimentista, mas
não foi suficiente para o Estado implementar um plano efetivo de alfabetização de adultos.
Apenas no final do seu governo uma iniciativa esparsa possibilitou a criação da “Campanha
de Erradicação de Analfabetismo”, em 1959, com a difusão das rádios-escola no interior do
país.
Posteriormente, no início da década de 1960, o projeto reformista do
governo de João Goulart foi refutado pelas elites capitalistas com interesses distintos,
daqueles expressos pelas massas urbanas operárias e camponesas. O que se disputava eram as
benesses do desenvolvimento industrial produzidas pelo capitalismo. Jango, ao assumir um

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projeto nacional desenvolvimentista avesso aos interesses capitalistas norte-americanos,


provocou os Estados Unidos da América que reagiu desmobilizando o seu governo. Uma das
estratégias denominava-se “Aliança Nacional para o Progresso” que consistia no
estabelecimento de convênios firmados diretamente com os estados, sem a autorização do
governo federal desrespeitando preceitos legais e ferindo a autonomia decisória do país.
No âmbito regional, o nordeste brasileiro foi cenário das correlações de
forças políticas conduzidas pelas disputas eleitorais locais influenciadas pelo domínio norte-
americano e fragilizadas pelo confronto entre as elites arcaicas brasileiras e as organizações
populares em torno de projetos distintos de sociedade. Apesar da crítica ao estilo populista de
governo, o governo de Miguel Arraes no estado de Pernambuco fortaleceu as organizações
locais que lutavam contra a exploração dos trabalhadores do campo. O governo de Arraes, na
ótica dos intelectuais comprometidos com as organizações populares, foi um governo popular
dentro de um estilo político nacional populista, mas que não se estendeu ao populismo. A
participação das massas e sua relação com o poder público podem ser compreendidas como
fenômeno do populismo. O populismo na vertente analisada por José Murilo de Carvalho sob
certos aspectos representa:
manipulação política, uma vez que seus líderes pertenciam às elites
tradicionais e não tinham vinculação autêntica com causas populares. Pode-
se alegar que o povo era massa de manobra em disputa de grupos
dominantes. Mas, o controle que tinham esses líderes sobre os votantes era
muito menor do que na situação tradicional. (...). Exigia certo
convencimento, certa relação de reciprocidade que não era puramente
individual. Vargas e seus sucessores exibiam como crédito a legislação
trabalhista e social, os aumentos de salário mínimo. Sobretudo, a relação
populista era dinâmica. A cada eleição, fortaleciam-se os partidos populares
e aumentava o grau de independência e discernimento dos eleitores. Era um
aprendizado democrático que exigia algum tempo para se consolidar, mas
que caminhava com firmeza (2001, p.147-148).

O autor atenta para uma face do populismo brasileiro que resulta em


aprendizado do exercício da democracia. Para tanto, foi fundamental a contribuição das Ligas
Camponesas, da União Nacional dos Estudantes com o Centro Popular de Cultura, dos
círculos de cultura, do Movimento de Cultura Popular e da Igreja Católica, por meio de suas
pastorais e do Movimento de Educação de Base.
Nessa perspectiva, o Centro Popular de Cultura da UNE enfatizava a cultura
popular como “arte comprometida” que tinha por objetivo a conscientização política do povo.

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Para os estudantes a “arte popular revolucionária” era capaz de impulsionar ações que
levariam o povo a assumir o seu processo de libertação.
O Movimento de Cultura Popular, por sua vez, foi uma criação de políticos,
intelectuais, artistas e estudantes, fundado em 1960, como uma sociedade civil autônoma,
apoiado financeiramente pela administração do prefeito Miguel Arraes. Ele tinha o objetivo
de conscientizar as massas, por meio da alfabetização de adultos e da educação de base.
De acordo com Beisiegel (1992), os círculos e os centros de cultura foram
criados inicialmente no interior Movimento de Cultura Popular do Recife, como espaços que
se destinavam às discussões em torno da educação e da cultura popular acerca dos problemas
da realidade brasileira. Ali, os grupos se reuniam para debater situações do contexto social,
econômico, político e cultural, codificadas nas fichas de cultura: elas traziam a realidade
codificada na expressão imagética (desenho, fotografia e pintura) e serviam como disparador
para o debate entre os integrantes do grupo. A participação de Paulo Freire na coordenação do
Projeto de Educação do MCP/Recife foi decisiva para o amadurecimento das suas idéias em
torno da especificidade da alfabetização de adultos.
Com base nas práticas do MCP outras experiências foram desenvolvidas
dentre elas, aquela realizada na cidade de Angicos (RN), conhecida por alfabetizar
trabalhadores em “40 horas”. O tempo não deve ser considerado como elemento central, mas
o fato de que os trabalhadores de posse da leitura e escrita passaram a ter uma leitura crítica
da realidade, contestando as condições de trabalho a que estavam submetidos (FERNANDES;
TERRA, 1994).
Do mesmo modo, na cidade de Natal, no ano de 1961, Paulo Freire, em
conjunto com intelectuais, estudantes e militantes, repetiram a experiência do MCP, dentro da
“Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler”, deflagrada no governo de Djalma
Maranhão, “pela Secretaria Municipal de Educação de Natal em aliança com o movimento
popular identificado como Comitês Nacionalistas ou Comitês de Rua” (GÓES, 2005, p.7).
As experiências produzidas no interior do MCP demonstraram que o
analfabetismo estava associado à pobreza e à “ignorância” das classes subalternas. A cultura
popular ganhava destaque como forma de valorizar a produção nacional, como meio de
desvelamento crítico e de enfrentamento dessas condições.
As condições da classe trabalhadora embora tenham se alterado no século
XXI, permanece a realidade excludente a que são submetidos jovens e adultos. Nesse

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contexto, os princípios da Educação Popular continuam a orientar as práticas de Educação de


Adultos que se realizam nos Movimentos sociais e populares. A esse respeito Arroyo afirma
que:

A educação popular, a EJA e os princípios e as concepções que as inspiram


na década de 60 continuam tão atuais em tempos de exclusão, miséria,
desemprego, luta pela terra, pelo teto, pelo trabalho, pela vida. Tão atuais
que não perderam a radicalidade, porque a realidade vivida pelos jovens e
adultos populares continua excludente (ARROYO, 2005, p.223).

Contudo, com a repressão do Estado, no governo da ditadura militar, muitas


experiências foram diluídas ou permaneceram na clandestinidade. Nos anos 1980, os
movimentos sociais e populares retomaram com força sua pauta reivindicatória e com a
anistia vários intelectuais e militantes exilados puderam retornar às atividades fortalecendo o
caráter contra-hegemônico da Educação Popular.
A década de 1990 foi emblemática para caracterizar um novo cenário na
forma e no conteúdo das disputas de projetos de sociedade. As administrações democrático-
populares trouxeram aos movimentos o desafio da parceria com autonomia. Atuar junto com
o Estado na execução de políticas públicas, deixando de exercer o papel central de
reivindicação para atuar na prestação de serviços.
Esta forma de atuação se deu, por exemplo, com o Movimento de
Alfabetização, o MOVA, na cidade de São Paulo, na gestão de Paulo Freire à frente da
secretaria de Educação. O MOVA trazia em seu bojo o cerne da Educação Popular nas
práticas de Educação de Jovens e Adultos, induzindo o Estado a atender a demanda
educacional. Ao mesmo tempo em que pressionavam o Estado para que este ofertasse turmas
de alfabetização, passou a prestar um serviço, ocupando a lacuna deixada pelo poder público.
Os anos se seguiram e o Movimento logrou a inserção da EJA na agenda governamental,
criou experiências relevantes de organização e mobilização popular e contribuiu para a
diminuição dos índices de analfabetismo.
Entretanto, há que se problematizar que as experiências citadas não se
constituem num conjunto consensuado de projetos e concepções. O desafio para os
movimentos que coadunam com os princípios da Educação Popular está no enfrentamento da
lógica social capitalista contrapondo às práticas de adesão no que tange ao papel da sociedade
civil no ordenamento das relações capital/trabalho.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente texto é um diálogo que se inicia para pensarmos a atualidade da


Educação Popular. Isto posto, fica a tarefa aos grupos populares para refletir a respeito das
lutas contra-hegemônicas travadas em um determinado tempo e que produziram
aprendizagens significativas de participação e instrumentalização da classe trabalhadora.
Afirmamos que as experiências de Educação Popular citadas nesta análise
desempenharam papel fundamental como instrumento de luta social das classes populares.
Todavia, a compreensão das mudanças produzidas pela nova ordem do capital, do mesmo
modo que as alterações vividas pelos movimentos sociais e populares no desempenho do seu
papel social e diminuição do lugar do sujeito coletivo são fundamentais para afirmar a
vigência da Educação Popular no tempo presente. Não se trata de mirar o futuro como
inevitável tampouco o passado como dogma que nos impede situá-lo em seu tempo e lugar.
As experiências não se reproduzem, mas os princípios permanecem como orientação
necessária ao enfrentamento das mazelas do capital com perspectivas que culminem na sua
ruptura.

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel González. A educação de jovens e adultos em tempos de exclusão.


DEJA/SECAD; RAAAB. Construção coletiva: contribuições à educação de jovens e adultos.
Brasília: UNESCO, MEC, RAAAB, 2005.(Coleção Educação para todos; 3).

BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e Educação Popular: a teoria e a prática de Paulo Freire
no Brasil. 3. ed. São Paulo: Ática, 1992.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Educação Popular na escola cidadã. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2002.

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil - o longo caminho. Rio de janeiro:


Civilização Brasileira, 2001, p. 147/8.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 354

FARIAS, Adriana Medeiros. Uma experiência de Consultoria em Educação de Jovens e


Adultos no semi-árido do Piauí: os limites das ações do governo federal nas políticas
públicas. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2009.

FÁVERO, Osmar (Org.). Cultura Popular e educação popular: memória dos anos 60. Rio
de Janeiro: Graal, 1983.

FERNANDES, Calazans; TERRA, Antonia. 40 horas de esperança: O método Paulo Freire:


política e pedagogia na experiência de Angicos. São Paulo: Ática, 1994.

FREIRE, Paulo. Política e educação: ensaios. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2001. 119 p.
(Coleção Questões da nossa época; v.23).

______. Educação como prática da liberdade. 22. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

GÓES, Moacyr de. Natal, anos 60: de pé no chão também se aprende a ler & círculos de
cultura. Natal: Diário de Natal; SEECD-RN, 2005. (Projeto Ler, fascículo 1).

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. v. 1. Rio de Janeiro: Editora Civilização


Brasileira, 1999.

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SOBERANIA NACIONAL vs. NARCOTRÁFICO:


AMEAÇAS E FATOS NA COLÔMBIA CONTEMPORÂNEA.

ANDERSON GUILHERME ALBANI1


CAMILA ZANELLA2

Palavras-chave: Soberania; Narcotráfico; Colômbia.

Os EUA, um dos principais prejudicados pelas drogas, sendo o maior mercado consumidor do
mundo, adentra em uma luta contra o narcotráfico, principalmente a partir de 1986 quando
considera o tráfico de drogas um problema de segurança nacional, a ser combatido fora de seu
território. Neste caso acaba se tornando mais um problema para a soberania colombiana, pois os
norte-americanos passam a interferir diretamente nas decisões internas do país levando até mesmo a
modificação de leis como a polêmica Lei de Extradição. Sendo assim a Colômbia acaba se
tornando um mero coadjuvante dentro de seu próprio território que acaba sendo dominado por
narcotraficantes e pelo Estados Unidos.
As facilidades trazidas pela globalização são fatores essenciais para o desenvolvimento
ocorrido no comércio internacional nas últimas décadas, tendo como importante característica o
surgimento de empresas transnacionais, as quais apoiadas em tecnologia de ponta, geram correntes
de poder e influência em todos os países onde se encontram.

Observando o comércio e as relações internacionais no mundo contemporâneo, percebe-se


que o narcotráfico é um agente que se aproveita deste avanço global e assume papel importante,
assim como características de verdadeiras empresas modernas, criando uma poderosa força
internacional que chama atenção pelo poder que adquire ao longo de sua trajetória principalmente
em países de terceiro mundo, onde “a presença de círculos clandestinos de lavagem de dinheiro e de

1
graduado em Relações Internacionais pela Faculdade Unicuritiba, Técnico de Comercio Exterior no Centro Europeu
com MBA em Gerenciamento de Sistemas Logísticos pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.
2
Camila Zanella, licenciada em História pelo Centro Universitário Diocesano do Sudoeste do Paraná - UNICS, Mestre
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, Doutoranda em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná – PUC-PR.

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tráfico de armas e entorpecentes são combustíveis indispensáveis ao mundo subterrâneo das


relações internacionais.” (Seitenfus, 2004, p.159)
O tráfico de drogas ganha destaque como um problema mundial, afetando diretamente
países de todos os níveis sociais. Visivelmente um dos mais afetados é a Colômbia, onde o
narcotráfico acaba assumindo o poder paralelo ao Estado, impondo suas leis e vontades em boa
parte do território, afetando a soberania do país tanto internamente como externamente.
Países desenvolvidos, no entanto, também acabam alvos do narcotráfico, uma vez que são
considerados potenciais compradores. Os Estados Unidos se torna o maior consumidor mundial de
drogas, o que os levam a tratar do problema como ameaça nacional, considerando que isso afeta
gravemente os indivíduos de seu Estado e as relações entre os mesmos.
Levando-os a proclamar uma “guerra ao narcotráfico” através de intervenções em países
provedores de drogas como a Colômbia, foco deste estudo, que tem como objetivo principal mostrar
o tamanho do poder alcançado pela indústria das drogas e a interferência disso na soberania estatal
principalmente a partir dos anos 70 e intensificando ano longo dos anos 80. Através da análise da
história latino-americana, até meados dos anos 90, exemplificando o início do narcotráfico na
Colômbia e a sua crescente evolução como um importante ator dentro e fora do estado.
Além de demonstrar a interferência norte americana no estado colombiano, que atraídos pelo
combate ao narcotráfico se tornam mais um fator prejudicial a soberania do Estado.
O termo soberania em seu significado moderno surge com a formação do estado como
forma de indicar poder supremo, nas palavras de Matteucci (2000, p.1183) “ocorre em decorrência
de uma notável necessidade de unificação e concentração de poder, cuja finalidade seria reunir
numa única instância o monopólio da forca num determinado território e sobre uma determinada
população’’. Tornando assim o estado nato de força e coesão política.
No formato de estado moderno com grandes territórios a soberania se torna essencial como
forma de garantir a paz atuando em duas faces, no âmbito externo e interno.
Internamente busca a eliminação de conflitos editando leis e ordens para os indivíduos que
lá habitam, assim mantendo o estado internamente forte, para ser soberano frente a outros estados,
encontrando-se em posição de igualdade não havendo subordinação nem dependência, com relações
recíprocas.
As teorias sobre soberania são divididas em duas doutrinas, as teocráticas e as democráticas,
busca através delas explicar a autoridade conferida ao sujeito ou titular do poder supremo,
legitimando o poder soberano.

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As doutrinas teocráticas têm como ponto comum a base divina, aonde o poder vem de Deus.
Bonavides (2001, p.127) divide as doutrinas sob três diferentes concepções, primeiro a ‘’doutrina da
natureza divina dos governantes’’ aonde os governantes são aclamados e venerados como se fossem
Deuses, podemos utilizar como exemplo diversas culturas, como os faraós do Egito e os grandes
Imperadores romanos.
Seguido pela “doutrina da investidura divina’’ (Bonavides, 2001, p.129) aonde podemos
encontrar a figura do rei, agora não mais como entidade divina, mas como um humano que recebe
de Deus o poder supremo para exercendo seu sagrado direito a monarquia, assim governando seu
povo e não podendo ser contrariado, pois tem sua legalidade firmada por Deus. Finalizando com a
“doutrina da investidura providencial’’ (Bonavides, 2001, p.129) que acaba com a rigidez do direito
divino fazendo com que o governante seja designado por intermédio de Deus e com eventual
participação dos governados. Doutrina essas as quais cedem espaço para as Doutrinas
Democráticas, divididas e soberania popular e nacional.
“Doutrina da soberania popular’’(Bonavides, 2001, p.130) visivelmente a doutrina com os
maiores ideais democráticos, que tem como ponto chave o contrato social onde cada indivíduo,
membro do estado, tem direito a sua parcela de poder. Dividindo a soberania para cada um dos
indivíduos igualmente atribuídos de poder político, de acordo com Rousseau, se o Estado fosse
composto por dez mil, cada um teria a décima milésima parte da autoridade soberana. Doutrina que
influenciou vários processos com idéias democráticas se tornando o ponto base do sistema
democrático.
A “doutrina da soberania nacional’’ (Bonavides, 2001, p.131) por intermédio da revolução
do terceiro estado tira o poder soberano de cada indivíduo, fazendo prevalecer a Assembléia
Nacional, transferindo o poder soberano para a nação dotada de vontade própria, sobrepondo-se as
vontades individuais, exercendo esse poder através de um representante, deixando de lado a idéia de
soberania fracionada base da doutrina soberana popular.

SOBERANIA NO SÉCULO XX E A GLOBALIZAÇÃO.

O Sentimento de soberania nacional vem cada dia mais cedendo espaço para as relações
entre estados das mais diversas formas, sendo expressado por Furlan (2004, p.52) como “um

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conceito dogmático em declínio. No mundo moderno as ideologias pensam mais nas relações entre
estados do que no sentimento nacional de soberania. ’’
Desta forma a soberania passa a ser limitada no plano internacional como forma de obter
uma coexistência pacífica dos poderes soberanos. Pois como citado por Aron (2002) o comércio
Internacional é uma forma importante para obter a paz entre estados acreditando que os governos se
tornam interdependentes e tendem pela paz entre as nações, como forma de obter lucros.
Mesmo o conceito clássico não mais se enquadrando na realidade internacional ele
continua sendo proclamado por muitos, como forma de garantir a cada povo o direito de definir sua
forma política não se subordinando a qualquer outra potência estrangeira. Fazendo-nos refletir na
soberania como um conceito não em decadência, pois sem ela como defendido por Mello,
consagraria o fim do estado, e sim como um conceito em evolução, se modernizando de acordo com
o sistema levando a uma flexibilidade maior.
Em seu sentido absoluto a soberania leva a negação do Direito Internacional, uma vez que
ele fica reduzido ao mero “direito estatal externo”. Porem esse conceito como já dito é mutável e
vem evoluindo e a se torna um direito do Estado que se manifesta no: “a) direito de convenção; b)
direito de legislação; c)direito ao respeito mútuo” tendo assim total liberdade na conduta de seus
negócios. Sendo considerado por Chaumont não como um conceito estático, mas um processo.
(Mello, 2001, p. 427).
A globalização pode ser considerada com uma das maiores responsáveis não só pela
influência no conceito de soberania, mas em toda nossa vida, configurando-se “com grande
mudança histórica da trajetória da humanidade, caracterizada por uma maior interdependência
global. Em que o centro da articulação da sociedade internacional desloca-se, em boa parte, dos
Estados modernos para novos atores das relações internacionais, e passa a se constituir a partir de
novos canais de comunicação e de novas referencias significativas, não mais nacionais e sim
mundiais.” (Bedin, 2001, p. 331)
Essa mundialização pode ser notada no desenvolvimento das relações econômicas que se
tornam dominantes no sistema internacional, gerando uma crescente interdependência entre estados,
fragilizando a soberania e dando espaço para novos atores.
Como observado por Leal (1999, p.103) “pela aceleração do Modo de Produção
Capitalista, os economicamente mais fortes se tornam base-referencial das grandes Empresas
Multinacionais manipuladoras do Sistema Econômico Mundial que é uma nova etapa da escala do
capitalismo. Essa ordem de poder de mercado arrasta também as vontades soberanas dos Estados,

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hierarquizado-as segundo interesses de modo a desconsiderar princípios básicos de Direito


Econômico que lhes são hostis. Os comandos dos Estados, embora soberanos na relação centro-
periferia, vergam-se às injunções do Sistema Econômico Mundial em nome da sobrevivência do
Estado pelo Estado, pouco importando com a acentuação das desigualdades entre os indivíduos que
o compõe.”
Desta forma o Estado em busca de sua sobrevivência acaba afetando seu próprio
desenvolvimento e negligenciando as conseqüências a sua população, principalmente nas periferias
mundiais que ficam submetidos a interferências externas cada vez maiores.
Esse fenômeno ainda vem atrelado a novos atores, como empresas transnacionais,
organizações cada vez mais poderosas e um em importante em questão para o desenvolvimento do
trabalho, o Narcotráfico, pode ser caracterizado como uma verdadeira “empresa” da forma em que
se desenvolveu em países menos desenvolvidos como a Colômbia, onde notadamente o Estado foi
fragilizado pelo aumento das interconexões globais.
O fenômeno da globalização é descrito por Bedin (2001, p.347) como “um processo real
que tem sido acelerado pelas interconexões globais e regionais, alicerçado por novos atores
internacionais, em especial das empresas transnacionais, gerando conseqüências transformadoras
sobre o papel do estado moderno e fragilizando os principais pressupostos da sociedade
internacional moderna, centrada na soberania territorial e no sistema de equilíbrio de poder.” Desta
forma podemos ver vários fatores como o território, povo e o governo deixando de serem soberanos
no Estado, e se tornando cada vez mais globais.

DA INDEPENDENCIA AO NARCOTRÁFICO

As batalhas pelas independências finalmente resultaram em vitória, levando assim a


formação da Gran Colombia. País que logo em seu nascimento se defrontou com problemas
internos devido ao enfraquecimento e ao desgaste ocorrido no período das guerras pela
emancipação aonde a Gran Colombia sustentou os exércitos com homens e recursos.
Os ideais bolivarianos eram defendidos por poucos idealistas, pois mesmo Bolívar tendo
lutado por muito tempo pela liberdade e pela unificação dos países americanos, ele não conseguiu
dividir esse mesmo sentimento com as populações e lideranças dos países membros da Gran

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Colombia, muito devido as “tendências localistas e regionalistas herdadas da própria influência


cultural espanhola.” (Wasserman, 2003. p.179)
Esse fato pode ser analisado em pouco tempo após a unificação com a separação da Gran
Colombia exemplificado por Deas ( Deas apud Bethell, 2001, p.506): “Durante algum tempo,
alguns utopistas e um número bem maior de oficiais bolivarianos, e alguns federalistas dissidentes,
que se opunham às novas autoridades centrais, manifestaram sua união. No entanto, em 1830,
realistas da hora foram os generais Páez, Santander e Flores, que emergiram como os respectivos
governantes da Venezuela, de Nova Granada e do Equador.”
Antes e depois da independência na Nova Granada a economia era pautada principalmente
na exploração mineral das minas de ouro e de prata exploradas por um longo período, representando
durante muito tempo o principal produto exportado pelo país. Extração que durante as guerras de
independência havia entrado em colapso assim como grande parte das fontes econômicas da época.
Os Estados se encontravam fracos após as guerras assim adotaram fórmulas políticas
emprestadas. “A adoção de Constituições liberais, por exemplo, mostrou-se ineficaz em todas as
partes do sub-continente, pois a única instituição capaz de manter a ordem nos novos Estados era o
exército.” (Wasserman, 2003, p.179)
Surgiu a necessidade de diversificar o leque de produtos para fortalecimento da economia,
o fumo foi de grande importância, como primeiro produto de exportação da Colômbia, assim como
a criação de gado, as plantações de algodão, até chegar ao café que se desenvolveu muito bem nas
regiões montanhosas e se espalhando rapidamente por todo o território como segundo Hirschman
(1965, p.119):

“No ínterim, o tradicional sistema de fazendas com a criação de gado como principal
atividade econômica continuou como característico de outras partes do país. As grandes
propriedades predominavam nas planícies tropicais onde as populações índias nunca se
haviam estabelecido em grade número, e nas frescas e férteis savanas das quais haviam
sido progressivamente expulsas pelos espanhóis. Certas áreas montanhosas, em especial as
férteis encostas tropicais de Cundinamarca entre Bogotá e o rio Madalena, eram também
em maioria compostas de grades lotes e haviam sido convertidas quase todas em grandes
plantações de café por volta de 1920”.

Desde a colonização muitas terras vinham sendo ocupadas e utilizadas para as mais
diversas praticas como pode ser analisando no texto citado acima, todas elas na verdade eram de
propriedade do Estado, de acordo com a tradição espanhola “que exigia – teoricamente – moradia y
labor como condição para transferência da terra pública para a particular” (Hirschman, 1965,
p.117).

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Acontece ainda um processo de fechamento das terras para os segmentos de baixa renda
que a princípio, no período colonial, seria para afastar os índios. Já durante o século XIX se mostrou
uma forma de dominação social, “quando o processo de incorporação de terras públicas ao valor de
mercado impede que os camponeses - ocupantes originais na maioria das vezes – tenham acesso ao
título de propriedade.” (Ribeiro, 2000, p.27)
Durante o ano de 1861 é possível notar este fato quando o decreto expedido General
Tomás Cipriano de Mosquera, diz que “as propriedades de ‘mãos mortas’, em especial os bens
eclesiásticos, passaram ao mercado aberto de terras. Essas terras foram arrematadas publicamente
por preço alto e para quem pôde pagar, sem serem re-divididas nem pela vizinhança” (Ribeiro,
2000, p.27).
Deixado assim as propriedades aos grandes fazendeiros, levando os camponeses a se
unirem em lutas agrárias contra o monopólio dos grandes latifúndios, organizando-se em grandes
grupos que muitas vezes atuavam através da luta armada, aumentando os conflitos na região que
foram constantes nas lutas entre os donos das terras e trabalhadores durante as décadas posteriores.
O movimento camponês se organizou, ganhou força nacional e criou o Instituto Colombiano de
Reforma Agrária (INCORA), com o intuito de lutar pela democratização das terras através de
reformas agrárias.
O instituto aumentava a força dos camponeses, incomodando os grandes proprietários de
terras que não tardaram para tomar providências em relação ao assunto.
“Não tardou a resistência e a contra-reforma para abafá-la. Os terratendentes organizaram-
se corporativamente no país e fundaram a Associação Patriótica Econômica Nacional
(APEN), que firmou aliança com o governo e começou a violência contra as organizações
camponesas e suas lideranças e contra a integridade física dos trabalhadores de modo legal
ou não. Ao lado dessa pressão o governo também incitava a opinião pública chamando os
dirigentes do movimento camponês de bandidos e definindo suas ações como baderna.”
(Ribeiro, 2000, p.32)

Ocorreu desta forma uma divisão do estado colombiano em duas grades classes
dominantes: “a representada pelo Partido Conservador, formada principalmente pela oligarquia
rural, que controlava os órgãos de decisão do Estado, e o Partido Liberal, que adotava uma posição
um pouco mais avançada sobre a necessidade de adotar um modelo de desenvolvimento nacional,
até pela necessidade de angariar apoio popular contra os conservadores.” (Arbex, 2005, p.61)
Esse panorama social conflituoso que se institui na Colômbia, ganhou força devido a várias
tentativas falhas do governo, através de leis para solucionar o problema das terras, que acabavam
beneficiando sempre os grandes produtores. E agravou-se com a morte do liberal populista Jorge
Eliécer Gaitán, levando ao enfraquecimento das reivindicações legais, através de sindicatos e outras

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organizações, tomando proporções maiores e mais violentas, “apenas os sindicatos se mantém com
alguma força, no mais, a desintegração social se expande: o campesinato diminuiu em importância
relativa, a guerrilha substituiu as organizações camponesas, as quais distanciando-se do elemento
popular rural vão se descaracterizando ideologicamente. Novos proprietários rurais apareceram em
cena e adquirem enormes fazendas de gado, por terrorismo ou pro grandes entradas de dinheiro que
precisava ser legalizado: os traficantes.” (Ribeiro, 2000, p.32)
Aconteceram varias erupções de violência por todo o país, as revoltas se tornavam um
problema para o governo e para os Estados Unidos, que no florescer da Guerra Fria não poderia
fraquejar. Desta forma foram enviadas “instruções de Washington para desencadear a repressão. Só
entre 1948 e 1953, período conhecido como “La violencia”, morreram 145 mil pessoas.” (Arbex,
2005, p.61)
Dando seqüência ao que fala Arbex (2005, p.62), “Este foi o quadro que gerou a guerrilha:
ela nasceu de uma situação insuportável de tensão e pobreza. Em 1964, sob inspiração da tomada de
poder por Fidel Castro, em Cuba (1959), foram criadas as FARC e o ELN e dezenas de outros
grupos.” Selando desta forma um destino sombrio para o país, com o governo utilizando um
militarismo paralelo em combate contra as guerrilhas, que recrutam camponeses a força.
As guerrilhas encontraram um terreno fértil para expandir suas atividades pelo território
colombiano, principalmente no interior, distantes dos grandes centros urbanos e industriais, criando
verdadeiras fortalezas aonde ditavam as regras e faziam sua própria justiça sem a intervenção do
Estado. Desta forma, “não é por acaso que o surto de marijuana na década de 1970 apareceu em
algumas dessas zonas onde a presença guerrilheira e a marginalização social facilitava a inserção de
uma nova classe de “empresários do campo”. Desde então se começa a tecer a intrincada história de
amores e ódios entre o narcotráfico e as guerrilhas”. (Villavences-Izquierdo, apud Ribeiro, 2000, p.
63)
A marijuana deu início à história ilícita das exportações colombiana, levando o país ao
primeiro lugar de exportação da droga já no início do século XX. Porém em 1959 segundo Riley (
apud MacMACHLAN, 1995, p.189) com a revolução comandada por Fidel em Cuba, muitos
traficantes cubanos se espalharam por toda a América, e na Colômbia encontraram um ambiente já
embalado pelo tráfico de drogas e que rapidamente aprenderam o sistema de processar cocaína, o
aperfeiçoaram e se especializaram, tornando-se os maiores do mundo.
Analisando um pouco da Colômbia podemos encontrar alguns pontos fundamentais que
tornaram ela o principal país produtor de cocaína do mundo, um elemento muito importante como

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colocado por Somoza (1990, p.50) “é a posição geográfica, isto é, a localização entre produtores e
consumidores.”
Os Estados Unidos, a maior sociedade consumidora do mundo, estava relativamente perto, a
distância entre Miami e Bogotá é menor que Los Angeles Miami, e os principais produtores da
folha de coca são seus vizinhos. Segundo Somoza (1990, p.50) outros fatores que também
influenciaram como as excelentes redes de transportes, telecomunicações e número elevado de
estabelecimentos bancários.
A Colômbia se destacou no comércio internacional com as exportações de café, flores e
azeite. Tendo assim diversos portos, gerando uma facilidade de escoamento das drogas, somando
com a tradição do tráfico de marijuana e com o crescente aumento da demanda norte-americana por
cocaína, levou o país a se tornar uma potência no mundo das drogas.
As exportações de café continuam sendo muito importantes para a economia colombiana
atual, no entanto foi muito mais representativa antes do boom das drogas no país que tomou o lugar
do café devido aos baixos preços que o mercado passou a pagar e muitos impostos que incidiam
sobre os produtos, como colocado por Riley (apud MacMACHLAN, 1995, p.188): “As tarifas
alfandegárias e os acordos de fixação de preços nas exportações principalmente como café, e as
taxas sobre a importação na maioria de produtos de consumo, criaram um ambiente no qual o
contrabando é uma atividade econômica aceitável. Além disso, as famílias dedicadas ao
contrabando desses produtos tendem a ser parte da elite, e conferem a suas atividades ilegais um ar
de autoridade e legitimidade.”
Outro fator que impulsionou o desenvolvimento do narcotráfico colombiano, em especial da
maconha, foi durante a segunda guerra mundial, quando a escassez do algodão, matéria-prima
importado utilizado nos mercados têxteis, fez com que o governo colombiano começa-se a importar
cânhamo da Índia, que “naquele país asiático, permitia a obtenção de fibras de excelente qualidade.
Mas, a mesma variedade experimentada em todo o território colombiano não deu os resultados
esperados. Em compensação os agricultores descobriram muito rápido que ela fornecia a maconha
consideravelmente apreciada pelos consumidores.” (Delpirou, 1988. p.223)
Em 1970 houve uma grande repressão dos Estados Unidos contra o narcotráfico,
principalmente em relação a drogas como marijuana e LSD3, artigos difundidos na população em
geral, drogas “baratas e legais” segundo Arbex (2005. p.20) e que se tornaram praticamente

3
LSD (dietilamina do acido lisérgico) é uma droga popular entre jovens com efeitos alucinógenos.

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escassas no mercado. Abrindo espaço assim para a popularização da cocaína, que era até então
considerada uma droga exótica, consumida somente pelas elites.
A partir deste ponto a marijuana, a qual a Colômbia era a maior fornecedora americana,
deixou de ser o principal produto que movimentava a economia do narcotráfico, graças a
visionários que enxergaram uma oportunidade de expandir seus lucros com a produção e
distribuição da cocaína, que além de um custo maior que as demais, eram vantajosas também em
questão de volume e peso.
Com problemas na economia e com as vantagens ofertadas pelo submundo, pudemos notar
os pequenos e grandes agricultores se envolvem pelas drogas, sendo impulsionados na luta pela
sobrevivência dentro do capitalismo, a serem controlados pelas sociedades da droga, aonde “quem
cultiva a coca ganha 14 dólares ao dia, enquanto um trabalhador rural comum ganha apenas 4
dólares ao dia. Por sua vez, as pessoas empregadas para trabalhar no processo de refinação de coca
chegam a ganhar 25 a 30 dólares por dia.” (Somoza, 1990, p.51)
Desta forma a produção de cocaína colombiana aumentou exponencialmente tentando
acompanhar a demanda americana, levando os narcotraficantes a desenvolver sua capacidade de
produção e transporte como citado por Riley (apud MacMACHLAN, 1995, p.189):
“O mercado da cocaína nos Estados Unidos superava a capacidade dos colombianos para o
fornecimento através do uso de “mulas” ou indivíduos que transportavam em pequena
quantidade. Isso fez com que os colombianos organizassem também uma revolução no
transporte. O método foi desenvolver uma completa rede de formas de transporte, pontos de
transbordo e mensageiros, que os permitia enviar a droga ao Estados Unidos e a qualquer
outra parte em enormes quantidades. Por último, em curto prazo. Puderam aumentar a
capacidade da produção industrial a fim de satisfazer a crescente demanda.”

Um dos principais responsáveis por essa evolução no transporte, que impulsionou todo o
mercado do tráfico colombiano foi um ladrão de carros e pequeno traficante de marijuana, Carlos
Lehder Rivas, utilizando pequenos aviões no lugar das “mulas”, diminuindo custos, pessoal e
maximizou lucros. Segundo Robert Merkle (apud MacMACHLAN, 1995,p.27), advogado e fiscal
dos Estados Unidos “Lenhder foi para o tráfico de cocaína, o que Henry Ford foi para os
automóveis”.
A preocupação com o combate a marijuana fez com que a transição do negócio de uma
droga para a outra acontecesse espontaneamente, aproveitando de toda a infra-estrutura que os
traficantes já utilizavam anteriormente. Somando-se com a crise da indústria têxtil de Medellín,
aonde vários trabalhadores emigraram para outros pólos têxteis, levando a cidade surgir como
centro do tráfico de cocaína colombiano.

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Várias são os atores que surgem no cenário internacional colaborando para a deterioração
da soberania dos países, principalmente de países subdesenvolvidos “onde a soberania do Estado é
débil ou inexistente.” (Flynn, apud MacMACHLAN, 1995, p.53) Cabe a nós citar dois que estão no
foco de nosso estudo, o Narcotráfico, e os Estados Unidos.
Dentro da Colômbia os traficantes encontraram um ambiente favorável, com a existência
de uma soberania estatal debilitada, devida a um estado enfraquecido por um longo período de
violência surgindo como um local ideal para o desenvolvimento do tráfico de drogas.
Nesses territórios o enfraquecimento do Estado é nítido, não conseguindo (raro algumas
exceções) interferir nesses bolsões, ao contrário dos narcotraficantes, que além do poder dominante
exercido em seus Estados simbólicos possuem representantes em diversas áreas, estando “abertos
para todos aqueles que quisessem investir ou estivessem sucessíveis “a colaborar”, de um modo ou
de outro, para o bom desenvolvimento dos negócios. (...) seja financeiro, político, Exército, justiça,
atualmente não existe setor que não tenha ligações com ela.” (Delpirou, 1988, p.225-226)
Desta forma os Estados Unidos tenta legitimar sua intervenção como forma de ajudar
países, principalmente da América Latina, como a Colômbia que não conseguem segundo eles,
manter a segurança de seu povo e território. Para isso acaba interferindo diretamente em países que
indiretamente estão ligados ao narcotráfico.
Desta forma, o grande perdedor é a soberania colombiana, que fica totalmente
desconfigurada, frente aos incontáveis ataques a qual sofre de todos os lados. E de um lado vemos
os EUA, maior consumidor mundial de drogas, crescendo sua economia cada dia mais, assim como
seus investimentos e guerra (contra as drogas ou não, mas sempre com o objetivo de intervir e
dominar) e o consumo de diferentes drogas, e de outro lado narcotráfico, que surge com um grande
vencedor. “Mudando habilmente de roupagens e utilizando as vantagens comparativas dos diversos
agentes sociais, o narcotráfico consegue integrar seus interesses sociais e econômicos, assim como
as esferas de produção e distribuição de droga, com esses mundos paralelos, atravessando-os, ás
vezes, com cumplicidade sutil, outras com brutal imposição. Esse poder transversal do narcotráfico
tem sido, sem dúvida, uma das forças mais importantes na construção das topografias sociais,
políticas e culturais que vão moldar a Colômbia do século XXI.” (Villaveces-Izquierdo, apud,
Ribeiro, 2000, p.62)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo: EDUSP. 2001.

BONAVIDES, Paulo; Ciência Política; 10 ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

DELPIROU, Alain; LABROUSSE, Alain; COCA COKE: Produtores, consumidores, traficantes e


governantes; São Paulo: Brasiliense 1988.

FURLAN, Fernando Magalhães; Integração & Soberania, O Brasil e o MERCOSUL: São Paulo:
Aduaneiras, 2004.

HIRSCHMAN, Albert O.; Política econômica na América Latina: Rio de Janeiro: Fundo de
Cultura, 1965.

LEAL, Rosemiro Pereira. Soberania e mercado mundial. São Paulo: LED, 1996

MacLACHLAM, Colin M.; El Narcotrafico: El Estado de la industria ilegal de drogas hoy y las
implicaciones para el futuro: Bogotá: Revista Occidental, 1995.

MATTEUCI, Lucas; BOBBIO, Norberto; PASQUINO, Gianfranco; Dicionário de Política:


volume 2, Brasília: UNB, 2000.

MELLO, Celso Albuquerque; Curso de Direito Internacional Público: volume 1, 13 ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 200

RIBEIRO, Ana Maria Motta; IULIANELLI, Jorge Atílio S.; Narcotráfico e Violência no Campo:
Rio de Janeiro: DP & A, 2000.

SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy; Introdução ao Direito Internacional Público: 3 ed.


Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado, 2003

SOMAZA, Alfredo; Coca, Cocaína e Narcotráfico: São Paulo, Ícone, 1990.

WASSERMAN, Claudia; História da América Latina: Cinco Séculos: temas e problemas: 3 ed.
Porto Alegre: UFRGS, 2003.

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MEMÓRIA EM FRAGMENTOS: O ACERVO SANTO DIAS

Carlos Alberto Nogueira Diniz (Mestrando em História UNESP-Assis)


Orientador: Wilton Carlos Lima da Silva
Bolsista CNPQ

Palavra-chave; memória, história e arquivo

Os arquivos pessoais possuem como característica a preservação da memória de um


individuo, mas é preciso lembrar que por mais documentado que seja um arquivo, ele sempre
será composto por fragmentos e lacunas.

A memória tem como característica a fragmentação e a história também, ou seja, o


passado não pode ser representado como um todo e de forma definitiva.

”Os tempos dos lugares são esse momento preciso em que um imenso capital que
vivíamos na intimidade de uma memória desaparece para viver apenas sob o olhar
de uma história reconstituída ...Os lugares de memória são, antes de mais nada,
restos. A forma estrema em que subsiste uma consciência comemorativa numa
história que a convoca, pois a ignora. È a desritualização de nosso mundo que fez
aparecer a noção...Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, averbações, monumentos, santuários, associações, são os remanescentes
testemunhos de uma outra era, ilusões de eternidade. Daí o aspecto nostálgico desses
emprendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São rituais de uma sociedade sem
ritual...signos de reconhecimento e de pertença de grupo numa sociedade tende a
reconhecer tão-somente indivíduos iguais e idênticos” 1

A simples escolha do personagem a ser lembrado e o que deve ser lembrado já se


constitui como um elemento de fragmentação da memória e do passado. Mas é preciso dizer
que nos silêncios, nas lacunas e nas escolhas feitas pelos organizadores dos arquivos também
se encontram os discursos que prevalecem e são esquecidos no processo de constituição da
memória.

1
NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, dezembro de
1996, p.12.

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A história seja ela dos vencedores ou dos vencidos é feita de escolhas e portanto a
relação do historiador como o arquivo pessoal também é constituída de escolhas e questões a
serem respondidas.

Os lugares da memória surgem a partir de perspectivas e relações de poder sobre o que


deve ser lembrado e fazer parte da memória coletiva e é evidente que os conflitos e
antagonismos em relação ao passado nunca estão por completo terminados, já que os silêncios
e omissões podem também serem motivos de novas indagações.

No livro “A Fabricação do Imortal”2 de Regina Abreu, a autora procura mostrar


como a memória de um personagem Miguel Calmon du Pin e Almeida é construída a partir da
entrega de seu acervo pessoal por sua esposa Alice da Porciúncula Calmon du Pin e Almeida,
ao Museu Histórico Nacional, em 1936, pois desde o inicio demonstra o desejo pela
posteridade e portanto por um espaço de poder na memória coletiva nacional, através da
organização e dos objetos escolhidos para o acervo é possível entender as parte das relações
de poder estabelecidas por membro importante da elite política brasileira do inicio do século
XX.

Alice a viúva de Miguel Calmon viu na doação do acervo do marido ao Museu


Histórico Nacional uma forma de consolidar-lo como uma das personalidades mais
importantes da história nacional, em uma época em que a história era vista como aquela feita
pelas grandes personalidades, figurar entre os mesmos garantia poder e prestigio.

O estudo de Abreu aponta os meios e a forma com que Alice Porciúncula Calmon du
Pin e Almeida encontrou para colocar a memória do marido entre os destaques do Museu
Histórico Nacional.

Segundo Abreu para abordagem sobre as “estratégias de consagração” no Brasil no


caso do acervo dedicado a Miguel Calmon du Pin e Almeida é necessário fazer os seguintes
questionamentos sobre a formação e as intenções em relação a coleção.Entender o processo
de elaboração do acervo é importante pois ajuda a interpretar os sujeitos sociais que ajudaram

2
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco.1996.

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a construir a memória do personagem e em conseqüência suas intenções, silêncios, lacunas e


escolhas.

Estamos em 1935, uma senhora, e uma senhora, após a morte do marido, resolve
doar um conjunto de objetos a um museu. Quem é senhora? Quem é o marido dessa
senhora? Para que museu os objetos são doados? Como se caracteriza esse museu?
Qual a sua filosofia? Quem o dirige? Para que e para quem ele funciona? Quais os
objetos escolhidos para serem doados? Como se processou essa escolha? Como
esses objetos são incorporados pelo museu? Que lugar eles ocupam na hierarquia
institucional? Quais os significados que eles encerram?3

Esses questionamentos no qual a autora parte para entender o processo de formação do


acervo são fundamentais, pois a através dessas questões e do legado material deixado pela
senhora Calmon é possível segundo Abreu interpretar parte do universo mental das elites
aristocráticas das primeiras décadas do século XX.

Alice Porciúncula Calmon du Pin e Almeida encontrou no sobrinho Pedro Calmon


historiador que tinha relações com Gustavo Barroso diretor do Museu Histórico Nacional na
época um caminho propicio para realizar seu objetivo de construir um espaço de destaque
para seu marido Miguel Calmon na memória nacional.

Confidenciou ao sobrinho a intenção de fazer uma doação ao museu dos bens que
haviam pertencido ao marido. Pedro Calmon aprovou imediatamente a idéia. O
Museu Histórico Nacional era dirigido por Gustavo Barroso, o mesmo do
movimento integralista, do qual era um dos principais líderes. Gustavo Barroso era
um escritor muito conhecido, que freqüentava instituições renomadas, como a
Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Detinha
um dom especial para a oratória, despertando entusiasmos com seus discursos.
Comentava-se, naquela época, que ele desfrutava da amizade particular do
presidente Getúlio Vargas...4

A criação do espaço dedicado a Miguel Calmom Du Pin e Almeida no Museu


Histórico Nacional fazia parte da concepção clara de Gustavo Barroso de construir uma
“história das elites”, ou seja, aqueles que em sua visão construíram a nação brasileira. Durante
o tempo em que Gustavo Barroso esteve na direção do museu, os grandes personagens como
Duque de Caxias, D. Pedro I, D. Pedro II, Almirante Tamandaré ocuparam lugar de honra no
museu. A coleção de Miguel Calmon também gozou de uma ampla sala no museu que mesmo
após a doação da viúva ainda atribuía inúmeros privilégios a mesma em relação ao cuidado
dos objetos, uma verdadeira confusão entre o público e o privado.

3
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco,1996, p.28.
4
idem

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Mesmo durante décadas de exposição com a morte de Gustavo Barroso os acervos


pessoais acabam dando espaço a outras perspectivas que valorizavam mais a memória
coletiva e novas concepções de história no qual os objetos e espaços dedicados somente as
elites não lugar cativo.

...a orientação imprimida pelo comandante Léo Fonseca e Silva marcou o


rompimento com o museu-memória de Barroso e o início de um museu-narrativa.
Em outras palavras, o Museu Histórico Nacional tendeu, a partir desse momento, a
privilegiar uma narrativa histórica, onde a memória coletiva foi sendo eclipsada.
Neste contexto, o circuito de exposições foi reformulado para dar lugar a uma lógica
evolutiva. Rompia-se, assim, com as exposições baseadas nas grandes coleções. As
salas dedicadas aos grandes personagens foram desmontadas, e os objetos, reunidos
em depósito. Nesse novo formato de museu, pouca atenção foi conferida ás
procedências dos objetos. A partir de então, os grandes doadores não mais
desfrutariam de quaisquer privilégios. 5

A coleção Miguel Calmon du Pin de Almeida foi desmontada ainda na gestão do


comandante Léo Fonseca e Silva e hoje é possível ter acesso a apenas alguns objetos de forma
incompleta em armários e na reserva técnica do museu.

Contudo, se, em termos físicos, a coleção encontra-se hoje desmembrada,


impossibilitando a visualização do conjunto, por outro lado, a organização e a
catalogação do acervo segundo modernos critérios que incluem a informática, vêm
possibilitando a recuperação de algumas preciosas informações sobre os objetos. A
Coleção Miguel Calmon, como muitas outras do “Museu do Barroso”, encontra-se
preservada nas telas dos computadores que hoje são uma realidade no Museu
Histórico Nacional. Desse modo, essa e outras coleções, embora não mais expostas
como tal, encontram-se recuperadas enquanto documentos. 6

O trabalho de Abreu abordou de maneira pertinente a utilização de um lugar da


memória como forma de consagração de um personagem no caso o engenheiro Miguel
Calmon du Pin de Almeida assim como os bastidores que envolveram a construção da
memória do personagem.

As diretrizes institucionais em relação a política cultural influenciaram diretamente


nas mudanças em relação a abordagem do museu, assim como no espaço mnemônico que
Miguel Calmon du Pin de Almeida ocupava no Museu Histórico Nacional.

A relação entre o historiador e o arquivo é condicionada por vários fatores;


institucionais, políticos, técnicos e sobre tudo metodológicos. Nesse sentido a pesquisa vai

5
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco,1996, p.206.
6
Idem, p.211

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além da problemática que o historiador apresenta, mas esta ligada diretamente as relações
estabelecidas tanto com as fontes como na busca e o acesso as mesmas.

O historiador quando elabora um projeto de pesquisa e estabelece objetivos para seu


projeto de pesquisa na medida em que o trabalho avança pode se deparar com limitações e
também com surpresas mesmo que já conheça parte do acervo.

A relação do historiador com acervo é também marcada pela experiência concreta da


pesquisa, no qual o historiador também é colocado diante de questões materiais, técnicas,
metodológicas e de disponibilidade e característica das fontes, portanto o trabalho de pesquisa
não acontece de forma unilateral entre o historiador e a fonte, mas condicionada por outras
variáveis notadamente complexas do social.

O acervo pessoal tem uma característica peculiar o cuidado, pois mesmo cedido a uma
universidade ele faz parte de um legado familiar, afetivo e que necessita da sensibilidade por
parte do pesquisador no seu trabalho e na utilização da documentação muitas vezes sujeitas ou
não a autorização da família. Mas o cuidado não deve ser confundido com censura, romper
com idealizações, desconstruir discursos e interpretar os silêncios é essencial para analisar a
construção da memória de um personagem.

Os chamados “lugares da memória” segundo Nora não se resumem a documentação material


das elites e de figuras importantes, mas se constitui a partir de novos lugares e também de
novos sujeitos históricos que compõem a sociedade.

Um importante fato na formação de acervos dedicados a história social é o arquivo Edgard


Leuenroth que foi comprado em 1974 junto a sua família pela UNICAMP e funcionou
durante quase dez anos de forma clandestina, pois abrigava uma documentação importante
sobre e movimento operário e a esquerda brasileira. O arquivo funcionou no Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas graças ao empenho dos professores e de dirigentes da Unicamp,
foi possível a partir dessa documentação criar posteriormente um arquivo de história social. 7

O CEDEM, Centro de Documentação e Memória da UNESP foi fundado a partir de


núcleos de pesquisa de historiadores que tinham o objetivo de criar um centro de arquivos e
7
CAMARGO, Célia Reis. Preservação da Memória e pesquisa: a experiência do Arquivo Edgard Leuenroth
(AEL) In: SILVA, da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e Memória, trajetórias e persectivas. Editora
UNESP, São Paulo, 1999, p.66.

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de levantar documentações sobre a história da UNESP. O acervo do CEDEM desde outubro


de 1996 encontra-se disponível para consulta e tem como característica a dedicação de grande
parte do acervo a esquerda brasileira, destacam-se o acervos de Mario Pedrosa, do PCB,
movimentos sociais diversos e do fundo Santo Dias objeto de minha pesquisa8.

O fundo Santo Dias pertencente ao Centro de Documentação e Memória da UNESP


apresenta como peculiaridade ser um dos poucos casos de acervos no Brasil dedicados a um
único operário.

Os acervos pessoais geralmente tendem a reunir documentação de intelectuais,


políticos, artistas ou mesmo militantes de esquerda, ou seja, mesmo os arquivos dedicados a
classe operária tendem a abordar os personagens de forma coletiva, o acervo Santo Dias
formado a partir da documentação reunida por seus familiares tem a importância de ser um
acervo dedicado a um único operário e por isso valoriza a memória dos trabalhadores
enquanto individuo e sujeito da história.

Para o fortalecimento da pesquisa, principalmente no que se refere as ciências


humanas é necessário uma política séria de investimento na manutenção e na formação de
centros dedicados a preservação documental do patrimônio histórico e documental do Brasil,
mas essa preocupação é recente e foram atribuídas quase sempre as universidades.

No Brasil durante muito tempo houve negligencia em relação ao patrimônio


documental e histórico, as universidades com a necessidade de avanços em relação a pesquisa
a partir da década de 1970 começaram a criar paulatinamente centros dedicados a memória e
ao patrimônio histórico, sendo muito deles ligados a museus.

Segundo Camargo centros de memória e documentação são característicos das


universidades brasileiras e são dedicados aos arquivos e também aos museus. O Cedem no
caso de minha pesquisa é o Centro de Documentação e Memória da UNESP, ou seja, faz parte
da universidade.

8
CORREA, Anna Maria Martinez. Os Centros de Documentação e Memória da Unesp. O Centro de
Documentação e Memória (CEDEM). In: SILVA, da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e Memória,
trajetórias e persectivas. Editora UNESP, São Paulo, 1999,p.80-81.

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Os centros de memória e documentação tornaram-se característicos das


universidades brasileiras, preservando o patrimônio arquivístico e, em alguns casos,
até parte do patrimônio museológico. Apenas o patrimônio bibliográfico foi mantido
como principal atividade das bibliotecas universitárias. Mesmo assim, delas não
costumam fazer parte as coleções históricas de jornais ou regionais, coleções
fotográficas, iconográficas e cartográficas que podem ser objeto de tratamento
9
dessas unidades.

As universidades puderam a partir dessa perspectiva mesmo que de forma limitada em


relação ao investimento necessário para a manutenção do patrimônio e dos arquivos
estabelecerem novas concepções em relação aos lugares da memória e aos atores sociais a
serem lembrados.

Nesse sentido o fundo Santo Dias apresenta uma nova perspectiva em relação a
construção da memória coletiva e a legitimação de novos atores que também fizeram e fazem
a história, o objetivo desse acervo não a idealização do personagem, mas perceber a partir dos
fragmentos que constituem sua memória, silêncios, lacunas e construções ajudam a
compreender parte importante da participação popular na resistência e difusão de espaços
alternativos de democracia e organização social.

Através dos fragmentos de registros da vida simples de um trabalhador, encontrar


peculiaridades e sutilezas do seu cotidiano que mesmo pequenas revelam aspectos brutais e
desumanos que encontraram eco em grande parte da vida dos trabalhadores brasileiros.

O fundo Santo Dias é composto por uma documentação bastante diversa composta por
fontes escritas, visuais, orais e materiais, toda documentação foi trazida e reunida pelos seus
familiares, apesar que a maioria dos documentos são referentes ao período pós-morte de Santo
dias e são fruto de movimentos sociais, do sindicato e da igreja. Abaixo demonstro apenas
parte da documentação presente no Fundo Santo Dias no Cedem.

Entrevista transcrita com Ana Dias e Santinho esposa e filho de Santo Dias.

Projeto de Lei de 05/11/1979 denominação de uma escola estadual do Jardim


Guanhembu com o nome de Santo Dias.

9
CAMARGO, Célia Reis.O centros de documentação nas universidades: tendências e perspectivas In: SILVA,
da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e Memória, trajetórias e perspectivas. Editora UNESP, São
Paulo, 1999, p.56.

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Titulo gratuito de área de terreno no cemitério municipal Campo Grande em


23/10/1992.

Pronunciamento da deputada Maria Luiza Fontele na Assembléia Legislativa


09/11/1979.

Pronunciamento na Câmara dos deputados em São Paulo sobre santos Dias em 1979,
feito pelo deputado Sergio Santos.

Folha de São Paulo nos dias que antecederam e logo após o assassinato de Santo Dias.

Colaboração para construção de moradia para a família de Santo Dias.

Depoimento do padre Luis Giuliani sobre o Santo Dias da Silva.

Projeto de produção de um filme sobre Santo Dias.

Requisição de terreno no cemitério Campo Grande ao prefeito Mario Covas


15/07/1983.

Estatuto Centro Santo Dias de Direitos Humanos.

Justificativa na Câmara Municipal de São Paulo pela preservação dos restos mortais de
Santo Dias enterrado no cemitério do Campo Grande.

Certidão de óbito de Santo Dias da Silva.

Artigo sobre Santo Dias feito pelo padre Luis Giuliani destinado ao folheto “O Povo
de Deus”.

Jornal de Natal 1979, homenagem a Santo Dias.

Pedido de trégua dos metalúrgicos da zona sul, após a morte de Santo dias em 1979.

Comissão Pastoral Operária do ABC em 1979, convocação aos trabalhadores.

Panfleto da Oposição Operária convocando os trabalhadores a luta pela memória de


Santo Dias 1979.

Panfleto convocando os metalúrgicos para greve de 1979.

Panfleto do Comitê Santo Dias para organizar e continuar a luta do operário morto.

Esquema de venda do disco Santo Dias.

Sinopse do Filme “Caiu em Terra Boa”, documentário sobre Santo dias.

Instituto Popular de Educação “Santo Dias da Silva”.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 375

Musicas sobre Santo Dias (Associação Santo Dias e CDDH da Arquidiocese de João
Pessoa na Paraíba)

Panfleto do Centro Social Santo Dias.

Oração do povo trabalhador (Pastoral Operária do Brasil)

Musicas sobre Santo Dias

Convocação dos estudantes da Usp para uma greve universitária em razão do enterro
de Santo Dias.

Documentos pessoais de Santo Dias e de cursos feitos por ele.

Panfleto Movimento Custo de Vida.

Relação de correspondências de Santo Dias de 1962 a 1963.

Chapa da Oposição Sindical Metalúrgica após a morte de Santo Dias.

Acervo de áudio e fitas cassetes.

Fotos e imagens de Santo Dias (família, lutas e morte)

Ajuda e colaboração dos companheiros da empresa Metal Leve a família de Santo


Dias.

A maior dificuldade em relação ao arquivo tem sido identificar na documentação os


vários discursos que ajudaram a compor a memória de Santo Dias, para isso o primeiro é
identificar o processo de reunião de toda a documentação e a constituição do acervo em si.

As contradições entre o personagem e as idealizações feitas por aqueles que ajudam a


construir sua memória longe de serem entendidas como deturpações ou vicios devem ser
acolhidas e problematizadas em si mesmas como parte da história e de seu contexto.

A memória individual, construída a partir das referências e lembranças próprias


do grupo, refere- se, portanto, a “um ponto de vista sobre a memória coletiva”.
Olhar este, que deve sempre ser analisado considerando-se o lugar ocupado pelo
sujeito no interior do grupo e das relações mantidas com outros meios
(HALBWACHS, 2004: p.55).

Dentro dessa perspectiva o estudo apresenta uma relação dialética entre sociedade e
individuo na medida que pretende analisar a memória de Santo Dias a partir de sua
experiência histórica e do legado constituído pelos movimentos sociais que ajudaram a
construir sua memória.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 376

Estudar a memória de Santo Dias da Silva significa também problematizar parte das
experiências do personagem como também do contexto que esteve inserido. Experiências
estas que refletem anseios, objetivos e concepções políticas constituídas a partir da luta de
trabalhadores e na construção de espaços e de práticas democráticas em uma época de
autoritarismo e de repressão dos movimentos sociais.

Mas o historiador ao se deparar com determinada documentação encontra também


inúmeros desafios que vão desde o processo de formação do acervo à interpretação dos
fragmentos e lacunas que costumam ser práxis nesses arquivos e em pesquisas que envolvam
a questão da memória.

A relação entre o historiador e seu objeto longe de idealizações pode ser entendida
também como uma experiência histórica, já que o próprio historiador é um sujeito histórico.
Nesse sentido ter como objeto de estudo a construção da memória de um operário é partilhar
da experiência histórica desse individuo e daqueles que com ele conviveram.

A memória e a história são representações do passado e ambas estão ligadas ao


presente e tem, portanto implicações no presente. A disputa pela memória também se traduz
em uma luta política e ideológica que pode por ser travada pelo historiador mesmo que não
seja essa sua intenção.

Mais do que isso, o que a emergência destas memórias vêm ocasionando,


conforme aponta Pollak, é a disputa entre memórias ou a luta entre a memória
oficial e as memórias subterrâneas. Este embate que se trava pela incorporação
destas memórias marginalizadas, silenciadas, é um embate pela afirmação,
sobretudo, de uma identidade que, por pertencer a uma minoria, encontra-se
marginalizada (POLLAK, 1989: pp. 3-15).

O historiador não é um elemento exógeno a sociedade, portanto qualquer que seja sua
postura tem influências do meio social, ideológico, cultural e político em que está inserido. A
busca por uma “ingênua neutralidade” pode muitas vezes levar o historiador a uma
perspectiva utilitarista e questionável quanto ao papel do social do historiador na sociedade
atual.

...A história é objeto de uma construção cujo lugar não é homogêneo e


10
vazio, mas um tempo saturado de agoras...

10
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994,
p.229.

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Nas sociedades atuais a questão da memória vem sendo uma problemática constante
das ciências humanas e biológicas. Em relação a história são crescentes os números de
acervos, arquivos e sistemas de informação que trazem e são responsáveis por registrar as
representações mnemônicas e rememorativas das sociedades.

Muito esforço, em vez disso, tem sido ainda dedicado a estabelecer fronteiras entre a
História e a memória, o que só tem sentido não do ponto de epistemológico, mas
tomando-se a memória ( e as diversas práticas de seu contexto) como objetos da
analise e do entendimento do historiador.Em suma, já seria tempo e tem havido
apelos nesse sentido de começar a fazer uma História da memória, que seria não
apenas a história das teorias sobre a memória, mas se imbricasse nas práticas e
representações mnemônicas e rememorativas das sociedades e grupos, incluindo
seus suportes e estratégias de apropriação, tendências, móveis, conflitos, efeitos,
reciclagens, etc... (MENESES, 1999, p.11)

Segundo Meneses tem havido um esforço de estabelecer uma separação entre a


História e a memória, portanto, surge a possibilidade de constituir-se em uma História da
memória, suas construções, apropriações e não apenas restringir-se a análise das teorias da
memória.

O objetivo de uma História da memória não é legitimar ou “resgatar” memórias


perdidas, mas de analisar e problematizar a construção da mesma. Segundo Meneses a busca
da identidade e de reivindicações através da memória tem levado cada vez mais especialistas
a dedicarem-se ao tema. A historiografia mesmo contribuindo para construção da mesma,
também exerce o papel muitas vezes de desconstrução da memória estabelecida,
principalmente aquela constituída segundo os interesses de grupos dominantes.

É preciso lembrar que também não se trata de exaltar a memória dos dominados em
contraposição a perspectiva dominante ou de procurar “a verdade a partir dos vencidos”, pois
os discursos mesmo dos vencidos também contem construções, lacunas e silêncios que cabem
ao historiador dialogar com esses vários discursos.

BIBLIOGRAFIA.

ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de


Consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco.1996.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p.229.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 378

CAMARGO, Célia Reis. Preservação da Memória e pesquisa: a experiência do Arquivo


Edgard Leuenroth (AEL) In: SILVA, da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e
Memória, trajetórias e persectivas. Editora UNESP, São Paulo, 1999.

CORREA, Anna Maria Martinez. Os Centros de Documentação e Memória da Unesp. O


Centro de Documentação e Memória (CEDEM). In: SILVA, da Lopes Zélia (org)
Arquivos, Patrimônio e Memória, trajetórias e persectivas. Editora UNESP, São Paulo,
1999.

Fundo Santo Dias. Centro de Documentação e Memória da UNESP (CEDEM)

GAGNEBIN, Jeanne Marie.” Memória, História e Testemunho”, In: Stella & NAXARA,
Márcia ( org) Memória e resentimento. Indagações sobre uma questão sensível.
Campinas : ED Unicamp, 2004 p. 85-94.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.

MATOS, O. C. F. . Mal-estar na Universidade. Revista Carta Maior, São Paulo, 25 jun.


2009

MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de Menezes. A crise da Memória, História e Documento:


reflexões para um tempo de transformações In: SILVA, da Lopes Zélia (org) Arquivos,
Patrimônio e Memória, trajetórias e persectivas. Editora UNESP, São Paulo, 1999.

NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10,
dezembro de 1996.

POLLAK, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, vol.2, nº 3, 1989.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 379

IMPLANTAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL E GENÊSE DOS CONFLITOS


ISRAELO/ÁRABES NA PALESTINA

Luciano Kneip Zucchi ,


Mestrando em História social (UEL). Bolsista CAPES,
Orientadora: Sylvia Ewel Lenz

Palavras chaves : Israel , Sionismo , Palestina.

A AÇÃO DE INGLATERRA E FRANÇA NO DESMENBRAMENTO DO IMPÉRIO


OTOMANO E A NOVA CONFIGURAÇÃO DO ORIENTE MÉDIO PÓS I GRANDE
GUERRA

O Oriente Médio era até a Primeira Grande Guerra uma divisão administrativa do
Império Turco-Otomano, sendo região gerida por governantes locais e organizada em
províncias cujas delimitações físicas eram mutáveis, variando de acordo com as relações
locais, e implicando a submissão à Turquia basicamente no pagamento de taxas.
Com a Primeira Guerra Mundial, as potências aliadas buscaram o apoio da população
árabe na luta contra o Império Turco, incentivando os movimentos de independência com
promessas de medidas favoráveis à autonomia politica e à unidade árabe.
Porém mesmo antes do término do conflito França e Inglaterra acertaram entre si uma
divisão da região de acordo com seus interesses estratégicos (Acordo secreto de Sykes/Picot
de 1916) buscando consolidar sua presença na Síria e na Palestina, respectivamente, intenção
Neo-Colonialista que gera um conflito com os interesses árabes que pretendiam a autonomia.
Contrariamente a isso ao final da Guerra o que predomina na diplomacia internacional é
uma postura de rechaço ao colonialismo, influenciado pela revolução Russa e pela posição
norte-americana expressa nos 12 pontos do presidente Wilson, com o reconhecimento do
direito de autodeterminação dos povos, o que é incorporado ao Pacto da Sociedade de Nações.
Nessa conjuntura, o sistema de mandatos estabelecido nos tratados do pós-guerra, coloca-se

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 380

como saída para manter o controle sobre as áreas antes mantidas sob o domínio dos países
derrotados, camuflando o domínio colonial que se mantém sob novo formato. O Oriente
Médio é dividido entre a França e a Inglaterra sob tal regime, que em tese representaria um
controle provisório, mas sem prazo final pré-fixado ou segundo sua própia interpretação de
quando os países estivessem maduros para se autogerir.
Esse acerto é imposto à Turquia no tratado de Paz de Sérves, firmado em maio de 1920,
onde se estabelece que deixam de integrar o Império derrotado uma série de territórios, dentre
os quais a área que atualmente corresponde à Síria, Iraque, Líbano Palestina e Transjordânia,
onde são estabelecidos mandatos sob a tutela inglesa ou francesa, com a delimitação de
fronteiras artificiais, o que é reconhecido pelas Nações Unidas.
É assim implantado um novo sistema de dominação na região, com a divisão dos árabes e
o desmembramento do Império Turco no Oriente Médio em diferentes Estados colocados sob
a tutela européia, frustrando o nacionalismo árabe incentivado no curso da 1ª Guerra com o
objetivo de enfraquecer Istanbul.
O sistema de mandatos foi instituído e regulado a partir do art. 22 do Tratado de Versalhes
e corresponde à cláusula do Pacto da Sociedade de Nações (votado em 02/1919) que pretendia
regular a situação das colônias pertencentes aos países derrotadas na guerra e habitadas por
populações ainda não capacitadas para dirigir-se por si mesmas, contexto que se enquadram
as comunidades separadas do Império Otomano (Palestina, Síria, Líbano e Iraque), devendo
sua administração ser guiada por um mandatário. Esse sistema gera descontentamento e
conflitos na região, pois os árabes são liberados do domínio turco, mas colocados sob a tutela
dos impérios Francês e Britânico. Assim, ao invés da projetada nação árabe unida, tem-se a
divisão da região em nações distintas e heterogêneas, representando ainda razão adicional
para o descontentamento entre os Árabes o compromisso assumido pela Inglaterra com os
sionistas.
De acordo com José Martínez Carreras (1991,p.55), o desmembramento do Império turco
deveu-se à iniciativa francesa, que pretendia estabelecer-se na Síria e no Líbano, e dos
sionistas, que queriam ocupar a Palestina, tendo colaborado a Inglaterra ao aceitar o projeto
de divisão, ao invés de tentar estabelecer um protetorado único sobre toda a área. Ainda, é
fator que contribuiu para o desmembramento a atitude dos setores dirigentes árabes,
tradicionais e conservadores, que não apresentaram uma oposição efetiva à desagregação e
terminaram por aceita-la e cooperar com as potências mandatárias, buscando o apoio

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 381

ocidental para manter seu poder. França e Inglaterra desenvolvem uma politica de alianças
com as famílias dominantes locais, que ganham tronos, mas não independência, estando à
população submetida a um dominador estrangeiro e uma elite local que não busca mudanças.
Na Síria, com o término da 1ª Guerra o Partido da Independência Árabe proclama a
independência sob um regime de monarquia constitucional, Feysal ocupando o trono e
abrangendo o país os atuais territórios da Síria, Líbano, Transjordânia e Palestina. A França
ocupa a região e depõe o rei, instalando sua administração e delimitando novas fronteiras,
concedendo autonomia a certos territórios com o objetivo de obter apoio de grupos
minoritários e dividir a oposição , é o caso do Líbano, que se torna Estado autônomo em
relação à Síria.
Londres organiza a criação da Transjordânia, que antes integrava a Palestina, objetivando
constituir um Estado que fosse área de transição e permitisse um equilíbrio estratégico entre
Iraque, Palestina, a Arábia Saudita em formação e a Síria francesa. O governo do novo reino é
dado a Abdullah, dirigente da elite árabe que em troca renuncia a seus direitos sobreo Iraque.
Quanto à Palestina, a Inglaterra busca assegurar o domínio sobre a região para obter uma
ligação terrestre com o Canal de Suez, que já controlava, garantindo assim a rota de ligação
entre as áreas integrantes do Império Britânico e a metrópole. No curso das tratativas sobre o
futuro da região haviam sido feitas promessas contraditórias, tanto no sentido da libertação
dos povos árabes quanto no sentido de estabelecer-se ali ``Um lar nacional para o povo judeu
´´(declaração Balfour, de 11/1917), o texto da declaração é o primeiro escrito oficial Britânico
a reconhecer o direito aos Judeus de estabelecerem seu ``Lugar Nacional´´ na Palestina ,
palavras bem dúbias e que deixam o leitor interpretar como quiser , os ingleses dizem sem
dizer , num mesmo e pequeno texto tentam satisfazer judeus porém sem se comprometer com
as outras comunidades da Palestina , eis o texto , é só lelo com atenção que se perceberá a
dubiedade da redação :

Foreigen Ofice
2 de novembro de 1917
Estimado Lord Rothschild:

Tenho grande prazer em lhe enviar , em nome do governo de Sua Majestade;


A seguinte declaração de simpatia com as aspirações sionistas judaicas, que
Foram submetidas ao gabinete e aprovadas por ele . O governo de Sua
Majestade considera favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um
``Lugar Nacional´´para o povo judeu , e se esforçará em tudo que seja
possível para facilitar a consecução deste objetivo, ficando claramente
entendido que não se fará nada que possa prejudicar os direitos civis e

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 382

religiosos das comunidades não judias existentes na Palestina , ou os direitos


e o estatuto político de que gozam os judeus em qualquer outro país.
Le agradeceria se colocasse esta comunicação no conhecimento da
Federação sionista.

Sinceramente seu
Arthur James Balfour

Essa declaração acabará sendo a base para a futura configuração de uma solução de
compromisso para o problema anti-semita no continente europeu, porém redundará entretanto
e paradoxalmente num novo ``estranhamento´´ e em novos conflitos, agora entre os Judeus e
os Árabes habitantes da região palestina (e de todo oriente médio); As potências européias
nesse contexto deságuam uma contradição que é sua no mesmo movimento em que reiteram
seus preconceitos transportando-os para o oriente médio.
Com o fim da guerra, o que ocorre é a instalação do mandato inglês, atuando na região
três forças: a Potência Mandatária, os Sionistas Judeus (as condições do mandato britânico
foram objeto de negociação também com a Organização Sionista, na Conferência de Paz de
Paris) e os Árabes Palestinos, que se consideram traídos por Londres e organizam reação
dirigida contra os Judeus e também contra os Ingleses. É inevitável o fracasso do mandato
Britânico, pois deveria atender a objetivos inconciliáveis, tendo se comprometido a buscar o
desenvolvimento do povo submetido ao mandato, com a perspectiva de sua futura
independência, e com o estabelecimento de um “lar nacional para o povo Judeu” na mesma
região.
No Iraque, foi proclamada a independência sob o governo monárquico de Abdullah, o
qual é destituído a posteriore pois se mostra incompatível com os interesses Franceses e
Britânicos na área. Face às dificuldades para o controle da região por meio de um mandato
direto, a Inglaterra instala no governo um soberano aliado e reconhece e independência do
país, conservando o direito de intervenção militar em caso guerra. Em razão da riqueza da
região em petróleo, os países ocidentais tinham especial interesse na manutenção da
estabilidade politica do Iraque. Feysal, que havia sido expulso pelos Franceses da Síria, obtém
o apoio Inglês para subir ao trono do Iraque, em troca da renúncia do seu irmão Abdulahh que
é compensado com o trono da Transjordânia (outra invenção Britânica)

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 383

O SIONISMO , UM OUTRO NACIONALISMO EUROPEU

Podemos afirmar e nessa questão teremos certamente poucos que nos contradigam que
o sionismo é fenômeno ideológico surgido na Europa do século XIX e sem dúvida
influenciado pelos nacionalismos europeus de então.
Dentro desse contexto histórico o Sionismo foi sim outro nacionalismo surgido no
continente e com todas as características e pressupostos que tais ideologias pregavam como a
de ``Nossa Terra ´´como sendo o território de uma ``Nação´´ e esta a propriedade de um
``Povo´´ e tal sendo constituído (e somente) por elementos que compartilhassem de uma
mesma língua e história com laços que os unissem a um suposto passado em comum , e
politicamente a Nação e seu povo teriam de ter a maioria numérica dos habitantes do território
nacional e a essa maioria ``Étnica´´ é que seriam reservados os direitos de governança e não
ao voto do conjunto da sociedade e dos cidadãos , Etnia em vez de Cidadania , todas essas
premissas auxiliaram na formação da ideologia Sionista , que muito embora também estivesse
muito influenciada pelo socialismo deixou-se contaminar por pressupostos que levariam a
criação no futuro de regimes racistas na Europa , paradoxalmente em muitos aspectos o
raciocínio Sionista reproduz o discurso político nacionalista e segregacionista surgido na
segunda metade do séc.XIX na Europa .Em síntese ``O Nacionalismo Europeu condicionou o
Sionismo ´´.
Antes disso, Concomitantemente ao iluminismo continental no final do séc. XVIII
surgia também a``Haskalá´´ ou iluminismo judaico ,e que em seu arcabouço continha idéias
de integração fraterna entre os indivíduos , a futura revolução francesa e seus ideais
igualitários pareciam ser a solução para a discriminação e os preconceitos dos homens para
com os homens , e de um governo de cidadãos suplantando o antigo regime e apontando um
futuro melhor para todos independentemente de etnia , credo ou riqueza , a restauração e a
santa aliança cedo terminaram com esses sonhos e a realidade dos ``Pogrons´´ na Europa
ortodoxa dos Czares se fez logo sentir novamente , a expressão ``Anti –Semitismo´´ é anotada
em 1879 por Wilhen Mer ao dar nome a um fenômeno bem antigo em terras Européias
Ainda surgiriam outras idéias de pensadores sociais como Karl Marx e Arnold
Tonynbee que: ``Consideravam o antissemitismo um fenômeno passageiro, condenado a

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 384

desaparecer tão logo o mundo tivesse se libertado dos últimos vestígios dos preconceitos
medievais´´( Tsur,1976,p.8).
Na França o caso Dreyfus reacendeu a antiga chama do ódio racial que se imaginava
(pelo menos por uma parte da intelectualidade judaica) em vias de total extinção, Alfred
Dreyfus o único oficial judeu do estado maior do exército Francês foi acusado de traição e
condenado sem provas .Embora pertencente a uma família alsaciana de antiga cepa , que tinha
optado pela França depois de 1871 , ele jamais conseguiu ultrapassar o posto de capitão.
``Preso, em seguida julgado por atentado à segurança do estado, foi condenado à prisão
perpétua, ainda que nenhuma prova concludente pudesse ter sido estabelecida´´(
Tsur,1976,p.31)
Theodor Herzel, era um jovem jornalista judeu que se encontrava na França por
aqueles tempos e se comoveu com o caso, era originário do império austríaco, da então tida
como emancipada e esclarecida Viena.``Trancafiou-se em seu quarto de hotel (hotel de
Castile, rua Cambon, no bairro de Madeleine) e escreveu, em umas poucas semanas, um
panfleto intitulado O Estado Judeu´´ (Tsur,1976,p.32); Foi esse panfleto o marco do
movimento sionista na Europa, com seu primeiro congresso em Basiléia em 1897, muito
embora possamos identificar outros movimentos mais ao leste como o Hovevei Sion (amantes
de Sião) que realiza seu primeiro congresso antes, em 1884 em Katovice ( Bar Zohar,1967,
p.34)
Já François Massoulié nos apresenta o sionismo como um movimento politico,
integrado na Europa da segunda metade do século XIX, partidário da emancipação coletiva da
comunidade judaica. Esse caráter estratégico-laico do movimento será fortemente criticado,
sobretudo pelos religiosos ortodoxos, e manterá o sionismo como movimento minoritário pelo
menos até a primeira década do século XX. Em 1911 essas comunidades coletivistas – os
Kibutzim – são inauguradas, formando, a partir de então, “A espinha dorsal da implantação
sionista na Palestina” (Massoulié,1996, p.47).
Para Massoulié o sionismo desenvolve-se no contexto do pós-guerra, e do
retalhamento das províncias árabes do Império Otomano tombado, e sempre à sombra de uma
grande potência ocidental, e de maneira mais agressiva que aquela inaugurada anos antes.
A declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917, torna público o apoio que o governo
inglês dá à organização sionista, pois “Promete criar na Palestina um lar nacional para o povo
judaico” (Massoulié,1996,p.52-53). Esta declaração, na mesma medida em que contradiz a

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promessa feita aos nacionalistas árabes de criação de seu reino, em troca do apoio destes à
derrubada otomana, atesta a dubiedade e o pragmatismo inglês, agora interessado na posição
estratégica da região (dada à proximidade desta com o Canal de Suez) e no avanço territorial
relativamente à França.
A partir de 1922, a Grã-Bretanha torna-se mandatária sobre a região Palestina, a
imigração judaica desenvolve-se atendendo ao plano dos sionistas de povoamento da região
que, contrariamente a todos os demais mandatos, não concede a seus habitantes o direito à
auto-determinação. É projeto inglês estabilizar a população judaica da Palestina em algo
próximo de um terço da população total. Assim será até a iminência da Segunda Guerra
Mundial, quando os interesses britânicos passam a dificultar a entrada de judeus provenientes
da Europa..
Isaac Akcelrud distingue três diferentes levas migratórias: “Os judeus da Europa
Oriental chegam à Palestina como pioneiros e voluntários. Os da Europa Ocidental
desembarcam as escondidas como refugiados’. A terceira começa quando da ascensão do
nazismo , ninguém queria acolher os condenados ao extermínio, como revelou a conferência
de Eviã´´. A politica inglesa de apaziguamento de Hitler fechava as portas da Palestina aos
judeus, ajudando a propaganda nazista no Oriente Médio. Começa então nova epopéia, a
imigração clandestina, a`` haapalá”. (Akcelrud,1984,pág. 61).
Lotfallah Soliman, discutindo os critérios utilizados pela agência judaica e pela
organização sionista para a concessão de vistos de imigração à Palestina (vale citar que a
emigração de judeus da Alemanha no período inicial do hitlerismo é livre), constata que, na
realidade, suas preocupações eram “menos salvar judeus que salva-los com seus capitais e,
sobretudo, levar para a Palestina apenas ‘Material Humano’ (a expressão é de Ben Gurion)
que, segundo certos critérios políticos de idade e de formação, pudesse contribuir para a
edificação de um Estado” (Soliman,1990,p.85). É nesse contexto que se realiza o acordo de
``Havaara´´ entre a agência judaica e o regime alemão, acordo comercial que levara a salvo
alguns milhares de condenados ao extermínio na Europa para a Palestina (e tão somente a ela ,
outro destino não interessava aos dirigentes do ischuv¹) , em troca de compras no parque
industrial alemão , com o próprio dinheiro dos beneficiados, retido na Europa pelos nazistas,
o maquinário e o ``Material Humano´´ iriam direito para Eretz Israel² auxiliando na
consecução do objetivo Estatal sempre em primeiro lugar , as transações que iniciaram em
1933 chegaram a 34 milhões de marcos e só findaram em 1939 com o início da guerra.

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Relativamente à ideologia dos principais dirigentes do movimento sionista, Lotfallah


Solimann diz: “Basta examinarmos detidamente para constatar que entre os três grandes
sionismos políticos pós-herzeliano, Weizmann, Ben Gurion e Jabotinsky, não havia nenhuma
divergência quanto aos objetivos ´´(Soliman,1990); Apesar das declarações conjunturais de
uns e de outros, apesar das acusações recíprocas, todos os três eram ‘Estadistas’ e todos os
três, em graus diversos, pretendiam fazer de toda a Palestina o Estado do ‘povo judeu’ de
volta à ‘terra que era dele’.
Os pontos de divergências situam-se noutra parte. Enquanto Jabotinsky
(ideologicamente ligado ao fascismo e considerado pelo próprio Mussoline como o ideal do
novo homem fascista) queria que o objetivo final fosse continuamente proclamado em alto e
bom som, Weizmann, até sua morte, e Ben Gurion até 1942, pensavam que a proclamação de
um objetivo como esse seria no mínimo inábil, lhes alienaria certas simpatias e, sobretudo,
despertaria prematuramente a animosidade dos árabes.

A CRIAÇÃO DO ESTADO DE ISRAEL PÓS SEGUNDA GUERRA E SUAS


CONSEQUÊNCIAS IMEDIATAS.

Com o término da II Guerra Mundial e a derrota do Nazismo e a consequente


informação pra a opinião pública mundial dos horrores e da perseguição perpetrada por este
aos Judeus Europeus (culminado com a politica Nazista da solução final para o “problema
judaico”, ou seja, o Genocídio total da sua população), há uma comoção mundial
(principalmente nos EUA), que torna ainda mais fortes as opiniões (no Ocidente) a favor da
criação de uma pátria judaica. A onda de imigração pós II Guerra, embora ilegal só tende a
crescer ; Não podendo deter a imigração clandestina de judeus, Londres encaminhará a ONU
a Questão Palestina em 1947. As Nações Unidas elaboram então um plano de partilha, pelo
qual o território passaria a abarcar um Estado Judeu e outro árabe , o Judeu Com 14 mil Km²
incluindo a Galileia Oriental, a faixa que vai Haifa a Telaviv e a região do deserto de Negueve
até o Golfo de Ácaba; e o Árabe, com 11 mil Km² incluindo a Cisjordânia e a faixa de Gaza;
Jerusalém teria status internacional.

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No dia 29 de novembro de 1947 o plano de partilha palestina foi aprovado, entretanto


todos os Estados Árabes se mostravam extremamente contrários à decisão e dispostos a tudo
para impedirem a criação do Estado de Israel (a pretexto de protegerem os interesses dos
Palestinos, então desorganizados), porém escondendo na verdade interesses próprios como
demostrava Abdula (cairo 10 de abril 1948), que avisa que invadirá a Cisjordânia logo que os
ingleses saírem. Porém o Rei Faruk (Egito), adverte que o país deve ser entregue aos
Palestinos para que escolham seu próprio governo, o que Abdula imediatamente aplaude (pois
para ele estaria intrínseco: Não é necessário nem conquista nem ocupação, nem partilha pois o
povo é um só e a palestina é a banda costeira da Transjordânia). Os Sírios percebem o tom do
discurso em detrimento a seus interesses, em vez do “Sul da Síria” a Palestina passava a ser o
“Litoral” da Transjodânia, em lugar da “Grande Síria” a “Grande Transjordânia” , é claro que
não podiam concordar .Na verdade como se pode notar , todos os governos dos Estados no
entorno nutriam interesses muitos própios e as vezes bem antagônicos , que nada tinham a ver
com o bem estar ou a proteção da população Árabe da Palestina , e talvez em menor grau
ainda com a Autonômia desta.
Todas essas ambições territoriais e de poder muito particulares dos aliados de ocasião ,
contribuirão para o que se verificará na guerra posterior , sua falta de comando diretivo
centralizado para as ações , e até em alguns momentos uma inércia paralisante , tais ações (ou
falta delas) não podem ser explicadas só pela incompetência das elites dirigentes
Árabes(embora tal não deva ser subestimado!) , mas também por divisões internas, e talvez
em interesses obscuros , em ver o aliado de então e o inimigo se destruírem mutuamente para
depois tirarem proveito de ambos, o que em tese poderia acontecer visto Israel ter de
defender-se em várias frentes concomitantemente, mas o que será disseminado mundialmente
é a versão da extrema competência do comando do Haganah liderando o pequeno Davi
Israelense contra o gigante Golias Árabe., na verdade um Titã de pés de barro.
É 1948 ,o mediador da ONU, Conde Bernadote é assassinado em Jerusalém por
sionistas, os Britânicos boicotam o plano da ONU e se retiram deixando um vazio total. Os
judeus proclamam em 14 de maio o “Estado de Israel” que é imediatamente invadido por
forças da Liga Árabe que embora em maior número são rechaçadas (em parte pelas suas
próprias divisões internas). Os Sírios são na Galileia detidos pelos Kibbutz fortificados, em
29/05 comandada pelo inglês Glubb Pacha a legião Árabe da Jordânia ocupa a parte antiga de

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Jerusalém (que só iria deixar na guerra de 1967) e o Egito conquista o deserto do Negueve a
faixa de gaza; dia 30 é assinado um cessar fogo.
Paralelamente à ação defensiva contra os Estados Árabes, houve o recrudescimento de
um estado de guerra interna com os extremistas Israelenses do Irgum e do grupo Stern
utilizando-se dos mais variados mecanismos terroristas para expulsar os palestinos árabes dos
territórios ocupados onde sem dúvida o ponto culminante foi o covarde massacre dos
habitantes da Aldeia de Deir Yassim, o que segue um êxodo palestino de grandes proporções
(o que iria causar problemas posteriores na Jordânia, onde o Rei Hussem manda seus
Beduínos massacrar e expulsar seus “irmãos árabes” em 1970 (setembro negro) e grandes
contingentes deles refugiam-se no sul do Líbano, onde se tornam alvos de ataques israelenses,
mais do que isso sua presença agrava as divergências entre cristãos e muçulmanos quebrando
o precário equilíbrio do país sendo uma das causas da guerra civil de 1975/76.
Basta uma rápida análise da situação do Oriente Médio pós 1945 para se perceber que
um dos principais problemas originados com a criação do Estado de Israel e a imediata guerra
travada pelos Países Árabes a este foi o início da questão da população refugiada (750.000)
“expulsos de suas terras´´, segundo os Árabes, instigados a partir por seus líderes, segundo
Israelenses, ou quem sabe uma mescla de ambas as coisas, ou ainda outra. Seja como for seu
“êxodo” além de um fator de desestabilização para a região como um todo (apesar de
inicialmente Israel ter sido beneficiado pois assegurou a maioria Judaica no Novo Estado)
constituiu uma questão humana de fundamental importância e imprescindível resolução para
o mundo contemporâneo, e para todos aqueles que ainda creem que um planeta sem barreiras
ou separações advindas da causa absurda da discriminação étnica ou religiosa é possível . E
talvez quando ocorrer um real e inequívoco :

Acordo Israelo-Palestino será O sinal desencadeante de um imenso e


generalizado movimento de libertação de todo o Oriente Médio. Os
privilégios feudais, os grandes negócios petrolíferos, os superlucrativos
negócios da indústria Bélica os controles estratégicos, todo o complexo de
exploração e dominação do Oriente Médio estará em risco no dia em que
Israelenses e Palestinos decidirem pela ‘Paz entre nós, guerra aos senhores´
(Akcelrud,1984, p.71)

Torçamos para que pelo menos ``A Guerra entre eles´´ possa findar e as feridas
causadas por anos de agressões mútuas tenham tempo de fechar-se; Com as atuais rebeliões
em países árabes no último ano redundando por enquanto em quatro quedas de regimes

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 389

ditatoriais, Tunísia, Egito, Líbia, Yemen , (de vieses diversos claro!) , podemos depreender
que a frase de Akcelrud a cerca de 20 anos atrás , que na época poderia parecer deveras
otimista demais, hoje não parece tão utópica, pois vemos que até em Israel a opinião pública
em sua maioria não suporta mais o estado de guerra perpétua e anseia por uma paz duradoura
e talvez agora (em minha opinião) ressurja novamente a discussão sobre a alternativa de
estado único e democrático compartilhado por árabes e judeus e defendida pelo já saudoso
Edward Said que notara que a ``Palestina Histórica´´ é hoje uma causa perdida, e como Tony
judt diz concordando: ``Isso vale também para a Israel Histórica. De um jeito ou de outro uma
entidade institucional única, capaz de respeitar as duas comunidades, terá de emergir, embora
o quando ou de que forma isso possa acontecer possa parecer obscuro´´.
Sou compelido a avaliar essa alternativa como a melhor solução, porém considero
também o como de tal ocorrer uma incógnita, mas talvez no esgotamento de todas as
propostas já tentadas (o que se não ocorreu esta em vias de tal), restará finalmente e somente a
perspectiva de paz para dois povos que como escreve Márcio Scalércio foram ``Condenados a
conviver´´, e que estão ``Inextricavelmente ligados numa mesma região a Palestina´´no dizer
de Edward Said.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AKCELRUD, Isaac. O Oriente Médio. São Paulo: Atual, 1984.


BAR-ZOAH, Michel. Bem Gurion: O profeta armado. Rio de Janeiro: Editora Senzala, 1967.
CATTAN, Henry. Palestina, los Árabes de Israel. México: Siglo XXI, 1987.
FINKELSTEIN, Norman. Imagem e realidade do conflito Israel-Palestina. Rj: Record 2005.
MARTINEZ CARRERAS, José. El mundo Árabe e Israel. Madrid: Istmo, 1991.
MASSOULIÉ, François. Os conflitos do oriente médio. São Paulo, 1996
JUDT, Tony. Reflexões sobre um século esquecido, 1901-2001. Rio de Janeiro: Obejtiva,
2010.
SOLIMAN, Lotfallah. Por uma história profana da Palestina. São Paulo: Brasiliense, 1990.
SAID, Edward. The politics of dispossession: the struggle for Palestinian self-determination
1969-1994. Nova York: Vintage, Eooks, 1995

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 390

SCALÉRCIO, Márcio. Oriente Médio: Uma análise reveladora sobre dois povos condenados
a conviver. Rio de janeiro: Campus, 2003.
TSUR, Jacob. A epopéia do sionismo. Paris: Plon, 1976
VIZENTINE, Paulo G.F. Oriente Médio e Afeganistão: um século de conflitos. Porto Alegre:
Leitura XXI, 2002.

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QUANDO A VIDA PARECE NOVELA: MEMÓRIAS DE MULHERES DAS CAMADAS


POPULARES

Tânia Maria Gomes da Silva


(Faculdade Metropolitana de Maringá)1

Palavras-chave: História oral; memória; vida cotidiana.

A história se vale de documentos, ferramenta de trabalho do historiador. Na


historiografia do século XIX para haver história era preciso que houvesse fatos e fatos não
existiam sem “documentos confiáveis”, isto é, “verdadeiros”. A documentação histórica
estava, assim, presa ao condicionante da não distorção da realidade. Intencionalidade aqui
entendida não como uma distorção intencional do historiador, induzido por seus pressupostos
ideológicos, mas as distorções que são intrínsecas à fonte (ARÓSTEGUI, 2006).
Na busca pela fidedignidade terminou-se por qualificar como legítimos apenas os
documentos oficiais, emanados dos centros do poder. Este conceito perdurou por décadas até
ser atingido pelas críticas ao paradigma newtoniano e cartesiano que revolucionaram os
pressupostos epistemológicos e atingiram a história. Esse paradigma, que encontra no
positivismo sua melhor formulação, assentava-se na distinção entre sujeito e objeto; entre
natureza e sociedade ou cultura; redução da complexidade do mundo a leis suceptíveis de
formulação matemática; concepção da realidade dominada pelo mecanicismo determinista e
da verdade como representação transparente da realidade; separação absoluta entre
conhecimento científico e outras formas de conhecimento como o senso comum (SANTOS,
2008, p. 25).
O historiador trabalha com documentos. Mas o que são documentos? Nada, pois
enquanto não (re)elaborados pelo olhar de quem os vê/lê, pouco informam. É o trabalho
historiográfico que transforma os documentos em fontes das quais extraímos informações que
nos permitem dialogar com o passado e estabelecer as conexões com o presente. Desse

1
Doutora em História pela UFPR e Mestrado em História pela UEM/UEL. Professora dos cursos de graduação e
pós-graduação da Faculdade Metropolitana de Maringá e coordenadora dos cursos de pós-graduação da mesma
instituição.

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modo, uma carta entre pai e filho, ambos sem qualquer influência social maior; uma
fotografia, um diário de letras trêmulas e incertas, passaram a ter para o pesquisador
importância semelhante à de uma ata da Câmara ou de uma lei assinada por um governante ou
uma encíclica papal. Essa compreensão terminou por levar os historiadores a um interesse
maior pelos grupos ditos marginais – a palavra aqui entendida como sinônimo de
desigualdade, de exclusão - abarcando todos aqueles que a sofrem em função do gênero, da
raça, da etnia, da religião, da opção sexual, da classe social, etc.
As mulheres, por exemplo, sempre estiveram presentes entre os sujeitos
esquecidos da historiografia tradicional. Mas este silêncio foi rompido. No caso da
historiografia brasileira, por exemplo, desde a década de 1980 é cada vez maior o número de
pesquisadoras (es) na área de estudos do feminino. Inicialmente criticada por “apenas resgatar
experiências vividas por mulheres” ao invés de propor explicações ou mudanças significativas
na situação de opressão que as vitimava, a “História das Mulheres” caminhou em direção aos
estudos de gênero, quando se buscou pensar a desigualdade e a opressão vivenciada pelas
mulheres a partir de uma lógica cultural. Desde então, gênero vem sendo utilizado para
designar as relações sociais entre os sexos, rejeitando as explicações biológicas como
determinantes das diversas formas de subordinação a que as mulheres estiveram/estão
expostas e indicando a criação inteiramente social de papéis adequados aos homens e às
mulheres, sendo mesmo a primeira forma de se estabelecer relações de poder (SCOTT, 1991).
Ainda que não esteja isento de críticas quanto às limitações de seu uso, como o faz Butler
(2008, p.26) ao afirmar que “gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que
a biologia é o destino”, não se pode negar que este conceito tem sido uma ferramenta analítica
importante, como bem definiu Scott (1991) em um texto já clássico.
O surgimento de novos sujeitos na pesquisa histórica exigiu, é certo, a adoção
de novos documentos, novas técnicas interpretativas e novos pressupostos metodológicos.
Nosso interesse aqui se volta especificamente sobre a história oral, que conquistou espaço em
diversos países e que, no Brasil, desde pelo menos meados da década de 1970, tem ampliando
grandemente as possibilidades de pesquisa (SILVA, 2010).
A história oral legitimou a validade da oralidade e da memória, e isto, associado à
expansão do movimento feminista, que legitimou as experiências das mulheres - estes seres
sempre tão fadados ao silêncio, ainda que taxadas de tagarelas – proporcionou à história
avançar por terrenos antes inexplorados. Malgrado os primeiros desacertos, quando muitos

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historiadores certamente se deixaram encantar e seduzir pelos relatos nem sempre inocentes
dos entrevistados, temos hoje um grupo consolidado de historiadores por todas as regiões do
país que se valem da história oral2, particularmente para o estudo da história do tempo
presente e da história cultural, cuja ênfase se dá no simbólico e em suas interpretações.
A possibilidade de trabalhar com testemunhas que costumeiramente não têm a
chance de serem ouvidas, como é o caso de mulheres pobres, trabalhadores, crianças, idosos,
retirantes, expatriados, minorias sexuais, enfim, toda uma gama variada de pessoas com
menor poder de expressão social, é, no dizer de Meihy e Holanda, “(...) uma janela que deixa
ventilar o ar puro do tempo presente” ( 2010, p. 108). A história ganha, desse modo,
contornos mais nítidos, tem nome, cor, idade, sexo. Enfim, se humaniza.
Mas é preciso reconhecer também as limitações da história oral, sob o risco de a
pensarmos como uma espécie de varinha mágica que nos permitiria estudar a tudo e a todos
de maneira parcial e com total isenção, precedido de qualquer projeto prévio e ordenado. O
historiador ouve as histórias e as seleciona, as recorta, procura nelas indícios daquilo que
deseja que venha a ser conhecido. Também a trajetória do oral para o escrito não é uma tarefa
que se faça sem cautela, pois se deve considerar que um trabalho de história oral está
finalizado quando ele é transformado em texto. Mas entre o texto falado e o texto escrito há
distinções significativas. Este último, para efeito de forma, enxuga a fala do entrevistado,
depura-a de repetições, o que faz do historiador, em última análise, o autor do documento,
fruto da entrevista. Por isso, escrever histórias, de certa forma, é escrever um romance
seguindo tramas e indícios, ainda que não se desconsidere a clara distinção entre o historiador
e o literato: este último inventa, ficciona, ao passo que o historiador busca provas, vestígios,
confirmações (VEYNE, 1998).
Outra crítica frequente aos trabalhos que se sustentam na oralidade e na memória
é justamente a dificuldade, dizem os opositores, de controlar os falseamentos, os
esquecimentos, as distorções intencionais do entrevistado. Eis o problema: o da história como
uma reprodução fidedigna dos acontecimentos. Ciente das dificuldades, buscaremos
inspiração no mestre Marc Bloch afirmando, como este, que a própria intencionalidade dos
erros é por si só uma fonte impressionante de verdade na história. Importa saber: por que
mente aquele que mente? (BLOCH, 2001). Portanto, mais do que descobrir uma “verdade”

2
Como comprova o sucesso dos encontros regionais da ABHO.

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por trás dos relatos que nos são fornecidos, temos que estar atentos às representações
implícitas nos mesmos.
Numa entrevista realizada com uma jovem mulher, gravamos horas de
depoimento em que ela nos relatou sua aflição e dor quando, por determinação judicial,
perdeu a guarda de seus filhos, enviados, posteriormente, a um abrigo. Com fala embargada,
visivelmente emocionada, ela nos contou que chegou a ser hospitalizada. Como era de praxe,
fomos chegar informações procurando a pessoa responsável pela Instituição que acolheu as
crianças. Tivemos acesso à documentação e esta nos evidenciou que, dos cinco filhos desta
mulher, realmente três crianças foram retiradas de sua guarda por ação judicial. As outras
duas foram entregues para adoção por ela própria. Além disso, ela tinha autorização para
visitas, mas não as fez. Pessoas diretamente envolvidas com o trabalho social junto a essa
família afirmaram que a causa para a tomada da decisão judicial foi a situação de risco a que
as crianças estavam expostas, cheirando cola e sofrendo mesmo abuso sexual. Se foi a mãe
quem não teve interesse de ficar com os filhos, mas diz o quanto sofreu com a perda deles,
está aí evidenciado não o comportamento que ela efetivamente teve, mas o comportamento
que, como mãe, acredita que deveria ter tido.
Isto equivale dizer que nenhum historiador oral pode prescindir das regras que
norteiam a escrita historiográfica. O que narram não é nunca uma verdade total, não é sequer
a única verdade, sendo preciso analisar o depoimento, realizando nele uma mediação entre a
fala do entrevistado e a escrita do pesquisador.
Por isso, parece que o grande desafio do historiador é o de contar uma história que
seja capaz de despertar o interesse de quem a ouve ou a lê. Vidas que, como as de duas
mulheres, Neusa e Teresa3, cujas experiências apresentaremos adiante, dariam uma novela.
Mulheres com experiências de vida muito similares e respostas parecidas no enfrentamento da
vida cotidiana, mas que possuem também diferenças comportamentais expressivas,
demonstrando, e reforçando, a alteridade do universo feminino e abdicando da perspectiva
essencialista que deixava de lado identidade e subjetividades (WOODWARD, 2009)
Não vamos perder de vista que nossas entrevistadas são mulheres pobres, com
baixíssimo grau de instrução, moradoras das franjas da cidade, e que esta condição induz,
como alerta Bourdieu (1996), um habitus produzido pelos condicionantes sociais associados à
condição correspondente e pela intermediação desses habitus e suas capacidades geradoras.

3
Todos os nomes usados neste trabalho são fictícios.

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A PESQUISA EMPÍRICA:

O título deste artigo apareceu nas falas de Teresa e Neuza, que, em diferentes
momentos, assim se expressaram: “a minha vida dava uma novela”. Achamos que dava
mesmo. Vamos, pois, a elas. À época da entrevista, Teresa tinha 44 anos e cinco filhos.
Neuza, pouco mais jovem, estava com 42 anos e era mãe de quatro.
Neusa é falante, extrovertida e nos faz pensar no típico narrador de Walter Benjamim
(1980), aquele que é dotado da faculdade de contar uma história como quem troca
experiências. Teresa é mais tímida, mas não nos recusa a fala. Porém, a tudo responde com
uma espécie de recato, falando baixinho, olhando para os lados como quem teme ser ouvida.
Ambas ficaram sem as mães relativamente cedo. A de Teresa morreu pouco depois que
ela, aos 15 anos, fugira de casa com o namorado, com quem terminou se casando por
imposição do pai. Com a morte da mulher, o pai de Teresa voltou a se casar, mas também
faleceu. Seus irmãos ficaram sozinhos e, com o passar do tempo, “Foram comprando as
coisinhas, tudo pouquinho, uma mesinha, um guarda-roupinha”. O diminutivo da fala parece
demarcar a fragilidade e a pobreza dos objetos.
Neuza também já vivia na casa de uma família que, aos dez anos, a acolhera quando sua
mãe, vítima de um derrame, ficara imobilizada e incapaz de cuidar dos filhos. “Fomos morar
para o mundo, prá casa de um, prá casa de outro. Tem um irmão que foi para o Mato
Grosso, Minas Gerais. E eu fiquei aqui mesmo trabalhando prá casa dos outros”.
Na experiência de ambas, a falta da mãe demarca um momento de dispersão da família.
Os pais, sozinhos, não aparecem como capazes de cuidar da casa, dos filhos e de protegê-los
das adversidades, por isso os entrega a outras famílias. Esta prática de circulação de crianças
nos meios populares do Brasil nunca foi incomum e tem sido fonte de vários trabalhos
historiográficos (MOURA, 2002; MARCÍLIO, 1997).
Neuza nos conta que desde muito cedo trabalhava na roça. Não fazia serviço de casa,
porque não sabia, mas carpia café, colhia feijão e milho “de domingo a domingo”, além de
“apanhar muito”. Tinha menos de 12 anos quando um vizinho, de 48 anos, lhe fez um
convite inesperado, porém, tentador:

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“Vamos morar comigo? Eu tiro você dessa vida, trabalhando aí com D. Neuza. Ela
te bateu. (Eu mostrando para ele o sinal nas pernas que ela tinha me batido e tal).
Vamos prá lá, você cuida da mãe, a mãe está bem velhinha, você cuida da mãe e
mais prá frente nós casa. Vou esperar você pegar idade”. Aí tá bom, juntei mais
depressa as pouca roupa que tinha, o registro e fui prá lá. D. Neuza cercou eu no
carreador de foice e cachorro grande, que era para os cachorro tocar em mim prá
mim poder os cachorro me morder a roupa ou me morder mesmo prá mim vir
embora prá casa, mas aí o João não deixou. O João com um revólver bom na
cintura deu dois tiros prá cima assim na boca do carreador. Aí nós foi prá baixo, aí
fui lá prá cuidar da velhinha, mas eu não sabia lavar e nem cozinhar. Aí foram me
ensinando

Para quem se surpreende com a decisão de Neuza ir viver com um homem mais velho e,
a despeito de ser seu vizinho, ainda assim um desconhecido, como ela própria admitiu, não
causa menor espanto a decisão de Teresa. Vejamos seu relato:
O marido era violento: “judiava muito, xingava a gente muito na rua”. Além da
violência física, ele havia lhe feito afronta maior, levando para viver com ela e os filhos,
dentro da mesma casa, uma outra mulher com quem se “amigara”. Teresa nos informa não ter
feito nada, pois “não participava leis”, confessa no seu dizer simples. A situação só foi
resolvida porque sua sogra reclamou, achando um absurdo a atitude do filho e pediu ajuda ao
patrão deste, que resolveu intervir, o desaconselhando a tal situação. A solução encontrada foi
alugar uma casinha ao lado da esposa para alojar a “outra” e ficaram assim, lado a lado,
dividindo, inclusive, a comida.

“E chegava em casa e tirava um pacote de arroz, um pacote de açúcar, um pacote


de cada coisa daquela compra que era pro mês e a compra que nós ficava não dava
nem prá vinte dias. Aí eu fazia comida, tirava a comida de todo mundo no prato
assim e eu quase não comia. Eu praticamente ficava sem janta todo dia, a comida
não chegava”.

O procedimento de Teresa não é incomum. As mulheres, quase sempre, reservam os


melhores pedaços do alimento para o marido e os filhos, ficando em segundo plano,
especialmente quando o orçamento é curto e elas precisam equilibrar-se nas despesas, mal se
alimentando para atender à família.
O marido passava a semana inteira na roça trabalhando e levava ora uma, ora outra
mulher para ficar cozinhando e fazendo os demais serviços. Como tinha os filhos, Teresa ia
menos. Um dia decidiu fugir: “Ele deixou quinze cruzeiros pra mim pagar a água e a luz. Aí
eu coloquei aquele talão dentro da gaveta e com aqueles quinze eu saí embora. Aí foi onde eu
vim”.

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As meninas tinham, respectivamente, 10, 5 e 3 anos de idade. O filho de 8 anos tinha


ido com o pai para o sítio e lá ficou. Chegando a Jandaia do Sul, faltou a passagem para uma
das meninas e elas tiveram de ficar paradas na rodoviária, esperando uma solução que não se
sabia ao certo de onde viria.
Segundo Teresa, ela estava lá parada e um homem chegou fazendo perguntas sobre ela e
as filhas, conversando, conversando, e terminou por convidá-la para ir viver com ele e levar
as meninas. Com esse desconhecido estabeleceu, após alguns minutos de conversação, uma
união consensual que, à época da entrevista, durava onze anos e que resultara em uma filha.
A vulnerabilidade dessa mulher era extrema e a decisão não parece ter sido tomada com
dificuldade. Veio o pedido, ela aceitou:

”Olha, quem está num mato sem cachorro, tenta qualquer coisa. Aí eu pensei: ‘eu
vou experimentar’. Ele tinha família, mas não contava com nenhum. Eu também não
tinha ninguém. Aí nós arrisquemo morar junto. Se desse, bem, se não desse, cada
um caçava seu rumo. Mas daí por enquanto está dando. Olha pra mim que tinha
três meninas, né? Eu achava um pouco difícil, mas achava que se arrumasse uma
pessoa seria mais fácil pra gente viver mais sossegada, porque tão perigoso este
mundo de hoje. Foi o que eu decidi fazer. Falar a verdade eu não tive medo nenhum
porque do tanto que eu já havia sofrido, não havia mais o que sofrer. Então sem
medo nenhum arrisquei”.

A família é o local de identificação e construção de identidade da mulher. Quando


sozinha carrega um estigma e para aquelas das camadas mais miseráveis há uma busca do
homem para que nele elas encontrem o sentido de sua própria existência. Isto não significa
dizer que este homem lhes dará efetiva proteção. Muitas vezes mesmo é o inverso que ocorre,
com um agravante de se ter dentro de casa um homem que pode ser violento, fazer uso de
bebidas alcoólicas, não assumir plenamente o papel de provedor, mas ainda assim é um
homem. Num mundo marcado por desigualdades expressivas de gênero, com evidente
superioridade do sujeito masculino, ser homem não é pouco. Dizer que a mulher pobre não
consegue sobreviver sem o homem é desfocalizar a lente da realidade, mas impossível
desconsiderar condicionantes culturais que fazem da mulher sozinha, ou que abre mão da
maternidade, ou que se apropria de direitos sob seu corpo, como um modelo que se afasta do
ideal.
Queremos chamar atenção para um detalhe importante: a rapidez com que se iniciou o
relacionamento de Teresa e seu companheiro. Não houve um período de sedução e tudo se
resolveu com muita praticidade. Não estamos, isto é, certo, diante de um amor à primeira

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 398

vista. A própria Teresa confessa que “a gente não tem aquele amor assim, mas a gente vai
vivendo, vai respeitando, vai passando”.
O surgimento do amor romântico, uma característica da família moderna e que Shorter
(s/d) considera a mudança mais importante no namoro nos séculos XIX e XX, nem sempre
tem vez entre os pobres. Nossa pesquisa empírica evidenciou que as etapas de namoro e
noivado são pouco frequentes. Assim, o que Azevedo (1981) chama de etapas de
enamoramento são puladas, seja no caso de Teresa, seja no de Neusa. Partem direto para a
união consensual, que os pobres denominam mais comumente de amigamento, mancebia,
morar junto.
Voltemos à Neusa e vamos encontrá-la desta vez ocupada em fazer os serviços da casa,
livre do trabalho pesado da roça: “Dentro de um ano eu já sabia fazer as coisas, lavar,
passar, cozinhar (...). Nisso completei treze anos”. Cumprindo a promessa feita, João “não
me relava o dedo em nada”. Mas quando a menina completou 14 anos ele achou que já era
hora de começar o namoro.
A fala, diz-nos Montenegro (2007), é um momento decisivo para as populações pobres.
Para essas mulheres falar de si sempre nos pareceu um momento de expurgo de dores, de
ressignificação de experiências, muitas vezes narradas em lágrimas, mas também se
convertendo num momento de satisfação no compartilhamento de suas memórias. Assim é
que até a lembrança da dor já não mais é dor, porque a memória transforma o vivido e as boas
lembranças são contadas devagarinho, como que querendo eternizar o prazer outrora sentido.
Porque se é verdade que o tempo é um laboratório que transforma a memória e faz com que
até a dor lembrada já não seja mais dor, também é verdade que reviver a felicidade é um
pouco ser feliz de novo.
Neusa relembra com um prazer que se evidencia na entonação da fala, tornando-a mais
pausada; no próprio corpo, que se aconchega no sofá quando dessa memorização tão doce; no
sorriso que vem, a princípio, tímido e manso, mas que se desdobra, enfim, em risada larga
nesse rememorar das alegrias tidas.

“Aí nisso fiquei numa boa. (...) me cuidava de mim muito bem, ixe. Coisa que eu não
tinha antes com ele passei ter. Roupas novas, calçados, me voltou eu à noite para
estudar, me levava. Porque eu não tinha estudo nenhum. (...). Comia do bom e do
melhor (...) Vinha prá cidade, tudo que eu quisesse comer o dinheiro estava na mão.
E o dinheiro, minha filha, guardava debaixo da cama, dentro de uma lata. Era
muito dinheiro, não era pouco não, era muito dinheiro. Ele era retireiro, ganhava
esse dinheiro para retirar leite. Depois tinha a roça toda que ele plantava e colhia
prá ele, tinha muito porco no chiqueiro, galinha caipira assim era demais, muita

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12 a 15 de Outubro de 2012
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galinha caipira, mamona que colhia era dele também. Então vinha prá cidade,
vendia, né? Tinha arroz, tinha feijão, não precisava comprar, banha não precisava
porque já tinha os porcos lá, matava e ficava pro gasto. Tinha de tudo, era muito
dinheiro na lata debaixo da cama. Quando vi aquilo, falei: “Mas isto vale?”. Ele
falou: “Valei, isto aqui é dinheiro”. Debaixo da cama. Sabe aquelas latinhas assim
de cera, de tampa, canário? Aquilo estava socadinha de dinheiro debaixo da cama.
Ele falou assim: “Quando vem criança aqui em casa você não fala não que o
dinheiro está aí debaixo da cama”. Falei: “Não, pode deixar”. “O dinheiro está aí
prá gastar, se precisar de um chinelo, uma coisa, a gente vai na cidade comprar”.

O casal vivia assim numa união conjugal não legalizada, porém feliz, mas a mãe de
Neusa, já muito doente e quase não mais podendo falar, começou a cobrar que eles
oficializassem o relacionamento.

“Quando foi com 17 anos e seis meses eu me casei. Comprou vestido novo para
mim, comprou tudo. Coisa que eu nunca ganhei nada de ninguém. Trouxe cá no
fórum, casei o civil. Mil maravilha né? Casada. Queria casar né, porque ficava feio.
Naquele tempo ninguém morava junto. (....) Comprou sandália prá mim, comprou
prá ele também roupa nova, calçado novo, aí viemos no fórum e casemo. Casemo,
viemo embora prá casa. Pagou um táxi. O táxi levou nos lá no Vinte do Alegre.
Levou nós de carro. Ganhei jogo de panela, ganhei jogo de prato”.

Ao contrário do que ela nos diz, muitas pessoas nessa época viviam, sim, sem oficializar
o casamento. Nesta época e sempre, uma vez que as uniões consensuais, amigamentos ou
mancebias, nomes populares, são uma constante no Brasil desde os primeiros anos de
colonização e que, aliás, encontram-se, nos dias atuais, em franco processo de expansão,
atraindo agora camadas sociais mais elevadas, antes avessas a essa forma de união conjugal.
A alegria de Neuza terminou em tristeza. No dia do casamento a sogra passou mal e
faleceu: “E eles tinha matado leitoa, tudo prá fazer uma festa prá nós (...) aí não deu prá
fazer porque nós tinha que arrumar, comprar caixão, arrumar as coisas na cidade prá
ponhar na veia. Vivi com ele 18 anos, fora os cinco de amigada”.
Com o tempo a vida foi ficando mais difícil. Nasceram as quatro filhas e o casal
resolveu vir para a cidade. “A vida foi apurando. Ele não tinha ganho. Trabalhava por dia na
prefeitura”. Ela voltou a trabalhar para ajudar nas despesas e foram morar na periferia da
cidade numa casa simples “Mais folhão do que madeira. Aquilo um dia deu um vendaval,
caiu tudo, quebrou tudo, pegou fogo duas vezes a minha casa, aí fomos abaixo. Fomos a zero
de novo. Não tinha o que comer, nem o que beber, nem o que vestir. Nada”.
A sorte começou a melhorar quando João foi efetivado no trabalho da Prefeitura e ela
conseguiu um trabalho para varrer as ruas da cidade e assim pôde ajudar nos gastos da casa.
Quando finalmente conseguiram uma casa no Conjunto Mutirão, a vida melhorou.

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O projeto de casa própria seduz muito os pobres. Ter a sua própria morada é uma das
poucas formas de capitalização que estão ao alcance do trabalhador e uma das maneiras de se
obter segurança. Assim, ainda que seja um simples barraco é um sonho constantemente
perseguido.
Relembrando o ex-marido Neusa não se contém. Emocionada nos diz:

“Eu não esqueço dele. Ele foi meu primeiro amor, menina. Eu não gosto nem de
alembrar. Tem foto dele por aí tudo, as meninas até esconde pra mim não ver. Ixe,
mas olha, ele sim foi um homem de verdade. Já bem velho já e eu respeitava ele,
para mim ele parecia um homem novo. Mas ele foi homem prá mais de metro, heim?
E quando ele morreu, menina, Deus me livre. Aqui foi gente a noite inteira”.

Após a morte do marido e com o passar do tempo ela arrumou outro companheiro:
“Baixinho, moreno, igualzinho a ele, mas não é igual nada, boba, tem hora que não é não”.
Conta-nos que este é muito nervoso enquanto o João era muito calmo. Assim, primeiro nos
diz que os dois tinham semelhanças, mas depois reconsidera.
Ela nos informa que o atual companheiro é viúvo, poderiam até se casar, mas não quer e
tem para isso uma razão prática: “porque aí corta a pensão, eu ganho mais do que ele”. Há
neste trecho citado uma semelhança inequívoca com Teresa que, também viúva, recebe
pensão do marido, mas nem pensa em oficializar o relacionamento com o companheiro atual:
“Se casar eu perdo o ganho”, confessa numa sabedoria que, assim como a de Neuza, se
constrói na experiência cotidiana.
Temos outra semelhança entre essas duas mulheres, percebida quando elas nos falam
das filhas. Neuza nos diz

“Eu não queria que casasse, queria que estudasse. Igual à de 17 anos foi dezembro
passado eu tive de pagar o casamento dela. Mas por que? Ah, porque nós quer
casar, nós não quer estudar mais, o rapaz também quer casar e vai daqui, vai dali,
teve de casar. Mas eu não queria não... que estudasse, que casasse, queria que
estudasse. Então está tudo casada”.

Também Teresa lamenta que as filhas tenham deixado os estudos muito jovens para
irem viver com os namorados. Todas as quatro enfrentam grandes dificuldades, pois os
companheiros trabalham em serviços cujos salários são baixos e incertos. Para a filha mais
nova, fruto da união consensual que vivia no momento da entrevista, ela almejava um futuro
mais promissor: “Primeiro eu quero que ela estude bastante. Aí eu quero que ela aprenda

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uma profissão que eu mesmo nunca tive e espero que ela não vá casar cedo igual às outras
casou”.
O estudo aparece entre as mulheres pobres como um elemento capaz de levá-las a
melhorar de vida. Com melhor grau de instrução, é verdade, elas têm melhor inserção no
mercado produtivo, conquistam seus próprios salários e, com isso, uma maior autonomia, mas
é imperativo admitir que a educação sozinha não é elemento capaz de quebrar uma estrutura
patriarcal solidamente alicerçada em categorias fundacionais de sexo e fundamentada numa
desigualdade que marginaliza as mulheres.
Voltando às nossas entrevistadas, vemos que a defesa do estudo não faz com que a
defesa do casamento seja descartada. Espera-se apenas que este não ocorra muito cedo e que o
estudo o preceda. Ter um homem, portanto, continua sendo um destino da mulher.
Apresentamos aqui o registro da vida de duas mulheres comuns. Duas mulheres sem
instrução, sem cargos importantes, vivendo na periferia de uma cidadezinha do interior do
Paraná. Uma, Teresa, foi boia-fria, agora é diarista; a outra, Neusa, trabalhou na roça quando
menina, depois foi gari, recolhendo lixos nas ruas da cidade. Agora é dona de casa. Vidas
singelas. Diríamos, mesmo, inexpressivas. Vale a pena acompanharmos suas trajetórias e
narrar-lhes o vivido? Pode ser este o questionamento de muitos que se insurgem contra essa
história vista de baixo.
A palavra história vem do grego, mas tem também raízes latinas. Para Hanna Arendt
(2009), quer dizer testemunhar, investigar e narrar. Assim, o historiador é aquele que ouve o
narrador/testemunha e, por sua vez, (re) narra o relato. Ambos estão, a um só tempo,
recolhendo memórias e elaborando registros de experiências individuais e sociais. O
historiador que se vale da história oral, e muito particularmente quando se volta para os mais
humildes, contribui para retirar da história um ranço elitista que a levou a privilegiar apenas
os relatos dos poderosos. Busca-se conhecer não só a história dos reis e dos generais; mas
também a história das minorias sociais. Daqueles (e agora também daquelas) que conduzindo
suas vidas num eterno igual de todo modo contribuíram no curso dos acontecimentos do
mundo. A história oral quebra, assim, uma visão dual: a superioridade da vida de uns poucos
sobre a insignificância das vidas de milhares de outros. Portanto, narrar as experiências de
Neusa e Teresa pode contribuir para reformular os pressupostos teóricos da história, revendo
práticas e discursos androcêndricos e apresentando novas formas de investigação crítica.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 402

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 403

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ST 06 – CULTURA E LETRAS NO BRASIL E PORTUGAL
(SÉCULOS XVIII E XIX)
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 405

PARA FORMAR HOMENS CAPAZES DE “DISCERNIMENTO E DE PERCEPÇÃO” :


REFORMAS EDUCACIONAIS EM PORTUGAL
(SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII)*

Prof. Dr. Antonio Cesar de Almeida Santos


(Departamento de História / UFPR)

Palavras-chave: Pombalismo; Reformas educacionais; Administração.

Há pouco mais de 30 anos, era publicado um texto de José Ferreira Carrato, no qual
ele fazia uma suscinta, mas importante, avaliação das “reformas pombalinas do ensino” e da
presença do Iluminismo em Portugal. Embora, hoje, possamos discordar de algumas de suas
afirmações, entendo que a discussão que vou apresentar, e que versa sobre o mesmo tema
enfocado por ele, deveria começar citando-o, até como forma de uma justa homenagem.
A certo momento de seu texto, José F. Carrato registra que D. José I, que reinou entre
1750 e 1777, foi “cognominado o Reformador”, ressalvando: “o título cabe-lhe apenas como
uma rotina de alcunha de reis, pois todas as glórias e canseiras das reformas pertencem ao seu
grande ministro”, em referência direta a Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782),
conde de Oeiras (1759) e, depois, marquês de Pombal (1769). Carrato segue afirmando que o
conjunto de reformas ocorridas naquele reinado foram resultado “do movimento iluminista”
que adentrara o reino português, e que as reformas podem ser consideradas “a resposta à
necessidade de acudir aos graves problemas que afligiam o país”. Dentre as diversas “áreas”
atingidas pelas “reformas pombalinas”, destaca a da instrução, porque o poder régio ousara
“tirar da Igreja (legitur Companhia de Jesus) o controle do ensino público”;
concomitantemente, indica que se operava também uma reforma social, pela qual era
realizado o “enquadramento da nobreza em seu novo papel de classe ativa e não ociosa,
cuidando de diminuir-lhe os poderes excessivos”, assim como ocorria a ascenção da “nova
classe burguesa dos grandes mercadores” (CARRATO, pp. 23-24).
*
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – Brasil. Projeto integrado de pesquisa “Ilustração e cultura escrita na transição do Antigo Regime
português (Portugal e Brasil, 1750-1823): do domínio político ao império da língua”.

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A partir destas considerações, e entendendo que as reformas do ensino e as mudanças


de ordem social, destacadas por José Carrato, estão profundamente imbricadas, procuro
discutir neste texto algumas das ações empreendidas durante o reinado de D. José I, as quais
tiveram o objetivo de formar indivíduos que, no desenvolvimento de suas atividades
profissionais, fossem capazes de trabalhar para o “bem-comum”. Para tanto, abordarei duas
iniciativas: uma delas, revestida de sucesso (segundo seus comentadores), foi a criação da
Aula de Comércio, em 1759; a outra, que não chegou a alcançar os objetivos desejados (como
veremos), foi o estabelecimento do Colégio Real dos Nobres, criado em 1761, e que começou
a funcionar cinco anos depois. Esta avaliação sobre o grau de sucesso das duas iniciativas
parece ter sido corroborada pelo próprio marquês de Pombal, o qual, em suas “observações
secretíssimas”, de 1775, faz explícita alusão à “aula de comércio” e, não obstante o tom
laudatório com que trata das realizações daquele reinado, não faz nenhuma menção ao
Colégio Real dos Nobres (MELO, s/d).
Como muitos estudiosos reconhecem, a atuação de Sebastião José de Carvalho e Melo,
principalmente durante sua permanência à frente da secretaria de estado dos negócios do
Reino (1756-1777), ficou marcada, dentre outras razões, pelas reformas empreendidas na área
educacional, especialmente a ocorrida na Universidade de Coimbra (1772)1. Contudo, outros
níveis de ensino, como sabemos, foram objeto de sua atenção, ou da atenção do soberano – o
“Reformador” – sob as ordens de quem o Marquês governava2.
Não obstante as variadas críticas, inclusive as que apontam para a ineficácia dessas
reformas, a intervenção do Estado português na educação – ou, como Jacques Marcadé
registra, “na formação dos espíritos” dos jovens portugueses – estava coerentemente integrada
à lógica da política pombalina3. Aliás, Marcadé (1982), que expressa um ponto de vista
francês, ressalta que as reformas educacionais em Portugal precederam as de outros estados
europeus, afirmação que é corroborada por Tereza Fachada Levy Cardoso (2011, p. 76):

1
Para uma visão geral e recente sobre a reforma da Universidade de Coimbra, ver os artigos reunidos em
ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra : Imprensa da
Universidade, 2000.
2
Esta é uma querela antiga: saber qual o grau de decisão experimentado pelo marquês de Pombal durante o
reinado de D. José I. Para uma discussão mais recente, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José : na sombra de
Pombal. Lisboa : Círculo de Leitores, 2006, e SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos
homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thaís Nívia
de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 73-97.
3
Para uma discussão acerca do que se designa por política pombalina, ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida.
Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95,
jan.-jun. 2011.

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A própria cronologia das reformas da educação promovidas na Europa nos sugere a


possibilidade de o governo português ter-se antecipado a outros países europeus, ao
implantar a educação pública como dever do Estado: Portugal, 1759; Prússia, 1763;
Saxônia, 1773; Polônia, 1773; Rússia, 1773 e Aústria, 1774. Desse modo, tanto no
aspecto de promover as reformas no Estado relativas à educação quanto na questão
da implantação do ensino público gratuito, que passou a patrocinar, a monarquia
lusa passou à ação, enquanto na França, por exemplo, os debates sobre o tema ainda
se desenrolavam.

Não há dúvida que Carvalho e Melo e seus colaboradores reconheciam a importância


da educação na formação de indivíduos que ajudassem Portugal a alcançar um estado de
“opulência”, recuperando a glória “do século feliz dos senhores reis D. Manuel e D. João III”
(MELO, s/d, p. 245). A propósito, Joaquim Veríssimo Serrão, considerando o conjunto das
reformas educacionais ocorridas naquele contexto, afirma que o marquês de Pombal entendia
a educação como “um meio de valorizar as estruturas sociais e mentais do Reino” (p. 144).4
De fato, como registrou, ao final do século XVIII, um antigo professor régio de filosofia em
Évora (1764-1770) e em Lisboa (1770-1772), os governantes deviam promover e facilitar “a
instrução dos súbditos, nomeadamente, criando um ensino oficial, ministrado por bons
professores”, os quais deveriam ter “um estatuto social condigno”. Para Bento José de Souza
Farinha, a educação devia ser vista “como base do progresso do Estado” e como a responsável
pela “preparação de bons cidadãos para a República”. Os motivos para esta apregoada
“instrução dos súbditos” eram o imperativo ético e a adoção do princípio de que o “bom
governo das sociedades particulares é considerado indispensável para o bom governo da
República” (apud VAZ, pp. 70-74). Aliás, para Francisco António Lourenço Vaz, o “discurso
da ilustração portuguesa”, do qual as palavras de Bento Farinha são exemplares, propunha
que “a instrução era a chave para formar o cidadão cristão, que seria necessariamente
virtuoso, trabalhador e aplicado para obter a riqueza para si e para o Estado” (p. 74).
Apresentados estes aspectos mais gerais sobre a importância da educação no contexto
da política reformista portuguesa da segunda metade do século XVIII, pode-se indicar que
diversos estudos destacam o pioneirismo da criação da Aula de Comércio. Desde o já
mencionado José Ferreira Carrato, para quem “o primeiro ato das reformas pombalinas do
ensino (...) foi a criação da primeira Aula de Comércio, de que talvez não haja notícia anterior
na Europa de então” (p. 30), até autores mais recentes, como Lúcia Lima Rodrigues, Delfina
Gomes e Russell Craig, que apontam para o importante papel dessa “escola” no

4
Para uma apreciação geral das reformas educacionais durante o reinado de D. José I, ver BOTO, Carlota. A
dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à universidade. Revista Brasileira
de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010.

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desenvolvimento de um conhecimento contábil e comercial em Portugal. Rodrigues, Gomes e


Craig também consideram a Aula de Comércio como a primeira instituição pública
especializada no ensino mercantil (p. 54).
No que se refere ao Colégio Real dos Nobres, contrariamente a este propalado
ineditismo da Aula de Comércio, diversos autores, como o já mencionado Joaquim Veríssimo
Serrão, entendem que esta escola deu “corpo à sugestão do doutor António Nunes Ribeiro
Sanches, médico e filósofo que de França propusera a Pombal a referida criação” (p.144).5 De
fato, Ribeiro Sanches dedicou alguns títulos de suas Cartas sobre a educação da mocidade
à “educação da fidalguia”, indicando que os jovens nobres deveriam ser instruídos em
“colégios”, asseverando: “não é coisa nova, hoje em Europa, esta sorte de ensino, com o título
de ‘Corpo de Cadetes’, ou Escola Militar, ou Colégio dos Nobres”. Para Ribeiro Sanches,
uma escola deste tipo era extremamente benéfica, “não somente pela suma utilidade que tirará
desta Educação a Nobreza, mas sobretudo o Estado e todo o povo” (ver pp. 168-192).
O “estabelecimento da Aula do Commercio” foi saudado com grande entusiasmo pelo
comerciante Jacome Ratton, em suas Recordações, apontando para a “necessidade” de seu
funcionamento e para os benefícios por ela produzidos.
O senhor rei D. José conheceu bem que era necessário lançar outros fundamentos ao
comércio nacional e estabeleceu a Aula do Comércio, na qual se ensinassem os
elementos até então ignorados pela maior parte dos nacionais. [...] não se conhecia
nenhum nacional que tivesse prática da escrituração dos livros em partidas dobradas,
nem que fosse versado no conhecimento de pesos, medidas e moedas estrangeiras,
dos câmbios e suas combinações. [...] Foi tão útil o estabelecimento da Aula do
Comércio, e aproveitou tanto a Nação, pelos alunos que dela têm saído, que não só
as contadorias da Real Fazenda, tanto no Reino como nas colônias, se tem servido
deles, mas até os escritórios dos negociantes (RATTON, p. 202-206).

Conforme os “Estatutos da Aula do Commercio”, confirmados por Alvará régio de 19


de maio de 1759, o seu funcionamento ficaria sob a responsabilidade da Junta de Comércio,
que havia sido criada em 30 de setembro de 1755 e que deveria adotar as medidas
“necessárias para facilitar os meios de conservar e aumentar” as atividades comerciais
portuguesas, especialmente as relativas ao comércio exterior (ver SILVA, 1830, pp. 458-480).
Em uma breve análise dos estatutos da Aula de Comércio, percebe-se que seria dada
preferência à matrícula de jovens que, sabendo ler, escrever e realizar as operações aritméticas
básicas, pertencessem a famílias de “homens de negócios”. Os alunos, que deveriam ter uma

5
Aspectos das relações entre Ribeiro Sanches e Pombal podem ser vistos em MENDES, António Rosa. Ribeiro
Sanches e o marquês de Pombal : intelectuais e poder no absolutismo esclarecido. Cascais (PT) : Patrimonia,
1998.

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idade mínima de 14 anos, receberiam uma espécie de bolsa, em valor “que se julgar bastante
para animar os que tiverem meios, e sustentar os que delles carecem para a sua subsistência”.
O curso teria uma duração de 3 anos, “que é o tempo necessário para se ditarem, conhecerem
e praticarem os principais objetos dos estudos desta mesma Escola”, cujo currículo, conforme
mencionado por Jacome Ratton, atenderia à formação de um comerciante ou de um “guarda-
livros completo”. De fato, buscava-se que “nesta pública e muito importante Escola se
ensinassem os princípios necessários a qualquer negociante perfeito” (ver SILVA, 1830, pp.
655-660 – meu destaque). Destaco a muito provável referência à obra de Jacques Savary, Le
Parfait négociant, cuja primeira edição foi publicada em 1675, isto porque Carvalho e Melo
teve contato com ela, durante sua permanência na Inglaterra (1738-1744), como atesta a
presença desse título – uma edição em francês, impressa em Amsterdam, em 1726 – entre os
livros levados por ele para Portugal (ver MELO, 1986, p. 175).
Por um lado, o “negociante perfeito”; por outro, o “perfeito nobre” (CARRATO, p.
41). O Colégio Real dos Nobres, que também ficou sob a expressa proteção do monarca
português, ainda que não tenha obtido o mesmo sucesso e posterior reconhecimento que a
Aula de Comércio, mostra-se essencial para a compreensão do projeto político dedicado à
instrução da nobreza de Portugal, com a finalidade de qualificá-la para o exercício de funções
administrativas e militares no reino e nos domínios ultramarinos. A opinião de José Ferreira
Carrato representa, no geral, o entendimento que a historiografia construiu acerca deste
estabelecimento: “não resta dúvida de que a criação do Colégio dos Nobres, por ato régio de 7
de março de 1761, e a subsequente publicação dos seus Estatutos, foram uma consequência
direta da pregação das Cartas sobre a educação da mocidade” (p. 42).
Em relação a tal afirmação, e em que pesem as óbvias relações entre as ideias
preconizadas por Ribeiro Sanches e o teor das normas que regulavam o funcionamento
daquela escola, a referida “consequência direta” não parece ser tão evidente, e o preâmbulo do
Alvará de confirmação dos Estatutos do Colégio Real dos Nobres apresenta algumas
importantes considerações acerca de um manifesto desejo de acudir à situação de “grande
decadência, em que cada dia se precipitaram com maior aceleração” os estudos dos jovens
nobres. Mais do que buscar igualar-se às outras “nações cultas” da Europa – uma expressão
comum nos documentos oficiais do período, e postura sugerida por Ribeiro Sanches –, D.
José I reconhecia a necessidade de uma “boa e regular instrução da Mocidade”, posto que dela
dependeria “o bem Espiritual e a felicidade Temporal dos Estados”, e entendia, invocando a

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“experiência” de antigos predecessores – D. Manoel (1495-1521) e D. João III (1521-1557) –,


que tais “Estudos se fariam mais férteis quando fossem cultivados em Colégios, nos quais a
regularidade das horas e a virtuosa emulação dos Estudantes concorressem para eles se
adiantarem nas suas profissões com maior brevidade”. Explicitamente, o soberano declarava
que pretendia recuperar os “fecundos progressos” que os estudos haviam alcançado no tempo
de D. João III, quando se fundaram “dois colégios” em Coimbra para atender aos fidalgos e
nobres; estabelecimentos dos quais, após a administração dos jesuítas, “apenas existe a
memória” (SILVA, 1830, pp.773-792).
Ribeiro Sanches reconhecia que os jovens nobres portugueses não tinham “ensino
algum para servir à sua Pátria em tempos de paz nem da guerra” e, conforme indicado acima,
invocava exemplos europeus para sanear essa situação, mencionando a criação de “Colégios
Militares”, nos quais tais jovens fossem educados. Sem dúvida, sua proposta para instruir
“súditos amantes da Pátria, obedientes às Leis e ao seu Rei; inteligentes para mandar e
virtuosos para serem úteis a si a e a todos com quem devem tratar” contrapunha-se ao modelo
até então geralmente adotado (pp. 168-185), em que era usual a utilização de tutores e
preceptores, e que havia recebido a atenção de Martinho de Mendonça de Pina e Proença, em
1734, com seus Apontamentos para a educação de um menino nobre.
Esse tipo de ensino, ministrado por um “mestre doméstico” (SANCHES, p. 178),
também era característico para os jovens destinados às atividades comerciais. Após
apreenderem as primeiras letras, as operações aritméticas básicas e os rudimentos dos
negócios com os próprios pais, eles eram enviados para uma espécie de aprendizagem em
destacados estabelecimentos comerciais. Tendo em vista a Europa central, Louis Bergeron
pode reconstituir a carreira de vários homens de negócio, percebendo que, “por volta dos
quinze anos”, o jovem realizava “um estágio comercial, que se regia por um contrato
celebrado entre os pais do rapaz e um comerciante”. Após cerca de cinco anos, o aprendiz
realizava a “segunda etapa da formação” que se constituía na realização de uma “viagem
cultural [que] levava o jovem a percorrer as diversas praças comerciais” (p. 102). Esta prática
é referendada por Jacome Ratton, ao mencionar que “os Jorges, Palyarts, Despies,
Vanzelleres, Crammer, Vanpaetz, Clamouses, todos eram filhos de pais estrangeiros que os
haviam mandado educar fora” (pp. 202-203).
Ao se acompanhar os diplomas legais que criaram a Aula de Comércio e o Colégio de
Nobres, percebe-se que, aparentemente, a preocupação maior era, de fato, controlar o

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processo educacional, retirando das famílias a prerrogativa de decidir como (e por quem) seus
filhos seriam instruídos. O Estado queria definir o que deveria ser ensinado e, principalmente,
como isso deveria ser feito. Nesse sentido, o confinamento dos estudantes em colégios
garantia, por um lado, a vigilância sobre o que e como os professores ensinavam e, por outro,
uma desejada homogeneidade “na formação dos espíritos”, como aludiu Jacques Marcadé.
Esta disposição de controle fica evidenciada, inclusive, pelo próprio insucesso do Colégio
Real dos Nobres, que nunca conseguiu atingir o número de estudantes almejado.
Com efeito, as matrículas nunca ultrapassaram, no período de 1765 a 1772, uns
punhados de fidalguinhos internos: nesses sete anos de atividades, o Colégio dos
Nobres laureou apenas 45 alunos. No último ano do ensino científico (pois foi
extinto em 1771-1772, ficando apenas a área literária), havia uma dezena ou pouco
mais de alunos; dado o fato de serem geralmente prolíficas as famílias nobres
portuguesas, é certamente de presumir – opina o historiador Rômulo de Carvalho6 –
que a obra do Marquês de Pombal nunca foi bem aceita por elas (CARRATO, p.
44).

Na mesma ocasião em que as disciplinas que garantiam o acesso à Universidade


deixam de ser ministradas, ocorreu a publicação de uma Carta de Lei, em 06 de novembro de
1772, que, dentre outros assuntos pertinentes ao funcionamento das escolas régias,
regulamentava a atividade dos “mestres domésticos”: reconhecia-se a possibilidade de
“particulares” contratarem “mestres para seus filhos dentro das próprias casas, como costuma
suceder”; entretanto, esses professors só poderiam “dar lições pelas casas particulares”, após
“se habilitarem para estes magistérios com exames” realizados pela Real Mesa Censória
(SILVA, 1829, pp. 612-615), a quem as “escolas menores” estavam subordinadas desde 1771
(ibid., pp. 540-541). Quer dizer, se o controle do ensino mostrava-se dificultoso devido à
resistência das famílias em matricularem os jovens nobres no Colégio criado para eles,
controlar-se-iam os sujeitos que exerciam o magistério.
Nesta sintética exposição sobre alguns dos princípios norteadores das “reformas
pombalinas do ensino”, pode-se observar que, com o controle estatal das escolas, buscava-se,
como indicou Joaquim Veríssimo Serrão, a formação de novas “estruturas sociais e mentais”.
Esta preocupação alcançou também os territórios ultramarinos, não apenas com as mudanças
propostas pelo Alvará de 28 de junho de 1759,7 mas também com o que poderíamos chamar
de atividade editorial patrocinada pela própria Coroa, como anuncia uma carta de 22 de julho

6
A principal referência de estudos sobre o Colégio Real dos Nobres ainda é a obra de CARVALHO, Rômulo de.
História da fundação do Colégio Real de Nobres de Lisboa, 1761-1772. Coimbra : Atlântida, 1959.
7
Sobre a alcance das “reformas pombalinas do ensino” na América portuguesa, ver CARDOSO, Tereza Maria
Rolo Fachada. As luzes da educação : fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de
Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista (SP) : Editora da Universidade São Francisco, 2002.

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de 1766, que Sebastião José de Carvalho e Mello enviou ao governador da capitania de São
Paulo, D. Luís Antonio Botelho de Souza Mourão. Junto à carta, seguiam “alguns exemplares
da Instrução dos Ofícios de Cícero”, com a finalidade de “V. Sa. aí formar alguns Homens
que sejam Capazes de discernimento e de percepção”. Conforme a referida carta, D. José I
havia mandado imprimir os livros “para a educação da Nobreza do Seu Real Colégio desta
Corte”.8
Explorar o significado que pode ser atribuído à publicação desse texto de Cícero,
naquele contexto, ajudará a compreender melhor, neste momento, aquele conteúdo do
“discurso da ilustração portuguesa”, mencionado por Francisco Lourenço Vaz, o qual estava
impregnado de um sentido ético. Entende-se que Carvalho e Melo estava fazendo referência à
obra “Ostres livros de Cicero sobre as obrigações civis, traduzidos em lingua portugueza para
uso do Real Collegio de Nobres”. Trata-se de uma tradução realizada pelo italiano Miguel
Antonio Ciera, que havia sido contratado como professor de matemática para o referido
Colégio. Ciera não verteu os “Ofícios” diretamente do latim, mas de uma versão italiana
produzida por Giácomo Facciolati, tomando-a como “a mais correta”.9
A importância dessa obra de Cícero para a formação dos jovens nobres portugueses é,
indiretamente, corroborada por um intelectual espanhol, Manuel Blanco Valbuena, que, em
1777, publicou, em Madri, uma tradução do mesmo livro.10 Esse professor de poética e de
retórica do Real Seminário de Nobres da corte espanhola, afirmava:
entre todos los libros que nos quedan de los antiguos, apenas se poderá señalar outro
más útil para enseñanza de los jóvenes que se dedican al estúdio de la lengua latina,
que este de los Ofícios de Ciceron, asi por la propriedad y elegancia de su estilo,
como por la doctrina que enseña de las obligacionaes que contituyen á los hombres
buenos ciudadanos (apud CÍCERO, 1818 – meu destaque).

Entendo que essa preocupação em “ensinar as obrigações que constituem os homens


em bons cidadãos” – e que é encontrada nas exortações de Bento Farinha, acima mencionadas
– foi o que incitou a tradução dessa obra latina na língua portuguesa, especialmente se

8
Ver ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (Portugal). Códice 423; carta de 22 de julho de 1766, ms.
9
De outra parte, o mestre Alberto Jacqueri de Sales, da Aula de Comércio, também trazia ao alcance de seus
alunos textos de teóricos do comércio, como Savary, Melon e Ustaritz. “Refira-se, contudo, que à semelhança do
que acontecia na Europa no domínio das traduções, que muitas vezes não respeitavam os originais, mas que de
forma bastante livre e eclética introduziam as ideias ou opiniões do tradutor e as características dos países de sua
nacionalidade, aos ensinamentos de Savary acrescentou Sales no seu texto muitos outros” (VAZ, p. 80).
10
Ver Bibliografía hispano-latina clásica (Catulo-Cicerón). Edición preparada por Enrique Sánchez Reyes.
Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008. [Edición digital a partir de Edición nacional de las
obras completas de Menéndez Pelayo. Vol. 45, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952.
Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/bibliografia-hispanolatina-clasica-catulociceron--0/;
acesso em: 10/02/2011].

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considerarmos ser ela uma obra reconhecida como “o tratado moral mais importante de
Cícero” (SKINNER, p. 14). Para a moral ciceroneana, a principal virtude constituía-se na
honestidade, de maneira que os sujeitos deviam sempre se conduzirem “da maneira mais
virtuosa possível”, especialmente as pessoas que ocupassem posições de autoridade, as quais
deveriam evitar qualquer desvio de conduta (SKINNER, p. 53). Nesse sentido, Quentin
Skinner registra que, desde a Renascença, verificava-se a busca por uma educação
“verdadeiramente humana”, a qual ofereceria “o melhor preparo para a vida política” e
despertaria, em cada um, os valores necessários “para bem servir o nosso país: a disposição de
subordinar os interesses privados ao bem público; o desejo de combater a corrupção e a
tirania; a ambição de buscar os mais nobres fins entre todos: a honra e a glória não só
pessoais, mas de todo o país” (SKINNER, p. 13).
Para concluir este texto, considero que a formação de “bons cidadãos”, adotando o
termo utilizado por Valbuena, foi o objetivo buscado pelo marquês de Pombal, com a criação
da Aula de Comércio e do Colégio de Nobres. Esta disposição pode ser percebida naquilo que
venho designando em outros trabalhos por “mecanismo político pombalino” (SANTOS,
2010), o qual deriva, em grande medida, de proposições originadas em textos de William
Petty (1623-1687) e de Charles Davenant (1656-1714). Nesse sentido, é especialmente
significativa a presença de um manuscrito com a tradução para o português de um livro de
Charles Davenant dentre os diversos papéis transportados por Carvalho e Melo, desde
Londres para Lisboa, quando do término de sua estada na corte londrina.11 Em “Observação
sobre os methodos prováveis de fazer a huma nação lucroza no ballanço do Commercio” [An
Essay upon the probable means of making a People gainers in the Ballance of Trade (1699)],
um dos objetos de atenção de Davenant era justamente o de considerar “que um Pais não pode
crescer em riqueza e poder senão fazendo os homens particulares seus deveres ao publico e
por hum inteiro curso de honestidade e sciencia naquelles em cujos se repoz a administração
dos negócios”. Assim, em linhas gerais, percebe-se que, durante o reinado de D. José I, a
formação de homens capazes de “discernimento e de percepção” esteve associada à utilidade
pública das atividades profissionais e à conduta moral, aspectos que, como foi mostrado,
orientaram as reformas educacionais daquele período.

11
Ver BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Coleção Pombalina. Códice 168 (ms.).

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FEITIÇARIA, LEITURA E ESFORÇO EDITORIAL


EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

Cláudio DeNipoti
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Dois livros sobre feitiçaria foram traduzidos e publicados em Portugal, nas últimas
décadas do século XVIII. O tradutor foi o vice reitor do Colégio dos Nobres, José Dias
Pereira. Os livros eram a Defeza de Cecilia Faragó, publicado pela primeira vez em
português em 1771, e a Arte Mágica Aniquilada, publicado em 17831. Em si, esses fatos não
deixam o historiador em alerta, uma vez que a segunda metade do século XVIII é profícua
em traduções e publicações sobre a mais ampla gama de assuntos que se possa imaginar,
desde os princípios daquilo que hoje conhecemos como ciência, até sólidas correntes literárias
da tradição ocidental2. Porém, a singularidade reside no fato de que esses livros foram os dois
principais libelos italianos de meados do século XVIII a combaterem a existência de
feitiçaria.
Indo por partes, cabe retomarmos o interesse que o Ocidente cristão manifestou com
relação à feitiçaria nos séculos que vão da Renascença ao Iluminismo. Os estudos sobre a
feitiçaria e a bruxaria tem demonstrado, por um lado, o crescente interesse dos historiadores
sobre o tema a partir de fins do século XX e, por outro, o quanto essas noções povoaram o
pensamento e a vida cotidiana das populações ocidentais no passado. Obras já consideradas
clássicas procuraram compreender a importância de crenças e práticas culturais relacionadas à
feitiçaria, partindo da análise de Keith Thomas, em Religião e o declínio da magia, publicado
originalmente em 1971, passando pelas críticas de Clifford Geertz sobre o excessivo
funcionalismo da análise de Thomas, até os estudos de Carlo Ginzburg sobre extratos

1
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria : obra útil para
desabusar as pesoas preoccupadas da arte magica, e os seus pretendidos effeitos Off. Manuel Coelho Amado,
1775; _____. A arte magica anniquilada do marques Francisco Scipaō Maffeo, traduzida da lingua Italiana na
Portugueza. Accresce huma nova prefaçaō, que escrivia o traductor. Publicado por Na officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1783.
2
Ver, por exemplo: DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução; o submundo das letras no Antigo
Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; _____. Os dentes falsos de George Washington; um guia não
convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; CHARTIER, Roger. Inscrever e
apagar. Cultura escrita e literatura. São Paulo: Unesp, 2007.

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culturais múltiplos que se manifestaram nas práticas de magia (e no combate inquisitorial), até
ainda os estudos dessas práticas em territórios nacionais3.
A obra de Ginzburg (em especial sua História noturna) parte do pressuposto de que
existem extratos culturais resultantes de contatos ancestrais entre as populações de diversas
partes da Eurásia, que culminam, na Europa do século XVI a XVIII, nas crenças populares em
magia e feitiçaria, e na transformação sistemática, pela igreja católica através da Inquisição
tridentina, dessas crenças em possessão demoníaca e sabá. A obsessão inquisitorial com a
bruxaria legou os documentos sobre os quais os historiadores podem, hoje, compreender o
quanto as crenças no sobrenatural (que não se encaixavam na ideia de religião oficial) eram
disseminadas por todos os extratos da sociedade no passado.
Nesta base documental, foram feitos diversos estudos, além das obras consideradas
fundadoras do campo (algumas das quais foram mencionadas acima) sobre as formas pelas
quais a crença na feitiçaria se manifestou na Europa moderna. Francisco Bethencourt, por
exemplo, buscou elementos do imaginário da magia na Portugal do século XVI através da
serialização temática dos depoimentos à Inquisição Portuguesa, demonstrando como a
feitiçaria visada pela Igreja era composta por conjuntos de práticas relacionadas a questões
cotidianas – relativas a problemas como conhecer o destino de marinheiros e colonos
portugueses no império, questões amorosas, etc. No cerne da discussão reside a dualidade
entre o poder de deus e o poder do demônio, visível em fontes teológicas e nos processos
inquisitoriais. “No fundo, o poder do primeiro, nesta época, afirma-se pela denúncia do poder
do segundo, que é apresentado como uma figura actuante, visível e palpável no quotidiano
dos homens. Daí a afronta que constitui o desespero e a descrença quanto à abtenção do favor
divino para o alívio dos males físicos e espirituais; daí a valorização, pela própria igreja, do
papel do mágico como um intermediário.”4 A questão se torna ainda mais complicada pela
criminalização detalhada da magia e da feitiçaria em diversos níveis, “tanto nas ordenações
régias como nas constituições sinodais e nos diplomas organizativos da Inquisição, o que
implica uma sobreposição de jurisdições, nem sempre fácil de deslindar, por parte de
instituições com estratégias de actuação diferentes"5 Ainda, os estudos de José Pedro Paiva

3
GINZBURG, Carlo. História noturna, decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 15.
4
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia; feiticeiras, salutadores e nigromantes no século XVI.
Lisboa: Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1987, p. 21.

5
BETHENCOURT, … p. 22.

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tentaram ampliar a compreensão desses fenômenos ao tentar abarcar os diversos aspectos da


crença em feiticeiras. Seu livro sobre Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas
inclui, em primeiro lugar, o debate intelectual ocidental em geral, e português em particular,
dos séculos XVI a XVIII. Em segundo lugar, e ocupando a parte mais volumosa da obra,
Paiva busca a abordagem "popular", feita através de processos inquisitoriais que tentam ler a
contrapelo os depoimentos dos envolvidos nesses processos. No tocante à produção
intelectual portuguesa no período, que é o foco do presente estudo, ele afirma que:

A situação em Portugal foi bastante diferente. Aqui não se produziram tratados


especificamente dedicados a debater o problema da bruxaria e sua repressão, à
semelhança do que aconteceu difusamente na Europa Moderna, mesmo em regiões
onde a perseguição não foi maciça e violenta, como a Espanha e os estados
italianos6.

Devemos ainda citar os estudos de Laura de Mello e Souza, que discutem estes temas
e abordagens em documentos relativos à história do Brasil, abordando aspectos da
religiosidade popular e da crença em feiticeiras como norteadora de ações políticas e
religiosas, fazendo uma reflexão sobre as relações entre os diferentes níveis culturais
envolvidos na representações da feitiçaria, e principalmente, do diabo, no passado colonial
brasileiro7.
Contudo, a crença na feitiçaria passou a ser, gradativamente, desde o princípio do
século XVIII, cada vez mais associada à superstição e a práticas populares de religiosidade,
afastando o pensamento erudito da crença, mas não do debate. As duas obras em foco aqui
são peças de um amplo debate europeu sobre a existência da bruxaria e da feitiçaria, que
envolveu diversos nomes do pensamento ilustrado, mas também operou como um elemento
de definição identitária das camadas ilustradas da sociedade, como o judiciário e o parlamento
ingleses e o clero anglicano, que, a partir do fim do século XVII, adotaram uma atitude cada
vez mais cética com relação à existência da feitiçaria. De fato, a última execução inglesa por
feitiçaria foi em 1684 e o último indiciamento, em 1717. Verificou-se, portanto, um "gradual
processo de descolamento eclesiástico e judicial das preocupações populares com problemas

6
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas - 1600-1774. Lisboa: Notícias
Editorial. s.d., p. 19.
7
Ver, por exemplo, SOUZA, Laura de Mello. Inferno atlântico; demonologia e colonização – séculos XVI-
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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da feitiçaria. O medo da feitiçaria que outrora unira o povo e o estado, crescentemente tornou-
se uma preocupação exclusivamente popular"8.
Inseridas, portanto em um debate em torno do redimensionamento na crença nos
fenômenos da magia e da feitiçaria, as obras em foco alinham-se com outras, principalmente
entre os pensadores do Iluminismo ibérico, como aquelas do monje beneditino Benito
Jerónimo Feijóo. Em seu esforço por "entronizar o newtonianismo como o pensamento
filosófico dominante"9 na Espanha, ele declarou guerra às falsas possessões "apresentando-se
como um denunciante das falsas crenças" numa guerra entre duas forças conflitantes: "a luz
da razão versus o crepúsculo da superstição ou ainda o bem comum contra os interesses
pessoais de certos indivíduos que capitalizavam na ingeniudade excessiva da maioria das
pessoas"10.
Em Portugal, a mudança se faz perceber mais tardiamente:

Se durante cerca de dois séculos a visão das elites portuguesas face ao fenómeno da
magia não sofreu radicais perturbações, apesar de algumas ligeiras alterações que se
detectam na prática inquisitorial e até na dos auditórios episcopais, a partir de 1750
começam a proliferar indícios de mudança. Tardiamente em relação a outras zonas
europeias como a França, Países Baixos, Suíça e até Itália, desponta uma visão
totalmente céptica em relação à possibilidade da magia diabólica. Visão que se filia
ao racionalismo e cientismo triunfantes em Setecentos e que, a longo prazo, acabará
por ser responsável pelo fim absoluto da instauração de processos judiciais por
culpas de magia em Portugal11.

À mesma época, na Itália, o debate sobre a existência ou não de magia, feitiçaria ou


bruxaria, envolveu os principais intelectuais italianos, inclusive Giuseppe Corini Corio com
sue Politica, diritto e religione, publicado em 1742, Ludovico Antonio Muratori, com Della
forza della fantasia umana , de 1745, Girolano Tartarotti e seu Del congresso notturno delle
Lammie de 1749, e finalmente, Scipione Maffei – muito mais conhecido hoje por ter sido o
primeiro descritor do piano moderno12 - com os dois títulos sobre o tema publicados entre

8
DAVIES, Owen . Withccraft, magic and culture, 1736-1951. Manchester: Manchester University Press, 1999,
p. 79.
9
ISRAEL, Jonathan I. Radical Enlightenment; Phylosophy and the making of modernity. Oxford: Oxford
University Press, 2001, P. 534.
10
TAUSIET, Maria. From Illusion to disenchantment: Feijoo versus the 'falsely possessed' in eighteenth-century
Spain In: DAVIES, Owen & DE BLÉCOURT, Willen, eds. Beyond the witch trials. Witchcraft and magic in
Enlightenment Europe. Manchester: Manchester University Press, 2004, p. 45-48.
11
PAIVA, p. 87.
12
MAFFEI, Scipione. Nuovo invenzione d'un gravecembalo col piano, e forte. 1771.

