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ANPUH-PR
Anais. Vol. I:
do Simpósio Temático 01 ao Simpósio Temático 13
A ESCRITA DA HISTÓRIA
12 a 15 de Outubro de 2012
Londrina
PR
XIII Encontro Estadual de História
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE HISTÓRIA - SEÇÃO PARANÁ
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA - UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA
12 A 15 DE OUTUBRO DE 2012
A ESCRITA DA HISTÓRIA
Anais. Vol. I:
do Simpósio Temático 01 ao Simpósio Temático 13
CDU 930.1
Realização
Patrocínio
Diretoria ANPUH-PR
Comissão Organizadora
Apresentação
José Miguel Arias Neto; Gilberto da Silva Guizelin ..................................................... 13
A infância cidadã
a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente
Daniele Ditzel Mattioli & Rita de Cássia da Silva Oliveira .......................................... 24
O universo brincante
da infância nas colônias italianas de Curitiba
Elaine Cátia Falcade Maschio ....................................................................................... 38
Instrução e trabalho:
a experiência dos ingênuos no Paraná (1871-1888)
Noemi Santos da Silva ................................................................................................. 107
Marginalização, delinquência e criminalidade infantil
na cidade de São Paulo no início do século XX
Robson Roberto da Silva ............................................................................................. 120
Os aprendizes:
recrutamento e disciplina nas Companhias de Aprendizes Marinheiros
de Pernambuco (1857-1870)
Wandoberto Francisco da Silva ................................................................................... 144
Lei 10.639/2003,
uma realidade ou mais uma política curricular obrigatória?
professores de História: suas apropriações e resistência à lei
Rosimeire dos Santos ................................................................................................... 203
Haile Selassie I:
um deus ou um imperador absolutista?
Zeus Moreno Romero .................................................................................................. 214
História da alimentação
numa perspectiva da genealogia Prudentópolis (PR)
Eliane Crestiane Lupepsa Costenaro ........................................................................... 227
Soldados e degredados no Povoamento de Guarapuava:
identificações, rejeições e resistências – 1820/1853
Francisco Ferreira Júnior ............................................................................................. 238
Envelhecer na cidade:
memórias de mulheres aposentadas oriundas do espaço rural
(Marechal Cândido Rondon – 1980-2011)
Gladis Hoerlle .............................................................................................................. 261
A percepção do outro:
teuto-brasileiros e a imprensa curitibana durante a Primeira Guerra Mundial
Pamela Beltramin Fabris ............................................................................................. 316
Panacéia da dor:
o espaço social português e os preceitos reformadores da “Geração Nova” de 1870
Lucélia Rodrigues de Oliveira ..................................................................................... 433
Herança de História?
a posse do livro nos inventários post mortem de Castro entre 1800 e 1870
Luciana Cristina Pinto ................................................................................................. 446
Práticas proibidas.
Análise dos processos crimes de incesto na Comarca de Rebouças –
um estudo de caso
Eduardo Mady Barbosa ............................................................................................... 566
Pinheiro-do-Paraná:
símbolo de identificação cultural ou emblema de uma história de desfloramento?
Alessandra Izabel de Carvalho .................................................................................... 609
Sentidos em disputa:
a estrada/caminho do colono em narrativas
Nivia M. B. Grapiglia; Davi F. Schreiner .................................................................... 638
Do “lixão” ao aterro:
história das políticas públicas ambientais em Guarapuava/PR (1970-2010)
Vladson Paterneze Cunha ............................................................................................ 651
Um olhar à Esquerda:
a Força Expedicionária Brasileira
Carlos Henrique Lopes Pimentel ................................................................................. 664
Vida e trabalho:
memórias de pescadores sobre a pesca artesanal na ilha do Amparo
após o acidente do navio Vicuña em 2004
Priscila Onório Figueira ............................................................................................... 745
Memória gastronômica:
a alimentação de imigrantes e seus descendentes, nas décadas de 1930-1950.
Londrina-Paraná
Gilberto Hildebrando; Leandro Henrique Magalhães ................................................. 809
Patrimônio imaterial:
o lugar da memória e a memória do lugar; (ICARAÍMA/PR)
Murilo Rebecchi; Lúcio Tadeu Mota .......................................................................... 815
A pornografia na pós-modernidade:
manutenção de discursos de gêneros
Franciele Siqueira Miotto; Edinéia Aparecida Chaves de Oliveria ............................. 884
A relação moda/corpo:
acepções e transformações no começo do século XX na cidade de Paris
Maria Cecília Gonçalves Pimenta ............................................................................... 917
APRESENTAÇÃO
educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), deixa claro como as análises
tem contribuído na compreensão que o protagonismo não é um fenômeno recente ou
que precise de autorização do adultos, mas que é efetivo na história, porém, não é visto
com um protagonismo juvenil e sim como atitude de adulto. No estudos da sociologia
rural os exemplo são claros da redução do período da adolescência, considerando as
"necessidades" que os jovens encontram nas tarefas familiares. Essa atividade nas áreas
urbanas também. (SANTANA, 2009) A prática na escola é comumente um conflito com
os adultos e a participação dos alunos nas escolas públicas na participação direta dos
conselhos escolares permanece obscuro.
A escola é, por excelência, o local adequado para desenvolver projetos
relacionados com a preservação de fontes para esse tipo de pesquisa historiográfica.
Pensando a importância da preservação documental e do fomento da memória de grupos
como forma de fortalecer laços dos grupos e difundir a questão dos direitos desses
grupos, no caso da adolescência a organização estudantil é um dos objetivos de trabalho
do LAPHIA. Os movimentos sociais infanto-juvenis nas últimas décadas recebe atenção
e possui uma bibliografia crescente, porém, essa bibliografia ainda está longe das
escolas. Como avalia Franscanelli e Silva (2007) a infância e seus direitos são quase
inexistentes nos livros didáticos, mesmo de História e dificilmente aparecem juntos na
mesma discussão, os jovens não são tratados especificamente, além de alguns "fatos"
como os movimentos de 1968, ou como usados pelas forças governamentais, infância e
juventude hitlerista. Normalmente a ideia de tutela e exploração é mais clara que
alguma referência à ação intencional buscando interesses e direitos.
É importante notar que essa quase ausência e a resistência dos
profissionais do ensino na difusão do Estatuto da Criança e do Adolescentes nos mais
de 20 anos, mudou pouco depois de 2007 com a aprovação da Lei n. 11.525 que
acrescenta o § 5º ao artigo 32 da Lei n. 9.394 de 1996 (LDB):
§ 5º - O currículo do ensino fundamental incluirá,
obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e
dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de
julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do
Adolescente, observada a produção e distribuição de material
didático adequado.
1
- http://www.alunos.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=144
REFERÊNCIAS
DEL PRIORE, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
1999.
Frascanelli EC, Silva IMS. Lesgislação e Infância: des(conhecida) em livros escolares.
Arq Mudi. 11, 227-34, 2007.(Supl.2)
FREITAS, Marcos Cezar (org.). História Social da infância no Brasil. São Paulo:
Cortez, 1997.
Marilia Pontes Sposito (2009), O estado da arte sobre juventude na pós-graduação
brasileira: educação, ciências sociais e serviço social (1999-2006), Belo Horizonte:
Argumentum, 2009. 2 v.
MORELLI, A. J. Memórias de infância em Maringá: transformações urbanas e
permanências rurais (1970/1990). São Paulo, 2010. Tese (Doutorado) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
MORELLI, Ailton J. A inimputabilidade e a impunidade em São Paulo. Revista
Brasileira de História, ANPUH, São Paulo, v. 19, n. 37, p. 125-156, 1999.
MOURA, Esmeralda B. Bolsonaro de. Por que as crianças? In: CARVALHO, Carlos
Henrique; MOURA, Esmeralda Blanco B. de; ARAUJO, José Carlos Souza (org.). A
infância na modernidade: entre a educação e o trabalho. Uberlândia: UDUFU, 2007.
p. 13-48.
MÜLLER, Verônica R., RODRIGUES, Patrícia C. Reflexões de quem navega na
educação social. Maringá: Clichetec, 2002.
MÜLLER, Verônica Regina, MORELLI, Ailton José (org.). Crianças e adolescentes: a
arte de sobreviver. Maringá (PR): EDUEM, 2002.
MÜLLER, Verônica Regina. Histórias de crianças e infâncias: regitros, narrativas e
vida privada. Petrópolis (RJ): Vozes, 2007.
SANTANA, Marcio Santos de. Projetos para as novas gerações: juventudes e relações
de força na política brasileira (1926-1945). São Paulo, 2009. Tese (Doutorado) - -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
SCHREINER, Davi Félix; PEREIRA, Ivonete; AREND, Sílvia Maria Fávero (org.)
Infâncias brasileiras: experiências e discursos. Cascavel: Ed. UNIOESTE, 2009.
SILVA, Maria Alice Setúbal Souza e; GARCIA, Maria Alice Lima; FERRARI, Sônia
Campaner Miguel. Memória e brincadeiras na cidade de São Paulo nas primeiras
décadas do século XX. São Paulo: Cortez, 1989.
STEARNS, Peter N. A infância. São Paulo: Contexto, 2006.
1. INTRODUÇÃO
Crianças e adolescentes passam a ser vistos como sujeitos de direitos e deveres a partir
da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA em 1990. A doutrina da
proteção integral apresentada pela lei delineava um novo futuro para a infância no Brasil.
No entanto, passados mais de vinte anos de vigência do ECA, continuam as discussões
relativas aos direitos de crianças e adolescentes. O desconhecimento do texto legal aliado a
uma interpretação inicial equivocada exige um movimento de defesa pela proteção da infância
e da lei que a protege.
A partir de 2007 um novo desafio se apresenta às instituições de ensino quando, por
força da Lei nº 11.525, tornou-se obrigatório no ensino fundamental conteúdo que trate dos
direitos das crianças e dos adolescentes à luz do ECA.
As duas edições (2003 e 2007) do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos
afirmam em seu corpo a responsabilidade da educação como formadora de cidadãos
plenamente desenvolvidos em suas potencialidades. Para tal, sendo a escola um espaço
privilegiado, a mesma deve desenvolver práticas pedagógicas voltadas à construção de
sujeitos sociais conscientes de seus direitos e deveres.
Mais recentemente o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente –
CONANDA no documento preliminar para a elaboração da Política Nacional dos Direitos
Humanos de Crianças e Adolescentes no Brasil e do Plano Decenal dos Direitos Humanos de
Crianças e Adolescentes, define um dos objetivos estratégicos a inclusão de conteúdos
1
Mestranda em Educação pela UEPG, historiadora, advogada, professora de História da rede pública de ensino
do Estado do Paraná.
2
Doutora em Educação. Universidade Estadual de Ponta Grossa.
2. OBJETIVO
a) Objetivo Geral:
b) Objetivos específicos:
3. METODOLOGIA
busca de informações em documentos que não receberam nenhum tratamento científico, como
relatórios, reportagens de jornais, revistas, cartas, filmes, gravações, fotografias, entre outras
matérias de divulgação” (OLIVEIRA, 2007, p. 69).
4. REFERENCIAL TEÓRICO
Durante muito tempo a infância não foi caracterizada como um momento especial,
merecedor de cuidados e afeto para o desenvolvimento humano. As crianças eram tratadas na
condição de adultos em miniatura, sendo desde então “orientadas para o trabalho, para o
ensino, para o adestramento físico e moral, sobrando-lhes pouco tempo para a imagem que
normalmente está a ela associada: do riso e da brincadeira” (DEL PRIORE, 2008, p.08).
Apenas em fins do século XIX, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, é
que o entendimento sobre a infância no Brasil é alterado.
Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 e a adoção da
Doutrina da Proteção Integral crianças e adolescentes passam a ser reconhecidos como
sujeitos de direitos devendo ser respeitados com base na sua condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento.
O direito à educação é admitido como interesse social pela Constituição Federal de
1988, uma vez que a construção de uma sociedade justa, livre e solidária apenas será possível
quando a todos os cidadãos forem garantidos os direitos inerentes à realização da dignidade
da pessoa humana.
Este estudo tem como fundamento o pensamento de Kant de que “o homem não pode
se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”
(KANT, 2006, p.15). O desenvolvimento do caráter moral da criança será possível a partir dos
exemplos que esta recebe, bem como do cumprimento dos seus deveres. A partir destas
práticas a criança afirma em si a dignidade da natureza humana e, nesse sentido “deve-se
inculcar desde cedo nas crianças o respeito e a atenção aos direitos humanos e procurar que
assiduamente que os ponha em prática” (KANT, 2006, p.90).
Nesse sentido, crianças e adolescentes devem ser estimuladas ao exercício pleno da
cidadania e ao respeito aos direitos humanos que foram identificados com os valores mais
importantes da convivência humana, aqueles sem os quais as sociedades acabam perecendo,
fatalmente, por um processo irreversível de desagregação (COMPARATO, 2008, p.26).
Vale destacar aqui que os princípios existentes no ECA são os mesmos elencados pela
Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, a sua organização é pautada na defesa dos
direitos fundamentais e, desta forma, dos direitos humanos.
Consideram-se direitos humanos as condições mínimas de dignidade do homem para
que o mesmo viva em sociedade e que são válidas em todos os tempos e para todos os
homens.
Quando se fala em direitos fundamentais, pode-se dizer que são os direitos humanos
(âmbito internacional) regulamentados pela norma fundamental do Estado. Diante disso,
constata-se um distanciamento entre o que está previsto legalmente e a efetivação destes
direitos. Afirma Bobbio que “o problema fundamental em relação aos direitos humanos do
homem, hoje, não é tanto o fato de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um
problema não filosófico, mas político” (BOBBIO, 1992, p.24).
A educação é reconhecida pela LDB como integrante do processo formativo das
pessoas e desta forma tem papel decisivo na emancipação humana.
Segundo Machado “o efetivo respeito aos direitos humanos no dia a dia do cidadão
comum [...] configura condição basilar da própria realização do Estado Democrático de
Direito no mundo dos fatos [...]” (MACHADO, 2003, p. 70) e, por essa razão destaca-se a
viabilidade da pesquisa, bem como a atualidade do tema.
5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
a) O direito à Educação:
Dessa forma, a educação brasileira tem como objetivo trabalhar para a formação de
pessoas independentes, de visão empreendedora e que se posicionem de modo solidário frente
à sociedade, respeitando o ser humano na construção da efetiva democracia.
Quanto às finalidades da educação, a Lei manteve o disposto no artigo 205 da
Constituição Federal: pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho.
As finalidades e princípios definidos pela Lei para a educação brasileira demonstram
fidelidade aos princípios da Carta das Nações Unidas e também sua adesão à luta contra a
discriminação no campo do ensino, expressa na Convenção da UNESCO de 1960 que diz que
a educação (artigo V, 1 a):
dentro dessa doutrina da proteção integral, a referida lei vai, ao longo do seu texto,
aprofundando e especificando os direitos mencionados nos artigos 3º e 4º, bem
como discorrendo sobre o modus operandi de sua garantia (...) E, embora se
constitua em instrumento jurídico, o ECA inova por possibilitar, ao nível
pedagógico, um processo de profunda mudança sócio-cultural e política (2003,
p.14).
A percepção sobre a infância, agora enquanto sujeito de direitos, opera uma mudança
que implica numa concepção diferenciada dos seus direitos e deveres. Para tanto família,
sociedade e Estado devem passar por uma reorganização das suas estruturas tornando-se
receptivos ao novo paradigma proposto.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
gestão da política pública que envolva os variados setores que atuam com a infância e
adolescência será possível a concretização dos princípios previstos no ECA.
Levando em conta que o Estado brasileiro reconhece a educação como direito humano
essencial, o ensino dos direitos humanos de crianças e adolescentes passa a ser uma prática
necessária para a concretização do preparo para o exercício da cidadania definido como uma
das finalidades da educação.
Este breve estudo pretendeu uma análise inicial a respeito do parágrafo 5º do artigo 32
da LDB, uma vez que a construção de uma sociedade democrática é um processo a ser
efetivado a partir da experiência de uma cidadania ativa.
7. REFERÊNCIAS
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 11ª ed. São Paulo: Ática, 1999.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6ª ed. rev. e
atual. São Paulo: Saraiva, 2008.
DEL PRIORE, Mary (org). História das crianças no Brasil. 6. ed., 1ª reimpressão – São
Paulo: Contexto, 2008.
OLIVEIRA, Maria M. de. Como fazer pesquisa qualitativa. Petrópolis: Vozes, 2007.
PALAVRAS INICIAIS
A leitura deste fragmento foi uma das provocações que instigaram-me a perscrutar o
mundo infantil das colônias italianas de Curitiba2. Ao refletir sobre o fato de que o universo
da infância nas colônias não havia desaparecido, mas que ele estava lá esperando por ser
revelado, visualizei a possibilidade de complementar os estudos sobre a imigração italiana
pelo viés da história da infância.
De modo geral, pouco se tem falado sobre a criança imigrante e descendente nas
regiões de colonização. Os aspectos que cercam as pesquisas realizadas principalmente a
1
Le incertezze, le inquietudini, le insoddisfazioni sono state continue, ma altrettanto frequenti sono stati gli
entusiasmi nel trovare tracce, contesti, relazioni in cui la figura bambina si stagliava nitida e forte, e la gioia di
avvertire che il mondo infantile di ieri non è scomparso, ma sta ancora lì, con i suoi non detti, che aspettano il
nostro ascolto.
2
Antonio Rebouças, Santa Maria do Novo Tyrol da Boca da Serra, Dantas (Água Verde), Santa Felicidade,
Alfredo Chaves criadas no ano de 1878. Pilarzinho, Eufrásio Correia, Maria José, Presidente Faria, Santa
Gabriela e Umbará, criadas depois do ano de 1880.
Neste sentido, o presente trabalho pretende apresentar uma breve análise do universo
brincante da infância nas colônias italianas de Curitiba. Busca compreender a infância
imigrante - especialmente a de seus descendentes - e a relação com os brinquedos e as
brincadeiras. Procura saber se existia um tempo lúdico nas colônias italianas e se esse tempo
era compartilhado pelo tempo produtivo do adulto. Assim, o estudo investiga qual era o
tempo do brincar nas colônias predominantemente agrícolas; que tipos de brinquedos eram
produzidos e com que recursos; quais eram as brincadeiras que permeavam o tempo da
infância e como eram aprendidas.
O recorte temporal estabelecido para esse estudo abrange as três primeiras décadas do
XX e corresponde ao período em que a primeira e a segunda geração de imigrantes instalados
nas colônias vivenciou sua infância. Momento também de grande desenvolvimento
econômico destas comunidades.
Com o propósito de analisar esta faceta da vida humana, localizei em algumas fontes
documentais vestígios da infância, mas foi na escuta das vozes que ressoam das crianças do
passado que encontrei os elementos para compreender o seu universo brincante. Assim,
recorri a memória, as lembranças do tempo da infância reveladas através de depoimentos
colhidos entre os descendentes da antiga colônia de Alfredo Chaves ou localizados em obras
bibliográficas sobre as demais colônias.
Maria Cristina Soares de Gouvêa afirma que um dos problemas para reconstruir o
passado da infância é que os documentos produzidos pelos adultos sobre a criança e sobre a
sua infância constituem se não exclusiva, a principal fonte para a escrita da história da
infância.
15) o termo infância é tomado como concepção ou representação dos adultos sobre o tempo
inicial da vida ou período vivido pela criança. A partir de representações, a infância é
materializada nas práticas cotidianas configurando os modos de tratar as crianças preparando-
as a vida adulta.
Claro está que as representações da infância coadunam-se com o contexto social,
cultural e econômico da qual está inserida. Logo, para compreender a história do passado da
infância é preciso olhar para a valorização que cada sociedade, cada época e cada ideologia
produziram sobre ela (BECCHI, 1994, p. 6). Assim, ao analisar o contexto verificou-se que a
história desta infância em específico é tecida à sombra do adulto. A definição da infância nas
colônias italianas estava estritamente relacionada à organização das famílias imigrantes nas
colônias italianas e aos seus modos de concebê-la. Os grupos de imigrantes italianos que
chegaram ao Paraná no século XIX são, na sua maioria, camponeses das províncias que
compõe a região do Vêneto, e em menor escala, da região do Trento.
Trazendo especificidades culturais provenientes de cada província, a identificação
como um grupo similar foi a condição social determinada pelo trabalho agrícola. A
organização social e cultural desses imigrantes, embora permeada por especificidades do novo
lugar, se deu de modo semelhante às comunidades rurais de suas regiões de origem.
Implantaram casas, trabalharam os lotes, reivindicaram do governo assistência médica,
religiosa e escolar.
Considerando, conforme Kuhlmann e Fernandes (2004, p. 24) que ainda que haja
certa distância entre a representação de infância sonhada pelos adultos e a infância real, cabe-
nos questionar que pistas foram deixadas por esses grupos de imigrantes, capazes de nos levar
a refletir sobre como a infância foi concebida e traduzida nas práticas.