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1749 e 1754: L'arte magica dileguata, e L'arte magica annichilata13. Inclue-se ai também a
defesa que Giuseppe Rafaelli fez de Cecilia Farago, meeira italiana acusada de feitiçaria em
1769.
A Arte mágica aniquilada, ainda que traduzido e publicado em Portugal
posteriormente à obra de Rafaelli, em sua versão original a antecede, em duas décadas,
antecipando os diversos argumentos apresentados na Defesa sobre a inexistência de feiticeiras
e feitiçaria. O livro de Maffei é sempre apresentado – à sua própria época - como sendo de
enorme repercussão entre os pensadores católicos, tendo a seu favor uma visão de que a
feitiçaria em geral era pouco mais que uma miragem, como diz o apresentador (Arcebispo
deTignale) das obras completas de Maffei, em 1790: "Não se pode perdoar, neste nosso
século, tanta perturbação mental, a menos que se diga que se trata ainda de um pensamento
infantil, e que as crianças estão mais sujeitas que os outros às ilusões"14. A obra de Maffei,
delimitando os limites do sobrenatural no catolicismo, define a arte mágica como prática
supersticiosa, mas não herética, e a feitiçaria, como, em geral, charlatanice ou fruto da
ignorância, retomando o tema – caro ao Iluminismo – da emancipação do pensamento através
do conhecimento. O fato de que, além do o trabalho de Rafaelli, somente o livro final de
Mafei ter sido traduzido no contexto em foco é, em si, significativo, pois apresenta apenas as
conclusões do debate italiano sobre o tema – e sua aplicação prática, qual seja, a defesa
de Cecília Farago.
Este último texto, parte de um caso concreto de acusação de feitiçaria – como os
diversos exemplos citados por Maffei – para construir uma sólida peça jurídica contra os
processo deste tipo. Esposa de Lorenzo Gareri, nascida no início do século XVIII na Calábria,
à época parte do Reino de Nápoles, Cecília Farago pertencia a uma familia de agricultores de
uma camada social que se destacava economicamente, neste caso específico devido a um
número de pequenas propriedades rurais e bens diversos, amealhados em duas gerações, por
compra, herança ou através de dotes15. Lorenzo, estando à morte, legou seus bens ao único
filho vivo, Andrea, com o cuidado de prever que ele, Lorenzo, e sua esposa, Cecília, teriam o
usufruto da maior parte dos bens até sua morte. Lorenzo também deixou uma previsão de que

13
CASABURI, Mario. La “fattuchiera” Cecilia Farago._L'ultimo processo di stregoneria e l'appassionata
memoria di Giuseppe Raffaeli. Messina: Rubbertino, 1996. p. 9-11.
14
FIORIO, Antonio. Storia critica dell'opera del Maffei; l'arte magica destrutta. In MAFFEI. Opere. T. 2.
Veneza: Antonio Curti Q. Giacomo, 1790, p. 5.
15
CASABURI, p. 19.

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fossem rezadas uma missa por ano, "in perpetuum, et mundo durante", por sua alma. O
dinheiro dessas missas deveria sair do espólio de Lorenzo. Com a morte deste, o filho Andrea,

de saúde frágil, representava a tipica figura dos meeiros em crise, que caminhava
para um lento, mas inexorável declínio; católico fervoroso como o pai, pouco atento
aos cuidados dos próprios bens e pouco inclinado a aumentar seu patrimônio com a
aquisição de de casas e terrenos, [...] atingido pela morte de seu genitor em 1762,
vítima provável de escrúpulos religiosos e sentindo próxima sua própria morte,
Andrea foi facilmente convencido por dois membros do clero [...] a doar tudo quanto
possuia à Igreja com a promessa de salvação eterna 16.

Esses dois padres – Domenico Vecchiti e Francesco Biamonte – disputaram, com


Cecília, o lucrativo patrimônio de Andrea logo após a morte deste último, em 1766, com
sucessivos processos e recursos que culminaram, em agosto de 1767, em um processo de
litígio civil movido pela viúva contra os dois clérigos que, em resposta, e como "última e
decisiva carta, acusaram Cecilia Farago de feitiçaria, um delito fácil de ser criado a partir do
nada"17, mas que, na tradição jurídica do reino de Nápoles, inclui-se no campo da repressão à
heresia, considerada como crime de lesa magestade18.
Enredada por tal acusação (que incluia o assassinato de um padre local por artifícios
mágicos) em uma sucessão de conivências que privaram-na das propriedades e da liberdade,
Cecilia Farago viu seu processo ser levado até a Régia Audiência de Catanzaro em 1770, na
qual teve como defensor o jovem advogado Giuseppe Rafaelli. Os processos de bruxaria no
reino de Nápoles, desde o século XVI, seguiam os procedimentos fornecidos pelo mais
famoso manual de inquisitores italianos – o Sacro arsenale overo Prattica dell'Officio della
Santa Inquisitione – e mantinham uma relação de continuidade e incerteza dos limites entre as
jurisdições laica e eclesiástica19, o que parece ter sido explorado inicialmente pelos
acusadores de Cecilia Farago, na medida em que fazem agir os oficiais da justiça antes
mesmo de qualquer procedimento acusatório formal, mas também por Rafaelle, que
demonstra conhecer o debate realizado por Muratori, Maffei, Tartarotti e outros ao sustentar
sua tese principal de defesa em torno da inexistência de "arte mágica" e, consequentemente,
da ineficácia do tribunal eclesiástico.

16
CASABURI, p. 20.
17
CASABURI, p. 22.
18
SEMENARO, Martino. Il tribunale del Santo Officio di Oria; inediti processi di stregoneria per la storia
dell'Inquisizione in età Moderna. Milano: Dott. A. Giuffre Editore, 2003, p. 57.
19
SEMENARO, p. 72-75.

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O texto elaborado por Rafaelli "revela altíssima qualidade de oratória, extraordinária


preparação jurídica, médica e científica associada a um amplo conhecimento dos clássicos
latinos e gregos; não se pode deixar de mencionar um vasto conhecimento da retórica, um
plano orgânico e claro do discurso e numerosas referências ao debate contemporânea sobre
magia e feitiçaria"20. O primeiro capítulo – o mais longo e complexo – é a parte mais original
da arenga, na qual Rafaelli faz um análise articulada da feitiçaria desde a antiguidade,
discutindo e citando os clássicos (Galeno, Políbio, Heródoto, Cícero, Sêneca) e os
contemporâneos (Carli, Maffei, Tartarotti), nega a existência de magia, afirmando que a
atribuição de "mágico" a qualquer fenômeno não era outra coisa além de "maravilhas de uma
natureza desconhecida".
No segundo capítulo, ele demonstrou que a morte do sacerdote Antonio Ferraiolo, de
que Cecilia Farago era acusada, não ocorreu por fatores sobrenaturais. Ao contrário, o
advogado demonstrou que a morte aconteceu mais em função da incompetência dos médicos
que atenderam Ferraiolo, e que, como consta em seus depoimentos registrados nos autos do
processo, não souberam reconhecer e combater adequadamente os sintomas típicos de sua
doença. Esta demonstração é realizada – novamente – com o recurso a clássicos das artes
médicas (Hipócrates em especial) e às observações contemporâneas. É particularmente
enfática a crítica à conclusão que os dois médicos que atendenderam Ferraiolo de que a
doença "podia provir de causa natural, ou de malefício"21, em especial por não terem
realizado um exame post mortem, que demonstraria cabalmente a morte por "doença tísica".
Um terceiro capítulo discutiu os termos jurídicos do processo, buscando especificar o
"espírito das leis que punem os mágicos", ao mesmo tempo que demonstra que todo o
processo é profundamente calunioso, por ser construído em torno de ideias gestadas em um
passado dominado por "sofistas e fanáticos". Rafaelli conclui:

He muito impudente, e desaforada a impostura maquinada contra a viuva.


Accusaram-na de hum crime, que nem houve, nem se pode dar. Quizeram persuadir
que Ferraiolo, que morreo tisico, acabara por maleficio, e fabricaram hum Processo,
cumulo na verdade de malvadas mentiras. Tras luz dpor toda esta causa a misera
innocencia opprimida. Não he tudo que acabo de expor hum grande motivo para crer
que o Tribunal superior punirá a facinorosa acusadora [a mãe de Ferraiolo, instigada
pelos dois padres], e juntamente os dous Medicos matadores de Ferraiollo? Não
devo esperar tambem que dará prompta, e saudavel providencia na oppressão da
affligida viuva?22

20
CASABURI, p. 29.
21
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó... p. 56-57.
22
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó... p. 73.

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O caso, através da obra de Rafaelli, teve repercussão fora da Itália, como exemplifica a
notícia dada, já em 1772 no Journal politique, ou Gazette des gazettes, também conhecido por
Journal de Bouillon, dirigido por Jacques Renéaume de La Tache (que também foi autor de
Observations physiques et morales sur l'instinct des animaux, publicado em 1770 em
Amsterdam23).

L'année dernière, une femme appellée Cecilia Farago, fut accussée de magie par la
veuve Victoire Rosseti, qui imputoit à ses maléfices la mort de son fils unique Don
Antonio Ferraiuolo. L'Auditeur d'Elia reçut ses plaintes & ses depositions; il ne
douta point de la possibilité du fait; il le jugea même très grave, parceque le mort
étioit Prètre. Son procès verbal & toutes les procédures qui en furent la suite,
n'offroient que des irrégularités. Un crime absurte, imaginé & cru par l'ignorance,
faillit à conduire au bûcher une femme innocente. Le Roi heureussement ordonna la
revision de ce procès ridicule, & il vient de justifier Cecilia Farago; il lui accorde les
réparations & les dédomagemens qui lui font dus aprés une affaire criminelle
injustement intentée, qui l'a exposée à des pertes considérables, & qui lui a fait subir
une prison longue, rigoureuse, & acccompagnée des inquiétudes les plus vives sur
son sort; il lui permet de prendre á partie ses accusateuers, de vérifier les motifs de
leur conduite, & de les poursuivre a son tour au criminel, s'il y a lieu." 24

Em 1775, o processo foi mencionado também no volume 5 do Neueste


Religionsgeschichte, do teólogo alemão Christian Wilhelm Franz Walch como exemplo de
uso indevido da crença no diabo25. A repercussão foi duradoura, pois, em 1817, José Hipólito
da Costa enalteceu, nas páginas do Correio Brasiliense, o mero fato das traduções
portuguesas de Arte mágica Aniquilada e da Defesa de Cecilia Farago estarem disponíveis à
venda, anunciados nas gazetas do Rio de Janeiro. Para ele, "O simples offerecimento destas
obras á venda publica nos mostra, que no Brazil ha patriotas assas entendidos, para
conhecerem a importância de desabusar o povo; elliminando os erros comuns em mateiras
desta natureza; e que tendem a embrutecer o espirito humano."26
Outros autores acharam necessário continuar o esforço de esclarecimento sobre o
mundo sobrenatural, referenciando o debate do século XVIII. Em 1820, Manoel Borges
Carneiro em seu Portugal Regenerado retomou o tema da feitiçaria na sua "Parábola 4", "A
magia e mais superstições desmascaradas". Após considerar que os "delírios [de que] é capaz
o juízo humano, quando jaz nas trevas da ignorância" geram o medo que, por sua vez, produz
23
TILKIN, Françoise. L'Encyclopedisme au XVIIIe siécle. Genève: Droz, 2008, p. 76.
24
Journal politique, ou Gazette des gazettes (1771). Lutton, 1772, p. 31.
25
WALCH, Christian Wilhelm Franz. Neueste Religionsgeschichte. Vol. 5. in der Meyerschen
Buchhandlung, 1775, p. 75.
26
Correio braziliense, ou, Armazém literário, Volume 18, 1817, p. 113.

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a superstição "a qual, supplantando o bom senso, a boa razão, e a Filosofia, se torna origem
fecunda de erros, illusões, e fantasmas de uma imaginação esquentada que converte tudo o
que toca em lobishomens, bruxas, demonios e almas de outro mundo", Borges Carneiro
lembrou da obra de Maffei como um dos exemplos de autores que tentaram escrever sobre "as
desgraças que a humanidade tem sofrido em consequencia da credulidade sobre a magia"
ainda que não mencionasse o processo de Cecília Farago 27. Segundo Paiva, essas publicações
fazem parte de uma ampla difusão da polêmica que, pelo fim do século XVIII "tocou setores
que então já não se podiam considerar elites letradas. Em 1788, um capitão do exército
português de nome F. Silva, escreveu um manuscrito onde fala da bruxaria como um aspecto
do mundo mental das mulheres velhas, das crianças e das pessoas rústicas"28.
Chama a atenção o fato de não existirem traduções, porém, dessas obras, por mais
citadas que elas sejam. Mesmo a vasta discussão de Maffei sequer mereceu uma versão
francesa, em uma época em que o francês era considerado por todos os leitores eruditos o
idioma de difusão científica por excelência. Um levantamento das edições do século XVIII
preservadas nos arquivos revelou quen ão há traduções dos livros de Maffei, exceto talvez de
sua peça mais famosa – La Merope – traduzida para francês, inglês e alemão entre 1718 e
1751 e que mereceu uma carta de Voltaire ao autor, publicada em italiano, mas não em
francês29.
As traduções portuguesas (como parte deste mesmo movimento de mudança no
pensamento erudito sobre a feitiçaria) tiveram um percurso relativamente curto, pois a
Defesa... foi publicada, em primeira edição, em 1775, na oficina tipográfica de Manoel
Coelho Amado, com 78 páginas e novamente em 1783, impressa pela Academia de Ciências,
numa edição de 149 páginas, ao passo que a Arte Mágica só teve a edição de 1783, impressa
na "officina de Simão Thaddeo Ferreira".
Os livros sobre feitiçaria traduzidos por José Dias Pereira, como parte das práticas de
leitura do período, surgem como obras que buscam resumir o conhecimento científico sobre
os fenômenos “mágicos” com o intuito de combater a própria crença na magia. Porém, a
tradução desses livros, ainda que inscrita no contexto de um iluminismo católico português

27
CARNEIRO, Manoel Borges. Portugal Regenerado. Parábola 4, "A magia e mais superstições
desmascaradas". Lisboa: Typografia Lacerdina, 1820, p. 12.
28
PAIVA, p. 90, citando o manuscrito “Não há feiticeiras". Dissertação. BNL, ms, caixa 245, doc. 120.
29
OLTAIRE. Lettera del signor di Voltaire al sig. marchese Scipion Maffei autore della Merope italiana, e di
molte altre opere famose [Texte imprimé]. - [S. l. n. d.]. - 12 p. Disponível em
http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb41058938r/ISBD , consultado em 10/04/2012.

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que visava "combater a ignorância e a superstição [...] com relação à feitiçaria" a partir dos
exemplos do iluminismo italiano30, pode ser incluída nas estratégias editoriais do
pombalismo. O tradutor, que era um presbítero secular, poeta bissexto, e participou da
Arcádia31, ocupava uma alta posição na estrutura de poder pombalina, o que nos permite
entender estas traduções tanto como o desempenho de uma missão oficial, quanto como parte
de um processo de domesticação da Inquisição portuguesa, cujo objetivo era acabar com a
crença na feitiçaria e dirigir a atuação da Inquisição para crimes políticos e comportamentais
dos sacerdotes.
Esse tipo de uso que Pombal fez do livro caracterizava um modus operandi de inserir
sua prática política no contexto da palavra impressa como parte de empreendimentos de
poder, visando marcar claramente o que deveria ser lembrado e esquecido com relação à
religião e à ciência em geral, e que pode ser observado em várias das suas ações político-
administrativas. Segundo Paiva:

O próprio Regimento da Inquisição, do ano de 1774, que se insere claramente nas


alterações que a instituição sofre no tempo de Pombal, qualifica de "imposturas
sonhadas" [...] e é talvez o melhor exemplo de como a alteração de perspectivas dos
"doutos" foi responsável pelo fim dos processos contra mágicos. A partir desta data
a Inquisição passa a condenar os indivíduos acusados destas práticas, não como
agentes de um pacto diabólico, mas por acreditarem em superstições, instigando-os a
declararem porque "inventaram e maquinaram os fingimentos e imposturas" de que
se diziam capazes32.

Para sustentar a campanha contra os jesuítas, por exemplo, o Gabinete Real produziu
uma série de textos de caráter propagandístico, elaborados sob a direta supervisão de Pombal.
Estes libelos anti-jesuíticos foram editados em vários idiomas – Latim, Espanhol, Francês,
Italiano, Alemão e Inglês – e distribuídos no mercado europeu, visando sensibilizar a opinião
pública para os propósitos regalistas. A Relação Abreviada, de 1757, teve uma edição de
vinte mil exemplares33. Dez anos mais tarde, Pombal ainda mantinha acesa a chama
discursiva na qual pretendia que ardessem os padres inacianos. Provavelmente redigida por

30
SOUZA, Evergton Sales. The Catholic Enligtenment in Portugal. In: LEHNER, Ulrich & PRINTY, Michael,
eds. A companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010, p. 378.
31
Morato, Francisco Manuel Trigoso de Aragão, Memórias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato,
começadas a escrever por ele mesmo em princípios de Janeiro de 1824 e terminadas em 15 de Julho de 1835,
revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933.
32
PAIVA, p. 88.
33
Relação abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas das provincias de Portugal e Hespanha
estabelecerão nos dominios ultramarinos das duas monarchias, e da Guerra, que neles tem movido e sustentado
contra os Exercitos Hespanhois e Portuguezes: Formada pelos registos das Secretarias dos dous Comissarios e
Penipotenciarios; e por outros Documentos authenticos. [Lisboa : Tipografia de Miguel Rodrigues, 1757]

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Pombal, mas recebendo a assinatura de José Seabra da Sylva, foi publicada em 1767 a
Dedução Cronológica e Analítica34, que “constitui o mais acabado ensaio de política regalista
sobre matérias jurisdicionais consideradas exclusivas do poder régio”35. Pombal mandou
enviar A Dedução para todas as partes do reino e também para o ultramar. Em 1771, vieram à
luz dois outros textos panfletários: o Compêndio Histórico do Estado da Universidade de
Coimbra36, elaborado pelos integrantes da Junta de Providência Literária responsáveis pelos
documentos da Reforma e o opúsculo Origem Infecta da Relaxação Moral dos Denominados
Jesuítas37, publicado sem autoria, pela Régia Oficina Tipográfica. A historiadora Ana Cristina
Araújo caracterizou a criação da Impressão Régia como uma das estratégias do “dirigismo
cultural” de Pombal:

Ao ‘levantar uma Impressão útil ao público pelas suas produções’, Pombal


reafirmava o seu propósito de ‘animar as letras’ e deixava subentendido o desígnio
de ampliação de uma rede comunicacional eficaz e moderna, erguida a partir da
chacelaria régia38.

Figura do iluminismo, Pombal acreditava no poder da palavra impressa. Escolheu os


livros como monumentos instauradores de verdades e memórias. O autor que melhor definiu a
proposta pombalina de instituição de uma memória nacional seletiva foi Rui Tavares. A
propósito da atuação da Real Mesa Censória, o autor caracterizou a unicidade de certas
práticas que, quando dirigidas a um mesmo tema, aparentemente são paradoxais: de um lado a
supressão de memórias, através da censura, do outro, o constante lembrar através da edição de
textos programáticos.

34
SILVA, José de Seabra da. Dedução chronologica, e analytica na qual se manifestão pela successiva serie de
cada hum dos reynados da moranquia portugueza...Lisboa : Officina de Miguel Manescal da Costa, 1767. 2 v.
35
SANTOS, Cândido dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung; Ensaio sobre o Regalismo e o
Jansenismo em Portugal na 2ªmetade do século XVIII. Revista de História das Idéias, o Marquês de pombal e o
seu Tempo. Coimbra, v.4, 1982. t.1, p.188.
36
ompendio Historico do Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados Jesuitas e
dos estragos feitos nas sciencias... : Régia Oficina Tipográfica, 1772.
37
Origem infecta da relaxação da moral dos denominados Jesuitas Manisfesto dolo, com que a deduziram da
Ethica, e da Metafysica de Aristoteles, E obstinação, com que, ao favor dos sofismas da sua Logica, a
sustentaram em commum prejuizo Fazendo prevalecer as impiedades daquelle filosofo, falto de todo o
conhecimento de Deos, e da vida futura, e eterna, Contra a Escritura, contra a Moral estabelecida pelos livros dos
Officios de S. Ambrosio, pelos trinta e sinco Livros dos Moraes de S. Gregorio Magno, pelos Santos Padres, e
pelas Homilias de todos os Doutores Sagrados, que constituiram os Promptuarios da Moral Christã, Em quanto a
não corromperam aquelles malignos artificios com lamentavel estrago das consciencias dos Fieis. : Na Regia
Officina Typografica, 1771.
38
ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo In: _____. O Marquês de
Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000,p.26.

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O pombalismo viveu claramente ancorado na criação e rememoração de narrativas


que lhe eram muito próprias ou mesmo exclusivas. Pode dizer-se que grande parte
do poder acumulado pelo marquês de Pombal se fundou na forma como impôs as
suas narrativas (sobre a expulsão dos jesuítas e sobre o atentado ao rei,
nomeadamente), às vezes à custa [...] da inflacção de factos aparentemente banais 39.

A tenacidade com que o plenipotenciário ministro de D. José I conduzia a luta contra


Companhia de Jesus, não tinha por objetivo apagar a memória dos inacianos ou do passado da
Universidade, mas “controlar não só o que se lembra e a forma como se lembra, como
também o que se esquece e a forma como se esquece”40. Desde a expulsão dos jesuítas e por
mais de vinte anos, Pombal não descurou da sua campanha, alimentando com a divulgação
ininterrupta de textos críticos, a sua política antijesuítica.
Se a expulsão dos inacianos configurava uma vitória de Pombal, em contrapartida
criava um problema educacional sem precedentes. Durante quase dois séculos eles haviam
dominado todo o aparato educacional, do ensino fundamental à universidade, no reino e nas
colônias. A reforma educacional tornou-se inadiável e conduziu à reforma da Universidade de
Coimbra.
Antes mesmo de iniciar a elaboração dos Estatutos que estabeleceriam a “nova creação
da Universidade de Coimbra”, os reformadores tiveram que responder a uma consulta régia
sobre o estado da Universidade. O Compêndio Historico do Estado da Universidade de
Coimbra foi produzido como um documento de caráter político, o qual “identifica os sinais de
decadência da instituição e atribui, unilateralmente, as causas da ruína dos estudos aos
jesuítas”41. Este documento criava a base discursiva sobre a qual firmava-se a Reforma e a
propriedade dos novos Estatutos. Pela Carta de Roboração dos Estatutos da Universidade de
Coimbra, assinada pelo próprio D. José, os Estatutos foram concebidos com a qualidade de
“perpétuos”, cassando e revogando todos os havidos anteriormente “como se nunca
houvessem existido”. Mais uma vez a pretensão de suprimir memórias, instituindo outras, que
ensinavam como a velha Universidade deveria ser lembrada.
Por fim, foram elaborados os Estatutos de 1772, apresentados na forma de três livros:
o primeiro referia-se ao Curso Teológico, o segundo aos Cursos Jurídicos das Faculdades de
Cânones e Leis e o terceiro aos Cursos das Ciências Naturais e Filosóficas. Foram compilados

39
TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. ... p.145.
40
Idem. p.146.
41
ARAÚJO, Dirigismo cultural ... p.87.

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como o expresso objetivo de “restauração das sciencias, e artes liberaes”, contra aquilo que
foi qualificado de “notório Systema de ignorancia artificial”, ou seja a educação jesuítica42.
A historiografia portuguesa contemporânea ajuda a perceber o proposital exagero
contido nos principais textos da Reforma quando pretendiam fazer crer que o estudo das
modernas ciências inaugurava-se naquele momento, fazendo tabula rasa de todo o saber
anteriormente acumulado pelos jesuítas e outros segmentos da elite intelectual portuguesa.
Assim, Estatutos e Compêndio Histórico são obras que conjuntamente realizam com precisão
o conceito Documento/Monumento, tal como foi teorizado por Le Goff43. Esses livros foram
transformados em monumentos não apenas no que respeita a seus conteúdos mas na sua
própria materialidade, em especial os Estatutos, que receberam luxuosa encadernação e
ficaram expostos à veneração pública44.
Os Estatutos e o Compêndio Histórico instauram simultaneamente a memória da
“Nova” Universidade e o culto de seu reformador maior: Sebastião José de Carvalho e
Mello45. A ‘Reconstrução de Lisboa’ e a ‘Reforma da Universidade’ passaram a constituir o
par inextrincável da base discursiva sobre a qual foi construído o monumento maior: o
personagem Pombal.
Não obstante, há uma questão que a historiografia tem buscado responder, que é a do
significado dos processos transformados em categorias de análise aos quais os historiadores
recorrem frequentemente para criar sentidos no passado. Termos como "Antigo Regime",
"Pombalismo", Iluminismo podem ser melhor entendidos quando tentarmos ouvir o passado
ao invés de forçarmos sua voz a partir de modelos pré definidos. É nesse sentido que os
prefácios de Dias Pereira permitem compreender um pouco mais as diversas e múltiplas
implicações do debate sobre feitiçaria.
O tradutor nos diz de seu entendimento desse debate, ao manifestar os objetivos de
seu esforço de tradução. Na "prefação" da Defesa... Dias Pereira resume o tom da relação

42
Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1972. 3.v. (edição
facsimilar) Doravante referenciados como Estatutos.
43
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi.Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da
Moeda, 1984. v.1. p.95.
44
FONSECA, Fernando Taveira da. A dimensão pedagógica da reforma de 1772; Alguns aspectos.
In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 2000. p.43-44. VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros
Horizonte, 1990. p.347-348.
45
Numa escala menor, com especial apelo entre a intelectualidade os luso-brasileira, estabelece-se o culto a D.
Francisco de Lemos.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 430

entre crença e descrença, que se coloca como oposição entre conhecimento erudito "ilustrado"
e saber popular, ao afirmar que o que gera a crença na feitiçaria são as "medonha[s]
narraç[ões] os Lobishomens, e das Fantasmas, que appareceram nos escuros lugares (com se
receasse o demonio até a luz de huma vela)" que as amas, "ordinariamente grosseiras e
supersticiosas" usam para entreter as crianças, submetidas desde muito cedo a estas histórias e
aos "casos dos Magicos, e das Feiticeiras"46. No prefácio da Arte mágica, contudo, o tradutor
é menos condescendente com a crença, preferindo construir melhor seu argumento anti-
bruxaria a partir da comparação exemplar, primeiro, dos autores que antecedem ou apoiam os
argumentos de Maffei, partindo da premissa de que a existência ou não da "arte diabólica" é
"simples ou mera opinião"47. Em segundo lugar, expondo os argumentos dos defensores da
existência da magia, para atacá-los, usando o texto de Maffei como "cabeça de praia".
Ele pretendia, por meio da tradução, "salvar os [seus] Compatriotas" menos
instruídos dos abusos gerados pela crença nas feiticeiras, pois seu trabalho permitir-lhes-ia ler
"as doutrinas do Original"48. Seu objetivo era a instrução "daquellas pessoas, que a penas
lem, e entendem a nossa língua vulgar" dentre as quais ele imaginava existir quem acreditasse
nos "prodígios magicos", por associação aos dogmas católicos da verdade dos milagres, da
obra de Deus e da existência dos anjos máus49.
O que move o tradutor (e, podemos inferir, seus "patronos") era a necessidade de
difundir as novas "luzes", não entre os intelecutais tradicionalmente associados ao Iluminismo
em Portugal, mas entre as camadas "médias", de leitores, que podemos imaginar serem
indivíduso oriundos de camadas populares que dominam a leitura mais e mais, a partir da
expansão do sistema de aulas régias, por exemplo. Se essa era a população a quem as ações
editoriais pombalinas listadas acima eram destinadas, ainda está por ser discutido a partir do
aprofundamento das investigações aqui iniciadas. Cabe somente verificarmos como o
personagem em foco (Dias Pereira) percebia sua própria ação ilustrada – entendida por ele
como uma forma esclarecida de catolicismo, com pequenas tintas nacionalistas a colorir o
quadro:

46
PEREIRA, Defesa... s./p.
47
PEREIRA, Arte mágica... p. 6.
48
PEREIRA, Defesa... s./p.
49
PEREIRA, Arte mágica... p. 3.

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Passaram os tempos, em que se rendia cega e profunda idolatria ás extravagantes


Disquisições Magicas de Martinho Del-Rio. As grandes luzes que actualmente
illustram a Patria affortunada, não consentem que só os Catholicos da França, e da
Italia, leiam na língua materna as verdades do primeiro, e terceiro capitulo desta
Obra. Deve chegar a todos esta verdade, fundada nas santas Escrituras. Baixou dos
altos Ceos o Suspirado : o Deos de Poder subjugou, e prendeo por mil annos o
dragáo infernal, e extinguio a Magia e seus encantos50.

As relações que se pode estabelecer em torno dos processos intelectuais e culturais de


criação das obras sobre feitiçaria, e de suas traduções portuguesas ficam mais fáceis de serem
compreendidas se pensarmos que a palavra escrita é um campo fértil para as práticas
culturais, pois elas são historicamente variáveis, e “historicizar nossa relação com a leitura é
uma forma de nos desembaraçarmos daquilo que a história pode nos impor como pressuposto
inconsciente”51.
Essas práticas, sendo, fundamentalmente, apropriações de modelos, códigos, formas
ou objetos, criam um lugar próprio que pressupõem um processo de fixação e uma duração 52.
Elas são, também, estratégias representacionais. Mesmo que os historiadores pós-modernos
neguem que a história, de alguma forma, representa a realidade, também eles buscam
entender como as sociedades e os indivíduos produziam essas representações no passado,
lançando mão, para tanto, de conceitos ligados à história cultural. Ao lado desta discussão
sobre a própria escrita da história, os historiadores devem debruçar-se sobre as construções
identitárias derivadas de representações sociais, pois estas conformam atitudes, produzem
imagens e devem ser analisadas nas relações interpessoais, intergrupos, etc 53. Assim, pensar
as representações (em particular, as representações coletivas)54.
As práticas em torno da posse e da leitura de livros devem ser compreendidas,
portanto, de acordo com “as desigualdades de recursos (linguísticos, conceituais, econômicos,
etc) disponíveis a cada comunidade, ligando as possibilidades de apropriação às habilidades e
interesses que as governam”, associando o potencial de resistência ao local social e às
trajetórias de vida do(s) indivíduo(s) sob análise55. Assim, pensando que as práticas em foco
foram pertinentes a uma sociedade de privilégios, econômicos, sociais, culturais e legais, a
50
PEREIRA, Defesa... s./p.
51
BOURDIEU, Pierre & CHARTIER, Roger. A Leitura, uma prática cultural. In: CHARTIER, Roger, (org.).
Práticas de leitura. São Paulo: Estação Liberdade, 1996, p. 233.
52
CHARTIER, Forms and meanings.... p. 4.
53
MOSCOVICI, Serge. Psycologie sociale. Paris: PUF, 1990.
54
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS,
2002. p. 73.
55
CHARTIER, Roger. Writing the Practices. French Historical Studies, 21, No. 2 (Spring) 1998, 255-264, p.
259.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 432

documentação será lida na busca dos sentidos atribuídos aos (ou construídos nos) livros e
textos de ciência, por pessoas que agiram dentro dos moldes culturais e sociais que regiam a
expressão individual. Foi isto que esperamos ter demonstrado ao contruir a rede de práticas
que acompanhou as obras de Maffei e Rafaeli de sua composição até as traduções de José
Dias Pereira.

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PANACEIA DA DOR: O ESPAÇO SOCIAL PORTUGUÊS E OS PRECEITOS


REFORMADORES DA “GERAÇÃO NOVA DE 1870”

Lucélia Rodrigues de Oliveira


Orientadora: Célia Regina da Silveira
(Mestranda do PPGHS/UEL)

Palavras-Chave: Portugal, Intelectuais, Geração Literária.

O trabalho em questão busca analisar os pormenores do embate ocorrido


entre a Igreja Católica e o militantismo laico, nas ultimas décadas do século XIX, em
Portugal. Promulgado principalmente pela classe intelectual da época – e tem-se ai figuras de
renome como Guerra Junqueiro, Eça de Queiróz, Oliveira Martins, Antero de Quental,
Ramalho Ortigão, entre outros – dará vazão a uma das facetas mais importantes da história
cultural portuguesa, ou seja, a movimentação laica e anti-institucional, promovida pelos
membros da chamada “Geração de 1870”. Momento em que, a sociedade portuguesa se
mostrava ansiosa por transformações estruturais, que fossem capazes de sanar os males
advindos de sua decadência econômica e de seu atraso cultural. Condição delicada, que
revelava as nuances de um sistema político-social, falho o suficiente, para impedir que
Portugal conseguisse se equiparar a qualquer outro país europeu. Diante desse quadro
“alarmante”, os representantes da classe intelectual, se punham a contestar e a pensar formas
mais justas e eficazes de transformação da nação portuguesa. E fazendo uso dos recursos que
tinham a disposição – principalmente, os jornais e periódicos – para promover suas ideias
reformistas; propunham por meio de suas manifestações, por fim ao estado de decadência
social e econômica em que se encontrava a nação portuguesa. Expondo seus problemas, e
dando inicio ao que eles entendiam ser a edificação de outro país, mais próximo dos intentos
de modernização e civilidade requeridos na Europa oitocentista.

Vale lembrar que, da segunda metade do século XVIII até fins do XIX,
Portugal vivenciou problemas tangentes, que iam desde uma pobreza concisa proveniente de
doutrinações econômicas e tentativas de industrialização; até anseios de renovação política e
cultural; dificuldades latentes de uma sociedade predominantemente rural e que se mostrou

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pouco apta a seguir os caminhos “inovadores e civilizacionais” em voga. Segundo críticos


coevos, a situação econômica e política de Portugal poderia ser entendida como a soma dos
fracassos e das derrotas oriundos de movimentos como a Regeneração e o Fontismo; com as
dívidas contraídas ao estrangeiro, mais precisamente com a Inglaterra, feitas para pagar os
investimentos em infra-estruturas; com as “confabulações políticas” que dominavam as
instituições - principalmente a Igreja Católica - além do predomínio da mentalidade rural
sobre a urbana; do abarrotamento das cidades e da indústria moderna mal desenvolvida.

Assim, a denominada “Geração de 70” procederia a um extraordinário


esforço de modernização e reformulação do campo cultural e político nacional, no qual os
intelectuais procuravam uma via mais plausível e justa de colocar o país a par da
modernidade, aproximando-o dos novos modelos culturais e políticos existentes em outras
partes da Europa. 1

PORTUGAL E OS INTELECTUAIS: “PARA MOSTRAR ONDE DÓI”

Muitos pesquisadores remontam ao período que vai de 1865 a 1872 para


explicitar os aspectos de definição da chamada “Geração Nova” ou “Escola Coimbrã”, a
qual, posteriormente, por meio de estudos no âmbito das letras e da história, acaba por ser
denominada “Geração de 1870 portuguesa”.2 É muito comum definir a ideia de “Geração
literária” ou “Geração de intelectuais” como: um grupo de autores contemporâneos e
coetâneos que comungam das mesmas ideias, respondem aos mesmos desafios históricos,
partilham a mesma estética em suas produções e, muitas vezes, procuram construir suas obras
com características semelhantes.3 Mas é importante mencionar o quão frágil pode ser essa
definição, se atribuída somente em função do critério de contemporaneidade, ou se
considerarmos apenas a idade que estes homens teriam em comum, pois é de fundamental
importância atentar para os valores ideológicos, sociais, estéticos e, sobretudo, ao desejo de

1
RAMOS, Rui. A formação da Intelligentsia Portuguesa (1860-1880). Revista Análise Social, Vol. XXVI
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1992, p. 483-528.
2
ROCHA, Clara. Gerações, gerações, gerações... In: Revista Nova Renascença, Vol. VI nº 21, Porto, 1986.
3
Idem, p. 26-27.

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afirmação literária, que certamente cada um destes indivíduos comungava. 4 Sem contar que o
critério de familiaridade de opiniões e de pensamentos não seria suficiente para agrupar
determinados escritores numa “geração literária”, já que esta comumente admite a inclusão de
pensadores que, mesmo não compartilhando de valores e ideais, sejam por razões históricas
ou culturais, se encontram ligados a um determinado grupo.5

Segundo Ângela Alonso, é preciso cautela ao usar termos como “geração de


escritores” ou “classe de intelectuais”, pois a apreensão do significado de um movimento
intelectual ou a análise da existência de uma dada “geração” de autores e literatos impõe ir
além da mera reconstrução da lógica interna de seus textos e produções ou de seus discursos,
afinal um movimento intelectual só ganha plena inteligibilidade através de uma análise
contextual que, por sua vez, não se encerra em sistemas de pensamento ou em definições
teóricas, pois as formas de pensar estão necessariamente imersas em práticas e redes sociais.6
Nestes termos, torna-se necessário considerar, primeiramente, a experiência compartilhada
pelos componentes do movimento em questão e colocá-la como aspecto fundamental da
perspectiva analítica.7

Sendo assim, a reflexão que fazemos aqui sobre os aspectos próprios à


geração de 70, em Portugal, vai muito além da análise das produções literárias de seus
personagens ou dos caracteres teórico-científicos que estes se propunham a discutir e
compreender no momento em questão, pois estes dialogavam com fatores econômicos, sociais
e principalmente históricos, os quais, em algum momento, estiveram presentes na história
portuguesa. Sendo assim, pode-se pensar que o movimento crítico realizado pelos intelectuais
de 70, ao propor uma revolução cultural8, caldeava os principais apontamentos e discussões
teóricas que advinham de outras partes da Europa, principalmente da França, mas também
comportava, em seu parecer crítico, aspectos comuns a manifestações de ordem social que
advinham de outros momentos da história portuguesa. No momento decisivo de seu arranque
– década de 70 –, o reformismo português busca promover um aparato restaurador da nação
portuguesa, ancorando suas ideias numa espécie de continuidade da história-pátria

4
Idem, p. 36-37.
5
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
6
Idem, p. 36-38.
7
Idem, p. 38.
8
BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do Saber no Renascimento Português. Lisboa, 1986.

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encontrando, dessa forma, seu enraizamento nos feitos de outrora.9 Dito de outro modo: a
história transportava consigo verdades de “fatos” que sustentavam a inevitabilidade do fim do
sistema monárquico e o advento do sistema republicano; e este, é claro, não poderia se firmar
sem a força vital da democracia.

Nestes termos, princípios como os da soberania nacional, da divisão dos


poderes e dos direitos do homem foram se mesclando às condições necessárias e irreversíveis
de valor ontogênico e autônomo do individuo, e tudo no espaço de uma realidade social que
necessitava ser reformada, de modo a evitar que seu presente patológico não tivesse por
desenlace o fim da pátria.10 Não podemos esquecer de que os discursos, e muitos dos textos
confeccionados pelos reformistas de 70, pressupunham uma “vocação coletiva” ao
representarem a história do país como um palco em que, momentaneamente vitorioso ou
derrotado, o pendor natural do povo português para a democracia se ia concretizando. A ideia
de povo feito nação seria, portanto, uma força coletiva e anímica, que moveria a história a
caminho da democracia, que era sua vocação e destino secular.11

Nesse sentido, a proposta de saneamento-social formulada pelos


letrados resultou em uma movimentação de combate no espaço social português. E é
justamente essa postura combativa que os principais representantes da “geração nova de
1870” irão expor nos textos e nas representações de protesto que formulavam. Oliveira
Martins, um dos principais nomes desse movimento, relata em seu romance histórico Febo
Moniz (1867), que:

[...] A nossa época é uma época de transição. É uma amalgama indecisa, hipócrita,
ilógica, torpemente imoral e de princípios opostos: direito divino, direito
revolucionário; centralização e descentralização. Um período triste. E em termos das
vontades individuais o resultado é a hesitação e a incapacidade. A nossa classe não
cabe calar-se e conter-se, é preciso ir além e fazer doer mais do que dói esta gama de
sacrilégios.12

Também era este o projeto original proposto nas conferências do Casino em


13
1871 , o qual, devido à agressividade dos argumentos expostos em suas primeiras seções,
acaba sendo proibido de continuar. E, mesmo desfrutando de um período curto de existência,
o grupo casinista reconheceu a necessidade de modificação das estruturas sociais e a urgência
9
Idem, p. 221-223.
10
Idem, p. 89-91.
11
RAMOS, op.cit., p. 511-512.
12
Apud BARRETO, p. 56-57.
13
REIS, Carlos. As Conferências do Casino. Lisboa: Publicações Alfa, 1995.

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de um movimento regenerador. Entre os aspectos ressaltados está a afirmação de Antero de


Quental, que observa:

[...] Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação
política; e isso há muito tempo. E todos pressentem que se agita, mais forte do que
nunca, a questão de saber como deve regenerar-se a organização social. Para isso
cabe que, antes que nós mesmos tomemos nela o nosso lugar, estudar serenamente a
significação dessas ideias e a legitimidade desses interesses; investigar como a
sociedade é, e como ela deve ser.14

Assim, imbricadas de um sentido europeizante, aliado à busca de uma


solução para o estado de decadência nacional, as intenções manifestas e as acusações por
parte dos intelectuais recaem principalmente sobre os problemas que, segundo eles,
adivinham das empreitadas econômicas e “mal sucedidas” que foram os movimentos da
Regeneração e do Fontismo. Para os críticos, a ideia de transformação social e melhoramento
da economia pelo viés das “técnicas inovadoras” e dos investimentos no setor industrial
obteve muito mais êxito “nos discursos e nas anotações de seus idealizadores” do que no meio
social no qual deveriam de fato acontecer.15 Se houve uma transformação, por meio dos ideais
regeneradores, esta não foi percebida e muito menos ocorreu entre o povo,16 ou seja, o grande
“falhanço” da Regeneração consistia no fato de que, apesar dos passos tímidos e de todo o
intuito transformador, essa não foi capaz de minimizar os efeitos danosos e a impressão
extremamente negativa que a nação tinha de sua classe política e social, do funcionamento do
Estado e da administração pública. Daí os constantes ataques à decadência nacional, ao Rei,
ao Parlamento, às instituições locais, à literatura e seus “agentes conformados”, aos políticos e
às eleições.17

Segundo Fernando Catroga,18 havia uma grande influencia exercida pela


Revolução Industrial nos programas de questionamento “da Geração Nova”. Influencia que
pode ser entendida se levarmos em conta o fato de que os acontecimentos que resultaram “na

14
Idem, p. 76.
15
SANTOS, Maria Lima dos. Sobre os Intelectuais Portugueses do Século XIX: do Vintismo a Regeneração. In:
Revista Análise Social, Vol. XV 1979, p. 68-69.
16
Idem, p. 68.
17
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1982.
18
CATROGA, Fernando. O Laicismo e a Questão Religiosa em Portugal (1865-1911). In: Revista Análise
Social, Vol. XXIV, 1988, p. 211-273.

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grande Revolução da burguesia e do terceiro estado Francês” modificaram, em certa medida,


a relação entre o indivíduo e a pátria, que de “mera terra paterna se volve nação”. Ainda
conforma Catroga:

[...] Para os países católicos, a Revolução Francesa inaugurou uma experiência de


ruptura que nem as soluções concordatárias posteriores conseguiram apagar da
memória do pensamento político de esquerda. Na segunda metade do XIX, a
consolidação, um pouco por toda Europa, de regimes mais autoritários e a postura
conservadora da Igreja depois das revoluções de 1848 reabriram a polêmica a cerca
da patente contradição que existia – como no caso do constitucionalismo
monárquico português – entre o reconhecimento dos direitos fundamentais do
cidadão – incluindo a liberdade de pensamento – e a imposição por via igualmente
constitucional, de uma religião de Estado.19

Transmutado em cidadão, e sujeito de “direitos universais”, o “homem liberal”


se vê responsável pelo destino e pela figura dessa nova “entidade”, a “Pátria-Nação”, e pode
dizer-se, enfim, que lhe cabe nessas condições assumi-la, e isso implica ao mesmo tempo
aceitá-la e modificá-la pela sua ação cívica. 20

Desse modo, seria fundamental para esses indivíduos que levassem adiante
suas táticas reformistas e sobrepusessem de uma só vez, com “odes libertárias e
republicanas”, aquele estado atual de apatia oriundo de um governo monárquico
constitucional, com suas “maquinações” e que, no passado, seus pais haviam julgado que os
levaria confortavelmente para o futuro.21 Oliveira Martins, em um texto publicado no Jornal A
República, alega que rejeitava o estado econômico e político atual não porque não
funcionasse, mas porque não podia funcionar.22 O constitucionalismo eram fatos confusos,
instituições caóticas, códigos sem unidade de princípio, que desorientam “as mais claras
indicações do bom senso natural”. O regime despreza as ideias, o sistema, a unidade era uma
coisa que “tanto pode ser como não ser”, e daí a degradação geral de todas as crenças, desde o
liberalismo à religião católica. E diante desses dados, as sociedades, para não sucumbirem,
necessitavam de reconstituir-se como um todo harmônico e como um organismo vivo.23

E nesse percurso de transformações virá à tona o intuito de introduzir, no


espaço social português de fins do século XIX, o combate pelo laicismo como processo de
modificação integral da sociedade. E os intelectuais farão sentir, por meio de seus manifestos

19
Idem, p. 226.
20
LOURENÇO, op. cit., p. 88.
21
SANTOS, op. cit., p.52.
22
RAMOS, op. cit., p.503-504.
23
Idem, p. 504.

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e críticas expostos na imprensa, além da constituição de redes e grupos em torno de jornais,


periódicos, clubes e tipografias, uma vulgarização de algumas das principais doutrinas da
religião católica, como também de sua condição institucional e o poder que esta detinha na
sociedade. Um percurso necessário que os colocariam diante de uma realidade que eles, os
intelectuais, acreditavam possível e justa, capaz de transformar a consciência e a ação dos
homens, o que resultaria consequentemente, em uma sociedade também regenerada e mais
perfeita.24

É nesse momento que vão se constituir discursos acalorados e


demonstrações explícitas de recusa e deturpação da ordem católica. Pautado na ferocidade das
palavras impressas em jornais, romances e periódicos da época e no número elevado de fatos
e acontecimentos que alimentavam os discursos, o convulcionismo entre a igreja católica e o
“militantismo” laico acabaram por constituir um dos pontos nodais em que mais
acentuadamente se concentraram as contradições que estiveram no espaço social e ideológico
da sociedade portuguesa em fins do XIX. Pagamento de indulgências, privilégios, confissão,
dogmas, celibato: todos estes termos, por serem considerados próprios e fundamentais à
igreja, tornam-se alvo da crítica anticlerical. A acusação principal recaía sobre bispos, padres,
sacerdotes e “todos os seus”, tidos como pregadores de uma visão de mundo e uma moral
“anacrônica”, que atravancava os ideais de progresso e impedia as transformações sociais. 25

A campanha laica que se constituiu em meados da década de 1870, formada


em grande parte pela classe intelectual da época, “impunha” por meio de suas publicações e
discursos, acelerar a desmistificação do estatuto sacral do padre e da igreja e liquidar a adesão
popular no simbolismo religioso.26 Em outras palavras, tratava-se de “destruir” os
fundamentos da religião católica em nome da ciência e de um ideal social mais justo e
democrático, fundado na vontade dos homens e que encontrava a sua justificação e finalidade
na realização da felicidade coletiva. Nessa perspectiva, a anatematização de muitos dos
costumes do clero católico e a incoerência de muitas situações, principalmente a quebra de

24
CATROGA, op. cit., p. 231- 232.
25
Idem, p. 228.
26
GARNEL, Maria Rita Lino. A Polêmica Sobre o Celibato Eclesiástico (1820-1911). Lisboa: Roma Editora,
2003, p. 28-29.

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votos perpétuos, como a castidade, constituíram alguns dos temas mais fortes do ideal
reformista de fins do século XIX português. 27

Para o militantismo laico, os valores institucionais e os privilégios


direcionados ao clero católico assumiam ares de uma “incoerência”, à medida que
contrariavam as aspirações de desenvolvimento social e moral que acometiam a sociedade
portuguesa de fins do século XIX. Antes de questionar a origem desses dogmas ou a utilidade
destes no espaço da igreja, era preciso eliminar os efeitos que essas mesmas doutrinas
causavam no exterior do universo religioso, onde a aproximação do padre com a família e a
sua “condição casta” acabava por violar as novas aspirações sociais e os termos de convívio,
que partiam de uma concepção familiar nula de intervenções clericais e de uma
individualidade social que privilegiava “o bem de todos, para o bem de cada um”. 28 Sendo
assim, movimento que se esboça neste cenário português contempla as ideias novas, que
glorificam a “evolução em sociedade” e principalmente o trabalho, não só como meio de
acumulação de riquezas, mas também como expressão dos méritos individuais, escala de
valores incompatível com a manutenção de frades e freiras, celibatários e inativos, que para
seu sustento necessitavam de imensas propriedades; propriedades estas que, uma vez
desmortizadas - e com o lucro das transferências de que essas terras fossem objeto -, poderia
constituir uma apreciável fonte de rendimento para o estado.29

O que se observa é que a afirmação dos direitos naturais do indivíduo é


central na economia do pensamento anticlerical, de modo que a construção de uma sociedade
civil e de um novo Estado só seria possível se os homens que a compusessem fossem
cidadãos, isto é, indivíduos capazes de se comprometer e de se empenhar na tarefa comum da
construção social, e a igreja católica como instituição munida de poderes e hierarquias soava
cada vez mais “obsoleta e injusta” diante de uma sociedade que, mesmo se reconhecendo
“falha e atrasada”, buscava evoluir, apegando-se de todas as formas aos apontamentos “fartos
e virtuosos” da ciência e do progresso.30

27
Idem, p. 38- 41.
28
CATROGA, op. cit., p. 233.
29
MARQUES, João. A controvérsia Doutrinária entre o Catolicismo e o Protestantismo em Portugal no
Ultimo Quartel do Século XIX. Lisboa: Nova Atlântida, 1998.
30
Idem, p. 89-91.

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Considerando o acima exposto, pode-se perceber que a ênfase dada no


proceder da questão laica exigia que se mantivesse uma atitude vigilante em relação à
31
influência do clero – sobretudo o regular - , influência que primava pela salvaguarda da
família e pelo “livre direito” de manifestação dos indivíduos em sociedade, condição que se
considerava primordial para se conseguir a interiorização e a socialização dos novos valores
dessacralizados e a garantia da neutralidade religiosa do Estado e dos atos essenciais da
existência humana.32 Não espanta assim que a investida laica tenha focado à dogmática do
clero católico, acentuando particularmente tudo o que pudesse contribuir para acelerar a
desmistificação do estatuto sacral do padre e da igreja, para liquidar a adesão popular ao
simbolismo religioso.33 Tem-se aí, entre outros pontos, o debate em torno da confissão
auricular e do celibato eclesiástico.34

CONFISSÃO E CELIBATO: “DAS REVELAÇÕES DA ALMA À PURGAÇÃO DO


DESEJO”

Como compreendida na posição atuante do militantismo laico, a confissão


auricular assumia ares de “uma poderosíssima arma psicológica”35, por isso o fito imediato
dessa campanha incidia na libertação da família da intromissão clerical, que comumente
acontecia através das confidências feitas durante a confissão. Daí que esta surgisse, a par do
controle dos estabelecimentos de ensino e dos atos essenciais da existência como: nascimento,
casamento e morte, e como o maior instrumento de poder que a igreja detinha.36 Isto é, como
lembrava o padre Natário aos seus colegas, em O Crime do Padre Amaro, a confissão “é um
meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali. E
quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma”.37 É
importante ressaltar que, em prol da defesa da instituição familiar, acusava-se o clero de
dividir os campos no seio da família por meio de um controle psicológico da mulher. Através

31
Idem, p.87.
32
GARNEL, op. cit., p. 104-105.
33
MARQUES, op.cit. p.38-39.
34
Idem, p.61- 62.
35
Idem, p. 81.
36
GARNEL, op. cit., p. 102-107.
37
QUEIROZ, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1889.

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dela, o padre criava intrigas e estabelecia uma barreira à plena difusão e implantação dos
novos ideais modernos decisivos para a construção de um perfil de relações sociais
progressivas.38

Em todos esses pareceres, é possível observar uma intenção comum: negar a


função mediática do sacerdote e entendê-lo como um homem sujeito a paixões e subordinado
aos interesses mundanos39, o que explique que a confissão auricular prolongue noutro
contexto a denúncia de manipulação que, por meio dela, o clero poderia fazer das
consciências, pondo em perigo a privacidade familiar, a honra das donzelas, a fidelidade
conjugal e a natural transmissão das heranças, “ameaças” que alguns textos literários do
período, como os de Eça de Queiroz, Antonio Enes, Cipriano Jardim, entre outros, não
deixarão de assinalar.40

A controvérsia sobre o celibato eclesiástico, por sua vez – intimamente


articulado com a denúncia da confissão – não era nova. A ruptura protestante o havia
contestado41 e, no decurso dos séculos seguintes, a discussão acerca do múnus religioso não
deixou de questionar a sua validade para o exercício do sacerdócio. A questão a ser resolvida
partia do princípio de que a constituição de uma sociedade civil e de um novo Estado só seria
possível se os homens que a compusessem fossem cidadãos, isto é, indivíduos capazes de se
comprometer e se empenhar na tarefa comum de construção social. 42 Assim, só o indivíduo
possuidor de razão e de uma vontade autônoma e livre poderia constituir um verdadeiro
cidadão. E esta cidadania acabava fortemente comprometida pelos votos perpétuos e pelo
encerramento em clausura, muitas vezes, forçado e não voluntário.43 Os votos perpétuos que o
clero regular estava obrigado, e em particular a disciplina do celibato eclesiástico, exigido a
todos os membros da igreja, contrariavam a liberdade individual e, com ela, as demais leis
naturais. E, dentre as leis naturais, “nenhuma havia de sem dúvida mais clara, nem mais
simples do que a que manda reproduzir a espécie”44. É importante se ater ao fato de que,
partindo do pressuposto positivista, a “pureza” imposta pelo celibato agia diretamente como

38
GARNEL, op. cit., p. 92.
39
MARQUES, op. cit., p. 28-29.
40
Idem, p. 32.
41
CATROGA, op. cit., p. 218.
42
RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é Positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 32-34.
43
FRANCO, José Eduardo. Anticlericalismo e Universo Feminino: polêmicas e estereótipos; in: Revista
Lusófona de Ciência das religiões. nº 11, 2007.
44
CATROGA, op. cit., p. 210.

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empecilho à propagação da espécie, cujo direito de procriar e de fundar uma família eram
tidos como direitos inalienáveis, e privar alguém desses direitos era uma grave injustiça e uma
ilegitimidade.45

Para grande parte de seus opositores a doutrina da castidade eclesiástica era


também a causa do comportamento imoral do clero e, por isso, prejudicial à igreja. Opinião
que, acabava por dar vazão às críticas e reclames de que poucas vezes o celibato era
respeitado, o que daria motivo a escândalos e a um desregramento moral, que só a abolição da
castidade poderia resolver.46 E vale mencionar que, nas décadas finais do século XIX, os
relatos de condutas pouco compatíveis com os valores religiosos e de crimes sexuais
cometidos por padres e sacerdotes, no interior de mosteiros e conventos portugueses,
tornaram-se comuns e, independente de sua veracidade, esses estavam por todo parte,
arrebatando as opiniões e acalorando os discursos e as críticas.47

O que se verifica diante desses dados é que a crescente secularização das


ideias já não permitia aceitar o estado de continência dos sacerdotes, pois esse proceder não
só viria na contramão dos direitos naturais, como tornava viável um estatuto de superioridade
na hierarquia social da “arbitrariedade da graça divina”;48 e o padre, com seu “estatuto de
diferença”, assumia ares de um “estranho” em meio aos seus concidadãos, mais fiel a Roma
do que à pátria, onde nenhum laço de afeto o prendia, sujeitando-se pela sua natureza humana
a viver consumindo-se no “fogo impuro do desejo” ou, o que é mais natural, na
“incontinência pública” geralmente considerada como “refúgio indenizador da bárbara e
inumana disposição da lei do celibato”.49

Assim, no anticlericalismo que se instaura a partir da década de 1870 em


Portugal, o celibato, assim como, grande parte das ordenações da Igreja Católica, passam a ser
entendidos como contrários aos “direitos naturais do homem” e as novas aspirações sociais.
Na opinião dos opositores do dogmatismo católico, todo esse aparato religioso não passava de
uma imposição que lançaram sobre o clero para distanciar os membros da Igreja - e o padre
seria o principal deles - da sociedade e da família; e fazer destes, instrumentos dóceis a

45
RIBEIRO JUNIOR, op.cit., p. 24-25.
46
FRANCO, op.cit., p. 256-257.
47
Idem, p. 223-224.
48
CATROGA, op. cit., p. 221.
49
Idem, p. 257-258.

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serviço da cúria.50 Os militantes laicos mais radicais sob o influxo das contribuições do
Positivismo, e das ciências - darwinismo, evolucionismo - viam outros perigos nesta negação
da natureza formulada pelo aparato católico; pois contrariá-la poderia conduzir como
apontava Ramalho Ortigão “as profundidades clássicas da perversão”, causa provável das
“medonhas flagelações bestiais que ensanguentavam” as páginas do catolicismo.51
Comportamento impróprio, que corria na contramão do ideal de transformação social
proposto pelos intelectuais portugueses nas ultima décadas do século XIX. Uma
transformação entendida como necessária e ao mesmo tempo incompatível com os valores
promulgados pela Igreja Católica na época.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALONSO, Ângela. Ideias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império.


São Paulo: Paz e Terra, 2002.

BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do Saber no Renascimento Português. Lisboa, 1986.

CATROGA, Fernando. O Laicismo e a Questão Religiosa em Portugal (1865-1911). In:


Revista Análise Social, Vol. XXIV, 1988.

FRANCO, José Eduardo. Anticlericalismo e Universo Feminino: polêmicas e estereótipos; in:


Revista Lusófona de Ciência das religiões. nº 11, 2007.

GARNEL, Maria Rita Lino. A Polêmica Sobre o Celibato Eclesiástico (1820-1911). Lisboa:
Roma Editora, 2003.

LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português.


Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.

MARQUES, João. A controvérsia Doutrinária entre o Catolicismo e o Protestantismo em


Portugal no Ultimo Quartel do Século XIX. Lisboa: Nova Atlântida, 1998.

QUEIROZ, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron, 1889.

50
GARNEL, op. cit., p. 115-116.
51
Idem, p. 115.

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RAMOS, Rui. A formação da Intelligentsia Portuguesa (1860-1880). Revista Análise Social,


Vol. XXVI Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1992.

REIS, Carlos. As Conferências do Casino. Lisboa: Publicações Alfa, 1990.

RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é Positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1994.

ROCHA, Clara. Gerações, gerações, gerações... In: Revista Nova Renascença, Vol. VI nº 21,
Porto, 1986.

SANTOS, Maria Lima dos. Sobre os Intelectuais Portugueses do Século XIX: do Vintismo a
Regeneração. In: Revista Análise Social, Vol. XV 1979.

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HERANÇAS DE HISTÓRIAS?
A POSSE DE LIVROS NOS INVENTÁRIOS POST MORTEM DE CASTRO, ENTRE 1800
E 1870.

Luciana Cristina Pinto (Mestranda em História UFPR)


Orientador: Dr. Antônio Cesar de Almeida Santos (UFPR)

Palavras-chave: Paraná, manuscritos, posse de livros.

VILA DE CASTRO: HISTÓRIA E CULTURA

Nossas fontes, os inventários post mortem e testamentos de alguns habitantes da


cidade de Castro, foram escritos no contexto do Oitocentos, inseridos nesta região específica,
há muito estudada por escritores, regionais ou não. Um destes escritores, hoje referência
obrigatória em pesquisas sobre a história de Castro, é Oney Barbosa Borba, que argumenta
sobre a nomenclatura e divisão política no início do século XIX, quando essa região não se
chamava Paraná: “Antes da criação da Província do Paraná, todos os habitantes do primeiro,
segundo e terceiro planaltos da 5ª Comarca da Capitania e depois Província de São Paulo,
eram conhecidos como curitibanos, porque as vilas, com exceção das do litoral, estavam
juridicamente subordinadas à vila de Curitiba”.1
Como trabalhamos com uma pequena parte da história de Castro, onde perseguimos os
livros inventariados, e os homens que os tinham, o trabalho historiográfico encontra alguns
limites. Operamos com recortes, com dados específicos que nos “revelam” apenas parciais
considerações, por isso encontramos lacunas na historiografia. Futuramente, as lacunas serão
problematizadas, a produção na história felizmente não cessa e a historiografia, assim, torna-
se rica pela multiplicidade de olhares que se voltam, em focos diferentes, para o passado.

1
BORBA, Oney Barbosa. Os Iapoensens. 2ª Edição. Curitiba: Editora Lítero-técnica, 1986. p. 55. Com grifo no
original.

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Nossa pesquisa concentra-se em um determinado período da história do Brasil, em que


a historiografia registrou muitos acontecimentos. Obviamente seria impossível relatar todos
esses acontecimentos, mas é de suma importância para a compreensão do leitor discutirmos,
de maneira breve, o contexto do final do século XVIII e início do XIX, para situarmos no
tempo e no espaço nosso objeto de pesquisa. Pensamos aspectos do Brasil do período
analisado, do estado do Paraná e, por fim, da região específica de Castro.

Alguns fatos significativos balisaram as transformações do mundo ocidental, a partir


de meados do século XVIII. Em 1776, as colônias inglesas da América do Norte
proclamaram sua independência. A partir de 1789, a Revolução Francesa pôs fim ao
Antigo Regime na França, o que repercutiu em toda a Europa, inclusive pela força
das armas. (...) O mundo colonial é afetado também por outro fator importante: a
tendência a limitar ou a extinguir a escravidão, manifestada pelas maiores potências
da época, ou seja, a Inglaterra e a França. É comum ligar-se essa tendência ao
interesse britânico em ampliar mercados consumidores, a partir da vantagem obtida
sobre os concorrentes com a Revolução Industrial. 2

Com relação ao estado do Paraná, é preciso inseri-lo num debate mais amplo com a
história do Brasil, porque sabemos a priori que não existe uma história do Paraná “desligada”
de uma história do Brasil. O contexto vivido nos Campos Gerais de fins do século XVIII e
início do XIX é reflexo do que estava acontecendo no mundo:

Todo e qualquer viajante, comerciante ou aventureiro que se dirigisse por terra de


São Paulo para o extremo sul do país, nos finais do século XVIII e nos inícios do
século XIX, deveria atravessar as terras da Comarca de Castro, alcançando o bairro
de Ponta Grossa, que se constituía, à época, num local obrigatório de passagem,
3
ligada que estava ao Caminho do Viamão.

Segundo as autoras, “desde o século XVIII, 1730, o Caminho do Viamão cumpre a


finalidade de ligar São Paulo ao extremo Sul”.4 Wachowicz complementa os argumentos das
autoras acima, e já apresenta alguns elementos descritivos sobre as formações das vilas da
região.
No início do século XIX, esta sociedade campeira que nasceu paulista, transformou-
se em paranaense e recebeu forte influência riograndense. Nesta época, já estava
integrada social, política e economicamente aos núcleos que formariam o Paraná.
Apesar dessa integração, as populações não latifundiárias dos Campos Gerais eram
relativamente pobres. Em 1820, as casas de Castro eram de pau a pique. Na Lapa,

2
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 108.
3
PINTO, Elizabete Alves; GONÇALVES, Maria Aparecida Cezar. Ponta Grossa – um século de vida (1823-
1923). Ponta Grossa: Kugler Artes Gráficas Ltda., 1983. p. 17.
4
Idem. p. 17.

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as primeiras casas de alvenaria surgiram em 1824. Mas em 1844, algumas casas de


Palmeira, Ponta Grossa e Castro já eram de pedra e cal.5

Sobre a formação do estado do Paraná, que começa no século XVII, temos também o
estudo de Jayme Cardoso e Cecília Westphalen, na obra “Atlas histórico do Paraná”, com
informações sobre os mapas locais, que facilitam a compreensão do processo da ocupação
geográfica e desenvolvimento primário até o século XX. Os autores afirmam que:

(...) a História do Paraná compreende a formação de três comunidades regionais: a


do Paraná tradicional, que se esboçou no século XVII, com a procura do ouro, e
estruturou-se no século XVIII sobre o latifúndio campeiro dos Campos Gerais, com
base na criação e no comércio do gado e, mais tarde, no século XIX, nas atividades
extrativas e no comércio exportador da erva mate e da madeira; e as do Paraná
moderno, já no século XX, sendo a do Norte, com a agricultura tropical do café e
que, pelas origens e interesses históricos, ficou, a princípio, mais diretamente ligada
a São Paulo, e a do Sudoeste e Oeste, dos criadores de suínos e plantadores de
cereais que, pelas origens e interesses históricos, ficou a princípio mais intimamente
ligada ao Rio Grande do Sul. 6

FIGURA 1. FONTE CARDOSO, Jayme A. & WESTPHALEN, Cecília M. Atlas histórico do Paraná. 2ª Ed.
Curitiba: Livraria do Chain Editora, 1986. p. 43.

5
WACHOWICZ, Ruy Christowam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1995. p. 79.
6
CARDOSO, Jayme Antônio & WESTPHALEN, Cecília Maria. Atlas histórico do Paraná. 2ª Edição.
Curitiba: Editora Livraria do Chain, 1986. p. s/p.

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Entretanto, o palco no qual se desenrola o cotidiano e a vida das pessoas que vamos
estudar nesta pesquisa historiográfica é a antiga Vila e hoje município paranaense conhecido
como Castro. A região dos Campos Gerais, onde está localizado, é reconhecida pela passagem
dos tropeiros, e a cidade, por suas fachadas arquitetônicas em estilo antigo, hoje respeitadas
através de incentivos à preservação do patrimônio e da instalação de fiação subterrâneos.
Castro, portanto, ainda mantém detalhes de uma paisagem urbana que preserva muito das
referências de um cenário comum aos indivíduos do século XIX.
Assim, esta sociedade de Castro insere-se no período, chamado pelos autores acima
(Cardoso e Westphalen), de Paraná tradicional. É importante salientar que desde o último
quarto do século XVIII até as décadas finais do século XIX, toda a região dos Campos Gerais
esteve fortemente marcada pelo tropeirismo, atividade econômica surgida no início do
Setecentos. Segundo Wachowicz:

Foi o tropeiro um personagem típico de nossa sociedade de antigamente. O dono das


tropas não era um homem pobre. A formação de uma tropa requeria quantias
razoáveis, sendo a maioria de seus proprietários homens abastados e de destaque.
Foram tropeiros aqui no Paraná homens como o Barão do Tibagi (José Caetano de
Oliveira), o Barão dos Campos Gerais (Cel. David dos Santos Pacheco) [...] O
tropeiro desempenhava por conta própria o trabalho do correio, numa época em que
o mesmo era praticamente inexistente no interior; era o homem que trazia as notícias
dos últimos acontecimentos aos vilarejos por onde passava; era também o portador
7
de bilhetes, recados e o intermediário de muitos negócios.

Com relação ao contexto do século XVIII, momento da criação da vila de Castro,


encontramos referência nas pesquisas de escritores que reconstituem o início da história
local.8 Segundo Borba, foi numa solenidade realizada em vinte de janeiro de 1789 que foi
criada a Vila Nova de Castro, cujo nome homenageia o ministro português Martinho de Mello
e Castro.9

Ligadas ao tropeirismo, ainda no século XVIII pequenas povoações começaram a


surgir ao longo do Caminho das Tropas. Nos locais em que as tropas fixavam pouso,
fazendo seus pequenos ranchos para descanso, trato e engorda do rebanho, ou
esperando passar as chuvas e baixar o nível dos rios, logo surgia um ou outro
morador, fundando casa de comércio, interessado em atender as necessidades dos
tropeiros. Dessa forma, pequenas freguesias e vilas, como o Príncipe (Lapa),

7
WACHOWICZ, Ruy Christowam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1995. p. 104.
8
Ver os autores que escreveram sobre a formação da Vila de Castro: Oney Barbosa Borba e Elizabete Alves
Pinto nas obras “Os Iapoenses” e “Vila de Castro: população e domicílio (1801-1830)” respectivamente.
9
BORBA, Oney Barbosa. Os Iapoensens. Op. Cit. p. 21, 22.

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Palmeira, Ponta Grossa, Piraí do Sul, Castro e Jaguariaíva, tiveram seu


desenvolvimento inicial dependente das fazendas e do movimento das tropas. 10

Outro trabalho que também faz referência ao contexto inicial do século XVIII, é de
Bruna Marina Portela, que traz:

Com a abertura do caminho do Viamão muitas povoações foram surgindo e


prosperando ao longo da estrada, como foi o caso de Castro, que em 1730, ano de
abertura de tal caminho, tinha a denominação de Pouso do Iapó. Porém, a ocupação
desse território remonta ao início do século XVIII quando sesmarias foram
distribuídas na região. As terras foram adquiridas principalmente por proprietários
vindos de Paranaguá, Santos e São Paulo, sendo que uma boa parte deles não residia
na sesmaria recebida, ou seja, eram proprietários absenteístas, que contavam apenas
com um fazendeiro e escravos para fazer prosperar a terra. 11

A autora analisa em sua pesquisa a formação de uma comunidade escrava na “Castro,


São Paulo”, entre 1800 e 1830, trazendo importantes informações da região, uma delas sobre
os cativos que viveram na vila, utilizando, dentre outros documentos, os inventários post
mortem. Segundo a autora: “A região de Castro ficou conhecida na historiografia por seu
envolvimento na criação de animais, justamente por estar na chamada rota dos tropeiros e
também por estar situada em um local geograficamente propício a este tipo de atividade”. 12
Mas esse trabalho, como já havíamos citado, tem como recorte temporal as primeiras décadas do século XIX. Sobre meados do

referido século, Magnus Pereira argumenta sobre a posse de escravos:

[...] Apenas durante o século XIX, haveria uma diferenciação significativa entre
Paraná e São Paulo no que se refere aos escravos. Enquanto em território paulista a
utilização do trabalho escravo se acentuaria devido á expansão cafeeira, na região
paranaense ocorreria o inverso. O declínio econômico dos Campos Gerais e os altos
preços alcançados pelos escravos na lavoura cafeeira, provocados pela proibição do
tráfico, estimulariam a transferência de uma grande parcela de escravos para São
Paulo, alterando o panorama demográfico paranaense. 13

Assim, segundo o autor, até meados do século XIX era comum a presença de escravos
na região dos Campos Gerais, “onde predominavam as fazendas de criar ou invernar, a

10
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos Gerais.
Dicionário Histórico e Geográfico dos Campos Gerais. Disponível em: http://www.uepg.br/dicion/verbetes/a-
m/campos_gerais_ocupacao.htm. Acesso em: 18-05-2012.
11
PORTELA, Bruna Marina. Caminhos do cativeiro: a configuração de uma comunidade escrava (Castro, São
Paulo, 1800-1830). Curitiba: Dissertação de Mestrado – UFPR, 2007. Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/11749/Brunamarinaportela.pdf?sequence=1 Acesso em:
10-12-2011. p. 9.
12
PORTELA, Bruna Marina. Op. Cit. p. 9.
13
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Dos escravos e outros não-morigerados. In: Semeando iras rumo ao
progresso: (ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829 – 1889). Curitiba: Ed. UFPR,
1996. p. 57, 58.

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composição da população confirma que, até os meados do século XIX, a sociedade ainda
estava estruturada em torno de uma organização escravista de trabalho”.14 E, neste contexto,
ainda com relação a população de Castro, esta possuiria cerca de 5899 habitantes, destes
seriam 3618 brancos, 1895 pardos, 986 pretos e 796 escravos. 15
Até 1853, quando da emancipação política da província do Paraná, existiam as
seguintes localidades: Paranaguá, a cidade mais antiga, Guaratuba, Antonina e Morretes
ficavam no litoral; Curitiba e Lapa estavam no primeiro planalto paranaense; Ponta Grossa e
Castro eram as vilas situadas nos Campos Gerais, ou segundo planalto; e, mais a oeste, acima
da Serra da Esperança, ficava a recém criada vila de Guarapuava.
A população também era rarefeita; os pouco mais de 62 mil habitantes distribuíam-se
irregularmente pelo território conforme informação em Novacki16. A maior parte dessa
população encontrava-se no litoral e primeiro planalto, regiões com maior taxa de moradores
urbanos e que concentravam atividades fabris (engenhos de mate) e comerciais. No segundo
planalto, a principal atividade econômica ainda estava ligada ao campo, à criação e à
invernagem de animais para os mercados de São Paulo.
Pode-se, assim, considerar que essa distribuição e estrutura populacional estava
organizada conforme as atividades econômicas da região de Castro, localidade que iremos
enfocar neste trabalho. Se levarmos em conta o olhar de Debret, perceberemos que o ambiente
urbano de Castro era bastante rarefeito (mas também não muito diferente das demais cidades
da então Província do Paraná).

14
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op Cit. p. 60.
15
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op Cit. p. 59.
16
NOVACKI, Luís Henrique. “Como se liberto nascesse de ventre livre”: escravos libertos na Freguesia da
Palmeira/PR (1831-1848). Revista Vernáculo, n° 3, 2000. Documento em formato pdf. Acesso em: 20-05-2012.
p. 71.

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FIGURA 2. FONTE: Disponível em:


http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/modules/mylinks/viewcat.php?cid=4&letter=J. Acesso em: 19-05-
2012.

Entretanto, conforme Magnus Pereira, á medida em que adentramos o século XIX,


essa sociedade campeira vai assumir ares bacharelescos, e os proprietários de escravos
demonstram interesse com sua formação intelectual; o conceito abordado por este autor é o de
“burguesias letradas”:

É preciso ter em conta que a burguesia fundiária dos Campos Gerais e a burguesia
industrial e comerciante do litoral e de Curitiba souberam transformar-se ao longo
do século [XIX]. Transformaram-se, principalmente a primeira, em burguesias
letradas. Com o correr do século, cada vez mais elas eram constituídas e
politicamente representadas por bacharéis formados em São Paulo, Pernambuco ou
até na Europa. Foram justamente os filhos instruídos de fazendeiros que
monopolizaram os empregos públicos e os cargos de representação política da
província. Por conseguinte, mesmo que a vivência de fazendeiro dos Campos Gerais
ou de dono de engenho de mate seja crucial em sua percepção das coisas, não é
possível desprezar a formação intelectual de perfil cosmopolita dessas pessoas.17

De acordo com o conceito de “burguesias letradas” trazido pelo autor, buscamos


estabelecer as relações entre os habitantes de Castro com o livro, este último entendido como
símbolo de saber e instrução. Encontramos um breve comentário no estudo de Oney Barbosa
Borba sobre a primeira escola da região: “A primeira escola em Castro foi regida pelo Alferes
Antônio Luiz Ferreira, sendo as despesas da mesma custeadas pelas principais pessoas do
lugar”.18

17
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op. Cit. p. 61.
18
BORBA, Oney Barbosa. Op. Cit. p. 45.

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Carmencita Ditzel e Robert Lamb situam nas décadas de 1830 e 1840 o início da
alfabetização em Castro, o que nos leva a concluir que a partir desse período já havia
moradores jovens, nascidos ou não na região, leitores em potencial.

Podemos supor que nos pequenos pontos urbanos certos costumes estivessem já
descaracterizados, desde que se considere a instrução das letras como indicativo de
uma possível renovação cultural: ainda que em 1820 a instrução pública fosse
"absolutamente inexistente" em Castro, a partir de 1830 a cidade passou a contar
com um professor para os meninos, sendo em 1846 ali estabelecida uma escola para
meninas19.

Enfim, ter referência sobre o nível de instrução dos castrenses nos ajudará na
compreensão dessa sociedade, e sua aproximação com a história da palavra impressa.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BORBA, Oney Barbosa. Os Iapoensens. 2ª Edição. Curitiba: Editora Lítero-técnica, 1986.

CARDOSO, Jayme Antônio & WESTPHALEN, Cecília Maria. Atlas histórico do Paraná.
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DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos
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FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.

NOVACKI, Luís Henrique. “Como se liberto nascesse de ventre livre”: escravos libertos na
Freguesia da Palmeira/PR (1831-1848). Revista Vernáculo, n° 3, 2000. Documento em
formato pdf. Acesso em: 20-05-2012.

PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Dos escravos e outros não-morigerados. In: Semeando
iras rumo ao progresso: (ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829
– 1889). Curitiba: Ed. UFPR, 1996.
19
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos Gerais.
Dicionário Histórico e Geográfico dos Campos Gerais. Disponível em: http://www.uepg.br/dicion/verbetes/a-
m/campos_gerais_ocupacao.htm. Acesso em: 18-05-2012.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 454

PINTO, Elizabete Alves; GONÇALVES, Maria Aparecida Cezar. Ponta Grossa – um século
de vida (1823-1923). Ponta Grossa: Kugler Artes Gráficas Ltda., 1983.

PORTELA, Bruna Marina. Caminhos do cativeiro: a configuração de uma comunidade


escrava (Castro, São Paulo, 1800-1830). Curitiba: Dissertação de Mestrado – UFPR, 2007.
Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/11749/Brunamarinaportela.pdf?seque
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WACHOWICZ, Ruy Christowam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina,


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ST 07 - HISTÓRIA E LINGUAGENS
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 456

A NOVA HISTÓRIA CULTURAL E A UTILIZAÇÃO DA LITERATURA PARA A


PESQUISA HISTORIOGRÁFICA

Bethânia Cristina Gaffo


(Mestrado em História Social- UEL)
Orientador: Prof. Dr. Rogério Ivano

Palavras-chave: Literatura, história, fonte.

Quando iniciamos uma investigação histórica, partimos de um tema e


buscamos nele um recorte temporal. Imediatamente passamos a refletir sobre as fontes que
utilizaremos para desenvolver o assunto e responder as questões pertinentes a ele. Refletir
sobre quais fontes devemos usar para a pesquisa historiográfica nunca foi tão vasto como
hoje.
Atualmente qualquer espécie de vestígio deixado pelo ser humano nos revela
como viveram o seu tempo. A poesia pode nos mostrar as transformações de linguagem e
escrita ocorridas durante o renascimento, bem como as obras de arte deixadas por seus
representantes. Os códices onde encontramos representações em imagem deixadas pelos
Astecas nos retratam o dia a dia desta civilização. As canções entoadas durante a ditadura de
64 no Brasil nos permitem ingressar na mentalidade dos oprimidos pelo governo militar.
Enfim, hoje podemos contar com um arsenal múltiplo e enriquecedor de fontes, mas nem
sempre foi assim. Houve uma época em que falar da literatura como fonte histórica, por
exemplo, suscitava polêmica.
Na segunda metade do século XIX, a história passou a ser uma disciplina
acadêmica e fonte significava documento. Estes conduziam o pesquisador à verdade histórica
e como representava o real, a história passou a buscar um status de ciência. A Escola
Metódica francesa se encarregou de definir quais parâmetros utilizar para a pesquisa
historiográfica. As fontes teriam como principal objetivo “assegurar a autenticidade
documental para reconstituir objetivamente o passado”.1 Neste contexto, apenas documentos
oficiais poderiam ser utilizados para atestar a veracidade histórica. Textos literários e demais
fontes artísticas não poderiam ser considerados documentos capazes de levar o historiador a
construir uma pesquisa digna de atestar a verdade.
1
FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla; LUCA, Tânia (orgs.). O historiador e suas
fontes. São Paulo: contexto, 2009. p. 63.

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No século XX mudanças significativas no repertório de fontes possibilitariam a


ampliação do que poderia ser considerado objeto para estudo da história. Conhecido como
Nova História ou História Cultural, o movimento começou na França com a revista Annales
d’Histoire Économique et Sociale, fundada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch.
“Contrapondo-se à historiografia político-factual da Escola Metódica, eles colocaram em
pauta uma História problema”. 2 Com o passar do tempo, a Annales passou a ser chamada de
escola quando afiliou-se à Sexta Seção da Ecole Pratique des Hautes Etudes. Fernad Braudel
foi quem presidiu a Sexta Seção assim como a revista nas décadas de 1950 e 1960.Com este
movimento houve uma “ampliação no repertório das fontes históricas e a metamorfose do
próprio conceito de fonte”. 3
Os historiadores deste período passaram a atentar para a sociedade atingindo
seus aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Passaram também a se dedicar a
investigar o homem em sua complexidade, não apenas o que ele deixou registrado em
documentos oficiais, mas também o que deixou de relevante para a análise de seus aspectos
mentais. O foco de abordagem passou a ser o ser humano que vivia à margem, não só as
grandes personalidades históricas mereciam destaque, mas sim aquele que vivia a história de
quem foi vencido e não apenas os que venceram. “No final da década de 1950 e nos primeiros
anos da de 1960, um grupo de historiadores marxistas começou a publicar livros e artigos
sobre “a história vinda de baixo” 4
Assim, estes historiadores deixaram de privilegiar a história contada a partir
dos grandes líderes e passaram a investigar o homem a partir de seu caráter social, outros
grupos passaram a ser objeto de inquirição, como, mulheres, criados, operários entre outros.
A ampliação das fontes levou a pesquisa histórica a assumir uma postura
interdisciplinar, pois para atingir a diversidade de fontes almejada, deveriam se enveredar
para outros ramos das ciências humanas, como a geografia, sociologia, psicologia, entre
outras.
Esta evolução pela qual passou a escrita da história provocou tensões entre os
historiadores. A busca por novas abordagens levou estes historiadores a procurar por outras
disciplinas que pudessem os auxiliar na investigação de seus objetos. Esta busca por outras

2
Ibid, p. 63.
3
Ibid, p. 63.
4
HUNT, Lynn. História, cultura e texto. In: A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 2.

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formas narrativas provocaram uma expansão que ia além das limitações impostas pela história
tradicional causando conflitos, pois ameaçava aqueles que procuravam defender a disciplina
dentro de seus padrões tradicionais. Sobre este conflito de interesses Lloyd Kramer afirma nos
anos 90:
Ainda que, com mais frequência, essa batalha seja travada entre as
tropas anônimas da academias (editores, pessoas que decidem quais
serão os artigos publicados nas revistas especializadas, grupos de
pesquisa departamental, seminários de pós-graduação) nos últimos
anos as forças literárias arregimentaram-se claramente ao redor da
proeminente liderança de Hayden White e Dominick Lacapra. 5

Lloyd Kramer faz uma abordagem sobre a crítica literária dos anos 90,
enfatizando semelhanças entre Hyden White e Dominick Lacapra. Ambos possuíam um
desejo comum: “examinar e ampliar as definições tradicionais de história e metodologia
6
histórica” Neste intento tanto White quanto Lacapra passam a questionar as fronteiras que
separam a história da literatura e demais disciplinas. Passam a contestar o que percebem como
tendências “dominantes da historiografia e a focalizarem o papel decisivo da linguagem em
7
nossas descrições e concepções da realidade histórica.” Para os dois autores uma atenção
maior à crítica literária tornaria os historiadores mais inovadores.
Na década de 1970, novas gerações de historiadores franceses ampliaram o
arsenal de fontes e abordagens da história. Neste período Jacques Le Goff e Pierre Nora
lançam a obra Nova História: problemas, objetos e abordagens, onde:

Ao proporem a dilatação do território temático do historiador – que


passou a abranger objetos tais como o inconsciente, o cotidiano, a
língua, a literatura, o mito, a infância, a juventude, a festa, os meios
de comunicação, entre outros- os novos historiadores também
estimularam a pesquisa de novos documentos – escritos, sonoros,
visuais. 8

É neste meio de revolução de escrita da história que a literatura passa a ser


vista e utilizada como fonte para a pesquisa historiográfica. É na mudança do foco de
abordagem que uma contribui de maneira significativa com a outra. Ambas compartilham do

5
KRAMER, Lloyd. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio de Hayden White e Dominick Lacapra.
In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
1992. p. 132.
6
Ibid., p. 134.
7
Ibid., p. 134.
8
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 64.

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mesmo interesse, ou seja, o interesse em narrar acontecimentos humanos. “O homem alçado à


condição de objeto de conhecimento.” 9

Dessa forma, num extremo, o literário é tomado como substrato de


inquirição pelo historiador, tendo em vista a reconstituição do que é
identificado pelo nome de História, como algo que o antecede; no
outro o literário é tomado como substrato para o escrutínio de
percepções, representações, figurações, por meio das quais se busca
os movimentos de instituição de imaginários e da própria
temporalidade enquanto tal. 10

No Brasil dos oitocentos, diversos pesquisadores passaram a buscar através da


literatura uma escrita que representasse o Brasil enquanto tema de uma escrita nacional.
Passaram a escrever com o objetivo de valorizar o que consideravam ser características
predominantemente brasileiras a fim de que pudessem escrever uma história que fosse
nacional.
Esta necessidade de uma escrita nacional se tornou uma preocupação após a
proclamação da independência. A elite intelectual via a necessidade de nos libertar de
Portugal não só politicamente, mas também intelectualmente. Para isto precisávamos
construir uma história própria, uma narrativa que fizesse com que o povo se sentisse brasileiro
e não português, nordestino ou rio-grandense. Havia a necessidade de se buscar uma escrita
que despertasse o sentimento de nacionalismo no povo brasileiro.
Assim estes escritores encontraram no Romantismo europeu as características
necessárias para a escrita nacional. Passaram a valorizar a fauna e a flora brasileira, assim
como também passaram a buscar um representante que pudesse ser visto como o fundador do
Brasil. O romance indianista nos mostra que estes escritores viram o índio o representante
ideal para construírem um mito de fundação nacional.
O romantismo buscava defender o desenvolvimento de uma língua própria no
Brasil, diferente da língua herdada de Portugal. Esta nova língua teria se desenvolvido a partir
da miscigenação das raças. A mistura de raças não propiciou apenas uma nova forma de falar
e escrever, mas também deu origem a novas tradições, novas formas culturais.

9
CAMILOTTI, Virgínia; NAXARA, Márcia Regina C. História e Literatura: fontes literárias na produção
historiográfica recente no Brasil. In: História: Questões e Debates – Revista do programa de pós graduação em
história UFPR, N. 50. Curitiba, jan./jun. 2009. p. 20.
10
Ibid, p. 28.

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Entre os primeiros escritores que buscaram por retratar o Brasil podemos


destacar Gonçalves de Magalhães com sua obra “A Confederação dos Tamoios”, José de
Alencar com seu romance “O Guarani” e Antônio Gonçalves Dias com seu poema “I-Juca
Pirama”. A maior característica destes primeiros românticos brasileiros é que se uniram com o
mesmo desejo: criar uma literatura própria, que retratasse o Brasil como nação independente.
Assim, vemos a primeira aproximação entre literatura e história no Brasil, não
nos moldes da Escola dos Annales, pois esta foi posterior, mas podemos ver que em nossa
história a literatura foi utilizada para corresponder ao desejo de uma escrita nacional. Desta
forma, a literatura estava imbuída de características naturais do Brasil a fim de que a história
de fundação do país estivesse presente nestas obras. Por isto elas expressavam uma história
nacional ao retratar o índio e a natureza brasileiros.
A utilização de fontes literárias para a história ocorre através de múltiplas
formas, pois os significados operados também são múltiplos e podem variar dependendo dos
gêneros, sejam prosas, contos, romances, ou outros. Cada qual com suas características
11
específicas podem nos fornecer diversificado aparato para a pesquisa histórica. Cabe ao
historiador recolher, organizar e selecionar qual a espécie de narrativa mais adequada para a
figuração e dotação de sentido do passado que deseja retratar. Estas fontes podem nos dizer
muito sobre os personagens e a época em que viviam, nos proporcionam grandes
possibilidades de compreensão e de interação com tempos passados.
Neste sentido a obra literária é explorada pelo historiador que de seu tempo
escolhe os caminhos a serem percorridos “buscando possibilidades nessa incessante relação
de construção do passado.” 12
Sobre a relação que se estabelece entre a história e a literatura, Nicolau
Sevcenko afirma: “nem reflexo, nem determinação, nem autonomia: estabelece-se entre os
13
dois campos uma relação tensa de intercâmbio, mas também de confrontação.” O
intercâmbio seria uma troca de informações onde ambas dispõem de instrumentos
enriquecedores uma à outra. Confrontação no sentido de que uma não só auxilia, mas coloca a
outra em averiguação e debates.

11
Ibid, p. 40.
12
Ibid, p. 44.
13
SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.299.

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Na visão de Sevcenko, “a criação literária revela todo o seu potencial como


14
documento” no sentido de que se apresenta de forma complexa, construída a partir de
inúmeras significações e incorporando a história em todas as suas questões e formas. A
literatura se apresenta como expressão da sociedade, exibindo-a em seus mais diversos
códigos de ação e de linguagem. “Instituição viva e flexível, já que é também um processo,
ela possui na história o seu elo comum com a sociedade. O ponto de interseção mais sensível
15
entre a história, a literatura e a sociedade está concentrado na figura do escritor.” É através
do escritor que a literatura estabelece seu diálogo com a história, pois é a partir de sua obra
que as duas narrativas se comunicam e se influenciam.
Para Antonio Celso Ferreira, o romance está diretamente inserido na história
assim como, também está repleto de história “não só porque integra os modos de produção,
circulação e consumo da cultura em épocas determinadas, mas também por ter o tempo como
16
elemento básico de sua estrutura narrativa.” Afinal o próprio romance nos conta uma
história, nos apresenta a vivência de determinada sociedade imbuída de particularidades,
vivências, costumes e inserida em seu tempo. A história como desenrolar de acontecimentos
coletivos é utilizada com freqüência como tema de narrativas literárias.
Compreender a multiplicidade de tempos históricos não é possível somente
através dos documentos oficiais, mas também através de outras produções artísticas e
intelectuais realizadas na época que se almeja investigar. O passado, além de um emaranhado
de fatos, consiste também em uma série de produções que o homem, objeto de investigação
historiográfica, realiza impulsionado por seu pensamento e seu comportamento. Como o
homem nunca pode ser considerado sozinho, pois está inserido em sociedade, ao produzir ele
não somente expressa seu sentimento, pensamento e comportamento, mas do grupo social ao
qual pertence.
Para March Bloch a história só se configura como tal a partir do momento que
passamos a compreender o homem, já que ele é quem produz os vestígios que a história
utiliza para suas pesquisas. Sendo assim, a partir do momento que se estabelece uma narrativa
sobre o homem, sua forma de pensar e de viver o seu tempo, esta se configura como uma
importante fonte histórica. Neste sentido o romance, ao retratar um cotidiano de determinada

14
Ibid, p. 299.
15
Ibid, p. 299.
16
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 75.

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sociedade inserida em seu tempo, nos mostra a história preenchida por elementos
significantes para a sociedade da qual se refere.

Ora, a obra de uma sociedade que remodela, segundo suas


necessidades, o solo em que vive é, todos intuem isso, um fato
eminentemente “histórico”. Assim como as vicissitudes de um
poderoso núcleo de trocas. Através de um exemplo bem característico
da topografia do saber, eis portanto, de um lado, um ponto de
sobreposição onde a aliança de duas disciplinas revela-se
indispensável a qualquer tentativa de explicação; de outro, um ponto
de passagem onde, depois de constatar um fenômeno e pôr seus
efeitos na balança, este é, de certa maneira, definitivamente cedido
por uma disciplina à outra. O que se produziu que parecera apelar
imperiosamente à intervenção da história? Foi que o humano
apareceu. 17

Em sua vivência em sociedade o homem está em constante criação. Dia a dia


ele produz artefatos que ao longo do tempo nos revela seu modo e vida ou de percepção de
seu tempo. Na letra de uma canção entoada, no retrato feito em família, no romance que
costumava ler, nos desenhos ou pinturas que produzia, nas construções que erguia, nas
receitas que fazia especialmente para as reuniões familiares ou o pão de cada dia, nas roupas
que costurava ou que simplesmente vestia, nas cartas que escrevia à pessoa amada, nos contos
que contava ou nos livros que escrevia, enfim produtos sociais ou formas de arte que
descrevem os modos de vida, e que servem como objeto de investigação do historiador.
Para Antonio Candido, a arte é “um sistema simbólico de comunicação inter-
18
humana, ela pressupõe um jogo permanente de relações entre os três” o público, que dá
sentido à obra, a obra em si e o escritor. Sem o público o autor não se realiza, pois é este
quem dá sentido à obra. “Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo,
passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o
público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra.” 19
Não devemos nos esquecer de que por mais próximas à história as narrativas
literárias estão, elas constituem uma ficção, um universo criado pelo autor, por isto a partir do
momento em que passa a ser utilizada pelo historiador, a fonte literária deve ser confrontada
com outras fontes, no sentido de contextualizar o período que se deseja investigar. Assim o

17
BLOCH, March. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 54.
18
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1973. p. 38.
19
Ibid, p. 38.

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historiador poderá aproximar a narrativa ficcional dos “múltiplos significados da realidade


histórica.” 20
É necessário como em toda pesquisa historiográfica, nos indagar sobre qual
problema nos incita ao estudo de determinada época e por que escolhemos por fontes
literárias para a pesquisa, para nos auxiliar na busca pelas respostas aos problemas que
colocamos. É preciso antes de tudo, confrontar a própria fonte, o romance com a época em
que foi produzido, quais as vertentes ele expressa, quais os fatos que estão por trás da obra em
si. Em segundo lugar, precisamos nos indagar sobre o autor, em que sociedade ele vivia, em
que contexto estava inserido quando escreveu a obra e quais características desse contexto
estão presentes em sua escrita. Precisamos averiguar por quais escolas literárias ou autores o
autor foi influenciado, tipos específicos de narrativas, utilização de determinados signos,
enfim buscarmos compreender a fonte inserida em seu contexto de criação.
Porém não só o universo do autor, ou da obra devem ser questionados e
investigados, mas como aponta Antonio Celso Ferreira, “a formulação do problema não nasce
no vazio, ao contrário, emerge no horizonte cultural e intelectual que vive o próprio
21
pesquisador, o que também deve ser objeto de reflexão.” Por isto, o próprio pesquisador
deve se questionar quanto à escolha da fonte literária como objeto de estudo.
Além da investigação da obra e o contexto em que foi produzida, é necessário
averiguar a repercussão da própria. Assim, devemos nos questionar qual o público leitor deste
tipo de narrativa, quem consumia a obra, a qual público ela se destinava e quais as impressões
que estes leitores, por ventura realizavam em relação à obra. As respostas a estas perguntas
podem auxiliar no entendimento da obra como um conjunto de forças que inicia com o
contexto vivido pelo autor, passa pelo contexto da obra e termina com a vivência do leitor.
Consultar outras fontes produzidas na época também podem auxiliar o
pesquisador a compreender melhor a obra que se deseja utilizar. Assim ele poderá perceber
quais as tendências da época, o que mais chamava a atenção do público leitor, o que era mais
comum e o que era considerado leitura para os intelectuais, ou seja, leituras que não
despertavam o interesse da população de maneira geral, mas sim dos mais instruídos. “Toda
fonte pode ser legítima na medida em que contribua para o entendimento do objeto específico

20
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 77.
21
Ibid, p. 81.

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de estudo e se tenha em conta sua natureza: política, econômica, científica, religiosa, artística,
técnica e outra.” 22
Por mais que buscamos por teorias que nos levem a utilizar de maneira
coerente a fonte literária, é apenas do contato com a obra que o próprio pesquisador
desenvolve sua própria metodologia de trabalho buscando as respostas às indagações que
realiza no início de sua empreitada científica.

BIBLIOGRAFIA

BLOCH, March. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da História ou O Ofício do


Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

CAMILOTTI, Virgínia; NAXARA, Márcia Regina C. História e Literatura: fontes literárias


na produção historiográfica recente no Brasil. In: História: Questões e Debates – Revista do
programa de pós graduação em história UFPR, N. 50. Curitiba, jan./jun. 2009. Disponível
em: <www.poshistoria.ufpr.br/revista.htm> Acesso em: outubro, 2010.

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1973.

FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla; LUCA, Tânia (orgs.). O
historiador e suas fontes. São Paulo: contexto, 2009.

HUNT, Lynn. História, cultura e texto. In: _________ A Nova História Cultural. Tradução:
Jefferson Luiz Camargo.São Paulo: Martins Fontes, 1992.

KRAMER, Lloyd. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio de Hayden White e


Dominick Lacapra. In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na


Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

22
Ibid, p. 81.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


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DOR E ALEGRIA NA MÚSICA DE RAUL SEIXAS

Jeferson Santana Brandão


(Mestrado em História Social – UEL)
Orientador: Gabriel Giannattasio

Palavras Chave: Raul Seixas, Alegria, Dor

Como Raul Seixas construiu a si próprio enquanto criador de uma Ópera Trágica? Sua
música é a sua impressão digital na terra. Um monumento a um espírito tornado livre através
da afirmação de sua alegria a partir da dor que emana dos abismos da existência. Interessa
aqui vislumbrar a obra de arte feita por nosso herói a partir de sua própria vida.

A escultura de si faz sentido. O que querem esses artistas é inscrever o querer dentro
do organismo, submeter o corpo à linha de uma vontade experimental. [...].

A encenação das partes malditas visa ao surgimento de uma vontade de prazer. O


noturno com o qual esses artistas brincam chamam as auroras que ainda não
brilharam. A qualidade dessas luzes que eles inventam informa sobre aquela outra
dos crepúsculos futuros. (ONFRAY, 1995, pg. 100)

Essas novas luzes estão no movimento de superação do homem em Zaratustra, nos


trilhos que apontam os caminhos do “Novo Aeon”. Não consiste uma tarefa simples a
construção de si enquanto obra de arte. A justificação maquiavélica dos fins pelos meios, não
é justificável para uma mente artística “[..]. Um belo fim supõe belos meios, todo o escultor
de si o sabe. A maneira de alcançar um objetivo faz, por sinal, parte desse objetivo.
[...]”(ONFRAY, 1995, pg. 130). Raul Seixas tinha isso em mente, por isso nunca parava na
pista, mantendo-se sempre atento aos rumos da história, ou melhor dizendo, de sua história
individual. O escultor de si tem coisas grandes a conquistar e não pode ficar parado como os
indivíduos subordinados aos rebanhos institucionais:

Todo o mecanismo social que frustra o homem que tentou anunciar o Novo Aeon às
pessoas, mas só encontrou ouvidos e olhos velhos, incapazes de enxergar os escancarados
sinais de mudança nos tempos, tendem a se tornar tristeza e pessimismo.

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O ‘cambalache’ de um século febril e problemático, se misturando aos constantes


afastamentos das divindades geradoras da vida na terra, que são incapazes de conviver com
aquele espírito tão tomado pela urgência em pensar e falar ao mundo conduz e,
frequentemente, reconduz Raul Seixas a mais agressiva, porém mais fácil via de acesso ao
universo dionisíaco. Em outras palavras, a perene desafinação com a sociedade e com as suas
mulheres, levam Raul Seixas a mergulhar de cabeça nas drogas e no álcool. Ele diz num texto
de seu baú de 1974:

[...] Sentia, tocava, compunha, bebia, fumava maconha, cheirava cocaína, cultuava a
droga. Abandonara e esposa e a filha.

O culto ao não-rotulado.

O culto a Raul Seixas!

Baco! Dionísio! Sim.

Agora é madrugada de mais um dia de fracos escravos e eu estou bêbado! Bêbado e


apaixonado de êxtase por ti, meu Deus!

Estou emaconhado noite adentro pensando no que sinto por Ti, e por ti beleza total
que minha mente se abre sem cansaço sob o efeito da cocaína com que te amo! Ó
inocente impiedoso!

“Faze o que tu queres, há de ser tudo da lei.”

Eu cultuo as drogas da vida! [...] (SEIXAS, 1996, pg. 152)

Raul Seixas legou ao Brasil uma quantidade enorme de raulseixistas. Alguns se


apoiam no Raul do fácil acesso ao dionisíaco, e assim ofuscam a figura do criador, que chega
com sua arte a transposição dos abismos da existência, gerando a qualidade mais jubilosa da
alegria em si. As inúmeras tentativas de retirar de Zaratustra uma essência, um sistema,
parecem se repetir hoje com o Raul. A preferência e comodidade dos que só enxergam com
olhos velhos, é ignorar a grande essência do devir. Podemos dizer que ele “é”. Mas “é” em
construção, é uma metamorfose ambulante. Tal qual o curinga no baralho, não pode ser
identificado por um rótulo que o defina:

Sinceramente, não falo com revolta nem rancor, mas não gosto que me classifiquem;
não me julgo classificável para ser rotulado em prateleiras ao alcance de quem me
lança mão. Não é assim tão fácil, aliás ninguém é fácil. Nem eu.

Eu não sou de nada, minha gente, não estou em nada e por nada e ao mesmo tempo
sou. Tudo, em tudo e por tudo. Incoerente e arbitrário ás vezes, muitas vezes,
milhões de vezes, todo o tempo. Sou apenas uma mistura confusa de todas as
informações que recebi com o coração batendo assustado, hoje fumando maconha
amanhã apareço chupando pirulito. Eu não sei quem sou nem quero que me

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 467

definam. Não me perguntem onde estará metido este Raul que eu não sei responder.
Não há respostas, pois não há perguntas. Senão fica assim:

– Onde está Raul?

– No intelectual? No menino família? No hippie, no político? No eterno


hipocondríaco? No sensual? No estudante de filosofia? No compositor popular?

[...]

Não, não estou ali ou aqui, rótulos prontos para serem usados.

[...] (SEIXAS, 1996, pg. 29)

Assim, vários são os usos e até eventuais apoios doutrinários que se podem extrair de
um pensamento livre, mas isso lhe amputa a única essência que tem validade diante de tal
pensamento: a essência da não essência do devir. Se quiséssemos utilizar o pensamento de
Raul ou de Zaratustra como base de ação para as nossas vidas, seria preciso ter em mente o
grande ensinamento de ambos: Torne-se você mesmo. “Cada um de nós é um universo”
(1976). Assim como Zaratustra despede todos os crentes por terem as crenças tão pouco valor,
também o Raul diz: “estou seguindo meu caminho, não peço que me sigam, cada um faz o
que pode, os homens passam e as músicas ficam.” (A Pedra do Gênesis – 1988). Diante de
uma pergunta de uma repórter sobre qual era a ideologia pregada por Raul Seixas ele
respondeu que era “Raulseixismo”. Utilizando a máxima nietzschiana de que o ultimo cristão
morreu na cruz, podemos dizer que o ultimo e único raulseixista morreu no meio de um copo
de whisky em 1989 em São Paulo.

Vamos agora a um diálogo entre Raul Seixas e Zaratustra. “[...] ele é, em primeiro
lugar e sobretudo, um músico filósofo, músico levado à meditação filosófica por uma reflexão
incessante sobre a natureza do júbilo musical. [...]” (2000, pg. 46). A citação bem poderia
estar presente em uma das biografias de Raul Seixas, compositor da “obra de si”. No entanto,
quem aqui fala é Clement Rosset, no livro “Alegria Força Maior”, referindo-se ao criador de
Zaratustra, Nietzsche. É importante destacar a presença marcante da carregada da filosofia
pessimista de Shopenhauer no caminho de ambos. Tal presença é fundamental pra se chegar a
mais jubilosa forma de alegria. Aquela que é provada pela dor, e ainda subsiste mesmo em
meio a ela. A dor, veículo necessário à criação, produz a alegria do indivíduo em sua obra.

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O disco “Raulzito e os Panteras”, composto em parceria com seus companheiros de


banda, embora esteja em sintonia com o visual dos Beatles, traz em suas canções um peso de
despedidas e desilusões amorosas. Chamam atenção duas faixas de autoria do Raulzito. Em
“Trem 103” perde-se um amor, levado através dos trilhos, mas pede-se que os mesmos trilhos
o tragam de volta ao seu amor. Na versão para "Lucy in the Sky with Diamonds" dos Beatles,
Raulzito apela pros sabores da infância atestando que sempre é possível sonhar. É inegável o
clima triste do disco. Até a imagem da capa, parodiando uma foto dos Beatles, ao invés de
sorrisos, como os do quarteto de Liverpool, traz semblantes sérios e pesados.

O fracasso do disco, e a pose de homem sério do Raulzito estudioso e pai de família,


rendeu-lhe um emprego de produtor musical na CBS do Rio de Janeiro. Lá, embora seu sonho
de ser rock star se distanciasse, ele podia muito seriamente compor músicas pra artistas de
sucesso e aprender técnicas de gravação e comercialização de música. O jovem engravatado
carregado de leituras filosóficas acerca da vida e do homem, de uma hora pra outra desistiu de
escrever em livros o que pensava. Ao perceber que as pessoas estavam todas felizes,
justamente por não pensar, criou com Sergio Sampaio, Eddy Star e Miriam Batucada, a
“Sociedade da Grã Ordem Kavernista.”. O quarteto gravou clandestinamente um disco onde
impera o deboche a pobreza musical e cultural de sua época.

Ao tentar “dizer nada”, a quem não queria ouvir nada, com muito bom humor,
Raulzito perdeu seu emprego. Mas este revés, longe de apontar pra um fracasso, trouxe antes
a tona um personagem que teria melhor sorte que Raulzito. Surgia o Raul Seixas querendo
cantar seu Rock n’ Roll. Ele inscreveu e foi aprovado com duas canções para o Festival
internacional da canção, da TV Globo. Em “Let me Sing My Rock n’ Roll”, o baiano que
cresceu ouvindo Luiz Gonzaga pelas estradas de ferro, tem a ousadia de juntar o Baião, ritmo
de sua infância, (de onde ele retira todos sabores que o levaram a sonhar) com o Rock, que
fez sua cabeça, e podia carregar toda a sua vontade de ser filósofo. Há nessa canção a
afirmação da verdade livre de detentores. A alegria trágica de poder criar suas verdades e
transformar abismos e desilusões em alegrias está toda aí. Curiosa também é referência a frase
dita por John Lennon, logo após o anuncio do fim dos Beatles por Paul McCartney: “O sonho
terminou”. Se o sonho acabou, é sinal que começa o tempo da realização. Foi-se o tempo de
sonhar. Agora Raul Seixas põe em prática, e traz pra vida o sonho de ser um Rock Star.
Aquele deus dançante que Zaratustra seria capaz de adorar, dança ao som do Rock, ritmo

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criado pelos protestantes negros estadunidenses, dança ao som do baião e do candomblé,


ritmos baianos envoltos em um impressionante sincretismo. Nietzsche louvou em “O Caso
Wagner” a musicalidade quente, alegre, e africana ao comentar “Carmen” de Bizet:

Também essa obra redime; não apenas Wagner é um “redentor.” Com ela
despedimo-nos do norte úmido, [...] tem sobretudo o que é da zona quente, a secura
do ar, a limpidezza no ar. Em todo aspecto o clima muda. Aqui fala uma outra
sensualidade, uma outra sensibilidade, uma outra serena alegria. Essa música é
alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana [...].
(NIETZSCHE, O Caso Wagner, p. 12-13, 1999).

Talvez Zaratustra, quando procurava um “sul mais ao sul”, estava mirando algum
lugar ainda abaixo da linha do Equador. Nosso Zaratustra Raul Seixas é tropical, porque é
baiano, porque produz no Rio de Janeiro e em São Paulo. Se Zaratustra buscava o calor alegre
do sul, o Brasil tropical seria um espaço ideal para o desenvolvimento de tal tragédia.
Podemos dizer que na Bahia de Raul Seixas, deus podia dançar.

Somando-se a esta musicalidade dançante, quente, Raul Seixas surge como um


personagem incrivelmente sarcástico e provocador. Muita coisa passou despercebida. A outra
canção sua classificada no festival, trazia um dito popular baiano alterado: "Eu sou eu nicuri é
coco". Nicuri (ou ouricuri) é um coquinho da Bahia. Mas pra chamar atenção ele trocou
"coco" por "diabo". Diabo será a personificação do mal também em outros momentos. Assim
era muito mais fácil chamar a atenção, tanto dos rebeldes sem causa, que gostavam de invocar
a figura mística do diabo somente pra provocar, quanto dos fanáticos religiosos, que sempre
procuram indícios de bondade ou maldade nas pessoas. Os maus, pra estes últimos, estão
sempre sob a tutela do diabo.

Raul Seixas estava preocupado em difundir sua filosofia. Graças ao sucesso no


festival, firmou contrato com a Philips, iniciou uma parceria criativa com Paulo Coelho e
lançou como prévia do seu primeiro disco solo, um compacto com “Ouro de Tolo” e
“Metamorfose Ambulante”.

A primeira, sem refrão e bem curtida no pessimismo, decepcionado com tudo o que
conseguiu com facilidade, querendo fugir do tédio pela “sombra sonora de um disco voador”
não ofusca a afirmação da transitoriedade na segunda. A energia de Raul nesta época estava
voltada para a superação do pessimismo Schopenhaueriano:

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Você já não sabe mais quem é quem. Tá aquela coisa de cabeludo, tá todo mundo
estereotipado. Por isso é que eu faço questão de dizer que eu não sou da turma pop,
que eu não tô comendo alpiste pop. Eu sei lá, eu acho que tá todo mundo de cabeça
baixa, tá todo mundo Schopenhauer, todo mundo num pessimismo incrível. [...] Eu
sou um cara muito otimista nesse ponto. Sei lá, eu não sei se é a minha
correspondência com o Planeta, vejo a coisa em termos globais. E tá realmente
acontecendo uma coisa fantástica, que é essa certeza e conscientização de que você
deve ser um rato, transar de rato pra entrar no buraco do rato, vestir gravata e paletó
para ser amigo do rato. E depois as coisas acontecem. (SEIXAS, apud PASSOS,
2003, p.95).

Se o Zaratustra alemão se anunciava como o profeta da transitoriedade, do devir, com


o nosso Zaratustra tropical não foi diferente. Se é pra ser algo, pois então que seja uma
metamorfose. Toda a discussão milenar entre ser (de Parmênides) e devir (de Heráclito)
resolvida, ao menos no âmbito individual, em uma única frase “Eu prefiro ser essa
metamorfose ambulante”. Sua alegria consiste justamente na sua capacidade de mudar. Agir
livre de preconceitos morais, privilegiando sua entrega ao fluxo do tempo. Amor Fati.

Entendendo a construção da vida e obra do músico como a construção de uma grande


obra de arte produzida a partir de si próprio. Aqui percebemos os movimentos do herói
trágico alegre, que em meio às contradições e mesmo em meio à dor, não perde a força
transformadora da alegria. “[...] só há verdadeira alegria se ela é ao mesmo tempo contrariada
e se está em contradição com ela mesma: a alegria é paradoxal ou não é alegria. [...]”
(ROSSET, 2000, pg. 25). Desde o seu primeiro álbum solo, encontramos a afirmação dos
elementos de contradição que marcarão toda a sua obra: “eu vou desdizer, aquilo tudo que eu
lhe disse antes, eu prefiro ser essa metamorfose ambulante..”.

O álbum que trazia como título o grito de Tarzã “Krig-ha-bandolo”, lançado em 1973,
traz depois de uma introdução com a gravação do menino Raul Seixas imitando Elvis Presley,
um Candomblé. Apesar de não ser nada agradável para um público que ouvia Rock, a faixa
está ali, abrindo o disco com o ritmo da macumba, que o Mick Jagger dos Rolling Stones
disse anteriormente ao Raul num destes encontros inusitados, que era um ritmo incrível, que
carregava uma sonoridade original do Brasil. Assim o baiano Raul ousa mais uma vez. “A
mosca na sopa” irritantemente acompanhada por palmas, instrumentos de percussão e as
“senhoras baianas” aclimatando um terreiro de macumba, traz um Rock alucinante
irrompendo em meio ao ritmo africano. A grande mosca chegava “observando e abusando”,
perturbando o sono dos que fechavam os olhos. Se os Kavernistas zombavam e riam da
pobreza cultural dos acomodados, agora o Raul Seixas tinha uma missão. Vencer pelo

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cansaço. Incomodar aqueles que fechavam os ouvidos. Não é possível escapar do zumbido da
mosca. Destruir uma não acabaria com as outras moscas que viriam perturbar o sono tranquilo
dos guardiões do velho aeon.

O disco traz um misto de pessimismo e esperança de saída pra um indivíduo perdido.


“Do passado eu me esqueci, no presente eu me perdi...”. Ou “tudo já passou, o trem passou, o
barco vai...”. No meio de tanta confusão, ainda é possível aconselhar com bom humor os
personagens históricos com Sinatra, Hendrix, Jesus e Al Capone a tomarem rumos diferentes
em suas vidas. Rockixe carrega também este bom humor, e a afirmação da vontade do
contraditório anjo do inferno: “O que eu quero, eu vou conseguir, pois quando eu quero todos
querem, quando eu quero todo mundo pede mais.”. Aqui a opera Rock se mantém com o
objetivo da Mosca de jogar uma “nuvem de poeira que pintou” pra pegar, incomodar, enfim
acordar os que dormem para o sol nascente do novo. Em Cachorro Urubu, aparece mais uma
vez a necessidade de “acordar, pra ver o galo cantar”. Mas ainda não era nem o começo. Gita
marcaria o início do primeiro discurso da Sociedade Alternativa dirigido aos homens. Era o
surgimento do profeta Raul Seixas.

Começando anunciando uma olhada no panorama cultural do Brasil acompanhado de


Paulo Coelho, a música “Super-Heróis” abre o disco com bom humor e introduz a
importância de pensar uma alternativa a toda a sociedade. Mas a alegria trágica ainda possui
aqui uma nuvem pessimista. A morte, o desejo de partir com os extraterrestres pro espaço, e a
necessidade de levar sua doutrina aos homens, ofuscam ainda a alegria jubilosa de quem
abraça a terra como lugar sagrado da existência. Mas há uma alegria marcante, capaz de
causar terremotos, sem temer as tempestades, sendo diferente de todos. Desprovido de um
rotulo que o marque, que o prenda em qualquer ponto de vista, Raul se diz em “Moleque
Maravilhoso” o Curinga de todo o baralho, e este é pra mim o adjetivo que melhor se afina
com a obra do Raul. Embora seja um rótulo, é um rótulo mutante. Não possui compromissos
com qualquer família ou números, conforme já indiquei, anteriormente. (BRANDÃO, 2009)

Temos aqui o anúncio do Novo Aeon da Sociedade Alternativa, que o nosso herói
chama de “A lei do forte – essa é a nossa lei e alegria do mundo”. Gita marca aquela
necessidade de se dirigir aos homens e “gritar e cantar rock e demonstrar os teoremas da
vida...” fugindo dos que ficam vomitando verdades. Necessidade semelhante a do Zaratustra,
que tinha sede de falar aos homens. O solitário em busca de companheiros, pra realizar a ideia

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nova, que precisa de outras cabeças para ser visível. “Sonho que se sonha só: é só um sonho
que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”.

Raul Seixas, muito ligado às grandes questões filosóficas da humanidade, a exemplo


do Zaratustra, encontra na música a principal chave para a alegria. A alegria aqui é tratada
como força fundamental no processo criativo, e na própria valorização da vida como bem
maior do ser humano. É a partir desta força que é concebido em 1975 o forte disco “Novo
Aeon”, onde toda a filosofia de que queria falar o nosso herói tropical é abordada com
profundidade. A derrocada das velhas tábuas, levada pelo trem das sete, do disco anterior, traz
a tona a necessidade de fazer nascer o novo, onde “dança o bebê, uma dança bem diferente.”.
É o ponto de chegada da metamorfose que de acordo com Zaratustra levaria a Superação do
Homem. Saímos do espírito de camelo, passamos pela contestação e força do leão, e
chegamos à criança. Agora uma criança que dança ao som da nova divindade. Deus vivo
dentro de cada indivíduo.

O disco inicia-se com a celebração da vida de quem sempre recomeça. O eterno


retorno de quem busca uma superação. Em Tente Outra Vez (Já Citada no Segundo Ato), a
mão sedenta levantada ouve uma voz que canta e dança no ar. É o deus dançarino, que leva a
fé no seu movimento divino e na vida, palco ultimo de sua divindade.

Zaratustra diverte-se ao pensar que chamariam seu super-homem de diabo, e Raul nos
apresenta o Rock do Diabo, creditando a este ultimo a paternidade do Rock. Não é o diabo da
Igreja, que anda a possuir fiéis infiéis, mas o diabo que dá os toques, e por que não dizer o
diabo de Zaratustra, o super-homem, utilizando uma mascara mística, vista somente pelos
olhos de quem só sabe ler o mundo a partir de seus dogmas absolutistas de fé.

A maçã marca o amor livre de um casal que vai além dos valores milenarmente
estabelecidos da união formal do casamento. Aqui o homem sofre ao se livrar das amarras de
tudo o que aprendeu, mas entende que só na liberdade pode existir o amor. Amor Fati,
entregue às vontades que surgem no decorrer dos dias. Raul Seixas nestas três primeiras
faixas opera uma transvaloração dos valores, mas guarda pra quarta faixa o louvor ao sagrado
egoísmo, que delimita as fronteiras universais de cada indivíduo. Se Schopenhauer ditava o
rítimo com sua pregação do “Nada Infinito” aqui Raul atravessa esta ponte. Se a grande força
motriz da filosofia musical de Nietzsche foi a afirmação da Alegria em meio às dores de uma

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existência trágica, não seria exagerado dizer o mesmo da música filosófica de Raul Seixas.
“Sempre avante no nada infinito” segue nosso herói trágico, armado com sua guitarra em
punho, de onde propaga, junto com sua voz, o seu Rock n’ Roll da alegria e do privilégio
existencial, mesmo quando sente-se em meio ao “nada”.

Aqui, embora ainda exista alguma suspeita de niilismo, Raul diz em “A verdade sobre
a Nostalgia” que “Atrás da curva perigosa eu sei que existe, alguma coisa nova mais vibrante
e menos triste”. Fazendo aquilo que gosta, ele abre mão de se afinar ao discurso antigo do
rock, que se tornou nos anos 70 alvo de um saudosismo paralisante. Assim o antes saudosista
Raul, corta o cabelo e faz apelo ao abandono da nostalgia em favor do “sentimento dos 70”.

Mas na composição cantada em inglês “Sunseed”, encontramos a força afirmativa do


riso trágico em meio ao tremendo caos de gente se afogando em pingos de chuva e barcos
cruzando desertos, o Zaratustra tropical anuncia a garota que aquilo não é uma derrota. São os
sinos do novo tempo. Nascido em junho, sob o testemunho do brilho do sol no ano da bomba
atômica, Raul Seixas aqui, usa a maior arma do herói trágico. O riso!

“Right now the sun doesn't shine, he´s loaded on wine. Though I can laugh in the
storm, bacause I was born when the sun used to shine in June.” (Bem agora que o sol não
brilha, ele está encharcado de vinho. Embora eu possa rir em meio a tempestade, porque eu
nasci quando o sol costumava brilhar em junho).

Mas o gran finale do Novo Aeon está justamente na ultima faixa, a música homônima
ao disco, já citada no segundo ato.

Além do bem e do mal, a dança do bebê traz a tona a sociedade desprovida da culpa.
Não há nada que dê base a punição de algo que não seja você mesmo. A busca de direitos
aqui, na contramão dos direitos universais, calcados na igualdade dos homens, é antes a busca
dos direitos individuais, que só pode ser possível numa sociedade que respeite os inúmeros
caminhos passiveis de ser percorridos por cada ser humano de maneira diferente, posto que
todas as pessoas são diferentes.

A música o Homem (Eu Nasci há dez mil anos atrás, 1976), traz o indivíduo que está
decidido a voltar, no momento de partir, produzimos para a Estação Raul um intertexto com a
filosofia do eterno retorno de Nietzsche. Nesta canção encontramos um Raul que quer ser

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estrela, quer estar vivo para ver o nascer do sol. Toda a dor escondida no peito pede
passagem. É a criação fazendo surgir uma nova luz, que ofusca as já falidas e obscuras luzes
antigas. É justamente aí, no sentimento de dor, que brota a tempestade que varre as ruas a
frente dos caminhos do Zaratustra tropical que segue seu caminho a entoar seu canto torto.
Todo o seu tesouro está na sua obra, que é tudo o que lhe resta na imensa festa da existência.

“O dia da Saudade” (Eu Nasci há dez mil anos atrás, 1976), com o Raul inventando
um feriado e simulando comicamente um choro no final da faixa, deixam uma imagem bem
humorada e alegre. Não uma alegria ingênua. Uma alegria fina, curtida na dor de quem pensa.
Na dor de quem sabe se diferenciar dos outros, e encarar o solitário encontro consigo mesmo.

Na construção de si, encontramos um Raul que se apropria do ritmo alucinante do “iê-


iê-iê”, tão bem sucedido na década de 60, para falar da “realidade”, negando assim, o
romantismo do sucesso rítmico que contagiava o Brasil no início de sua carreira. Em 1977 (O
dia em que a terra parou), quando o gênero já estava bem distante de seu caráter de novidade,
ele diz: “eu quero mesmo é cantar iê-iê-iê, eu quero mesmo é gostar de você. Eu quero mesmo
é falar de amor, eu quero mesmo é rimar amor com dor...”. É notável, que mesmo ao se render
ao que antes ele chamava de “iê-iê-iê romântico”, esse romantismo, não é ingênuo e idealista
como aquele da jovem guarda. Aqui ele rima o amor com a dor. O amor que é o sentimento
que ao se exceder produz uma alegria vital no ser humano, traz de carona em si os postulados
da dor.

O herói alegre que tal qual o Zaratustra de Nietzsche conversa com o sol ao
amanhecer, no disco “Raul Seixas”, se depara também com os abismos dionisíacos do
absurdo, responde ao pessimismo tentador do “espírito de gravidade” com o riso eufórico: “E
eu guardo cada pedacinho de mim Pra mim mesmo / Rindo louco, louco de euforia... Eu e o
coração, companheiros de absurdos no noturno no soturno. No entanto, entretanto e portanto...
Bom dia Sol” (1983). Zaratustra, que começa sua jornada trágica falando ao sol, afirma de
forma semelhante sua alegria: “E, quando vi o meu Diabo, achei-o sério, metódico, profundo,
solene: era o espírito de gravidade - a causa pela qual todas as coisas caem. Não é com a Ira
que se mata, mas com o riso. Eia, pois, vamos matar o espírito de gravidade!” (NIETZSCHE,
1998, pg. 67)

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No mesmo disco, que leva o nome do nosso protagonista, ele diz: “E aquela coisa que eu
sempre tanto procurei, é o verdadeiro sentido da vida: Abandonar o que aprendi - parar de
sofrer. Viver é ser feliz e nada mais...”. Aí está o objetivo simples e direto do homem alegre.
Utilizar o “egoísmo sadio” de Max Stirner em direção a si mesmo, afim de chegar na
felicidade, e nada mais.

“Eu tenho uma viola, que canta assim... Minha dor ela consola [...].” A música
sertaneja no repertório do roqueiro, que busca o consolo da dor com a música, culmina na
alegria que evita o choro: “Canta a minha alegria, canta para eu não chorar. Entrarei no céu
contigo, quando minha hora chegar.” (Abre-te Sesamo, 1980). O herói trágico não nega a dor
e o sofrimento, antes usa todas estas forças que derrubam os niilistas na mais profunda
tristeza, num objeto de afirmação jubilosa de sua alegria.

REFERÊNCIAS

DISCOS DE RAUL SEIXAS

1968- Raulzito e os Panteras

1971- Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez

1973- Krig-ha, bandolo!

1974- Gita

1975- Novo Aeon

1976- Há Dez Mil Anos Atrás

1977- Raul Rock Seixas

1977- O Dia Em Que a Terra Parou

1978- Mata Virgem

1979- Por Quem os Sinos Dobram

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1980- Abre-te Sésamo

1983- Raul Seixas

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Jeferson Santana, Raul Seixas: As Metamorfoses nas Idéias do Curinga da


Música Brasileira – Londrina, (Monografia de Especialização), UEL, 2009.
MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzscheana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1999.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
___________. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
___________. O Caso Wagner: um problema para músicos. Tradução Paulo César de
Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ONFRAY, Michel. A Escultura de Si. Tradução Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Rocco,
1995.
PASSOS, Sylvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
ROSSET, Clement, Alegria Força Maior. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
SEIXAS, Raul, O Baú do Raul. (Org. Ap. Tárik de Souza) São Paulo: Editora Globo, 1996.

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O SEMIÓFORO E O REGIME DE HISTORICIDADE: REFELXÕES SOBRE OBJETO,


CULTURA (I)MATERIAL E TEMPO HISTÓRICO.

Lucas Trazzi de Arruda Mendes


(Mestrado em História Social – UEL)
Orientadora: Célia Regina da Silveira

No intuito de refletir a respeito de teorias historiográficas que pensaram as relações


práticas e simbólicas que uma sociedade histórica atribui à determinado significante cultural,
nesse artigo nos propusemos a uma discussão bibliográfica concentrada em torno das
problemáticas legadas pela História Cultural ao campo de estudos da cultura material. Para
tanto, decidimos partir de algumas considerações de François Hartog sobre aquilo que
ponderou enquanto prospectos historiográficos e históricos insinuantes da nossa
contemporaneidade. Assim, explorando rapidamente suas apreensões acerca do que chamou
de regimes de historicidade e o papel “sintomático” que atribuiu a uma emergente “febre” de
“patrimonialização” como indício daquilo que categorizou como presentismo, pretendemos
estabelecer alguns elos com os demais autores envolvidos em nossa discussão, às vezes
tomando as considerações destes como possíveis respostas à problemática de Hartog e outras
vezes como exemplos de “sintoma” dessa mesma problemática.
Nosso procedimento de reflexão é feito em busca de tecer o comentário àquilo que
acabamos por considerar uma preocupação constante na bibliografia discutida e que parece
caracterizar parte da discussão teórica em torno da cultura material dos finais dos anos oitenta
para a atualidade, sendo ela a “vontade” crítica ou tendência analítica de retirar o objeto
material do reino das coisas “inanimadas” e admitir sua pluralidade de funções, práticas e
significativas, numa determinada sociedade e seu universo cultural. Ainda dentro desse
contexto de discussões e segundo seu desenvolvimento, reconhecemos a emersão de uma
necessidade de considerar os objetos materiais não apenas enquanto coisas passíveis de se
tornar elementos representantes de um universo simbólico atribuído pelo homem – do homem
para o objeto –, mas também vetores “concretos” desse universo simbólico dotado de
capacidades de enculturação. Nesse sentido, enquanto coisas dotadas de capacidade de

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“transmissão” ou comunicação cultural, os objetos materiais pretendem se deixar transformar


em – ou fazer ver suas propriedades de – objetos “imateriais”, rompendo assim com uma
clássica oposição entre cultura material e imaterial, e tornando-se aquilo que se convencionou
conclamar enquanto semióforo – nas palavras de José Reginaldo Santos Gonçalves, aquele
objeto cuja vocação é significar (2007: 47).
Recorrendo a estas teorizações historiográficas e sugestões museológicas de
tratamento desses objetos enquanto fonte para formulação de conhecimento histórico ou
“material” para a escrita da história, pretendemos considerar essas atribuições de “valor” ou
“vida” ao objeto (i)material como foco analítico para compreender ou destacar noções
historiográficas de temporalidade dos finais do século XX e fazer notar uma espécie de
fixação por uma autoconsciência histórica em determinados parâmetros da sociedade
ocidental contemporânea. Dessa maneira, pretendemos assim tecer comentário ao problema
do Tempo proposto pela atualidade à historiografia, e/ou desenvolvida, pensada e mediada
igualmente pela historiografia à atualidade.

...
Detendo-se naquilo que propôs como impensado na História, e orientado por uma
série de discussões antecedentes relativas à prática historiográfica, François Hartog procurou
pensar a instituição dessa disciplina retirando determinadas conceituações essenciais a essa
espécie de conhecimento de sua zona de conforto, lugar no qual pareciam ser naturalizados e
instrumentalizados sem ponderação e autocrítica. Nos artigos Regime de Historicidade e
Tempo e Patrimônio, o historiador procurou analisar como diferentes concepções de Tempo
histórico pareciam direcionar procedimentos divergentes na prática historiográfica e
influenciar diferentes culturas sociais relativas ao patrimônio considerado histórico.
Assumindo alguns problemas anteriores1, foi no reconhecimento e crítica a uma dita
despreocupação com essa categoria que considerava essencial ao fazer histórico – o Tempo –
que o historiador pensou ter encontrado chaves possíveis para o entendimento de algumas
similaridades sensíveis em variadas propostas de produção historiográfica ao longo da história
dessa disciplina, esperando poder propor alguns encaminhamentos analíticos àquilo que
considerava impensado, ou pelo menos não-dito, nas diferentes práticas historiográficas.

1
Como discussões antes manejadas por Walter Benjamin, Braudel e Koselleck (HARTOG, 1996 ; 2006)

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Agremiando grandes conjuntos desse labor histórico em momentos, fazes, ou regimes


de historicidade conforme esse princípio unificador – ideias congruentes de temporalidade –,
Hartog partiu para a classificação geral dessas “dietas” de Tempo2, dividindo-as em três
categorias principais: o antigo regime de historicidade, sendo ele a história magistra, onde
uma dominância conceitual do passado sobre o presente e o futuro ditaria a relação entre esses
tempos distintos no conhecimento historiográfico, fazendo da História a mestra da vida ao
propor a prática de saber o passado enquanto lições para se aprender sobre um futuro que
poderia vir a se assemelhar, de alguma maneira, com esse passado (1996: 96); o moderno
regime de historicidade, onde a disciplina da História parecia condicionada às ideologias
universalistas propagandísticas e teleológicas de finais do século XVIII até finais do século
XX, e por isso baseado numa concepção de futuro e estabelecendo uma relação de
obsolescência para com o passado ao entender a História como uma progressão/evolução
rumo a um fim específico e previsto ideologicamente, um futuro cada vez “melhor”, mais
edificante humanisticamente e mais “eficiente”, deixando ao passado à situação de mero
estágio defasado de uma marcha unívoca da humanidade rumo ao progresso, e legando ao
presente a situação de julgar este passado como seu patamar “inferior” (1996: 97); e, por
último, o regime contemporâneo de historicidade, no qual categorias e problemáticas ligadas
ao que poderíamos entender como tempo presente – um lugar impreciso e inconstante, mas
ainda assim um lugar – parecia dominar as duas outras noções (passado e futuro) e determinar
o condicionamento da produção historiográfica.
Aqui, interessa-nos mais especificamente algumas questões relativas ao momento de
transição entre os dois últimos regimes categorizados por Hartog. Em nosso entendimento, é
nesse processo de ruptura – que teria sua intensificação ao longo do século XX – onde
julgamos encontrar o cerne de um despertar analítico para uma espécie de autoconsciência
histórica do presente, um comportamento que daria espaço para uma tendência de ponderação
historiográfica que encontraria na academia variados graus de manifestações e problemáticas,
adesões e resistências, e que viria refletir nas propostas de tratamento para com a cultura
material e as políticas relativas ao patrimônio no regime contemporâneo de historicidade.
Segundo Hartog, poderiam ser vários os motivos para o questionamento de um regime de

2
Não irei considerar todas as formas de tempo ou experiência temporal, mas apenas aquelas que pertencem à
tradição do saber, mais precisamente, os modos por que se conectam presente, futuro e passado na escrita da
história. Estas configurações intelectuais compõem apenas uma camada nas relações complexas e intrincadas
para com o tempo mantidas por toda sociedade a cada momento, uma trama percorrendo a tapeçaria.
(HARTOG, 1996: 95)

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historicidade, e que, como qualquer instituição humana determinada numa compreensão


histórica, seus fundamentos não seriam entidades metafísicas que teriam “descido dos céus”
para “reinar” na Terra, mas sim um arcabouço durável e politicamente organizado, o qual, tão
logo constituído, cede espaço para desafios e contrariedades. Ainda, defenderia sempre existir
continuidades entre um momento e outro, ou períodos intermediários sobrepondo-se entre
dois regimes (HARTOG, 1996: 102) onde cada qual se forma, se estabelece e declina,
disputando lugares e fronteiras.
Como exemplo de alguns dos pontos que teriam influenciado um desejo de ruptura
para com o regime moderno de historicidade, comenta o fato de que as consequências
emocionais e intelectuais das duas grandes guerras do século XX teriam influenciado uma
perspectiva de descrença na “grande marcha” humana rumo aquele progresso inevitável
prometido pelas correntes ideológicas teleológicas, da qual o comunismo e o liberalismo
faziam parte, e que pareciam condicionar ampla fatia da produção historiográfica dos finais
do século XIX e início do XX. Assim, nascendo dessa descrença no progresso, uma espécie
de desconfiança em relação ao futuro parecia igualmente demarcar um recuo em relação a sua
moderna atribuição enquanto profeta do passado (HARTOG, 1996: 97), ao mesmo tempo em
que uma consciência crítica a respeito dessa “atribuição profética” parecia fazer despertar nas
teorias historiográficas uma noção de parcialidade ideológica na reconstituição do passado
histórico – numa disciplina que antes procurava deixar falar suas fontes e mostrar os fatos
inegáveis do passado, com uma neutralidade teorizada por parte do historiador.
Em nossa compreensão, essa descrença e desconfiança a respeito da certeza ocidental
iluminista do progresso humano como único caminho para a humanidade, poderia ter ajudado
a constituir esse censo crítico e re-tratar a promessa fatídica, “concreta" e teleológica das
grandes correntes de pensamento ao nível das interpretações ideológicas3, admitindo não
somente a influência de questões de gênio no procedimento de formação do conhecimento
histórico, mas também a inevitabilidade dessa influência e a importância do presente –
enquanto lugar de onde fala o historiador em relação ao passado – na pesquisa histórica. A
História enquanto interpretação dos fatos históricos parecia cada vez mais inclinada a
reestruturar a relação entre futuro e presente e passado, dando ao segundo uma espécie de

3
Da mesma maneira, poderíamos comparar esse momento de ruptura acadêmica à análise de Max Weber
daquilo que chamou de processo de desencantamento do mundo, que teria se iniciado em finas do século XVIII e
início do XIX e se intensificado no século XX. Nesse sentido, julgamos que o homem parecia perder
gradualmente sua predisposição divina, religiosa ou/e ideológica, transformando sua visão do mundo de um
organismo ou máquina com ajustes infalíveis, para um universo de indeterminações e políticas mundanas.

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dominância ou, para usar de bom tom, culminância do fazer historiográfico em relação aos
outros dois tempos (HARTOG, 1996: 107). Consequência disso, também poderia ter sido o
surgimento de uma noção da existência de variados tempos históricos que não apenas um
passado, um presente e um futuro, uma vez que aquela ordenação temporal unívoca – aquela
da marcha rumo ao progresso, medida em estágios e escalas – parecia gradualmente perder
sua credibilidade e dar espaço a uma consciência histórica sobre a possibilidade de
convivência entre vários passados, presentes e futuros – uma vez que a História passaria a ser
uma questão de interpretação e ordenação sobre os fatos baseados e problematizados num
presente específico, numa situação institucional e pessoal do historiador, de onde partiria boa
parte da demanda analítica e dos direcionamentos (porque não emocionais?) do historiador e
seu trabalho de reconstituição do passado.
Localizando as discussões no cenário acadêmico, Hartog inicia seu breve histórico de
inclusão do presente como consciência crítica e enquanto categoria fundamental para o estudo
da História comentando a respeito das intenções de Walter Benjamin de elaborar um novo
conceito de História que se distanciasse do regime moderno de historicidade e admitisse
descontinuidades no Tempo – tanto na ordem temporal das narrativas historiográficas, quanto
na maneira com que as pessoas pensam e pensaram o passado, o presente e o futuro. Ao
inserir o presente e reconhecer as implicações de gênio e de instituição do historiador em sua
empreitada historiográfica – como também faria Marc Bloch e em procedência os Annalles –,
Benjamin trabalharia a prática historiográfica como rememoração, um ato de recordar o
passado segundo as necessidades e questionamentos feitos no presente. Como comenta
Hartog, a imagem que melhor expressa esta operação é o raio de um relâmpago: uma
iluminação recíproca do passado e do presente, de um momento do presente e um do
passado, apenas por um segundo (1996: 104), operação em que se olha no passado através de
considerações de seu futuro (ou o presente do historiador).
Outro exemplo de re-elaboração da noção de temporalidade citado pelo historiador
teria sido o de Braudel ao definir a História como a dialética de diferentes ritmos e tipos de
duração (IDEM), tendo o conhecimento desta disciplina a função de perscrutar a convivência
desses tempos e os diálogos entre esses ritmos numa sociedade e cultura histórica (ROCHA,
1995: 254-246).
Entretanto, segundo a análise de Hartog, Benjamin e Braudel não teriam dado o
“passo” definitivo para encerrar o regime moderno de historicidade, sendo ainda exemplos do

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longo processo de ruptura para com ele. Assim, os questionamentos de Hartog a respeito do
tratamento historiográfico dado às diferentes temporalidades não perderia seu fôlego, e daria
continuidade à sua problemática perguntando-se sobre a possibilidade de se considerar e
analisar os tempos históricos sem a tirania de um momento sobre o outro – pois considera que
mesmo Benjamin e Braudel ainda pareciam fazer do passado prisioneiro do presente, um
presente que não raras vezes assumia o papel de futuro na análise historiográfica. No sentido
desses comentários, e já reconhecendo uma continuidade que o regime moderno legaria em
parte ao núcleo do regime contemporâneo de historicidade, além de rememorar a história e
perscrutar as estruturas de cada sociedade histórica nos diferentes ritmos e níveis de
tempo/duração, a tarefa da historiografia parecia se tornar não outra senão a de tornar o
passado uma “coisa” relevante para o presente/futuro (HARTOG, 1996: 105).
A noção de regime contemporâneo de historicidade, assim como as outras duas
categorias, trata-se mais de colocações analíticas para se pensar as noções de Tempo e
historicidade compartilhada, em algum grau, nas perspectivas das práticas historiográficas de
seu momento referente, do que julgamentos definidos. Entretanto, diferente dos outros dois
regimes cujos momentos da experiência histórica, na tese de Hartog, já teriam se finalizado, a
experiência histórica da contemporaneidade ainda estaria se determinando e reformulando no
campo da disciplina da História no momento em que escreve suas considerações sobre ela.
Trata-se, portanto, mais de perguntas lançadas sobre o fazer historiográfico à atualidade do
que respostas definidas, embora a própria noção de regime de historicidade seja uma espécie
de instrumento analítico formulado por Hartog para tentar dar conta dessa sua problemática.
Em seu artigo Tempo e Patrimônio, Hartog procura pensar o problema da
temporalidade na prática historiográfica contemporânea considerando uma redefinição das
noções de “memória” e “patrimônio” enquanto sintomas de um novo regime de historicidade
(2006: 265). Segundo o autor, grande parte de suas discussões e elaborações a respeito desse
regime deram-se ao refletir sobre a situação da Alemanha após 1989, com a queda do Muro
de Berlim e a reunificação entre o setor ocidental e o oriental 4. Com a queda desse muro do
tempo (2006: 264), esses dois setores separados por quase quarenta anos e até então sob
orientações políticas, sociais e culturais diferentes, teriam sido “obrigados” a conviver com
pelo menos duas noções de temporalidade (ou História) diferentes advindas da experiência
cultural de cada lado, ao se proporem uma experiência de reunificação nacional e
4
Nota-se que o autor determina mesmo essa data, 1989, como marca da ruína do regime moderno de
historicidade (cuja duração teria sido de 1789-1989) e início do regime contemporâneo.

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reconstrução social, cultural e material na tentativa de re-constituir um Estado-nação.


Entendendo assim o dilema desse país, Hartog comenta a dificuldade historiográfica da
constituição cultural simbólica dessa nova sociedade feita da “mistura” de duas anteriores –
seja qual for o “material” usado para se escrever essa história –, sendo que cada um dos lados
parecia ter uma expectativa em relação ao passado, presente e futuro (um regime de
historicidade) diferente do outro.
Concomitantemente à problemática levantada pela análise desse caso “concreto”, no
mesmo artigo Hartog passa a analisar a ascensão da noção de patrimônio histórico e cultural
no ocidente enquanto categoria dominante da vida cultural das políticas públicas nas ultimas
décadas do século XX e início do XXI (2006: 266) e o efeito que essa ascensão poderia ter
tido – ou da qual poderia ter sido causa – na alteração da noção de “memória” no novo regime
de historicidade. Nesse sentido, comenta a mudança dessa perspectiva admitindo o que
poderíamos entender como uma “febre de patrimonialização” ao contrapor a idéia de
monumento histórico de nível nacional ou mundial, e portanto dirigida à grandes monumentos
com desejos de representação de uma totalidade – como a iniciativa do Patrimônio Comum
da Humanidade realizada pela UNESCO –, em relação à prática cada vez mais frequente de
tombamento e ação patrimonial devido a iniciativa particular de grupos e atores sociais
específicos, feito no intuito de criar memórias parciais e identificadas fora daquela totalidade
mais abrangente. Assim, contrapõe a idéia de monumento – cuja vontade, ainda que “falha”,
seria a de representar uma totalidade – à idéia de memorial, explorando dessa maneira a noção
de memória, ou o desejo de construção de memória, como uma categoria de ação no presente
(HARTOG, 2006: 270).
Com essa análise, a nosso ver Hartog procura exemplificar a emersão de uma espécie
de atitude ou autoconsciência histórica que a atualidade parece tomar para si ao querer-se ver,
quanto antes possível e à procura de uma identidade, enquanto “história”. Nesse sentido,
retornamos à problemática do tratamento da temporalidade no regime contemporâneo de
historicidade, entendendo que, segundo a consciência analítica dessa prática de agir no
presente através da rememoração historiográfica (da ação patrimonial), o presente e o passado
tornam-se instáveis, imprevisíveis – pois nunca se saberia qual o elo entre ambos poderia ser
formado em nome das necessidades do presente. Segundo Hartog, essa “febre de memória”
teria nascido devido àquela ruptura com o regime moderno de historicidade e da descrença
naquele futuro teleológico cujo fim se encontrava na promessa segura de progresso inevitável.

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Essa nova noção de patrimônio e de memória seria mesmo, segundo o historiador, a maneira
da atualidade de viver e de lidar com a ruptura desse regime moderno de historicidade (2006:
272), uma espécie de apólice de seguro contra um futuro (1996: 108) que não se espera ser
mais tão promissor, ao mesmo tempo em que sugere uma vontade de criação de identidade e
reconhecimento de pequenos grupos nesse cenário “pós-moderno” (2006: 268).
Imerso nesse mesmo presente instável, a atitude historiográfica preconizada – e já
instrumentalizada na noção de regimes de historicidade – por Hartog ao investigador da
história cultural que lide igualmente com essa perspectiva de passado descontínuo e
imprevisível (1996: 119), seria justamente a de questionar suas fontes e sujeitos históricos em
busca de compreender e admitir, enquanto consciência analítica para se inserir determinada
manifestação cultural (individual ou coletiva) em um contexto, suas experiências históricas
em relação ao Tempo histórico e, assim, ter o cuidado analítico de abstrair as expectativas a
respeito do passado, presente e futuro desse sujeito histórico enquanto categoria de apreciação
historiográfica crítica. Dessa maneira, Hartog julga conseguir criar lugares e espaços
reservados às várias temporalidades que podem estar presentes em uma fonte histórica
interpretável, e não apenas uma noção de Tempo histórico narrativo anterior ao objeto de
estudo. Como comenta Hartog a respeito dessas perspectivas, essa noção de experiência e
expectativa teria o intento de elaborar uma semântica dos tempos históricos através de
considerações meta-históricas, levando em consideração como cada presente articula suas
noções de passado e futuro, lidando com um “horizonte de espera” e dando à noção de regime
de historicidade o intento de iluminar modos de relação dos “tempos possíveis” (HARTOG,
2006: 263).

...
Em nossa perspectiva, as respostas que alguns historiadores e museólogos procuraram
dar ao problema da utilidade ou relevância dos museus na atualidade e da pertinência da
narratividade dessas instituições – ou a escrita da história através do uso de objetos materiais
– no cenário contemporâneo de crítica às concepções modernas de História ligadas às grandes
narrativas unívocas, vão ao encontro das considerações a respeito das noções de
temporalidade na historiografia contemporânea descritas acima, servindo mesmo para
exemplificá-las, tanto como sintoma da emersão daquela necessidade de autoconsciência
histórica “adquirida” pelo presente, como possíveis respostas aos questionamentos sobre o
tratamento historiográfico dado ao Tempo.

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Perguntando-se sobre a possibilidade de formação de conhecimento historiográfico –


seja em seu caráter de produção acadêmica como no caráter educativo – a partir da instituição
dos museus e suas exposições, Upiano Bezerra de Menezes, Francisco Régis Lopes Ramos e
José Reginaldo Santos Gonçalves teorizaram a respeito do objeto material e sua relação com o
homem em sociedade. Observando-os tanto em seu contexto cotidiano – seja ele um passado
ou um presente – como quando retirado desse contexto para serem agregados a uma coleção
ou exposição, esses pensadores procuraram reconhecer, ou despertar criticamente, o caráter
histórico desses objetos enquanto vetores de determinadas relações sociais, conferindo
analiticamente uma “vida própria” para esses produtos materiais produzidos pelo homem.
Nesse sentido, ao engajarem o objeto material no contexto social e cultural humano do qual
fizeram ou ainda fazem parte, atribuíram a ele uma propriedade comunicativa e simbólica
dessas relações culturais das quais estão envolvidos (GONÇALVES, 2007: 15).
Como assinala Gonçalves, essa perspectiva antropológica e simbólica em relação aos
objetos e sua interação sócio-cultural nos determinados espaços do cotidiano do homem,
portanto, trabalha para ultrapassar os próprios limites empíricos dos usos práticos desses
objetos materiais. Procura ainda ressaltar que as associações simbólicas dirigidas e
agremiadas à noção de algum objeto específico – uma poltrona, por exemplo – não se limita
apenas a uma representação “passiva” de seu uso (prático ou simbólico) pelo homem em
variados contextos. Nesse sentido, teoriza que, uma vez que o objeto consolide uma espécie
de lugar simbólico no universo cultural de uma sociedade, esse mesmo objeto – e suas
implicações simbólicas – atuaria para organizar e constituir a vida social (GONÇALVEZ,
2007: 21) em variados níveis e seguimentos. Indo ao encontro dessa perspectiva, Ramos nos
fala da necessidade analítica de suprimir ou reiterar uma costumeira supremacia
antropocêntrica sobre o objeto material, reconhecendo essa subjetividade humana enquanto
fruto de uma relação de poder para com os objetos materiais, e considerando uma espécie de
poder de sedução dos objetos sobre o indivíduo (2004: 64-65). Segundo esse
encaminhamento, versaria pensar e reconhecer não apenas o que há do sujeito nos objetos,
mas o que há do objeto no sujeito, e “levantar a bandeira” de um ato político de
“mundanidade” (2004: 61) nos reinos de uma museologia historiográfica que pretenda tratar
o objeto (i)material compreendendo-o historicamente em uma sua biografia cultural. Assim,
o objeto que receba esse tipo de tratamento por parte de uma investigação historiográfica
deveria ser tratado enquanto um semióforo, um “ente” cultural com propriedades de

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significação e, portanto, capacidades de transmissão de cultura e revelação das relações


simbólicas estabelecidas para com uma sociedade histórica.
Nessa perspectiva, os autores determinaram que a investigação da biografia cultural de
um objeto – seus usos práticos e simbólicos – em determinado período histórico, deveria não
somente atentar para as mudanças e desenvolvimentos materiais desse objeto – como
aperfeiçoamentos, sua extinção ou substituição por outros objetos com uma função prática
superior, etc. –, mas também para as transformações de suas atribuições simbólicas em
variados contextos sociais. Assim, a consciência analítica de que as relações simbólicas, e não
apenas as relações práticas, entre homem e objeto material se reportam a contextos e tempos
específicos – ou, como queremos, Tempos diferentes – teria também atentado para a
historicidade desses objetos de “desejo” e de “sedução” e estimulado uma necessidade de um
tratamento analítico mais discriminado desses objetos na escrita da história – como, por
exemplo, em exposições de museus históricos –, julgando o objeto não como exemplo de um
tempo passado, mas como ator e vetor de um Tempo histórico – uma temporalidade que
poderia conviver com outras temporalidades, concomitantemente – e contextos sociais
específicos.
Tendo essas considerações museológicas em mente, e influenciados pela problemática
de Hartog, a pergunta que passamos a fazer a esses autores é a seguinte: como seria possível
narrar acontecimentos no tempo sem a tirania de um Tempo sobre outro, seja qual for o
material utilizado para a escrita da história?
A nosso ver, o esforço crítico de Menezes ao procurar por uma solução teórica que
transforme a perspectiva do museu histórico de um teatro da memória, lugar onde as grandes
narrativas tornam o objeto exemplo de um tempo e mero instrumento de enculturação de
velhos paradigmas (MENEZES, 1993: 10), para um laboratório da história, traça uma
aproximação com as perspectivas descritas acima. Para o museólogo, tornar o museu um
espaço de elaboração de conhecimento e lugar de um aprendizado crítico em relação à
História, seria reconhecer o lugar que o presente ocupa nos questionamentos historiográficos,
considerando ainda que essas instituições só se ocupam dos objetos matérias de acordo com
aquele sentido “latente” que a ele é apropriado culturalmente e do qual é capacitado para sua
transmissão (1993: 12). Ainda, comenta que essa consciência analítica do presente na prática
historiográfica no museu histórico traria a noção de que essa instituição não lidaria com
objetos em si, mas sim com problemas históricos, isto é, problemas que dizem respeito à

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dinâmica na vida das sociedades (1993: 20), sendo o objeto histórico mais de ordem
ideológica – por parte do pesquisador que procura reconstituir sua biografia cultural – do que
cognitiva. Nesse sentido, em um museu histórico orientando segundo essa acepção crítica, o
objeto material teria suas funções e valores práticos e simbólicos (anteriores à sua admissão
em uma coleção) drenados e reciclados pelo pesquisador e reorientados para assumir a função
de significar o tempo, e não exemplificar o tempo, tornando-se um objeto-portador-de-
sentido, um semióforo (1993: 19).
A partir dessa compreensão, Menezes conclama que seria tarefa do museólogo
comunicar ao público de uma exposição histórica – enquanto laboratório da história – a
respeito dessa historicidade do objeto material e a transformação que este sofre devido ao
Tempo e igualmente devido a sua alteração de contexto – como sua retirada do cotidiano
histórico para uma coleção. Dessa maneira, um ensino crítico da História através dos museus
históricos deveria ter como objetivo revelar o fetiche – ou a costumeira naturalização de
valores sociais – em relação a objetos matérias (1993: 26), procurando incutir no público uma
espécie de autoconsciência a respeito desses processos de atribuição simbólica realizadas
cotidianamente, ao mesmo tempo em que expõe o cuidado de não considerar estes objetos e
suas atribuições simbólicas enquanto representações de processos sociais dinâmicos, mas sim
como vetores desses fenômenos (1993: 39).
Nesse sentido, Ramos vem concordar com essas perspectivas ao propor uma
necessidade de preparo cognitivo e educacional dirigida ao público no intuito de ajudá-los a
perceber a historicidade dos objetos e os sentidos expostos numa narração museológica, feito
não somente através da própria exposição, mas também de uma pedagogia do objeto. Através
de um diálogo com Paulo Freire, teorizou a respeito daquilo que chamou de objeto gerador,
sendo ele um trabalho pedagógico que partiria de objetos materiais do cotidiano (ou presente)
do público, procurando dialogar sobre seus usos práticos e simbólicos e suas atribuições em
variados contextos do cotidiano, para depois partir para uma análise similar dos objetos
considerados históricos. Assim, o interesse do museólogo deveria ser o de sensibilizar os
visitantes para uma maior interação com a exposição do museu, despertando-os para uma
multiplicidade do real que pode ser observada não somente através da história dos objetos,
mas da história nos objetos (RAMOS, 2004: 20-21).

...

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No interesse de tornar a História enquanto um conhecimento que não signifique saber


o que aconteceu e sim ampliar o conhecimento sobre a nossa própria historicidade (RAMOS,
2004: 24), entendendo o homem no contexto de suas relações sócio-culturais enquanto
misturadores de tempo (2004: 36), que a investigação da cultura material e patrimonial não é
senão procurar compreender uma teia de categorias de pensamentos por meio das quais nos
percebemos individual e coletivamente (GONÇALVES, 2007: 29), e tendo em vista que
ensinar história não poderia ser outra coisa que não ensinar a fazer história (MENEZES,
1993: 40), propomos que essa espécie de conhecimento histórico abre-se aos questionamentos
da atualidade “pós-moderna” à qual se refere Hartog nas problemáticas inicialmente
comentadas.
Propondo o museu enquanto locais para se evidenciar a historicidade dos objetos
(i)materiais – a multiplicidade do real e seus processos de atribuição simbólica –,
compreendemos que as considerações museológicas articuladas aqui parecem possuir uma
qualidade assertiva interessada em discriminar a pluralidade de temporalidades envolvidas na
narratividade historiográfica, sem, entretanto, procurar fazer de uma delas a soberana da
outra. Assim, julgamos que essa posição analítica parece ir ao encontro da resposta de Hartog
ao problema proposto sobre o Tempo na narrativa historiográfica – e da qual teriam nascido
suas instrumentalizações teóricas dos regimes de historicidade –, ao considerar em parte as
categorias meta-históricas de “experiência” histórica e “expectativa” de passado e futuro dos
sujeitos históricos em sua relação com a cultura material que os cerca, constitui e aponta
sentidos e significados nos variados contextos de sua vida social.

BIBLIOGRAFIA:

GONÇALVES, José R. S. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios.


Garamond: Rio de Janeiro, 2007.

HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. (In) Varia Historia. Belo Horizonte: Vol 22, n 36:
p 261-273, jul/dez 2006.

_________________. Regime de Historicidade. (In) KVHAA Konferenser 37: 95-113


Stockholm 1996.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 489

MENEZES, Upiano B. de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição


museológica e o conhecimento histórico. (In) Anais do Museu Paulista. São Paulo: O Museu,
1993.

RAMOS, Francisco R. L. A danação do objeto: o museu no ensino de História. Argos


editora: 2004.

ROCHA, Antonio Penalves. F. Braudel: Tempo histórico e civilização material. (in) Anais do
museu paulista. São Paulo. N. Ser. V3. P 239-249 jan/dez. 1995.

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A ASSEMBLÉIA DE DEUS É NOSSA!: O EMBATE ENTRE A LIDERANÇA


BRASILEIRA E OS MISSIONÁRIOS SUECOS NA CONVENÇÃO DE 1930

Wesley Américo Bergamin Granado de Paula


Mestrando em História Social-UEL
Orientador: Prof. Dr. Alfredo dos Santos Oliva

Palavras-Chave: Religiões no Brasil; Pentecostalismo no Brasil; Assembléia de Deus.

O rápido crescimento verificado nas regiões Norte e Nordeste impulsionaram a


propagação da mensagem pentecostal assembleiana nas regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste
na metade da década de 1920 em diante. Este movimento de ida dos missionários,
principalmente os de nacionalidade sueca, para as regiões Sudeste e Sul do Brasil se deveu
principalmente ao processo de institucionalização da igreja e ao processo de formação de
identidade, como igreja autóctone, na região Norte-Nordeste. Vale lembrar que a propagação
do pentecostalismo assembleiano, se deve principalmente ao “crescimento aleatório da
igreja”, através das pessoas que freqüentavam os encontros do movimento e que partiam rumo
a sua terra para pregar as mesmas experiências aos seus familiares. Além disso, o declínio do
surto da borracha no Norte na década de 1910 foi fundamental para a propagação da
mensagem, pois muitos migrantes nordestinos voltaram à terra natal no Nordeste
testemunhando sobre a mensagem pentecostal iniciada com Daniel Berg e Gunnar Vingren
em Belém, no Pará, em 1911. Com o vasto crescimento aleatório, os missionários suecos
receberam inúmeras cartas pedindo o envio de pastores ou pregadores para muitas igrejas que
estavam se formando por todo eixo Norte-Nordeste. Sem líderes suficientes, os missionários
suecos foram obrigados a consagrarem obreiros e pastores nativos em larga escala e enviá-los
as regiões necessitadas de pastores. Apesar disso as grandes igrejas, principalmente as
instaladas nas capitas no Norte-Nordeste, ficaram durante alguns anos sob domínio dos
missionários suecos, casos de Vingren em Belém, Samuel Nyström em Manaus, Joel Carlson
em Recife e Otto Nelson em Maceió.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 491

Embora ainda houvesse domínio sueco em algumas igrejas, os brasileiros estavam


conquistando o seu espaço na liderança, mas sempre supervisionados pelos suecos, o que
demonstra a insegurança destes com os líderes nativos, afinal este movimento estava se
projetando com uma das maiores instituições religiosas no Brasil, expandindo o número de
igrejas por todo território tupiniquim, que vale ressaltar, é de proporções continentais.

Até 1930, eram os missionários suecos que lideravam ou supervisionavam


todas as Assembléias de Deus no país. Nenhum trabalho aberto pelos
missionários havia recebido autonomia, mesmo sendo boa parte das igrejas
do Norte e Nordeste dirigida por pastores nacionais. (DANIEL, 2004, p.22)

Além desta liderança exercida sobre os pastores nacionais, os missionários suecos


realizaram, durante a metade da década de 20 e sob a liderança de Gunnar Vingren, encontros
com a liderança sueca, chamado de Conferência Pentecostal do Brasil. Essas conferências se
limitavam apenas a liderança sueca:

O ano de 1926 foi também um ano de muita importância para o trabalho do


Senhor no Rio de Janeiro. A pequena igreja crescera e já contava algumas
centenas de membros. E logo se formou um centro do movimento
pentecostal brasileiro. Por isto foi realizada nesse mesmo ano a primeira
Conferência Pentecostal no Brasil. Foi no mês de julho, nos dias 17 a 25.
Todos os missionários que trabalhavam no Brasil vieram assistir a
Conferência. Estiveram presentes Gustavo Nordlund, do Rio Grande do Sul;
Gunnar Vingren, do Rio de Janeiro; Otto Nelson, de Alagoas; Joel Carlson,
de Pernambuco; Nels J. Nelson e Samuel Nyström, do Pará; Gunnar
Svensson, da Argentina, e também o pastor A.P. Franklin, que veio
diretamente da Suécia. A importância dessa Conferência para o futuro do
trabalho foi muito grande. (VINGREN, 2007, p.145)

Ao término de 1929, Vingren fez uma viagem aos Estados nordestinos. Ele
visitou uma Conferência em Recife, nos dias 10 a 17 de outubro, realizada
na igreja dirigida pelo irmão Joel Carlson. (VINGREN, 2007, p.154)

Isso começou a causar incômodo entre os pastores brasileiros, pois estes não
participavam das grandes decisões acerca dos rumos da igreja, até porque alguns missionários
suecos, principalmente Vingren já estavam no Sudeste e Sul do Brasil neste momento. Com a
ida de muitos missionários suecos para o eixo Sul-Sudeste, os obreiros nativos estavam
esperançosos quanto a uma maior participação sobre as igrejas do eixo Norte-Nordeste.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 492

Assim, por direção do Espírito Santo, ele decidiu-se mudar definitivamente


para o Rio de Janeiro. Depois de comoventes cultos de despedida na igreja
de Belém, a mesma que ele começara e edificara durante muitos anos,
Vingren viajou com a família no dia 21 de maio de 1924, e chegou ao Rio
em 3 de junho daquele mesmo ano. (VINGREN, 2007, p.133)

Em 1921 houve uma pequena reunião na Vila de São Luiz, localizada no município
de Igarapá-Açu, no Pará, local estratégico de ligação entre a igreja-mãe, em Belém, e os
demais trabalhos edificados na estrada de ferro Belém-Bragança. Nesta reunião participaram
obreiros e pastores nacionais, com a participação de missionários suecos, casos de Samuel
Nyström, e tiveram em pauta questões sobre evangelismo e esclarecimentos bíblicos. Embora,
os obreiros nacionais tenham participado da reunião, esta não passou de um acontecimento
isolado, pois a supervisão sueca em relação aos trabalhos conduzidos por pastores brasileiros
era notável, não permitindo poder de decisão para estes. Além disso, as Conferências
Pentecostais realizadas apenas com a participação dos missionários suecos colocaram ainda
mais o desejo dos obreiros nacionais em participar das reuniões.

Antes da Convenção de 1930, só os missionários se reuniam para decidir o


andamento do Movimento Pentecostal. Os pastores brasileiros eram apenas
comunicados das resoluções e as implementavam[...]Após 18 anos de
Movimento Pentecostal no Brasil, sentindo a necessidade de terem maior
liberdade na condução dos trabalhos já estabelecidos nas regiões Norte e
Nordeste, os obreiros nacionais se reuniram de 17 a 18 de fevereiro de 1929,
em Natal(RN), para tomarem uma decisão. Ao final da reunião, resolveram
marcar um outro encontro, também em Natal, mas desta vez reunindo tanto
os pastores nacionais como os missionários suecos. O objetivo era expor aos
missionários o desejo de ganharem autonomia[...] Não havia nenhuma
intenção dos obreiros nacionais em dividir o Movimento Pentecostal. Eles
desejavam apenas mais autonomia, e instaram para que não fossem mal
compreendidos. (DANIEL, 2004, p.23)

O fato é que havia problemas entre os missionários suecos e os pastores brasileiros


em alguns lugares onde a igreja já havia se estabelecido. Obviamente que as histórias oficiais
tentam amenizar o problema, dizendo que tudo foi “guiado pelo Espírito Santo e tudo correu
da melhor maneira possível”, mas o que pode se constatar foi um período de tensão acerca
deste momento entre missionários suecos e pastores brasileiros:

Algumas dificuldades haviam surgido quanto à direção do trabalho. Não era


de admirar que houvesse aparecido divergências, uma vez que os irmãos
brasileiros possuíam opiniões e experiências diferentes. Embora os obreiros
nacionais tivessem sido muito abençoados pelo Senhor na sua chamada e

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 493

tarefa, haviam surgido dificuldades que se acentuaram quando a


responsabilidade do trabalho foi sendo transferida, paulatinamente, dos
missionários para os obreiros brasileiros, apesar de a obra ter sido realizada
com plena compreensão e harmonia entre as partes. (VINGREN, 2007,
p.161)

Estas divergências foram acentuadas pelos pastores brasileiros no texto em que


comunicam e convocam todos para uma reunião em Natal no ano de 1930, certamente para
resolver problemas que estavam surgindo no movimento, principalmente as divergências em
torno dos pastores brasileiros e os missionários suecos. Este descontentamento dos pastores
brasileiros e a projeção de mudanças em 1930 haviam ganhado mais força em 1929, quando
os pastores brasileiros se reuniram também na cidade de Natal, na igreja local, para tomarem a
seguinte decisão: a de propor a condução dos trabalhos do Norte-Nordeste sob a direção
deles. Vejamos o teor da carta dos pastores brasileiros, convocando esta que seria a primeira
Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil com a participação de toda a liderança
assembleiana.

Tivemos pela graça de Deus a inspiração da necessidade urgente de uma


Convenção Geral(...) para resolverem certas questões(...) Todos nós sabemos
a crise por que, como uma dura prova, passou a Assembléias de Deus neste
paiz e não podemos nos conformar com estado de coisas(...) temos em vista
convidar todos os obreiros por meio deste manifesto(...) Deve começar no
dia 12 do referido mez e se não precisamos o termino da mesma Convenção,
é porque achamos justo deixar ao arbítrio das necessidades e circunstancias
da ocasião(...) pois só assim será possível remover certos obstáculos que
podem embaraçar a causa do Nosso Senhor Jesus Christo(...) Francisco
Gonzaga, Cicero Lima, Antonio Lopes, Ursulino Costa, Napoleão de
Oliveira Lima, José Barbosa, Francisco Cesar, Nathanel G. Figueiredo,
Pedro Costa. (ALENCAR, 2000, p.111)

Aliás uma fotografia oficial da Convenção de 30, realizada na cidade de Natal, nos
chama a atenção, pois nos remete para uma série de interpretações, dentre elas estas
divergências entre brasileiros e suecos.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 494

Fonte: DANIEL, 2004, p.20-21

Não entrarei em detalhes quanto à análise da fotografia, até porque este não é a
proposta central do trabalho, mas apresento-a para as diversas interpretações acerca do
mesmo. Entretanto, não posso ocultar alguns detalhes desta foto em relação ao momento e ao
ambiente daquele período nas Assembléias de Deus do Brasil. Primeiramente, observa-se que
todos os pastores e obreiros brasileiros estão, ou abaixo ou às margens em relação aos
missionários suecos que estão juntos ao centro. Seria isto uma demonstração da falta de
unidade nesta Convenção? Ou ainda uma demonstração de dissidência em relação aos suecos
por parte dos pastores brasileiros? Ou ainda uma demonstração de superioridade e de
liderança por parte dos missionários suecos e submissão dos pastores brasilerios? Ou ainda a
manifestação da liderança autóctone das Assembléias de Deus no Brasil, com os pastores
brasileiros sendo colocados a frente dos missionários suecos?

Gunnar Vingren, um dos pioneiros do movimento no Brasil e o grande representante


da Assembléia nos seus primeiros anos, percebeu, assim como outros missionários suecos, a
possibilidade de enfrentamentos na Convenção de 1930 com os líderes brasileiros. A

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 495

possibilidade de acontecer uma dissidência preocupavam os missionários suecos, pois sabiam


que os líderes brasileiros eram fundamentais para a propagação da mensagem pentecostal
assembleiano. Uma divisão desta magnitude neste momento poderia ser catastrófica para o
planejamento dos missionários suecos sobre a expansão do movimento e sobre as igrejas já
estabelecidas no eixo Norte-Nordeste. Alguns líderes brasileiros tinham grande respeito e
admiração dos fiéis que dirigiam. Dessa forma, enfrentar os líderes brasileiros certamente não
seria uma resolução eficiente para o problema. Como o ambiente entre missionários suecos e
pastores brasileiros estava abalado, Vingren decidiu convidar um líder que seria respeitado
por ambos os lados, por isso foi feito o pedido para a ida ao Brasil do pastor Lewi Pethrus,
pastor sênior da Igreja Filadélfia de Estocolmo, na Suécia, que colaborou com o movimento
pentecostal assembleiano no Brasil nos primeiros anos até sua consolidação. Entretanto,
parece-nos que os missionários suecos, desconfiados da proposta dos pastores brasileiros na
Convenção de Natal, pensaram ser a presença de Pethrus um grande trunfo para que, talvez,
os brasileiros desistissem da idéia de assumir a liderança das regiões Norte- Nordeste. O fato
é que a reunião aconteceu em Natal e a figura de Lewi Pethrus foi essencial para a decisão da
Convenção. Mas afinal, foram ou não entregues as igrejas do Norte e Nordeste nas mãos dos
pastores brasileiros?
Vejamos uma situação interessante acerca deste assunto. É certo que os missionários
queriam ter um domínio sobre as igrejas abertas em vários lugares. Tanto é que, como
dissemos anteriormente, eles tomavam as decisões e só comunicavam os pastores brasileiros.
Além disso, supervisionavam os trabalhos, principalmente quando estavam nas mãos de
pastores brasileiros. Entretanto, a igreja Filadélfia de Estocolmo, era uma igreja, livre,
congregacional e pentecostal, ou seja seus trabalhos tinham uma certa autonomia. O fato é
que Lewi Pethrus afirma em um de seus relatos de que os missionários suecos estão sendo
acusados de institucionalizar uma denominação, centralizando o poder em Belém e
especificamente na figura de três missionários:

“Durante os últimos anos, temos sido enganados aqui na Suécia com a


notícia de que os missionários e a missão no Brasil estavam organizados
numa denominação bastante forte. Quem nos disse isto mencionou que a
sede da organização estava no Pará, e que no princípio consistia somente de
três missionários, mas que depois se estendeu, dominando a obra em todo o
Brasil. Os missionários no Brasil estão, quando se trata de assunto de
organização, inteiramente no mesmo ponto de vista que as igrejas livres da

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 496

Suécia. Todos expuseram a sua perfeita aprovação sobre o pensamento


bíblico de igrejas locais livres e independentes. É certo que entre as quais
deve haver colaboração espiritual, mas sem seguir este modelo do qual os
missionários agora tinham sido acusados de seguir, e até de praticar uma
organização eclesiástica em nível nacional”. (VINGREN, 2007, p.178)

Embora, a proposta dos missionários suecos, não incluísse boa parte dos Estados do Norte e
Nordeste, o fato dos pastores brasileiros liderarem algumas igrejas e trabalhos da região já era
um grande feito. Certamente, esta liderança nas outras regiões seriam repassadas aos
brasileiros gradativamente. Mas Gedeon Freire de Alencar nos chama a atenção para uma
situação. Os brasileiros pretendiam assumir os trabalhos do Norte e Nordeste, pois as
principais igrejas da Assembléia de Deus estavam estabelecidas nestes territórios e, além
disso, os brasileiros queriam maior participação nas decisões sobre a igreja, o que vai ao
encontro com a tese sociológica de Francisco Cartaxo Rolim, de que boa parte das conversões
de católicos para o pentecostalismo, era devido a uma maior participação no culto e na igreja,
ou seja, havia uma função a ser exercida, seria um membro ativo na obra pentecostal e não
apenas um mero observador e participante periférico da igreja, como era no catolicismo
(ROLIM, 1985, p. 160-162). O fato é que as principais igrejas, ou segundo Alencar, as fortes
igrejas do Norte e Nordeste ainda permaneceram, em boa parte nas mãos dos missionários
suecos. Fato é que as duas principais igrejas daquela época na região Norte-Nordeste, Belém e
Recife, ficaram sob liderança dos missionários suecos. Vejamos uma tabela, disponibilizada
por Gedeon Freire de Alencar, através de acesso ao Mensageiro da Paz, periódico oficial das
Assembléias de Deus, no ano de 1931:

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TABELA 1: “Igrejas Séde” e pastores em 1931 (ALENCAR, 2000, p.95)

MENSAGEIRO CIDADE PASTOR PASTORES PASTORES


ESTRANGEIROS NACIONAIS
DA PAZ

12 IGREJAS “SÉDE”

1.Rio de Janeiro Gunnar Vingren


01/12/30 2.Bello Horizonte Nills Kastberg
3.Recife Joel Carlson
4.Maceio Algot Svenson
5.Natal Francisco Gonzaga
07 05
6.Parayba do Norte Cícero de Lima
7.Maranhão Manoel Cezar
8.Mana’os José Moraes
9.Santos John Sorheim
10.Pará Nels Nelson
58,3% 41,7%
11.Curityba-Paraná Bruno Skolimowsky
12.Bahia Otto Nelson

14 IGREJAS “SÉDE”

Bello Horizonte Clímaco Bueno Aza


01/01/31 Porto Alegre Gustavo Nordlmed 09 05
São Salvador-Bahia Otto Nelson
S. Paulo Samuel Nyströn
64,3% 35,7%

15 IGREJAS “SÉDE”

Nichteroy- Estado de Samuel Heldlum 10 05


15/01/31 Rio 66,7% 33,3%

16 IGREJAS “SÉDE”

Fortaleza- Ceará Antonio Rego Barros 11 05


15/08/31 Bello Horizonte Nills Kastberg 68,7% 31,3%

15/11/31 Maceio Antonio Rego Barros 09 06


Fortaleza Julião Silva 56,3% 43,7%

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 498

Observa-se que de todos os Estados, propostos pelos missionários suecos, onde


a obra destes seria entregues aos obreiros nacionais, dois não cumprem como combinado. E
coincidentemente ou não, são as duas principais igrejas das regiões Norte-Nordeste: Belém, a
igreja-mãe, onde tudo começou e Recife, onde a igreja crescera de maneira vertiginosa. A
primeira era pastoreada por Nels Nelson quando fora tomado à decisão na Convenção de
1930, em Natal, mas Nels Nelson continuou a frente do trabalho até 1950. Vale ressaltar o
relato acerca desta decisão de manter Nels Nelson como pastor presidente da Igreja de Belém,
mesmo com a decisão da Convenção de 1930 em entregar gradativamente a lideranças das
igrejas dos eixos Norte-Nordeste aos pastores brasileiros:

Na prática, isso significava que o missionário Nels Nelson deveria deixar o


pastorado da Igreja em Belém. Assim, em virtude dessa decisão
convencional, o pastor Josino Galvão de Lima foi designado para assumir o
pastorado da Igreja-Mãe. Ao chegar a Belém, Josino foi recebido pela igreja
em 10 de novembro como pastor-auxiliar e possível substituto de Nels
Nelson, quando este tivesse que se retiar para o Sudeste do País. No entanto,
os anciãos da igreja não aceitaram a saída do seu pastor, pois entendiam que
o seu tempo ainda não havia terminado à frente do pastorado na igreja.
Então, na noite de 03 de fevereiro de 1931, os anciãos e os diáconos se
reuniram, contando com a presença do pastor Josino Galvão de Lima, e
decidiram propor ao missionário Nels Nelson que ficasse no Pará e
continuasse como pastor da igreja, enquanto o irmão Josino ficaria como
pastor-auxiliar. Era uma franca reação aos acordos convencionais de Natal.
(HISTÓRIA DA IGREJA-MÃE, 2007, p. 90)

Além da igreja de Belém, que era sem dúvida importante na região Norte- Nordeste,
com várias congregações espalhadas, a outra igreja localizada em Recife era de extrema
importância pelo seu tamanho e pelo seu crescimento:

A Convenção de 1932 ocorreu no templo-central da Assembléia de Deus em


Recife, liderada pelo missionário Joel Frans Adolf Carlson. O templo,
considerado naqueles dias um dos maiores do país, fora inaugurado em 15 de
abril de 1928 e durante 50 anos seria o templo-central da Assembléia de
Deus pernambucana. Na época, a igreja em Recife tinha mais de 1,5 mil
membros. (DANIEL, 2004, p.57)

Desse modo, podemos indagar, assim como nos alerta Gedeon Freire de Alencar: será
que estes trabalhos em alguns Estados do Norte-Nordeste foram realmente entregues
totalmente aos brasileiros ou havia uma desconfiança e preocupação por parte dos
missionários suecos. Em relação a esta indagação, há um relato interessante sobre a decisão

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 499

da Convenção de 1930, de que “dado o amadurecimento dos pentecostais brasileiros, a


partir desta data(1930), cada igreja terá como presidente um pastor brasileiro, ainda que
permaneça supervisionada por um missionário estrangeiro”1(HISTÓRIA DA IGREJA MÃE,
2007, p.90).

Enfim, o que podemos afirmar certamente através do quadro e dos relatos é que a
decisão convencional de 1930 de entregar alguns campos evangelizados nas mãos dos
pastores brasileiros, fez com que boa parte dos missionários que chegavam da Suécia e
principalmente aqueles que já estavam no Brasil trabalhando no eixo Norte- Nordeste,
migrassem para o Sudeste, Sul e posteriormente para o Centro-Oeste do Brasil,
principalmente nas décadas de 30 e 40. Além disso, é relevante a constante participação dos
suecos nas decisões das Assembléias de Deus até meados da década de 1950. Contudo,
observa-se também o respeito que os pastores brasileiros foram conquistando enquanto líderes
nativos da denominação, tornando-se os grandes líderes em meados da década de 1940 e
início da década de 1950. Essa dominação dos pastores nordestinos e nortistas é perceptível
ainda hoje, quando analisamos a vida dos líderes da Convenção Geral das Assembléias de
Deus do Brasil, principalmente na figura do presidente José Wellington Bezerra da Costa,
nordestino e integrante da “velha guarda assembleiana”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALENCAR, Gedeon Freire. Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, todo louvor a
Deus: Assembléia de Deus- origem, implantação e militância(1911-1946). 2000. Dissertação
(Mestrado Ciência da Religião) Universidade Metodista de São Paulo, São Bernando do
Campo.

BERG, Daniel. Enviado por Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.

DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de
Janeiro: CPAD, 2004.

HISTÓRIA DA IGREJA-MÃE DAS ASSEMBLÉIAS DE DEUS NO BRASIL. 7.ed. Belém:


Editora Assembléia de Deus de Belém, 2007.

VINGREN, Ivar. Diário do pioneiro. 13.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2007

1
É interessante o fato de este relato ser uma citação, e o autor de tal afirmação não ser mencionado no livro que
o referencia.

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12 a 15 de Outubro de 2012
ST 08 – HISTÓRIA: COTIDIANO, SABERES E
PRÁTICAS TRADICIONAIS
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 501

ESPAÇOS DE FORMAÇÃO DOCENTE: O LISO E O ESTRIADO NO CAMPO DO


ENSINO DE HISTÓRIA

Claércio Ivan Schneider (História – Unicentro/I)

Palavras chave: formação docente; espaço liso; espaço estriado; ensino de história.

Neste texto colocam-se em evidência os papéis formativos dos sujeitos no campo


educacional, objetivando problematizar os espaços que intermedeiam a relação entre a
formação docente e as perspectivas de ensino de História. Como entender os espaços, as
linhas, as direções e as dimensões que implicam direta e indiretamente na formação dos
docentes em História? O que permanece e o que modifica na natureza do percurso dessa
formação? De que forma os valores tradicionais e tecnológicos, entre os sujeitos e a
instituição, são misturados, urdidos ou antagonizados neste ou por este processo?

Há uma constante tensão entre a lógica docente e a discente. Espaços, perspectivas,


interesses e subjetividades superpõem-se, situando professores e discentes em campos que ora
se aproximam ora se opõe entre o respeito e a crença às regras institucionais ou a indisciplina
e a busca pela quebra das hierarquias. No cotidiano escolar, questões socioculturais são
engendradas nas experiências dos sujeitos na e a partir da Instituição, seja ela pública ou
privada. As tensões demarcam posições características que remetem as posturas do professor
de um lado, aluno de outro; o ensino de história de um lado e o saber discente de outro; a
instituição de um lado, os estudantes de outro.

Direta ou indiretamente, estas formas dualistas de situar os papéis dos sujeitos e as


regras na universidade correspondem à distinção que Gilles Deleuze e Félix Guattari
constroem na obra Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia entre o que identificam como
espaço estriado e espaço liso e que para este texto se torna substancial discussão teórica para
se lidar com os problemas acima destacados. A conceituação possibilita refletir duas formas
de se situar no campo de formação universitária: de um lado a do professor, investido pelas
regras institucionais, que caracteriza o espaço estriado; de outro, os discentes, sujeitos cujas
lógicas transgridem, ameaçam, zombam ou mesmo colocam em xeque o sentido institucional

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 502

do ensino que recebem ou que são alvos. Estes são entendidos no espaço liso, caracterizado
pela “ausência” das regras, que implica resistência e descrença para com a instituição. Nas
palavras dos autores:

O espaço liso e o espaço estriado – o espaço nômade e o espaço sedentário –


o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o espaço instituído pelo
aparelho de Estado – não são da mesma natureza. Por vezes podemos marcar
uma oposição simples entre os dois tipos de espaço. Outras vezes devemos
indicar uma diferença muito mais complexa, que faz com que os termos
sucessivos das oposições consideradas não coincidam inteiramente. Outras
vezes ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças
às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido
num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido,
devolvido a um espaço liso (1997: 157-58).

É possível perceber que os espaços não se comunicam entre si da mesma maneira,


embora se misturem. Esta complexidade que faz com que os dois espaços se comuniquem,
entre oposições e misturas, é identificado no meio educacional. Tensão que perpassa por
todos os graus de formação e que implicam posturas que, como será visto, parece reverter as
posições no espaço. Em outras palavras, o campo educacional de formação docente agrega
dimensões que urdem os espaços, fazendo com que docentes e discentes percorram espaços
lisos e estriados concomitantemente, em prol da formação multicultural. Nesse sentido, por
mais que os acadêmicos sejam disciplinados, vigiados e instruídos pelos professores
“técnicos” às regras institucionais, a permanência de valores e atitudes “marginais” superpõe-
se à organização imposta pelo Estado. Assim, o controle não é eficaz, até mesmo porque os
currículos também abrem brechas como formas de resistências discentes e mesmo docentes.

O espaço estriado, entendido como o espaço institucional, é dirigido e modificado


segundo a natureza do percurso. Em se tratando do campo educacional, principalmente na
área de formação do docente em História, os currículos, entendidos como mapas ou roteiros
de viagem, que são os instrumentos do espaço estriado, institucionalizado, identificam um
percurso mensurável. O discente, no entanto, embora consciente do percurso estriado,
mantem um espaço de intensidade, de valor e de interesse incerto, afrontando entre o liso e o
estriado. A universidade, nesse sentido, não significa espaço estriado por natureza, uma vez
que nela ocorrem os dois espaços, o liso e o estriado, que se comunicam, se contaminam, não
necessariamente são opostos. Por questões como esta, a universidade, apesar da intenção
uniformizadora e das ferramentas de estrialização (regras, estatutos, currículos) dominante de

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 503

seu espaço, continua abrindo brechas para os estudantes preservarem os espaços lisos.
Impossível neutralizar ou estrializar este sujeitos em sua completude.

Em meio a esta discussão que intermedeia a relação entre os espaços dos sujeitos no
campo educacional, é fundamental compreender os diferentes sentidos que a educação, o
ensino de História e a formação de professores implicam na atualidade. Este texto busca
mapear a natureza e as implicações dos afrontamentos que caracterizam este universo
relacional. A construção de uma sociedade participativa pautada no respeito à multiplicidade
de manifestações e sentidos é um compromisso que extrapola os espaços formativos e que
sugere novas formas de investimentos de sentidos, de subjetividades, de sensibilidades no
espaço do saber fazer histórico. Naura S. C. Ferreira no artigo Repensando e ressignificando a
gestão democrática da educação na ‘cultura globalizada’ discute com propriedade as
características da contemporaneidade e a necessidade de se pensar e de se ressignificar a
formação de profissionais da educação e da gestão educacional. Segundo a autora:

Aprender de forma medíocre é mediocrizar quem aprende, pela


absolutização do conteúdo da informação. É desumanizar o ser humano na
aquisição da sua “segunda natureza” mediocrizada. É uma “semiformação”
que gera um outro tipo de “formação” que bem poderia ser chamada de
deformação, pois produz a esquizofrenia pessoal e social (2004: 1236).

A banalização, entendida como despreocupação com as questões políticas, sociais e


culturais, aparece como um sintoma crônico de uma sociedade que a autora percebe como
resultante de uma construção midiática voltada à promoção do consumo, do hedonismo e do
narcisismo como fórmula do sucesso. Banaliza-se a vida e também a morte. De outro lado,
àqueles que não têm acesso a este mundo do “fascínio” tecnológico, gera-se uma violência
das “faltas de”, que causam indignidade, ódio, miséria, discriminação, intolerâncias. E o que
resta? Insegurança, vazio, medo, angústia, terror, solidão. Restou a produção, em massa, de
mercadorias que coisificam as pessoas e personalizam as coisas (FERREIRA, 2004: 1235).

A mediocridade se tornou característica principal na fórmula de um ensino tecnicista


que deixou de privilegiar a dimensão humana na prática formativa, entendida como
“deformação”, haja vista a constituição de um mundo globalizado construído como fetiche, no
qual às relações ético-políticas se coadunam na promoção de uma única perspectiva neoliberal
de sociabilidade humana viável, entendida como “nova era do mercado”, cada vez mais
individualista e utilitarista (FERREIRA, 2004: 1230).

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 504

Neste universo estriado pelo mercado e pelos órgãos promotores das políticas
públicas, a educação e a formação de profissionais da educação aparecem reduzidas ao
economicismo do emprego e da empregabilidade, da eficiência e da eficácia, da
competitividade, da produtividade e consequente entropia da formação humana e da
cidadania (FERREIRA, 2004: 1231). Banaliza-se a realidade concreta, as diferenças, os
espaços lisos constituintes de uma sociedade que atende cada vez mais a qualificações e
capacitações mais elevadas, no entanto, desprovidas do alicerce da ética humana. Por isso:

Mais do que nunca se faz necessário humanizar a formação e as condições


de trabalho e de existência dos profissionais da educação. Mais do que nunca
se faz necessário ressignificar a gestão da educação a partir de outra ética,
que permita fazer frente aos desafios constante da “cultura globalizada” na
“sociedade transbordante”, “insatisfeita”, constituída por “ressentimentos” e
de exacerbação do individualismo (FERREIRA, 2004: 1231).

Ressignificar se torna palavra chave para a educação. Nesse sentido, Naura defende o
investimento em uma gestão democrática que implica na formação de profissionais da
educação fundamentados na ética da cidadania. Cidadania compreendida como soberania e
autoconsciência e não dependência, alienação e subserviência. Cidadania que se dará pelo
conhecimento. Assim:

O estatuto e o valor da formação para a cidadania, hoje, necessitam se


constituir de todos os elementos e recursos que permitam ao novo cidadão
ter possibilidade de trânsito entre as culturas dos diferentes povos. E transitar
com uma compreensão democrática de respeito a todas as diferenças e com a
permanente possibilidade de acesso aos recursos necessários a essa
formação, e que esta se assente em uma nova “ética humana” alicerçada na
solidariedade e na justiça social, no respeito às diferenças e aos direitos de
todos (FERREIRA, 2004: 1239).

As questões destacadas por Ferreira apontam para a necessidade da construção de uma


nova gestão educacional que acata e respeita o multiculturalismo. Nesse sentido, novas
práticas, novos currículos, novos sentidos devem ser agregados à formação dos docentes.
Como gestores, que tomam decisões, que organizam e que dirigem, os profissionais da
educação tem a responsabilidade com o social, o que implica o exercício do diálogo e a
compreensão das contradições.

Diálogo como fraternização de idéias e de culturas que se respeitam porque


constituem diferentes produções humanas. Diálogo como verdadeira forma
de comunicação humana, na tentativa de superar as estruturas de poder
autoritário que permeiam as relações sociais e as práticas educativas a fim de
se construir, coletivamente na escola, na sociedade e em todos os espaços do

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 505

mundo, uma nova ética humana e solidária. Uma nova ética que seja o
princípio e o fim da gestão democrática da educação comprometida com a
verdadeira formação da cidadania (FERREIRA, 2004: 1242-43).

O compromisso da gestão democrática da educação, na perspectiva de Ferreira, deve


estar pautado na conquista da cidadania. O diálogo, nesse sentido, parece se constituir em
uma via privilegiada no sentido de humanizar a formação. Mas será que se o conceito de
cidadania, quando ligada à realidade presente no universo de ensino e de formação docente,
realmente se faz presente? Será que o discurso e a prática de uma cidadania estriada,
institucionalizada, atende os direitos das comunidades ou grupos de estudantes
marginalizados, que abraçam causas, modos de vida e sentidos formativos diferenciados?

Em comunicação proferida no Simpósio Internacional sobre a Juventude no Rio de


Janeiro em 2004, José Machado Paes discute as diferentes dimensões do conceito de
cidadania, investindo especial atenção à cidadania participativa como forma de atender os
grupos que tradicionalmente são excluídos dela. Corroborando com o quadro contemporâneo
apresentado por Ferreira, que identifica o descompromisso e o desencanto dos jovens com as
instituições e os modos tradicionais de participação política, Paes, por outro lado, investe no
reconhecimento das diferentes formas de cidadania que os jovens reivindicam a partir de
novas subjetividades e identidades grupais. Na escala do espaço liso, pensando na perspectiva
do discente, o autor demonstra com clareza a afirmação de uma identidade que investe na
auto-imagem, que reivindica o uso livre do corpo, da sexualidade, dos estilos de vida, que
pressupõe variedades de vivências de afeto e de opções de vida. Neste quadro: a hipótese que
se debate é a do exercício da cidadania poder também expressar-se no poder inventivo das
margens que se manifestam insurrectas em relação às estratégias de encerramento e que
ganham todo o seu fulgor nos jogos de abertura (PAES, 2005: 56).

Paes, fazendo referência ao arcabouço conceitual de Deleuze e Guattari, decodifica os


espaços lisos e estriados que caracterizam os jovens na atualidade. Focando especial atenção
às ruas (ao movimento dos brekdancers; rappers; graffiters; skaters etc.) o autor percebe as
diferentes maneiras pelas quais os jovens reinventam e articulam os espaços, entendendo a
cidadania como um movimento de rejeição à cidade planificada a favor da cidade praticada,
como abrigo das manifestações culturais. O conceito de cidadania participada é construído a
partir das relações e dos intercâmbios entre estes espaços, como forma de fluidez de idéias, de
criatividade produzida pelas margens. Assim:

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 506

Sugerimos que as margens podem ser produtoras de resistência, de


criatividade, de formas re-activas de cidadania cultural, que se rebelam
contra formas arcaicas de cidadania imposta. No entanto, se é certo que as
margens culturais de onde emergem as mais criativas culturas juvenis se
podem constituir em territórios de crítica aos poderes estabelecidos, também
podem por estes ser absorvidas, como acontece com boa parte das criações
musicais. Ou, então, converter-se em formas de pura alienação social
(PAES, 2005: 62).

As discussões e problematizações de Ferreira e de Paes são cruciais para pensarmos o


campo de formação docente. As diferentes percepções em torno da noção de cidadania,
estriada e lisa, se coadunam na medida em que ambas reclamam a necessidade do diálogo,
sempre tenso e inconcluso, entre a esfera institucional, formativa, estriada, fechada e a esfera
discente, nômade, marginal, subjetiva, aberta. Novamente com Paes:

O espaço nômade é localizado, não limitado. Limitado é o espaço estriado


que Deleuze e Guattari denominam de “global relativo”: é um espaço
limitado em suas partes, às que correspondem direções constantes, separadas
por fronteiras; é também um espaço limitador que restringe e exclui. A
cidadania não é exclusiva do “global relativo”. Onde ela se vive em toda a
sua plenitude é no absoluto local – um absoluto que tem sua manifestação no
local. Para Deleuze e Guattari, o absoluto confunde-se com o lugar não
limitado: não se trata de uma globalização ou universalização centradas em
princípios abstratos ou em direitos de Estado; antes, trata-se de uma sucessão
infinita de operações locais que dão lugar a uma cidadania participada
(PAES, 2005: 60).

Para exemplificar esta discussão, toma-se o trabalho do professor Luis Fernando Cerri
Cidade e identidade: região e ensino de história. Neste texto, o autor problematiza a
dimensão espacial no exercício de formação de professores “aprendizes”, o que implica um
olhar para a própria identidade. Segundo ele:

Compreende-se que simplesmente ensinar uma dada História local (a


dominante) ao conjunto dos alunos significaria necessariamente contribuir
com a alienação, no sentido de distanciamento entre sujeito (o aluno) e o
objeto (a cidade e o passado), alienação que seria marcada pelo fato de o
indivíduo assumir uma identidade que objetivamente não é a sua [...]. A
história local deve ser uma composição de pluralidades e experiências
diversas que se encontram num mesmo lugar (a cidade) que entretanto não
as determina, não as congrega, não lhes atribui uma lógica unificada,
obrigatória, terapêutica. A cidade só as reúne (CERRI, 2008: 39-40).

Experiências diversas, entre espaços diversos em diferentes situações. O ensino de


histórias se torna questão central para a composição das identidades pessoais e coletivas. A
questão dos espaços, a pluralidade dos sentidos e as múltiplas experiências que a prática
docente proporciona evidenciam a que o local não está no espaço e sim na experiência dos

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indivíduos (CERRI, 2008: 37). Logo, a história local pode mostrar que não é necessário ou
obrigatório que as histórias se encaixem em uma só lógica: pelo contrário, não há uma
lógica comum a todos os eventos nos vários níveis da atividade humana, mas uma
multiplicidade de sentidos em que a história se desenvolve (2008: 40-41).

Cabe ao docente, e este texto explora em especial o docente de História, compreender


as distâncias e as aproximações que intercruzam o espaço formativo, na tentativa de fomentar
a cidadania participativa, na perspectiva plural, priorizada na dimensão humana. Nesse
sentido, defende-se o direito à igualdade na diversidade das formas de se manifestar, de se
sentir, de se fazer histórias, de se falar. Mas como, no saber fazer docente, esta prática se
tornaria viável? Rui Bebiano, em artigo intitulado “Sobre a poética da história”, oferece e
explora a dimensão poética do saber/fazer histórico na atualidade, que pode ser entendida
como forma de se ressignificar a prática formadora, investindo cada vez mais no plano
subjetivo em detrimento do saber científico. Segundo ele:

Vivemos uma época de heterodoxias, na qual também as formas de produção


do conhecimento do passado e da sua comunicação se recriam, multiplicam
e, mais do que nunca, divergem. Redefinem-se critérios, relativizam-se
conceitos, e ciência deixa, igualmente neste campo, de ser sinônimo de
verdade inquestionável, salientando-se o carácter lacunar, as características
polimórficas e a opacidade dos documentos, reassumindo-se o uso da
narrativa e voltando mesmo, em muitos casos, a afirmar-se uma preocupação
com a vertente artística das suas formas de expressão. Assiste-se igualmente
ao convívio, quase sempre pacífico e silencioso, mas inevitável e pleno de
consequências, entre os historiadores que defendem ou praticam uma
história cientista, que se pretende objectiva e se quer explicativa, e aqueles
outros que desenvolvem experiências de investigação e de escrita que
atribuem um papel decisivo ao elemento subjectivo, à dimensão poética e à
vertente assumidamente interpretativa do seu trabalho (BEBIANO, 2011:
02).

A compreensão que se vê aplicada ao ensino de História e a formação de professores


“aprendizes” pode ser representada a partir desta realidade contemporânea. Grande parte dos
professores de História se identifica ao primeiro grupo apontado por Bebiano, que se
preocupa em defender e em praticar uma história científica, objetiva, explicativa e
conteudista, apoiada quase que exclusivamente em livros didáticos e artigos científicos.
Resultado desta perspectiva que se mantém fechada à renovação de suas ferramentas e
linguagens é a crise que caracteriza a área, evidenciada principalmente no desinteresse
generalizado pela História por grande parte dos discentes secundaristas e universitários. Como
entender esta desmotivação?

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O sentido da educação, os valores e os métodos defendidos por grande parte dos


docentes da área sinalizam para a crise dos paradigmas da História e, consequentemente, do
ensino de História. Perspectivas desatualizadas, práticas já ultrapassadas, apoiadas na ditadura
dos conteúdos e na prisão dos livros didáticos e de artigos científicos, que se tornam manuais
seguros de uma história verdade. Pontos que podem ser ampliados à falta de sensibilidade
histórica e a arrogância de uma pseudo-autoridade docente que privilegia o adestrar, o
disciplinar, o padronizar – o estriar – como estratégias insuperáveis de uma ciência histórica
que, ao invés de questionar, de sensibilizar, de emocionar, de um refletir sobre ação e
transformação, privilegia a inércia, provocando o desinteresse e, por fim, uma forma de ver a
história como objeto “morto”.

Sim, a História que se busca “ensinar”, principalmente nas escolas, parece morta.
Estática, distante da realidade dos alunos, objetiva, reducionista. Não emociona, entedia. Não
sensibiliza, desmotiva. Não provoca indignação, aliena. Não aguça reflexões e nem privilegia
a imaginação. O espaço estriado já não atende às perspectivas de formação que a atualidade
exige. E os discentes estão vivos, sensíveis, emotivos, estão à flor da pele. Formados em uma
perspectiva racionalizadora que atende aos interesses de uma sociedade conservadora,
excludente e adestrados ao mundo do trabalho e do consumo.

Como lidar com estas discrepâncias? Será que o futuro da História nas salas de aula
esta determinado apenas a esta perspectiva estriada de ensino? Porque a história reduzida aos
manuais didáticos, em histórias únicas, ainda escamoteia ou desprestigia realidades diversas,
os espaços lisos, opostos ou distantes aos objetivos oficiais? Até que ponto os professores
contribuem para a perpetuação desta realidade educacional? Por outro lado, como superá-la?
Como valorizar a História por sua poética, função social e humanizadora? A valorização dos
saberes e das práticas tradicionais, a referência aos espaços lisos, sensíveis e subjetivos dos
discentes poderiam se constituir em temas de referência para o ensino da História,
contrastando com os conteúdos de conotação científica usualmente utilizada nas salas de
aula?

É mais que urgente e necessário rever e superar as perspectivas oficializadoras do


ensino e da formação dos docentes em história. Atentar ao caráter plural e dinâmico das
diferentes formas de pensamento e de sentidos construídos na contemporaneidade.
Sobrevalorizar a dimensão multicultural rompendo com a presunção cientista e assumindo

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com freqüência o caráter poético, como tal recorrentemente indeterminado e dependente da


criatividade, da concepção, da escrita e da comunicação em História (BEBIANO, 2011: 02).

Histórias importam. Muitas histórias importam. Mas o ensino de histórias únicas,


estereotipadas, veiculadora de preconceitos e excludentes ainda prevalece na maioria das
escolas e nas universidades. É preciso, nesse sentido, ressignificar a própria performance do
professor de História, compreendido aqui como um ator político que impõem energias e
sentidos na difícil tarefa de instruir jovens expressando ou narrando histórias.

Ensinar histórias também é uma arte. O professor de História lida com a arte histórica,
com a arte de transmitir histórias, com representações da história. O docente pode ser visto
como um ator que interpreta, que transmite e que provoca questionamentos e sentidos
construídos ao longo do tempo e do espaço. Atua sobre textos, imagens, narrativas, fazendo
uso de estratégias para conduzir os alunos a campos possíveis de interpretações. Um público
diverso e heterogêneo, com dificuldades e perspectivas diversas, seduzidos por um mundo
midiático que direciona seus desejos e sentidos para o imediatismo do presente, sempre
incompleto.

Mas num mundo no qual a servidão parece voluntária – se se pensarmos a adesão e


fascínio, quase que irrestrita ao mundo tecnológico, capitalista e consumista – os discentes se
recusam a confiar no professor; pior, muitos o veem como inimigo, como um adversário a ser
combatido. Contradição que pode ser compreendida na medida em que boa parte dos jovens
reclamam cidadanias diferentes daquelas que lhes são oferecidas. A rebeldia, o desrespeito, a
indisciplina representam sintomas de descontentamento e estranhamento dos discentes com
relação às instituições. Os desejos de participação e de protagonismo que a história oficial
lhes nega, podem ser adquiridos a partir de espaços tecnológicos onde assumem a sua
individualidade. Cabe ao professor formador atentar a estes campos, compreendê-los como
constituintes de uma nova realidade que deve ser apreendida.

A importância de se compreender a história a partir da multiplicidade lingüística e


discursiva não se torna apenas uma necessidade metodológica e pedagógica que caracteriza
diferentes dimensões do mundo contemporâneo. Implica atingir um público alvo, no caso
estudantes de História, que se alimentam destas tecnologias reformulando interpretações,

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interrogações e sentidos. Afinal, que sentido podem os discentes dar à história se se sentem
fora ou excluídos dela?

Por tudo isso, um ponto fundamental deve ser destacado para se pensar o campo de
formação docente: da necessidade de outra lógica de compreensão para se lidar com os
problemas da educação. A formação de individualidades estanques definidas segundo
modelos racionais e científicos já não se sustenta para a construção da cidadania participativa.
A razão sentimento, ou o investimento nas subjetividades, nas possibilidades de uma
formação plural, múltipla, se mostra um caminho mais do que urgente. Nesse sentido, o
próprio diálogo que se estabelece entre o local e o global também merece ser redefinido,
apoiados no que Deleuze compreende como multiplicidade, que reforça a idéia de um ensino
que invista nas conexões entre as dimensões, na tentativa de aumentar as possibilidades de
conexões com o mundo. O que deve interessar aos professores, como destacam os autores:

[...] são as passagens e as combinações, nas operações de estriagem, de


alisamento. Como o espaço é constantemente estriado sob a coação de forças
que nele se exercem; mas também como ele desenvolve outras forças e
secreta novos espaços lisos através da estriagem. Mesmo a cidade mais
estriada secreta espaços lisos: habitar a cidade como o nômade, ou
troglodita. Às vezes bastam movimentos, de velocidade ou de lentidão, para
recriar um espaço liso. Evidentemente, os espaços lisos por si só não são
liberadores. Mas é neles que a luta muda, se desloca, e que a vida reconstitui
seus desafios, afronta novos obstáculos, inventa novos andamentos, modifica
os adversários. Jamais acreditar que um espaço liso basta para nos salvar
(DELEUZE, GUATTARI, 1997: 189).

Como já destacado, o espaço institucional de formação docente é um espaço


caracteristicamente estriado. Regulado por regras e procedimentos, por técnicas e condutas
científicas que privilegia, como resultado, a padronização de um saber fazer direcionado às
dinâmicas e interesses estatais do mercado de trabalho. No entanto, o espaço de formação
docente também e fundamentalmente se constitui como espaço liso, exatamente por sintetizar,
principalmente entre os discentes, espaços de afeto, de intensidades e de distâncias que não
podem ser medidas, controladas, haja vista as subjetividades ímpares dos sujeitos envolvidos.
O que não significa espaço se salvação ou libertação. Mas de luta, de resistência, no qual
podem reconstituir desafios, inventar novos caminhos. Nesse sentido são nômades por
manterem um espaço liso.

São nômades por mais que não se movam, não migrem, são nômades por
manterem um espaço liso que se recusam a abandonar, e que só abandonam

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para conquistar e morrer. Viagem no mesmo lugar, esse é o nome de todas as


intensidades, mesmo que elas se desenvolvam também em extensão. Pensar
é viajar [...], o que distingue as viagens não é a qualidade objetiva dos
lugares, nem a quantidade mensurável do movimento – nem algo que estaria
unicamente no espírito – mas o modo de espacialização, a maneira de estar
no espaço, de ser no espaço. Viajar de modo liso ou estriado, assim como
pensar... Mas sempre as passagens de um a outro, as transformações de um
no outro, as reviravoltas. [...] Viajar de modo liso é todo um devir, e ainda
um devir difícil, incerto [...]. É hoje, e nos sentido os mais diversos, que
prossegue o afrontamento entre o liso e estriado, as passagens, alternâncias,
e superposições (DELEUZE, GUATTARI, 1997: 166-67).

Por mais simples que pareça, não é fácil situar a oposição que se apresenta no campo
de formação docente. O que fica evidenciado desta relação nem sempre harmoniosa entre
sujeitos formadores e formandos, ou seja, entre professores e discentes, é a natureza da
disjunção inclusiva, se pensarmos na fórmula deleuziana. Cabe aos professores formadores
“traduzirem” suas experiências objetivando oportunizar aos discentes formas de autonomia
que lhes transformem em protagonistas. Assim:

Traduzir é uma operação que, sem dúvida, consiste em domar,


sobrecodificar, metrificar o espaço liso, neutralizá-lo, mas consiste,
igualmente, em proporcionar-lhe um meio de propagação, de extensão, de
refração, de renovação, de impulso, sem o qual ele talvez morresse por si só:
como uma máscara, sem a qual não poderia haver respiração nem forma
geral de expressão. A ciência maior tem perpetuamente necessidade de uma
inspiração que proceda da menor; mas a ciência menor não seria nada se não
afrontasse às mais altas exigências científicas, e se não passasse por elas. [...]
Nunca nada se acaba: a maneira pela qual um espaço se deixa estriar, mas
também a maneira pela qual um espaço estriado restitui o liso, com valores,
alcances e signos eventualmente muito diferentes. Talvez seja preciso dizer
que todo progresso se faz por e no espaço estriado, mas é no espaço liso que
se produz todo devir (DELEUZE, GUATTARI, 1997: 171).

Este texto buscou apontar, na problemática do campo de formação do docente em


História, para as diferentes formas de saber que representam modos de estar e de viver no
mundo. A linha conceitual de Deleuze e Guattari, a partir dos conceitos de espaço liso e
espaço estriado, foram tomados como base teórica para se compreender a complexidade deste
meio. Espero ter ficado claro como o espaço liso e o espaço estriado no campo educacional
podem ser experimentados. O processo formativo implica capturar espaços estriando-os, mas
também é na própria prática e subjetividade dos discentes formandos que se alisam os
espaços.

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REFERÊNCIAS

CERRI, Luis Fernando. “Cidade e identidade. Região e ensino de História”. In: ALEGRO, Regina Célia [et al.].
Temas e questões: para o ensino de História do Paraná. Londrina: EDUEL, 2088. Pp. 27-41. p.39,40.

BEBIABO, Rui. “Sobre a história como poética”. 2000. In: http://ruibebiano.net/docs/hpoetica.pdf Acessado em
13 de junho de 2011. p.02.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.5. Ed. 34, São Paulo,
1997. Pp.157,158.

FERREIRA, Naura Syria Carapeto. “Repensando e ressignificando a gestão democrática da educação na ‘cultura
globalizada’”. In: Educação e Sociedade. Campinas, vol.25, n.89, p.1227-1249, Set./Dez. 2004. p.1236.

PAES, José Machado. “Jovens e cidadania”. In: Sociologia, problemas e práticas. N.49, 2005, pp.53-
70.

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RESISTÊNCIA E SABERES DOMINADOS: ALGUNS OLHARES SOBRE O


PENSAMENTO DE FOUCAULT.

Igor Guedes Ramos (Doutorando em História, UNESP-Assis-SP, bolsista FAPESP)

Prof. Dr. Hélio Rebello Cardoso Junior (orientador)

Palavras-chave: Resistência – Foucault – Historiografia

Em 1966 foi publicado pela primeira vez o indigesto – por ser crítico e difícil –
livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas. Neste enorme sucesso de vendas foram
descritas as regras que alguns conhecimentos empíricos e especulativos compartilharam em
determinados períodos da história, cada um desses conjuntos de regras históricas Foucault
denominou de epistémê. A partir do final do século XVIII, surge a epistémê moderna e com
esta a noção de Homem, o livro se encerra com uma predição: as regras compartilhadas por
certos saberes modernos estão prestes a ruir e, consequentemente, o Homem irá morrer.
Em linhas gerias, Foucault almejou com isso afirmar, em primeiro lugar, que o
nosso conhecimento é determinado historicamente e que não evolui em direção à verdade
absoluta; o que ele já havia demonstrado em relação ao conhecimento sobre a loucura e a
doença em História da loucura e O nascimento da clínica. E, em segundo lugar, que na
modernidade se procurou estabelecer o que é o ser humano em sua essência, para assinalar
tudo o que ele pode conhecer e o que deve fazer para tornar-se o que é na Verdade; nesse
processo, nos tornamos prisioneiros dessa figura confusamente construída, denominada
Homem (FOUCAULT, 1999, p. IX-XXII, 463-473, passim).
Em uma entrevista do final de 1978, Foucault retomou e esclareceu precisamente
o que entende pela "morte do Homem": "Quando falo da morte do homem, quero pôr fim em
tudo o que quer fixar uma regra de produção, um objetivo essencial a essa produção do
homem pelo homem" (FOUCAULT, 2010, p. 325). Para além de todas as confusões e
simplificações que ele gerou na obra – e isso ele admite – a tese defendida com a "morte do
Homem" é que os seres humanos se constituem "em uma série infinita e múltipla de

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subjetividades diferentes, que jamais terão fim e que jamais nos colocarão em face de alguma
coisa que seria o homem" (FOUCAULT, 2010, p. 326).
A recepção de sua tese foi péssima ou, como disse Foucault, foi "uma surra por
todos os lados". A profusão das críticas teve como ápice ou forma sintética o debate ácido
entre o autor e Jean-Paul Sartre, ocorrido entre 1966 e 1967, por meio de entrevistas em que
os debatedores nunca ficaram frente a frente. Contra o livro foram levantados, em síntese,
quatro pontos: rejeição da práxis ou, dito de outras formas, inversão da dialética, predomínio
e independência da superestrutura ou do discurso sobre as relações materiais, etc.; acepção
"monolítica" de epistémê, que seria uma unidade soberana que faria todos "pensarem igual";
primazia do sistema sobre os sujeitos, os homens como sonâmbulos das estruturas; e ênfase
na descontinuidade, predomínio da sincronia em detrimento à diacronia, o que produziria um
método a-histórico (SARTRE, 1966; ERIBON, 1990, p. 164-170 & 1996, p. 100-110).
Essas críticas foram "atualizadas" por diferentes intelectuais e acompanharam
toda a trajetória de Foucault, especialmente a noção de que ele nega ao homem a liberdade e a
possibilidade de resistir à dominação. Vejamos alguns exemplos dessa atualização: Lucien
Goldman afirmou, em 1969, que Foucault opera um "estruturalismo não genético", que nega o
sujeito e o "substitui pelas estruturas (linguísticas, mentais, sociais, etc.) e apenas atribui aos
homens e ao seu comportamento o lugar de um papel, de uma função no interior dessas
estruturas que constituem o objetivo final da pesquisa ou da explicação" (GOLDMAN apud
FOUCAULT, 2001, p. 290-291). Mais ou menos uma década depois, Jacques Leonard (entre
outros historiadores) denunciaram que a análise dos procedimentos disciplinares, afirmava a
tese de "sociedade disciplinada" (FOUCAULT, 2006, p. 330). Na mesma época, Edward P.
Thompson estendeu para o pensamento de Foucault, todas as suas críticas ao estruturalismo
de Louis Althusser, o que inclui a noção de indivíduo como trägers das estruturas
(THOMPSON, 1978: 220). Outra década e alguns anos, encontramos esta crítica novamente,
agora na obra A história do estruturalismo de François Dosse, que reúne um sem número de
intelectuais – e um sem número de equívocos – sobre a "pecha" de estruturalistas, apenas para
concluir que todos negam a história e a liberdade do homem (DOSSE, 1994).
Pois bem, contra essas interpretações é preciso retomar alguns pontos do
pensamento de Foucault, sobretudo suas noções de poder, resistência e saberes dominados, a
partir de outras perspectivas. Primeiro, com o auxilio de Paul Veyne, a partir do que o próprio
Foucault afirmou; depois, como suas noções foram utilizadas por alguns historiadores

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brasileiros para pensar a resistência escrava e operária no Brasil e, por fim, discutir a "crítica"
produtiva feita por Michel de Certeau as análise de Foucault em Vigiar e Punir.
Desde o período que se convencionou denominar eixo do saber, que circunscreve
os livros publicados na década de 1960, dedicados à análise da constituição dos saberes na
perspectiva arqueológica – em oposição à fenomenologia, ao marxismo e ao existencialismo
–; Foucault sempre admitiu "que o homem toma iniciativas, mas nega que ele faça graças à
presença do logos nele e que suas iniciativas possam desembocar no fim da história ou na
pura verdade" (VEYNE, 2011, p. 185). Isto é, procurou descrever as condições históricas e
concretas (ou a priori histórico) dessas iniciativas, sem julgá-las a partir de um critério
universal de verdade, já que para ele toda a verdade é historicamente constituída.
A relação entre dominação e resistência foi problematizada no eixo do poder,
constituído pelos livros Vigiar e Punir (1975) e A vontade de saber (primeiro volume da
História da sexualidade, publicado em 1976), bem como por artigos, entrevistas e aulas
ministradas no Collège de France na primeira metade da década de 1970 1. Nesse momento,
as análises de Foucault estão saturadas por noções de combate, daí a importância do conceito
de tática, este se refere aos "núcleos" de práticas discursivas e/ou não-discursivas, que
possuem uma polivalência, ou seja, podem assumir diferentes direções. Por exemplo, o
suplício era um instrumento do monarca para demonstrar seu poder e incutir o medo e a
obediência em seus súditos; porém, este ritual era, com alguma frequência, revertido em
revoltas contra as autoridades, ou seja, existia nesses rituais, "que só deveriam mostrar o
poder aterrorizante do príncipe, todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos,
os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis" (FOUCAULT, 2003, p.
51) 2.
Correlato a esse conceito está o de estratégia, uma forma de racionalidade que dá
uma direção global as táticas, é a escolha de soluções que podem levar à vitória – é preciso
notar que as estratégias podem ser tanto da ordem da dominação quanto da resistência
(FOUCAULT, 1995, p. 247-249). A partir do final do século XVIII, por exemplo, surgiu a
estratégia de pedagogização do sexo da criança: era afirmado que toda a criança é suscetível

1
Os artigos, sobretudo Nietzsche, a genealogia e a história; entrevistas e resumos de aulas mais significativos
desse período foram reunidos por Roberto Machado e publicados no Brasil em 1979, sob o título Microfísica do
poder.
2
Outra forma de reversão dessa técnica de "punição teatralizada" pode ser pensada a partir dos estudos de E. P.
Thompson sobre Rough Music ou Charivari, ver: THOMPSON, Edward Palmer. Rough Music. In Costumes
em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998, pp. 353-405.

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a atos sexuais, mas que isso é contra a natureza (um verdadeiro perigo) e devia ser evitado,
isto se manifestou no combate cerrado ao onanismo entre os séculos XVIII e XIX. Pois bem,
esta é uma estratégia global que condiciona e dá suporte às táticas locais de fiscalização dos
filhos pelos pais, dos alunos pelos professores, de instrução dos pais pelos médicos, etc. Em
contrapartida, essas táticas locais dão suporte e condicionam a estratégia de pedagogização do
sexo da criança; a forma e a própria existência da guerra contra o onanismo dependem da
forma e do que é manifestado na fiscalização feita pelos pais, professores, etc. (FOUCAULT,
1998, p. 115-116). Enfim, as táticas e as estratégias se articulam da seguinte forma:

Entre elas, nenhuma descontinuidade, como seria o caso de dois níveis diferentes
(um microscópico e o outro macroscópico); mas, também, nenhuma homogeneidade
(como se um nada mais fosse do que a projeção ampliada ou a miniaturização do
outro); ao contrário, deve-se pensar em duplo condicionamento, de uma estratégia,
através da especificidade das táticas possíveis e, das táticas, pelo invólucro
estratégico que as faz funcionar. (FOUCAULT, 1998, p. 110-111)

Um dispositivo, por sua vez, é uma composição tática e estratégica. É, em


primeiro lugar, um conjunto heterogêneo de ditos e não ditos, "que engloba discursos,
instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas"
(FOUCAULT, 1979, p. 244), etc. Em segundo lugar, a relação entre esses elementos
heterogêneos é modificável e novos elementos podem surgir, ou seja, em cada momento
histórico os elementos de um dispositivo podem se articular de formas diferentes. E, em
terceiro lugar, esse conjunto heterogêneo em cada momento histórico é constituído para
"responder a uma urgência", a um problema; portanto, é atravessado por um ou mais feixes
estratégicos que lhe atribuem uma direção. Nas palavras de Foucault:

O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por
exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de
tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe ai um imperativo
estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco
tornou−se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da
neurose. (FOUCAULT, 1979, p. 244)

Outro exemplo é o dispositivo disciplinar que emerge no final do século XVIII,


como resposta a uma necessidade do capitalismo emergente; este dispositivo opera de
diferentes formas (punição, recompensa, normalização, visibilidade, organização espaço-
temporal e corporal, etc.) em diferentes instituições (hospitais, exército, fábrica, escolas, etc.),

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 517

com a função de tornar os indivíduos dóceis e produtivos, ou seja, a "disciplina aumenta as


forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em
termos políticos de obediência)" (FOUCAULT, 2003, p. 119).
As estratégias, as táticas e os dispositivos constituem as relações de
poder/resistência, de acordo com os princípios da microfísica do poder, a saber: Em primeiro
lugar, o poder não é uma coisa que se adquire, é uma relação que se estabelece; não opera
pela lógica do contrato (por uma correta ou equivocada cessão de direitos), opera sim pela
lógica da luta:

Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é
o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido
pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 2003, p. 26-27)

Em segundo lugar, o poder não está situado ou centralizado em uma instituição


específica da sociedade, como o Estado; está espalhado em diversos pontos.

O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se
localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que
não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e
dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade
(realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de
complexas engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do
mecanismo e de modalidade. (FOUCAULT, 2003, p. 26-27)

Consequentemente as relações de poder não respondem a uma matriz geral que se


estabelece sobre todo o corpo social. Em outras palavras, são táticas diversas e dispersas no
corpo social, que ao se articularem com grandes estratégias produzem determinadas relações
de dominação, como a dominação de classe na modernidade.
Em terceiro lugar, "as relações de poder são, ao mesmo tempo, intencionais e não
subjetivas" (FOUCAULT, 1998, p. 105). Isto significa que a racionalidade do poder é da
ordem das táticas calculadas e com objetivos precisos (controlar, disciplinar, fazer produzir,
etc.), mas não resulta da escolha ou da decisão de sujeitos individuais ou coletivos, concretos
ou abstratos; em termos mais irônicos, "não busquemos a equipe que preside sua
racionalidade" (FOUCAULT, 1998, p. 105). É preciso estudar os dispositivos de dominação,
ou seja, práticas discursivas e não-discursivas que produzem as relações de poder, não
explicá-las a partir de sujeitos fundadores, como a burguesia.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 518

Em quarto lugar, o poder produz saber e vice-versa. Nesse sentido, Foucault


recusa a ideia de saber desinteressado ou "que só pode haver saber onde as relações de poder
estão suspensas e que o saber só pode desenvolver-se fora de suas injunções, suas exigências
e seus interesses" (FOUCAULT, 2003, p. 27). Pelo contrário, para o filósofo existe uma
relação íntima entre saber e poder: "não há relação de poder sem constituição correlata de um
campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de
poder" (FOUCAULT, 2003, p. 27).
Em quinto lugar, o poder não é apenas repressão (negativo) é também produção
(positivo). Isto significa que as relações de poder, além de proibirem determinadas práticas,
estabelecem o "modo correto de agir" (FOUCAULT, 2003, p. 26); por exemplo, existem
saberes e técnicas de controle do corpo, denominados por Foucault de tecnologia política do
corpo, que se preocupam em torná-lo produtivo e dócil.
Finalmente, em sexto lugar e o que mais nos interessa aqui, Foucault afirmou "que
lá onde há poder há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se
encontra em posição de exterioridade em relação ao poder" (FOUCAULT, 1998, p. 105). O
poder entendido como relação reivindica um adversário, um alvo, um ponto de apoio, etc.
para se exercer, que é a resistência. Esta também está dispersa em todos os lugares, não existe
um lugar privilegiado da recusa (como é o Partido para o marxismo-leninismo); e não é um
subproduto do poder sempre fadado a derrota, as resistências "são o outro termo nas relações
de poder; inscrevem-se nestas relações como o interlocutor irredutível" (FOUCAULT, 1998,
p. 106). Deste modo, ao invés de estabelecer um antagonismo entre poder e resistência, em
que um dos dois lados deve ao termo sair vitorioso; Foucault estabelece uma agonismo (um
combate perpétuo), ou seja, uma relação de "incitação recíproca e de luta", daí...

[...] dizer que não pode existir sociedade sem relação de poder não quer dizer nem
que aquelas que estão dadas são necessárias, nem que de qualquer modo o "poder"
constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontornável; mas que a análise,
a elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do "agonismo" entre
relações de poder e intransitividade da liberdade, é uma tarefa política incessante; e
que é exatamente esta tarefa política inerente a toda a existência social.
(FOUCAULT, 1995, p. 246)

Mais do que afirmar a possibilidade de resistência, Foucault trabalhou em seu


favor. Em seu curso no Collège de France (1975-1976), afirmou que suas críticas – e de
outros intelectuais, como Giles Deleuze – aos mecanismos de poder, produziu uma

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"insurreição dos saberes dominados". Este termo significa, por um lado, conteúdos históricos
sepultados pelas análises sistêmicas, por exemplo, as regras e rupturas epistêmicas aplainadas
pela história continua (progressista) da ciência. Por outro lado, os saberes das "pessoas" que
são constantemente desqualificados por possuírem uma formalização insuficiente, por
exemplo, o saber dos prisioneiros divulgado nos anos 70 pelo Grupo de informação prisão
liderado por Foucault. Deste modo, trata-se "de fazer que intervenham saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,
em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns" (FOUCAULT, 1999: 13),
enfim, fazer com que intervenham contra a manutenção de uma determinada relação de poder.
A partir da segunda metade da década de 1970, temos o que se convencionou
denominar eixo da ética no pensamento foucaultiano. Para alguns intelectuais, como Dosse
(1994, v. 2, p. 376, 382-383, 389), este é o momento em que o sujeito e a liberdade finalmente
são tematizados na trajetória de Foucault, resultado da repercussão psicológica de sua doença
(Aids) e homossexualidade. Muito longe dessa análise psicologizante e, no mínimo,
equivocada; devemos entender que é o momento em que o filósofo estuda as práticas e os
modos como os sujeitos constituem a si mesmos como sujeitos éticos (FOUCAULT, 2010a, p.
9-43). Para retornar uma analogia de Veyne (2011, p. 178-183), Foucault e os sociólogos,
como Pierre Bourdieu ou Max Weber, professam cada um a sua maneira a mesma doutrina, a
saber: "só existe indivíduo socializado". Portanto, é preciso estudar as condições históricas
concretas ou o conjunto de práticas que constituem os sujeitos e que estão disponíveis aos
indivíduos para constituírem a si mesmo ou, ainda, para estabelecerem outras práticas que
confrontam as dominantes e podem, inclusive, substituí-las estabelecendo outras relações de
poder/resistência.
Tudo isso é muito diferente de negar a iniciativa, a resistência dos homens ou sua
liberdade; é antes de tudo demonstrar as diferentes formas de dominação e ampliar as
possibilidades de resistência. Essa perspectiva foi apropriada, por exemplo, pelas
historiadoras brasileiras Luzia Margareth Rago (1985) e Silvia Hunold Lara (1985 & 1988)
que, durante os anos 80, estudaram respectivamente a classe operária na Primeira República e
a escravidão na colônia (1750-1808) 3. Nesta época, a historiografia sobre estes dois temas

3
É importante notar, que Rago (especificamente neste estudo) e Lara não são "historiadoras foucaultianas"; o
que significa que seus trabalhos estão profundamente abastecidos por outras referências teórico-metodológicas,
sobretudo marxistas e por isto ambas afirmam, implícita ou explicitamente, que as relações de produção

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 520

sofreu grandes mudanças, estabelecendo forte oposição às teses afirmadas pela historiografia
anterior.
Parte da historiografia marxista sobre o movimento operário tende a analisar as
condições econômicas para explicar a ação política do movimento, por exemplo, um baixo
desenvolvimento industrial explica uma ação pré-política dos operários; o que significa uma
impossibilidade ou recusa de organização do Partido operário e, consequentemente, a
impossibilidade de controlar o Estado e transformar a sociedade. Nesse sentido, os anarquistas
da Primeira República são representados como inconscientes e fadados ao fracasso, este é o
caso de trabalho urbano e conflito social de Boris Fausto (1976).
Para Rago, a microfísica do poder de Foucault – bem como o pensamento de E. P.
Thompson – permite analisar os mecanismos de dominação informais (aqueles que não
operam pela lógica do Partido e do Estado) e, consequentemente, perceber as formas diversas
de resistência e transformação social.

Embora situados em campos teóricos e metodológicos diferenciados, Thompson e


Foucault chamam a atenção para outros momentos do exercício da dominação
burguesa, possibilitando recuperar as práticas políticas ‘não-organizadas’ do
proletariado e desfazer o generalizado mito do atraso e do apoliticismo dos
libertários. (RAGO, 1985, p. 14)

Portanto, nesta leitura o pensamento de Foucault, diferente de negar; enfatiza a


resistência e amplia seu espectro de possibilidades. Isto é, a análise historiográfica de Rago
opera pelos princípios foucaultianos de que as relações de poder estão dispersas na sociedade
e, junto a estas, encontramos sempre relações de resistência; permitindo o estudo "não
depreciativo" do movimento anarquista da Primeira República. O estudo de Lara colocou em
questão outros princípios de Foucault.
Segundo Lara, em linhas gerais, os debates da historiografia brasileira até a
década de 1970, sobre a escravidão colonial giraram em torno de duas questões correlatas:
Primeira, definir se o sistema era predominantemente paternalista, portanto menos brutal e
próprio de um modo de produção "pré-capitalista", como emerge, por exemplo, em Casa
grande e senzala de Gilberto Freire; ou se era violento, portanto brutal e capitalista, por
exemplo, como defenderam cada um a seu modo Fernando H. Cardoso e Jacob Gorender.

estabelecem o nexo explicativo das outras práticas humanas, princípio refutado por Foucault. Como veremos,
isto não desqualifica nossa tese de que o pensamento de Foucault corrobora profundamente para a percepção da
resistência escrava e operária nestes estudos.

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Segunda, se o sistema era meramente violento, consequentemente o escravo era totalmente


desumanizado a ponto dele mesmo se conceber como "coisa", sendo que a única forma
possível de resistência escrava era igualmente violenta (assassinato do senhor ou suicídio). A
autora analisa a questão de forma diferenciada:

Afirmar que a escravidão foi violenta ou cruel é quase tão inócuo quanto o juízo
moralizante do abolicionista que dizia que a escravidão era má. Se, por um lado, tais
atributos não são exclusivos das sociedades escravistas, por outro, estas
qualificações têm ainda, a desvantagem de insinuar que, nas sociedades
contemporâneas, as estratégias de reprodução das relações desiguais (para usarmos
um termo bastante amplo) não são "violentas". (LARA, 1988, p. 111)

Para a autora, uma das contribuições do pensamento de Foucault é exatamente


aprofundar as análises sobre a "distribuição do poder no mundo colonial, suas diversas
estratégias e mecanismos" (LARA, 1985, p. 237), é especificar a lógica e os efeitos do castigo
físico exemplar e de outros instrumentos de controle social, afinal:

[...] instrumentos da violência ou da ideologia, pode muito bem ser direta, física,
usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não
fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física.
(FOUCAULT, 2003, p. 26).

Outra contribuição diz respeito à reativação dos saberes dominados, os saberes


que informavam as ações de resistência dos escravos diante do poder senhorial, pois...

[...] o castigo dos escravos deve ser entendido também como luta. Não apenas a luta
do carrasco contra o condenado, do rei contra o súdito, mas como uma luta entre
saberes diferentes. Há um saber escravo que se pretendia aniquilar com o exercício
do poder senhorial. Os pretos que trabalhavam na Alfândega podiam ser "faltos de
notícia e ignorantes" da lei senhorial, mas sabiam obter coisas para si, tiradas das
mercadorias que transportavam dos navios aos armazéns. (LARA, 1985, p. 237)

Para Lara, a tarefa do historiador é reconstituir esses saberes. Nesse sentido, ela se
afasta de Foucault, pois considera que o filósofo se preocupa muito mais em descrever os
dispositivos de poder, do que os saberes dominados.
Outra análise que converge com este questionamento de Lara, é a de Michel de
Certeau em A invenção do cotidiano (1994), neste livro o autor está preocupado
principalmente com as táticas de consumo (de resistência) em oposição às estratégias globais
(de dominação). Nessa perspectiva, emerge uma análise de Vigiar e punir que coloca algumas

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questões ao método foucaultiano. Refletindo sobre o estabelecimento da grande estratégia


disciplinar descrita por Foucault, Certeau se inquieta com a sensação de coerência, de ordem,
transmitida por sua escritura, daí questiona:

A formação final (a tecnologia observadora e disciplinar contemporânea), que serve


de ponto de partida para a história regressiva praticada por Foucault, explica a
impressionante coerência? A priori, não. O desenvolvimento excepcional, até
mesmo canceroso, dos procedimentos panópticos parece indissociável do papel
histórico que lhes foi atribuído, o de ser uma arma para combater práticas
heterogêneas e para controlá-las. A coerência é o efeito de um sucesso particular, e
não a características de todas as práticas tecnológicas. Sob o monoteísmo aparente a
que se poderia comparar o privilégio que garantiram para si mesmos os dispositivos
panópticos, sobreviveria um"politeísmo" de práticas disseminadas, dominadas mas
não apagadas pela carreira triunfal de uma entre elas. (CERTEAU, 1994, p. 115)

Nesta perspectiva, a arque-genealogia tem a qualidade de denunciar "a tecnologia


observadora e disciplinar" que constituiu a nossa atualidade, a partir do olhar do presente.
Contudo, sua "lente", apesar de não negar às táticas de resistência, não às ilumina. Seria
preciso outra "lente" focada nessas táticas, para iluminá-las e demonstrar o caos da história, a
"imensa reserva" de esboços e traços que poderiam ter se tornado um dispositivo e que, talvez,
estejam agora mesmo corroendo o dispositivo disciplinar. "Talvez com efeito (esta é pelo
menos uma das hipóteses deste ensaio) o sistema da disciplina e da vigilância, formado no
século XIX a partir de procedimentos anteriores, esteja sendo, ele mesmo, 'vampirizado' por
outros procedimentos" (CERTEAU, 1994, p. 116). Em suma, temos assim duas perspectivas,
duas lentes, que tendem muito mais a se complementarem do que se excluírem. Correndo o
risco de contradizer a análise de sua discípula (Luci Geard apud CERTEAU, 1994: 17),
acreditamos que Certeau não afirmou: "esqueçam Foucault, ele não trata da resistência". E
sim diz: "vejam as possibilidades de análise que as reflexões de Foucault abrem".
Portanto, podemos concordar com Lara e Certeau e afirmarmos que os estudos de
Foucault possuem certos "limites" 4 que podem ser ultrapassados para pensarmos as formas de
resistência na história, isto não significa que o filósofo nega à liberdade ou à resistência à
dominação. Se seus estudos são dedicados em grande parte a descrição dos mecanismos de
dominação é, pois, a forma que ele encontrou de denunciar esses mecanismos e possibilitar a
resistência. É preciso insistir, sociedade disciplinar não é sociedade disciplinada!

4
Em outro momento, seria preciso descrever como estes limites estão fundados na noção de documento
monumento e nos princípios enunciativos da raridade, exterioridade e acúmulo próprios do método
arqueológico; bem como no princípio genealógico de evitar o "sepultamento" ou a "desqualificação" dos saberes
dominados por meio de análises sistêmicas.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. v. 1,Petrópolis: Vozes, 1994.

DOSSE, François. História do estruturalismo. Campinas: Editora da Unicamp, 1994, 2 v.

ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

______. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1979.

______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1998.

______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed., São Paulo:
Martins Fontes, 1999.

______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:


Martins Fontes, 1999.

______. O que é um autor? In Ditos e escritos: Estética: Literatura e pintura, música e


cinema. v. 3, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.

______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.

______. A poeira e a nuvem. In Ditos e escritos: Estratégia, poder-saber. 2. ed., v. 4, Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 2006

______. Conversa com Michel Foucault. In Ditos e escritos: Repensar a política. v. 6, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.

______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 3. ed., Rio de Janeiro: Edição Graal,
2010a.

LARA, Silvia Hunold. Campos de violência: estudo sobre a relação senhor-escravo na


Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

_____. O castigo exemplar dos escravos no Brasil Colonial. In Recordar Foucault. São
Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 229-238.

RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-
1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

SARTRE, Jean Paul. Jean-Paul Sartre répond, L'Arc, Paris, n. 30, 1966. Disponível em
http://www.pileface.com/sollers/IMG/pdf/Sartre_repond_in_Arc.pdf Acesso em 29 outubro
de 2011.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 524

THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria: ou um planetário de erros. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1978.

VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2011.

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O PAPEL SOCIAL DA LEITURA EM UMA COMUNIDADE TRADICIONAL –


FAXINAL MARMELEIRO DE CIMA (REBOUÇAS-PR)

Jacieli Domingues Pereira


(Mestranda em História e Regiões – Universidade Estadual do Centro-Oeste)
Orientador: Prof. Dr. Ancelmo Schörner

PALAVRAS-CHAVE: Leitura, Práticas, Faxinal

INTRODUÇÃO

Os faxinais são hoje enquadrados sob a categoria de comunidades tradicionais, que


despertam cada vez mais o interesse das mais variadas áreas de investigação. O estudo
histórico desses grupos abarca questões tangentes às especificidades inerentes a eles como o
modo peculiar com que se relacionam com a terra e com o mundo ao seu redor.
O também chamado Sistema de Faxinal é uma organização social, cujas principais
características são a divisão das terras, em terras de plantar e terras de criar, sendo que nesta
última são criados os animais, em regime de compáscuo.1 Os moradores são pequenos
agricultores que plantam para subsistência e também para comercialização. Em alguns casos,
fazem também a extração da erva-mate.
O pressuposto de que “o homem vive em ambientes físicos que o influenciam
constantemente e deixam sua marca sobre todas as formas de vida dele”2, pode ser validado
no referido Faxinal, onde se percebe que o agir cotidiano dos faxinalenses sofre a
interferência do que está à sua volta, ou seja, o mundo físico, a natureza. As práticas
empreendidas por estas pessoas no seu dia-a-dia estão transpassadas pelo modo como
interpretam e representam a realidade em que se inscrevem.

1
Utilização de pasto comum para criação de animais
2
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.

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As peculiaridades dos faxinalenses não se restringem ao modo como tratam a terra, ou


como criam seus animais,3 mas vão além, dizendo respeito também as relações sociais
estabelecidas entre os indivíduos no interior do grupo e também fora dele. Muitos estudos já
se desenvolveram no sentido de dar visibilidade às comunidades tradicionais, como é o caso
dos Faxinais, que acreditava-se eram excluídas da história. Entretanto, essa entrada em cena
do Faxinal no palco da história, se deu inicialmente como uma tentativa de se justificar seu
esquecimento, sua exclusão. A vitimização do faxinalense é recorrente nesses trabalhos, os
quais assumem, muitas vezes um papel de redentores, cujo papel é salvar o Faxinal da
ignorância, colocando-o em um pedestal para ser admirado e preservado.
É evidente que as particularidades dessa organização social devem ser valorizadas e
ressaltadas, mas isso deve ser feito de forma a acabar com a estigmatização sofrida por ela, e
não de modo a reafirmá-la. O Faxinal deve ser abordado em si, pelas suas características, e
não em relação ao seu exterior. É preciso desconstruir os discursos vigentes que classificam
as comunidades tradicionais e propor um novo olhar, uma nova perspectiva em relação às
mesmas.

LEITURA, PRA QUE SERVE MESMO?

A leitura é hoje tida como um ato corriqueiro, normal, uma prática que faz parte do dia
a dia de grande parte da população, mas nem sempre foi assim. Em diferentes momentos e
grupos sociais ela assumiu variadas formas, atribuindo-se a ela maior ou menor importância
levando em conta o contexto vivido.4 “Uma sociedade pode existir - existem muitas, de fato -
sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler”5, afinal ler não significa apenas
decifrar códigos alfabéticos dispostos em uma determinada ordem, tem a ver também com os
significados atribuídos a tudo o que está ao redor. Por isso existem muitos tipos de leitura
possíveis

3
Para mais detalhes sobre isso conf. NERONE, Maria Magdalena. Terras de plantar – terras de criar –
Sistema Faxinal: Rebouças – 1950 -1977. Tese de Doutorado em História, UNESP/Assis, 2000.
4
DARNTON, Robert. História da Leitura. In: BURKE, Peter, org. A escrita da história: novas perspectivas.
São Paulo: Unesp, 1989, p.199-236
5
. MANGUEL, Alberto. . Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.

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O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês
lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças
malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os
gestos do parceiro antes de jogar a carta a carta vencedora; a dançarina lendo as
notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o
Tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete tendo tecido; o organista lendo
várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto
do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês lendo as marcas
antigas na carapaça de
uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o
psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos pertubadores; o pescador
havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor
lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de
decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento
de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres
humanos - a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo - ou pelos deuses,
- o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso.6

Em todo caso o papel do leitor é atribuir legibilidade aos signos que encontra, para
então decifrá-los, em outras palavras é preciso antes de tudo conhecer as letras e as
combinações possíveis entre elas para então entender o que elas querem dizer. Por essa razão
o estudo da leitura em uma comunidade que dá grande valor a tradição oral, não cultiva o
hábito de preservar os documentos escritos e onde os moradores em sua maioria são
analfabetos se torna viável.
Ninguém nasce sabendo ler e escrever, mas todos podem adquirir estas habilidades ao
longo da vida. Porém, este é um processo que não ocorre naturalmente, mas culturalmente,
pois o ato de ler demanda todo um processo de aprendizado, pautado, quase sempre, em
técnicas e estratégicas institucionalizadas. E a grande responsável por disseminar a prática da
leitura (e também da escrita) é a escola. É através dela que se inicia o contato com o mundo
das letras. Deve-se levar em conta, no entanto, que o papel da escola não é o de meramente
ensinar a ler, escrever e fazer contas. Ela sempre visou e ainda hoje visa outros propósitos.
O acesso a tais propósitos pode se dar através da análise da legislação brasileira e
paranaense do período e também dos relatos orais de pessoas que vivenciaram tal período.
Para tanto a metodologia da história oral torna-se uma grande aliada, tomando-se, no entanto,
o cuidado de não tratar os relatos como verdades absolutas, uma vez que “levar a sério os
relatos orais não significa considerar que eles falam por si mesmos de uma forma simples ou

6
Idem.

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que seus significados são auto-evidentes” 7, pois, como os documentos escritos, devem ser
também interpretados.

A década de 1930 foi marcante na história brasileira, por se tratar de um período em


que ocorreram diversas transformações em vários níveis na sociedade. Com a educação não
foi diferente. O governo do então presidente Getúlio Vargas propalava o discurso de que só a
educação poderia levar ao desenvolvimento do país, e por isso os investimentos feitos para a
extensão do ensino cresceram consideravelmente.
Se a preocupação com a cidadania marcou o inicio da República como parte de um
projeto civilizatório, os anos 30 foram marcados por uma nova conceituação acerca da
cidadania que passa a ser vista como “cidadania regulada pela estratificação ocupacional do
trabalho, que passa a ocupar o lugar da cidadania abstrata, pautada no liberalismo clássico” 8
O advento de uma industrialização de cunho capitalista trazia à tona a necessidade de
se readequar o ensino à nova realidade vivida pelo país. O objetivo principal era formar mão
de obra, para impulsionar o desenvolvimento do Brasil. O projeto de nacionalização foi o
grande discurso que impulsionou a ampliação da oferta do ensino mantido pelo governo, visto
a partir de então como um direito de todos.9
A restrição do voto aos analfabetos teve também papel determinante na criação de
novas instituições escolares, assim como outros interesses políticos e econômicos que não
cabe relatar.10 O acesso à educação aumentou significativamente, ainda que não atingisse toda
a população.

7
CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes & AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos da história oral. FGV: Rio de Janeiro, 1996, p. 149-164
8
NORONHA, Olinda. Ideologia, Trabalho e Educação. Campinas, Alínea, 2004.
9
BRITO, Silvia Helena Andrade de. A educação no projeto nacionalista do primeiro governo Vargas (1930-
1945).Disponível em <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_101.html> acesso
em 25/07/2012.
10
ANDREOTTI, Azilde L. O projeto de ascensão social através da educação escolarizada na década de
1930. Disponível em <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_023.html> acesso
15/07/2012

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O FAXINAL E A EDUCAÇÃO

No período estudado não havia no Faxinal nenhuma instituição escolar subsidiada pelo
governo.11 Ainda assim algumas crianças tinham acesso à alfabetização, isso porque seus pais
pagavam uma professora particular. Os alunos eram reunidos em locais onde houvesse
disponibilidade, como no sótão da casa, por exemplo, e lá aprendiam a ler, escrever e “fazer
as contas”. A professora permanecia hospedada na casa dos alunos enquanto os ensinava e
isso podia durar 3 ou 4 meses, depois disso ia embora e as crianças “já se consideravam aptos
a ler, escrever e fazer as contas e acabavam abandonando os estudos por vários motivos,
dentre eles a distância da escola e a necessidade de trabalhar para ajudar a família.” 12
Outras, no entanto, continuavam os estudos nas escolas mais próximas o que
demandava um grande sacrifício já que “naquele tempo era difícil né, porque a escola era
longe né, dava quase dez quilômetros e a gente ia a pé” aponta o morador José Andrade de
Oliveira. As dificuldades eram transpostas em nome do acesso ao conhecimento, mesmo que
o mais cômodo fosse ficar alheio a ele. A análise da legislação educacional vigente na época e
dos relatórios e mensagens de governo, atrelada a possíveis depoimentos orais podem
fornecer pistas sobre o entendimento que se tinha acerca da alfabetização no período.
Num momento em que não dispunham de espaços institucionalizados para ter acesso
ao aprendizado da leitura, os faxinalenses buscam novas alternativas para estabelecer tal
contato. O propósito de garantir às crianças a oportunidade de ingressarem no mundo letrado
nos provoca inquietações. Inseridos em um meio eminentemente rural, onde o destino
provável era do trabalho na roça, os faxinalenses queriam aprender a ler, mas que motivos
vislumbravam a tal ponto? Em que medida a leitura poderia fazer diferença na vida de um
agricultor, dedicado quase que exclusivamente ao cultivo da terra?
Em outra pesquisa já concluída, observamos por meio dos relatos que o motivo
principal de se aprender a ler, mesmo estando fora da escola, era a possibilidade da obtenção
de um elemento distintivo diante dos demais membros da comunidade, o que conferia ao
sujeito um status. Mas isso não é tudo. O contato com a leitura permitia também ao individuo

11
Segundo documentação encontrada na Secretaria Municipal de Educação de Rebouças, a primeira escola na
região foi fundada em 1949.
12
PEREIRA, Jacieli Domingues; Sochodolak Hélio. A escola do sótão: Para uma história da leitura nos faxinais
na região sul do Paraná. In: MEZZOMO, Frank. (Org.) ; PÁTARO, Cristina Satiê de Oliveira (Org.) ; HAHN, F.
A. (Org.) . Educação, Identidades e Patrimônio. 1. ed. Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2012. v. 1. 213 p.

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se afirmar diante de seus pares como alguém que não mais seria enganado por não conhecer
as letras, além de propiciar sua mobilidade fora de seu habitat. Ou seja, saber ler garantia ao
faxinalense inserir-se em outros grupos que não o seu e compreendê-lo de forma
independente.
Ainda que tenhamos encontrado respostas plausíveis, os questionamentos não
cessaram. Muitas inquietações motivam o prosseguimento da pesquisa. O que pretendemos
apreender é até que ponto a estratégia do governo foi levada em conta no processo de
alfabetização dos faxinalenses. Se houveram outras motivações que influenciaram a decisão
dos pais em incentivar os filhos a aprender, quais foram elas? A comparação entre as
narrativas produzidas pelo governo e as produzidas pelos sujeitos que vivenciaram tal
contexto, poderá ajudar no entendimento dos sentidos atribuídos à educação, e mais
especificamente à leitura no Faxinal.

Dessa maneira poderemos analisar se as pretensões governamentais quando da


expansão do ensino, eram as mesmas dos faxinalenses que procuravam ter acesso à educação.
Falta-nos apenas definir que linha teórica seguir neste caminho, o que faremos o mais breve
possível, já que o tempo não pára. Temos como hipótese que no faxinal os moradores não
levavam em conta o discurso do governo e tinham seus próprios objetivos quando decidiam
aprender a ler, escrever e fazer contas. Quais eram esses objetivos ainda não sabemos, mas
apostamos que não era o de ascender socialmente, já que acreditamos isso não ser possível
naquele momento para aquele grupo especifico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa, ora em andamento, não pode estabelecer conclusões, afinal isso seria
arbitrário. Estamos ainda em fase inicial, de levantamento de fontes e definição teórico-
metodológica. Ainda assim podemos vislumbrar alguns caminhos que podem ser seguidos. As
inquietações são muitas, e as possibilidades de se chegar às respostas também. A trajetória a
ser seguida enseja um árduo trabalho, pois trata-se de uma dissertação de mestrado a ser
concluída nos próximos meses.

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O próximo passo a seguir é colher depoimentos dos moradores do Faxinal Marmeleiro


de Cima e iniciar a análise das fontes documentais. Só assim poderemos depois iniciar o
confronto de informações que irão ou não confirmar nossa hipótese.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDREOTTI, Azilde L. O projeto de ascensão social através da educação escolarizada


na década de 1930. Disponível em
<http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_023.html> acesso
15/07/2012

CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.

CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos da história oral.
FGV: Rio de Janeiro, 1996, p. 149-164.

DARNTON, Robert. História da Leitura. In: BURKE, Peter, org. A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1989, p.199-236

MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.

NERONE, Maria Magdalena. Terras de plantar – terras de criar – Sistema Faxinal:


Rebouças – 1950 -1977. Tese de Doutorado em História, UNESP/Assis, 2000.

NORONHA, Olinda. Ideologia, Trabalho e Educação. Campinas, Alínea, 2004.

PANDINI. Carmen Maria Cipriani. Ler é antes de tudo compreender... uma sintese de
percepçào e criação. Disponível em
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/viewFile/1242/1054>

PEREIRA, Jacieli Domingues; Sochodolak Hélio. A escola do sótão: Para uma história da
leitura nos faxinais na região sul do Paraná. In: MEZZOMO, Frank. (Org.) ; PÁTARO,
Cristina Satiê de Oliveira (Org.) ; HAHN, F. A. (Org.) . Educação, Identidades e Patrimônio.
1. ed. Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2012. v. 1. 213 p.

FONTE ORAL

OLIVEIRA, José Andrade de. Entrevista concedida a Jacieli Domingues Pereira e Ancimar
Teixeira em 15/06/2009.

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ESCREVENDO A HISTÓRIA DOS E NOS ENTREMEIOS: LUGAR E ESPAÇO EM


MICHEL DE CERTEAU E O PAPEL SOCIAL DO HISTORIADOR

João Rodolfo Munhoz Ohara (Mestrado em História Social/UEL)

André Luiz Joanilho (Orientador)

Palavras-chave: escrita da história; Michel de Certeau; práticas historiográficas.

Um entremeio (entredeux) é uma região que, como a palavra sugere, está entre duas
outras coisas – uma região fronteiriça. Para Michel de Certeau, historiador viajante por
excelência1, o entremeio é uma categoria central no pensamento histórico: de um lado, é
constituinte do próprio discurso historiográfico, sendo este um discurso de entremeio entre a
linguagem de ontem e a linguagem de hoje (DOSSE, 2003, p. 145) – pode-se ainda lembrar
que é apenas confrontando uma estrutura de compreensão contemporânea (modelos de
explicação) com os materiais efetivos das fontes que o historiador pode fazer falar a diferença
desse Outro apartado de nós, morto, silenciado pelo tempo (CERTEAU, 2008, p. 78-93); por
outro lado, a narrativa historiográfica – ao mesmo tempo parte e produto da pesquisa –
encontra-se em um entremeio: não pode prescindir da explicação lógica como a narrativa de
ficção, poética, que só precisa se apoiar na composição da intriga, mas também não pode se
libertar da estrutura de pensamento narrativa por conta de sua pretensão de contar
determinada intriga no tempo (RICOEUR, 2010, v. 3, 312-323). Vê-se então a importância de
tal expressão, que transformarei aqui em noção para fins determinados, dentro da reflexão
sobre o pensamento de Certeau sobre a história. Neste texto, munir-me-ei dessa noção para
(1) entender um determinado estatuto de conhecimento para a história e (2) apontar
consequências práticas de tal perspectiva para a discussão do papel social do historiador.

1
Não farei aqui o inventário dos comentadores que caracterizam seu pensamento como um pensamento de
caminhante, de viajante, de passagem, sempre remetendo a uma metáfora das práticas do espaço, conforme
fiz em outros trabalhos. Contentar-me-ei em apontar aqui algumas das várias consequências epistemológicas
desse tipo de metáfora aplicada ao pensamento do historiador.

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Tal discussão se fundamenta na ideia desenvolvida por Michel Foucault em sua


análise da resposta kantiana à pergunta “Was ist Aufklärung?”: para ele, trata-se de extrair de
tal resposta uma atitude crítica a partir da qual seria possível e desejável encontrar nossos
limites e, a partir dessas fronteiras, experimentar a possibilidade de transgredi-las, expondo e
denunciando com isso as técnicas de poder que constrangem o pensamento de determinadas
maneiras. Nesse texto, o termo fronteira usado por Foucault parece ter a conotação de um
limite disciplinar que nos impediria de pensar diferentemente (autrement) – e é importante
que se guarde esse primeiro sentido. O trabalho crítico então se fundamentaria, para ele, em
três eixos principais: as relações do homem com as coisas (saber), com os outros (poder) e
consigo mesmo (ética) (FOUCAULT, 2012, s/p); qualquer leitor minimamente familiarizado
com a obra foucauldiana poderá ver uma identificação rápida entre essa definição de “atitude
crítica” e a definição que o próprio Foucault dá de seu trabalho em seus últimos anos.

Não se trata aqui de identificar o pensamento foucauldiano com a obra de Certeau:


longe disso, trata-se de elaborar redes, ligações conceituais que permitam operar de maneira
crítica – concebendo a atitude crítica tal como definida por Foucault – a partir de ferramentas
outras. Isso significa alçar essa “atitude” a uma categoria meta-histórica capaz de dar a
entender relações variáveis entre o pensamento e seus limites postos. Tenta-se então pensar a
própria escrita da história como uma prática potencialmente crítica – ao menos segundo a
perspectiva elaborada por Certeau – e, então, entender como tal potencialidade pode se
realizar; neste trabalho, essa potencialidade é vista a partir da metaforização das práticas de
espaço estudadas por Michel de Certeau.

AS PRÁTICAS DE ESPAÇO EM MICHEL DE CERTEAU

Em “A Invenção do Cotidiano” (1994) Certeau se dedica ao estudo sociológico das


práticas culturais cotidianas – a “linguagem ordinária”, a apropriação de produtos culturais, a
leitura, as credibilidades e as práticas de espaço. Para ele, as ciências humanas até então
haviam se dedicado meramente ao estudo da produção cultural ou do folclore (renomeado
como cultura popular) – declarado morto em outro texto no livro “Cultura no Plural” (1995)
– deixando escapar as práticas vivas dos indivíduos: práticas que podem torcer e subverter os

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projetos estabelecidos, a ordem construída e o poder materializado. Ater-me-ei aqui à sua


análise das práticas de espaço.

O primeiro momento que gostaria de me deter é no qual Certeau coloca: “Subir até o
alto do World Trade Center é o mesmo que ser arrebatado até o domínio da cidade. [...] Sua
elevação o transfigura em voyeur. Coloca-o à distância.” (CERTEAU, 1995, p. 170, grifo do
autor). Contextualizarei essa colocação: no primeiro capítulo dedicado às práticas de espaço
Certeau vai analisar a relação entre a visão panorâmica da cidade, uma visão totalizante desse
corpo criado que se chamou “cidade”, e a visão (e a prática) do caminhante, sempre parcial,
de quem se emaranha no labirinto de ruas em meio às grandes caixas de concreto e aço. Ele
coloca então a oposição entre a visão urbanística – totalizante, estática, técnica e
pretensamente racionalizada – e a visão praticante – parcial, móvel, inventiva, e ela também
dotada de uma racionalidade particular. O voyeurismo de que ele fala se refere, portanto, à
pretensão totalizante da visão urbanística. Eis que ele diz seu projeto em termos bastante
precisos:

Eu gostaria de acompanhar alguns dos procedimentos – multiformes, resistentes,


astuciosos e teimosos – que escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do
campo onde se exerce, e que deveriam levar a uma teoria das práticas cotidianas, do
espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade. (CERTEAU, 1995, p.
175)

Ora, trata-se de uma declaração que pressupõe algo de peso considerável: tal projeto
pressupõe que é possível encontrar ranhuras no sistema panóptico da disciplina, que é
possível escapar, mesmo que parcialmente, à vigilância, sem precisar sair de seu campo
delimitado de ação vigilante. Comentadores como Bryan Reynolds (1999) viram aí uma
oposição explícita ao projeto de Foucault: se este se contentava em analisar as tecnologias do
poder disciplinar, Certeau seria o arauto dos vigiados, responsável por libertá-los de uma
teoria totalizante. No entanto, será isso mesmo?

O próprio Foucault jamais negou a dimensão dinâmica das relações de poder,


chegando a usar o mesmo par tática/estratégia proeminente nas análises do cotidiano
elaboradas por Certeau2:

2
Claire Colebrook oferece um ótimo desenvolvimento a respeito da relação entre o pensamento de Foucault e
o de Certeau. Cf. COLEBROOK, Claire. Certeau and Foucault: Tactics and Strategic Essentialism. The
South Atlantic Quarterly, Durham, v. 100, n. 2, p. 543-574, 2001. Outro comentador que explora esse

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É preciso analisar o conjunto das resistências ao panopticon em termos de tática e


estratégia. [...] A análise dos mecanismos de poder não tende a mostrar que o poder
é a o mesmo tempo anônimo e sempre vencedor. Trata-se ao contrário de demarcar
as posições e os modos de ação de cada um, as possibilidades de resistência e de
contra-ataque de uns e de outros. (FOUCAULT, 1979, p. 226).

De forma semelhante, o próprio Certeau também não nega a importância da análise


elaborada a respeito da tecnologia panóptica de poder (CERTEAU, 2011, p. 151-162). Penso
que as divergências se colocam em dois níveis distintos (embora imbricados), no entanto: o
primeiro de foco, o segundo de método. Ambos os pontos se fundamentam na questão da
fonte: se Foucault focou o estabelecimento de um discurso totalizante foi porque sua análise
parte de um projeto específico levado (mais ou menos) a cabo no sentido da disciplinarização
de corpos; do mesmo modo, se Certeau foca as resistências é porque parte da observação
antropológica, ela mesma sempre parcial e local. Em Foucault, a resistência fica
subentendida; em Certeau a ordem é pressuposta. Quanto ao método, Foucault se vale da
genealogia do discurso disciplinar para explicar a transição de um modelo de poder soberano
para um poder disciplinar ao longo de um período determinado de tempo; para Certeau,
haveria uma hermenêutica capaz de compreender a relação entre a ordem e sua subversão.

Formula-se então o problema dessa relação tensa de poder nos termos de Certeau:
trata-se, no âmbito das práticas espaciais, da tensão entre lugar e espaço. Para ele, o lugar

[...] é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência. [...] Aí impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham
uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define.
[...] Implica uma indicação de estabilidade. (CERTEAU, 1995, p. 201)

Dito de outra forma, o lugar é o estabelecimento de referências e, ao mesmo tempo, o


conjunto delas. É a disposição das palavras impressas sobre o papel, dos elementos
urbanísticos no território da cidade, dos produtos no projeto do mercado. Retomando a
aproximação anterior com Foucault, o poder disciplinar opera criando lugares: sua força
reside no mapeamento meticuloso e no estabelecimento de uma ordem sobre a qual operará a
vigilância. A sala de aula, a cela e o quarto do hospital – são todos alvos privilegiados da
atenção das relações de poder entre professores e alunos, policiais e delinquentes, médicos e
doentes. Em um nível mais abrangente – mas também mais difuso, às vezes quase
imperceptível – trata-se do indivíduo em relação à maledicência (como ele se veste, como ele

diálogo, embora em sentido relativamente distinto, é John Marks: MARKS, John. Certeau & Foucault: the
other and pluralism. Paragraph, Edinburgh, v. 22, p. 118-132, 1999.

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se porta), dos setores na fábrica, dos papéis atribuídos a cada um na família. Constroem-se
unidades sobre as quais se pode atuar disciplinando corpos: esta é a construção do lugar.

Sempre em relação a ele, temos o espaço: ele “[...] estaria para o lugar como a palavra
quando falada [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a
estabilidade de um próprio. Em suma, o espaço é um lugar praticado. [...]” (CERTEAU,
1995, p. 202, grifo do autor). Trata-se aqui das resistências evocadas por Foucault, das
práticas subreptícias, inventivas, tratadas por Certeau. O espaço está, portanto, intimamente
ligado à experiência: age-se sobre o lugar e também nele. Seja pela via genealógica de
Foucault, seja pela via hermenêutica de Certeau, os trabalhos que se interessam pelo espaço
buscam compreender e/ou explicar essa dimensão da experiência que deixa pouco ou nenhum
rastro – ou vestígio, para fazer referência (sem retomar aqui explicitamente) à discussão de
Paul Ricoeur em “Tempo e Narrativa”3.

Eis que dessa tensão entre o posto e o feito emerge a figura do passante:

[...] se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de
possibilidades [...] e proibições [...], o caminhante atualiza algumas delas. Deste
modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras,
pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam,
mudam ou deixam de lado elementos espaciais. (CERTEAU, 1995, p. 177-178)

Detenhamo-nos: ele tanto as faz ser como aparecer. Aos olhos de um objetivista
convicto pode parecer uma afirmação estranha: como pode o ser da ordem depender de sua
efetivação? Ora, para Certeau, os constrangimentos da ordem só se efetuam na medida em
que há prática. Não significa comungar de certo ceticismo linguístico extremado dizendo que
“il n’y a pas de hors-texte”: há sim, um além-texto; mas esse potencial só se realiza com a
prática, a experiência. Mas permanece o problema de como conhecer essa atividade que deixa
pouco ou nenhum vestígio, para além da observação antropológica.

Neste momento fecho a reflexão propriamente relativa ao texto de Certeau. Aqui


começa a empreitada metafórica: mesmo sem resolver o problema do “como conhecer”, pode-
se aceitar agora que o passante é capaz de subverter os limites postos pela ordem. A partir
dessa constatação da sociologia da cultura de Certeau, tomo a liberdade de emprestar tal ideia
de que a prática é, sim, estruturada, mas ao mesmo tempo pode jogar com aquilo que lhe
estrutura. Essa ideia abstrata é o cerne do que viso: poderia o historiador agir no presente

3
Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, v. 3, p. 197-213.

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como o passante age na cidade? Poderia ele atuar tanto sobre o pensamento historiográfico
quanto sobre as múltiplas dimensões sociais de seu presente de maneira a realizar a atitude
crítica de que falamos no início do texto? Neste caso, supõe-se um historiador capaz de ser
lido e ouvido por outrem que não seus pares. A dívida com os mortos de que trata Certeau
poderia ser paga de que maneira? Seria o historiador um mero guardião de um cemitério ou
teria ele a capacidade de agir em esfera pública – não mais no sentido do ensino, mas da
própria produção de mecanismos capazes de atuar ética e politicamente?

O ENTREMEIO

Façamos um inventário sucinto dos pontos relevantes: o passante é capaz de atuar


sobre os limites espaciais postos; a atitude crítica é definida como atenção e ação sobre os
limites do pensamento; o entremeio, a fronteira, é o próprio espaço do limite. Tratei até aqui
dos dois primeiros, e convém pensar agora o terceiro, para que possamos avançar até a
proposição do “escrever a história dos/nos entremeios”.

Parto do que Certeau chama de “paradoxo da fronteira”: “[...] criados por contatos, os
pontos de diferenciação entre dois corpos são também pontos comuns. [...] Dos corpos em
contato, qual deles possui a fronteira que os distingue? Nem um nem o outro. Então,
ninguém?” (CERTEAU, 1995, p. 213) Põe-se então que o limite da alteridade é sempre o
ponto em que ela nos toca; são fenômenos que compartilham quaisquer elementos com
fenômenos contemporâneos, familiares. Não estamos aqui presenciando nenhuma novidade:
Paul Veyne já dizia que o motor da pesquisa histórica é a curiosidade do historiador – e a
curiosidade parte sempre de elementos comuns entre presente e passado, entre o Mesmo e o
Outro. Como os antigos viam a morte? O amor? Como se estruturavam as relações de
trabalho? Que navios, pessoas e coisas já navegaram pela superfície desse Mediterrâneo que
hoje vejo?

Ao mesmo tempo, pode-se compreender que ao invés de um muro absoluto, o


entremeio consiste em uma região na qual elementos dos dois corpos distintos estão difusos,
presentes em diferentes combinações. Penso que esse é o sentido que Certeau dá ao situar a

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pesquisa histórica no entremeio de ciência e ficção4: um relato apoiado ao mesmo tempo em


métodos e instrumentos definidos e em uma estrutura narrativa que necessariamente
ficcionaliza a explicação em uma intriga para ser capaz de empreender o esforço da
compreensão5.

A proposição de “Escrever a história dos/nos entremeios” se dá então, primeiro, no


sentido do cuidado ao narrar a diferença. Este sentido, Certeau já o enfatizou o suficiente: a
fuga do folclorismo e do exótico, o reconhecimento da alteridade para fundamentar um
diálogo equitativo no teste dos modelos, etc. Gostaria de tratar de um segundo sentido:
entender como entremeios os limites do nosso próprio pensamento – e aqui recupero o sentido
elaborado por Foucault do qual falei no começo do texto. Trata-se de colocar a crítica de
Certeau a respeito das maneiras de trabalhar a alteridade na história e na sociologia da cultura
no sentido do que Foucault chamou de atitude crítica. Trata-se, portanto, de estabelecer uma
ligação entre o projeto da historiografia e aquele da “ontologia crítica/histórica do presente”
(FOUCAULT, 2012, s/p).

Entendo que se o historiador é o responsável por tornar pensável a alteridade do


passado no presente, por honrar e calar os mortos de que fala – como compreende Certeau –
ele seria também o responsável por apontar os nossos limites. Não significa colocar a figura
do historiador acima do social; muito pelo contrário, significa situar o historiador imbricado
ao (inescapável) social, mas responsável justamente por explorar de dentro os seus rincões.

A partir desse espaço de contato, dessa “terra de ninguém”, como coloca Certeau,
caberia ao historiador a possibilidade de transgredir os limites de nosso pensamento: será a
nossa maneira de tratar a delinquência o único, o melhor ou o necessário? Ou a nossa maneira
de estruturar as relações de produção e trabalho? Se o historiador puder responder a essas
perguntas, ele dará o primeiro passo em direção à ideia de um historiador passante, capaz de
subverter a ordem estabelecida, inquiri-la sobre suas fundações e fazer com que se possa

4
Há que se tomar cuidado quando do uso do termo “ficção” em Certeau, conhecido por seus jogos de
significação das palavras: por um lado, o termo pode ser tomado no sentido usual, de oposição com algo que
seria real; por outro, o termo tem uma carga conceitual própria na tradição psicanalítica com da qual Certeau
certamente comunga e com a qual constantemente dialoga. Cf. CERTEAU, Michel de. História e
Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011; particularmente os três primeiros
capítulos.
5
Estabeleço aqui um diálogo certamente arbitrário com a tese de Paul Ricoeur em “Tempo e Narrativa”. Mas o
faço por ver nele uma relação possível e produtiva para a compreensão do fazer historiográfico.

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pensar aquilo que a familiaridade cala. Mas, ainda na esteira do pensamento de Certeau, essa
potencialidade só se realiza quando praticada: pede-se então o segundo passo – a recepção.

PARA QUEM FALA O HISTORIADOR?

Se as potencialidades da história como discurso capaz de tornar estranho aquilo que


nos é familiar só se realizam efetivamente no momento em que a narrativa é lida, convém
perguntar: quem a lê? Nessa mesma pergunta encontramos ainda um pressuposto que merece
ser questionado: a historiografia precisa, necessariamente, ser escrita em forma de texto? Em
um período que tratamos boa parte dos fenômenos humanos como texto – lê-se a obra de arte,
Certeau mesmo aponta a textualidade das práticas contemporâneas sobre as quais recai uma
hermenêutica que buscaria compreendê-las – será mesmo que o historiador estará para sempre
confinado a escrever monografias, artigos, livros? Tratarei aqui apenas da primeira, por
questões de relevância.

Em primeiro lugar é preciso reconhecer que as incursões dos historiadores para fora
das universidades e das escolas ainda é muito tímida no Brasil. Que pese a criação de centros
de memória e o trabalho nos museus e casas de cultura, não contamos ainda com expressões
como os programas de rádio franceses dedicados à temática, ou com colunas jornalísticas
escritas por historiadores como na Inglaterra. Nossas revistas de divulgação não raro se
dedicam ainda a uma história como mosaico de curiosidades; outras enfrentam o grande
problema do financiamento de suas operações6. É preciso reconhecer: no Brasil, quem lê os
historiadores são os historiadores.

Mas como realizar o potencial crítico da historiografia dessa maneira? Impossível. Há


muito o intelectual perdeu seu papel profético na Europa, como atestam Foucault e Deleuze
(FOUCAULT, 1979, p. 69-78) – e se os homens de letras ocuparam papel político
privilegiado no Brasil do século XIX, esse posto há muito permanece apenas nas memórias de
saudosistas nos corredores da Academia Brasileira de Letras ou do IHGB. Também não é

6
Tomo como referência para nosso cenário o livro “Introdução à História Pública”, publicado em 2011, o que
evidencia a pouca idade do empreendimento em nosso país. Cf. ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta.
Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.

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meu desejo dizer que é preciso voltar a esses tempos: as experiências do século XX nos falam
com propriedade a respeito dos projetos de sociedade fundados no poder da racionalidade
técnica.

O campo da história pública – se é que se pode falar de um “campo”, uma vez que
suas discussões abarcam desde a teoria da história até a cultura material e a história
contemporânea – dá uma resposta particular: trata-se de tornar a história acessível ao público.
Não mais pensando na vulgarização tal qual a do século XIX, nem recorrendo às recentes
pesquisas sobre o ensino de história; é fora da escola que o potencial crítico da história
poderia se realizar. A novidade da discussão dessa temática no Brasil impede que seja
possível tomar uma posição muito firme desde já, mas não há como negar a capacidade
provocativa da proposta.

Independente do caminho a adotar, eis que encarar a historiografia como tendo


potencial para construir uma atitude crítica com relação ao presente coloca o problema dos
muros acadêmicos. É nesse sentido que pensar metaforicamente o historiador como o
passante que é capaz de encontrar as ranhuras do poder disciplinar se apresenta como um
desafio produtivo. Trata-se de encarar um problema ao qual pouca atenção tem sido dada:
pode o historiador se omitir no momento em que outros discursos (amadores ou profissionais)
se levantam em busca de legitimidade para falar do passado? Longe de desejar a retomada de
um monopólio utópico (ou distópico) sobre a fala dos mortos, o historiador crítico deveria
lutar para que sua perspectiva tenha também espaço na arena pública. Atualizar dessa maneira
o estatuto da historiografia a coloca em uma segunda dívida: desta vez com as vozes vivas do
presente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e
Voz, 2011.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.

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_______. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

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d’histoire, Paris, v. 78, p. 145-156, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

_______. O que é Esclarecimento?. Historiador de Passagem, Londrina, 2012. Disponível


em: <http://historiadordepassagem.wordpress.com/2012/08/13/traducao-de-quest-ce-que-les-
lumieres-de-michel-foucault/>. Acesso em 13 ago. 2012. Tradução de João Rodolfo Munhoz
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ENTRE DISCURSOS INSTITUCIONAIS E PRÁTICAS FAXINALENSES: A


INFESTAÇÃO DE GAFANHOTOS E A PESTE SUÍNA EM IRATI-PR
NA DÉCADA DE 1940

Regiane Maneira (História – UNICENTRO)


Hélio Sochodolak (História – UNICENTRO)

Palavras-chave: Infestação de gafanhotos; Peste Suína; Faxinais.

O faxinal, considerado como um sistema tradicional de uso coletivo da terra, é algo


bastante comum na região centro-sul do estado do Paraná. Apesar disso, ainda é pouco
conhecido e não possui uma grande representatividade na historiografia paranaense. As
manifestações, práticas, crenças e simbologias da cultura faxinalense, ou melhor, das culturas
faxinalenses1, ainda são pouco estudadas e/ou conhecidas.
No caso da cidade de Irati-Pr, apesar de possuir um considerável número de
faxinais2, as pesquisas sobre esse tema também possuem pouca representatividade ou mesmo
são deixadas à margem pela historiografia, dita “oficial”, da cidade. Levando em consideração
tais preocupações, esse artigo busca, por meio da análise das narrativas 3 faxinalenses sobre a
infestação de gafanhotos e a peste suína, ocorridos no final da década de 1940, investigar
como eram as práticas e o cotidiano desses sujeitos no momento em que esses eventos
ocorreram. Em contrapartida, analisaremos alguns documentos institucionais produzidos pelo
governo do estado do Paraná e pela prefeitura de Irati, no sentido de investigar como a
infestação de gafanhotos e a peste suína foram percebidas por essas instituições.

1
Preferimos nos utilizar do termo culturas faxinalenses no sentido de chamar a atenção para a heterogeneidade
cultural dos faxinais. Cada faxinal possui características específicas, peculiaridades, que são próprias de cada
comunidade e que não podem ser negligenciadas pelo pesquisador.
2
Cf. ALMEIDA, W. B. Alfredo; SOUZA, Roberto M. de (Orgs.) Terras de Faxinais. Manaus: Edições da
Universidade do Estado do Amazonas – UEA, 2009. Nesta pesquisa os autores dedicam um capítulo para
mapear os faxinais do estado do Paraná, dentre eles os pertencentes à microrregião de Irati, correspondendo aos
municípios de Irati, Rio Azul, Rebouças e Mallet. Segundo os autores, na microrregião de Irati foram
identificados 37 faxinais, destacando-se Rebouças com 15 e Irati com 14 faxinais.
3
As entrevistas que foram realizadas tiveram como depoentes pessoas que viveram ou ainda vivem nos faxinais
de Irati, mais especificamente em Faxinal do Rio do Couro, Rio do Couro e Faxinal dos Mellos, e que
presenciaram a infestação de gafanhotos e a peste suína. A coleta das entrevistas seguiu a metodologia da
História Oral, sendo utilizados os procedimentos já consagrados, como o termo de ciência e esclarecimento, a
transcrição com assinatura do depoente e o termo de autorização do uso das informações para uso acadêmico.

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Nossa investigação está inserida no contexto de pesquisas acadêmicas sobre o Sistema


Faxinal em diversas áreas e dialoga com produções da Geografia Humana e, sobretudo, da
História. Autores como Maria Madaglena Nerone, Luis Almeida Tavares, Man Yu Chang,
Jair Lima Gevaerd Filho, Cicilian Löwen Sahr e Horácio Martins de Carvalho são importantes
referências que nos auxiliam a refletir sobre as culturas faxinalenses.
Contudo, dentre os trabalhos produzidos por esses e alguns outros autores, não
encontramos nenhuma pesquisa que aborde a infestação de gafanhotos e a peste suína como
objetos de pesquisa, o que causa certa estranheza, uma vez que esses eventos afetaram a base
do faxinal, que seria a agricultura de subsistência e a criação de porcos. A ocorrência desses
eventos colocou à prova não só a permanência dos faxinalenses no campo, como a própria
existência do sistema de faxinal no final da década de 19404, como veremos mais adiante.
O Sistema Faxinal possui como característica principal o uso coletivo da terra na
criação de animais em regime de compáscuo. O faxinal é, regra geral, dividido em terras de
plantar, destinadas ao cultivo agrícola, que são delimitadas por uma cerca construída
coletivamente pelos faxinalenses, e também em terras de criar, destinadas à criação de
animais de várias espécies.5 A agricultura faxinalense tradicional baseia-se na produção de
gêneros alimentícios como arroz, feijão, milho, batata, mandioca entre outros, que são
destinados ao consumo das famílias e também para a venda do excedente. Há também a
criação extensiva de animais, especialmente porcos, que “[...] pode ser considerada como

4
Ver mais detalhes em : SOCHODOLAK, Hélio; MANEIRA, Regiane. Os faxinais na região de Irati na década
de 1940: a força de uma cultura tradicional. In: Anais do XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências
Sociais – Diversidades e (Des)Igualdades. UFBA, 2011.
5
No que diz respeito à origem do Sistema Faxinal, não existe uma unanimidade entre os pesquisadores do tema.
Segundo Maria Magdalena Nerone, o Sistema de Faxinal decorre de um arcabouço cultural transplantado via
colonizador, e cujas raízes podem ser encontradas na Península Ibérica, através das Reduções Jesuíticas
Espanholas. Este vínculo que a autora faz entre a origem dos faxinais e as reduções jesuíticas pode estar
relacionado ao fato de que as reduções Jesuíticas também possuíam como forma de organização a vida
comunitária. Man Yu Chang atribui a origem do sistema à estrutura de subsistência das grandes fazendas, que
estavam baseadas na criação de animais à solta e no cercamento das lavouras com bambu, bem como o pousio da
terra. A conexão que a autora faz entre a origem do faxinal e o sistema de criação de animais das grandes
fazendas pode estar relacionado ao fato de que o faxinal também possui como estrutura básica de funcionamento,
a criação de animais soltos no criadouro comunitário — terras de criar — e também o cercamento das terras
destinadas à prática da agricultura — terras de plantar —, estrutura que segundo a autora também era encontrada
nessas fazendas.
Outros pesquisadores vinculam o sistema faxinal à frente oriental paranaense da extração de erva-mate e a
criação extensiva de suínos, praticada desde o século XVII nessa região. Quando diminuíam os alimentos
encontrados no local em que estavam, os coletores da erva mate adentravam novamente na mata, levando
consigo os materiais utilizados no trabalho, alimentos e animais de carga e de criação, assim, o sistema de
faxinal relaciona-se com esse tipo de nomadismo.

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parte da cultura faxinalense, praticada pelos caboclos e, depois, adotada pelos imigrantes
europeus, principalmente, por poloneses e ucranianos.”6
Partindo dessas definições podemos perceber que a base do faxinal seria justamente a
agricultura de subsistência e a criação de porcos. No final da década de 1940, ocorre
primeiramente a infestação de gafanhotos que devasta as plantações e em seguida a peste
suína que assola a criação de porcos nos faxinais que pesquisamos. Como os faxinalenses
conseguem sobreviver em meio às dificuldades causadas por esses eventos? Como eram suas
práticas de combate à peste e aos gafanhotos? Como pensar o faxinal sem os porcos e sem a
lavoura de subsistência? O que os documentos institucionais registram sobre os gafanhotos e
a peste? É em torno desses questionamentos que nossas reflexões e análises estarão voltadas
no decorrer deste artigo.

1. NARRATIVAS INSTITUCIONAIS E FAXINALENSES: A INFESTAÇÃO DE


GAFANHOTOS E A PESTE SUÍNA

Conforme registrou a mensagem apresentada pelo governo de Moyses Lupyon à


Assembléia Legislativa do Paraná, a década de 1940 foi marcada pela destruição das lavouras
pelos gafanhotos. Neste documento consta que a infestação dos gafanhotos foi verificada no
ano de 1947, sendo bem menor que a infestação do ano anterior.
Em uma reportagem do jornal “Folha do Oeste”, município de Guarapuava-PR, datada
de 06 de outubro de 1946, e intitulada “A invasão dos gafanhotos”, registrou-se que a nuvem
desses ‘nocivos invasores’ que tomava o município tinha uma extensão de 100 quilômetros de
comprimento por 50 de largura. Os insetos destruíam todas as plantações dentro dessa faixa,
inclusive a própria mata, que ficou despida de sua folhagem, até mesmo da própria casca.7
O período em que ocorreu a infestação dos gafanhotos na década de 1940 foi de
grande miséria para os faxinalenses, pois as lavouras que forneceriam os alimentos para o
consumo das famílias foram totalmente destruídas pelos insetos. Os únicos alimentos que

6
SOCHODOLAK, Hélio; CAMPIGOTO, José Adilçon Os faxinais da região das araucárias. In: MOTTA, Márcia
Menendes; OLINTO, Beatriz Anselmo e OLIVEIRA, Oseias. (orgs) História Agrária: propriedade e conflito.
Guarapuava: Unicentro, 2009. p. 195.
7
FOLHA DO OESTE. A invasão dos gafanhotos. Guarapuava, Paraná, 6 de outubro de 1946/ nº 20.

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restaram foram batata, batata-doce e abóbora, bem como algumas plantações de milho que já
haviam passado pelo processo de maturação, ou aquelas, raras, que os gafanhotos não
atacaram.8
A chegada dos gafanhotos à localidade do Rio do Couro, segundo Primo, foi bastante
tumultuado, pois as pessoas ficaram desesperadas ao verem suas lavouras, hortas e a própria
mata serem destruídas pelos insetos, apesar de já saberem que os gafanhotos poderiam chegar
a qualquer momento e que causariam grandes prejuízos. Os animais, como bovinos e eqüinos,
começaram a correr de um lado para o outro, assustados com inúmeros insetos que devido à
quantidade, chegavam a tapar a luz do sol.9
A notícia que uma nuvem de gafanhotos estaria se aproximando do município de Irati
era divulgada através do rádio. Segundo Primo, nesse momento eram poucas as pessoas que
possuíam um rádio, que era o principal meio de comunicação. Era através dele, também, que
eram divulgadas as possíveis origens da nuvem de gafanhotos.10
Para Lemes a nuvem de gafanhotos que destruiu as plantações no Faxinal do Rio do
Couro, tinha origem na Argentina, lugar que, segundo ele, havia um “banhado” onde esses
insetos nasciam e proliferavam, mas também eram combatidos com inseticidas pelo governo
argentino. Todavia, nesse período houve um descuido do governo e os insetos se
multiplicaram, de maneira que se deslocaram para outros países, no caso o Brasil.11
Segundo Clara Specht seu pai lia inúmeros livros e relatava que esses gafanhotos
teriam origem na África e que devido à grande quantidade teriam vindo para o Brasil.12 Outra
explicação dada pelos faxinalenses era a de que os gafanhotos se originavam numa ilha
marítima de onde partiam em nuvem.13
O jornal “Correio do Oeste”, de Guarapuava, em uma notícia, também divulga a
possível origem da nuvem dos gafanhotos: “[...] uma enorme nuvem de gafanhotos está
atravessando pelos Estados do sul do Brasil, vinda da direção das Repúblicas Argentina e
Paraguay, tendo já atingido o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.”14
Após a infestação dos gafanhotos no Paraná, o governo estadual, juntamente com o
Ministério da Agricultura dividiu o Estado em oito zonas, cada uma delas subdividida em

8
LEME, Alvindo. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 05/02/2011.
9
PRIMO, Jerônimo Maneira. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 24/05/2011.
10
Ibidem.
11
LEME, Alvindo. Op. cit.
12
SPECHT, Clara. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 20/01/2011.
13
PRIMO, J. M. Op. cit.
14
FOLHA DO OESTE. Op. cit.

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postos de abastecimento, estes ainda subdivididos em setores. Cada setor contando com uma
ou mais equipes de combates, de acordo com a intensidade da infestação.
Segundo a mensagem do então governador do Paraná, essas medidas de combates aos
gafanhotos não tiveram pleno êxito devido à falta de estradas de ferro, para o transporte dos
materiais até as regiões afetadas. Em conseqüência deste evento houve uma queda na
produção agrícola, levando muitos municípios a importar cereais para o consumo interno.15
Na mensagem de governo de Lupyon, não há referência sobre alguma ajuda que a
administração estadual tenha enviado para os pequenos agricultores, como o caso dos
faxinalenses. Nas entrevistas os moradores relatam que receberam lança-chamas e tambores
de querosene para auxiliar no combate dos gafanhotos que devoravam as plantações. Alvindo
Lemes relata que além dos lança-chamas receberam alimentos e também sementes para
iniciarem uma nova plantação.16 Contudo, os moradores não sabem se esse auxílio vinha do
governo estadual ou da própria prefeitura de Irati, na qual, não foi encontrado nenhum
registro sobre esses possíveis donativos.
Além do combate com os lança-chamas haviam outras formas para combater os
gafanhotos. Uma delas era a abertura de valas no chão, que eram utilizadas como armadilhas
para os gafanhotos da seguinte forma: as pessoas espantavam os insetos com galhos ou
mesmo com as próprias mãos para que caíssem no buraco que havia sido aberto, depois eram
queimados com querosene ou então cobertos com terra.17 Porém, essa técnica, segundo os
moradores não era muito eficaz, pois a quantidade de insetos era tanta, que enquanto os
faxinalenses se preocupavam em fazer as valas, as plantações continuavam sendo devoradas
por outras nuvens de gafanhotos.
As benzedeiras também tentaram combater a infestação nos campos por meio de
alguns rituais. Segundo Primo, na localidade do Rio do Couro, haviam inúmeros “curadores”,
que faziam vários tipos de benzeduras. Dois deles tentaram espantar os gafanhotos, um
homem, o “velho Rael” e uma mulher “a velha Gertrudes”. Primo relata que ambos se
dirigiam às lavouras e faziam alguns gestos utilizando ramos verdes, além disso, conta que a
benzedeira Gertrudes, garantia que suas rezas eram mais eficientes que os outros métodos

15
LUPYON, M. Mensagem de governo. Op. cit. p. 34.
16
LEME, Alvindo. Op. cit.
17
PRIMO, J. M. Op. cit.

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utilizados pelo restante das pessoas para combater a infestação. Relatava, também, ser
responsável pela expulsão definitiva dos gafanhotos do faxinal18.

Na década de 1940 os gafanhotos não foram o único problema para os faxinalenses,


pois nesse período ocorreu também a peste suína. Conforme mensagem apresentada pelo
governo de Moyses Lupyon, no ano de 1948 à Assembléia Legislativa do Paraná, a peste
suína havia se tornado uma calamidade pública em todo Estado. Em 1947 novos focos
apareceram e a peste propagou-se em vários locais do Estado, ameaçando outras regiões que
ainda não haviam sido infectadas. Para tentar controlar o alastramento da peste o governo
estadual e o Ministério da Agricultura dividiram o Estado em duas zonas de ação: a primeira
sob a responsabilidade do governo federal, por exigir maiores recursos; e a segunda zona de
ação ficou sob a responsabilidade da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio,
abrangendo os demais municípios do estado.19
Neste documento consta que outras medidas foram tomadas para tentar conter o
alastramento da peste suína como a distribuição de vacinas, interdição do trânsito de veículos
que transportavam animais vivos para regiões onde não havia focos da peste, proibição do
trânsito de tropas de suínos, além da formação de conselhos responsáveis pelo procedimento
dos criadores para com os animais mortos e infectados.20
Na região de Irati algumas destas medidas foram implantadas por parte da
administração, como mostra um ofício enviado para o inspetor do distrito de Guamirim,
datado de 21 de outubro de 1948. Neste ofício solicita-se a contratação de uma pessoa para
trabalhar na abertura de valas para os proprietários de porcos depositarem os animais mortos
pela peste. Esta pessoa seria responsável por percorrer o distrito alertando que os proprietários
não deveriam depositar os animais mortos nos pastos, nem lançá-los aos rios, mas sim,
enterrá-los.
Apesar da implantação de tais medidas, em pouco tempo a peste suína arrasou a
criação de porcos no faxinal, restando poucos deles: “A peste quando chegou foi um desastre
porque matava os porcos e eles se amontoavam todos, um em cima do outro, quando via
estavam mortos, (...) tem muitos que ficaram sem porco, [...]”21
Outra medida tomada pela prefeitura de Irati foi a vacinação, como mostra um

18
Idem.
19
Cf. LUPYON, M. Mensagem de governo. Curitiba, 1948. p. 31-32.
20
Idem, p. 33.
21
BERGER, Magdalena. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 27/02/2011.

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telegrama enviado pela prefeitura para o Rio de Janeiro solicitando quarenta vidros da vacina
“Cristal Violeta”. Em uma nota enviada ao jornal “Correio do Sul” de Irati, a prefeitura já
havia adquirido 4.800 doses desta vacina e ainda contava com um funcionário apto para a
aplicação destas gratuitamente. No entanto, o transporte do funcionário era de
responsabilidade de quem necessitasse de seu serviço.
A partir das entrevistas coletadas com moradores das localidades de Rio de Couro e
Faxinal do Rio do Couro22, ambas localizadas na zona rural do município de Irati,
constatamos que esse funcionário não foi convocado nestas comunidades, uma vez, que cada
morador se responsabilizava em vacinar seus porcos, individualmente ou com ajuda dos
vizinhos. No faxinal Faxinal do Rio do Couro havia um morador que se disponibilizava em
aplicar a vacina para os demais moradores como afirmou-nos Alvindo Leme, morador dessa
comunidade: “[...] aqui esse responsável era o Ambrósio, só que ele não ganhava nada, saía
para fazer as aplicações e não ganhava.”23
A vacinação dos porcos não era garantia de que estes não seriam infectados ou
mesmo não morreriam com a peste. Alvindo Lemes relata que até mesmo os porcos vacinados
morriam, como testemunhou.
Seu depoimento encontra ressonância no panfleto do “Instituto Vital Brazil:
laboratório de produtos químicos e biológicos S/A”, localizado em Niterói-RJ, que trata sobre
a vacina “Cristal Violeta”, a qual foi adquirida pelo município de Irati para combater a peste
suína, que diz o seguinte:
Esta vacina é exclusivamente preventiva e só deve ser aplicada em
porcos sadios e ainda não foram contaminados pelo Vírus da peste
suína. A imunidade conferida pela vacina só se estabelece 3 semanas
após a vacinação. Durante esse período, os porcos vacinados estão
sujeitos a contraírem a doença, caso haja contaminação.24

Talvez, muitos dos porcos vacinados acabavam morrendo, como relata seu
Alvindo, por já estarem contaminados pela peste suína, ou então, acabavam se contaminando

22
Aqui faz-se necessário um esclarecimento sobre a comunidade do Rio do Couro e Faxinal do Rio do Couro.
Esses dois faxinais apesar se serem vizinhos e possuírem seus moradores a maioria de descendência italiana, são
comunidades distintas e não devem ser confundidas como a mesma localidade. As práticas culturais dessas
comunidades são bastante semelhantes, contudo, no Rio do Couro, o criadouro comunitário foi desativado na
década de 1980. Já no faxinal Faxinal do Rio do Couro, a criação de animais em regime de compáscuo ainda é
praticada.
23
LEMES, Alvindo. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 05/02/2011.
24
INSTITUTO VITAL BRAZIL: Laboratório de produtos químicos e biológicos s/a. Panfleto. Niterói-RJ, sem
data.

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durante as 3 semanas após a vacinação.


Em pouco tempo a peste suína arrasou a criação de porcos no faxinal, restando
poucos deles: “A peste quando chegou foi um desastre porque matava os porcos e eles se
amontoavam todos, um em cima do outro, quando via estavam mortos, (...) tem muitos que
ficaram sem porco, [...]” 25
Alvindo Lemes relata-nos que, a partir do momento que a peste suína começou a
infectar, e conseqüentemente, matar os porcos, os faxinalenses foram proibidos de abater os
mesmos para o consumo. No entanto, algumas pessoas, acabavam aproveitando a carne
daqueles que haviam morrido. Outros ainda, quando ouviam boatos que alguns porcos
estavam morrendo no faxinal pela peste, fechavam alguns animais no chiqueiro para os
matarem o quanto antes, não correndo o risco de perdê-los. Lemes ainda conta, que no
período em que ocorreu tal fato, era difícil alguém consumir a carne suína, pois a maioria não
possuía um “porco gordo”, que era o ideal para o abate. Através da fala do depoente, pode-se
entender que muitos deixaram de consumir a carne dos porcos, devido à escassez dos suínos
provocada pela peste e não por medo de alguma contaminação.

2. SEM OS PORCOS E SEM A LAVOURA: COMO O FAXINAL SOBREVIVEU?

Uma das hipóteses para a sobrevivência do sistema faxinal, bem como a permanência
das pessoas no campo, pode estar relacionado à própria organização do sistema, que estava
baseado na solidariedade que se estendia muito além da própria comunidade. Através das
entrevistas pudemos perceber que esse elemento se fez presente tanto durante a ocorrência da
peste suína como da infestação dos gafanhotos.
Em relação à peste suína essa rede de solidariedade pode ser observada na própria
reconstituição da criação de porcos no faxinal. Segundo Berger raros foram os animais que
resistiram à doença, contudo, aqueles que restaram eram emprestados ou então vendidos para
os vizinhos para tentar recompor a criação.
Já em relação à infestação de gafanhotos, as manifestações de apoio mútuo se
fizeram ainda mais presentes. Segundo Primo o período do ano em que os gafanhotos
chegaram à localidade do Rio do Couro era o do início das plantações. Assim sendo, os

25
BERGER, Magdalena R. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 27/02/2011.

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alimentos estocados estavam praticamente no fim e os faxinalenses contavam com uma nova
colheita que foi frustrada pelos gafanhotos que devastaram as plantações, ou seja, o alimento
para as famílias e animais durante todo o ano26.
Primo nos relatou que seu pai, João Batista Maneira, era um dos poucos moradores
do faxinal que ainda possuía uma quantidade razoável de milho estocado no paiol. Após a
infestação dos gafanhotos várias pessoas começaram a procurá-lo para comprar milho ou
mesmo emprestar. Em poucos meses o paiol esvaziou:

Nós tínhamos um paiol de milho em casa cheio da safra passada e meu pai
emprestou milho até lá pro Mato Queimado, vinham buscar milho até aqui
desse faxinal, quantos e quantos vieram emprestar milho para comer, para
fazer o fubá, para fazer a farinha, não era para engordar criação [...]27
Através destes depoimentos pode-se perceber a organização social baseada na
solidariedade. Essa ajuda não ocorria somente em períodos de escassez de alimentos, mas
durante todo o ano, fazendo parte da própria cultura faxinalense: “[...] se não tinha uma coisa
para dar, o outro vinha e trazia era assim, sempre tinha.”28

As bodegas que existiam na localidade do Rio do Couro, segundo os depoimentos,


também foram um elemento importante para a permanência das pessoas no campo no período
de escassez de alimentos causados pelos gafanhotos. Muitas pessoas mesmo sem possuir
dinheiro, se dirigiam até esses armazéns para comprar “a fiado”. Outros ainda trocavam
produtos como ovos, galinhas e sementes por outros gêneros alimentícios, como açúcar, sal e
farinha. Outros conseguiram sobreviver, comprando nas bodegas com o dinheiro que haviam
conseguido através da coleta de erva-mate.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao final deste artigo pudemos perceber que a infestação de gafanhotos e a peste


suína alteraram o cotidiano dos faxinalenses naquele momento, uma vez que estes foram
obrigados a adotar práticas de combate aos insetos e a mortandade nos porcos que não haviam
sido utilizadas anteriormente. Esses eventos também colocaram à prova o sistema de faxinal
nas localidades do Rio do Couro, Faxinal dos Mellos e Faxinal do Rio do Couro. Sem a
26
PRIMO, J. M. Op. Cit.
27
Idem
28
BERGER, M. Op. Cit.

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possibilidade de criar os porcos seja para o consumo, seja para a venda aos safristas, por conta
da peste suína, sem a lavoura de subsistência, esta atacada pelos gafanhotos, que, juntamente
com os porcos garantiam o sustento das famílias, era de se esperar a ruína do faxinal. Um
êxodo para as cidades, uma migração em massa. Todavia, uma cultura cabocla, calcada no
trabalho comunitário, na religiosidade e nas relações de solidariedade possibilitaram enfrentar
os problemas causados pela infestação de gafanhotos e a peste suína.

Como pudemos perceber, estes eventos produziram e ainda produzem diferentes


narrativas, sejam elas institucionais ou faxinalenses, que permitem ao pesquisador uma ampla
gama de possibilidades de análise. As narrativas faxinalenses que foram coletadas são
permeadas de inúmeros detalhes que revelam o cotidiano, as práticas, as crenças desses
indivíduos que vivenciaram a praga e a peste nos faxinais. Neste sentido, este artigo contribui
de alguma forma para ampliar as discussões acerca do sistema faxinal, tema que apesar de
rico em possibilidades de análise, ainda carece de mais pesquisas.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, W. B. Alfredo; SOUZA, Roberto M. de (Orgs.). Terras de Faxinais. Manaus:


Edições da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, 2009.

CHANG, M. Y. Faxinais: Uma forma de organização camponesa em desagregação no


Centro-sul do Paraná. Boletim nº 22. IAPAR. Londrina, PR 1988.

MARQUES, Cláudio. Levantamento preliminar sobre o sistema faxinal no estado do


Paraná (Relatório Técnico) – Instituto Ambiental do Paraná. Guarapuava, 2004.

NERONE, Maria Magdalena. Terras de plantar – terras de criar – Sistema Faxinal:


Rebouças – 1950-1997. Tese de Doutorado em História, UNESP/Assis, 2000.

SOCHODOLAK, Hélio; CAMPIGOTO, José Adilçon Os faxinais da região das araucárias.


In: MOTTA, Márcia Menendes; OLINTO, Beatriz Anselmo e OLIVEIRA, Oseias. (orgs)
História Agrária: propriedade e conflito. Guarapuava: Unicentro, 2009.

SOCHODOLAK, Hélio; MANEIRA, Regiane. Os faxinais na região de Irati na década de


1940: a força de uma cultura tradicional. In: Anais do XI Congresso Luso Afro Brasileiro
de Ciências Sociais – Diversidades e (Des)Igualdades. UFBA, 2011.

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5. FONTES:

SPECHT, Clara. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 20/01/2011.

BERGER, Magdalena R. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 27/02/2011.

LEMES, Alvindo. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 05/02/2011.

PRIMO, Jerônimo Maneira. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 24/05/2011.

GOVERNO DO ESTADO DO PARANÁ. Mensagem. Curitiba, 1948. Documento composto


de 145 páginas, disponível em:
http://www.arquivopublico.pr.gov.br/arquivos/File/pdf/Ano_1948_MFN_941.pdf. Acesso em
23.08.2010.

FOLHA DO OESTE. A invasão dos gafanhotos. Guarapuava, Paraná, 6 de outubro de 1946/


nº 20.

INSTITUTO VITAL BRAZIL: LABORATÓRIO DE PRODUTOS QUÍMICOS E


BIOLÓGICOS S/A. Panfleto. Niterói-RJ, sem data.

PREFEITURA MUNICIPAL DE IRATI. Notas. Correio do Sul. Irati, 19 de março de 1948.

PREFEITURA MUNICIPAL DE IRATI. Ofício 53/48 enviado ao Serviço de estatística da


produção do RJ. 15 de março de 1948.

PREFEITURA MUNICIPAL DE IRATI. Ofício 54/48 enviado ao Serviço de estatística da


produção do RJ. 28 de maio de 1948.

PREFEITURA MUNICIPAL DE IRATI. Ofício. Inspetor do Distrito de Guamirim. Irati, 21


out. 1948.

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ST 09 – AS MULTIFACES DO PODER NA HISTÓRIA
E NAS CIÊNCIAS HUMANAS
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UMA ANÁLISE DA IMAGEM DE REI E DA NOBREZA A PARTIR DOS ESCRITOS DO


CONDE PEDRO AFONSO DE BARCELOS

Adriana Mocelim de Souza Lima (História PUCPR/UFPR)


Orientadora: Profª Dra. Fátima Regina Fernandes

Linhagens – Crônica – Idealização

Há dez anos, ainda durante a Graduação em História iniciei meus estudos relacionados
à Idade Média, de maneira específica relacionados à história medieval portuguesa com
destaque para as obras do Conde Pedro Afonso de Barcelos, filho bastardo do rei Dinis.
Ao longo desse percurso pude desenvolver minha monografia levantando elementos
acerca da nobreza medieval portuguesa referenciada no Livro de Linhagens1 do Conde Pedro
de Barcelos. A partir desse primeiro estudo foram suscitados novos questionamentos que
levaram à elaboração da dissertação de mestrado, defendida em 2004, intitulada “Por meter
amor e amizade entre os nobres fidalgos da Espanha. O Livro de Linhagens do Conde Pedro
Afonso no contexto tardo-medieval português.”
Na dissertação de mestrado foi analisada a construção de uma imagem ideal de Rei e
de Nobreza a partir dos trechos de narrativas históricas presentes na obra, embora geralmente
curtas, aparecem em grande quantidade, foram analisados cerca de quarenta e cinco trechos,
ligados a tradições familiares. Dentre eles encontram-se anedotas, trechos que põe em relevo
valores da vassalidade e outros que se aproximam bastante do gênero histórico presente nas
Crônicas.
A partir da análise de uma das obras do Conde Pedro de Barcelos veio o interesse em
continuar a pesquisa, ingressando assim no doutorado analisando agora a Crônica Geral de
Espanha de 13442. Trata-se de uma obra com outras características, um novo universo a ser
desvelado.

1
PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova Série. Ed. crítica
por José Mattoso. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. 2 Volumes.
2
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed.
Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990. 4 Volumes.

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A presente comunicação traz alguns elementos que foram levantados até o presente
momento da pesquisa destinada à elaboração da Tese de doutorado, cuja problemática está
ligada ao levantamento de elementos, presentes na Crônica Geral de Espanha de 1344, que
possam caracterizar uma representação de rei e de nobre ideal. Tal análise será vinculada ao
trabalho já elaborado a partir do Livro de Linhagens.
O autor do Livro de Linhagens e da Crônica Geral de Espanha de 1344, o Conde
Pedro Afonso, foi filho bastardo do rei Dinis de Portugal, com Grácia Aires, nasceu por volta
de 1285 e faleceu em 1354. Pedro Afonso contou sempre com uma grande proteção de seu
progenitor chegando a receber do rei Dinis, de forma vitalícia no ano de 1314, o Condado de
Barcelos, único existente no reino português.
O reinado de Dinis ficou conhecido como a primeira administração completa que
houve em Portugal, com leis destinadas à realidade política, econômica e social. Esse
processo de concentração de poder político na pessoa do rei permitia-lhe combater o poder
senhorial. Para isso, fez uso dos instrumentos jurídicos que estavam ao seu dispor, chegando a
pegar em armas quando foi necessário para alcançar seus objetivos.
Dinis desenvolveu uma luta lenta e insidiosa, contra senhores que pudessem fazer uso
de maneira ilegítima de direitos senhoriais, com prejuízo da jurisdição régia. Como forma de
controle, fez uso das inquirições gerais3 de maneira persistente e sistemática, tornando-as
mais incisivas sobre a nobreza, especificamente sobre a nobreza mais tradicional do Norte,
visando assim delimitar honras e direitos senhoriais.
O rei chamava para si o direito de interferir na sucessão do patrimônio senhorial,
demonstrando na prática que a confirmação dos direitos dependia de sua generosidade de rei e
senhor. Em 1305 chegou a promulgar uma lei proibindo os nobres de armarem cavaleiros e
vilãos dos Concelhos, declarando-se o único que podia exercer este privilégio.
A nobreza manifestara-se contra a centralização régia, inicialmente através de
protestos nas Cortes contra a quebra de imunidades senhoriais, gerando no reino um clima de
instabilidade, que o rei tentava dissuadir através de medidas militares. As Cortes funcionavam
como um espaço “de diálogo, de cobrança, denúncia e fiscalização. Era o espaço onde se

3
Segundo Adeline Rucquoi, as inquirições eram inquéritos gerais ou recenseamentos realizadas por funcionários
reais. Tinham como finalidade o conhecimento exato da repartição dos domínios nobres e dos concelhos
urbanos, além das usurpações efetuadas pela nobreza e ordens monásticas. RUCQUOI, Adeline. História
Medieval da Península Ibérica. Lisboa, Estampa, 1995.

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podia medir o grau de executabilidade, na prática, das políticas régias.” 4 Não se pode
comprovar a eficiência das Cortes em relação aos abusos e omissões dos agentes régios,
porém não se pode dizer que desempenharam um papel meramente decorativo, dentro da
organização política do reino português.
De 1285 a 1316 os nobres tentaram opor ao rei uma resistência passiva, ou através de
processos legais. Nesse período o rei continuava firme em seus propósitos, persistindo nos
inquéritos e decisões, adiando respostas a apelos judiciais, ou ainda obtendo sentenças a seu
favor. Em 1316 os esforços dos fidalgos terminam, no ano seguinte esboça-se a oposição do
Infante Afonso ao seu pai Dinis, tornando-se aberta em 1319.
O Infante Afonso, sobretudo depois de atingir a maioridade, casar e possuir Casa
própria, começou a discordar abertamente de seu pai. Rapidamente, começaram a se reunir à
sua volta os nobres descontentes, contribuindo assim para agravar os conflitos entre o rei e o
herdeiro. A maior queixa do rei em relação ao Infante estava no fato deste reivindicar para si
o regimento da justiça do reino. Os nobres aliados ao Infante esperavam conseguir assim uma
administração judicial menos rigorosa, pois poderiam reduzir as pretensões dos juristas que
desprezavam os costumes ancestrais dos nobres e só pensavam em aplicar princípios
racionais, não valorizando prestígios ou tradições.
O conflito que antes de opor grupos antagônicos dentro do reino português, opôs Dinis
e seu herdeiro Afonso, futuro Afonso IV, chegou a ser considerado por alguns autores, como
José Mattoso, como o mais prolongado e mais sangrento conflito desde o processo de
sucessão de Sancho II (1223-1247) até a crise de 1383. Ao longo da guerra civil Dinis assinou
e divulgou no reino três manifestos contra o filho e seus partidários.5
O Conde Pedro Afonso permaneceu ao lado do rei na fase inicial da Guerra Civil
(1319 a 1324). Ao mesmo tempo buscou aproximar-se do Infante Afonso, herdeiro legítimo
da coroa portuguesa. Após desentendimentos com João Afonso e Afonso Sanchez, seus
irmãos e principais oponentes do Infante Afonso, entrou em desserviço para com o rei, foi
desterrado e exilado em Castela, onde permaneceu de 1317 a 1322.
4
FERNANDES, Fátima Regina. As Cortes medievais portuguesas e sua relação com o poder régio –
segunda metade do século XIV. Anais da XIX Reunião Anual da SBPH, Curitiba, SBPH, 2000, p. 04.
5
No manifesto de 1320 Dinis queixa-se de que “os fauores que tinha feito ao Infante do tempo, em que sendo de
pouca idade lhe dera Casa, não se costumando em Portugal até então dar Casa aos Infantes, porque todos comiaõ
à mesa dos Reys seus pays; como despois em seu cazamento lha acrescentàra a elle, & à Infanta sua mulher
grandes rendas, & senhorios das terras, & lhe ajudàra a criar seus filhos com grande amor, & que naõ forão
bastantes tantas demonstraçoens de beneuolencia para o Infante lhe naõ fazer os agrauos seguintes.”
BRANDÃO, Francisco [1672] Monarquia Lusitana: parte sexta. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1980. p. 367. Et. Passim.

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Ao retornar de seu exílio em 1322, procurou reconciliar-se com seu pai, para que seus
bens pudessem ser restituídos. Procurou ainda desempenhar uma função conciliatória na
demanda entre Dinis e o Infante Afonso, ao lado da rainha Isabel. As conversações de paz que
vieram a culminar com um acordo de paz em 1322, tiveram como principais intercessores a
rainha Isabel e o Conde de Barcelos, Pedro Afonso. Esse acordo só veio a ser celebrado em
1324, quando chegou a Santarém o arcebispo de Compostela, enviado pelo Papa para
confirmar os acordos de paz estabelecidos, tentando, com sua presença imprimir um caráter
definitivo à celebração da paz.
A Guerra Civil (1319-1324), desencadeada pela tentativa de “implantação de uma
autoridade monárquica que se coloca acima de todos os poderes e que tem, como primeiro
ponto do seu programa a supressão das prerrogativas dos senhores,”6 foi um conflito que
gerou polarização social com o apoio preferencial dos concelhos ao rei e dos nobres ao
Infante; além de polarização regional opondo o Norte senhorial e agrícola ao Centro e Sul
concelhio e urbano. O que estava em jogo não eram tanto os interesses de grupos sociais que
apoiavam este ou aquele contendor, mas o fato de aceitar ou não a centralização política, que
na realidade não prejudicava apenas os nobres, além de mostrar que não era possível acabar
facilmente com os privilégios senhoriais da nobreza
Os critérios definidores da nobreza continuavam a ser os mesmos durante o início do
século XIV, no entanto alternara-se a hierarquia de tais critérios, o sangue dá lugar ao serviço
ao rei, fonte primeira de benefícios, nobilitação e alçamento sócio-político em seguida vem o
patrimônio e depois o sangue. A supremacia social da nobreza baseava-se cada vez mais na
influência que exercia sobre os órgãos centrais do reino, e não tanto no exercício de poderes
senhoriais de âmbito regional. Cada vez mais a proximidade em relação ao rei tornava-se
decisiva para a manutenção dos direitos senhoriais. O rei tornava-se um árbitro das questões
entre as outras forças sócio-políticas do reino, em particular da nobreza.
Após a morte de Dinis em 1325 e a ascensão ao trono do Infante Afonso como Afonso
IV, o Conde Pedro Afonso fixou-se no Paço de Lalim, perto de Lamego, participando em
momentos de conflitos gerados entre os reinos de Castela e Portugal, combatendo ao lado de
seu irmão Afonso IV, prendendo, matando e destruindo com “braço tão forte, & golpe tam

6
MATTOSO, José. A guerra civil de 1319-1324. In: Estudos de História de Portugal. Vol. I – séculos X-XV.
Lisboa: Estampa, 1982. p. 176.

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rijo, que se afogava a resistencia em seu mesmo sangue.”7 Foi nomeado por Afonso IV, para
participar do acordo de paz entre os reinos de Portugal e Castela, porém em função de
encontrar-se enfermo não pode acompanhar o Arcebispo Gonçalo Pereira na data
estabelecida.
É atribuído ao Conde Pedro Afonso um amplo conjunto de obras literárias, de variada
natureza, no qual se inclui a Crônica Geral de Espanha de 1344 e o Livro de Linhagens, além
de cantigas. Tais obras foram escritas na primeira metade do século XIV, “época de transição
dos valores mais tradicionais e do surgimento de mecanismos de poder cada vez mais subtis.”
8

Sua obra é considerada ainda uma das melhores fontes para o estudo da história social
portuguesa no período da Dinastia Afonsina: tal fato deve-se à enumeração de gestas, nomes e
de costados presentes na obra. Percebe-se em seus escritos forte influência da Corte
castelhana, na leitura de textos históricos e no método historiográfico, colocado em prática
por seu bisavô Afonso X. É reconhecido ainda como “um dos primeiros escritores de língua
portuguesa, não propriamente pelo valor da sua prosa, mas pela atividade que o situa nas
raízes do movimento historiográfico nacional.” 9
O século XIV, período em que o Conde escreveu suas obras, foi marcado por uma
colaboração cada vez maior de clérigos e leigos na constituição da cultura profana em
Portugal. Nessa conjuntura, o Conde aparece como um sintetizador de tais influências. Para
escrever suas obras o Conde “recolheu tradições criadas no mundo profano como no clerical,
histórias e narrativas das Cortes Régias como de Casas Senhoriais, de cavaleiros de origem
goda, francos ou flamengos.” 10
A história transparece nas obras do Conde Pedro Afonso como “o espelho dos grandes
homens que se haviam destacado por feitos heróicos e por uma conduta que se fundava nos
ideais de honra e valentia,”11 em função disso seria inspirada pela exaltação da nobreza, das
grandes famílias. Exaltação essa, que se faz presente em diversos momentos ao enaltecer
feitos dos fidalgos e reis além de não valorizar, ou até mesmo condenar determinadas atitudes.
7
JESUS, Rafael de. [1683] Monarquia Lusitana: Parte Sétima. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1985. p. 403.
8
FERNANDES, Fátima Regina. Discurso e poder na obra de Pedro Afonso, Conde de Barcelos. In: Anais do
IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, Belo Horizonte, PUC de MG/ ABREM/ CNPq e FAPEMIG,
2003, p. 351.
9
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. VOL. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 374.
10
MATTOSO, José. A literatura genealógica e a cultura da nobreza em Portugal (s. XIII-XIV). In: Portugal
medieval: novas interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. p. 327.
11
Idem. p. 373.

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A obra do Conde Pedro Afonso tem como característica desvendar o quadro senhorial
português que antecede a grande crise da primeira dinastia. Além de constituir, a esse título,
um notável documento histórico para compreender a fase inicial do Reino através da
descrição das tradições e da mentalidade da nobreza.
Nesse contexto, entre o final do reinado de Dinis e o início do reinado de Afonso IV,
período em que o Conde escreveu o Livro de Linhagens e a Crônica Geral de Espanha de
1344, é que se encontra o foco principal da presente comunicação.
Durante a elaboração da dissertação de Mestrado foi possível analisar a caracterização
de “rei ideal” proposta pelo Conde no Livro de Linhagens. A imagem de “rei ideal”
construída pelo Conde é definida pela figura de um rei que domina a hierarquia da nobreza, é
ele quem define escalões, confere prestígio. O rei constitui-se, nessa visão, como elemento
chave na aplicação da justiça e das leis. As leis elaboradas pelo rei são feitas para todos do
reino. Dessa forma centralizaria sua autoridade, sobrepondo-a aos poderes locais. Essa
centralização, no entanto só seria alcançada se governasse de maneira piedosa, com justiça e
misericórdia. A justiça deixaria de ser um privilégio para tornar-se um direito de todos, em
nome do rei.
O bom rei deveria desenvolver ações a fim de que houvesse “amor” e “amizade” entre
seus súditos, zelando e promovendo o bem comum. A figura do rei como regulador e
promotor do bem comum é necessária na medida em que a nobreza encontra-se fragmentada,
desorientada e sem consciência de grupo e da importância que possui dentro do reino. Dois
valores que permitiriam à nobreza ajudar-se mutuamente: “amor” e “amizade” estariam sendo
deixados de lado. A monarquia permitiria aos nobres retornar ao “amor” e à “amizade,”
ajudaria para que não fizessem mal uns aos outros, permitindo a configuração da unidade
Hispânica, almejada e distante da realidade.
Essa imagem ideal contrasta com uma realidade bem diferente, marcada por revoltas
nobiliárquicas, disputas entre reis e infantes. Em Portugal o Infante Afonso reivindicara o
exercício da justiça dentro do reino, sendo esse um dos fatores que contribuiu para a Guerra
Civil no final do reinado de Dinis. É uma realidade marcada ainda por reis, que na busca da
centralização não souberam relacionar-se com a nobreza, não levaram em conta seus valores e
tradições, não proveram a paz e nem garantiram o bem comum em seus reinos.
Foi analisada, ainda, a imagem do “nobre ideal”, elaborada pelo Conde a partir da
valorização do ideal cavaleiresco, pautada em virtudes como Amizade, Fidelidade e Honra,

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além de valores como a Bravura e a Coragem do Cristão, defensor da Cristandade frente ao


infiel. O “nobre ideal” é ainda o bom conselheiro de seu senhor, ou do rei ao qual está ligado
por laços de vassalagem, e ainda o que zela pelo bem comum.
Para a nobreza o Livro de Linhagens seria empregado para fortalecer as linhagens,
serviria ainda como referência, instrumento de afirmação, coesão e estruturação. Por meio
dele a nobreza tomaria consciência de sua identidade no seio da sociedade. Identidade essa
baseada no sangue, no patrimônio e na honra. Ao mesmo tempo em que fazia a nobreza
sentir-se importante, cobrava dela um determinado comportamento em conformidade com a
essência social que lhe era atribuída.
O que forneceria à nobreza uma consciência de grupo seria a teoria da solidariedade
decorrente do parentesco, baseada no “amor” e na “amizade.” A amizade aparece já o prólogo
do Livro de Linhagens ao escrever que entre os nobres “deve haver amizade segundo seu
ordinamento antigo em dando-se fe pera se nom fazerem mal ũus aos outros.”12 Tais valores
impediriam as divisões no seio da própria nobreza, fortalecendo-a perante a sociedade,
garantindo o auxílio mútuo. Dessa maneira poderia lutar pelo seu espaço. A nobreza é
idealizada de forma unida, como uma entidade que está acima dos particularismos, não
conhece fronteiras.
Uma segunda etapa de análise das obras do Conde Pedro de Barcelos está em
andamento, voltada ao estudo da representação de monarca e de nobre presente na Crônica
Geral de Espanha de 1344. Trata-se de uma obra que se insere dentro de um estilo literário
que primeiro foi empregado, segundo Luís Filipe Lindley Cintra na introdução da Obra, no
reinado de Afonso X de Castela, através da Crônica Geral de Espanha.
Atribuída, por Luís Filipe Lindley Cintra, a autoria da Crônica Geral de Espanha de
1344 ao conde Pedro Afonso, faz-se necessário analisar o cronista Pedro Afonso. A redação
da Crônica teria acontecido após a conclusão do Livro de Linhagens, podendo ter sido o
mesmo, assim como suas fontes, utilizado como base para a redação da Crônica. Na primeira
versão da Crônica havia um esquema de história universal de caráter puramente genealógico,
“concebida dentro do mesmo espírito e redigida no mesmo estilo que o esquema de história

12
PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova Série. Ed.
Crítica por José Mattoso. Vol. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. p. 56.