Assim, atentando-se para as pistas, para os indícios, os sinais como denominou Carlo
Ginzburb (1998, p. 143), dos modos de brincar da infância nas colônias italianas procurou-se
trazer a tona aspectos mais notórios dessa infância. A pesquisa revelou um repertório amplo
de atividades e, além das brincadeiras espontâneas e regradas, faz parte desse conjunto lúdico
os brinquedos improvisados e produzidos com materiais recolhidos da própria natureza, as
filastrocche histórias e rimas infantis, e as atividades voltadas para a infância que evocavam
as superstições e crenças populares concebidas ainda nas regiões de origem daquelas famílias.
Nós era tudo pequeninho. Papai fez uma roda que tinha essa altura de cima mais ou
menos. Nós entrava na roda. Brincava. Pisava assim na roda, a roda rodava e nós
que pulava lá dentro. Nossa Senhora! Quanta brincadeira que nós fazia, a roda era
grande. Um dia ela desmoronou-se que queria cair e eu e o papai com vara, com
tanta coisa escoramos a roda grande que não caia, por favor (SIMIONI, 2003).
3
La casa, il lavoro e la escola definivano gli orrizzonti all’interno dei quali i bambini vivevano.
Além das brincadeiras livres, as brincadeiras regradas também eram executadas pelas
crianças, como a de “esconde-esconde” conforme revelou Maria Pia, em um excerto exposto:
“Como crianças após o jantar e um bom recreio de esconde-esconde, participávamos da
oração e em seguida o repouso” (FIOREZE, 2006 apud AZEVEDO et. al., 2006, p. 39).
Outras brincadeiras regradas também foram apontadas pelos depoentes como a amarelinha,
pedrinhas e três marias.
Além das brincadeiras livres e regradas, o ato de brincar pressupunha alguns objetos
transformados em brinquedos que configuravam a materialidade da brincadeira. No que se
refere a produção de uma história da infância a partir da conservação dos brinquedos, Maria
Cristina Soares de Gouvêa afirma que mesmo reconhecendo as dificuldades em manter e
localizar as produções infantis do passado, a possibilidade de encontrar brinquedos
produzidos para ou pela a criança não pode ser descartada, pois “os brinquedos,
especialmente, constituem fonte privilegiada para a compreensão da produção histórica de
uma cultura material infantil” (2009, p. 113).
A precariedade financeira das famílias imigrantes não impedia as produções dos
brinquedos, mas implicava nas apropriações de materiais colhidos na própria natureza. Na
maioria das vezes esses eram produzidos unicamente pelas próprias crianças, outras vezes,
com o auxílio dos adultos. Sobre a produção dos brinquedos, mesmo que as análises indiquem
para a universalidade das produções, é necessário levar em conta a singularidade na definição
dos materiais disponíveis nos diferentes contextos históricos (BENJAMIN, 1984 apud
GOUVEA et.al., 2009, p. 114).
A palha seca do milho, por exemplo, configurou-se como um recurso disponível no
contexto da maioria das colônias e era utilizada na produção de vários brinquedos pelas
crianças, entre eles, as bonecas e a peteca. A peteca, como explicava Ângela, era feita com a
palha seca do milho e com os grãos do próprio cereal. Primeiro se montava uma espécie de
bolsinha com as palhas, depois enchendo com os grãos, formava-se a base a qual sobre ela se
encaixaria algumas penas de galinha (SIMIONI, 2003).
Os meninos também construíam seus carrinhos com pedaços de madeiras,
aproveitados no corte da lenha que servia para manter o fogo utilizado no cozimento dos
alimentos. Relacionados ao universo masculino, os brinquedos eram as bolinhas de gude
(bulica), o peão, a bola de futebol (de meia), entre outros.
João nascido em 1914, neto de imigrantes italianos provenientes da província de
Vicenza, relembra como eram produzidos os seus brinquedos na infância:
Não tinha bola, a bola era feita com meia, enchia com qualquer coisa para ela ficar
meio dura e brincava. Depois era a bolinha de bulico. Andava com aquele bolso
cheio daquelas bolinhas que nos jogava e perdia. Tinha em Colombo um barzinho
que vendia da fábrica de vidro. Com um canudo de taquara despejava um pouco de
vidro e fazia assim, ela arredondava depois tirava colocava na toalha e deixava
esfriar e faziam assim (MASCHIO, 2003).
Outras delas exigiam para a sua execução uma interação física entre o adulto e a
criança. Nas filastrocche descritas abaixo, o adulto segurava uma das mãos da criança e
4
O dialeto falado pela maioria dos imigrantes e descendentes das colônias italianas aqui analisadas correspondia
ao modo de falar Vêneto devido à grande maioria daquelas famílias procederem das províncias que compunham
aquela região.
recitava a rima acariciando-a. Ao final do último verso o adulto deveria fazer os gestos
condizentes: produzir cócegas, pequenos tapas ou um simples balanço das mãos:
As rimas também poderiam ser cantadas por mais de uma criança, propiciando a
interação coletiva no ato do brincar. Nesta fillastroche abaixo, na recitação do último verso da
rima, deveria-se indicar o nome de outra criança e assim sucessivamente até que todas fossem
contempladas.
Como na passagem do Ano, na Festa da Befana pouco comum eram as crianças que
recebiam presentes. Geralmente, os pais providênciavam objetos que poderiam ser
encontrados nas próprias casas e no cotidiano das próprias famílias. De acordo com Silva
(2005, p. 131), “comprar e oferecer brinquedos é um hábito recente” entre os membros das
colônias rurais. A maior parte das famílias, e consequentemente, às crianças, tinham pouco
acesso a brinquedos industrializados e comprados prontos. Isso ocorria também pelo fato de
não disporem do valor dispensado na aquisição de brinquedos para um número elevado de
filhos, como era o caso da maioria das famílias imigrantes.
A Escrita da História, Universidade Estadual de Londrina
12 a 15 de Outubro de 2012
XIII Encontro Estadual de História ANPUH-PR| 47
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Marcos Leite de; D’AGOSTIN, Anadir; FIORESE, Maria Luiza. Do berço ao
mundo sob o olhar de Maria: vocações religiosas e presbiterais em Colombo. Curitiba:
Imprensa Oficial, 2006.
BALHANA, Altiva Pilati. Santa Felicidade: uma paróquia veneta no Brasil. Curitiba:
Fundação Cultural, 1978.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
DEPOIMENTOS
(1980 – 2000)
(Orientadora)
LINHAS INICIAIS
O Código de Menores de 1979, assim como o código anterior, tem sua base na
teoria da situação irregular, na qual os/as menores - crianças e adolescentes fora da
norma, ou seja, em situação de abandono e/ou de rua, carência, vitimização e de
infração penal - eram vistos como um grande problema social. Por isso pode ser
pensado como um meio de regularizar a situação do/a menor. O código dispõe sob
caráter de assistência, proteção e vigilância aos/as menores que até dezoito anos se
encontrassem em situação irregular, assim como também os com faixa etária entre
dezoito e vinte e um anos, em casos expressos em leis. Embora seja um código que trate
de forma direta o/a menor em situação irregular – a fim de normalizá-lo/a – pode ser
considerado como um meio termo em relação à proteção integral. Diferente do Código
de Menores anterior, o Código de 1979 apresentava no seu primeiro artigo que as
medidas de caráter preventivo aplicavam-se a todos os sujeitos com idade inferior a
dezoito anos, independente de sua situação.
Em seu artigo 2º, o Código de 1979, considerava o/a menor em situação
irregular quando:
I - privado de condições essenciais à sua subsistência,
saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente,
em razão de:
a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável;
b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para
provê-las;
Il - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos
pelos pais ou responsável;
III - em perigo moral, devido a:
a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário
aos bons costumes;
b) exploração em atividade contrária aos bons costumes;
IV - privado de representação ou assistência legal, pela
falta eventual dos pais ou responsável;
V - Com desvio de conduta, em virtude de grave
inadaptação familiar ou comunitária;
VI - autor de infração penal.
o artigo 14º apresentava como medidas aplicáveis pelo poder judiciário: a advertência, a
entrega aos pais ou responsável, colocação em lar substituto, imposição do regime de
liberdade assistida, colocação em casa de semiliberdade, internação – de acordo com as
especificidades de cada caso – em estabelecimento educacional, ocupacional,
psicopedagógico, hospitalar, psiquiátrico. Não podemos esquecer que toda medida
aplicável visava à integração sócio-familiar do/a menor.
A colocação em lar substituto era regulamentada por um conjunto de subseções
que agrupavam desde o artigo 17º até o 37º e poderia ser aplicado de acordo com cada
caso, variando entre delegação de pátrio poder, guarda, tutela, adoção simples e plena.
A liberdade assistida advinda do artigo 38º era aplicada com o objetivo de vigiar,
auxiliar, tratar e orientar o/a menor. Assim, a autoridade judiciária fixava regras de
conduta ao/a menor e designava uma pessoa ou serviço especializado para acompanhar
o caso. Em sequência, o artigo 39º, abordava a colocação do/a menor em casa de
semiliberdade, essa era encarada como uma forma de transição/ retorno para o meio
social, por isso deveria utilizar os recursos oferecidos pela comunidade, como
escolarização e profissionalização. Por fim, a internação, tratada nos artigos 40º e 41º,
somente poderia ser aplicada se fossem inviáveis as demais medidas, sendo que o/a
menor deveria ser enviado/a a um estabelecimento adequado e somente na falta deste
poderia ser colocado em estabelecimento destinado a maiores, desde que as instalações
fossem apropriadas e garantissem a incomunicabilidade entre ambos.
Em seu artigo 2º o Estado estabelece, para efeitos dessa legislação, uma divisão etária
entre crianças e adolescentes: no primeiro grupo ficam indivíduos com até doze anos de
idade incompletos e, no segundo, aqueles/as que tenham entre doze e dezoito anos de
idade. A divisão entre esses dois grupos, tendo por base a faixa etária, faz-se importante
para pensar a questão da infração. Para as crianças, que fazem parte do primeiro grupo,
são destinadas apenas às medidas de proteção. Enquanto o segundo grupo, os/as
adolescentes, quando considerados/as infratores, não podem ser responsabilizados/as
penalmente, somente medidas sócio-educativas podem ser tomadas, e essas têm em
vista a reinserção social e o fortalecimento de vínculo familiar.
O estigma “menor” é deixado para trás com o advento do Estatuto da Criança
e do Adolescente. Embora, no senso comum, ainda se ouça a expressão “menor”
principalmente quando relacionada aos casos de infrações. O ato infracional é
caracterizado no artigo 103º, quando a conduta descrita equipara-se ao crime ou
contravenção. Em sequência, o artigo 104º afirma que sujeitos com idade inferior a
dezoito anos são inimputáveis. Porém, quando confirmada a prática, a autoridade
competente poderá aplicar aos/as adolescentes, conforme o artigo 112º, como medidas:
advertência, a obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade,
liberdade assistida, internação em estabelecimento educacional. O artigo 117º aborda a
questão da prestação de serviços à comunidade, que consiste na realização de tarefas
gratuitas, de interesse geral, em que o período não poderá exceder a seis meses e deve
acontecer de tal modo que não prejudique a frequência escolar ou a jornada de trabalho.
A liberdade assistida abrange os artigos 118º e 119º, tal medida é utilizada quando se
afigurar como mais adequada o acompanhamento, auxilio e orientação ao adolescente.
Não pode exceder a seis meses, sendo que esse período pode ser prorrogado. Ao/a
orientador/a cabe supervisionar a frequência, o aproveitamento escolar e sua inserção no
mercado do trabalho. O artigo 120º trata do regime de semiliberdade, que pode ser
determinado desde o início como forma de transição para o meio aberto e não comporta
prazo determinado. E, por fim, a internação, artigo 121º, que constitui em medida
privativa de liberdade e deve respeitar à condição de pessoa em desenvolvimento. A
medida não estabelece prazo determinado, mas sua manutenção deve ser reavaliada a
cada seis meses e em nenhuma hipótese poderá exceder três anos. O artigo 122º afirma
que a medida de internação só pode ser aplicada quando o ato infracional cometido é
considerado de grave ameaça ou de violência à pessoa, por reiteração no cometimento
de outras infrações graves ou por descumprimento da medida anteriormente imposta.
No que diz respeito ao estabelecimento, o artigo 123º assegura que a entidade deve ser
exclusiva para adolescentes, assim como obedecer a critérios de separação por idade e
gravidade da infração. E por último o artigo 185º, que decreta que a internação não pode
ser cumprida em estabelecimento prisional.
A narrativa, a partir desse momento, focará na construção discursiva da
imprensa em relação a criança e o adolescente autor de infrações, e assim, perceber e
analisar como suas imagens são construídas, como seus comportamentos são
representados e o que esses sujeitos representam para a sociedade. Assim, as lentes
serão ajustadas para perceber as diferentes formas de lidar com a questão das infrações
cometidas por crianças e adolescentes, antes e depois do Estatuto da Criança e do
Adolescente. Abre-se espaço para os personagens principais dessas linhas, as crianças e
adolescente que foram noticiados nos jornais ao cometerem algum tipo de infração.
1
Menores colocam em alerta a policia no sul. Jornal Tribuna Criciumense, 10 de novembro de 1984.
Edição 1532, p 4.
2
Herói ou bandido? Jornal da Manhã, 12 de outubro de 1985. Edição 110, p 4.
Mesmo que não tenha sido apresentada uma solução plausível, cabe
lembrar um parágrafo do livro “Leão da chácara”, escrito por João
Antonio, e que expressa muitas vezes o que sente um delinquente
infantil: “aguentava frios nas pernas, andava de tênis furado, olhava
muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas,
quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era
ver e desejar. Parasse aí” 4
A década de 1980, com o final da ditadura no Brasil, foi marcada por várias
denúncias de práticas punitivas em exagero contra crianças e adolescentes. A partir
desses fatos, somados aos movimentos sociais pós-ditadura, anunciou-se o Estatuto da
Criança e do Adolescente, em 1990. A concepção de que as crianças e os adolescentes
são sujeitos de direito começa a ser percebida nos jornais da cidade de Criciúma nesse
período. Embora, não de maneira tão evidenciada. Pode-se perceber, também, a redução
da utilização termo “menor” nas páginas dos jornais. Novos termos começam a
aparecer: crianças, meninos de rua, delinquente infantil. Embora seja importante
ressaltar que o termo continuava sendo utilizado, principalmente quando vinculado aos
atos infracionais.
3
Os meninos destas ruas, Jornal da Manhã, 03 de outubro de 1989. Edição 1078, p 7.
4
Idem
Apesar de ser chamada de “Gang Mirim” pela delegada essas crianças que
tinham entre oito e treze anos, não podiam ser comparadas com Rodrigo, quinze anos.
Rodrigo apareceu várias vezes nos jornais, tinha várias passagens pelo Primeiro e
Segundo Distrito Policial e também na Delegacia da Mulher. “Ele era o terror dos
comerciantes do centro da cidade.” 6 Ah, o Rodriguinho, velho conhecido da população,
da polícia, dos jornais. Rodriguinho apareceu em algumas reportagens, desde os sete
anos de idade iniciou sua vida no que o jornal chamou de “submundo do crime”. Aos
doze anos já era conhecidíssimo da polícia com várias passagens em decorrência de
furtos e arrombamentos. Várias reportagens narravam os feitos de Rodriguinho, que
mesmo com tantos crimes nunca foi recolhido a um estabelecimento de reeducação para
reintegrá-lo a sociedade. Talvez, como aponta o próprio jornal, a solução seria:
5
Polícia prende quadrilha de menores. Jornal da Manhã. 15 de agosto de 1990. Edição 1334, p 12.
6
Menor pratica furtos e atemoriza comércio, Jornal da Manhã, 11 de novembro de 1991. Ed 1695, p 4.
7
Os Rodriguinhos de nossas ruas. Jornal da Manhã, 30 de novembro de 1994. Edição 2677, p 2.
8
Crianças infratoras preocupam autoridades. Jornal da Manhã, 17 de novembro de 1994.
Edição 2666, p 8.
9
Presídio não recupera menores, Jornal Tribuna Criciumense, 17 de janeiro de 1976. Edição 1101, p 10.
Menores são soltos por falta de lugar adequado. Jornal da Manhã, 03 de agosto de 1994.
Edição 2581, p 10.
10
Menores são presos na cela 30 do Santo Augusta. Jornal da Manhã, 20 – 21 de abril de 1996.
Edição 3083, p 9.
LINHAS FINAIS
11
Menores aterrorizam a cidade com furto, tóxicos e aids. Jornal da Manhã, 03 de fevereiro de 1992,
Edição 1755, p 10.
FONTES DOCUMENTAIS.
Menores são soltos por falta de lugar adequado. Jornal da Manhã, 03 de agosto de 1994.
Edição 2581, p 10.
Edição 2677, p 2.
REFERÊNCIAS
Disponível em http://www.historiaehistoria.com.br/materia.cfm?tb=alunos&id=301
AREND, Silvia Maria Fávero. Filhos de Criação: Uma História dos menores
abandonados no Brasil (década de 1930). (Tese de Doutorado) UFRGS, 2005.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. São Paulo: LCT, 1981.
D’INCAO, Maia Ângela. Mulher e família burguesa. História das mulheres no Brasil.
Org PRIORE, Maria Del. São Paulo: contexto. 1997.
PRIORE, Mary Del (org). História das crianças no Brasil. São Paulo. Contexto. 1996.
INTRODUÇÃO
histórica do Município bastante diverso, vem a contribuir para uma visão sobre o ensino
da História, e suas possibilidades para a formação de uma identidade histórica, que se
desvela diariamente em sala de aula na rede Municipal.
Para tanto este trabalho está organizado da seguinte forma: inicialmente fazemos
uma breve análise da história do ensino de História na educação brasileira; em seguida,
abordamos no ensino de história os conceitos de história do local e a história local; e
finalmente buscamos os conceitos de identidade histórica, concluindo pela importância
cada vez maior da abordagem e valorização da história local, marco pontual no processo
de formação da identidade histórica para o jovem neste início de um novo século.
Uma diferenciação fundamental e algo não muito claro ainda para muitos;
porém, fundamental para o ensino de história, principalmente nas séries iniciais da
educação básica, 1º e 2º ciclo, refere-se aos conceitos de história do local e histórica
local.
Como história do local podemos definir como a própria história do Município,
sua organização e desenvolvimento.
1
MATTOZZI, Ivo. A História ensinada: educação cívica, educação social ou formação cognitiva?
Revista Estudo da História. Associação dos Professores de História (APH), n.3, out. 1998. Dossiê: O
Ensino de História: problemas da didática e do saber histórico.
3. IDENTIDADE HISTÓRICA
4. CONCLUSÃO
5. REFERÊNCIAS
BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. 11. ed. São Paulo:
Contexto, 2006.
Este trabalho tem por intuito discutir como alguns jovens da “periferia” de Foz
do Iguaçu/PR tecem suas relações entre si e com o próprio bairro. As diversas formas
pelas quais estes sujeitos organizam e pensam suas vivencias nos levaram a pensá-las
para além de alguns estereótipos e categorias que, ao que tudo indica, não servem de
instrumento de analise, e nem de modelo de explicação para pensar a multiplicidade de
experiências desses jovens.
Este trabalho está em fase inicial, grande parte das perguntas que me levaram
realizar tal pesquisa se devem ao fato de eu ser um morador dessa localidade e não
concordar com algumas abordagens que procuram sempre encontrar explicações globais
para pensar não só a questão da juventude, mas a juventude ligada a áreas ditas
periféricas. Explicações que buscam encontrar muitas vezes um “remédio” para acabar
com os males desse ambiente “nefasto” que é a periferia. Ambiente que leva quase que
sem outra sorte a maioria dos jovens dessas localidades a se tornarem potenciais
criminosos.
Miriam Abramovay (2004) ao trabalhar com jovens das cidades-satélite de
Brasília aponta que:
A vida na periferia impõe uma existência marcada pela rotina, com graves
limitações as atividades de lazer, seja pelas precárias condições de infra-
estrutura das cidades, seja em virtude da falta de dinheiro. De fato, esses
jovens contam com poucas possibilidades de diversão, de praticar esportes e
de utilizar, de maneira geral a sua criatividades. Frequentemente restam
poucas alternativas alem da pratica de atos ilícitos e do consumo de drogas e
de bebidas alcoólicas que, ao mesmo tempo, representam uma forma de
diversão e, por outro lado, são constitutivos de um ambiente de violência que
coloca novas restrições ao exercício do lazer. (Abramovay, 2004 p.49 a 50).