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universal com que se inicia o Livro das Linhagens. A Crônica começa pois como obra de um
genealogista.”13
Ao dedicar-se à refundição da Primeira Crônica Geral aparece, segundo Lindley
Cintra, o estilo amplo do cronista, no entanto podem ser encontrados ao longo do texto alguns
esquemas genealógicos e apontamentos linhagísticos, marca do autor.
Na refundição faz uso de diversas fontes, tentando “recuperar alguns elementos do
passado mais distante ausentes das fontes manuseadas para os períodos posteriores.”14
Prolonga as histórias dos reis de Navarra e Aragão, traz a história dos reis da Sicília, versões
genealógicas dos reis da Bretanha, de Inglaterra e da França, sendo que “nenhuma dessas
histórias era abrangida pela Crônica de Afonso, o Sábio.” 15 A Crônica Geral de 1344 resulta
da união de uma versão da Crônica Geral de Afonso X a extensos enxertos da Crônica do
Mouro Rasis, da Crônica dos Vinte Reis, do Liber Regum, de textos poéticos e históricos.
A primeira redação da Crônica de 1344 termina com o relato dos reis de Castela e
Leão, chegando a Afonso XI, caracterizando-se assim como uma obra marcada pela
heterogeneidade de seu autor que se desloca entre a genealogia e a crônica, pensando em uma
história genealógica universal.
Existe, no entanto, uma segunda versão da Crônica Geral de Espanha de 1344 escrita,
segundo Lindley Cintra, no período final do século XIV ou início do XV. Sendo difícil, a
partir dos registros encontrados, precisar com maior clareza a data efetiva da redação da
mesma. Na segunda redação da Crônica de 1344 os redatores se preocuparam em fazer
desaparecer muitos dos trechos genealógicos, recuperando boa parte da versão afonsina dos
períodos mais antigos, dando ao texto um estilo mais elaborado e uniforme. 16
Na versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, elaborada após a refundição, podem
ser encontrados extratos que são atribuídos ao próprio Conde Pedro Afonso de Barcelos.
Nesses trechos refere-se de maneira muito particular aos reinados de Dinis, seu pai, e de
Afonso IV, seu irmão. São textos de relevante interesse histórico, constituindo “um precioso

13
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed.
Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990. Vol. I Introdução. p.
188.
14
DIAS, Isabel de Barros. Metamorfoses de Babel, a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e
estratégias textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003. p.
96.
15
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. Op. Cit., p. 35.
16
DIAS, Isabel de Barros. Metamorfoses de Babel. Op. Cit., p. 97.

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depoimento de um contemporâneo que, pela sua posição, estava nas melhores condições de
observar os fatos.” 17
Para poder escrever acerca desse período o Conde empregou sua vivência na Corte de
Dinis, sua ativa participação como mediador na demanda entre Dinis e o Infante Afonso
durante a Guerra Civil, que aconteceu no reino português entre 1319-1324, e sua participação
no reinado de Afonso IV, além de relatos contemporâneos.
Ao se referir ao reinado de Dinis descreve com uma minúcia de detalhes
acontecimentos nos quais ele mesmo esteve presente, como nas viagens do rei Dinis a Aragão
em 1304, não deixando, entretanto de narrar acontecimentos em que não esteve presente. Nas
referências aos períodos do reinado em que atuou diretamente junto ao rei Dinis,
desempenhando importante papel na vida pública “há inúmeras informações acerca da sua
18
actuação, algumas delas com nítido carácter de justificação de atitudes por ele tomadas.”
Emprega desta forma a Crônica para narrar suas ações, muitas vezes justificando-as.
Tal qual já fizera Afonso X, na Crônica Geral de Espanha, o conde preocupou-se com
a formatação de uma história de abordagem universalista, sendo assim onde ficaria então a
novidade em relação aos escritos já realizados na Corte de Afonso X? Segundo Lindley Cintra
a novidade encontra-se na abundância de novas fontes utilizadas na Crônica Geral de Espanha
de 1344 e na ampliação das seções dedicadas a Aragão, Navarra e Portugal. A técnica
empregada pelo Conde para redigir a obra seria a mesma já consagrada por Afonso X,
tornando-se assim “um discípulo fiel dos processos compilatórios da escola castelhana de fins
do século XIII.” 19
Percebe-se ao analisar a produção do conde Pedro Afonso uma aproximação entre a
produção linhagística e a produção cronística, buscando construir dessa forma uma nova
leitura do passado ibérico, integrando o reino Português na história peninsular. Ressalta as
origens hispânicas e o superior ideal cavaleiresco manifestado na sua nobreza guerreira,
destacando ainda o papel dos reis portugueses na valorização da solidariedade e de
reconhecimento feudal capaz de permitir e valorizar a missão cruzadística dos fidalgos
portugueses. 20

17
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. Op. Cit., p. 399.
18
Idem., p. 397.
19
Idem., p. 416.
20
KRUS, Luís. Historiografia Medieval. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia
da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkin, 1997. p. 14.

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Outro ponto que deve ser observado é o de que o conde Pedro Afonso ao escrever a
Crônica, com feições universalistas, representava uma tendência que estava sendo
abandonada pela historiografia. Já na segunda versão da Crônica percebe-se indícios de
restrição do campo historiográfico. O foco principal da narrativa passa a ser somente o que
está diretamente relacionado à Península Ibérica, esta mudança de foco narrativo está
diretamente relacionada ao contexto político que marca o final do século XIV e início do XV,
período supostamente de redação da segunda versão.
A partir dessa caracterização da Crônica, levando em conta a produção do Conde
Pedro Afonso e do refundidor, ou refundidores, são percebidos elementos tanto relacionados à
primeira metade do século XIV, momento de redação do Conde, quanto elementos que trazem
referências ao momento de elaboração da refundição da Crônica, na virada para o século XV.
São duas realidades distintas sim que não impossibilitam a análise, acabam por torná-la ainda
mais instigante.
Dentro de um contexto marcado pelo processo de centralização régia é que se
encontram elementos que caracterizam um modelo de rei e de nobre. Essa imagem pode ser
elaborada por meio da análise da trajetória empregada pelo autor, chegando aos reis do
momento em que está escrevendo. Destaque será dado aos trechos onde são descritos os
reinados de Dinis e Afonso IV, tais trechos, segundo Luís Felipe Lindley Cintra, teriam sido
redigidos pelo Conde Pedro Afonso de Barcelos e não por um refundidor da Crônica.
Além da imagem de “rei ideal”, estão sendo levantados elementos acerca do “nobre
ideal” apresentado ao longo da Crônica. Será possível assim construir uma imagem modelar
acerca desse nobre que vive no século XIV, momento caracterizado pela tentativa de se
fortalecer e definir seu espaço dentro da sociedade, frente às constantes tentativas
empreendidas pelos reis a fim de centralizar seu poder.
Além da análise da imagem de rei ideal e de nobre ideal será de fundamental
relevância a análise dos trechos que sabe-se são de autoria do Conde Pedro de Barcelos, essa
análise ajudará a compreender mais sobre esse autor. Trata-se de um nobre, escrevendo sobre
valores e tradições da própria nobreza, inserido nesse contexto do século XIV tendo sido
influenciado por um conjunto de fatores psicológicos (conscientes ou inconscientes) de ordem
intelectual ou afetiva, que agindo entre si acabaram por influenciar sua obra.
Como irmão do rei Afonso IV preocupou-se em acentuar a ancestralidade da
monarquia portuguesa, mostrando a necessidade do monarca como elemento organizador da

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sociedade, devendo o mesmo levar em conta a importância da nobreza e seu papel de


colaboradora imprescindível nos feitos da monarquia. O Conde Pedro Afonso era filho de
Dinis, rei a quem em determinadas situações deixou de cumprir o juramento de vassalagem,
sendo desleal e infiel, valores tão caros na sua descrição do nobre ideal. Por fim o Conde era
membro da nobreza, sendo assim pretendia justificar a atuação da mesma junto à monarquia.
Do bom relacionamento entre rei e nobreza dependeria o bem comum do reino.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Francisco [1672] Monarquia Lusitana: parte sexta. Lisboa: Imprensa


Nacional/Casa da Moeda, 1980.
DIAS, Isabel de Barros. Metamorfoses de Babel, a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV)
construções e estratégias textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para
a Ciência e Tecnologia, 2003.
FERNANDES, Fátima Regina. As Cortes medievais portuguesas e sua relação com o
poder régio – segunda metade do século XIV. Anais da XIX Reunião Anual da SBPH,
Curitiba, SBPH, 2000.
___________. Discurso e poder na obra de Pedro Afonso, Conde de Barcelos. In: Anais
do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, Belo Horizonte, PUC de MG/ ABREM/
CNPq e FAPEMIG, 2003.
JESUS, Rafael de. [1683] Monarquia Lusitana: Parte Sétima. Lisboa: Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1985.
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MATTOSO, José. A guerra civil de 1319-1324. In: Estudos de História de Portugal. Vol. I –
séculos X-XV. Lisboa: Estampa, 1982.
_________. A literatura genealógica e a cultura da nobreza em Portugal (s. XIII-XIV). In:
Portugal medieval: novas interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
1985.

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PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova
Série. Ed. crítica por José Mattoso. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. 2 Volumes.
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Ed. Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da
História, 1990. 4 Volumes.
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa, Estampa, 1995.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. VOL. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1979.

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PRÁTICAS PROIBIDAS
ANÁLISE DOS PROCESSOS CRIMES DE INCESTO NA COMARCA DE REBOUÇAS -
UM ESTUDO DE CASO

Eduardo Mady Barbosa


Orientadora: Profª. Doutora Luciana Rosar Fornazari Klanovicz
(Mestrando do Curso de História da Universidade Estadual do Centro Oeste do Paraná)

Palavras–chave: Incesto, Proibição e Perenidade.

INTRODUÇÃO:

P: Que você pensa sobre seu pai estar preso?


D: Ah, eu não co-consigo falar, n-n-não tem palavra.
P: Você ainda não esqueceu o que ele fez?
D: Eu acho ruim... não gosto.
P: Ruim como? Que você sente, D?
D: Tenho, eu tenho dor de cabeça, tosse.
P: Você não gosta de falar sobre isso?
D: Não.
P: Você foi vê-lo na prisão. O que você sentiu?
D: Eu fiquei assustado, com medo dele. (PINTO JUNIOR, 2005, p. 135). 1

A utilização de processos-crimes como fonte de pesquisa historiográfica não


enseja atuais discussões acaloradas, ao contrário, este contato entre a vida nua e a produção
científica rendeu e vem rendendo dividendos a diversos autores: Peter Burke, Michel
Foucault, Sidney Chalhoub, Marta de Abreu Esteves, Sueann Caufield, Maria Corrêa, dentre
outros.
Tal posição é corroborada por Ginzburg em sua obra “O inquisidor como
antropólogo” ao afirmar que documentos antes não utilizados (tais quais processos
inquisitórios), são tidos como importantes, propiciando uma tendência historiográfica que
permite estudar aqueles que não tiveram chance na historiografia, como os “grupos sexuais ou
sociais como mulheres e camponeses, normalmente mal representados no que podemos
chamar de fontes oficiais” (GINZBURG, 1991, p. 31).

1
P: pesquisador. D: vítima.

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Referida afirmação é endossa por Martha de Abreu Esteves:

...através da análise dos discursos e pareceres de promotores, advogados e juízes,


presentes nos processos, e as publicações ligadas as jurisprudência (...), minha
interpretação maior foi de estabelecer os padrões sociais de comportamentos e
valores aceitos, definidos e difundidos no processo de formação de culpa e inocência
da época em questão. (ESTEVES, 1989, p. 31).

Mesmo considerando não ser o objetivo principal desta pesquisa a discussão


sobre o modo de produção historiográfica tendo como fonte os processos jurídicos lato senso,
cabe ao menos uma ressalva. Para se realizar uma pesquisa história no campo do Direito é
necessário, no mínimo por precaução, um conhecimento peculiar. Uma especificidade,
moldada na experiência e/ou formação acadêmica.
Durante a realização da pesquisa encontrei uma variedade de tipologias de
discursos, dispostos na forma de depoimentos e testemunhos de vítimas de incesto, fazendo
parte de processos criminais iniciados para apurar crimes diversos, como os de lesões
corporais 2 (natureza do crime). O que pode parecer apenas um detalhe diante de um incauto
pesquisador, também pode levar a uma “conclusão equivocada”, involuntária mais
tendenciosa, pois incompleta.
Considerando estas peculiaridades da relação do historiador com as fontes,
nesta pesquisa propomo-nos a analisar o incesto no âmbito do discurso jurídico
institucionalizado. Trata-se de um estudo de caso em um processo da comarca da cidade de
Rebouças, estado do Paraná, já transitado em julgado e arquivado em 07 de fevereiro de 1939.
Nos autos de processo crime nº 197-A – tomado enquanto típico desta
variedade e portanto exemplar para este estudo de caso – instaurado em 02/12/1938 para
apurar a prática do crime de lesões corporais (art. 303 da CLPR) em que o réu OM foi
acusado de agredir fisicamente sua esposa MM, na cidade de Rio Azul, encontramos o
testemunho de várias pessoas indicando uma possível prática ou possibilidade de incesto do
pai OM contra sua filha: “... voltando logo depois trasendo puchado (sic) pela mão uma sua
filha menor que chegou chorando, tendo “O” apresentado sua filha aos que ali se achavam e
disendo (sic) que se ele tivesse amante era essa sua filha”.
Ao pensar na pesquisa histórica tendo como fonte os processos judiciais
Mariza Corrêa observa a exigência de um conhecimento da singularidade desta fonte, para

2
Lesões corporais. Art. 129 do Código Penal Brasileiro - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.
Não configurando ofensa e/ou agressão sexual.

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que os estudiosos possam ter uma percepção do todo aparato jurídico, não desvinculado da
sua importância ou significado social (CORRÊA, 1983, p. 51).
Tal cautela encontra também abrigo junto a produções científicas
interdisciplinares:
...podemos observar que a produção historiográfica que trabalha com as relações
entre História e Direito pode ser classificada como “rala”, em termos da
interdisciplinaridade. Muitas vezes, o simples uso de fonte documental da
administração da Justiça, por exemplo, leva a afirmativas de que se trata de um
“trabalho interdisciplinar”, que aborda a relação entre História e Direito. Por outro
lado, podemos observar que as questões intrínsecas do campo do Direito
propriamente ditas não são incorporadas, levando a alguns equívocos de
interpretação. Deste fato decorre que confunde-se, frequentemente, história do
Direito com história da Justiça, além de outros problemas de interpretação que, num
certo sentido, comprometem ainda mais a visão corrente em campos intelectuais
próximos da História de que a produção de historiadores é superficial e/ou contém
pouca fundamentação teórica. (NEDER, 1998, p.2).

Singularidade que busquei junto a minha formação acadêmica e prática


profissional. Formado e pós-graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina,
Delegado de Polícia desde 1994, aluno do Curso de Licenciatura e do Mestrado em História
pela da UNICENTRO, após quase duas décadas de experiência a frente de várias Delegacias
de Polícia, em outras regiões de nosso estado, causou-me grande perplexidade a quantidade
3
de casos de crime sexuais qualificados pelo incesto na comarca de Rebouças, gerando até
um conflito entre o exercício da função jurisdicional e a perenidade da referida prática,
instigando meu interesse em aprofundar meus conhecimentos e realizar uma pesquisa sobre a
prática do incesto na comarca de Rebouças.
Evidente ressaltar que em nenhum momento vislumbrei a possibilidade de ter
realizado uma leitura totalmente imparcial, inocente, mas sim, ao menos, a tentativa de uma
leitura responsável.
A maioria dos trabalhos historiográficos existentes, que se utiliza de processos
judiciais criminais tendo como práticas crimes sexuais, identificam, quase que unanimente,
como sendo somente a mulher vítima dessa violência intrafamiliar.
Ao produzir constatações generalizantes acabamos também contribuindo pela
qualificação e desqualificação de outros sujeitos sociais. Na exegese das obrigações do
Historiador não existe somente um compromisso profissional, mas também moral, para

3
As normais penais brasileiras nunca descreveram a prática do incesto como crime autônomo, e sim como
qualificadoras (aumento de pena) para a prática de crimes sexuais, tais como: Estupro, atentado violento ao
pudor, etc.

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identificar, discutir, e apresentar “os outros”, as demais vítimas. As pesquisas historiográficas


realizadas junto a processos judiciais já são assombradas pela porcentagem de crimes não
solucionados ou punidos, à existência de um significativo número de infrações penais
desconhecidas "oficialmente" (cifra negra 4), ao nos calarmos também erramos:

Pois, apenas se supomos que existe uma faculdade humana que nos capacita a julgar
racionalmente, sem nos deixarmos arrebatar pela emoção ou pelo interesse próprio,
e que ao mesmo tempo funciona espontaneamente, isto é, não é limitada por padrões
e regras em que os casos particulares são simplesmente subsumidos, mas, ao
contrário, produz os seus princípios pela própria atividade de julgar, apenas nessa
suposição podemos nos arriscar nesse terreno moral escorregadio, com alguma
esperança de encontrar um apoio para os pés. (ARENDT, 2004, p. 89).

Conforme se depreende da descrição constante na página 1, em um estudo de


caso apresentado pela fonte citada, “D” teria sido vítima de incesto praticado pelo pai 5.
Entretanto a vítima “D” é homem, uma criança de 08 anos, branco, natural do interior de São
Paulo (Pinto Junior, 2005, p. 111).
O processo judicial como fonte histórica, possui nuances próprias. Um carimbo
pode ter a mesma “valia” do que um testemunho. A ausência de um despacho pode dizer
muito mais do que várias declarações. A análise superficial, ou direcionada, dos discursos
jurídicos, espaços de saber específico, pode levar a grandes equívocos generalizantes. A falta
da discussão, da revelação, da problematização historicizada pode contribuir de forma tácita
pela legitimação passiva de uma violência contra o outro.
Destaco que em nenhum momento busca-se uma negação a importância dos
estudos relacionados ao gênero e a história das mulheres, até porque esta opção acabaria
provocando idêntica crítica, resultando em uma análise também superficial, pois excludente
com relação à totalidade dos atores participantes dessa relação de poder existente desde a
origem do ser humano como ser social.
Mas se a violência sexual, agressão física e psíquica existe e persiste, não se
resume, ou se condiciona, apenas a conflitos de gênero, tanto da vítima como do agressor.
Contrapõe-se sim a questões relacionadas à compreensão do outro em sua plenitude da sua
dignidade, dos seus direitos e sobretudo respeito, tanto que vários autores relacionam a

4
Cifra negra: diferença entre a ocorrência dos crimes e seu registro. Índice maior no caso dos crimes sexuais.
5
Trata-se na realidade do padrasto, sendo a terminologia pai utilizada pela vítima.

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própria proibição da prática do incesto como característica de “evolução” presente em quase


todas as sociedades:

A proibição do incesto não é nem puramente de origem cultural nem puramente de


origem natural, e também não é uma dosagem de elementos variados, tomados de
empréstimos parcialmente à natureza e à cultura. Constitui o passo fundamental
graças ao qual, pelo qual, mas sobretudo no qual se realiza a passagem da natureza à
cultura. Em certo sentido pertence à natureza, porque é condição geral da cultura, e
por conseguinte não devemos nos espantar em vê-la conservar da natureza seu
caráter formal, isto é, a universalidade. Mas em outro sentido também já é cultura,
agindo e impondo sua regra no interior de fenômenos que não dependem
primeiramente dela. (LÉVI–STRAUSS, 1982, p.62).

Acentuo não ser intenção desta escrita estabelecer um abismo com relação às
produções sobre a história das mulheres, e sim, ampliar a visão, produzir uma narrativa que
também problematize as relações de poder implicadas na prática destas barbáries.
Comprovando a perspectiva adotada cabe salientar que além de apontar que o
homem também pode ser vítima do gênero masculino, encontramos na história da sexualidade
humana, descrições onde a mulher é indiciada como parte ativa na prática do incesto:
P: E sua tia, o que você acha dela?
J: Eu não gosto dela!
P: O que ela fazia com você?
J: Ela batia ni mim.
P: Que mais ela fazia, J?
J: Eu não quero conversar, eu quero brincar!!! (PINTO JUNIOR, 2005, p. 163). 6

Agressora: tia paterna, 30 anos, branca, natural do interior de São Paulo. Nível
Superior, atualmente cursando o Magistério, católica. (PINTO JUNIOR, 2005, p.
120).

DA IDENTIFICAÇÃO DOS ENVOLVIDOS:

Terminada a discussão sobre a utilização dos processos judiciais como fontes


históricas apresento uma especificidade que acredito ser de suma importância na produção
desse tipo de narrativa historiográfica, uma precaução, a utilização de nomes fictícios e ou
abreviaturas para os envolvidos.
Nas citações e referências bibliográficas foi respeitada a estrutura do texto
original em todos os seus aspectos. Se os autores entenderam não ser necessária a “alteração”

6
P: pesquisador. J: vítima.

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não nos cabe questioná-los, porém, se utilizaram de abreviatura ou nomes fictícios, estas serão
transcritas na íntegra, mesmo que em um primeiro momento pareçam destoar da escrita ora
produzida.
Como relação à descrição dos processos criminais pesquisados, que se
encontram arquivados junto ao Cartório Criminal de Rebouças, presumi ser necessário o
encobrimento parcial do nome, utilizando-se somente a letra inicial, tanto no relato da
narrativa como na transcrição da imagem, seja por questões legais ou de moralidade, pois
alguns autores dos dramas processuais vividos, apesar de findos os processos, vivem na
região.
A fim de se resguardar a possibilidade de nova pesquisa, e/ou a comprovação
da autenticidade da documentação citada, preservei a numeração de identificação das caixas e
processos, haja vista que os mesmos continuam sobre a guarda da Justiça, sendo esta ainda
responsável pela decisão quanto à possibilidade de publicidade.
Sobre este assunto, apesar de não ter atuado como Delegado de Polícia nos
autos criminais mencionados, nem utilizado de entrevistas, é importante lembrar ainda as
considerações de Pierre Bourdieu:

Como, de fato, não experimentar um sentimento de inquietação no momento de


tornar públicas conversas privadas, (...) ? (...) Devíamos, pois, cuidar primeiramente
de proteger aqueles que em nós confiaram (especialmente mudando, muitas vezes,
as indicações, tais como nome de lugares ou de pessoas que pudessem permitir sua
identificação); mas convinha também, acima de tudo, procurar colocá-los ao abrigo
dos perigos aos quais nós exporíamos suas palavras, abandonando-as, sem proteção,
aos desvios de sentido. (Bordieu, Pierre [et. al.]. Ao Leitor. In: A Miséria do Mundo.
Petrópolis, RJ: Vozes, 1997). (Ribeiro, Edméia, 2004, p. X)

AUTOS Nº 197/1938 – A RIO AZUL:7

O presente processo teve início em 02 de dezembro de 1938, mediante portaria


do 1º Tenente Delegado de Polícia, tendo em vista ter chegado ao seu conhecimento que no
dia anterior, por volta das 18 horas, na cidade de Rio Azul, no terreiro da residência do casal,
“OM” teria espancado sua esposa “sem motivos justificados”.

7
Arquivo do Cartório Criminal de Rebouças.

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Dado andamento ao processo promoveu-se no mesmo dia a oitiva da vítima


“MC”, mulher, 35 anos, doméstica, não sabendo ler e escrever afirmou, em seu depoimento
que “seu marido “O” quando fica nervoso é que lhe tem dado uns tapas”.
O agressor “OM”, homem, com 39 anos de idade, operário, sabendo ler e
escrever, interrogado (dia 02/12/1938) sobre a acusação disse que efetivamente tem tido
algumas alterações com sua senhora. Disse ainda ter batido na mesma com um capote que
tinha no braço. Na continuidade de seu interrogatório afirmou ter efetivamente cometido à
falta de ter levado sua filha em um bar, que a levou para provar que não tinha amantes e sim
filhos para criar.
No mesmo dia foi o agressor “OM” foi condenado pelo 1º Tenente Delegado
de Polícia, por ter espancado sua esposa, por diversas vezes, sem motivos justificados, tendo
assinado e se compromissado através de Termo de Segurança, nos termos dos artigos 423 e
425 do Código do Processo Criminal do Estado, a não mais agredir sua esposa, estando
sujeito a pagamento de multa e prisão se voltar a delinquir. 8
De uma forma processual totalmente equivocada foi juntado aos autos uma
nova Portaria, datada de 24 de novembro de 1938 agora para apurar o fato de que “OM” teria
dito em um bar que se tivesse amante essa seria sua filha, podendo levá-la até a casa de uma
meretriz. 9
Quatro testemunhas foram ouvidas no mesmo termo e confirmaram ter ouvido
“OM” proferir tais ameaças. Os autos remetidos à Promotoria Pública foram arquivos por
falta de base legal.
Destaca-se que durante a realização da pesquisa foram encontrados anexos aos
autos duas folhas de papéis referente ao despacho do Promotor de Justiça opinando pelo
arquivamento de outro processo por defloramento, não relacionado aos fatos apurados nos
autos nº 197.

8
Termo de Segurança: documento pelo qual o infrator se comprometia a não mais praticar este tipo de crime, tal
qual o Termo de Bom Viver.
9
A portaria é anterior à portaria instaurada para apurar as lesões corporais, devendo constar de um processo
aparte.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Após análise do processo verificou-se que os discursos jurídicos encontrados


nos mesmos (espaços de poder/saber), contribuíram para uma criação de uma sensação de
impunidade, uma região, onde a proibição (poder/dever de vigiar e punir) convive com a
prática do incesto.

O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício


de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura
ocidental, de autenticar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como
verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise
dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os
conflitos de conhecimento e determinações econômico-políticas (FOUCAULT ,
1999, p. 78).

A opção por este tipo de análise considera que o discurso jurídico


institucionalizado é essencialmente um espaço de conflito, resultado da existência de uma
tensão entre o poder constituído e o incesto. A produção jurídica é permeada por relações de
poder presentes na sociedade.
Em uma de suas principais obras, Vigiar e Punir: História da Violência nas
prisões, Foucault trabalha com a noção de sociedade moderna como uma sociedade
disciplinar. Nesta, há uma mudança nas formas de relação de poder em relação à “época
clássica”. Agora, o poder não se exerce diretamente sobre o corpo dos indivíduos e sim sobre
sua psique:
Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não,
você acreditaria que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas
que de fato ele permeia, produz coisas, induz o prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social
muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir.
(FOUCAULT, 1998, p. 08).

Como se pode perceber há uma série de construções que direta e indiretamente


permitem perceber o posicionamento dos diversos atores, e de certa maneira da própria
sociedade, por meio do posicionamento dos representantes de suas instituições.
Findo o processo. Solicita o Promotor de Justiça que o mesmo seja arquivado
por falta de base legal.

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A filha/vítima não foi ouvida, nem ao menos submetida a exame de conjunção


carnal e ato libidinoso. As testemunhas de forma irregular e grotesca prestaram depoimento
em um mesmo termo.
Ressaltasse que não discorremos e nem tão pouco discutimos sobre a
culpabilidade do réu e sim do procedimento adotado.
“De acordo com o requerido, pelo promotor público adjunto, arquive-se.
Rebouças, 07 de fevereiro de 1939. J.F. 2º Suplente de Juiz Municipal em exercício”.
Uma violência legitimada por um discurso oficial, jurídico, vem em muito
contribuir para a construção de uma sociedade onde o incesto, apesar de abominado, e
legalmente proibido é tacitamente permitido.

REFERÊNCIAS:

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras,


2004.

ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano no Rio de


Janeiro da “Belle Époque”. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Naau Editora, 1999.
_________________. Microfísica do poder. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.

GINZBURG, Carlo. O inquisitor como antropólogo. São Paulo: Revista Brasileira de


História, v. I, nº 21, set 90/fev 91.
LÉVI-STRAUSS, Claude. As Estruturas Elementares de Parentesco. Petrópolis, RJ.:
Vozes, 1982.

NEDER, Gizlene; PINAUD, João Luiz Duboc; MOTTA, Márcia Maria Menendes;
RAMINELLI, Ronald; LARA, Silvia. Os estudos sobre a escravidão e as relações entre a
História e o Direito. Tempo, Vol. 3 – nº 06, Dezembro de 1998.

PINTO JUNIOR, Antonio Augusto. Violência sexual doméstica contra meninos: um


estudo fenomenológico. São Paulo: Vetor, 2005.

RIBEIRO, Edméia. Meninas Ingênuas: uma espécie em extinção? Curitiba: Aos Quatro
Ventos, 2004.

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A CONSTRUÇÃO DO PODER DIVINO DOS REIS: AS REPRESENTAÇÕES


RELIGIOSAS INFLUENCIANDO NA POLÍTICA

Jacqueline Rodrigues Antonio

(Especialista em História Social – professora na UTFPR campus Cornélio Procópio)

Palavras-chave: Representações. Cultura. Poder.

INTRODUÇÃO

Este trabalho se baseia no conceito particular de poder político supremo,


sustentado por Marc Bloch, e nas mudanças estilísticas na representação dos Magos do livro
canônico de Mateus, que passam de simples Magos à Reis Magos.

Na Baixa Idade Média há a maior concentração dos germes do Estado


Moderno. A consolidação e a centralização do poder nas mãos dos reis deram-se de diversas
maneiras, dentre elas foram às guerras, a estreita relação com os lideres religiosos, a questão
do sobrenatural e as crescentes representações iconográficas referenciando a realeza.

Além de grande parte das origens do Estado Moderno se localizar na Baixa


Idade Média é neste período que também há o início daquilo que atualmente identificamos
como Renascimento Cultural, tendo como base nos trabalha de Giotto di Bondone, Dante
Alighieri e Giovanni Boccaccio, que em muitos casos são produtos de encomendas. Dessa
maneira, a última parte do período medieval foi uma época rica para o estudo político cultural.

Há um grande interesse por questões relacionadas à religião no século XXI,


em especial quando ela está atrelada à política.

Para que possa chegar à hipótese levantada, as imagens e os textos que


rodam as representações dos Magos são essenciais. Elas demonstram de forma concreta o

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imaginário que estava sendo construído no período medieval, e os resultados em sua fase
final.

Apesar da importância do culto aos Magos no universo religioso cristão,


poucos são os estudos realizados por historiadores sobre estas personagens, em especial
quando se refere à intencionalidade das produções artísticas e literárias. Percebe-se que este
assunto, por muitos decênios, pertenceu ao campo das lendas cristãs, livretos devocionais,
livros sobre a vida dos santos ou nas cantigas de folia de reis e também por teólogos em
referência ao nascimento de Jesus e reduzidos a somente difundir a devoção sobre tais
personagens.

Atualmente este tema tem despertado a atenção de historiadores, em


especial pela folia de reis. Os estudos sobre os Magos tem enfoque no recurso imagético,
dadas às formas de expressão devocional e da comunicação no universo do período medieval
ser fundamentalmente visuais.

Nesta pesquisa foi utilizado o livro Os Reis Taumaturgos, em especial o seu


segundo capítulo, As origens do poder curativo dos reis. Para o imagético foi escolhido às
figuras dos Reis Magos, em especial as confeccionadas pelo florentino Giotto. Esta escolha
pelos Magos do livro canônico de Mateus é fundamentada na afirmação de Argan.

Os temas das obras de arte jamais são escolhidos sem um motivo. Em uma
sociedade de grandes banqueiros, a Adoração dos Reis Magos alude à homenagem
dos poderosos da Terra ao Deus nascido na pobreza, mas também ao favor de Deus
para quem, dotado de tantos bens, emprega-os para santos fins. (2003, p. 143)

Esta afirmação cabe na produção de Giotto no afresco Adoração dos Reis


Magos, da Capela Arena. Esta capela foi encomendada por um rico mercador Enrico
Scrovegni, que a fez para se redimir da sua usura e de seu pai, escolhendo como tema a
passagem do nascimento de Jesus. Como no século XIV que, dentre diversas imagens
religiosas, os burgueses utilizaram dos Magos para uma identificação divina, a nobreza
também o fez séculos antes.

Assim, este artigo se estrutura da seguinte maneira: Primeiro a definição de


Cultura Política e a ligação entre política e arte. Em seguida, a análise da obra de Bloch e essa
construção do poder divino. Por último, a relação de esse poder divino com os Magos e as
representações imagéticas produzidas na Idade Média.

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REPRESENTAÇÕES CULTURAIS E PODER: RELIGIÃO E ARTE NO DOMÍNIO DO


POLÍTICO

Um trabalho que envolve estudos históricos com linguagens artísticas


sempre é influenciado pela Escola de Annales. Esta Escola Historiográfica defende a
possibilidade de extrair vários dados para as análises de fontes não escritas, apresentando,
outras possibilidades de pesquisas, pois “a diversidade dos testemunhos históricos é quase
infinita. Tudo que o homem diz ou escreve, tudo que fabrica, tudo que toca pode e deve
informar sobre ele” (BLOCH, 2001, p.79).

A metodologia é baseada em Panofsky, para o campo das imagens, da qual


baseia na observação, detalhamento da obra e contextualização. Também utiliza da
comparação entre imagens e os dados da obra do Bloch.

Esta metodologia é feita com base nos níveis propostos por Panofsky
(2011), que são: Tema Primário ou Natural, Tema Secundário ou Convencional e Significado
Intrínseco ou Conteúdo, ou respectivamente, Análise pré-iconográfica, Análise iconográfica e
Análise Iconológica.

O primeiro nível identifica formas puras e as expressões contidas, sendo


uma descrição pré-iconográfica da imagem, sem um conhecimento além do contido na
imagem. No segundo nível que se tem um conhecimento a mais do que a imagem fornece,
como decifrar os símbolos contidos na obra, do qual faz o espectador identificar os
personagens retratados, é onde acontece a análise iconográfica da imagem. O terceiro nível
permite ir além dos elementos e dos significados transparecidos na obra, pois há uma
necessidade de um conhecimento sobre a época em que foi retratada, não somente de seu
tema.

Assim, Iconografia compreende um método descritivo, uma análise dos


elementos da imagem e Iconologia “é um método de interpretação que advém da síntese mais
que da análise.” (PANOFSKY, 2011, p. 54). Dessa maneira, o método de Panofsky auxilia na
leitura da imagem.

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Atualmente há também outro olhar sobre um trabalho histórico com


representações imagéticas. Starn (1992) ainda expõe a propósito dos trabalhos de história com
imagens:

a “guinada linguística” e a antropologia cultural são as vias de acesso mais rápidas


para uma “nova” história da cultura […] Uma vez que os iconógrafos já estão
comprometidos com a “leitura” de imagens como textos, e os historiadores sociais
da arte com a prática de trata-los como artefatos culturais, a tarefa realmente
inovadora consiste em olhar para essas imagens de modo crítico. (1992, p. 280)

Dessa maneira, o trabalho com imagens torna-se um estudo da Nova


História Cultural, uma vez que as utilizam de maneira crítica. As pesquisas realizadas com
tais fontes são feitas de maneira que dão atenção quanto a sua produção, contexto e o
conteúdo que carregam.

Ainda sobre a Nova História Cultural temos Chartier evidenciando que na


historiografia houve:

a emergência de novos objectos no seio das questões históricas: as atitudes perante a


vida e a morte, as crenças e os comportamentos religiosos, os sistemas de parentesco
e as relações familiares, os rituais, as formas de sociabilidade, as modalidades de
funcionamento escolar, etc. — o que representava a constituição de novos territórios
do historiador através da anexação dos territórios dos outros. (1990, p. 14)

Dessa maneira notamos que ao se utilizar de novos objetos, este trabalho se


insere no âmbito da Nova História Cultural, pois nos objetivos propostos houve a emergência
de adotá-los. No campo da construção da realidade por meio da cultura, Chartier também nos
indica:

A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. (1990, p. 16-17)

Deste modo, ao estudarmos as representações a respeito da adoração dos


Reis Magos, analisamos como a sociedade medieval pensava a sua realidade, não significando
que represente como era àquela época, mas como eles se viam através daqueles personagens.
Assim, a Nova História Cultural auxilia na análise no que se refere à imagem.

Além da Nova História Cultural, a Cultura Política ganha um lugar de


destaque. Nesta pesquisa o termo é definido para “designar o conjunto de atitudes, normas,
crenças, mais ou menos compartilhada pelos membros de uma determinada unidade social e

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tendo como objetos fenômenos políticos.” (BOBBIO. MATTEUCCI. PASQUINO, 1998, p.


306).

Ao analisar a História Política percebe um interesse por “uma pluralidade de


ritmos em que se combinam o instantâneo e o extremamente lento.” (RÉMOND, 1996, p. 7) É
neste interesse que houve a emergência por uma Nova História Política, influenciada pela
Escola de Annales.

Assim a Nova História Política se associa a longa duração que, através da


Cultura Política, analisa os fenômenos políticos, visualizando as continuidades no tempo. Este
ponto é importante neste trabalho, uma vez que a partir da comparação entre os quadros
medievais da Adoração dos Reis Magos, com o conceito de poder político supremo proposto
por Bloch, tem uma construção de um poder político com bases religiosas.

BLOCH E O PODER DIVINO DOS REIS

Quanto à questão proposta por Bloch do poder político supremo no medievo


encontra-se em tempos remotos. Através de estudos o autor afirma que pelos germânicos,
anterior à cristianização, o rei era escolhido em ramos de famílias nobres, sendo algumas
possuidoras de uma “virtude sagrada”. Entre os Godos os príncipes eram denominados
“semideuses”. Porém é importante ressaltar que neste período os reis não eram
necessariamente curandeiros, pois eram raros os reis-curandeiros.

Esta “força miraculosa” foi na maioria das vezes destinada a propósitos


coletivos, para o bem estar de todos, e não privilégios a alguns indivíduos, ou seja, o seu
poder sobre a natureza tangia a um bem público, como o ato de fazer chover. Com o advento
do cristianismo, o poder político dos reis se fortaleceu por se tornarem chefes de Estados,
porém oficialmente interromperam sua trajetória de personagens divinos. Neste período pós-
cristianização nota-se que membros de linhagens reais anglo-saxão e merovíngia eram
venerados como santos após sua morte.

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Já do lado da tradição romana tem como personagem central Carlos Magno


que foi coroado por um papa romano. Em Bizâncio os imperadores se denominaram como
divinos. Deste modo sempre permaneceu esta áurea de divindade em torno da realiza europeia
medieval, sendo posteriormente justificada através da Bíblia.

Com a coroação de Carlos Magno, o rei ungido foi rapidamente assimilado


a Cristo, o ungido de Deus. Chegando, dessa maneira, ao século XII a normalidade de se
procurar um rei para curar os doentes, construindo assim o poder curativo dos reis.

Toda essa áurea de sacralidade que foi construída em torno do regente se


fundiu na necessidade de sacralizar os Magos, como é visto no próximo tópico.

OS MAGOS REIS E A ICONOGRAFIA

Os Magos como Reis, indicados pelo uso de coroas, são próprios do reinado
de Otto II, imperador do Sacro Império Romano, próximo ao século IX. A cena da adoração
dos Reis Magos foi propícia para elevar o seu poder. Uma pintura contemporânea a este
reinado ilustra a cena com Magos-Reis, investidos de suas coroas de aro de ferro, que se
prostram diante da sagrada família, que estão de frente do seu “estábulo”, que tem a
arquitetura de uma pequena igreja, e humildemente entregam suas oferendas (RUSSO, 1996).

Isto, ressaltado por Russo em seus estudos, tornou-se um marco na relação


da sociedade medieval com os Magos, percebida pela iconografia. Antes os personagens
centrais de Mateus 2, 1-12 eram representados como simples magos ligados à magia, e após
essa encomenda dos Magos como reis, tornaram-se até Santos-Magos-Reis. As imagens
abaixo demonstram tal transformação.

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Figura 1 – Três Magos (com Maria e Jesus), Catacumba de


Santa Priscilla, século III.
Fonte: (HILDESHEIM, 2004, p. 1)

Figura 2 – Adoração dos Magos, Santo Apolinário, o Novo,


século VI.
Fonte: (HILDESHEIM, 2004, p. 74)

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Figura 3 – Adoração dos Magos, Giotto, Igreja de São Francisco de


Assis, século XIII.
Fonte: Disponível em: http://www.cluny.com.br/Gallery/d/8881-
2/3+Adora____o+dos+Magos.jpg Acessado em: 01 set. 2010.

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Figura 4 – Epifania, Giotto, Museu Metropolitano de Arte de Nova


Iorque, século XIV.
Fonte: (IMPELLUSO, 2009, p. 16)

Como vemos acima, no imaginário geralmente os Magos são vistos como


três, porém a sua representação mudou no decorrer da Idade Média. Como motivos pode-se
identificar a encomenda (LE GOFF, 1989), dessa maneira é visualizada a intenção de quem
encomendou as obras, que no caso é criar uma áurea de santidade e realeza aos Magos
mateano.

No entanto a fixação do imaginário acerca dos Magos não se produziu


somente com as representações visuais, mas também através de uma tradição que foi
ganhando corpo e se fortalecendo pelas as tradições, que são narradas em obras como a
Legenda Aurea, de Jacopo de Varezze.

Nesta obra é verificada por sua narrativa que a santificação dada aos Magos

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ocorreu durante os séculos VI-XII, através de longas peregrinações motivadas pelo culto das
supostas relíquias atribuídas aos Magos, até sua chegada à Colônia, norte da Alemanha. Em
meados do século XIII, Varazze expõe o seguinte sobre este culto:
Seus corpos repousavam em Milão, numa igreja que é agora da Ordem dos Irmãos
Pregadores, mas foram depois levados a Colônia. Anteriormente esses corpos
tinham sido trasladados para Constantinopla por Helena, mãe de Constantino, depois
foram transferidos para Milão pelo santo bispo Eutórgio, por fim o imperador
Henrique transportou-os de Milão para Colônia, às margens do Reno, onde são
objeto da devoção e da reverência do povo. (2006, p. 156)

Na edição de 2006 do livro Legenda Áurea, Franco Júnior, abre uma nota
para esclarecer alguns pontos sobre o que foi exposto por Varazze:
Escrevendo cerca de cem anos depois desses fatos, Jacopo engana-se quanto a sua
cronologia. Na verdade as relíquias dos Reis Magos foram transferidas de Milão
para Colônia pelo arcebispo Reinaldo de Dassel, chanceler do imperador Frederico
Barba Ruiva, em junho e julho de 1164, provavelmente como punição pela
insubordinação daquela cidade italiana ao poder imperial. (2006, p. 156) 1
A nota demonstra que Varazze escreveu diante da oralidade acerca da
devoção. Em Colônia, as relíquias estão coroadas, afirmando mais uma vez de maneira visual
a realeza de tais personagens.

Portanto, com estas fontes, imagéticas e escritas, é possível perceber nas


representações dos Magos-Reis uma intencionalidade de formar um imaginário acerca desses
personagens, seja o sacralizando, seja os relacionando com os “poderosos da terra”.

CONCLUSÃO

Assim a busca de uma sacralidade para os reis, que posteriormente


afirmaram seu poder por essa base, e dos Magos do livro canônico de Mateus, anulando seu
passado pagão, se interligam no reinado de Otto II, pela iconografia. Portanto, no ano mil há
um marco da influência das representações religiosas na política, pois, a construção desses
dois imaginários, pela maneira de representações visuais, mostrou-se eficaz uma vez que a
cura pelos reis foi cada vez mais consolidado e buscado, e os Magos, até os dias atuais, são
associados à santidade. Porém o que ficou mais forte é os Magos serem reconhecidos por
séculos como Reis.

1
Nota 5 – A Epifania do Senhor.

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BIBLIOGRAFIA

ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. v.2. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003.

BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de


Política. v.1. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.

BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: O carácter sobrenatural do poder régio, França e


Inglaterra. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel,


1990.

IMPELLUSO, Lucia. Metropolitan: Museum of Art Nova York. São Paulo: Folha de São
Paulo, 2009.

HILDESHEIM, João de. O livro dos Magos. Milão: Lucerna, 2004.

LE GOFF, Jacques. (sob direção de). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.

PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2011.

RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.

RUSSO, Daniel. Les représentations mariales dans l’art d’Occident Essai sur la formation
d’une tradition iconographique. In: IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Éric; RUSSO,
Daniel. Marie: lê culte de la vierge dans la sociétóe médiévale. Paris: Beauchesne, 1996.

STARN, Randolph. Vendo a cultura numa sala para um príncipe renascentista. In: HUNT,
Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.

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PODERES LOCAIS E CONTEXTOS PLEBISCITÁRIOS NO SUDOESTE PARANAENSE


(1960-1968)

Jonathan Marcel Scholz (História - UEM)


Orientador: Dr. Reginaldo Benedito Dias (História - UEM)

Palavras-chave: plebiscito; elites; poder.

Bem sabemos que o Brasil é um grande país em extensão territorial, mais


especificamente o 5º maior em dimensões geográficas no mundo 1. Possuir essa superfície
continental, para além da incontestável diversidade natural e da falsa impressão de recursos
minerais inesgotáveis, instala e funda outra séria questão. Colocar em conflito quase que
permanente a divisão e a posse das suas terras.
No entanto, essa divisão dos territórios não se restringe a ideia e debate (recorrente e
importante) de que as terras no Brasil estão nas mãos de poucos e grandes proprietários e da
Reforma Agrária ser necessária ou não. Essa é apenas uma faceta do jogo do poder que
envolve a distribuição de terras em nosso país.
A disputa e os conflitos territoriais ocorrem da mesma maneira em outras dimensões e
esferas do poder, como entre municípios e estados da Federação. Através de seus dirigentes
legais e em última instância, das elites políticas, a legitimação territorial por meio de litígios,
sobretudo entre os municípios brasileiros, tornou-se sintomático na história política
brasileira.2
Contrastando interesses políticos, econômicos, sociais e culturais que se opõem em
dados momentos históricos, diversas cidades, distritos ou comunidades entram em litígio para
adquirir sua emancipação política e territorial. Em grande medida, tais reivindicações são
levadas a cabo pelos poderes locais das regiões contestatórias, em nome de um suposto
interesse coletivo.
1
Tais dados estão disponíveis em:
http://www.ibge.gov.br/7a12/conhecer_brasil/default.php?id_tema_menu=1&id_tema_submenu=1. Acesso em:
15 jul. 2012.
2
Um caso para demonstrar a atualidade da temática é a recente discussão em torno da divisão do estado do Pará
em três federações distintas: Pará, Tapajós e Carajás. Em plebiscito, realizado em dezembro de 2011, a
população paraense votou em sua maioria pela não divisão do estado. Ver mais em:
http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pa-resultado-da-votacao-por-municipio-carajas-plebiscito-
2011/view?searchterm=plebiscito%20par%C3%A1. Acesso em: 14 jul. 2012.

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Para isso, a resolução de tais imbróglios normalmente tem seu desfecho na ação do
Poder Judiciário. Isso ocorre ainda mais comumente porque sempre há população diretamente
envolvida. Nesses casos, a efetivação da Democracia Participativa3 através de plebiscitos é
alternativa usual para determinar o rumo e o destino dos territórios contestados.

A ALTERNATIVA DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

É lugar-comum nos estudos das ciências humanas e sociais que problematizam a teoria
da Democracia, que o mecanismo intitulado plebiscito remonta efetivamente ao Império
Romano. Tal instituto permeou durante certo período as decisões da plebe que pretendiam
validar suas ações políticas em assembleias (Concilium plebis)4.
A partir desse momento, a utilização do plebiscito disseminou-se pelos mais diversos
países ao redor do mundo, sendo apropriado e utilizado das mais diferentes formas e com as
mais díspares intencionalidades políticas5.
No Brasil, o plebiscito atualmente é entendido através da Constituição de 1988 como
um instituto de Democracia Participativa juntamente com o referendo e a iniciativa popular.
Tais mecanismos visam ser singulares, guardando suas próprias características e
especificidades políticas e jurídicas. Todavia, essa questão ainda guarda controvérsias teóricas
e práticas a respeito.6
Por outro lado, para conceituar o plebiscito, Auad diz que: “De forma sucinta, o
plebiscito consiste em uma consulta à opinião pública para decidir questão política ou
institucional, não necessariamente de caráter normativo. A consulta é realizada previamente à
sua formulação legislativa, autorizando ou não a concretização da medida em questão”7

3
Entende-se como mecanismos da Democracia participativa ou Democracia semidireta - presentes na
Constituição brasileira de 1988 - o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
4
DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Breves considerações sobre plebiscito, referendo e participação popular
no Brasil. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 51-65, out./dez. 2009. Disponível em:
http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/view/1314/1300. Acesso em: 20 jul. 2012.
5
Alguns casos emblemáticos a respeito. Napoleão estrategicamente usou um plebiscito para aprovar a
Constituição de 22 de brumário do Ano VIII, que abriria caminho ao golpe de Estado de Napoleão I. Já Hitler
utilizou o plebiscito como justificativa para anexar a Áustria ao III Reich, o famoso Anchluss. Atualmente, o
plebiscito é um método recorrente do governo venezuelano de Hugo Chávez para aprovar suas ações estatais.
6
Uma breve tentativa de explicação que visa diferenciar o “plebiscito” do “referendo” é esboçada em GEMMA,
Gladio. Plebiscito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário
de Política. 11. ed. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 927.
7
AUAD, Denise. Mecanismos de participação popular no Brasil: Plebiscito, referendo e iniciativa popular.
Revista Unibero de produção científica, setembro de 2005. p. 12.

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É válido constatar assim, que o plebiscito pode ser requerido por uma gama esparsa de
fatores e situações. A única necessidade é que guarde em comum o interesse coletivo das
populações envolvidas. Nesse meio, a disputa por terras entre municípios é uma dessas
situações mais frequentes no Brasil que requerem invariavelmente a utilização do plebiscito.
Questão essa, que marcou o sudoeste paranaense em diversas ocasiões.
Especificamente na década de 1960, uma das microrregiões do sudoeste 8, a que perpassa os
municípios de Chopinzinho, São João e São Jorge D´Oeste, foi reconfigurada territorialmente
por meio de um intenso contexto plebiscitário.

MUDANÇAS E INSTABILIDADES NO PLANO GEOPOLÍTICO

Para entender as transformações políticas e geográficas que estavam ocorrendo na


microrregião analisada, deve-se ter noção primeiramente que o Brasil de uma forma ampla
estava sofrendo mudanças econômicas e sociais, mas, sobretudo, alterações políticas no
período saliente. A década de 1960 é associada constantemente às intensas instabilidades
políticas que o Brasil vivia naquele momento e que influenciaram direta ou indiretamente
todos os municípios brasileiros. Alves lembra que, “o sistema de democracia formal que
vigorava no país desde o fim do Estado Novo, em 1946, passou a sofrer constantes crises
institucionais”9.
Nesse intervalo de tempo, as diversas pressões e conflitos políticos transformaram o
cenário brasileiro. Ademais, a instalação de um governo militar em 1964 modificou em
grande escala o panorama institucional e ideológico em que o Brasil estava inserido até então.
A promulgação da Constituição Federal de 1967 legitimando os anseios e as propostas
militares mudaram os parâmetros presentes na Constituição Federal de 1946. Inegavelmente,
o tratamento aos plebiscitos e a Democracia Participativa entravam nessa dinâmica, senão de
maneira teórica, de forma prática.
Daniel Aarão Reis, analisando esse âmbito lembra que, “estavam todos, por diferentes
razões, descontentes com os rumos da sociedade. A euforia provocada pelo crescimento da

8
A adoção do conceito de microrregião deve-se pelo fato do recorte temático da presente pesquisa abordar três
municípios em uma gama que engloba quarenta e dois municípios no sudoeste paranaense. A lista de
microrregiões paranaense pode ser conferida em:
<http://www.ipardes.gov.br/pdf/mapas/base_fisica/relacao_mun_micros_mesos_parana.pdf> Acesso em: 20
mar. 2011.
9
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 4 ed. Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 22.

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segunda metade dos anos 50, que de fato abrira amplos horizontes, cedera lugar à apreensão
às contradições que se acumulavam.”10
Estabelecendo um elo entre o contexto nacional e o regional, vale destacar que os anos
sessenta, para muitas regiões, inclusive na microrregião analisada, foi um período de intensa
movimentação política, onde se firmaram várias emancipações municipais11. Logo, a disputa
pela legitimação de divisas territoriais e de pequenas comunidades foi veemente.
Nessa perspectiva de embate de forças políticas, é necessário lembrar que a
desvinculação de um distrito/comunidade de seu então município, através de um plebiscito,
ocorre normalmente porque os interesses já não são mais os mesmos, pelo contrário, os
interesses aparecem agora eventualmente de forma antagônica.
Esse é o caso de São João, emancipado politicamente de Chopinzinho em 1960 e o
caso de São Jorge D´Oeste, elevado a categoria de município junto à São João em 1963. Nas
duas situações, ambos os municípios emancipados eram distritos políticos. Ou seja, São João
pertencia administrativamente à Chopinzinho e São Jorge D´Oeste à São João12.
Interessante, e no mínimo curioso, é que São João e São Jorge D´Oeste foram
emancipados em climas políticos aparentemente amistosos, já que não foi necessária a
realização de pleitos para desmembrar tais distritos. Isto é, houve um consentimento (que
representa uma maioria mas não necessariamente uma totalidade) dos legisladores dos
municípios-sede para a devida aprovação de suas emancipações.13
Desse modo, no que se refere aos prováveis significados que as emancipações
políticas transmitiram naquele momento inúmeras perguntas surgem: O que estimulou os

10
REIS, D. A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 19.
11
ALVES, Alessandro Cavassin. Considerações sobre as emancipações municipais no Paraná. In: _______. O
processo de criação de municípios no Paraná: as instituições e a relação entre executivo e legislativo pós 1988.
Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n.111, p.47-71, jul./dez. 2006. Disponível em:
<http://www.ipardes.gov.br/webisis.docs/rev_pr_111_cavassin.pdf > Acesso em: 10 abr. 2011.
12
Já Chopinzinho obteve sua emancipação política no ano de 1954 frente à desvinculação do município de
Mangueirinha.
13
Lembremos que São João enquanto distrito político de Chopinzinho (o maior em população e em influência
política) tinha seus representantes na Câmara Municipal de Vereadores desse município, que salvaguardavam os
possíveis interesses da comunidade. O mesmo acontecia com São Jorge D´Oeste como distrito político de São
João. Para exemplificar melhor, nas eleições municipais de 04/10/1959, o distrito de São João contava com um
candidato a prefeito de Chopinzinho, dois vereadores eleitos e quatro suplentes. Mais informações em:
https://www.tre-pr.jus.br/internet2/tre/estatico/eleicoes/anteriores/resultados/19591004A75035.pdf. Acesso em:
16 jul. 2012.
Já na relação São João x São Jorge D´Oeste, percebemos que nas eleições municipais de 08/10/1961 o distrito de
São Jorge contava com 1 vereador eleito e 3 suplentes, mostrando a influência e pressão exercida dentro do
município-sede. Dados disponíveis em:
https://www.tre-pr.jus.br/internet2/tre/estatico/eleicoes/anteriores/resultados/19611008A78719.pdf. Acesso em:
16 jul. 2012.

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distritos políticos a emanciparem-se de suas sedes? Interesses políticos antagônicos? Descaso


público com as referidas comunidades? Tentativa de desenvolver economicamente os
distritos? E porque houve um consentimento dos legisladores representantes das sedes para as
emancipações ocorrem?
Evidentemente, não existem respostas prontas para essas perguntas. Talvez todos esses
elementos tenham exercido maior ou menor influência na resolução das emancipações em
destaque. E provavelmente outros mais projetaram atitudes e desdobramentos nesse
panorama. Somente uma pesquisa empírica aprofundada daria indícios mais precisos para tais
evidências14.
No entanto, uma constatação é certa. As emancipações políticas de São João e São
Jorge D´Oeste legitimaram juridicamente suas divisas territoriais. Ou seja, perante o Estado,
seus territórios (e as comunidades que o habitam) estavam definidos e legalizados. Porém,
socialmente, esses territórios não estavam legitimados.
Como as emancipações eram muito recentes, muitas comunidades não possuíam um
sentimento de pertença perante seus novos municípios mantenedores. Não existia um vínculo
social que os ligava permanentemente. Muitas vezes, a identificação política, cultural e
econômica de uma comunidade se filiava ao município que havia deixado de ser sua sede.
Compreende-se assim, que esse é um fator preponderante para a concretização e
desenvolvimento do clima plebiscitário que a microrregião dos municípios de Chopinzinho,
São João e São Jorge D´Oeste vivenciou na década de 1960 e que em alguns casos, continua a
ter implicações políticas e jurídicas até os dias atuais.15

ELITES LOCAIS: UMA SÓ MATRIZ POLÍTICA E CULTURAL

Como região geopolítica do Paraná, o sudoeste não pode ser analisado somente
enquanto espaço geográfico, político ou jurídico. Suas fronteiras fluídas e plurais são também

14
Essa pesquisa empírica está sendo realizada atualmente através do estudo no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual de Maringá – UEM, em nível de mestrado.
15
O plebiscito realizado na comunidade de Alto Mirim em 1968 ainda gera acalorados debates entre as
administrações municipais de Chopinzinho e São João. Isso porque na circunstância o plebiscito foi favorável à
São João, já que até então a comunidade pertencia a Chopinzinho. No entanto, parte da documentação referente
ao plebiscito e à transferência de terras perante o Estado sumiu em um possível incêndio ocorrido nos acervos
documentais do governo paranaense na década de 1970. Enfim, o plebiscito é tema de um processo na justiça
movido pela prefeitura municipal de São João.

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culturais. Por consequência, a análise da microrregião em estudo envolvendo os municípios


de Chopinzinho, São João e São Jorge D´Oeste não pode se abster da atual reflexão.

Nesse debate, entendendo que as fronteiras são espaços dinâmicos e não áreas
estáticas, Pierre Bordieu afirma que:

Ninguém poderia hoje sustentar que existem critérios capazes de fundamentar


classificações “naturais” em regiões “naturais”, separadas por fronteiras “naturais”.
A fronteira nunca mais é do que o produto de uma divisão a que se atribuirá maior
ou menor fundamento na “realidade” segundo os elementos que ela reúne, tenham
entre si semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes. 16

Evidentemente, o sociólogo francês procura alertar para o fato de que para ele, regiões
e fronteiras não são produtos “naturais”, estabelecidos a priori pela natureza e sim, são
construções e produções humanas, que atendem a interesses políticos e/ou ideológicos.

Desse modo, torna-se instigante pensar que as regiões fronteiriças – alvos de litígio –
entre os municípios em análise estabelecem áreas de contato, onde as pessoas que circulam
nesse meio (cidadãos enquanto eleitores e atores políticos como incentivadores dos eventos)
trocam experiências políticas, sociais, culturais e econômicas que podem ser determinantes
para as resoluções plebiscitárias.

Aliás, nessa perspectiva, quando se fala em troca de experiências e até influências


externas, vale lembrar que Chopinzinho, São João e São Jorge D´Oeste se inserem no
contexto da imigração gaúcha e catarinense das décadas de 1950/1960, na qual indivíduos se
mudaram para o sudoeste paranaense em busca principalmente da grande oferta de terras
férteis para plantio, criação de animais e extração de madeira, recursos que estavam se
tornando escassos no Rio Grande do Sul e Santa Catarina17.

Em estudo anterior, na realização de uma breve pesquisa da vida dos legisladores


sanjoanenses da década de 1960, envoltos no referido contexto plebiscitário, constatou-se que

16
BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
17
MONDARDO, Marcos Leandro; BACKES, Thaine. A dinâmica migratória na (trans) formação territorial do
Sudoeste paranaense. Cascavel, Revista Ciências Sociais em Perspectiva. v. 07, n. 12, 2009.

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praticamente todos eram rio-grandenses.18 Possivelmente, para Chopinzinho e São Jorge


D´Oeste, a origem gaúcha também prevaleceria nos cargos legislativos para o mesmo período.

Com tal verificação, afirma-se que a descendência sulista, sobretudo gaúcha, é um


ponto-comum em que convergem os atores políticos dos três municípios em foco. Essa
característica tem muito a dizer. Existem inúmeros postulados, crenças e ideais marcados em
sua cultura. Contudo, isso não significa generalizar, afirmar que existe homogeneidade entre
todos os gaúchos ou que todos os gaúchos têm as mesmas aspirações, posições políticas,
características sociais ou ideológicas. Só que, no caso dos municípios de Chopinzinho, São
João e São Jorge D´Oeste denotam-se particularidades. Os rio-grandenses que vieram para o
sudoeste paranaense tinham os mesmos preceitos, aspirações, motivações e perspectivas de
vida e futuro.

Nesse sentido, deparamo-nos necessariamente com a cultura de homens, homens esses


que são atores políticos, “personagens em cena” que têm interesses, motivações, preferências
e agem de uma maneira complexa. Assim, prende-se a atenção na cultura política dos
mesmos, ou seja, estabelecendo um raciocínio entre a soma dos elementos culturais e
políticos dos legisladores da tríade municipal.

O historiador francês Serge Berstein, ao reiterar que “a verdadeira aposta está em


compreender as motivações que levam o homem a adoptar este ou aquele comportamento
político”19, afirma sobre a cultura política que:

A hipótese das investigações sobre a cultura política é que esta, uma vez adquirida
pelo homem adulto, constituiria o núcleo duro que informa sobre as suas escolhas
em função da visão do mundo que traduz. O estudo da cultura política, ao mesmo
tempo resultante de uma série de experiências vividas e elemento determinante da
acção futura, retira sua legitimidade para a história da dupla função que reveste. É
no conjunto um fenômeno individual, interiorizado pelo homem, e um fenômeno
coletivo, partilhado por grupos numerosos. 20

Portanto, constata-se que a cultura política é um elemento categórico do complexo


comportamento humano, e ela informa, através das escolhas, posturas ideológicas e políticas
18
SCHOLZ, J. M. O caso Alto Mirim: estratégias e disputas de poder. Artigo (Graduação) – Universidade
Estadual do Centro – Oeste – UNICENTRO, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de
História, Guarapuava, 2010.
19
BERSTEIN, Serge, A cultura política. Para uma História cultural. Lisboa: Editorial Estampa, 1992. p. 359.
20
Idem, p. 359.

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do homem a visão de mundo que ele traz consigo. Ao passo que seu estudo pode determinar
as experiências vividas e ser fundamental nas ações futuras dos homens, a cultura política
legitima sua dupla função, que é ser um fenômeno individual interiorizado pelo homem e
demonstrar seu caráter coletivo, partilhado por grupos numerosos que comungam dos mesmos
interesses e ideais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da constatação de que o plebiscito é um mecanismo da chamada Democracia


Participativa - a qual teoricamente propõe e fundamenta uma ampliação da participação do
povo na política e nas decisões que lhes dizem respeito - nota-se que o mesmo é utilizado
frequentemente para a resolução de disputas e entraves litigiosos. Em nosso caso, litígios
territoriais envolvendo municípios.

Partindo da ideia de que o plebiscito é uma eleição21, que opõe discursos, propostas e
interesses, esse fenômeno eleitoral organizado e realizado pelo Tribunal Regional Eleitoral,
(um “braço” do Estado), guarda e mantém algumas singularidades.

No contexto plebiscitário estudado não se identifica propagandas eleitorais, com a


realização de discursos ou comícios como em uma eleição municipal comum. A sua
campanha política ocorre dentro de duas esferas: 1º na Câmara Municipal de Vereadores e 2º
na comunidade litigiosa.

Primeiro na Câmara Municipal de Vereadores, porque é local onde os legisladores


conversam, debatem e criam as resoluções para defender seus interesses políticos. Nessa
perspectiva, defende-se a ideia de que os plebiscitos em destaque são usados como artifícios
de uma elite política para defender seus interesses diversos e por fim, sua própria cultura
política.

Por outro lado, as idas dos atores políticos para as chamadas “áreas plebiscitárias” são
frequentes, e ocorrem com o intuito de “demarcar território”, apresentar preocupação com os

21
RÉMOND, René. As eleições. Por uma História política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

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problemas estruturais da comunidade e propor soluções. Enfim, se aproximando dos possíveis


eleitores plebiscitários, tenta-se legitimar a comunidade em favor de sua municipalidade.

Considerando o viés jurídico e, sobretudo político, que o termo plebiscito assumiu na


microrregião dos municípios de Chopinzinho, São João e São Jorge D´Oeste na década de
1960, localizados no sudoeste paranaense, denota-se claramente o vínculo regional que une
tais municipalidades. As mesmas são criadas e construídas ao longo de um espaço (área) e
tempo comum. Ambas comungam da mesma matriz territorial, política e cultural.

Colonizadas principalmente por gaúchos e catarinenses e de um modo mais intensivo


nas décadas de 1950 e 1960, Chopinzinho é emancipado do município de Mangueirinha em
1954, São João emancipa-se de Chopinzinho em 1960 e São Jorge D´Oeste desvincula-se
politicamente de São João em 1963.

Dessa maneira, se estabelece uma instigante contradição. Isso porque, apesar de terem
a mesma origem territorial, política e cultural, e assim, compartilharem ideais, motivações e
interesses, os anos sessenta colocam os mesmos municípios frente a frente brigando por
territórios, comunidades e distritos. Há a tentativa persistente de legitimação de determinados
territórios.

Nesse jogo de poder comandado pelas elites dirigentes, e que muitas vezes não leva
em conta os interesses das populações em litígio e sim apenas os próprios interesses
particulares, vale situar a relação política estabelecida entre os legisladores dos três
municípios estudados.

Há uma circularidade das elites no caso em pauta. Quando distrito de Chopinzinho,


São João mantinha representantes de sua comunidade na Câmara de Vereadores daquele
município. Com São Jorge D´Oeste distrito de São João ocorria o mesmo. Ou seja, os futuros
membros das elites políticas desses dois últimos municípios eram anteriormente membros de
antigas elites políticas chopinzinhenses e sanjoanenses.

Surgido nesse clima, o contexto plebiscitário tenciona as relações políticas, indicando


uma aproximação e uma apropriação das comunidades localizadas no interior dos municípios.
Os legisladores procuram constantemente criar um discurso que vincule as pequenas
localidades aos municípios que os mesmos representam. Num sentido mais palpável, são

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 595

realizadas obras estruturais nas comunidades litigiosas, como por exemplo, melhorar as
estradas que dão acesso a ela, construir uma igreja ou pagar os professores da escola.

Assim, compreende-se a interação das relações políticas que foram construídas e (re)
construídas entre as elites locais de três pequenos municípios do interior paranaense, que
através de um âmbito plebiscitário procurou demarcar e legitimar suas ambições políticas,
econômicas, sociais e territoriais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, Alessandro Cavassin. Considerações sobre as emancipações municipais no Paraná.


In: _______. O processo de criação de municípios no Paraná: as instituições e a relação entre
executivo e legislativo pós 1988. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n.111,
p.47-71, jul./dez. 2006. Disponível em:
<http://www.ipardes.gov.br/webisis.docs/rev_pr_111_cavassin.pdf > Acesso em: 10 abr.
2011.

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 4 ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 1987.

AUAD, Denise. Mecanismos de participação popular no Brasil: Plebiscito, referendo e


iniciativa popular. Revista Unibero de produção científica, setembro de 2005.

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BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Breves considerações sobre plebiscito, referendo e


participação popular no Brasil. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 51-65, out./dez.
2009. Disponível em: http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/view/1314/1300.
Acesso em: 20 jul. 2012.

GEMMA, Gladio. Plebiscito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,


Gianfranco (orgs.). Dicionário de Política. 11. ed. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 927.

MONDARDO, Marcos Leandro; BACKES, Thaine. A dinâmica migratória na (trans)


formação territorial do Sudoeste paranaense. Cascavel, Revista Ciências Sociais em
Perspectiva. v. 07, n. 12, 2009.

REIS, D. A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.

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RÉMOND, René. As eleições. Por uma História política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2003.

SCHOLZ, J. M. O caso Alto Mirim: estratégias e disputas de poder. Artigo (Graduação) –


Universidade Estadual do Centro – Oeste – UNICENTRO, Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Departamento de História, Guarapuava, 2010.

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O MÉTODO BIOGRÁFICO E A MICRO-HISTÓRIA: RELAÇÕES ENTRE


INDIVÍDUO E SOCIEDADE

Lucimara Koss (Mestranda em História – UFPR) 1


Orientadora: Dr. Maria Luiza Andreazza

Palavras chave: biografia, indivíduo, sociedade.

O método biográfico é uma das formas de se produzir história e desde o seu


surgimento tem passado por diversas modificações. Em alguns períodos aproximou-se da
história e em outros de escritos literários. Foi criticado por alguns e estimado por outros. Em
meio a estas oscilações desenvolveram-se múltiplas formas de se abordar a vida de um
indivíduo. Este trabalho tem por objetivo apresentar algumas destas possibilidades
promovendo um debate historiográfico sobre as relações entre: biografia, indivíduo, sociedade
e micro-história. Para atingir esta finalidade, primeiramente a discussão se detém em um
debate teórico sobre o surgimento da biografia e as diferentes formas de abordagens. Em um
segundo momento, a discussão transpassa as barreiras deste debate teórico, e volta-se para a
exemplificação destas relações na prática. Os cenários selecionados para demonstrar as
relações da biografia com a micro-história foram os armazéns de secos e molhados2
localizados na cidade de Ivaí/PR de 1910 a 1975. Os registros comerciais destes
estabelecimentos permitem encontrar elementos capazes de reconstruir o modo de vida dos
indivíduos. Neste caso, as relações entre biografia, indivíduo, sociedade e micro-história
fogem do campo teórico e refletem-se nas práticas comercias destes cenários.

1
Bolsista REUNI.
2
Entende-se por comércio de secos artigos não comestíveis como: tecido, sapatos, louças, móveis e assim por
diante. Já o termo molhados era utilizado para designar todo tipo de produtos comestíveis e bebidas.

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Segundo Peter Burke3 e François Dosse4, o termo biografia foi elaborado na Grécia
Antiga. Neste período o gênero biográfico foi utilizado com a intenção de transmitir valores
morais por meio de relatos de vidas militares e políticas exemplares. Tornavam-se objeto de
estudo as vidas cujos feitos poderiam servir de modelo para o restante na humanidade. O
personagem biografado era exaltado em meio a anedotas havendo uma despreocupação com a
verdade histórica. Entre os principais nomes de biógrafos deste período podemos citar:
Xenofonte, Isócrates, Suetônio e Plutarco.
Plutarco, nascido no ano 45 d.C., escreveu vidas utilizando o método biográfico
comparativo. Através de comparações entre a vida de um herói grego com a de um romano,
procurava extrair valores morais confrontando defeitos e virtudes entre ambos os heróis.
Como afirma François Dosse: “o objetivo capital do projeto de Plutarco é revelar os traços de
destaque de um caráter psicológico em sua ambivalência e complexidade, inaugurando assim
o gênero da vida exemplar com tons moralizantes”.5
Nesta forma de abordagem, o personagem só interessava enquanto constituía
modelos para a sociedade. O biógrafo voltava o seu olhar para os fatos relacionados à vida
pública do biografado. Dessa forma a singularidade do percurso individual é deixada de lado.
Nas vidas relatadas, o herói virtuoso de Plutarco era aquele que abdicava as vontades pessoais
em favor do bem geral. Neste caso, o indivíduo era visto como o elemento que agia sobre o
contexto, e os escritos biográficos tinham como objetivo eternizar as ações consideradas
exemplares.
No século IV a.C., Xenofonte e Isócrates também voltaram-se para o relato de vidas
políticas na Grécia antiga. Assim como Plutarco, ambos buscavam retratar vidas com o intuito
de transmitir valores morais. As biografias escritas por estes autores também eram recheadas
de anedotas com o objetivo de engrandecer o personagem como herói da pátria. Neste sentido,
não havia uma preocupação com a verossimilhança afastando o gênero biográfico do trabalho
realizado pelo historiador. Por outro lado, durante o século I d.C., Suetônio voltou-se para a
construção de biografias de sujeitos ligados ao mundo artístico. Buscou introduzir a crítica ao
gênero biográfico. Demonstrou uma preocupação com a autenticidade dos fatos aproximando
o trabalho do biógrafo do realizado por historiadores.

3
BURKE, Peter. “A invenção da biografia e o Individualismo Renascentista”. “Estudos Históricos:
Indivíduo, biografia, história”. Nº 19, pp. 1 – 14.
4
DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. São Paulo: Editora da USP, 2009 (cap. 2, pp.
123 – 151).
5
Idem, DOSSE, François. p. 127.

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Neste período era comum relatar a vida do herói como seguidor de um percurso
entre vícios e virtudes, terminando com a glorificação do personagem. Esta forma de se
escrever biografias também foi adotada na Idade Média. Porém, neste período, o herói
político e militar, dividia espaço com o relato de vida de santos. Os hagiógrafos relatavam
vidas cronologicamente como se o indivíduo nascesse predestinado a ser santo. O biografado
era um mero cumpridor do plano divino. Este executava as ações pré-determinadas sem sofrer
influências externas e não existia enquanto indivíduo.
Pierre Bourdieu critica este tipo de abordagem biográfica. Segundo o autor, não é
possível abordar a vida como uma sucessão linear de acontecimentos orientados para
determinado fim. Não é possível compreender uma vida sem levar em conta as relações
sociais que envolvem cada sujeito. O indivíduo não nasce com um destino pré-determinado,
este vai se construindo de acordo com o meio social em que pertence. Neste sentido, Bourdieu
salienta que:

[...] não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos construído os
estados sucessivos no campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das
relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em certos números
de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo
campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis [...]6.

Nesta visão, indivíduo e sociedade estão intrinsecamente interligados e o social age


sobre o individual. O indivíduo é influenciado pelo contexto e não é possível compreendê-lo
sem antes compreender a sociedade em que esta inserido. Esta concepção sobre a relação
entre indivíduo e sociedade, aproxima-se da biografia contexto citada por Giovanni Levi.7
Segundo Levi, esta ocorre quando o biógrafo utiliza o contexto para explicar as ações do
indivíduo e constrói a trajetória como produto de uma determinada época e de um
determinado espaço social.
Semelhantemente à idéia de indivíduo de Pierre Bourdieu, Giovanni Levi afirma que
é impossível entender uma vida sem entender os diversos contextos que a envolvem, porém,
para Levi o contexto não é tão rígido, este oferece múltiplas possibilidades de ações aos
indivíduos. Dessa forma, critica as construções biográficas que seguem um percurso
cronológico sem instabilidades, e não considera o contexto como algo determinante. Segundo
6
BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais e AMADO, Janaina (orgs).
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, pp. 189 – 190.
7
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. IN: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO, Janaina (orgs.). Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 600

Levi, as incoerências dos sistemas normativos deixam brechas de liberdade de atuação aos
agentes, e a vida de um indivíduo deve ser abordada levando em conta suas escolhas e
hesitações. O autor renega a sucessão de acontecimentos cronológicos, e defende a idéia de
que uma trajetória deve ser estudada estabelecendo relações com seus diversos contextos.
Neste sentido, para Levi indivíduo e sociedade se constroem mutuamente. O
indivíduo age sobre o contexto e ao mesmo tempo sofre influências do meio social. Dessa
forma, defende a idéia de que a abordagem biográfica deve levar em conta as influências
externas. O biografo precisa estar atento as incertezas que estão por traz das ações humanas e
deve relacionar o indivíduo com seus diversos contextos através de uma descontinuidade
histórica.
As críticas de Bourdieu e de Levi a escrita de uma biografia somente como descrição
de um percurso que não sofre influências externas, equivalem também para as produções do
período renascentista. Com a ascensão do humanismo ocorreu um interesse maior tanto pela
construção quanto pela leitura de biografias, porém, os biógrafos continuavam a escrever
biografias como na antiguidade e no período medieval. Segundo Burke8, os escritores
renascentistas engrandeciam o biografado com características de heróis modelos e apagavam
o indivíduo. Muitos utilizavam as biografias escritas por Plutarco como padrão para suas
produções. No mesmo sentido, François Dosse afirma que Plutarco: “é lido como um
contemporâneo pelos homens da renascença, um companheiro, um exemplo a seguir.” 9
A contemporaneidade de Plutarco durante o período renascentista fazia com que os
escritores continuassem a utilizar a biografia como mestra da vida. As biografias continuavam
tendo como objetivo a transmissão de valores morais através do registro de vidas exemplares.
Os escritores continuavam a engrandecer o biografado através de anedotas, aproximando-se
do gênero literário. A personalidade continuava sendo vista como estática. As circunstâncias
mudavam e os indivíduos permaneciam os mesmos não sofrendo influências externas.
No final do século XV os trabalhos biográficos demonstraram uma mudança em
relação ao aparecimento da individualidade. Tornou-se comum a utilização de biografias nos
prefácios de obras. O objetivo era utilizar dados biográficos como uma forma de facilitar a
compreensão da obra através do conhecimento da personalidade do autor. O mesmo equivalia
para o uso de anedotas, estas passaram a ser utilizadas com o intuito de revelar dados pessoais
do biografado.
8
Idem BURKE, Peter.
9
Idem, Dosse, p. 126.

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Se no renascimento ocorreu uma emersão da biografia e em meio às construções


anedóticas um despontar da individualidade, a partir de meados do século XVIII o gênero
biográfico entra em decadência. Com a emersão da filosofia da história e a busca de um
espírito universal, a biografia foi colocada em descrédito. O destino coletivo passava a ter
mais importância que os individuais. O indivíduo só interessava enquanto meio para a
natureza realizar seus fins. Este deixou de ser sufocado pela busca do herói e passou a ser
esmagado pela busca de leis universais. Passou a ser visto como elemento que realizava
inconscientemente objetivos gerais. Neste sentido para Ranke, a biografia só tinha relevância
na medida em que a existência individual mantinha ligações com o restante da civilização.
Uma trajetória só passava a ter importância a partir do momento em que era vinculada ao todo
atingido um sentido universal.
Dessa forma, autores como Henry Buckle e John Fiske, eram apenas alguns dos
nomes que passaram a criticar o conhecimento baseado no método biográfico. Os positivistas
afirmavam que só era possível conhecer algo em sua totalidade, e que o particular não ajudava
a compreender nada, como afirma Sabina Loriga em seu texto a biografia como problema:
“para os historiadores positivistas, as qualidades individuais, inclusive a dos grandes homens,
não bastavam para explicar o curso dos acontecimentos, era preciso levar em consideração as
instituições e o meio” 10.
Os positivistas como Henry Buckle, criticavam a particularidade biográfica do século
XIX. Afirmavam que o particular só interessava para comprovar leis gerais. Defendiam a
idéia de que o historiador deveria relatar somente as ações que demonstrassem o avanço da
humanidade em direção a seu verdadeiro fim. Esta abordagem do indivíduo assemelhasse a
concepção presente na biografia modal citada por Giovanni Levi. Segundo o autor tanto na
prosopografia quanto na biografia modal, a vida de um indivíduo é utilizada para ilustrar
comportamentos estaticamente gerais e comprovar leis. Neste caso, o indivíduo e suas ações
só interessam quando comprovam as características de um grupo. A biografia serve somente
como prova empírica das normas e regras comportamentais. Convém unicamente para provar
o funcionamento das regras sociais.
Apesar desta busca de comprovações de fatos gerais através de alguns
acontecimentos particulares, escolhidos como exemplo, segundo Sabina Loriga havia os
historiadores que não aceitavam colocar o indivíduo nos bastidores do palco das
10
LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência
da micro-análise. Rio de Janeiro: editora da FGV, 1998, p.231.

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generalizações sociais. Entre estes podemos citar Thomas Carlyle (1930). Para Carlyle,
mesmo que a humanidade caminhe para um plano teológico, as compreensões dos fatos só se
tornavam possíveis por meio da compreensão do emaranhado de vidas particulares que
compõe o todo social.
Em meio a estas tensões entre particular e geral que foram demonstradas até aqui,
defende-se a ideia de que não é possível compreender uma vida sem antes compreender a
sociedade em que o indivíduo esta inserido, e não é possível compreender a sociedade sem
antes compreender as diversas vidas que a compõem. Ou seja, não se pode compreender uma
trajetória desvinculada do espaço social em que ela se realiza, e não é possível conhecer uma
sociedade sem levar em conta a singularidade da vida dos atores sociais. Uma biografia só
faz sentido e torna-se compreensível a partir do momento em que é inserida em seus diversos
contextos históricos. O particular esta inserido no todo e o todo é uma junção da existência
das diversas vidas singulares.
A partir dessa relação entre indivíduo e contexto, um único nome de uma pessoa
possibilita conhecer uma série de acontecimentos. Isto ocorre devido ao fato de qualquer
trajetória fazer parte de uma rede de relações sociais. Através de uma biografia é possível
vislumbrar o geral por meio do particular. Podemos citar como exemplo desta ligação entre
biografia e micro-história, as relações sociais que se desenvolviam em torno dos armazéns
localizados na cidade de Ivaí/PR no período de 1910 a 1975.
Os armazéns desta pequena cidade localizada no sudeste paranaense, também
incrementavam a circulação de mercadorias fazendo parte de um movimento comercial maior.
Os habitantes desta região, mais especificamente os carroceiros, vendiam produtos agrícolas e
tropas de suínos em centros consumidores maiores tais como Ponta Grossa. Após a venda as
carroças eram reabastecidas com novos produtos para serem re-vendidos nos armazéns de
secos e molhados de Ivaí. Dessa forma os carroceiros intensificavam as relações comerciais
desenvolvendo redes de sociabilidade entre espaços distintos. Levavam até os armazéns de
Ivaí as mais diversas novidades, entre elas estavam: notícias, ferramentas, alimentos, tecidos,
bebidas, vestimentas e vários produtos considerados “novos” que mexiam com a curiosidade
dos consumidores.

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Informações como estas que demonstram a ligação de pequenos fatos a relações


sociais mais amplas, foram extraídas de alguns livros caixa dos armazéns de Ivaí 11. Estes
documentos são fontes que exemplificam facilmente a ligação da micro-história com o
método biográfico. Os arquivos comerciais ou registros de consumo podem revelar uma série
de elementos de determinada sociedade. Conforme afirma Michael de Certeau, estes são para
o observador

[...] um dos lugares privilegiados para verificar a “sociabilidade” dos usuários, o


lugar onde se elaboram as hierarquias típicas da rua, onde se espanam os papéis
sociais do bairro (a criança, o homem, a mulher etc.), onde se “massificam” as
convenções sobre as quais se entendem as personagens momentaneamente reunidas
no mesmo palco.12

Nestes documentos consta o nome de cada cliente que freqüentava os armazéns, e a


observação de um único nome de um indivíduo possibilita o levantamento de um emaranhado
de questões sociais. De acordo com Carlos Ginzburg: “as linhas que convergem para o nome
e que delem partem, compondo uma espécie de teia de malha fina, dão ao observador a
imagem gráfica do tecido social em que o indivíduo esta inserido.” 13 Dessa forma, é possível
identificar que eram os sujeitos que circulavam pela casa comercial, se os armazéns foram
espaços freqüentados por homens ou mulheres, crianças ou adultos e de que tipo de etnias.
Além dos nomes, nestes registros constam os produtos que cada consumidor adquiria
e as formas de pagamentos. Por meio destes dados é possível analisar os hábitos alimentares e
estéticos deste período, interpretar parte da vida cotidiana desta sociedade e desvendar os
motivos que levavam cada consumidor até os armazéns. Ou seja, a observação de um único
nome ou de uma única vida, possibilita a extração de informações que estão atreladas ao
restante da sociedade, e podem revelar uma série de questões sociais de determinado contexto
histórico.
Outra exemplificação que pode ser dada sobre a ligação entre biografia, micro-
história e macro-história, é a obra A herança imaterial14 de Giovanni Levvi. Por meio da

11
CERTEAU, Michel de; LUCE, Giard; PIERRE, Mayol. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. 6ª
edição. Rio de Janeiro-Petrópolis: Vozes, 2005, p.53.
12
DERKASCZ, Pedro. Registro de produtos consumidos no período de 1930 até meados da década de 1940.
Acervo pessoal. Mariano Derkascz. KOSS, João. Livro de registro de saída de mercadorias do período de
1970 a 1971. Acervo pessoal de Maria Kos. PYETLOWANCIW, Elias. Registro de produtos consumidos no
período de 1912 até meados da década de quarenta. Acervo pessoal de Mariano Derkascz.
13
GINZBURG, Carlos. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Defil, 1989, p. 175.
14
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

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micro-história, Giovanni Levi utilizou a biografia do padre exorcista Giovan Battista Chiesa
para compreender relações sociais mais amplas. Partiu do indivíduo e de uma pequena
comunidade italiana do século XVII, para entender o processo de transição do feudalismo
para o capitalismo. Isto fica explicito em suas palavras: “a história de Chiesa foi, portanto,
não apenas de sua narrativa, mas também o pretexto para a reconstrução do ambiente social e
15
cultural da cidade.” Levi utilizou o indivíduo e as mudanças locais como um meio para
entender as transformações do poder central. Por meio de alguns fatos relacionados à
biografia de Chiesa, foi reconstruindo uma teia de relações sociais que demonstravam as
transformações e as instabilidades do período estudado. Desse modo, através da vida de um
indivíduo, buscou compreender a expansão do estado moderno.
Nestes aspectos, a utilização da biografia na micro-história atrela o indivíduo à
sociedade. Se para os historiadores positivas somente os fatos gerais são capazes de revelar
algo sobre a humanidade, por outro lado, a micro-história utiliza os fatos particulares para
entender acontecimentos mais amplos, porém, esta particularidade só faz sentido dentro de
um contexto social. Neste caso, a biografia pode ser utilizada como um meio para se chegar a
diversos acontecimentos, e uma forma de se dinamizar o conhecimento histórico com
incertezas, problemas e escolhas dos indivíduos. Como afirma Jacques Revel: “a abordagem
micro-histórica deve permitir o enriquecimento da análise social, torná-la mais complexa,
pois leva em conta aspectos diferentes, inesperados, multiplicados da experiência coletiva.”16
Mais uma vez podemos citar como exemplo desta ligação entre indivíduo e contexto na
micro-história, a abordagem biográfica que Giovanni Levi fez do padre exorcista Giovan
Battista Chiesa.
A herança imaterial uniu o individual com o social. O autor colocou indivíduo e
sociedade caminhando lado a lado em uma construção mutua. A realidade é vista como
resultado da interação do indivíduo com o contexto. Dessa forma, o contexto não é abordado
como algo rígido e determinante. Como vimos, para Levi o indivíduo sofre influências sociais
em suas ações, porém, as incoerências dos sistemas normativos oferecem diversas
possibilidades de atuações sobre o contexto. Na herança imaterial o contexto é construído a
partir das ações e relações sociais do indivíduo com a sociedade. As mudanças vão
aparecendo como resultado desta interação entre indivíduo e contexto. Desse modo, a obra

15
Idem, p. 47.
16
REVEL, Jacques. “Prefácio”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no
Piemonte do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 18.

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permite exemplificar que as escolhas dos indivíduos estão atreladas as relações que este
estabelece com a sociedade. A trajetória não tem sentido desvinculada do social.
Outro trabalho que pode ser citado como exemplo é religiosidade e escravidão,
século XIX: mestre Tito17 de Regina Xavier. A autora partiu do particular para entender
questões mais amplas envolvendo a vida dos africanos em Campinas durante o século XIX.
Através da vida de Tito, Regina Xavier trouxe uma série de acontecimentos sociais. Isto é
possível porque a vida de Tito não existia desvinculada do social, esta fazia parte de uma rede
de relações sociais. Desse modo, Xavier foi construindo a biografia de Tito por meio dos
vastos relacionamentos que este estabeleceu durante sua existência.
Nesta interação entre indivíduo e sociedade, a trajetória vai se construindo a partir
das relações sociais estabelecidas. Dentro desta perspectiva, um indivíduo não nasce
predestinado a cumprir determinados objetivos durante sua existência. É neste sentido que
Pierre Bourdieu criticou a idéia de relatar a vida de um indivíduo desvinculada de um espaço
social. Para isto afirmou que:

[...] Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto
tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da
rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os
acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço
social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da
distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo
considerado [...].18

Como vimos, para Bourdieu não é possível compreender uma trajetória sem antes
compreender o espaço social em que o individuo esta inserido e suas diversas relações
estabelecidas com outros agentes. O contexto influencia nas ações individuais levando o
sujeito a estar sempre em constantes transformações nos diversos campos em que atua. Por
meio desta concepção biográfica, não é possível abordar e entender o indivíduo sem antes
abordar o contexto.
Esta forma de explicar a vida de um indivíduo, presa à sociedade, é o oposto da
abordagem biográfica de casos extremos cita por Giovanni Levi. Neste tipo de abordagem, as
biografias são utilizadas para explicar o contexto e a sociedade. Parte-se do indivíduo e de

17
XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito. Porto Alegre: UFRGS,
2008.
18
Idem BOURDIEU, Pierre. 1996, p. 190.

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casos extremos para entender as tramas sociais mais gerais. As duas obras citas deste
trabalho: a herança imaterial e Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito,
aproximam-se desta proposta porque os autores utilizaram o indivíduo como um meio para
revelar questões socais mais amplas. Por outro lado, afastam-se porque tanto Tito quanto
Chiesa são dois personagens que vão construindo os contextos e se construindo ao longo das
obras.
Em meio a estas diferentes formas de se abordar o contexto, conclui-se que:
biografia, micro-história, indivíduo e sociedade são elementos complementares. Uma
trajetória em sua particularidade só faz sentido se vinculada a um contexto. Por outro lado, o
contexto é resultado das ações humanas não sendo possível compreende-lo sem levar em
conta a vida dos agentes sociais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”. In: FERREIRA, Marieta de Morais e AMADO,


Janaina (orgs). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996, p. 183-
191.

BURKE, Peter. “A invenção da biografia e o Individualismo Renascentista”. “Estudos


Históricos: Indivíduo, biografia, história”. Nº 19, pp. 1 – 14.

CERTEAU, Michel de; LUCE, Giard; PIERRE, Mayol. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
cozinhar. 6ª edição. Rio de Janeiro-Petrópolis: Vozes, 2005, p.53.

DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. São Paulo: Editora da USP,
2009 (cap. 2, pp. 123 – 151).

GINZBURG, Carlos. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Defil, 1989.

LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século


XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. IN: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO,
Janaina (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.

LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de
escalas: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: editora da FGV, 1998.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 607

REVEL, Jacques. “Prefácio”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um


exorcista no Piemonte do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito. Porto
Alegre: UFRGS, 2008.

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ST 10 - HISTÓRIA AMBIENTAL: QUESTÕES, TEMAS E
PERSPECTIVAS NO PARANÁ
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 609

PINHEIRO-DO-PARANÁ: SÍMBOLO DE IDENTIFICAÇÃO CULTURAL OU


EMBLEMA DE UMA HISTÓRIA DE DESFLORESTAMENTO?

Alessandra Izabel de Carvalho


(DEHIS – UEPG)

Palavras-chave: pinheiro-do-paraná, desmatamento, identidade cultural

O Estado do Paraná é considerado atualmente uma potência agrícola e consta entre os


grandes pólos econômicos do Brasil. O custo ambiental de tal empreendimento tem, no
entanto, se mostrado extremamente elevado. Em pouco mais de 100 anos o extrativismo e a
agropecuária substituíram a matriz florestal por uma matriz agrícola que contém alguns
fragmentos florestais, processo que resultou no empobrecimento da flora e da fauna, na
erosão e fragilização do solo e na poluição dos recursos hídricos (PARANÁ, 2009, 25).
O início da derrubada das florestas paranaenses acompanhou a instalação das
primeiras serrarias no final do século XIX, fenômeno que a colonização do norte do Estado e
a introdução e expansão da cafeicultura aceleraram a partir de 1930. A partir da década de
1940, a exploração da madeira tornou-se a base da ocupação intensiva da vasta região do
oeste e sudoeste. Dos anos 70 para cá, o desenvolvimento da tecnologia utilizada na
agropecuária tem impulsionado cada vez mais a produção do Estado. Tal contexto, aliado a
outros fatores como a ocorrência de grandes incêndios florestais, a retirada de espécies
vegetais de grande importância econômica, a implantação de projetos agropecuários em áreas
frágeis e a expansão urbana fizeram com que as florestas não resistissem e a cobertura
florestal do Paraná que originalmente cobria mais de 84% do território caiu para menos de
11%, segundo um levantamento realizado pela SOS Mata Atlântica & INPE em 2011.1
Especificamente em relação ao tema deste estudo é definida como área de abrangência
da floresta com araucária as áreas de ocorrência da Araucaria angustifolia, também conhecida
como pinheiro-do-paraná, pinheiro-do-brasil, ou simplesmente araucária. Essa espécie ocorre
em uma região de clima pluvial subtropical, em altitudes que vão de 500 a 1200m, de forma

1
É importante salientar que os dados referentes à cobertura florestal atual do Estado são bastante polêmicos e
variam bastante dependendo da fonte utilizada. Há que se considerar o conflito existente entre os critérios
políticos e os critérios técnicos na análise e divulgação dos mesmos.

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continua desde a porção central do Rio Grande do Sul ao Sudeste do Estado de São Paulo. A
floresta com araucária compunha na verdade a maior floresta original do sul do Brasil,
chegando a cobrir um terço de toda região.
No Paraná, a região das araucárias estende-se desde o primeiro planalto,
imediatamente a oeste da Serra do Mar, até os segundo e terceiro planaltos. Também ocorre
na região dos Campos Naturais na forma de capões ou nos vales dos rios. A fitofisionomia da
floresta com araucária se caracteriza pelo fato de o pinheiro formar o patamar superior da
floresta. Com uma cobertura muitas vezes extremamente densa, olhando-se de cima parece
que a floresta é constituída unicamente de pinheiros. Olhando-se de baixo, ou seja, de dentro
da floresta, houve um tempo em que era possível caminhar dias sem ver a luz do sol, segundo
um relato de do fim do século XIX do viajante naturalista Thomas Bigg-Whiter (1974). Mas
esse foi um tempo em que a floresta ainda estava praticamente intacta e correspondia a quase
40% da área total do Estado.
Ainda que a composição da floresta com araucárias varie dependendo da região, de
forma geral eram florestas ricas em espécies como a imbuia, o cedro, o ipê e as canelas,
madeiras de grande interesse comercial, e outras espécies de enorme valor econômico como a
erva-mate e o xaxim, isso sem falar das centenas de espécies animais e botânicas
imprescindíveis na dinâmica natural desse ecossistema singular .
Os últimos dados oficiais em relação ao estado de conversação da floresta com
araucária são dos estudos realizados em 2001 pela Fundação de Pesquisas e Estudos
Florestais. Sintetizando as informações do levantamento, observou-se que as florestas em
estágio avançado correspondem a apenas 0,8% da área total da floresta com araucária e 0,24%
nos campos. São apenas nessas florestas em estágio avançado que ocorrem espécies
exclusivas e uma maior biodiversidade. Ao mesmo tempo, “essas florestas de extrema
importância são as que vem sendo mais impactadas com a retirada seletiva de madeira ou
mesmo com a retirada total da floresta”. Comparando os dados coletados ao longo dos
últimos 20 anos, a conclusão dos pesquisadores é que praticamente “não há mais
remanescentes de floresta com araucária primária” e “os poucos e dispersos fragmentos de
floresta em estágio avançado de regeneração estão em franco processo de desaparecimento”
(CAMPALINI; PROCHNOW, 2006, 76).

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No caso do Paraná, a devastação das florestas com araucária torna-se ainda mais
paradoxal se levarmos em conta a importância que o pinheiro, especificamente, ocupa no
imaginário social do povo paranaense.
Com a proclamação da República em 1889 e a consolidação do federalismo, a
construção das identidades culturais tanto da nação como dos estados que a formavam se
colocava como imperativo. Mas o Paraná era um estado que, no início do século XX, ainda
carecia de uma base demográfica, econômica, social e cultural. Nem mesmo seus limites
territoriais estavam bem definidos. Em outras palavras, tratava-se de um estado sem
identidade.
Foi com vistas a suprir ao menos parte dessas lacunas que um grupo de intelectuais,
políticos e artistas se dedicou à tarefa de “inventar o Paraná”. Surgia então o Movimento
Paranista cujo papel era exatamente “forjar uma identidade regional, com base nos ideais de
progresso, modernidade e ciência que embalavam a República, em uma construção
absolutamente ufanista que faria o elogio da terra” e do povo paranaenses (PEREIRA, 1997,
88).
Em paralelo à formulação desse discurso histórico, que vinha se delineando na
verdade desde o final do século XIX mas que alcança sua cristalização entre as décadas de
1920 e 1930, toda uma produção de dispositivos simbólicos-ideológicos foi edificada com o
objetivo de estabelecer laços de afetividade, e conseqüentemente, de identificação dos
paranaenses para com as imagens, os símbolos e as representações que a partir de então os
caracterizariam. Coube às artes, sobretudo à literatura, à escultura e à pintura, a construção e a
representação dos mitos e das lendas paranistas, a promoção do paranaense ideal – assentado
na ideia do imigrante branco, trabalhador e semeador do futuro – e a sinalização e o
enaltecimento das riquezas da natureza dessa terra, tais como os rios, as montanhas da Serra
do Mar, as Quedas do Iguaçu, a erva-mate, o reino animal e o próprio clima.
Mas de todas as representações utilizadas pelo Movimento Paranista, o pinheiro foi,
sem dúvida, “o que se encaixou de forma mais concreta em suas pretensões simbólicas”
(PEREIRA, 1997, 142) e de maior eficácia e durabilidade no processo de construção da
identidade do povo paranaense. Nas analogias criadas pelos paranistas o futuro do Paraná
seria pujante, de porte agigantado e se destacaria do resto do Brasil assim como o pinheiro se
destaca no meio da floresta; o caráter do paranaense era retilíneo e altivo, tal como o tronco
daquela árvore, e assim por diante. Some-se a isso que pinheiro é uma espécie que de fato

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consta na paisagem regional há milhares de anos, presença que por si só serviria, no


imaginário paranista, “para preencher o vácuo referente à inexistência de uma tradição
histórica do estado” (PEREIRA, 1997, 143). Ou seja, elevado à imagem e semelhança do
pinheiro o povo paranaense desde sempre estivera representado naquelas terras pela figura
dos pinheirais.
É essa construção discursiva elaborada entorno do pinheiro-do-paraná como elemento
agregador da identidade regional que tem nos interessado particularmente.
É importante ressaltar, no entanto, que embora a pretensão do movimento paranista
fosse criar e solidificar um sentimento de “paranidade” que fizesse sentido para toda a
população paranaense “apesar das suas diferenças de origem, das disputas pela hegemonia
política, dos conflitos entre grupos e classes sociais”, o fato é que a abrangência do
movimento, por ter sido mais que tudo uma expressão regionalista emergente da elite
intelectual curitibana, ficou circunscrita ao “Paraná tradicional”, quer dizer, a Curitiba,
capital do estado, e regiões próximas (BENATTE; TOMAZI, 2011, 139).
Essa é uma informação significativa na análise da profusa utilização paranista do
pinheiro como símbolo máximo da identidade regional pelo fato da espécie relacionar-se
diretamente como o nome Curitiba, que tem origem na etimologia indígena e significa terra
de muitos pinheiros, terra de pinheirais.
Para se ter uma ideia da recorrência do pinheiro no campo das artes paranistas, vale
citar o artista plástico Lange de Morretes, responsável pela estilização do pinheiro, da pinha e
do pinhão utilizados como adornos decorativos em toda capital do estado, dizia ele:

[...] Quando um artista paranaense está só ele pensa no pinheiro; quando está
em companhia de outro artista, fala do pinheiro; e quando os artistas
reunidos são mais de dois, discutem sobre o pinheiro. (...) Discutíamos as
suas qualidades, as suas dificuldades e as suas novas possibilidades para o
campo da arte (MORRETES, 1953).

Nas obras de vários pintores renomados como Ghelfi, Freyesleben, Traple, De Bona
encontramos registradas as suas percepções e interpretações sobre a árvore-símbolo do
Estado. O próprio espaço urbano da capital se tornou tela para as intervenções paranistas e o
pinheiro passou a figurar tanto na arquitetura como nas calçadas e nos monumentos das
praças.
Porém, ao mesmo tempo em que os paranistas se empenhavam na construção de uma
identidade simbólica e intelectualmente construída para o Paraná, o principal elemento

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concreto do entorno natural que sustentava tal formação discursiva, o pinheiro, começava a
rarear.
A partir da década de 1930 a indústria da erva-mate que havia a base da economia
paranaense do século XIX e, em grande parte, responsável pela introdução das relações
capitalistas de produção no Paraná foi sendo substituída por um modelo econômico pautado
no café e na madeira. De fato, o potencial econômico das florestas fez com que a indústria
madeireira se expandisse pelos municípios paranaenses. Com a colonização do norte e do
sudoeste do Paraná, e conseqüente ampliação da malha viária e ferroviária, ou seja, com a
facilitação do acesso, as florestas começavam a ser definitivamente devastadas.
Se por um lado o povoamento do Estado representava a chegada do progresso, por
outro, trazia igualmente prejuízos, sobretudo ambientais, pois o rápido desaparecimento dos
pinheirais alterava significativamente a paisagem que tanto inspirara os paranistas (BAHS,
2007, 110).
É certo, no entanto, que a destruição das matas paranaenses não passou despercebida,
ao menos não aos olhos de Romário Martins, um dos fundadores e o maior ideólogo do
movimento paranista. Romário deixou mais de 70 obras publicadas, a maioria delas sobre a
história do Paraná e é no conjunto da sua obra que podemos perceber um discurso que
entremeia a exaltação do progresso, da civilização e da modernidade e a importância da
proteção do meio ambiente, ora como processos interdependentes, ora com sobreposição do
primeiro sobre o segundo.
Romário Martins fora colaborador na redação do primeiro Código Florestal criado no
Brasil em 1907, um código estadual que, bem da verdade, nunca saiu do papel. De toda
forma, a elaboração do código expressa a necessidade de um ordenamento legal das práticas
do extrativismo florestal paranaense. O caráter pragmático e utilitarista do Código de 1907
fica ainda mais evidente na revisão deste ordenamento em 1919. Esse projeto de lei, agora de
autoria de Romário Martins, propunha o reflorestamento das áreas dizimadas e a formação de
bosques industriais. Para ele, essa seria uma iniciativa salvadora já que deslocaria a demanda
crescente em função da guerra por madeira nobres ao mesmo tempo que se reconstituiriam
artificialmente as florestas nativas derrubadas. A questão, no entanto, é que esse
reflorestamento deveria ser feito com espécies de rápido crescimento como a bracatinga e
exóticas, como o eucalipto. Ou seja, o que Romário Martins propunha era a formação de

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bosques homogêneos a despeito do impacto que esses poderiam causar no solo e nas
nascentes e cursos d’água que o Código a princípio pretendia proteger.
Em 1926 Romário Martins propõe um novo projeto que “Reorganiza o código florestal
e consolida as demais leis vigentes sobre a exploração de madeiras”. A novidade desse código
é que a par da regulamentação das florestas protetoras e das florestas de exploração, já
descritas nos códigos anteriores, aparecem as reservas florestais, que seriam “as constantes de
áreas pelo governo determinadas para perpetuarem o sertão paranaense isento de alteração na
sua fisionomia natural” e cuja “finalidade será exclusivamente documentativa: cientifica,
moral e estética”.
O empenho legislativo de Romário Martins em prol da preservação das florestas
paranaenses pode ser contrastado, no entanto, com uma série de artigos publicados em jornal
de Curitiba, em 1924, sob o título Cafelândia – Terra das glebas de ouro (Impressões de
viagem), nos quais Martins exalta os pioneiros, ou seja, os primeiros grandes proprietários de
terra que colonizaram a região norte do estado, descrevendo-os como

yankees brasileiros, netos de bandeirantes, herdeiros directos das energias


assombrosas dos que fizeram a penetração do Paraguay, descobriram o
Piauhy, as minas de Sabará e Paracatu, as solidões de Cuyabá e de Goyaz,
percorreram o Rio Grande do Sul, no norte do Brasil chegaram ao Maranhão
e ao Amazonas e tendo galgado a cordilheira peruana "atacaram os
hespanhoes no amago dos seus dominios", Saint’Hilaire - poderiam realizar,
seguidos de audazes mineiros, essa investida contra as mil difficuldades e os
mil perigos do sertão paranaense. (MARTINS, 1924, s.p.)

Para ele seria essa “raça de gigantes” a responsável por dominar e conquistar o
“agressivo e maravilhoso” sertão paranaense “para o progresso e a civilização”.

Attrahidos pela magnificencia sem par das terras roxas do Norte do Paraná e
estimulados, quiçá, pelas proprias dificuldades que lhes offerecia a
aggressividade titanica da floresta imensa, - paulistas e mineiros realizaram ,
nessa Terra das Glebas de Ouro, uma das mais formidaveis affirmações das
suas actuaes energias. (MARTINS, 1924, s.p.)

Nos artigos de Romário Martins as florestas da região, apesar de sua “majestade e


opulência inexcedível”, destacam-se mais por terem sido derrubadas para que ali pudessem
ser produzidas as “opulentas lavouras de café” (MARTINS, 1924, s.p.). O episódio da
colonização e da instalação dos cafezais é descrito como uma batalha entre as florestas e a
“fortaleza do braço” e a “inteligência” daqueles que as abateram: “Ainda hoje se pode ver, às

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margens da estrada de rodagem [...] com que gigantes [as árvores] teve de lutar o homem que
transformou em lavouras vitoriosas a selva bruta de toda a região do Norte do Paraná”
(MARTINS, 1924, s.p.).
Martins se mostra, no entanto, sensível às perdas que tal empreendimento causava à
natureza local:

E’ notavel o desapparecimento de grande numero das especies faunisticas da


região, devido ao rapido desflorestamento. Meio antes propicio á vida de
aves e mammiferos devido á sua magestosa vegetação arbórea, á profusão
das aguadas e ao clima, está hoje quase inteiramente transformado, como é
natural, com a substituição, quase integral, da matta virgem pelas lavouras.
Assim é que ao viajôr daquellas paragens não se deparam senão escassos
representantes de uma fauna que, por força das condições naturaes da região
toda , foi sem duvida muito abundante e variada. (MARTINS, 1924, s.p.)

Mas o sacrifício, nas sua próprias palavras, não fora inútil. Os animais e a mata virgem
haviam sido substituídos por uma riqueza que ele descreve como incomparavelmente maior,
uma lavoura que era representativa da agricultura moderna, planejada e científica – muito
diferente das roças improvisadas dos sertanejos:

O machado, o fogo e o tempo que a destruíram [a floresta], foram o ferro e o


fogo que fazem o progresso e que levantam civilizações e não as armas
fáceis quase inúteis com as quais o sertanejo imprecavido derriba-a e
incendeia para sobre suas cinzas plantar a gramínea das suas roças precárias
e cada vez mais exigentes de novos sacrifícios, de novas destruições de vidas
florestais. (MARTINS, 1924, s.p.)

A Cafelândia, louvada e exaltada por Romário Martins em 1924, seria o reverso da


Araucarilandia que o pesquisador naturalista Francisco Carlos Hoehne observou em viagem
realizada pelos estados do Paraná e Santa Catarina, em 1928, com o intuito de levantar mais
informações científicas sobre a imbuia, uma das espécies arbóreas que compõem a floresta
com araucária.
De riqueza singular nas descrições das espécies botânicas que foi encontrando ao
longo da viagem, o texto de Hoehne em Araucarilandia (1930) é mais que tudo uma denúncia
e um alerta. Sua viagem não se estendeu ao norte do Paraná mas, com o que viu na região de
Curitiba e ao sul, ficou-lhe evidente a rápida ação devastadora sobre as florestas, promovida
sobretudo pelas madeireiras. Por várias vezes Hoehne critica a forma imprevidente e
predatória com que se exploravam as florestas dos dois estados:

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Alguém disse que o nosso caipira é o semeador de taperas, fabricante de


desertos e um inimigo das matas. Isso é exato. Além da instrução falta-lhe o
instinto que caracterizava o aborígena. De perdulário torna-se mau. O seu
machado derruba e destrói anualmente – enquanto encontra – o quanto
bastaria para dar fortuna a alguém mais ajuizado que soubesse aproveitá-lo.
(HOEHNE, 1930, 6)

Porém, com uma posição diferente da de Romário Martins, continua: “Assim


procederam e continuam agindo os vanguardas da nossa civilização, que denominamos
pioneiros e desbravadores do sertão”. Tal prática de devastação das florestas era facilitada
pela construção das ferrovias: “Onde a estrada de ferro chega, as florestas recuam”, dizia
Hoehne, o que faz por alimentar cada vez mais o nomadismo das serrarias que proliferavam
sempre em busca de novas áreas de extração.
Com um certo tom profético, Hoehne finaliza o texto de Araucarilandia da seguinte
forma:
A imbuia é uma arvore que desaparecerá com o pinheiro-do-paraná dentro
de cinquenta anos, se providencias enérgicas não forem tomadas desde já
pelos governos estaduais e federal e interesse não for despertado entre os
particulares no sentido de protegê-las e replantá-las. Que providencias sejam
tomadas imediatamente, é o que desejamos ao entregar esse relatório ao
público. (HOEHNE, 1930, 113)

Infelizmente, as tais providências não foram tomadas...


Mas se o pinheiro-do-paraná tombava incessante e indiscriminadamente em meio ao
desmatamento em curso, na prática discursiva e na produção simbólica continuaria firme no
propósito de fundamentar um discurso identitário regional, ainda que o viés utilizado seguisse
em outra direção.
É o que se percebe a obra intitulada “Paraná vivo”, de 1953, do professor Temístocles
Linhares, outro intelectual de grande influência no pensamento paranaense. Ainda que
apresentando preocupação com a significativa redução da cobertura florestal do mundo em
geral mas mais especificamente com a do Estado, Linhares produz um novo sentido para a
árvore considerada símbolo do Paraná e da identidade de seu povo:

[...] deixando para trás o tempo em que o pinheiro não passava de simples
motivo de inspiração de poetas idílicos que procuravam se ajustar à natureza
circundante, para ver nele ora “uma taça erguida para a luz”, ora um vulto
senhorial a quedar-se firme e ereto diante do tufão e do raio, quando era
posta em jogo a sua qualidade de presidente do Supremo Tribunal Vegetal,
titulo que lhe conferiu o poeta Raul Bopp, se não nos falha a memória. O

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pinheiro limitado às puras cogitações poéticas, assim, se reduz hoje a tema


puramente mitológico, a inocente divertimento com que povoavam a
imaginação dos nossos coevos, mergulhados no contemplativismo mais
infenso a qualquer espécie de concepção utilitária de conforto e bem-estar,
se bem que inconscientemente estivessem eles propagando a preservação de
nossas florestas. (LINHARES, 2002, 92)

A ideia de que o discurso paranista estivesse de alguma forma propagando a


preservação das florestas é questionável. O que chama a atenção, no entanto, é que Linhares
de fato abandona uma representação puramente poética, figurativa e imagética da araucária
erigida pelos paranistas de outrora e destaca o seu potencial para a economia regional, a
exemplo, sobretudo, da fábrica de papel de Monte Alegre. Para Linhares, o reflorestamento,
tal como implantado Cia. Monte Alegre, e a industrialização promoveriam o desenvolvimento
do Estado e do homem paranaense, ou seja, abririam espaço para a “civilização do pinheiro”.
Na verdade, o paranismo da década de 1920, empenhado na construção de símbolos
para a identidade regional, estava sendo substituído na década de 1950 por um outro discurso
identitário, fundado muito mais na concepção de grandeza e de prosperidade do Paraná. Era
época do centenário da emancipação do estado e grandes obras foram realizadas com
pretensões de se tornarem marcos memorativos para a posteridade. O governador da época,
Bento Munhoz da Rocha Netto, foi o grande empreendedor dessas ações. O discurso recaia
então sobre os emblemas da modernidade que deveriam ser visíveis, por exemplo, na
arquitetura da capital, mas também na prosperidade econômica que se concentrava no interior
do Paraná, mais especificamente nas atividades relacionadas à cafeicultura, e, sobretudo, na
necessidade de integração política dos novos habitantes do território paranaense.
As décadas de 1960 e 1970 marcaram uma nova fase na produção do discurso
histórico regional. Nessa produção, agora academizada (vale lembrar que o departamento de
história da UFPR fora criado em 1959) e crítica da narração tradicional da história
paranaense, que de uma forma ou de outra caracterizara o paranismo, a identidade regional
passa a ser problematizada a partir de uma perspectiva da história econômica, demográfica e
social. Nesses estudos, o pinheiro surge, quando surge, apenas como elemento estatístico do
ciclo econômico da madeira.
É somente a partir da década de 1980 que as araucárias voltam a aparecer, ainda que
timidamente, na agenda do debate público, e agora na forma de denúncia do esgotamento da
espécie.

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Sob ameaça de extinção a araucária passou a ser protegida pela legislação estadual em
1992 e pela legislação federal em 2006. A partir de então não se pode mais cortar pinheiros,
mas por outro lado também não se planta e não se deixa crescer. Isso porque a proibição de
seu aproveitamento futuro fez da araucária uma espécie maldita entre os agricultores, a
presença dela em suas propriedades é vista como um problema cuja melhor solução é a sua
eliminação ainda no estágio de muda. Essa prática tem agravado ainda mais o quadro de
extrema fragilidade a que estão submetidos os escassos remanescentes das florestas com
araucária do Estado, que sofrem diariamente com a ação criminosa de corte e retirada seletiva
de madeira.
O fato, no entanto, é que, mesmo em uma escala muito diminuída, os pinheiros ainda
fazem parte da paisagem paranaense, tanto da paisagem natural – na forma de espécies
isoladas, presentes no ambiente urbano, ou então na forma de pequenos bosques, bastante
característicos na zona rural – como da paisagem cultural – na forma de representações
simbólicas que ainda servem de elementos da identidade regional. Ao olhar descuidado, isso
gera a percepção (ou ilusão) de que não há motivos para tanto alarde pois “ainda há muito
pinheiro por aí”.
Ou seja, a imagem icônica do pinheiro-do-paraná, cuidadosamente cultivada na
construção da memória e da identidade social e cultural dos paranaenses, ainda subsiste
mesmo em face ao mapeamento dos processos de desmatamento e da evidente destruição de
suas florestas.
A questão que se coloca agora é como as pessoas que presenciaram essa mudança no
seu entorno natural percebem as transformações provocadas na natureza, que memórias
construíram na sua convivência com a espécie e que valores seja afetivos, estéticos ou
econômicos atribuem às florestas com araucárias, é nesse sentido que essa pesquisa caminha.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAHLS, Aparecida V. S. A busca de valores identitários: a memória histórica paranaense.


Tese de Doutorado em História. UFPR, 2007.
BENATTE, Antonio P.; TOMAZI, Nelson D. As terras do nordeste do Paraná segundo
Romário Martins. ANAIS do II Encontro Regional GT Religião e Religiosidades da

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 619

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Identidades. Ponta Grossa: Editora Aos Quatro Ventos, 2011, p. 133-151.
BIGG-WITHER, Thomas Plantagenet. Novo caminho no Brasil meridional: a província do
Paraná, três anos de vida em suas florestas e campos: 1872-1875. Rio de Janeiro: José
Olympio; Curitiba: UFPR, 1974.
CAMAPALINI, Maura; PROCHNOW, Miriam. Mata Atlântica – uma rede pela floresta.
Brasília: RMA, 2006.
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do Estado de São Paulo. Companhia Melhoramentos de S. Paulo, 1930.
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Curitiba, 1924. Coletânea de recortes de jornais. Acervo do Museu Paranaense.
PARANÁ, Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos/SEMA – Projeto
Paraná Biodiversidade: Verde que te quero verde, 2009.
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Período de 2008-2011. Fundação SOS Mata Atlântica, Instituto de Pesquisas Espaciais e
Instituto Socioambiental, 2011.

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A UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA E O RIO TIBAGI: A PARTICIPAÇÃO


DOS CIENTISTAS NO PROJETO TIBAGI (1980-2000)

Eliane Aparecida Biasetto (Mestrando em História Social - UEL)

Prof.Dr. Gilmar Arruda (orientador)

Palavras-chave: Cientistas, “Era da Ecologia”, Projeto Tibagi

INTRODUÇÃO

A participação de cientistas e instituições na questão ambiental, ou em outros


termos, na investigação do Rio Tibagi tornou-se evidente no final dos anos de 1980 e início
da década seguinte quando a Universidade Estadual de Londrina-PR, especialmente o
Departamento de Biologia Animal e Vegetal, firmaram um convênio com a empresa Klabin
Celulose e Papel, de Telêmaco Borba-PR, e com o COPATI- Consórcio de Municípios do Rio
Tibagi, para desenvolver pesquisas com o objetivo de promover a sua recuperação, dado o
grau de deterioração no qual se encontrava nos anos de 1980. A empresa entraria com um
aporte de um milhão de dólares, a universidade desenvolveria as pesquisas necessárias e o
COPATI ficaria responsável pela articulação do projeto junto à comunidade. Esse convênio
deu origem ao Projeto “Aspecto da Fauna e Flora da Bacia do Rio Tibagi” em 1989, que
comumente passou a ser chamado de Projeto Tibagi.

Este projeto foi esquematizado para ser realizado em três etapas, com a
duração de onze anos. A primeira etapa tinha como objetivo fazer um levantamento da fauna
e da flora da região; na segunda etapa, foram realizados estudos para entender a relação da
comunidade biológica com o ambiente e na última etapa, buscaram criar propostas para a
recuperação ambiental da bacia. Esse convênio envolveu dezenas de pesquisadores de
diversas áreas, inúmeros projetos e temas, resultando em dissertações, teses e centenas de
publicações. Como hipótese, a participação destes cientistas da universidade no Projeto

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Tibagi pode ter sido resultado da emergência do ideário ecológico na cidade, pois foi a partir
da década de 1980 que as denunciais e ações de combate a poluição começaram a se tornas
mais efetivas e amplas. Objetivo Geral desta pesquisa consiste em investigar a contribuição de
cientistas no envolvimento da UEL no Projeto Tibagi. Os objetivos específicos versam em
investigar o significado simbólico da instituição, o impacto no projeto na carreira e no
departamento de biologia da UEL e investigar as contribuições de cientistas no
desenvolvimento da “era da ecologia” na cidade de Londrina.

Para investigar os problemas propostos, o recorte temporal desta pesquisa


compreende ao período de 1980 até 2000, em virtude das questões relacionadas à natureza
terem tornado-se mais significativa na cidade de Londrina a partir dos anos de 1980. Com a
criação de associações ambientalistas, órgãos governamentais especializados e legislação
específica. Neste contexto, nasce o Projeto Tibagi em 1989 que teve a duração de onze anos,
chegando ao seu fim oficialmente em 2000.

A pesquisa está sendo desenvolvida à luz da historiografia ambiental, este é


um campo de pesquisa da história que nasce com o objetivo de compreender, como os seres
humanos foram no decorrer do tempo, influenciados pelo seu ambiente natural e como eles
afetaram esse ambiente. Donald Worster (2003) define a história ambiental, como um novo
campo de pesquisa da história, que investiga a interação entre a sociedade e a natureza. O
suporte documental que está sendo utilizado para realizar a pesquisa está disponível na
Universidade Estadual de Londrina-PR, no acervo do Projeto História Ambiental do Rio
Tibagi e no Centro de Documentação e Pesquisa Histórica (CDPH) da UEL. As fontes
consistem em entrevistas realizadas com os coordenadores e participantes do Projeto Tibagi;
reportagens do Jornal Notícia, publicado pela Universidade Estadual de Londrina do período
de 1989 a 2000 que fazem menção ao projeto, reportagens do Jornal Folha de Londrina da
década de 1980 e 1990, que trazem informações sobre a natureza da cidade e os relatórios
produzidos pelos cientistas da universidade, que contêm informações sobre todas as
atividades e resultados obtidos durante o desenvolvimento do projeto. Estes relatórios foram
adquiridos, por meio do arquivo do COPATI. Importante lembrar que a presente pesquisa esta
em andamento.

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PROCEDIMENTOS TEÓRICOS – METODOLÓGICOS

Para investigar a contribuição dos cientistas na formação de movimentos


ambientalistas no Brasil na década de 1980, o envolvimento de cientistas da UEL nas
pesquisas sobre o rio Tibagi e investigar a emergência da era da ecologia na cidade de
Londrina, tomam-se neste projeto as definições do campo da história ambiental. Destacamos a
seguir, algumas das contribuições desta historiografia para o desenvolvimento da pesquisa.

Worster (2003) no decorrer da sua obra comenta sobre os materiais disponíveis


para realizar um estudo na perspectiva da história ambiental, mencionando que os
documentos deixados por antropólogos, geólogos e pelos cientistas naturais são fontes
indispensáveis para o trabalho do historiador ambiental. Isso por que o diálogo sistemático
com outras ciências permite um entendimento amplo da relação entre a sociedade e o meio
ambiente. O autor também definiu três dimensões que a historiografia ambiental enfrenta.

“O primeiro envolve a descoberta da estrutura e distribuição dos


ambientes naturais do passado. [...].
O segundo nível da história ambiental é mais diretamente de
responsabilidade do historiador e de outros estudiosos da sociedade,
pois se concentra na tecnologia produtiva, na medida em que esta
interage com o meio ambiente. [...].
[...] um terceiro nível para o historiador ambiental esta aquele tipo de
encontro mais intangível, puramente mental, em que as percepções,
ideologias, ética, leis e mitos tornaram-se parte de um diálogo de
indivíduos e de grupos com a natureza. (WORSTER, 2003, p.26).

Estas três questões, levantadas pelo o autor ajudam o historiador a


compreender alguns caminhos, que a pesquisa no campo da história ambiental percorre.

Segundo Martins (2007), os historiadores começaram a colaborar com as


discussões ambientais, principalmente no decorrer dos anos de 1970, momento em que os
dilemas ambientais tornaram-se uma preocupação pública em escala mundial.
Resumidamente, o objetivo da história ambiental é compreender como os seres humanos “...
foram através dos tempos, afetados pelo seu ambiente natural e, inversamente, como eles
afetaram esse ambiente e com que resultados” (WORSTER, 1991, p.200).

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O interesse acadêmico pelo tema continuou a crescer no decorrer da década de


1970, abrangendo várias áreas do conhecimento. Em consonância com isso, novos assuntos
passaram a ser pesquisado. Martins (2007) em seu trabalho sobre história e meio ambiente,
apresenta cinco direções temáticas principais, que os estudos da história ambiental percorrem.

a) origens e efeitos de políticas ambientais e da cultura científico-


administrativa de organismos governamentais com responsabilidade pelo
meio ambiente;
b) usos conflitivos de recursos naturais por povos com diferenças
culturais acentuadas, ou por grupos sociais distintos dentro de sociedades
complexas;
c) saberes, práticas e valores sociais relativos a natureza;
d) idéias de personalidades destacadas, como escritores ou militantes
ambientalistas, sobre a natureza e as questões ambientais;
e) casos notáveis de degradação ambiental. (MARTINS, 2007, p.24)

Entre as temáticas expostas por Martins, a que mais se aproxima do objetivo


desta pesquisa é a de “idéias de personalidades destacadas, como escritores ou militantes
ambientalistas, sobre a natureza e as questões ambientais”, que nos permitirá abordar a
contribuição de cientistas na formação de uma consciência ambiental e de um ambientalismo
militante.

Outras idéias importantes para o desenvolvimento da pesquisa, consiste no


trabalho de Worster (1996) intitulado Natureʼs economy: a history of ecological ideas. Nesta
pesquisa, o autor mostra a influência dos cientistas na formatação da concepção de meio
ambiente e na própria percepção coletiva de “ecologia”. E no trabalho de Drummond (2006)
A primazia dos cientistas naturais na construção da agenda ambiental Contemporânea, o
autor aponta para a primazia dos cientistas naturais na formatação de uma “agenda”, ou pelo
menos, influenciando a constituição de políticas públicas de proteção à natureza.

Drummond (2006), ao longo do seu texto examinou em tópicos as


contribuições mais expressivas de sete antigos cientistas naturais. Já Worster (1996), em seu
livro defende a influência dos cientistas na formatação da concepção de meio ambiente e na
própria percepção coletiva de “ecologia”. Pois, para o autor foram os cientistas que
contribuíram com a formação do ideário ecologista, quando passaram a investigar os impactos
ambientais que os testes com as armas nucleares causavam ao homem e ao seu habitat.

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Para melhor entender a história da formação da consciência ambiental que se


estendeu pelo mundo afora, o trabalho de John McCormick Rumo ao Paraíso: a história do
movimento ambientalista (1992) é fundamental, pois ao longo dos seus nove capítulos
procurou mostrar como o ambientalismo deve ser visto. Segundo o autor, o ambientalismo
deve ser entendido como um componente das mudanças mais aberta e longa do
comportamento humano.

O PROJETO TIBAGI

O rio Tibagi foi na cidade de Londrina, durante os anos de 1970 e 1980 motivo
de muita discussão e polêmica devido ao projeto de captação de suas águas para o
abastecimento da população das cidades de Londrina e Cambe. O projeto de captação foi
formulado pela Prefeitura do município de Lodrina no início da década de 1970 e previa o
abastecimento de várias cidades. No final da década, quando o sistema de abastecimento de
água já havia sido incorporado pela SANEPAR, o projeto começou efetivamente a ser
considerado imprescindível.

Foi este o motivo principal que desencadeou uma intensa movimentação na


cidade de Londrina contra o projeto, envolvendo principalmente o nascente movimento
ambientalista e os movimentos sociais. O principal argumento dos opositores era de que o rio
estaria poluído pelos ‘agrotóxicos”, usados na expansão na agricultura e, também, pela
existência da empresa Klabin no alto Tibagi.

Neste contexto, o do surgimento da “era da ecologia” as denúncias e ações de


combate a poluição começavam a se tornar mais efetivas e amplas. Surgiam as associações
ambientalistas, órgãos governamentais especializados e legislação específica. Além das
denuncias, começaram movimentações no sentido de recuperação dos ecossistemas
degradados, que no caso do rio Tibagi resultou em movimentos como Pró-Tibagi em 1983 do
qual, mais tarde, nasceria o COPATI. Os Consórcios surgiram na década de 1980 como forma
de recuperar várias bacias hidrográficas degradadas, como a do Capivari-Jundiai em São
Paulo.

A participação de cientistas e instituições na questão ambiental, ou em outros


termos, na investigação do rio Tibagi tornou-se evidente no final dos anos de 1980 e início da

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década seguinte quando a Universidade Estadual de Londrina-PR, especialmente o


Departamento de Biologia Animal e Vegetal, firmaram um convênio com a empresa Klabin
Celulose e Papel, de Telêmaco Borba-PR, para desenvolver pesquisas com o objetivo de
promover a sua recuperação, dado o grau de deterioração no qual se encontrava nos anos de
1980. A empresa entraria com um aporte de dois milhões de dólares e a Universidade
desenvolveria as pesquisas necessárias. Esse convênio ficou conhecido como “Projeto Tibagi”
e envolveram dezenas de pesquisadores de diversas áreas, inúmeros projetos e temas,
resultando em dissertações, teses e centenas de publicações .

Este projeto perdurou por quase vinte anos, resultando em centenas de


publicações e envolveu dezenas de pesquisadores. Suas atividades estiveram concentradas no
Departamento de Biologia Animal e Vegetal, tendo a participação de outros setores como o
de Geociências.

No início do século XXI, surgiu uma nova definição para o rio, a ideia da
“mega-biodiversidade” formulada por grupos de pesquisadores e ambientalistas empenhados
em barrar o represamento do rio por hidroelétricas nos anos finais do século XX e do início
do XXI. O rio tornou-se patrimônio ambiental, cultural, ecológico. A ameaça de falta de água
doce para o século XXI, necessário preservá-lo, o rio é agora, também, uma reserva de valor.

A influência dos cientistas na formatação da concepção de meio ambiente, na


própria percepção coletiva de “ecologia” já tem sido demonstrada por vários e importantes
autores como Donald Worster (1996) e, no caso brasileiro, por José Augusto Drummond
(2006), apontando para a primazia dos cientistas naturais na formatação de uma “agenda”, ou
pelo menos, influenciando a constituição de políticas públicas de proteção à natureza.

O envolvimento da Universidade não era resultado de uma disputa entre “peixe


versus eletricidade”, como no caso do rio Fraser, analisado por Mathew Evenden, mas, como
hipótese, impulsionada pelos objetivos da Klabin Celulose, uma grande empresa produtora de
celulose, cuja unidade industrial situa-se as margens do rio, em sua parte média. A ação da
empresa, talvez tenha sido resultado, provavelmente, das novas sensibilidades sobre o meio
ambiente e a necessidade de sua preservação, sentimento crescente naquele período.
(BACHA; HILGEMBERG, 2003).

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Nos anos de 1970 e seguintes ocorreu a expansão do ideário ecologista, ou da “era da


ecologia” pelo mundo afora. No Brasil, assim como em outros países, a preocupação com a
degradação ambiental não é um fenômeno contemporâneo, isto é, do último quartel do século
XX.

A emergência da era da ecologia no Brasil pode ser constatada, também, com o


surgimento de movimentos ambientalistas com novas características nos anos de 1970. Uma
das primeiras organizações desta nova etapa do ambientalismo no Brasil, segundo a maioria
dos autores, foi a Associação Gaúcha de Proteção ao Meio Ambiente Natural (AGAPAN), em
Porto Alegre, em 1971, sob a liderança do engenheiro agrônomo José Lutzemberger. Outras
organizações surgiram em diversas cidades brasileiras, como Movimento Arte e Pensamento
Ecológico (Mape) em 1973, a Associação Paulista de Proteção Natural ( APPN), em 1976,
também em São Paulo, ambas em São Paulo e a Sociedade Cearense de Defesa da Cultura e
do Meio Ambiente (SOCEMA) em Fortaleza –CE, em 1976. (NOTTINGHAM, 2006).

Neste quadro, podemos perceber a penetração e circulação do ideário da era da


ecologia na cidade de Londrina no final dos anos de 1970, em especial a percepção da ameaça
à natureza provocada pela ação humana e, por sua vez, os riscos que os humanos corriam com
a poluição, em matérias publicadas pela imprensa; na constituição de organismos estatais e no
surgimento da primeira associação ambientalista de Londrina: a Associação Paranaense de
Proteção e Melhoria do Meio Ambiente (APPEMMA).

REFERENCIA

BACHA, Carlos José Caetano e HILGEMBERG, Emerson Martins. A indústria brasileira de


celulose de mercado e as pressões ambientais. Estudos Econômicos. São Paulo. 33(1), 143-
180, jan-mar. 2003.

Donald Worster. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, (Rio de Janeiro) n°8
1991 p.200.

DRUMMOND, José Augusto. A primazia dos cientistas naturais na construção da agenda


ambiental Contemporânea. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo. v. 21 nº. 62,
p.6-25, out/2006.

NOTTINGHAM, Patricia Carvalho. “Tempos verdes em fortaleza: experiências do


movimento ambientalista (1976-1992)”, (Diss. Mestrado, Univ. Fed. Ceará, 2006).

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MARTINS, Marcos Lobato. “Teoria e Método”. In: História e meio ambiente. SP: Anna
Blume, 2007.

McCORMICK, John. Rumo ao paraíso: a história do movimento ambientalista . Rio de


Janeiro: Relume-Dumará. 1992.

WORSTER, Donald. Transformações da Terra: para uma perspectiva agroecológica na


história. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n° 2, p.23-44, jan./jul.2003.

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A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO ECOSSOCIALISMO.

Jozimar Paes de Almeida (Pós-Doutorando História-USP).

Palavras-Chave: História Ambiental, Ecossocialismo, História Política.

PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA ANÁLISE DO TEMA.

A fundamentação metodológica é advinda de um pressuposto teórico que concebe o


ser humano como sujeito e produto de sua própria ação e reprodução. Desta forma, na
natureza o homem é um componente que por intermédio de um processo dialético gerado pelo
trabalho, dá forma tanto a matéria natural exterior ao seu corpo, como também se transforma
corporalmente e mentalmente, isto é, elabora sentidos, constrói valores neste processo
dinâmico e reflexivo.

Estabelecer preço, medir valores, imaginar equivalências, trocar – isso


ocupou de tal maneira o mais antigo pensamento do homem, que num certo
sentido constituiu o pensamento: aí se poderia situar o primeiro impulso do
orgulho humano, seu sentimento de primazia frente aos outros animais.
(NIETZSCHE, 1988:73)

Para sua sobrevivência, necessariamente o homem relaciona-se com a natureza


constituindo um processo desestabilizador, pois não retira somente o necessário (ar, água,
alimento) para sua reprodução física, mas para satisfazer necessidades que são socialmente
fabricadas, as quais surgem com o crescimento da divisão e estratificação social no interior
dos grupos humanos.
Esta relação do homem sobre o meio ambiente é resultante de fatores históricos, de
como o homem se organiza para produzir no processo dinâmico da sociedade: estruturação de
classes, tecnologia, cultura, linguagem.

Neste sentido, “a raiz do homem é o próprio homem”, e a natureza humana é


sempre o reflexo das relações sociais, das mediações sociais ou das

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condições de vida que se estabelecem entre os seres humanos na produção


da existência, inclusive a interioridade do homem, a que se produz no nível
da consciência, a sua subjetividade. (FRANCO, 1993:14)

A ação que o homem exerce sobre a natureza, portanto sobre si mesmo, é dirigida para
determinados fins. Compreendemos esta atividade, como uma expressão da cultura, da
política e da ciência criadas e aplicadas pelo homem caracterizando cada sociedade.
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um
processo em que o homem por sua própria ação, media, regula, e controla
seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria
natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertinentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e a fim de apropriar-se da matéria
natural de uma forma útil para sua própria vida.
Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa ele e, ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX,
1985:149)

Para sua sobrevivência, necessariamente o homem relaciona-se com a natureza


constituindo um processo acentuadamente desestabilizador desta, pois não retira somente o
necessário para sua reprodução física, mas para satisfazer necessidades que são socialmente
fabricadas, as quais surgem com o crescimento da complexidade socioeconômica e cultural
das sociedades, com o crescimento da divisão e da estratificação social no interior dos grupos
humanos.
No processo de relação homem/natureza estabelece-se o trabalho humano como
atividade própria, para o controle da natureza. Através dele, os homens contraem entre si,
determinadas relações sociais, constituindo com a natureza uma relação biossocial pelas
atividades nela realizadas.
Para o homem o trabalho é criador de “valores” no plano formal, a natureza o é, no
plano material, a separação entre substância natural e trabalho não é de maneira nenhuma
absoluta. (SCHMIDT, 1976:74)
O processo de trabalho é uma forma determinada de efetivação da matéria natural,
gerando o produto social. Portanto, forma e matéria serão singularizadas, em decorrência de
suas relações instituídas obrigatoriamente como substâncias naturais - força humana natural e
matéria natural.
As relações de produção biossocial ocorrem necessariamente no ecossistema, o qual é
constituído por uma relação dinâmica entre matérias naturais, que ao sofrerem o processo de
interação, podem transformar seus elementos fundamentais, modificando a sua essência. Da

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análise destas modificações pretendemos equacionar a construção de posicionamentos


políticos realizados por autores e grupos ambientalistas de tendências ecossocialistas.

CONTEXTO HISTÓRICO.

Nossa sociedade contemporânea autodenominada desenvolvida é produto histórico, do


modelo de apropriação e produção capitalista industrial. Progresso e desenvolvimento são
entendidos como sinônimos de uma maior quantidade de bens de consumo: navios, prédios,
carros, máquinas. Mercadorias que se encontram no grande bazar planetário, no qual o
homem é um simples fator de produção e a natureza é o almoxarifado dos recursos naturais e
o lixo dos resíduos da produção.
Amparada por uma atividade e discurso capitalista, do desenvolvimento ilimitado das
forças produtivas, para libertar o homem de seu estado de barbárie em que se encontrava,
devido a não realização plena das necessidades culturais desenvolvidas socialmente, nossa
sociedade se arrogou o direito de tratar a natureza como um simples mecanismo à serviço de
seus ilimitados interesses e valores.
Estamos no limiar do século XXI, fomos à lua e enviamos sondas planetárias a astros
distantes de nosso sistema solar, mergulhamos em profundezas abissais de nossa crosta
terrestre, os princípios da gravitação universal, da indeterminação atômica e do código
genético nos são acessíveis, enviamos mensagens a velocidade da luz pelo laser, podemos até
cometer a loucura total do “homo sapiens demens”, ao destruir em minutos o que levou 5
bilhões de anos para se formar.
Enfrentamos uma profunda crítica social proveniente da abordagem ecológica, que
considera que uma produção ilimitada não é logicamente possível com recursos limitados, é
condição mínima para se refletir de como adequar, a qualidade de vida de cada componente
da Gaia, às condições de seus recursos não renováveis e renováveis, sendo que estes últimos
podem ser impedidos de sua renovação pelas consequências as que estão expostos em função
da atividade de produção humana.

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Nossa atual sociedade fez com que se diminuísse a duração da vida dos bens de
consumo, que por ironia são chamados de duráveis, e também investe na produção de bens
distintos, por terem seu valor ao conceder à seu possuidor uma expressão de status social.
Consideramos ser um absurdo querer conceder a cada terráqueo um carro, não só
porque seria um colossal congestionamento, mas porque não existiria matéria-prima para
construí-los, combustível para movimentá-los e estradas para que se locomovessem. O
exemplo do chamado desenvolvimento e progresso norte-americano não é possível de ser
estendido a todas nações da terra, no entanto isso não significa que estes bens produzidos
tenham que continuar concentrados nas mãos de poucos.
Devemos considerar a prática da produção segundo a ótica da termodinâmica e seu
segundo princípio o qual nos será neste momento mais elucidativo. Sadi Carnot nos apresenta
a sua descoberta a qual:
Afirma-nos que a energia não pode passar livremente de uma forma para a
outra, e que a energia térmica (o calor) pode transferir-se livremente de uma
fonte quente para outra fria, mas não em sentido oposto. "também" que não
pode existir uma máquina que transfira calor de um corpo frio para outro
quente sem dispensar trabalho. (CARNOT, Apud TIEZZI, 1988: 22).

Segundo Clausius a entropia do mundo tende para um máximo. Devemos, portanto


considerar que mesmo em um dos mais perfeitos equilíbrios homeostáticos realizado pela
natureza, pelo funcionamento sinfônico do ecossistema, existirá o processo entrópico de
liberação de energia, que poderá ser acelerado progressivamente dependendo de como o
homem irá realizar a sua produção.
O tempo limite da existência da vida de Gaia pode ser de mais uns cinco bilhões de
anos (isto se o homem não a destruir antes), quando o Sol em uma cerimônia fúnebre
transformar-se em `gigante vermelho', envolvendo a terra com suas chamas em seu leito de
morte, depois irá apagar-se definitivamente.
O homem não pode deter esse processo, mas pode diminuir o processo entrópico,
evitando que nos destruamos bem antes afim de que possamos viver mais, no mínimo
egoisticamente em benefício da nossa espécie. Quem sabe neste período possamos até
descobrir outra Gaia neste Universo de criação/destruição, e criarmos condições para que
nossos descendentes possam se locomover para lá, antes do apocalipse!
Os conceitos da termodinâmica e do equilíbrio homeostático têm que ser respeitados
no processo de produção.

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Ora a teoria econômica não só ignora estes conceitos como introduz outro
que poderia ser resumido pela famosa frase `tempo é dinheiro'. O progresso
é medido pela velocidade com que se produz; chega-se mesmo a imaginar
que quanto mais rapidamente se transforma a natureza, tanto mais se
economiza tempo. Mas este conceito de `tempo tecnológico ou econômico' é
exatamente o oposto do `tempo entrópico'. A realidade natural obedece a leis
diferentes das econômicas e reconhece o `tempo entrópico': quanto mais
rapidamente se consomem os recursos naturais e a energia disponível no
mundo, tanto menor é o tempo que permanece a disposição de nossa
sobrevivência. O tempo tecnológico é inversamente proporcional ao tempo
entrópico; o tempo econômico é inversamente proporcional ao tempo
biológico. (TIEZZI, 1988: 32)

A ecologia política reinaugura a crítica ao capitalismo pela sua prática utilitarista,


consumista, pela sua concepção de progresso e desenvolvimento vinculados a um crescimento
da produção; assim como a ciência e a técnica à serviço da degradação e dominação.
Os ecologistas pretendem uma reconceitualização destes conceitos o que não implica
em uma volta às cavernas, mas sim em uma redefinição inédita de desenvolvimento com
respeito ao equilíbrio do ecossistema e equidade social. Os países socialistas não são exceções
destas críticas.
No palco das relações políticas o movimento ecológico é frequentemente taxado de
pequeno burguês, pela participação deste setor da população em maior número no
movimento. Mas será que o que define o lado burguês no movimento é a natureza das pessoas
que o representam? Aqueles que na maior parte dos tempos representaram os operários não
eram operários?
Assim como o movimento de esquerda é formado por diversas tendências, o
movimento ecologista também o é, podemos destacar quatro posições segundo Eduardo
Viola: Ecologistas Fundamentalistas, Ecologistas Realistas, Eco capitalistas e Ecossocialistas.
(VIOLA, 1987)
Não existe dilema entre estas posições no que se refere a opção entre ecologia ou
predação, no entanto ao que tange ao dilema capitalismo ou socialismo temos ai um confronto
direto pelo menos entre os eco capitalistas, que pressupõem a solução dos problemas
ambientais através do mercado e da técnica, e os ecossocialistas advindos do socialismo
revolucionário, que pressupõem a organização de uma sociedade autogestionária para
resolverem os problemas ambientais.

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Os ecologistas fundamentalistas resistem a participarem do jogo político institucional,


querem preservar a pureza do movimento na crença em que uma força transcendental
resolverá as questões.
Os ecologistas realistas pretendem estender o movimento formulando um programa
econômico de transição viável com setores liberais, socialdemocratas, socialistas.
A preservação ambiental é o objetivo elementar do movimento ecologista e ela tem
que ser exercida com democracia que se limite a respeitar o equilíbrio do ecossistema. Vamos
destacar o que os ecossocialistas entendem por Democracia:
Democracia significa etimologicamente a dominação pelas massas. Mas não
tomamos a palavra `dominação' em seu sentido formal. A dominação real
pode ser confundida com o voto; o voto, mesmo livre, pode ser, e
frequentemente o é, a farsa da democracia. A democracia não é o voto sobre
questões secundárias, nem a designação de pessoas que decidirão por si
mesmas, e sem nenhum controle efetivo, sobre questões essenciais. A
democracia também não consiste em pedir aos homens que se pronunciem
sobre questões incompreensíveis ou que não possuam sentido algum para
eles. A dominação real é poder decidir por si mesmo sobre questões
essenciais, e de decidir com conhecimento de causa. Nestas quatro palavras -
com conhecimento de causa, se encontra todo o problema da democracia.
(CASTORIADIS, 1983: 84).

Os ecossocialistas criticam tanto a liberdade de mercado, quanto a centralização


planificada tecnofascista e apresentam como alternativa a democracia direta e descentralizada
produzida autonomamente pelos homens, fazendo com que o produto social criado pelos
trabalhadores, por eles seja controlado, proporcionando um desenvolvimento social com
qualificações ecológicas que propiciem ao homem melhor qualidade de vida com saúde,
educação, habitação e tempo de lazer.
Este processo poderia ser entendido como uma ecologização da sociedade:
O ecologismo não passa nem pela reforma, nem pela revolução. A
primeira prende-se demasiado ao jogo das instituições para ser capaz
de limitar o seu papel. A segunda ignora demasiado o presente para
instituir um futuro sorridente, e ambas se servem em demasia do
Estado para terem força de lhe arrebatar o seu poder. A sociedade
ecologista não poderia construir-se a partir do Estado: os princípios de
diversificação, de policentrismo e de pluralismo impõem uma
`ecologização' suave da sociedade. (SIMONNET, 1981: 97-98)

Por intermédio destas informações iniciais, destacamos a importância assumida nos


princípios compreendendo, tanto o funcionamento do ecossistema, como a preocupação em

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que a sociedade ecologista ao ser gestada por estes fundamentos poderá articular de forma
salutar o meio ambiente com a organização da sociedade humana.

A CONTRIBUIÇÃO DE MARX.

Karl Marx que analisou profundamente como se realizam as relações entre os homens,
enfatizando as relações sociais como atividade produtiva determinante de uma sociedade, não
deixou de assinalar a grande importância da terra, afirmando: “Portanto, o trabalho, não é a
única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Dela o trabalho é o pai, como
diz William Pety, e a terra a mãe”. (MARX, 1985: 51)
Assim, poderíamos dizer que a terra, bem como os outros elementos que compõem o
universo, tem sua importância intrínseca ao seu próprio existir e extrínseco no que se refere às
relações estabelecidas com o Todo. O homem é uma parte deste universo e é composto por
este, no entanto, ele se autodeclara ter o poder de estipular a importância dos outros
componentes em relação ao seu interesse.
O homem é um ser cultural e histórico, no entanto é também um ser biológico
(natural). “O fato da vida física e espiritual do homem estar vinculada à natureza não tem
nenhum outro sentido a não ser que está vinculada consigo mesmo, pois o homem é uma parte
da natureza.” (MARX, Apud SCHMIDT, 1976: 88)
A relação homem/natureza ocorre simultaneamente e necessariamente se interagem,
produzindo e resultando ações oriundas deste relacionamento. Desta forma, ao estudar esta
interação poderemos tentar iluminar algumas partes de existência do homem, em sua busca
incessante da resposta de seus enigmas.
O homem é composto por elementos integrantes do universo, então necessariamente:
ocupa um espaço, movimenta-se no espaço e no tempo pela sua duração/degradação. No
entanto enquanto vivente possui características fisiológicas e sociais inerentes à sua espécie.
A ação que o homem/natureza exerce sobre a natureza, portanto sobre si mesmo,
enquanto pertencente a ela, é dirigida para determinados fins. Esta atividade de criação/
transformação é denominada trabalho, o mesmo pode ser compreendido como criador/criatura
da consciência, exemplo da singularidade humana composta pela cultura e raciocínio.

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As relações dos homens com a natureza constituem o pressuposto para as relações


recíprocas dos homens entre si, dialética do processo de trabalho como processo natural se
amplia à dialética da história humana em geral. (SCHIMIDT, 1976: 57)
O conceito valor estabelecido pelo antropocentrismo é aplicado à matéria natural,
quando esta é vista pela ótica de sua utilidade para o homem, no entanto, deve-se adotar um
princípio básico antropocêntrico, em relação a toda matéria natural, pois ela existe indiferente
às relações estabelecidas com o homem neste universo.
Marx adota o conceito de valor de uso com uma perspectiva de utilização dessa
matéria natural sob a ótica das “necessidades” sociais (criadas culturalmente), que variam
segundo as sociedades.
É importante expor aqui que determinadas matérias naturais são indispensáveis às
necessidades biológicas para a existência do ser vivo resguardando-nos do que conhecemos
por existência, limitados ao tempo e espaço até agora explorado pelos humanos.
O valor de uso, fruto da matéria natural, podendo ser ou não, produto de um trabalho,
em sua maior parte, excluindo os elementos indispensáveis para a vida, é resultado da
construção cultural da sociedade em que ele está inserido. Bem como, o conceito valor de
troca, o qual adquiriu características sociais de intercâmbio e, ambos são provenientes de toda
matéria que tem valor de uso.
O materialismo histórico elaborado por Marx fundou suas concepções de investigação
da história sobre bases históricas, pois através delas podemos realizar constatações empíricas
pela materialidade de suas existências. Comprovou com estes fundamentos, a existência de
um patrimônio corporal dos seres humanos e as relações que este desenvolve com o resto da
natureza.
Desta forma, a natureza é a condição material primeira de existência da espécie
humana, o homem é fundamentalmente constituído por ela. Esta natureza por sua vez sofreu
transformações pela ação concreta dos homens em sociedade, com o objetivo de auto
assegurarem melhores condições de sobrevivência.
Por meio destes fundamentos Marx desenvolveu sua análise demonstrando que a ação
dos homens entre si e com a natureza é real e irá variar de acordo com o que produzem,
quanto, como a maneira pela qual o produzem. Os indivíduos são, portanto resultantes de suas
condições materiais de produção. O processo de produção de uma canoa, ou de uma nave

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espacial, demonstra diferentes relações entre os homens, como também diferentes relações
com a natureza.
O homem é matéria natural e enquanto matéria recebe e emite energia proveniente dos
átomos que o compõe ou incorpora do exterior. Energia é a propriedade que tem a matéria de
realizar transformações, pois ela é composta por átomos que se movimentam.
Quando o homem come, incorpora energia sob a forma de alimentos e a libera, por
exemplo, sob a forma de calor. No entanto o homem é possuidor de uma característica
diferenciadora em relação às outras matérias, já que todas recebem e emitem energia. Ele
pode orientar a emissão de parte de sua energia para realizar determinadas tarefas, que lhe é
conferida de acordo com as condições materiais de produção num dado momento histórico.
Pode-se entender também, que no mesmo momento em que o homem está emitindo
esta energia orientada, atividade-trabalho, ele sofre modificações internas em seu
metabolismo, transformando a natureza externa e auto transformando-se como matéria natural
num processo dialético.
Assim, por exemplo, quando o homem pulveriza sua plantação agrícola com biocidas
para destruir “pragas”, irá sofrer um retorno de sua própria energia transmitida sob a forma de
doenças, ocasionadas pela ingestão de alimentos contaminados pelos biocidas.
Esta capacidade humana de orientação da aplicação da energia é resultante e se
desenvolveu pelas transformações ocorridas nas relações entre os homens e destes com a
natureza. Ambos se modificam na dinâmica de suas relações, determinando características
específicas do homem que também é natureza.
Podemos dizer que o ser humano se autoconstrói ao estabelecer relações de vivência
com indivíduos da mesma espécie e, estas relações entre os homens dirigem a aplicação de
energia para a realização de um determinado trabalho. A produção de uma sociedade
construída com os princípios originários nos moldes de uma análise ecossocialista possibilita
realizar uma ecologização social de forma democrática, plural, diversificada e policêntrica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

CASTORIADIS, Cornelius. Socialismo ou Barbárie, Trad. Milton Meira do Nascimento,


Maria das Graças de Souza Nascimento, São Paulo: Brasiliense, 1983.

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FRANCO, Maria Ciavatta. Educação ambiental: Uma questão ética, In: Cadernos CEDES,
(29) Campinas: Papirus, 1993.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral, São Paulo: Brasiliense, 1988.


MARX, Karl. O Capital, 2 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985, Livro I. Vol.1 p.149.

SIMONNET, Dominique. O ecologismo, Trad. Virgílio Martinho, Lisboa: Moraes Editores,


1981.

SCHMIDT, Alfred. El concepto de naturaleza en Marx, España: Siglo Veintiuno, 1976.

TIEZZI, Enzo. Tempos históricos, tempos biológicos, Trad. Frank Roy Cintra Ferreira e
Luiz Eduardo de Lima Brandão, São Paulo: Nobel, 1988.

VIOLA, Eduardo. "O movimento ecológico no Brasil 1974-1986", In: VIOLA, Eduardo e
Outros. Ecologia e política no Brasil, Org. José A. Pádua, Rio de Janeiro: Espaço e Tempo:
IUPERJ, 1987.

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SENTIDOS EM DISPUTA

A ESTRADA/CAMINHO DO COLONO EM NARRATIVAS

Nivia Bogoni Grapiglia – Unioeste

(Mestranda em História)

Davi F. Schreiner – Unioeste

(Doutor em História Social – USP)

Palavras-chave: Meio Ambiente, Caminho do Colono, Parque Nacional do Iguaçu

O Caminho do Colono, atualmente percurso de dezoito quilômetros que corta o Parque


Nacional do Iguaçu, entre os municípios de Serranópolis do Iguaçu e Capanema, na região
Oeste do Paraná, tornou-se nos últimos anos palco de diversos conflitos opondo sujeitos,
entidades e instituições sociais. De um lado, os que defendem a continuidade do fechamento
do caminho e, de outro, os que se posicionam pela reabertura do mesmo. Esses conflitos têm
gerado diversos debates, enfrentamentos e discussões entre órgãos ambientalistas,
representantes do governo e moradores da região, repercutindo em questões ambientais
debatidas a nível nacional. Na medida em que a estrada corta o Parque Nacional do Iguaçu,
qualquer questão ou decisão sobre o Caminho envolve outras áreas de conservação.

O Caminho do Colono antes denominado Estrada do Colono, foi oficialmente aberto


no ano de 1954 pela Firma Industrial e Agrícola Bento Gonçalves companhia colonizadora
dos municípios de Matelândia e Medianeira, sendo utilizado como uma das vias de
colonização do oeste do Paraná. Utilizar a estrada, sempre foi uma prática dos moradores da
região, pois além de facilitar o escoamento da produção, diminuía consideravelmente a
distância entre os colonizadores vindos do Rio Grande do Sul e Santa Catarina e suas famílias
que lá permaneceram, promovendo uma relação entre o espaço e os sujeitos. A relação entre o
espaço e os sujeitos se desenvolve, segundo Manuel Diegues Jr. a partir do “processo de

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utilização do meio – ou do que se encontra nesse meio ou do que ele possibilita – para a
fixação dos grupos humanos. Criam-se assim formas de adaptação do homem ao meio. E tais
formas de adaptação representam justamente o processo de relações que se estabelecem entre
o homem e o meio – não o meio restritamente físico, mas ainda e, sobretudo o amplamente
ecológico – de modo a assegurar o equilíbrio regional.” (DIEGUES, 1960, p.18)

Apesar da abertura oficial no ano de 1954 não podemos deixar de assinalar que
existem memórias que reivindicam a existência da estrada desde o ano de 1924 como sendo
uma picada e rota da Coluna Prestes ao passar pelo sul do Brasil, conforme afirma Luciano
Dallo no livro Caminho do Colono: Vida e Progresso. (DALLO, 1998)

O Parque Nacional do Iguaçu, por sua vez, foi criado em 10 de janeiro de 1939 pelo
Decreto Nº 1035 e, algumas vezes, passou por alterações em seus limites, promovendo a
ampliação das áreas preservadas. A preocupação dos dirigentes do Parque Nacional do Iguaçu
com o Caminho do Colono sempre pareceu estar presente, como ficou expressa já no primeiro
Plano de Manejo do parque publicado no ano de 1981, no qual é indicada a necessidade de
fechamento de um caminho que cortava o Parque Nacional do Iguaçu.

Os conflitos envolvendo o Caminho do Colono tornaram-se mais evidentes a partir do


ano de 1986, quando em 12 de setembro foi fechado pela primeira vez. Naquele momento, o
Departamento de Estradas e Rodagem do Paraná (DER) começava a asfaltar a estrada e uma
Denúncia Crime apresentada pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Foz do Iguaçu,
representado pelo seu presidente o militar aposentado Arnóbio Ricardo da Silva, alegando
prejuízo à natureza, foi encaminhada ao Ministério Público Federal “solicitando a suspensão
do asfaltamento da rodovia trecho Capanema - Medianeira, BR163, área pertencente ao
Parque Nacional do Iguaçu”.

A liminar de ação civil pública que suspendeu o asfaltamento da estrada e promoveu


seu fechamento teria a principio efeito por 90 dias, nesse prazo o Instituto Brasileiro de
Desenvolvimento Florestal _ IBDF se responsabilizou em trazer uma resposta para a
população quanto à utilização ou não da estrada além de um possível plano de manejo. No
entanto, o processo se alastrou por um período de dez anos, sem que houvesse resposta à
população.

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Com o primeiro fechamento da estrada e o período em que permaneceu fechada, dez


anos e oito meses, os grupos que lutavam pela reabertura ou pela permanência do fechamento
preocuparam-se em construir e fazer emergir memórias e lembranças que pudessem contribuir
na luta pelos seus objetivos.

O grupo pró-rebertura desde o principio buscou referências em vivências e


experiências que promovessem a coesão social do grupo através da afetividade buscando
construir dessa forma uma memória coletiva.

Segundo os registros existentes e as entrevistas realizadas sobre o primeiro


fechamento, foi possível perceber que não houve nesse momento grande envolvimento da
população, pois se acreditava que esse fechamento seria temporário já que o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal _ IBDF, apresentaria uma solução rápida para o
impasse. Mesmo assim a administração pública de Medianeira, município que naquele
período fazia divisa com o Parque e consequentemente com a Estrada do Colono, preocupou-
se em chamar a população e fazer perceber os prejuízos causados ao município e a honra da
população com o fechamento da estrada.

“Estamos de Luto! Trancaram nossos Caminhos, Mancharam nossa Honra!”,1


“Estrada do Colono: Respeito à Natureza e a Honra de um Povo!” 2, “A Honra da Natureza é
Intocável. Manchar a Honra de um Povo é um grande crime contra a Natureza Humana. Siga
este Caminho.” 3 Dessa forma, proclamando a honra do colono, do colonizador a Comissão de
Defesa Pró Reabertura do Asfaltamento Estrada do Parque, em panfletos distribuídos no mês
de setembro de 1986 chamou a população a se unir pela luta de reabertura. Nesses panfletos já
se levantavam questões relacionadas à liberdade de ir e vir tolhidas dos homens por
instituições ambientalistas e pelo IBDF; a negação de direitos de uso da estrada pelos
colonizadores do Oeste e Sudoeste do Paraná, direito para eles conquistado há mais de 60
anos; o fechamento do elo de ligação, de desenvolvimento e de progresso da região.