Procuro romper com uma leitura pessimista sobre jovens moradores de áreas
periféricas que partem de uma perspectiva sociológica afirmando que há uma crise de
valores tanto na sociedade e na juventude. Busco traçar outro “perfil” desses jovens com
os quais procuro dialogar sobre suas experiências. Todavia não pretendo criar
simplesmente uma leitura alternativa às outras já existentes. O que quero é mostrar que
esse jovem é múltiplo, suas praticas e experiências não são unas, as formas com as quais
eles tecem suas teias de sociabilidades não são únicas e dependem de fatores que não
podem ser explicados apenas pelo viés da desilusão e da classe social ou simplesmente
pela ausência de um estado provedor de benefícios.
Assim, o lançar meu olhar sobre essa localidade e sobre as vivencias desses
jovens optei por utilizar como fontes depoimentos orais, pois é uma forma mais direta
de lidar com as trajetórias de vida desses sujeitos e como eles interpretam e dialogam
com essa realidade, como eles reelaboram e dão significado às suas vivencias. Essa
opção não se dá única e exclusivamente pelo fato de eu querer “dar voz” a estes
sujeitos, mas sim num dialogo mais próximo com suas experiências.
Nesse sentido, ela aponta que devemos “lidar com as narrativas como práticas
que se forjam na experiência vivida, e que também intervêm nela”, para que, dessa
forma, possamos “apreender o trabalho da consciência e incorporá-lo na explicação
histórica”. Pois “ao narrar, as pessoas interpretam a realidade social vivida, construindo
enredos sobre essa realidade, a partir de seu próprio ponto de vista”. Pois, isso pode nos
mostrar que os “significados que se forjam na consciência de cada um, ao viver a
experiência, que é sempre social e compartilhada, e buscamos explorar modos como
narrativas abrem e delineiam horizontes possíveis na realidade social”. (Khoury, 2004 p.
125).
O Porto Meira – hoje conhecido como a região da Grande Porto Meira, devido
às suas dimensões se constitui com aproximadamente trinta e dois bairros, com uma
população aproximada de mais de 40 mil habitantes, – localiza-se na região sul da
cidade de Foz do Iguaçu/PR. Está separada pelos rios Paraná e Iguaçu do Paraguai e da
Argentina, respectivamente.
Essa localidade pode ser entendida como um local de constante disputa pelos
espaços, tanto nas ocasiões de invasões de terrenos por parte de moradores em busca de
uma moradia, como da especulação imobiliária, com áreas reservadas para gerar
grandes lucros para seus detentores.
Ao que tudo indica devemos tomar alguns cuidados para não naturalizarmos a
os processos históricos nos quais estão envolvidos estes sujeitos. As trajetórias de vida
dos jovens que já entrevistei e que entrevistarei futuramente sinalizam para formas de
interação muito singulares do ponto de vista individual, mas que também não podem ser
entendidas se retiramos estes atores de seu espaço, do lugar onde vivem, entretanto
procuro salientar que o meio não determine as suas ações, mas sempre pensado estas
questões de forma relacional, já são estes sujeitos que constroem o bairro, imprimem
suas maracas e utilizam seus espaços de formas diversas.
Estas são algumas das questões que nos guiam nesta pesquisa neste momento,
muitas das afirmações feitas acima se devem ao fato de já estar trabalhando com esta
temática anteriormente, durante o meu trabalho de conclusão de curso realizado no ano
de 2009 nesta mesma instituição. Enfim, muitas das questões levantadas acima são
partes de uma reflexão anterior e estão sendo discutidas novamente levando em conta
todas as contribuições feitas pela banca e no dialogo com as disciplinas realizadas neste
primeiro semestre no mestrado e meu orientador.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KHOURY, Yara Aun (org). Outras Historias: Memórias e linguagens. São Paulo:
Editora Olho D’água, 2006
sociedade como um todo para o destino dos sujeitos objetos deste estudo. Tal contexto
se alia a outro, não menos importante, porém pouco analisado pela produção
historiográfica feirense: a abolição da escravidão e a incorporação da mão de obra livre-
assalariada nos centros urbanos em desenvolvimento.
O cotidiano destes menores se deu nas ruas, nas vielas, nos becos, nas
praças, na feira. Numa Feira ansiosa por mudanças em suas estruturas físicas e hábitos
de uma população mista, uma elite econômica e letrada feirense buscava destruir certa
1
Disponível no site do IBGE, sessão Documentos Históricos. Arquivo: “População do Brazil por
Municípios e Estados (1907 – 1972)”.
ordem rural que remontava às origens desta urbe, na intenção de prepara-la para receber
as luzes do progresso que já haviam iluminado outras cidades do Brasil. “A nova
cidade, em considerável desenvolvimento urbano, já não podia permitir que
determinadas práticas continuassem em voga pelas suas ruas” (OLIVEIRA, 2000: 14).
Mas foi no cotidiano desta cidade que os meninos pobres e abandonados sujeitos deste
trabalho inventaram as artimanhas e táticas2 necessárias para contrariar o progresso
ansiado pelos grupos dominantes locais (imprensa, políticos, intelectuais). Neste
sentido, buscamos “analisar as práticas microbianas, singulares e plurais, que um
sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu
perecimento”. Além do mais, desejamos
2
Lançamos mão dos conceitos de estratégia e tática encontrados em Certeau (2009), entendendo por
estratégia o conjunto de forças possíveis na medida em que um sujeito que detém o poder (econômico,
científico, político) se isola em um ambiente próprio que o possibilita gerenciar uma exterioridade distinta
da sua através dos discursos, das leis, das regras, de códigos, etc. Por outro lado, as táticas são cálculos
que independem de um lugar próprio e de um discurso formulado. Assentam-se nas decisões, no tempo,
extraindo elementos estranhos do forte para alçar possibilidades de ganho.
3
Dentre outros, ver MATTOS (1995) e CONRAD (1978).
dos pés. [...] Constantemente se tem victima a lastimar, que tem pago, até com a vida, o
terrível gosto de pongar os trens [...] quando em andamento”. (O Município,
30/04/1909; “Accidente”, p.1). Muito comum entre os meninos esta modalidade de
entretenimento, visto que na “ponga” são testadas qualidades típicas do ser masculino,
como a coragem, a força e a ousadia4. O personagem desta trama, diferente de outros,
como a própria notícia sugere, escapou com vida da experiência de pongar os trens. Mas
quais teriam sido as sequelas resultantes dos pés esmagados? Desconhecemos, mas
certos estamos de que tais atitudes eram reprimidas via imprensa pelos “amantes do
progresso” de Feira de Santana, uma vez que sujeitos como Severiano eram
denominados de “menores vadios a quem os paes não dão ocupação nem educação”
(idem.).
4
Numa perspectiva de gênero, as sociedades distinguem, culturalmente, a partir de um processo de
naturalização sexual, os homens das mulheres e a cada um destes atribuem identidades, frutos de
construções sociais históricas. Entendemos o gênero, portanto, enquanto um constituidor social de
identidades de homens e mulheres que impõe, no âmbito do cotidiano, divisões sexuais para atributos
socioculturais (classe e etnia) na formação dos indivíduos (DIAS, 1997). Embora não desejemos engessar
a discussão em papéis atribuídos a cada um dos gêneros, enquanto as meninas trazem a marca de ser
mulher, os meninos, por sua vez, herdam como atributos identitários, dentre outros, a força, a dominação,
a responsabilidade e independência.
proletariados, não sobra tempo para cuidares dos filhos” (Folha do Norte, 02/04/1911;
“Salvação d’almas”, p. 1).
da meninada.
O que era para ser visto enquanto um desporto culto (o futebol era bem
representado pelos clubes de regatas e associações desportivas, principalmente na Bahia
e no Rio de Janeiro), passa a ser tido como elemento desagregador: o futebol praticado
pelas “maltas de garotos” nas ruas da urbe feirense em nada contribuía para o
desenvolvimento da cidade. Muito pelo contrário, atrasavam seu rumo à civilidade
graças às descomposturas dos meninos.
Vale acrescentar outro dado a este debate. Muito possivelmente estes grupos
de garotos que se utilizavam do espaço urbano para vivenciar seu cotidiano através das
brincadeiras eram compostos não só por meninos pobres, abandonados, órfãos,
mendigos, etc., mas também pelo que vamos chamar aqui de “meninos de família”. Em
notícia publicada no ano de 1926, intitulada “Repressão a vadiagem”, colhemos
indícios deste fenômeno:
A notícia sugere que, por certo período, o badogue desapareceu das ruas de
Feira de Santana. Desconhecemos as medidas que poderiam ter efetivado tal afirmação:
teriam as autoridades policiais retirado este artefato das mãos dos meninos?! Ou a
fiscalização, nas artérias de maior circulação da cidade, passou a ser mais recorrentes,
inibindo assim a ação dos garotos? Desconhecemos e desacreditamos em qualquer uma
destas possibilidades. Possivelmente o conjunto das estratégias dos grupos dominantes
ainda não estava tão voltado assim para os meninos nas ruas enquanto um incômodo
desenfreado para os interesses civilizatórios e progressistas da Feira de Santana. Afinal
de contas, SIMÕES (2007) já havia sinalizado para as prioridades dos detentores do
poder no que tange o enquadramento da cidade no rol das urbes mais desenvolvidas do
país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, Acácia Batista. A família como palco da violência sexual. Cadernos do CEAS,
1995-1998.
Salvador, 2011.
2003.
Salvador.
comportamento do indivíduo. A sociologia, por sua vez, faz uso do termo juventude
para designar as funções sociais assumidas pelos indivíduos na sociedade.
Os termos adolescência e juventude, apesar da aparente similaridade, são
dotados de sentido bem específico, perceptíveis através de análise que considere
também o uso cotidiano dos termos. Numa abordagem desse tipo, os termos em questão
denominam fases subsequentes do desenvolvimento individual, estando “a adolescência
ainda próxima da infância, a juventude mais próxima da maturidade” (GROPPO, 2000:
13-14). O uso do termo juventude não é isento de críticas. Centremo-nos em dois
grupos específicos delas. No entendimento de alguns, o conceito é demasiadamente
generalista, carecendo de melhor definição. Outro tipo de crítica diz respeito ao caráter
ideológico do conceito. Segundo os partidários desta visão o conceito ocultaria
realidades construídas por estrutura de classe ou estratificações sociais. É ponto
consensual que juventude é mais do que uma faixa etária, pois se assim não fosse, seria
impossível a utilização do termo em casos como “Juventude Comunista”, “juventude do
samba” e outros sentidos que a sociedade vai atribuindo na vivência cotidiana. Temos,
então, que o critério etário é insuficiente para explicar o uso da categoria em questão,
embora tal critério esteja sempre presente. Uma segunda possibilidade seria a de classe
social. Essa, porém, é logo descartável, pois seria impensável uma classe social formada
por indivíduos de uma faixa etária semelhante. Apesar de todos os esforços
empreendidos em diversos setores das Ciências Humanas, as definições de juventude
giram em torno de dois critérios principais, de difícil equalização, o critério etário e o
critério sociocultural (GROPPO, 2000).
À luz das considerações traçadas e das contribuições dos autores anteriormente
mencionados, a análise terá como marco inicial o projeto de universidade proposto pela
Reforma Universitária de 1968 no Brasil. Esse projeto pode ser definido como
tecnocrático e direcionado aos interesses do capital. Podemos indicar, acompanhando a
discussão de Bomeny (1994), alguns antecedentes da reforma de 1968. A criação da
Universidade de Brasília (UnB) em 1961, bem como a elaboração da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) são considerados marcos importantes desse
movimento.
O ano de 1968, tão carregado de simbologia no que concerne à participação
política juvenil, sobretudo em razão dos eventos conhecidos como Maio de 68, tem
* * *
O ano de 1975 foi marcado pela escalada da repressão, sobretudo nos estados de
São Paulo, Paraná e Santa Catarina, tendo por objetivo oficial desmantelar o Partido
Comunista e por resultado concreto sufocar o mínimo de liberdade de expressão que
vigorava. No plano interno, a UEL era um excelente símbolo da autonomia de Londrina
frente a política estadual e federal. Nesse sentido, segundo Silva (1996: 157), “a
Universidade apresentava-se como um território propício para servir de cabeça de ponte
para a mudança da situação”. Com o fito de realizar tal virada foi indicado Oscar Alves
(10/06/1974 a 10/06/1978) para a Reitoria (SILVA, 1996).
Entre 1976 e 1978 a repressão continuou intensa. A AESI permaneceu vigilante
e dedicada ao seu trabalho de desestabilizar a atuação do movimento estudantil. Dois
fatores explicam a desmobilização do grupo Poeira. De um lado, o grupo se dispersa em
razão da renovação em seus quadros. Conforme os veteranos concluem seus cursos,
buscam uma inserção na vida profissional, conduzindo-os a um natural afastamento da
REFERÊNCIAS
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Soc., São Paulo, v. 9, n. 26, p. 51-59, Out. 1994.
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Londrina: UEL, 1991.
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GROPPO, Luís Antonio. Juventude: Ensaios sobre Sociologia e História das
Juventudes Modernas. Rio de Janeiro: Difel, 2000.
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RIDENTI, Marcelo. Juventude. In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos;
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do Pensamento da Direita: Ideias, Instituições e Personagens. Rio de Janeiro:
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A EXPERIÊNCIA DOS INGÊNUOS NO PARNANÁ
(1871-1888).
1
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estratégias de sobrevivência familiar em épocas de transição. 1871-1895. Campinas: Área de Publicações
CMU/UNICAMP, 1997.
2
MENDONÇA, Joseli M. N. Entre a mão e os anéis: a Lei dos Sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil. 2ª edição. Campinas: Ed. Unicamp, 2008, p. 48.
restrições postas à liberdade ofertada aos egressos do cativeiro. Este modelo de liberdade
“bem dosada” propunha que as medidas abolicionistas não provocassem sérias alterações na
hierarquia social, tendendo a considerar o ingênuo unicamente como trabalhador útil ao
senhor de sua mãe, diferentemente das demais crianças livres, para as quais eram projetadas
estratégias de formação capazes de torná-las cidadãs da sociedade livre então em
desenvolvimento 3.
A experiência de liberdade dos ingênuos envolveu a inserção dos mesmos em espaços
escolares? É partindo desta indagação que me proponho a delinear a maneira como ocorreram
as relações de alguns ingênuos da Província do Paraná com as práticas de instrução ofertadas
pela esfera pública de ensino. Para tanto, parto de evidências contidas na documentação
oficial local, preferencialmente a documentação escolar contida nas correspondências de
governo armazenadas no Arquivo Público do Paraná tendo em vista compreender o modo
com o qual a presença de ingênuos pôde ser notada no cotidiano escolar da província. Além
disso, visando conhecer as propostas de instrução formal dirigidas aos ingênuos, pensadas
pelas autoridades, faço também uso da legislação e escritos de grandes abolicionistas do
período como Joaquim Nabuco e Perdigão Malheiros, buscando também resgatar a maneira
como a historiografia identificou outros pareceres sobre a questão.
A concepção moderna de infância teve íntima relação com os processos de
escolarização intensificados também nesse período. De acordo com Faria Filho 4, os sujeitos
responsáveis pela construção da instituição escolar influenciaram em grande medida a
produção do discurso da infância como fenômeno social. Sendo assim, a história da infância é
também o estudo das instituições criadas para serem espaços da infância 5. A função social da
escola atrela-se à responsabilização pela educação e instrução, vistos de maneira distinta por
se separar a amplitude de práticas educativas – referentes, de modo geral, a transferência de
conteúdos de princípios de conduta 6 – das práticas de instrução, voltadas ao ensino elementar
da leitura, escrita, cálculo, entre outros saberes, na maioria das vezes, divulgados pela escola.
3
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras: uma análise a partir do Congresso Agrícola do
Rio de Janeiro e do Congresso Agrícola do Recife, em 1878. Anais do III Congresso de História da Educação,
2004, p. 06
4
FARIA FILHO, Luciano Mendes. “Escolarização da infância brasileira: a contribuição do bacharel Bernardo
Pereira de Vasconcelos” in: FARIA FILHO, Luciano Mendes; INÁCIO, Marciliane Soares (org). Políticos,
Literatos, Professores, Intelectuais: o debate público sobre educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: Mazza
Edições, 2009, p.21.
5
Idem, p. 22.
6
FONSECA, Marcus Vinícius. “Educação e Escravidão: um desafio para a análise historiográfica”. In: Revista
Brasileira de História da Educação. Edição de Julho/ Dezembro, 2002, p. 125
Aqui, será priorizada a noção de instrução, por estar intimamente associada com as práticas
escolares no final do século XIX.
Esta comunicação se dividirá em três etapas. Primeiro, me dedico a discutir a Lei do
Ventre Livre de modo a compreender a categoria “filho livre de mulher escrava” como grupo
social distinto, para em seguida se aproximar daquilo que foi proposto para o futuro dos
menores então nascidos após a promulgação da lei. Nesse sentido, através da historiografia
busco conhecer os projetos pensados para esse grupo na esfera educacional. Por fim, procuro
analisar a maneira como ocorreu a inserção dos ingênuos paranaenses em espaços públicos de
instrução através da documentação escolar provincial.
7
ALANIZ, Anna Gicelle García.op. cit, p. 23.
8 8
CRETELLA JR. Curso de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1968. Apud. ALANIZ, A. G. G.
Ingênuos e Libertos. idem
9
“Constituição Política do Império do Brazil.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao24.htm
10
Lei n.º2040 de 28.09.1871; Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM2040-1871.htm
11
ALANIZ, Anna G. G. op. cit, p. 41
12
“Constituição Política do Império do Brazil.” Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao24.htm
entretanto, que neste caso, o ingênuo fosse encaminhado Associações ou Juízes de Órfãos, os
quais teriam a oportunidade de explorar o trabalho dessas crianças e/ou encaminhá-las para a
educação:
Art. 2.º - O govêrno poderá entregar a associações, por êle autorizadas, os filhos
das escravas, nascidos desde a data desta lei, que sejam cedidos ou abandonados
pelos senhores delas, ou tirados do poder dêstes em virtude do Art. 1.º- § 6º.
§ 1.º - As ditas associações terão direito aos serviços gratuitos dos menores até a
idade de 21 anos completos, e poderão alugar êsses serviços, mas serão
obrigadas:
1.º A criar e tratar os mesmos menores;
2.º A constituir para cada um dêles um pecúlio, consistente na quota que para
êste fim fôr reservada nos respectivos estatutos;-
3.º A procurar-lhes, findo o tempo de serviço, apropriada colocação.
§ 2.º - A disposição dêste artigo é aplicável às Casas dos Expostos, e às pessoas
a quem os juízes de órfãos encarregarem da educação dos ditos menores, na
13
falta de associações ou estabelecimentos criados para tal fim.
13
Lei nº 2040 de 28 de Setembro de 1871. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LIM/LIM2040-1871.htm
14
RAMOS, Claudia Monteiro da Rocha. A escravidão, a educação da criança negra e a Lei do Ventre Livre
(1871) e pedagogia da escravidão. Dissertação de Mestrado defendida na UNICAMP. Campinas, SP: s.n, 2008.
15
MENDONÇA, Joseli M. N.op. cit.
Como bem destacou Alaniz, o projeto educacional pensado para os ingênuos nesta
ocasião, em muito se diferencia daquele proposto para as outras crianças livres, na medida em
que nesse caso era recorrente um modelo de educação voltado para os conhecimentos do
aprendizado básico somente, permeado pelo aprendizado de ofícios. Considerações como esta
sustentam a ideia de um projeto de abolição caracterizado por uma perspectiva de hierarquia
social muito semelhante ao escravismo, onde os libertos permaneceriam nas condições de
subjugo.
As visões sobre a formação específica para os filhos livres de mulher escrava, voltada
para as habilidades no trabalho, se inserem na perspectiva de civilização e correção dos
egressos do cativeiro. Mendonça 18 que quando se discutiam a respeito do encaminhamento de
ingênuos e libertos para estabelecimentos especiais, os parlamentares reconheciam a
ineficiência do Estado em não promover o acolhimento daqueles que saíam da escravidão.
Pouco mais de uma década depois da aprovação da Lei do Ventre Livre, um debate falava da
19
existência de 400.000 ingênuos no território nacional , número intensificador de propostas
16
ALANIZ, Anna Gicelle Garcia. Op. cit.
17
ESCOBAR, F. R. juiz de Direito da comarca de Ytu – 11/06/1888. Apud. ALANIZ, Anna Gicelle García. Op.
cit, p. 52
18
MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Op cit
19
Idem, p. 109.
20
Idem [nota 80] pp. 109-110.
21
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras: uma análise a partir do Congresso Agrícola do
Rio de Janeiro e do Congresso Agrícola do Recife, em 1878. Anais do III Congresso de História da Educação,
2004.
22
Idem, p. 06.