1
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estamos de Luto! Trancaram nossos caminhos; mancharam nossa honra! Medianeira,
1986
2
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estrada do Colono: respeito a natureza e a honra de um povo! Medianeira, 1986
3
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estrada do Colono: respeito a natureza e a honra de um povo! Medianeira, 1986

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Junto aos panfletos distribuídos para população o prefeito do município de


Medianeira, Adolpho Mariano da Costa promulgou o Decreto Nº 132/86 de 13 de setembro de
1986 que declarava Estado de Emergência Jurisdicionada ao Município de Medianeira em
função do fechamento da Estrada do Colono. Nesse documento bem como na petição
elaborada pelos representantes dos municípios da região e enviada ao Ministério Público
Federal em 08 de dezembro de 1987 requerendo a reabertura da estrada, a existência da via é
proclamada a mais de sessenta anos, considerada “caminho natural” dos primeiros
colonizadores, portanto para os representantes o que se poderia impedir seria o seu
asfaltamento, mantendo-se seu “status quo”.

Recorrer à honra de sujeitos que vivenciaram experiências muito semelhantes em


relação ao Caminho do Colono auxiliou na construção de um sentimento coletivo relacionado
à busca do respeito público, do zelo pelo seu patrimônio e do seu bom nome, além da garantia
de seus direitos, já que a honra é caracterizada por um “sentimento de dignidade própria que
leva o homem a procurar merecer a consideração geral”. (FERREIRA, 2008, p.455)

Ainda durante esse primeiro período de fechamento do caminho, os distritos de Flor


da Serra e Jardinópolis, pertencentes ao município de Medianeira, foram emancipados, dando
origem a Serranópolis do Iguaçu, município que hoje faz divisa com o Parque Nacional do
Iguaçu e consequentemente com o Caminho do Colono. A emancipação desses distritos
ocorreu em 1996, dando inicio as atividades municipais de Serranópolis do Iguaçu em 1997,
ano em que as lideranças dos municípios lindeiros ao parque resolveram pleitear de forma
mais intensa a suspensão da liminar que fechou a estrada em 1986.

Não podemos deixar de considerar a relação existente entre a formação do município


de Serranópolis do Iguaçu e a intensificação da luta pela reabertura do caminho. Já no
primeiro ano de emancipação, o prefeito que assumiu o novo município Nilvo Perlin procurou
estabelecer parcerias com municípios vizinhos e diversas lideranças políticas, pleiteando a
reabertura da estrada como uma das condições necessárias para o desenvolvimento do
município. Em parceria com o prefeito de Capanema Valter Steffens, município que também
faz divisa com o Parque Nacional do Iguaçu e o Caminho do Colono, realizou diversas
reuniões em todos os municípios da região Oeste e Sudoeste, organizando junto aos prefeitos,
vereadores, lideranças religiosas e de classe, diversas comissões, com o objetivo de mobilizar
o maior número de pessoas possíveis para uma grande manifestação pela Reabertura do

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Caminho do Colono que deveria ocorrer no dia 13 de maio de 1997 nos municípios de
Capanema/Sudoeste e Serranópolis do Iguaçu/Oeste, mobilizando a população das duas
regiões.

No entanto no dia 08 de maio de 1997 mais de 1.500 moradores do Oeste e Sudoeste


do estado ocuparam o Parque Nacional do Iguaçu antecipando a manifestação de reabertura
que estava programada para o dia 13. Segundo registro do jornal A Cidade (ANZOATEGUI,
1997) difundiu-se junto à comunidade que no dia 13 de maio, policiais estariam no local
visando impedir a entrada da população no parque. A ideia de ocupar o parque
antecipadamente foi difundida e aceita pela população. Os moradores adentraram ao Parque
Nacional levando barracas e lonas com objetivo de permanecer acampados até que houvesse
uma solução para a reabertura da estrada

Tal ocupação não impediu o ato público programado para o dia 13 de maio, que reuniu
cerca de 37 mil pessoas no chamado “abraço do parque”, que interligou os municípios de
Capanema e Serranópolis do Iguaçu. A manifestação pró-reabertura da estrada neste dia foi
presidida por Marcos Pagani representante desde 1992 da Associação de Integração
Comunitária Pró-Estrada do Colono _ AIPOPEC e contou com a participação de políticos de
toda a região, solidários com o movimento.

A partir dessa grande manifestação promovida pelas lideranças e moradores da região


o caminho permaneceu aberto até o ano de 2001 quando foi fechado pelo Ministério Público
Federal no dia 13 de junho. Foi ocupado novamente por moradores que circundam o parque e
de cidades como Medianeira, Capanema, Serranópolis do Iguaçu, São Miguel do Iguaçu em
04 de outubro de 2003, voltando a ser fechado no dia 08 de outubro de 2003 situação que
permanece até os dias de hoje. Atualmente, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei
7123/2010 de treze de abril de 2010. Esse projeto apresentado pelo Deputado Federal Assis
do Couto do Partido dos Trabalhadores (PT) do Paraná propõe a criação da Estrada - Parque
Caminho do Colono no Parque Nacional do Iguaçu. Um dos primeiros desdobramentos dessa
ação foi à constituição de uma comissão para avaliar e discutir novamente as questões
relacionadas ao caminho, o que tem promovido audiências públicas na região.

Ao nos aproximarmos e buscarmos informações sobre as manifestações, os diversos


momentos de fechamento e reabertura, bem como sobre os sujeitos e os grupos que

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compunham o movimento de luta pela reabertura do Caminho do Colono, foi possível


identificar entre eles uma grande diversidade de sujeitos. O conjunto das pessoas que
participaram do movimento pela reabertura do caminho, apesar de se mobilizarem por um
objetivo comum, não era homogêneo, no interior das mobilizações existia, além da
diversidade de sujeitos, uma multiplicidade de sentidos e significados em relação à reabertura
do caminho.

Foi possível perceber que diversos interesses moviam os sujeitos para e nas
mobilizações. Investigar esses diferentes interesses, essa pluralidade de significações
variadas, conjugadas as vivências que faziam e fazem sentido para cada um, possibilita dar
visibilidade a aspectos mais diversificados de experiência social: as contradições internas nas
mobilizações presentes nas práticas e representações dos sujeitos acerca do Caminho do
Colono na sua relação com o meio ambiente, bem como acerca de questões mais amplas da
legislação e da política ambiental.

Situamos, neste sentido, o presente estudo no âmbito da abordagem definida como


micro-histórica por Revel (REVEL, 1998, p.19), que, segundo o qual, não significa uma
negação à macro-história, ou a não percepção da relação do objeto analisado com o contexto
mais amplo, pelo contrário a possibilidade desse estudo nos permite perceber mais claramente
a relação intrínseca existente entre a escala macro e micro e de que forma uma interfere na
outra, possibilitando preencher o fosso existente na compreensão histórica. Essa perspectiva
nos permite relacionar conflitos regionais como os do Caminho do Colono com as políticas
ambientais desenvolvidas a nível nacional e pensar como essas políticas interferem na vida e
na cotidianidade de sujeitos comuns, além de refletir sobre como a hierarquização social
privilegia alguns sujeitos em detrimento de outros fazendo perceber ou prevalecer na
construção do conhecimento histórico, determinadas perspectivas.

Pesquisando e estudando os materiais produzidos em relação ao Caminho do Colono,


foi possível perceber que determinados aspectos, como também determinados sujeitos,
ficaram relegados ao esquecimento. Esses sujeitos, quando aparecem ficam limitados a
algumas imagens, intromissões em depoimentos e lembranças dos considerados “sujeitos
ativos” do movimento, enquanto outras perspectivas são constantes nos materiais e registros
sobre o movimento tornando-se bandeiras a serem defendidas.

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A maior parte do material produzido refere-se a questões ambientais, discutindo


principalmente com o campo da geografia, a exemplo do estudo realizado por Dalésio
Ostrovski: “Análise dos impactos socioambientais motivados pelo Caminho do Colono”
(OSTROVSKI, 2002). O autor analisa os conflitos promovidos pelas políticas de preservação
ambiental e de gestão territorial (desenvolvimento regional), juntamente com a evolução do
ambientalismo no Brasil e o levantamento fitossociológico das espécies vegetais mais
características que existem ao longo do Caminho do Colono. Edson dos Santos Dias, na tese
de doutorado, “Desenvolvimento regional e conservação ambiental: A estrada do colono
como via de (des) integração do oeste-sudoeste paranaense” ( DIAS, 2006), aborda de forma
um pouco mais abrangente a estrada como elemento do espaço carregado de significados
materializados nos diversos interesses envolvidos de ordem política, econômica e ambiental.

Os materiais produzidos no campo da história privilegiam principalmente a descrição


cronológica da história do caminho a partir do processo de colonização da região até os
momentos de mobilização, sem um diálogo mais aprofundado com os sujeitos e as relações
existentes. Observa-se essa abordagem nos livros sobre o caminho publicados por Luciano
Dallo (DALLO, 1999), como também nos livros que relatam a história do município de
Medianeira e região. Como produção acadêmica nesse campo, o trabalho de Ivani Inês V.
Dierings, “A AIPOPEC e o discurso em defesa da reabertura da Estrada do Colono”
(DIERINGS, 2002) procurou analisar os discursos utilizados pela associação que defendia a
reabertura de estrada, percebendo sua repercussão e interferência no movimento. A autora
produziu e analisou depoimentos de sujeitos que participaram do processo, porém, limitando-
se a alguns relatos masculinos.

Observa-se, portanto, que há um campo, o das memórias de mulheres e homens que


participaram das mobilizações do “Movimento Pró-Reabertura do Caminho do Colono”, ao
qual pouca atenção se deu e que é fundamental para compreender não apenas dimensões
pouco exploradas ou não investigadas sobre o assunto, mas acerca das práticas e
representações que permeiam as relações sociais que essas pessoas estabelecem(ram) com o
meio ambiente. Cabe ao campo da história promover um diálogo mais aprofundado entre as
lembranças do passado e as práticas do presente, estimulando a percepção de como os homens
ressignificam sua compreensão e relação com o meio a partir dos modos de vida que se
estabelecem em diferentes contextos.

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Trazer à tona memórias em relação ao Caminho do Colono nos permite retomar um


diálogo com o tempo, com as diversas relações que se estabeleceram nos diferentes contextos
que envolvem a problemática citada e, principalmente, explicitar sujeitos que ficaram
subjugados a uma produção histórica que não se preocupou com a cotidianidade e
singularidades do processo histórico. Diversas memórias, nas entrevistas realizadas,
desconsideradas pela imprensa ou não registradas oficialmente, nos auxiliam na compreensão
da função social do Caminho do Colono em diferentes temporalidades.

“Então eu vim de Santa Catarina, tinha sete anos, até a gente passou aqui na Estrada do
Colono, nós viemos de Santa Catarina. Na época era tudo mato, (...) tinha sete anos, faz
quarenta anos. Aí a gente veio morar aqui em baixo na Linha Palmital, ali né, interior (...)”,
narra Elsa Carbonera.4 Sua narrativa reporta-se a uma experiência vivida ainda na infância,
indicativa de um deslocamento no tempo e espaço de sujeitos, de uma imagem do meio
natural e, portanto, de uma relação com o meio ambiente.

O relato apresenta-se como memória individual representativa da cotidianidade de um


sujeito social que entre tantos outros veio tentar melhores condições de vida em uma nova
região, uma narrativa cheia de significados e sentidos que na maioria das vezes passa
despercebida se não observada em sua totalidade.

A expressão “Estrada do Colono”, na narrativa é significativa. Ao referir-se ao


percurso de migração, menciona a “Estrada”, termo que foi substituído, com o passar dos
anos, por “Caminho”. Esta substituição não se fez ao acaso. Os termos utilizados para
denominar esse percurso geográfico reportam a temporalidades diversas, a determinados
interesses e modos de vida diferenciados.

Nesse caso, a estrada, como é nominada pela entrevistada, é “do colono”, designação
daquilo que lhe é próprio, caracterizando um período no qual as políticas para a colonização
do Oeste e Sudoeste do Paraná eram incentivadas pelo governo e os migrantes, vindos dos
estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em sua maioria, utilizavam-se dessa estrada.
Neste sentido, na visão destes colonizadores, o percurso tornou-se seu por direito e necessário
para a população.

4
Entrevista concedida por Elsa Carbonera no dia 01/05/2012_ 47 anos_ Atualmente é funcionária pública do
município de Medianeira, atua como cozinheira em um Centro de Educação Infantil, reside em Serranópolis do
Iguaçu, participou das manifestações pró-reabertura do Caminho do Colono, era proprietária de uma barraca que
vendia lanches para os manifestantes e visitantes.

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O uso do termo estrada pela entrevistada também nos remete pensar em uma via mais
larga que um caminho, utilizada para o trânsito de pessoas, animais ou veículos. O que
impulsionaria o desenvolvimento e o fluxo migratório entre as regiões levando a uma
determinada compreensão e relação com o trecho. Compreensão e relação essas ligadas à
mesma idéia de desenvolvimento e progresso difundida pela proposta de colonização
incentivada pelo governo naquele período e intitulada como a “Marcha para o Oeste”. A
ideologia da “Marcha para o Oeste”, proposta pelo governo Vargas, era formada por um
conjunto de ações governamentais bastante variadas, que ia desde a implantação de colônias
agrícolas, passando pela abertura de novas estradas, até obras de saneamento rural e de
construção de hospitais. Esta política nacional expansionista buscava a integração nacional e,
concomitantemente, a organização dos territórios, garantindo, dessa forma, além da segurança
e da efetiva posse, a exploração produtiva de imensas regiões fronteiriças praticamente
inabitadas. (LOPES, 2002)

Encontramos ainda na obra Caminho do Colono: Vida e Progresso, sobre esse mesmo
percurso memórias como a de Armando Bitencourt, primeiro dono do Porto Moisés Lupion,
que identificava o caminho como sendo uma “picada”, atalho estreito aberto no mato a golpes
de facão. “Em 1948, foi à primeira vez que passei por aqui (...). Na época a Estrada do Colono
já existia, era uma picada (...).” (DALLO, 1998, p. 63) Mesma denominação atribuída ao
percurso no registro feito por Luciano Dallo quando afirmam a passagem da Coluna Prestes
pela região no ano de 1924 utilizando-se desse caminho. “A Coluna Prestes, na época da
revolução de 1924(...), subiu do Rio Grande do Sul, atravessou o Rio Iguaçu e passou por
uma trilha primitiva do Caminho do Colono, até a localidade de Benjamim Constant. (...),
hoje apenas lembrada pelo nome de Picada Benjamim.” (DALLO, 1998, p.65)

As lembranças do caminho como sendo uma picada permitem aos sujeitos


estabelecerem relações diferentes com o espaço do que daquelas promovidas pelo projeto de
desenvolvimento que requeria uma estrada que facilitasse o fluxo e o escoamento da produção
como no projeto de colonização. Permite perceber o percurso como sendo um trajeto utilizado
por poucas pessoas que se arriscam por um caminho não oficial aberto a força na mata por
desbravadores, promovendo sentimento de responsabilidade pelo percurso, pois sua
conservação e melhoria poderiam permitir ou não sua relação com outras localidades e
vizinhos, visto que as picadas em sua maioria são abertas e utilizadas pela necessidade de
encurtar distancias e facilitar a vida das pessoas.

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Já denominações Caminho do Colono e mais recentemente Estrada-Parque Caminho


do Colono como propõe o projeto de lei 7123/2010 que tramita atualmente na Câmara dos
Deputados passaram a ser utilizadas a fim de atender as demandas sociais do atual contexto
econômico, social e cultural bem como as políticas ambientalistas. Caracterizando um
percurso destinado ao trânsito de pessoas, veículos e animais essas expressões denotam maior
interesse e preocupação com o meio ambiente e com a amplitude do espaço que cerca esse
percurso. A utilização desse espaço é feita a partir de um plano de manejo que procura
viabilizar a relação sustentável entre os homens e o meio além de preocupar-se com a
construção da consciência ambiental.

As diferentes denominações utilizadas para designar o Caminho do Colono


apresentam-se apenas como uma das questões de disputas tensionadas a partir dessa
problemática. Sabemos que ao utilizar determinada denominação para nos referir ao espaço,
estamos trazendo com ela diferentes formas de conceber, compreender e relacionar-se com o
espaço, estamos relacionando-o a modos de vida diferenciados que foram construídos em
diferentes temporalidades e contextos históricos.

Ou seja, há uma diversidade de memórias produzidas acerca do Caminho do Colono,


que, não obstante de temporalidades diversas, se entrecruzam, promovendo disputas e
tensões. Cada denominação promove diferentes maneiras de perceber e relacionar-se com o
meio ambiente promovendo diferentes políticas e formas de utilização do espaço.

No entanto, essas novas propostas de relacionar-se com o meio, não são prontamente
admitidas pelos sujeitos, elas precisam ser compreendidas e aceitas para tornar-se parte de
suas práticas cotidianas, passam por um processo de negociação onde concepções e
memórias, tanto coletivas quanto individuais, do passado aos poucos vão sendo
ressignificadas a partir de novos conceitos e padrões.

A utilização de novos conceitos e padrões que buscam a construção de uma memória


coletiva tem como objetivo manter a coesão interna de um grupo e defender a fronteira
daquilo que o grupo tem em comum, porém, como afirma Maurice Halbwachs, a memória
além de ser seletiva passa por um processo de “negociação” para conciliar a memória
individual com a memória coletiva. (HALBWACHS , 1989) Nesse sentido, é importante
perceber os processos e atores que intervêm no trabalho de construção e solidificação da

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memória coletiva para compreender porque determinadas perspectivas predominam sobre


outras.

As mobilizações para a reabertura do Caminho do Colono, neste sentido, foram


representadas em discurso de políticos na Câmara Municipal e no Congresso Nacional, em
trabalhos acadêmicos e em matérias na imprensa de múltiplas maneiras, mas a imagem que se
disseminou preponderantemente pela teia social é a de um movimento de e feito por homens.
Outra importante questão a ser levantada já que, as narrativas das entrevistas apontam para
outro olhar acerca dessas mobilizações: denotam um movimento constituído por uma
diversidade de sujeitos que empreenderam uma multiplicidade de significados e interesses em
relação à reabertura ou fechamento do caminho a partir dos valores presentes em suas
memórias. Ou seja, apontam para um movimento diferente do registrado até então, onde as
mulheres estiveram presentes e contribuíram significativamente no processo de construção e
efetivação das manifestações, onde vivenciaram a oportunidade de constituírem-se enquanto
sujeitos políticos.

A necessidade de reconhecer essas mulheres e compreende-las no movimento a partir


das suas diferenças e práticas implica compreender as relações sociais, as construções
culturais que permeiam suas vivências e a relação existente entre mulheres e homens, as
relações de gênero, no que tange as manifestações de reabertura do Caminho do Colono.

As questões brevemente discutidas neste texto são apenas algumas das questões
relacionadas às memórias sobre o Caminho do Colono. Tais memórias permeiam o campo de
disputa dos sujeitos e são elaboradas a partir de um contexto, reproduzindo valores e
representações sociais.

Podemos perceber que determinados valores presentes nas narrativas das entrevistas
estão fortemente associados às construções e lembranças registrados pela imprensa e o poder
público, no entanto valores que não representavam os interesses de determinados grupos
deixaram de ser registrados dificultando a compreensão da totalidade do movimento ou
mesmo contribuindo para a construção de uma “memória enquadrada” (POLLAK, 1989)
sobre o processo. No entanto não podemos deixar de ressaltar que tais valores, mesmo não
registrados, continuam presentes nas lembranças individuais de muitos sujeitos sendo
transmitidos nas estruturas de comunicações informais, permanecendo vivos na memória.

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A partir do fechamento do Caminho do Colono novas formas de perceber e se


relacionar com o caminho passaram a fazer parte da vida da população, ou seja, o fechamento
passou a interferir diretamente no modo de vida da população, na forma de trabalho, na
economia e consequentemente promoveu novas formas de pensar e perceber a natureza.

Repensar a função social do Caminho do Colono a partir de uma nova concepção de


meio ambiente passou a fazer parte das novas estratégias de luta para a reabertura. Pensar o
Caminho do Colono dentro de um novo contexto econômico, social e cultural exigia a
construção de uma nova consciência ambiental fundamental para continuar a luta pela
reabertura.

Nesses termos, ter como mote o Caminho do Colono significa pesquisar e escrever
sobre um processo que está em construção, sobre uma história que está sendo vivida e
produzida ao mesmo tempo, promovendo interpretações do passado na compreensão do
presente, uma história que está ressignificando-se na cotidianidade e na ação dos sujeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZOATEGUI, Estefano. O princípio da ocupação organizada pela Aipopec. A Cidade,


Cascavel, p.05, 11 de maio de 1997.

DALLO, Luciano. Estrada do Colono, a luta de um povo. Francisco Beltrão/PR: Francisco


Beltrão Grafit, 1999.
________________ Caminho do Colono: Vida e Progresso. Francisco Beltrão: Ed. Grafit,
1998.

DIAS, Edson dos Santos. Desenvolvimento regional e conservação ambiental: A estrada


do colono como via de (des)integração do oeste-sudoeste paranaense. 2006. Dissertação
(Doutorado em Geografia) - Universidade Estadual de São Paulo, São Paulo.

DIEGUES JR., Manuel, (1960). Regiões culturais do Brasil. Rio de Janeiro: CBPE, INEP,
MEC.

DIERINGS, Ivani Inês V. A AIPOPEC e o discurso em defesa da reaberturada Estrada


do Colono (1986-1997). M.Cândido Rondon, 2002. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em História). Universidade Estadual do Oeste do Paraná.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 650

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da língua


portuguesa. 7ed. Curitiba: Ed. Positivo, 2008.

LOPES, Sérgio. O Território do Iguaçu no Contexto da “Marcha para Oeste”. Cascavel:


Edunioeste, 2002.

OSTROVSKI, Dalésio, Análise dos impactos socioambientais motivados pelo Caminho


do Colono. Dissertação de Mestrado em Geografia. Universidade Estadual de Maringá, 2002.
Disponível em: http://www.pge.uem.br/novo/teses/pdf/dostrovski.pdf

POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de


Janeiro, v. 2, n. 3, 1989.

REVEL, Jacques. Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Ed.


Fundação Getúlio Vargas, 1998. p.19

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DO “LIXÃO” AO ATERRO: HISTÓRIA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS EM


GUARAPUAVA/PR (1970-2010)

Vladson Paterneze Cunha (Mestrando em História Social – UEL – CAPES)

Orientador: Dr. Jozimar Paes de Almeida

Palavras-chave: História Ambiental, Políticas Públicas, Lixo.

INTRODUÇÃO

As preocupações ambientais fazem parte da vida do ser humano desde os primórdios


da sociedade. Podemos considerar que a sociedade busca o melhor para si e tenta, da melhor
maneira possível, viver bem em seu ambiente. Porém, as mudanças históricas ocorridas na
sociedade ocasionaram um aumento dos impactos humanos provenientes de suas
organizações de produção ao relacionar-se de diversas maneiras com a natureza e seus
elementos.

O aumento da população e as mudanças na forma de produção de bens necessários à


vida em sociedade, principalmente depois do advento da indústria moderna, ocasionaram
também uma ampliação da exploração de recursos naturais. O alerta a respeito da exploração
excessiva dos recursos naturais e dos impactos negativos causados pela ação humana à
natureza, foi ampliado nos anos 60 do século XX, quando ganhou corpo a crítica dos
ambientalistas ao modelo de desenvolvimento proposto pelas sociedades ocidentais,
principalmente a estadunidense. É nesse contexto de crise socioambiental dos anos 60 do
século XX que emerge a “questão ambiental”. (GONÇALVES, 2004)

Os altos níveis de consumo e produção industrial começavam a ser questionados, pois


causavam paralelamente grandes níveis de poluição que eram devolvidos à natureza sem
muita preocupação por parte da sociedade. O uso indiscriminado dos recursos naturais levou a

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problemas de grandes proporções como a erosão e a desertificação de áreas agrícolas, a


contaminação do solo e de lençóis freáticos por agrotóxicos e dejetos industriais e até o lixo,
os restos da civilização, se transformou em um sério problema, pois sua quantidade
aumentava (e aumenta), causando a proliferação de insetos, bactérias e germes causadores de
doenças para os seres humanos.

Nosso objetivo é apresentar e trocar informações a respeito de nosso projeto de


pesquisa desenvolvido no curso de Mestrado em História Social da Universidade Estadual de
Londrina sob a orientação do professor Dr. Jozimar Paes de Almeida. Procuraremos, num
primeiro momento, definir nosso objeto de pesquisa por meio da exposição de nosso
problema temático, do local e da temporalidade que pretendemos abordar: políticas públicas
ambientais - Guarapuava-PR – 1970-2010.

Na segunda parte do texto, procuramos elaborar uma interpretação das possibilidades


de análise do tema por meio da perspectiva da História Ambiental, procurando assim
contribuir para a ampliação do entendimento do problema por intermédio de nossa pesquisa.

Depois, na etapa seguinte, definiremos de que maneira o entendimento da história das


políticas públicas, compreendidas como instrumentos de gestão e resolução de problemas
socioambientais, podem ajudar a entender as formas de enfrentamento da questão da
produção, coleta e destinação do lixo urbano residencial.

Nessa etapa também pretendemos contextualizar o problema da questão do “lixo” em


relação à cidade de Guarapuava, no estado do Paraná, objeto de nossa pesquisa. Apesar de
trabalharmos com uma situação local como objeto de análise, entendemos que a questão
ambiental é uma questão global, pois os problemas em si são bastante semelhantes, visto que
a essência das atividades humanas também o é.

Tais atividades são provenientes de um sistema produtivo onde os 20% dos habitantes
mais ricos do planeta consomem quase 80% dos recursos naturais e onde o atual estilo de vida
“[...] vivido pelos ricos dos países ricos e pelos ricos dos países pobres, em boa parte é
pretendido por aqueles que não partilham esse estilo de vida”, configurando um modelo-
limite e um “[...] sério risco para todo o planeta e para toda a humanidade”, submetendo todos
a uma mesma lógica de caráter predominantemente mercantil. (GONÇALVES, 2004, p.31)

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Concluiremos nosso texto relatando alguns resultados preliminares de nossa pesquisa e


informações a respeito das políticas públicas implementadas no município de Guarapuava,
pretendendo contribuir para ampliar o entendimento da questão ambiental relacionada ao tema
da produção, coleta e destinação de lixo urbano residencial em nossa sociedade.

1 – O OBJETO E OS OBJETIVOS DA PESQUISA.

O “lixo”, subproduto de qualquer sociedade, está presente em todos os momentos da


história humana. O ser humano, vivendo em sociedade, produz os bens que necessita através
do seu trabalho e, ao final, sempre sobram restos das diversas atividades que realiza e que,
para alguns seres humanos, não servem para mais nada. Esses restos, sobras, pedaços, trapos,
rejeitos, dejetos, resíduos, mais comumente chamados de “lixo”, oriundos das atividades
sociais e produtivas da própria sociedade, começaram a se tornar um problema socioambiental
quando sua quantidade aumentou demasiadamente. O “lixo” se transformou em um problema
social, ambiental e político de grande relevância para a sociedade e configura-se como objeto
de estudo de diversas pesquisas científicas, entre elas a nossa.

O conceito “resíduos sólidos” passou a fazer parte da terminologia de pesquisas e


trabalhos científicos recentemente em substituição ao conceito “lixo”, pois se mostrou um
conceito mais abrangente para definir a grande quantidade, e os diversos tipos de rejeitos
produzidos pelas sociedades urbanas contemporâneas. (ASSUNÇÃO et alii, 2007) Apesar da
maior abrangência do conceito, em alguns momentos utilizaremos o conceito “lixo” por ser, a
nosso ver, um conceito popularmente mais conhecido e mais utilizado para designar aquilo
que, para muitos de nós, não nos serve mais e pode ser levado “[...] para bem longe, onde
possa livremente sujar, cheirar mal e atrair doenças”. (GOULART, 1989)

Apesar de serem sinônimos, podemos diferenciar os conceitos da seguinte maneira,


“lixo” é tudo aquilo que não tem mais serventia alguma para a sociedade, sendo, portanto
necessário dar-lhe um destino ambientalmente adequado e seguro. O termo “resíduo” define
tanto os rejeitos sem serventia e ambientalmente perigosos, quanto todo e qualquer outro
rejeito da sociedade como, por exemplo, o lodo de esgoto, plásticos, papelão, latas, vidros e

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restos de alimentos, que podem ser reaproveitados pela sociedade em outras atividades e
mesmo em processos industriais.

A temporalidade estabelecida na pesquisa abrange um período que se estende da


década de 70 do século XX até o ano de 2010, primeira década do século XXI. Tal marco
cronológico levou em consideração características do desenvolvimento sócio-político
envolvidos com o tema, como a instalação de leis e políticas públicas municipais preocupadas
com os recursos naturais e com os impactos humanos em relação ao meio ambiente.

Em nossa pesquisa temos como objetivo investigar de que maneira o poder público de
Guarapuava elaborou suas políticas públicas ambientais e quais foram as forças sociais e
políticas que atuaram nessa elaboração, conferindo à cidade sua atual política pública
ambiental. Assim buscamos especificamente compreender como são produzidas as políticas
públicas, analisar e comparar a legislação ambiental municipal, estadual e federal e, entender
como o Estado e a sociedade local lidaram com os problemas decorrentes da geração de
resíduos sólidos urbanos (lixo domiciliar) na temporalidade estabelecida, buscando opções
para resolvê-los ou minimizá-los.

2 - A HISTÓRIA E O MEIO AMBIENTE - HISTÓRIA AMBIENTAL.

Adentrar o campo de estudos ambientais vem se tornando uma prática comum aos
historiadores e outros cientistas sociais. Apesar de relativamente novo, o interesse pela
questão ambiental por parte dos historiadores, fruto do alargamento das temáticas abordadas
pela ciência histórica no século XX, assumiu uma importância muito elevada na sociedade
devido aos diversos efeitos negativos que a atividade humana causou (e ainda causa) em todo
o planeta. (ALMEIDA, 2011; MARTINEZ, 2006).

Contaminação das águas, dos solos, do ar, derramamentos de petróleo, contaminação


radioativa, destinação incorreta do lixo urbano e outros problemas fizeram com que a temática
ambiental se tornasse obrigatória nos debates e pesquisas acadêmicas, nos programas de
governo, nos discursos políticos, na legislação e até no discurso da propaganda comercial.
Apesar das preocupações de diversas pessoas e entidades com o meio ambiente, tentando

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melhorar nossa relação com a natureza, ajudando assim a sociedade e o ser humano a ter um
mundo melhor; nossa realidade demonstra que esses esforços ainda são de uma minoria.

Para Martinez (2006, p. 16) “[...] o desprezo pelo passado e a indiferença quanto ao
futuro, que a sociedade brasileira, em particular, parece nutrir secularmente, aproxima o
conhecimento histórico e o debate de questões ambientais neste início de século”. Para o autor
supracitado, esse contexto de presentificação da sociedade causa uma séria crise de apatia e
imobilismo, reforçando o sentimento de impotência individual e coletiva para promover
mudanças de maior vulto. Assim, a história tem um importante papel dentro da busca pelo
entendimento do mundo em que vivemos e das questões que nos são colocadas pela
sociedade.

Em sua obra “História Ambiental no Brasil – pesquisa e ensino”, Martinez tece


comentários a respeito da profícua relação existente entre História e Natureza. Tal relação tem
despertado interesse em diferentes cientistas e grupos sociais, de diversas partes do planeta,
para pesquisar mais profundamente a relação da sociedade com o meio ambiente.

Também Almeida (2011, p. 259), contribuindo para o entendimento da questão da


relação entre História e Meio Ambiente, nos diz que esta relação “[...] deve fundamentar-se
nas complexidades e constelações conceituais de caráter interdisciplinar, ultrapassando desta
forma as fronteiras das disciplinas científicas que fragmentam o conhecimento em áreas
estanques”, demonstrando dessa forma o caráter fundamentalmente holístico que a pesquisa
ambiental deve buscar.

Martinez, comentando o aumento do empenho de cientistas, particularmente dos


historiadores, em tentar entender a relação sociedade-natureza recupera as origens do
desenvolvimento da História Ambiental e coloca-nos diante da raiz dos problemas
enfrentados pela sociedade, a chamada crise ambiental

[...] que tem como características principais a contaminação da biosfera e da


atmosfera pelos resíduos das atividades produtivas e de consumo [...] ela adquire
maior alcance social e dimensões planetárias na década de 1960. É uma crise
derivada da insustentabilidade dos padrões de produção e de consumo criados pela
sociedade industrial e que não parou de expandir-se desde a segunda metade do
século XVIII até os dias de hoje. (2006, p. 52/53)

Também entendemos, com base em Gonçalves (2001), que nossa sociedade está a
cada dia destruindo suas fontes de sobrevivência acreditando que a ciência e a tecnologia

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poderão corrigir os erros cometidos pela nossa geração e pelas gerações anteriores. Tal
maneira de pensar parece-nos, como ao autor, um ledo engano, pois segundo Gonçalves
(2001, p. 123/124) “[...] é preciso que fique claro que a solução dos problemas ambientais não
é de natureza técnica, mas de uma opção político-cultural”.

Nesse sentido, gostaríamos de salientar que a existência, na sociedade, de uma


racionalidade econômico-crematística capitalista (GONÇALVES, 2004), baseada na
apropriação e exploração da natureza, não respeita o tempo dos processos naturais de
metabolização dos rejeitos da sociedade, aumentando o grau de desestabilização entrópica nos
processos naturais. (ALMEIDA, 2011)

Entendemos assim, que a abordagem proposta pela História Ambiental pode produzir
uma grande contribuição no entendimento da questão ambiental por buscar uma interrelação
entre as atividades sociais inerentes ao ser humano e seus impactos na natureza, envolvendo o
passado e o presente numa tentativa de entendimento holístico do sentido que demos e damos
à nossa vida em sociedade e às nossas ações enquanto seres pensantes.

3 - POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS.

O debate teórico em torno da definição de políticas públicas ocorre por meio de


diversas proposições teóricas, porém elencaremos três modelos principais de análise: o
pluralismo, o marxismo e o neoinstitucionalismo. Para os efeitos de nosso estudo
procuraremos uma abordagem que, centrada no debate do neoinstitucionalismo, também não
deixa de lado as outras abordagens. Tal proposição se mostra pertinente na medida em que
nenhuma das teorias referidas dá conta de explicar de forma definitiva tal tema. (SOUZA,
2006)

As políticas públicas são instrumentos de decisão política através dos quais o Estado
busca resolver problemas enfrentados por uma determinada sociedade específica. A maneira
como essas decisões são tomadas depende também de como a sociedade encara esses
problemas e de como se posiciona em relação a eles e ao poder político.

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Entendemos que a sociedade, ao defender seus interesses, toma posições que podem
ser favoráveis ou contrárias a determinadas posições políticas do Estado, ou de seus
representantes, pois não necessariamente o interesse do Estado e de seus agentes representa a
vontade da maioria da sociedade ou menos ainda da totalidade da sociedade.

Assim, por meio de uma série de mecanismos de debate e troca de informações


técnicas e sociais, o Estado elabora determinadas políticas públicas para enfrentar e resolver
os problemas que emergem e exigem soluções. O estudo das políticas públicas tem como
objetivo mais recente entender como e porque os governos optam por determinadas ações em
detrimento de outras. (SOUZA, 2006)

A teoria pluralista do Estado democrático afirma que nas sociedades industriais


ocidentais o poder está amplamente dividido entre diversos grupos de interesse e que todos os
grupos tem possibilidade de influenciar o processo de tomada de decisões. O pluralismo
ganhou interesse nos Estados Unidos com os estudos de Robert Dahl(1961) e Nelson Polsby
(1963). De acordo com esses autores, embora os grupos de interesse não tenham o mesmo
grau de influência no processo decisório, mesmo os grupos mais fracos poderiam ser ouvidos
e ter influência em algum momento do processo. Dessa maneira, para Ham e Hill (1993, p.
47)“[...] o poder tenderia a ser fragmentado e difundido nos sistemas políticos e o quadro
básico apresentado pelos pluralistas é o do mercado político onde o que um grupo alcança
depende de seus recursos e do ‘nível de decibéis’ que é capaz de emitir”.

Já a teoria marxista compreende o Estado como palco da defesa dos interesses


burgueses, sendo as políticas públicas implementadas para defender esses interesses. Uma das
contribuições do marxismo para a análise de políticas públicas é trazer para o debate a questão
da influência econômica nos assuntos políticos. Assim, com base nessa teoria, podemos evitar
o engano de esquecer a relação que certamente existe na sociedade capitalista entre o poder
econômico e o poder político. Porém, não devemos transformar o Estado em um títere dos
interesses da classe burguesa, visto que algumas vezes o Estado age priorizando interesses
não-burgueses. (HAM; HILL, 1993)

A teoria neoinstitucional por sua vez coloca o foco de sua abordagem no papel e na
importância das instituições e, principalmente do Estado, na decisão, formulação e
implementação de políticas públicas. Essa teoria, segundo Rocha (2005), recoloca o Estado

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como palco de análise privilegiado e teria sido formulada nos anos 80, sendo Skocpol (1985)
“uma das primeiras autoras a propor uma reorientação teórica em relação às abordagens
precedentes e a tentar organizar as bases da análise neoinstitucionalista”. (ROCHA, 2005, p.
13) Para o neoinstitucionalismo

“[...] o Estado, ao contrário do que defendem os pluralistas e marxistas, não se


submete simplesmente a interesses localizados na sociedade, sejam das classes ou
dos grupos de interesse. As ações do Estado, implementadas por seus funcionários,
obedecem à lógica de buscar reproduzir o controle de suas instituições sobre a
sociedade, reforçando sua autoridade, seu poder político e sua capacidade de ação e
controle sobre o ambiente que o circunda.” (ROCHA, 2005, p. 14)

Assim, a grande contribuição do neoinstitucionalismo está, segundo Souza (2006, p.


39), “[...] no entendimento de que não são só os indivíduos ou grupos que tem força relevante
influenciam as políticas públicas, mas também as regras formais e informais que regem as
instituições”. O que move a formulação de políticas públicas é a luta por poder e recursos
entre grupos sociais e os embates são mediados pelas instituições políticas e econômicas.
Nesse embate, as políticas públicas caminham para direções que privilegiam alguns grupos
em detrimento de outros, além de sofrerem a influência de interesses, de ideias e da própria
história social, como enfatizam outras vertentes do neoinstitucionalismo. (SOUZA, 2006)

Dessa forma, ao estudarmos a questão das políticas públicas ambientais, nosso esforço
de interpretação será no sentido de buscar não uma única teoria explicativa, mas uma junção
dessas três teorias para tentar melhor interpretar a maneira como foram definidas ao longo dos
anos as políticas públicas relativas a questões ambientais na cidade de Guarapuava/PR.

Tal esforço a nosso ver é de suma importância para a busca de uma interpretação mais
ampla e holística, da sociedade e das instituições do Estado como definidoras de políticas
públicas relativas ao meio ambiente. Esperamos poder contribuir para a ampliação do
entendimento da sociedade e da busca por uma opção política que melhore a relação de nossa
civilização com a natureza.

3.1 - AS POLÍTICAS PÚBLICAS AMBIENTAIS EM GUARAPUAVA.

Guarapuava é a cidade sede do município de mesmo nome, está localizada na região


centro-sul do estado do Paraná, região sul do Brasil. Desde sua fundação, na primeira metade
do século XIX, até o início da primeira metade do século XX as principais questões

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ambientais que preocupavam o poder público estavam relacionadas ao abastecimento de água


no núcleo urbano e ao problema do esgotamento sanitário.

A partir dos anos 40 e 50 do século XX ocorreu um destacado dinamismo da


economia da cidade. Este dinamismo foi propiciado por uma atividade comercial mais intensa
com a atividade madeireira, nos anos 40, e a introdução da agricultura comercial nos anos 50.
Nas décadas seguintes, essas condições propiciaram os primeiros momentos de um processo
de industrialização, urbanização acelerada, e o conseqüente desenvolvimento de novas
demandas socioambientais. (KOBELINSKI, 1999; TEMBIL, 2007).

O município de Guarapuava possui atualmente cerca de 170 mil habitantes e uma


relativa significação econômica na região central do Paraná. Até os anos 70 do século XX, sua
população era majoritariamente rural, havendo a partir de então um movimento de êxodo rural
que acabou por trazer à cidade a maior parte da população, acarretando uma periferização
acelerada devido ao rápido crescimento populacional no núcleo urbano, assim como o
aumento de vários problemas socioambientais, entre eles o aumento da produção de resíduos
domiciliares e os problemas decorrentes de sua destinação pelos órgãos responsáveis.
(ANTONIO, 2009)

A população de Guarapuava produz cerca de 3.000 toneladas/mês de resíduos sólidos


decorrentes da coleta comercial, domiciliar e pública: varrição de ruas, capina. Desse total
2.000 toneladas são de compostos orgânicos, 800 toneladas de materiais recicláveis e 200 são
de entulho, aproximadamente. A Companhia de Serviços e Urbanização de Guarapuava
(SURG), criada pela Lei no52/1971, é a responsável pelo planejamento e execução dos
serviços de coleta e destinação final de resíduos sólidos do município e também é a
gerenciadora do Fundo de Urbanização de Guarapuava (FURG). (HERZER et alii, 2009)

O outro órgão administrativo municipal responsável por questões ambientais em


Guarapuava é a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Florestal
(SEMAFLOR). A SEMAFLOR é responsável pelo planejamento e gestão de diversos
projetos ambientais do município, entre eles os de coleta seletiva (em parceria com a SURG e
com a Associação dos Catadores de Papel de Guarapuava) e o projeto ECOFEIRA. A
secretaria também é responsável por fiscalizar os serviços de coleta de resíduos do sistema de

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 660

saúde pública, que está a cargo de uma empresa privada, e fiscalizar o serviço de caçambas de
entulho de construção civil.

Desta forma, interessou-nos entender como o poder público, por meio das instituições
públicas e políticas (prefeitura, câmara de vereadores, secretarias municipais, partidos,
associações), representantes do Estado e da sociedade civil na esfera municipal, formulou as
políticas públicas municipais que tratam da produção e destinação dos resíduos sólidos
domiciliares.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Procuramos entender como as políticas públicas ambientais municipais vislumbraram


esses problemas e quais foram às soluções buscadas pelo poder público para resolver os
problemas ambientais que emergiram nesta sociedade. Além disso, também procuramos
esclarecer quais foram os temas que estiveram presentes nos debates para formulação das
políticas públicas ambientais.

Nossa pesquisa junto a fontes legais e legislativas municipais mostra poucas


ocorrências da questão da produção, coleta e destinação do lixo urbano residencial,
demonstrando que o tema foi tratado de forma complementar nos projetos de lei e nas leis
posteriores. As políticas públicas ambientais desenvolvidas no município de Guarapuava até o
final dos anos 90 se preocupou com o assunto de maneira indireta, contemplando o tema
dentro de uma política urbana mais geral, a exemplo da Lei no 8/1981 (cria o Conselho
Municipal de Defesa do Meio Ambiente) e a Lei no 37/1986 (Zoneamento de uso e ocupação
do solo do perímetro urbano).

Destacamos também a predominância de ação do poder executivo na proposição de


políticas públicas ambientais em Guarapuava. A pesquisa demonstra que algumas políticas
públicas implementadas no município não partem da estaca zero. O poder público optou por
melhorar ou adequar uma política já existente. Configura-se nas políticas públicas em
Guarapuava, dessa forma, um modelo de política pública de processo incremental. (SOUZA,
2006)

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Os exemplos mais característicos dessas políticas incrementais são as que instituíram


os Planos Diretores Municipais (Leino 1101/2001, Lei Complementar no 016/2006 e Lei no
1882/2010) e também as que instituem os Zoneamentos de uso e ocupação do solo urbano
(Leino 37/1986, Lei Complementar nº 02/91, Lei nº 1024/2001 e Lei nº 024/2008),
complementando, melhorando ou adequando a legislação anterior a normas federais ou
estaduais que regulamentam o assunto e às quais a legislação municipal é obrigada a respeitar
e se enquadrar.

Temos ainda um longo caminho a percorrer no entendimento de como foram e estão


sendo formuladas as políticas públicas ambientais em Guarapuava, mas consideramos de
fundamental importância trilhar esse caminho na busca de uma compreensão socioambiental
da história e de uma contribuição para o aprofundamento da democracia na política
socioambiental.

5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.

ALMEIDA, Jozimar Paes de. Questões conceituais na História Ambiental. In:


GIANNATTASIO, G.; IVANO, R. (Org.). Epistemologias da História: verdade,
linguagem, realidade, interpretação e sentido na pós-modernidade. Londrina: EDUEL,
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sanitário em Guarapuava-PR, com uso de redes neurais artificiais. 2009. 130p.
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e a produção dos resíduos sólidos domiciliares na cidade Guarapuava-PR. Terr@ Plural,
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Nora Goulart, direção de Jorge Furtado. Porto Alegre, Casa de cinema de Porto Alegre, 1989,
VHS/NTSC, 12 min., color. son..

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<http://www.unicentro.br/graduacao/deamb/semana_estudos/pdf_09/DIAGN%D3STICO%20
DA%20GEST%C3O%20DOS%20RES%CDDUOS%20S%D3LIDOS%20URBANOS%20N
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Assis/Unicentro: Assis/Guarapuava, 1999.

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tecendo memórias. Guarapuava: UNICENTRO, 2007.

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ST 11 – MEMÓRIAS, IDENTIDADES E
CONFLITOS SOCIAIS
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UM OLHAR À ESQUERDA:

A FORÇA EXPEDICIONÁRIA BRASILEIRA.

Carlos Henrique Lopes Pimentel.

(Mestrando do Programa de História Social da Universidade Estadual de Londrina).

Orientador: Prof. Dr. Francisco Ferraz.

Palavras-Chave: História Política, FEB, Esquerda Militar.

Grande parte da historiografia nacional pouco abordou em suas narrativas as


trajetórias de seus cidadãos que participaram da Segunda Guerra Mundial, menor ainda, foi o
numero de análises que se debruçaram sobre os posicionamentos e ações políticas desses
homens após o fim do conflito. Entre os vinte e cinco mil brasileiros que desembarcaram na
Itália, em 1944, vários oficiais e praças assumiam posturas ideológicas à direita e também à
esquerda. Nesta pesquisa se buscará, portanto, apresentar e problematizar a existência de
militantes da esquerda nacional no interior da Força Expedicionária Brasileira, apontando
algumas hipóteses de como esses homens atuaram no cenário político nacional, salientando
também, que esses indivíduos tiveram um papel de certa relevância não apenas nos combates
durante a guerra, mas principalmente ao voltarem ao seu país e a suas vidas, participando das
transformações ocorridas no Brasil do pós-guerra, em fatos históricos como a saída de Getúlio
Vargas do poder, na curta experiência democrática, quando os partidos políticos puderam se
articular para as eleições presidenciais que levaram o general Dutra à presidência da
República, nas discussões e na sucessiva construção da Carta Constituinte de 1946 e,
principalmente, nos debates nacionalistas que fervilharam no contexto político das décadas de
1940 e 1950.

A primeira ação política efetiva dos combatentes da FEB, antes mesmo de


seu regresso da Itália, foi a redação de um manifesto, hoje pouco conhecido no cenário
histórico e político nacional (CUNHA, 2008, p. 181), de grande importância na compreensão

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do período e também das mudanças do pós-guerra. Documento este, escrito e assinado por
alguns oficiais da força brasileira que decidiram compartilhar a experiência que haviam
vivido em combate, mas que principalmente deixava clara a posição assumida em torno da
bandeira democrática, evidenciando a incoerência em que o país se encontrava no período, a
de enviar tropas para combater regimes autoritários no exterior, mas no âmbito interno não
gozar dessa liberdade. O manifesto, que aparece no debate político nacional em abril de 1945,
foi redigido por membros do Exército, A FEB – Símbolo Vivo da União Nacional foi assinado
por cerca de 300 militares, que em sua maioria eram oficiais de baixa patente.

O claro descontentamento desses oficiais em relação aos grandes debates do


período, por si só, já soaria como uma afronta nos meios militares, altamente hierarquizados e
rígidos em relação à politização de seus subalternos, mas essa não seria a única importância
do manifesto, este libelo democrático expunha as transformações pelas quais o país passava
em meados da década de 1940 e se somavam a outras tantas manifestações que se
avolumavam no imediato pós - guerra. Mas o que mais nos chama a atenção em relação ao
documento é a diversidade ideológica em sua composição, onde encontramos como
signatários desde oficiais conservadores, membros do que poderíamos chamar de direita
militar, alguns desses inclusive, com ativa participação no Golpe de 1964. Nomes como o de
Capitão Heitor Furtado Arzinaut de Matos, Major Syseno Sarmento, Capitão Milton Tavares
de Souza, Capitão Plínio Pitluga, entre outros, além da participação de alguns liberais
(CUNHA, 2008, p. 186). Mas nessa pesquisa nos cabe ressaltar a participação na confecção
do documento, da fração de esquerda na FEB, tendo como expoentes o Capitão Kardec
Lemme, Tenente Leivas Otero, Major Henrique Cordeiro Oest, Almir Neves, Aspirante
Salomão Malina, entre outros, oficiais que, segundo o também membro da FEB Jacob
Gorender, compunham uma importante célula comunista no interior da força, sendo os
responsáveis pela elaboração do manifesto1.

Em relação à diversidade ideológica na confecção e assinatura do


documento, cabe ressaltar que o anseio democrático do período uniu esses distintos
signatários sobre um mesmo desejo; pois desde 1937, com o Golpe do Estado Novo, o país
vivia sobre o regime de Getúlio Vargas, que durante os anos de sua duração, controlou o
Estado de maneira autoritária, se apoiando nas forças civis conservadoras e na alta cúpula

1
Entrevista de Jacob Gorender para Paulo Ribeiro da Cunha em São Paulo, em 20/09/2007, e entrevista de Jacob
Gorender na obra “Histórias do poder” (DINES; FERNANDES JÚNIOR; SALOMÃO, 2000, p.127).

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diretiva das Forças Armadas. Contudo, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o
consequente alinhamento do Brasil com os Aliados, o cenário político interno se alterou
influenciado pela derrota dos regimes fascistas na Europa, trazendo a democracia para ordem
do dia. Essas transformações no cenário mundial desgastaram ainda mais o já criticado
governo brasileiro, que assistiu sua oposição aumentar, inclusive com antigos aliados, que
abandonaram o presidente ao perceberem essas mudanças. A saída de Vargas do poder se
tornava cada dia mais evidente, pressionado pela crescente oposição que agrupava diferentes
grupos, desde estudantes que organizavam passeatas pedindo democracia, até importantes
membros do Estado Maior do Exército que já articulavam a sucessão presidencial em eleições
futuras. As medidas adotadas pelo presidente, desde 1943, davam sinais de que a abertura
política estava próxima, agitando ainda mais o ambiente do país, colocando em evidencia os
diferentes posicionamentos ideológicos, que tinham a democracia como principal bandeira, o
que pode explicar a união de diferentes sujeitos e interesses na construção do manifesto da
FEB, já que independente do posicionamento político, a ideia democrática os alinhava nesse
momento específico do pós-guerra.

A elaboração do manifesto não foi a única ação desses militantes de esquerda, pois
assim que retornaram ao país , esses homens passaram a atuar em uma nova frente. Passadas
as festas do regresso, os agora veteranos de guerra, buscaram retomar suas vidas, e ao fazerem
encontraram sérias dificuldades por conta da difícil readaptação de quem vivencia os horrores
de uma guerra, mas principalmente pelo descaso das autoridades em relação a esses ex-
combatentes. A partir dessas dificuldades mencionadas, ganha força a ideia já ventilada na
Europa, onde os brasileiros conviveram de maneira direta com outras nações dotadas de maior
experiência em guerras, de se formar uma associação na qual esses veteranos pudessem se
reunir e lutar por seus direitos. Motivados pelas inúmeras queixas e dificuldades em que os
antigos pracinhas se encontravam. É justamente nesse período de grandes transtornos que os
membros de esquerda da já desmobilizada FEB vão atuar, fundando algumas associações ou
participando ativamente de suas direções.

Os veteranos de esquerda foram os entusiastas no início da Associação de


Ex-Combatentes do Brasil (AECB), pois muitos desses indivíduos por suas militâncias
políticas anteriores a guerra eram afeitos a organização sindical, a participação em ligas,
sociedades entre outras organizações, sendo assim, também os fundadores e os diretores das
primeiras associações constituídas. Para compreendermos melhor o entusiasmo desses

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militantes de esquerda na constituição das primeiras associações de ex-combatentes, devemos


analisar, primeiramente, as transformações pela qual o país passava no período. Assim, se
beneficiando do momento de expansão e legalidade obtidas pelo PCB a partir de 1945, os
integrantes da FEB que compartilhavam de ideais de esquerda começam a se envolver
ativamente na formação e consolidação das primeiras associações de ex-combatentes que vão
surgindo aleatoriamente pelo território nacional e posteriormente, como fica acordado na 1a
Convenção Nacional realizada na Capital Federal em 1946, passam a compor o Conselho
Nacional, órgão centralizador da Associação de Ex-combatentes do Brasil (AECB), espaços
em que esses militantes vão exercer grande influência nos três anos subsequentes.

A associação paulista é um grande exemplo desse envolvimento, fundada


em novembro de 1946, e assim que criada já se filia ao Conselho Nacional, tem entre seus
fundadores e primeiros diretores nomes como o ex-sargento da FEB Gervásio Gomes de
Azevedo, membro do Partido Comunista Brasileiro e que também foi deputado constituinte,
em 1946, pela legenda; o soldado Raimundo Paschoal Barbosa, Abrahão Abait, ambos
membros do PCB, além de outros veteranos como Dionísio de Vechi e Antonio Sá Rodrigues
(SILVEIRA, 1989, p. 248). Característica que não foi exclusividade da seção paulista, em
outras pelo país afora a mesma postura também foi notada. Ao se envolverem no cotidiano da
associação, esses veteranos de esquerda buscaram adotar práticas que se colocavam contrárias
ao estatuto da entidade2, que proibia ações de cunho político-partidárias. A dura realidade
enfrentada pelos expedicionários, agora convertidos em ex-combatentes, era claramente
refletida em sua associação, que sofria com o descaso das autoridades e na maioria dos casos
as petições (memoriais) endereçadas aos parlamentares e demais poderes não eram levados a
sério, o que motivou ainda mais a atuação da ala radical no interior da organização. Buscando
amenizar essas dificuldades, algumas seções disponibilizavam cursos de alfabetização, auxílio
financeiro para a compra de medicamentos, além de advogados e médicos, ligados ou
simpatizantes do PCB3, que atendiam os mais necessitados gratuitamente ou por um valor
simbólico, muito pouco diante dos problemas apresentados. Assim, a recém-organizada
associação pouco tinha a ofertar a seus membros, além de pequenos e precários espaços para

2
O 1º Estatuto da AECB foi construído e aprovado na 1ª Convenção Nacional em novembro de 1946, sendo
reformado por mais três vezes, primeiro em 1954 na 5ª Convenção Nacional, ocorrida em Recife-PE, em 1960
na 8ª Convenção, em São Paulo-SP, e posteriormente na 2ª Convenção Nacional Extraordinária, realizada em
Niterói-RJ.
3
Entrevista com o presidente da AECB-SP BARBOSA, Raimundo Paschoal. Entrevista in: Ferraz. São Paulo, 7
de julho de 2001

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as reuniões (muitas vezes alugados) e o trabalho voluntário de alguns veteranos. Poucas foram
as seções que, com o apoio dos governantes, conseguiram locais próprios e estrutura
financeira (FERRAZ, 2003, p. 260), e mesmo quando os benefícios eram adquiridos por leis
ou promessas “politiqueiras” seu comprimento, em muitas das vezes, não era efetivado,
deixando os pracinhas cada vez mais desiludidos.

Assim, em seus primeiros anos sob a liderança dos militantes de esquerda,


algumas seções passaram a adotar práticas diferentes em relação à postura assumida pela
maioria dos veteranos. Em detrimento dessa situação, surge no seio da AECB uma disputa
entre duas práticas de ação pública, de um lado os que compreendiam que a luta pelos
benefícios e direitos dos expedicionários era política e que só obteriam êxito por meio de uma
mobilização constante, sendo dever do ex-combatente opinar e agir nos assuntos do país, não
esperando a caridade das autoridades. Do outro lado, existiam os que não aceitavam essa
prática, se colocando terminantemente contrários a qualquer ação de cunho político,
considerando que a instituição não era o espaço apropriado para essas questões.

Apesar dos estatutos da associação proibirem atividades de cunho político-


partidário de seus associados, o fato é que a política sempre esteve presente nas associações,
abertamente ou não. Assim, segundo o historiador Francisco Ferraz, essas práticas distintas
traziam à tona as duas concepções políticas que se enfrentariam no interior da AECB:

Desta maneira, havia pelo menos duas propostas diferentes para as práticas públicas
da associação. De um lado, uma tendência de esquerda, que era mais contestadora e
que propunha ir além das reivindicações dos problemas específicos dos ex-
combatentes, associando os problemas nacionais aos dos expedicionários. Seu
relacionamento com as autoridades era tenso, não apenas por cobrar
intransigentemente seus direitos e não esperar por favores de governantes e de seus
prepostos, mas, principalmente, porque tais práticas eram largamente associadas, na
cultura política brasileira da época, com o comunismo. Foi justamente neste período,
entre o final da década de 40 e primeira metade da década de 50, que as polarizações
da guerra fria se tornaram mais intensas no Brasil. Reivindicações de expansão dos
direitos políticos, civis e sociais, ou manifestações de cunho nacionalista, que
tivessem o mínimo indício de apoio de grupos de esquerda, eram logo taxadas de
comunistas, subversivas, e seus defensores acusados de “inocentes úteis” (na melhor
hipótese) ou de estarem a “soldo de Moscou” (na pior). Do outro lado, havia o outro
grupo de membros da associação, que era maioria no quadro dos associados, onde as
questões políticas eram deixadas de lado, e o que se discutia e lutava era em torno
das problemáticas dos veteranos, colocando-se por um viés mais conservador,
portanto anticomunista (FERRAZ, 2003, p. 303).

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O embate entre essas duas concepções foi inevitável, principalmente no


período entre 1946 -1950, quando os associados de esquerda ocupavam cargos de lideranças
nas principais seções, como a da Capital Federal (RJ) e São Paulo, sendo essas as duas
principais seções, contando com maior número de membros e também exercendo grande
influência nas tomadas de decisões. A seção fluminense, seguindo a orientação de seus
dirigentes, passa a colocar em prática sua postura de contestação em detrimento da espera de
ajuda das autoridades. Nos meses finais de 1946, encabeçados pela principal seção do Brasil,
a fluminense decide organizar a 1a Convenção Nacional, a fim de ampliar o debate acerca dos
problemas sofridos pelas diferentes associações de veteranos que surgiam espalhadas pelo
território do país, além de somarem forças para pressionar as autoridades, definindo também
uma linha de conduta unificada. Assim, entre os dias 15 e 19 de novembro, na Capital
Federal, acontece o evento que reuniu delegados representantes de seções de vários estados
brasileiros. A disputa entre as duas distintas concepções de se conduzir a associação já
apresentava seus primeiros sinais.

Tentando amenizar as crescentes disputas internas no seio das associações, a


Convenção elegeu como diretores do recém-criado Conselho Nacional veteranos dos dois
lados opostos. A presidência ficou a cargo do cabo de artilharia expedicionária Oswaldo
Gudole Aranha, filho do antigo ministro do governo Vargas, Oswaldo Aranha, um veterano
insuspeito de qualquer aproximação com o comunismo; como vice o escolhido foi o aspirante
a oficial e militante comunista Salomão Malina, o restante da diretoria foi composto de forma
mesclada entre ex-combatentes à direita e à esquerda (FERRAZ, 2003, p. 298). A medida
pouco amenizou os ânimos e muito menos a disputa ideológica e pelo controle da associação,
tanto dentro quanto fora das seções as acusações de subversão e pregações partidárias por
parte dos comunistas continuavam.

Desde a formação das primeiras associações, passando pela 1ª Convenção


Nacional, que concentrou as diferentes seções surgidas aleatoriamente, até a 2ª convenção
realizada na cidade de São Paulo, em 1948, os associados de esquerda dominaram as
diretorias de muitas seções e o Conselho, mesmo sob a desconfiança e rejeição de muitos
veteranos. Dessa maneira, esses militantes organizaram eventos e adotaram posturas que
aproximavam a AECB da política exercida pelo PCB no período. Um exemplo notório dessa
aproximação são os debates ocorridos nas reuniões da associação, acerca de importantes
assuntos que o Partido defendia no cenário nacional; como a questão da reforma agrária, as

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lutas por melhorias na condição dos trabalhadores, passaram a fazer parte do dia a dia das
seções, gerando enorme descontentamento nos setores conservadores da associação. Essas se
transformaram em um efervescente palco de debates políticos. O jornal O EX-Combatente,
editado pela seção carioca, passou a ser o porta voz desses debates e da evidente politização,
deixando claro qual a posição que a direção da associação de veteranos estava tomando em
relação à política do país.

Os setores anticomunistas usaram essa politização para atacar e acusar os


veteranos de esquerda dentro das associações e também por meio da imprensa, alegando que
as associações não eram lugares de política e que essa tentativa, por parte dos comunistas, de
usar a associação para fins partidários, provocava a desagregação dos companheiros e da
causa verdadeira dos veteranos. A pressão não diminuía e a tensão só aumentava, assim, no
final de 1947 um grupo de oficiais militares da ativa, liderados pelo ex-combatente Humberto
Castelo Branco, assustados com a força dos comunistas dentro da AECB, começam a planejar
uma nova organização para os veteranos. Mesmo sendo civil, o presidente do Conselho
Nacional, Oswaldo Aranha, juntamente com o oficial e deputado pelo PCB, Henrique
Cordeiro Oest, foram à reunião realizada para concretizar a nova instituição de veteranos a
fim de convencer os oficiais que tal cisão enfraqueceria a causa dos ex-combatentes. Mesmo
aprovada com uma esmagadora votação, essa nova organização nunca saiu do papel
(DULLES, 1978, p.170-171).

A partir do final de 1947, a ala de esquerda na associação começa a sofrer


duros golpes, tanto da oposição anticomunista na instituição, como da conjuntura interna e
externa do período. Neste ano, a situação internacional sofre alterações, a Guerra Fria entre as
duas maiores potências bélicas e econômicas do planeta, os Estados Unidos da América
(EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), dão início a um longo
período de repressão aos comunistas nos EUA e nos países que a este se alinharam. Essas
transformações terão grande repercussão no âmbito nacional, que se coloca ao lado dos norte-
americanos, provocando uma gradual perseguição aos comunistas brasileiros, que passaram a
ser acusados de estarem a soldo de Moscou. Essas perseguições vão atingir em cheio a
AECB, enfraquecendo os veteranos de esquerda em detrimento da ala conservadora, pois
algumas lideranças desses ex-combatentes foram presos sob pena da Lei de Segurança
Nacional, lei esta que era utilizada pelas autoridades policiais para deter suspeitos de
subversão. Um caso evidente foi à prisão do deputado comunista Gervásio Gomes de

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Azevedo, que também era um dos diretores da seção de ex-combatentes de São Paulo,
causando muita agitação.

O conflito no interior da associação atinge seu extremo quando outro


veterano de esquerda e diretore da AECB-DF, além de membro do Conselho Nacional,
Salomão Malina, é preso por resistir ao fechamento de um jornal comunista4 que dirigia,
também sob pena da Lei de Segurança Nacional. Na principal seção do país, novas eleições
foram necessárias por conta do licenciamento do presidente da associação fluminense e pelo
fato do vice, Salomão Malina, estar incapacitado de assumir sua função por encontrar-se
preso. Em outubro de 1947 uma chapa única apoiada por comunistas e não comunistas lança
Humberto Castelo Branco como presidente e Sampaio de Lacerda como primeiro secretário.
Com apenas uma legenda concorrendo tudo levava a crer que a eleição se desenrolaria apenas
para cumprir os ritos eleitorais estabelecidos pelos regimentos internos da instituição. Porém,
de última hora, o major e deputado recém-cassado do Partido Comunista, Henrique Oest e o
civil e militante comunista Jacob Gorender organizaram uma chapa para concorrer ao pleito,
agravando ainda mais a situação. A chapa de Castelo venceu por uma margem mínima de
votos, 13 votos, presidindo a AECB-DF por quatro meses, dificultando ainda mais as ações
dos veteranos de esquerda, que a partir desse momento começam a se distanciar cada vez
mais do controle da AECB (DULLES, 1978, p. 174).

Ainda em 1947, as pressões políticas em torno da AECB aumentaram e


como consequência o presidente do Conselho Nacional, Oswaldo G. Aranha renunciou,
alegando sua incompatibilidade com as ideias e práticas ocorridas na Associação, referindo-se
às ações dos associados comunistas. Segundo o próprio Aranha, “ficar exercendo sua
presidência seria concorrer oficialmente com a minha indiferença ou aceitação para um ato
que acho errado e funesto ao nosso país” 5. A situação de conflito dentro das associações se
tornou irreversível, tanto na seção da Capital Federal quanto no Conselho Nacional. Em 1948
novas eleições para a seção fluminense são realizadas, tendo como vencedor o grupo
anticomunista liderada pelo coronel Delmiro Pereira de Andrade que presidia a chapa Ação e
União em detrimento da chapa comunista liderada por Henrique Oest.

4
O jornal que Salomão Malina dirigia era o Tribuna Popular na Capital Federal.
5
Carta de Oswaldo G. Aranha ao Conselho Nacional, de 30 de dezembro de 1947, publicado em: Ex-
Combatente. Rio de Janeiro, ano 2, n.13, p.6, jan.1948.

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Em 12 de novembro de 1948 é realizada a 2a Convenção Nacional dos Ex-


Combatentes do Brasil, na qual as distintas concepções de ação se enfrentaram pela última
vez em âmbito nacional. O evento foi acompanhado por oficiais das Forças Armadas,
principalmente do Exército e também por agentes do DOPS-SP, deixando claro o aumento
das pressões em torno dos comunistas e o crescimento da influência externa no interior da
AECB que apoiava os conservadores, a fim de eliminar a ação de subversivos. Mesmo com a
ativa participação dos veteranos à esquerda, que ainda controlavam algumas seções e
possuíam importantes cargos no Conselho Nacional da AECB, a 2a Convenção marca a
derrocada dessa vertente. A forte oposição exercida tanto dentro quanto fora da associação
por parte da ala conservadora, que passa a ser apoiada pelos oficiais da ativa, fortalecem essa
vertente que sai como vitoriosa nas eleições, elegendo maioria não apenas no Conselho, mas
também passando a controlar a maioria das seções, impondo sérias limitações às ações da ala
de esquerda.

Na AECB-SP, no final de 1948, a direção que era composta por comunistas,


cansados do descaso das autoridades, enfraquecidos e pressionados pela vertente de direita,
renunciou coletivamente a seus cargos, em detrimento de uma nova diretoria composta por
oficiais da ativa. Para os conservadores, essa postura os aproximaria dos governantes, o que
traria benefícios a causa dos veteranos (FERRAZ, 2003, p. 279). Para o antigo presidente da
seção paulista, o comunista Raimundo Paschoal Barbosa, os associados, no geral, temiam os
oficiais do Exército e acreditavam que o sucesso da AECB passaria pelo apoio e controle
desses militares, ideia que era reforçada pelo aparente sucesso demonstrado por algumas
seções que tinham em seu comando oficiais das Forças Armadas6. Porém, as esperanças de
uma melhora nas condições dos ex-combatentes foram frustradas, muito pouco, além do que
já havia sido feito, foi conquistado pelos veteranos. Uma das poucas transformações
percebidas foi a mudança nas relações das autoridades com as seções da AECB,
diferentemente da postura anterior, quando muitas seções eram acusadas de comunistas.
Assim, a AECB-SP que em seu início era comandada por veteranos de esquerda, passou a
assumir uma postura de colaboração com os poderes Legislativo e Executivo (FERRAZ,
2003, p. 281).

6
AECB-SP, Livro de Atas de Reuniões da Diretoria. São Paulo, 13 de fevereiro de 1948, n. 2, p.17. O novo
presidente da AECB-SP seria o tenente-coronel José de Souza Carvalho. Ata de Reunião da Diretoria, 20 de
fevereiro de 1948, Livro de atas, p.18.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 673

O golpe final contra os comunistas na AECB foi dado entre 1948 e 1949, na
derrota eleitoral pelo controle da mais influente seção, a do Distrito Federal e na destituição
do então presidente do Conselho Nacional da AECB, Sampaio de Lacerda, comunista, que é
destituído por acusações, de ter apoiado a realização do Congresso da Paz, organizado pelos
comunistas. A partir desse período as lideranças hierárquicas das Forças Armadas
participaram ativamente do processo de “caça aos comunistas”, culminando no progressivo
afastamento dos veteranos das associações. Para Jacob Gorender, soldado da FEB e ativo
participante da ala comunista nas lutas da AECB, as ordens de intervenção nas associações
partiram do próprio Ministério da Guerra: “Foi uma ação mais ou menos concertada. Eles (os
oficiais superiores anticomunistas) tomaram conta das diretorias. Desde então, as associações
de veteranos se tornaram apêndices das Forças Armadas” 7.Vencidos nas eleições do
conselho, perseguidos pelas novas lideranças que eram atreladas a hierarquia militar - com o
embate político, cada vez mais oficiais da ativa começaram a se aproximar das associações
para controlar e afastar os comunistas – e colocados na ilegalidade, os veteranos comunistas
se afastaram das associações, muitos desses veteranos eram vigiados pelo DOPS. Esse
isolamento e afastamento dos veteranos de esquerda ficaram evidentes nas direções seguintes.
No jornal O EX-Combatente a linha editorial se alterou, tornando-se comuns artigos que
enalteciam a nova direção e os altos escalões das Forças Armadas, atacando os ex-
combatentes de esquerda.

Em Fevereiro de 1950, uma nova eleição para a AECB-DF foi realizada


com duas chapas concorrendo ao pleito; a primeira, Ação e União, buscava a reeleição,
apoiada e composta pelos oficiais da ativa, ausentes nos primeiros anos da associação, mas
que por conta do “controle subversivo” que a instituição estava vivendo foram se
aproximando a fim de “salvá-la” do perigo vermelho. A segunda era uma última e
desesperada tentativa da vertente à esquerda de recuperar o controle da maior seção do país, a
chapa Democrática e Independente, comandada pelos veteranos Milton Eloy e Wilson
Carneiro da Silveira. A eleição ocorreu de maneira tranquila, diferente da anterior quando a
disputa política pelo controle da AECB estava em seu auge, tendo a primeira candidata como
vencedora, com uma esmagadora margem de votos, evidenciando qual a postura assumida
pela associação a partir de então8. No Conselho Nacional, os poucos membros da esquerda

7
Entrevista com Jacob Gorender. (FERRAZ, 2003).
8
Texto em: O EX-Combatente Ano 4, p. 2, fev. 1950.

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que restaram9, após a queda de seu presidente em 1949, ficaram cada vez mais isolados e
enfraquecidos, abandonando seus cargos ou sendo destituídos por votações extraordinárias. O
Conselho passou a ser dirigido novamente pelo ex-combatente Oswaldo G. Aranha a partir de
195010.

Os comunistas nunca foram maioria na AECB, muitos ex-combatentes não


se identificavam com as práticas e ações desse grupo, a maioria dos associados sempre
manteve posturas mais conservadoras, ou seja, alinhavam-se à direita nas questões políticas.
O fato de levarem para dentro das associações problemas da nação e vice e versa nunca
agradou a maioria dos associados, pelo contrário, quanto mais se acirrava a disputa por seu
controle, mais os expedicionários alheios a essas questões se afastavam; muitos ex-
combatentes apenas frequentavam aquele espaço a fim de buscar auxílio para suas
dificuldades, fossem elas físicas, psicológicas, financeiras ou até mesmo para desfrutar do
convívio social que o espaço proporcionava. A militância comunista pouco ocultada, de
membros que sempre estiveram em minoria, contribuiu muito para a antipatia dos demais
companheiros. Outra característica primordial nesse distanciamento foi o fato de pouco ter
sido feito por esses comunistas em relação aos ex-combatentes necessitados, mesmo quando
ocupavam as diretorias, não se preocupando em conquistar a maioria silenciosa de afiliados.
Segundo alguns depoimentos, vários ex-combatentes deixaram de frequentar as reuniões e as
associações por não concordarem com as práticas políticas dos dirigentes do Conselho
Nacional e de algumas seções, temendo ainda serem vistos como comunistas11·. Os ex-
combatentes de esquerda se afastaram das atividades dirigentes das associações, uns
voluntariamente, outros forçados pelas perseguições ou por transferências 12; a partir de então,
alguns continuaram frequentando as seções, outros se desligaram, assim nota-se que, após
1950, não se registrou mais nenhum conflito entre esquerda e direita nas associações,
alinhando-se essa cada vez mais com a hierarquia das Forças Armadas, assumindo um viés
conservador de subserviência às autoridades.

9
José Leôncio Pessôa de Andrade é um exemplo desses veteranos à esquerda que ainda compunham o Conselho
Nacional da AECB.
10
Texto em: O EX-Combatente, ano 4, p. 1, Mar. 1950.
11
Entrevista Boris Schnaiderman (FERRAZ, 2001).
12
Documento do DOPS-DF: O Caso de Pedro Paulo de Sampaio Lacerda é um claro caso dessas transferências,
funcionário público do Banco do Brasil foi transferido do Rio de Janeiro para a Capital do Estado do Pará,
Belém, em 1950, por seu envolvimento em ações “comunistas”.

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REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um manifesto elaborado nos campos de batalha. In: PENNA,
Lincoln. (Org.). Manifestos políticos do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: E-Papers,
2008. v. 1, p. 181-201.

DULLES, John W. Foster. Castelo Branco: a caminho da presidência. Rio de Janeiro: J.


Olympio, 1978.

FERRAZ, Francisco César Alves. A guerra que não acabou: a reintegração social dos
veteranos da força expedicionária brasileira, 1945-2000. 2003. Tese (Doutorado em História
Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2003.

SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.

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O FASCISMO NA AMÉRICA DO SUL: INTER-RELAÇÕES ENTRE BRASIL, URUGUAI


E ARGENTINA NA DÉCADA DE 1930

Daniela Moraes de Almeida (História - UEM)

Victor Raoni de Assis Marques (História - UEM)

Orientador: Prof. Dr. João Fábio Bertonha

Palavras Chave: Fascismo, Integralismo, Cone Sul.

INTRODUÇÃO

Após o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o mundo assistiu a uma


guinada política à direita. Durante os anos pós-conflito a democracia liberal perdeu espaço e
movimentos de extrema direita com forte caráter nacionalista se espalharam não só pela
Europa, mas também pelo resto do mundo, principalmente na América do Sul. Com a
ascensão destas forças de extrema-direita, denominadas fascistas, no período entre guerras,
observa-se que a ameaça concreta às “instituições liberais vinham da direita política”
(HOBSBAWM, 1997, p.115).
A América do Sul, fortemente influenciada pelas ideologias europeias, viu germinar
em seus países vários movimentos políticos, que devido as suas características, podem ser
classificados no campo fascista. Esses movimentos atingiram, em primeiro lugar, as
coletividades de imigrantes, como a italiana, a alemã, parte da espanhola e portuguesa
(BERTONHA, 2001 e 2008; DIETRICH, 2007).
No entanto, esses países não viram o surgimento apenas de movimentos fascistas
vinculados a essas colônias de imigrantes. Surgiram também movimentos nacionalistas locais
de caráter fascista, como a Ação Integralista Brasileira (AIB), o maior partido do gênero fora
da Europa, a Liga Patriótica Argentina, a Acción Revisionista del Uruguay, entre outros.
O surgimento desses movimentos nacionalistas de âmbito fascista mereceu diversos
estudos. Na Argentina, conforme Hélgio Trindade (2004), a tradição duradoura de
movimentos nacionalistas, considerados de extrema direita teve grande chance de evoluir para

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o fascismo, em meados da década de 1930. Porém, “o que predominou foi a tradição de


pequenos grupos nacionalistas de caráter militar ou integristas católicos” (TRINDADE, 2004,
p. 22). Ainda assim, o nacionalismo argentino foi classificado como fascista, devido à sua
relação com fontes ideológicas fascistas e seus contatos com grupos e agentes do fascismo
europeu.
No caso do Uruguai, os estudos têm apontado a existência de um movimento fascista
com base na colônia alemã. Trindade acredita que houve uma influência desse movimento
“sobre grupos de extrema-direita nacionais, embora se deva mencionar que o antissemitismo
constitui sua principal bandeira política” (TRINDADE, 2004, p.32).
Hoje, os estudos sobre os vários movimentos fascistas dos países do Cone Sul já
atingiu um considerável nível de desenvolvimento. Um problema dessa produção, contudo,
fica evidente: o seu foco no campo nacional. No caso do Integralismo, por exemplo, já temos
uma boa base informativa sobre suas relações com o fascismo italiano, com o nazismo e
também com grupos de Portugal. As historiografias da Argentina e do Uruguai fizeram, em
maior ou menor grau, o mesmo em seus países. Mesmo assim, ainda há muito a ser feito nessa
área.
Há um tópico, no entanto, em que a lacuna se torna mais acentuada: a visão de um
movimento sobre o outro. Sabemos pouco sobre como os vários grupos se avaliavam e se
relacionavam entre si e o tema é mais do que relevante se queremos conhecer a história da
extrema-direita regional. Nosso foco, porém, é mais específico e visa identificar a visão do
Integralismo sobre seus irmãos de ideias no Cone Sul e, especialmente, a visão destes sobre o
Integralismo e o Brasil. Num momento em que grupos e organizações com ideias semelhantes
às do Integralismo se espalhavam por toda a região, sabemos realmente muito pouco tanto
sobre como eles se viam uns aos outros, como os contatos estabelecidos entre eles, suas
proximidades e contradições.
Desta forma, esse trabalho visa apresentar algumas informações, referentes à
perspectiva que os movimentos fascistas de países do Cone Sul como Argentina e Uruguai
tiveram do Integralismo brasileiro e vice-versa, já obtidas com base na análise das páginas de
jornais integralistas brasileiros, especificamente, o jornal A Offensiva, que circulou no Brasil
entre os anos de 1934 e 1938.

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O CASO ARGENTINO

Assim como foi visto, sabemos que os anos da década de trinta do século passado
foram de extrema agitação política e social no mundo, como os impactos da Crise de 1929, a
ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, a consolidação da Revolução socialista na URSS e
a Guerra Civil espanhola.
No que se refere à Argentina, compreende-se que tais acontecimentos externos
também colaboraram para a eclosão de diversos movimentos radicais no interior de sua
sociedade, causando uma acentuada instabilidade política no país. Desta forma, pode-se
considerar que o período pós-Grande Depressão foi marcado, na Argentina, por um forte
caráter radical, visto que o governo em exercício daquele momento - Hipólito Yrigoyen - não
conseguiu amenizar os problemas trazidos pela crise, causando intensa insatisfação popular e
oportunidade para que um golpe de Estado ocorresse. A partir de 1930, então, com o golpe do
general José Félix Uriburu, o cenário político argentino seria marcado por intensa
conturbação.
Foi sob esta ótica que se desenvolveram na Argentina movimentos similares aos
surgidos na Europa do início do século XX que, com intenso caráter nacionalista, se
aproximaram muito da essência ideológica do fascismo europeu, desencadeando um inédito
processo de extremismo-direitista na sociedade argentina, jamais visto naquele país.
Desde então, se desenvolveria uma importante reação nacionalista contra o sistema
capitalista, visto como o grande mal das sociedades baseadas na democracia-liberal, e
causador dos diversos problemas surgidos naquele país e no mundo, sejam eles de caráter
político, social ou econômico como assinala TRINDADE (2004):
Se o fascismo e o nazismo foram respostas nacionais a uma conjugação de
crises de natureza política, social, econômica, financeira e internacional nos
países capitalistas europeus que tiveram suas democracias liberais
fragilizadas, consideramos possível, apesar das diferenças socioeconômicas,
terem sido criadas condições capazes de viabilizar sua reprodução na
América Latina (TRINDADE, 2004, p.14).

Portanto, entende-se que países da América Latina, que se encontravam em um


adiantado processo de desenvolvimento (o que acabou por resultar em acentuados conflitos
sociais por conta de uma nova adequação social, política, econômica e cultural a essa nova
sociedade que se formava), também apresentaram as mesmas tendências políticas dos países

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da Europa que encontraram no fascismo um meio para combater os males da sociedade


liberal.
Apesar destas considerações, deve-se ressaltar que mesmo tendo surgido algumas
importantes características da ideologia fascista na Argentina como movimentos antiliberais,
antidemocráticos, nacionalistas, reacionários e populistas, alguns estudiosos do assunto como
Linz acreditam que não se desenvolveu neste país nenhum notável partido fascista durante a
década de 1930 (LINZ in TRINDADE, 2004). Esta afirmação, porém, parece ser de certa
forma questionável visto que Deutsch nos apresenta uma vasta obra ressaltando o importante
papel da denominada Liga Patriótica Argentina que, criada em 1919, se estendeu por um
longo período sendo reconhecida como a primeira e mais importante organização
contrarrevolucionária argentina criada nesta época.
Ainda quanto aos grupos de cunho fascista surgidos na Argentina é importante
mencionar que alguns deles se deram em forte comunhão com os movimentos fascistas e
nazistas europeus por meio da intensa imigração alemã e italiana da época, proporcionando o
dinamismo do movimento. Porém, embora esta relação internacional tenha se dado, isso não
impediu a eclosão de órgãos fascistas nacionais autônomos (TRINDADE, 2004).
Um importante aspecto que cabe aqui ser discutido relaciona-se à ascensão da
chamada extrema-direita ao poder na conjuntura política de muitos países, sejam eles
pertencentes à Europa ou à América Latina. Essa característica foi um relevante traço do
período entre guerras praticamente no mundo todo, e isso se deveu, principalmente, às
situações extremas causadas pela Primeira Guerra Mundial.
Este fenômeno visou, fundamentalmente, a reparar os resultados catastróficos
ocasionados pela Grande Guerra, e principalmente, a combater as várias formas de
esquerdismo, tidas como frutos deste turbulento fato político. Assim, desenvolveu-se em um
vasto cenário internacional bem como na Argentina, este intenso movimento que tinha como
metas combater o liberalismo e os grandes males causados por este como o comunismo, o
anarquismo, a democracia e um governo fraco incapaz de guiar uma grande nação.
A Argentina assistiu, mais enfaticamente, a essa guinada política para a direita após
o conturbado período de manifestações populares que desembocaram em 1919 com a
chamada Semana Trágica, em que muitos trabalhadores argentinos clamaram por seus direitos
por meio de atos radicais, causando grande temor aos setores conservadores da sociedade que,
já atentos para a “ameaça vermelha”, deram início à formação da chamada Liga Patriótica

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Argentina, reconhecida como a primeira organização antiesquerdista e antiobreira na época


(DEUTSCH, 2003).
Ainda mais especificamente neste país, como explica Deutsch, o movimento da
extrema-direita esteve relacionado, também, com o âmbito religioso por meio do apoio do
setor católico da sociedade que colaborou com o movimento através de um respaldo moral, já
que via na subordinação social, aliada às novas ideias conservadoras baseadas em uma
ideologia de caráter fascista, uma forma de se transformar a sociedade argentina e introduzi-la
nos moldes de uma nação contrária a democracia-liberal e baseada em um forte espírito
nacionalista.
Assim, no que se refere às mais variadas características do movimento
contrarrevolucionário argentino, deve se ressaltar o importante papel desempenhado pelo
nacionalismo. De acordo com os grandes líderes que estavam à frente de tal movimento, a
ênfase ao nacionalismo era um ponto essencial para sustentar a causa que defendiam e
também principal responsável por seu sucesso, assim como podemos ver em Deutsch:
(...) hay otra cuestión aún que ilustra la importancia de la contrarrevolución
en la Argentina. (…) los contrarrevolucionarios argentinos lograron
convencer a la mayor parte de sus conciudadanos de que ellos eran los
únicos que debían ser identificados con la causa de la autonomía nacional
frente a la dominación extranjera. Por esta razón, los especialistas se han
referido generalmente a ellos como “los nacionalistas”. El hecho de haberse
apropiado del término también demuestra su fuerza (DEUTSCH, 2003, p.
12, 13).

Assim como Deutsch, Beired também ressalta a importância do ideal nacionalista ao


afirmar em sua obra que houve tanto no Brasil como na Argentina, e em demais países, a
eclosão de um movimento político ultra-direitista, no período entre guerras, que teve
embasamento em ideais nacionalistas e antiliberais aliados a um ascendente e forte
autoritarismo. Este novo modelo político, surgido em consequência do desabamento da velha
ordem liberal com a crise de 1929, inspirou-se em traços da extrema-direita ideologicamente
fascista para disputar com a extrema-esquerda comunista as rédeas da “nova ordem” mundial.
Este nacionalismo de caráter autoritário foi de grande relevância para a consolidação
da extrema-direita nos vários países. No entanto, apesar dos benefícios, essa característica
nacionalista também trouxe dificuldades ao grupo, visto que houve, devido à sua própria
essência, dificuldades de integração com os demais movimentos nacionalistas identificados
com o ideal fascista e espalhados por toda a América Latina.

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Ainda nesta linha de pensamento, é importante destacar que, a partir da análise de


obras de Beired e Deutsch, apesar destas especificidades locais, os vários países simpatizantes
ao ideal da direita radical em expansão não estavam isolados e até mesmo se uniam entre si
com vistas a consolidar o movimento considerado um bem comum entre todos. Desta forma,
pode-se afirmar que um clima antiliberal, em favor de um Estado autoritário e do
corporativismo neste período assolou grande parte dos países na América Latina como Brasil,
Argentina, Uruguai, Peru e Chile.
Para comprovar esta relação amistosa entre os vários países que aderiram ao
movimento contrarrevolucionário, utilizaremos algumas informações que nos chegam através
da bibliografia sobre o assunto, jornais ou até mesmo do próprio arquivo pessoal de Plínio
Salgado (líder do movimento integralista no Brasil) e que demonstram um intenso contato
entre o Integralismo e movimentos como, por exemplo, a Bandera Argentina, a Legión Civica
Argentina, entre outros. Portanto, se as relações internacionais entre os vários movimentos
podem ser consideradas tensas em determinados momentos, há de se aceitar também que elas
eram próximas e cordiais.
Assim como nos apresenta Deutsch, a Liga Patriótica Argentina, por exemplo, foi
muito ativa na busca de contatos internacionais, mantendo contatos com entidades similares
na Suíça, em Portugal, no Chile, nos Estados Unidos e demais países (DEUTSCH, 2002).
Outro interessante exemplo desse aspecto da relação entre os países da América
Latina pode ser encontrado no nº 46 do segundo ano do jornal integralista A Offensiva
referente ao dia 30 de março de 1935. Nele, é apontada uma reportagem do jornal nacionalista
argentino Crisol em que fica clara a afetuosa relação política e ideológica dos movimentos
contrarrevolucionários entre países como a Argentina e o Brasil:
(...) Recebemos ontem em nossa casa a grata visita do chefe da Embaixada
Nacionalista Brasileira, Sr. Herberto Dutra, desde alguns dias hospede da
Argentina. Acompanhavam o chefe da Delegação Integralista Brasileira
vários animadores em destaque do nosso nacionalismo. O fim da visita a
“Crisol” foi conhecer o ambiente e as pessoas, bem como trazer as saudações
do nacionalismo brasileiro, que surge vigoroso e pujante com características
bem definidas anti-liberal, anti-político, anti-marxista, patriota, integral em
tudo e cheio de fé nas verdades eternas. (...) O companheiro que nos visitou
conversou longamente com os amigos de “Crisol”, interessando-se por este
jornal, que já conhecia e ao qual dirigiu palavras elogiosas e afetuosas. Teve
expressões da mesma nobreza para o nacionalismo argentino que já
apreciava de hoje e cujo contato ora lhe era permitido (A Offensiva,
30.03.1935, p.4).

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Pode-se apontar, ainda, como sinal da boa relação entre estes movimentos,
informações, relacionadas à questão do antissemitismo nestas nações encontradas, no nº101
do segundo ano deste mesmo jornal, referente ao dia 09 de fevereiro de 1936:
No continente sul-americano, não foi somente o Brasil que despertou diante
do perigo do judaísmo. A Argentina também está acordando. (...)Deus livre
ao Brasil e a Argentina da instalação desse fermento em volta do Iguassú!
Argentina e Brasil não têm mais razões para rivalidades. Devem se respeitar
e amar reciprocamente como estão fazendo. Um Brasil Integral e uma
Argentina Integral serão garantias da libertação da América das garras do
judaísmo. (A Offensiva, 09.02.1936, p.10 - Judaísmo Internacional: O anti-
semitismo na Argentina, por João do Norte).

Informações como estas, entre outras, como ainda uma reportagem referente ao
poderio bélico de ambos os países e de uma possível aliança, ou ainda às estadias de
importantes nomes do poder argentino no Brasil nesta época, nos levam a crer o quão
próximos eram e o quão cordial era sua relação.

O CASO URUGUAIO

O Uruguai, assim como a Argentina, vivia um clima político de instabilidade no


início da década de trinta, e é claro que os acontecimentos exteriores exerceram grande
influência na conjuntura interna. O país possuía uma tradição democrática liberal mais
consolidada, diferente do Brasil do período e, assim, de forma democrática, tomou posse no
dia 1º de Março de 1931, o advogado Gabriel Terra como Presidente da República. Em 31 de
março de 1933, contudo, Terra efetua um golpe de Estado, apoiado por setores conservadores
da sociedade uruguaia, com a intenção de promulgar uma nova Constituição para o país.
Durante esse período “Terrista”, que vai de 1933 a 1938, diversas organizações
nacionalistas de caráter fascista se desenvolveram no país, não apenas dentro das colônias
alemãs e italianas, muito embora a seção do partido nazista no Uruguai tenha sido criada em
1931, antes mesmo de Hitler assumir o poder na Alemanha. Terra não escondia de ninguém
sua simpatia com os regimes fascistas europeus e autores como Miguel Feldman defendem
que: “Bajo su mandato las ideologias del fascismo europeo encontraron suficiente
benevolencia y espacio como para difundirse en la sociedade uruguaya” (FELDMAN, 2000,
P. 14).
Posição muito próxima à expressada por Maria Magdalena Camou:

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En nuestro país, durante el gobierno de Terra, alentados por las


indisimuladas simpatías que éste profesa a los regímenes alemán e italiano,
surgen y se expresan grupos nacionales y extranjeros identificados con las
nuevas doctrinas europeas (CAMOU, 2000, p.31).

É importante ressaltar, neste contexto, o papel do antissemitismo na sociedade


uruguaia como possível fio condutor de uma melhor aceitação das teorias fascistas. No
Uruguai, a lei de 1890, sobre imigração, dava condições de entrada no país para os judeus – e
para demais povos – que quisessem ir ao Uruguai com a disposição de trabalhar. Nesse
período, o antissemitismo, que já tinha bases consolidadas via catolicismo, também passa a ter
o caráter de imputação aos judeus dos males da vida moderna e dos problemas sociais
causados pela industrialização.
Desta forma, surgiram diversos periódicos antissemitas no país, alguns de
organizações de cunho, claramente, fascista como o jornal Corporaciones editado pela
Acción Revisionista del Uruguay, El Orden, ou Frágua além de outros como La Tribuna
Popular, El Bien Público, Audácia ou Atención que é de agosto de 1938, ou seja, depois que
Terra deixou o governo. Ainda se sabe pouco sobre a forma de financiamento e influencia que
esses e outros periódicos tiveram na sociedade uruguaia. Sabe-se, porém que no jornal
Corporaciones eram publicados textos de Plínio Salgado e Gustavo Barroso, inclusive o
“Manifesto de Outubro”. Havia sem dúvida uma reciprocidade. Gustavo Barroso em um texto
publicado em A Offensiva no dia 27 de fevereiro de 1936, traz os comentários tecidos pelos
editores deste jornal uruguaio ao Manifesto de Outubro:
(…) página bella, hondamente humana y más hondamente sentida,
‘Corporaciones’ honra sus columnas dando cabida en ellas al vibrante
manifestó con que Plínio Salgado se dirigiera a la juventud de su patria,
haciendo un llamado a las mamas incontaminadas por la baja politiquería,
como así mismo por las tendencias disolventes que caracterizan ciertos
movimientos extremistas, reclamando la unión de todos los hijos de la gran
Democracia Norteña para que el Brasil sea, en aras del principio corporativo,
la antorcha que en unión de sus hermanas de América, ilumine al mundo en
las oscuras horas que vivimos (A Offensiva, 27.02.1936, pg. 2 - O
Integralismo e a Opinião Mundial. Gustavo Barroso, especial para A
Offensiva).

O governo de Gabriel Terra endureceu muito a sua política de imigração em relação


aos judeus. Em 1932 – quando ainda era presidente constitucional – foi promulgada uma lei
que dificultava a imigração por um período breve, o que nesse contexto, poderia ter relação
com os resultados que a Crise de 1929 produziu no país. Mas, depois do golpe de Estado, o
governo procurou transferir a questão da imigração para o Ministério da Guerra e Marinha,

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uma postura que parece deixar clara a posição deste em relação à imigração. Apesar disso, só
em 1936, é que a política acerca deste assunto foi delimitada com mais clareza, com a
aprovação da Lei de Indesejáveis, que impedia a imigração judia, bem como de militantes de
esquerda, e também a lei que proibia o uso de idiomas estrangeiros – exceto aqueles
ensinados pelo Estado – em publicações e periódicos. Essas atitudes do governo de Gabriel
Terra podem denunciar um crescente antissemitismo na sociedade uruguaia e principalmente
um caráter anticomunista, antiliberal e de simpatia com as políticas fascistas. Para Aldrighi,
no entanto, o antissemitismo ficou restrito a uma parte da sociedade:
(…) el antisemitismo no encontró en Uruguay la posibilidad de volverse
movimiento de masas. Inspiró las definiciones programáticas de grupos
políticos de escaso peso, filonazis o filofascistas, como Acción Revisionista
del Uruguay, Acción Nacional, Asociación de la Juventud Patriótica del
Uruguay y Movimiento Revisionista (ALDRIGHI, 2000, p. 132).

Feldman vai além desta interpretação, e questiona a intenção dessa política de


imigração destinada aos judeus no governo Terra:
Esta actitud hostil al extranjero y especialmente al judío, ¿era simplemente
xenofobia y antisemitismo? ¿O era además una forma de complacer a una
Alemania nazi cuyo gobierno compraba materias primas a Uruguay,
beneficiando a los estancieros representados en el gobierno por los partidos
golpistas en 1933?(FELDMAN, 2000, pg. 26)

Certo é que a política de imigração não mudou no governo do General Alfredo


Baldomir que assumiu a presidência em junho de 1938.
Mas até que ponto o golpe de 1933, as políticas conservadoras do governo Terra, a
sua aproximação com os governos fascistas europeus, o antissemitismo presente em setores
da sociedade uruguaia influenciaram na organização e expansão dos movimentos fascistas e
antifascistas no país? Em relação ao Brasil, quais as similitudes e diferenças com as políticas
adotadas por Getúlio Vargas e até que ponto os dois governos influenciaram na presença de
movimentos fascistas nos países, tanto nacionais, quanto de colônias alemãs e italianas? Em
que diz respeito às comunidades italianas nos dois países, Bertonha aponta que o antifascismo
teve maior êxito no Uruguai do que no Brasil, devido há alguns fatores como o tipo de
imigração e a cultura política nesse país (BERTONHA, 2008).
Mesmo assim, as ações do governo do Presidente Terra parecem apontar para uma
perspectiva que, sob seu governo, os movimentos fascistas tiveram bastante liberdade para se
organizar. As sinalizações de Terra eram bem claras e evidentes. Em 1935 rompe relações
diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e em 1936 reconhece

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a Espanha franquista. Em relação ao rompimento com a URSS, o jornal “A Offensiva” deu


bastante ênfase e apoio ao governo uruguaio e aos movimentos fascistas locais que apoiaram
e cobraram essa iniciativa do Governo Terra.
Nesse contexto é importante perceber que há evidências também de uma boa relação
com o governo de Getúlio Vargas. Em 1931, os dois países selaram um acordo alfandegário.
Em meados da década de trinta tanto Getúlio visitou o Uruguai, quanto Terra visitou o Brasil.
Essas visitas e acordos além dos interesses econômicos “também expressava a convergência
política quanto às práticas autoritárias e centralizadoras adotadas pelos dois governos”
(RANGEL, 2005, p.4). Podemos perceber inúmeras ações de amizade entre os dois governos,
principalmente no início de 1936, ações essas apoiadas pelos integralistas e retratadas em seus
periódicos.
Esse momento foi um dos momentos de melhor aceitação do movimento Integralista
a Ditadura do Presidente Terra. Mostrava-se o apoio à política de aliança com aquele país e
com a política internacional praticada pelo Uruguai, tendo em vista que o Presidente Terra
sofreu algumas críticas do movimento Integralista um ano antes, principalmente por não estar
levando o país para o caminho que esperavam e proporcionando chances para insurreições
“comunistas” como apontado no Jornal A Offensiva de 7 de Fevereiro de 1935:
Mas, apresentando-se como profundamente inferior a essa missão, o governo
do sr. Gabriel Terra não tem feito ju’s ao que dele esperava. Em vez de
encetar um programa nacional continuou a agir de acordo com as anteriores
normas partidárias (A Offensiva, 07.02.1935, p. 9).

Dentro das colônias alemãs a adesão ao nacional-socialismo foi bastante grande e de


forma espontânea. Feldman acredita que “(…) la mayor parte de la colectividad de ese origen
adhirió al nacionalsocialismo (…)” (FELDMAN, 2000, P.14). Fora das colônias alemãs, o
fascismo se espalhou por grupos nacionalistas uruguaios. O primeiro deles foi a Organización
Patriótica del Uruguay fundada ainda no ano de 1929. Nos anos trinta surgiu a Acción
Revisionista del Uruguay, grupo responsável pelo jornal Corporaciones que foi, sem dúvida,
o principal canal de relações entre o movimento Integralista e o movimento fascista uruguaio.
Sendo assim, é possível ver referências ao jornal Corporaciones dentro da
publicação integralista, bem como também podemos notar citações elogiosas ao país vizinho.
O movimento corporativista uruguaio parecia se espelhar no irmão maior do norte. Mas, até
que ponto? Uma questão importante dentro das relações internacionais entre o Integralismo e
os movimentos fascistas uruguaios.

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CONCLUSÃO

Baseando-se na análise apresentada podemos concluir que fica evidente uma


acalorada relação política entre os países citados. Em muitas questões verifica-se a união de
ideias referentes aos novos rumos de seus governos e principalmente às suas aspirações de
cunho fascista.
Ainda assim, muitos detalhes dessas relações se abrem. No caso da Argentina, por
exemplo, que tipo de relações esses grupos argentinos tinham com os de outros países, como
o Brasil? Sabemos que as atividades e ações do Integralismo brasileiro eram notícia na
Argentina e o oposto também é verdade, ainda que pesquisas detalhadas nos jornais desses
grupos ainda sejam incipientes.
Seria aceitável acreditar que esses grupos viam o Integralismo com suspeita?
Achavam que poderia ser uma ameaça em um futuro em que estes países se tornariam
fascistas? Plínio Salgado chegou a escrever em alguns dos seus livros da época, que a
América Latina estaria destinada a se unir em uma confederação de Estados integralistas,
ainda que nunca tenha definido como isso poderia se tornar realidade.
Como esse tipo de afirmação repercutia nos grupos argentinos e uruguaios? Havia
algum tipo de solidariedade entre esses movimentos? Aparentemente sim. No caso uruguaio,
por exemplo, O fato de o jornal Corporaciones publicar o Manifesto de Outubro e outros
textos de Gustavo Barroso e Plínio Salgado contribuem para uma visão solidária. Sem
dúvidas, sentimentos anticomunistas, antiliberais e nacionalistas são traços comuns entre eles.
Mas justamente esse último, também pode os separar. Como define Bertonha sobre o tema:
(...) os diferentes fascismos formavam uma unidade, mas dentro da qual
havia espaço para imensas diversidades e projetos de mundo diversos
(gerando competição e conflito) e que justamente um de seus traços comuns
– o nacionalismo exacerbado – fornecia o elemento que impedia a
solidariedade completa entre eles (BERTONHA, 2008, p. 85).

Assim sendo, esse trabalho pretendeu, prioritariamente neste primeiro momento,


analisar as relações existentes entre esses diversos grupos (fascistas ou próximos ao fascismo)
existentes nos países elencados e a AIB, enfatizando as visões que existiam em ambos os
lados e procurando contribuir para trazer a tona essa vertente da história do fascismo mundial
ainda pouco estudada, entendendo-o numa transnacionalidade que o marcou e que a
historiografia sobre o assunto ainda inicia.

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BIBLIOGRAFIA
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nº107, 27 fev.1936.

ALDRIGHI, Clara; CAMOU, María Magdalena; FELDMAN, Miguel; ABEND, Gabriel.


Antisemitismo en Uruguay: Raíces. Discursos, imágenes (1870-1940). Montevideo:
EdicionesTrilce, 2000.

BEIRED, José LuisBendicho. Sob o Signo da Nova Ordem: intelectuais autoritários no


Brasil e na Argentina (1914-1945). São Paulo: Edições Loyola, 1999.

BERTONHA, João Fábio. A construção da memória através de um acervo pessoal: o caso


do fundo Plínio Salgado em Rio Claro. Unesp – FCLAs – CEDAP, v.3, n.1, 2007, p. 121.
Acesso em: 16 ago. 2011 às 23h45. Disponível em:
<http://www.assis.unesp.br/cedap/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v3.n1/
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_______,Sobre a Direita: Estudos sobre fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá:


EDUEM, 2008.

_______,Um Império italiano na América Latina? Imigrantes, fascistas e a política


externa “paralela” de Mussolini, manuscrito.

DIETRICH, Ana Maria. Porta vozes de Hitler (in) Revista de História da Biblioteca
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DEUTSCH, Sandra Mcgree. Las derechas: The extreme right in Argentina, Brazil, and
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________, Contrarrevolución en la Argentina – 1900-1932: La Liga Patriótica


Argentina. 1ª ed. – Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.

HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

MILMAN, Luis; VIZENTINI, Paulo Fagundes (orgs.). Neonazismo, negacionismo e


extremismo político. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2000.

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Getúlio Vargas (1930-1938), 2005. Acesso em 01º de Setembro de 2011 às 09h22.
Disponível em: <http://www.fee.tche.br/sitefee/download/jornadas/2/h2-04.pdf>.

TRINDADE, Helgio. Irmãos caçulas de Adolf e Benito.Rio de Janeiro, RJ, 2010. Revista de
História da Biblioteca Nacional, ano 6, Nº 61, p. 26-27, Outubro 2010, entrevista concedida a
Marcello Scarrone.

_______,O nazi-fascismo na América Latina: mito e realidade. Porto Alegre: Editora da


UFRGS, 2004.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 688

EXPERIÊNCIAS DE MILITANTES PETISTAS DE SANTA HELENA-PR (1980-2012):


MEMÓRIAS E SIGNIFICADOS.

Diná Schmidt (PPGH em História - UNIOESTE)

Orientadora Professora Drª. Geni Rosa Duarte

Palavras-chave: militantes petistas; experiências; Santa Helena.

Este texto dialoga com a comunicação, do mesmo título, preparada para o XIII
Encontro Estadual Anpuh-PR. O objetivo de ambos reside em expor para o debate com os
pares as considerações iniciais sobre minha pesquisa de mestrado, com enfoque nas reflexões
teóricas e metodológicas construídas em diálogo com as disciplinas do primeiro semestre de
curso.

A pesquisa aqui esboçada tem por objetivo compreender e problematizar as trajetórias


de membros do Partido Trabalhadores (PT) do município de Santa Helena, localizado no
extremo Oeste do Paraná, as margens do Lago de Itaipu, entre 1980 e 2012. A partir da
realização de entrevistas orais, busco perceber através das narrativas desses sujeitos o impacto
de suas experiências como militantes em suas trajetórias de vida. Observando como
ressignificam em suas memórias os caminhos percorridos na militância e nos cruzamentos
destes caminhos com outras dimensões de suas vidas, como a pessoal e profissional.

O interesse por esse objeto dialoga com o atual momento histórico, no qual o Partido
dos Trabalhadores atingiu, em âmbito nacional, uma projeção significativa a partir da
conquista da presidência da república nas últimas três eleições (2002, 2006 e 2010). Dialoga-
se com a perspectiva de que essa projeção tem se dado em três direções: a institucional,
projetando o Partido; em torno de membros com maior visibilidade pública a partir de postos

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assumidos no governo petista; e em torno do ex-presidente Lula, com a construção de um


mito pessoal em torno de sua trajetória.
Sem negar a importância de discutir esses três eixos, a proposta desta pesquisa é
colocar em pauta as trajetórias de pessoas que contribuíram para a construção e ascensão do
partido e do projeto petista, mas não ganharam projeção política, social ou em trabalhos
acadêmicos. Assim, este trabalho se constrói na aspiração de compreender e problematizar um
objeto que ainda não possui grande inserção acadêmica, apesar de dizer respeito à trajetória de
muitos homens e mulheres.

O andamento da pesquisa tem indicado dois caminhos prévios, que se coadunam, para
a reflexão sobre o objeto. Primeiro, de que a formação do Partido dos Trabalhadores em Santa
Helena, e a inserção de seus membros, fundadores ou não, se deram através de diversos
movimentos sociais que dialogavam com as pautas colocadas na região. A segunda
proposição dialoga com a possibilidade de que as trajetórias do Partido e dos militantes têm
sido avaliadas no presente, dentro do contexto municipal, não a partir dos resultados obtidos
nos pleitos eleitorais, mas a partir de múltiplas inserções que o Partido e seus membros
tiveram em demandas e movimentações populares locais.

A opção pela produção de narrativas a partir da história oral está diretamente ligada às
características do objeto de pesquisa. Ao buscar compreender e problematizar as experiências
e os significados que os sujeitos constroem em torno delas, documentos burocráticos do
Partido, materiais de campanhas eleitorais ou documentos do Fórum Eleitoral não seriam
satisfatórios. Embora atendam a outras questões, essas fontes não poderiam atender aos meus
objetivos com tanta propriedade quanto as narrativas orais. Portanto, a escolha das fontes a
serem utilizadas está diretamente ligada ao problema que orienta a pesquisa.

É preciso lembrar que a escolha de fontes, seja qual for sua categoria ou linguagem,
nunca é um processo natural ou neutro, sendo sempre permeado por escolhas e juízos do
pesquisador. Tratando das fontes orais, Alessandro Portelli nos adverte para suas
peculiaridades, com implicações tanto acadêmicas quanto política, inerentes a essa escolha:

A primeira coisa que torna a história oral diferente, portanto, é aquela que
nos conta menos sobre eventos que sobre significados. Isso n ao implica que
a história oral não tenha validade factual. Entrevistas sempre revelam
eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos:

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elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das
classes não hegemônicas.1

Outra peculiaridade a que se refere Portelli diz respeito a quem tem a oportunidade de
falar a partir da história oral, ou talvez, seja mais apropriado dizer a quem temos a
oportunidade de ouvir a partir da história oral. Já que todo sujeito está constantemente
construindo seu presente, e a partir dele reconstruindo seu passado, independente de estarmos
lá pra ouvir e observar ou não. Neste ponto residem, de maneira mais enfática, as implicações
políticas de fazer história oral.

Alessandro Portelli chama a atenção para essa característica ao definir quem são os
sujeitos históricos que têm oportunidade de falar, e serem ouvidos pelos historiadores, a partir
da historia oral:

A história oral não reside onde as classes operárias falem pro si próprias. A
afirmação contrária, naturalmente não seria totalmente infundada: o relato de
uma greve nas palavras e memórias de trabalhadores, ao invés daquelas da
policia e da (sempre inamistosa) imprensa, obviamente ajuda (embora não
automaticamente) a equilibrar a distorção implícita naquelas fontes. Fontes
orais são condições necessárias (não suficiente) para a história das classes
não hegemônicas, elas são menos necessárias (embora de modo nenhum
inúteis) para a história das classes dominantes, que têm tido controle sobre a
escrita e deixaram atrás de si um registro escrito muito mais abundante.2

Portanto, a escolha da história oral também está relacionada com a opção de ouvir,
como frisei na justificativa, aqueles para quem, até agora, a História tem feito ouvidos
moucos. Protagonistas de um processo histórico de grande importância na conjuntura
histórica atual do país, mas que têm sido deixados nos bastidores em função de uma ênfase
naqueles que podem se fazer ouvir por outros meios, e em alto e melhor som.

A consciência de que a opção pela História Oral tem implicações científicas e políticas
que nascem da arbitrariedade da construção desta escolha, mantém esta pesquisadora sobre
aviso. Tanto em relação aos cuidados que se fazem necessários para não cair em armadilhas
apresentadas pelas fontes, quanto para atingir com a maior plenitude possível as
possibilidades oferecidas pelas narrativas.

1
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, n. 14, Educ – Editora da
PUC-SP, São Paulo, fev. 1997a. Pg. 31.
2
Ibidem. Pg.37.

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Embora, como frisei a cima, compartilhe da premissa de que todo sujeito está
constantemente (re)organizando seu passado, independente de nós historiadores estarmos lá
para ver e ouvir, é preciso registrar que a partir do momento em que nos fazemos presente
esse processo ganha mais uma variável. Como advertem Portelli3 e Khoury4, a entrevista é
sempre um encontro. Um encontro entre sujeitos que ocupam determinados lugares sociais e
políticos, imbuídos de uma experiência histórica e subjetividade que lhes são próprias. No
processo de produção da entrevista, o diálogo se constrói por meio dessas variáveis. Assim, o
entrevistado organiza sua narrativa, articulando experiências e memórias, também em função
daquilo que ele quer dizer para seu interlocutor, do que ele acha que o interlocutor sabe e quer
saber.

Outra aproximação no campo teórico-metodológico tem se dado com as discussões da


História de Gênero. O descaso com as mulheres e com uma abordagem de Gênero tem sido
uma recorrência na História da esquerda brasileira. Os discursos e imagens usuais, difundidos
na mídia e no imaginário social, dão contam de uma representação masculinizada da atuação
militante, sobremaneira na esquerda. Na academia a lógica não se inverte. Há uma
predominância, nos trabalhos que buscam contemplar problemáticas relacionadas à militância
em movimentos e partidos, de recortes e perspectivas que concentram suas atenções nos
atores masculinos.

Habitualmente, dois motivos são mapeados como causadores dessa situação. 5 O


primeiro é identificado com a presença numérica menor das mulheres na atividade militante.
O outro, que é considerado mais relevante que o primeiro, está relacionado com as
representações e relações de poder cristalizadas na sociedade acerca das identidades de
gênero. De acordo com estas, a mulher seria menos apta a atuar na esfera pública e política,
dimensões que se confundem.

A confrontação com esse problema motivou a reflexão sobre sua presença dentro de
meu objeto de pesquisa. Embora a execução da pesquisa já previsse o diálogo com mulheres e

3
Ibidem. Pg.8.
4
KHOURY, Yara Aun. Historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: MACIEL, L. A.; ALMEIDA, P.
R.; KHOURY, Y. A. (Org.) Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’Água, 2006.
5
DUARTE, A. R. F. Memórias em Disputa e Jogos de Gênero: O Movimento Feminino pela Anistia no Ceará
(1976-1979). 2009. 199f. Tese (Doutorado em História). PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina-
UFSC, Florianópolis, 2009.

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homens, não estava colocada a dimensão da questão dentro do plano historiográfico e nem
mesmo as implicações de refletir sobre as narrativas a partir de posições de gênero.

No que diz respeito ao plano historiográfico, a colocação deste problema abre um


compromisso ético. Exige o reconhecimento da relevância das experiências das mulheres,
percebendo-as em um patamar equiparado com a experiência dos homens, embora dialoguem
com referências diferentes. Considerando que estas são sempre historicamente produzidas, e
não inatas a um ou outro gênero.

Em relação aos compromissos teórico-metodológicos implicados ao pensar questões


de gênero, Duarte, por exemplo, possibilita discutir a posição da mulher na atuação política a
partir da problemática entre público e privado. Em suas palavras:

Tomada sob o viés do gênero, a dicotomia público-privado é utilizada ainda


hoje para explicar a ação de homens e mulheres da sociedade ocidental.
Nessa metáfora, espaço privado, como lugar de mulheres, e espaço público
como lugar de homens, são vistos separados e pouco intercambiáveis. As
mulheres, restritas ao espaço do privado, o que reforça os limites do
confinamento social histórico. A política é, pois o domínio do homem e das
questões do masculino.6

Essa definição das posições de gênero, engendrada por relações de poder e também
constituidora delas, nega às mulheres o direito de participar do que é usualmente tido como
político. Por outro lado, também recusa ao que tradicionalmente é tido como ações de
mulheres, a titulação de político, colocando-as na esfera da solidariedade e do cuidado
maternal.

Ao dissertar sobre movimentações de mulheres que enfrentaram o Regime Ditatorial


Civil-Militar, Duarte reflete sobre a imagem atribuída a essas ações com base nesses
paradigmas. Usando como exemplo a luta da estilista Zuzu Angel, mostra como a vinculação
de sua ação à imagem de mãe em defesa “natural” do filho foi usada para desacreditar seu
pleito enquanto político e de interesse público.

Essa deslegitimação, a partir de representações de gênero, é articulada como parte das


relações de poder entre Estado e sociedade, na qual o primeiro almeja desmantelar iniciativas
que colocassem em risco sua hegemonia. Essa relação coaduna-se com o fundamento, caro à

6
DUARTE. Op. Cit., p. 97.

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História de Gênero, de que posições e identificações de gênero estão intrinsecamente ligadas a


relações de poder.

Em um contraponto complementar, a autora mostra, em suas análises sobre o MFPA7,


como as mulheres são capazes de rearticular as representações usuais de gênero como
instrumentos de luta em favor de seus pleitos. A partir da categoria de “jogos de gênero”,
tomada do diálogo com Luc Capdevila, Duarte investiga as formas como as mulheres do
movimento usam da representação tradicional da mulher como incapaz de pensar e agir
politicamente para se colocarem como inofensivas ao regime, e assim poderem agir com mais
liberdade frente à repressão.

A postura da autora, de mostrar o movimento dos dois atores sociais em questão,


indica, sobretudo, que pensar sob as orientações da História de Gênero é pensar em termos de
relação e conflito.

Partindo desses referenciais abrem-se possibilidades para pensar questões que estão
colocadas no diálogo com militantes mulheres que compõem minha pesquisa. Suas trajetórias
perpassam diversas esferas de atuação que imbricam o social e o político. Muitas dessas
mulheres, além de serem militantes petistas, participam de entidades religiosas voltadas à
assistência social, pastorais, associações escolares, clubes de mães, sindicatos e associações
de categorias profissionais, movimentos ligados a agroecologia e etc.

A multiplicidade de pleitos em que estas mulheres estão envolvidas extrapola as


fronteiras tradicionalmente estabelecidas entre questões públicas e privadas, políticas e
apolíticas. A priori essa constatação indica a validade da necessidade de romper com esses
limites, como propõe a História de Gênero, para pensar a experiência dessas mulheres. Em
um passo muito mais complexo, que só pode ser esboçado neste momento, tais inflexões
sobre público e privado fornecem amparo teórico para pensar como essas mulheres elaboram
esse leque de atuações em suas experiências e memórias.

7
O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) foi fundado em São Paulo em 1975 pela advogada Therezinha
Godoy Zerbini e ganhou filiais em outros estados, como no Ceará em 1976. O objetivo do Movimento era
reivindicar a anistia dos presos políticos do Regime Civil-Militar e dar apoio aos familiares daqueles que se
encontravam nessa situação.

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As discussões estabelecidas no campo da História, com o objetivo de superar a


deficiência em relação às problemáticas de gênero, receberam grande contribuição da História
Oral, ao passo que também contribuíram para o amadurecimento desta. Em seu texto
“Memórias de gênero: reflexões sobre a história oral de mulheres”, Anita Salvatici (2005)
indica as proximidades entre esses dois campos:

Desde os seus primórdios, a história oral e a história das mulheres têm


mostrado significativas similitudes em seus propósitos e objetivos, bem
como em seus campos de interesse. Ambas foram produzidas (ao menos no
que se refere a sua disseminação mais ampla) pelos movimentos sociais e
políticos desenvolvidos a partir do final dos anos 1960. Em ambas, o estágio
inicial foi dominado pela idéia (sic) de resgate de uma história oculta
Historiadores orais buscavam inserir as vozes que faltavam, as dos
desfavorecidos, a fim de criar uma nova “história vinda de baixo”, enquanto
as feministas desejaram demonstrar o papel vital desempenhado por
mulheres, no passado e no presente, por meio de uma reconstrução do
passado, o que, pela primeira vez, conferiu uma atenção adequada às
contribuições femininas.8

O diálogo entre a história oral e a história das mulheres propiciou, de acordo com a
autora, a partir dos anos 1980, a tomada de consciência em relação à pluralidade e à
subjetividade. As mulheres deixaram de ser tomadas como um grupo uníssono para serem
compreendidas como uma multiplicidade de grupos, os quais entrecruzam em suas
experiências questões de gênero, mas também de etnia, classe, religião e etc. No que diz
respeito à subjetividade, a história oral deixou de buscar apenas as vozes excluídas, para
abarcar também os múltiplos sentidos que as experiências narradas por essas vozes poderiam
comportar.

Dentre os autores que contribuíram para tais amadurecimentos encontra-se Alessandro


Portelli. Dentre suas reflexões sobre subjetividade encontra-se o texto “A Filosofia e os
Fatos” (1996), no qual assevera que a narrativa daquele que conta sua própria vida, seja em
uma autobiografia ou em uma entrevista, já comporta, necessariamente, uma auto-reflexão
sobre sua trajetória:

O principal paradoxo da história oral e das memórias é, de fato, que as fontes


são pessoas, não documentos, e que nenhuma pessoa, quer decida escrever
sua própria autobiografia (...) quer concorde em responder a uma entrevista,
aceita reduzir sua própria vida a um conjunto de fatos que possam estar à
disposição da filosofia dos outros (nem seria capaz de fazê-lo, mesmo que o

8
SALVATICI, S. Memórias de Gênero: Reflexões sobre a História Oral de Mulheres. História Oral, São Paulo,
v.8, n.1, 29-42, 2005. P. 30.

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quisesse). Pois não só a filosofia vai implícita nos fatos, mas a motivação de
narrar consiste em expressar o significado dos fatos: recordar e contar já é
interpretar.9

A reflexão apresentada por Portelli indica a relação íntima entre a memória e a


subjetividade inerente à narrativa. Considerando que a fonte principal da pesquisa que estou
desenvolvente são depoimentos produzidos com os militantes (tanto homens, quanto
mulheres), essa advertência faz-se pertinente para pensar o tratamento a ser dispensado a eles.

Afirmando que ao recordar e narrar, o sujeito, necessariamente, interpreta sua


trajetória, oferecendo uma versão subjetiva dela, Portelli coloca em questão as diversas
influências que orientam o processo de recordar e a produção da narrativa. Tal proposição
adverte para a necessidade de pensar como esses sujeitos se constroem em suas narrativas,
dialogando com demandas e anseios do presente, com seu (s) interlocutor (es), e com a
distância temporal que os separa dos fatos narrados.

Para o autor, a validade da narrativa, como fonte para a produção do conhecimento,


não se dá pela exatidão do fato como aconteceu. Seu principal valor reside na expressão da
capacidade do narrador de interpretar sua própria experiência, atribuir-lhe sentidos e dominar
uma produção de si e sobre si.

Este diálogo estabelecido com as contribuições da História Oral e de Gênero faz parte
das reflexões teóricas e metodológicas que estão sendo construídas para alicerçar a fase da
pesquisa que começa neste segundo semestre de curso, a realização de entrevistas orais com
os sujeitos da pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DUARTE, A. R. F. Memórias em Disputa e Jogos de Gênero: O Movimento Feminino pela


Anistia no Ceará (1976-1979). 2009. 199f. Tese (Doutorado em História). PPGH da
Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC, Florianópolis, 2009.

9
PORTELLI, A. A Filosofia e os Fatos. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, 59-72, 1996. P.60, grifo no original.

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DO BANDEIRANTE HISTÓRICO AO BANDEIRANTE MÍTICO: A CONSTRUÇÃO DO


MITO HISTORIOGRÁFICO PAULISTA

Flávio Raimundo Giarola (História/ UFMG)

Orientador: Eduardo França Paiva

Palavras-chave: Bandeirantes; Historiografia; Representações

INTRODUÇÃO:

A figura do bandeirante paulista tem sido tema de livros e pesquisas desde o final do
período colonial. Hora representado como mestiço e algoz das tribos indígenas, hora visto
como o pioneiro na construção da nação e alargador do território nacional; a imagem do
bandeirante caminhou entre esta dualidade, indo de anti-heróis para heróis da história do
Brasil.

O presente artigo pretende analisar este imaginário em torno do bandeirante. Num


primeiro momento, intencionamos visualizar este personagem em seu período histórico,
tratando das representações dos paulistas nos séculos XVII e XVIII, principalmente durante a
Guerra dos Emboabas. Em seguida, buscaremos abordar os trabalhos historiográficos que
focalizaram as bandeiras, tratando desde as obras que deram destaque às visões indianistas
que ressaltavam o extermínio dos índios pelos mesmos até a construção do mito bandeirante.
Objetivamos, portanto, entender os caminhos que levaram os “mamelucos paulistas” de
indivíduos de sangue impuro e sem civilidade a ilustres membros do panteão de heróis
nacionais1.

1
Obviamente, não exporemos aqui todos os autores que trabalharam com os bandeirantes e representaram os
mesmos das mais diversas formas possíveis, o que demandaria um trabalho de maior fôlego. Faremos uma
seleção de acordo com as obras, consideradas por nós, mais relevantes sobre o assunto.

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A LEGENDA NEGRA E A IMAGEM DO BANDEIRANTE NO PERÍODO COLONIAL:

Segundo Carlos Davidoff, o bandeirante teria sido o fruto social de uma região
marginalizada, de escassos recursos materiais e de vida econômica restrita, e suas ações se
orientaram ou no sentido de tirar o máximo das brechas que a economia colonial
eventualmente oferecia para a efetivação de lucros rápidos e passageiros em conjunturas
favoráveis – como no caso da caça ao índio – ou no sentido de buscar alternativas econômicas
fora dos quadros da agricultura voltada para o mercado externo, como ocorreu com a busca
dos metais e das pedras preciosas (DAVIDOFF, 1994: 25-26).

Desbravando os sertões, os paulistas chegaram à região das Minas Gerais ainda em


fins do século XVII, quando foram encontrados os primeiros resquícios de ouro nos leitos de
rios e riachos. Através do ato real de 18 de março de 1694, a posse das minas havia sido
garantida aos seus descobridores, que deles exigia apenas o quinto devido à Real Fazenda.

De acordo com Romeiro, o então governador Sá e Meneses rapidamente percebeu que


os descobrimentos dependiam dos paulistas, tidos como os mais experientes sertanistas e
descobridores de metais preciosos:

Assim, por sugestão sua, o rei escreveu cartas aos mais leais vassalos
paulistas, “firmadas do seu real punho”, agradecendo a cada um de seus vassalos
individualmente, prometendo-lhe uma mercê futura. Nesse sentido, a principal
façanha de Sá e Meneses – aquela que lhe garantiu a cooperação dos paulistas e o
desvendamento da região mineradora – deu-se no campo simbólico das relações
entre o rei e seus vassalos: subvertendo a legenda negra então dominante, o
governador transformou-os de vassalos rebeldes e insubmissos em “honrados
vassalos”, animados pela “boa lealdade” (ROMEIRO, 2008: 54-55).

No entanto, o fluxo migratório de Portugal para o Brasil ganhou novo ímpeto com a
notícia das descobertas auríferas: “A chegada maciça de estrangeiros, que vinham disputar a
posse das novas riquezas aos paulistas, logo teve por consequência a eclosão de seguidos
conflitos entre os forasteiros ou emboabas e os grupos locais” (DAVIDOFF, 1994: 80).

De acordo com Boxer, o ressentimento duplo entre os dois grupos veio a ser ainda
mais inflamado pelos termos injuriosos que usavam para se descrevem uns aos outros. Por um
lado, os recém-chegados de Portugal e das ilhas do Atlântico eram chamados pejorativamente

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de emboabas, “palavra ameríndia de etimologia obscura, mas usada, obviamente, com


intenção injuriosa” (BOXER, 2000: 88). Por outro, os paulistas eram classificados como
bandoleiros sem lei.

Contudo, a imagem destes últimos já vinha sendo depreciada desde meados do século
XVII, pelos jesuítas espanhóis, a partir dos conflitos em torno das missões de Guará, pela não
observância das Leis do Reino referentes à liberdade dos índios (MONTEIRO, 2001: 106).
Também o viajante francês François Froger, em escala no Rio de Janeiro, a partir de opiniões
vigentes, descreveu os paulistas como um conjunto de bandidos de todas as nações, que pouco
a pouco formaram uma grande cidade e uma espécie de República, onde eles têm como lei
não reconhecer o governador de forma alguma (BOXER, 2000: 88).

No entanto, a obra que teve um papel decisivo para a construção da legenda negra dos
paulistas foi a Conquista espiritual, escrita por Antonio Ruiz de Montoya, e publicada em
1639, em Madri. Segundo Romeiro, como procurador da Companhia de Jesus, Montoya
empenhou-se em condenar acerrimamente os sertanistas da Vila de São Paulo, quando estava
em curso a destruição das missões do Paraguai:

A linhagem inaugurada por Montoya rendeu frutos e fez seguidores. Em


1663, o padre Nicolau del Techo publicou uma Historia de la provincia del
Paraguay de la Compañia de Jesus, em que imputava a eles o papel de instrumentos
e aliados de Satanás, com o objetivo de impedir a evangelização dos índios
(ROMEIRO, 2008: 230).

A legenda negra, que aparecia nos escritos dos jesuítas, segundo Romeiro, definia os
paulistas como vassalos indômitos e rebeldes, associando-os ao “mito do homem selvagem,
transformando-os em calibans terríveis, pertencentes à esfera antitética da ordem e da
civilização” (ROMEIRO, 2005: 388). Os bandeirantes apareciam nestes discursos como
distantes dos costumes da vida na corte, das atitudes e comportamentos valorizados dentro da
ótica do Antigo Regime.

Deste modo, percebe-se que antes da conflagração da Guerra dos Emboabas, a


representação dos paulistas enquanto insubordinados e criminosos já era frequente. Como
afirma John Manuel Monteiro, as proezas do sertão e a conquista dos índios, sempre em nome

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do Rei, certamente foram cruciais na configuração de uma alteridade paulista, “mas a


construção desta imagem e portanto desta identidade também se alimentava da visão
preconceituosa dos portugueses que, ocupando cargos de autoridade, enxergavam neles
apenas a barbárie” (MONTEIRO, 2001: 107-108).

Quelen Ingrid Lopes destaca que a relação alimentada pelos paulistas com os índios
foi um dos elementos a condicionar as atribuições de sua identidade pelos reinóis:

O uso que faziam da língua indígena, presente nos inúmeros nomes a que davam aos
arraiais ou aos pontos de referência geográfica por onde se movimentavam e se
localizavam nas Minas, no seu modo de viver nas matas imbuído dos costumes dos
índios, mais os assemelhavam aos selvagens do que aos portugueses natos. E mesmo
com o restante dos forasteiros naturais da Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro
(LOPES, 2008: 264).

Segundo a autora, o grupo étnico dos paulistas definia-se enquanto tal por seus
membros, e eram definidos pelos emboabas através, principalmente, dos elementos da cultura
indígena em seu comportamento e estilo de vida: “Nem completamente selvagens, nem
plenamente civilizados, na visão metropolitana, os paulistas se afastavam do modelo de
civilização europeu (...)” (LOPES, 2008: 265).

Outro topos influente da legenda negra era o caráter errante e nômade dos paulistas,
“acostumados a passar longos períodos nos matos, em busca de índios, sobrevivendo apenas
de frutos e animais silvestres” (ROMEIRO, 2008: 226-227). Para Romeiro, aos
contemporâneos, parecia estranho que uma região tão fértil como as terras de São Paulo de
Piratininga, nas quais se cultivavam o trigo e a cana-de-açúcar, não bastassem para tornar
sedentários os seus habitantes (ROMEIRO, 2008: 226-227).

Cabe destacar ainda, a composição mestiça de grande parte dos paulistas que, aos
olhos dos portugueses, aparecia como mácula de sangue. Muitos dos homens que se
aventuraram pelos sertões e participaram das descobertas das minas possuíam sangue
indígena, o que, somado ao uso da língua geral pelos mesmos, ajudava a ressaltar a imagem
de bárbaros dada aos habitantes do Planalto de Piratininga.

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Portanto, a alteridade pré-existente entre paulistas e forasteiros explica, em grande


parte, as tensões entre os mesmos que culminariam na Guerra dos Emboabas. Romeiro afirma
que é o choque entre universos culturais distintos, permeados por formulações e práticas
políticas irredutíveis, que permite compreender os antagonismos que separavam ambos os
grupos:

É por essa razão que as narrativas de inspiração emboaba, produzidas no decorrer


dos acontecimentos, prodigalizam-se na descrição dos homens de São Paulo como
um outro, ao qual imputavam um juízo depreciativo, eivados de adjetivos negativos
(ROMEIRO, 2008: 235).

Assim, ao longo do conflito, os emboabas revitalizaram a legenda negra, instaurando,


a partir dela, o espaço de alteridade, em que iria vicejar a justificação ideológica do levante.
Com isso, se legitimou as ambições do partido emboaba, ao mesmo tempo em que também
influenciou decisivamente a avaliação que o Conselho Ultramarino faria do conflito
(ROMEIRO, 2008: 237).

Os paulistas não tiveram os seus pedidos atendidos pela Coroa, nem cumpridas as
promessas feitas anteriormente. Os homens do Planalto acabaram derrotados, não apenas por
portugueses, mas também por outros aventureiros que rumaram para Minas, procedentes do
interior da Bahia, de Pernambuco e de outras regiões do Brasil, que se colocaram ao lado dos
emboabas (BOXER, 2000: 88).

Além da derrota militar, a Guerra dos Emboabas contribui para a consolidação da


imagem negativa do bandeirante no período colonial. O conflito acabou por reforçar todos os
aspectos da legenda negra, acentuando seus argumentos. Todavia, o que se viu na
historiografia, a partir de fins do século XIX, foi uma tendência em transformar os
bandeirantes em heróis nacionais. Os argumentos que antes serviam para desqualificar os
paulistas, como a composição mameluca, passaram a ser ressignificados e valorizados pela
maioria dos intelectuais que trabalharam com o tema. É sobre esse assunto que nos
ocuparemos nas linhas que se seguem.

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O HERÓI BANDEIRANTE: O PAULISTA NA HISTORIOGRAFIA DOS SÉCULOS XIX e


XX:

Ainda em fins do século XVIII, dois nomes já se destacavam no estudo dos


bandeirantes: Pedro Taques de Almeida Paes Leme (1714-1777) e Gaspar Teixeira de
Azevedo (Frei Gaspar de Madre de Deus) (1715-1800). O primeiro viu o bandeirante como
proprietário, ocupante de cargos, chefe militar, ameaçado pelos reinóis que vieram para o
comércio, depois da decadência do ouro. Acreditava que: “No bandeirante está a pureza do
sangue dos primeiros povoadores” (OLIVEIRA, 1998: 206).

Já Gaspar T. de Azevedo dizia que o bandeirante se caracterizava pela mestiçagem


com o índio, o que tinha enobrecido o sangue português com as virtudes indígenas. Estes
mamelucos, chefes de tropas que destruíram missões jesuíticas, fundaram São Paulo e outros
povoamentos e também foram ameaçados pelos comerciantes portugueses recém-chegados
(OLIVEIRA, 1998: 206).

Nota-se que, em ambos os autores, a legenda negra do início do século é deixada de


lado, revitalizando a figura do paulista através do enobrecimento de suas características. Paes
Leme busca mostrá-los como puros de sangue, enquanto Frei Gaspar minimiza os males da
miscigenação, chegando até mesmo a valorizá-la. Segundo Laura de Mello e Souza, os dois
autores pertenciam às elites bandeirantes e, por isso, em seus escritos, enaltecem os feitos dos
ancestrais, deixando de lado os aspectos negativos que sempre haviam acompanhado a
exaltação dos paulistas (SOUZA, 2000: 261-276).

Entretanto, mesmo que a segunda metade do século XVIII tenha visto essa restauração
da imagem do paulista, Danilo Z. Ferretti afirma que até 1870, não se percebe na Província de
São Paulo nenhum empenho sistemático, independente e coletivo em elaborar um discurso
identitário e muito menos em reelaborar a representação do passado regional calcado no
bandeirante (FERRETTI, 2004: 25). Na obra de Ricardo Daut (1818-1893), irlandês fixado
em Campinas, por exemplo, os paulistas antigos não são demonizados, mas também não são
louvados como “bandeirantes”, como heróis nacionais construtores do território: “Eram antes
vistos de passagem como senhores feudais, ao gosto do romantismo medievalista europeu,
sem merecer longo tratamento” (FERRETTI, 2004: 33).

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Ainda segundo o autor supracitado, na visão dos indianistas de meados do século XIX,
o colono paulista apresador de índios e inimigo encarniçado dos jesuítas, passou a ser visto
como o grande vilão da história nacional. Ferretti lembra que, em 1839, o cônego Januário da
Cunha Barbosa (1780-1846) já falava do desumano procedimento que, no século XVIII,
tinham os paulistas para com os índios. Outro clérigo, o cônego Fernandes Pinheiro (1825-
1876), colocava na invenção pelos “ambiciosos colonos” das bandeiras, espécies de caçadas
de índios que lhes forneciam escravos, a origem da escravidão dos indígenas (FERRETTI,
2004: 74).

Deste modo, Ferretti, fala em uma nova versão indianista da legenda negra anti-
bandeirante, onde os paulistas são vistos como colonos ambiciosos que se antepunham aos
abnegados jesuítas. Assim, ainda que valorizassem a atuação dos colonos de Piratininga como
alargadores das fronteiras nacionais, os autores indianistas tendiam cada vez mais a identificá-
los como uma espécie de anti-heróis de nossa história que, movidos pela ganância, foram os
responsáveis pelo extermínio dos povos indígenas (FERRETTI, 2009).

Na passagem do século XIX para o XX, no entanto, a imagem do bandeirante seria


pouco a pouco reconstruída. Começaram a representar o símbolo do indomável espírito
paulista, sendo mostrados, cada vez mais, como os construtores da nação, através de suas
aventuras pelos sertões. Essas representações do bandeirante significaram, inicialmente, um
reflexo da tentativa de se construir uma identidade paulista, através da ideia de pioneirismo
dos mesmos.

Por outro lado, um grupo de monarquistas, composto por figuras como Eduardo Prado
(1860-1901), Afonso Arinos (1868-1916), Theodoro Sampaio (1855-1937), entre outros, nos
anos iniciais da República, revisaram a imagem do bandeirante num esforço de conciliação
com o passado jesuítico. Deste modo, através da valorização da mestiçagem empreendida na
Capitania de São Vicente, mostravam jesuítas e bandeirantes, não como excludentes, mas ao
contrário, como complementares. Os jesuítas teriam ajudado a civilizar o paulista, evitando os
conflitos entre brancos e indígenas e, com isso, facilitando o processo de miscigenação. Desta

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maneira, através da introdução do catolicismo, teriam contribuído na formação do elemento


novo que viria a ser o “bandeirante mameluco”2.

Frequentando os mesmo círculos sociais desse grupo, Capistrano de Abreu (1853-


1927) também reafirmava a origem mestiça dos bandeirantes sem, no entanto, deixar de
apontar a violência intrínseca às ações dos mesmos. O autor destaca a participação dos
paulistas na expansão territorial do Brasil, mas sublinha que tais conquistas foram realizadas
por meio do derramamento do sangue indígena.

De acordo com Laura de Mello e Souza, no início do século XX, os autores que mais
se destacaram na retomada da questão do bandeirante foram: Afonso D’Escragnolle Taunay
(1876-1958), Alfredo Ellis Júnior (1896-1974) e José de Alcântara Machado (1875-1941).
Segundo a autora, as obras de Frei Gaspar e de Pedro Taques foram retomadas como base
para a construção das matrizes do novo conhecimento sobre as bandeiras e os bandeirantes:

Os três reconhecem no bandeirante o mameluco audaz que expandiu as fronteiras e


descobriu o ouro. Foram membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
e/ou de São Paulo e pertenciam à elite política paulista cuja ascendência estava nos
heróis bandeirantes (SOUZA, 2000: 209).

Para Souza, Taunay se detém na figura do chefe da bandeira como eixo predominante
de sua história e reconstrói a organização das bandeiras em ciclos: o da devassa das terras e o
do ouro, também nomeado de monções: “O autor valoriza a expansão territorial e não o
apresamento de índios. Considera mesmo que a escravidão indígena foi circunstancial,
enquanto se esperava as levas de escravos africanos” (SOUZA, 2000: 209). Os mamelucos
teriam formado uma raça aclimatada ao solo e ao clima, e o êxito da expansão territorial acaba
por compensar a dizimação dos povos inferiores. Tal posição é curiosa, se levarmos em conta
a influência de Capistrano de Abreu na formação intelectual do autor.

Também em Ellis Júnior, o cruzamento racial torna-se um valor positivo, produzindo


uma sub-raça superior: “Se a mestiçagem brasileira desqualifica seu povo, a mestiçagem

2
O argumento expostos nesse parágrafo constitui parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no Programa
de Pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, com a orientação do Professor Dr. Eduardo França
Paiva. Apenas buscamos delinear alguns pontos principais do pensamento dos autores estudados, visto que, um
alongamento maior da discussão nos tiraria do foco principal deste trabalho.

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paulista o valoriza. A prova de sua superioridade estaria na capacidade de se reproduzir, ou


seja, em sua fecundidade, e na longevidade dos habitantes do planalto paulista” (SOUZA,
2000: 209).

Já Alcântara Machado, produz uma representação quase contrastante do bandeirante


paulista: a mistura do sangue de um povo de marinheiros com o sangue de tribos errantes teria
produzido um homem pobre, analfabeto, de modos grosseiros, mas com um toque de
austeridade e heroísmo (SOUZA, 2000: 209). No livro Vida e Morte do Bandeirante (1929),
Alcântara Machado compõe uma imagem da combinação de violência e malícia que
caracterizam as várias etapas da escravização do indígena pelos paulistas. Nas palavras de
Carlos Davidoff, a descrição dos processos empregados em todo o percurso por que passava a
escravização do indígena deixa a imagem usual do herói bandeirante desgastada, enquanto o
desenho do perfil do paulista dos seiscentos, em sua vida cotidiana, atitudes, comportamentos,
acentua mais o seu lado pouco glorioso (DAVIDOFF, 1994: 92-93).

No entanto, apesar da importante obra de Alcântara Machado, a tendência geral, no


início do século XX, era a de representar o bandeirante longe dos aspectos negativos que
constituíam a legenda negra do período colonial. Aspectos como a composição mameluca,
passavam a ser cada vez mais exaltados, principalmente com a geração modernista,
encontrando em Paulo Prado (1869-1943), um de seus maiores expoentes.

Paulo Prado, em Retrato do Brasil (1928), vê os bandeirantes paulistas como


representantes de “uma força de heroísmo anônimo e individualista, decisiva na integração
nacional” (PRADO, 1981: 63). Em seus trabalhos, ainda que faça alguma referência ao
extermínio e à escravização dos indígenas, logo volta a exaltar as “Termópilas Paulistas” e
seus “heroicos piratininganos”(WALDMAN, 2009: 113). A imagem do herói bandeirante é
tão forte nesse período que os modernistas de São Paulo se auto-intitulariam “modernos
bandeirantes”, que empunhavam lápis, papel, pincéis, partituras musicais, etc. (WALDMAN,
2009: 174).

Cabe destacar que o mito bandeirante desse momento esteve fortemente relacionado
com a crença na superioridade paulista em relação às demais regiões do país. Assim, colocar o
bandeirante como impulsionador da construção do Brasil significava colocar São Paulo na
vanguarda da história nacional. No entanto, esse regionalismo paulista procurou impor-se aos

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demais justamente pela negação de seu caráter local, travestido de nacional: “Para isso, foi
essencial a recuperação da figura do bandeirante” (WALDMAN, 2009: 174).

Por outro lado, na década de 1950, o tema seria retomado em Caminhos e Fronteiras
(1957), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). O autor destacou a capacidade de
adaptação como traço característico dos portugueses, afirmando que o movimento das
bandeiras deve ser entendido através desse traço cultural. A comunicação com o indígena,
bem como a mestiçagem com o gentio teriam sido fatores fundamentais para a colonização
portuguesa na América: “Influência que viria a animar, senão tornar possível, as grandes
empresas bandeirantes” (HOLANDA, 1994: 21).

Nas últimas décadas, os estudos historiográficos acerca do tema tem buscado cada vez
mais retificar a imagem heroica do bandeirante, buscando resgatar o paulista histórico, sem
fazer juízos de valores. Os trabalhos de Adriana Romeiro, amplamente citados neste texto, são
um grande exemplo disto. No entanto, a imagem mítica do herói bandeirante se estabeleceu
tão profundamente no pensamento social brasileiro que torna-se uma tarefa árdua matizá-lo.
Ainda em trabalhos recentes como O Povo Brasileiro (1995), do antropólogo Darcy Ribeiro
(1922-1997), percebe-se o conflito entre o genocídio dos indígenas e a admiração diante da
obra de expansão territorial empreendida pelos mamelucos. Para o autor, mais importante do
que o mestiço com as populações negras, os mamelucos foram os agentes principais da
história brasileira: “Enfrentaram, de um lado, a odiosidade jesuítica e a má vontade dos
reinóis e, de outro, todas as dificuldades imensas de sua vida de sertanistas. Inclusive a
hostilidade dos índios arredios (...)” (RIBEIRO, 2006: 99).

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Procuramos demonstrar neste artigo que as representações do bandeirante passaram


das imagens pejorativas diante dos paulistas nos séculos XVII e XVIII, principalmente
durante a Guerra dos Emboabas, para a constituição do herói nacional, aventureiro e
conquistador dos sertões.

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A legenda negra que pairava sobre os paulistas no período colonial, colocava-os sobre
imagens as mais negativas possíveis: insubordinados, incivilizados, impuros. Diante do olhar
dos portugueses, esses homens eram inferiores, ainda que necessários para o projeto de
conquista do interior e para o descobrimento de minerais preciosos. Essas características
apareciam, principalmente, nos escritos dos jesuítas espanhóis, adversários dos paulistas, que
invadiam diversas missões em busca de mão-de-obra indígena.

A Guerra dos Emboabas contribuiu para acirrar essas representações, visto que os
imigrantes portugueses que seguiam em direção às Minas, consideravam os homens do
Planalto indignos de receberem mercês da Coroa, devido a todos os atributos negativos
elencados acima. Deste modo, o conflito ideológico foi tão importante quanto o conflito físico
para se entender esse episódio da história do Brasil.

No entanto, ainda no século XVIII, tentativas de ressignificação da imagem do


bandeirante foram empreendidas por Pedro Taques de Almeida Paes Leme e Frei Gaspar de
Madre de Deus. Porém, a tendência, em grande parte do século XIX, sobretudo no período de
predomínio do indianismo, foi de representar os bandeirantes como anti-heróis, assassinos dos
indígenas e obstáculos para o empreendimento dos jesuítas.

Em fins dos oitocentos, entretanto, a historiografia paulista, movida por seu


regionalismo, iniciaria um resgate do personagem, exaltando-o como o grande desbravador do
território nacional. O bandeirante torna-se o construtor do Estado nacional, através do
devassamento dos sertões e da incorporação de imensas regiões ao domínio brasileiro. Mesmo
a composição miscigenada foi ressignificada por essa historiografia, passando a ser
positivada. A mestiçagem paulista teria um aspecto diferente pois teria seguido em direção à
adaptação aos trópicos.

Deste modo, configurou-se no imaginário nacional a imagem do herói paulista,


ensinada ainda hoje em muitas escolas. Nas próprias representações imagéticas que se
percebem em pinturas e estátuas presentes em diversos museus, o homem descalço, com
feições mestiças, é transformado em um indivíduo com aspectos nobres e traços europeus.
Assim, do século XVII ao século XX, a distância entre o bandeirante histórico e o bandeirante
mítico tornou-se um fosso que, somente nos anos recentes, a historiografia vem tentando
transpor.

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CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULTURA POLÍTICA LIBERTÁRIA

George Araújo (Mestrando em História e Culturas Políticas pela UFMG)

Orientadora: Kátia Gerab Baggio

INTRODUÇÃO

A história do anarquismo e de sua influência no movimento operário-social ao redor


do mundo foi, durante muito tempo, relegada ao esquecimento ou considerada de importância
menor. Fosse porque a maioria dos historiadores que se dedicou a esse tema pertencesse aos
quadros dos Partidos Comunistas ou Socialistas, fosse porque os autores de alguma maneira
simpáticos ao anarquismo fizessem uma espécie de hagiografia, fosse por ter sido
basicamente ignorada pelos historiadores tradicionais que, ao considerar história política
apenas a história do Estado, das instituições e partidos políticos, simplesmente desprezavam-
na.

Esse paradigma, contudo, seria superado pela historiografia do século XX,


particularmente com a renovação da história política, a partir dos anos 1960. Essa renovação,
além de contribuir para a ampliação dos temas estudados por esse campo da história,
possibilitou ainda o desenvolvimento de novos conceitos, como o de cultura política, o qual
consideramos adequado para o tratamento do movimento anarquista e sua história.

DEFINIR “ANARQUISMO”: UMA DIFÍCIL TAREFA

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É impossível dar uma definição única do que seja o anarquismo.1 Talvez isso esteja
relacionado à própria ambiguidade da palavra, derivada do grego clássico anarchos (ἄναρχος)
que, por sua vez, é composta pelos vocábulos an e arkhê, significando “ausência de
governantes”.2 Assim, o termo anarquia pode ser usado “tanto para expressar a condição
negativa de ausência de governo quanto a condição positiva de não haver governo por ser ele
desnecessário à preservação da ordem.”3 Contudo, não há acordo entre os estudiosos do
pensamento anarquista sobre qual seria sua origem. Existem três hipóteses principais sobre as
origens do pensamento anarquista. A primeira considera o anarquismo como uma disposição
quase a-histórica pela liberdade, remontando sua origem a antigos textos chineses e
pensadores da Grécia Antiga. A segunda afirma que formas potenciais de anarquismo já
podiam ser encontradas diversas sociedades primitivas ao redor do mundo. Por fim, a terceira
hipótese sustenta que o anarquismo seria um produto tardio do Iluminismo e da Revolução
Francesa.4 De qualquer forma, o anarquismo nunca foi um movimento homogêneo, tendo
suas vertentes, em comum, apenas a convicção de ser nociva, para a vida social, a existência
de um governo e o desejo de criar uma sociedade onde ele não exista.5

Pode-se, inclusive, questionar se o anarquismo está à margem da tradicional divisão


entre “esquerda” e “direita”, ou se existem correntes que estão mais próximas da “esquerda”
ou da “direita” no espectro político. Entretanto, quando da época de formação da cultura
política libertária6 – entre meados do século XIX e começos do século XX –, a maioria das

1
VINCENT, Andrew [1992]. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,
p. 121, WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das ideias e dos movimentos libertários. Porto
Alegre: L&PM, 2007, vol.1, p. 16 e MARSHALL, Peter [1992]. Demanding the Impossible: A History of
Anarchysm. Londres: Harper Perennial, 2008, p. 3.
2
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert (comps.). A Greek-English Lexicon. Londres: Oxford
English Press, 1996, p. 120.
3
WOODCOCK, George. Op. Cit., p. 8.
4
Ver, a esse respeito, VINCENT, Andrew. Op. Cit., pp. 122-125 e MARSHALL, Peter. Op. Cit., p. IX
5
WOODCOCK, George. The Anarchist Reader. Fontana Press, 1977, p. 11.
6
A palavra libertário foi usada como sinônimo de anarquista pelos próprios anarquistas durante a maior
parte dos séculos XIX e XX. O uso do termo tornou-se popular a partir da década de 1890, após ter sido
empregado na França como uma tentativa de se escapar à legislação antianarquista que se pretendia implementar
no país e, ao mesmo tempo, dissociar o movimento da conotação negativa que havia sido atribuída à palavra
anarquismo. (Cf. NETTLAU, Max. A short history of anarchism. Londres: Freedom Press, 1996, pp. 75-56, p.
145 e 162). Entretanto, na segunda metade do século XX, o termo foi apropriado por vários pensadores norte-
americanos defensores do “livre mercado”, como David Friedman, Robert Nozick, Murray Rothbard, e Robert
Paul Wolff. “Os 'libertários' norte-americanos do século XX são acadêmicos e não ativistas sociais, e sua
inventividade parece estar limitada a fornecer uma ideologia para o capitalismo de mercado desregulado”
(WARD, Colin. Anarchism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 82). Hoje o
termo libertarianismo indica uma filosofia política liberal que defende o máximo de liberdade individual e o
mínimo de coerção ou exercício da autoridade, encontrando-se comumente associado a correntes de pensamento
designadas “anarcocapitalistas”. Não obstante, muitos pensadores e ativistas anarquistas rejeitam o que

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vertentes existentes possuía uma série de pontos em comum com a esquerda7 daquele período,
havendo, inclusive, uma frequente e complexa sobreposição de discursos e posicionamentos
entre elas. Aliás, durante boa parte do século XIX, o anarquismo era considerado parte do
movimento socialista, e muitos anarquistas chamavam-se a si mesmos de “socialistas
antiautoritários”, como forma de se diferenciarem dos “comunistas” (para eles, “socialistas
autoritários”). Consideramos que aquele anarquismo estava bastante próximo da esquerda que
lhe foi contemporânea, por partilhar com ela algumas concepções fundamentais: a noção de
que os problemas sociais deveriam ser analisados cientificamente, a ideia de que as
desigualdades existentes entre as pessoas derivam da maneira como a sociedade está
estruturada (sendo, portanto passíveis de serem eliminadas com uma reestruturação da
mesma), o desejo de libertar os povos e os indivíduos do poder político-econômico injusto e
opressivo, e de afastá-los do obscurantismo religioso, bem como livrá-los dos
constrangimentos derivados dos privilégios de casta, classe e etnia, permitindo o livre
desenvolvimento de suas capacidades, possível apenas com uma transformação radical da
sociedade.8

O CONCEITO DE CULTURA POLÍTICA E O ANARQUISMO

Como afirmamos anteriormente, a partir da década de 1960 houve um intercâmbio


cada vez maior da história com a ciência política. O resultado desse diálogo foi uma história
política renovada e ampliada, chamada por alguns historiadores de “nova história política”.

A consequente expansão do campo de abrangência da história política, anteriormente


referida, trouxe novas perspectivas e parâmetros para a abordagem dos fenômenos políticos,

consideram ser uma “apropriação indevida” de uma expressão histórica e continuam a utilizar as duas palavras –
libertário e anarquista – como sinônimos.
7
Estamos utilizando “esquerda” como uma expressão genérica que denomina uma ampla pluralidade de
vertentes do espectro político que possuem em comum a tendência a apoiar mudanças sociais que visem o
estabelecimento de uma sociedade mais igualitária e livre. Consideramos “esquerda” e “direita” conceitos
historicamente relativos e não termos estáveis e portadores de uma identidade absoluta, válida para todas as
épocas e regiões. Para uma discussão mais detalhada da questão, ver BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e
significados de uma distinção política. São Paulo: Editora Unesp, 1995.
8
VINCENT, Andrew. Op. Cit., p. 121.

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como o conceito de cultura política, a nosso ver útil para a caracterização do anarquismo e
sua práxis. Por cultura política entendemos o

conjunto de valores, tradições, práticas e representações políticas partilhado por


determinado grupo humano, que expressa uma identidade coletiva e fornece leituras
comuns do passado, assim como fornece inspiração para projetos políticos
direcionados ao futuro. Importa realçar que a categoria representações está sendo
entendida [...] com base em enfoque de sentido amplo, [...] [configurando] um
conjunto que inclui ideologia, linguagem, memória, imaginário e iconografia, e
mobilizam, portanto, mitos, símbolos, discursos, vocabulários e uma rica cultura
visual (cartazes, emblemas, caricaturas, cinema, fotografia, bandeiras etc.). [...] As
variadas formas de manifestação das culturas políticas podem ser mais bem
observadas em dimensão comparativa. […] Porém, admitir a importância do
comparativismo não implica aceitar o olhar que hierarquiza as culturas políticas e
tenta enquadrá-las em chave evolucionista. Na acepção usada aqui, cultura política
só pode existir na duração, como fenômeno estruturado e reproduzido ao longo do
tempo […], não [havendo] lugar para o efêmero. 9

Certamente, nenhuma cultura política é estanque pois pode modificar-se a si mesma


para responder ao surgimento de novas questões e problemáticas sociais, bem como ser
influenciada por outra no decorrer do tempo. Os estudos em cultura política não podem
limitar-se apenas ao campo das representações, sendo necessário que sejam levados em conta
tanto as ações práticas realizadas, como os vetores sociais (família, instituições de ensino,
corporações militares, agremiações políticas, grupos religiosos etc.) responsáveis por sua
reprodução, e ainda os veículos de disseminação (como os impressos, por exemplo).10 Em
suma, a categoria cultura política não deve ser tomada como um fator abstrato, isolado e
definitivo, mas entendida sempre em sua relação indissociável com outros aspectos da vida
social, como a economia, os fatores sociológicos etc. É, como afirma Serge Berstein, “uma
noção complexa pour rendre compte de comportamentos complexos” (BERSTEIN, 2003, p.
7).

Não se trata, então, de empregar esse conceito para atribuir ao anarquismo uma
identidade fixa, imutável, mas antes de utilizá-lo como uma ferramenta que, sem
desconsiderar a importância da duração, auxilie a caracterizar o anarquismo em determinados
contextos históricos e, a partir disso, reconhecer sua linguagem, seus ícones e símbolos, além
9
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na História: novos estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009, pp.21-22.
10
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. Cit., pp. 22-24.

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de discutir quais eram suas ideias, leituras do passado, esperanças e visões de mundo, bem
como sua práxis no movimento operário-social.