O material analisado por Peres sugere que mesmo entre aqueles que se propunham
defender a emancipação dos escravos a perspectiva da projeção de um futuro marcado pela
subordinação para os libertos e ingênuos permeava os discursos. É nesse sentido que as obras
dos grandes abolicionistas nos auxiliam na problematização dos ideais de abolição
predominantes nos últimos anos da escravidão nacional.
Joaquim Nabuco se insere em tais perspectivas por constituir-se como um dos mais
notáveis abolicionistas atuantes no âmbito político do período. Parlamentar da década de 1870
sintetizou suas considerações acerca da tão necessária abolição do trabalho escravo no Brasil
23
A Instrução Pública, 05/05/1872, p. 25-26; apud. GONDRA, José Gonçalves & SCHUELLER, Alessandra.
Educação, poder e sociedade no império brasileiro. Biblioteca Básica de História da Educação, v. 1, São: Paulo:
Cortez, 2008; p. 251.
24
PERES, Eliane. “Sob(re) o silêncio das fontes: a trajetória de uma pesquisa em história da educação e o
tratamento das questões étnico-raciais”. In: Revista Brasileira de História da Educação. Edição de Julho/
Dezembro, 2002
25
Material do clube Abolicionista de Pelotas. Apud, idem, p. 95
Suas declarações mais uma vez evidenciam o quanto o ideal de liberdade projetado
aos ingênuos esteve atrelado posturas que defendiam uma hierarquização da sociedade de
maneira muito semelhante ao quadro social escravista. Os libertos e ingênuos assumiriam a
condição de trabalhadores úteis para servir. Portanto, de modo algum a igualdade era um
elemento que necessariamente se atrelava a liberdade. Seguindo esta perspectiva o melhor
plano para a instrução destes indivíduos era aquele caracterizado pela associação entre
aprendizado primário com o conhecimento de ofícios. Algumas experiências desta
26
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Best-Bolso, 2010, p. 38
27
Idem, p. 58.
28
MALHEIROS, Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio político, jurídico e social. Petrópolis: Vozes, INL,
1897.
29
Idem, p. 156.
modalidade educacional no Paraná podem elucidar o formato prático com que tais projeções
foram concretizadas num contexto peculiar de escravidão.
30
De acordo com o Regulamento da Instrução Pública da Província do Paraná a “idade escolar” se iniciava aos 8
anos de idade. Na década de 1880 esta idade se antecipa para 7 anos. in: MIGUEL, M.E.B. e MARTIN,
S.D.(org.). Coletânea da Documentação Educacional Paranaense no período de 1854 a 1889. in:.Coleção
Documentos da Educação Brasileira. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira, 2004.
31
GONDRA, José Gonçalves e SCHUELLER, Alessandra. Op. cit, p. 250.
32
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná; Livro: BR APPR n.° 564, p. 12.
33
Regulamento da Instrução Pública. In: (Miguel; Martin, 2004, p. 57)
35
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR n° 662, p. 241
36
Correspondência de governo. Arquivo Público do Paraná, Livro BR APPR n° 603, p. 209
37
FONSECA, Marcus Vinícius. Escolas para crianças negras ... op. cit
38
Trato sobre este assunto no trabalho monográfico de minha autoria: SILVA, Noemi Santos. Aprendendo a
Liberdade: Escravos, Libertos, Ingênuos e instrução formal. Paraná - século XIX. Monografia de conclusão de
curso apresentada no Departamento de História da UFPR, 2010.
39
PERES, Eliane. Op. cit
as aulas noturnas era o fato de serem trabalhadores, afinal o trabalho infantil era uma
realidade muito presente no período.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
40
RAMOS, Cláudia. Op. cit, p. 74
A cidade de São Paulo do início do século XX já não era mais a pequena vila
provinciana do século anterior, em poucas décadas, havia-se tornado uma das cidades mais
importantes do país, rivalizando com a capital federal: Rio de Janeiro. A capital paulista
ampliou seu parque industrial e com esse desenvolvimento, atraindo levas de migrantes e
imigrantes que buscavam construir suas vidas na cidade paulistana, havendo um crescimento
populacional sem precedentes na História de São Paulo. (Tabela 1)
Cidade de fronteiras abertas. Assim se configurou São Paulo no início deste século:
palco que se preparava para ser território sob domínio de capital. Em menos de 30
anos, São Paulo passa de cidade/entreposto comercial de pouca importância no país
escravocrata para cidade-vanguarda da produção industrial no País. Esta passagem se
produziu em um momento de transformações profundas na ordem social: passagem de
um Estado Império escravocrata para a República do trabalho assalariado. Esta
transição, redefinição do social, foi uma transformação multidimensional: mudaram
enredos, palcos e personagens. Podemos detectar esta transição de várias formas:
focalizando a atenção na transformação das relações económicas ou sociais ou ainda
nas instituições políticas.3
1
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 - 1915. São Paulo:
Anablume/ Fapesp, 2003, p. 33.
2
SEVCENKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: NOVAIS,
Fernando e SEVCENKO. História da vida privada no Brasil, Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998,
p. 7 – 8.
3
ROLNIK, Raquel. São Paulo – início da industrialização: espaço e política. In: KOWARICK, Lúcio. As
lutas sociais e a cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.75.
Apreende-se, assim, por parte dos grupos ligados ao governo em São Paulo, uma “vontade”
de que a população da urbe paulistana fosse de origem européia e branca. Isso pode ser
percebido mais expressivamente quando das raras vezes que os Anuários e Relatórios
populacionais trataram da parcela nacional. Era quase sempre para constatar com
entusiasmo a sua “inferioridade” em relação à “superioridade” da presença estrangeira,
que trazia “enormes vantagens (...) para o crescimento vegetativo de São Paulo” (...), para a
transformação da “Paulicéia numa grande cidade italiana”.4
O cortiço é a modalidade de habitação proletária mais antiga em São Paulo. (...), está
ligado aos primórdios da industrialização que se iniciou nas últimas décadas do século
XIX. A partir desta época, a população da cidade que, em 1890 tinha 65.000
habitantes, aumenta vertiginosamente em decorrência do grande fluxo de imigrantes.
(...). Assim, o cortiço desponta e expande-se em decorrência de uma nova relação de
exploração, na qual o trabalhador precisa adquirir, com o salário que aufere, os meios
de vida para sobreviver. (...). Mão-de-obra sub-remunerada, não tem condições de
adquirir ou alugar uma casa, pois o custo da mercadoria habitação transcende em
muito o preço da força de trabalho. Desta forma, (...), o cortiço, subdivisão de
cómodos em maior número possível de cubículos, aparece como a forma mais viável
para o capitalismo nascente reproduzir a classe trabalhadora, a baixos custos.5
4
SANTOS: Nem tudo era italiano... Op. cit. p.40.
5
KOWARICK, Lúcio & ANT, Clara. “Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de São Paulo” In:
KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988, p. 49 – 50.
Devido a seus cortiços famosos, a Rua Caetano Pinto, no Brás, afastava de suas
calçadas moradores de outras ruas. Mal-afamada pelas brigas e bafafás diários,
tornara-se tabu, habitada sobretudo por italianos do Sul da Itália (...). Passei a admirar
seus moradores desde que soube terem eles destruído uma carrocinha de cachorro,
pondo os laçadores a correr debaixo de tabefes e pontapés. Nunca mais voltaram.
Polícia não circulava na Caetano Pinto, os habitantes faziam suas próprias leis. Não
havia soldado que por ali se aventurasse. População extremamente religiosa,
profundamente patriota, de sangue quente. (...). As mulheres tinham fama de valentes,
discutiam de janela a janela, batiam nos filhos, à moda italiana: violentos tapas na
cara.7
Essas aglomerações traziam nelas diversos problemas sociais, a começar pela falta de
condições higiênicas devido ao amontoamento de pessoas em um espaço exíguo. “O cortiço é
a longa fila de cómodos geminados, que dão para um pátio ou corredor comum e que tem ba-
nheiro, cozinha e tanque coletivos.”8 Essas aglomerações habitacionais eram considerados pelas
autoridades públicas e pela sociedade como a principal causa da proliferação de epidemias no
início do século XX. “Sua sujeira e promiscuidade é, (...), apontada como responsável pelas
epidemias. (...). Assim cortiços e cortiçados são imediatamente identificados com sujeira, peste,
6
ROLNIK: Op. cit. p.80.
7
GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. 8ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 1984, p. 85 – 86.
8
ROLNIK: Op. cit. p.80.
imoralidade e barbárie.”9 Serão também nos cortiços que encontram-se os maiores índices de
mortalidade infantil na cidade de São Paulo. “A criança pobre, mal vestida, mal nutrida, sem
resistências imunológicas orgânicas, vivendo agrupada (...) em cubículos estreitos, (...),
insalubres, estaria muito mais sujeita às enfermidades do que as mais favorecidas.”10 (Tabela
2)
9
Idem: p.80.
10
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930). Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987, p. 129.
11
Anuários Estatísticos da Secção de Demografia, 1897/1919. In: MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro.
Mulheres e menores no trabalho industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Petrópolis: Vozes,
1982, p.154.
12
ENGELS, Friedrich. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. Tradução de Rosa Camargo Artigas
e Reginaldo Forti. 1ª Edição. São Paulo: Editora Global, 1985, p.127.
13
LONDOÑO, Fernando Torres. A origem do conceito do menor. In: DEL PRIORE, Mary (Org). História
da criança no Brasil. 3ª Edição. São Paulo: Contexto, 1995, p.137.
suas criancinhas – essa forma elementar de sentimento da infância (...).”14 Segundo Friedrich
Engels
Essa tendência à desestruturação familiar, onde inexistia amor e afeto entre os pais e
sua prole, essas crianças vão gradualmente se afastando da casa paterna. “No início do século
XIX, uma grande parte da população, a mais pobre e mais numerosa, vivia como as famílias
medievais, com as crianças afastadas da casa dos pais.”16 O afastamento das famílias fazia
dessas crianças pequenos indigentes ou vadios que perambulavam pelas ruas da cidade,
praticando diabruras, vandalismo e pequenos furtos. “As brincadeiras, os jogos, as lutas, as
diabruras (...) daqueles garotos tornaram-se passíveis de punição oficial. Os meninos das ruas
17
tornaram-se meninos de rua.” O aumento da marginalização e da criminalidade infantil foi
uma das grandes preocupações das autoridades públicas e da sociedade paulista no início do
século XX.
Foram nos cortiços e nas ruas do centro da cidade de São Paulo que a presença da
indigência e da delinquência infantil ficavam mais visíveis para as autoridades públicas e para
14
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaskman. Rio de Janeiro:
Editora LTC, 1981, p.179.
15
ENGELS: Op. cit. p. 166 – 167.
16
ARIÈS: Op. cit. p.189.
17
SANTOS, Marco A. Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del
(org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p. 229.
sociedade. “A rua é, (...), o espaço no qual a pobreza ganha plena visibilidade, (...), e são
tênues os limites que a separam do crime e da delinqüência.”18 A infância marginalizada
estava inexoravelmente relacionada a situação de miséria e indigência das famílias que
moravam nos cortiços. Segundo a definição de Boris Fausto:
Esses menores, geralmente, tinham nas ruas seu meio de sobrevivência através da
mendicância, da prática de pequenos furtos, da gatunagem e no caso das meninas, com a
prostituição. “Assim como o menor (...) era iniciado precocemente nas atividades produtivas
(...) também o era nas atividades ilegais numa clara tentativa de sobrevivência numa cidade
que hostilizava as classes populares.”20 Ou seja, para as autoridades públicas, a rua era o
espaço por excelência do vício e da imoralidade que pervertia as crianças abandonadas. “Isso
faz pensar também que no domínio da vida real, (...), a infância era um período de transição,
logo ultrapassado, e cuja lembrança também era logo perdida.” 21 Segundo Esmeralda Blanco
Bolsonaro de Moura:
18
MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro. Meninos e meninas na rua: impasse e dissonância na construção da
identidade da criança e do adolescente na República. In: Infância e Adolescência. Revista Brasileira de
Historia. 1999, vol.19, n.37, p.4.
19
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo: 1880 – 1924. São Paulo: Brasiliense,
1984, p.80.
20
SANTOS: Crianças e criminalidade... Op. cit. p.218.
21
ARIÈS: Op. cit. p.18.
com sua própria vulnerabilidade: o ambiente das ruas (...) torna-se ameaçador. A rua
adquire assim, uma identidade perversa, associada ao crescimento da cidade,
identidade que se reproduz para além do universo das elites. 22
Às vezes, são meninos, que forçados por seus paes, se entregaram ao principio da
mendicância profissional e não conseguiram, em certo dia de pouca sorte, obter em
esmolas, a quantia a quantia que seus progenitores exigiam para admitil-os em casa,
sob pena de toda espécie de castigos corporaes. (...). No dia em que míngua o recurso
da caridade pública, perdido já todo o escrúpulo pelo exercício de uma profissão
ignóbil, e, ainda mais, acossados pela fome, esses menores não hesitam na pratica do
furto, que os conduz a frente da autoridade policial. Isto, quando são apanhados. Do
contrario, o primeiro delicto incita-os ao segundo e assim sucessivamente até a
adopção do furto como meio de “ganhar” o pão. 23
Em muitas das cartas que diariamente recebemos para serem publicadas nesta secção,
pedem-nos que chamemos a attenção da policia para os garotos que de manham á
noite se agglomeram nas ruas ou arrabaldes, praticando toda sorte de diabruras num
22
MOURA: Meninos e meninas na rua... Op. cit. p.3.
23
Folha da Noite, 08 de Março de 1921 p.2 Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo (Acervo Folha)
http://acervo.folha.com.br/fdn/1921/03/08/590 (Acesso: 26/06/2011)
24
O Estado de São Paulo, 23 de Março de 1909 p.5. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
berreiro infernal. Ainda hontem recebemos cartas de moradores das ruas Maria Borba,
Dr. Almeida Lima, Ipanema, Oriente e outras, (...). A liberdade com que numerosas
maltas de menores vagabundos transformam as ruas de nossos bairros em campos de
“football”, riscam as paredes dos prédios e a pedradas despedaçam vidraças das casas
dos moradores há muito tempo está a reclamar uma providência enérgica das
autoridades da policia.25
A violência desses bandos de delinqüentes também era freqüente nas ruas centrais da
capital paulistana. Gilberto Freyre, através do depoimento de um morador de um cortiço
paulistano em 1900 relatava os confrontos entre esses bandos nas ruas:
Na rua Joaquim Carlos, no Braz, principalmente no trecho entre a que vae da avenida
Celso Garcia até a Fabrica “Orion” há tudo isso e mais alguma coisa: a reunião de uma
malta de indivíduos malcriados que fazem della posto de recreio, dirigindo graçolas
pesadas as moças e as senhoras que por essa rua tem que transitar. À noite, então, vão
até mais longe crescendo a audácia dos gracejos e o numero dos gracejadores. De uns
tempos a elles tomaram por alvo uma escola publica que há alli e em cujo curso
nocturno há diversas moças. Fazem elles em frente à citada escola um barulho
25
O Estado de São Paulo, 13 de Julho de 1916 p.5. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
26
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Record, 2000, p.825.
infernal, fazendo gestos obscenos e chegando a atirar pela janela pedras e outras coisas
para dentro da sala de aula, em risco de offender aos alumnos. 27
Tabela 3 – Quantidade aproximada de menores presos nas cadeias da cidade de São Paulo
(1900 – 1915) 28
É importante lembrar que a natureza desses delitos cometidos pelos menores tem mais
haver com a sua sobrevivência e também com o desejo infantil pelo produto do roubo.
“Benedicto Machado, menor de 11 annos de edade, foi hontem preso na rua Direita, quando
era perseguido por um empregado da casa Lebre & Mello, por ter furtado um brinquedo que
estava no mostrados da loja.”29 Assim, sua atuação visava sempre o ataque rápido, sutil e
pouco violento sobre os pedestres. “Os dados de 1904 – 1906 indicam o caráter “não
27
Folha da Noite, 31 de Janeiro de 1923 p.6. Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo (Acervo Folha)
http://acervo.folha.com.br/fdn/1923/01/31/1. (Acesso: 26/06/2011)
28
Relatórios da Secretaria de Estado dos Negócios da Justiça e da Segurança Pública e de Chefes de Polícia do
Estado de São Paulo, 1900/1915 apud MOURA: Mulheres e menores... Op. cit. p. 152.
29
O Estado de São Paulo, 17 de fevereiro de 1903, p.2. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
agressivo” dos delitos praticados por menores.”30 Marco Antônio Cabral dos Santos descreve
os delitos cometidos pelos menores delinqüentes:
A natureza dos crimes cometidos por menores era muito diversa daqueles cometidos
por adultos, de modo que entre 1904 e 1906, 40% dás prisões de menores foram
motivadas por “desordens”, 20% por “vadiagem”, 17% por embriaguez e 16% por
furto ou roubo. Se comparados com os índices da criminalidade adulta teremos:
93,1% dos homicídios foram cometidos por adultos, e somente 6,9 % por menores,
indicando a diversidade do tipo de atividades ilícitas entre ambas as faixas etárias. As
estatísticas mostram que os menores eram responsáveis neste período por 22% das
desordens, 22% das vadiagens, 26% da “gatunagem”, 27% dos furtos e roubos, 20%
dos defloramentos 15% dos ferimentos. Estes dados indicam a menor agressividade nos
delitos envolvendo menores, que tinham na malícia e na esperteza suas principais
ferramentas de ação; e nas ruas da cidade, o local perfeito para pôr em prática as
artimanhas que garantiriam sua sobrevivencia. 31
Outro aspecto preocupante sobre a delinqüência infantil na cidade de São Paulo era o
aumento da prostituição de menores, especialmente na zona do baixo meretrício. “A
prostituição nos meios pobres, (...), adquiria todo um caráter de sordidez maldita, de
descontrole desenfreado, de excesso dionisíaco que assustava as classes privilegiadas.”32
Fausto descreve as “farras” na zona do baixo meretrício paulistano:
Entre agosto e setembro de 1898, A Nação publicou uma série de artigos denunciando
a existência de diversas “farras” no centro da cidade, onde locadores sem escrúpulos
abrigavam meninos e meninas ociosos. Duas casas na Rua Santa Teresa foram alvos
de maior atenção. A primeira delas (...) tinha sido fundada pelo fuão Gouveia, “um
português baixo e gordo, reunindo em si todos os predicados para ser chefe de
farristas: estúpido velhaco, explorador e cínico.” A casa continha cerca de 30
cubículos imundos onde existiam uns 40 colchões em destroços, alugados há dez
tostões por noite. (...). A outra “farra”, também de propriedade de um português, fora
até pouco tempo atrás um antro de prostituição. Com as recentes perseguições
convertera-se em um covil de menores gatunos e vagabundos, com capacidade para
abrigar 150 indivíduos em cerca de 50 cubículos. 33
30
FAUSTO: Op. cit. p.85.
31
SANTOS, Criança e Criminalidade... Op. cit. p.214.
32
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo
(1890 – 1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991, p.243.
33
FAUSTO: Op. cit. p.83.
Foi no final do século XIX que as autoridades públicas montaram uma verdadeira
estrutura tutelar para os delinqüentes, onde a polícia e a justiça atuavam na contenção,
aprisionamento e internamento desses menores em instituições correcionais.
34
O Estado de São Paulo, 19 de Setembro de 1917, p.6. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
35
RAGO: Do cabaré ao lar... Op. cit. p.122.
furtos no distrito de Santa Efigênia.”36 Tanto na polícia como os orgãos jurídicos tinham como
base teórica a criminologia italiana nos estudos de Cesare Lombroso. Esse estudioso fundou o
termo antropologia criminal, em que o criminoso nato poderia ser identificado pelo seus aspectos
físicos e raciais. “A fisionomia dos famosos delinqüentes reproduziria quase todos os
caracteres do homem criminoso: mandíbulas volumosas, assimetria facial, orelhas desiguais,
37
falta de barba nos homens, fisionomia viril nas mulheres, ângulo facial baixo.” Sobre a
delinqüência infantil, Lombroso da sua definição do delinqüente nato:
Ainda não existia naquela época uma legislação específica para a questão de
delinqüência infantil, sendo esta enquadrada no Código Penal de 1890, era corriqueira a
prisão de menores nas cadeias junto com criminosos adultos. “Até 1902, era comum na cidade
a prisão de garotos efetuada por praças da Força Pública (...), os levavam para as delegacias,
onde passavam uma ou duas noites presos entre perigosos bandidos.” 39 Devido ao volume de
delinqüentes nas cadeias públicas, foi inaugurada em 1902 o Instituto Disciplinar do Tatuapé
para o atendimento aos menores em situação de vulnerabilidade social. “Afastando o menor
dos focos de contágio, correspondia depois as instituições dirigir-lhe a índole, educá-los, forma-
36
SANTOS: Crime e criminalidade... Op. cit. p.219.
37
LOMBROSO, Cesare. O homem delinquente. Tradução de Sebastião Jose Roque. São Paulo: Ícone Editora,
2007 (Coleção Fundamentos de Direito), p. 197.
38
Idem: p. 67 – 68.
39
SANTOS: Crime e criminalidade... Op. cit. p.223.
lhe o caráter, por meio de um sistema inteligente de medidas preventivas e corretivas.”40 Tanto a
polícia quanto o Juizado de Orfão empregaram constantemente o internamento de crianças que
se encontravam em estado de delinquência. Segundo essa notícia publicada pelo jornal O Estado
de São Paulo:
FONTES DOCUMENTAIS:
Folha da Noite (1921 – 1927) Acervo: Banco de Dados da Folha de São Paulo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Tradução de Dora Flaskman. Rio
de Janeiro: Editora LTC, 1981.
40
LONDOÑO: Op. cit. p. 141.
41
O Estado de São Paulo, 31 de Janeiro de 1903, p. 2-3. Acervo: Centro de Documentação e Pesquisa Histórica
(CDPH) Universidade Estadual de Londrina – PR.
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo: 1880 – 1924. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
GATTAI, Zélia, Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: Editora Record, 1984.
KOWARICK, Lúcio & ANT, Clara. Cem anos de promiscuidade: o cortiço na cidade de
São Paulo. In: KOWARICK, Lúcio. As lutas sociais e cidade: São Paulo passado e presente.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, pp. 73 – 91.
LONDOÑO. Fernando Torres. A origem do conceito do menor. In: DEL PRIORE, Mary.
História da criança no Brasil. 3ª Edição. São Paulo: Contexto, 1995.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. Brasil. (1890 – 1930).
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
SANTOS, Carlos José Ferreira dos. Nem tudo era italiano: São Paulo e pobreza 1890 –
1915. São Paulo: Anablume/ Fapesp, 2003.
SANTOS, Marco Antônio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In:
DEL PRIORE, Mary. História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, pp. 210
– 230.
1
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família.
2
HEYWOOD, Colin. Uma História da infância: da Idade Média à época contemporânea no ocidente.
3
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de economia
patriarcal.
4
Exposto era a palavra utilizada para referi-se a um recém-nascido abandonado até o final do século XIX.
que a situação era tal que “algumas pobrezinhas eram estraçalhadas pelos bichos imundos,
que de noite vagavam pelas ruas”.5
Estudos sobre o abandono de crianças no Brasil surgiram como temas secundários em
trabalhos sobre a prática de assistência à sociedade. Podemos citar, Tolstoi de Paula Ferreira,
que na década de 1940 analisou as ações da Santa Casa da Misericórdia em São Paulo e entre
os objetivos da pesquisa estava a atitude do recolhimento dos recém-nascidos enjeitados.6
Na década de 1960, Russel-Wood desenvolveu também uma pesquisa sobre as práticas
assistenciais na América portuguesa, discutindo os documentos da Santa Casa da Misericórdia
da Bahia.7 Segundo a historiadora Alcileide Cabral do Nascimento,
5
FREYRE, Gilberto. Nordeste: aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil.
p. 175.
6
FERREIRA, Tolstoi de Paula. “Subsídios para história da assistência social em São Paulo”. Revista do
Arquivo Municipal.
7
RUSSEL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755.
8
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a institucionalização
da assistência as crianças abandonadas no Recife (1789-1832). p. 8.
9
MESGRAVIS, Laima. Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884).
10
Sobre a Roda dos expostos comenta-se que era: “Uma inovação caracteristicamente mediterrânea na
assistência aos enjeitados [...]. Era uma caixa cilíndrica de madeira, colocada dentro da parede de um prédio.
Girava num pino colocado sobre seu eixo vertical, e era repartida ao meio. Originalmente, essas rodas giratórias
eram comuns nos conventos; alimentos, remédios e mensagens eram colocadas na repartição do lado de fora da
parede. A roda era então girada, transportando os artigos para a parte de dentro, sem que as reclusas vissem o
lado de fora, e sem que fossem vistas. Ocasionalmente, uma mãe pobre colocava o filho nessa roda, confiando na
caridade das freiras para que criassem o bebê. A primeira instituída especialmente para receber crianças foi a do
Hospital do Espírito Santo em Roma, em 1198. Já no século XV, a instalação de tais rodas em hospitais tornara-
se prática corrente. Havia vários métodos de informa aos internos de que um bebê tinha sido colocado na roda.
Normalmente, existia um pequeno sino do lado de fora da parede, junto à roda, para ser tocado pela mãe; havia
também as rodas mais sofisticadas, em que o peso do bebê fazia soar automaticamente um sino dentro do
identidade de quem abandonava e “garantir a honra” da mulher branca que tinha filhos
ilegítimos. Mesgravis inicia uma discussão sobre a relação entre abandono de recém-nascidos
e ilegitimidade.
A partir da década de 1980, a criança e a prática de seu abandono e recolhimento
tornaram-se objeto de estudo específico no Brasil. Maria Luiza Marcílio com sólida formação
na área de Demografia histórica, organizou na Universidade de São Paulo (USP), o Centro de
Estudos de Demografia da América Latina, conhecido como CEDHAL. Marcílio, à frente do
centro de pesquisa citado, com ajuda de seus bolsistas realizou o levantamento de documentos
e textos sobre a criança e seu abandono em vários arquivos e bibliotecas do país. Iniciando a
construção de uma História Social da criança abandonada pelo método da Demografia
histórica.
Os esforços de pesquisa realizados por Marcílio e por seus assistentes, que se
tornariam posteriormente professores universitários e escritores renomados, como Renato
Pinto Venâncio, resultou na constituição de um livro síntese que teve sua primeira edição em
1998, onde trabalhou com a longa duração.11 No primeiro momento, a pesquisadora
demonstra como se dava o abandono de recém-nascidos na Europa, da antigüidade ao século
XX, e, na segunda parte, discute o tema na História do Brasil, desde o período colonial,
passando pelo Império e chegando à República. Ainda na década de 1970, a mesma estudiosa
já dava notícia do abandono de recém-nascidos em São Paulo, a partir do método quantitativo,
no entanto este aspecto da população era apenas um tema secundário de sua pesquisa de
doutorado.12
No final dos anos de 1980, uma segunda geração da Demografia histórica começou a
apresentar os resultados de suas pesquisas em arquivos e sistematizadas no CEDHAL. Em
1988, Renato Pinto Venâncio defendeu na Universidade de São Paulo, uma dissertação em
que analisava especificamente o abandono de crianças recém-nascidas na cidade do Rio de
Janeiro do século XVIII, tendo por base, principalmente, a documentação da Santa Casa de
Misericórdia.13
Na última década do século XX, muitas foram as contribuições na produção
historiográfica referente à criança e seu abandono. Em 1993, Venâncio defendeu sua tese na
14
VENÂNCIO, Renato Pinto. Famílias abandonadas: assistência à crianças de camadas populares no Rio de
Janeiro e em Salvador – século XVIII e XIX.
15
DEL PRIORE, Mary (Org.). Historia da criança no Brasil.
16
DEL PRIORE, Mary (Org.). História das crianças no Brasil.
17
ANJOS, João Alfredo. A Roda dos enjeitados: enjeitados e órfãos em Pernambuco no século XIX.
18
FRANCO, Renato Junior. Desassistidas Minas – a exposição de crianças em Vila Rica, século XVIII.
mesmo observou que a ação do Estado no ato de prestar assistência aos expostos seria uma
forma de disciplinar os indivíduos e sociedade. 19
Ainda no víeis foucaultiano, a pesquisa mais recente que temos conhecimento é a tese
de Alcileide Cabral do Nascimento, apresentada e defendida em 2005 na Universidade
Federal de Pernambuco. A pesquisadora em vários momentos de seu trabalho faz uso de
elementos da Demografia histórica, mas sua base teórica nitidamente esta em Michel
Foucault. Ela investiga a institucionalização do acolhimento dos expostos em Recife na
transição do século XVIII para o século XIX, na mudança de uma ação caritativa cristã, para
uma ação mais racional com um apoio do Estado, que buscava disciplinar a sociedade, tendo
em vista que a população de expostos, uma vez livre do infanticídio, seria um risco para
coletividade.20
Por último queremos deixar claro que o grupo de historiadores que estuda a criança e
especificamente o abandono e a inserção dessas crianças na sociedade, ainda é muito
reduzido. Por fim, a produção historiográfica neste tema é complementada pelos outros
artigos que são publicados nas Revistas acadêmicas ou em Anais de congresso científicos.21
No Rio Grande do Norte, no ano de 2002, foi apresentado ao Departamento de
História e Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Caicó, um
monografia com o seguinte título – Vivências índias, mundo mestiço: relações interétnicas na
Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó entre o final do século XVIII e inicio do
século XIX. O seu autor, Helder Alexandre Medeiros de Macedo, foi o primeiro historiador a
fazer menção a existência de crianças recém-nascidas abandonadas na Capitania do Rio
Grande Norte, frisando que esse não era seu objeto de estudo.
Foi somente em 2005 que apresentamos ao Departamento de História da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Campus de Natal, um trabalho monográfico que tinha como
objetivo investigar o processo de abandono e recolhimento de recém-nascidos na Freguesia de
Nossa Senhora da Apresentação, na segunda metade do século XVIII, intitulada, Filhos da
19
OLIVEIRA, Henrique Luiz Pereira. Os filhos da falha: assistência aos expostos e remodelação das condutas
em desterro (1828-1887).
20
NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a
institucionalização da assistência às crianças abandonadas no recife (1789-1832).
21
PAULA, Thiago do Nascimento Torres de. “Recém-nascidos expostos: os enjeitados da Freguesia de Nª Srª da
Apresentação, Capitania do Rio Grande do Norte (século XVIII)”. Revista Educação em Questão. Ver
também, NASCIMENTO, Alcileide Cabral do. “Casar, trabalhar, estudar: as estratégias de inserção social das
mulheres expostas no Recife, 1830-1860”. Dimensões – Revista de História. SILVA, Gian Carlo Melo. “Um
novo lugar social: casamento de expostos no Recife”. In: Anais do I Congresso Nordestino de História
Colonial.
escuridão. Nele arrolamos um índice relativamente baixo de expostos e uma alta percentagem
de filhos bastados.
A escassez dos estudos históricos sobre os expostos no Brasil, fez Carlos de Almeida
Prado Bacellar, refletir sobre o abandono de crianças recém-nascidas como objeto de estudo
da história: “No Brasil, os poucos trabalhos que se interessaram pela questão são ainda
insuficientes e pontuais, mas ao menos permitem que se esboce um panorama provisório da
prática do abandono”.22
No entanto uma pergunta pode ser elaborada: o que leva a que sejam insuficientes e
pontuais as pesquisas voltadas para estudar o abandono de recém-nascidos, em outras
temporalidades, apesar de, como Diane Valdez afirma, “a história de crianças abandonadas
não é recente. No decorrer da história, o abandono é uma constante, em diferentes
sociedades”.23
Mediante a indagação feita por nós, e ao contraponto apresentado por Valdez, o
próprio Bacellar responde:
Por outro lado, tais vertentes de pesquisa encerram duas limitações básicas: a primeira,
está relacionada aos recortes geográficos admitidos pelos projetos de investigação. Pois os
mesmos se restringiram a trabalhar localidades onde houve a atuação de Santas Casas de
Misericórdia devidamente instaladas e as raras Câmaras que marcadas por sua pujança
econômica, se preocuparam em cuidar dos expostos. Dessa maneira, esses estudos resumiram-
se ao espaço das poucas cidades que apresentavam as características mencionadas. A segunda
limitação desse gênero de pesquisa se relaciona aos resultados obtidos, que são
definitivamente limitados em sua perspectiva temporal, pois tanto as Santas Casas como as
22
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Abandonados nas soleiras das portas: a exposição de crianças nos
domicílios de Sorocaba, século XVIII e XIX”. In: FUKUI, L. (Org.). Segredos de família. p. 15.
23
VALDEZ, Diane. História da infância em Goiás: séculos XVIII e XIX. p. 40.
24
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Op. cit. p. 15
Câmaras, documentavam e cuidavam da vida dos enjeitados até sete anos de idade. Deixando
na total escuridão as informações sobre sua inserção na sociedade.25
Por fim, Venâncio em 2010 organizou um livro que congrega historiadores brasileiros
e portugueses, desde os mais experientes até as mais novas gerações de pesquisadores. Neste
trabalho, sob o título Uma história social do abandono de crianças - De Portugal ao Brasil -
século XVIII-XX, encontramos as investigações mais recentes sobre os expostos e a exposição
de crianças. Tal trabalho é o primeiro da historiografia brasileira, que faz um balanço sobre as
pesquisas do abandono de crianças recém-nascidas, buscando refletir sobre está triste
realidade de nosso tempo presente26.
BIBLIOGRAFIA
ANJOS, João Alfredo dos. A Roda dos Enjeitados: enjeitados e órfãos em Pernambuco no
século XIX. Recife: UFPE, 1997. (Dissertação de mestrado em História)
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2.ed. Rio de Janeiro: Ed. LTC,
1981.
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Abandonados nas soleiras das portas: a exposição
de crianças nos domicílios de Sorocaba, Século XVIII e XIX”. In: FUKUI, Lia (org.).
Segredos de família. São Paulo: Ed. Annablume/Menge-USP/Fapesp, 2002. p. 15-41.
DEL PRIORE, Mary. História da criança no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 1991.
__________. História das crianças no Brasil. São Paulo: Ed. Contexto, 1999.
FERREIRA, Tolstoi de Paula. “Subsídios para a história da assistência social em São Paulo”.
Revista do Arquivo Municipal, V. LXVII, jun. 1940.
25
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. “Abandonados nas soleiras das portas: a exposição de crianças nos
domicílios de Sorocaba, século XVIII e XIX”. In: FUKUI, L. (Org.). Segredos de família. p. 16.
26
VENÂNCIO, Renato Pinto. Uma história social do abandono de crianças - De Portugal ao Brasil: séculos
XVIII-XX.
_________. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia patriarcal. 37.ed. Rio de Janeiro / São Paulo: Ed. Record, 1999.
MARCILIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750-1850. São
Paulo: Ed. Pioneira, 1973.
__________. História social da criança abandonada. 2.ed. São Paulo: Ed. HUCITEC,
2006.
MESGRAVIS, Laima. Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (1599?-1884). São Paulo:
Ed. Conselho Estadual de Cultura, 1976.
SILVA, Gian Carlo de Melo. “Um novo lugar social: casamento de expostos no Recife
Colonial”. In: Anais do I Congresso Nordestino de História Colonial. João Pessoa: UFPB,
2006.
VALDEZ, Diane. História da infância em Goiás: século XVIII e XIX. Goiânia: Ed.
Alternativa, 2003. (Coleção História de Goiás; v. 2)
VENÂNCIO, Renato Pinto. Infância sem destino: o abandono de crianças no Rio de Janeiro
do século XVIII. São Paulo: USP, 1988. (Dissertação de mestrado em História)
dessas instituições. Enviados pelos responsáveis da Santa Casa de Misericórdia ou por outros
estabelecimentos semelhantes, os meninos eram inseridos na vida militar ainda nos primeiros
anos de juventude. Os voluntários matriculados pelos pais e os enviados pela polícia seriam
outras possibilidades de se conseguir menores para Companhias.
Vale salientar, que muito desses meninos enviados pela polícia eram recolhidos nas
ruas sob o uso de força, configurando-se não como alistamento voluntário, mas como
recrutamento forçado. Os chefes de polícia, responsáveis por esse tipo de recrutamento, agiam
como braço forte dos presidentes de província nos assuntos ligados à formação de reserva de
marinheiros. A força era um mecanismo que essas e outras autoridades não hesitaram em
utilizar para recolher das ruas os pequenos peraltas ou larápios, como eram chamados por
essas autoridades. Essa medida foi autorizada pelo regulamento das Capitanias dos portos,
que não isentavam do recrutamento, os menores que apresentassem algum tipo de capacidade
para o ingresso na “profissão marítima”.1
O inspetor do Arsenal da Marinha do Pará, chamando a atenção para questões que
impedia o preenchimento da Companhia de Aprendizes que estava confiada ao seu comando,
destacou a importância de se adotar o recrutamento forçado em uma província que, segundo
ele, era em geral apta para a vida marítima. De acordo com inspetor, era conveniente o
recrutamento na província, porque abundava no litoral da capital, crianças vivendo na
orfandade e na miséria.2 Para essas autoridades, tornou-se um clichê pensar, que o envio de
menores para as instituições militares fazia de meninos vadios e desocupados, homens úteis e
sãos para sociedade. 3
Eram retirados das ruas aqueles garotos que estavam, segundo o discurso das
autoridades, aumentando as fileiras dos desocupados ou ameaçando as propriedades e as vidas
dos cidadãos. Esses tinham que ser afastados da mendicância ou vadiagem e serem colocados
como reserva útil ao Estado. A preocupação de não deixar esses meninos na condição de
vadio, dando-lhes uma ocupação, era visível mesmo quando esses eram retidos nas
companhias temporariamente com a finalidade apenas de correção. Talvez esse tenha sido o
caso de João Batista dos Santos visto na citação abaixo:
1
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
2
Idem.
3
FRAGA FILHO. Op.Cit., p. 128.
O menor José Maria da Paz, que a suplicante Rita Maria da Rocha diz ser seu filho,
foi remetido a esta inspeção pelo juiz municipal de Olinda, em 13 de janeiro do ano
próximo passado, com o ofício da cópia junta, como apto para servir na Companhia
de Aprendizes Marinheiro desta província, por não existirem os pais e vagar nas
ruas, isto, além de entregar-se ao crime de furto, e ser de gênio irascível e maleveado
; o que tudo for dar o seguinte destino, mesmo em vista destas últimas causas, para o
bem da sociedade. 5
4
Ofício de Antonio dos Santos, Inspector do Arsenal da Marinha para o Presidente da Província, Conselheiro
Sergio Pereira de Macedo. APEJE, Série A.M. 1857. n° 9.
5
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Inspetor do Arsenal da Marinha, ao Presidente da Província,
Conselheiro Luiz Barbalho Muniz Souza. APEJE, série A.M. 1859. n° 436.
6
O termo esteve ligado a diferentes significados, mas é provável que no documento estivesse fazendo referência
aos meninos que tinha facilidade a ira e ao comportamento colérico. SILVA, Antonio de Morais. Diccionário da
Lingua Portugueza. Vol.2, p. 181. Material disponível em <
http://www.brasiliana.usp.br/en/dicionario/2/irascivel > Acesso em maio de 2012.
para servir a nação. A disciplina militar seria um meio de correção a essa parcela da
população que também se tornara alvo da administração pública.
Assim, percebe-se que o recrutamento de menores se tornava uma prática significativa
para os governos provinciais e as suas autoridades locais. Era através dele, que os presidentes
de província, chefes de polícia e delegados conseguiriam tirar das cidades parte de uma
infância vista como problema. Uma estratégia que beneficiava de um lado administração
pública e de outro a Armada imperial que era suprida com braços para o serviço militar. No
entanto, os esforços para o alistamento e captura desses meninos, não seria uma tarefa fácil de
ser executada.
Segundo Nascimento, para conseguir alcançar o número de alistamento estipulado
pela Corte, saiam ofícios do ministro da justiça e dos presidentes de província para os chefes
de polícia, informando da necessidade de homens para Marinha. Por outro lado, os chefes de
polícia enviavam ofícios aos delegados e subdelegados da capital e das demais localidades da
província. 7Segundo o autor, esses avisos conseguiam viajar os diferentes lugares do país,
alcançando do mais simples policial até aqueles que se ofereciam para o serviço de captura de
novos marinheiros. Não há dúvidas que o recrutamento e o alistamento de menores foram
parte dessa difícil conjuntura de mobilização de pessoas para Marinha de Guerra. Eles
também seriam alvo dos recrutadores, além de se tornarem peças centrais no processo de
reposição das fileiras da Armada durante o século XIX.
A Capitânia dos Portos estava na direção dos garotos que passavam pelo recrutamento
forçado ou aqueles que eram enviados pelos pais, tutores e pelas casas de caridade. 8 Até a
criação da Companhia de Aprendizes de Pernambuco em 24 de outubro de 1857, parte dos
garotos e jovens que chegavam à Capitânia dos Portos, localizada no Arsenal da Marinha,
eram remetidos à Companhia de Aprendizes Marinheiro da Corte, que funcionava desde
1840. Diferente disso, os menores que não seguiam para Corte, permaneciam no Estado e
serviam como educandos da Companhia de Aprendizes Artífices do Arsenal.
Porém, quando criada, a Companhia de Aprendizes Marinheiro de Pernambuco passou
apresentar significativas contribuições a Força Naval brasileira. A mobilização de crianças
para esse estabelecimento vinha das diferentes comarcas da província e até de províncias
7
ÁLVARO NASCIMENTO Op. Cit., p. 68.