A FORMAÇÃO DE UMA CORRENTE POLÍTICA LIBERTÁRIA

Como movimento político-social contemporâneo, o anarquismo desenvolveu-se na


França da década de 1840. À semelhança de várias correntes socialistas que também surgiram
à época, almejava uma espécie de “aprofundamento” da Revolução Francesa, estabelecendo,
ao lado da já alcançada igualdade política, uma igualdade econômica e social real. Seu
surgimento está relacionado aos problemas colocados pela industrialização e pelo
aparecimento da questão social, e, portanto, essa corrente de pensamento “[...] deve ser
apreendida, antes de mais nada, como uma reação radical face à condição operária do século
XIX, caracterizada pela generalização do trabalho assalariado e pela divisão da sociedade em
classes”.11

Costuma-se apontar Proudhon, Stirner e Bakunin como os principais teóricos desses


começos do anarquismo, aos quais se seguiriam Kropotkin e Malatesta. Mas o anarquismo
nunca foi um movimento homogêneo, fosse em sua dimensão teórica ou na conformação de
sua militância.12 Portanto, pode parecer um paradoxo que a grande diversidade dessa corrente
não tenha impedido os anarquistas de se pensarem como um grupo portador de uma forte
identidade comum. Contudo, como afirma o historiador italiano Gaetano Manfredonia,

tal paradoxo é apenas aparente. Se em lugar de analisarmos as correntes anarquistas


por um ângulo puramente ideológico […] tentarmos explicar os comportamentos
libertários a partir do estudo dos sistemas de referência ou das representações
compartilhadas pelo conjunto dessa família política, as oposições ideológicas se
desvanecem. […] [O]s anarquistas são portadores de uma verdadeira cultura política
[…] que faz com que eles não apenas tenham uma maneira própria de fazer política

11
MANFREDONIA, Gaetano. Persistance et actualité de la culture politique libertaire. In: BERNSTEIN,
Serge. Les cultures politiques en France. Paris: Le Seuil, 1999, p. 246.
12
Ver VINCENT, Andrew. Op. Cit., pp.121-125, WOODCOCK, George. Op. Cit., p. 14-17, e
HOROWITZ, Louis. Op. Cit., p. 15.

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ou de reagir face aos acontecimentos, mas igualmente uma visão de mundo comum
fundada sob um sistema de normas e de valores que lhes são próprios.13

A formação de uma corrente política libertária, apartada das outras vertentes do


movimento socialista, resultou de um processo de diferenciação no interior do movimento
operário francês, que começou com a insurreição de 1848 e culminou com a cisão entre
“socialistas autoritários” e “socialistas libertários” durante as sessões da Associação
Internacional dos Trabalhadores (AIT). Às ideias mutualistas de Proudhon — o primeiro
autor a declarar-se “anarquista” — foram sendo incorporadas problemáticas que,
ultrapassando a “dimensão operária”, fizeram com que o anarquismo se pretendesse, a
despeito das diferenças culturais, políticas e econômicas entre os países, um “modelo de
organização social universal que […] esteja em condições de assegurar a cada indivíduo o
livre desenvolvimento de todas as suas faculdades”.14 Aliás, para que uma sociedade pudesse
adotar os princípios libertários, seria preciso que se livrasse não apenas das ilusões políticas,
econômicas e religiosas, mas também das nacionais. Nesse sentido, o cosmopolitismo
internacionalista e a rejeição ao nacionalismo são dois componentes fundamentais da cultura
política libertária. Mas mudar a maneira como a sociedade encontrava-se organizada não
significaria tão-somente estabelecer novas relações entre as forças produtivas ou criar outras
instituições políticas. Para que florescesse um novo mundo, seria preciso que houvesse um
novo homem, que transformasse radicalmente suas relações com si mesmo e com os outros
indivíduos, com seus familiares e com os outros membros do corpo social. Para tanto, uma
educação diferenciada — uma pedagogia libertária — desempenharia um papel fundamental,
ao moldar um novo indivíduo, livre dos vícios da “sociedade burguesa”. Educação baseada na
ciência, que também ocupa um lugar de destaque na cultura política libertária, pois os
anarquistas frequentemente se esforçaram por conferir um caráter científico às suas doutrinas.

SINGULARIDADES DA CULTURA POLÍTICA LIBERTÁRIA

13
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 245.
14
Idem, pp. 251-252.

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Para Manfredonia, ainda no século XIX, algumas características já conferiam à cultura


política anarquista uma originalidade que permite diferenciá-la de outras culturas políticas
próximas, como a socialista. Contudo, essa originalidade tende menos “à afirmação de um
corpo teórico separado ou à utilização de meios de luta à parte […] que à existência de um
forte sentimento identitário e à percepção particular que os libertários podem ter de seu
combate e de seu lugar no interior do movimento social”.15

A cultura política anarquista está marcada pelo signo de uma radicalidade — buscada,
reivindicada valorizada —, que cumpre a função de prover os militantes libertários de uma
identidade distinta às outras correntes políticas que buscam uma transformação mais ou
menos completa do status quo. Contudo, em meia a essa radicalidade, é a revolta o valor
aclamado pelos anarquistas, e não a violência. Revolta contra o obscurantismo clerical, contra
a manutenção da ignorância popular, contra as eleições (“fraudulentas”) que visam legitimar
um sistema socioeconômico (“corrupto e opressor”). Identidade radicalizada que — a
despeito de sua similaridade com vários grupos filiados ao movimento socialista — busca
símbolos próprios de expressão (a bandeira negra, o A estilizado), reafirma-se em diferentes
redes de sociabilidade (festas, encontros familiares, relações de camaradagem) e procura
referências históricas (a Comuna de 1871, por exemplo) que vão compondo a mitologia
política dessa corrente.

Mas a cultura política libertária, como qualquer outra cultura política, não pode ser
concebida como um dado imutável, alheio às influências do tempo, do espaço e da cultura
local.16

Durante o século XIX, ela esteve profundamente ligada ao movimento operário,


disputando sua direção com o movimento socialista. Entretanto, Outubro de 1917 e a
expansão da influência do bolchevismo e do comunismo soviético representaram um grande
desafio para a cultura política libertária, que buscou, ao longo do século XX, adaptar-se e
reinventar-se, incorporando novas demandas que foram sendo colocadas pelos mais variados
movimentos de cunho social, político, cultural e ambiental.

15
Idem, p. 256.
16
Idem, p. 245.

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DIREÇÕES DA CULTURA POLÍTICA LIBERTÁRIA NO SÉCULO XX

Durante o século XIX, a cultura política libertária esteve profundamente ligada ao


movimento operário, disputando sua direção com o movimento socialista. Entretanto, com
Outubro de 1917, a experiência acumulada durante quase um século pelo anarquismo mundial
no movimento operário-social foi fortemente abalada pela vivência de um evento de grande
magnitude, o que incidiu substancialmente suas perspectivas teóricas e práticas. A cultura
política libertária buscaria, ao longo do século XX, adaptar-se e reinventar-se, incorporando
novas demandas que foram sendo colocadas pelos mais variados movimentos de cunho social,
político, cultural e ambiental.

No começo do século XX, a atração que Outubro de 1917 exerceu sobre trabalhadores
e intelectuais anarquistas, e a expansão da influência do bolchevismo no movimento operário-
social representaram um declínio do anarquismo na maioria dos países. Situação que agravada
no período entre guerras, pois o anarquismo viu-se marginalizado em meio ao fogo cruzado
entre dois movimentos defensores de regimes inadmissíveis para eles: o fascismo e o
comunismo soviético. A reação do anarquismo foi retrair-se e olhar para si mesmo, o que de
certa maneira contribuiu para seu afastamento do centro das lutas políticas e sociais,
especialmente após a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial.

Mas as causas do relativo declínio da cultura política anarquista não foram apenas
políticas. O aprofundamento da industrialização eliminou ou diminuiu drasticamente setores
onde o anarquismo era particularmente forte, como o dos trabalhadores artesãos. Ademais,
como sublinha Manfredonia, diante da complexidade crescente das relações socioeconômicas
engendradas pelo desenvolvimento capitalista, “muitas soluções anarquistas […] apareciam
como inapropriadas, inclusive aos olhos de alguns ativistas que, pela primeira vez,
questionaram abertamente a viabilidade de suas doutrinas em termos econômicos”.17

Contudo, em meados do século XX, vários movimentos contestatórios buscaram


novamente inspiração nas ideias libertárias. Maio de 68, por exemplo, foi repleto de elogios à
ação direta, ao antiautoritarismo e à liberação feminina, bem como de críticas à
burocratização de partidos e sindicatos, ao estatismo, ao economicismo e à desconsideração

17
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 274.

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do papel que a mudança individual e a transformação da vida quotidiana podem exercer na


transformação social, explicitando “a persistência de atitudes e de comportamentos políticos
que poderiam ser facilmente relacionados às manifestações tradicionais do anarquismo”.18

Além disso, durante as décadas de 1970-1980, o avanço das preocupações ecológicas


incentivou às reflexões sobre as relações entre homem e natureza no campo anarquista.
Murray Bookchin, por exemplo defendeu um novo tipo de ligação entre seres humanos e
natureza, atacando a noção de que a função da última era servir ao homem. Ele ainda criticou
o crescimento quantitativo e argumentou a favor de um novo tipo de relação entre campo e
cidade, onde ambos estivessem em equilíbrio.19 Na esteira dessas discussões, o
vegetarianismo encontraria um espaço privilegiado entre os libertários.

A partir da década de 1990, o anarquismo se engajaria nas lutas contra a globalização,


e em uma série de outras disputas, como o questionamento aos possíveis efeitos negativos que
os alimentos transgênicos teriam para a saúde, a crítica ao modelo de mobilidade urbana
centrada no automóvel, a rejeição à privatização de facto dos espaços públicos etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para que possa perdurar, toda e qualquer cultura política precisa modificar-se, adaptar-
se, reinventar-se e incorporar contribuições. Caso contrário, seu destino será desaparecer,
mais ou menos rapidamente.

Esse não parece ser o caso da cultura política libertária, uma vez que demonstrou ter
grande plasticidade e capacidade adaptativa. Renovada, essa cultura política aparece a muitos
ativistas como uma alternativa para se pensar o mundo contemporâneo, tendo em vista tanto o
desgaste do capitalismo e seu ordenamento político-institucional, quanto o fim do comunismo
soviético. Terão os valores defendidos pela cultura política libertária um papel de destaque no
futuro?

18
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 275.
19
BOOKCHIN, Murray. Remaking Society. Montréal: Black Rose Books, 1989.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNSTEIN, Serge. Les cultures politiques en France. Paris: Le Seuil, 1999.

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.

HOROWITZ, Irving Louis. The anarchists. Nova York : Dell Publishing Co., 1964.

LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert (comps.). A Greek-English Lexicon. Londres:


Oxford English Press, 1996.

MANFREDONIA, Gaetano. Persistance et actualité de la culture politique libertaire. In:


BERNSTEIN, Serge. Les cultures politiques en France. Paris: Le Seuil, 1999.

BOOKCHIN, Murray. Remaking Society. Montréal: Black Rose Books, 1989.

MARSHALL, Peter [1992]. Demanding the Impossible: A History of Anarchysm. Londres:


Harper Perennial, 2008.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na História: novos
estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009

VINCENT, Andrew [1992]. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.

WARD, Colin. Anarchism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004

WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das ideias e dos movimentos libertários.
vol. 1. Porto Alegre: L&PM, 2007.
___________________. The Anarchist Reader. Fontana Press, 1977.

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MEMÓRIA E IDENTIDADE DO PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL.

Jean Rodrigues Sales (História/UFRRJ)

Palavras-chave: memória, identidade, comunismo.

NOTA INTRODUTÓRIA

Este texto discute algumas das relações possíveis entre história, memória e
identidade do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Partiremos de uma breve apresentação
do livro de Marie-Clair Lavabre (1994), que problematiza as formas de utilização do passado
por parte dos comunistas franceses no momento em que reconstituem a sua história. A autora
demonstra que há uma articulação entre a história coletiva, os itinerários individuais dos
militantes, a história contada pelo partido e as lembranças evocadas pela militância,
conformando a identidade partidária1.

O objetivo é demonstrar que esse tipo de análise pode ser útil para o estudo das
organizações comunistas brasileiras, particularmente o PC do B, cuja problemática da escrita
de sua história ganha uma dimensão que dificilmente encontraríamos em outro partido no
Brasil. Para tratarmos do tema dentro dos limites deste trabalho, partiremos da apresentação
da temática, da abordagem e dos pressupostos teóricos do livro de Marie-Clair Lavabre. Em
seguida, discutiremos as possibilidades de utilização dessa abordagem para o estudo da
história do PC do B e, ao mesmo tempo, com a pretensão de que seja útil para compreensão
da história de grupos, partidos e organizações comunistas de uma forma geral.

1
Temos ciência que o livro de Lavabre não dá conta de toda a problemática que envolve as discussões sobre
memória e identidade. A opção aqui serve apenas para mantermos o debate nos limites de páginas desta
publicação, utilizando um trabalho que trata especificamente do caso de um partido comunista. De todo modo,
não podemos deixar de indicar a leitura de HARTOG, F; REVEL, J. (org.). Les usages politiques du passe.
Paris: Éditions de l’école des hautes études em siences sociales, 2001.

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MEMÓRIA E IDENTIDADE COMUNISTA

Uma primeira definição feita por Lavabre que podemos reter é a da relação entre
memória, história e identidade partidária comunista. Segundo a autora, a memória comunista
é essencialmente seletiva, muitas vezes recorrendo à falsificação e ocultação de eventos e
figuras que contrariem os imperativos políticos do momento. Ao mesmo tempo, a memória
comunista é uma forma de história oficial poderosa que é partilhada, por convicção ou
interesse, pelos membros do partido (p. 14).

Segundo a autora, essa temática geral pode ser definida como uma história dos
usos políticos do passado. Aqui ela apoia-se teoricamente nas proposições de Maurice
Halbwachs sobre a memória coletiva para procurar entender a articulação entre “a história
coletiva e os itinerários individuais, a historiografia oficial e as lembranças evocadas pelos
militantes”, considerando que, segundo Halbwachs, o “indivíduo se lembra se colocando do
ponto de vista do grupo e que a memória do grupo se realiza e se manifesta nas memórias
individuais”. Neste ponto, a autora foi buscar em Roger Bastide elementos que
complementassem as reflexões de Halbwachs, sobretudo no que diz respeito àquilo que é
plenamente individual na rememoração. Para Bastide, essa memória não se reduz a um
simples “reflexo de uma memória coletiva transcendente, exterior e superior ao indivíduo”.
Nos canais de transmissão entre o grupo e o indivíduo há espaço para tensões, o que deve ser
explorado pelo cientista social. (p.35).

Uma segunda problemática abordada pela autora, e que nos interessa diretamente
neste texto, é a da especificidade ou não da memória comunista. Em outras palavras, trata-se
de problematizar afirmações feitas por diversos autores segundo as quais os partidos
comunistas não são iguais a outros gêneros de organizações partidárias. Sobre esta difícil
questão, a autora conclui que

de um lado, a memória comunista pode ser estudada com as mesmas


ferramentas conceituais que qualquer outra memória política; de outro lado,
a especificidade comunista na matéria pode estar em sua capacidade de ser
um grupo, mais que outros, de forte coesão por parte dos militantes. Assim,
do ponto de vista metodológico, podemos dizer que o Partido Comunista
Francês é um partido como outro, um grupo como outro. Porém, o “partido
sociedade” que constitui autoriza, segundo Annie Kriegel, a hipótese de que

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seja responsável por um controle relativamente mais eficaz da memória


coletiva e do esquecimento. (p. 24).

Na construção da memória comunista e da identidade do partido se encontram


diversas memórias que não convivem necessariamente de forma harmônica, o que é
particularmente perceptível em nossos dias, nos quais há um intenso trabalho de
rememoração. Seja através de biografias, autobiografias ou reportagens, é necessário estar
atento e interrogar os rearranjos que sofre a memória comunista através de suas sucessivas
gerações. Para tanto, há necessidade de uma dupla investigação: “uma, fundada sobre as
práticas oficiais e fontes escritas da memória (“memória histórica”), e outra fundada sobre a
evocação do passado a partir das fontes orais (“memória viva”).

No que diz respeito à memória histórica, chama a atenção imediatamente a


quantidade de referências à história nas intervenções dos dirigentes comunistas para justificar
suas ações no presente. Mesmo os historiadores autorizados – aqueles que estão na esfera de
influência do partido – continuam a oferecer elementos para a justificativa da história oficial.
Nesse caminho, é facilmente compreensível que entendamos a historiografia partidária como
responsável pela criação de estereótipos que acompanham a trajetória partidária. Entretanto, é
igualmente importante considerar que essa memória é elemento importante na formação do
militante, que a utiliza em seu dia-a-dia nas disputas ideológicas com seus adversários,
assegurando a identidade mais visível dessa militância. A memória viva são as memórias
individuais dos militantes propriamente ditas. Estas podem aparecer em forma de livros ou
depoimentos curtos apresentados na imprensa partidária. Para autora, o mais importante na
apreciação dessas memórias, é perceber a coesão e continuidade, mas também as
discrepâncias e rupturas entre as duas formas de memória. É na tensão entre essas memórias
que o historiador encontra os elementos para sua análise.

Em resumo, partindo do pressuposto básico de que é a partir do presente que o


passado toma forma na memória comunista, a autora apresenta quatro hipóteses com as quais
analisa a memória do Partido Comunista Francês, e que, como defendemos aqui, podem ser
utilizadas para se analisar as relações entre memória e identidade do Partido Comunista do
Brasil: (1) A referência ao passado é uma função dos imperativos do presente na
historiografia, na retórica política e na memória viva. (2) As histórias de vida individuais
podem ser lidas como tentativas de justificativas de práticas presentes. (3) Certos momentos

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(os primeiros anos de militância; o ponto culminante de lutas sociais; momentos de vitória ou
derrota, etc.) são privilegiados tanto na memória partidária quanto individual. (4) A
apropriação da memória partidária deixa espaço para traços particulares que tem a ver com as
diferenças de geração, tradição familiar, aprendizagem escolar, momento da adesão, etc.

Construções e reconstruções da memória no PC do B

O PC do B surgiu em 1962 a partir uma cisão no interior do velho Partido


Comunista Brasileiro (PCB), fundado em 1922. No momento da separação, ficou no PCB a
maior parte dos militantes, partido este que viveu entre os anos de 1962 e 1964 o seu
momento de maior importância política. O PC do B, por sua vez, aos poucos, e com muita
dificuldade, procurava demarcar o seu território político e ideológico em relação ao PCB.
Sem forças políticas, entretanto, a sua atuação no período anterior ao golpe de 1964 se
resumiu praticamente ao proselitismo político nas páginas de seu jornal A Classe Operária2.

Uma das principais ferramentas – se não a principal - utilizada pelo PC do B na


demarcação de seu território político e na coesão de sua identidade foi exatamente a história e
a memória. Com efeito, o discurso político que fundamenta a criação do partido foi
estruturado a partir do respaldo no passado, e que tem como exemplo mais aparente o fato de
ao surgir ou, como querem seus membros, ser "reorganizado" em 1962, reivindicar para si o
nome e o patrimônio simbólico do velho partido comunista fundado em 1922.

Foi através dessa história que o PC do B tentou convencer os seus militantes e


interlocutores que seria o verdadeiro partido comunista atuante no Brasil, que se mantivera
dentro das autênticas tradições marxista-leninistas, enquanto o outro teria se afastado desse
caminho. Podemos dizer que essa disputa com o PCB pelo patrimônio simbólico representado
pela tradição do comunismo brasileiro desde 1922 marcou toda a história do PC do B, e a ela
o partido dispensou muito de suas energias, o que podemos perceber pelo lugar especial que a
questão ocupa na história que o PC do B conta de si mesmo.
Juntamente com a problemática de sua origem, o tema da guerrilha da Araguaia é,
sem dúvida, o que ocupa maior destaque na construção da identidade partidária. Hoje, pode-se
afirmar que todos os militantes do PC do B identificam o episódio como o mais emblemática
do caráter revolucionário e coerente de seu partido, o que lhe confere grande força simbólica.

2
Sobre os aspectos gerais da história do PCdoB, ver: SALES (2007).

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Um exemplo marcante desse significado foi o pedido feito pouco antes de morrer pelo
dirigente mais importante do partido, João Amazonas. O velho dirigente, que chegou a
participar da preparação da guerrilha, pediu para que as cinzas de seu corpo fossem jogadas
na região do Araguaia. No dia 21 de junho de 2002, realizou-se uma cerimônia na cidade de
Xambioá para lançar as suas cinzas, ao mesmo tempo em que se anuncia a construção de um
memorial sobre a guerrilha na região.

Nem sempre, porém, as interpretações dos militantes a respeito da guerrilha do


Araguaia foram unânimes no interior do partido. Foram necessários muitos anos, e muitos
embates políticos e de apropriação da memória para que esse evento ocupasse o lugar que tem
hoje na vida partidária. Houve um longo percurso para que ele servisse como um dos pilares
da identidade do PC do B.

Como sabemos, o PC do B esteve envolvido em uma guerrilha na região do


Araguaia, sul do Pará, entre 1972 e 1974, tendo, no final, quase todos os seus participantes
sido aniquilados pelo exército. Quando os dirigentes do partido fizeram a avaliação deste
evento, perceberam que nem sempre é possível se apropriar do passado sem que haja conflitos
e rupturas dentro do grupo. Ao contrário, falar do Araguaia se transformou em motivo de
intensa divergência no interior do PC do B. No momento da avaliação, a direção se dividiu
em pelo menos duas tendências, que dariam significados distintos à experiência guerrilheira.

Da morte dos guerrilheiros até o momento em que o partido admitiu que seus
militantes houvessem morrido, haveria ainda um longo caminho a ser percorrido. Seja pelo
duro impacto da derrota, seja pelas dúvidas a respeito do que realmente havia acontecido com
os militantes - se teriam sido presos ou mortos -, somente em abril de 1976 a direção do PC
do B admitiu publicamente, através do artigo “Invencível bandeira de luta”, publicado no
jornal A Classe Operária, que havia acontecido um “temporário retrocesso na guerrilha”. Por
outro lado, ressaltava que a bandeira da “guerra popular”, empunhada pelos combatentes,
continuava válida e que a luta guerrilheira seria, com "...o exército popular, adestrado em mil
batalhas, capaz de assestar golpes demolidores nas forças de reação e libertar a pátria dos seus
piores inimigos”.

Essa não era, contudo, a posição de todo o partido, nem mesmo de toda a sua
direção, a respeito do significado da experiência guerrilheira. Um ano antes,
já haviam se iniciado as discussões a este respeito e, até aquele momento -
abril de 1976 -, não se havia chegado a um denominador comum. Em

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fevereiro, o Comitê Central (C. C.) reuniu-se e aprovou uma "carta circular"
que deveria ser lida pelos militantes, a qual, apesar de não tratar diretamente
da questão do Araguaia, apontava como principal tarefa do partido a de
resguardar da repressão polical e voltar-se para o trabalho junto às massas, o
que soava como uma crítica implícita ao voluntarismo presente na
experiência guerrilheira. (Pomar, 1980: 157-165).
Seria, porém, em uma reunião do C. C. de março de 1976 que apareceriam
nitidamente as duas tendências que demarcariam território na discussão. De um lado, teríamos
a posição defendida por Angelo Arroyo - da Comissão Militar e um dos poucos sobreviventes
da guerrilha, sistematizada no documento "um grande acontecimento na vida do país",
segundo a qual a experiência teria sido "altamente positiva". Em resumo, afirmava que “o
balanço político, do ponto de vista da luta do nosso povo e do papel do Partido, no que
respeita aos sucessos do Araguaia, é altamente positivo”. (Pomar, 1980, p.278).

Posicionamento diferente tinha Pedro Pomar, um dos fundadores do partido. De


uma maneira geral, o dirigente afirmava que o erro do Araguaia teria sido estratégico e não
apenas tático; teria sido político e militar, e não apenas militar. Nesse caminho, uma das
principais falhas foi a de não perceber que aquela conjuntura não era favorável para o
desencadeamento da guerrilha e que, além disso, se começara um combate corpo a corpo
contra o exército, quando se deveria, antes, ter havido um trabalho político com as massas.
Assim,

não há como fugir da amarga constatação: ao cessar a resistência


organizada, ao não ter alcançado nenhum dos objetivos a que se propôs, a
guerrilha, apesar dos resultados positivos apresentados, sofreu derrota
completa e não temporária. Infelizmente, o CC tem de aceitar a dura verdade
de que o resultado fundamental e mais geral da batalha heroica travada por
nossos camaradas foi o revés. (Pomar, 1980, p. 293).

Como podemos perceber, as duas posições eram inconciliáveis. Porém, além de


divergirem sobre os erros ou acertos da experiência do Araguaia, é importante ressaltar que
elas traziam consigo elementos para a política que o partido deveria seguir no futuro.
Subjacente à interpretação de Arroio – de que fora apenas um erro secundário, de preparação
– estava a ideia de que o partido poderia continuar com a mesma tática e estratégia que
utilizara até o momento - agitação das massas e preparação clandestina da luta armada. Já
para Pomar, na medida em que não teria conseguido nenhum dos seus objetivos, aquela
experiência demonstrara uma total ineficácia enquanto tática política e, nesse caminho, devia-
se pensar novas formas de atuação política.

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O desfecho das divergências não se daria sem conflitos. Em setembro de 1976, foi
publicado um artigo no jornal A Classe Operária que tentava finalizar as discussões iniciadas
na reunião de março: "gloriosa jornada de luta". A essência do artigo, porém, longe de
denunciar os erros cometidos pelo partido no Araguaia, exaltava aquela que teria sido uma
façanha histórica.

Mais uma vez o C.C. se reuniria - em dezembro de 1976 - e discutiria o problema


do Araguaia. Na reunião, a maioria dos participantes argumentou que o artigo "Gloriosa
jornada de luta'' não traduzia as discussões travadas na reunião anterior e que, portanto, seria
necessário levar a discussão para o conjunto do partido e tentar, dessa forma, fazer as
mudanças políticas e ideológicas que a situação pedia (Pomar, 1980: 50-55). As discussões,
contudo, não puderam seguir o curso proposto na reunião. A polícia conseguira interceptar a
casa onde ela acontecia e prender os seus participantes à medida que saiam da reunião. Nem
todos, porém, tiveram a mesma sorte. Foram assassinados pela polícia Pedro Pomar, Ângelo
Arroio e João Batista Franco Drummond, nesse episódio que ficou conhecido como
“massacre da Lapa”.

A partir desse momento, o PC do B ficou praticamente desarticulado até pelo


menos 1980 (Gorender, 1998: 241). Nesse ínterim, o C. C. se reorganizou em torno de João
Amazonas que, por sua vez, não deu continuidade às discussões que haviam começado na
reunião da Lapa. O novo dirigente do PC do B continuou defendendo o documento "Gloriosa
jornada de lutas" como versão oficial do partido sobre assunto (Pomar, 1980: 56).

Em meados de 1979, o partido realizou sua VII Conferência e este documento é


aprovado como a versão oficial sobre a experiência do Araguaia. Neste evento, não há
menção a qualquer divergência anterior a respeito do Araguaia. No documento final da
Conferência, afirma a nova direção do PC do B:

A VII Conferência Nacional reitera a ideia que vem norteando a atividade e


orientação do partido, de que a luta armada é uma questão fundamental e
decisiva para a política partidária, uma vez que os objetivos perseguidos pela
classe operária e as massas populares somente podem ser alcançados por
intermédio da revolução violenta. (PC do B,2000, p. 268.)

Muitos membros do partido, entretanto, não aderiram às resoluções da VII


Conferência. Entre os vários temas que causavam divergências, estava o da guerrilha do

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Araguaia. Havia, de uma maneira geral, duas tendências em relação à forma como se deveria
encaminhar a nova política partidária. Para muitos de seus membros, inclusive algumas
direções regionais, o PC do B deveria fazer um exame profundo dos erros que haveria
cometido nos anos sessenta. Teria que iniciar uma discussão que fosse efetivamente ampla e
que, dada a gravidade dos temas a serem discutidos, redundasse em um Congresso. 3 Para
esses setores, a VII Conferência do partido não havia debatido os problemas e teria, na
verdade, servido “para legitimar as posições e opiniões do grupo que passara a dominar o C.
C ”.4

Um posicionamento diferente tinha o Comitê Central que, segundo o Comitê


Regional da Bahia, não admitia os erros cometidos. Quando o fazia, procurava resolvê-los de
forma brusca e superficial, sem se aprofundar nas discussões. Por exemplo, afirmavam os
dirigentes baianos que

não se discute o Araguaia aberta e profundamente e não se reconhecem em


profundidade os seus prováveis erros, mas não se pretende repetir a
experiência tal e qual, pelo menos agora; repudia-se brusca e radicalmente o
pensamento de Mao (Mao Tse-Tung), como se nunca o tivéssemos
absorvido; tenta-se mostrar como nunca assumimos as concepções da
política externa chinesa, sem adotar uma postura autocrítica e sem que se
diga uma linha sobre a nossa omissão em criticá-la...5

Mais uma vez o PC do B seguiria a tradição da impossibilidade de existência de


divergências significativas em seu interior. A sua direção rechaçou a proposta de convocação
de um Congresso naquele momento e expulsou muitos dos militantes que se opunham à
política do Comitê Central. Alguns dos dissidentes afastados criaram o Partido
Revolucionário Comunista (PRC), que atuaria como tendência no interior do PT até meados
dos anos oitenta, quando se dissolveria.

3
Muitos dos documentos sobre as divergências internas do PC do B no período podem ser vistos no Fundo
Duarte Pereira Pacheco (FDPP), no Arquivo Edgard Leunroth (AEL), na UNICAMP. Vale consultar
principalmente aqueles pertencentes aos setores que faziam oposição ao Comitê Central, caso do Comitê
Regional da Bahia e o Comitê Regional de São Paulo “Estrutura 1” (desde 1973, por motivos organizativos e de
segurança, haviam em São Paulo duas “Estruturas” Regionais, a 1 e a 2. No decorrer dos debates, a Estrutura 1
acabou sendo um dos principais representantes da tendência que pedia um aprofundamento das discussões e a
realização de um Congresso partidário.).
4
Comitê Regional de São Paulo do PC do B (Estrutura 1). “Aos camaradas e amigos do partido.” Setembro de
1980. (FDPP, Caixa 5).
5
Secretariado Regional da Bahia. “Sobre nossos erros e divergências: sua discussão e correção”. Janeiro de
1980. (FDPP, Caixa 4).

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Quatro anos depois, e contornada a crise interna, o partido realizou o seu VI


Congresso e mais uma vez voltaria ao tema da guerrilha da guerrilha. Entre as resoluções do
Congresso, houve uma específica sobre a violência revolucionária. Neste documento, de uma
forma geral, segue-se a ideia de que a guerrilha teve um papel positivo, se constituindo na
“expressão mais avançada da resistência popular após o golpe militar de 1964” (PC do B,
2002, p. 309). É certo que entre as observações do texto estão alguns erros cometidos pelos
guerrilheiros. Estes reparos, entretanto, se ativeram àquelas críticas que já haviam sido feitas
pelo próprio Ângelo Arroio no relatório que escrevera sobre a sua participação na luta. Não
aparece no documento, entretanto, qualquer menção as divergências que tiveram lugar no
partido, no final dos anos setenta e início da década seguinte, sobre o movimento guerrilheiro.

A partir de meados dos anos oitenta, as discussões sobre a guerrilha do Araguaia


cessaram dentro do PC do B e tornaram-se unânime as interpretações positivas a seu respeito.
Esse processo pode ser acompanhado pelas sucessivas publicações do partido sobre a
guerrilha nos anos oitenta e noventa. Em todas as publicações a guerrilha é exaltada como
uma façanha histórica de luta contra a ditadura. Um exemplo particularmente marcante está
na publicação comemorativa dos 30 anos do início da guerrilha, em 2002. O livro,
sintomaticamente intitulado “Uma epopeia pela liberdade – Guerrilha do Araguaia 30 anos
(1972-2002)”, não faz menção de crítica, por menor que seja, a qualquer erro que possa ter
sido cometido durante a guerrilha, o que significa dizer que não indica também que nos anos
setenta e oitenta houve importantes divergências internas a seu respeito.

Ainda no livro acima, que ganhou uma edição ampliada em 2005, há um último
exemplo que demonstra a preocupação do partido com a elaboração de seu passado. Entre os
materiais sobre a guerrilha há documentos produzidos pelos próprios guerrilheiros, artigos de
dirigentes, o texto de Angelo Arroyo e biografias dos participantes da guerrilha. Aqui há um
detalhe que não pode passar despercebido. Nessa publicação, versão oficial sobre a guerrilha
do Araguaia, o nome de José Genoíno Neto não figura entre os participantes da experiência
no Araguaia. Essa ausência se deve, provavelmente, ao fato de Genoíno ter entrado em
conflito com a direção do partido no início da década de oitenta, não só em relação ao

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episódio do Araguaia, mas também quanto ao caminho que o partido deveria seguir diante da
nova conjuntura política que se abria.6

Esse episódio demonstra que não somente o partido se preocupa com a escrita de
sua história, como esperamos ter deixado claro no decorrer deste texto, mas que em certos
casos o esforço na elaboração do passado é ainda maior. É o caso da guerrilha, experiência à
qual o PC do B tem dedicado uma atenção especial. E não poderia ser diferente. De toda a
história do PC do B, a guerrilha do Araguaia é destacada por sua direção como o exemplo que
demonstra mais claramente as características que teriam norteado a sua trajetória de luta e de
coerência com os princípios revolucionários. Nesse caminho, usou todas as forças na
elaboração de uma história da guerrilha do Araguaia que fosse digna de orgulho para seus
militantes, na qual não se admite os erros que possam ter sido cometidos, e tenta-se mesmo
apagar a memória da participação de certas figuras que hoje não fazem parte do partido.

CONCLUSÃO

Como pudemos observar, a história tem desempenhado um papel destacado na


trajetória do PC do B. A busca dessa memória se faz presente pela necessidade de justificar e
legitimar o surgimento do partido, que nasceu a partir de uma cisão e não conseguia se
diferenciar fundamentalmente de sua matriz, e buscou na autoridade de “ser” o verdadeiro
partido comunista fundado em 1922, e guardião das tradições marxista-leninistas, a
justificativa para a “reorganização” partidária e, evidentemente, para as orientações políticas
que tem tomado desde então. Juntamente com isso, o partido elegeu a guerrilha do Araguaia
como evento emblemático de suas virtudes revolucionárias. De acordo com essa opção,

6
Ver a lista de biografados nas páginas 76-92 (PC do B, 1996). Quanto a participação de José Genoíno na
Guerrilha do Araguaia, ver entrevista sua a Marcelo Ridenti, em 6/01/1986, à disposição no Arquivo Edgard
Leuenroth - UNICAMP.

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elaborou, não sem conflito, uma história e memória sobre a guerrilha que serve como
elemento de coesão de seus militantes.

A tarefa de utilização do passado como elemento de coesão interna foi


relativamente bem sucedida. Basta lembrar que, para além dos vários problemas enfrentados
pelo partido desde o seu surgimento, ele continua presente na cena política nacional. Se
tomarmos como referência seja a sua “origem” em 1922 ou sua “reorganização” em 1962, ele
aparece como um dos partidos de maior longevidade no país. Além disso, mesmo após a
queda do socialismo real, que abalou e fez desaparecer muitos partidos comunistas em todo o
mundo, ele continua com uma respeitável atividade política, com algumas vitórias eleitorais –
vereadores, prefeitos e deputados –; participação nas frentes de esquerda montadas para as
últimas disputas eleitorais para presidência da república; certa influência no sindicalismo e
com uma surpreendente inserção junto a setores jovens da população, particularmente no
movimento estudantil. Enfim, chegou ao governo junto com a coligação que elegeu o
presidente Luis Inácio Lula da Silva em 2002 e continua na base de apoio do governo petista
da presidente Dilma Rousseff.

BIBLIOGRAFIA

GORENDER, J. Combate nas trevas. São Paulo: Ática, 1998.

HARTOG, F; REVEL, J. (org.). Les usages politiques du passe. Paris: Éditions de l’école des
hautes études em siences sociales, 2001.

LAVABRE, Marie-Clair Le fil rouge. Sociologie de la mémoire communiste. Paris: Presse da


La Fondation Nationale des Sciences Politiques, 1994.

PARTIDO COMUNISTA DO BRASIL. Guerrilha do Araguaia. São Paulo: Anita Garibaldi,


1996.

_____________. Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro. Documentos do PC do


Brasil de 1960 a 2000. São Paulo: Anita Garibaldi, 2000.

_____________. Guerrilha do Araguaia. Uma epopeia de liberdade. 4. ed. ampl. São Paulo:
Anita Garibaldi, 2005.

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_____________. Uma epopéia de liberdade. Guerrilha do Araguaia 30 anos (1972-2002). São


Paulo: Anita Garibaldi, 2002.

POMAR, Wladimir. Araguaia, o Partido e a Guerrilha. São Paulo: Global, 1980.

SALES, Jean Rodrigues. Partido Comunista do Brasil: definições ideológicas e trajetória


política. In: RIDENTI, M; REIS, D. A. (Orgs.). História do marxismo no Brasil, vol. 6.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p. 63-103.

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A ESCRITA DA HISTORIA DA CIDADE – MEMÓRIAS E NARRATIVAS: ALAGOINHAS


COMO OBJETO DE ATENTOS VIAJANTES E MEMORIALISTAS (1889-1960)

Prof. Dr. José Jorge Andrade Damasceno (Historia - Universidade do Estado da Bahia – Campus
II, Alagoinhas)

Memória, Narrativa , Alagoinhas

INTRODUÇÃO

Inserida no contexto de uma perspectiva “regionalista” da escrita da história, a discussão


aqui proposta, pretende enfrentar, mesmo que de modo preliminar, o problema da “escrita da
História” de Alagoinhas, ainda muito insipiente e tímida, a despeito de vir experimentando
alguns avanços bem pontuais. Caberia aqui, à guisa de exemplo, mencionar Pelo menos duas
iniciativas, havendo entre elas um intervalo de aproximadamente dez anos.

A primeira dá-se no ano de 2000, quando se começa abrir perspectivas de pesquisa


histórica em Alagoinhas, cujo marco é a implantação do Curso de especialização em História
Política, idealizado e coordenado pelo Professor Doutor Paulo Santos Silva, tendo sido
efetivado em duas entradas, com cerca de vinte e cinco concluintes, entre os anos de 2002 e
2006.

Entre os trabalhos resultantes daquele primeiro esforço no sentido de incentivar os


novos pesquisadores a promover a “escrita da história” da cidade, inserindo-a no contexto
mais amplo da história regional e local pode-se destacar quatro dentre eles, cuja menção, se
deve aos propósitos e limites deste arrazoado. Roberto Magno Santos, interessando-se pela
profusão de publicações periódicas em uma cidade como Alagoinhas, com uma população
predominantemente operária, analfabeta e cuja elite cultural/letrada era bastante rarefeita e
tinha seus interesses voltados para a imprensa da capital do Estado desenvolveu o estudo que

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resultou no trabalho, apresentado em 20031, que pode servir de ponto de partida para outras
pesquisas, que conduzam a entender e explicar a existência de grande número de periódicos,
alguns efêmeros, mas alguns outros de boa longevidade, em uma cidade e um tempo onde ler,
era raro.

Por sua vez, Jeane Angélica Machado da Rocha, se interessara em compreender uma
parte do processo de modernização da urbe alagoinhense, materializado pela construção do
Coreto da Praça J. J. Seabra que lhe despertara a curiosidade e, iniciou uma pesquisa, que
traçou uma parte da história da cidade, na década de 1920, culminando com o trabalho, cujo
resultado, ainda parcial, foi levantar questões em torno da construção de um “lugar de
memória”, cujo construtor nele não aparece lembrado. Ao apresentar os primeiros frutos de
sua pesquisa em 20022, Rocha abre um grande leque de possibilidades de investigação
histórica em torno de um “protagonista da história política de Alagoinhas”, até ali, relegado
ao quase total esquecimento.

Já Antônio Manoel Machado da Rocha, interessou-se por enveredar nos arquivos do


poder legislativoalagoinhense. Conforme escreveu na introdução do trabalho, tal incursão
pretendeu “prestar uma contribuição a história local, na medida em que resgata parte da
atuação do Legislativo ao longo de um período em que a sua atuação é relegada a segundo
plano”, daí resultando um bom trabalho monográfico, apresentado em 20063, que abre várias
possibilidades aos novos pesquisadores interessados no tema.

Por fim, Marleide Lima de Brito Sousa, arriscou-se na utilização da técnica de história
oral, para trazer à lume, uma pequena parte da memória de um velho militante integralista de
Alagoinhas, desenvolvendo uma tarefa de dar-lhe voz, no sentido de promover a escrita da
história de um movimento político, com boa repercussão na cidade. Esta dívida com a história
daquele militante, começou a ser saudada por Marleide, com o trabalho apresentado em

1
SANTOS, Roberto Magno. ALAGOINHAS JORNAL: O comportamento da imprensa escrita no município
de Alagoinhas durante o quatriênio 1960-1964. Alagoinhas, 2003.
2
ROCHA, Jeane Angelica Machado da. A Trajetória do Coronel Saturnino da Silva Ribeiro. Alagoinhas
2002
3
ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O PODER LEGISLATIVO EM ALAGOINHAS – 1920 A 1923.
Alagoinhas-Bahia , 2006

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20064, que abriu outras possibilidades de se revisitar a história protagonizada pelos chamados
“camisa Verde”, em Alagoinhas.

Fora do raio de abrangência do curso de especialização em História política, pode ser


agregado como uma quinta menção, pelo interesse em desenvolver estudos sobre a formação
daqueles que tomariam parte na construção de um operariado, dotado de um determinado
perfil, o trabalho de Maurílio Lopes Fontes, também defendido no âmbito da especialização,
latu sensu, em 20055, que contribui para o esforço de uma escrita da história desta cidade,
cuja historicidade ainda está longe de ser plenamente explorada.

Cabe salientar entrementes, que se trata de monografias construídas e apresentadas por


alunos, saídos de um curso de licenciatura em história, cujo escopo de matérias/disciplinas,
estava estruturado na perspectiva predominante do ensino da história, voltado para os níveis
fundamental e médio, sem que houvesse uma preocupação de propiciar àqueles graduandos,
oportunidades efetivas de enveredarem-se pelas lides da pesquisa histórica, salvo em
iniciativas localizadas, levadas a efeito por alguns professores. Tais monografias foram
construídas com base nas inserções que cada aluno fazia de per si, na medida em que corria o
curso de especialização, sobretudo, vendo a aproximação da apresentação do trabalho final. O
que traziam de fundamentos teóricos e metodológicos, fora apreendido ao cursar algumas das
poucas disciplinas ministradas na graduação, cujos conteúdos estavam relacionados com a
pesquisa histórica e a produção historiográfica.

Alguns anos mais adiante, destaque-se em segundo lugar, a empreitada levada a efeito
pelo Professor Doutor Raimundo Nonato Pereira Moreira, através da coordenação e/ou
execução do projeto de pesquisa “No rastro de Miranda: uma investigação histórica acerca da
trajetória de Antônio Maciel Bonfim (1905-c. 1947)” envolvendo em seu desenvolvimento,
alunos de iniciação científica e de orientação de Trabalhos de Conclusão de Curso. Com tais
iniciativas, Pereira Moreira vem conseguindo trazer à lume, elementos constitutivos da cidade
de Alagoinhas, cuja relevância para a “história” da referida urbe,não havia ainda sido tomada

4
SOUSA, Marleide Lima de Brito. VESTÍGIOS DA AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA NA TERRA DA
LARANJA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE UM INTEGRALISTA EM
ALAGOINHAS. Alagoinhas, 2006
5
FONTES, Maurílio Lopes. EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO: A ESCOLA PROFISSIONAL
FERROVIÁRIA DE ALAGOINHAS COMO FORMADORA DE MÃO-DE-OBRA – 1941 A 1962.
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS ÊNFASE
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM METODOLOGIA DO ENSINO SUPERIOR - Alagoinhas, 2005.

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na devida conta. Do esforço empreendido Por Pereira Moreira e seus orientandos, mencione-
se aqui alguns dos resultados já alcançados, ainda preliminares. O primeiro dentre eles, é a
publicação do artigo “O célebre Miranda: aventuras e desventuras de um militante comunista
entre a história e a memória”6, que ele escreveu a “dez” mãos, visto que, o autor, lista os seus
orientandos, Thiago Machado de Lima, Letícia Santos Silva,Iracelle da Crus Alves e Cláudia
Ellen Guimarães de Oliveira, como coautores da referida publicação.

Nesta mesma linha de raciocínio, são dignos de nota, os Trabalhos de Conclusão de


Curso, cujos autores revelam vivo interesse pela apreensão, compreensão e escrita da história
de Alagoinhas, como o que foi defendido por Daniela Silva de Santana em 20117 e, o que foi
defendido por Genison Soares Silva em 20128,, ambos orientados pelo doutor Pereira
Moreira.

Também vale aqui mencionar alguns trabalhos desenvolvidos em outros programas de


Pós-graduação stritu sensu, de grande importância para agregar elementos à construção de
uma massa crítica em torno de uma História Regional e Local, que permita a realização de
análises mais consistentes e bem fundamentadas do processo histórico alagoinhense. Em
primeiro lugar, destaque-se, a dissertação da Professora Keite Maria Santos do Nascimento
Lima, Mestre em História Social pela Universidade Federal da Bahia, defendida em 2010,9,
não só pela qualidade do texto, mas, sobretudo, pelo esforço feito, no sentido de apreender um
dos momentos mais cruciais para a formação da cidade de Alagoinhas, dado ser aquele o
tempo de mais difícil prospecção de elementos consistentes para se levar a bom termo a
pesquisa histórica e para a escrita da história local, na medida em que as dificuldades de
encontrar e lidar com as fontes, se fazem avolumar, sobremaneira.

Em segundo lugar, mencione-se, as dissertações defendidas pelos mestres em História


Regional e Local, pela Universidade do Estado da Bahia (Campus V Santo Antônio de Jesus),
6
MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. O célebre Miranda: aventuras e desventuras de um militante, entre a
História e a Memória. Praxis: Revista Eletrônica de História e Cultura”, ISSN 1807-3174, ano IV, número 5,
janeiro-dezembro de 2011
7
SANTANA, Daniela Silva de. PÓRTICO DE OURO DO SERTÃO BAIANO: REPRESENTAÇÕES DE
ALAGOINHAS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1889-1930). Curso de Licenciatura em História – Uneb –
Alagoinhas, 2011.
8
SILVA, Genison Soares da. A ESCOLA PROFISSIONAL FERROVIÁRIA DE ALAGOINHAS: NOS
TRILHOS DA APRENDIZAGEM RECRUTANDO ARTÍFICES E FORMANDO FERROVIÁRIOS
(1941 – 1962). Licenciatura em História – Uneb – Alagoinhas, 2012.
9
LIMA, Keite Maria Santos do Nascimento. Entre a ferrovia e o comércio: urbanização e vida urbana em
Alagoinhas (1868-1929) –Universidade Federal da Bahia - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
HISTÓRIA - Salvador, 2010.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 736

Professor Carlos Nassaro A. da Paixão defendida em 200910 e, professor Moisés Leal Morais
defendida em 201111, como esforços empreendidos, no sentido de agregar elementos para a
construção daquela massa crítica acerca da qual já se falou acima, no sentido de contribuir
para impulsionar o processo de Escrita da História da Cidade de Alagoinhas, com o objetivo
de permitir aos pesquisadores que vierem a lhes seguir as pegadas,compreender os avatares de
uma cidade que, nos princípios do século XX, apresentava um ritmo pujante de crescimento e
“modernização”, fazendo crer que culminaria com a construção de um desenvolvimento
sólido e sustentável.

No entanto, ao entrar na década de 1960, aquele ritmo pujante e promissor, nitidamente


perde forças, ao ponto de um grupo de cidadãos locais, em 1968, redigirem um “memorial” ao
governo do Estado, conforme Salomão Antônio de Barros (1899-1986) faz questão de
mencionar em sua obra já clássica, apontando para a preocupação dos signatários do dito
“memorial”, com a fama de atraso de que Alagoinhas àquela altura, já estava impregnada.
Segundo Barros,

“em 1968, o devotado alagoinhense Dr. Israel Pontes Nonato encetou uma
campanha, obtendo, em inúmeras listas, 8.020 assinaturas subscrevendo um
Memorial, em termos candentes, rebatendo a falsa imagem criada de
ALAGOINHAS e mostrando que tinha razões prioritárias para o mesmo
Município possuir um Distrito Industrial. Esse Memorial foi às mãos do
então Governador do Estado que garantiu atender ao pleiteado”12.

VIAJANDO, OBSERVANDO E ESCREVENDO – ALAGOINHAS, “LUGAR DE


MEMÓRIAS”

10
PAIXÃO, CARLOS NÁSSARO ARAÚJO DA. TRAÇOS DA CIDADE DE ALAGOINHAS: MEMÓRIA,
POLÍTICA E IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO (1930-1949). Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V, Santo Antonio de Jesus – BA,
Janeiro / 200 9.
11
Morais, Moisés Leal. Urbanização, trabalhadores e seus interlocutores no Legislativo Municipal: Alagoinhas –
Bahia, 1948- 1964. – Santo Antonio de Jesus, 2011.
12
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979, P. 76.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 737

Desde os fins do século XIX, aos meados do XX, Alagoinhas chamava atenção
daqueles que por lá passassem, que para lá fossem ou que lá vivessem, sob quaisquer
pretextos. Sua condição de entroncamento ferroviário e de entreposto comercial da região, a
colocava ao alcance de olhares atentos e argutos, produzindo neles as mais diversas
impressões, que acabaram por alçá-la à condição de objeto de descrições e reflexões
perpetuadas em obras memorialísticas, que aqui se pretende analisar, como parte de um
projeto maior e mais ambicioso, a saber, o de (re) visitar a história de Alagoinhas.

Fazendo uso de diferentes fontes escritas e orais, pretende-se reconstruir memórias,


apreender e analisar os silêncios, de modo a permitir ao pesquisador, compreender os
“esquecimentos” e/ou “apagamentos” de evidências relacionadas aos vestígios e eventos,
episódios e/ou circunstâncias formadoras do devir da cidade e de seu povo.

Neste sentido, convém salientar que, este artigo, ora em construção e aberto às
sugestões, pretende-se chamar a atenção para a existência de um conjunto de obras de caráter
memorialista, a partir do qual, aqueles que pretendam realizar pesquisas em torno da história
local, poderão estar diante de um farto material de trabalho, com o qual se poderão
empreender incursões no tempo histórico da cidade, com o fim de conhecer muitos momentos
da vida cotidiana, de diversas fases do processo de consolidação de Alagoinhas, enquanto
cidade “cabeça” da região Agreste da Bahia.

Tomando como ponto de partida, textos escritos por um viajante, dois observadores e
duas memorialistas que, em recortes temporais diferentes e descontínuos, registraram as
impressões deixadas pela cidade em seus espíritos. Este trabalho pretende analisar a “escrita
da história de Alagoinhas”, interessado que está seu autor, em apreender e discutir as razões
pelas quais aquela pequena localidade do interior baiano, dos finais do século XIX e meados
do XX, chamaram a atenção do viajante Durval Vieira de Aguiar, dos observadores Euclides
da Cunha e Rui Barbosa e, das memorialistas Joanita Cunha e Maria Feijó, ao ponto de seus
escritos e observações, se tornarem fontes privilegiadas no trabalho de pesquisa histórica.

Fontes de consulta obrigatória para aqueles que se enveredem por caminhos que
busquem conhecer e escrever a respeito dos diversos aspectos da história da cidade, em
conjunto os escritos dos viajantes, observadores e memorialistas, permite ao pesquisador ter
uma viva idéia de como eram seus contornos espaciais, seus hábitos culturais, seus avatares

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políticos, bem como traços do modo de ser e pensar, daqueles que tomavam parte do
cotidiano local, na construção dos espaços de convivência, assim como das estruturas sociais
e econômicas, sobre as quais repousavam os elementos formadores dos “lugares de memória”.

O ainda Capitão da polícia baiana, Durval Vieira de Aguiar (1849-1900), foi


encarregado pelas autoridades governamentais, para fazer o mapeamento da província em
seus aspectos políticos e econômicos. Durante os anos de 1882 e 1883, pouco mais ou menos,
Aguiar viajou por todas as plagas baianas, mapeando os lugares no que tange às distâncias e
limites entre as cidades, observando relevos, climas, rios, atividades econômicas, bem como
levantando alguns aspectos populacionais e urbanos da província.

Em sua passagem pela cidade de Alagoinhas, aquela já transposta do lugar onde


originalmente se deu o processo inicial de sua povoação, o arguto observador, afirma logo no
início do seu relatório que, "Até o ano de 1866 a atual cidade constava apenas de umas quatro
casas de telha junto ao rio, de um trapiche, das acomodações da estrada de ferro e de uma
meia dúzia de casas de palha perto do barracão da dita estrada. Chamavam a esse
insignificante lugar simplesmente – a Estação."13

O relatório do viajante é bastante detalhado e nele procura inserir as informações que


lhe pareçam mais relevantes, no sentido de formular um juízo de valor, a respeito do local.
Neste sentido, veja-se o que diz o relator:

A edificação, como a da maior parte das localidades da província em que as


respectivas municipalidades são indiferentes, é, na maioria, feia, irregular, de
ruas sem calçamento, tortuosas e tão arenosas que esquentam no verão ao
ponto de impedir o trânsito e aumentar a temperatura da cidade encharcando-
se no inverno até formarem lamaçais, especialmente em volta da feira, que
se torna intransitável14.

13
AGUIAR, Durval Vieira. Descrições Práticas da Província da Bahia. Com declaração de todas as distâncias
intermediárias das cidades, vilas e povoações. Tipografia do Diário da Bahia, 1888, PP 93. Apesar de datado de
1988, provavelmente o advento da República fez o autor rever algumas posições expostas. É interessante notar
que o prefácio é datado de 1889. Neste texto, a edição a ser utilizada, será a de 1979.
14
Aguiar, Durval Vieira de. Descrições práticas da Província da Bahia : com declaração de todas as distâncias
intermediárias das cidades, vilas e povoações. — 2ª ed. — Rio de Janeiro Cátedra ; Brasília : INL, 1979, P. 95.

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Aguiar, não deixa de observar, no entanto que “existem na cidade alguns bonitos
edifícios, especialmente os da Câmara Municipal e da não acabada Matriz, que é de sistema
gótico; encontrando-se também nas imediações elegantes e modernas chácaras”15.

Pode-se notar que o viajante provincial é deveras muito atento, conforme se pode
atestar na descrição seguinte:

A feira continua nos sábados, concorridíssima e abundante; sendo muito


acanhado, completamente aberto e vazio de qualquer comodidade, o
barracão, onde, confusa e aglomeradamente, se faz o respectivo mercado. O
edifício da cadeia-quartel, é de aluguel, muito ordinário, e mesmo indecente
para uma cidade em que a respectiva municipalidade tem grandes
rendimentos16.

O relato do viajante segue demonstrando o cuidado com que realizava sua tarefa,ao
observar que:

O comércio é ativo, grande, animado e faz avultada exportação para a capital,


pela estrada de ferro, - de açúcar, farinha, tapiocas, feijão, milho, café, fumo,
gados, couros, aves, ovos, etc., etc.; sendo tão grande o mercado do fumo que
diversas casas comerciais da nossa praça ali conservam agentes compradores
que empregam em tal negócio centenas de contos17.

O agente provincial continua seu relato, asseverando que, na área da comunicação,


“funciona na cidade desde 1874 uma estação telegráfica da linha terrestre”. No quesito
educação,

“[...] encontramos três escolas primárias, sendo duas de meninos e uma de


meninas, todas repletas de alunos, porém, quando lá estivemos, desprovidas
de mobílias e compêndios; funcionando em casas acanhadas e ordinárias. E

15
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.
16
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.
17
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.

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arremata o seu arrazoado, assegurando que, “apesar de todos os defeitos é


essa cidade a mais florescente da província [...]”18.

Aguiar observa a cidade muito minuciosamente, visto ter uma percepção de futuro de
seu progresso e desenvolvimento, manifesta na longa observação que faz em torno do
transporte ferroviário, “agente motor”, do modo “alagoinhas” de ser. Atente-se para as suas
palavras:

A cidade de Alagoinhas é ponto principal de três linhas férreas. [...]. A


primeira é a feia, velha, cara, desassisada e morosa estrada inglesa, artéria
principal que liga esta capital às outras duas estradas, por uma linha de
123,013 metros, bitola larga, com 16 estações [...]. O ramal do Timbó são
mais 83 quilômetros de prolongamento da linha inglesa, [...]. O
Prolongamento é a linha que de Alagoinhas vai terminar no Juazeiro. É
propriedade do Estado, e acha-se inaugurada até a Vila Nova da Rainha. É
de bitola estreita, bem construída, tem um excelente material rodante, novo e
aperfeiçoado, e 16magníficas estações, especialmente a de Alagoinhas por
ser a mais vasta, sólida e elegante19.

E arremata, com uma opinião típica daquele que intentava difundir a idéia de
desenvolvimento junto aos que o quisessem trazer para aquela Bahia dos finais do XIX:

Quanto mais se estenderem essas linhas mais florescerá a cidade de


Alagoinhas, que, pela rapidez do progresso, da emigração e da edificação,
poderia oferecer-se como modelo de arquitetura e perfeição, em lugar desse
amontoado de casas e casebres intermediados de buracos, escavações,
lamaçais, águas pútridas e faltas de esgoto, alinhamento e calçamento, de
que parece não cuidar a respectiva municipalidade20.

18
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P.96.
19
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. Pp. 96-98.
20
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 98.

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Quase dez anos depois da publicação do relatório de Aguiar, Euclides Rodrigues da


Cunha (1866-1909), de passagem por Alagoinhas, rumo a cidade de Queimadas, de onde iria
para o Monte Santo, realizar a cobertura para o Estado de São Paulo, do Assalto final do
Exército sobre o acampamento dos sertanejos de Conselheiro, teve uma visão diferente
daquela descrita pelo relatório do Coronel Aguiar. Vendo a cidade de relance, a partir da
janela do trem em movimento, ou mesmo depois de um rápido circular pelo perímetro que o
tempo lhe houvesse permitido, visto estar de passagem e, não ser aquele lugar, alvo de sua
atenção imediata, Cunha anota em sua caderneta de campo, as impressões que tivera.

Após informar ter chegado as “cinco e meia”, não precisando se tarde ou manhã,
Cunha, chegou as conclusões que se seguem:

Alagoinhas é realmente uma boa cidade, extensa e cômoda, estendendo-se


sobre um solo arenoso e plano. Ruas largas, praças imensas; não tem sequer
uma viela estreita, um beco tortuoso. É talvez a melhor cidade do interior da
Bahia. Convergem para ela todos os produtos das regiões em torno,
imprimindo-lhe movimento comercial notável 21.

Cabe aqui salientar, que o observador tinha uma visão ampla e livre do espaço
percorrido pelo comboio que o transportava, visto serem escassas as construções em todo o
trajeto desde a entrada da cidade, aproximadamente no Riacho do Mel, até cerca de 40 ou 50
metros, da estação São Francisco, permitindo ao observador dar largas ao seu olhar atento. Só
a vegetação luxuriante de vastos tabuleiros, enormes fazendas e deslumbrantes xácaras, se
apresentavam pelo caminho até a gare alagoinhense. Assim, o jornalista do Estado de São
Paulo, pôde guardar na sua memória, as impressões que perenizou em suas anotações de
campanha.

Já um pleiteante à cadeira presidencial em 1919, a guisa de campanha eleitoral,


também gravou na tradição oral e na memória dos que dela participaram uma observação
elogiosa, que acabou por ser incorporada a Alagoinhas, como se lhe fora uma epígrafe, pela
qual se deu a conhecer desde então. Segundo atesta Salomão Barros, de passagem pela cidade,

21
CUNHA, Euclides da. Diário de uma Expedição, org. Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p.130.

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Rui Barbosa de Oliveira (1849-1923), em disputa contra Hermes Rodrigues da Fonseca


(1855-1923), em concorrida aglomeração de autoridades e circundantes,

[...] em 3 de dezembro de 1919 proferiu sua 1ª Conferência de caráter


político, no Palácio da Prefeitura daquela Cidade, - quando da sua campanha
eleitoral, - dizendo de sua admiração à terra, por ele, RUY, cognominada
"Cidade Pórtico de Ouro dos Sertões Baianos". E RUY fizera uma apologia
ao Sertão e ao Mar, após referências à Cidade e à sua população"22.

A laureada professora Maria Feijó de Sousa (1918-2001), por sua vez, escreve um
romance perceptivelmente autobiográfico, embora ela não o admitisse. Publicado em 1978, na
cidade do Rio de Janeiro, a autora diz ser ele “o retrato, talvez, sem retoque, tirado por mim,
na sua terna e doce fase de MENINA-MOÇA, genuinamente provinciana e bela”23. Nele,
fatos, lugares e pessoas são reconhecidos, por vezes com alguma facilidade e, por outras,
demandando alguma pesquisa e outras leituras. Sua abundante produção literária, vem sendo
discutida e redescoberta por inúmeros pesquisadores, o que torna dispensável sua enumeração
aqui.

Para os objetivos deste artigo, importa o mencionado romance de grande fôlego, cuja
leitura, mesmo a mais aligeirada, permite ao leitor um passeio pela história de Alagoinhas,
devido ao caráter cronístico com que Feijó empresta a obra. Denso e alentado, percorre-se
suas oitocentas páginas, como se o terreno palmilhado, quase que centímetro por centímetro,
fosse a cidade de Alagoinhas, saindo dela apenas pelas viagens até Salvador, feitas de trem,
ou pelas várias transferências de domicílio lecional, a que a frágil, inteligente e perspicaz
professora, Maria Luísa Peixoto de Moura, fora submetida, até retornar para Alagoinhas, onde
finalmente deu todos os saltos pessoais e profissionais que a vida lhe oportunizou, até vir a ser
bibliotecária e literata no Rio de Janeiro.

22
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979, P. 267.
23
FEIJÓ, Maria. Pelos Caminhos da vida de uma professora Primária. Max, Rio de Janeiro, RJ, 1978.

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Entrelaçando vários personagens, em um enredo que pretende mostrar ao público o


que é a vida de uma professora primária, através de uma narradora, Feijó de Sousa24,
descortina toda a sua vida, de modo a dar ao leitor um amplo panorama, não só de si, mas de
sua cidade natal, onde as tramas, tanto pessoais quanto coletivas, vão se desenvolvendo em
vários lapsos de tempo, de cerca de 50 anos, com idas e vindas típicas de um romance bem
escrito e atraente, nos quais uma série de instituições se erguem e desaparecem, dando lugar a
outras ou deixando vago o espaço que ocupava.

Mas, o que aqui interessa, é que sua vida está diretamente relacionada com a história
da cidade de Alagoinhas, na qual grande parte da narrativa se passa. Nela, a autora aproveita
para opinar sobre os modos e costumes arraigados no modus vivendi local; emite juízo de
valor em torno da política educacional e cultural empreendida pela municipalidade; nem os
desmandos daqueles que deveriam zelar pelo bom funcionamento das instituições escolares,
escaparam de sua arguta pena.

Feijó de Sousa, não perde a chance de comentar sobre a perspectiva que norteara a
cidade no princípio do século XX, quando aparentava que Alagoinhas viveria um processo de
crescimento e desenvolvimento, a partir da qual, praticamente todos os seus administradores
prometiam avanço e “modernização”, mas que, com o passar dos anos, se torna uma cidade
conservadora sob o ponto de vista dos costumes, hábitos e gostos culturais e, até mesmo
atrasada, sob o ponto de vista da economia, do saneamento, do transporte, da expansão das
oportunidades de lazer e cultura, além de falhar por não ter uma política de criação de postos
de trabalho, que fixasse seus filhos dentro de seu espaço territorial.

Outra alagoinhense que traça em seu descortinar de lembranças, um “retrato” da


cidade, este um tanto mais retocado, embora não deixando de aparecer ao fundo algum
“defeito” ou “sujeira” na imagem, que se queria bonita, é a nonagenária Joanita da Cunhha
Santos, nascida em 1920, que publicou em 198725, obra que traz à lume, suas memórias de
menina e moça, na qual, como que completa, o que eventualmente viesse a faltar na fotografia
de Alagoinhas tirada por Feijó, nos anos que permeiam as décadas de 1930 a 1950. Nela,
Cunha descreve a Alagoinhas central e seu entorno mais próximo, onde residia parte da elite

24
No que tange a autoria das suas obras, ela omite o último nome, preferindo aquele pelo qual sempre fora
conhecida e, por meio do qual sempre se apresentou para enfrentar todas as lutas que se interpuzeram em sua
trajetória pessoal e profissional.
25
SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987.

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política e econômica local. Naquele entorno, também se encontravam os “lugares de


memória” mais importantes da terra, a partir dos quais Joanita pôde retraçar boa parte de sua
vida. Por meio deles, ela acaba por abrir possibilidades de pesquisas para aqueles interessados
em conhecer melhor a Alagoinhas por ela retratada, visto indicar diversas pistas, através das
quais o investigador atento, poderá imiscuir-se nos avatares dos homens e mulheres,
residentes ou passantes, com seus hábitos e valores, visões de mundo, maneiras e costumes,
difusos nos “arquivos” daquela cidade, cuja memória ainda se encontra encoberta pela fulígen
do tempo.

A importância da referida obra, está no caráter histórico de que se pode revesti-la, na


medida em que se pode ler nas suas linhas e entre linhas, as condições de vida das pessoas, o
grau de desenvolvimento cultural e político da cidade. Também é possível extrair os modos
de ver e compreender a vida que aquela parcela da população citadina, tinha a respeito do
mundo e das pessoas.

Apesar de alguns esforços já feitos, entre eles, aqueles protagonizados por Cunha e
Feijó, além de outros pesquisadores, alguns deles referenciados neste arrazoado, há uma
camada de pó muito espessa, cobrindo a memória de Alagoinhas, dificultando e, por vezes
impedindo a “escrita” de sua história.

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VIDA E TRABALHO: MEMÓRIAS DE PESCADORES SOBRE A PESCA ARTESANAL


NA ILHA DO AMPARO APÓS O ACIDENTE DO NAVIO VICUÑA EM 2004.

Priscila Onório Figueira (Mestranda em História pela UFPR).


Orientador: Dr. Luiz Geraldo Silva

Palavras-chave: Acidente ambiental; Memória; Pesca Artesanal.

INTRODUÇÃO
Antes do acidente, antes do acidente, tinha até mais camarão como eu digo
assim não é, porque a pessoa não vai dizer que foi por causa do acidente, que
não foi o acidente, mas cada vez, cada coisa que tá acontecendo assim no
mar prejudica a pesca. [...] Acabo muitas coisas demais, meu Deus, a
natureza tá com muitas químicas, muitas coisas demais que estão aí nesse
mar, os navios jogam muita coisa demais, matam muito peixe (José P.
Honório, 2011) 1.

A narrativa acima pertence a José P. Honório, pescador que mora na comunidade de


Amparo. José P. Honório expõe que o acidente do Navio Vicuña que ocorreu em 2004 é um
dentre os fatores que vem provocando mudanças no mar e na pesca.
No dia 15 de novembro de 2004, ocorreu o acidente do navio Vicuña na Baía de
Paranaguá. Nesse dia, o navio explodiu e deixou cerca de 290 mil litros de óleo combustível
no meio ambiente. Logo após o acidente, a pesca foi proibida por um total de 51 dias. Numa
tentativa de “compensar” o acidente, a empresa Catallini se propôs a investir 5 milhões em
um aquário marinho na cidade de Paranaguá2. O relato de José P. Honório transcrito no início
do texto pode nos fornecer algumas informações importantes. Primeiramente, sua narrativa

1
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p. José P. Honório nasceu em
10/12/1961. Os trechos das entrevistas transcritas ao longo do trabalho foram modificados quanto às falas para
um maior entendimento dos leitores.
2
Informação extraída de: PARANAGUÁ TERÁ AQUÁRIO MARINHO. Especial para a Gazeta do Povo
Matinhos. Curitiba. Jan. 2010. Disponível em:
http://ad\s.globo.com/RealMedia/ads/click_lx.ads/afrpc/gazetadopovo/online/verao/conteudo/447456040/Mi d l
e/d e f a u l t /e m p t y.g i f /7655752f6955314a2b74594142635930. Acesso em: mar. de 2010.

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mostra uma percepção de tempo dinâmica, ou seja, em seu relato quando aborda sobre a pesca
“depois” do acidente3 percebe também o “antes” do acidente, seu olhar sobre o tempo traz a
marca da historicidade. Outra questão é que seu relato pode indicar uma forma de se opor as
imagens atuais. O presente trabalho investigou o modo como a comunidade de pescadores de
Amparo localizada no Litoral do Paraná constrói a percepção do acidente do Navio Vicuña
ocorrido em 2004.
A pesca praticada na comunidade de Amparo pode ser definida como artesanal. Dada
a grande complexidade das formas de organização e produção, uma definição formal e precisa
de pesca artesanal seria desfavorável. Dessa maneira, a pesca praticada pela comunidade pode
ser associada às características de uma comunidade tradicional caiçara. Nesses termos, os
pescadores seriam “tradicionais”, por adquirirem e transmitirem seus conhecimentos pela
oralidade, por conhecerem ciclos naturais e dependerem deles para a sua sobrevivência, e por
utilizarem técnicas de baixo impacto sobre a natureza como no caso da pesca artesanal, a
comunidade da Ilha do Amparo se insere nesse quadro conceitual, de comunidades
tradicionais (DIEGUES, 2005, p. 274).
A pesquisa se enquadra no campo da Etno-História, campo esse no qual privilegio o
diálogo entre História e Antropologia. A pertinência do estudo está no enfoque dado a
historicidade presente na visão na qual a comunidade em questão faz do “antes” e do “depois”
do acidente. Em certo ponto o trabalho interage também com a História Ambiental. Nesse
nível grande parte da história ambiental se dedicaria a examinar as mudanças nos modos de
subsistência e suas implicações para as pessoas e para a Terra (WORSTER, 1991, p.207).
A metodologia utilizada no trabalho é a história oral. Para Portelli (1991), a História
Oral não é o lugar onde as classes trabalhadoras falam por si. A declaração contrária não seria
totalmente infundada: como exemplo o relato de uma greve através das palavras e memórias
de trabalhadores, com auxílio dos relatos da polícia e da imprensa, ajuda a equilibrar uma
distorção implícita nas fontes. Fontes orais são necessárias, mas não suficientes para uma
história das classes não-hegemônicas, pois eles são menos necessários para a história das
classes dominantes, que tiveram controle sobre a escrita e deixaram para trás uma abundancia
de registros escritos. No entanto, o controle do discurso histórico permanece nas mãos dos
historiadores, pois é o historiador que seleciona quem será entrevistado. E aceitando que a
classe trabalhadora fala somente através da história oral, essa fala para o historiador, com o
3
Para esclarecer a pergunta direcionada a José Paulo Honório foi: Após o acidente, quais foram as mudanças no
mar?

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historiador e na medida em que o material é publicado através do historiador (PORTELLI,


1991, p.55-56).

ÁREA DE ESTUDO

O Litoral do Paraná é constituído pelos municípios de Antonina, Guaraqueçaba,


Guaratuba, Matinhos, Morretes, Pontal do Paraná e Paranaguá. Essa região abriga a maior
parte dos remanescentes da Floresta Atlântica Brasileira e o complexo estuarino lagunar
Iguape-Cananéia-Paranaguá.

(Figura 1. Mapa extraído de Angulo, R. G Mapa Cenozóico do Litoral do Estado do Paraná in: Boletim
Paranaense de Geociências, n. 55, p. 25-42, 2004. Editora UFPR).

Tais circunstâncias conferem à região a importância global para a proteção da


biodiversidade, atestada pela criação da UNESCO em 1991 da Reserva Biosfera Vale do
Ribeira Serra da Graciosa que inclui a porção do Litoral norte do Paraná. Por sua importância
essa área vem sendo objeto de legislação e de proteção ambiental desde 1982. Essa região
também abriga o Porto de Paranaguá, o mais importante da região Sul do Brasil e o maior
exportador de grãos da América do Sul (ANDRIGUETTO, 1999, p.29). A Ilha do Amparo
está localizada no município de Paranaguá. O acesso ao local se dá via marítima. O tempo que
se demora no trajeto Paranaguá/Amparo é cerca de 30 minutos.

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Além de uma atividade econômica a pesca na comunidade de Amparo envolve


práticas tradicionais de conhecimentos sobre o mar, conhecimentos relativos a instrumentos
de pesca (redes, tarrafas), que são gerados e repassados de geração a geração e que se
reproduzem através da oralidade. É através de relações estabelecidas no parentesco que se
iniciam as primeiras atividades na pesca.
Arivaldo A. Pires, pescador nascido na comunidade conta que as suas primeiras
atividades na pesca aprendeu com os seus pais:
[...] Aprendi a pescar desde os meus quatorze anos acho. Aprendi com meus
pais, que eu andava com eles e aprendi várias coisas com eles. [...] aprendi
eu acho que foi tarrafear, primeira coisa que eu fiz foi tarrafear, não me
lembro, lembrei com você agora, segunda coisa depois foi a pesca de
espinhel, a terceira coisa foi pesca de gerival, de arrastãozinho, e agora de
rede, um monte de rede que eu tenho. Quase todas elas, arrastão,
arrastãozinho, gerival, que eu falei e tarrafa de jogar também fui eu mesmo
que fiz, e rede também eu faço (Arivaldo A. Pires, 2011) 4.

Josias do Rosário, pescador nascido na comunidade, afirma que aprendeu a pescar


com seu pai:
Com oito anos aprendi bastante coisa, a pescar camarão, pegar peixe,[...]
Com meu pai, ele me ensinou a remar, a governar canoa que eu não sabia
quando era criança e tem que saber tudo isso aí também, a puxar rede, larga
espinhel e jogar arrastão na água tudo isso ai que ele me ensinou [...] Agora
esses meus sobrinhos que tão crescendo ai a gente ensina eles, [...] dai eles
vão aprendendo, as crianças daqui,vão nascendo já sabem tudo já, parecem
que já sabem (Josias do Rosário, 2011)5.

José P. Honório relata que o aprendizado na pesca está relacionado a curiosidade:


Sim, como eu digo não é o pescador como muitas pessoas ele tem é
curiosidade. A pessoa já vai viver daquilo e não tem outro ramo pra viver, a
pessoa vai aprender com os mais velhos que tão pescando, a pessoa vai
aprendendo as mesma coisas. Se a pessoa era de tarrafa, de primeiro era
tarrafa jogada, aí começaram a fazer aquele binbalzinho aquele de vara
assim, de como que é de arrastãozinho que diz aí, a gente foi aprendendo
aquelas coisa cadê vez mais assim não é. É porque a pessoa aprende com os
outros, com os mais velhos (José P. Honório) 6.
Concebida como algo que permeia a esfera familiar, a pesca é também considerada
como uma profissão. Nessa concepção, José P. Honório relata que está encostado7 da
profissão de pescador no momento atual devido a sua doença. No entanto, se a pesca é

4
Pires, Arivaldo, Amanso (Entrevista concedida em 27/07/2011) Paranaguá, 2011. 3p. Arivaldo A. Pires nasceu
em 25/08/1954.
5
O Sr. Josias do Rosário nasceu em 28/01/1973. Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011.
Paranaguá, 2011.4p.
6
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
7
Expressão utilizada pelo depoente.

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concebida enquanto um trabalho é também algo considerado como uma segunda natureza por
José P. Honório:
É uma sobrevivência do pescador, o emprego do pescador a pesca. Sim,
como eu não posso pescar, olha eu fico até mais doente assim, a pessoa não
pode pescar a gente ta vendo ali, ruim que não tem quase o pescado pra
pescar, mas a pessoa dá aquela grande vontade de pescar, porque já foi assim
a natureza minha já foi mais de criação assim no mundo da pesca (José P.
Honório, 2011)8.

O significado da pesca para esses indivíduos está vinculado a uma noção de vida e
trabalho quase que como práticas indissociáveis. Dialogando com Edward P. Thompson
particularmente em sua obra Costumes em Comum, e voltando aos termos de comunidade
tradicional apresentados anteriormente9, a comunidade estudada apresenta um enfoque não
capitalista sobre a gestão de propriedade, nos termos de uma “economia moral”, no qual não
há dissociação entre vida e trabalho. Thompson em seu trabalho quando analisa o costume no
século XVIII, afirma que nas sociedades camponesas o costume constituía uma forma pela
qual se legitimava todo o uso ou prática reclamada. No século XVIII, nas sociedades rurais, o
aprendizado, se dava com a iniciação em habilitações de adultos, mas também servia para a
transmissão de geração para geração. A criança fazia seu aprendizado junto aos familiares e
junto a esse aprendizado se fazia também a transmissão das técnicas particulares, como
experiências sociais e sabedoria coletiva. O costume era uma pratica simbólica e material.

VIDA E TRABALHO: APÓS O ACIDENTE DO NAVIO VICUÑA NA BAIA DE


PARANAGUÁ

Aquele quando explodiu, nós estávamos assistindo em casa parece que era
uma novela das seis [...]. Ai, nós escutamos aquele barulho: bum. Foi um
grande barulho, daqui a pouco veio outro estalo, nós saímos pra fora e fomos
ver, deu outro estouro chegou até a dar uma tremida aqui. Nós só olhamos
pra lá, tava aquele fogo lá. Aquilo foi um desastre, o óleo foi demais e, um
óleo preto assim, um óleo queimado, meu pai do céu [...] a rede quem tinha
rede, a tarrafa assim quem deixo na água acabo com tudo (José Paulo
10
Honório, 2011) .

Teve com certeza [...] Teve alguns peixes mortos e ficou tudo, foi tudo
sempre um lado ruim para o pescador, o pescador como eu já citei, já ficou

8
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
9
Ver na página 3.
10
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.

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uns dias parado e morreu muitos peixes também na explosão (Mariano R.


Lourenço, 2011)11.

Morreu bastante [...] peixes e os passarinho da água, os passarinho biguá que


mergulha né, e pega peixes do fundo. O óleo bateu neles já fico as redes que
estavam ali na pedra ficaram todas sujas, perderam as redes (Josias do
Rosário) 12.

Os relatos acima se referem ao acidente do Navio Vicuña que ocorreu em 2004. O


acidente foi considerado um desastre ambiental na Baia de Paranaguá. Um dos jornais que
noticiou o acidente em Paranaguá foi o jornal Folha do Litoral. De acordo com o jornal, duas
explosões ocorreram no tanque de carga do navio Vicuña de bandeira chilena que estava
atracado no terminal da Catallini.

(Figura 2 e 3: Fotografias do acidente do navio Vicuña. Á esquerda Fotografia do Navio Vicuña em chamas, dia
16/11/2004, á direita vista área da mancha de óleo na Baía de Paranaguá. Fonte: Laudo Técnico do Vicuña
13
2005) .

Esta embarcação pertencia à empresa Sociedad Naviera Ultragás. O navio estava


carregado com 14 milhões de metanol, 1.150 toneladas de óleo combustível e 900 toneladas
de óleo diesel nos tanques. Após a explosão nove milhões de litros de metanol foram passadas
a Catallini e cerca de 5 milhões de litros foram responsáveis pela explosão. Parte dessa carga
ficou na Baía de Paranaguá. De acordo com o jornal Folha do Litoral (2004) logo após o
acidente a pesca foi proibida para evitar que as pessoas que consumissem tais alimentos não

11
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
12
Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.4p.
13
As fotografias estão disponíveis em: LAUDO TÉCNICO IAP/IBAMA (2005).. O Laudo pode ser encontrado
na integra na biblioteca do IAP/PR e no IBAMA/PR.

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fossem intoxicadas14. Ao total foram 51 dias em que a pesca foi proibida nas áreas atingidas
pelo acidente.
Em 2006 dois anos após o acidente, a Gazeta do Povo (2006) afirmou que, resíduos de
291 mil litros de óleo podiam ser encontrados no litoral paranaense. “Apesar de todo o tempo
decorrido, não se tem a real dimensão dos efeitos ambientais econômicos e sociais deixados
pelo acidente”. O jornal também afirmou que em alguns trechos do litoral como em
manguezais das Ilhas das Peças e Cotinga podiam ser encontrados resíduos de óleo junto à
vegetação e no fundo do mar 15.
Em sua maior parte os jornais abordam sobre as empresas e órgãos envolvidos ou não
no acidente, as multas, os danos pelos dias de proibição de pesca. Divulgando uma
abordagem mais geral do evento. Diferentemente, a percepção que os entrevistados têm sobre
o acidente, a paralisação da pesca e as medidas tomadas pelos órgãos envolvidos durante e
após o acidente foi algo vivenciado.
De acordo com os entrevistados, no dia em que houve o acidente as medidas dos
órgãos governamentais e empresas envolvidas foram de registrar as pessoas da comunidade
pra receber dinheiro pelos dias de paralisação da pesca, bem como pequenos serviços e cestas
básicas. Porém, de acordo com os relatos ainda nem todos receberam:
A eles chamaram o pessoal na colônia lá, e fizeram, tiraram Xerox dos
documentos e fizeram para receber dinheiro, mas até agora sai de pouquinho,
quer dizer já pagaram um pouco, já pagaram, mas não tá saindo tudo de uma
vez, já faz uns quatro cinco ano, já mais (Josias do Rosário, 2011) 16.

Olha eu acho que eu me lembre mesmo, que eu me lembre bem, só que


mandaram foi o povo no mar pra um serviçinho,[...] pagando para por as
proteção, para não passar óleo, vaza óleo, depois de uma semana quase, que
vieram com uma cesta básica aí para dar para os pescadores (José P.
17
Honório, 2011) .

A Catallini somente mandou pra nós uma cesta básica e nos trabalhamos aí
um mês na coleta do óleo, porque o óleo encostou muito aqui na costa, não
só aqui em Amparo, mas em todas as ilhas encostou e trabalhamos pra
Petrobrás, e Catallini um mês só (Mariano Rodrigues Lourenço, 2011) 18.

14
Dois mortos em explosão de navio em Paranaguá. Folha do Litoral, Paranaguá, 17 de nov. de 2004. Ano 3, nº
1325.
15
ÓLEO DO VICUÑA AFETA LITORAL, QUASE DOIS ANOS APÓS EXPLOSÃO. GAZETA DO POVO.
18 ago. 2006. Disponível em: www.cenacid.ufpr.br/vicunha2anos.doc. Acesso em: 10 ago. 2010.
16
Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.4p.
17
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
18
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.

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De acordo com os entrevistados, nos dias de paralisação a pesca não era praticada, e
logo após a normalização da pesca ocorreram mudanças no mar em relação à quantidade de
peixes e moluscos.
[...] Ah foi tudo, porque nós ficamos sem pesca não sei quantos dias parado
aí. Quando nós fomos pescar não tinha mais [...] tipo assim um peixe uma
tainha assim pela costa, não dava pra pescar, que o óleo ali prejudicou tudo,
todos os galhos, e os galhos assim na maré baixa ficaram cheios de óleo
(José Paulo Honório, 2011) 19.

Diferenciou bastante, porque o óleo é um produto que ele mata, não mata só
peixe, como mata os moluscos, a ostra, o bacucu, o siri tudo as criação do
mar, ele prejudica ele mata e aniquila. (Mariano Rodrigues Lourenço, 2011)
20
.

Apontei anteriormente que a noção de tempo construída pela comunidade de Amparo


é dinâmica e em vários momentos os indivíduos quando se referem ao acidente olham o
evento com os olhos atuais. O tempo percebido pelos indivíduos da comunidade é o tempo
vivido que traz em si uma singularidade própria. Enquanto que a memória resgata o que está
submerso no desejo e na vontade individual e coletiva, a história opera com o que se torna
público, recebendo todo um recorte cultural, temático, metodológico a partir do trabalho do
historiador. Na medida em que o historiador passa a trabalhar não mais apenas com
documentos tradicionais que retratam um passado longínquo, o uso da memória coletiva e
individual se projeta como uma possibilidade de trazer para o plano do historiador o registro
da própria reação vivida dos acontecimentos (MONTENEGRO, 1992, p.20). Ao utilizarmos o
termo memória, partimos do entendimento de que essa trabalha com o vivido e seu
significado genérico pode ser associado à presença do passado no presente. A memória é
seletiva e em parte herdada. As preocupações do momento se constituem em elementos
estruturantes da memória. Isso é verdade também para a memória coletiva. A escolha de datas
como exemplo é estruturada do ponto de vista político e assim, existe uma disputa de
memórias nesse âmbito também. Isso mostra que a memória é um fenômeno construído em
todas as suas dimensões. E se a memória é socialmente construída todo documento também o
é (POLLAK, 1992, p.4-5).
Considerar as razões que levam os indivíduos a construir suas memórias de
certas maneiras mais que distorções é algo relevante, pois o processo de relembrar
é um meio de explorar os significados subjetivos da experiência vivida e da natureza

19
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida em 28/09/2011. 2011) Paranaguá, 2011. 9p.
20
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.

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da memória coletiva e individual (THOMSON, 1998, p.66). A análise do modo como


os moradores mencionam como era a pesca antes do acidente ajuda a compreender
maior essa noção dinâmica de tempo, que além de uma “distorção”, julgo ser uma
percepção crítica que esses indivíduos constroem o modo como sentiram e sentem
os fatores que vem acontecendo em sua vida e trabalho.

Tinha mais produção, porque o mar é limpo, os peixes e os moluscos, eles


sobrevivem melhor no meio ambiente, porque o mar é uma coisa que tudo
que ele traz recolhe, não só o óleo mais tudo que joga na água, o mar acolhe
e aquilo ali vai prejudicando os peixes, os moluscos. Esse impacto aí que
ficou para nós aqui diferenciou bastante. (Mariano Rodrigues Lourenço,
21
2011) .

Ah quando era pescador de primeiro assim bem no começinho assim, como


eu to dizendo tinha muito mais peixe, mais camarão depois que começaram
as dragagens, essas dragagem já daqui pra Antonina, essas matança de peixe
ai que teve esses tempos, aí depois teve daquelas sardinhas que morreram22
por ai não é. Tá acabando com tudo o mangue assim, o peixe. O gueri de
primeiro, a turma aí para matar, matava o gueri de linha, pesca assim de
linha matava o peixe gueri. Agora nem tem é pouquinho (José Paulo
Honório, 2011) 23.

A memória e o processo de relembrar dos pescadores desempenham uma função. O olhar


do homem no tempo traz em si a marca da historicidade. Ao se dedicar a análise do passado o
historiador vai de encontro a outros tempos diferentes (DELGADO, 2003, p.10-11). As percepções
de mudança expostas nos relatos podem indicar também transformações no plano simbólico e no
material. Nesse sentido o passado dialoga com o presente e com possíveis expectativas do futuro.
Entendida como vida e trabalho para José P. Honório a pesca não é uma profissão desejada para
seus filhos. Nesse sentido quando perguntamos a José P. Honório se o que aprendeu na pesca é
repassado aos seus filhos ou familiares ele responde:

Sim, é por que esses meus filhos agora um já trabalha, um já pesco também
junto comigo já aprenderam a pesca. Agora outro já foi já pra outro ramo de
vida trabalhar pra cidade, que aqui na pesca tá muito fraco não dá não é. Eu
tenho outro guri que tá com 16 anos e eu vou ter que mandar pra cidade, tá
pescando também, mas... (José Paulo Honório, 2011) 24.

Arivaldo A. Pires comenta que não quer que seus filhos sejam pescadores:

21
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
22
José P. Honório está se referindo a morte de 100 toneladas de sardinha que ocorreu no início de 2011. Essa
notícia se encontra disponível em: <www.parana-online.com.br/media/uploads/2011/janeiro/05-01-
11/cid4050111.jpg">.
23
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
24
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011. 2011) Paranaguá, 2011. 9p.

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Não eu quero que eles não sejam, olha não quero essa, essa coisa que eu faço
pra eles, eu quero coisa melhor, porque o pescador eu acho que minha
atividade de pesca pra mim é uma boa, mais eu não quero para os meus
filhos isso aí, quero que eles sejam outras coisas e não pescador, por que
cada vez vai sendo, fica mais difícil a pesca [...] eu só to pescando hoje em
dia por que eu não tenho estudo se não eu não estava pescando (Arivaldo
Amanso, 2011) 25.

A comunidade de Amparo mesmo vivendo em seu cotidiano da pesca local não está
alheia a mudanças, conflitos e a interferências. As mudanças devido à poluição e a acidentes
ambientais é algo presente. O conhecimento da pesca que é repassado de uma geração a outra
se desmembra aos poucos, é algo que pode mudar as expectativas das imagens do futuro.
Estas mudanças são sentidas, vivenciadas e expressadas através dos relatos. Relatar o que foi
vivenciado mais que um registro é uma forma de se contrapor ao oficial, de lutar contra a falta
de peixes, de se contrapor as imagens atuais e de expressar a incerteza.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através da análise das fontes utilizadas no decorrer do artigo é possível delimitar


algumas considerações. A pesca para os indivíduos entrevistados é concebida como algo que
permeia a vida e o trabalho. Em tempos distintos o acidente através dos jornais, segue uma
linearidade. Ao trabalharmos com as entrevistas temos outra temporalidade, e que através da
história oral foi possível observar uma construção nos relatos. Compreender a construção nos
relatos é fundamental para entender a vivência. O acidente do Navio Vicuña que ocorreu em
2004 foi algo vivenciado. O tempo da história e o tempo próprio nos relatos reconstroem o
passado, mas principalmente reconstroem a vivência. Por fim, creio que existem ainda no
trabalho muitas questões em aberto nas quais não me aprofundei, mas espero que esse estudo
possa trazer um maior entendimento da complexidade da pesca.

FONTES UTILIZADAS

A) JORNAIS

Dois mortos em explosão de navio em Paranaguá. Folha do Litoral, Paranaguá, 17 de nov.


de 2004. Ano 3, nº 1325.

25
Pires, Arivaldo, Amanso (Entrevista concedida em 27/07/2011) Paranaguá, 2011. 3p.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 755

Óleo do Vicuña afeta litoral, quase dois anos após explosão. Gazeta do Povo. 18 ago. 2006.
Disponível em: www.cenacid.ufpr.br/vicunha2anos.doc.Acesso em: 10 ago. 2010.
Paranaguá terá aquário marinho. Especial para a Gazeta do Povo Matinhos. Curitiba. Jan.
2010. Disponível em:
http://ad\s.globo.com/RealMedia/ads/click_lx.ads/afrpc/gazetadopovo/online/verao/conte
udo/447456040/Midle/defau l t /e m p t y.g i f /7655752f6955314a2b74594142635930.
Acesso em: fev. de 2010.

B) RELATÓRIO TÉCNICO

LAUDO TÉCNICO IAP/IBAMA (2005). Relatório técnico sobre o acidente ambiental do


Navio Vicuña ocorrido na Baía de Paranaguá em 15/11/2004.
Entrevistas transcritas
Pires, Arivaldo, Amanso (Entrevista concedida em 27/07/2011 2011) Ilha do
Amparo/Paranaguá, 2011. 3p.
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011. 2011) Ilha do Amparo/Paranaguá,
2011. 9p.
Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011. 20112011) Ilha do Amparo/Paranaguá,
2011.4p.
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011. 2011 em, 2011) Ilha do
Amparo/Paranaguá, 2011.3p.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRIGUETTO, F. M. J Sistemas Técnicos de Pesca e suas Dinâmicas de


Transformação no Litoral do Paraná. 1999. 256 f. Tese (Doutorado em Meio Ambiente e
Desenvolvimento) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba. 1999.
ALBERTI, V. Manual de História Oral, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
ANGULO, R. G Mapa Cenozóico do Litoral do Estado do Paraná in: Boletim Paranaense de
Geociências, n. 55,: Editora UFPR, Curitiba, 2004. p. 25-42,
DELGADO, N. L. A. História Oral e Narrativa: tempo, memória e identidades. In:
HISTÓRIA ORAL, 6, 2003, p. 9-25
DIEGUES, A. C. Esboço de História Ecológica e Social Caiçara, in: Enciclopédia Caiçara,
v.4: História e Memória Caiçara/ Antonio Carlos Diegues – São Paulo: Hucitec Nupaub,
2005.
POLLAK, M. Memória e Identidade Social. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n.
10, 1992, p. 200-212.
PORTELLI, A. The Death of Luigi Trastulli, and Other Stories: Form and Meaning in
Oral History. Albany: State University of New York.1991.
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Rio de Janeiro: Companhia das Letras. 1998.
THOMSON, A. Os Debates sobre Memória e História: alguns aspectos internacionais. In:
AMADO, J; FERREIRA, M. de M. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. da
FGV, 1998.
WORSTER, D. Para Fazer História Ambiental. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, \101.
4, n. 8. 1991, p. 198·215

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ST 12 – PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL:
REFLEXÕES E RELATOS DE PRÁTICAS
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 757

POSSIBILIDADE DE ESPAÇO PARA EDUCAÇÃO PATRIMONIAL: O PARQUE


HISTÓRICO DE CARAMBEÍ

Bianca Viviane Barão (Especialização em História, Arte e Cultura-UEPG)

Juliana Pegoraro Kus (Especialização em História, Arte e Cultura-UEPG)

Palavras-chave: Patrimônio Histórico, Educação Patrimonial; Parque Histórico de Carambeí.

Para estudar a Associação Parque Histórico de Carambeí (APHC), localizada na região


dos Campos Gerais do Paraná, como objeto central no âmbito do Patrimônio Histórico
partimos do conceito de museu não somente como reconstrução do passado, mas sim como
equipamento social urbano que contribui para o entendimento do dia-a-dia, pois está inserido
em um espaço de representação da imigração holandesa. Podemos, juntamente, analisa-lo
como fator educacional no cotidiano da comunidade carambeiense levando em consideração o
desenrolar da colônia desde seu início, aproximadamente em 1910.

No início do século XX, os Campos Gerais do Paraná vivenciava um novo ciclo, que
acabou por formar um dos maiores grupos de imigrantes holandeses no Brasil. Iniciando nas
terras da Fazenda Carambeí, hoje município de Carambeí, e também nas cidades de Castro e
depois Arapoti instalaram-se os novos imigrantes chegados da Holanda, estabelecendo uma
convivência cooperativa. Desde então, a presença holandesa no país permaneceu de forma
crescente até os dias de hoje.

Foi o início de um bem sucedido movimento imigratório holandês. A experiência


holandesa na agricultura contribuiu para acelerar o desenvolvimento dessa comunidade e para
impulsionar a produção de lacticínios, uma das características da cultura europeia. O resultado
obtido pelos pioneiros em Carambeí trouxe novos imigrantes e solidificou a presença
holandesa no recém-emancipado Estado do Paraná.

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Estruturada economicamente através da gestão cooperativa de uma das maiores


agroindústrias do país, Carambeí foi emancipada em 1995. A consolidação da cidade
desenvolveu uma identidade local, e a continuada relação com as origens holandesas manteve
o intercâmbio de informação, conhecimento e valores culturais com a Europa.

Fruto da tentativa de preservar a história dos imigrantes holandeses, a Casa da


Memória de Carambeí tem sua estrutura instalada no antigo e bem preservado estábulo que
pertencia a família De Geus. O edifício, de 1946, foi o primeiro em alvenaria de Carambeí e
possui 1.100m². Esse espaço é a base conceitual do Parque Histórico de Carambeí, pois sua
estrutura física e acervo pesquisam e organizam a matriz cultural da imigração holandesa nos
Campos Gerais e no Brasil.

Sua estrutura é dividida em dois pisos e conta com milhares de itens que foram
utilizados pelos imigrantes holandeses, desde utensílios, equipamentos, fragmentos,
representações imagéticas, grande acervo composto por livros, documentos, entre outros.

Ligado à importância desse histórico é interessante salientar que toda a rede de


educação de Carambeí, município com quase 20 mil habitantes1, possui em seu calendário
letivo datas específicas para as atividades ligadas a Associação Parque Histórico de Carambeí.
Considerando que escolas municipais, estaduais e particulares programam que todas as séries
sigam a mesma temática, podemos perceber uma grande tentativa de legitimação da cultura
holandesa, neste caso referindo-se à iniciativa de propagar a tradição e identidade holandesa
no município através das visitas ao Parque – um local recebedor, criador e transmissor de
história, memória, tradição, identidades, entre outros tantos conceitos que podem ser
aplicados a determinado espaço.

Retomando esta parte da história entendemos como se faz necessário a preservação da


memória, da preservação do acervo das comunidades originárias, as tradições socioculturais e
todo o processo social que resultou no que ela é hoje.

1
Carambeí Hoje. Disponível em <http://www.carambei.pr.gov.br/?q=node/49> acessado em 13 de agosto de
2012.

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No que tange a questão educacional por parte da comunidade holandesa no município


de Carambeí no início das décadas de 1900, podemos nos nortear pela fala de Subtil2, que
afirma que desde os primeiros tempos da colonização, a função da educação na colônia
holandesa é aprontar crianças para tornarem-se adultos, encarar a vida, aprender como se
comportar e aprender a lidar com as pessoas3. A primeira educação acontecia na família,
embora também estivesse relacionada à Igreja: em casa as crianças da colônia aprendiam os
costumes, o que pode e o que não pode; na escola dominical a religião. Isso é confirmado por
Cordeiro, ao relatar que, no início do século XX, o Estado brasileiro não dava conta de
atender as demandas por educação da população:

[...] imigrantes preocupados com a educação e com a religião, devido a carência de escolas
brasileiras, foram levados a ensinar seus filhos desde o início, ao mesmo tempo em que
conservavam a sua cultura através de professores da mesma etnia 4.

Faz-se importante lembrar que até a década de 1930 a escola da colônia dividia espaço
com o templo. Como não havia lugar próprio e nem adequado para as aulas e como
geralmente o templo somente era utilizado aos finais de semana, era nesse mesmo local que
ensinavam as primeiras noções de leitura, escrita e cálculo. Somente após 1930 foi construída
pela comunidade a Escola de Pilatos. Nesse período vários professores brasileiros com
vínculo empregatício junto ao Estado do Paraná ministravam aulas de português.

A ação educacional da colônia holandesa efetivou-se tanto na educação formal quanto


na educação informal, por meio de algumas iniciativas de cursos complementares necessários
à qualificação profissional e à continuidade dos estudos dos membros mais jovens do grupo,
todos viabilizados por meio de iniciativas da comunidade holandesa. Existiam cursos de
Economia Doméstica, Agropecuária, Madureza entre outros.

Tornava-se clara a necessidade de ampliação do sistema educacional da colônia. Com


esta intenção, na época (década de 50 e 60) a diretora da Escola de Carambeí Pilatos
estabeleceu três objetivos primordiais para a nova instituição: 1º lugar – manter o caráter
cristão do ensino; 2º lugar – tornar o ensino o mais amplo possível; e 3º lugar- ao lado do

2
Licenciada em Educação Musical pela Faculdade de Artes do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa. Doutora em Engenharia de Produção-Mídia e conhecimento pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Pesquisadora Sênior do Mestrado em Educação da UEPG.
3
BOER, Jelltje de. A história do ensino em Carambeí. Carambeí, 2010. (Não Publicado)
4
CORDEIRO, Sonia V. A. Lima. A constituição da escola evangélica de Carambeí: uma instituição
educacional da imigração holandesa na região dos Campos Gerais. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2007, p.55.

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ensino oficial em português, manter o ensino da língua holandesa. Estes pilares são
percebidos até os dias de hoje em suas restritas relações e tentativas de perpetuação da cultura
holandesa.

Após esta pequena explanação sobre o processo educacional na colônia holandesa,


partimos agora para nosso objeto central de análise, que é a Educação Patrimonial, em
específico a Associação Parque Histórico de Carambeí. Se faz de grande valia em um
primeiro momento contextualizar o interesse brasileiro na preservação e construção de sua
memória e identidade nacional.

Consideremos que em meados do século XIX já existia uma inquietação relacionada à


construção da memória nacional em nosso país. Após a emancipação política do Brasil, foram
criadas instituições educacionais e científicas, com objetivo principal de construção de uma
memória sólida e um passado homogêneo para a burocracia estatal, definindo o que viria a ser
o Brasil. Segundo Schwarcz foram criados os Institutos Históricos, os Museus Etnográficos,
as Faculdades de Medicina, as Escolas Politécnicas e, principalmente, as Faculdade de
Direito, que forneceram os quadros da elite burocrática do Império e dos primeiros anos da
República5.

Era de extrema relevância a criação de uma identidade nacional para o recém-formado


Estado brasileiro. Esta tarefa ficou sob responsabilidade da “inteligência” nacional, assentada
principalmente no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), com a proteção de
Dom Pedro II promovendo a construção de nossa história e sendo posteriormente um dos
precursores da política de preservação do Patrimônio Histórico brasileiro6.

Constitui-se nesse mesmo período a criação e o efetivo funcionamento do Arquivo


Nacional (1838), já previsto na primeira Constituição do Império, que tinha como tarefa
primordial a sistematização da documentação indispensável à construção do passado (art.70
da Constituição de 1824)7.

5
SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 –
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
6
FERNANDES, José Ricardo Oriá. SPHAN: a politica de patrimônio histórico no Brasil (1838 - 1937).
7 “
Art.70 da Constituição de março de 1824. Assignada a lei pelo Imperador, referendada pelo Secretário de
Estado competente, e selada com o Sello do Império, se guardará o original no Archivo Publico, e se remetterão
aos Esemplares dela impressos a todas as Camaras do Imperio, Tribunaes, e mais Logares, onde convenha fazer-
se publica”. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao> Acessado em 02/07/2012.

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O IHGB já tinha como por finalidade “coligir, metodizar e guardar documentos” 8.


Assim, a função até então reservada ao Arquivo Nacional acabou por ser desenvolvida pelo
Instituto, que passou a empreender e incentivar visitas em arquivos estrangeiros, com
finalidade própria de coletar documentos para escrever a história do Brasil. Claramente uma
preocupação expressada pela elite brasileira, concretizada com a criação da “Inspetoria dos
Monumentos Históricos Nacionais” em 1934 por Gustavo Barroso.

Por formularem uma história para a nação e desenvolverem uma nomenclatura própria
na historiografia brasileira, consideramos os Institutos Históricos como “lugares de
memórias” 9 e precursores da política patrimonial. Assim a história que orientou grande parte
das iniciativas de preservação do patrimônio nasceu nos Institutos Históricos, a partir de
meados do século XIX, e serviu de auxiliar na tarefa de construir a nação ou para ressaltar a
importância de uma determinada região no contexto geral do país.

A partir dos anos 1920 a preocupação com o patrimônio se intensificou, gerando


projetos de lei de parlamentares e criação de órgãos estatais para proteção do Patrimônio
Histórico. Neste contexto, destaca-se a importância do movimento modernista principalmente
na pessoa do escritor Mário de Andrade que, com seu objetivo de “abrasileirar os brasileiros”,
contribuiu para a formação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)
em 193710.

Entretanto, somente na década de 1930 que se iniciaram as ações mais consistentes e


menos pontuais no tocante a preservação de nossa memória histórica em nível nacional.

O Decreto – Lei n° 25, assinado por Getúlio Vargas em 30 de novembro de 1937, viria
organizar o trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que
criava a figura jurídica do tombamento como instrumento tutelar de preservação aos bens
culturais. Estava, portanto, institucionalizada a política federal de proteção ao Patrimônio
Histórico Nacional.

8
SCHWARCZ, Lília M. Os Guardiões da nossa história oficial. São Paulo: IDESP, 1989, p.04.
9
MAGALHÃES, Aline Montenegro. A curta trajetória de uma política de preservação: a Inspetoria dos
Movimentos Nacionais. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Vol.36, 2004.
10 GIOVANAZ, Marlise. Mário de Andrade: ativista da preservação do Patrimônio Cultural do Brasil. Revista
da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Porto Alegre, n. 31, jan-jun 2002. p. 210.

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A política de preservação que norteou a prática do SPHAN objetivava passar a ideia


de uma memória mítica, de um passado homogêneo e uma história sem conflitos e
contradições sociais, forjando uma memória nacional única para o País, excluindo as
diferenças e a riqueza de nossa pluralidade cultural, uma história formada por heróis da nossa
pátria.

Pensamento que caminha contrário ao que o historiador Jacques Le Goff11 nos deixa
claro: que a memória faz conservar através de imagens, inscrições, desenhos, documentos a
lembrança de fatos consideráveis sobre a constituição da história. A composição das
memórias estabelece uma importante função social, na medida em que produz informações
mesmo ante a ausência de dados escritos, baseando-se no estudo de objetos que marcaram o
seu acontecimento.

Neste sentido, os museus históricos podem ser considerados como locais de potencial
possibilidade de estudo. Os objetos em exposição, escolhidos de acordo com determinados
critérios de quem os organizou, trazem consigo uma parte do contexto em que foram
utilizados. No Parque Histórico de Carambeí (PHC), o principal intuito das exposições fixas é
mostrar como os imigrantes holandeses viviam nos primeiros anos após a imigração.

Ao observar elementos passados constitutivos de sua comunidade o ser humano pode se


reconhecer, o que quer dizer que ele referenda a memória-história exposta no museu, seja
ela oficial ou não, como também pode não se identificar e, dessa forma, o objeto exposto
perde o sentido, pois não representa mais a história daquele grupo humano específico 12.

Numa comunidade em que é marcante a presença de traços culturais holandeses, as


iniciativas expostas no início do texto em relação a promover visitas escolares ao PHC vêm
de encontro com o que descreve a citação acima. O reconhecimento da comunidade é
estimulado a partir do público escolar, que institucionalmente é levado a conhecer o Parque e
a história da formação de seu município. Assim, mesmo que inicialmente não se identifique
com a cultura holandesa, contrói em seu imaginário a história da cidade a partir da ótica da
colonização holandesa.

11
LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento. In: História e Memória. 3ª Ed. Campinas: Editora da Unicamp,
1994.
12
Licenciatura em História - Oficina de História IV por Angela Ribeiro Ferreira e Elizabeth Johansen. Ponta
Grossa: UEPG/NUTEAD, 2010, p. 21.

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Partindo do conceito de que a história tem a capacidade de nos ajudar a compreender o


mundo, as reflexões da autora do livro “O que é História?” são bastante pertinentes para
apresentação do sentido das visitas aos museus por parte de alunos e demais turistas e suas
influências nesse meio:

As alterações são decorrentes da ação dos próprios homens, sujeitos e agentes da história.
[...] Sua finalidade é estudar e analisar o que realmente aconteceu e acontece com os
homens, o que com eles se passa concretamente. [...] Explicar as transformações sociais
esclarecendo seus comos e porquês leva a perceber que a situação de hoje é diferente da de
ontem [...] O homem vive em um determinado período de tempo, em um espaço físico
concreto; nesse tempo e nesse lugar ele age sempre, em relação à natureza, aos outros
homens, etc. [...] Mesmo quando se analisa um passado que nos parece remoto, portanto,
seu estudo é feito com indagações, com perguntas que nos interessam hoje, para avaliar a
significação desse passado e sua relação conosco 13.

O direito a memória só é garantido quando a comunidade se torna consciente de seu


papel fundamental de guardiã do próprio patrimônio. Desta forma, passa a impedir a sua
degradação e a destruição do meio ambiente, imóveis e objetos culturais, numa ação de
salvaguarda preventiva. Algumas atividades nesse sentido são desenvolvidas no decorrer do
ano letivo com os alunos que visitam o APHC.

Nos períodos de atividades ligados ao IBRAM, tais como Semana de Museus,


Primavera de Museus e ações correlatas, é trabalhada a questão da consciência histórica, da
preservação e conservação de peças na visita dos escolares ao museu. Essa instrução é
comumente repassada pelos guias em todas as suas monitorias.

Conjunto as visitas monitoradas, é trabalhado ainda com a perspectiva que cada aluno
tem do APHC, conhecimento representado em fotos, pinturas, poesias e mais tarde gerando
exposições apresentadas a pais, alunos e comunidade. Proposta que tenta fornecer aos alunos
o conceito de “memória coletiva”, demonstrando que mesmo ele não sendo um descendente
holandês ele e sua família possuem uma grande parcela na construção da identidade de seu
município.

Segundo Sérgio Luiz Gadini14, um dos méritos do pensador Maurice Halbwachs15 diz
respeito ao conceito de “memória coletiva”. Os estudos referenciais desse sociólogo francês16

13
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história? Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, 2005.
14
Graduado em comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (1990), doutor em Ciências da
Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2004). Professor adjunto da Universidade

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indicam que a memória individual seria a base da “recordação”, mas se efetiva a partir de
algum suporte social, que tende a tensionar a percepção individual com as memórias dos
outros (atores), imprimindo uma dimensão coletiva às percepções dos atores que partilham
das mesmas experiências ou situações.

Neste sentido ainda segundo Gadini:

É deste modo que as memórias não estão restritas aos pensamentos humanos, mas ganham
visibilidades em objetos, imagens e, claro, lembranças que tais personagens tendem a
expressar nas incontáveis relações (de lembranças) da vida cotidiana. Sem a contribuição
de Maurice Halbwachs, seria difícil pensar agora que simples e pequenos utensílios
poderiam se tornar importantes para contar histórias e registrar experiências – sejam
dificuldades, desafios, desencantos ou conquistas 17.

No caso específico do PHC, como é um museu que remete a somente uma cultura, a
holandesa, percebe-se inerente à construção do espaço a sua ligação intrínseca com o
território. Uma vez que o conceito de território diz respeito às diversas manifestações de
apropriação de espaço pelo ser humano.

Para que o patrimônio material seja efetivamente preservado, uma eficiente política de
preservação deve ser integrada a comunidade, atingindo a educação em todos os níveis.
Assim, a necessidade de manter viva a herança cultural de nossos antepassados torna-se uma
demanda disseminada na sociedade, o que garante pelo menos o interesse em conhecer os
processos de preservação.

Estadual de Ponta Grossa, membro do Conselho Editorial de várias publicações, entre as quais, a Revista Pauta
Geral, Revista Internacional de Folkcomunicação, Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo,
Revista Latino Americana de Geografia e Gênero e Revista Emancipação, editor-executivo da revista Folkcom e
consultor de outras publicações. Integra o corpo docente do Programa do Mestrado em Comunicação junto a
Universidade Federal do Paraná e é Presidente do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ)Gestão
2010/2012
15
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
16
CASADEI, Eliza Bachega. Maurice Halbwachs e Marc Bloch em torno do conceito de memória coletiva.
Revista Espaço Academico, n.108, maio/2010. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewfile/9678/5607>
17
GADINI, Sérgio Luiz. Memórias de objetos, imagens e ousadias humanas: recortes da imigração holandesa em
Carambeí. In CHAVES, Niltonci Batista. Imigrantes – Immigranten. História da Imigração holandesa na região
dos Campos Gerais, 1911-2011. Falando de Histórias II: Imigrantes, Educação, Culinária, Meio Ambiente,
Tecnologia, Memórias/ Niltonci Batista Chaves (Org.). Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2011, p.124.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001.

BOER, Jelltje de. A história do ensino em Carambeí. Carambeí, 2010. (Não Publicado)

BORGES, Vavy Pacheco. O que é história? Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense,
2005.

CASADEI, Eliza Bachega. Maurice Halbwachs e Marc Bloch em torno do conceito de


memória coletiva. Revista Espaço Academico, n.108, maio/2010. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewfile/9678/5607>

CHAVES, Niltonci Batista. Imigrantes – Immigranten. História da Imigração holandesa na


região dos Campos Gerais, 1911-2011. Falando de Histórias II: Imigrantes, Educação,
Culinária, Meio Ambiente, Tecnologia, Memórias/ Niltonci Batista Chaves (Org.). Ponta
Grossa: Estúdio Texto, 2011.

CORDEIRO, Sonia V. A. Lima. A constituição da escola evangélica de Carambeí: uma


instituição educacional da imigração holandesa na região dos Campos Gerais. 2007.
Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa,
2007.

FERNANDES, José Ricardo Oriá. SPHAN: a politica de patrimônio histórico no Brasil (1838
- 1937).

GIOVANAZ, Marlise. Mário de Andrade: ativista da preservação do Patrimônio Cultural do


Brasil. Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Porto Alegre,
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.

HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento. In: História e Memória. 3ª Ed. Campinas:


Editora da Unicamp, 1994.

MAGALHÃES, Aline Montenegro. “A curta trajetória de uma política de preservação: a


Inspetoria dos Movimentos Nacionais” In: Anais do Museu Histórico Nacional. Vol.36, 2004.

POSSAMAI, Zita Rosane. Entre chapéus, fotos e fantasias de momo: as artimanhas do


percurso museal. Disponível em: <HTTP://www.revista.iphan.gov.br/matéria.php?=194>.
Acesso em 23/07/2012.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 766

SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no


Brasil (1870 – 1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

__________. Os guardiões de nossa história oficial. São Paulo: IDESP, 1989.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 767

ARTE NO SILÊNCIO: EDUCAÇÃO PATRIMONIAL EM CEMITÉRIOS

Clarissa Grassi (Relações Públicas,


presidente da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais)

Palavras-chave: cemitérios, educação patrimonial, arte tumular

A presente comunicação tem por objetivo relatar duas ações de educação patrimonial
realizadas nos Cemitérios São Bento, em Araraquara/SP, com o apoio do SESC Araraquara, e
São Francisco de Paula, em Curitiba/PR, com o apoio da Fundação Cultural de Curitiba.
Ainda que difiram em suas abordagens e materiais de suporte utilizados, propõem uma
reflexão sobre a realização de visitas guiadas a cemitérios como ações de educação
patrimonial e divulgação dos campos santos como objetos de pesquisa e espaços de
representações simbólicas acerca das sociedades em que foram construídos.

A ESTRUTURAÇÃO DO PASSEIO “ARTE NO SILÊNCIO” EM ARARAQUARA/SP

Criado em agosto de 2011 pela coordenação de programação cultural da unidade do


Serviço Social do Comércio, SESC, em Araraquara/SP, o programa “A cidade é uma viagem”
desenvolve roteiros nos quais a cidade e seu entorno são apresentados na perspectiva de um
novo olhar, com foco na valorização da história, cultura e identidade local. Os encontros
realizados pelo “A cidade é uma viagem” buscam propiciar um maior conhecimento dos
moradores em relação à cidade, constituindo instrumentos de educação para o conhecimento
como forma de ampliar o sentimento de pertencimento das pessoas em relação à sua
comunidade, tornando-se, portanto, fundamentais para o exercício da cidadania e o
fortalecimento de uma relação harmoniosa entre pessoas, espaços e culturas. Entre os roteiros
já realizados pelo SESC Araraquara estão: “Arquitetura dos Templos Urbanos”, “Arquitetura
dos Templos Rurais”, “Delícias de Bueno de Andrada”, “Fachadas e Histórias das Ruas do
Centro”, “Pessoas e lugares que fizeram a história de Araraquara”, “Passeio Verde”, entre
outros.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 768

O desenvolvimento da visita guiada “Arte no Silêncio” foi uma iniciativa conjunta


com o SESC Araraquara para o projeto “A cidade é uma viagem”, com o objetivo de
proporcionar uma nova leitura a respeito dos cemitérios, apresentando estes espaços para além
da sua funcionalidade, enquanto patrimônio cultural capaz de revelar aspectos importantes
sobre a cidade, sua história e seus personagens. O passeio “Arte no Silêncio” foi estruturado e
realizado no Cemitério São Bento, nos anos de 2011 e 2012, atendendo no total a mais de 70
participantes.
A elaboração dos roteiros é sugerida pela coordenação de programação cultural, que
escolhe os temas principais e busca profissionais com pesquisas e trabalhos afins à atividade
pretendida para a realização do planejamento, pesquisa e execução dos passeios. Foi buscando
uma abordagem sobre turismo e arte tumular no Cemitério São Bento, cemitério mais antigo
da cidade de Araraquara, que a coordenação de programação cultural fez contato, solicitando
um projeto de visitação guiada para o mesmo. A proposta para elaboração do passeio incluía
duas idas à cidade de Araraquara para pesquisa de campo e levantamento das informações
necessárias à elaboração do passeio, e uma terceira ida para a realização efetiva da visita.
Duas viagens foram realizadas à cidade no intuito de realizar o levantamento
fotográfico dos túmulos do cemitério, assim como efetuar a pesquisa acerca da história e
construção do mesmo. Como os livros de registro de sepultamentos mais antigos haviam sido
encaminhados para restauro, não foi possível um maior aprofundamento sobre os primeiros
enterramentos, datas e características das inumações. As informações foram coletadas junto à
Administração do Cemitério e compiladas em um texto sobre as características gerais do
campo santo. De posse dessas informações, foi efetuado o levantamento fotográfico dos
túmulos de maior relevância em relação à arte tumular, resultando cerca de 800 imagens.
Desse montante de fotos, 38 túmulos foram selecionados para fazer parte do roteiro de
visitação.
Durante a segunda visita à cidade foi elaborado o trajeto de visitação, enfatizando,
através da sequência de túmulos, a história do cemitério, suas ampliações, assim como os
primeiros materiais utilizados na confecção de esculturas como o mármore, sendo seguido do
bronze e dos túmulos mais simples, que refletem o padrão dos dias atuais.
Em função da grande quantidade de túmulos de milagreiros, pelo menos doze
identificados durante a pesquisa de campo, os quatro milagreiros de maior popularidade na
cidade também foram incluídos no roteiro. Muitos deles não têm qualquer registro sobre

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 769

como teriam iniciado a concessão de graças, mas a maioria possui grande número de ex-votos
dos túmulos. Apenas no caso do menino Nelsinho Santana, morto aos nove anos, cujos
milagres são estudados pelos Missionários Redentoristas, encontra-se em um processo efetivo
para beatificação pela igreja católica. Outro beato muito procurado é o escravo Eduardo, cujo
túmulo concentra placas de ex-votos, preces e oferendas de umbanda.
Executar apenas uma visita guiada, sem material de apoio, poderia gerar uma
aproximação e sensibilização da população acerca do cemitério e sua necessidade de
preservação. Entretanto não seria algo tangível ao término do passeio. Segundo Poulot (2009,
p.15), a apropriação por um público – a maneira como o patrimônio é visitado, interpretado e
exerce influência – está associada também às formas de sua apresentação, assim como ao
olhar, bem acolhido ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários.
Para concretizar não apenas a visitação em si – mas também as informações
repassadas acerca da arte tumular, do cemitério e sua produção escultórica – foi criado um
guia ilustrado com os 38 túmulos constantes no passeio e mapa com o roteiro. Um texto de
abertura abordava a criação dos cemitérios extra muros após a proibição do enterro ad sanctos
(no terreno ou contíguo às igrejas). Fazendo um contraponto com o movimento de criação dos
cemitérios na Europa e com a aplicação da legislação de criação dos mesmos no Brasil, o
texto fazia uso de autores como Phillippe Ariès e Michell Vovelle para falar da “morte
burguesa”, que busca através da arte tumular a individualização do morto, negação da morte e
demonstração de poder. Em seguida, apresenta uma breve explanação sobre progressão da
visão de morte e sua influência na arte tumular.
Um segundo texto abordava a questão do Cemitério São Bento com sua história e
características marcantes, percebidas durante o processo de pesquisa. Na página seguinte, o
mapa do cemitério indicava a sinalização numerada dos túmulos a serem visitados, seguido
das leituras dos túmulos por ordem de visitação. Fotos foram utilizadas para a identificação de
cada um dos túmulos, assim como a referência de rua e quadra. Ao final das leituras dos
túmulos, um texto baseado em Bellomo (2000, p.15) abordava a importância cultural dos
cemitérios e suas potencialidades enquanto objeto de pesquisa para:
- Fonte para conhecer formação étnica;
- Preservação da memória familiar e da comunidade;
- Fonte de estudo das crenças religiosas;
- Forma de expressão da ideologia política;

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- Expressão do gosto artístico;


- Indicadores da evolução econômica e dos padrões da população local;
- Fonte sobre perspectiva de vida;
- Fonte reveladora das posições da população local perante a morte.
Um glossário encerrava o guia, trazendo o significado de termos como: alegoria,
epitáfio, colunata, entre outras palavras utilizadas ao longo do guia. Como a leitura desses
textos sobre arte tumular e a importância cultural dos cemitérios seria inviável e cansativa
para ser realizada durante a visitação, foi programada uma apresentação antes do passeio, com
duração de 20 minutos, onde esses tópicos foram explanados para os participantes.

O CEMITÉRIO SÃO BENTO

Araraquara é uma cidade localizada na região central do estado de São Paulo, distante
277 quilômetros da capital. Com cerca de 210 mil habitantes, foi fundada em 22 de agosto de
1817 e elevada à categoria de cidade em 6 de fevereiro de 1889. Inaugurado em 1895, o
Cemitério São Bento configura-se hoje como o campo santo mais antigo da cidade. Existem
relatos da existência de mais um cemitério na cidade, anterior à inauguração do São Bento,
mas que foi desativado e transformado em uma praça ainda no século XIX.
Em suas 11 mil sepulturas, que abrigam mais de 70.000 inumações, é possível
observar as ampliações e modificações no uso de materiais conforme as épocas de
sepultamento. Seguindo um traçado ortogonal, com a capela inserida ao centro do terreno, o
cemitério possui a grande maioria dos túmulos horizontalizados (são poucos os exemplares de
jazigos capela), não sendo permitida a construção de sobreposições de carneiras.
Ainda que seja uma característica de cemitérios de imigrantes alemães, as crianças
receberam uma área específica para enterramentos ainda no século XIX. Anjos e crianças
talhados em mármore adornam túmulos datados entre 1895 e 1896, época em que, segundo
funcionários do cemitério, a cidade foi assolada por uma epidemia de febre amarela.
A presença de esculturas executadas por profissionais renomados como Eugênio Prati,
Roque de Mingo, I. Martinelli e Ottore Zorlini confere ao campo santo suntuosidade
semelhante aos cemitérios da Consolação e Araçá, em São Paulo. A proximidade com a
capital do estado talvez tenha propiciado às famílias a oportunidade de encomendar as peças
diretamente desses escultores, nomes marcantes na arte tumular da capital paulista. A

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 771

apresentação de um maior número de esculturas executadas em mármore nas primeiras


quadras também denota a progressão no uso de materiais para a arte tumular. O mármore
marcou a construção de túmulos até o final do século XIX, sendo posteriormente substituído
pelo uso do bronze até as esculturas caírem em desuso, como nos dias atuais. Nas quadras 2B
e 2C a presença de túmulos infantis datados da década de 1950 e 1970, seria consequência do
alto índice de mortalidade infantil à época, que teria chegado, ainda segundo os funcionários,
a até 30 inumações em um mês.

A REALIZAÇÃO DAS VISITAS

Trabalhar com o cemitério como temática central sempre acarreta um maior cuidado
na divulgação da ação, já que ainda trata-se de tabu, assunto interdito. O maior entrave a ser
ultrapassado era suscitar na população a vontade de fazer parte do passeio em um local por
muitos considerado como lúgubre e que remete somente à morte. Diante disso, optou-se pela
estruturação e difusão do passeio através de imagens que não configurassem literalmente
túmulos e sim detalhes das esculturas de maior relevância artística.
A primeira visita foi agendada para um sábado, dia 06/08/2011, às 10h. O processo de
divulgação do passeio foi feito através dos meios de comunicação disponibilizados pelo SESC
Araraquara, como a programação impressa de atividades para o mês, site e cartazes, sendo
realizado com uma antecedência de 20 dias. Foram abertas 30 vagas para participação gratuita
na atividade e, antes mesmo da data de realização do passeio, já haviam sido preenchidas. Os
participantes, em número de 27, assistiram à apresentação de um arquivo com imagens e
explicações acerca da arte tumular e história dos cemitérios e seguiram com o ônibus fretado
pelo SESC para o cemitério. A visita transcorreu em um período total de três horas. Dentre os
participantes, foi notada a presença de crianças e pessoas idosas, o que surpreendeu a
organização do passeio. Ao término do trajeto, após a entrega do lanche, os participantes
foram convidados a preencher uma pesquisa avaliando toda a estrutura do passeio, o que
resultou em um retorno extremamente positivo. Em função da avaliação positiva da primeira
edição do passeio, no mês de abril deste ano foi realizada nova visitação, dessa vez com 34
participantes. Em ambas as visitas, participantes que não chegaram a efetuar a inscrição
também realizaram o passeio. Alguns compareceram especialmente para a visitação, enquanto

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 772

que outros, que visitavam o cemitério no momento do passeio, juntaram-se à turma para
acompanhar as atividades.
Nas duas visitas realizadas fica visível a reação dos participantes com relação à
mudança de visão acerca do cemitério, não mais como local apenas destinado aos
enterramentos, mas como lugar potencial de visitação turística e repleto de arte e beleza.
Outro retorno interessante foi dado pela Secretaria de Cultura de Araraquara, que solicitou o
envio de guias impressos em função da procura pela população local e de turistas pelo
material.

A ESTRUTURAÇÃO DO PASSEIO “ARTE NO SILÊNCIO” EM CURITIBA/PR

Após a realização da visita em Araraquara/SP, buscou-se junto à Fundação Cultural de


Curitiba o apoio para a realização de uma visita guiada ao Cemitério Municipal São Francisco
de Paula durante a Corrente Cultural. O evento nasceu do diálogo iniciado em 2008 por um
grupo de agentes culturais de instituições públicas e privadas com o objetivo de, entre outros,
valorizar e promover a Diversidade Cultural – uma das bases para uma Cultura de Paz,
segundo a Organização das Nações Unidas. Em 2011 o evento estava em sua terceira edição e
apresentava mais de 80 espaços participantes e centenas de atrações entre espetáculos,
exposições, debates, mostras, instalações, shows, desfiles, recitais, performances e outras
atividades, em sua maioria, franqueadas ao público.
Após a apresentação de um projeto, a Fundação Cultural de Curitiba prontamente
aceitou a realização da visitação guiada ao cemitério e foram agendadas duas datas para
realização da atividade, com turmas de trinta participantes e duração de duas horas.

O CEMITÉRIO MUNICIPAL SÃO FRANCISCO DE PAULA

Fundado em 7 de dezembro de 1854, o Cemitério Municipal São Francisco de Paula é


um dos campos santos mais antigo e tradicional de Curitiba. Reunindo um vasto acervo de
esculturas e manifestações artísticas, abriga marcas e indícios da história da sociedade,
política e economia paranaense. Mais que ornamentação de túmulos, suas obras de arte
traduzem a evolução histórica de Curitiba, assim como simbolizam a visão de nossa
população acerca da morte, revelada através da arte tumular.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 773

Com grande valor e representatividade patrimonial para a população curitibana, o


cemitério abriga jazigos de personalidades influentes e de grande importância para a história
local, regional e quiçá nacional. Políticos, intelectuais e pensadores, artistas, personagens de
relevância pública e econômica, anônimos (muitas vezes eternizados em túmulos suntuosos
ou pitorescos), todos compartilham de um espaço público com potencialidade de visitação
aberta.
Infelizmente o Cemitério Municipal São Francisco de Paula é, assim como outros
cemitérios, vítima de roubos e vandalismo. Relegados ao plano do esquecimento, túmulos de
personalidades importantes para nossa história, um retrato de nossa sociedade, são lentamente
destruídos pela ação do tempo e pelo vandalismo. Como resgatar o olhar da população para a
riqueza histórica, social e cultural dos cemitérios?
Foi assim que surgiu em 2006 o projeto do livro “Um olhar... A arte no silêncio”, uma
publicação que traz 54 túmulos do Cemitério Municipal São Francisco de Paula fotografados
em seus mínimos detalhes. Peças de mármore vindas de países como Itália, França, Uruguai e
Portugal ganharam uma leitura sobre sua simbologia através do cruzamento de entrevistas
com familiares e pesquisa. Através da abordagem visual, excluindo símbolos que remetessem
diretamente ao túmulo, buscou-se cativar o olhar dos curitibanos para seu campo santo mais
antigo.
O trabalho de pesquisa resultou em um livro de 152 páginas e uma exposição
fotográfica no Museu da Fotografia de Curitiba, que ficou em cartaz por mais de três meses,
visitada por mais de 600 pessoas. Desde então, a pesquisadora dedica-se ao estudo do
Cemitério Municipal São Francisco de Paula em seus mais variados aspectos. Nesse ínterim
foram realizadas diversas matérias e reportagens sobre as potencialidades desse campo santo,
visitas guiadas para alunos do ensino médio, palestras, assim como a publicação de trabalhos
em congressos de estudos cemiteriais.
É em função desse trabalho de abordagem visual, sem a contextualização direta dos
túmulos, que os trabalhos realizados em outros cemitérios, como a visita guiada em
Araraquara, receberam o nome de “Arte no Silêncio”.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 774

A REALIZAÇÃO DAS VISITAS

A divulgação da visita aconteceu exclusivamente por meio do folder impresso com a


programação completa das atividades da Corrente Cultural e as inscrições gratuitas foram
realizadas por email. Em poucos dias (entre 05/11/11 e 11/11/11) as primeiras turmas lotaram
e foi necessário abrir um terceiro horário de visitação para atender a todas as inscrições. Ao
total foram realizadas 102 inscrições, sendo todas efetuadas via e-mail. Deste montante, 76
pessoas estiveram presentes nas três visitas guiadas, sendo a turma de quarta-feira formada
por 13 participantes, a de sábado pela manhã com 35 pessoas e a de sábado à tarde com 28
presentes. Pelo menos quinze pessoas indicaram a vontade de participar, mas não dispunham
de disponibilidade nas datas oferecidas.
A visitação guiada em Curitiba não dispunha de material impresso. O roteiro de
túmulos foi montado de acordo com a singularidade das obras de arte tumular ou da história
de construção do túmulo. Há presença de túmulos de milagreiros como Maria Bueno e Eunice
Taborda Ribas e outros túmulos de personagens importantes à história da capital dos mais
variados segmentos: política, artes, literatura, ciclo da erva-mate, etc. Personagens como
Barão do Serro Azul, Manoel Eufrásio Correia, Capitão João Negrão, Helena Kolody, Capitão
João Gualberto, Vicente Machado, entre outros, encontram-se ali sepultados. Os conceitos
sobre a criação dos cemitérios após a proibição dos enterros nas igrejas e a contextualização
da arte tumular foram explanados na entrada do cemitério, antes do início do passeio.
Ainda que tenham sido realizadas sem os mesmos recursos que a visita em
Araraquara, as ações durante a Corrente Cultural demonstraram o interesse da população em
conhecer o cemitério sob um novo olhar. Mesmo depois de transcorrido quase um ano da
realização das visitas, ainda hoje chegam emails solicitando informações sobre a realização de
visitas e pedidos para que, quando da realização das mesmas, os interessados sejam avisados.
Muitos dos que participaram da visita comentaram com amigos e colegas, que solicitaram
serem avisados quando da realização de nova visita. Alunos de cursos de graduação, como o
curso de turismo, também demonstraram tal interesse. Outro aspecto positivo da promoção da
visita, inédita na cidade até então, foi a ampla divulgação em meios de comunicação, gerando
matérias em jornais e televisão.

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A PRESERVAÇÃO DOS CEMITÉRIOS E A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

Para o historiador português Francisco Queiroz (2005), no século XIX os cemitérios


foram concebidos quer para os mortos, quer para os vivos. Ou seja, os cemitérios criados no
período Romântico foram concebidos precisamente para serem visitados e admirados pelas
obras de arte neles contidas, obras essas que eram muitas vezes representativas do que de
melhor se fazia na época. Com o declínio do romantismo, os cemitérios são deixados de lado
e somente retornam à tona nas décadas de 70 e 80, imbuídos de noções como a herança
cultural e de patrimônio.
A exemplo de países que já possuem programas de turismo cemiterial como França
(sendo o Cemitério de Père Lachaise o 4º ponto turístico mais visitado em Paris), Itália,
Espanha, Argentina, Chile e Estados Unidos, o Brasil vem implantando lentamente programas
de visitação em seus principais cemitérios, a citar Cemitério da Consolação (em São Paulo),
Cemitério São João Batista (no Rio de Janeiro), Cemitério Senhor do Bonfim (em Mias
Gerais) e Cemitério da Santa Casa (em Porto Alegre). Trata-se de uma leitura parcial da
potencialidade de resgate histórico/cultural que estes campos santos oferecem. A
implementação de ações a médio e longo prazo, como visitas guiadas com periodicidade fixa
– como vem ocorrendo no Cemitério Senhor do Bonfim, em Belo Horizonte onde uma vez
por mês a historiadora Marcelina Almeida realiza visitas guiadas – trazem a oportunidade de
estruturação de ações mais efetivas com relação à questão da educação patrimonial ligada ao
turismo cultural, além de chamar a atenção da população local sobre a necessidade de
preservação destes cemitérios.
É nesse sentido que
“[...] o turismo cultural pode ser compreendido como um segmento da atividade
turística que, por meio da apreciação, da vivência e da experimentação direta de
bens do patrimônio cultural, material e imaterial, e da mediação da comunicação
interpretativa, proporciona aos visitantes a participação em um processo ativo de
construção de conhecimentos sobre o patrimônio cultural e sobre seu contexto sócio-
histórico. Em última escala, este processo auxiliará a produção de novos
conhecimentos e a conservação dos bens visitados.” (COSTA, 2009, p.190)

O turismo cultural surge como uma ferramenta que tem potencial para viabilizar a
propagação dos cemitérios enquanto locais repletos de registros e manifestações. Com o
suporte de material que oriente os visitantes a compreender melhor a importância histórica,
artística e cultural dos cemitérios, assim como a necessidade de sua preservação, poderemos

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 776

apontar esse tipo de ação também como educação patrimonial. Pois, segundo Oliveira (2011,
p.11),

“a educação patrimonial pode ser entendida como um processo sistemático e


permanente por meio do qual os indivíduos se apropriam dos bens culturais e
entendem a necessidade e a importância da valorização e preservação do patrimônio
cultural, colocando-se como agentes diretos. Desse processo também decorre o
fortalecimento das identidades individuais e coletiva”

Para Poulot (2009, p.159), “ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem o
livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura, resultados de longos esforços
preliminares culminam em uma história que se absorve pelos olhos”. Nas últimas décadas, as
atenções começaram a se voltar para os cemitérios enquanto fonte para estudos, representação
da cultura e do passado e locais inspiração artística e visitação turística. As potencialidades
de tais locais são múltiplas e podem ser desenvolvidas nas áreas da cultura, patrimônio,
história e turismo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.) Cemitérios do Rio Grande do Sul; Arte, Sociedade,
Ideologia. Porto Alegre, Ed. da PUCRS, 2000.

CATROGA, Fernando. O céu da memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos
em Portugal (1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999.

COSTA, Flávia Roberta. Turismo e patrimônio cultural: interpretação e qualificação. São


Paulo: Editora Senac São Paulo, 2009.

FRANCISCO QUEIROZ, 2005, Porto. Os cemitérios históricos e o seu potencial turístico em


Portugal. [s. L.]: Congresso "Repensar As Cidades – Novos Tempos Para As Velhas Cidades",
2005. Disponível em: <http://21gramas.pt/Uploads/17480711200709.pdf>. Acesso em: 01
ago. 2012.

OLIVEIRA, Cléo Alves Pinto de. Educação Patrimonial no IPHAN. 2011. 131 f. Dissertação
(Mestrado) - Departamento de Diretoria de Formação Profissional, Escola Nacional de
Administração Pública, Brasília, 2011.

POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente, séculos XVIII-XXI: do


monumento aos valores. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 777

A MEMÓRIA DOS BRASILEIROS NA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL: ENSINO,


PESQUISA, EXTENSÃO E O PATRIMÔNIO HISTÓRICO DO MUSEU DO
EXPEDICIONÁRIO (CURITIBA/PR)

Dennison de Oliveira (História – UFPR)

Museu do Expedicionário; patrimônio histórico; Segunda Guerra Mundial;

Este texto se refere as recentes experiências de ensino, pesquisa e extensão realizadas


no Museu do Expedicionário, localizado na cidade de Curitiba (PR). As atividades de
pesquisa se referem ao estudo das fontes legadas pela Legião Paranaense do Expedicionário
(LPE), atual gestora do Museu. A LPE foi, em sua origem, uma das mais importantes
entidades da sociedade civil brasileira a se engajar no esforço de reintegração social do ex-
combatente no Brasil do segundo pós-guerra.
O projeto Reintegração social do ex-combatente no Brasil: o caso da Legião
Paranaense do Expedicionário (1945-1980), o qual conta com estudantes bolsistas e
voluntários de Iniciação Científica, se dedica ao estudo do acervo documental da LPE. Nele, o
foco são as fontes que contém informações sobre o esforço desenvolvido pela entidade no
processo de reintegração social dos ex-combatentes.
Simultaneamente às atividades de pesquisa que estruturam as práticas extensionistas,
vem sendo desenvolvido um projeto de pesquisa do extenso e valioso acervo documental da
Legião Paranaense do Expedicionário (LPE), gestora do Museu do Expedicionário.
Os estudos sobre o processo de Reintegração social dos ex-combatentes desenvolvidos
no Brasil em tempos recentes, principalmente aqueles produzidos por profissionais da
disciplina da História, tem se voltado para o exame de questões como a aplicabilidade das leis
de amparo aos veteranos de guerra, a luta pela empregabilidade, a continuidade ou início da
vida escolar, atendimento médico e hospitalar, vida social e familiar, envolvimento político
das associações de ex-combatentes, etc. Contudo, esses trabalhos – embora responsáveis por
suscitar questões da mais alta relevância para os pesquisadores - até aqui não puderam contar
com uma base ampla, significativa e diversificada de casos grande o suficiente para arriscar

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 778

conclusões que pudessem ser generalizadas. O recente contato com o vasto, diversificado e
valioso acervo de documentos e fontes históricas da LPE, até aqui desconhecido dos
pesquisadores, nos permite lançar novas luzes sobre essas importantes questões.
Foi realizado no segundo semestre de 2011 um levantamento preliminar das fontes
disponíveis – e até aqui inéditas – na sala do arquivo morto da LPE, permitindo conhecer o
potencial interpretativo e o valor histórico das seguintes coleções de documentos. Embora
árduo, o esforço de se consultar tais fontes é exequível. Trataremos de cada caso em ordem de
importância.
O conjunto de documentos mais importante diz respeito a coleção de Fichas de
Atendimento a Ex-combatentes (1946-1962) da Secretaria de Assistência Social da LPE. a
Secretaria de Assistência Social da Legião Paranaense do Expedicionário se destinava a
atender os pedidos de auxílio efetuados pelos ex-combatentes, sendo colocado a cargo de um
diretor que, como os demais membros da diretoria, exercia um mandato de dois anos. A
natureza e a variedade dos pedidos variava imensamente. As informações sobre essas
demandas eram sistematizadas em fichas individuais de atendimento, nas quais constavam
dados de identificação do ex-combatente, o auxilio demandado e o assim chamado “histórico
da solução”, onde constavam as providências tomadas para atender ao solicitado e os
resultados obtidos.
A diversidade de pedidos incluía providências solicitadas à LPE no sentido de prover
emprego, atendimento médico, obtenção e/ou manutenção de órgãos artificiais, compra de
medicamentos, pedidos de notícias de parentes, assistência jurídica para fazer valer os direitos
garantidos nas leis de amparo aos ex-combatentes, reintegração ao emprego ou a carreira
militar interrompida, hospedagem, auxílio para abertura de pequenos negócios ou comércio,
obtenção de empréstimos, financiamento para despesas fúnebres dos veteranos de guerra ou
seus familiares, etc. Incluía também ajuda emergencial, como se nota nos pedidos de
pequenas somas de dinheiro para comer, tomar banho, fazer a barba, comprar roupas ou
sapatos, etc. Essas informações estão descritas livremente na face de cada uma das 840 fichas
de atendimento a pedidos de ajuda dos ex-combatentes que foi possível localizar.
A solução dada para cada caso varia enormemente. Em um número substancial de
casos os ex-combatentes retornaram sucessivas vezes à LPE para pedir ajuda, tanto para
antigos problemas não resolvidos quanto para sanar novas dificuldades que iam surgindo no
processo de reintegração social destes. A reintegração social dos ex-combatentes é um

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 779

processo longo, complexo e cheio de contradições, cuja reconstituição histórica com base em
metodologia científica é cara e demorada. Com o exame e consulta à esta documentação é
possível acompanhar em detalhe, através do exame do histórico da solução presente no verso
dessas fichas, a vicissitudes, agruras e conquistas de cada um dos 840 casos de veteranos de
guerra atendidos pela LPE ao longo de 35 anos.
É relevante observar que, embora diversificados e complexos, os dados presentes
nessas fichas podem ser sistematizados a fim de compor uma base de dados que tanto permita
a quantificação desses processos quanto o estabelecimento de inter-relações entre suas
componentes. Utilizando-se de uma planilha de cálculo Excel pode-se lançar os dados
contidos nas fichas discriminados como segue: número da ficha, unidade da FEB a que
pertenceu o pleiteante, município de origem, data do pedido, nome do pleiteante, se
demandou órgãos artificiais, notícias de familiares, se pediu cigarro, corte de cabelo ou barba,
sapato, medicamentos, exame médico, atendimento médico, perícia médica, indicação de
emprego, carta de apresentação, se foi requerido o benefício das leis de amparo aos ex-
combatentes e a necessária assistência jurídica para se montar os processos respectivos, se foi
pedida isenção do pagamento de matrículas ou taxas escolares, reintegração ao serviço civil
ou militar, auxilio funeral, auxilio financeiro, se foram pagas as quantias emprestadas à eles
emprestadas pela LPE, passagens de avião, trem ou ônibus, despesas de viagem, estadias,
obtenção de original ou cópia de documentos, que doenças afligiam o solicitante e,
finalmente, se seu caso foi também atendido por mais de uma gestão da Secretaria de
Assistência da LPE.
Nesta planilha a coluna com maior diversidade de informações é, certamente, a que se
refere a assistência jurídica. Nela encontramos, além dos pedidos de ajuda para obter os
benefício das leis de amparo aos ex-combatentes, pedidos de auxilio para obtenção de
empréstimos, de nomeação de advogado para defender ex-combatentes acusados de crimes ou
mesmo já presos, de isenção tributária para escrituração de imóveis, de interseção junto as
autoridades públicas para resolução de problemas pessoais, etc. Contudo, mesmo nesse caso
é possível se estabelecer tipologias, se quantificar e estabelecer percentuais tanto de
recorrência dos pedidos quanto do grau de êxito na sua solução.
Um segundo conjunto de documentos relevantes diz respeito ao questionário sócio-
econômico enviado pela LPE a todos ex-combatentes paranaenses em 1973. Nessa ampla
pesquisa sobre as condições de vida dos veteranos de guerra, decorridos mais de um quarto de

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 780

século desde o fim do segundo grande conflito mundial a LPE enviou pelo correio e obteve
resposta a mais de 500 formulários contendo dados da mais alta relevância para o
entendimento do processo de reintegração social do ex-combatente.
Nesses formulários se encontra, além dos dados de identificação do veterano de
guerra, informações altamente valiosas. Dentre estas se incluem nome, filiação, data de
nascimento, profissão, local de trabalho, valor dos vencimentos que recebe, se contribui para
a previdência social, se tem casa própria, quando e a que unidade foi incorporado ao exército,
qual unidade serviu na FEB, sob qual posto serviu, se foi condecorado, se está registrado na
LPE, se requereu reforma, nomes da esposa e filhos e, finalmente, o mais importante: é
perguntado quais dificuldades enfrenta no momento? Esta última pergunta comportava uma
resposta livre, mas parece claro, a partir de um exame preliminar dos documentos, que
problemas financeiros, de saúde, emprego e falta de moradia parecem ter sido – nessa ordem -
os mais recorrentemente citados. É de se notar também que os ex-combatentes formaram
extensas famílias, algumas com até 14 filhos, mas não está claro se esse fato é discrepante em
relação ao perfil demográfico brasileiro àquela época.
Uma terceira coleção de documentos que também se prestam admiravelmente à
quantificação e à criação de uma base de dados tanto relacional quanto quantificável diz
respeito às Fichas de Inscrição como Sócios Colaboradores da LPE. Os sócios colaboradores
eram indivíduos que, sem terem sido ex-combatentes, se inscreveram como membros da LPE
para ajudar financeiramente na manutenção das suas atividades. A partir do exame e
sistematização dos dados contidos nessas fichas pode-se chegar a conclusões sobre questões
como sexo, idade, profissão e local de moradia das pessoas que, voluntariamente, se
dispuseram a ajudar com seus recursos financeiros o processo social de reintegração social
dos ex-combatentes. Trata-se de uma porta de entrada da mais alta significação, em se
tratando de entender a inserção social da LPE junto a comunidade curitibana e paranaense.
Na legislação criada para apoiar o processo de reintegração social dos ex-combatentes
estava prevista a preferência para contratação destes pelo serviço público. Muito já foi escrito
a respeito da ineficácia dessa legislação, num contexto histórico onde o clientelismo, o
nepotismo e o patrimonialismo dominavam as instâncias que decidiam sobre o emprego
público. Daí a importância da coleção de ofícios de solicitação de emprego endereçados pela
LPE a órgãos da administração pública. Neles se encontram dados sobre o solicitante e o

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 781

andamento do pedido, indicando a aceitação ou não do candidato e, nesse último caso, a


razões pelas quais o ex-combatente não foi efetivado na vaga aberta.
Tal é a importância dessa coleção de documentos. São dezenas de ofícios que, junto
com a documentação sobre o desfecho de cada pedido, se constituem em amostra significativa
dos problemas e vicissitudes desse aspecto do processo de reintegração social dos veteranos
de guerra. Embora não se constitua em uma documentação padronizada como os formulários
e fichas acima citados, igualmente se tratam de documentos cujas informações neles contidas
podem ser lançadas em uma planilha de cálculo como a Excel a fim de se quantificar o grau
de sucesso destes pedidos e estabelecer o perfil de cada solicitante.
O envolvimento dos ex-combatentes com a política-partidária nunca deixou de chamar
a atenção dos pesquisadores. Contudo, esse envolvimento tem sido até aqui descrito e
interpretado a partir do exame das biografias de alguns poucos ex-combatentes, geralmente
aqueles que tiveram carreiras mais extensas ou notórias no sistema político-eleitoral. A
ligação das entidades representativas dos ex-combatentes com o sistema partidário permanece
ainda numa zona de obscuridade. Daí a importância da coleção de fichas de filiação ao
Partido Libertador (PL), organizadas pelo ex-vereador e ex-presidente da LPE Felipe
Aristides Simão. Trata-se de uma coleção de centenas de fichas individuais de filiação àquele
partido, encontradas no arquivo morto da LPE recentemente. Trata-se de ume descoberta
desconcertante para aqueles que tomavam ao pé da letra o caráter “apolítico” ou mesmo
“não-partidário” daquela entidade.
Obviamente que o distanciamento da política partidária por parte da LPE sempre foi
muito mais retórico do que concreto. Vários dos seus dirigentes concorreram a cargos
públicos, sendo eleitos vereadores, deputados estaduais e federais. Propaganda política desses
candidatos podia ser encontrada no órgão oficial da LPE, a Revista O Expedicionário.
Contudo, o uso da máquina administrativa da entidade para o recrutamento de indivíduos
numa base maciça permaneceu, até aqui, totalmente desconhecido. O fato não pode causar
estranheza, uma vez que tal prática sempre foi oficialmente negada pela LPE em seus
pronunciamentos.
Com base nessas fontes pode-se colocar perguntas como: qual o perfil social,
profissional e econômico dos indivíduos recrutados pela LPE para se filiarem ao Partido
Libertador? Tal questão pode ser respondida através do exame, sistematização e tabulação dos
dados contidos nessas fichas. Nelas estão presentes os dados de identificação do eleitor, como

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seção e zona eleitoral, endereço residencial e profissional, e – o mais importante - quem o


apresentou ao Partido. Esse campo é de particular interesse, por revelar qual o papel da LPE e
seus membros na filiação de novos militantes ao PL, bem como o grau de êxito da entidade
nesse esforço.
Os últimos dois conjuntos de fontes a serem empregadas nessa pesquisa já há algum
tempo são conhecido dos pesquisadores do tema mas, à luz das informações contidas nos
registros acima citados, podem e devem ser objeto de uma reinterpretação.
O penúltimo é a coleção de revistas O Expedicionário, órgão oficial da LPE, da qual
restaram apenas alguns poucos exemplares. Na revista questões como a ação da Secretaria de
Assistência, a ajuda recebida pela LPE de indivíduos e entidades, o estágio presente do
processo de reintegração social do ex-combatente, o envolvimento político de membros da
diretoria da LPE são tornados públicos e debatidos ou problematizados em algum grau. O
exame das fontes precedentes permite reler essa coleção de revistas, portadora de um ponto de
vista oficial da entidade sobre ela própria, agora sob um outro enfoque, mais bem informado
sobre as atividades da LPE e se beneficiando da intersubjetividade inerente ao cruzamento de
fontes históricas.
Um último conjunto de fontes há muito exploradas pelos pesquisadores do tema diz
respeito aos estatutos das entidades representativas dos ex-combatentes. Tratam-se de
documentos que permitem compreender o funcionamento interno e as relações inter-
institucionais daquelas entidades. À luz das informações contidas nas fontes até aqui inéditas
tais documentos podem e devem ser reanalisados, permitindo novas e mais consistentes
interpretações sobre a atuação dessas entidades. Dentre estes cabe citar os Estatutos da
Associação dos Ex-combatentes do Brasil, da Legião Paranaense do Expedicionário, do Clube
dos Veteranos da Campanha da Itália, da Associação Nacional dos Veteranos da Força
Expedicionária Brasileira, bem como os regulamentos e normas de funcionamento dos
Congressos Nacionais dos Veteranos de Guerra do Brasil.
As atividades de extensão voltadas ao Museu do Expedicionário se realizam no âmbito
do Programa de Extensão Universitária “Guia do Museu do Expedicionário” do qual sou
coordenador. Este programa se destina a treinar estudantes de graduação do curso de História
da Universidade Federal do Paraná para atuarem como monitores de visitas guiadas àquele
Museu, pesquisadores da história da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e
autores de material didático e instrucional para apoio àquelas visitas. O emprego de

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relativamente elevado número de estudantes voluntários nessas atividades (18) tem revelado
diversas possibilidades de interesse do desenvolvimento de métodos e técnicas do uso do
patrimônio histórico para a o ensino de história em todos os níveis, manifestas em duas
dimensões.
Em primeiro lugar, a equipe de monitores dá um caráter mais dinâmico e interativo à
visitação ao respeitar as preferências dos visitantes e propiciar um diálogo permanente deles
com os monitores. A possibilidade de circular pelas salas do Museu, de conversar com os
monitores e mesmo com os colegas de classe acabou de vez com qualquer associação que se
pudesse fazer entre a visita ao Museu e aula expositiva. O espaço museológico foi
transformado em um autêntico fórum de debates, dinâmico e participativo, no qual os
escolares eram tratados pelos monitores como seus iguais, isto é, como interessados como
eles em conhecer e pesquisar a história da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Naturalmente que a pouca diferença de idade entre os estudantes da Educação Básica e os
universitários muito favoreceu essa interação e identificação. Não podemos descartar a
possibilidade de que, em certo número de casos, os universitários tenham sido tomados como
modelos sociais pelos estudantes de Educação Básica. Se isso de fato ocorreu, os monitores
teriam inspirado pelo menos alguns estudantes dos níveis fundamental e médio a
considerarem a possibilidade deles próprios virem a optar pelo curso de História quando da
realização de seus estudos universitários.
Em segundo lugar, permitiu um aprofundamento no tratamento dos conteúdos de cada
espaço expositivo. Em vez de um único monitor “generalista” que falava sobre todo o museu
de uma única vez, agora se dispunha de monitores que se especializaram no espaço expositivo
pelo qual se tornaram responsáveis. Muitas horas de leitura, pesquisa e orientação foram
necessárias até que cada um dos monitores pudesse afirmar que dominava integralmente o
conteúdo daquela parte do Museu que era de sua responsabilidade. Mesmo porque, na
elaboração do guia de visitação daquele Museu, todos monitores envolvidos participaram
como autores do capitulo relativo ao seu espaço. Assim, os visitantes não mais se frustravam
com explicações aborrecidas, parciais ou genéricas sobre os tópicos que eram de seu interesse
e que desejavam aprofundar, à medida que tinham contato com pesquisadores com amplo
conhecimento de causa da exposição a que se referiam. Mais ainda, dividiu-se dessa forma o
extenso trabalho intelectual que se refere ao tratamento de uma variedade de suportes

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informacionais (fotos, jornais, objetos, armas, uniformes, etc.) cuja análise e interpretação
sempre requer distintas metodologias.
Finalmente, de um ponto de vista prático, não podemos deixar de mencionar mais uma
vantagem da metodologia aqui adotada. Ao alocar um monitor para cada espaço expositivo,
aumentaram bastante as condições de segurança do acervo exposto. Embora não seja papel
funcional do monitor agir como agente de segurança, a verdade é que sua simples presença,
para não mencionar o interesse que sua fala era capaz de atrair, também servia para coibir
comportamentos não compatíveis por parte dos visitantes com o ambiente museológico. Os
fatos falam por si. Embora quase uma centena de alunos dos níveis fundamental e médio
frequentassem o Museu a cada vez, no segundo semestre de 2011, jamais se registrou no
decorrer da atividade extensionista qualquer incidente desagradável.
Para o futuro imediato pretende-se aperfeiçoar os métodos e técnicas de treinamento e
atuação desses monitores, tanto quanto possível através da adoção de meios audiovisuais ao
acervo exposto do Museu. O recurso às linguagens audiovisuais certamente irá expandir os
limites e possibilidades de interação dos estudantes de Educação Básica com o acervo exposto
do Museu, ao mesmo tempo em que – com toda probabilidade – irá colocar novos e
instigantes desafios aos envolvidos com a execução das atividades extensionistas.

BIBLIOGRAFIA

CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar,
2005.

FERRAZ, Francisco César Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro,
Zahar, 2005.

McCANN, Frank D. A aliança Brasil-Estados Unidos. Rio de Janeiro, Biblioteca do Exército


Editora, Rio de Janeiro, 1995.

MAXIMIANO, César Campiani. Onde estão nossos heróis: uma breve história dos brasileiros
na 2ª. guerra. São Paulo, 1995.

OLIVEIRA, Dennison de (org.) A Força Expedicionária Brasileira e a Segunda Guerra


Mundial: estudos e pesquisas. Rio de Janeiro: Centro de Estudos e Pesquisas de História
Militar do Exército, 2012.

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DIGITALIZAÇÃO DE ACERVOS LOCAIS: UMA PROPOSTA DE FLUXOS DE


TRABALHO BASEADOS EM EQUIPAMENTOS ABERTOS E SOFTWARE LIVRE

Edson Armando Silva


Leandro Batista de Almeida
Gerson Kniphoff da Cruz
Luiz Ernesto Merkle

1. CONTEXTO DE PESQUISA E USO DE REPOSITÓRIOS EM CIÊNCIAS HUMANAS

Para a preservação das informações a humanidade usou, ao longo do tempo, diversos


tipos de suporte. Entretanto desde os tijolos de argila da Babilônia ao papel os suportes quase
se confundiram com a informação em si, dando a impressão de que a preservação do suporte e
da informação em si eram a mesma coisa. Com o advento dos objetos digitais, entretanto, pela
primeira vez percebemos com clareza a dissociação entre a informação e seu suporte criando
novos desafios ao campo da história e da arquivística. Mudamos o suporte, e se percebeu que
o suporte não é somente acessório. Novos suportes tecnológicos disponíveis também abrem
possibilidades não antevistas pelos profissionais da área de arquivística e de pesquisa, e
também traz novos limites. Essa relação de uso da tecnologia e de desenvolvimento de
soluções novas ou adaptadas, faz com que o próprio projeto dessas tecnologias de repositórios
seja moldado tanto pelos fornecedores da tecnologia em si quanto pelos seus usuários.

Os procedimentos de preservação documental mudam e moldam as tecnologias que


utilizam. Como um paralelo aos monges copistas da idade média que copiavam os originais
que estavam se deteriorando, as técnicas atuais procuram tornar os documentos digitais
preservados, de forma a poderem ser tratados e manipulados por diferentes tecnologias que
seguem determinados padrões. O conceito de objeto digital confiável [Conarc, 2006] e
repositórios digitais [Unesco, 2012] passam então a ser preponderantes no cotidiano de
pesquisa de diversas áreas, em particular as ciências humanas, que se acostumaram, ao longo
do tempo, a recorrer à bibliotecas, arquivos e museus para compor seus conceitos.

Um objeto digital é um arquivo que guarda informações que devam ser mantidas por

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um longo período de tempo. A questão central aqui é que um arquivo é um simples conjunto
de bytes que só é corretamente interpretado pelo software que o gerou. A velocidade da
transformação tecnológica entretanto é um dos fatores que mais coloca em risco a preservação
de objetos digitais. Justamente por isso, qualquer objeto de preservação digital deve optar por
padrões abertos, descritos em normas que possam ser mantidas de maneira independente
dessa ou daquela empresa de software.

Em relação a repositórios e preservação de objetos digitais, recentemente algumas


preocupações surgiram, basicamente decorrentes do fato de que os documentos digitais
passaram a ocupar o lugar de outros meios de armazenamento que já contavam com a
confiança generalizada da comunidade de usuários, e possuíam uma longevidade já
comprovada. Exemplo disso são arquivos baseados em papel ou microfilmes, onde –
guardadas as proporções históricas e cuidados necessários – a preservação da informação
pode ter o curso de duração de séculos, senão milênios. O armazenamento em meio digital
deve seguir esse caminho, a despeito dos seus problemas de conflitos de formatos e correntes
tecnológicas. A noção, recentemente apreendida, de que um arquivo digital gerado por uma
determinada aplicação tem o tempo de vida dessa mesma aplicação, corre contra a corrente de
uma maneira de preservação que possui a obrigação de durar séculos. Além dos formatos, o
próprio meio de armazenamento pode ser um risco em relação à durabilidade.

Os repositórios digitais abertos são uma resposta viável a esses questionamentos,


juntamente com os formatos abertos e padronizados para se armazenar um objeto digital
confiável. Podemos afirmar com segurança, que se uma informação precisa circular, ser
recuperada e pesquisada, e seu formato ou meio de armazenamento não o permite, ela
efetivamente não existe.

Outro aspecto é o modo pelo qual a pesquisa em repositórios acontecia,


preponderantemente em ciências humanas. Os pesquisadores geralmente realizavam se
trabalho de maneira solitária, agregando conclusões e reflexões uma vez que um conjunto de
conceitos já se encontrava estabelecido e então era lançado para a comunidade. Apesar de
compartilharem suas conclusões, no nível de interpretação dos dos documentos, o
compartilhamento da base documental não existia, porque dificilmente existiam trabalhos
conjuntos sobre o mesmo documento.

A presente proposta rompe com esse modo de trabalho convencional, que é solitário,

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acrescentando características de colaboração e criação cooperativa. Nessa nova divisão social


do trabalho intelectual, baseada em ferramentas e padrões livres, se criam grupos que
compartilham documentos, visões sobre os documentos e as próprias anotações, fazendo
surgir uma sinergia em torno do arquivo em si. O pesquisador então passa a ter uma interação
muito mais próxima aos documentos e repositórios, que podem ser múltiplos, desde que se
sigam alguns preceitos de objetos digitais confiáveis e repositórios abertos. As novas
possibilidades abertas por esta forma de produção em rede, entretanto, não rompe com os
princípios gerais da arquivística no trabalho de limpar, digitalizar, catalogar e tratar e
organizar os documentos.

Nesse contexto, os repositórios possuem um papel de destaque, sendo


simultaneamente um meio de armazenamento intermediário para o fluxo de trabalho e o
depósito de destino dos documentos já organizados. Ainda que organizados, a informação
relacionada a eles não se configura como estática, já que uma vez depositado no repositório, o
documento passa a atender uma comunidade ainda maior de pesquisadores e usuários,
permitindo que o trabalho coletivo desses ainda aumente a massa de conceitos e enriqueça a
memória coletiva a esse respeito.

2. TEORIA CRÍTICA DA TECNOLOGIA E REPOSITÓRIOS ABERTOS

A preservação da memória exige novos desenvolvimentos em tecnologia, lembrando que


informática e computação ainda são disciplinas preponderantemente formais, onde a relação
com o mundo onde se atua só recentemente passou a tomar foco mais aprofundado. O
computar em história, em patrimônio, exige virá-la do avesso, realçando o contexto, a
transformação, a atividade humana. Só aí aparece a crítica e o desenvolvimento desejados.

Não é suficiente criticar o efeito de uma técnica sobre a memória, quando esta mesma
técnica não a levou em consideração em seu desenvolvimento. Efeitos adversos e negativos
sempre ocorrerão em tecnologia, o que se conclui disso é a realização da pesquisa. Por outro
lado, não se deseja somente criticar o efeito de uma técnica sobre a memória, é necessário o
reconhecimento de que a mudança da tecnologia envolve um conjunto de mudanças em
outros procedimentos, mesmo que já sejam procedimentos considerados clássicos em algumas

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áreas, como a arquivística e o conceito de repositórios.

Os “lugares da memória” sofreram a influência da informatização. Criamos


instituições especializadas para a manutenção da memória, como museus, bibliotecas e outros.
O uso e o desenvolvimento da tecnologia mudou e transformou esses lugares, e essa mudança
– novamente – abre possibilidades e limites. A relação desses lugares com documentos de
diferentes origens e a interação com ambientes computacionais remete a discussão de
Feenberg [Feenberg, 2002] sobre a construção social da tecnologia e de usos não projetados
para sistemas tecnológicos.

Os atuais repositórios são fortemente baseados na diversidade e facilidade dos


protocolos da Internet, considerada uma quebra de paradigma em muitos aspectos da nossa
sociedade. Diversas tecnologias são tratadas como transformadoras de sociedades, como
pontos de quebra de paradigmas. Além de alterarem nosso mundo, tecnologias são
frequentemente entendidas como criadoras ou catalisadoras de uma nova sociedade, uma nova
fase da história, entre outras. Afirmações dessa natureza já foram feitas sobre o motor a vapor,
o transporte ferroviário e rodoviário, a bomba atômica, e mais recentemente, sobre a televisão
e a Internet. Na obra de Raymond Williams [Williams, 2003], encontramos diversas
conclusões a respeito da televisão como tecnologia transformadora, e podemos estender esse
raciocínio para uma porção significativa da transformação operada pela Internet nas duas
últimas décadas da história da nossa sociedade, concentrando essas transformações a partir de
1995, com a popularização das aplicações web. Tecnologias normalmente estabilizam depois
de um período inicial onde várias configurações diferentes competem entre si. Uma vez
estabilizadas, suas implicações sociais e políticas finalmente se tornam claras. Mas a despeito
de décadas de desenvolvimento, a Internet permanece em fluxo a medida que usos inovadores
continuam a aparecer [Feenberg, 2011].

O determinismo tecnológico sustenta que tecnologias são independentes do meio em


que se aplicam, mas diversas correntes têm mostrado com sucesso que fatores relativos a
sociedade, e aos grupos sociais que se utilizam da tecnologia em questão, podem ser
preponderantes na aplicação de uma tecnologia, senão no seu projeto por completo.
Tecnologias como a televisão e a Internet conseguiram, por um lado, se massificar
globalmente de forma rápida e padronizada, e por outro, serem influenciadas também de
forma global, refletindo a influência de determinados grupos sociais em outros

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completamente diversos, permitindo que culturas outrora isoladas pudessem oferecer sua
contribuição a outras comunidades. Até recentemente, o enorme número de atividades
humanas que acontecem em grupos pequenos não eram tecnicamente mediadas e por isso
podiam apenas acontecer em configurações face a face. A Internet permite essa comunicação
recíproca entre pequenos grupos. Esse é um avanço importante que tendemos a considerar
como natural após 30 anos de comunicações online [Feenberg, 2012].

Assim, entendemos os conceitos de objetos digitais e repositórios como sendo


tecnologias socialmente influenciadas, trazendo consigo – como a Internet – a história do seu
desenvolvimento, e a influência dos grupos que mais os utilizam, e não só os grupos que os
projetaram e desenvolveram em primeiro lugar. E é exatamente essa visão que pretendemos
estender aos pesquisadores que utilizam os repositórios, permitindo que se faça um
desenvolver e pensar de maneira coletiva e colaborativa.

3. NOSSA PROPOSTA DE FLUXO DE TRABALHO

A presente proposta tem como principal objetivo a preservação e manutenção da


longevidade de objetos digitais, bem como tornar acessível a pesquisa e catalogação dos
mesmos objetos. Realiza isso através da definição de um fluxo de trabalho que permita a um
grupo de pesquisadores capturar imagens de documentos físicos ou o próprio arquivo digital,
armazenar isso em formatos abertos, realizar reconhecimento ótico de caracteres, catalogar e
referenciar o documento, e finalmente armazená-lo em um repositório aberto, de maneira a
facilitar sua pesquisa e recuperação. Um segundo fluxo de trabalho trata da catalogação de
comentários e anotações do documento, realizado por um grupo de usuários, e agregar essas
informações ao repositório.

As tarefas rapidamente listadas aqui serão realizadas por softwares livres, utilizando
formatos abertos e padronizados, e com hardware de baixo custo, permitindo que grupos de
pesquisa com recursos limitados possam utilizar a estrutura sem arcar com o custo de
soluções comerciais.

O resultado final deste fluxo é um repositório aberto com objetos digitais confiáveis e
duráveis, em formato aberto, que possa ser acessado de maneira padronizada e aberta, criando

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um ambiente de colaboração onde pesquisadores de grupos e áreas diversas podem


acrescentar conteúdo aos objetos digitais e criar relacionamentos entre eles, aumentando a
massa crítica de conhecimento no repositório. A colaboração entre grupos é um instrumento
chave para permitir isso, e a escolha dos softwares foi baseada nessa necessidade.

A integração dos softwares selecionados se dará por interfaces construídas pela


equipe, em sistemas adequados a cada ambiente. Nas fases de captura e organização do
documento, um aplicativo desktop será utilizado para agregar as funcionalidades dos
softwares e bibliotecas usados, e após a disponibilização em repositórios, uma aplicação web,
possivelmente usando recursos de nuvem, será utilizada para permitir que os grupos possam
colaborar no aperfeiçoamento das meta informações dos objetos digitais e do reconhecimento
ótico de caracteres.

3.1. DEFINIÇÃO DOS FLUXOS DE TRABALHO

De maneira geral, os passos do fluxo de trabalho principal são os seguintes:

1. Digitalização do documento físico (através de scanners convencionais ou


documentais) ou obtenção do documento em meio digital que possa ser
manipulado, isto é, que permita reconhecimento de caracteres e conversão para
formatos abertos (notadamente imagens, PDFs, documentos de pacotes de
escritório).

2. Realização de reconhecimento ótico de caracteres, de forma a obter o máximo


de informações do conteúdo do documento. O reconhecimento pode não ser
exato, ainda mais quando os documentos físicos forem muito antigos (fontes
não padronizadas) e manuscritos, mas qualquer massa de dados buscáveis pode
significar uma redução significativa nas pesquisas realizadas posteriormente.

3. Se considerado necessário (se o documento possuir relevância suficiente), será


realizada uma etapa de correção do reconhecimento de caracteres, usando uma
infra-estrutura de software a ser construída (pela agregação de bibliotecas
existentes), onde um grupo de usuários será responsável pela verificação
manual do texto reconhecido e realizará as correções necessárias, permitindo
que o software de reconhecimento melhore seu acerto, ou corrigindo
diretamente o texto encontrado.

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4. Criação do objeto digital confiável, usando os padrões da NOBRADE


[Conarc, 2006], em formato DjVu [DjVu.org, 2012] ou PDF, que são abertos,
multiplataforma, e permitem a implantação de critérios arquivísticos no próprio
objeto digital. Nessa etapa também são catalogadas as informações de
referência do documento, segundo a NOBRADE, informações essas que são
também inseridas dentro do objeto digital.

5. Disponibilização do objeto digital em um repositório aberto, baseado em


software livre, que permite a pesquisa e o acesso aos objetos através de
interface web, bem como interfaces programáticas, como webdav e web-
services.

O fluxo de trabalho de catalogação de anotações, comentários e destaque do


documento é mostrado a seguir. Este segundo fluxo de trabalho depende do documento já
estar disponibilizado no repositório.

1. Acesso ao documento, no formato de objeto digital confiável, no repositório.


Relacionar o documento através de software de organização de acervo, em
nuvem, apontando para o repositório.

2. Destacar porções do documento, criar anotações e citações, armazenando isso


em software de organização de acervo, e software de leitura de documentos,
que permita marcações e exportação dessas marcações.

3. Extrair as marcações e agregar estas informações no repositório.

Este segundo fluxo é realizado em grupos de interesse por assunto e/ou documentos,
agregando esses comentários e anotações, e permitindo uma maior sinergia entre as equipes
que vão tanto realizar quanto usar essas informações como fichamentos e citações.

3.2. SELEÇÃO DOS SOFTWARES PARA O FLUXO DE TRABALHO

No processo de seleção de softwares para compor o fluxo de trabalho, foi seguida a


lógica de se buscar softwares livres já disponíveis para a execução das tarefas, com a
integração e sequencia do seu uso. Nos pontos onde não existirem softwares disponíveis ou

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que sejam necessárias integrações mais sofisticadas, para evitar aumentar a complexidade do
uso do fluxo, então serão desenvolvidos módulos de software que serão disponibilizados
como software livre para a comunidade. Seguindo ainda a lógica de uso de softwares
disponíveis, esses novos módulos desenvolvidos, quando possível, serão criados como
plugins ou melhorias a softwares, e a contribuição se dará na linha principal de
desenvolvimento de cada um.

No processo de digitalização, serão utilizados scanners convencionais ou documentais,


incluindo um modelo desenvolvido por um pesquisador da equipe, mostrado na Figura 1, que
se propõe a realizar a captura de imagens de documentos em formato de livros, revistas ou
jornais, que ou sejam muito grandes para scanners documentais, ou estejam em um estado tal
de fragilidade que sua manipulação deva ser mais cuidadosa. Este equipamento é
relativamente barato, se aproveitando do rápido desenvolvimento dos processadores
incorporados em máquinas fotográficas digitais de baixo custo. Permite que a captura de
documentos encadernados e frágeis seja feita em alta velocidade e sem danificá-los.

Figura 1: scanner documental desenvolvido no Laboratório de Usinagem do Departamento


de Física.

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Figura 2: Modelo portátil desenvolvido no Laboratório de Usinagem do Departamento de


Física.

O reconhecimento ótico de caracteres será executado pelo software Ocrupus [Ocrupus,


2012] ou o Tesseract [Tesseract-OCR 2012], que também é utilizado pela Google em seu site
Books, e a saída do processo de reconhecimento será reunida com as imagens em arquivos em
formato DjVu, permitindo que o arquivo resultante seja buscável por qualquer biblioteca
disponível, como a Apache Lucene [Apache Lucene, 2012], entre outras. Esse arquivo terá
suas meta-informações agregadas e será gerado como um objeto digital confiável, nas normas
da NOBRADE.

O repositório escolhido para o depósito dos objetos digitais é o Omeka, desenvolvido


pelo Center for History and New Media da George Mason University [Omeka, 2012], que
conta com recursos para criação de coleções e narrativas, usando padrões como o Dublin Core
(mas flexível o suficiente para a implantação da Norma Brasileira de Descrição Arquivística -
NOBRADE), e permitindo a adição de novos padrões através de plugins. O software Ica-
Atom [Ica-Atom, 2012] também foi considerado como repositório, por seguir normas
internacionais e ser um padrão de fato na área, além de ser extensível com plugins. A escolha

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recaiu sobre o Omeka por possuir uma fácil integração com outras ferramentas e plataformas.

Do mesmo grupo da George Mason University é o software escolhido para organizar


as coleções e citações no segundo fluxo, o Zotero [Zotero, 2012], que pode funcionar como
um plugin para Mozilla Firefox ou ser executado como aplicação em sistemas operacionais
Linux, Windows e Mac. O Zotero permite que grupos compartilhem acesso a coleções, e já
possui um plugin para integração com o Omeka, facilitando a integração com o repositório.

O protocolo de funcionamento do Zotero é também aberto, o que deu origem a


aplicativos de terceiros que acessam os repositórios, incluindo aplicativos para tablets e
smartphones, permitindo que o pesquisador tenha uma ferramenta portável e prática para
realizar a organização das suas coleções e a anotação e marcação em documentos.

3.3. LIMITAÇÕES DAS FERRAMENTAS E TRABALHOS PROPOSTOS

Pela natureza colaborativa do fluxo de trabalho proposto, nem sempre encontram-se


ferramentas disponíveis com todas as características necessárias para essa integração. Parte
deste trabalho é justamente transpor essas barreiras com a agregação de plugins ou outros
softwares, ou com o desenvolvimento de módulos e plugins que possam suprir as
necessidades.

Algumas necessidades já foram identificadas, como a tradução do software Omeka, e a


implementação das normas de arquivística brasileiras no mesmo software. As duas
necessidades possuem solução plausível (a criação de um “tema” internacionalizado e a
definição das normas em XML), e fazem parte do cronograma do grupo.

A integração dos softwares de reconhecimento ótico de caracteres, a geração do objeto


digital e a correção dos possíveis erros de reconhecimento serão executadas por um módulo
desenvolvido pelo grupo, de forma a trazer maior flexibilidade e facilidade de integração.

Na organização dos destaques e anotações, um módulo será desenvolvido para extrair


dos arquivos digitais as marcações e anotações e inserir no arquivo residente no repositório.

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4. CONCLUSÕES E CONTINUIDADE DO TRABALHO

O uso de repositórios abertos para manter objetos digitais utilizados em pesquisas


acadêmicas por si só já é um avanço em relação a situação atual do campo, e também abre
fronteiras para comunidades externas usarem os mesmos documentos. Com um fluxo de
trabalho para apoiar a construção colaborativa desse repositório, e a agregação de informações
ao objeto digital, podemos proporcionar a comunidade uma ferramenta eficiente e de fácil
acesso, que permitirá que custos sejam reduzidos, e pesquisas sejam realizadas em menor
tempo, e com maior abrangência.

A já citada nova divisão social do trabalho do pesquisador, que em grupo


compartilham sua visão e anotações dos documentos, pode ser um avanço que possa ampliar
as possibilidades de cruzamentos no processo criativo de interpretar os documentos.

O presente fluxo de trabalho ainda se configura como uma proposta, mas se pretende
colocá-lo em funcionamento em duas universidades, de maneira a analisar a efetividade do
processo, e o reflexo disso no dia a dia do pesquisador e da qualidade do material produzido.

REFERÊNCIAS

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http://lucene.apache.org, visitado em setembro de 2012

Conarq (2006), NOBRADE – Norma brasileira de descrição arquivística, Conselho Nacional


de Arquivos, Arquivo Nacional.

DjVu.org (2012), http://www.djvu.org, visitado em setembro de 2012.


Feenberg, Andrew (2002), Transforming Technology: A Critical Theory Revisited, Oxford
University Press.

Feenberg, Andrew (2011), (Re)Inventing the Internet: Critical Case Studies, Sense Publishers.
ICA-AtoM (2012), ICA-AtoM web-based archival description software, http://www.ica-
atom.org, visitado em setembro de 2012

Ocrupus (2012), Google Code Ocrupus – open source document analysis and OCR system,
http://code.google.com/p/ocrupus, visitado em setembro de 2012

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Omeka (2012), Omeka web-publishing platform, http://www.omeka.org, visitado em


setembro de 2012

Unesco/Commonwealth of Learning, (2012). Taking OER beyond the OER Community.


http://oerworkshop.weebly.com, visitado em setembro de 2012.

Tesseract-ocr (2012), Google Code Tesseract OCR engine,


http://code.google.com/p/tesseract-ocr, visitado em setembro de 2012
Williams, Raymond (2003), Television, Routledge.

Zotero (2012), Zotero research tool, http://www.zotero.org, visitado em setembro de 2012

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PATRIMÔNIO HISTÓRICO E EDUCAÇÃO: NARRATIVAS HISTÓRICAS DA ILHA DO


MEL CONTADA POR ALUNOS

Evandro Cardoso do Nascimento (LAPEDUH – UFPR)

Palavras-Chave: Consciência Histórica, Narrativa Histórica, Aula Oficina.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho é resultado de investigações sobre o ensino da História e apresenta


algumas relações teóricas e metodológicas entre o patrimônio e a Educação Histórica. Na era
da patrimonialização o ensino da História tem granjeado espaço nas discussões sobre
conscientização patrimonial e preservação da memória; as pesquisas em Educação Histórica,
por sua vez, têm desenvolvido novas abordagens e metodologias, que possibilitam a utilização
de inúmeros recursos para o desenvolvimento da consciência histórica dos alunos.
As relações entre patrimônio e Educação Histórica têm sido objeto de estudo de alguns
pesquisadores contemporâneos, entre eles a professora Tânia Gayer Ehlke (Brasil), a
pesquisadora Helena Pinto (Portugal), e a professora Regina Parente (Portugal) além de
diversas pesquisas sobre educação patrimonial. Neste artigo, o objetivo maior é apresentar
experiências de educação patrimonial na Ilha do Mel, Paranaguá/PR, e sua contribuição para o
desenvolvimento da consciência histórica dos alunos.
Esta pesquisa é fundamentada a partir de conceitos teorizados por Lee Goff (2009),
tais como memória histórica e monumento; Bourdieu (2009), poder simbólico; Rüsen (2001),
consciência histórica e narrativa histórica; Lee (2003), empatia histórica; e Barca (2004),
aula oficina. Assim, este trabalho encontra-se dividido em três seções, onde primeiramente
são tratados os aspectos conceituais de patrimônio e memória histórica a partir de Lee Goff
(2009) e sua relação com a Educação Histórica; na segunda parte são apresentadas as práticas
de ensino desenvolvidas na pesquisa empírica; e por fim são apresentados os resultados da

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investigação através da cognição histórica dos alunos, a qual é expressa em forma de


narrativas escritas.

2 PATRIMÔNIO E EDUCAÇÃO HISTÓRICA: DIÁLOGOS

As investigações em educação histórica têm mostrado diversas maneiras e


possibilidades de desenvolver a consciência histórica dos alunos em sala de aula. Através
disso, professores e pesquisadores têm desenvolvido didáticas e metodologias diversificadas
em suas pesquisas sobre educação e em suas aulas de história; entre elas, o uso da música, da
história em quadrinhos, do cinema, das imagens, entre outras.
Considerando que, nos últimos anos o interesse pela valorização e preservação do
patrimônio cultural tem granjeado popularização entre os historiadores, o patrimônio cultural
e histórico pode ser um recurso didático importante para o desenvolvimento da consciência
histórica dos alunos. Nesta seção intitulada Diálogos será apresentada a relação entre
patrimônio e educação histórica a partir de seus aspectos conceituais.
Conceituar patrimônio é uma tarefa que exige uma seleção de abordagens, visto que o
campo patrimonial é investigado por arquitetos, turismólogos, advogados, historiadores.
Neste sentido, pretende-se explorar o conceito histórico de patrimônio e sua relação com a
memória histórica.
A partir da Revolução Francesa a ideia de patrimônio se vincula à noção de
monumento memorável, possibilitando a formação de uma unicidade da memória, onde se dá
sentido ao que se quer lembrar. (DE DECCA, 1992 apud MAGALHÃES, 2009, pg. 35)
Assim, “ter controle sobre o patrimônio é ter controle sobre a lembrança e sobre o processo de
ocultamento” (SILVA, 1995 apud MAGALHÃES, 2009, pg. 35).
O campo de relações de poder onde o patrimônio está inserido, diz respeito a um
terreno de dominação simbólica, que segundo Bourdieu é um “poder invisível o qual só pode
ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou
mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2009, pg. 8). Na esteira deste pensamento, a memória
histórica pode ser entendida como formadora de identidade cultural, onde o patrimônio
histórico está inserido e sofre os efeitos do poder simbólico exercido pelas classes
dominantes.

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Para o historiador Jacques Le Goff, a memória sofre perturbações tanto individuais


(voltadas aos aspectos psicológicos) quanto coletivas (em seus aspectos históricos). Segundo
ele

A amnésia é não só uma perturbação no indivíduo, que envolve perturbações


mais ou menos graves da presença da personalidade, mas também a falta ou
a perda, voluntária ou involuntária, da memória coletiva nos povos e nas
nações, que podem determinar perturbações graves da identidade coletiva.
(LE GOFF, 2009, pg. 421)

Na esteira da teoria de Le Goff (2009), o patrimônio pensado enquanto monumento


pode ser entendido como uma herança do passado e tem a função de alimentar a memória
coletiva. “O monumento tem como característica o ligar-se ao poder de perturbação,
voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória coletiva)”. (LE
GOFF, 2009, pg. 526) Tal legado sofreu inferências no processo de construção do estado
nacional, e o patrimônio foi utilizado como uma ferramenta de poder pelas classes
dominantes.

Enfim, os suportes da memória coletiva, que sempre foram elementos


principais da criação do sentimento de continuidade e de preservação das
sociedades pré-industriais, foram paulatinamente destruídos e hoje o cidadão
se sente cada vez mais mutilado em seus sentimentos coletivos com relação
ao passado. (DE DECCA, 1992 apud MAGALHÃES, 2009, pg. 36).

Conforme Le Goff (2009), a revolução documental da década de 1960 promoveu


mudanças no conceito de monumento, onde a memória coletiva é reconhecida como um bem
cultural de caráter patrimonial, segundo ele “A memória coletiva valoriza-se, institui-se em
patrimônio cultural.” (LE GOFF, 2009, pg. 532). Nos últimos anos, devido ao processo de
patrimonialização e democratização da cultura, o conceito de patrimônio tem se alargado,
deixando o aspecto apenas material, ligado aos grandes monumentos, e aderindo aspectos
naturais e imateriais. Assim, “A partir de novas interpretações históricas o conceito de
patrimônio ganha aspectos mais amplos que buscam melhor entender o universo sociocultural
com relação à memória e identidade coletiva.” (NASCIMENTO, 2011, pg. 2).
Dentro desta nova perspectiva de patrimônio, a educação patrimonial se torna
extremamente importante no processo de reconhecimento, valorização e preservação dos bens

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patrimoniais da sociedade, e a disciplina de História tem sua função neste processo:


reconstruir o passado histórico.

A disciplina da História se utiliza do patrimônio enquanto fonte, capaz de


fornecer informações do passado das sociedades sob as representações da
memória coletiva. Neste sentido, a educação patrimonial ganha nova
perspectiva, onde objetiva-se a reconstrução do passado por meio do
patrimônio histórico. (NASCIMENTO, 2011, pg. 5)

Reconhecendo o patrimônio como um recurso didático para as aulas de História, o


mesmo além de possibilitar a reconstrução do passado histórico, pode contribuir “para a
construção de sentidos de pertenças” (PINTO, 2009, pg. 283). Isso valoriza a cultura local e
promove a conscientização patrimonial dos alunos.
Na esteira do pensamento de Irene Nakou (2001), a pesquisadora Helena Pinto (2009,
pg. 283), tratando da relação patrimônio-museu-escola, diz que no museu “o pensamento
histórico dos alunos é estimulado, uma vez que se rodeiam de evidências materiais da vida de
uma comunidade humana no passado” (NAKOU, 2001, apud PINTO, 2009, pg. 283). Tais
evidências materiais, não é privilégio apenas dos museus, mas também são encontradas em
outros espaços sociais.
Na educação histórica o patrimônio passa a ser entendido como um vestígio do
passado, que está ligado à vida cotidiana da comunidade. (PINTO, 2009, pg. 285) Tal
entendimento possibilita o trabalho em sala de aula com os conceitos de segunda ordem 1.

É neste âmbito que a Educação Histórica assume um papel fundamental,


uma vez que pressupõe o desenvolvimento de competências essenciais para
a construção de uma cidadania esclarecida, nomeadamente as capacidades de
análise, de crítica e de argumentação, indispensáveis para lidar com a
pluralidade de informação da sociedade hodierna. (PINTO, 2009, pg. 286)

Considerando que o objetivo fundamental da Educação Histórica é “a aquisição de


uma consciência histórica para que os indivíduos possam se situar em relação aos seus
ancestrais e a seus contemporâneos” (CERCADILHO, 2009, pg. 9), o patrimônio além de ser
um vestígio dos seus ancestrais, “pode gerar uma tomada de consciência que lhes permita
converterem-se também em seus defensores.” (PINTO, 2009, pg. 284).

1
“Conceitos de segunda ordem são os que se referem à natureza da História, como por exemplo explicação,
interpretação, compreensão.” (LEE, 2001, pg. 20)

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A consciência patrimonial, neste sentido, vai ao encontro da consciência histórica,


defendida por Rüsen (2001, pg. 59) como “o trabalho intelectual realizado pelo homem para
tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo”, isto é, a consciência
histórica orienta o homem no tempo e no espaço a partir da interpretação do passado.

Trata-se de um processo da consciência em que as experiências do tempo


são interpretadas com relação às intenções do agir e, enquanto interpretadas,
inserem-se na determinação do sentido do mundo e na auto-interpretação do
homem, parâmetros de sua orientação no agir e no sofrer. (RÜSEN, 2001,
pg. 59)

Neste sentido, a consciência patrimonial não é apenas a ação preservacionista para


com os vestígios do passado, mas é também o reconhecimento histórico do patrimônio e a
interpretação deste no tempo, objetivando a formação de sentido à sua preservação no
presente. Uma ação preservacionista que não se apropria da consciência histórica, corre o
risco de se perder o sentido para a sociedade, pois a interpretação do passado é a geradora de
sentido à vida prática no presente.

3 COGNIÇÃO HISTÓRICA E FONTES PATRIMONIAIS: “AULA OFICINA”2

Tendo a educação histórica como ponto de partida para o desenvolvimento da


consciência histórica dos alunos, esta seção visa apresentar atividades que foram
desenvolvidas na pesquisa empírica. Tal pesquisa foi realizada no Colégio Estadual Lucy
Requião de Mello e Silva, localizado na Ilha do Mel – Paranaguá PR. A escola possui dois
núcleos na ilha, um localizado na comunidade de Nova Brasília (sede), e outro localizado na
comunidade de Encantadas (subsede), o colégio oferece às comunidades as séries finais do
ensino fundamental e ensino médio onde o pesquisador, proponente deste artigo, atua como
professor de História.
Com o objetivo de delimitar a pesquisa e para poder inserir a educação patrimonial no
currículo regular de História, o professor buscou trabalhar apenas com o 6º ano, visto que a
proposta curricular do Estado do Paraná para esta série propõe como conteúdo básico três
temáticas em específico: a experiência humana no tempo, onde o patrimônio histórico-cultural

2
Aula Oficina é o modelo de aula em que “o aluno é efetivamente visto como um dos agentes do seu próprio
conhecimento, as atividades das aulas, diversificadas e intelectualmente desafiadoras, são realizadas por estes e
os produtos daí resultantes são integrados na avaliação.” (BARCA, 2004, pg. 131)

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surge como um representante do passado no presente; os sujeitos e suas relações com o outro
no tempo, que pode ser trabalhado o processo de valoração do patrimônio pelas comunidades
na história; e as culturas locais e a cultura comum, em que o patrimônio surge como um
criador de identidades culturais.
No ano de 2012, quando o projeto foi implantado na escola, o 6º ano contava com um
total de 15 alunos, visto tratar de comunidades pequenas. O 6º ano “A”, localizado na
comunidade de Nova Brasília, estava com 7 alunos matriculados, e o 6º ano “B”, localizado
em Encantadas contava com 8 aluno matriculados. O número reduzido de alunos facilitou o
trabalho do professor, e a inserção no currículo regular da escola possibilitou tempo hábil para
todo o projeto.
Seguindo a proposta metodológica de Aula Oficina, apresentada pela pesquisadora
Isabel Barca (2004), o trabalho com os alunos em sala de aula foi dividido em várias etapas,
sendo elas: elaboração de um inventário feito pelos alunos do patrimônio da Ilha do Mel;
seleção dos patrimônios mais significativos para eles; escritas de narrativas históricas
utilizando tais bens como fonte de pesquisa (conhecimentos prévios); pesquisa de campo com
registros fotográficos, entrevistas e práticas culturais; intervenção pedagógica sobre a
construção e seleção do patrimônio histórico e história local; e atividade de metacognição
histórica, onde os alunos produziram narrativas históricas e foram avaliados os níveis de
consciência e compreensão histórica.
Na primeira fase do projeto os alunos elaboraram um inventário do patrimônio cultural
da Ilha do Mel, nesta etapa os grupos (divididos em projetos distintos) fizeram um
levantamento do patrimônio com um clima de competição entre as equipes, o resultado foi um
número total de 44 bens patrimoniais de caráter natural, 44 bens de caráter imaterial e 88 bens
de caráter material. Detalhe neste levantamento é que os alunos tiveram a liberdade de
inventariar todos os bens que julgassem patrimônio, independente se são ou não tombados.
Para possibilitar o trabalho com fontes históricas patrimoniais em sala de aula fez-se
necessário a seleção de apenas alguns bens, visto que o trabalho com todos seria de certa
forma impossível. Para tanto, partiu-se para a segunda fase do projeto que foi a seleção dos
bens mais significativos, onde cada aluno teve a oportunidade de eleger três bens que julgasse
mais importante dentre todos.
Depois de eleito os bens patrimoniais mais significativos na visão os alunos, foi
solicitado pelo professor, via questionário investigativo uma justificativa para a seleção destes

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bens em detrimento aos outros. Nesta fase os alunos foram questionados sobre o passado do
patrimônio que eles escolheram; para melhor delimitar a pesquisa foi solicitado que eles
realizassem mais um filtro, isto é, dentre os três bens patrimoniais anteriormente
selecionados, deveriam escolher apenas um e responder (de maneira dissertativa) a seguinte
questão: O que você sabe sobre a História deste patrimônio? Dos 15 alunos questionados 4,
não responderam, 4 não fizeram referência ao tempo histórico, e 7 fizeram referência ao
passado em suas narrativas.
Dentre os que escreveram, porém não se reportaram ao passado, as narrativas se
basearam em dados contemporâneos e descritivos, voltados à funcionalidade do bem
escolhido, isso é percebido na narrativa do aluno Alex (6º A) ao escrever sobre a Festa da
Tainha (patrimônio imaterial): “A Festa da Tainha é muito legal, neste ano vai muita gente
para a festa que vai ter muita Tainha assada e bingo” (Alex, 6º A).
Dentre os alunos que fizeram referência ao passado muitos procuraram mostrar as
lendas e contos que fazem parte da tradição local, exemplo disso é a narrativa do aluno
Gabriel (6º B) que escreveu sobre a História da Gruta:

Os antigos diziam que lá na gruta tinham sereias, uma vez os pescadores


foram pescar lá à noite e falaram que as sereias os encantaram com uma
música [...]. Meu pai falou que quando tinha 15 anos foi pescar lá à noite
com o meu avô e escutaram urros da sereia. (Gabriel, 6º B).

Percebe-se que ao ser questionado sobre a História da Gruta (patrimônio natural) o


aluno faz referência ao passado e utiliza como evidência o seu pai, seu avô e os antigos;
também faz referência à data (pai, quando tinha 15 anos). A narrativa do Gabriel procura
resgatar um passado lendário (típico do patrimônio natural) para fundamentar a importância e
o valor histórico da Gruta de Encantadas.
Outro aluno que faz referência ao passado, porém não se utiliza de lendas, é o Lucas
(6º B); em sua narrativa sobre o Morro da Cruz (patrimônio natural), busca resgatar a origem
do nome Morro da Cruz, segundo ele “Têm uma capela com fotos dos que morreram, por isso
o nome: Morro da Cruz.” (Lucas, 6º B). Tais respostas compõem os conhecimentos prévios
dos alunos com relação à história local.
Seguindo o modelo proposto por Isabel Barca (2004, pg. 132) sobre o uso de fontes no
ensino da história, partiu-se para a pesquisa de campo, onde os alunos foram em busca de
fontes que viessem validar seus conhecimentos prévios. Nesta fase, os alunos realizaram

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pesquisas sob a orientação do professor, onde foram feitos registros fotográficos, entrevistas
na comunidade e seleção de fontes a serem trabalhadas. Durante todo este processo os alunos
desenvolveram senso crítico com relação aos seus próprios conhecimentos prévios, e
entenderam a importância da fonte histórica enquanto evidência do passado.
Segundo Barca (2004) os alunos, na interpretação das fontes primárias precisam

“ler” fontes históricas diversas – com suportes diversos, com mensagens


diversas; cruzar as fontes nas suas mensagens, nas suas intenções, na sua
validade; selecionar as fontes com critérios de objetividade metodológica,
para confirmação ou refutação de hipóteses descritivas e explicativas.
(BARCA, 2004, pg. 132)

Esse contato com as fontes históricas desenvolveram nos alunos a consciência


histórica, pois a vivacidade da evidência material propicia a eles maior empatia histórica3 com
relação ao passado da comunidade. O nível de compreensão histórica é expresso por meio de
narrativas históricas, que segundo Rüsen

torna presente o passado, sempre em uma consciência de tempo na qual o


passado, presente e futuro formam uma unidade integrada, mediante a qual,
justamente, constitui a consciência histórica. […] A narrativa histórica
organiza essa relação estrutural das três dimensões temporais com
representações de continuidade, nas quais insere o conteúdo experimental da
memória, a fim de poder interpretar as experiências do tempo e abrir as
perspectivas de futuro em função das quais se pode agir intencionalmente.
(RÜSEN, 2001 pg. 65).

Em seu processo de reconstrução do passado histórico, os alunos buscam no


patrimônio explicações históricas para sua valorização, e tentam responder as seguintes
perguntas: como era no passado, como é reconhecido na atualidade e qual a importância de
sua preservação para as próximas gerações. Tais respostas são sistematizadas em narrativas
históricas escritas pelos alunos e compõem a próxima seção deste artigo.

4 METACOGNIÇÃO E NARRATIVA HISTÓRICA: A CONSCIÊNCIA HISTÓRICA DOS


ALUNOS

3
“a empatia histórica pode ser melhor entendida como uma realização, algo que acontece quando sabemos o que
o agente histórico pensou, quais os seus objectivos, como entenderam aquela situação e se conectamos tudo isso
o com o que aqueles agentes fizeram.” (LEE, 2003, pg. 20)

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Entendendo que a consciência histórica é expressa por meio de narrativas, “ou seja, no
ato de contar histórias, pois esta é uma forma coerente de comunicação e porque trata da
identidade histórica tanto do comunicador como do receptor” (GEVAERD, 2009, pg. 141), os
alunos foram encarados como pesquisadores e produziram suas próprias narrativas sobre o
passado.
Depois de realizada a pesquisa de campo, partiu-se para a intervenção pedagógica,
onde foi proposta uma atividade de metacognição histórica. Nesta fase da pesquisa, os alunos-
pesquisadores transcreveram as entrevistas gravadas em áudio na comunidade e tomaram-nas
como fonte histórica para a construção de suas próprias narrativas sobre o passado do
patrimônio e seu sentido atual. Isso foi possível apenas com o 6º B (Encantadas), pois não se
teve tempo hábil para concluir a pesquisa com o 6º A (Brasília).
Sendo assim, 8 alunos participaram da fase final da pesquisa relatada neste artigo. A
proposta foi que eles respondessem a mesma pergunta realizada no início do projeto: O que
você sabe sobre a História deste patrimônio? Todas as narrativas históricas fizeram referência
ao passado, isso já demonstra um avanço na consciência histórica dos alunos, pois nos
conhecimentos prévios dos 15 apenas 7 alunos fizeram tal referência.
Das 8 narrativas, 4 fizeram referência às fontes primárias, isto é, às entrevistas
realizadas na comunidade; a narrativa do Danilo (6º B) é um exemplo desta referência:
“Segundo o Tio Chuvinha, antigamente aqui na Ilha do Mel era bem diferente, pois da Gruta
até onde fica os navios era tudo praia, o Tio Chuvinha ia lá com o Vô Lavínio”. (Danilo, 6º B)
Ao tratar sobre a “História da História do Vô Lavínio” a maior preocupação do professor era
que os alunos confundissem com a “História do Vô Lavínio” e acabassem narrando a lenda,
porém os alunos surpreenderam:

A História do Vô Lavínio é contada na Ilha do Mel desde 1965, isto é, já faz


47 anos que é contada na comunidade [...] o projeto que nós estamos
realizando é muito importante, pois faz com que essa história seja contada de
geração para geração. (Graziela, 6º B).

Percebe-se na narrativa da Graziela (6º B), que também é feita referência à data “desde
1965”, isso ocorre em mais 2 narrativas: “o trapiche foi construído há uns 15 anos atrás”
(Leonardo, 6º B); “A pousada Caraguatá foi construída no ano de 2006”. (Francisco, 6º B).
Dentre as 8 narrativas produzidas, 4 fazem uma relação entre o tempo passado e o
tempo presente, estes alunos mostraram um nível de empatia muito bom, pois identificaram a

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representação que este patrimônio tinha no passado e o significado ou função dele no


presente: “O Morro da Cruz tinha o nome de Montanha do Iapina [...] Segundo o Tete
[entrevistado] além de ser muito bonito o Morro da Cruz é uma ponto para os pescadores
espiar os cardumes de Tainha. (Lucas, 6ºB).
As narrativas dos alunos revelam que o patrimônio cultural e histórico é uma
ferramenta útil para o desenvolvimento da consciência histórica em sala de aula. Segundo a
pesquisadora Tânia Gayer Ehlke (2008) o patrimônio [imaterial, no caso específico de sua
pesquisa] na educação histórica contribui para consolidar as pesquisas sobre ensino da
História, “porque estimula e eleva a identidade do aluno, pois permite que as suas crenças, os
saberes guardados na família, na comunidade, sejam considerados e relativizados frente a
outras experiências do passado e do presente.” (EHLKE, 2008, pg. 7).
Na comunidade de Encantadas na Ilha do Mel os alunos, ao serem estimulados a
pesquisar sobre o patrimônio local, demonstraram empatia com relação ao passado histórico.
Na comunidade de Nova Brasília a pesquisa ainda está em andamento, mas o processo de
identificação e assimilação da identidade histórica dos alunos tem alcançado os mesmos
objetivos.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A consciência patrimonial voltada à valorização, reconhecimento e preservação do


patrimônio natural, material e imaterial é o objetivo maior da educação patrimonial. A
consciência histórica voltada à orientação no tempo, significação da vida prática e à
assimilação dos conceitos de segunda ordem, formam o objetivo da Educação Histórica.
Assim, a consciência patrimonial não é apenas a ação preservacionista para com o patrimônio
natural, material e imaterial, entendidos aqui com vestígios do passado, mas é também o
reconhecimento histórico do patrimônio e a interpretação deste no tempo, objetivando a
formação de sentido à sua preservação no presente.
Dentro desta perspectiva de patrimônio, a educação patrimonial se torna extremamente
importante no processo de reconhecimento, valorização e preservação dos bens patrimoniais
da sociedade, e a disciplina de História tem sua função neste processo: reconstruir o passado
histórico.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 807

A Educação Histórica, neste sentido, propõe uma educação patrimonial eficaz, onde os
alunos buscam interpretar o passado histórico a partir do patrimônio, gerando assim uma
identidade histórica e cultural. Segundo Rüsen “a consciência histórica é, pois, guiada pela
intenção de dominar o tempo que é experimentado pelo homem como ameaça de perder-se na
transformação do mundo e dele mesmo.” (RÜSEN, 2001, pg. 60) A partir desta concepção,
percebe-se que uma ação preservacionista que não se apropria da consciência histórica, corre
o risco de se perder o sentido para a sociedade, pois a interpretação do passado é a geradora
de sentido à vida prática no presente.

6 REFERÊNCIAS

BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. Para uma educação de qualidade:
Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Centro de Investigação em Educação (CIED)
Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho. Braga, 2004.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 12ª Ed. Editora:
Bertrand Brasil. Rio de Janeiro/RJ, 2009.

CERCADILHO, Lis. [Prefácio] Aprender História: perspectivas da Educação Histórica.


In. SCHMIDT, M. A. BARCA, I. Aprender História: perspectivas da educação histórica.
Editora: Unijuí. Ijuí, 2009.

DE DECCA, 1992 apud MAGALHÃES, Leandro Henrique, et al. Educação Patrimonial:


da teoria à prática. Editora: Unifil. Londrina/PR, 2009.

EHLKE, Tania Gayer. Patrimônio Imaterial e Educação Histórica. Setor de Educação–


DTPEN – Departamento de Teoria e Prática de Ensino. 2008. Disponível em:
www.diaadiaeducacao.pr.gov.br. Acesso em: 18 de Setembro de 2008.

GEVAERD, Rosi T. Ferrarini. Narrar: uma maneira de aprender História na sala de


aula. In. SCHMIDT, M. A. BARCA, I. Aprender História: perspectivas da educação
histórica. Editora: Unijuí. Ijuí, 2009.

LE GOFF, Jacques (1924). História e Memória. [tradução: Bernardo Leitão, et al.] 5ª Ed.
Editora da Unicamp. Campinas/SP, 2003.

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LEE, Peter. Progressão da compreensão dos alunos em História. In. BARCA, I.


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MAGALHÃES, Leandro Henrique, et al. Educação Patrimonial: da teoria à prática.


Editora: Unifil. Londrina/PR, 2009.

NAKOU, Irene. (2001), apud PINTO, Helena. O triângulo patrimônio-museu-escola: que


relações com a Educação Histórica? In. SCHMIDT, M. A. BARCA, I. Aprender História:
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NASCIMENTO, Evandro Cardoso. História, Patrimônio e Educação Escolar: diálogos e


perspectivas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História. São Paulo/SP, 2011.

PINTO, Helena. O triângulo patrimônio-museu-escola: que relações com a Educação


Histórica? In. SCHMIDT, M. A. BARCA, I. Aprender História: perspectivas da educação
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RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.


Tradução de Estevão de Rezende Martins, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 809

MEMÓRIA GASTRONÔMICA: A ALIMENTAÇÃO DE IMIGRANTES E SEUS


DESCENDENTES, NAS DÉCADAS DE 1930 – 1950 - LONDRINA-PARANÁ

Gilberto Hildebrando, Mestre em História e aluno do 2º ano do curso de Gastronomia


(UNIFIL)

Leandro Henrique Magalhães, Doutor em História e docente do curso de Gastronomia


(UNIFIL)

Palavras-chave: Gastronomia; Memória; Imigrantes

O trabalho propõe uma abordagem sobre os elementos da cultura gastronômica do


município de Londrina – Paraná, notadamente daqueles presentes em famílias de imigrantes e
seus descendentes, nas décadas de 1930 a 1950, procurando desvelar sinais do que se
convencionou chamar de uma memória da alimentação e suas correlações com o patrimônio
cultural imaterial. As referências concretas destes sinais são pratos denominados típicos e que
mesmo com a vinda destes imigrantes para o Brasil e com a possível substituição de alguns
ingredientes, mantiveram-se presentes nos hábitos alimentares. Outra questão significativa
para a pesquisa é a solidificação do campo de pesquisa em patrimônio imaterial, no tocante à
alimentação e às técnicas de produção do alimento, alinhavando-se a outros métodos de
investigação histórica acerca da formação da cidade de Londrina.

O município de Londrina foi se constituindo, desde o início do século XX a partir da


ocupação voluntária de posseiros em áreas de terra devoluta, ocupadas por indígenas de
diferentes etnias. Em 1924, deu-se início a um projeto colonizador, de iniciativa privada, por
uma companhia inglesa, a Paraná Plantations, que pretendia consolidar um núcleo de
produção algodoeira. Em 1929, a partir da chegada da primeira caravana oficial deste
empreendimento, estabeleceram-se os limites do município e as sucessivas derrubadas de

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 810

mata, para acomodar os ranchos que serviriam de moradia e as plantações dos adquirentes dos
lotes de terra.

A Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP) formada para administrar o


empreendimento de colonização de uma área correspondente a 515 mil alqueires de terra no
Norte do Paraná (entre os quais estaria situada a cidade de Londrina) mantinha em sua sede o
controle dos registros de compra e venda de terra, onde, em consulta ao acervo depositado
junto ao Museu Histórico de Londrina, foram levantadas as etnias dos imigrantes ou de seus
descendentes mais presentes entre os compradores. Entre esses, destacam-se os grupos de
italianos, japoneses, alemães, espanhóis e portugueses, além dos próprios brasileiros,
migrantes nordestinos, mineiros e paulistas, principalmente.

Por decisão da equipe de pesquisadores, estas etnias e também os árabes, por se


constituírem em grupo importante na prestação de serviços comerciais na recém formada
cidade de Londrina, seriam o foco dos olhares para reconhecimento de suas práticas e
memórias gastronômicas. O trabalho de pesquisa foi estruturado para 2 anos, com a divisão
das etnias a serem pesquisadas. A finalização do trabalho, a ocorrer em 2012, será feita com a
apresentação dos resultados da investigação com os migrantes.

Os objetivos do trabalho, então, consistem em um primeiro plano, (1) produzir


reflexões teóricas sobre o patrimônio cultural, em sua vertente imaterial; (2) realizar estudos
sobre a composição étnica da cidade de Londrina, procurando detectar as origens dos
adquirentes de lotes de terra e (3) procurar identificar referências de uma memória
gastronômica, como elementos afetivos dos países de origem, bem como do uso de técnicas
de cocção com utensílios e ingredientes locais.

No tocante a interpretação das práticas alimentares como patrimônio intangível,


partiu-se dos pressupostos clássicos internacionais, como a Convenção para a salvaguarda do
patrimônio Imaterial, aprovada pela UNESCO em 2003, onde afirma que integram-se a esta
categoria, “os bens reconhecidos por indivíduos, comunidades e grupos como fazendo parte
de seu próprio patrimônio cultural” (ARANTES NETO, 2005, p. 7).

O patrimônio imaterial pode ser considerado como um patrimônio em efervescência,


no sentido de que pode ser e é, redescoberto a cada movimento de procura e busca. Não está
concluso, por assim dizer, e não se prende a monumentos. É dinâmico e se renova a todo

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 811

momento, pois procura valorizar a manifestação cultural, em suas singularidades e impactos


junto às comunidades onde é reconhecida e praticada.

Londres (2004) nos apresenta a proposta da UNESCO, aprovada em sua Conferência


Geral de 2003, para a conceituação do Patrimônio Intangível:

O “patrimônio cultural intangível” é constituído por práticas, representações,


expressões, saberes e fazeres – assim como instrumentos, objetos, artefatos, e
espaços culturais que lhe são associados – que comunidades, grupos e, quando for o
caso, indivíduos reconhecem como parte de sua herança cultural. Esse patrimônio
cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é constantemente recriado por
comunidades e grupos em resposta ao seu meio ambiente, sua interação com a
natureza e suas condições históricas de existência, e lhes proporciona um sentido de
identidade e continuidade, promovendo assim o respeito pela diversidade cultural e
pela criatividade humana. (LONDRES, 2004, p. 22-3)

O comitê intergovernamental da UNESCO, reunido no Quênia, em 2010, inaugurou


o registro de práticas alimentares, quando incluiu 4 proposituras na lista do patrimônio
cultural imaterial da humanidade: a Cozinha Tradicional Mexicana, a Refeição Gastronômica
à Moda Francesa, a Dieta Mediterrânea (a partir de proposta formulada pela França,
Marrocos, Itália e Grécia) e o Pão de Mel Croata.

No Brasil, onde a Constituição Federal, em seus artigos 215 e 216, estabelece as


premissas para a implantação de projetos e políticas em salvaguarda do patrimônio cultural
nas suas vertentes material e imaterial, temos uma revitalização do marco legal, uma vez que
as primeiras normatizações deste campo, em 1936 e 1937, tratavam tão somente da proteção
ao patrimônio material.

O decreto nº 3.551/2000 possibilitou a instauração do Inventário Nacional de


Referências Culturais – INRC e o Registro de Bens de Natureza Imaterial. Sob a
responsabilidade do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional,
encontram-se registrados, até outubro de 2011, 22 bens culturais, entre eles, 4 vinculados à
gastronomia: o Ofício das Paneleiras de Goiabeiras, o Ofício das Baianas de Acarajé, o Modo
Artesanal de produzir Queijo de Minas, nas regiões do Serro e das serras da Canastra e do
Salitre e o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro.

O impacto desse decreto no âmbito das políticas do patrimônio cultural é bem


marcante, na medida em que possibilita a inclusão de segmentos sociais e áreas da
cultura até então excluídas do escopo das políticas públicas pertinentes. A
formulação da idéia de patrimônio imaterial tem clara orientação relativista, no
sentido de explicitar, valorizar e oficializar a pluralidade e a diversidade cultural
brasileira. (VIANNA e TEIXEIRA, 2008, p. 123)

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O trabalho foi estruturado para compor o que procuramos chamar de quadro étnico
da formação da sociedade londrinense nas décadas iniciais da colonização do norte do Paraná,
nas margens esquerdas do Rio Tibagi, ao longo das décadas de 1930 a 1950. Com o apoio e
auxílio de fontes documentais presentes no Museu Histórico de Londrina e no Centro de
Documentação e Pesquisa Histórica, ambos pertencentes à Universidade Estadual de
Londrina, além de fontes orais, a pesquisa foi programada para se abordar os traços mais
significativos e persistentes de imigrantes. A proposta de finalização das etapas do projeto de
pesquisa dar-se-á com uma reflexão acerca dos migrantes chegados em Londrina, no mesmo
período identificado, particularmente aqueles de origem paulista, mineira e nordestina.

Pautou-se nas fases iniciais da pesquisa, por aprofundar o campo teórico acerca da
formação histórico-cultural da cidade de Londrina, uma cidade de formação recente, cujo
empreendimento colonizador deu-se a partir das primeiras décadas do século XX. Buscou-se
compreender a dinâmica colonizadora, empreitada pela Companhia de Terras Norte do
Paraná, de capital inglês e paulista, cujo incentivo à venda de pequenos lotes a imigrantes e
migrantes, ajudou a desenhar a ocupação territorial do norte do Paraná, especificamente em
Londrina, primeira sede e foco prioritário da ação da Companhia.

Par e passo com o estudo da formação étnica, buscou-se identificar também os sinais
das referências gastronômicas neste processo. Pratos típicos, técnicas de cocção, uso de
ingredientes locais em substituição àqueles tradicionais que não se podia encontrar nas novas
terras, constituíram-se como referências para o trabalho de pesquisa. Ao lado destas
referências, buscou-se compreender também, quais os sentidos da consolidação de uma
alimentação que foi aos poucos se adaptando ao paladar de cada etnia, porém, com os
ingredientes encontrados e conhecidos no norte do Paraná.

A pesquisa, ainda em andamento, agregou resultados acerca de imigrantes italianos,


o maior grupo étnico que adquiriu lotes em Londrina na primeira metade do século XX,
seguidos pelos japoneses, alemães, espanhóis e portugueses. Quanto aos imigrantes árabes, os
mesmos foram incluídos como campo de estudo, uma vez que sua presença na formação da
cidade de Londrina, nas décadas citadas, foi extremamente significativa, por seu
envolvimento no comércio local e atuação frente à compra e venda de ingredientes para os
diversos moradores recém chegados à cidade. Sua gastronomia particular, adaptada à

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realidade local, foi se consolidando em meio às diversas famílias de origem árabe e entre as
demais etnias, que passaram a incorporar algumas de suas preparações.

Sinais da dependência de uma alimentação baseada na natureza local, no caso do


palmito, que era consumido de todas as formas, a caça e a pesca, junto com os ingredientes de
fácil acesso e de cultivo relativamente rápido foram encontrados praticamente em todas as
etnias já estudadas. Caso, por exemplo, da polenta, por ter seu ingrediente principal, o fubá ou
farinha de milho, grande facilidade de armazenamento e comércio e por ser uma cultura que
logo se adaptou à terra e ao clima. A limitação do acesso ao trigo também influenciou na
gastronomia local. Algumas citações encontradas em entrevistas realizadas com imigrantes
dão conta que, pela dificuldade de obtenção da farinha de trigo, os pães que eram mais
comumente consumidos, ao longo do ano, eram as broas de fubá, não somente entre os de
descendência italiana.

Ao lado dos embasamento teórico, a equipe do projeto tem procurado pautar ações
práticas junto à comunidade londrinense, desenvolvendo cursos com algumas preparações
escolhidas, de acordo com cada etnia, no Laboratório de Gastronomia da UNIFIL. Estes
cursos tem permitido uma ampliação dos sentidos, ao conceber um prato finalizado, com
ingredientes particularmente identificáveis em cada momento, como sendo de natureza típica
de um país ou outro.

REFERÊNCIAS:

ARANTES NETO, A. A. Apresentação. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico


Nacional, número 32. IPHAN. Ministério da Cultura. 2005;

LONDRES, Cecília. Patrimônio e performance : uma relação interessante. In: GARCIA, M.


V. C., GUSMÃO, R., TEIXEIRA, J. G. L. C. (orgs.) Patrimônio imaterial, performance
cultural e (re)tradicionalização. Brasília: IcS/UnB, 2004.

MAGALHÃES, L. H. & MARETTI, M. C. Gastronomia & patrimônio cultural londrinense.


Londrina: EdUNIFIL, 2012;

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VIANNA, L. C. R. & TEIXEIRA, J. G. L. C. Patrimônio imaterial, performance e identidade.


In: Concionnitas: arte, cultura e pensamento. Ano 9, volume 1, número 12, julho 2008. P.
121-129. Disponível em <http://www.concinnitas.uerj.br/resumos12/ viannaeteixeira.pdf>.
Acesso em 19-ago-2012.

YAMAKI, Humberto. Labirinto da memória: paisagens de Londrina. Londrina:


Humanidades. 2006.

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PATRIMONIO IMATERAIL:

O LUGAR DA MEMÓRIA E A MEMÓRIA DO LUGAR;

(ICARAÍMA, PR)

Murilo Rebecchi – Mestando em História PPH-UEM

Orientador: Prof. Dr. Lúcio Tadeu Mota

Palavras-chave: Memória; História oral; Patrimônio imaterial.

INTRODUÇÃO:

O Município de Icaraíma está localizado na região noroeste do estado do Paraná, a


cerca de quilômetros da capital do estado Curitiba. Através da Lei Estadual nº 4.245, de 25 de
julho de 1960, foi criado o Município de Icaraíma, desmembrado de Cruzeiro do Oeste, então
integrante da Comarca de Peabiru. Icaraíma é Comarca desde 26 de Janeiro de 1991. Pela lei
municipal de número 12, de 24 de abril de 1955 são criados os distritos de Iporã, Maria
Helena, Porto Camargo, Tuneiras e Umuarama e, então anexados ao município de Cruzeiro
do Oeste. Pela lei estadual de número 4245 de 25 de Julho de 1960 desmembram do
município de Cruzeiro do Oeste os distritos: Alto Piriqui, Iporã, Maria Helena, Tuneiras do
Oeste, Umuarama e Xambrê. Elevado à categoria de município. Sob o mesmo decreto
transfere os distritos de Saltinho do Oeste do município de Cruzeiro do Oeste. Para formar o
novo município de Alto Piriqui. O decreto acima citado transfere também o distrito de Porto
Camargo do município de Cruzeiro do Oeste para o novo município de Icaraíma (site oficial
da Prefeitura Municipal de Icaraíma).

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Figura 1: Mapa do Município de Icaraíma.

Para que um lugar tenha sentido histórico faz-se necessário trabalhar com a memória,
esta enquanto fonte precisa ser manuseada com um cuidado que cabe ao historiador, visto que
a memória sempre está carregada de algum sentido de valor seja este individual ou coletivo,
este cuidado faz-se necessário para que o historiador não faça de seu trabalho algo carregado
de paixões, mas que consiga tornar este trabalho, estritamente científico de caráter
investigativo no que diz respeito á uma pesquisa histórica.

Le Goff (1992) sobre a pesquisa da história a partir do uso da memória enquanto


recurso, apresenta argumentação de que o historiador deve repensar suas definições sobre
fontes de pesquisa, e neste sentido ele fala sobre o documento que é uma montagem
consciente ou inconsciente da história, da época e da verdade. Segundo ele o documento é
algo que fica, que dura, e que o testemunho um ensinamento e que deve ser apurado,
analisado, para o entendimento de sua etimológica, desmistificando seu significado aparente.
Assim devemos transpor as idéias sobre a memória, e analisarmos a mesma enquanto base
para a pesquisa historiográfica, é claro que tendo como princípio a imparcialidade e a busca
na veracidade dos relatos obtidos por meio da memória coletiva.

As relações sociais pré-existentes vinculadas as forças econômicas e políticas em um


dado momento dominantes, resultam na construção do espaço, trazendo marcas profundas,
impressas na paisagem. Um testemunho que pode trazer sedimentada recordações, trazendo
nestas recordações, informações de tempos passados, contando a história do lugar.

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Neste sentido, é possível discorrer sobre a ideia de lugar a partir da reflexão de Tuan
(1983 p.6) onde: “o espaço é mais abstrato que o lugar. O que começa como espaço
indiferenciado transforma-se em lugar a medida em que o conhecemos melhor e o dotamos
de valor”.

A Apropriação simbólica do espaço acumulada de sentimentos, o particulariza e acaba


por transformá-lo em lugar. O Lugar é um redimensionamento do espaço, onde este está
carregado de valores, sentimentos, afeições. Sobre lugar Carlos (1996: 16) diz que: “o lugar
guarda em si não fora dele, o seu significado e as dimensões do movimento da história em
constituição enquanto movimento da vida, possível de ser apreendido pela memória, através
dos sentidos e do corpo”.

É importante destacar que, as memórias são importantes no sentido em que estas são
lembranças de vivências que marca um determinado lugar, transformando-o em espaço de
visita ao passado, trazendo consigo os mais diversos sentimentos, que afloram nas narrativas
carregadas de percepções. Desta maneira podemos entender o lugar de memória tem em si
uma história regada de significação, afetividades, pertencimento. Assim a memória é
estratificada no lugar.

Nora (1993: 21) trata lugar como: “são lugares, com efeito, nos três sentidos da
palavra, material, simbólico, funcional [...]. Mesmo um lugar de aparência puramente
material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se sua imaginação o
investe de uma aura simbólica”.

Assim as histórias contadas de tempo em tempo e, stão sedimentadas na saudade e


em busca de registros e sinais que possam descrever a memória do lugar.

Sobre a memória Gastal (2002: 77) considera que: “conforme a cidade acumula
memória, em camadas, que, ao somarem-se vão constituindo um perfil único, surge o lugar
da memória”. Como elo de interpretação do passado, a memória constituí-se “voz e
imagem”do acontecido.

Em Le Goff (1996: 4 23) a idéia de memória toma corpo, quando ele afirma que “a
memória como propriedade de conservar certas informações remete-nos em primeiro lugar a
uma série de informações psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar informações

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ou impressões ou o que ele representa como passado”. As imagens e representações do


tempo vivido pertencem ao campo da memória , questões que não são muito trabalhadas
quando da reconstrução da história do lugar.

Freire (1997: 45) diz que, “a memória compreende-nos melhor, estando elaborada a
partir da ausência e com o pé fincado no presente, volta-se para frente. Neste terreno, as
mais aparentemente insignificantes lembranças , são artigos de valor, sendo necessário
guardá-las, sabendo do risco que se corre coma perda desse que é nosso mais valioso e
invisível patrimônio”.

As memórias do lugar e o lugar das memórias se conjugam, buscando reforçar os


instrumentos dês do lugar. Identidade e de particularidade Desta maneira a população
constituiu-se como a mais importante ferramenta, visto que, ela produz e deposita
sentimentos afetivos e registros êmicos, resultado de uma relação coma topofilia.

Thompson (1998: 21) afirma que “por meio da história local uma aldeia ou uma
cidade busca sentido para sua própria natureza em mudança, e os novos moradores vindos
de fora podem adquirir uma percepção das raízes pelo conhecimento pessoal da história”.
Assim quando há, por meio dos antigos moradores a contação da história do lugar, no lugar
da história, por meio da memória e das lembranças se faz possível uma interpretação da
situação contemporânea do lugar.

O Conhecimento da sua própria história, do caminho de construção desta se torna


uma forma de autoconhecimento, é uma integração temporal, onde as imagens do passado
estão transportadas com sentimentos, afetividades e a noção de pertença do lugar. Neste
contexto Thompson ainda lembra que, “A História oral é uma história construída em torno de
pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação [...]
Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de fora da comunidade [...] Ela
pode dar sentimento de pertencera determinado lugar e a determinada época”( Thompson ,
1998: 44).

A Utilização de fontes orais numa utilização de reler o espaço encontra nos antigos
moradores um testemunho caracterizado de fortes afeições , carregado de sentimentos e
lembranças. Desta maneira, se o espaço se apresenta como um testemunho do que ocorreu,
os mais antigos moradores, por meio da memória ajudam a construir a memória do presente

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que se constrói (Santos, 1990). Os objetos colhidos nestes lugares estão carregados de
sentimentos, afeições trazendo em si, representatividade que trazem uma singularidade do
lugar.

E nesta abordagem queremos dar espaço ao diálogo sobre a reocupação do território


do noroeste do Paraná feita pelas companhias colonizadoras a qual queremos discorrer.
Empresas como a Companhia de Terras Norte do Paraná, liderada pelo senhor Arthur Thomas
organizaram na região um modelo a qual eles chamaram de Colonização-Dirigida, onde o
objetivo era fazer chegar até estas terras colonos, que depois comprassem títulos para
repovoar a região, bem como para o desenvolvimento das terras e também da ocupação dos
núcleos urbanos que estão se formando (STECA; FLORES, 2002).

A FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO DO MUNICÍPIO DE ICARAÍMA:

Outro ponto que queremos discutir é a ocupação das terras onde hoje se localiza o
Município de Icaraíma por meio da colonização feita pela COBRIMCO (Companhia
Brasileira de Imigração e Colonização brasileira), que segundo os relatos e documentos
existentes, remontam a ocupação nestas terras a partir da década de 1950, no entanto,
entendemos que os dados existentes são insuficientes para contar com mais clareza a
ocupação de Icaraíma, e desta maneira teremos como objeto de investigação o rastreamento e
assim a unificação de materiais que expliquem por exemplo a distribuição das terras da região
( escrituras, documentos oficiais da colonizadora, entre outras fontes), para que possamos
satisfazer os anseios que nos cercam para o entendimento da formação da sociedade local,
cumprindo assim parte do papel da investigação.

Neste contexto apresentaremos o papel desempenhado por estas empresas, mas claro
que nosso foco é tratar do papel da COBRIMCO (Companhia Brasileira de Imigração e
Colonização), responsável pela colonização do atual município de Icaraíma. Vale lembrar que
a colonização de iniciativa privada veio como maneira de solucionar as necessidades que o
Estado tinha de integrar junto ao modelo capitalista de sociedade estas terras, bem como de
garantir que estas terras seriam integradas definitivamente aos limites estaduais. Outro ponto

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que favorecia a colonização era o fato de que para o governo havia lucratividade na venda de
títulos territoriais.

A Colonização de terras pela iniciativa privada vai ser segundo Cardoso o meio pela
qual o governo paranaense encontra solução para o problema em relação aos chamados
“aventureiros”, que pelo fato de encontrarem terras devolutas na região se achariam no direito
de possuí-las. Outra situação que favorecia a colonização privada era o fato de que qualquer
pessoa poderia adquirir lotes urbanos ou rurais mesmo não dispondo de riquezas, já que o
pagamento poderia ser feito à longo prazo. Atrativos como este eram espalhados e anunciados
por toda a parte, asa empresas colonizadoras ofereciam oportunidades de uma vida melhor,
aos que manifestassem interesse e disposição em desbravar um novo espaço era anunciado
pela empresa o fornecimento de toda uma infraestrutura, transporte, grandes geradores de
energia instalação de serrarias, entre outros (CARDOSO, 2009).

Ligada ao Banco Bradesco, a COBRIMCO (Companhia Brasileira de Imigração e


Colonização), promoveu a colonização da Gleba Vila Alta, onde hooje se localizam os
municípios de Alto Paraíso, Icaraíma e Ivaté. A COBRIMCO teve inicio de suas atividades
entre os anos de 1950. Nesse período, quando da instalação desta indústria madeireira,
despontavam como lideranças os senhores José Ferreira de Souza, Antônio Duarte Bento,
Ezequiel Bispo de Oliveira e Dino Fernandes Frederico. A instalação de uma indústria de
madeira pela companhia em 1955 oficialmente fundou o Patrimônio de Icaraíma, que na
ocasião ficou sob responsabilidade do Sr. Hermes Vissoto.

Através da Lei Estadual nº 4.245, de 25 de julho de 1960, foi criado o Município de


Icaraíma, desmembrado de Cruzeiro do Oeste, então integrante da Comarca de Peabiru.
Icaraíma é Comarca desde 26 de Janeiro de 1991. Pela lei municipal de número 12, de 24 de
abril de 1955 são criados os distritos de Iporã, Maria Helena, Porto Camargo, Tuneiras e
Umuarama e, então anexados ao município de Cruzeiro do Oeste. Pela lei estadual de número
4245 de 25 de Julho de 1960 desmembram do município de Cruzeiro do Oeste os distritos:
Alto Piriqui, Iporã, Maria Helena, Tuneiras do Oeste, Umuarama e Xambrê. Elevado à
categoria de município. Sob o mesmo decreto transfere os distritos de Saltinho do Oeste do
município de Cruzeiro do Oeste. Para formar o novo município de Alto Piriqui. O decreto
acima citado transfere também o distrito de Porto Camargo do município de Cruzeiro do
Oeste para o novo município de Icaraíma (site oficial da Prefeitura Municipal de Icaraíma).

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O Ciclo do café marca presença na construção da história de nosso município, não só


em Icaraíma mas em todo o estado paranaense o cultivo o chamado ouro negro alavancou o
desenvolvimento econômico e social como podemos perceber na fala de Irineu Pozzobom.

Para o agrônomo Irineu Pozzobom a produção de café do estado do Paraná correspondia na


década de 1960 à cerca de 30% da produção nacional. Essa paisagem cafeeira talvez não seja
memorável aos mais jovens, no entanto, pode-se afirmar que essa cultura refletiu o
desenvolvimento da região noroeste paranaense. Graças ao sucesso do café durante as décadas
de 1940, 1950 e 1960 o Paraná e a região noroeste receberam uma quantidade considerável de
migrantes, vindos de variadas partes do país, destaque para mineiros e paulistas, atraídos pelo
baixo preço das terras, e pelo retorno que o café trazia. Nesse aspecto fazemos um destaque
especial à região de onde hoje se encontra o distrito municipal de Vila Rica do Ivaí, onde
estava concentrada a maior parte da produção cafeeira de Icaraíma, dali escova a produção do
município nos anos 60. O agrônomo ainda relata em as obra A Epopéia do café, a crise pela
qual o estado paranaense passou na década de 1970, que culminou co a forte geada de 1975,
conhecida como geada negra, responsável pela erradicação da produção cafeeira no estado, e
por conseqüência disso uma drástica mudança no quadro econômico, político e social no
estado. Discutiremos aqui a questão do predomínio das propriedades de terra, vale lembrar
que durante o ciclo cafeeiro o quadro agrário mostrava predominância das pequenas
propriedades, mas que decorrente da geada esse quadro se modifica para um domínio
latifundiário. Já que os pequenos agricultores na grande maioria não dispunham de condições
para suplantar a crise, sendo obrigados a deixarem suas terras e buscando novas
oportunidades seja na área urbana, e aqui podemos apontar outro problema que foi o inchaço
demográfico, ou então sair em busca de novas terras em regiões com recente processo de
colonização.

REFERÊNCIAS

ALVES, Paulo. Perspectiva acerca do método e técnica de análise dos discursos. In: História.
São Paulo, 1983. p. 33-37.

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AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do oeste no Brasil e nos EUA. In:
PIMENTEL, Sidney Valadares; AMADO, Janaína. (Org.). Passando dos limites. Goiânia:
Editora UFG. 1995. p. 51-78.

BENSA, Alan. Da micro-história a uma antropologia crítica. In: REVEL, Jacques. Jogos de
Escala. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 39-76.

CANCIAN, Nadir Apparecida. Cafeicultura paranaense – 1900/1970. Grafipar: Curitiba,


1981.

LE GOFF, J.História e memória. 2 ed. Campinas., São Paulo. Editora da Unicamp. 1992.

POZZOBON, Irineu. “A Epopéia do café no Paraná”. Editora Grafmarke,. Londrina, 2006.

NETO, Edgard Ferreira. História e etnia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1997. p.313-328.

REVEL, Jacques. Jogos de escalas: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: FGV,


1998.

STECA, Lucinéia Cunha; FLORES, Mariléia Dias. História do Paraná: do século XVI à
década de 1950. Londrina: EDUEL, 2002.

TOMAZI, Nelson Dacio. Norte do Paraná: história e fantasmagorias. Curitiba: UFPR,


1997. Tese (Doutorado) – Departamento de História, Universidade Federal do Paraná.

TUAN. Yi-Fu . “Espaço e Lugar: A Perspectiva da Experiencia"

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O MONUMENTO NACIONAL AOS MORTOS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E A


MEMÓRIA DOS EX-COMBATENTES BRASILEIROS

Pauline Bitzer Rodrigues (Especialização – Patrimônio e História/UEL)


Sylvia Lenz (Orientadora)

Palavras-chave: Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial; Memória; Ex-
combatentes.

Cada sociedade em seu tempo e espaço específico possui uma maneira distinta de
ver e de se relacionar com seu passado, ou seja, cada uma possui seu regime de historicidade,
pois espaço e tempo são o que definem a experiência/vivência do ser humano e estão sempre
mudando historicamente. Desde meados da segunda metade do século XX e principalmente
no final, percebemos uma grande mudança do regime de historicidade da sociedade.1
Pierre Nora defende a tese da “aceleração da história”, na qual o mundo moderno
afasta-se cada vez mais do seu passado e da sua tradição fazendo com que estes desapareçam
do cotidiano e precisem de lugares especiais para continuar [re]existindo. Já François Hartog
diz que hoje a sociedade dá mais extensão ao presente e produz diariamente o futuro e o
passado de que tem necessidade, o chamado “presentismo”. Andreas Huyssen, por sua vez,
fala em “passados presentes”, ou seja, uma volta, uma infestação do passado no cotidiano, em
contraposição ao culto futurista das primeiras décadas do século XX.2
O regime de historicidade, seja ele a aceleração da história, o presentismo ou a
excessiva valorização do passado, exerce influência sobre todas as formas de tornar manifesto
o passado, seja na escrita historiográfica, no estabelecimento de bens patrimoniais e na
construção de memórias e identidades. O ponto em comum entre os autores citados é
justamente o fato de haver, no fim do século XX e agora no início do século XXI, uma
obcessão pela “memória”, o que vemos na proliferação dos patrimônios e também no campo

1
HARTOG, F. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, n.36, pp. 261-273, jul/dez., 2006.;
Huyssen, A. Passados Presentes. In: Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
2
HARTOG, op. cit.; HUYSSEN, A. Passados Presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória.
Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.; NORA, P. Entre memória e História: a
problemática dos lugares. Trad. Yara A. Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

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historiográfico, onde a memória (e a identidade) tem sido a base de grande parte das
discussões. Novos estudos sobre gênero, minorias, revisitações a questões nacionais e
internacionais, buscando examinar as razões pelas quais essas questões podem ser lembradas
ou esquecidas, quais os critérios e valores que traduzem sua relevância, ou não, para a
posteridade, e quais os meios e estratégias de criação, recuperação, manutenção e
transformação das memórias inscritas em sociedades heterogêneas, como a brasileira.3
A pesquisa proposta nesta especialização em Patrimônio e História acaba por se
inserir nessa onda de estudos memorialísticos através da análise de um lugar que se
caracteriza por ser tanto produtor quanto porta-voz da memória dos soldados-civis brasileiros
que lutaram na Segunda Guerra Mundial, em especial daqueles que caíram em batalha, o
Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM), localizado no
Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial é, entre os eventos do
século XX, um dos mais comemorados por comunidades de memória. Um indício disso é o
número de patrimônios e monumentos representativos da memória da Força Expedicionária
Brasileira (FEB): ela foi composta por pouco mais de 25 mil civis recrutados por todo o país e
até meados dos anos 1980 havia 192 monumentos em todo o Brasil, numa média de
aproximadamente um monumento para cada 121 ex-combatentes.4

UM MONUMENTO AOS MORTOS

A ideia de um lugar de homenagem aos soldados caídos é anterior ao fim da


guerra, e mediante um concurso do jornal O Globo seria escolhido o projeto arquitetônico. O
“Arco da Vitória” desenhado pelo artista plástico Edgar Duvivier foi o vencedor, contudo,
seus custos de realização seriam altos e não haveria recursos para sua realização. Por ocasião
da necessidade de exumação dos corpos dos soldados brasileiros que descansavam em solo
italiano, em 1947 o governo, chefiado pelo presidente Dutra, começou a pensar num
mausoléu para os caídos em batalha do Exército, da Força Aérea e da Marinha de Guerra.
Devido a problemas e obstáculos burocráticos e jurídicos tanto italianos quanto brasileiros, a
decisão final de construir o monumento se deu somente em 1955, quando novo concurso foi

3
CONNERTON, P. A memória social. In: Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora, 1993. p. 1-48.
4
ROSENHECK, U. Entre a comemoração do passado e a construção do futuro: os monumentos da FEB em seus
contextos. In: Revista Militares e Política, n. º 3 (jul . -dez. 2008) , pp. 7-16.

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aberto, dessa vez com instruções gerais sobre o que se esperava do projeto. Entre 36 projetos
candidatos e 5 finalistas, o vencedor foi o de autoria dos arquitetos Helio Ribas e Marcos
Konder Netto, em parceria com os artistas plásticos Alfredo Ceschiatti, Anísio de Medeiros e
Júlio Cateef Filho.5
O monumento como um todo consiste em três níveis, ou três planos. O primeiro
plano consiste numa ampla plataforma onde a escadaria de subida leva primeiramente ao
Pórtico Monumental e ao túmulo do soldado desconhecido, onde há uma chama que nunca é
apagada; há ainda uma escultura metálica abstrata com linhas que simbolizam formas dos
engenhos aeronáuticos, uma escultura de granito que representa as três forças armadas com
um marinheiro, um aviador e um soldado, e uma baixa pirâmide de granito com informações
sobre a construção e inauguração do Monumento.
No segundo plano, o patamar, fica o museu, o qual contém um painel com cenas
que simbolizam a campanha da FEB e a vitória da guerra, e a exposição permanente de
objetos, roupas, armas, condecorações, fotos, etc. dos combatentes das três forças armadas; no
mesmo plano ainda há um jardim com lembranças das principais batalhas na Itália, um lago
de espelhos de água, uma painel de cerâmica em homenagem à Marinha e os Mastros onde
diariamente é hasteada a bandeira do Brasil e ocasionalmente a bandeira da Nação.
O terceiro plano (subsolo) consiste no mausoléu dividido em dois espaços por
colunas de concreto, dos quais em um lado ficam os jazigos: caixas alumínio revestidas de
mármore preto e tampa de granito branco com os nomes dos soldados6; do outro lado, há um
longo tapete que leva a um simples cenário de capela no fundo do mausoléu, contando com
uma cruz, um altar e um conjunto de cadeiras; em uma das paredes encontramos gravados em
quartzo os nomes dos mortos do Exército e da Marinha, Mercante e de Guerra; do salão do
mausoléu tem-se acesso à parte administrativa do Monumento e às dependências da Guarda,
feita a cada mês por uma das três forças Armadas, há ainda uma pequena sala de projeção
para determinados eventos e palestras.
Para além do material, o conjunto monumental, entretanto, envolve elementos
imateriais também, algumas cerimônias e solenidades que são fixas, ou o eram até alguns
anos atrás. A cada mês há a Rendição da Guarda na qual troca-se a Força Armada que fará a

5
MATTOS, G. J. B. Os Monumentos Nacionais: A Força Expedicionária no Bronze. Rio de Janeiro: SMG –
Imprensa do Exército, 1960.
6
No total são 468 jazigos, e em 13 deles está a inscrição “Aqui jaz um herói da FEB, Deus sabe o seu nome”,
pois são os não identificados, e mais dois jazigos possuem as lápides em branco representando dois corpos não
encontrados. MATTOS, op. cit., p. 60.

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segurança do monumento, e sempre obedecendo ao revezamento entre Exército, Marinha e


Aeronáutica. As vitórias da FEB são lembradas em cerimonial a cada 21 de Fevereiro, dia da
tomada do Monte Castelo, da mesma forma, o Dia da Vitória dos Aliados na Europa é
comemorada todo 8 de Maio, na qual por vezes se encontra o(a) Presidente da República. Em
21 de Julho é feita uma homenagem aos mortos das Marinhas de Guerra e Mercante 7, a
sempre no dia 2 de Novembro é feita a “Vigília da Saudade” em memória aos soldados
mortos, cerimônia que fica a cargo da Associação Nacional de Veteranos da FEB (ANVFEB).

MEMÓRIA E ESQUECIMENTO DA FEB: CELEBRAÇÃO E REJEIÇÃO?

Os conjuntos monumentais em torno da FEB, em especial o MNMSGM, são


dirigidos a todo e qualquer grupo social brasileiro, mas o que pode-se perceber no dia-a-dia é
que ele atrai muito mais aqueles que fazem parte da sua comunidade de memória ou que estão
ligados às instituições militares. Algumas hipóteses para esse distanciamento/esquecimento
podem ser elencadas.
Como primeira hipótese elencamos a segmentação da sociedade principalmente a
partir dos anos de 1960, quando surgem novos discursos memorialísticos, nas palavras de
Andreas Huyssen, e a aparição de “memórias parciais”, ou “particulares”, na explicação de
François Hartog. Duas consequências principais advêm dessa segmentação. Em primeiro
lugar, há a proliferação de patrimônios, já citada acima, visto que cada memória e identidade
assume o direito de construir/eleger referenciais e representações, e aí inseridos os
monumentos comemorativos da FEB.
Há um aparente paradoxo aí, visto que, se os monumentos da FEB aumentam,
por que a segmentação seria uma das causas do seu esquecimento? Com as memórias
individuais e coletivas ganhando força, a memória nacional, ou seja, os pontos de referência
em comum dos diversos grupos, fica na penumbra. A memória em comum sempre foi a base
para a formação das identidades, sejam elas grupais ou nacionais, e das suas ideologias.
Entramos aí numa outra hipótese para uma “rejeição” da memória da FEB: a associação da
imagem dos ex-combatentes, de forma generalizada, à política e aos militares participantes do

7
A Marinha Mercante teve 12 navios bombardeados entre fevereiro e agosto de 1942, somando uma total de
mortos maior do que a campanha da FEB na Itália, e sendo um monumento dedicado a todos os mortos em
decorrência da Segunda Guerra, é justo que tenham seus nomes na homenagem, mesmo não tendo participado de
combates enquanto militares. FERRAZ, F.C.A. Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 827

8
golpe de 1964. O regime militar buscava a criação de uma identidade nacional e elencou
alguns pontos de referência pra isso, e quando regime e ideologia caíram esses pontos de
referencia também caíram. Dessa forma, a memória da FEB, antes relacionada à memória
nacional fica restringida, por uma simbiose, à memória coletiva da sua comunidade.
É importante, aqui, partindo das ideias de Ulpiano Menezes e de Astor Diehl,
discutir brevemente os conceitos de memória e identidade.9 Para Diehl, tempo, espaço e
movimento/acontecimento são elementos formantes tanto da memória quanto da identidade: o
tempo, enquanto força corrosiva, age sobre o espaço da experiência possibilitando a
sistematização do passado/lembranças em memória, o que por sua vez cria os movimentos
culturais identitários entre aqueles que fazem parte do mesmo grupo de memória. 10 A
memória, ou seja, o compartilhamento de experiências e suas narrativas na vida social de um
grupo, é o ingrediente principal da identidade, mas ainda que se diga englobante e
democrática, a construção de uma coletividade identitária acaba por encobrir diversidades e
conflitos.11Memória e identidade, no entanto, são “processos permanentes de construção e
reconstrução”12, ou seja nunca estão acabadas e sempre apresentam heterogeneidade em sua
constituição.
Menezes também trata do esquecimento enquanto uma parte e uma condição da
existência da memória, mecanismos de seleção e descarte: a memória da FEB, por exemplo,
não é consensual nem homogênea, ao contrário, há vozes que destoam da memória tradicional
e que são silenciadas/esquecidas. Mas há uma outra face do esquecimento, uma que causa
medo. Sobre isso, Huyssen comenta que a invasão do passado no presente, cria-se um pavor
do esquecimento, uma “cultura da memória”: ela vira obcessão cultural, o que acaba por gerar
uma comercialização da memória, muitas vezes uma “memória imaginada” e não vivida.13
Tais características da memória e da identidade nos levam a uma outra muito
importante, e que também se aplica aos seus lugares de memória: o presente. A constante
reconstrução da memória e da identidade e a eleição ou construção dos patrimônios e

8
FERRAZ, 2005.
9
DIEHL, A. Memória e identidade: perspectiva para a história. In: Memória Historiográfica. Memória,
Identidade e Representação. São Paulo: Edusc, 2002. p. 111-136.; MENEZES, U.T.B. A história, cativa da
memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Rv. Inst. Est. Bras., São Paulo,
n.34, p. 9-24, 1992.
10
DIEHL, op. cit.
11
MENESES, op. cit.; SANTOS, op. cit.
12
MENEZES, op. cit., p. 10.
13
HUYSSEN, op. cit.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 828

monumentos não devem ser vistos somente a partir do passado, mas como uma ação do
presente em resposta às necessidades do presente.
Vemos essas características de constantes mudanças e da ação do presente sobre a
memória e seus monumentos na terceira hipótese da pesquisa: é possível que um processo de
militarização dos conjuntos monumentais da FEB tenha causado o afastamento da população
e até dos homenageados dos mesmos, em especial do MNMSGM. A aproximação e
dominação do monumento e suas cerimônias pelas instituições militares pode causar
intimidação no visitante, fazendo com que ele se torne um “monumento essencialmente
militar”.14 No site do MNMSGM, por exemplo, na sua página de eventos, poucos civis são
vistos nas fotos, e quando escolas o visitam, são escolas militares.15

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Olhando para as questões tratadas acima, vemos que tanto as constituições


memorialísticas e identitárias quanto a construção de suas representações acontecem a partir
de projetos diferentes e conflitos das relações de poder que os envolvem. Da realização do
projeto do Monumento, por exemplo, vemos no projeto original uma escultura representativa
da “Mãe Pátria” com seu filho pracinha morto em seu colo que ficaria na plataforma. O
escultor foi impedido de terminá-la pois dava destaque somente ao exército, e em seu lugar
foi-lhe mandado fazer a escultura que representaria o esforço dos três grupos militares, a dos
três soldados, um do Exército, um da Marinha, e o outro da Aeronáutica. Segundo o
pesquisador Francisco Ferraz, esse conflito entre as Forças Armadas acabou resultando mais
numa homenagem “às instituições militares do que ao sacrifício de sangue dos cidadãos-
soldados e de suas famílias”16, mas paradoxalmente, o Monumento muitas vezes é chamado
coloquialmente de “Monumento aos Pracinhas”.
O Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial seguindo a
premissa de Le Goff de que os monumentos possuem caráter evocativo, é todo ele uma
celebração, um culto à memória dos ex-combatentes brasileiros, e por vezes uma homenagem

14
FERRAZ, F. C. A. A Guerra que não acabou. A reintegração social dos veteranos da Forças Expedicionária
Brasileira (1945-2000). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, Tese de Dutorado em História Social 2003.
15
Em contraposição a tal ideia, o brasilianista Uri Rosenheck nega essa militarização argumentando que nos
textos dos monumentos, exceto aqueles dentro de bases militares, dificilmente se encontra menção às forças
armadas, e que, além disso, não haveria mudanças nas construções de monumentos pós-1964 quando
comparados aos anteriores. (ROSENHECK, op.cit.).
16
FERRAZ, 2003, p. 337-338.

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às forças armadas. Ele acaba por esconder muitas memórias individuais dentro de uma
coletividade, mas ainda assim, como todo patrimônio, é um importante referencial na
representação, legitimação e manutenção de uma identidade frente à sociedade.

BIBLIOGRAFIA

CONNERTON, Paul. A memória social. In: Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta
Editora, 1993. p. 1-48.

DIEHL, A. Memória e identidade: perspectiva para a história. In: Memória Historiográfica.


Memória, Identidade e Representação. São Paulo: Edusc, 2002. p. 111-136.

FERRAZ, F. C. A. A Guerra que não acabou. A reintegração social dos veteranos da Forças
Expedicionária Brasileira (1945-2000). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, Tese de Dutorado em História Social, 2003.

_______________. Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editor, 2005.

HARTOG, F. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, n.36, pp. 261-
273, jul/dez., 2006.

HUYSSEN, A. Passados Presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória.
Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.;

NORA, P. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Trad. Yara A. Khoury.
Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.

LE GOFF, J. Documento/ monumento. In: ROMANO, R. (Org.). Enciclopédia Einaudi.


Memória-História. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984. v. 1, p. 95-106.

MATTOS, G. J. B. Os Monumentos Nacionais: A Força Expedicionária no Bronze. Rio de


Janeiro: SMG – Imprensa do Exército, 1960.

MENEZES, U.T.B. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no


campo das Ciências Sociais. Rv. Inst. Est. Bras., São Paulo, n.34, p. 9-24, 1992.

ROSENHECK, U. Entre a comemoração do passado e a construção do futuro: os


monumentos da FEB em seus contextos. In: Revista Militares e Política, n. º 3 ( jul . -dez.
2008) , pp. 7-16.

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OS CAVALEIROS DE SÃO SEBASTIÃO E AS PRÁTICAS CULTURAIS EM


CAMBIRA/PARANÁ

João Paulo P. Rodrigues (Mestrado/UEM)

Sandra C. A. Pelegrini (PhD/ UEM)

Palavras-chave: Patrimônio Cultural, Memória e Cambira.

A presente comunicação tece algumas considerações sobre a “Cavalgada de Cambira1”


realizada na cidade homônima, desde 1998. Apesar de a ocupação de Cambira ter ocorrido no
final da década de 1930, a partir do desenvolvimento da agricultura cafeeira, as cavalgadas
geraram o interesse da população residente a pouco mais de dez anos e estão relacionadas à
sedimentação das atividades pecuárias.

Cambira está localizado na região norte central do Paraná, cerca de 300 km de


Curitiba, esta área que hoje forma o referido município fazia parte de Apucarana até o inicio
da década de 1960, conforme a Companhia de Terras do Norte do Paraná (CTNP). Em 25 de
janeiro de 1961, a região foi emancipada e no mesmo ano tornou-se município, cujo nome foi
originalmente atribuído como referência ao cipó muito comum no local, com flores lilás.

Em outras palavras, o objetivo principal dessa pesquisa centra-se na compreensão das


práticas de sociabilidade estabelecidas pela comunidade cambirense durante a Cavalgada e
como essas podem se configurar como um bem imaterial da população residente.

1
Localizada na região Norte Central do Estado do Paraná a 310 km da capital Curitiba.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 831

O MUNICÍPIO DE CAMBIRA/PR.

Antes de enveredarmos pela reflexão sobre a Cavalgada de Cambira, torna-se


necessário apresentar um breve histórico do município, com intuito de observar a origem dos
primeiros migrantes que formam a base dos Cavaleiros da cidade.

Segundo o memorialista Narciso Capeloto, a primeira família a reocupar as


proximidades da região de Cambira foi a do Sr. Francisco Carneiro de Souza, em 1936. Três
anos depois, o Sr. Souza, natural de Jacarezinho, fixou residência na propriedade juntamente
com sua família. Neste espaço produziam rapadura, açúcar, industrializavam farinha e
comercializavam cereais em Apucarana-PR. Por volta de 1937, João Piovesan se mudou com
os familiares para a mesma região. No ano seguinte, Pedro Blanco adquiriu um lote na Gleba
Dourados, Dito Alves, Carrascoso, Grossi e José Rodrigues estes últimos instalaram-se na
região atualmente conhecida como atual Bairro da Bela Vista. Em 1939, as famílias
Campanholi e Marafon desembarcaram no vilarejo e passaram a se ocupar da limpeza de
sítios e do cultivo do café.

Entretanto, somente a partir da década de 1940, essa região onde se encontra Cambira
passou por um processo de parcelamento, comercialização e ocupação do solo de modo mais
ofensivo. A partir desta década, intensificou a atuação de companhias de colonização, entre
elas, a da Companhia de Terras Norte do Paraná que viria a se tornar a Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná.

Para Tomazi (2000), por meio da atuação desta empresa imobiliária, grande parte de
sua área foi sendo “re-ocupada”, mediante a plantação de extensos cafezais que substituíram a
mata fechada, e depois, contaram com a fundação de cidades, a implantação de ferrovias e
rodovias.

Tal avanço se iniciou na cidade de Londrina, a partir de 1930 e persistiu até meados da
década de 1950. Para France Luz (1997) a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná,
promovia a venda dos lotes rurais intensificando a propaganda em três aspectos, o primeiros
sobre a fertilidade do solo, ou seja, a valorização da terra roxa muito produtiva; o segundo
chamava a atenção para as vantagens do pequeno e médio agricultor que poderia adquirir

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 832

pequenos lotes com preço mais acessível; por último, difundia-se a questão da versatilidade
da produção, uma vez que as qualidades da terra tornava possível o cultivo de vários produtos
como o café, o algodão, cereais, hortaliças.

A propaganda se dava através de jornais, rádios, cartazes, panfletos e agentes de


vendas espalhados principalmente pelo Oeste Paulista. Luz (1997) ressalta que a Companhia
vendeu datas nas cidades fundadas por elas com extensão média de 500 ou 600 m² cada,
chácaras em volta das cidades e vilas numa área de cinco alqueires e também lotes rurais
numa extensão superior a cinco alqueires, destinado para sítios e fazendas.

Sobre a forma de pagamento Luz exemplifica:

As condições de aquisição eram diferentes, conforme se tratasse de: a) lotes


agrícolas: 30% de entrada e quatro anos de prazo para o pagamento; b) chácaras
40% de entrada e dois anos para o pagamento; c) datas urbanas: 50% de entrada e
50% no prazo de um ano. Os juros cobrados eram de 8% ao ano. Os funcionários da
Companhia gozavam de um desconto especial de 20% (LUZ, 1997, p. 40).

Em Cambira, assim como quase em todo o norte do Paraná a produção cafeeira foi
significativa até meados da década de 1970, no entanto com a famosa “A Geada Negra”,
ocorrida no dia 18 de julho de 1975, inúmeras plantações foram abandonadas, dando espaço
paulatinamente para o cultivo da soja, trigo, milho e principalmente nos últimos vintes anos
para a atividade pecuária, especificamente em Cambira.

Conforme apontam alguns depoimentos dos participantes da Cavalgada, podemos


relacionar essa pratica cultural com a sedimentação das atividades pecuárias, estabelecida
como principal atividade econômica nos últimos dez anos. O encontro que acontece duas
vezes ao ano é organizado pelos principais pecuaristas da região e o trajeto traçado percorre as
áreas onde residem os grandes fazendeiros da região.

A CAVALGADA DE CAMBIRA

A Cavalgada de Cambira acontece anualmente, no segundo final de semana de junho,


desde o ano 2000. Segundo o Sr. Jarbas Belesi, Presidente da Associação dos Cavaleiros de
Cambira, essa prática cultural tem diversas finalidades: como destinar 20% da arrecadação do

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12 a 15 de Outubro de 2012
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almoço para o Hospital de Câncer de Londrina, propagar a importância da preservação do


meio ambiente e ratificar a fé em São Sebastião, padroeiro dos Cavaleiros.

A Cavalgada de Cambira pode ser dividida em três momentos: o primeiro chamado


“Partida”, no qual cavaleiros, autoridades eclesiásticas, políticas, lideranças sociais e a
população nativa se reúnem e dão inicio às solenidades festivas. Nesse estágio, o pároco local
“abençoa” todos os cavaleiros que participam do encontro e estimula as atividades
subsequentes ao “Passeio”, ou seja, trajeto que percorre os limites territoriais da zona rural do
município até a Capela de São Sebastião. Nesse espaço, se dá o início da terceira e última
etapa do encontro: “A Festa”, na qual são premiadas as comitivas e são servidos porções de
Costela Assada para a população que acompanha os cavaleiros.

Na imagem abaixo podemos observar a etapa da “Partida” e também notamos que o


fotógrafo coloca em evidência um ângulo mais restrito da cavalgada privilegiando o enfoque
do aglomerado de pessoas que ocupam todo o centro da fotografia. Sem dúvida, notamos que
esta estratégia do fotógrafo demonstrou preocupação com o enquadramento do maior número
de pessoas possível. No canto direito da imagem, notamos um barracão que, segundo alguns
moradores, funciona como Ginásio de Esportes. Mais abaixo, podemos obsevar uma faixa
branca com os dizeres: 10ª Cavalgada Ecológica de Cambira.

Figura 1: A partida. (2010) Autoria: Alessandro Arzani.

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Segundo Peter Burke (1992), o uso da imagem como fonte de pesquisa pode
enriquecer muito o conhecimento e a compreensão do passado, no entanto, exige extremo
cuidado. O historiador ao analisar uma fotografia deve pesquisar as motivações do fotógrafo,
as suas relações sociais e culturais, com qual finalidade e para quem a foto foi produzida.
Sobre os cuidados que o historiador deve tomar ao utilizar a imagética como fonte de
pesquisa histórica, Martine Joly (1994) afirma que o uso dessas pode acarretar num paradoxo
curioso:

Por um lado, temos as imagens de um que nos parece perfeitamente natural, [...]
aparentemente não exige qualquer aprendizagem, e por outro temos a sensação de
ser influenciados, de modo mais inconsciente do que consciente, pela perícia de
alguns iniciados que nos podem manipular submergindo-se da nossa ingenuidade
(JOLY, Martine, 1994, p. 10).

Figura 2: A partida. (2010) Autoria: Alessandro Arzani.

Na segunda imagem é registrado um momento interessante da Cavalgada: trata-se do


discurso das principais lideranças do município, justapostas hierarquicamente. No centro se
encontra o pároco local, que fazia um sermão direcionado aos Cavaleiros enfatizando a defesa
do meio ambiente, a preservação dos solos e principalmente o cuidado com as tropas e
manadas. Ao lado direito do pároco local, está a atual prefeita Neusa Belini e o seu esposo

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 835

(ex-prefeito do município Sidney Belini). Do lado esquerdo, estão as lideranças da


Associação dos Cavaleiros de Cambira.

Durante o discurso de Neusa Belini, o termo “pioneirismo” é mencionado em diversos


momentos, além disso, a maioria dos depoimentos de moradores de Cambira enfatiza a
importância do “pioneiro” na constituição social da cidade. A construção da memória que
podemos denominar de “frente pioneira” mantém-se, ainda hoje, enraizada e constitui um dos
argumentos de “orgulho” e de sentido de pertença difundidos por políticos e demais
munícipes, principalmente em festividades sejam cívicas ou religiosas. O historiador Jacques
Le Goff (2003) afirma que o estudo sobre a memória é fundamental, pois ela é responsável
pela coesão dos acontecimentos, e serve como matéria-prima para a construção de
identidades.

Atentamos para a festividade. Após o discurso das principais lideranças, acontece o


segundo rito, denominado de passeio. Nesse momento a tropa de Cavaleiros “desfila” pelas
principais avenidas do município, como podemos observar na imagem abaixo.

Figura 3. O passeio (2010). Autoria: Daniela Moraes de Almeida.

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Nesta fotografia atentamos novamente para a hierarquia existente no festejo.


Na carroça que lidera os Cavaleiros estão o deputado estadual Miltinho Pupio e a prefeita
Neusa Belini. Atrás da carroça notam-se dois cavaleiros carregando uma faixa amarela com
os dizeres “Estância Rancho Mustang”. Essa faixa serve como propaganda do rancho
Mustang, localizado na cidade de Ivaiporã.

Depois do desfile nas ruas de Cambira, os Cavaleiros partem para a “Trilha Ecológica”
da festividade, em conformidade com os discursos das lideranças da cidade, o Sr. Jarbas
Belesi afirma:

O que tem de característica da nossa cavalgada é que da região toda, a nossa trilha é
a melhor trilha que se tem para as cavalgadas porque a gente realmente procura
evitar passar por mata, rio, pra ver a questão da mata ciliar, a gente passa pelo pasto
e evitando passar por estradas já de rotina; então você vê paisagens que
normalmente de carro você não vê.

Cabe ressaltar que a transcrição das entrevistas foi cautelosa, não se acrescentou
palavras, tampouco, se interferiu nas falas dos sujeitos históricos contatados.

Figura 4. O Passeio (2010). Autoria: Daniela Moraes de Almeida

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Na imagem acima se pode captar uma das “trilhas ecológicas” da Cavalgada de


Cambira e nota-se que os Cavaleiros galopam por carreadores e não pela vegetação bruta. O
passeio se constitui uma espécie de fila indiana e obedece a uma ordem, na qual as Comitivas
mais antigas se colocam a frente.

Depois do passeio, acontece a última parte da prática cultural: “a Festa”. Nesse


momento, aspectos religiosos e profanos hibridam-se através dos cultos religiosos em frente a
Capela de São Pedro e das premiações, almoço e confraternização dos Cavaleiros no Salão
Paroquial do bairro Bela Vista.

Segundo alguns moradores, esse estágio é considerado do ápice da festa. Na chegada


dos Cavaleiros uma bateria de fogos de artifício é disparada com intuito de chamar a atenção
da população local. Como podemos observar na imagem a seguir:

Figura 5. A chegada (2010) Autoria: Alessandro Arzani.

Nesta fotografia, o autor do registro optou-se por utilizar uma angulação que
privilegiou a tomada da estrada onde galopam os cavaleiros, bem como a presença dos
moradores de Cambira que esperam pela passagem dos mesmos.

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Após a acolhida dos Cavaleiros, os mesmos se fixam nas proximidades da Capela de


São Pedro e agradecem as bênçãos recebidas durante todo ano. Segundo Luis Carlos de Melo,
os agradecimentos são decorrentes de “bênçãos” como a chuva “ordeira” em todo ano, que
ajuda nas atividades agrícolas dos produtores do município.

Em seguida, os Cavaleiros se acomodam no Salão Paroquial, na qual se inicia as


premiações da Cavalgada. Segundo Marcelo Steffani, membro da comitiva de São Sebastião,
ela obedece a uma dinâmica que prioriza o trato dos animais e as singularidades das
comitivas:

Bom, durante a cavalgada o pessoal da organização né, os nossos colegas, eles


observam aquela comitiva mais organizada, porque tem uns que vem só pra fazer
bagunça, então tem também os cavaleiros mais bem trajados, os cavalos também
bem escovadinhos, tem uns com trancinha, bem ajeitadinhos... então vem
caprichado mesmo para a cavalgada. Então quando chega aqui, até em homenagem
àquela comitiva mais distante que se deslocou, à comitiva mais numerosa, então isso
tudo é pra vamos assim dizer, pra motivar para o ano que vem a gente te-los ou pra
ter uma outra comitiva assim mais organizadinha, e temos também o cavaleiro mais
jovem que teve um ano que foi do Pirapó de três aninhos, então ele recebe um
troféu, tem o da amazona mais jovem, o da amazona personalizada, o da amazona
mais experiente pra não falar mais idosa né, e sempre eu que levo o troféu da mais
idosa e aí o pessoal vai entregando, chamando né a comitiva mais distante, o
cavaleiro mais equipado.

Após a entrega dos prêmios, é realizado o almoço, onde o prato servido desde a
primeira edição da festa é a Costela Assada. Segundo Luis Carlos de Melo, membro da
Associação dos Cavaleiros e secretário de saúde do município, a escolha pelo prato deve-se a
atividade pecuária no local que seria a principal fonte econômica da cidade. O Secretário
ressalta ainda que a festa é resultado de um esforço coletivo que envolve as associações
comerciais, a administração municipal e a comunidade cambirense.

O secretário reforça que a Cavalgada vem ganhando cada vez mais adeptos devido a
dois fatores: o primeiro refere-se à ideia de continuidade que os Cavaleiros mais velhos passar
para os seus filhos, como podemos atestar na fala do Sr. Marcelo Steffani.

Eu acho a Cavalgada uma coisa muito saudável e acho que a participação da família
é fundamental, então a Adriara sempre me acompanhou desde pequenininha ela ta
um pouco envergonhada, mas ela sempre me acompanha inclusive a gente faz
enduro a cavalo outra coisa que envolve sempre a família, e eu acho o cavalo uma
das coisas mais saudáveis, você faz amigos, você participa sempre de uma
confraternização no final e é uma coisa que eu quis transmitir a minha filha eu acho
que ajuda a dar esse censo de companheirismo, de natureza, sair um pouco do

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shopping, sair do asfalto, eu sempre gostei de cavalgar, graças a Deus, minhas filhas
gosta, minha esposa gosta também, mas só que ficou com a minha pequeninha que
eu espero que também com o tempo venha a participar junto com a gente.

O outro aspecto se deve ao fato dos moradores de Cambira se identificarem com a


Cavalgada, pois a principal atividade econômica do município, ou seja, a pecuária emprega
uma significativa parte da população.

Após o almoço, é realizada a última parte da “Festa”, em que um show de música


sertaneja de raiz embala todos os envolvidos e as festividades se encerram no final da tarde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

No estudo ora apresentado, buscou-se compreender a dinâmica da Cavalgada de


Cambira sem dissociá-la do contexto sociocultural e econômico no qual foi implementada.
Essa prática cultural reúne singularidades pertinentes à população residente como, por
exemplo, o culto ao São Sebastião, a valorização das atividades pecuaristas, a preservação do
meio ambiente e da memória dos primeiros migrantes.

Nessa festividade detectamos a convivências entre elementos sagrados e profanos que


se hibridam durante todo evento, nos sermões do Padre que chama a atenção para a
necessidade da preservação do meio e dos bens naturais; já os sinais profanos da festa se
manifestam na comensalidade, na dança e nas músicas sertanejas.

É fundamental destacar o envolvimento da população durante a realização da


Cavalgada de Cambira, tanto no âmbito religioso quanto ao profano. No dia festa foi possível
observar os munícipes se preparando para receber cavaleiros e as Comitivas. Além do
sentimento de pertença enraizado em muitos Cavaleiros que levavam seus filhos de modo a
compartilhar suas vivencias e transmitir ideais, principalmente aqueles relativos à preservação
do meio.

O festejo também permite o convívio entre homens, mulheres e crianças de distintos


seguimentos sociais, propiciando trocas culturais e religiosas. Nas cavalgadas, as famílias que
haviam convivido nas décadas de 1950, 1960 e 1970 reencontraram os antigos companheiros

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de labuta ou os amigos de infância e com orgulham apresentam os netos e demais


descendentes da família.

Vale ressaltar que o presente estudo fez parte de uma série de pesquisas realizadas no
ano de 2009-2010, vinculadas ao projeto de extensão “História Local: a Educação Patrimonial
e o Exercício da Cidadania”, desenvolvido com o apoio da Secretaria de Estado de Ciências,
2
Tecnologia e Ensino Superior (SETI) – Universidade sem Fronteiras –Modalidade
Licenciaturas, coordenado pela professora Dr. Sandra C. A. Pelegrini, que teve como um dos
objetivos difundirem o conhecimento sobre a história local dos Municípios e valorizar o bens
culturais das populações residentes, por meio da socialização e popularização do
conhecimento.

REFERÊNCIAS

ABREU, R; CHAGAS, M. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de


Janeiro: DPEA, 2003.

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BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC, 2004.

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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo
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COMPANHIA MELHORAMENTOS NORTE DO PARANÁ. – Colonização e


Desenvolvimento do Norte do Paraná. Ave Maria, 1977

DE VARAZZE, J. (2003). Legenda áurea: vida de santos. São Paulo, Companhia das
Letras.

2
O Programa Universidade sem Fronteiras, da SETI – Paraná vem apoiando o desenvolvimento de projetos
concernentes aos subprogramas: Licenciatura; Incubadora dos Direitos Sociais; Apoio aos Núcleos da Infância e
da Juventude; Diálogos Culturais; Apoio à Agricultura Familiar; Apoio à Produção Agro-ecológica Familiar;
Apoio à Pecuária Leiteira; e Extensão Tecnológica Empresarial (EDITAL n.4-
2007- SETI-PR).

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DIAS, Reginaldo Benedito; GONÇALVES, José Henrique Rollo. Maringá e o Norte do


Paraná: Estudos de História Regional. EDUEM: Maringá, 1999.

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1992.

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cultural. In: ABREU, R. & CHAGAS, M. (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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2003.

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e Debates. Curitiba, ano 22, n.43, jul/dez 2005.

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Brasiliense, 2009.

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patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

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AS PERSPECTIVAS DE SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO IMATERIAL E O JONGO


EM CUNHA – SÃO PAULO

Dra. Sandra C. A. Pelegrini (PPH/UEM)


Prof. Welington Vilanova (CEAPAC/UEM)

PALAVRAS-CHAVE: Identidades étnicas, patrimônio imaterial, preservação.

Tava dormindo
Angoma me chamou
Disse levanta povo
Cativeiro se acabou1.

A discussão ora proposta envolve preocupações com a preservação jongo como


patrimônio imaterial brasileiro, pois, como sabemos, o Brasil tem adotado políticas
preservacionistas que o colocaram, algumas vezes em posição de vanguarda em relação a
outros países. No entanto, a manutenção de um bem cultural não se restringe a sua
catalogação, ela depende do interesse e do sentido de pertença das comunidades envolvidas.
Logo, podemos afirmar que a preservação do jongo na cidade de Cunha corre sério perigo de
desaparecer totalmente, muito embora, o jongo no Sudeste tenha sido registrado e
reconhecido como um dos bens imateriais brasileiros.
É certo que no Brasil, as políticas preservacionistas se anteciparam as ações
comandadas pela Unesco, organismo responsável por gerenciar as questões internacionais que
abrangem ações no sentido da proteção, conservação e preservação dos bens culturais,
reveladores de inúmeras tradições de comunidades existentes no mundo todo, suas práticas e
formas de sociabilidade.
O nosso interesse em estudar o jongo praticado durante as celebrações em honra do
Divino Espírito Santo, na cidade de Cunha (São Paulo), se deve ao sentido de pertença
atribuída à festa pelos devotos, e também, pelas comunidades jongueiros que paulatinamente

1
Este é um dos versos do canto ecoado entre várias comunidades jongueiras (IPHAN, 2007, Dosiê n. 5).

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vem se desarticulando. Outro aspecto que nos chama a atenção é o fato que o jongo reúne as
práticas de poesia, música, dança e religiosidade com códigos próprios e que não podem ser
interpretados isoladamente para evitarmos equívocos sobre a apreensão dos significados dos
elementos representados na cultura afro-brasileira.
O jongo como forma de expressão característica de um grupo deve ser compreendido
por meio de uma leitura que permita a percepção de sua importância na esfera da transmissão
de saberes de geração em geração, e como tal, exige um conhecimento especifico das
temáticas e dos ritos estabelecidos, conferindo-lhe singularidades que garantem seu
reconhecimento como patrimônio imaterial.
Também conhecido como “tambu” ou “caxambu”, o jongo apresenta um ritmo
marcado por instrumentos de percussão e de coreografias criadas coletivamente, cujo objetivo
é reverenciar a vida e a ancestralidade. Logo, podemos afirmar que essas manifestações,
assim como tantas outras existentes no Brasil, transitam no universo sagrado e profano porque
se revestem de uma áurea mística, mas não negam sua interface de diversão e lazer. O
respeito pelos ancestrais e tributo aos deuses/orixás, protetores dos jongueiros, apresentam-se,
lado a lado, como um meio de celebrar a existência humana. Daí a relevância de seu estudo
dessa prática como bem patrimonial imaterial entre as comunidades residentes na cidade de
Cunha, interior de São Paulo, bem como da compreensão do seu “desaparecimento” nas
atuais Festas do Divino.
Cabe-nos lembrar de que as manifestações favoráveis à preservação do patrimônio
cultural imaterial da humanidade surgiram das necessidades próprias do contexto de
mudanças aceleradas, onde a rapidez da informação e o estímulo à mudança comprometem a
manutenção de costumes e modos de viver. Assim, salientamos que a partir do final do século
XX, vários pesquisadores vêm concentrando esforços com o intuito de garantir a proteção e
difusão do patrimônio intangível.
Para nossa sociedade, a atribuição do conceito de patrimônio a algum artefato,
manifestação religiosa, práticas cotidianas ou alimentares, remonta a uma herança
representativa com algum valor para a comunidade, por estar associado as suas memórias e
identidades. No entanto, ao longo do processo histórico temos percebido que os bens de valor
material têm sido visto com mais cuidado, talvez porque garantam a perpetuação dos valores
eurocentristas de cultura, em detrimento das produções de outras localidades que não tendo

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reconhecido seus bens de valor material para a humanidade são contempladas apenas com a
escolha de bens intangíveis.
O patrimônio está relacionado às práticas e saberes que compõe os processos culturais
das várias sociedades. A cultura é um bem supervalorizado na conjuntura, sendo vista como
redentora das mazelas sociais, conferindo a ela uma funcionalidade que a limita como forma
de expressão resultante da maneira como as pessoas se organizam. Como salienta Sandra C.
A. Pelegrini, a cultura não é algo dado, uma simples herança que se possa transmitir de
geração em geração. Para a historiadora trata-se de uma produção histórica, integrante das
relações entre os grupos sociais. (PELEGRINI, 2008, p. 19).
Consideramos a cultura como um bem híbrido fruto das interações existentes na
sociedade, que se articula em um jogo de influências e adquire contornos em função
processos de assimilação e acomodação capazes de lhes conferir um sentido dinâmico. A
compreensão da cultura nesses termos por parte dos historiadores é uma conquista recente,
elaborada a partir de uma mudança na concepção que, em muito se deve a aproximação dessa
área do conhecimento com a antropologia. Além disso, não devemos nos esquecer da
revolução dos métodos historiográficos que questionavam antigas formas de pensar,
fundamentais para a efetivação de mudanças como a ampliação e uso de fontes diversificadas,
assim como a postura que deve ser adotada pelo pesquisador perante elas, incentivou o
desenvolvimento de novas abordagens, metodologias e questionamentos necessários para a
realização da investigação historiográfica.
Esse conjunto de fatores suscitou o interesse dos estudiosos por temas anteriormente
renegados a planos secundários e abriu caminho para o desenvolvimento de pesquisas
envolvendo a temática sobre feiticeiras, boêmios, relações cotidianas e festas, entre outros
assuntos que passaram, cada vez mais, a ganhar notoriedade entre os historiadores. Pautados
pela perspectiva antropológica, os estudos sobre as culturas ampliaram-se, difundiram-se e
colocaram em xeque as concepções mensuradas por enfoques evolucionistas e vetores
hierarquizados.
O estudo da cultura popular embora distinto, desde o século XIX, passou a fazer parte
dos interesses dos pesquisadores e demonstrou por meio do rigor metodológico ser um
caminho viável para compreensão das formas de organização da sociedade. A cultura
produzida por pessoas comuns ganhou destaque no século XX e reforçou questões relevantes

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como os conflitos e disputas existentes no âmbito social e na esfera da preservação da


memória, renegando a ideia de uma cultura popular homogênea.
Neste sentido, é possível nos dedicarmos ao estudo do Jongo, uma prática realizada
pelos escravos e seus descendentes, relevante por revelar a diversidade do nosso patrimônio
imaterial. O Jongo é uma celebração que envolve ritmos, dança e o jogo de palavras na forma
metafórica, comum à população de origem africana que vive no Brasil.
Herança dos tempos de senzala, a prática do jongo constitui uma forma de linguagem
própria, sendo cantado na forma de enigmas que visam dificultar a compreensão por parte dos
senhores de escravos e seus capatazes sobre os assuntos mencionados na roda. Sua
composição poderia ter diversos objetivos como o de garantir o divertimento dos escravos e
libertos negros, o de ser uma demanda que necessita de decodificação da metáfora
pronunciada ou ainda de ser realizado para exaltar divindades católicas ou o panteão de
deuses afrobrasileiros.
Essa manifestação assim como tantas outras existentes no Brasil transita entre o
mundo do profano e do sagrado, servindo como forma de diversão, no entanto sem estar
desvinculados ao respeito pelos ancestrais que carregaram a tradição do jongo, assim como,
dos deuses, protetores dos jongueiros. É comum a realização dessa celebração nas festas que
homenageia santos negros como São Benedito, ou ainda os santos juninos, além de estar
presente na festa do Divino. Após a libertação dos escravos o dia treze de maio também
passou a ser uma data comemorativa para as comunidades jongueiras.
As festividades do Jongo concentraram-se principalmente na região sudeste,
especialmente nas localidades que estiveram envolvidas com ciclo do açúcar e café. Relevante
para compreensão das memórias da comunidade afro-brasileira, essa prática foi declarada
patrimônio cultural brasileiro em novembro de 2005, determinando ao Estado a obrigação de
desenvolver políticas públicas eficazes que contribuam na divulgação dessa manifestação
cultural e na promoção da proteção desse ritual que celebra a sociabilidade das comunidades
afro-brasileiras.

O registro no livro dos saberes sinaliza o reconhecimento dessa celebração como


essencial para assegurar a memória das lutas e resistências das várias comunidades negras,
além de revelar suas formas de divertimento e crença. Por muito tempo negligenciado, sendo
realizada de forma marginal, essa prática coletiva que envolve música, dança, poesia e a

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sociabilidade entre os membros das comunidades negras têm sido exaltadas como importantes
por dar visibilidade às várias identidades que compõem a nossa cultura.

Luiz Fernando de Almeida assinala que jongo “proclamado Patrimônio Cultural


Brasileiro em novembro de 2005”, pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional e imediatamente registrado no Livro das Formas de Expressão,
uma vez que envolve várias manifestações em uma só celebração, ou seja,

[...] integra percussão de tambores, dança coletiva e elementos mágico-


poéticos. Tem suas raízes nos saberes, ritos e crenças dos povos africanos,
sobretudo os de língua bantu. É cantado e tocado de diversas formas,
dependendo da comunidade que o pratica. Consolidou-se entre os escravos
que trabalhavam nas lavouras de café e cana-de-açúcar localizadas no
Sudeste brasileiro, principalmente no vale do Rio Paraíba do Sul (IPHAN,
2007, p. 11).

Vale lembrarmos que, de acordo com a pesquisa liderada pelo Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), articulado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
privilegiou-se o inventário de “danças de roda” comuns entre comunidades rurais e nos
circuitos periféricos de pequenas e médias cidades.
No decorrer dos trabalhos os pesquisadores detectaram embates sociais relacionados a
“clivagens raciais e de classe”, a “divergências religiosas” e conflitos no âmbito do “mercado
de bens na cultura de massa em contraste com a relativa invisibilidade e exclusão
socioeconômica das comunidades e grupos tradicionais” (IPHAN, 2007, p.13).
Outro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato de que no decorrer do levantamento
inicial dos locais e características das práticas jongueiras, os próprios grupos manifestaram
grande interesse em apresentar a candidatura do jongo ao registro como patrimônio nacional.
Este constitui o estímulo primordial para a condução dos trabalhos do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular e do Iphan.
No Espírito Santo, os principais grupos de jongo identificados foram os de São Mateus
e Conceição da Barra, já no estado do Rio de Janeiro foram arroladas comunidades existentes:

1. Bairro de Madureira;
2. Morro da Serrinha;
3. Comunidade da Fazenda São José (cidade de Valença);
4. Barra do Piraí;
5. Miracema;

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6. Pinheral;
7. Santo Antônio de Pádua;
8. Comunidades como Bracuí e Mambucaba (Angra dos Reis).

No que tange ao estado de São Paulo, foram levantadas comunidades jongueiras em:
1. Guaratinguetá;
2. São Luís do Paraitinga;
3. Lagoinha;
4. Piquete;
5. Cunha.

O município de Cunha localizado na região do Vale do Paraíba, embora não tendo


participado como produtor de café durante a vigência desse ciclo econômico organizou-se
para garantir o abastecimento de gêneros alimentícios na região, consolidando o poder
financeiro de uma pequena elite fundiária, detentora de riqueza que lhe conferiu a
possibilidade de utilizar a mão-obra-escrava africana. Nesse sentido, a manifestação do Jongo
assumiu dimensões imperiosas na cidade, sendo a época de maior visibilidade do grupo
perante a comunidade circunscrita as cerimônias que reverenciavam o Divino, festa
tradicional na cidade, da mesma forma que era elemento esperado nas comemorações de São
João como afirma Willems em seu trabalho realizado no ano de 1945.

(...) Na festa de São João, em 1945, duas companhias de Moçambique


dançavam quando, ao mesmo tempo, se iniciava o jongo num ponto mais
distante da praça. Ao lado dessas danças houve leilão de prendas, queimas
de fogos e, mais tarde, baile no clube de Cunha. Se a festa se realiza em
homenagem a algum santo, o povo da roça evita os bailes puramente
profanos, não porém o jongo que parece ser um dos elementos mais
constantes e atraentes de qualquer festa de certa importância. (WIILEMS,
1945, p. 138).

A celebração jongueira é uma prática integrante da cultura existente na cidade de


Cunha que compreende os costumes e as formas de diversão dessa comunidade, assim como
revela questões da fé e devoção típicas do catolicismo barroco. Pelo que temos percebido a
realização dessas atividades tem sido limitadas na cidade, fazendo parte de um triste cenário
de quase extinção.
Em “A Retórica da Perda” Gonçalves desenvolve um debate sobre as formas de pensar
o patrimônio e quais as políticas adotadas no Brasil a partir da década de 1930, que orientam

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nossa política patrimonial. Preocupado em instaurar um questionamento que respondesse


problemáticas como o que é patrimônio, quem define o que é patrimônio e qual a autoridade
para legitimar ou não um bem de valor cultural, Gonçalves afirma que muitas vezes o
discurso da extinção de determinadas práticas é uma forma de garantir a salvaguarda de
costumes considerados de valor fundamental para manutenção da identidade dos grupos.
Nesse sentido, o autor revela que o processo histórico é visto como uma ameaça à
preservação do patrimônio, e que o discurso da perda em tempos de rápidas transformações
confere ao bem cultural autenticidade e o desejo de garantir sua permanência, visando a
preservação da identidade nacional. Desta forma, Gonçalves tem razão quando considera que
a propagação dessa argumentação é muitas vezes utilizada como forma salvaguardar nosso
patrimônio cultural.
Contudo, sabemos que a concepção de patrimônio esta intimamente ligada com
questões que envolvem a memória coletiva e as identidades construídas ao longo do processo
histórico. A percepção da identidade do grupo é determinada a partir da relação de alteridade,
ou seja, da compreensão do que o outro representa e o que o difere dele. É a partir desse
posicionamento que entendemos que o patrimônio só tem sentido se for reconhecido pela
comunidade, se houver um sentimento de pertencimento daquele bem que é considerado
essencial no processo de identidade de determinada cultura.
Nesse sentido é fundamental o posicionamento de Gonçalves, para que a reflexão
sobre a preservação do patrimônio assuma dimensões da concepção dos valores dos artefatos
ou praticas para as comunidades na qual o bem esta inserido, sobrepondo a interesses
políticos e econômicos que muitas vezes influenciam nas decisões sobre essa temática.
Embora ainda existam descendentes de escravos em algumas localidades da região
sudeste, o jongo não permaneceu como prática comunitária em todos os lugares, pois os
processos de urbanização, os fluxos migratórios, e até mesmo, as manifestações
preconceituosas em relação às crenças africanas geraram certa inibição entre seus praticantes.
Infelizmente, na cidade de Cunha estes grupos têm enfrentado dificuldades na preservação
dessas práticas, seja pela atual conjuntura contemporânea como a pouco evidenciado, ou pela
própria dificuldade em transmitir determinados valores para as novas gerações, além da falta
de uma política municipal consciente da importância de amparar essas formas de expressão.
No entanto, podemos afirmar que o jongo ainda constitui um “fator de integração”, elemento

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importante na “construção de identidades” e “reafirmação de valores comuns” a “memória” e


a “criatividade” (IPHAN, 2007, p. 13).
Como Argumenta Castells, a formação da identidade é composta por um processo de
construção a partir das práticas vivenciadas e das memórias que os indivíduos compartilham,
de forma que a identidade não é algo fornecido ou imposto, mas o resultado das constantes
experiências e atuações das pessoas na sociedade. O autor esclarece que não existe apenas
uma única identidade como fator limitante da participação do individuo na sociedade, mas
sim, a existência de várias identidades que compõem o universo social.
Assim como para as demais comunidades dessa região do Estado de São Paulo, o
jongo praticado na cidade de Cunha apresenta aspectos da identidade afrobrasileira e de
“resistência cultural”; e se mantém dinâmico e revigorado em função da amplitude de seu
“universo simbólico” e do desejo da comunidade conservar tal prática.

REFERÊNCIAS

BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2008.
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda. Rio de Janeiro: Editora UFRJ;
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MAIA, THEREZA; MAIA, TOM. Vale do Paraíba. Festas Populares. São Paulo: Centro
educacional Objetivo, 1998.
MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Editora
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PENTEADO JUNIOR, Wilson Rogério. Jongueiros Tamandaré: um estudo antropológico da
prática do jongo no Vale do Paraíba paulista (Guaratinguetá-SP). Unicamp: 2004.
Dissertação de mestrado.
SHIRLEY, Robert. O Fim de uma Tradição: cultura e desenvolvimento no município de
Cunha. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
WILLEMS, Emilio. Cunha Tradição e transição em uma cultura rural do Brasil. São Paulo:
Secretária da Agricultura, 1947.

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 850

NARRATIVA TESTEMUNHAL NA OBRA HOSPÍCIO É DEUS DE MAURA LOPES


CANÇADO

Solange Cordeiro
(Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Orientadora Profa. Dra. Yonissa Marmitt Wadi

Palavras-chave: Loucura, narrativa, literatura.

Contemporaneamente, no campo da história da loucura e da psiquiatria, as


instituições psiquiátricas são vistas como um dos lugares onde se estabelece a relação saber-
poder, conforme formula Foucault, porém buscando perceber no interior destas os processos
de subjetivação dos tidos como loucos. Assim, este espaço é percebido não como um espaço
somente de controle, mas também de negociações, possibilidade dada pela escuta das vozes
dos próprios internos, das narrativas de seu próprio viver e das percepções das instituições em
que vivem, às vezes, parte significativa de suas vidas.
Considerando tais premissas se busca, neste trabalho, perceber a importância do
estudo de obras literárias escritas por pessoas tidas como loucas para uma compreensão mais
ampliada do espaço manicomial, das relações que envolvem os sujeitos que ocupam este
espaço. Entre estas obras literárias insere-se o livro Hospício é Deus escrito por Maura Lopes
Cançado, que servirá de elemento introdutor da discussão proposta.
Vale lembrar que a História e a Literatura têm métodos e exigências diferenciados,
mas se o historiador na sua busca de construção de um conhecimento sobre o mundo quer
resgatar as sensibilidades de outra época, as maneiras como as pessoas representavam a si
próprios e à realidade, “como não recorrer ao texto literário, que lhe poderá dar indícios dos
sentimentos, das emoções, das maneiras de falar, dos códigos de conduta partilhados, da
gestualidade e das ações sociais de outro tempo?” (PESAVENTO, 2008, p.8). É neste sentido,
que a obra Hospício é Deus, representa uma possibilidade de compreender, a partir da voz de
pessoas que comumente não eram ouvidas por serem consideradas “loucas”, de uma narrativa
testemunhal, as maneiras de ser e de estar no hospício e no mundo.

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As relações entre História e Literatura constituem um dos debates mais fecundos da


historiografia atual, no qual se discute não só o uso de obras literárias como fonte para o his-
toriador, mas também se a própria História não seria uma forma de Literatura, ou seja, uma
narrativa portadora de ficção. Se a História está mais próxima da literatura do que das
ciências, se tanto inventa quanto descobre fatos, é uma representação do social tal como a
Literatura.
O historiador, na impossibilidade de reconstruir o passado em sua totalidade, precisa
se valer de representações do passado, de possíveis caminhos para representar as práticas
sociais. A partir de práticas sociais dos homens do passado, o historiador constrói a sua
representação, a sua versão daquelas práticas. “A representação deve ser entendida em relação
à noção de prática: uma representação provém de uma prática social, de um registro social
concreto”. (ALVES; MACEDO, 2010, p.8).
Assim, a História é uma representação da realidade tal como a Literatura, que repre-
senta a realidade, mas de forma alegórica, sem a preocupação com fontes e método. Seria essa
a diferença entre a representação do historiador e a representação do literato. A História não
só descobre fatos, como também os inventa, o historiador só reconstrói o real a partir do
imaginável, e assim dialoga com a Literatura, sendo ambas representações de práticas sociais
vividas. (ALVES; MACEDO, 2010, p.8).
Se História e Literatura estão intimamente ligadas, e a História também se pauta no
imaginável e no ficcional, obras literárias são fontes significativas para o historiador. A
relação entre literatura e história pode ser entendida de duas maneiras. A primeira enfatiza o
requisito de uma aproximação plenamente histórica dos textos. Para semelhante perspectiva é
necessário compreender que nossa relação contemporânea com as obras e os gêneros não
pode ser considerada nem como invariante nem como universal. Devemos romper com a
atitude espontânea que supõe que todos os textos, todas as obras, todos os gêneros, foram
compostos, publicados, lidos e recebidos segundo os critérios que caracterizam nossa própria
relação com o escrito. (ALVES; MACEDO, 2010, p.8).
Trata-se, portanto, de identificar histórica e morfologicamente as diferentes
modalidades da inscrição e da transmissão dos discursos e, assim, de reconhecer a pluralidade
das operações e dos atores implicados tanto na produção e publicação de qualquer texto,
como nos efeitos produzidos pelas formas materiais dos discursos sobre a construção de seu
sentido. Trata-se também de considerar o sentido dos textos como o resultado de uma

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negociação ou transações entre a invenção literária e os discursos ou práticas do mundo social


que buscam, ao mesmo tempo, os materiais e matrizes da criação estética e as condições de
sua possível compreensão. (ALVES; MACEDO, 2010, p.8).
Ao fazer uso de obras literárias como fonte, o historiador deve inseri-las no contexto
histórico, mostrando suas intenções e diálogos com os acontecimentos de sua época. Literatu-
ra é um produto histórico datado e contextualizado historicamente, e assim não é outra coisa
senão fonte para o historiador. (ALVES; MACEDO, 2010, p.8).
Desse modo, representação e imaginário, o retorno da narrativa, a entrada em cena
da ficção e a idéia das sensibilidades levam os historiadores a repensar não só as
possibilidades de acesso ao passado, na reconfiguração de uma temporalidade, como colocam
em evidência a escrita da história e a leitura dos textos (PESAVENTO, 2000).
Já as sensibilidades seriam as formas pelas quais indivíduos e grupos se dão a
perceber, comparecendo como um reduto de tradução da realidade por meio das emoções e
dos sentidos. Nessa medida, as sensibilidades não só comparecem no cerne do processo de
representação do mundo, como correspondem, para o historiador da cultura, àquele objeto a
capturar no passado, à própria energia da vida. (PESAVENTO, 2000). Neste sentido que se
percebe os escritos de Maura, sensibilidades de uma escritora “louca”, seu modo de pensar
sobre sua vida e a instituição manicomial, considerando tais escritas como uma narrativa
testemunhal.
Desta forma a relação entre história e literatura é pensada em termos da aproximação
e cotejos dos elementos de narrativas de ficção com a história daquilo que se passou.
Considere-se o historiador, como um tipo especial de leitor que se debruça sobre um texto
literário e quem tem por meta tanto a narrativa deste passado com a interpretação do mesmo.
Com isto ele constrói uma versão do passado, daquilo que aconteceu um dia, versão esta
plausível e coerente. (PESAVENTO, 1996, p.108).
Conforme Pesavento, o texto literário faz o historiador deparar-se com as
sensibilidades passadas, isto é, “possibilidade de atingir aquela sintonia fina que permita
captar o passado de outra forma e que deve obedecer ao que chamamos uma nova pedagogia
do olhar”. (PESAVENTO, 1996, p.108).
Pois, a literatura traz a subjetividade e a sensibilidade do passado, daquilo que um
dia foi vivido, sentido, percebido de outra forma, ou da forma como podia ser naquele
momento. “Ciente de que este novo olhar é apenas uma versão sobre o passado, o historiador

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tenta apreender o registro das nuanças das sensibilidades de uma época, seus valores,
conceitos, noções sobre a vida dos homens e suas práticas sociais.” (SANTOS, 2005, p.36).
A História é uma construção de histórias sobre o mundo; nela, compõem-se enredos
sobre o passado, é a narrativa. A Literatura por sua vez, é o registro de alguma coisa que
também se passou, na esfera do sensível, é o registro de algo que diz respeito a anseios,
sensibilidades, medos, apreensões, percepções sobre o mundo é também narrativa. A loucura,
qualquer que seja sua forma ou diagnóstico, em matéria de seu conteúdo, é a representação
dos conteúdos psicológicos de um sujeito, simbolizados em discursos ou imagens, é, portanto,
narrativa. (SANTOS, 2005, p.36).
Desta forma é importante vislumbrar que a literatura está plena de narrativas sobre a
loucura, desde os tempos mais remotos, e que há muito elas fazem parte do imaginário das
sociedades. Há muitos escritores e artistas, de todas as épocas, que também se preocuparam
em relatar estados alterados de seu psiquismo, bem como relatar experiências pelas quais
passaram no manicômio, como o faz Maura Lopes Cançado, através de seus escritos
autobiográficos, pois a Literatura, assim como outras artes, é a expressão de sensibilidades,
por excelência.
A literatura como uma portadora fiel de um imaginário que se encontra do outro lado
do concreto, pode-se constituir numa narrativa do sensível fidedigna sobre a
loucura, no momento em que mostra a voz do paciente revelada pelo personagem, o
considerado “louco”, através de um discurso não oficial, mostra o outro lado da realidade.
(SANTOS, 2005, p.58).
Houve uma época em que a razão fazia literatura com a loucura, há uma época que a
razão faz literatura com a loucura, mas é com a loucura fazendo literatura que esta encontrou
seu mais desconcertante sentido. Literatura, loucura e história cultural, todas trabalham com
sistemas simbólicos, passíveis de serem interpretadas em ambas as faces do imaginário. Desta
forma, sua inter-relação, no campo deste imaginário, pode satisfazer a meta de descortinar
sensibilidades sobre a loucura, ocultadas pelas práticas sociais de exclusão. (SANTOS, 2005,
p.62).
Ao ler o delírio do louco, em textos literários de gêneros diversos é de certa forma,
um desafio, que orienta uma leitura em direção ao simbólico, pois o que se chama delírio,
nada mais é do que o conteúdo simbólico do imaginário de uma pessoa, retratando também o
imaginário coletivo. “Na verdade, este sistema simbólico constituinte do imaginário de um

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paciente, traz à tona a sensibilidade sobre a loucura de certa época dada, onde ele se insere na
corrente histórica que lhe deu origem.” (SANTOS, 2005, p.63).
Contudo, como caracterizar a loucura neste jogo dos mecanismos entre loucura e
literatura? Conforme Almeida:

[...] a loucura é a linguagem excluída – aquela que, contra o código da língua,


pronuncia palavras sem significação (os ‘insensatos’, os ‘imbecis’, os ‘dementes’),
ou a linguagem que pronuncia palavras sacralizadas (os ‘violentos’, os ‘furiosos’),
ou ainda a que faz passar significações interditadas (os ‘libertinos’, os ‘obstinados’)
(ALMEIDA, 2008, p.274).

Com isso, observamos que a figura da loucura remonta a uma linguagem excluída
por transgredir as regras de linguagem. Em “A Loucura e a Sociedade”, Foucault (1999)
ressalta que o louco é excluído dos domínios sociais circunscritos pela problemática da
sexualidade, do discurso, das festas e dos eventos sociais e do trabalho. É excluído sim do
âmbito cultural referente à linguagem e aos gestos, isto é, da sociedade. Sendo assim,
podemos pensar que tanto literatura quanto loucura são atualizações do movimento repetitivo
da linguagem, sendo esta última excluída pela sociedade. (FOUCAULT 1999 apud
ALMEIDA, 2008, p.274).
Todavia, a literatura é vista por Foucault (199), em “A Loucura e a Sociedade”,
como uma linguagem anárquica, marginal e transgressiva que foge às regras da linguagem
cotidiana, daí o seu parentesco com a loucura. “Quer dizer que há uma curiosa afinidade entre
a literatura e a loucura. A linguagem literária não está obrigada às regras da linguagem
cotidiana”. (FOUCAULT 1999 apud ALMEIDA, 2008, p.274).
A oposição entre linguagem transgressiva e linguagem cotidiana se faz valer nesta
aproximação entre loucura e literatura. Ambas fogem às regras de linguagem comumente
aceitas no dia-a-dia. No entanto, em “Loucura, Literatura, Sociedade”, observa-se uma
nuança, Foucault afirma que a força intrínseca de adaptação e absorção do capitalismo retirou
da literatura seu poder transgressivo no século XX. É como se a função transgressiva da
literatura só vingasse no século XIX. (FOUCAULT 1999 apud ALMEIDA, 2008, p.274).
A literatura e a loucura têm seu parentesco garantido pela linguagem transgressiva
que lhes é constitutiva, entretanto, a última é excluída – ela é considerada como fora da
sociedade – enquanto a primeira é aceita no interior desta. Entretanto, cada vez mais os
escritos dos “loucos” estão sendo considerados como literatura, e sendo analisadas como tal.

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A atividade de criação literária nutre-se essencialmente da imaginação. Através dela,


são construídos, de forma arbitrária, seres irreais e, pelo encadeamento de situações
fantasiosas, mundos ilusórios. (BARRAL, 2001, p.13). No gesto de criação, o escritor coloca-
se por inteiro, nele investindo a inteligência, a emoção, a memória, a capacidade de
julgamento, sua visão de mundo e ainda as instâncias psíquicas fora do controle da razão.
Entretanto, é pelo primado da imaginação e pela habilidade em exercitá-la
artisticamente, através do jogo com as palavras e técnicas de estilo, que o escritor se destaca
dos demais homens. Passando boa parte da existência mergulhado em uma esfera de fantasia
e na invenção de mundos imaginários, ele acaba sendo visto, no panorama social, como um
ser extravagante e excêntrico. Provavelmente daí teve origem as diferentes associações entre
loucura e literatura. Tudo gravita em torno da imaginação e da capacidade do homem de crer
nas imagens que cria, traduzindo-as em forma artística. (BARRAL, 2001, p.13).
Tudo o que se origina do homem penetra de modo incisivo na criação artística. As
instâncias do inconsciente, inefáveis e misteriosas, por demais abstratas para serem
reconstituídas racionalmente, participam da gênese da obra. (BARRAL, 2001, p.13).
Fora do controle da razão e do consciente, nas estruturas primitivas da mente, nos
espaços mais recônditos onde se armazenam e circulam livremente os arquétipos de tempos
imemoriais, os sonhos adormecidos da humanidade e os instintos intocados pela civilização,
dão-se os monólogos da imaginação que levam à criação artística, tão bem explorados por
estéticas como a simbolista e a surrealista. Nessa fonte onde nascem os germes da loucura,
também brotam os da imaginação criadora. (BARRAL, 2001, p.14).
Neste sentido será retratado aqui um breve comentário sobre Maura e seus escritos,
introduzindo um estudo que será desenvolvido posteriormente de forma mais aprofundada.
Maura nasceu aos vinte e sete de janeiro de 1929, em São Gonçalo do Abaeté, Minas Gerais,
filha de família abastada e tradicional. Recebeu boa educação e aos 14 anos tentou tirar brevê
de aviadora, mas interrompeu este sonho e se casou. Porém, um ano depois se separou, logo
após o nascimento de seu filho. Já vivendo em Belo Horizonte procurou ajuda psiquiátrica,
internou-se pela primeira vez na Casa de Saúde de Santa Maria, entre vinte de abril e vinte de
maio de 1949. Posteriormente mudou-se para o Rio de Janeiro onde passou a publicar contos
no Jornal do Brasil, porém suas sucessivas crises nervosas levaram-na a procurar novamente
ajuda psiquiátrica. Numa das várias internações matou uma paciente. (CANÇADO, 1965).

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Considerada inimputável deveria ser internada em um hospital de custódia, mas como


não havia nenhum disponível na época, viveu alguns anos entre uma prisão e outra. Em 1980
lhe foi concedida liberdade vigiada, que viveu entre uma internação e outra. Um misto de
autobiografia e diário de internação, ela escreveu a obra já citada anteriormente, e em 1968
uma coleção de contos que culminaram na obra o Sofredor do Ver. (SCARAMELLA, 2010,
p. 4).
Maura não entrou para os cânones literários. O livro Hospício é Deus, publicado em
1965, foi seu trabalho de maior repercussão, em 1968, foi lançada uma coletânea de contos
intitulada O sofredor do ver, a obra Hospício é Deus, é seu livro mais conhecido, porém sem
grande abrangência. Um misto de autobiografia e diário de internação foi escrito ao longo dos
cinco meses que ficou no Engenho de Dentro. (SCARAMELLA, 2010, p. 4).
Personagem polissêmico, Maura carrega as características de um aventureiro, pois sua
vida parece, em certos momentos, descolar de um universo mundano, comum e cotidiano. “O
rebelde, o desregrado, os sentimentos extremos, parecem dar o tom e, assim o que aparece é
um mapa de picadas, desvios e trajetos incertos.” (SCARAMELLA, 2010, p. 4).
As narrativas de Maura fazem referência à sua família, e junto disso vem o poder
econômico e político, a organização social e oligárquica do meio rural, a sociedade tradicional
e os valores implicados. Ao contar sobre sua intenção de tornar-se uma escritora, seu vinculo
com o SDJB, sua narrativa aponta para os contextos jornalístico, artístico e literário da época.
(SCARAMELLA, 2010, p. 4).
As narrativas relatam sua vida no hospício, suas angústias, o medo e a fascinação com
relação à loucura, com isso ela desvela a dinâmica das instituições psiquiátricas no Brasil
daquela época, a hierarquia interna e novas práticas que surgiam no cenário psiquiátrico
naquele momento em que esteve internada. Nos seus escritos a vida pessoal e social estão
imbricadas, onde a menina rica, a escritora, a louca, são as figuras que compõem seu auto-
retrato. (SCARAMELLA, 2010, p. 4).
Parafraseando Scaramella, de maneira geral, a narrativa de Maura sobre ela mesma
tem como tônica principal a loucura e a escrita, esta como exercício literário. O livro de
Maura ajuda a construir muito dessa estrutura biográfica, vinculada principalmente ao
universo psiquiátrico, na figura da escritora, ao familiar com a figura da rebelde, estes são os
eixos narrativos que mais aparecem nos relatos de e sobre Maura, ainda que não sejam os
únicos. (SCARAMELLA, 2010, p. 4).

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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set/dez 2008. Disponível em: http://www.slab.uff.br/textos/texto110.pdf.

ALVES, Marcos Francisco; MACEDO Joaquim Manuel de. História e Literatura em diálogo:
representações da escravidão em Bernardo Guimarães. Revista Eletrônica Cadernos de
História publicação do corpo discente do Departamento de História da Universidade Federal
de Ouro Preto, Ano V, n.° 2, Dezembro de 2010.

BARRAL, Gislene. “Vozes da loucura, ecos na literatura”. Estudos de Literatura Brasileira


Contemporânea, n. 12. Brasília, março/abril de 2001, pp. 13-38.

CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002.

FOUCAULT, Michel. 1999. A Loucura, a Ausência da Obra. In: M. FOUCAULT, Ditos e


Escritos I. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro,
Forense Universitária, p. 190-198.

FOUCAULT, Michel. 1999. Loucura, Literatura, Sociedade. In: M. FOUCAULT, Ditos e


Escritos I. Problematização do Sujeito: Psicologia, Psiquiatria e Psicanálise. Rio de Janeiro,
Filosofia Unisinos, p.269-280, set/dez 2008.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Com os olhos de Clio ou a Literatura sob o olhar da história a
partir do conto Alienista de Machado de Assis. In: Confrontos e perspectivas. Revista
Brasileira de História, ANPUH-editora Contexto, SP, v.16, nº3 e32, 1996, p.108-118.

PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.) Leituras cruzadas: diálogos da História com a Literatura.
Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000.

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SANTOS, Nádia Maria Weber. Histórias de sensibilidades: Espaços e narrativas da loucura


em três tempos (Brasil, 1905/1920/1937). (Tese de Doutorado). Universidade do Rio Grande
do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em História.
Porto Alegre, maio de 2005.

SCARAMELLA, Maria Luisa. Narrativas e sobreposições: notas sobre Maura Cançado


Lopes. (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Curso de Doutorado em Ciências Sociais. Campinas, março de 2010.

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ST 13 –HISTÓRIA DO CORPO: MASCULINIDADES,
FEMINILIDADES E GÊNERO
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“TÃO ESTRANHO COMO NÓS”: REPRESENTAÇÕES HOMOSSEXUAIS NA TV


E NA INTERNET

Autora: Caroline Stefany Depieri(Mestranda do curso de História-Unioeste)


Orientadora: Geni Rosa Duarte(Prof. Dra. - Unioeste)

Palavras chaves: Homoafetividade, História, cibercultura

INTRODUÇÃO:

Esta pesquisa se dá em face a investigação realizada durante o processo de


escrita da Dissertação, a ser apresentando ao curso de Pós Graduação História, Poder e
Práticas Sociais, nível Stricto Sensu da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Tenho como premissa a investigação de um seriado televisivo chamado Queer as Folk-
Os Assumidos, que compreendo como fonte e objeto desse trabalho. Como aporte
central e caracterizando-se também como fonte das discussões aqui apreendidas a
investigação se constrói por meio dos debates e problemáticas apontados pelos
telespectadores do seriado via internet através das redes sociais.

A série investigada tem como título Queer as Folk, traduzido no Brasil como Os
Assumidos750. A série a Queer as folk- Os Assumidos foi transmitida pelo canal a cabo
Eurochanel, mas este vinculou apenas a versão britânica e logo depois a HBO do Brasil
comprou a versão norte americana e passou a apresentá-la no canal Cinemax, nas
sextas-feiras a meia noite entre os anos de 2000 a 2005. O seriado teve sua primeira
produção na Inglaterra criada por Russel T. Davies e devido ao sucesso de público
Daniel Lipmann e Ron Cowen em um projeto conjunto com a rede Showtime passaram
a produzi-la nos Estados Unidos da América.

750
Neste trabalho utilizarei a nomenclatura em inglês seguida pela tradução em português, leia-se Queer
as Folk- Os Assumidos.

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A série estadunidense contou com algumas modificações da versão britânica,


tendo mais personagens e algumas alterações no roteiro. A versão estadunidense teve 5
temporadas com total de 83 episódios, enquanto a versão inglesa teve 3 temporadas. Na
versão estadunidense o cenário da série passa a ser a cidade de Pittsburgh estado da
Pensilvânia, nos Estados Unidos da América(EUA). O nome da série vem de uma
brincadeira de ditada inglês“nobody is so weirs as folk”= “ninguém é tão estranho
como nós”, para “nobody is so queer as folk”= “ninguém é tão gay como nós”.

Queer as folk- Os Assumidos se propõe a representar o cotidiano de um grupo


de amigos homossexuais, trazendo para o roteiro dos episódios questões como: família,
homossexualidade, amor, filhos, trabalho, preconceito, casamento,trabalho etc. A ideia
inicial dos produtores, e o que a tornou um marco no contexto das discussões em torno
da homossexualidade, foi trazer os personagens homossexuais para a centralidade da
trama, discutindo o dia a dia dos personagens homossexuais, caracterizando-os como os
protagonistas da história.

Assim dessa forma se contrapõem á outras representações televisivas que


contam com personagens homossexuais em suas tramas, pois estes geralmente são
carregadas de estereótipos. Os personagens são representados como cômicos e sem
contato amoroso, ou seja, os casais homossexuais são trazidos no contexto das tramas
sem nenhuma ou pouquíssimas cenas carinhosas, de relações afetivas e também são
construídos de forma satirizada.

Estereótipos em outras palavras é parte de uma manutenção da ordem


simbólica. Demarca uma fronteira simbólica entre o “normal” e o
“desviante” o “aceitável” e o “inaceitável”, o que pertence e o que
não, “nós” e “eles”. O estereótipo tende a ocorrer onde há
desigualdade de poder. Classifica pessoas de acordo com uma norma e
constrói a exclusão do outro(HALL, 2004, p. 258).

Os personagens de Queer as Folk- Os Assumidos foram construídos com


personalidades muito diferentes entre si, cada um com uma personalidade ou uma
identidade peculiar, na tentativa desconstrução da premissa de que os gays são grupos
homogêneos. Sem a utilização de grande parte dos estereótipos, houve uma maior
identificação por parte dos telespectadores com a série e consequentemente com os
personagens, dessa forma Queer as Folk acumulou um número considerável de
telespectadores no mundo inteiro.

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A noção de centralidade, em que os personagens homossexuais passam a ser o


viés condutor das discussões, o centro das dinâmicas de um programa televisivo e não
meros coadjuvantes da trama também é algo importante de ressaltar, visto que é tido
como algo novo, um formato pouco explorado até o momento uma ruptura no contexto
das produções televisivas que Queer as Folk- Os Assumidos trouxe como seu grande
diferencial.

A proposta dos produtores é falar de pessoas tão comuns quanto


quaisquer outras, que poderiam “viver na porta ao lado”, sem apelar
para símbolos comuns á imagem do gay. Sem estigmas de gestos,
roupas, modos de falar, rompendo com a “virtualidade” da pratica
homossexual(ZANFORLIN, 2005, p.16).

O seriado conta com um núcleo central de personagens que poderíamos dizer


são os “fixos” e alguns outros que aparecem em uma ou duas temporadas e tem
encerrada sua participação. Todos os personagens tem um grau de envolvimento no
mote das discussões dos episódios de Queer as Folk- Os Assumidos. Vamos conhecer
um pouco esses personagens:

Brian Kinney(Gale Harold): Bonito, inteligente, astuto, atraente, conquistador,


independente, arrogante. É um publicitário, muito bem sucedido, rico, procura não se
relacionar com pessoas heterossexuais. Ama seus amigos, mas não deixa esse
sentimento transparecer, prefere passar a imagem de que não precisa das pessoas e que
ele sozinho consegue viver tranquilamente, mas a imagem e as atitudes desse
personagem vão se alterando ao longo das temporadas.

Michael Novotny(Hal Sparks): Sensível, trabalhador, amigo, apaixonado, inseguro.


Michael desde a infância nutre um amor(não correspondido) por Brian, apaixonado por
quadrinhos, muitas vezes é visto como infantil por seus amigos, mas em geral todos o
admiram, respeitam e gostam de Michael.

Justin Taylor(Randy Harrison): Jovem adolescente de 17 anos, sensível, resolve assumir


sua identidade homossexual publicamente e vai enfrentar problemas e a não aceitação
de seus pais, amigos e familiares. Apaixona-se por Brian em sua primeira experiência
homoafetiva.

Ted Schmidt(Scott Lowel): Ted é um cara amoroso, sensível, solitário no que diz
respeito a seus relacionamentos amorosos, acha-se feio e pouco atraente, sofre de baixa
autoestima. Trabalha como contador em uma grande empresa, sente-se frustrado com

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seu emprego e resolve dar uma guinada em seu campo profissional quando é demitido.
Posteriormente passa a usar drogas, tornando-se um dependente.

Lindsay Peterson(Thea Gill): Lindsay é lésbica e tem um relacionamento estável há


alguns anos com Mel, acaba de ter um filho gerado com a “ajuda” de seu amigo de
juventude Brian Kinney. È uma mulher sensível, amorosa, boa mãe, amiga e
companheira, sonha em casar-se com seu grande amor.

Melanie Marcus(Michelle Clunie): Companheira de Lindsay, uma advogada, forte,


corajosa e pouco romântica, ciumenta. Mel é uma personagem que também sobre
algumas alterações durante as temporadas.

Debbie Novotny(Sharon Gless): Debbie é uma personagem impar na série. Mãe de


Michael, se auto afirma como uma militante pró gay, inserida no grupo P- Flags(pais,
familiares, amigos de homossexuais), sente orgulho do filho Michael e por ele ser gay.
Debbie trabalha em uma cafeteria localizada na Liberty Avenue aonde grande parte de
seus clientes são homossexuais. Uma mulher forte e corajosa frente a todos os
problemas, tais como enfrentar o preconceito social junto com seu filho e por cuidar o
irmão Vic que é soro positivo.

Emmet Honeycutt(Peter Paige): Emmet é o afeminado do grupo, com trejeitos e formas


de se vestir ditas femininas. Um sujeito sensível, simples, amoroso, amigo de todos.
Emmet trabalha como vendedor em uma loja de roupas por um tempo. Emmet pode ser
enquadrado nos personagens homossexuais estereotipados que facilmente podem ser
vistos em programas com personagens gays.

Vic Grassi(Jack Wetherall): Vic é o mais velho do grupo, possui aproximadamente 55


anos e convive com a AIDS há algum tempo. Mora com a irmã Debbie, sente-se um
sujeito incapaz por não poder trabalhar e ter que viver as custas da irmã. Por ser mais
velho e também homossexual sofre o preconceito por conta de sua idade, assim não
frequentando os lugares da moda, nem bares e as boates como os demais personagens.

A série não se prende apenas a homoafetividade masculina, pois como apontado


acima traz um casal de lésbicas retratando seu dia a dia, lidando com os preconceitos
familiares e as dificuldades de cuidar de um filho. Queer as Folk-Os Assumidos ficou
conhecida mundialmente, embora tenha sido vinculada apenas em canais pagos(como
foi o caso do Brasil) há de convir que o público que viu o seriado é um público que

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merece atenção no sentido de explorar quais as classes sociais que tiveram acesso ao
seriado? como ele se difundiu? Entre outras inquietações. Pela crítica, foi considerado o
seriado que mais teria se aproximado do chamado “mundo homossexual”, embora
quando utilizo essa expressão esteja, de certa forma, restringindo uma gama de
experiências sociais e suas compreensões na vida cultural.

Queer as folk- Os Assumidos foi tida como livre de estereótipos e de piadinhas


de mau gosto que geralmente são representadas por muitos programas quando estes
contam com personagens homossexuais.

O que diferencia Os Assumidos de outros seriados que possuem


homossexuais entre as personagens é uma nova disposição em relação
à forma de representa-los. Primeiro, o seriado foi pensado para o
público gay, para levar as telas de veiculo massivo, a televisão, o
estilo de vida e as relações vivenciadas no cotidiano, que envolvem
família, trabalho, doenças, relacionamentos amorosos etc
(ZANFORLIN, 2005, p. 16).

O seriado se coloca como objeto e fonte dessa pesquisa por conta dele apontar as
problemáticas, é ele quem dá o aporte essencial para pensar minhas inquietações e
consequentemente as formas de verificação da outro tipologia de fonte utilizada: a
internet. Dentro do contexto da série uma gama de possibilidades se coloca a cada
temporada, pra não dizer a cada episódio.

Ressalto que a discussão em torno das práticas homossexuais estão em constante


diálogo com esta pesquisa. Por meio das concepções apontadas pelos autores Peter Fry
e Edward MacRae(1983), que tem como foco os estudos da homossexualidade no
Brasil, é possível trazer à tona algumas questões no que diz respeito a construção do
movimento homossexual no Brasil, militância, doenças e até mesmo reflexões
contemplando o viver homossexual e suas práticas. Segundo os autores:

Partiremos do pressuposto de que não há nenhuma verdade absoluta


sobre o que é a homossexualidade e que ideias e práticas a ela
associada são produzidas historicamente no interior de sociedades
concretas e que são intimamente relacionadas com o todo desta
sociedade(FRY, MACRAE, 1983, p. 10).

A prática homossexual tem diversas interpretações e concepções, mas é


conveniente a compreensão de que esta prática também é construída no contexto social
e pode ser entendida como parte da cultura.