8
Coleção de leis do Império brasileiro. Decreto n° 1.591 de abril de 1855. Disponível em: <
http://www2.camara.gov.br/atividade-legislativa/legislacao/publicacoes/doimperio>. Acesso em junho 2010.
vizinhas.9 Era comum a essa companhia, assim como as outras, entregar parte dos seus
efetivos para serem enviados à corte. O caso do menor Manoel Ramos da Cunha e o menor
Euzébio Barbosa nos ajuda elucidar essa questão. Os garotos foram recrutados pelo
subdelegado da Freguesia de São José e tiveram seus nomes mencionados em ofício do
Inspetor do Arsenal da Marinha ao presidente da província. Na ocasião, o chefe do Arsenal
pedia que os recrutados fossem enviados à Corte no próximo vapor que chegaria dos portos
do Norte.10 Assim como eles, outros jovens garotos seriam enviados à Marinha de Guerra
todos os anos, cumprindo a difícil tarefa de manter vivos os efetivos dessa força.
Contudo, foi observado nos relatórios do Ministério da Marinha, que a maior parte das
crianças que seguiram para as fileiras da Fortaleza de Willegaignon, resultou de uma
mobilização voluntária e não do recrutamento forçado.
9
Mapa nominal dos menores admitidos no Arsenal da Marinha de Pernambuco. APEJE, série A.M. Inspeção do
Arsenal da Marinha de Pernambuco em 4 de abril de 1857. p. 164.
10
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Capitão do Porto para o Presidente da Província, Conselheiro Sergio
Pereira de Macedo. APEJE, Série A.M. 1857. n° 49.
11
FRAGA FILHO. Op. Cit.,p 117.
12
VENÂNCIO. Renato Pinto. Os aprendizes de guerra. In: Mary Del Priore (org.). História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 199.
Como seria fácil, se pela população espalhassem as vantagens delas para as famílias
e para o país, ou se mesmo arrancassem da perdição tantos meninos desvalidos, que
13
vagam pelas ruas e tabernas sem meio de se educarem.
13
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 328.
14
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
15
CARVALHO, Marcus J. M. de. Liberdade: rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822-1850. Recife:
Ed. Universitária da UFPE, 2002. p.32.
16
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 329.
17
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
18
Ministério da Marinha. 1856. p 4. Disponível em < http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha> acesso em
maio de 2012.
19
NASCIMENTO, Op. Cit.,p 46.
Portanto, o rigor e a forte disciplina da vida militar foram outras razões para que
alguns pais ou os próprios garotos resistissem ao processo de recrutamento em Pernambuco.
O medo pela vida no mar preocupava algumas autoridades ligadas ao alistamento de crianças
durante o século XIX, visto que, percorria entre a população o receio pelo violento processo
disciplinar, tão comum em unidades navais. O recrutamento era uma verdadeira “guerra
civil”. Evitá-lo exigia muitas artimanhas e astúcias das camadas populares no enfrentamento
dos mecanismos e das estratégias de controle do Estado. Esconder seus filhos do processo de
mapeamento e contagem da população foi uma das formas que as famílias encontraram de
isentá-los do serviço militar.
O calabrote, corda grossa, transformada em instrumento de açoite para marujada20,
tornou-se uns dos medos que circulava no imaginário da população, prejudicando os
recrutadores:
É evidente que por mais que as autoridades do Arsenal da Marinha tentassem evitar
que se propagassem ideias como essas descritas acima, os maus tratos e a rígida disciplina nos
navios de guerra, não passavam despercebidos pelas camadas populares do Recife e seus
arredores. A resistência em enviar seus filhos para Marinha mostra que os mecanismos
assistenciais do Estado nem sempre eram aceitos pelas famílias pobres e também não se
tornaram as únicas válvulas de escape para sobrevivência.
A investigação sobre o tema do alistamento e recrutamento de menores possibilita
compreendermos que o serviço militar ganhou múltiplos significados durante a maior parte do
século XIX. Na maioria das vezes, como foi descrito nesse trabalho, a vida na Marinha se
confundia com as duras imagens dos castigos físicos, confinamento, trabalho pesado, rígida
disciplina, além das associações que colocavam o recruta, em algumas situações, em pé de
igualdade com criminosos de toda sorte. Porém, cabe destacar que diante do tom obscuro
20
Ver o dicionário Antonio de Moraes Silva disponível em:
<http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/1,2,3/calabrote> Acesso em junho de 2010.
21
Ofício de Hermanegildo Antonio Barbosa D’ Almeida, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da
Província, Conselheiro João Lustosa da Cunha Paranaguá. APEJE, Série A.M -1866. N° 329.
dado ao serviço militar, havia também, aqueles que recorriam a essa atividade, não como um
“tributo de sangue”, mas antes, como uma resposta a diferentes situações de vida.
Álvaro Pereira do Nascimento converge a essa ideia ao perceber o envolvimento
estratégico dos capoeiras com a vida militar para fugirem de uma realidade possivelmente
mais dura. Segundo o autor, os capoeiras faziam parte “da buliçosa fauna das ruas do tempo
22
da Corte, que assustava as camadas médias e também a elite dirigente”. Diante disso,
tornavam-se presença constante nas ocorrências policias e crimes do século XIX. Perseguidos
pelo o aparato policial esse grupo, visto com um prejudicial ao sossego público, acabavam
escolhendo a carreira militar para não continuarem presos na polícia. De acordo com
Nascimento, alguns faziam essa escolha para não perderem a liberdade, procurando manter a
possibilidade de transitarem nas cidades nos horários livres, encontrar como amigos, além de
receber os soldos que eram pagos pela Marinha. Alternativa que certamente não teriam se
caíssem em uma cela do complexo prisional da Corte.
Recorrer a Marinha para fugir de uma situação difícil ou até mesmo aviltante também
foi um mecanismo utilizado pelos escravos durante o período oitocentista. Ocupar a posição
de marinheiro em um navio da Marinha de Guerra fazia o escravo ascender socialmente,
principalmente frente a difícil condição escrava. Se apresentar como voluntário, passando-se
por livre, ou até mesmo por engano de algum recrutador- dava ao cativo uma nova condição e
o tirava definitivamente ou temporariamente das mãos de seu senhor. Para uma criança
escrava, a possibilidade de engaja-se nas Companhias de Aprendizes, possivelmente,
representava um futuro bem diferente daquele oferecido aos que cresciam como cativo no
Brasil do século XIX. Talvez fosse isso que vislumbrava o ainda menino e escravo João que,
quando preso pelo chefe de polícia apresentou-se como Manoel, conquistando de forma muito
breve a praça efetiva da Companhia de Aprendizes Marinheiro de Pernambuco. Após ser
investigado pelo comandante da dita Companhia, João revelou que tinha fugido do poder de
seu senhor, além de ter escondido a condição escrava e feito a troca de nome para ajudar no
seu disfarce. 23
O caso de João e de outros menores cativos, que com frequência encontramos na
documentação, sendo enviados pela polícia a Companhia de Aprendizes Marinheiro, nos
permite especular que, de alguma maneira, alguns obtiveram êxito no plano de se passar por
22
NASCIMENTO, Op. Cit., p. 86-88.
23
Ofício de Eliziano Antonio dos Santos, Inspector do Arsenal da Marinha, para o Presidente da Província,
Conselheiro José Antonio Saraiva. APEJE, Série A.M -1859. N° 101.
livre e conquistar uma praça nessa instituição. Nesse caso, fica claro, que o imposto de
sangue apareceria, em várias situações, como ferramenta ou estratégia para burlar condições
de vida bem mais difíceis. A possibilidade de vê a criança aprendendo um ofício, o ingresso
na vida militar pela Marinha ou até mesmo o simples fato da garantia de uma refeição diária,
que bem ou mal, existia nas companhias de aprendizes, tornaram-se algumas das razões para
que os pais e tutores enviassem seus filhos aos pedidos de alistamento. Eram nessas
instituições militares que “consistia uma das pouquíssimas alternativas de aprendizado
profissional” para os garotos de famílias pobres durante o Brasil Império.
BIBLIOGRAFIA
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do século XIX. São
Paulo, SP/ Salvador, BA: HUCITEC-EDUFBA,1996.
VENÂNCIO. Renato Pinto. Os aprendizes de guerra. In: Mary Del Priore (org.). História das
crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
1
SERRANO, Carlos. Angola: nascimento de uma nação – um estudo sobre a construção da identidade nacional.
Luanda: Edições Kilombelembe, 2008, p. 61-64.
2
MOORMAN, Marissa J. Intonations: a social history of music and nation in Luanda, Angola, from 1945 to
recent times. Athens, Ohio: Ohio University Press, 2008.
3
BITTENCOURT, Marcelo. As linhas que formam o “EME”: Um estudo sobre a criação do Movimento
Popular de Libertação de Angola. 1996. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade de São Paulo,
1996, p. 27-28.
4
Consideramos importante ressaltar que a intensificação da presença portuguesa em Angola, no século XX, não
teve apenas um perfil militar. Ela foi, sobretudo, física e econômica. A população branca de Angola salta de
9.198 indivíduos em 1900 para 20.700 em 1920; 44.083 em 1940 e 172.529 em 1960. Em 1974, este número
alcança mais de 300.000 habitantes (Idem, p.28).
5
MACQUEEN, Norrie. A descolonização da África portuguesa: a revolução metropolitana e a dissolução do
império. Lisboa: Editorial Inquérito, 1998, p. 38.
6
BITTENCOURT, Marcelo. “Estamos juntos”: o MPLA e a luta anticolonial (1061-1974). 2002. Tese
(Doutorado). Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002, p. 28.
7
A ditadura salazarista implicava a impossibilidade de se travar a disputa política na esfera da legalidade, tanto
na metrópole quanto nas colônias. Contra esse tipo de colonialismo adotado por Portugal, as opções não eram
muitas. A luta teria que ser necessariamente clandestina e, consequentemente, pela via armada
(BITTENCOURT, Idem, p. 48-49).
unidade desses povos dentro das fronteiras impostas pelo colonialismo. Em um primeiro
momento, através de movimentos culturais, onde jovens intelectuais começam a conscientizar
parte da população dentro das raras possibilidades legais existentes para mais tarde nascerem,
dentro da clandestinidade, os partidos políticos que iriam conduzir a luta pela
independência13. Julgamos importante destacar que paralelamente a essa luta política de
características locais, grupos de estudantes das diversas colônias que tinham emigrado para
Portugal a fim de realizar seus estudos universitários (dada a ausência de instituições em seus
países de origem) também se organizaram em torno de associações culturais legais.
Durante os anos 1940 e 1950 jovens angolanos se reuniam em Lisboa com
demais estudantes das colônias de Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e
Príncipe a fim de formarem organizações que combatessem o jugo colonial e em prol da
independência. Em 1951 surge em Lisboa o Centro de Estudos Africanos (CEA), que reuniu
os principais futuros líderes dos movimentos pela descolonização das colônias portuguesas:
Amílcar Cabral, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro e Mário Pinto de Andrade. O
governo salazarista pôs fim às atividades do Centro, mas não findou os encontros daqueles
estudantes que deram continuidade à luta politica anticolonial na Casa dos Estudantes do
Império (CEI), através de uma intensa atividade cultural de reabilitação do patrimônio
histórico e cultural dos seus povos.
Marcelo Bittencourt afirma que uma forma de driblar a censura e as limitações
impostas pela ditadura foi a construção de uma visão nacionalista da cultura com o objetivo
de: “recuperar o patrimônio africano, sistematicamente relegado pelas autoridades coloniais
14
ao esquecimento, por meio da fundação de revistas e jornais culturais” . É fundamental
destacar que o material15 divulgado por essas publicações forneceu a base para as discussões
políticas dos grupos independentistas, muitos deles, inclusive, já organizados de forma
13
São nos centros urbanos que nascem - através de jornais escritos por intelectuais africanos - as primeiras
denúncias do modo violento com que se impôs a dominação colonial. Duas associações formadas a partir de
1929 foram importantes neste contexto: a Liga Nacional Africana e o Grêmio Africano. Com a chegada de
Salazar ao poder, em 1928, surgem condições para aqueles indivíduos que lutavam dentro das associações legais
e que procuravam de uma forma clandestina estabelecer linhas de ação que pudessem conduzir à formação de
uma consciência nacional (Idem, p.132-133).
14
BITTENCOURT, Marcelo. Angola: tradição, modernidade e cultura política. In: REIS, Daniel A.; MATTOS,
Hebe; OLIVEIRA, João P.; MORAES, Luís Edmundo S. e RIDENTI, Marcelo (orgs). Tradições e
Modernidades. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2010, p. 134.
15
Na passagem da etapa de divulgação cultural para o momento de criação e organização de pequenos grupos de
ação política clandestina, a influência do pensamento de orientação marxista foi basilar. Ele era transmitido aos
angolanos independentistas através de trabalhadores marítimos exilados do regime e por intermédio de
estrangeiros. O material a que tinham acesso incluía panfletos, revistas brasileiras e romances de escritores
identificados com o marxismo, como Jorge Amado e Graciliano Ramos. Idem, p. 136-137.
16
“Tarrafal” é o nome de uma das prisões onde eram enviados presos políticos. Alguns documentários foram
feitos sobre a prisão, dentre eles, “Há setenta anos, o Tarrafal: os últimos sobreviventes” e “Tarrafal: memórias
do campo da morte lenta”.
17
BITTENCOURT, op.cit., 1996, p. 117.
18
Ao dissertar sobre a última fase do colonialismo Gervase Clarence Smith atesta que quando, em 1961, a
revolta armada angolana abalou o império português até aos seus alicerces, muitos observadores esperavam que
Salazar fosse derrubado e que se iniciasse a descolonização. Em vez disso, Salazar sobreviveu às tentativas do
seu afastamento, optando por ficar e aguentar uma longa e desgastante guerra de guerrilhas em África. SMITH,
Gervase Clarence. A última fase do colonialismo. In: O III Império Português (1825-1975). Teorema. Lisboa,
1985, p. 201.
19
SERRANO, op.cit., p. 139.
20
Em 20 de novembro de 1961 Luandino Vieira foi preso sob a acusação de atividades subversivas. Estava
preso, aliás, quando escreveu grande parte dos seus livros, incluindo “Nosso Musseque”, redigido entre os anos
1961 e 1962.
Então emplorei:
“Peço o senhor chofer leve-me por favor
Ela não tem culpa de morar no subúrbio
Enquanto a chuva é obra de natureza”.
21
GUIMARÃES, Rogério da Silva. As vulnerabilidades dos musseques luandense na década de 1960. Anais do
XIV Encontro Regional da Anpuh-Rio: memória e patrimônio, relizado na cidade do Rio de Janeiro, entre os
dias 19 e 23 de julho de 2010.
22
MOORMAN, op.cit., p.28-55.
23
FORTUNATO, Jomo. Processo de formação da música popular angolana. Jornal de Angola. 19 de outubro
de 2009. Disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/35/processo_de_formacao_da_musica_popular_angolana. Acesso em julho de
2012.
que o “Ngola Ritmos” simbolizou a ligação entre música e política, pois alguns de seus
membros foram presos em 1959 e, também, porque utilizaram a música como uma
‘cobertura’ para a política. Em outras palavras, o “Ngola Ritmos” 24 foi fundamental para
relação entre cultura e nacionalismo, ultrapassando interpretações baseadas, exclusivamente,
em textos literários e líderes políticos25.
Pudemos verificar até o momento que em nome da independência política, os
artistas manifestaram uma soberania cultural que os moveu em direção à nação e ao
nacionalismo. Em outras palavras, o sentido da nação foi forjado no cenário musical. A autora
supracitada entrevistou vários músicos e estes argumentaram que a música estava voltada para
os problemas que tiveram e o sofrimento que passaram. Muitos cantavam em Kimbundu26 e
assim foram capazes de criticar o sistema colonial português. Neste sentido, a música figurou
como uma forma de resistência.
Sob a ótica de Marissa Moorman a música foi a prática cultural, onde os
angolanos imaginaram a nação27. Contudo, todas as canções produzidas teriam pouca
repercussão se não fossem os recursos tecnológicos, responsáveis pela gravação e divulgação
desse material. Nesta direção, o programa de rádio do MPLA “Angola Combatente” foi
basilar. Bittencourt explica:
24
Em 2009 foi lançado um documentário sobre a banda: “O Lendário Tio Liceu e os N’gola Ritmos” (Beta
Digital PAL, 52 min.).
25
MOORMAN, op.cit., p. 60-70.
26
Neste período, canções foram interpretadas em quase todas as línguas locais angolanas, mas o kimbundu foi
predominante.
27
A pesquisadora toma como referencial teórico a obra “Comunidades Imaginadas”, de Benedict Anderson.
28
BITTENCOURT, op.cit., 2002, p. 308-309. É importante ressaltar que membros ligados a PIDE passaram a
rastrear esses programas e fizeram transcrições das locuções, o que hoje nos permite consultar todo esse
material.
29
A primeira faixa do disco “Música Popular Angolana” do Conjunto N’zaji é “MPLA invulusi”.
30
MOORMAN, op.cit., p. 165-189.
31
Relembrar o agrupamento Kissanguela. Jornal de Angola. 01 de abril de 2010. Matéria disponível no site:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/relembrar_o_agrupamento_kissanguela. Acesso em julho de 2012.
32
Em 1970 Urbano de Castro foi preso pela PIDE onde esteve recluso durante três anos, na sequência de uma
tentativa de fuga para Cabinda, com o intuito de se juntar aos guerrilheiros do MPLA. A segunda tentativa
REFERENCIAIS:
ocorre em 1973. a partir daí, o cantor se juntou “Esquadrão Maiombe” com Sabata, Kiamuchi, David Zé,
Francisco Vasco Vigário e Passarão - guerrilheiros do conhecido esquadrão Mayombe. A canção “Angola
liberté” (editada em single) é desta época e angariou um grande efeito mobilizador. Castro foi um dos principais
vocalistas do conjunto musical “Fapla-Povo” (FORTUNATO, Jomo. Angola: o percurso musical de Urbano de
Castro. Jornal de Angola. 16 de janeiro de 2012. disponível em:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/o_percurso_musical_de_urbano_de_castro. Acesso em julho de 2012.
33
Nossas principais fontes são: a discografia dos agrupamentos; as capas dos álbuns; o material de arquivo da
Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE); arquivos de rádios e gravadoras; matérias jornalísticas
publicadas em periódicos e entrevistas.
SMITH, Gervase Clarence. A última fase do colonialismo. In: O III Império Português
(1825-1975). Teorema. Lisboa, 1985.
SERRANO, Carlos. Angola: nascimento de uma nação – um estudo sobre a construção da
identidade nacional. Luanda: Edições Kilombelembe, 2008.
S/autor. Relembrar o agrupamento Kissanguela. Jornal de Angola. 01 de abril de 2010.
Matéria disponível no site:
http://jornaldeangola.sapo.ao/17/0/relembrar_o_agrupamento_kissanguela. Acesso em julho de 2012.
INTRODUÇÃO
Para este trabalho foram escolhidos livros selecionados pela SEED do Paraná e
professores da rede estadual de ensino, analisando seus textos e imagens, a partir da visita in
loco em uma escola estadual no interior do estado do Paraná, deste início de século XXI.
e de perspectivas de ascensão social, quando efetivamente estes são fracassos coletivos, visto
que são resultantes de um modelo social excludente e seletivo.
Metodologicamente destacamos que nosso estudo partiu da análise de livros didáticos
de História do Ensino Fundamental, séries finais, restringindo-se ao racismo e estereótipos
presentes nos livros de História. Observando-se os textos e ilustrações propõem atividades
que valorizem as diferenças entre as raças e reflexões acerca de questões étnico-raciais.
Observando a maneira como o assunto é tratado por esses livros, foi aplicado questionários
aos alunos e professores, tendo como ponto comum a ser investigada, a visão e a formação
destes alunos frente à diversidade étnico-racial.
Do universo de alunos da escola, focou-se nos matriculados nos dois últimos anos do
Ensino Fundamental (sétima e oitava séries). No total, foram 62 alunos participantes da
pesquisa, distribuídos em duas turmas, sendo os mesmos adolescentes de 13 a 17 anos.
Do universo de professores que trabalham com as turmas selecionadas apenas sete
participaram da pesquisa.
O trabalho de campo teve duração de sete meses, de junho a dezembro de 2009. As
reflexões sobre os conteúdos referentes ao segmento social negro tomaram como referência a
experiência escolar direta de seus legítimos participantes: professores e alunos.
A pesquisa norteou-se numa abordagem qualitativa e a coleta de dados e apoiou-se em
questionários com questões fechadas e abertas para caracterizar os entrevistados nos aspectos
profissionais e pessoais.
Os livros analisados foram escolhidos pelos professores da rede estadual de ensino em
2007, e distribuídos aos alunos no ano de 2008, conforme as determinações estabelecidas pelo
(Programa Nacional do Livro Didático), sendo um dos recursos utilizados para o ensino de
História.
Na tentativa de colaborar nas discussões, reflexões e estudos sobre o estereótipo e
preconceito em relação ao segmento social negro no livro didático de História do Ensino
Fundamental, a pesquisa foi conduzida entre as indagações iniciais e as que foram surgindo.
nos currículos na ocasião da abolição da escravidão final do século XIX, sendo um dos
últimos temas abordados na sétima série.
Este fato nos transporta a pensar de que forma as bases curriculares estão organizadas
e como, em sua fragmentação pode revelar ou silenciar sobre aspectos relevantes que
interferem na produção do conhecimento. À medida que delega diferentes valores a
determinados atores sociais, estabelece o lugar que outros devem ocupar. A historiografia
centrada na visão européia, onde os elementos negros e índios aparecem como os
“diferentes”, naturaliza a idéia de que o normal é ser branco. A História da África ou mesmo
da América antes da chegada dos europeus é abortada dos compêndios escolares.
O uso intensivo do livro didático, que constitui-se em um recurso amplamente
utilizado pelo professor, tornou-se comum no Ensino Fundamental nas escolas públicas,
principalmente, a partir da distribuição gratuita pelo Governo Federal, através do PNLD
(Programa Nacional do Livro Didático).
Segundo a pesquisadora Circe Bittencourt (1997, p. 72-73), o livro didático representa
um dos principais recursos para o professor de História:
O livro didático tem sido, desde o século XIX, o principal instrumento de trabalho
de professores e alunos, sendo utilizados nas salas de aula e servindo como
mediador entre a proposta oficial do poder e expressa nos próprios currículos e o
conhecimento escolar ensinado pelo professor.
“As crianças têm necessidade de ver as cenas históricas para compreender a história. É por
essa razão que os livros de história estão repletos de imagens”. (LAVISSE apud BITTENCOURT,
1997).
Para Ernest Lavisse, historiador francês do século XIX e autor de livros didáticos, “ver
as cenas”, possibilita uma melhor compreensão dos conteúdos escritos além de facilitar a
memorização dos fatos. A utilização de imagens de uma maneira geral nos livros didáticos
cumpre os objetivos de reforçar o texto e torná-lo mais atraente para o mercado.
O caráter mercadológico e as questões técnicas de fabricação da obra didática
interferem no processo de seleção e organização das imagens e delimitam os critérios de
escolha, na maioria das vezes, das ilustrações. Os livros didáticos não podem ser caros, mas
necessitam de gravuras, como pressuposto pedagógico da aprendizagem, principalmente para
alunos do ensino elementar.
Verificamos que há uma grande quantidade de gravuras nos livros de Ensino Fundamental,
diminuindo consideravelmente nos livros de ensino médio.
Considerando que, desempenha um papel significativo na formação ideológica e cultural no
cotidiano escolar, seus textos e imagens passam a ser um forte referencial para quem o lê. Como um
importante instrumento de trabalho em sala de aula, constata-se que, muitas vezes, professores e
alunos o têm como única fonte de informação, e que funciona como sistematizador dos conteúdos da
proposta curricular oficial.
Nos livros, as imagens selecionadas reproduzem apenas cenas dramáticas: castigos corporais,
fugas e torturas. O título de um capítulo dedicado à escravidão da coleção História e Vida Integrada de
Nelson Piletti e Claudino Piletti (2007) para a sétima série reforça essa visão: Escravidão, o sofrimento
que produz riqueza. As denúncias podem ser interessantes, mas relega ao escravo o papel de agente
absolutamente passivo.
O livro didático é um instrumento importantíssimo para a efetivação do processo de ensino-
aprendizagem. Chega a ser atualmente, em muitos momentos, mais relevante que o tempo em sala de
aula, para o aluno. E suas vantagens para o professor são também bastante significativas, pois o livro
didático lhe possibilita organizar suas atividades em etapas, seleciona a abordagem ou o método a ser
usado, obedecendo a certos princípios, apresenta o que deve ser ensinado, organizando
sistematicamente o conteúdo programático.
O livro didático, portanto, pode garantir ao professor o ensejo de preencher lacunas, de
corrigir deficiências, de superar dificuldades de acrescentar informações e de conduzir reflexões
acerca dos saberes históricos difundidos pelos autores e, por outro lado, pode orientar no planejamento
das aulas, desde que não seja o único organizador e transmissor do conteúdo histórico, deixando de ser
entendido como material fundamental às práticas de professores e alunos.
Numa perspectiva histórica o livro didático de História assume funções diferentes ao longo do
processo histórico. Nas primeiras décadas da República ele tinha uma importância nacional, isto é, era
uma das falas do projeto nacional liderado pelo governo republicano, produzido por intelectuais
ligados às elites dominantes. A partir de 1930, com o início da expansão das escolas passa a chegar a
um número maior de pessoas, sendo também utilizado como divulgador das idéias nacionalistas. A
partir de 1950 e principalmente em 1970 sua produção descentraliza-se e outros grupos sociais
também participam da sua produção.
Além disso, sua repercussão muda de caráter e seus autores não mais têm a importância no
cenário político dos anteriores.
É um instrumento importantíssimo para a consolidação e disseminação de uma memória
histórica determinada que, por sua vez, marca fortemente a representação de passado de gerações
inteiras que passa pela escola. Assim sendo, através da trajetória do livro didático é possível identificar
as abordagens/memórias privilegiadas e silenciadas em seus desdobramentos. Logo, o percurso do
livro didático de História nos permite analisar diversas questões, entre elas o tratamento dado à
experiência escrava brasileira.
A maioria dos livros didáticos de História mantém, ao longo desses anos, uma história da
escravidão sustentada na análise econômica (escravo como mão-de-obra), na qual os escravos são
meros objetos e mercadorias, apresentando mudanças pontuais e secundárias no texto. Não permite a
construção de uma memória histórica mais complexa, o que certamente provoca desdobramentos na
concepção de mundo dos brasileiros ainda hoje.
Os dados apresentados a seguir comprovaram nossa hipótese inicial os textos e imagens
presentes nos livros de História trazem abordagens equivocadas, depreciativas e negativas à população
negra:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BORGES PEREIRA, João Batista. Racismo à brasileira. São Paulo: EDUSP, 1996, p. 75-
78.
COTRIM, Gilberto. História & Reflexão. 4. Vols. 1. Ed. São Paulo: Editora Saraiva 1995.
_______________. Saber e fazer história. 4. Vols. 2. Ed. São Paulo: Editora Saraiva 2004.
FARIA, Ana Lúcia G. de Ideologia no livro didático, 2 Ed. São Paulo: Cortez,1984.
MENEGASSI, Renilson José; SOUZA, Neucimara Ferreira de. A visão do negro no livro
didático de português, 2005.
PILETTI, Claudino; PILETTI, Nelson. História e Vida Integrada. 4vols. 2. Ed. São Paulo:
Ática, 2007.
SILVA, Ana Célia. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: EDUFBA, 2004.
O trabalho em sala poderá iniciar por qualquer um desses momentos, ou pelos três
simultaneamente. Ao final das atividades, em uma ou várias aulas, espera-se que o
aluno tenha vivenciado cada um deles. (DCE Arte, 2008, p.70).
[...] Por meio destes Conteúdos Estruturantes, o professor deve discorrer acerca de
problemas contemporâneos que representam carências sociais concretas. Dentre
elas, destacam-se, no Brasil, as temáticas da História local, História e Cultura Afro
1
Caracteriza-se pelo contexto histórico relacionado ao conhecimento em Arte. Esse conteúdo revela aspectos
sociais, culturais e econômicos presentes numa composição artística e explicita as relações internas ou externas
de um movimento artístico em suas especificidades, gêneros, estilos e correntes artísticas. (DCE Arte p.63)
2
É o processo de organização e desdobramento dos elementos formais que constituem uma produção artística.
Num processo de composição na área de artes visuais, os elementos formais – linha, superfície, volume, luz e
cor. (DCE Arte p.63)
3
Caracteriza-se pelo contexto histórico relacionado ao conhecimento em Arte. Esse conteúdo revela aspectos
sociais, culturais e econômicos presentes numa composição artística e explicita as relações internas ou externas
de um movimento artístico em suas especificidades, gêneros, estilos e correntes artísticas. (DCE Arte. p.63)
Podemos perceber que tanto nas DCEB - Arte como nas DCEB - História o
professor tem a liberdade metodológica para lidar com a História e a Cultura Afro Brasileira,
aprofundando aspectos que sejam pertinentes ao conhecimento dos alunos e suas relações
com outros conteúdos específicos relacionados a cada disciplina, sendo possível a todas as
séries e a qualquer momento no contexto pedagógico.
anteriormente, mas não é uma seqüência dos mesmos. Seu conteúdo inédito traz
informações que são encaminhadas por diferentes linhas de expressão – histórica,
sócio-filosófica, antropo-teológica, artística, literária e didático-pedagógica – através
de reflexões de teóricos/as oriundos/as de diversos meios (CADERNOS
TEMÁTICOS, 2008, p. 11).
específicos próprios da dança com os elementos culturais que a compõem” (DCEB – Arte,
2008, p. 73). A DCE-Arte aponta conceitos de dança, definindo que “o elemento central da
dança é o movimento corporal, por isso o trabalho pedagógico pode basear-se em atividades
de experimentação do movimento, improvisação, em composições coreográficas, e processo
de criação (trabalho artístico)”, de forma que devemos “entender a dança como expressão,
compreender as realidades próximas e distantes, perceber o movimento corporal nos aspectos
sociais, culturais e históricos (teorizar). Nas aulas de arte devem ser levantados
questionamentos de maneira que o aluno reflita sobre o “sentir e perceber” a dança, tais
como: “De que maneira o corpo se movimenta no espaço? Que relações há entre movimento e
tempo? Quais passos se repetem com mias frequência na coreografia?” (DCEB - Arte, 2008,
p74)
Perceber e ler as soluções expressivas encontradas pelo grupo para comunicar pelo
movimento e sua ideia de sentimento/ pensamento. (MARTINS; PICOSQUE;
GUERRA, 1998, p. 138).
O próprio contexto educativo pode gerar conteúdos com a inclusão das culturas
locais nos planejamentos escolares. A escola não deve isolar-se das culturas de sua
comunidade sem privar o aluno do acesso aos conteúdos universais, pois se o fizer,
Uma gênese da história da África é uma possibilidade bastante atraente mas, alem de
ser um conteúdo muitíssimo extenso, foge ao objetivo de trabalhar uma concepção
que ligue à história dos africanos no Brasil. Ao trabalharmos tal concepção podemos
ampliar as leituras de mundo dos nossos alunos discutindo a diversidade, uma vez
desde as primeiras séries do ensino fundamental é nítida a influencia judaico-cristã,
geralmente trabalhada como uma única possibilidade de concepção cosmológica de
mundo.(SILVA, 2006, p. 32).
4
Refrão da música: Tambores de Minas (Cangoma e Sansa kroma) faixa 20, do livro Outras Terras outros sons
que acompanha o um CD.
uma grande festa de miscigenação numa união entre africanos, brasileiros e afro-brasileiros.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, M. Berenice de; PUCCI, Magda Dourado. Ouras terras, outros sons. São
Paulo: Callis, 2002.
Fux, Maria. Dança experiência de vida. (trad. Norberto Abreu e Silva Neto) São Paulo.
Summus, 1983.
enchia páginas e mais páginas da revista com fotos de grandes edifícios e outros aspectos que
evocavam a modernidade das grandes cidades, além é claro das praias cariocas tomadas de
todos os ângulos e perspectivas, aproveitadas para promover um contraste com os edifícios
(símbolos da modernidade também) da orla da Cidade Maravilhosa.(Cf. Romanello 2006)
Marlise Meyrer, aponta em sua pesquisa, que na [época houve uma multiplicação de
exposições, de pintura, montagens de peças de teatro, atividades que recebiam grande
divulgação nas páginas de O Cruzeiro, práticas que esboçavam um “projeto civilizador”
defendido particularmente por Chateaubriand, desenvolvido por meio da revista:
“[...] Durante os anos 40 e 50, o folclore era considerado um “tema quente” Tanto é
verdade que se tornou movimento organizado, produtivo e influente no cenário
cultural brasileiro, segundo o estudo de Vilhena (1997). À frente desse movimento
estava Renato de Almeida, um intelectual dinâmico e bem relacionado no meio
político nacional, cuja atuação política e intelectual ainda espera um estudo à parte.
Entre os anos de 1947 e 1964, a atuação da Comissão Nacional de Folclore e a
Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro não deixam dúvida quanto à
importância política deste tema no cenário nacional, inclusive, na produção da
Cultura Brasileira.” (ROCHA, 2009, p. 222).
Por sua vez a antítese do desenvolvimento – que concorria para referenciá-lo enquanto
discurso civilizador – era representado nas matérias e reportagens, pelas pequenas cidades e
localidades afastadas. Lugares em que as boas estradas não chegavam onde as comunicações
eram precárias; não havia serviços públicos de saúde e saneamento; eletricidade disponível
em quantidade e etc.. Em suma: lugares onde o “desenvolvimento” não havia chegado.
Apresentadas dessa maneira representavam o “Brasil Atrasado”.
Tendo em vista este ambiente editorial, este artigo foi desenvolvido a partir da
hipótese de que o mesmo tipo de construção dualista – particularmente apoiado em imagens –
caracterizou-se também nos discursos sobre as religiões e as religiosidades.
Os dados levantados a partir desta pesquisa (que ainda se encontra em
desenvolvimento) mostram que nas páginas de O Cruzeiro circuladas no período de 1958 a
1961, as representações do Catolicismo eram a maioria e apareceram na maior parte das vezes
como um tipo de invocação da Civilização, ao mesmo tempo em que outras práticas religiosas
ou espirituais, recebiam um tratamento bastante resquicial – como era o caso das
religiosidades Afro-Brasileiras, do espiritismo além de outras.
As poucas representações das religiosidades Afro-Brasileiras circuladas no período
por vezes evocavam tolerância como no caso das comemorações da festa de Iemanjá. Esta foi
caracterizada pela revista como única manifestação de repercussão nacional, pública, visível,
“oficial” por assim dizer da Umbanda, qualificada mesmo que indiretamente enquanto uma
tradição popular. Ao que tudo indica, foi tratada como um tipo de folclore.
Encontramos este tipo de abordagem, por exemplo, na cobertura das comemorações de
Iemanjá, ocorridas no reveillon 1958, e publicada na edição de 18 de janeiro. Foi uma
cobertura reduzida a três fotos, com suas respectivas legendas e um comentário, dispostas em
meio a uma síntese1 dos principais eventos que marcaram o final do ano anterior, intitulada
1957 morreu entre chamas e risos. (O Cruzeiro de 18/01/ p.6-13), (ver figura 2).
Nela não há textos significativos, as três fotos cumorem ali o principal papel na
comunicação dos eventos da festa. A primeira ocupa a maior parte da página 09 e uma
pequena parte da página 08, é uma foto “genérica” que apenas mostra em foco fechado, de
costas quatro mulheres – uma em primeiro plano, uma em segundo e duas em terceiro –
vestidas de branco em meio à espuma da ondas e ramalhetes de flores. O título afirma:
Vestidos brancos sobre as águas homenagem do povo a Iemanjá, a pitoresca Rainha do Mar.
Flores, Velas, Doces. (O Cruzeiro 18/01/1958, p.7)
A segunda, ao que tudo sugere tenha sido posada, devido á organização dos
retratados, mostra um grupo majoritariamente vestido de branco, formando um semi-círculo
em torno de um prenda á Iemanjá, em primeiro plano ao lado direito, uma jovem ou um rapaz
(a imagem não possui uma qualidade que permita definir melhor o personagem) com as costas
envergadas para trás, vira na boca uma garrafa que tem nas mãos, enquanto olha em direção
ao céu. A legenda superior informa que eram: Prendas para Iemanjá numa das praias
cariocas. (ver figura 3). (O Cruzeiro 18/01/1958, p.7),
Já na terceira a legenda superior lembra que: Não faltou na festa as figuras dos
‘Negros Velhos’, a foto em foco fechado mostra um deles trajado a rigor, acompanhado por
uma jovem que estava de costas na hora da tomada.
O campo, composto pelas duas páginas, se completa com uma foto na lateral: texto de
aproximadamente dez linhas a respeito das festividades carnavalescas ocorridas no mesmo dia
1
Procedimento típico das revistas, na concepção de Ana Cristina Teodoro da SILVA: em seu livro:
Temporalidades em Imagens da Imprensa: capas de revistas como signos de olhares contemporâneos. (2011),
estas sínteses têm vários objetivos, entre eles abrir e fechar ciclos simbólicos e também organizar o tempo e a
memória.
(O Cruzeiro de 18/01/1958, p.7). Todo terço inferior das páginas 08 e 09 são ocupados por
fotos dos bailes de carnaval, que ocorreram em diversos pontos da cidade do Rio de Janeiro.
[...] Entre preces e pontos a alegria foi o denominador comum entre a última hora do
ano que morria e a primeira que estava nascendo. Os centros de Umbanda desceram
os morros e gente de todas as categorias sociais homenagearam Iemanjá no dia em
que seu nome, o mar é divinizado. Milhares de velas iluminaram a orla da praia e
milhares de ramalhetes de flores evoluíram ao sabor das ondas produzindo poética
coreografia. (O Cruzeiro 17/02/1959, p 91)
Várias fotos mostram cenas de grupos realizando cerimoniais em uma delas, uma
mulher se arrasta na beira de um lago, parecendo imitar uma cobra, durante a incorporação de
uma entidade; outras procuravam mostrar os aspectos gerais do ritual. (ver figuras 8 e 9) Uma
delas chama particularmente a atenção: a foto de uma jovem, vestida de branco, com um
lenço na cabeça, que durante o transe conversa com um homem trajando terno e gravata –
Weissmann. É ela que caracteriza, de forma indefectível o encontro entre a religiosidade
popular e a ciência. Dois lados opostos onde o popular é traduzido pela simplicidade –
simbolizado pelas roupas e gestos simples da mulher “em transe” – e o científico, revelado
por um homem elegante, vestindo uma roupa que de várias maneiras simboliza a civilização.
(ver figura 10)
Aparecendo nesta única foto - cuja legenda enfatiza que, A jovem está, segundo Karl
Weissmann, hipnotizada – o médico caracteriza desta forma os dois lugares o da Ciência e o
da Umbanda (ver figura 10). Considero que seja esta imagem, portanto, a responsável pela
definição do caráter de exploração antropológica da reportagem, conferindo às páginas de O
Cruzeiro a condição de veículo de popularização científica, reduzindo para isto as práticas da
Umbanda, retratadas pela reportagem, uma manifestação de religiosidade popular, a um frio
objeto de estudo científico, que despreza sua riqueza cultural, as fotos – de pessoas se
arrastando pelo chão e com aparência de transtornadas durante as incorporações – reforçam
por sua vez os estereótipos negativos vinculados ás práticas da Umbanda, que se caracteriza
como prática primitiva.
Uma foto do ALTAR da Tenda de Umbanda São Judas Tadeu, onde agia a mãe de
santo homicida, imagens de santos católicos confundiam-se com figuras de Caboclos,
completa o quadro do campo de abertura da reportagem (ver figura 11) (O Cruzeiro,
07/02/1959, p.39). Em outras aparecem Ezequiel com o rosto assustado entre as mãos e
Cesarina, representando outros atos da “confessada falsa incorporação”, o conjunto é
reforçado pelo subtítulo que destaca: Na delegacia de Homicídios o último ato do “show‘.
(ver figura 12) (O Cruzeiro, 07/02/1959, p.41)
“[...] a defesa de uma visão cultural eurocêntrica. Pois se alguns são bárbaros é
porque outros são civilizados e neste caso podemos deduzir que estes são
participantes de uma religião culta, fina e humana. Por exclusão este seria o
cristianismo principalmente o católico, a religião praticada pela maioria da
população da época. (ROMANELLO, 2009 (b), p.1068)
O desenvolvimento desta primeira parte da pesquisa permitiu ainda perceber que tais
manifestações tendiam a ocupar um espaço resquicial, nas edições um tema abordado muito
raramente enquanto uma “curiosidade” ou “crendice”. Um tipo de representação distorcida de
folclore. A escassez na cobertura do assunto tendeu a relegar as religiosidades Afro-
Brasileiras a um tipo de “discurso do silêncio”.
fato aparentemente curioso, a de que padres e freiras – tradicionalmente vistos como reclusos
e formais – praticassem ginástica. Nas fotos extremamente plásticas, bambolês ajudam a
destacar o movimento e a sincronia.