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A Internet ou a rede mundial de computadores ao longo dos últimos 10 anos tem


ganho um espaço cada vez maior na vida das pessoas, seja por uso profissional,
acadêmico, escolar ou por mera diversão, como um meio de entretenimento. Mas para
pesquisadores de diversas áreas do conhecimento o mundo virtual se tornou objeto de
pesquisas científicas, ou seja, de investigação.

Percebendo essa grande utilização da Internet na contemporaneidade e


principalmente das redes sociais, não pude desconsiderá-la, partindo do pressuposto
que o espaço que esta mídia ocupa é relevante para pesquisas científicas e para esta
pesquisa o espaço virtual se configurou como um importante aporte, ajudando a
visualizar como foi a recepção do seriado Queer as Folk- Os Assumidos, que tipo de
identificação a série despertou nos telespectadores, entre outras questões.

Os diversos usos e as diferentes apropriações que os usuários da rede mundial de


computadores fazem tem seus reflexos nas dinâmicas sociais, ou seja, os discursos lá
proferidos muitas vezes são encontrados na “vida real”, saem do espaço da internet ou
da TV e passam a ocupar um lugar específico na sociedade e tal dinâmica não pode ser
esquecida pelo historiador.

Não quero de forma alguma dar a impressão de que tudo o que é feito
com as redes digitais seja “bom”. Isso seria tão absurdo quanto supor
que todos os filmes são excelentes. Peço apenas que permanecemos
abertos, benevolentes, receptivos em relação à novidade(LÉVY, 1999,
p. 12).

Não me propus nessa pesquisa avaliar as perspectivas positivas e negativas da


Internet e também não tenho a pretensão de julgar os usos do ciberespaço. A groso
modo proponho a análise e a reflexão de um espaço que se encontra no contexto da
Internet e as dinâmicas no meio social. Compreendendo que nessa pesquisa não cabe
julgamentos e sim a investigação que decorre da utilização, usos e apropriações do
espaço virtual.

Há de se ressaltar que a Internet não é um meio passivo, que apenas


recebe informações, os espaços virtuais são bastante ativos,
entendendo que o “virtual” não esta tao distante o “ real”. Contudo, a
rigor, em filosofia o virtual não se opõe ao real mas sim ao atual:
virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes da
realidade(LÉVY, 2010, p. 47).

Um exemplo da prática nada passiva dos usos da Internet são as comunidades


virtuais, inseridas no site de relacionamentos orkut, que trabalho nessa pesquisa e que

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muitas vezes são utilizadas como uma forma de manifesto contra as representações
homossexuais feitas pelas TV aberta, debates em torno dos episódios do seriado Queer
as Folk- Os Assumidos e também escritos de experiências pessoais dos internautas de
vivencias inseridas em seus cotidianos. As comunidades podem ser aquelas que falam
um pouco mais do usuário do Orkut, pois no perfil pessoal, se coloca a idade, cidade,
filmes que gosta, músicas preferidas, religião, estado civil dos membros do orkut, mas
essas informações gerais não são suficientes para sugerir quem somos, assim as
comunidades também podem falar um pouquinho sobre o usuário.

No contexto da internet os membros declaram toda sua indignação e insatisfação


em relação ao personagens estereotipados que geralmente estão presentes na
programação televisiva, tecem suas críticas assim como discutem a forma que os meios
de comunicação principalmente a TV tratam da homossexualidade.

A mídia se mantém atrelada a valores ditados por aqueles que detém o


poder hegemônico, seja na politica, na economia ou nas correntes que
ditam as condutas morais de ocasião. Na esfera da sexualidade isso é
bastante evidente, uma vez que o sexo ainda é tratado por um ângulo
binário pouco condizente com a complexidade da diversidade
existente nos seres humanos(RIBEIRO, 2010, p. 125).

Vale ressaltar que é uma forma de se expressar e se comunicar frente aos


grandes meios de comunicação, vide que praticamente não há outras formas do
telespectador manifestar a insatisfação. Nas páginas da Internet, o usuário tem a
liberdade de escrever o que bem entende sobre assuntos variados, entre eles sobre a TV
e a programação vinculada. O conteúdo exposto na Internet por via de seus mais
variados espaços dentre eles blogs, fotologs, redes sociais, páginas pessoais, sites
também tem suas pretensões e ações práticas no cotidiano. Retirando a conotação da
Internet ser apenas discursiva, dando a noção que ela também pode gerar ações
concretas, onde os sujeitos também vão se constituindo por meio dela.

Uma gama de representações são tecidas por meio da Internet, construindo laços
de amizades, questões profissionais, relacionamentos amorosos, proporcionando
possibilidades de contatos que tem seus desdobramentos no cotidiano das pessoas, em
suas relações sociais. Nas comunidades, muitas questões que o seriado Queer as Folk-
Os Assumidos havia pautado ao longo das 5 temporadas, estavam sendo debatidas no
espaço da internet e vale a pena ressaltar que o número de comunidades direcionadas ao
seriado é bastante grandioso. As mais frequentadas são as que tem como tema central o

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seriado, mas elas vão se desmembrando em vários outras, que levam como título os
nomes dos personagens, ex: Ted Schmidt- Queer as folk

Incluir o Orkut e suas comunidades, veio pelo fato de me despertar inúmeras


inquietações. Dentre elas: porque manter essas comunidades no espaço da Internet,
mesmo após quase 7 anos do término do seriado? Quais os usos e apropriações que os
internautas fazem desses espaços? Que tipo de contato a Internet possibilita para esses
usuários? Que interações e sociabilidades são estabelecidas no espaço da web? Que tipo
de visibilidades as questões debatidas na série televisiva tem nas comunidades?

A comunidade que mais me ative até o presente momento tem como título
“Queer as folk- Os Assumidos” e conta com 22.912 membros, está comunidade me
despertou maior interesse por conta de trazer discussões muito pertinentes para esta
pesquisa. Os tópicos que lá estão postados vão desde: Qual o personagem mais bonito,
qual o personagem que os telespectadores mais se identificaram, joguinhos com
intenção de colocar em pauta questões relativas a sexo e dentre vários tópicos cheguei
até um chamada Confessionário. Neste tópico as discussões vão de confissões
referentes a términos de namoros, saudades do seriado, o inicio de todas as frases desse
tópico é “confesso que”.

Nesse limiar de discussões dentro das comunidades percebe-se uma interação e


uma relação bastante interessante dos membros, supostos telespectadores de Queer as
folk- Os Assumidos, que contam suas insatisfações pelo fim da série, suas preferências
em relação aos personagens, as curiosidades em saber o que estão fazendo atualmente
os atores de Queer as folk- Os Assumidos e principalmente seus escritos relativos a
experiencias pessoais. Há também contantes afirmações no que diz respeito as
amizades, em especial as amizades que foram feitas por meio da comunidades, embora
muitos deles nunca tenham se visto pessoalmente, apenas mantém um contato por meio
de um tópico ou de uma comunidade pertencente à uma rede social.

Trazer as inserções do campo da internet juntamente com as premissas


abordadas em um programa de TV aliando-os ao debate historiográfico é um desafio.
Analisar fontes provindas do campo virtual é algo muito novo para os historiadores,
dessa forma as dificuldades se ampliam, visto que a bibliografia em torno das temáticas
que envolvam a internet, especificamente no campo da história é bastante reduzida.
Nesse caso, tive o apoio de autores e pesquisadores de outras áreas do conhecimento

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como: a comunicação e a filosofia. O que pode num contexto geral se tornar uma
premissa muito rica do ponto da interdisciplinaridade.

Estamos vivendo a abertura de um espaço de comunicação novo e


cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas desse
espaço nos plano econômicos, políticos, cultural e humano(LÉVY,
1999, p.11).

De acordo com o filósofo Pierre Lévy(1999) a cibercultura, ou seja, a cultura e


sociabilidades apreendidas no campo virtual , expressam o surgimento de um novo
universo. Esse universo que o outro pontua reflete um pouco daquilo que tentei explorar
nessa pesquisa com base nos escritos, opiniões e vivencias instigadas pelo seriado de
TV Queer as Folk- Os Assumidos.

CONLUSÃO

Debater a diversidade sexual na contemporaneidade via um seriado de TV


trouxe a possibilidade de trabalhar fontes provindas do campo virtual, não esquecendo
que o seriado Queer as Folk- Os Assumidos também se caracteriza como fonte pois é
ele quem traz os elementos centrais que geram as discussões nas comunidades virtuais
no orkut e facebook.

É possível visualizar os diversos usos que os internautas fazem do campo virtual.


Cada um utiliza de uma maneira, dessa forma os usos e apropriações são bastante
variados. Nas comunidades virtuais que se propõem abordar o seriado Queer as Folk-
Os Assumidos os internautas adentram naquele espaço com algo em comum que é o
fato de todos terem assistido ou acompanhado a série de TV, que tinha como premissa
trazer à tona os personagens homossexuais, assim eles acabam constituindo uma teia de
relacionamentos, muitos até afirmam terem feito amizades verdadeiras no contexto da
comunidade.

As comunidades virtuais, principalmente as do orkut, que foram as mais


exploradas nesta pesquisa, embora como explicitado anteriormente não excluí outros
meios virtuais como o facebook, ganham sentidos diferentes para os internautas.
Percebemos que alguns se utilizam da comunidade visando a possibilidade de encontrar

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um romance, visto que nas comunidades destinadas à Queer as Folk- Os Assumidos


grande parte dos membros são homens e homossexuais.

Outros passam a utilizá-la como um diário pessoal contando nos pormenores os


sentimentos, as críticas, as opiniões e as impressões que vão tendo da série conforme
vão acompanhando os capítulos e temporadas. Muitos utilizam como uma forma de
expressar suas angustias, sofrimentos bem como as alegrias, dividindo suas experiências
com os demais, a comunidade visa debater um seriado de ficção, pautado na discussão
sobre a diversidade sexual, mas os internautas frente as comunidades expandem o
debate compartilhando suas vivencias pessoais e muitas vezes relacionando-as com os
personagens da série.

Relações afetivas em vários momentos são ressaltadas pelos usuários, a


comunidade para esses internautas vai muito além de uma página na internet, ela se
configura não apenas como um espaço para discussão de uma seriado de televisão ao
qual houve uma identificação entre eles, mas também é um espaço de relatos, de dar e
receber conselhos, de se sentir pertencente há um grupo social que tem supostamente
tem algo em comum, que neste caso é gosto pelo seriado Queer as folk- Os Assumidos.

Os debates decorridos das redes sociais na atualidade são fruto da visão de


mundo e dos entendimentos relativos à constituição da sociedade atual de seus
membros. É uma interação dinâmica e constante que contribui para a formação de
pensamentos e ações.

Redes Sociais são, antes de tudo, relações entre pessoas, estejam elas
interagindo em causa própria , em defesa de outrem ou em nome de
uma organização, mediadas ou não por sistemas informatizados; são
métodos de interação que sempre visam algum tipo de mudança
concreta na vida das pessoas, no coletivo e/ou nas organizações
participantes(AGUIAR, 2007, p.2).

Relacionar as representações contidas num seriado de TV , que são ficcionais


com os tidos fragmentos da realidade contidos nos escritos dos internautas no interior
das comunidades é um trabalho bastante instigante.

Visível no espaço público contemporâneo, as questões relativas ás relações e


identidades homossexuais tem chamado atenção para a necessidade de uma profunda
discussão em torno do tema na perspectiva da construção historiográfica, tornando um

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tema de suma importância e relevância, dessa forma espero que minha pesquisa se
também se constitua como uma forte defesa aos direitos e ao respeito a alteridade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR, Sônia. Redes Sociais na Internet: desafios à pesquisa. In: VII Encontro de
de Núcleos de Pesquisa em comunicação-NP tecnologias da informação e da
comunicação. 29 de Agosto a 2 de Setembro de 2007. Santos- SP.

FRY, MACRAE. O que é homossexualidade? São Paulo: Brasiliense, 1983.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo:Ed.34, 1999.

HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:


Editora da UFMG/ Unesco, 2004.

RIBEIRO, Irineu Ramos. A TV no armário: Identidade gay nos programas e


telejornais brasileiros. São Paulo: GLS,2010.

ZANFORLIN, Sofia. Rupturas possíveis: representações e cotidiano na série Os


Assumidos. São Paulo: Annablume, 2005.

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ESPAÇOS LUXUOSOS E ESPAÇOS DE DOMINAÇÃO: A REVISTA CARETA


CRIANDO A FALSA LIBERAÇÃO FEMININA NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA

Douglas Josiel Voks (Mestrando em História - UDESC)

Orientadora: Profª. Drª. Sílvia Maria Fávero Arend

Palavras Chaves: gênero, imprensa, discursos.

O final do século XIX e início do século XX viu florescer não apenas a


constituição de uma república no Brasil, mas também constantes transformações
urbanísticas e principalmente sociais. Em grande medida, essas transformações podem
ser atribuídas a uma parcela da elite brasileira que desejava a todo custo estabelecer nos
trópicos uma sociedade aos moldes europeus, tendo como referência primordial a
França. Nesse mesmo período, a cidade do Rio de Janeiro, estava ficando cada vez mais
cosmopolita e populosa. A partir de um desenvolvimento social, econômico e urbano
emerge um público para as revistas, que, favorecidas pelo desenvolvimento gráfico, se
preocupavam cada vez mais com a estética das ilustrações, publicando inclusive
fotografias dessa camada social em ascensão (BUITONI, 2009, p.51). Nesse sentido,
surge a revista Careta, a qual atendia os desejos e necessidade dos seus consumidores,
como por exemplo, instituindo concursos de robustez infantil, dando dicas de moda e
criando colunas sociais em que divulgava o modo de vida de uma classe abastada.
A revista Careta pode ser considerada o fruto de um sonho que tinha o propósito
de levar informação, novidades e entretenimento para uma classe que desejava ser
moderna e civilizada. Com a Careta, o seu fundador, o tipógrafo Jorge Schimidt trouxe
um novo modelo editorial para o Brasil, inaugurando em 1908 uma revista semanal com
um ousado design, mas, sobretudo, uma ousada proposta: transformar por meio de
ideias a sociedade brasileira.
Para alguns membros da elite carioca e consumidores da Careta, o que se
almejava era uma sociedade europeizada. Nesse sentido a revista servia como um
espelho, refletindo os desejáveis padrões comportamentais, políticos, culturais e sociais.

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Em suas páginas a revista tentou representar uma forma de sociabilização elegante que
era almejada por alguns indivíduos abastados, ou seja, ela imprimia em suas edições um
estilo de vida que se tentou implantar no Brasil.
Por ser uma revista de generalidades, as charges se faziam presentes em grande
quantidade em cada edição. Essas charges ilustravam as mais diversas representações do
universo político, do social e do cultural. No entanto, destacam-se as representações
sociais acerca das mulheres. Tais charges eram sempre imbuídas de uma comicidade de
duplo sentido que evocavam o comportamento desejável para a sociedade carioca, como
também o que não se aceitava.
As charges da Careta demonstram o que o chargista e a revista desejavam que
fosse colocado em evidência naquela sociedade. Desta forma, Mannoni indica que as
representações sociais podem ter o poder de mudar ou de reforçar certas práticas ou
valores dos indivíduos receptores. No entanto, devemos ressaltar também que por trás
das representações sociais da Careta vamos encontrar formas de discursos.
Para Michel Foucault, em toda sociedade a produção do discurso é controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos e dominar seu acontecimento aleatório
(FOUCAULT, 2002. pp.8,9). Mas, no entanto, Foucault ressalta também as condições
do funcionamento do discurso, as quais impõem aos indivíduos certo número de regras
de forma a não permitir que todo mundo tenha acesso a ele. Desta forma, Foucault
questiona quem possui legitimidade para emitir o discurso (FOUCAULT, 2002, p.37).
Por mais que o discurso seja aparentemente pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com as relações de poder. Foucault aponta que o
discurso não é simplesmente aquilo que manifesta o desejo, é também o objeto de
desejo (FOUCAULT, 2002, p.10).
Nas próximas páginas pretendemos esboçar o perfil feminino apresentado pela
Careta e, ao mesmo tempo, o perfil masculino, demostrando as relações conflituosas
entre estes dois campos. Junto disto, reconstruiremos a trajetória de um grupo em que
aqui, nesse artigo, não se destaca nomes ou personagens específicos, mas que é
entendido como um grupo de mulheres que estavam dispostas a quebrar barreiras e lutar
por direitos; não um grupo organizado coletivamente, mas que, individualmente, cada
uma com seu modo de negar a submissão e a passividade ajudou a construir um novo
panorama e fazer com que muitas outras mulheres pudessem enxergar um novo
horizonte em suas vidas.

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ILUSTRANDO “DESEJÁVEIS” COMPORTAMENTOS NA CARETA

No inicio do século XX, vários visitantes estrangeiros comentavam as


transformações espaciais e urbanas ocorridas nas principais capitais brasileiras. Para
diversos autores como Ana Beatriz Barel (2002) e Jeffrey Needell (1993) esse processo
de transformações ocorrido nas primeiras décadas do século XX, que foi o auge da Belle
Époque brasileira, não se deu de um dia para o outro. Foi um longo processo de
transformações materiais e principalmente no modo de agir e pensar, que se iniciou
desde a vinda da família real, mas que já nas primeiras décadas da República vai atingir
o seu ponto máximo. A instituição da República inaugurou um período onde mais do
que nunca se almejava transformar a sociedade. Com o advento da República que fica
mais clara essa ligação do Brasil com os ideais franceses, já que nessa época as elites
vão tentar reproduzir ao máximo a cultura francesa no Brasil, principalmente na capital,
Rio de Janeiro, com as reformas urbanísticas de Pereira Passos.
Porém, mesmo com tais reformulações, as classes abastadas, que mantinham um
contato com a Europa, percebiam que existia uma distância muito grande entre a
sociedade brasileira e o que se considerava “civilização”. Needell indica que:
Embora os brasileiros invejassem a civilização e o progresso do
Atlântico Norte, eles também os consideravam uma conquista
específica da Europa. (...) Por outro lado, aceitava-se com naturalidade
a precária adoção de tecnologias, costumes e capitais estrangeiros no
Rio de Janeiro, reflexo das realidades neocoloniais. Na verdade, os
habitantes das províncias pensavam no Rio como uma cidade
magnífica, capaz de conferir prestígio urbano a quem a visitasse.
Apenas os brasileiros que conheciam o estrangeiro vislumbravam a
enorme distância que separava sua pátria da Civilização (NEEDELL,
1993, p.48).

Neste sentido o prefeito Francisco Pereira Passos planejou a reformulação da


cidade do Rio de Janeiro, assim como Hausmann, prefeito de Paris havia feito. Junto
dessas transformações físicas, ocorreram também mudanças comportamentais, pois
havia a pretensão do alcance de uma “civilidade” tal qual a existente na Europa
(D’INCAO, 1997, p.226). Entre as diversas medidas de Pereira Passos para transformar
a cidade do Rio de Janeiro, podemos destacar a pavimentação de ruas, construção de
calçadas e asfaltos, embelezamento de praças e passeios públicos, proibição da venda
ambulante de alimentos, proibição da criação de porcos dentro do limite urbano,
combate ao ato de cuspir no chão dos bondes e ao o descuido com a pintura das

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fachadas, assim como a proibição de uma série de outros costumes que passaram a ser
tidos como “bárbaros” e “incultos” (NEEDELL, 1993, p.57).
Devemos ressaltar que houve uma tentativa de imposição de tais mudanças
comportamentais, tentando fazer com que as pessoas incorporassem esses novos
hábitos. Todavia tais mudanças não necessariamente aconteceram. Podemos perceber
então que para além das medidas para as transformações urbanísticas, procurou-se
também mudar hábitos e costumes. Consequentemente, essa tentativa de construção de
novas práticas consideradas elegantes em grandes centros urbanos gerou outra mudança
social: um número cada vez maior de mulheres751 das classes altas caminhando pelas
grandes avenidas recém-abertas, fazendo compras, passeando, tomando chá, indo ao
cinema, e tudo isso sem a presença masculina (HAHNER, 2003, p.183).

Fig. 1 - Careta, março de 1917. Ed.456

Essas mulheres, desde o início da publicação da Careta, eram retratadas pelo


periódico em suas colunas sociais andando pelos boulevards do Rio de Janeiro. Tais
colunas demonstravam as transformações urbanísticas e sociais ocorridas pela
intensificação da Belle Époque. Elas serviam não apenas como um “retrato” de um
grupo social, mas também tinham a função de qualificar quem poderia ser representado
em suas páginas.

751
- Nossas análises a partir da categoria gênero são feitas através do diálogo com Joana Maria Pedro,
Margareth Rago, Joan Scott, entre outras, compartilhando do entendimento destas do que seja a categoria
gênero. Para essa última gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de
poder”. SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Recife: Corpo e
Cidadania, 1990, p. 14.

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As inovações culturais e tecnológicas ocorridas no início do século XX no Brasil


afetaram igualmente tanto as mulheres quantos os homens. As mulheres das classes
abastadas além de frequentarem as casas de chá ou teatros, também passaram a dirigir
carros e ir sozinhas ao cinema. Os filmes retratavam as mulheres como jovens
trabalhadoras independentes e heroínas modernas e, ao mesmo tempo, sexualmente
sedutoras. Desta forma, o cinema ajudava as mulheres da elite a adquirirem novas ideias
e aspirações, fugindo assim do confinamento doméstico (HAHNER, 2003, p.248).
O Código Civil de 1916 subordinou as mulheres frente aos seus maridos, pois a
estes cabia a administração dos bens comuns do casal e de bens particulares da esposa.
O artigo 266 do referido Código Civil752 afirma que “Na constância da sociedade
conjugal, a propriedade e posse dos bens é comum”, mas em seu parágrafo único aponta
que “A mulher, porém, só os administrará por autorização do marido”. Percebemos
então a legalização da subordinação das mulheres em relação aos homens, já que os
direitos civis e patrimoniais que elas possuíam só eram garantidos se houvesse o aval do
marido.
De forma concomitante à legislação encontramos também o saber médico como
uma forma de controle e disciplina social, que no início do século XX passou a ter uma
forte influência no meio familiar. As doutrinas médicas, em especial o higienismo
sanitarista, instituíram um conjunto de preceitos que deveria orientar a vida em diversos
aspectos: na vida urbana, no trabalho, no comércio de alimentos, no domicílio, na
família, nos corpos.
Esse processo de intervenção começou no século XIX, quando as teses médicas
se dedicavam aos cuidados infantis, a fim de evitar a degeneração, atingindo o
comportamento materno através da ideia de contágio dos males sociais
(NASCIMENTO, 2006, pp. 83,84). Desta forma, as mulheres e as crianças eram as
principais personagens no cuidado da ordem higiênica, no qual o saber médico se
preocupava com temas como gravidez, aborto, aleitamento, mortalidade infantil e
educação da mulher e da criança. A partir de argumentos de cunho cientifico advindos
de sua formação universitária, a figura do médico passava a opinar sobre tudo o que
envolvesse as mulheres, indo desde os aspectos da sua constituição física e mental até o
vestuário e os hábitos da moda (ENGEL, 1989, pp.43,44).

752
- As informações sobre o artigo citado foi retirado do Livro I Do Direito de Família, do código civil
brasileiro de 1916. Captado em: <http://www.soleis.adv.br/direitodefamiliacodcivil.htm >. Acesso em: 13
de Outubro de 2011.

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As mudanças de comportamento de algumas mulheres nas primeiras décadas do


século XX, como a presença na política, em profissões que eram tidas até então como
exclusivas do sexo masculino e, principalmente, a busca pela independência, fizeram
com que elas, em algumas situações, fossem vistas e tratadas como “loucas”. Este fato
não foi comum, mas é um exemplo de situações extremas. De acordo com o saber
psiquiátrico da época, em relação à teorização do “normal” e do “patológico”, o desvio
de conduta do considerado como feminino significava, de alguma forma, a recusa ou a
resistência ao papel “natural” de ser mãe, por isso classificado como loucura.
Uma classificação muito utilizada na época era a “loucura moral”. Segundo um
psiquiatra da época, esse termo era empregado para mulheres “vaidosas, independentes,
voluntariosas, atrevidas por vezes em suas expressões (...) procura exibir as pernas o
mais que pode quando sentada, realçar o contorno dos quadris quando anda” (CUNHA,
1989, p.139). Nos hospícios havia também uma grande diferenciação entre as mulheres
das camadas abastadas e as pobres. As mulheres ricas não trabalhavam, exceto por
753
vontade própria . Já para mulheres pobres estavam reservadas atividades
“condizentes” com a condição feminina, ou seja, cozinhar e bordar. No discurso da
época, presente na imprensa, as mulheres eram retratadas como frágeis, submissas e
carentes de proteção; na revista Careta, as mulheres eram representadas como um
“instrumento” da casa, que não deveria ou não conseguiria administrá-la sozinha e, mais
do que isto, era retratada como uma incapacitada em relação ao homem, tanto no
mercado de trabalho, como socialmente.
Se tua mulher scisma de fumar um cigarro – dá-lhe o cigarro e
agradeça aos céos não ter sido um charuto... Nunca se deve contrariar
uma mulher nas pequenas cousas. As pequenas cousas são, para as
mulheres, as grandes cousas... (Careta, edição 1191, abril de 1931).

Conforme a citação acima, percebemos que, de uma forma indireta, a revista


insinua que as mulheres são histéricas por natureza. Sendo assim, todo o cuidado era
pouco para não despertar essa fúria indomável, que por coisas banais, como por
exemplo, um simples cigarro, poderia vir à tona. Em contrapartida, o cigarro nas mãos
das mulheres sugeria que elas seriam pessoas com hábitos modernos. Então, essa não
era a “mulher” idealizada nas páginas da revista, mas sim a combatida. As atividades

753
- Não se negava ou restringia o acesso da mulher pobre ao trabalho, pois se reconhecia a necessidade
econômica que estas possuíam. Porém, o trabalho braçal feminino para as elites era tido como algo vulgar
associado à corrupção moral.

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das mulheres era cuidar da família, e para isso necessitava de um casamento. Afirmava-
se, então, que a “profissão” das mulheres era o casamento. Na cidade catarinense de
Desterro, posteriormente conhecida como Florianópolis, o jornal A República
apresentava inúmeras matérias que se dedicavam à figura feminina. Nestes textos as
mulheres eram retratadas como “caçadoras de marido” (PEDRO, 1994, p.53).
Esse exemplo catarinense é importante para mostrar que essa não era uma visão
exclusiva da Careta e muito menos uma perspectiva restrita à cidade do Rio de Janeiro.
Porém, a revista Careta vai mais longe em relação às demais publicações deste tipo.
Em seu quadro “A Arte de ser Marido” (coluna de pequenas frases sobre o
comportamento feminino no casamento), temos um pequeno manual de como o homem
deveria agir no casamento.

“O casamento é uma coisa que acontece – como um desastre de


bonde. Fica-se marido como se fica com uma perna só. Ora, assim
como há o guia do perneta, pode-se também fazer o manual dos
maridos. Dahi, este ensaio”. “Na vida de uma mulher casada, uma dôr
de cabeça é um facto mais alarmante do que um filho. O filho era
esperado, a dôr de cabeça não”. (Careta, edição 1191, abril de 1931).

Estudos, tais como o da historiadora Margareth Rago, mostram que as mulheres


intelectualizadas das camadas mais abastadas não necessariamente negavam o “papel”
de mãe e dona de casa, mas entendiam que poderiam exercer estas atividades sem
permanecerem confinadas dentro de casa o dia todo; defendiam que a entrada das
mulheres no mundo do trabalho ou da política não significava o fim da família ou dos
valores morais. Rago afirma ainda que algumas revistas femininas como A
Mensageria754 e a Revista Feminina755 insistiam em que não se deveria confundir

754
- A Mensageira foi uma revista literária dedicada à mulher brasileira. Lançada por Presciliana Duarte
de Almeida circulou em São Paulo entre os anos de 1897 a 1900. Destinada à produção literária feminina,
publicava também artigos que defendiam a emancipação das mulheres, reivindicando especialmente uma
educação de qualidade. Em suas páginas figuravam nomes como os da escritora Júlia Lopes de Almeida e
da portuguesa Guiomar Torrezão, escritora e líder feminista. KAMIT, Rosana Cássia. Revista “a
mensageira”: alvorecer de uma nova era? Estudos feministas. Florianópolis, 2004. Captado em:
<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/10268/9513>. Acesso em: 15 de outubro de
2011. p. 164.
755
- A Revista Feminina foi uma publicação “escrita” e dirigida por mulheres, inteiramente voltada ao
público feminino, sendo criada no início do séc. XX (1914-1936). A Revista Feminina ao trazer assuntos
ditos de “interesse da mulher” estabelecia um discurso sobre as referências socialmente condicionadas e
condicionantes da natureza dos femininos e masculinos possíveis. SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho.
Tinturas petalina, creme dermina e a felicidade ao alcance de uma página: a revista feminina e seus

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liberdade com libertinagem, e que a grande participação das mulheres no mundo do


trabalho resultaria no oposto do que se esperava, ou seja, a valorização das mulheres
(RAGO, 2009, p.226). Desta forma, percebemos que havia uma luta não apenas para a
entrada no mercado de trabalho, mas também a aceitação e o fim dos estereótipos
construídos em torno do trabalho feminino.
No início do século XX, as mulheres no âmbito do discurso eram identificadas
como dóceis, submissas, sensíveis e dependentes. Já em relação aos homens essa
identificação estava associada à razão e à força no campo pessoal e no social. Nesse
sentido, a noção de autoridade na esfera privada e pública era entendida como
masculina.
A assimetria de poder na família era reforçada pela disposição da
nova ordem em promover uma separação total entre homens e
mulheres: pensava-se na época que quanto mais feminina a mulher e
mais masculino o homem, mais saudáveis a sociedade e o Estado.
Nessa separação, a autonomia do gênero masculino contrastava com a
submissão feminina. A subjugação da mulher ia ao encontro da
constituição de uma família nuclear para qual o lar, com as afazeres
domésticos e os cuidados com as crianças, se tornaria se espaço
legítimo, enquanto aos homens ficaria destinada a esfera pública, a
esfera do poder (OLIVEIRA, 2004).

Estas noções eram difundidas no ambiente escolar das primeiras décadas do


século XX entre as crianças e jovens. O historiador Vanderlei Machado aponta que nas
cartilhas escolares de 1910 eram comuns histórias de mulheres representadas como
“cuidadoras” e afetuosas. Dos homens se esperava um respeito às hierarquias e não
demonstrações de carinho (MACHADO, 2007. p. 251). Nessas cartilhas encontravam-
se também ensinamentos de como o menino deveria ser na escola, e que por
consequência deveria seguir esses comportamentos na sua vida social.
Na educação dos meninos se fazia também muito constante a questão do
trabalho, pois só com o trabalho os homens seriam úteis para a sociedade. Este papel
cabia única e exclusivamente aos homens, visto que trabalho exigia força física e
capacidade intelectual, atributos não compatíveis com a fragilidade e incapacidades das
mulheres. Na educação dos meninos era uma constante a preocupação com a questão do

anúncios publicitários. In: Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis,


2010. Captado em:
<http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277927718_ARQUIVO_ArtigoFazendotrabalhoc
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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 879

trabalho. Nesse sentido, os homens que desejassem ser percebidos como honrados, além
de possuírem uma boa educação e um labor, deveriam ter também preocupações com a
saúde do corpo e principalmente com a sua aparência física.
A moda masculina diz muito em relação aos comportamentos sociais da época,
por isso merece um destaque. Na imprensa em geral eram muito comuns colunas sociais
apresentando o homem galante. Na revista Careta, além de fotografias encontramos
muitas charges fazendo menção aos homens ricos e também, em oposição, aos homens
pobres. Paulo Knauss afirma que “a imagem é capaz de atingir todas as camadas sociais
ao ultrapassar as diversas fronteiras sociais pelo alcance do sentido humano da visão.
Como lembra John Berger, a visão vem antes das palavras” (KNAUSS, 2006, p.69).
Por isso as imagens da Careta se fazem tão importantes, já que este tipo de
distinção social que se tinha através do vestuário se fazia muito presente nas páginas da
revista, como uma forma visual de caracterizar cada camada social.
Nas representações abaixo (figuras 2 e 3), da revista Careta, percebemos
claramente as diferenças entre os homens pobres e os ricos, não só pelo vestuário, mas
também pela aparência física. Na primeira imagem, vemos homens de classes
populares. As figuras são desajeitadas, com aparência cansada e nada saudável, além
das vestimentas simples indicarem a sua classe social. Já na segunda imagem temos a
representação social de um homem de classe abastada. A revista retrata-o com uma
postura ereta, firme, forte e com aspecto saudável, já que como afirmamos a beleza e a
higiene eram sinônimos de saúde.

Fig.2 - Revista Careta, novembro de 1911. Ed. 181 Fig. 3 - Revista Careta, julho de 1919. Ed. 578

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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 880

A aparência era muito importante no início do século XX. Martins afirma que
“um indivíduo que andasse pelas ruas da capital [...] que tivesse aparência de pobre,
corria o risco de ser detido pelos inspetores de segurança [...] e recolhido à delegacia
sob a alegação de prática de vadiagem” (MARTINS, 1993, p.283).

Fig. 5. Revista Careta, fevereiro de 1920. Ed.609


Fig.4. Revista Careta, fevereiro de 1920. Ed 609 Legenda
Legenda Ao romper do dia
- O carregador: mas afinal, para onde é que vamos? - - O que é isso patrão?
Pierrot: vá andando, vá andando; e pare na casa em -Não é nada Francisco. Não diga nada a senhora
que houver à porta uma mulher e um pão. para não assusta-la, e ao meio dia bata ahi a porta
para me acordar.

Nessas duas charges acima (Figuras 4 e 5), de 1920, representando uma manhã
pós-carnaval, percebemos a condição submissa das mulheres: enquanto os homens vão
às festas, as mulheres ficam restritas ao lar. Na Figura 4, um homem bêbado, dormindo
ou desmaiado, está sendo carregado; não se sabendo onde ele mora, o guarda manda
deixá-lo em qualquer casa que tenha uma mulher na porta com um pão, demonstrando
uma visão submissa das mulheres. Esta imagem pode também ser compreendida como
uma representação social das mulheres à procura de um homem para o casamento, já
que em várias passagens a revista insinua que muitas mulheres são “caçadoras de
marido” e que têm medo de ficar sozinhas. A mulher na porta de casa pode ainda
representar uma mulher solteira que aceitará qualquer homem que aparecer.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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A passagem do século XIX para o XX no Brasil não marca apenas uma


transformação temporal, mas também a efervescência de mudanças sociais, urbanísticas
e culturais que culminam no auge da Belle Époque, e é justamente nesse ápice que
surgiu a revista Careta. Era uma publicação que ia muito além de um mero veículo de
comunicação, pois ela transformou nos meios de pensar, agir e principalmente na
estética e nos padrões de impressão, estabelecendo-se como a mais luxuosa e umas das
principais revistas ilustrada do início do século XX no Brasil. Representou um grupo
social que desejava uma sociedade europeizada, mas que vivia nos trópicos.
Entre as suas mais variadas representações, as mulheres ganham destaque, já que
a revista tentou criar um tipo ideal de mulher, a qual era moderna, pois ocupava os
novos espaços urbanos criados pela fase da Belle Époque. A mulher moderna ideal era
aquela que usufruía dos espaços públicos, mas que não contestava as hierarquias sociais
existentes. Em contraposição, encontramos na revista outra representação social
atribuída à mulher. Esta era independente questionava as hierarquias sociais existentes,
estava “a frente do seu tempo” na forma de se vestir e de agir. Todavia, esta mulher
independente deveria ser combatida, pois não aceitava o papel de mãe e esposa.
Percebemos também que a revista construiu um perfil masculino para os homens. Este
deveria ser rico, culto e bem sucedido.

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A PORNOGRAFIA NA PÓS-MODERNIDADE: MANUTENÇÃO DE DISCURSOS


DE GÊNEROS

MIOTTO, Franciele Siqueira (Especialista em Educação Ambiental e Educação


Especial).
OLIVEIRA, Edinéia Aparecida Chaves de.(Doutoranda da UNISUL).

Palavras-chave: Discurso; Sexismo; Pornografia.

1. INTRODUÇÃO

A pergunta central do presente texto foi uma das questões da tese de doutorado
“A comodificação feminina na rede de práticas discursivas que promovem o Funk”. A
referida tese parte do principio de que a mulher é comodificada, é transformada em um
produto sexual ou em um objeto de consumo no Funk. Isso acontece porque também se
parte do principio de que esse gênero musical, em todos os seus textos (músicas, clipes,
capas de CDs, reportagens sobre as mulheres fruta) é um gênero pornográfico.1 Ele o é?
Para organizar essa discussão apresentam-se aqui uma revisão teórica sobre as
questões sexistas nas músicas funk (ESSINGER, 2005; MEDEIROS, 2006) e a
discussão histórica sobre a diferença entre pornografia e erotismo (HUNT, 1988; LEITE
JÚNIOR, 2006; MORAES; LAPEIZ, 1985), Em seguida, apresentam-se também
algumas imagens pertencentes à análise total da tese, cujas quais apresentam
características que retomam, em suas estruturas, a definição da pornografia.
Definir o Funk como gênero musical pornográfico não era a centralidade da
pesquisa iniciada, mas esse enfoque ganhou corpo na medida em que a pornografia usa
a mulher como mote principal e que, em tempos modernos, acostumamo-nos com a
pornografia, ela é legitimada em diferentes gêneros textuais e midiáticos, sempre nos
influenciando pelo discurso do consumo.
Vender diferentes produtos a partir da pornografia e da imagem feminina, porém
com novas estruturas discursivas é uma forma de manter discursos sexistas sobre o

1
Sobre a história do Funk, ver Essinger (2005).

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feminino. Essa é uma das questões da agenda de pesquisa da ACD (CHOULIARAKI;


FAIRCLOUGH, 2001).

2. QUESTÕES SEXISTAS NAS MÚSICAS FUNK

Esta pesquisa parte do princípio de que a discriminação contra a mulher é um


fenômeno histórico (STEARNS, 2007). O que neste estudo chama-se de comodificação
é descrito na literatura sobre gênero social como um processo histórico nas formas de
representação feminina. Na contemporaneidade, a educação, assim como a cultura e o
lazer, é vista como mercadoria e, como tal, é vendida através de anúncios publicitários
(FAIRCLOUGH 1992). Parte-se da hipótese de que a figura feminina também o é.
Dessa forma, a hipótese de a mulher estar ligada ao discurso da venda segue a
lógica apresentada em Blanc (2010), que argumenta que, na história do sexo, homens e
mulheres ocuparam, na maior parte do percurso, papeis antagônicos e de hierarquia
marcada, com ênfase na figura feminina sempre objetificada e com seu papel social
dependente econômica e moralmente do homem. A compra do sexo envolvia a compra
do corpo feminino, representado como o proibido e o saboroso (associação com
sabores, gostos). No caso do sexo homossexual, era designada a homens homossexuais
a representação feminina, tida sempre como passiva.
O discurso promocional também se vale destas representações sexistas.
Sant’anna (1994) argumenta que diferentes textos, incluindo a literatura brasileira a
partir do romantismo (século XVIII), enfatizam o corpo feminino, dando um lugar de
poder para a voz masculina:
Essa ausência do corpo masculino [na literatura] e essa abundância do corpo
feminino começam a ser explicitadas pelo fato de que o homem sempre se
considerou o sujeito do discurso, reservando à mulher a categoria de objeto
(SANT´ANNA, 1994, p.12).

Estas práticas sociais foram e são justificadas e naturalizadas por textos que
organizam sua estrutura léxico-gramatical de forma a criar uma identidade feminina
objetificada, associando a mulher a produtos comestíveis e à venda. 2 Na modernidade
tardia, esta relação de valor de consumo é acelerada pelo consumismo (BAUMAN,

2
A Linguística Sistêmico Funcional- LSF estuda a ligação entre a estrutura dos textos e os discursos que
circulam na mídia. Ver Halliday (2004).

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2008). Para Irigaray (1985), as mulheres sempre tiveram um valor social ditado pelo
momento histórico, seja como boa mãe, boa esposa, etc. (IRIGARAY, 1985, p. 170).
Também Neves (2006) afirma que, atualmente, esta comodificação está em todas as
áreas da vida humana. Desde a luta por formação escolar, por melhores condições de
trabalho, até mesmo por mudanças na aparência física, tudo está associado ao lucro
(BAUMAN, 2008).
Para muitos dos pesquisadores sobre o Funk (ARAÚJO, 2006; MEDEIROS,
2006; ESSINGER, 2005; YÚDICE, 2004; HERSCHMANN, 2005; VIANNA, 2003), o
universo funk apresenta questões pertinentes estudos de gênero, em especial o
preconceito contra as mulheres através da linguagem. Em Oliveira (2008), houve a
investigação e discussão sobre questões como os papéis sociais atribuídos às mulheres
nas músicas e nos bailes funk, a posição feminina dentro da comunidade funk e os
sistemas de classificação das mulheres presentes nas músicas, sendo que o conjunto
dessa análise apontou para um discurso sexista no Funk.
Para Vianna (2003), a violência física e o sentimento de superioridade masculina
no Funk são fatores que precisam ser estudados a partir de uma perspectiva cultural,
3
associando esse quadro à situação específica da juventude pobre do Rio de Janeiro.
Para o autor, outra forma de preconceito contra a mulher faz parte da estrutura
organizacional da comunidade funk: as mulheres raramente podem ser MCs (mestres de
cerimônia), uma posição de destaque no baile funk, geralmente assumida por quem
canta as músicas e organiza o andamento do baile. Às mulheres cabe um papel
secundário nesses bailes, sendo constantemente convidadas para dançar (VIANNA,
2003, p.88).
Medeiros (2006, p.87-97), por outro lado, argumenta já haverem mulheres MCs,
e que elas seriam as representantes de um neo-feminismo. Porém, a porcentagem de
mulheres cantoras de Funk é insignificante (OLIVEIRA, 2008; HERSCHMANN,
2005). A própria Medeiros comenta que as mulheres MCs muitas vezes nada têm a ver
com as a imagem que passam em suas apresentações, enquanto interpretam. São
mulheres simples, tímidas e sempre de camadas pobres, geralmente com baixo nível de
escolaridade (MEDEIROS, 2006, p. 97). Ao descreverem os MCs masculinos, por
outro lado, todos os autores e autoras que estudaram o Funk exploraram o lado social e
as questões e dilemas próprios do universo do jovem funkeiro pobre (e.g. VIANNA,

3
Esse autor escreveu vários livros sobre a juventude, alguns voltados para o estudo do Funk.

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2003; HERSCHMANN, 2005; MEDEIROS, 2006; ESSINGER, 2005; YÚDICE, 2004).


Medeiros também afirma que “o termo ‘funk’ sempre foi associado ao sexo e ao
‘batidão’” (2006, p. 13) 4, e esse termo aparece na mídia ligado a imagens femininas.
Mais uma vez, fica clara a ligação entre a transformação do Funk em produto de venda
de massa e o sexismo.

3. A PORNOGRAFIA NO DISCURSO FUNK

Na modernidade tardia, a investigação da comodificação sexual das mulheres na


mídia de massas esbarra na difícil delimitação entre o erótico e o pornográfico. Para
discutir as representações femininas no Funk, faz-se necessário distinguir entre esses
dois termos.
Em muitas definições enciclopédicas (AURÉLIO, 2008, p. 359; 643), a palavra
amor só é associada ao erótico, enquanto as palavras prostituição, fotografia e
espetáculo estão na descrição do pornográfico. Segundo Di Girolamo (2010), o erotismo
e a pornografia diferem-se por questões culturais. Para a autora, na sociedade moderna a
pornografia passou a se diferenciar do erotismo nos aspectos estéticos e éticos, no
conteúdo mais explícito da pornografia e mais implícito do erotismo, no reforço
pornográfico da relação genital sem envolvimento, sem compromisso e sem afeto,
apenas enfatizando o prazer solitário masturbatório, evitando o requinte artístico, a
profundidade e o clima de paixão e enamoramento presentes no erotismo. A definição
da autora retoma a do dicionário, associando o erotismo ao amor e a pornografia ao
sexo.
A posição transgressora é uma qualidade do erótico e do pornográfico. O
primeiro é uma etapa do segundo (LEITE JÚNIOR, 2006), mas o pornográfico vai
além. Segundo Moraes e Lapeiz (1994, p. 110), a pornografia se explica:
se entendida como por excelência o discurso veiculador do obsceno: daquilo
que se mostra e deveria ser escondido. A exibição do indesejável: o sexo fora
do lugar. Espaço do proibido, do não-dizível, do censurado: daquilo que não
deve ser, mas é. A pornografia grita e cala, colocando lado a lado o escândalo
e o silêncio.
No Funk, as fotografias como espetáculo, como amostras da representação
feminina, são uma constante, usadas como a própria definição vocabular do dicionário

4
Todos os autores relacionados ao funk usam o substantivo ‘Batidão’ como sinônimo do gênero musical.
Esse termo está relacionado à base musical rápida e às frases musicais repetidas que caracterizam o funk.

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Aurélio (2008) sugere, para a motivação sexual do indivíduo. Embora a compra seja
voltada para consumidores masculinos e femininos, as representações de homens e
mulheres nestes textos não são iguais. Só a figura feminina é representada
pornograficamente, sobretudo no sentido de nudez.
A nudez é uma qualidade do pornográfico. Enquanto no erótico a nudez é
opcional, ou parcial, no pornográfico a mesma é essencial. É acompanhada do
fetichismo (LEITE JÚNIOR, 2006) e da exposição de partes recortadas do corpo,
sobretudo as femininas (MORAES; LAPEIZ, 1984), além da explicitude do ato sexual,
uma característica das coreografias do Funk, bem como o fato de ser assumidamente
produzida para a comercialização e para o olhar masculino (LEITE JÚNIOR, 2006,
MORAES; LAPEIZ, 1984).5
Segundo Gerbase (2006, p. 41), o erótico está à mostra e o pornográfico ocupa
um espaço restrito, reservado. Essa seria uma distinção comercial. Atualmente essa
fronteira não existe, pois os textos que promovem o Funk, bem como muitos outros
diferentes textos midiáticos trazem para o público a nudez e a representação do ato
sexual. Isso demonstra que a aceitação do apelo sexual visual mudou, sob a influência
dos meios de comunicação.
Esse ver o erótico e adquiri-lo está no âmbito da pornografia. A nudez, a
fragmentação do corpo feminino, a exposição da genitália (sobretudo a feminina), a
representação do ato sexual e o jogo de sedução, ligados ao proibido, são do campo
pornográfico. Mas a cultura pós-moderna aceita essas novas representações e as
naturaliza. Segundo Leite Júnior (2006, p.12), “a prática da transgressão vem sendo
cada vez mais normalizada pelo mercado”.
Portanto, existe uma transformação do erótico em pornográfico, um aumento da
tolerância visual. O que era obsceno em outros tempos hoje é só erótico e isso é
favorável ao consumo. Ao mostrar mais os corpos e naturalizar a oferta do sexo, cria-se
uma mercadoria. Não é a insinuação (erótico), é o cumprimento da promessa, a nudez e
o ato sexual exposto (pornografia). Nessa reflexão, o sexo é um recurso material para o
comércio, para o consumo. Na pornografia, as pessoas se transformam em objetos
(MORAES; LAPEIZ, 1984, p. 131). Sendo assim:
Ela [a pornografia] oferece o simulacro de um mundo pan-erótico, onde o
sexo está sempre disponível, onde as mulheres são infinitamente dóceis e

5
O fetichismo está ligado à ideia de feitiço, de encantamento. Na pornografia, corresponde à associação
de desejo ardente com certas partes do corpo da mulher, ou certos artigos do vestuário feminino
(STEELE, 1997).

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desejosas, onde o sexo se oculta em todo escritório, em toda rua e casa, sexo
sem o prelúdio amoroso e gloriosamente livre de qualquer consequência e
responsabilidade. (STAM, 2000, p. 82)

Há ainda a duas questões que colaboram para essa afirmação. A primeira é a


questão da repetição. A pornografia precisa de repetição. “pornografia é diversão que se
esgota rápido e que exige mais, sempre mais, deixando pouco ou quase nada de
lembranças, só a vontade de querer novamente” (MORAES; LAPEIZ, 1984, p. 114).
Esse ciclo que precisa ser mantido é visível no estudo do movimento funk, que através
de uma cadeia de gêneros conserva suas características originais e mantem seu
proposito comunicativo. É o novo que não é novo. Um exemplo são as “mulheres fruta”
como um novo produto do Funk. Atualmente já se vê uma nova roupagem do
movimento em clipes e musicais vinculados a programas de humor. Um exemplo é o
quadro do programa Zorra Total da Globo, com a “mulher caxumba”.
A segunda questão é a ausência de narração, de enredo, a predominância do
visual. Nas músicas funk (OLIVEIRA, 2008), as histórias das músicas são sucintas,
remetem em sua maioria a descrição do ato sexual. Nas capas de CDs funk atuais, bem
como na observação dos textos sobre as “mulheres fruta”, observa-se de imediato a
predominância do visual, sobretudo de uma representação feminina com muitas
características da pornografia.
Leite Júnior (2006, p. 38) discute a questão da legitimidade do discurso
pornográfico. Como a pornografia vende, mas apresenta uma conotação depreciativa, é
preciso modalizá-la, fazer com que esse tipo de texto seja aceito por diferentes públicos.
Segundo o autor, foi isso que aconteceu com vários gêneros musicais que apelam para a
sexualidade, como o Funk. Se o discurso é legalizado, ele é vendido livremente. Dessa
forma, Leite Júnior mostra como a mídia faz com que nos acostumemos com a
pornografia, de forma que a rede de consumo nunca se quebre. Codo e Senne (2004),
em seus estudos sobre ‘corpolatria’, também confirmam essa ideia, quando mostram a
importância da explosão da pornografia como mola propulsora do conceito de
‘corpolatria’, de adoração ao corpo. O sexo, enquanto mercadoria, leva a essa adoração
(CODO e SENNE, 2004, p. 42). É preciso ressaltar o corpo, não importa de que forma,
para poder vendê-lo.
Assim, o conceito de ‘pornografia’, a partir de diferentes autores, carrega as
seguintes características: ênfase nas genitálias; apelo à sexualidade; predominância da
imagem feminina; predominância do visual sobre o verbal; mulher aos pedaços;

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discurso da transgressão; a produção de textos para um leitor masculino; a influência da


mídia, a repetição e a produção visando às classes populares.

4. EXEMPLOS DO DISCURSO PORNOGRÁFICO NO FUNK

Duas foram as fontes de pesquisa selecionadas: 119 capas de CDs funk obtidas
entre 2005 e 2010, na internet e nos camelódromos e 25 reportagens do Jornal Folha de
São Paulo Online. É possível observar que as poses fotográficas usadas para falar das
mulheres fruta são as mesmas usadas na maioria das capas dos CDs funk aqui
analisados, ou seja, ênfase nas nádegas femininas. Como parte de um texto multimodal,
a imagem completa a mensagem do discurso desses textos, onde as mulheres fruta e as
funkeiras são, em resumo, descritas como ‘coisas’, sempre de forma irônica ou sensual.6
Muitos outros textos promocionais também apresentam a mesma estrutura de
imagens, organizando a figura feminina para um olhar masculino. A semelhança entre
esses textos multimodais, produzidos em diferentes espaços, suportes e datas, pode ser
observada no quadro abaixo:7

Capas de CDs funk e imagens das reportagens sobre as ‘mulheres fruta’ como textos com
características pornográficas

CD DJ Pitbull vol 3, 2009. CD As melhores do


Brasil 9, 2009.

6
Na tese sobre a comodificação feminina, as ferramentas analíticas foram a Gramática Visual e a teoria
dos atores sociais. Ver Kress e Van Leewven (1996) e Van Leewven (1997).
7
As fontes sobre as reportagens apresentando as mulheres fruta encontram-se nas referências. São do
Jornal Folha de São Paulo. Já as fontes das capas de CDs estão organizadas no anexo 1.

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CD Funk Carioca 10, 2009.


Quadro 1: Características pornográficas nos textos promocionais funk.

É possível observar características pornográficas como a repetição de poses


semelhantes, o uso da imagem feminina, o nu feminino, posições corpóreas que
retomam o ato sexual e a mulher em pedaços. Também foi observado que todas as
imagens, construídas em diferentes espaços e com diferentes suportes, posicionam o

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texto imagético para um leitor que olha sempre para o mesmo enfoque: as nádegas
femininas. E esse leitor é idealizado como sendo masculino.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há duas questões de poder e de ideologia aqui. A primeira refere-se ao consumo,


às estratégias de venda. A segunda diz respeito à comodifição da mulher como uma das
principais estratégias de venda.
Pensando que nossa linguagem demonstra nosso discurso (ou o discurso que se
aceita), a pornografia reproduz um discurso sexista contra a mulher. Mesmo em sua
história literária, enquanto ocupava-se de contos (HUNT, 1988), a mulher sempre teve
um lugar sexista marcado na pornografia. E o Funk apresenta-se como um gênero
musical com características pornográficas.
Todavia, um fator diferente observado foi que os exemplos de diferentes ordens
discursivas (gêneros textuais diversos) desenvolvidas no discurso funk proporciona a
análise de elementos próprios da modernidade tardia. A aceitação do nu feminino e da
representação do ato sexual na propaganda dos CDs funk e na apologia ao corpo, no
caso das “mulheres fruta”, é uma ênfase a sexualidade própria dos últimos anos. Essa
sexualidade é usada como recurso de venda e incentivo ao consumo. É a legitimação do
discurso pornográfico (LEITE JÚNIOR, 2006; MORAES; LAPEIZ, 1984). A
pornografia configura-se, na pós-modernidade, como um campo promissor de estudos
acadêmicos, no tocante ao entendimento do comportamento antropológico do ser
humano nesses novos tempos, bem como a relação direta entre sexo, consumo e
divertimento. Em nome do consumo, práticas sexuais e pornográficas vêm ganhando
legitimação (LEITE JÚNIOR, 2006).
Lendo a própria história e buscando entender as ideologias promovidas por
diferentes discursos, como é principio da ACD (FAIRCLOUGH, 1992), tornar-se-á
possível instrumentar as pessoas a produzirem outros discursos e assim, novas práticas
sociais.

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6. REFERÊNCIAS

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ANEXO 1: Capas de CDs usadas no artigo, compradas em camelódromos e pela


internet, entre os anos de 2005 e 2010:

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CAMPINA GRANDE, ESPAÇO ESCOLAR E CORPOS MASCULINOS NO


MAGISTÉRIO INFANTIL (1909-1941): EXPERIÊNCIAS MODERNAS A
CONTRAPELO?

Helio Santana Garcia Soto (Mestrado em História e Espaços/UFRN)


Prof. Orientador: Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior

PALAVRAS-CHAVE: ESCOLARIZAÇÃO; MODERNIDADE; RELAÇÕES DE


GÊNERO

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo apresentar uma discussão inicial que
realizamos na pesquisa ainda em curso intitulada “Campina Grande, escolarização e
presença masculina no magistério infantil: experiências modernas às avessas?”1. Nesta
investigação estudamos a relação entre o avanço da escolarização e a diminuição da
presença masculina no magistério infantil, questionando em que medida esses aspectos
se relacionam na constituição de experiências modernizadoras do espaço escolar durante
os primeiros anos republicanos em Campina Grande-Pb. Trata-se também de uma
discussão sobre a instituição de um novo modelo escolar – o Grupo Escolar - e os
movimentos que deram visibilidade ao mesmo.
A escolarização no contexto histórico que estudamos compreende um processo
de incorporação de novos saberes, discursos e práticas que alteraram o panorama geral
das atividades educativas, como a passagem das cadeiras isoladas para os grupos
escolares, da inovação dos métodos educativos que deixaram gradativamente de serem
instrucionais para se tornarem formativos, da criação das seriações que dividiram os
alunos e alunas por estágio de desenvolvimento, de uma maior especialização dos
professores e professoras, em suma, das transformações que racionalizaram o ensino,
tornando-o afeito aos ideais burgueses e republicanos.

1
A referida pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História e Espaços da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque
Júnior.

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A partir dessas mudanças, verificamos que algumas gradações foram criadas


para a atuação profissional do homem na educação escolar, sendo mais comum vê-los
durante as primeiras décadas do século XX entre os segmentos posteriores ao ensino
primário ou nos cargos administrativos, de coordenação e direção, o pode revelar as
tramas discursivas da constituição das relações de poder baseadas nas diferenças de
gênero no espaço da cidade.
No artigo buscamos apresentar as mudanças na forma de praticar o espaço
escolar no Brasil republicano e suas reverberações na cidade de Campina Grande.
Percebemos que o espaço escolar fora constituído como um espaço de apresentação de
um paradigma moderno de se portar no espaço público, de destacar as diferenças de
gênero fazendo uso produtivo destas, ou seja, o trabalho docente passou a ser
reelaborado para atender a sociedade burguesa em transformação, primeiro com a
presença significativa das mulheres e depois com a extinção de práticas “artesanais”
para dar espaço a uma tendência técnica e racional ao ensino, através da qual os grupos
escolares passam a ser representativos, colocando homens e mulheres no mesmo
território, mas em espaços de atuação diferentes.

CIDADE, MODERNIDADE E ESCOLARIZAÇÃO

Desde o final do século XIX que a Parahyba do Norte e as demais unidades da


federação estavam às voltas com a necessidade de construir escolas, da formação de
professores e materiais de ensino para a educação primária, porque a partir desse
período as atribuições de oferta desse segmento da educação escolar passaram da União
para os estados e os municípios2.
Nessa direção, várias iniciativas de concretização do disposto em legislação
orbitaram o imaginário paraibano. Em 18 de outubro de 1909, por meio da lei 313, o
governo estadual ficava autorizado a reformar o ensino público primário, devendo
instituir grupos escolares3 nos municípios, de acordo com o destaque dado às vantagens

2
Constituição Federal de 1891, Capítulo IV (apud NISKIER, 1989, p. 68)
3
O grupo escolar é um agrupamento, uma reunião de um múltiplo que põe em ação e unifica sob o
mesmo espaço arquitetônico séries, classes, controles, novos sujeitos de uma outra organização
educacional sob um projeto de modernização do ensino e da própria cidade. (CURY, Carlos Roberto.
Prefácio. In.: PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos
escolares na Paraíba. Campinas/SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade São Francisco, 2002,
p. xi).

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que significaria a instituição desse modelo escolar presente no relatório do Diretor Geral
da instrução pública enviado para o Presidente do Estado:

a instituição dos grupos escolares, embora com organização modesta,


conformadas ás condições financeiras do Estado, será de maior utilidade para
o ensino popular do que as escolas isoladas. Nesses institutos em que terão de
funccionar três ou mais escolas com um só prédio, conforme a população
escolar da localidade, os respectivos professores serão mais estimulados no
desempenho de seus deveres, pelo contacto interino em que se acham. A
direcção e fiscalização serão mais fáceis e efficazes, assim aggrupadas todas
as escolas. Esses institutos estão sendo estabelecidos, reconhecida sua
incontável superioridade, em diversos estados do paiz, nomeadamente o do
Rio Grande do Norte, onde já funccionam creio que dez, nos moldes do typo
adaptados na precitada lei nº 313.
Parahyba do Norte, Estado da, 1909 (apud PINHEIRO, 2008, p. 4)

Em Campina Grande, apesar da presença do Estado na formação de cadeiras


isoladas4 de ensino funcionando no início do século XX e de ainda não existir grupo
escolar5, a preocupação de políticos locais acerca da escolarização da população
denotava o quanto estava em voga a formação de espaços escolares6:

Circulava em Campina Grande, desde o ano anterior, um jornalzinho, sob a


responsabilidade de Protásio Sá, com a colaboração de Virgílio Maracajá e
Gilberto Leite. Chamava-se “O 15 de Novembro”. Saiu o último número a 17
de janeiro. Mas não morreu. A 24 do mesmo mês ressurgiu com outro nome,
demonstrando exagerada coloração local, “O Campina Grande”, obediente à
mesma direção, com o corpo de redatores acrescido dos nomes do
bacharelando Antônio Pessoa de Sá e de José Cavalcanti. No artigo de fundo,
justificando a mudança de nome, dizia o editorialista: “Inspirado nas luzes do
nosso grande amor ao berço natal, designamos para título de nosso periódico
o mesmo nome que repetimos, cheios de maior entusiasmo, Campina
Grande”.
Os mesmos rapazes que lançaram o jornal, “O Campina Grande”, fundaram
no mesmo ano de 1909 um instituto de educação, o “Colégio Campinense”,
dirigido por Antônio Sá. O seu jornal, edição de 7 de março, publicou os
estatutos. Rezava o art. 1º: “Êste Colégio é destinado à educação intelectual,
moral e cívica das crianças do sexo masculino, de acôrdo com a pedagogia
moderna”. O art. 4º determinava o horário: “O aluno entra para o
estabelecimento às 9 horas da manhã e dêle se retira às 2 da tarde”. O preço
das mensalidades estava no art. 7º: “O aluno pagará a contribuição de três mil
réis mensais”. Os pobres estavam isentos, segundo o art. 8º: “Os
reconhecidamente pobres nada pagarão”. (ALMEIDA, 1962, p. 366)

4
Segundo Pinheiro (2002, p. 8-9), o termo cadeira está historicamente vinculado ao ensino superior no
Brasil, no entanto durante algum tempo foi utilizado para designar disciplinas ou “matérias” do nível de
ensino secundário, não se restringindo apenas a estas conotações também designara cadeiras de ensino
primário ou elementar. O termo cadeira isolada refere-se, então, a escola isolada, marcada pela presença
do mestre-escola em um espaço menos complexo do que o apresentado pelos grupos escolares.
5
O primeiro grupo escolar inaugurado no Estado foi o Dr. Thomaz Mindello, em João Pessoa,
19/07/1916, (idem, p. 140).
6
Entendemos o conceito de espaço escolar como um espaço disciplinar a partir FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. 34 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.,
conforme explicitaremos ao longo do texto.

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O interesse da elite letrada local, conforme trecho citado acima, em fazer


avançar a educação escolar em Campina Grande esteve muito ligado a necessidade de
afirmar uma sociedade moderna, afeita às mudanças aceleradas7 que ocorriam em escala
global e que foram sentidas em Campina Grande através da circulação de idéias por
meio de jornais, telégrafos, viajantes e demais formas de comunicação8.
Nas décadas subseqüentes a implantação do regime republicano no Brasil uma
série de transformações na vida social, econômica e cultural do país passara a ser alvo
de debates. Os questionamentos sobre a configuração dos ideais de homens e mulheres
como seres ativos, livres e responsáveis pelos rumos a serem alcançados pela nação
passaram pela política como elemento que tentara dar maior impulso a este desejo de
transformação social.
Em Campina Grande não foi diferente, junto a isso, o avanço da escolarização
foi acompanhado de transformações nas sensibilidades provocadas pelo desprestigio
que as heranças patriarcais ligadas a vida rural, as relações tradicionais na família e a
extensão dos laços de solidariedade dos compadrios vão aos poucos sofrer9.
Esse passa a ser um momento que a configuração do tempo histórico torna-se a
tônica de mudanças mais espaciais do que temporais10. O desejo manifestado pelos
grupos políticos, organizados ou não, de fazerem da escola um espaço que formaria esse
homem moderno, tem a ver com a constituição de saberes que vão tornar viável essa
mudança na sensibilidade urbana.
A escola vista antes como um espaço disperso, marcado pela figura geralmente
solitária do mestre-escola11, estava voltada para a instrução12, para manutenção da

7
A mundialização da economia, com o avanço do modelo capitalista-industrial, dos hábitos e costumes
burgueses atrelados às práticas higienistas nas cidades. Ver RAGO, Margareth Luzia. Do cabaré ao lar:
a utopia da cidade disciplinar. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
8
A chegada do trem a Campina Grande em 1907 foi relevante no processo de integração da cidade com
outros centros urbanos do país e do mundo. Ver ARANHA, 2003, p. 79-132.
9
Ver FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
do urbano. 8. ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1990.; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. De Fogo
Morto: mudança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste no começo do
século XX. História Revista (UFG), Goiânia, v. 10, n. 1, p. 153-181, 2005.
10
De acordo com o filosofo Michel Foucault o século XX foi marcado pelas preocupações acerca do
espaço devido as transformações tecnológicas que permitiram uma mudança estrutural nas relações
humanas, diminuindo distâncias, reduzindo o tempo das ações no espaço, alterando as percepções
espaciais, que antes eram marcadas pela localização, e depois passaram a ser compreendidas aos poucos
como relações de posicionamentos (FOUCAULT, 2001, p. 411-422).
11
Os mestres-escola, em sua maioria homens, eram professores que se dedicavam ao ensino de maneira
autônoma, pois atuavam sob precário controle do Estado, e foram agentes fundamentais na produção do
conhecimento instrucional até aproximadamente a passagem do século XIX para o XX, imprimindo uma
prática educativa artesanal aprendida com o exemplo dos seus mestres, que contrastava com “o trabalho
pedagógico dos professores nos grupos escolares que perdeu, gradualmente, seu caráter artesanal, para

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tradição, para o acúmulo de conhecimentos, para uma cultura pautada em exercícios


mnemônicos, uma erudição que pouco se aplicava às exigências laborais e a pensar as
técnicas de produção do início do século XX, mas que era valorizada na sociedade
patriarcal do Império, justamente porque vivia-se ainda um momento de forte influência
da cultura agrário-exportadora, composta por senhores donos de áreas extensas de terras
sobre as quais exerciam seus domínios e oriunda de anos de trabalho compulsório, o que
não demandava preocupação excessiva com uma educação que formasse para o mundo
do trabalho.
A forma de a sociedade campinense pensar os objetivos da educação nesse
período alterava-se, como é possível percebermos na publicação da revista local
“Evolução”13 em sua edição mensal de dezembro de 1931, no artigo intitulado
“Educação Econômica” de autoria do senhor Almeida Barreto, fazia uma crítica a
educação como instrução:

Temos, até o presente, inventado um homem todo artificial para fazer a


prosperidade do Brasil.
Certo pai coloca um filho no estudo. Ele fez um curso primário ou um curso
de humanidades. Sabe cousas brilhantes, fala difícil, e dá bôas definições
firmado em sua educação livresca, si é aplicado e bem trenado nos processos
mnemônicos.
Estará o quidam apto para viver por si? Talvez morra de fome, porque
educou-se bem distanciado das realidades da vida econômica, tendo apenas
uma crosta aparente de civilisação estática. Perplexo, sem atitudes, nada de
habilidades, falho de iniciativa, torna-se inútil, estorvo a outros, entibia-se,
infiltra-se de pessimismos, insidioso, incapaz, arrasta-se na inepcia, faz-se,
pela inércia, um tipo nulo na sociedade e na família.
Um vencido, jamais um homem aparelhado para lutar, animoso, integrado
como célula vital no organismo social. Quando muito, engaja-se num
emprego público e vai parasitar à custa da fazenda pública.

A emergência de uma sociedade urbana e burguesa associada à expansão dos


espaços públicos, a valorização da vida nas cidades como centro agregador de pessoas,
das “práticas dos espaços”14 citadinos, ao uso de uma dada racionalidade pautada em
métodos científicos baseados na empiria e na experimentação, buscou a partir de uma

incorporar o espírito do industrialismo, mesmo que a prática pedagógica tenha conservado certa nostalgia
da formação artesanal.” (PINHEIRO, 2002, p. 9)
12
Para Albuquerque Júnior (2005a, p. 258) a “instrução”, ou ensino que pensava a criança como um
armazém onde se acumulava a maior quantidade possível de conhecimentos, estava baseada apenas nas
atividades de ler, escrever e contar. Era um ensino voltado para desenvolver a capacidade de
memorização, o aprendizado de técnicas mnemônicas que permitisse guardar uma gama de fatos, datas,
nomes, detalhes, fórmulas, sem que estas fossem conectadas entre si por qualquer tipo de explicação.
13
O periódico era editado pelo Instituto Pedagógico e seu conteúdo trazia discussões sobre questões
gerais de âmbito nacional e local, mas também apresentava sessões exclusivamente às noticias escolares
da cidade.
14
Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano. Artes de Fazer 1. Petrópolis, 2008, p. 199-217.

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visão historicista transformar15 os homens e mulheres em cidadãos, em seres capazes de


lidar com as novas estruturas sociais, econômicas e políticas de seu tempo, mas também
a projetarem o novo, uma autoconsciência de que a educação transfigurada na formação
seria necessária para se atingir o progresso e a ordem da nação.
A concepção escolar, até então, em sua maioria composta pelas cadeiras
isoladas, passara aos poucos a compor as chamadas escolas reunidas, que a princípio
tinham como fins cortar gastos com os alugueis de casas ou acabar com a utilização de
imóveis em que muitas vezes habitavam o professor ou a professora juntamente com
sua família16, em seguida, para atender a especialização do ensino em que a arquitetura
do lugar também se transformava para atender ao tipo de educação agora desejada. Os
grupos escolares foram, assim, eleitos como o modelo de educação.
Todavia, as mudanças não foram sentidas de imediato, a não ser acerca da
constituição de saberes que legitimariam essas mudanças, como os decretos-leis, a
difusão dos estudos da psicologia aplicados a educação, dos métodos de ensino a partir
da pedagogia17, da arquitetura escolar que atendesse às práticas higiênicas adequadas.
Entretanto, o caráter não efetivo das mudanças e o desejo de que as mesmas viessem a
se tornar realidade, principalmente no setor público, caracterizou-se como um percurso
lento, sustentado pela justificativa de que os recursos financeiros repassados para
educação nem sempre eram viáveis18 para as mudanças no espaço escolar que se
propunha.
Logo, a constituição de espaços escolares em Campina Grande foi acompanhada
de tensões e conflitos que variavam desde interesses políticos entre estados e
municípios, até a concorrência dos grupos civis que lutavam para ter acesso a educação.

15
A idéia de “formação” nasce a partir de uma visão historicista que pensa a identidade como construção
que se dá no tempo, como aperfeiçoamento progressivo do corpo e da mente humana, de suas habilidades
e de seus valores e costumes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005, p. 261).
16
O funcionamento das cadeiras isoladas nas residências dos professores acarretava problemas de ordem
administrativa quanto de ordem pedagógica. Em relação a este último aspecto, alguns gestores da
instrução pública consideravam “promiscua” a convivência entre os discípulos e a família do professor,
reunidos na mesma casa (Pinheiro, 2002, p. 73).
17
A Pedagogia cientifica e experimental surgem na segunda metade do século XIX ao se distanciarem da
filosofia e tornarem-se independentes da política para reconstruir o saber pedagógico em contato com as
ciências positivas, que tratam do homem (a fisiologia, a antropologia, a psicologia) e da sociedade (a
sociologia, a etnologia, a criminologia), renovando seu método e seu conteúdo pela adoção do paradigma
científico, indutivo e experimental, articulado em conhecimentos baseados em “fatos”, é sobretudo o
positivismo que delineia o modelo de ciência ao qual a pedagogia deve adequar-se. (CAMBI, 1999, p.
498-499)
18
Tanto o Estado quanto os municípios argumentavam que por conta das constantes secas era impossível
investir em instalações escolares: “flagello das secas que frequentemente assolam nosso territorio e que
estão fora do alcance da influencia exclusiva” Parahyba do Norte, Estado da, 1909, p. 27 (apud
PINHEIRO, 2002, p. 69).

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Com isso, as iniciativas particulares foram mais intensas que aquelas realizadas pelo
poder público19.
Os homens e mulheres, meninos e meninas, numa sociedade que pretendia-se
moderna, deveriam ser educados, tinham que ser escolarizados, formados por
especialistas em ensino.
Estes especialistas, diferentes dos que atuavam como mestres-escola, deveriam
abrir mão do improviso, da intuição, dos exemplos dos velhos mestres, dos espelhos da
tradição na figura de uma educação centrada nos valores patriarcais, para se colocarem a
disposição da formação, do aprendizado, dos conhecimentos da pedagogia, dos seus
métodos mais eficazes e condizente com um mundo em transformação, muitas vezes,
simbolicamente, transfigurados na figura feminina20, na sua suposta21 flexibilidade e
inata capacidade de gestar o mundo. Daí a importância dos institutos de educação, das
escolas normais em formarem especialistas em ensino, pessoas dotadas da capacidade
de entender que a educação escolar deveria voltar-se para a visão integral da formação
humana e não mais a diluição do binômio casa-escola em um só elemento, em que a
casa representaria o espaço privado, exercendo um peso maior na educação das pessoas
do que a escola.
Essa passagem da profissionalização da carreira docente ocorreu concomitante a
valorização do trabalho, do investimento na experimentação da cidade com todas suas
possibilidades de opções profissionais22, uma vez que o trabalho escravo fora abolido
havia poucas décadas, lutava-se para incorporar outra visão acerca deste que estivesse
associada a liberdade, a emancipação das pessoas, e não mais as formas de
aprisionamento dos seus corpos e espíritos.
Se por um lado essa mutação no campo das profissões levara a exigir um sujeito
mais apto ao desenvolvimento de atividades como a indústria, que começara a ganhar
força no país, por outro mobilizava também a presença das mulheres nesse processo.

19
As iniciativas mais significativas em oferta de ensino para a população em Campina Grande partiram
do setor privado, em 1919 foi criado Instituto Pedagógico (atual Colégio Alfredo Dantas) e em 1931 o
Colégio Diocesano Pio XI e o Colégio Imaculada Conceição – DAMAS.
20
As alegorias femininas foram recorrentes durante os anos iniciais da República no Brasil, isso tinha
uma clara associação pedagógica do uso das imagens como símbolos do sistema político republicano que
buscava se legitimar. Ver CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da
República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
21
Procuramos neste texto colocar em suspeita todas as formas de distinção naturalizada do
comportamento que distinguem homens e mulheres, a fim de inscrever nossos escritos nos estudos pós-
estruturalistas.
22
Ver SEVCENKO, 1998, p. 7-48.

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Desde a segunda metade do século XIX que se verificava uma crescente


participação delas no espaço público como professoras, sobretudo no ensino de crianças
(LOURO 1997). Essa presença das mulheres na educação estava em consonância com
os novos postos de trabalho que apareceram com a expansão do espaço urbano. Diante
disso, as mulheres também não passariam alheias a essas possibilidades de ampliação
laboral, embora na maioria das vezes tivessem que fazer do magistério, principalmente
o infantil, a primeira porta de entrada no espaço público tão masculinizado como era o
brasileiro23.
A tarefa de educar crianças nesse contexto histórico era vista como uma
execução de atividades ligadas ao cuidar, o que exigia nessa acepção menos labor
intelectual, ao contrário das ocupações que exigiam comando, como os cargos de
direção, coordenação e mesmo no exercício do magistério nos segmentos posteriores ao
ensino primário. Logo, à medida que as mulheres adentravam o magistério infantil, os
homens passavam a constituir outras espacialidades24 na escola, o que revelava uma
hierarquia nas relações de poder entre os sexos, pois os cargos de direção e coordenação
eram quase sempre ocupados por eles. Acerca disso Oliveira (2005) afirma:

[...] as escolas, por sua vez, repetem o discurso dominante na sociedade,


produzindo uma cadeia de masculinidades e de femininalidades
heterossexuais e ordenadas hierarquicamente, como a carreira pedagógica,
notabilizada pela grande freqüência de mulheres no magistério, associando
quase sempre os estereótipos da mãe à professora. A sua passagem do
“reinado do lar” para a escola dá-se de maneira “natural”, pois a escola é
vista como o segundo templo do espírito feminil, em que o leite materno de
ontem transforma-se em pão intelectual, em saberes a ensinar e posturas a
corrigir. (p. 41-42)

Com isso, a nossa problemática de pesquisa consiste em investigar a questão de


que a cidade enquanto vitrine do processo de construção da modernidade, apareceu
como (re) definidora de novos modelos de papéis sociais para homens e mulheres, e por
conseguinte, de novas sensibilidades em torno dessas mudanças, teve na instrução
23
A historiadora da educação Jane de Almeida (1998) problematiza a relação da carreira docente com o
lugar da mulher na sociedade, para a ela o magistério apesar de ter sido a primeira via de acesso das
mulheres aos espaços públicos no mundo do trabalho, justificada em parte pelo imperativo social que
tornar essa profissão espaço de mulher, tem que se considerar que essa inserção no magistério não
significou nenhuma sujeição, já que algumas mulheres queriam sair do lar e buscaram assim inventar
outros espaços para elas.
24
Apropriamos-nos do termo na acepção de Albuquerque Júnior, para quem as espacialidades
compreendem percepções espaciais que habitam o campo da linguagem e se relacionam diretamente com
um campo de forças que as institui. Nessa direção, aponta que as espacialidades podem ser pensadas
como acúmulo de camadas discursivas e de práticas, permitindo que a região [no caso da pesquisa
desenvolvida por ele o Nordeste] seja trabalhada no momento em que a linguagem (discurso) e espaço
(objeto histórico) se encontram. A Invenção do Nordeste e outras artes. 4 ed. São Paulo: Cortez;
Recife: Massangana, 2009, p. 23.

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escolar de crianças o gendramento25 do feminino marcadamente construído pelo seu


avesso (o masculino), ou seja, os homens como sujeitos que se tornam pouco aptos a
educar crianças.
A partir desse problema, objetivamos, principalmente, analisar o avanço da
escolarização em Campina Grande entre os anos de 1909 a 1941, questionando se este
movimento significou um processo modernizador que redefiniu a produção de espaços
marcados pelas (des) construções de gênero para o magistério presentes em discursos e
práticas que tratam da trajetória masculina nesse segmento da educação.
A escolha do período que constitui o foco da investigação (1909-1939)
compreende um esforço nosso em evidenciar as transformações nas tramas políticas
nacional e local que começavam a ganhar novos contornos alterando as sensibilidades
dos homens e mulheres da época no modo como estes passavam a vislumbrar outras
formas de exercício de poder através da ação política e social representada muitas vezes
pelo voto e pela inserção no mundo do trabalho, na qual a educação ganhava cada vez
mais importância, porque possibilitava aos homens escolarizados maiores de vinte e um
anos escolher seus governantes por meio de processo eleitoral e se tornava também
preparatória para o mundo do trabalho. A restrição da participação feminina26 e
daqueles que não tinham acesso a educação escolar27 ainda era grande.
O ano de 1909 representa vinte anos de experiência republicana no Brasil,
quando observamos através de algumas fontes de pesquisa, especialmente nas
jornalísticas, que se intensificaram as preocupações pelo avanço da escolarização em
Campina Grande, a fim de disciplinar a população de acordo com as idéias
republicanas:

Instrucção Publica
A base do governo representativo é a instrucção e sobre tudo a popular. Sem
Ella as instituições nem se comprehendem nem se estimam. Cada forma
política vive de uma série de idéas, que se devem tornar praticas e communs
para não haver lucta entre os que obedecem e os que executam. Em quanto
systema se não naturalisar no paiz a que é applicado, e os povos lhe não

24. Gendramento é uma forma aportuguesada do termo gender que foi cunhado entre as estudiosos/as de
gênero anglo-saxões para se referirem a determinado espaço/papel social marcado por características
atribuídas aos homens ou as mulheres.
25. As mulheres só passaram a ter direito a votar no Brasil a partir da Constituição de 1934, que
estabelecia também o voto secreto e reduzia a idade mínima do eleitor de 21 para 18 anos. A participação
feminina no mundo do trabalho reproduzia o “lugar” social quase sempre da mãe/chefe do lar, logo a
ocupação que melhor se afeiçoava a ela era o magistério infantil.
26. O primeiro Grupo Escolar de Campina Grande, o Solon de Lucena, foi inaugurado em 1924 apesar de
já existir nesta cidade cadeiras de ensino funcionando em instituições públicas, algumas nas chamadas
escolas rudimentares, e em instituições particulares (Cf: PINHEIRO, 2002).

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derem a sancção nacional, a sua existenciaseràenfesada e triste, o seu


desenvolvimento incompleto. Os costumes legaes não se decretam da noute
para manhã, a affeição publica pelo novo regimen não se inventa n’uma
portaria; e a cooperação dos subditosindispensavel para a administração
progredir não pode existir ou ser eficaz se elles não amarem o principio que
devem auxiliar.
E´ o ensino que vulgarísa as idéas, funda os costumes publicos, e interessa os
povos no cumprimento da lei. (...)(O Campina Grande, 30 de maio de 1909)

Quanto ao ano de 1941, definimos como marco limite porque desejamos


expressar as transformações na educação escolar em Campina Grande até a realização
da I Conferência Nacional de Educação, ocorrida neste ano, e que foi relevante para
estruturação do ensino no país, já que contou com a participação de representantes dos
diversos estados da federação e foi um palco de ampla discussão em torno das práticas
educativas. Ademais, no âmbito local, entre os anos de 1909 a 1941, mudanças
significativas como a instituição de dois grupos escolares públicos na cidade28, que
foram somados as escolas privadas, tornaram-se marcantes no acesso a escolarização
dos grupos populares, mas também por ser através destes que poderemos ampliar nossa
observação acerca das alterações espaciais na instituição escolar, bem como as
transformações na forma de praticar os gêneros decorrentes da junção das cadeiras
isoladas de ambos os sexos e da ampliação da oferta de ensino.
Em meio aos diálogos e contrastes entre esses processos macro e micropolíticos
que tiveram reverberações na vida dos campinenses das primeiras décadas do século
XX que intentamos cartografar as práticas de gênero no espaço escolar, especialmente a
trajetória dos homens professores. A realização dessa empresa está ligada a necessidade
de refletirmos sobre as experiências desses sujeitos na educação escolar, contribuindo
para desfazer preconceitos e inscrever suas subjetividades como expressão de corpos
que educaram dentro das suas especificidades de gênero, etnia, classe e política.

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diferentes formas de aprendizagem e como diferentes relações com o saber e com a

28
Em 1924 foi criado o Grupo Escolar Solon de Lucena, localizado no Centro da cidade, em 1937 o
Grupo Escolar Clementino Procópio, localizado no bairro São José.

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ENTRE DONA FEIA E OS CONCURSOS DE BELEZA:


RELAÇÕES DE GÊNERO NOS DISCURSOS SOBRE O CORPO FEMININO NA
IMPRENSA DE FORTALEZA NOS ANOS 1920

Luciana Andrade de Almeida


Orientadora: Profª Drª Denise Bernuzzi de Sant’Anna
Doutoranda em História Social na PUC-SP e bolsista da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP)

Palavras-chave: História do corpo, beleza/fealdade, Fortaleza

Falar de beleza nas primeiras décadas do século XX aciona uma série de


imagens e (pre)conceitos experimentados pela maioria das pessoas. A conexão
aparentemente natural entre mulheres e temas ligados ao embelezamento parece
inevitável, especialmente quando se pensa na moda, nos produtos para clarear manchas
ou colorir os cabelos e até mesmo em todo o repertório gestual que colocava lado a lado
delicadeza e disciplina. Como escapar da noção reiterada de belo sexo, se beleza e
feminilidade estariam tão imbricados, a ponto de as mulheres serem definidas por seus
corpos? Ou será que isso acontecia na mesma medida com os homens?
É desconfiando de nossa sensibilidade do presente, como aconselha Vigarello
(2003, p. 21), e tendo em vista que “o saber não é feito para compreender, ele é feito
para cortar” (Foucault, 1979, p. 27), que se pretende problematizar, a partir dos textos
veiculados na imprensa de Fortaleza nos anos 1920, os discursos sobre o corpo
feminino e as relações de gênero, que se expressam diretamente ou mesmo nas dobras
das imagens e das palavras escritas. Selecionamos, para tanto, trechos das revistas
ilustradas Ba-Ta-Clan, A Jandaia e Ceara Illustrado, além do jornal O Povo.1

1
As revistas circularam entre os ricos de Fortaleza em meados dos anos 1920, com linhas editoriais
convergentes em alguns pontos. Em geral, divulgavam pequenas notícias locais e traduzidas sobre
assuntos variados, um pouco de literatura, opiniões, aniversários e viagens de pessoas importantes,
propagandas, discussões sobre a cidade, notas com concursos variados, que julgavam desde a beleza das
mulheres até o melhor jornalista ou o melhor poeta cearense. A revista Ceará Illustrado, criada em 1925 e
vendida a 1$000, apresentava-se como semanário independente, mais literário que propagandístico. Ba-
Ta-Clan foi fundada em 1926 – começou custando $400, mas chegou a 1$000 – voltada ao público

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Todas as revistas e o jornal tinham suas redações dirigidas por homens: Aldo
Prado em A Jandaia, ao lado do redator-chefe Gastão Justa; Demócrito Rocha, que
dirigia Ceará Illustrado (e posteriormente fundou o jornal O Povo), com Tancredo
Moraes como redator-chefe; e Ba-Ta-Clan, cujo diretor e secretário assinavam com os
pseudônimos de Mister Butterfly e Dom Casmurro, respectivamente. Michelle Perrot
assinalava o fato de que quase a totalidade das representações de mulheres são criações
masculinas (Perrot, 1992, p. 17).
Focalizamos a cidade de Fortaleza nos anos 1920, em uma reflexão que parte
de dois eixos. Primeiramente, os discursos encontrados nas imprensa foram, em sua
maioria, produzidos por homens sobre a beleza e/ou feiúra das mulheres – o que já
fornece uma série de elementos para pensar em jogos de poder. Em segundo lugar,
deseja-se mostrar algumas repercussões da proliferação desses discursos, tanto sobre os
corpos femininos quanto os masculinos.
Tanto a beleza como a fealdade não são pensadas aqui como essências não-
históricas ou conceitos absolutos, mas situadas no tempo, culturalmente complexas e
não necessariamente opostas, além permeadas por diversas zonas de coação e liberdade.
Nesses termos, não abordamos beleza e feiúra de forma dicotômica, mas
compreendendo que essas noções são sempre provisórias, com fronteiras fluidas e
incessantemente remodeladas. Há mais paradoxos do que soluções. Nesse sentido, o
corpo é considerado “um processo. Resultado provisório das convergências entre
técnica e sociedade, sentimentos e objetos, ele pertence menos à natureza do que à
história” (Sant’Anna, 1995, p.12).
A noção de gênero também colabora na tarefa de desnaturalizar o corpo e
discuti-lo do ponto de vista histórico, sempre em relação com o outro e em meio a
tensões, concessões, conflitos. A partir dos estudos de gênero, é possível pensar nas
feminilidades e masculinidades descoladas dos corpos de mulheres e homens. Nas
palavras de Swain,

Passamos a uma outra dimensão de análise quando, em lugar de considerar a


diferença sexual, observamos a “diferenciação social dos sexos”, a
construção social desta diferença, os mecanismos, as estratégias, o
desvelamento, enfim, das representações que a fundam. A análise
compreende, desta maneira, não somente a construção social dos gêneros,

feminino, publicada aos sábados e de propriedade da Empreza Cearense de Annuncios, com uma proposta
quase exclusiva de propagandas. A Jandaia, fundada em 1924, revista de arte, literatura e atualidades, de
caráter mais frívolo, e publicada semanalmente. Seu valor de capa era de $500 a 1$500. Por último, o
jornal O Povo foi fundado em janeiro de 1928 por Demócrito Rocha, com uma linha independente e
contra os interesses das oligarquias.

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mas igualmente a instituição cultural do sexo biológico e da sexualidade


como base do humano, como a diferença fundadora dos seres (2000, p. 61-
62).

Em 1926, um texto intitulado Dª Feia aparecia na revista Ba-Ta-Clan. O autor,


que assina como Gregorio, descrevia a melancólica visão de uma mulher “desgraçada”,
a quem eram negados os menores prazeres. Tudo isso devido a um fator: sua aparência.

A natureza tem desses caprichos: dar tudo a alguns e negar tudo a outros.
E foi assim para com ella – D. Feia: não lhe deu um só encanto.
Tem-nos ao corpo, feio e magro, aos cabellos, ralos e poucos, aos pés,
grandes e largos, ao nariz, longo e recurvo, aos olhos baços e fundos, á bocca,
rasgada e enorme ás faces, descoradas e murchas.
E’ feia; toda ella é feia, da cabeça aos pés, e a sua fealdade é tanto maior,
quando, por um milagre de alegria, ri: o seu riso é bem mais um rictus
amargurado, uma contracção angustiada, revelando-nos toda a agonia
immensa do seu immenso soffrimento.
A intelligencia, que possue brilhante, não lhe permitte desconhecer a sua
desventura e envergonha se de tanta infelicidade.
Retrae-se, cala-se, esquece-se, ou procura esquecer-se, para fugir á dôr que,
de continuo, a aguilhôa, sempre que, á sua vista, casquinam risotas perversas
ou sussurram cochichos malevolos.
E’ uma grande desgraçada.
As crianças, de longe, a apontam, receiosas, como que vendo no seu vulto o
de uma bruxa das lendas, esquivando-se-lhe aos carinhos que, tantos ! quizera
fazer lhes, na expansão do instincto maternal, já agora a esterilizar-se-lhe no
intimo.
Pois se ninguem a pode ver, ninguem a poderá, jamais, amar!...
E’ tão feia ... 2

A aparência que afronta as normas também impede a efetivação da


faminilidade da personagem – que, no olhar do autor, surge no impedimento de amar ou
mesmo de ser mãe (o “instinto maternal esterelizado”), que seria um papel biológico da
mulher. A inteligencia pouco lhe serve. A beleza é tomada como um atributo inerente à
mulher, através da qual ela conseguirá se realizar como mãe, como esposa e se tornar
alguém visível na sociedade. “Ninguém a pode ver”, diz o texto, apontando que ao
mesmo tempo a mulher sofre chacotas. Ela é invisível para o amor, mas suficientemente
presente para colocar as normas à prova – e sofrer as consequências. Joan Scott afirma
que “Os homens eram indivíduos porque eram capazes de transcender o sexo; as
mulheres não poderiam deixar de ser mulheres e, assim, nunca poderiam alcançar o
status de indivíduo” (2005, p. 17).
História semelhante teria acontecido com Siry, segundo texto encontrado no
jornal O Povo, em 1928. O autor, anônimo, descrevia a reação de algumas pessoas
diante de uma mulher diferente dos padrões correntes de graça e beleza. Fora apelidada

2
Fortaleza, Ba- Ta- Clan, edição especial nº 5 de 1926.

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de Siry “devido talvez a magreza do corpo e a finura dos membros”. Rebelde, não tinha
seu corpo gerido pelas normas. Defendia-se ou revidava a provocação dos moleques da
rua respondendo em voz alta, com “um vocabulario, assás longo, de termos indecentes
que fazem temer de pudor até as próprias pedras, como replica promta que ella sempre
tem aos que a insultam”3.
Na imprensa, a ideia corrente da feiúra como contra-exemplo utilizava
basicamente personagens femininas. Para elas, não era aceitável não ter a aparência ou
não realizar investimentos no corpo para aparecer na cidade, que despontava
remodelada (ou apenas com ambições de renovação) no alvorecer do século XX. Como
postulou uma frase de rodapé encontrada em A Jandaia, “Não há mulheres feias; há só
mulheres que não sabem como hão de parecer bonitas. – BERRYER”4. Mas por quê
gostariam de parecer belas? A frase de Anatole France, em outro rodapé da revista,
forneceria uma chave para pensar sobre o cultivo das aparências das mulheres. “Para
amar, os homens precisam de formas e de côres; exigem imagens. As mulheres só
exigem sensações. Ellas amam melhor do que nós: são cegas”5. A mulher precisaria do
corpo para a conquista e nele estaria seu destino.
O corpo feminino estava em evidência nas propagandas, sempre permeadas
pelos interesses de mercado e flutuações da moda. No caso dos produtos de beleza e
remédios, a figura ideal da mulher também era construída a partir do olhar médico e
científico. “A senhorinha deseja ficar bella?”6, instiga o anúncio. “Use a pasta. Use o
sabonete. Use o pó de arroz. Use a agua de colonia. Use as loções e extratos. Use a
brilhantina. Use o creme cutis. DULCE”. A chamada para as Pilulas de Foster chama a
atenção com as frases: “Coitadinha! Parece uma velha!”, para em seguida elencar os
“malefícios de um sangue envenenado” associados à ideia de velhice7. Na mesma linha,
tornando a velhice algo desconfortável, a Pomada Onken fala diretamente com a leitora:
“QUE IDADE TEM A SENHORA?”8. Destinado às mulheres, o texto recomenda:
“Escolhei a vossa idade antes de responder. E isso consiste numa questão de apresentar
excellente pelle que representa mocidade”. O rosto, os braços, o colo, as mãos e o
pescoço devem ser massageados com o produto, que os livraria das ameaças à aparência
jovial, como “sardas, rugas, espinhas, por mais rebeldes que sejam”. A pomada é

3
Fortaleza, O Povo, 18 de janeiro de 1928.
4
Fortaleza, A Jandaia, 2 de agosto de 1925.
5
Fortaleza, A Jandaia, 17 de janeiro de 1925.
6
Fortaleza, O Povo, 24 de fevereiro de 1928.
7
Fortaleza, O Nordeste, 25 de setembro de 1928.
8
Fortaleza, O Nordeste, 5 de julho de 1928.

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“empregada diariamente por milhares de senhoras da alta sociedade brasileira,


argentina, allemã e norte-americana, que deslumbram pela sua sedutora belleza”.
As vozes dos anúncios se somam ao coro que atrela o feminino a uma série de
atitudes e valores, vindo de interesses econômicos do mercado emergente, dos
princípios religiosos em contraste com o mundanismo que ganhava terreno no espaço
urbano, entre outras forças. Contudo, ao mesmo tempo em que as revistas exaltam o uso
de produtos para o embelezamento, ganhava terreno a valorização da beleza natural e
dos gestos delicados sem esforço, que tentam abrandar a disciplina e os variados
trabalhos aos quais o corpo está submetido.
A atenção mais detalhada ao corpo e aos gestos pode ter sido promovida, em
parte, pela própria configuração da cidade. A fluidez pretendida nos deslocamentos, as
praças, o teatro, os cinemas, as lojas que aos poucos ganham vitrines transparentes e
outros espaços de convivência favorecem um constante emprego do olhar, que Le
Breton define como “o sentido hegemônico da Modernidade” (2011, p. 161).
Com um corpo feminino (quase) inteiro exibido, as avaliações e a
normatização que definiam quem era bela deixam de contemplar somente o rosto para
se estender às formas dos braços, da cintura, dos quadris.

Figura 1 - Página interna. Ba-Ta-Clan, 28 de agosto de 1926.

A figura acima se torna emblemática em sua tentativa de quantificar a beleza,


no tempo em que predominavam textos que descreviam menos a imagem do que o
caráter da mulher, revelando a beleza definida por seu efeito, por aquilo que agrada, não

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tanto pelas características físicas, postas em segundo plano. A partir desta imagem,
percebe-se que olhos vivos, mãos delicadas ou gestos graciosos não são mais suficientes
para definir a beleza – feminina, vale salientar. Pouco a pouco, as propagandas, os
concursos, as fotografias e o cinema multiplicam, universalizam, uniformizam e
possibilitam o consumo de imagens femininas, enquanto dessacraliza o corpo da mulher
e reitera os padrões.
Não por acaso, todos exemplos até aqui mostrados referem-se às mulheres. A
leitura dos textos e imagens encontrados nas fontes pesquisadas, dos anos 1920,
mostram o quanto o corpo feminino era colocado no centro das atenções, sendo
exaustivamente observado, julgado, redefinido e disciplinado de várias formas – embora
passasse a desfrutar também de liberdades inéditas até então, como roupas mais leves,
passeios ao ar livre, banhos de mar. Virtudes e desvirtudes femininas também passavam
pelos corpos e pelas proximidades e distâncias que eles guardavam das noções de beleza
e fealdade. Reconhecemos o corpo como variável historicamente – e também são
variáveis os sentidos a ele conferidos em diferentes culturas, espaços e temporalidades.
Assim, o corpo feminino – ou melhor, determinadas regiões dele – e o gestual
eram submetidos a um conjunto de normas e ao julgamento dos editores e leitores nos
diversos concursos promovidos pelas revistas ilustradas que circulavam entre os bem
nascidos de Fortaleza. Os atributos de beleza e, por conseguinte, o novo perfil de
mulher, eram avaliados em competições como “Os mais lindos olhos”, “A mais bela
cabeleira à la garçonne”, “A mais bela pianista”, “A mais bela freqüentadora do Passeio
Público”, “A mais bela freqüentadora do cine Moderno”. Enquanto isso, para os
homens, os concursos eram outros: “O príncipe dos poetas cearenses” (4 de janeiro de
1925, n. 26), “Qual o mais brilhante jornalista cearense” ou “Qual o maior médico
cearense” (ambos em 18 de janeiro de 1925, n, 28).
As legendas das fotos masculinas exaltam a inteligência, os cargos políticos, a
ocupação de chefias e administrações de escolas ou da polícia, o exercício da medicina,
da engenharia e do direito, o talento como escritor ou musicista. A discrição e a
moderação do ponto de vista da expressão, do vestuário e do próprio enquadramento da
imagem são sublinhados. O que prevalece é o homem sério, chefe de família,
circunspecto e racional. Nas mulheres, é a vez das formas arredondadas. Não apenas no
desenho do corpo, mas no sorriso e nos cabelos – tudo são curvas. Moles e delicados, os
corpos femininos aparecem na maioria das vezes sentados ou deitados, transmitindo a
ideia de uma certa imobilidade. Eloquentes, as imagens marcam o papel social da

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mulher e “evocam as maneiras pelas quais o corpo é construído e organizado no interior


de um sistema que não cessa de o dividir em aparência e essência” (Sant’Anna, 1994, p.
58, tradução minha)9.
As publicações analisadas, que se afirmavam independentes ou modernas, são
interessantes de serem observadas como porta-vozes de um discurso normatizador, que
intenta, através de textos, fotografias e propagandas variadas, modelar os corpos –
especialmente os femininos – e contribuir para a formação de uma mulher “como deve
ser”, encaixada nos padrões que opoem feminino e masculino, graça e poder, delicadeza
e vigor. Portadores da palavra por excelência no começo do século XX – e, portanto, do
poder em uma sociedade que se pretendia letrada –, os homens legitimam e enraízam
determinados padrões de beleza, que acabam sendo interiorizados pelas mulheres.
Segundo os discursos normativos produzidos pelos olhares masculinos de
quem estava à frente da imprensa cearense, o dever da beleza10, de ostentar o luxo e o
lazer, é delas. A beleza parece não fazer parte, pelo menos de forma clara, da identidade
masculina. Os homens poderiam exercer sua sedução de outras formas, com o poder,
por exemplo.
Poses novas, atitudes novas ou, pelo menos, mais variadas diante da objetiva,
reiventam a imagem feminina aos olhos do público, enquanto a aparência masculina
permanece neutra do ponto de vista estético e não se atualiza no mesmo passo. “A
beleza acentua a feminilidade e a primeira é percebida como estratégia específica da
segunda. O mais belo homem perde seu tempo e sua virilidade se ele sabe que é belo”
(Nahoum-Grappe, 1988, p. 14, tradução minha)11.
“Perder o tempo” é uma ideia central. Ocupados demais com assuntos
importantes, com questões políticas ou econômicas, os homens não devem se preocupar
com assuntos frívolos. Graças ao ócio12, a mulher pode cuidar de si, detendo “o

9
No original: “évoquent les manières dont le corps est construit et organisé à l’interieur d’un système qui
ne cesse pas de le diviser en apparence et essence”.
10
Cf. Perrot, 1998 e Sant’Anna, 1994.
11
No original: “La beauté accentue la féminité, et de plus la première est perçue comme la stratégie
spécifique de la seconde. Le trop bel homme perd son temps et sa virilité s’il sait qu’il est beau. La
femme laide perd sa féminité”.
12
“Para que adviesse a idolatria do belo sexo, foi preciso – condição necessária mas, por certo, não
suficiente – que surgisse a divisão social entre classes ricas e classes pobres, classes nobres e classes
laboriosas, tendo como correlato uma categoria de mulheres isentas de trabalho. Essas novas condições
sociais permitiram relacionar mais estreitamente feminidade e práticas de beleza: nas longas horas de
ociosidade de que dispõem as mulheres das classes superiores, elas passam a se dedicar a maquiar-se,
enfeitar-se, fazer-se belas para se distrair e agradar ao marido. (...) A cultura do belo sexo exigiu a
desigualdade social, o luxo e o desprezo pelo trabalho produtivo das leisured classes” (Lipovetsky, 2000,
p. 107-8).

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monopólio do perfume, da pintura, da cor, da sedosidade, da renda”, para funcionar


como ornamento do homem. Este é “condenado à atividade, ou seja, à vestimenta negra
ou cinzenta, em forma de tubo, que faz Baudelaire bradar que esse é um sexo de luto”
(Corbin, 1991, p. 417).
Este trecho convida a uma outra leitura possível: uma certa liberdade feminina
em contraponto à “condenação” masculina ao fardo da dominação, da sobriedade, do
controle do corpo e das emoções. Os trabalhos e as pedagogias do corpo, distintos para
homens e mulheres, aprofundam as diferenças entre os sexos, tanto nas características
corporais quanto no repertório gestual, sem falar dos lugares e/ou funções na sociedade.
Para elas, a delicadeza dos movimentos; para eles, a força e a retidão. Uma ironia, a
partir de um olhar à contrapelo: a beleza pode demandar atitudes e trabalhos distintos
para os homens e mulheres, mas se torna um grande peso para ambos no começo do
século XX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CORBIN, Alain. “O segredo do indivíduo”. In: PERROT, Michelle (dir.). História da


vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991.
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LE BRETON, David. Antropologia do Corpo e Modernidade. Petrópolis: Vozes, 2011,
p. 165.
LIPOVETSKY, Gilles. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.
NAHOUM-GRAPPE, Véronique. “Beauté et laideur: histoire et anthropologie de la
forme humaine”. Chimères. N. 5/6, 1988, p. 1-27.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1992
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Apresentação. In: __________ (Org.). Políticas do
Corpo: elementos para uma história das práticas corporais. São Paulo: Estação
Liberdade, 1995, p. 11-18.
__________. La Recherche de la beauté. Une contribution à l’histoire des pratiques et
des représentations de l’embellissement féminin au Brésil – 1900 à 1980, Université
Paris 7, 1994.

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SCOTT, Joan W. “O enigma da igualdade”. Revista Estudos Feministas [online]. 2005,


vol.13, n.1, pp. 11-30. ISSN 0104-026X. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-
026X2005000100002.
SWAIN, Tania Navarro. “A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do
nomadismo identitário”. Textos de História, Brasília: UnB, v. 8, n. 1 (Feminismos:
Teorias e Perspectivas), p. 47-85, 2000.
VIGARELLO, Georges. “A história e os modelos do corpo”. Revista Pro-Posições,
Campinas, SP, v. 14, n. 2, Dossiê Visibilidade do Corpo, 2003.

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A RELAÇÃO MODA/CORPO: ACEPÇÕES E TRANSFORMAÇÕES NO COMEÇO


DO SÉCULO XX NA CIDADE DE PARIS

Autora: Maria Cecília Gonçales Pimenta (Mestranda do Programa de Pós-Graduação


em História Social da Universidade Estadual de Londrina, área de concentração em
Culturas, Representações e Religiosidades).
Orientadora: Profᵃ. Drᵃ. Cláudia Eliane Parreiras Marques Martinez.

Palavra-Chave: Moda, Corpo, Década de 1920.

A relação que a moda e o corpo mantêm ao longo da História é de caráter íntimo


e mutual, pois “a moda está ligada diretamente à construção do corpo que sempre foi
definido de acordo com a estética de cada época, como espelho do seu tempo e da
cultura que a produziu” (LIMA1, 2002, p.50), logo a reciprocidade entre corpo e moda,
está no fato de que a última não se coloca como causa, e tampouco como consequência
das transformações do corpo, mas sim como ambas.
Esta afirmação procede quando levamos em conta que a moda como nas
circunstâncias atuais, não é existente a todos os povos, e nem a todas as épocas da
humanidade, conforme o pensamento do filosofo francês G. Lipotevetsky em seu livro
O império do Efêmero:

A moda não pertence a todas as épocas nem a todas as civilizações [...]


Contra a ideia de que a moda é um fenômeno consubstancial à vida humano-
social, afirmamo-la como um processo excepcional, inseparável do
nascimento e do desenvolvimento do mundo moderno ocidental. Durante
dezenas de milênios, a vida coletiva se desenvolveu sem culto das fantasias e
das novidades, sem a instabilidade e a temporalidade efêmera da moda [...]
Só a partir do final da Idade Média é possível reconhecer a ordem própria da
moda, a moda como sistema, com suas metamorfoses incessantes, seus
movimentos bruscos, suas extravagâncias [...]

1
CASTILHO, Kathia; GALVÃO, Diana (Org.); LIMA, Vera. A moda do corpo o corpo da moda. São
Paulo: Esfera, 2002.

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Por mais que na idade antiga já existissem elaboradas modelagens e


fizessem uso do ornamento nos modelos de indumentária, a valoração do tempo
pretérito não permitia as inovações, destarte não existiam trajes da moda.
Até o século XV, as alterações dos formatos, composições e
comprimentos das indumentárias demoravam anos, até mesmo séculos, para ocorrerem,
e quando se sucediam era de maneira sutil, como vemos em História do Vestuário de
Carl Köhler, livro escrito na segunda metade do século XIX:

Ao longo do século XII os trajes franceses continuaram a desenvolver-se


feitios mais ou menos atraentes [...] A influência francesa se fez sentir
sobretudo na Inglaterra; a Alemanha, a Itália e a Espanha eram mais
independentes. Por algum tempo não houve grandes modificações no corte
[...]. A partir de meados dado século XIV, as mulheres espanholas também
passaram a adotar os estilos franceses, abandonando depois de muito tempo,
um traje que se desenvolvera a partir da antiga indumentária romana. Esse
traje consistia em uma túnica com mangas longas e justas, uma outra com
mangas largas e usada sobre a primeira, e uma sobreveste oblonga,
semelhante a uma capa. A influência moura afetara ligeiramente a
indumentária feminina, o que se evidenciava mais nos ornamentos do que no
corte (KÖHLER, 2009, p.259).

Um dos prováveis motivos para esta lenta adoção de novidades seria o lento
intercâmbio (tomando o referencial de velocidade de informação contemporâneo) entre
os diferentes povos europeus. Não que não existisse a troca de referências estética entre
diferentes nações, mas estas influências ocorriam proporcionais ao contato que os países
mantinham uns com os outros, decorrentes de guerras, dominação territorial ou
negociações comerciais.
Já para o sociólogo Norbet Elias, desde a idade média, a moda é uma
prerrogativa das elites (nobreza), onde estas se utilizavam de modus operandi
excêntricos para se distanciar das classes por ela julgadas subalternas, pois:

O padrão de bom comportamento na Idade Média, como todos os padrões


depois estabelecidos, é representado por um conceito bem claro. Através
dele, a classe alta secular da Idade Média, ou pelo menos alguns de seus
principais grupos, deu expressão a sua alto-imagem, ao que, em sua própria
estimativa tornava-a excepcional (ELIAS, 1994, p.76).

Para continuar se distinguindo e constatando o apanágio que possuía em


relação à outra classe social considerada como inferior, a nobreza, assim que se percebia
copiada em seus hábitos e vestimentas, logo tratava de criar outros costumes, que por

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sua vez, também seriam copiados e, tão logo, seria necessário inventar novos padrões.
Esta incessante procura por destinção seria a causa da moda.
Em contrapartida Lipovetsky assinala que a distinção das classes sociais,
que Elias coloca como origem, é senão uma das funções sociais da moda:

O esquema da distinção social que se impôs como a chave soberana da


inteligibilidade da moda, tanto na esfera do vestuário como na dos objetos e
da cultura moderna, é fundamentalmente incapaz de explicar o mais
significativo: a lógica da inconstância, as grandes mutações organizacionais e
estéticas da moda [...]
Retomando em coro o refrão da distinção social, a razão teórica erigiu em
motor da moda o que na realidade foi sua apreensão imediata e ordinária,
permaneceu prisioneira do sentido vivido dos agentes sociais, colocou como
origem o que é senão uma das funções sociais da moda [...] Ao contrário do
imperialismo dos esquemas da luta simbólica das classes, mostramos que, na
história da moda, foram os valores as significações culturais modernas,
dignificando em particular o Novo e a expressão da individualidade humana,
que tornaram possíveis o nascimento e o estabelecimento do sistema da moda
(LIPOVETSKY, 2008, p. 11).

De qualquer maneira, podemos entender que a moda “surgiu” num


período próximo ao término da Idade Média e começo da Idade Moderna, a exatidão no
calendário não faz diferença para este texto, sendo que as linhas divisórias dos períodos
da História do ocidente, por si só, já criam controvérsias.
Portanto, aceitamos de Lipovetsky que a moda não pertence a todos os
tempos e tampouco a todos os povos, ela surgira a partir do rompimento com as
tradições, e que a fugacidade das formas aumentaram proporcionalmente no decorrer da
História.
Porém, como Elias, acreditamos que a moda se presta a discriminar um
grupo ou sociedade, e em resultado disto, entendemos que é justamente esta infinita
busca por diferenciação por parte de alguns e a cópia por parte de outros, a força motriz
da Moda.
A curiosidade distintiva dos tempos modernos, em relação aos anteriores,
proporcionou o gosto nas pessoas pela sempiterna inovação. Com estas constatações,
concluímos que moda é de essência proteiforme e efêmera, e que tem como uma de suas
funções a distinção entre os grupos em determinadas temporalidade e espaço.
E, além das ratificações feitas até este ponto, temos que a moda,

“difundindo-se por toda Europa com o crescimento das cidades e aumento do


intercâmbio entre os países, expandiu-se cada vez mais, tornando a renovação
das formas um valor mundano, uma nova ordem de valores ligados à

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sociedade que exibiria seus artifícios e exageros com inconstância em matéria


de formas e ornamentações” (LIMA, 2002, p. 50).

Deste modo “a moda reafirma a liberdade do homem de recriar a própria


pele, não a primeira, dada biologicamente, mas a segunda gerada por sua imaginação e
fantasia, tornada real por sua engenhosidade técnica” (BAITELLO apud LIMA, 2002,
p.50), por isso cremos que o indumento é uma espécie de segunda pele nos humanos
(figura 1).

Figura 1. As cinco peles de Hundertwasser - 1998


Fonte: BARRETO2 et al., 2008.

Porém, igualmente entendemos que a moda não é de exclusividade dos


trajes, qualquer artefato pode ser passível da condição de “estar na moda”, seja ele um
utensílio doméstico, uma ferramenta de mecânico, um móvel, um automóvel ou até
mesmo um recipiente de alimentos,

A moda não permaneceu acantonada – Longe disso – no campo do vestuário.


Paralelamente, em velocidades e em graus diversos, outros setores – o
mobiliário e os objetos decorativos, a linguagem e as maneiras, os gostos e as
idéias, os artistas e as obras culturais – foram atingidos pelo processo da
moda, com suas paixonites e suas oscilações (LIPOVETSKY, 2008, p. 24).

2
PIRES, Dorotéia Baduy (Org.); BARRETO, Suzana. Design de Moda: olhares diversos. Barueri.
Estação das Letras e Cores, 2008.

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Contudo, a roupa é a melhor via de acesso da moda, pois a indumentária está em


contato direto e constante com o corpo humano. “Até os séculos XIX e XX foi o
vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais ostensivamente o processo de moda”
(LIPOVETSKY, 2008, p.24), e, por conseguinte reflete sentimentos e os anseios
primários dos seres humanos.
Deste modo, temos que as formas e matérias da moda possibilitam novos
contornos ao corpo, formando, assim, uma representação do corpo ideal, que por sua
fez, é suporte para ostentar e manipular a cultura material (onde a moda está inserida e
estes objetos, inclusive do vestuário, lhes servem de signo, porque a moda é, também,
discurso), ou seja, o corpo expõe objetos que sofrem alterações e também diretamente
se altera nesta intrincada relação moda/corpo.
Relação esta, que nos anos loucos do século XX, serviu de instrumento
de comunicação, visto que sufragistas parisienses na ânsia por igualdade de direitos
entre os gêneros utilizaram objetos do vestuário masculino, em seus próprios trajes na
tentativa de sensibilizar os senadores franceses de uma igualdade de pensamento entre
homens e mulheres, dando desta maneira, origem a moda garçonne entre as francesas
tendenciosas à vida moderna.
Isso se deve em parte ao motivo de que o corpo depois que a primeira
guerra expôs sua fragilidade, e resultantemente a sociedade ocidental, sua cultura e
valores morais sofreram, por questões econômicas e políticas, abalos inéditos até então
ocorridos na sua história, atribui, desta maneira, uma nova acepção ao corpo.
Segundo o filósofo fenomenólogo francês, Maurice Merleau-Ponty em seu livro
Signes, publicado em 1960:

Nosso século apagou a linha divisória do ‘corpo’ e do ‘espírito’ e encara a


vida humana como espiritual e corpórea de ponta a ponta, sempre apoiada
sobre o corpo [...]. Para muitos pensadores, no final do século XIX, o corpo
era um pedaço de matéria, um feixe de mecanismos. O século XX restaurou e
aprofundou a questão da carne, isto é, do corpo animado.

Isto é, o corpo vive, o corpo fala, o corpo sente, e como consequência ele
adquiriu dupla função, em que pode ser ator e cenário histórico.
“O corpo é um grande gerador de linguagens” (CASTILHO, 2002, p. 63), e “a
moda, ou melhor, o conjunto de nossos trajes, adornos, […], etc., sobrepõem-se a ao
corpo como suporte ideal da moda no qual esta constrói e consolida novos desejos e
crenças, atualizando nosso sistema de escritura e valores sociais” (CASTILHO, 2002,

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p.63). Situamos desta maneira, a moda como uma comunicação não verbal, que utiliza o
corpo como aporte de seus signos e significados que se alteram conforme o lugar
histórico:

Em Citânia: tem minissaia – é uma rapariga leviana.


Em Milão: tem minissaia – é uma rapariga moderna.
Em Paris: tem minissaia – é uma rapariga.
Em Hamburgo: tem minissaia – se calhar é um rapaz (ECO, 1989, p. 9).

E de acordo com a temporalidade:

Houve um período em que escolher as calças com bainha, seguindo a


exemplo – ao que me parece – príncipe de Gales, constituía uma escolha de
dandy3. Mas a seguir, a convenção alargou-se de tal modo que quando,
muitas dezenas de anos depois, alguém readaptou as calças sem bainha, esta
foi também a escolha do mesmo dandy [...] (ECO, 1989, p. 18).

Ou seja, no século XX o corpo é “organismo”, onde não mais separamos a carne


de l’esprit4, “o corpo é um dos canais de materialização do pensamento, do perceber e
do sentir o circundante” (CASTILHO, 2002, p.64). Cremos deste modo que nos années
folles5, a nova conformação do corpo feminino foi resultado dos processos contextuais
históricos, que geraram moda, mas que simultaneamente a moda fez gerar a nova
conformação dos corpos femininos.
Como já foi dito anteriormente, a moda também é discurso. Uma característica
estética, que está em voga numa determinada temporalidade, pode ter função de adorno
e ao mesmo tempo função comunicativa.
Segundo Umberto Eco, igualmente, entendemos que “quem se interessou
alguma vez pelos atuais problemas da semiologia, já não pode continuar a fazer o nó da
gravata, todas as manhãs diante do espelho, sem ficar com a clara sensação de estar a
fazer uma opção ideológica” (ECO, 1989, p.7), pois o vestuário tem a função primordial
de proteção, “mas basta fazer uma autoanálise honesta para verificarmos, que o que
serve realmente para cobrir não supera os cinquenta por cento do conjunto” (ECO,
1989, p.7).
Sendo assim, quando tomamos para análise o período entre as duas grandes
guerras, entendemos que as mulheres almejavam experimentar o mundo com os

3
O mesmo que “dândi”, indivíduo que se veste e age com requinte e elegância.
4
Mente, espírito, alma, pensamento, essência humana, idéias (tradução nossa).
5
Anos loucos (tradução nossa).

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mesmos direitos que os homens, pois como em Castilho, “o corpo enquanto objeto de
significação e de comunicação constrói significados, na forma como se mostra e é
mostrado, em determinados contextos” (CASTILHO, 2002, p.63).
Cabelos curtos, seios achatados e quadris pequenos, tudo isso para se parecerem
“comme un garçon6”. Entretanto, as pernas alongadas à mostra continham reflexos de
feminilidade, tornando o garçon em “garçonne7” (Figura 2).

Figura 2. Garçonnes parisienses, em pé Bibi,


Olga Day e Michelle Verly - 1928
Fonte: BARD, 1998.

Assim temos que cada um dos empréstimos por parte das garçonnes do
vestuário dos homens, portam a marca da ambivalência do masculino-feminino. Ela
fuma, mas utiliza uma elegante cigarreira, usa calças, mas são calças pijamas, amplas,
fluídas e sensuais. Seus vestidos ganham linhas simples, retas, masculinas, mas são
feitos de tecidos leves e justos ao corpo, e estas adaptações ao “costume” masculino
tornaram-se o ideal de beleza feminina desta temporalidade, conforme descrito por
Victor Margueritte em trechos de seu romance La Garçonne, que foi considerado um
grande difusor da moda de nome homônimo:

6
“como um rapaz” (tradução nossa).
7
O Vocábulo “Garçonne”, com acepção de mulher emancipada e independente, não existia na Língua
Francesa até a década de 1920. O feminino de garçon (rapaz) é fille (moça, menina). Portanto o termo
garçonne é uma composição do prefixo “garçon”+ “e” (letra que indica o gênero feminino no idioma
francês).

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Coiffée d’un béret de cuir rouge, le cou nu dans le manteau dégrafe, elle
conduisait avec une décision attentive, si joliment garçonnière que Régis ne
put s’empêcher, tout maussade qu’il fût, de l’admirer. Oui, tout de même, il y
avait là une nouvelle réalisation de grâce féminine! Un être encore singulier,
quoique naissant par milliers d’exemplaires, et avec lequel il fallait
dorénavant compter, comme avec un égal… Constatation qui, loin de le
satisfaire, l’ancrait dans sa répugnance à tout ce qu’il englobait dans ce mot
pour lui malsonnant: “féminisme” (MARGUERITTE, 1922, p.254)8.

Com isto, temos que garçonne, foi mais que uma moda que revolucionou as
aparências, ela representou um novo tipo de mulher, uma mulher com liberdade.
Quando Margueritte retrata Monique Lebier como a heroína de seu romance, ele mostra
não só uma mulher emancipada legalmente, mas uma mulher emancipada socialmente,
pois ela fuma, frequenta cafés, dança jazz, se droga e experimenta o amor de vários
homens, assim como o de outras mulheres.
Na década de 1920, o gênero feminino percebeu-se intelectual e ativamente
capaz em relação ao gênero masculino. Em resultado da 1ª Guerra Mundial as mulheres,
no ocidente, pela primeira vez encararam o mercado de trabalho de modo maciço, e esta
experiência assalariada lhes deu o gosto da independência.
A nova silhueta tubular e não ajustada à sinuosidade do corpo feminino (tão
distinta da do século anterior) expressava o desejo em obter os mesmos “poderes” do
sexo masculino, porém sem perder a feminilidade. Conforme Yapp, “o design dos anos
20 era atrevido, extravagante, revolucionário e em sua maioria de uma extraordinária
beleza” (1998, p.222).
Vale ainda, ressalvar que, no início dos anos loucos, algumas senhoras resistiram
às mudanças de comportamento. Submersas em valores machistas e conservadores,
observaram os novos costumes e atitudes das mulheres mais jovens como subversão,
mantendo o uso dos espartilhos (figura 3) e assim expressando seus sentimentos de
censura.

8
Com um gorro de couro vermelho na cabeça, o pescoço nu, no manto desbotado, ela guiava o carro com
uma decisão atenta, tão “garçonnière” que Régis não pode deixar, por mais casmurro que estivesse, de
admirá-la. Sim, sem dúvida alguma ele tinha ali uma nova realização da graça feminina! Um ser ainda
singular, embora nascendo por milhares de exemplares e com o qual, doravante, era preciso contar como
igual… Constatação, afinal, que em vez de o satisfazer, o aferrava à sua repugnância por tudo o que ele
englobava nesta palavra para ele malsoante: “feminismo” (MARGUERITTE, 1922, p.254).

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Figura 3. Mulheres de espartilho – 1904


Fonte: <http://madame.lefigaro.fr> Acesso em jun. 2012

Num primeiro momento, se vestir à la garçonne foi tido como uma atitude
perturbadora, pois uma moda, no instante em que se instaura, é vista como uma ruptura
com as normas aceitas até então, para mais a frente vir a se tornar o padrão. No entanto,
apesar da resistência inicial, com o passar do tempo as mudanças foram sendo
consentidas pela sociedade, e mais mulheres aderiram aos hábitos de vestir do estilo
“garçonne” em razão das novas tarefas cotidianas.
O grande desenvolvimento dos meios de comunicação (rádio, telégrafo, telefone
e cinema) e de transporte (aviões, carros e comboios) acelerou a rotina de todos, dando
início aos tempos modernos. Essa agitação teve reflexos diretos no universo feminino,
em que a figura da fêmea inerte que só fica em sua residência, nesta temporalidade,
tornou-se uma imagem ultrapassada.
A prática de esportes, o trabalho, a luta por direitos, a liberação sexual, as idas
aos salões de dança e a formação acadêmica, fizeram necessária a liberação do
incômodo espartilho. O contorno tubular dos corpos era resultante das novas
necessidades femininas. O corpo da mulher tinha neste momento que ser ágil, forte,
rápido e travesso. A inércia ficara para trás, do mesmo modo que a vida pacata dos
tempos anteriores.

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Assim sendo, pretendemos com este artigo estabelecer que “o corpo, é antes de
tudo, um corpo imaginário, tudo no corpo se desenvolve a partir da imagem que uma
cultura faz dele” (CASTILHO, 2002, p. 66), e que ele é alterado por meio da moda, a
roupa permite reelaborar novos traços e novas linhas corpóreas, mas as evoluções do
corpo, em resultado das dietas de restrição ou abundância alimentar, assim como novas
práticas cotidianas, (re)configuram a moda.
“Pensar o corpo, portanto, significa confrontar-se com um sujeito/objeto, […]
consideramos o corpo como alguma coisa que somos e possuímos. Ou melhor, é o único
caso que tratamos de um ser e haver não alusivos, mas sim conjuntos” (CASTILHO,
2002, p.64). Entendemos, destarte, que a relação estabelecida entre corpo e moda é de
troca e não de sequência linear unilateral.
Portanto, este recorte histórico e geográfico (Paris na década de 1920)
proporcionou a esta comunicação interrogar historicamente as relações de causa e
consequência entre corpo e moda, e situar o corpo como agente e cenário histórico, e,
deste modo, igualmente proporcionar que rumemos a futuros estudos, nos quais
questionaremos os usos destas relações no século XXI, que pela lógica tendem a ser
mais conturbadas ainda.

Referências Bibliográficas

BARD, Christine. Les Garçonnes: Modes et fantasmes des Années folles. Paris:
Flammarion, 1998.

CASTILHO, Kathia; GALVÃO, Diana (Org.). A moda do corpo o corpo da moda.


São Paulo: Esfera, 2002.

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XX. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.

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Jorge Zahar Ed., 1994.

KÖHLER, Carl. História do Vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

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12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 927

MARGUERITTE, Victor. La Garçonne. Paris: Ernest Flammarion, 1922.

YAPP, Nick. 1920’s: Decades of the 20th century. Hagen: KÖNEMANN, 1998.

A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina


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XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 928

VIRILIDADE, COMBATENTES E UM FEMININO TÃO FORA DE LUGAR...

MOREIRA, Rosemeri
(Dra. História - Unicentro)

Palavras-chave: Gênero; Masculinidade; Militares.

A capacidade guerreira é uma das principais características históricas da percepção


sexual dimórfica1 do corpo no mundo ocidental: ser homem ou ser mulher se inscreve de
forma excludente na sua presença ou ausência. A capacidade guerreira inscrita nos corpos
classificados como masculinos vai muito além da capacidade de guerrear. Essa capacidade e
vista como uma potência, uma ação. Uma capacidade de exteriorizar e/ou inscrever o seu
desejo, a sua vontade, no outro.
Na defesa da atividade “militar”, como uma capacidade inerente ao corpo dos homens,
se condensam percepções que vão além do combate propriamente dito. O termo “militar”
suscita percepções sobre a capacidade de ação dos sujeitos na esfera pública e sobre os usos
sociais da violência coletiva, referindo-se ora ao embate físico, ora à atuação política dos
sujeitos, sejam eles tanto “militares”, quanto “militantes”. O corpo classificado como
feminino é descrito como o “ser percebido” (BOURDIEU, 2007): aquele que existe em
função do outro, do cuidado com o outro (crianças, doentes, idosos) e da vontade do outro
como um sujeito não desejante. Essa não-potência, imputada ao corpo classificado como
feminino no mundo ocidental, é base da exclusão das mulheres do mundo público: a política e
a guerra.
Traduzido como um espaço simbólico da masculinidade, o militarismo e a virilidade se
encontram entrelaçados como a capacidade para a guerra, para a ação, para a violência. Pela
leitura sexual dimórfica e biologicista, a capacidade de suportar e infligir violência, necessária
ao combate, se encontra encarcerada no corpo de homens. Corpo este biologicamente pensado
como detentor de força física e também força moral de proteger os demais corpos carentes de
virilidade: os corpos infantis, os corpos das mulheres e os corpos envelhecidos.

1
Sobre a construção do sistema sexual dimórfico na Biologia e na Medicina Ver LAQUEUR, 2001.

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Penso ser necessário adicionar à dicotomia homens/guerra – mulheres/paz, as categorias


sociológicas “casa e rua” (DaMATTA, 1997, p. 15), as quais estão presentes na composição
da ideia de polícia, que, por sua vez, se traduz principalmente, na prontidão à ação belicosa na
rua e na chamada manutenção da ordem. O mundo da guerra e o mundo da rua são produtores
de referências normativas da masculinidade (s) e também do seu avesso, a feminilidade (s).
As identidades de gênero se constituíram e sedimentaram em torno da questão da violência
coletiva (ELSHTAIN, 1995). Para Robert Connell, os usos sociais da violência formam um
núcleo central na estrutura das relações hierárquicas de gênero (CONNELL, 1995). O
afastamento simbólico do corpo das mulheres nos combates é uma “[...] invariante universal
que em todas as sociedades humanas afasta o corpo das mulheres do porte das armas [...] e de
toda possibilidade de agressão à barreira anatômica, que provoque derramamento de sangue”
(ANDOIN-ROUZEAU, 2008, p. 414).
Como assinala Helena Carreiras, a imagem do “outro-mulher” desempenha o papel de
alteridade referencial na definição de militar (CARREIRAS, 2009, p. 173-175). A ideia de
mulher, cristalizada na sua ausência, constitui um elemento estruturante do universo
simbólico da cultura militar e policial. A “mulher”, através de seu avesso, estrutura a
concepção de rua e da cultura policial pautada na masculinidade viril. Ser militar é ser, acima
de tudo, o oposto do feminino, uma vez que este último é pensado como destituído de
capacidade para a ação.
O corpo militar é construído através desse processo de disciplinarização intensa do
corpo-instituição; do corpo-individual e dos valores condizentes ao militarismo2. O
“detalhamento” do corpo, “as minúcias dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o
controle das mínimas parcelas da vida e do corpo”, conforme Michel Foucault (1987, p. 121),
distribuem os indivíduos no espaço que os definem, tanto pelo lugar que ocupam quanto pela
distância demarcada com o outro. Os corpos dos combatentes são colocados numa relação de
codificação/decodificação de sinais que exigem uma resposta obrigatória: “entre o corpo e o
objeto que o manipula, o poder vem se introduzir, amarra-os um ao outro” (FOUCAULT,
1987, p. 130). O controle dos gestos e a economia dos movimentos regularizam o corpo
material e simbólico dos militares.

2
As instituições disciplinares e suas respectivas estruturas são construídas a partir do século XVIII quando os
suplícios dão lugar ao encarceramento. O corpo, sujeito do poder, transforma-se em objeto de vigilância dos
organismos disciplinares que assegurariam “a ação da sociedade sobre cada indivíduo”, e dentre eles, todos os
tipos de milícias (FOUCAULT, 1987, p. 81).

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A experiência da guerra total, inaugurada no século XX, trouxe em seu bojo a erosão
dessa composição de masculinidade vinculada à potência viril e ensaiou a presença de corpos
de mulheres em atividades além das funções próprias às representações do feminino.
Mulheres passaram a assumir “papéis proibidos como a militarização” (CAPDEVILA, 2005,
p. 87), atuando no campo de batalha da guerra propriamente dita, na resistência, nas
guerrilhas (WOLFF, 2007) e, como já dito, nas forças policiais dos estados nacionais.
Levando em conta o poder simbólico de nomear alguém ou algo, tornando-o dizível e
oficial3, questiono como o interdito à violência, presente nas representações sobre o corpo das
mulheres, é amenizado ou nuançado a ponto de permitir a existência de um corpo
militar/policial feminino? Como o indizível se torna dizível?
Refletindo sobre o uso coletivo da violência, as guerras, combates e batalhas,
corriqueiramente representadas como espaços de homens, contaram, em diversos períodos
históricos e lugares, com a presença de mulheres, de crianças, de famílias e clãs em geral. Nos
períodos precedentes à concepção de guerra total, própria do séc. XX4, as vivandeiras,
cantineiras, lavadeiras, enfermeiras, surgiennes; as transportadoras do butim, dos
mantimentos, dos feridos e das armadilhas; as prostitutas, e também as combatentes, faziam
parte do cotidiano dos enfrentamentos bélicos (CAIRE, 2002. p.15-35).
O processo de profissionalização dos exércitos, ensejado pelos estados absolutistas
europeus, apesar de inúmeras tentativas não conseguiu distanciar as mulheres dos espaços de
conflito e confinar o soldado num mundo exclusivamente de homens (CAIRE, 2002, p. 17). A
profissionalização dos exércitos, atingida nos séculos XIX e XX, se definiu, em larga medida,
pela separação dicotômica entre família/civis versus combatente/militares. Entretanto, longe
de isolar-se das mulheres e dos “civis”, a concepção de guerra total, desde que se tornou
realidade, e até os dias atuais, diluiu o espaço do front, antes tido como um local
geograficamente delimitado e dissolveu a noção de civis e militares na concepção de inimigo
a ser aniquilado. Paradoxalmente ao grau de profissionalização, atingido pelas Forças
Armadas, em que a dualidade virilidade/feminilidade é deveras reforçada, as mulheres
participaram em massa dos conflitos do século XX.

3
O poder simbólico “é um poder de fazer coisas com palavras” (BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo:
Brasiliense, 1990. p. 167).
4
Características dos conflitos do século XX, guerras totais são aquelas em que a mortalidade em massa
inaugurada pela possibilidade técnica se dá paradoxalmente, em nome da vida e da sobrevivência da população
nacional. Essa concepção de inimigo que necessita ser exterminado enseja o desaparecimento da fronteira entre
combatentes e civis; a noção de guerra contínua; e a percepção da fragilidade do corpo humano (AUDOIN-
ROUZEAU, 2008, p. 365-416).

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Nas guerras totais, em relação ao deslocamento da ideia de front, importa ressaltar, a


forma fluida com que este assume, uma vez, que aqueles que “ficam” estão no centro dos
ataques. E, em segundo lugar, a constatação de que o “ficar” pode ser tão diaspórico, quanto o
“ir”, devido às deportações, aos êxodos forçados e às fugas em massa das grandes cidades.
Como vítimas, as mulheres estavam sob os bombardeios nas cidades, nos campos de
concentração e de extermínio e nos êxodos forçados. Na produção, eram operárias nas
fábricas de aviões, navios, minas terrestres, obuzes, metralhadoras e munições em geral.
Contudo, eram também as mulheres que geriam a manutenção do cotidiano das cidades,
ocupando funções como motoristas de ônibus, de ambulâncias e condutoras de trens; faziam
as entregas do correio; estavam nos escritórios; nos postos de abastecimento de combustíveis;
realizavam o trabalho de bombeira, e, sobretudo, para o que interessa neste texto, atuaram
como policiais em patrulhamento (QUETÉL, 2009).
A partir da Grande Guerra, as mulheres foram voluntárias ou recrutadas para comporem
os batalhões de “auxiliares” das Forças Armadas na maior parte dos países beligerantes.
Devidamente uniformizadas, mas sem o status de militares, seguiram os rígidos regimes
disciplinares nas diversas organizações que foram instituídas nas três armas5. As funções por
elas desempenhadas estão muito além daquelas consideradas próprias ao feminino6. Foram
condutoras de caminhões transportando, alimentos, armamentos, feridos e remédios;
aviadoras de comboio de pequenas aeronaves e instrutoras de voo; agentes de informação;
soldadoras; construtoras de pistas de pouso, abrigos, fortificações e estradas; motociclistas;
engenheiras e projetistas, operadoras de rádio; operadoras de máquinas, eletricistas e
mecânicas, decodificadoras de mensagens, analistas de imagens de satélites, controladoras de
voo, vigilantes noturnas e espiãs. Como soldados regulares, compuseram os batalhões
exclusivamente femininos do Exército Vermelho. Estavam no Exército de Tito, na Grécia, na
China, na Finlândia e na Polônia. Na infantaria e nos ares. Nos exércitos aliados, as
reticências à presença de mulheres nos combates não impede as diversas atuações individuais,
e também a participação nos diversos grupos de resistência. A presença das combatentes em
5
Na Grã-Bretanha: WAAC - Women’s Auxiliary Army Corps (220 mil no final da 2ª Guerra); WRN – Women’s
of the Royal Navy (40.300 mil em 1942); ATS – Auxiliary Territorial Force (200 mil em 1943); WAAF –
Women’s Auxiliary Air Force (182 mil em 1943). No Canadá: CWAC – Canadian Women’s Army Corps (21
mil); CWAAF – Canadian Women’s Air Force; WRCN – Women’s Royal Canadian Naval. Nos EUA: WAAC –
Women’s Auxiliary Army Corps (140 mil); WAAF – Women’s Auxiliary Air Force (40 mil); WAVES –
Women’s Accepted for Voluntary Emergency Service (86 mil); Women’s Mariners (19 mil); WASP – Air Force
Service Pilots; WRNS – Women’s Royal Naval Service(CAIRE, 2002; QUÉTEL, 2009, p. 138-172).
6
Além de secretárias, telefonistas, enfermeiras, datilógrafas, estenógrafas, cozinheiras, ajudantes de química,
revisoras de textos, etc. (CAIRE, 2002, p. 74).

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vários exércitos beligerantes criou um desconforto às delimitações usuais do gênero, uma vez,
que não se pode negar o deslocamento de um “feminino” de armas em punho7.
As percepções sobre “ir” e “ficar”, “casa” e “rua”, relacionadas à instituição da guerra e
à ação na esfera pública, sustentam a ação mítica de proteção por parte dos homens, o que não
corresponde à história das guerras propriamente ditas, e nem à participação histórica de
homens e mulheres, seguindo a estreita delimitação público/privado.
Além de pretender reafirmar a presença histórica de mulheres, em diversas situações de
combate - na guerra e na “guerra” da rua -, o exposto acima tem a intenção de apontar o
silenciamento, a negação, ou a ênfase na “excepcionalidade”8 como mecanismos que
instituem, reafirmam ou reatualizam construções simbólicas. Assim como, o “não dito” se
torna o não existente, a “[...] passagem do implícito ao explícito nada tem de automático”
(BOURDIEU, 2009, p. 143). Dessa forma, seguem se perpetuando representações da guerra e
da rua, como espaços construtores da masculinidade/virilidade, que dentro da lógica do
dimorfismo sexual pertencem aos corpos de homens.
É necessário historicizar a exaltação do corpo do combatente e a sua erosão, que no meu
entendimento contribuíram para a possibilidade da invenção de um “feminino” nas
instituições militares e policiais no mundo ocidental no século XX.
Audoin-Rouzeau afirma que a partir de 18609, a experiência corporal do combate se
torna uma prova física para grande parcela da população masculina europeia: “uma espécie de
norma social” (2008, p. 367). O corpo objetivado da medicina (ver: FAURE, 2008;
MARTINS, 2004; MOULIN, 2008) - explorado, classificado e inventariado - se transforma
em palco de investimento de autocontrole.
Processo iniciado na segunda metade do século XIX, o treinamento físico como parte
do desenvolvimento pessoal, passa a ser um ponto central da identidade (VIGARELLO, 2008;
VIGARELLO & HOLT, 2008). O tema da ascensão social – que não é inédito – passa pelo
trabalho sobre si, sobre seu corpo. Um corpo maleável e transformável indefinidamente é
exacerbado no decorrer do século XX. No período anterior a guerra total, as futuras nações

7
As atividades de mulheres como combatentes em diversos conflitos no século XX estão exemplificadas pela
ação das libertárias espanholas e também nos grupos armados durante os governos militares na América do Sul
(Ver: WOLFF, 2007. p. 19-38; LIMA, 2000, p. 203-17).
8
Simone de Beauvoir reflete criticamente sobre a utilização de sua própria imagem de intelectual bem sucedida
como “mulher-desculpa”, a despeito das demais, uma mulher exceção. O que exemplifica os pressupostos
individuais da capacidade dos sujeitos e que coloca poucas mulheres como capazes de competirem com os
homens. BEAUVOIR, Simone Apud SCHWARZER, 1986. p. 68).
9
Experiência esta iniciada no continente europeu a partir de 1798 com as guerras revolucionárias e imperiais.

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beligerantes se encontram seduzidas, em graus variados, pela cultura militar da ginástica que
numa concepção mais refinada de corpo, é posta como transformadora da vontade,
construtora de tenacidade, da segurança e autocontrole. Um body building, na nomenclatura
americana, capaz de transformar fraqueza em força.
Ou seja, o trabalho sobre o corpo, é um trabalho sobre a vontade do indivíduo “que se
reivindica mais senhor de si com a modernidade” (VIGARELLO, 2008, p. 220). Corpo como
palco de um “tornar-se” físico que é ao mesmo tempo producente de novas prospecções
internas, de uma verdade interior. A Alemanha, altamente militarizada, investe na
“encarnação do povo no corpo” (Idem, p. 230), através da distinção conseguida por um
treinamento que enrijece também o espírito. Demais nações, e principalmente a França após
1870, seguirão esse modelo de busca de saúde física da raça, onde a ginástica se configura
como prática normativa e coletiva do corpo com evidentes fins militares10.
No século XIX a atividade esportiva é uma celebração da potência masculina
(VIGARELLO & HOLT, 2008, p. 452). Entretanto, às mulheres, o treinamento do corpo
como base de melhoria da raça e fortalecimento do espírito, não passou despercebido, mesmo
que os discursos médicos enfatizassem sua fragilidade física e indisposição ao esforço. No
início do século XX, no caso da Alemanha, se esboçam defesas do treinamento também dos
corpos das mulheres, baseadas no viés ainda militarista da boa saúde reprodutiva. Na França
se percebe a metamorfose do feminino através das palavras de Alice Milliat: “A educação
física e o esporte dotam as meninas e as moças de uma saúde e de uma força que sem causar
dano a sua graça natural, as tornam mais aptas a cumprirem no futuro o dever social que delas
se espera” (apud VIGARELLO, 2008, p. 226). No século XIX a ainda medicina enfatizava a
diferença entre os sexos e a impropriedade do esforço físico e agressividade presentes nos
esportes às mulheres, mas no final desse mesmo século se esboçam reações que rejeitam essa
noção de fragilidade e passividade intrínseca.
Mesmo que timidamente, e a despeito dos discursos declarados de fragilidade física,
mulheres iniciam o processo de treinamento do corpo, pela ginástica e pelo esporte 11. A
concepção do corpo como transformável, se expande na sociedade como um todo e nem

10
Vigarello (2008) analisa as disputas existentes nas concepções sobre a prática física entre o modelo da
ginástica e do esporte no decorrer do século XIX. O primeiro modelo, acentuado nas nações mais militarizadas,
no período das guerras totais se expande as demais nações. No pós-guerra o esporte supera de vez a ginástica.
11
A ginástica sueca, o golf (flexível e elegante), a adaptação do hóquei sobre a grama, o tênis (grande mercado
matrimonial) serão os esportes das mulheres de classe média (VIGARELLO & HOLT, 2008).

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mesmo o discurso de fragilidade física inerente ao feminino passa incólume. É uma brecha
que se abre nas concepções de feminino/masculino do período.
Sobre a fragilidade intrínseca do corpo das mulheres é importante lembrar ainda que
mesmo os discursos médicos e jurídicos, não as distanciaram do esforço do trabalho fabril, do
trabalho rural e das pesadas atividades domésticas. De qualquer maneira a abstração
“mulheres” é distanciada da capacidade de esforço físico e agressividade e também da
capacidade guerreira. Mas, no decorrer do século XX, tanto a concepção de corpo moldável
pelo treinamento, quanto à experiência da guerra total modificam esse horizonte.
As guerras de massa da primeira metade do século XX são postas por diversos
pesquisadores como espaços transformadores da masculinidade (CAPDEVILA, 2007;
MOSSE, 1990; AUDOIN-ROUZEAU, 2008; BADINTER, 1993; SHOWALTER, 1993),
enquanto que para outros o gênero é sobremaneira reforçado (PERROT, 2005; THÉBAUD,
1995). Longe de pensar essas posições como excludentes, defendo que uma se entrelaça a
outra. Ou seja, o deslocamento de identidades masculina (s) e feminina (s) enseja momentos
de reforço do gênero.
Luc Capdevila, abordando o contexto francês, defende que houve uma migração da
identidade masculina, pautada no ethos guerreiro, para o investimento afetivo na paternidade,
devido à experiência traumática da Grande Guerra. Para Capdevila, “[...] os homens foram
pouco a pouco abandonando sua identidade guerreira para, ao contrário, reforçar sua
identidade paternal” (2007, p. 87), o que veio a diminuir sobremaneira o limiar de tolerância
com relação à violência. Contradizendo o contexto francês, Georges Mosse (1996;1990)
afirma que, na Alemanha e na Itália, a sociedade se brutalizou e militarizou mais ainda após a
primeira guerra mundial em busca do “homem novo” apregoado pelo fascismo.
No entremeio desse debate, Audoin-Rouzeau aponta que o grande paradoxo do século
XX foi a destruição do masculino através da guerra total e ao mesmo tempo a manutenção do
ethos guerreiro, proclamando não o seu fim, mas as diversas maneiras de sua erosão. Para
esse autor “[...] o estereótipo do guerreiro ocidental estava ligado há muito tempo - desde o
século XVIII – a concepção de virilidade moderna para sair tão facilmente de cena” (2008, p.
394), mesmo que a atividade do combate tenha perdido toda a glória anterior.
A mutação da guerra - da glória à erosão do masculino - é uma experiência do século
XX. Do porte aos uniformes, antes decorativos e desejosos de visibilidade, se passa a uma
invisibilidade necessária a guerra total. Invisibilidade exigida tanto na funcionalidade da

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vestimenta quando na posição corporal do combate. O alcance dos armamentos e a


capacidade de destruição técnica inauguram na 1ª Guerra Mundial, o corpo do soldado
rastejante destituído das honras da cavalaria - uma das armas definitivamente abandonada em
detrimento da infantaria e da artilharia. Do corpo em pé, do soldado que combate ereto ou no
máximo ajoelhado, frente a armamentos de alcance reduzido, passa-se ao soldado rastejante12.
Como nos diz melancolicamente Walter Benjamin “[...] numa paisagem em que nada
permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes
e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano” (1987, p. 198).
A transformação da capacidade técnica de destruição se relaciona a nova concepção de
inimigo o qual precisa ser aniquilado, ser exterminado. A mortalidade em massa, inaugurada
pela possibilidade técnica13, se dá em nome da vida e da sobrevivência da população nacional.
As perdas humanas em massa se deram paradoxalmente em defesa da vida da população.
Assim como nos afirma Foucault, as “[...] guerras já não se travam em nome do soberano a
ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas a
destruição mútua em nome da necessidade de viver” (FOUCAULT, 1988, p. 149).
Marca de uma nova etapa de militarização das sociedades europeias, essa concepção do
inimigo que necessita ser exterminado, traz consigo o desaparecimento da fronteira entre
combatentes e civis; a noção de guerra contínua14; e a percepção da fragilidade do corpo
humano, principalmente na experiência dos combatentes frente a sua vulnerabilidade
corporal. O dilaceramento do corpo, tanto do inimigo quanto do aliado é uma experiência
tátil, olfativa, visual e auditiva. O contato tátil prolongado nas trincheiras e nos campos com
fragmentos dos corpos, o odor dos cadáveres, o estampido da artilharia (obuzes, granadas,
bombas, metralhadoras e armas diversas), e a assustadora visão do corpo dilacerado fazem
parte da experiência da guerra total.
Para Capdevila (2007) e Audoin-Rouzeau (2008), o mito do guerreiro se transforma
com a diminuição da autoestima pautada na virilidade, marcando a impossibilidade de um
12
Transformações nas técnicas corporais já apontadas por Marcel Mauss (2003). O combate se dava ombro a
ombro devido ao fraco poder de fogo que exigia a concentração dos combatentes postos ao alcance da voz dos
oficiais e suportando sempre em pé, o terror do fogo da artilharia inimiga (AUDOIN-ROUZEAU, 2008, p. 371).
13
O fuzil de repetição que dispara 10 projéteis por minuto; as balas cônicas e giratórias que atingem cerca de
600 metros e ferem com uma gravidade antes inimaginada e em silêncio; a muralha de 400 a 600 projéteis por
minuto da metralhadora; e o poder de fogo da artilharia que multiplica o alcance da batalha (AUDOIN-
ROUZEAU, 2008, p. 375).
14
O prolongamento das batalhas levado ao extremo a exemplo dos 10 meses da Batalha de Verdum, supliciam o
corpo do combatente de forma ininterrupta, que segundo Audoin-Rouzeau (2008, p. 381) provocavam um
esgotamento, físico, fisiológico e psicológico irrecuperável e destituíram o combate de glórias que pudessem
elevar subjetivamente a honra viril, mesmo com a distribuição de medalhas e honrarias.

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retorno glorioso, na maneira de ver a si mesmo, tanto para os derrotados quanto para os
vencedores. O fortalecimento do pacificismo após a 2ª Guerra se contrapõe a nobreza do
militarismo do final do século XIX.
Elaine Showalter considera que a crise de identidade tanto masculina quanto feminina,
acentuada pelas guerras do século XX, é anterior a elas. Para essa autora, no fin de siécle era
visível a assustadora “impossibilidade da sexualidade e os papéis sexuais serem contidos
dentro dos limites simples e permanentes da distinção sexual” (1993, p. 22). A incapacidade
exposta da sustentação desses papéis foi fonte de ansiedade e também de reações
antifeministas, uma vez que a crença nas esferas isoladas, cultuada na maior parte do século
XIX, era cada vez mais posta à prova pelas próprias reivindicações das mulheres.
Considerando a identidade de gênero como sendo referente, relativa e reativa, para
Elizabeth Badinter (1993, p. 11), sempre que as mulheres deslocam sua identidade a
masculinidade se desestabiliza. As atitudes de valorização exacerbada da virilidade no fin de
siécle foram reações ao mesmo tempo antifeministas e antifemininas, junto ao contexto do
imperialismo, que se firmou pela adoção de valores viris como política de Estado. Uma
França efeminada é largamente lamentada na literatura e na pintura após a derrota de 1870
(SHOWALTER, 1993, p. 25). De qualquer forma, a virilidade exacerbada no período que
precede a guerra total, relacionada como reação a “feminização” da política e da cultura, e
frente a um contexto imperialista que viriliza a política do Estado, sai da experiência da
guerra profundamente abalada na percepção dos combatentes.
Para Badinter (1993) as crises anteriores de masculinidade possuíram caráter limitado,
visto que restritas a aristocracia e/ou burguesia. No final do século XIX, mais extensa e mais
profunda, a crise encontrará “[...] exutórios sucessivos nas duas grandes guerras mundiais
[...]” (1993, p. 11) à ansiedade masculina. Para essa autora, contrariamente a Capdevila
(2007), Mosse (1997) e Andoin-Rouzeau (2008), as guerras foram espaços de reafirmação da
virilidade. Concordando parcialmente com Badinter, os discursos anteriores as guerras
propriamente ditas, foram firmemente baseados na exaltação da virilidade da nação
imperialista. No entanto, a experiência de guerra, tal qual afirmam os autores acima citados,
trouxeram transformações subjetivas nos combatentes e nas sociedades beligerantes como um
todo, que se distanciaram da auto-estima viril/militar na composição da masculinidade. Se o
século XIX, a partir de uma sistemática exploração efetuada pela medicina, foi uma
celebração à potência do corpo (VIGARELLO, 2008; VIGARELLO & HOLT, 2008), e

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principalmente do corpo masculino, a experiência da primeira metade do século XX aflorou a


sensibilidade sobre a fragilidade do corpo junto à recusa ao militarismo viril para os países
beligerantes europeus.
Ainda sobre a experiência das guerras do século XX, o corpo das mulheres, ao mesmo
tempo distanciado simbolicamente dos combates será instrumento importante de aviltação do
inimigo a ser aniquilado. Tal como assinala Audoin-Rouzeau (2008, p. 401), as práticas do
sadismo se tornaram banais a partir das guerras totais, em que o corpo do inimigo se
transforma num troféu: ossos esculpidos, escalpos, orelhas, crânios e narizes serão souvenirs
presentes no butim dos combatentes15. Banalidade existente nos palcos de guerra com relação
ao corpo que condiz a ideia de um “outro” que deixa de ser humano e passa a ser animalizado
e “coisificado”. Importante enfatizar que mesmo em contextos próximos como a Guerra do
Iraque (RIAL, 2007), o corpo das mulheres continua sendo considerado de forma banal como
a encarnação do inimigo. Os estupros perpetrados, longe de serem frutos de psicopatologias
individuais, são atos sistemáticos que fazem parte de uma política de gênero. A negação de
outra cultura e outra “raça” encontra no corpo das mulheres o lugar por excelência da
sistematização da violência: um espaço de política de guerra.
Junto à violência de gênero perpetrada em específico às mulheres como o corpo a
aviltar, é importante também perceber as inflexões por que passam as identidades
femininas/masculinas. A visão dos combatentes somente como perpetradores da violência ou
ainda heróis e não como vítimas reforça a dicotomia do gênero, uma vez que os coloca como
intrinsecamente viris e apaga o sofrimento impetrado pelo aviltamento de si, de sua
humanização, tanto quanto aquela efetuada ao corpo supliciado do inimigo.
Esses sucessivos deslocamentos das identidades de gênero, focadas no corpo, ensejam,
ainda na primeira metade do século XX, a possibilidade de mulheres se transformarem em
agentes do monopólio da violência do Estado: primeiramente nas Forças Policiais e em
seguida nas Forças Armadas. No entanto, os enunciados construídos na invenção da mulher
militar/policial estão pautados pela ideia de humanização das polícias e das forças armadas e
não pela aceitação da quebra da dicotomia mulheres/paz versus homens/guerra.
A inclusão de mulheres/feminino nos quadros policiais e nas Forças Armadas ao longo
do século XX, denota mudanças na cultura política e nas representações acerca do Estado. De

15
As práticas de aviltamento total do corpo do inimigo, segundo Audoin-Rozeau (2008, p. 402), visíveis e banais
principalmente no pacífico, estiveram ausentes na frente ocidental em que os adversários, a despeito da forte
hostilidade, possuíam um “sentimento de pertença e uma humanidade comum”.

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um Estado imperialista pautado na expansão de si, na conquista de espaço econômico,


político e também geográfico; na exacerbação da nacionalidade como expressão do
apagamento do outro, passa-se a um Estado maternal e/ou benemerente, que discursivamente
se coloca como protetor da população a partir de políticas públicas específicas. Penso ser
possível e necessário pensar a cultura política através do gênero como categoria analítica, uma
vez que a construção das teorias sobre o que é o Estado e qual é a sua função, se encontra
permeada por essa categoria e as representações de mulheres são recorrentemente utilizadas
em momentos de crises diversas.
No que concerne a Inglaterra, França e Alemanha, a inclusão de mulheres em atividades
de policiamento encontra-se diretamente relacionada ao contexto da 1ª Guerra Mundial.
Durante a Grande Guerra foram formados agrupamentos voluntários de mulheres com
funções de policiamento – vigilância e patrulhamento - na Inglaterra (Women Police
Volunteers), na França e também na Alemanha no contexto do denominado “esforço de
guerra”. Como já citado, após o armistício, paulatinamente se esboçou nesses países a
institucionalização da presença de mulheres em atividades policiais.
No caso inglês, as atividades de orientação e acomodação de refugiados em 1914 a
cargo de mulheres são colocadas pelas memorialistas (ALLEN apud FERAZ, 1954), como
sendo impulsionadoras para que estas assumissem o policiamento nas cidades. Em 1915 esse
policiamento voluntário foi anexado à Força Policial com a denominação de “Women Police
Service”. Quando o armistício foi assinado, esse agrupamento contava com a presença de 357
mulheres, que foram oficialmente anexadas à Metropolitan Police de Londres – MET,
trabalhando em tempo integral. As policiais da Inglaterra tiveram um papel significativo na
organização do “policiamento feminino” de diversos países, principalmente aqueles que
faziam parte de sua área de influência econômica16.
Na França, em 1925, em Grenoble, foram criados dois cargos de “Inspetoras sociais de
Polícia” e na capital Paris a partir de 1932, devido à campanha empreendida pelo Conselho
Nacional das Mulheres Francesas. Na Alemanha, mulheres voluntárias em atividades do
esforço de guerra ligadas ao policiamento foram paulatinamente incorporadas às organizações
policiais e também contaram com a assessoria das policiais da Inglaterra, em 1923, quando foi
criado um setor de “Auxiliares de Polícia” com o efetivo inicial de seis mulheres. No caso
estadunidense, em 1910, Alice Stebbins Wells foi incluída nos serviços de patrulhamento na
16
Como foi o caso da cidade do Cairo e Bombain, que em 1928 com assessoria das policiais inglesas criou
setores de Policiamento Feminino.

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Polícia de Los Angeles. Em Nova York esse processo iniciou-se a partir de 1926 após intensa
campanha desenvolvida por 62 associações de mulheres (APPIER, 1998, p. 34).
Com exceção das policiais inglesas – Policewomen - esses demais agrupamentos
adotaram precavidamente a nomenclatura de “Assistentes de Polícia” ou “Auxiliares Sociais
de Polícia”. Essas pioneiras passam a formar grupos uniformizados, com regulamentos
próprios e com a função específica de “amparar” a população necessitada. Como vítimas ou
delinquentes, os pobres em geral, as mulheres, os idosos e os chamados “menores” serão o
foco discursivo da presença de mulheres na atividade policial, tanto na Europa, quanto nos
EUA.
No caso brasileiro, a reabertura dos debates públicos será a tônica dessa concepção
civilizadora/humanizadora da presença de mulheres nas atividades policiais e militares: após o
Estado Novo varguista em relação às Polícias e após o período da Ditadura Militar, no que
concerne às Forças Armadas.
As Forças Armadas e as Forças Militares ao agregarem a concepção de “feminino” a
constituição de sua auto representação, exemplificam o atravessamento do gênero no
pensamento político formador da concepção de Estado sob o qual suas “Forças” não passam
incólumes.
Em fins do século XX, o desenvolvimento da concepção de Segurança Humana, e da
Paz como peacekeeping e peacebulding, defendidos pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas (MATHIAS, 2009; DONATIO & MAZZOTA, 2009), ampliaram mais ainda a
discussão sobre a presença das mulheres e da urgência de um “feminino” na composição do
corpo militar, tanto no mundo da caserna quanto na atividade policial. Um feminino, antes tão
fora de lugar, passa a ser base discursiva para a legitimação de aparatos repressivos.

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