Em contraste – artifício típico também do fotojornalismo – todos os padres e freiras
trajam hábitos pretos, uma vestimenta formal – enquanto algumas freiras usam chapéus
brancos que fornecem contraste á cena. O lugar das atividades era um amplo parque público
arborizado e limpo concorrem também para reforçar os aspectos positivos da cena. O discurso
escrito, por sua vez, enfatizava a organização e a ordem, bons exemplos de religiosos que
participam de práticas saudáveis, no caso a ginástica ao ar livre.
Referências
Esse artigo tem como objetivo analisar de que maneira o currículo, com a
denominação de Lei 10.639/03, tem sido recebido pelos professores, enfocando nas
especificidades curriculares e no quanto a efetivação ou não de uma política curricular se
sujeita a decisões dos professores. Ao mesmo tempo, buscaremos contemplar a importância
das experiências formativas, no âmbito pessoal e profissional, sobre as ações, as resistências e
apropriações feitas para o trabalho em sala de aula. O universo escolar é regulado por uma
série de leis e normatizações que, teoricamente, limitam o trabalho docente e o disciplina. Há
cronogramas a serem cumpridos, conceitos a serem trabalhos, enfim, o currículo mínimo a ser
seguido, todos esses aspectos se encontram dentro dos limites físicos do espaço escola e,
deverá atingir o maior número possível de educandos. Dentro de uma concepção teórica
certeauniana, o currículo e nesse caso a Lei 10.639/03, seriam as estratégias institucionais e
governamentais, para que os professores ensine aos educandos aquilo que essas esferas
esperam que eles saibam. No entanto, essas estratégias governamentais carecem da aceitação
dos docentes para se efetivarem. Os estudiosos em currículo como Godson, por exemplo,
1
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faz saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A 79-A e
79-B:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o
ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)"
"Art. 79-A. (VETADO)"
"Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’."
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
atentam para o fato de que “[...] o currículo escrito não passa de um testemunho visível,
público e sujeito a mudanças, uma lógica que se escolhe para, mediante sua retórica, legitimar
uma escolarização.” (GOODSON, 2005, p. 21). A compreensão dos mecanismos de
realização curricular esta sujeita à análise das ações dos sujeitos sobre elas, nesse caso à ação
dos professores de história sobre a Lei 10.639/03, não havendo a validação de uma proposta
curricular pelos professores, essa estratégia governamental não ultrapassa as fronteiras da
prescrição, criando uma lacuna entre o esperado e o realizado.
Tomarei a liberdade de no início desse artigo citar de Jorn Rüsen, para quem “a
história é o espelho da realidade passada na qual o presente olha para aprender sobre o futuro”
(RÜSEN). Desde nove de janeiro de 2003, olhar para o passado de mais da metade da
população brasileira─ já que, de acordo com o censo 2010 do IBGE, 50,7% da população se
declara negra ou afrodescendente─ tornou-se obrigatório, ao menos, para o sistema nacional
de ensino fundamental e médio. A Lei 10.639/03 veio em respostas às antigas reivindicações
do movimento negro, que almejava há muito a inserção de um conteúdo abrangendo história e
cultura africana e afrobrasileira na formação educacional. Muitas foram às críticas e os
questionamentos acerca da real necessidade de tal medida, o sistema, aparentemente,
funcionava sem que precisasse contemplar, de forma mais aprofundada, as questões
relacionadas aos negros no Brasil e a seus antepassados África. Exceção feita aos conteúdos
relacionados à escravidão sempre presentes nos estudos de história do Brasil, embora neles, o
elemento negro apareça destituído de historicidade, não chegando a se tornar sujeito de sua
história e, ainda nesse caso o processo histórico é cronologicamente definido e fechado, como
um ciclo que se iniciou no século XVI, com as primeiras plantações de cana-de-açúcar, e
chegou ao fim com a abolição no século XIX. Findado esse período fez-se silêncio, na
disciplina escolar história, sobre os caminhos e descaminhos tomados pela população negra
brasileira, as questões passaram a ser discutidas sob a ótica das mazelas sociais sem qualquer
conotação étnica-racial. Essa lacuna é resultante do emudecimento que se fez em relação a
esse passado ainda tão recente, quando considerado por meio de uma perspectiva histórica,
contudo novas corrente educacionais e historiográficas tem, desde a década de 1990, insistido
em teses que privilegiam uma educação multicultural para despertar discussões acerca dos
problemas étnicos no Brasil, e principalmente, gerar um sentimento de pertencimento
histórico aos meninos e meninas afrodescendentes matriculados na rede de ensino brasileira.
Circe Bittencourt, corroborando com essas prerrogativas nos diz que:
Esses são pontos de confluência entre Tardif & Raymond e Thompson, ambos
concordam e ressaltam a importância das experiências, e o efetivamente vivido não é um fator
excludente das possibilidades de mudança, mas é determinante das práticas. Um currículo não
vivenciado, imposto, sem prévia consulta, mesmo quando se entende a importância social e
cultural de sua realização está sujeito à rejeição, especialmente, se ele tem implícito lidar com
o diferente, com o não conhecido, o não vivido. Qualquer discussão envolvendo a Lei
10.639/03 e os novos valores que se planejou construir a partir de um olhar inovador sobre o
passado dos negros e descendentes no Brasil prescinde da aceitação e análise de que, no
campo da educação, até 2003 o Estado não se interessou pelo passado desses milhões de
brasileiros. Portanto, ao privilegiarmos a experiência presente em Thompson, temos uma
ausência de vínculo, de relação entre a maioria dos professores e essa proposta que visa rever
os conteúdos sobre a África e a cultura afrobrasileira, uma vez que:
Os valores não são apenas “pensados”, nem “chamados”; são vividos e emergem no
interior do mesmo vínculo com a vida material e as relações.
materiais em que surgem nossas idéias. São as normas, regras, expectativas etc.,
necessárias e aprendidas (e “aprendidas” no sentimento), no habitus de viver; e
aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na comunidade imediata.
(THOMPSON, 2004, p. 367).
deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os
documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam”, implica em ignorar a
realidade contribuindo para a não mudança. (Certeau, 1982, p.57)
BIBLIOGRAFIA:
GOMES, N.L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2 ed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
GOODSON, Ivor. F. Currículo: Teoria e História. Petrópolis: Vozes, 2005. (Trad. Atílio
Brunetta)
THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou planetário de erros. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
(Trad. Waltensir Dutra).
1. INTRODUÇÃO
Neste exato momento alguém está escutando música reggae, ouvindo alguma letra que fala de
paz, amor, igualdade e de um mundo unido pelo respeito dos seres humanos, através de
mensagens que se repitem em todos os continentes e em quase todas as línguas. A música
reggae é apreciada por milhões de pessoas em todo planeta, mas nem todas conhecem quem
foi o tão nomeado Haile Selassie ou Jah Rastafarai. Este texto tem como objetivo esclarecer a
tão controvertida figura do Imperador da Etíopia Haile Selassie I. Quem foi Haile Selassie,
um Deus negro ou um Imperador absolutista que governou seu povo com mão de ferro? Seja
quem for não podemos negar que o último Negus Neguest1 Etíope é uma das personalidades
mais importantes na história da África e consequentemente na história da humanidade, já que
a música reggae a tornou conhecida em todos os continentes. Por isso, o texto abordará temas
como: a história da Etiópia, uma breve biografia do Haile Selassie I e uma abordagem sobre o
movimento rastafári e a música reggae, já que esta foi transmissora da mensagem rasta e
ferramenta para contar a história da África e da escravidão aos mais diversos povos.
1
Negus era o título usado pelos antigos monarcas etíopes desde a antiga Abissínia. Negus Nagast significa: rei
dos reis.
culturas humanas son culturas históricas, pero la propia humanidad del negro
africano es algo que ha sido puesto en cuestión. Y aún cuando ese no fuera el
caso, las culturas negras fueron consideradas como ahistóricas en tanto
ágrafas, perspectiva ésta de dudosa legitimidad, no sólo por la frecuente
existencia de documentación escrita, sino también porque, de ninguna
manera, puede considerarse a la escritura como el único elemento productor
de historicidad.” (2001, p.5)
O caso de Etiópia deve ser analisado com outros olhares. Nos tempos da Grécia antiga,
concretamente já nos tempos do Homéro, existia o Estado de Kush. Nessa época os etíopes
eram, segundo Ferran Iniesta, “todos aqueles negros que moravam no sul do império egípcio e
que eram nomeados como cara queimada” (2007, p.269). As principais fontes historiográficas
que podemos utilizar para reconstruir a história da Etiópia antiga datam do século II e III. A
primeira fonte, que faz referência aos povos etíopes, é o escrito de Claudio Ptolomeu, que
apesar de ignorar a existência do reino de Axum conhecia as cidades de Meroe e Adulis. A
segunda foi o romance escrito em grego antigo, Aethiopica, do Greco-fenicio Heliodoro, onde
se relata a chegada de embaixadores axumitas em Meroe. A maioria dos habitantes do
Império de Axum dedicava-se à agricultura e a criação de animais, um tipo de vida que
poderíamos observar hoje em dia na região do Tigre. O judaísmo também teve presença na
Etiópia daquele tempo, como menciona de forma breve o Tarike Neguest (História dos Reis),
onde se constata que um grupo hebraico teria inclusive governado. Segundo a História dos
Reis, o cristianismo foi introduzido na Etiópia, no século IV, por Frumêncio,2 quem seria
chamado Kessate Brhan (Iluminador) ou Abba Selama (Pai da Paz). Furmêncio, que conhecia
bem sua cultura grega, se converteu em tesoureiro, conselheiro e tutor dos filhos do rei. A
educação dada por Frumêncio ao jovem príncipe fez com que ele abraçasse a nova religião
cristã. Graças à visita do Frumêncio ao patriarca Atanasio de Alexandria, este teve notícias da
boa acolhida do cristianismo pela família real da Axum e decidiu consagrar Frumêncio como
bispo de Axum. Já como Bispo, batizou toda a família real, iniciando assim a longa tradição
cristã na Etiópia.
A aparição do Islã, no século VII, fez mudar as relações dos povos que viviam entre as duas
margens do Mar Vermelho. Há alguns documentos que nos permite analisar o que ocorreu
nessa época, como por exemplo, a carta enviada pelo profeta Maomé ao Negus etíope, para
2
Frumêncio era Sírio-grego-fenício, faleceu em 383 e foi considerado o primeiro missioneiro na África.
Venerado como um santo pelas igrejas: Católica Romana, Copta, Etíope e a Ortodoxa (por ter expandido o
cristianismo pela Etiópia).
intentar converte-lo ao Islã. Entretanto, nos tempos em que Maomé ainda estava vivo as
relações entre os muçulmanos e os etíopes nem sempre foram amistosas. Entre os embates
sucedidos, o mais relevante se refere ao fato de que os muçulmanos acabaram controlando o
comércio no Mar Vermelho e espalhando o Islã pela África, conseguido assim isolar reino da
Etiópia (Cerrulli, 2010).
Um fato histórico que marcou a história de Etiópia foi o cambio de dinastia, ocorrido em
1270, de Zagwe se passou a Dinastia “Salomônida”. Essa é uma das bases do movimento
rastafári e do poder de Haile Selassie I, já que foi considerado descendente do rei Salomão.
Nesse tempo havia no país: judeus (falaches) e muçulmanos. O historiador italiano Conti
Rossini descreve a Etiópia como um “museu de populações”, devido à complexidade do
quadro étnico e linguístico etíope. Os Imperadores consideravam que ao estarem associados à
dinastia “Salomônida” e ao cristianismo estariam ligados animicamente a culturas ocidentais,
situada geograficamente distante deles, separando-lhes do potente mundo muçulmano que
dominava o Indico no século XIV. O contato com Portugal ajudou a ter uma continuidade no
sistema político, que era ameaçado pela nova religião do profeta Maomé, marcando o ideário
do Estado Abissínio e a sua inserção no mundo cristão ocidental (Iniesta, 2007).
Nos inícios do século XIX, os Imperadores tinham perdido poder frente aos senhores feudais,
porém ainda conservam o poder nominal. O Negus Teodoro II (1855-1868) conseguiu
unificar o Império frente ao poder dos senhores feudais, graças a superioridade do seu
armamento de origem estrangeiro. Essas mesmas armas em mãos dos ingleses derrotaram o
Imperador numa expedição punitiva. Esse fato fez com que os dirigentes da Etiópia
compreendessem que precisavam de mais armas modernas para dominar o Império e para se
defender dos embates coloniais estrangeiros. João ou Yohannes IV foi o sucessor do Teodoro
II e governou a Etiópia entre 1872 até 1889. Ele definiu sua estratégia de governo através de
uma aliança com os colonialistas, afirmando que Abissínia era cristã e civilizada. No período
entre 1889 e 1913, quem dirigiu o Estado foi o Imperador Menelik II, corresponde a um
tempo em que a entrada dos europeus na África foi intensa. No dia 1 de Março de 1896, na
batalha de Adua, a mas importante da guerra Italo-Abissínia, as tropas do Imperador
derrotaram os planos imperialistas italianos deixando 10.000 mortos no campo de batalha.
Esse fato obrigou as potências europeias a reconhecerem internacionalmente Abissínia com o
novo nome de Etíopia. De acordo com Iniesta (2007, p.269), “Etiopía surgiu assim como
entidade antiga, civilizada e poderosa no âmbito militar”.
No dia 23 de Julio de 1892, nasceu na vila de Ejersa Goro, na província de Harar, uma das
figuras mais importantes da historia contemporânea africana, Haile Selassie I. Foi regente da
Etiópia desde 1916 até 1930 e Imperador da terra cristã negra entre 1930 e 1975. O seu nome
de nascimento era Lij Tafari Makonnen (Lij significa “criança”, foi utilizado para identificá-lo
como jovem de sangue nobre, e Tafari quer dizer “aquele que é respeitado”). Mais tarde o
nome Lij foi incluído por Ras, que seria equivalente a duque e literalmente significa “cabeça”
(Murrell et al, 1998). Dessa forma, seu nome completo, antes da coroação, ficou sendo: Ras
Tafari Makonen. Assim, se pode identificar a origem do nome do movimento Rastafari.
O jovem Tafari participou ativamente no movimento para derrocar ao Imperador Lij Iyasu
(que governou entre 1913 e 1916, mantendo estreita relação com a religião muçulmana). Com
a derrota do Imperador Lij Iyasu, a Imperatriz Zewditu assumiu a regência enquanto Tafari
era menor de idade. Durante esse período, Ras Tafari se responsabilizou pela administração
do império (Marcus, 1994). O novo príncipe herdeiro continuou a política iniciada por
Menelik II para a modernização do país e conseguiu (em 1923) a admissão da Etiópia na Liga
das Nações, com a promessa de acabar com a escravidão (que apesar de ter sido abolida
oficialmente, ainda perdurou por muitos anos). O futuro Negust de Etiopia iniciou em 1924
uma grande turnê que lhe levaria até Jerusalém, Cairo, Alexandria, Bruxelas, Amsterdã,
Estocolmo, Londres, Genebra e Atenas. Durante essa viagem visitou escolas, fábricas,
hospitais e igrejas com o propósito de adquirir conhecimento para a modernização de seu
país. Haile Selassie, segundo seus próprios escritos, acreditava que “precisamos de progresso
europeu só porque estamos cercados por ele. Isso é ao mesmo tempo um beneficio e uma
desgraça” (apud Rogers, 1936, p.27). A atenção da mídia europeia a princípio esteve voltada
para a pitoresca vestimenta que utilizava o futuro Imperador e sua comitiva, segundo Anthony
Mockler (2003, p.3), “raramente uma turnê inspiraram tantas anedotas”.
Em seu país, o futuro Imperador teve que controlar a política interna lutando contra o
governador da província de Sidamo (rica produtora de café), Dejazmatch Balcha Safo, e
contra um golpe de estado realizado por alguns nobres etíopes. Porém, a superioridade
armamentista do exército do Ras Tafari, juntamente com o suporte popular e da polícia
nacional, ajudou a controlar o golpe (Roberts, 1986). No dia 7 de outubro de 1928, a
Imperatriz Zewditu I coroou Ras (príncipe) Tafari, que passaria a ser Negus (Rey) Tafari. O
primeiro grande problema que teve que afrontar o novo Imperador foi a invasão da Etiópia
por parte da Itália fascista de Musolini (de certa forma como represália à dura derrota sofrida
pelo exército italiano em 1886, em Adwa, que segundo Sbacchi (1985), “foi a maior derrota
sofrida por uma potência europeia por parte de um exercito africano”). Benito Mussolini nos
seus planos de glorificar a Itália emulando o antigo Império romano dirigiu as suas ânsias
imperialistas contra África. Sobre Etiópia o líder fascista proclamou: “prefiro declarar a
guerra na Grã Bretanha e França antes que abandonar a conquista de Etiopía” (ARON, 1996,
p.67).
A guerra entre a Itália fascista e a Etiópia imperial foi bastante desigual, já que a potência
europeia contava com um armamento superior. Em princípios de outubro de 1935, se deu
início à invasão italiana, com o plano de conquistar rapidamente o território. Diante da brava
resistência etíope, Mussolini decidiu que o seu exército utilizasse gás mostarda, proibido pelo
Protocolo do Gás em Genebra, assinado por Itália e Etiópia, ademais de outros países, em
1925. As armas químicas, usadas não só contra o exército etíope, mas também contra a
população civil, causou milhares mortos. O transcurso da guerra foi relatado por Haile
Selassie em sua autobiografia:
Mesmo que os italianos fossem superiores no manejo do armamento
moderno, nossos soldados tinham a vantagem devido a sua coragem.
Tínhamos ganhado as batalhas nas regiões de Tambien e Shiré, e apesar de
combater com rifles obsoletos, como o fuzil Gras, conseguimos apropriar de
Todo isso porque o Marechal Graziani prometeu a Mussolini dar-lhe a Etiópia “com etíopes
ou sem eles” (Boca, 1969, p.113). O objetivo final dos italianos era trasladar um grande
número de camponeses italianos para as terras fértil da Etiópia. Graziani massacrou civis nas
batalhas de Ogaden (em 1936) e bombardeou o país com gás mostarda. No dia 30 de Abril de
1936, Haile Selassie fugiu para a capital Adis Abeba devido à pressão militar da invasão
imperialista, lá na capital reuniu a todos os nobres e ministros para aprovação dos acordos.
Dentro do contexto da segunda guerra mundial, os britânicos junto com os resistentes etíopes
conseguiram acabar com a invasão italiana. Os etíopes não quiseram uma grande vingança
pelas matanças, devido sua cultura religiosa de tolerância e dignidade e graças também a
pressão internacional de Grã-Bretanha e dos EUA. A ocupação italiana acabou com
instituições tradicionais e com o mito da divindade do Imperador. Porém, Haile Selassie,
depois de uma grande campanha de propaganda, voltou para restaurar seu poder em 5 de
Maio de 1941 (desta vez para governar por mais 30 anos). A ausência do Negus e a
resistência dos “Patriotas” deram entrada a novos ideais de justiça social para o povo etíope,
ideias estas que o novo governo tinha que considerar com seriedade. Mas, a modernização
política não ocorreu com a força desejada pelos antigos combatentes da resistência, dessa
forma a política absolutista tradicional do regime imperial continuou.
Em 1960, Haile Selassie visitou Brasil, o país com mais população negra fora da áfrica. No
dia 02 de dezembro, chegou a Recife com uma comitiva de 25 pessoas, depois se foi a
Brasília onde teve uma audiência com o então presidente Juscelino Kubitschek e visitar o
Congresso Nacional e o Superior Tribunal de Justiça. Logo se foi a São Paulo para audiência
com o então governador Carvalho Pinto e para um encontro com as lideranças populares do
ABC paulista. No dia 15 de dezembro, foi obrigado a voltar ao seu país para controlar um
Golpe de Estado perpetrado pelo político Germane Neway3, que pretendia implantar políticas
mais progressistas e afastadas dos velhos privilégios nobiliários, acabando assim com o antigo
sistema político e a corrupção. O golpe foi sufocado por as forças leais ao Imperador, que
voltou do Brasil com o seu poder reconstituído.
No dia 25 de Maio de 1963, o impulso de Haile Selassie, junto com Kwame Nkrumah e
Gamal Abdel Nasser, ajudou a fundar a Organização da Unidade Africana (OUA) com sede
permanente em Adis Abbeba. A Organização tinha como meta promover a unidade e a
solidariedade entre os estados africanos, ser a porta-voz da África, lutando contra o
colonialismo e promovendo a cooperação Internacional. O Negust etíope tinha um grande
prestígio internacional fazendo parte da cúpula do Movimento dos Países Não-Alinhados. Na
Etiópia, a popularidade do Imperador teve uma queda significativa, devido aos protestos dos
estudantes, à repressão, às desastrosas propostas de reforma agrária, os intentos de
enfraquecer os sindicatos, mantendo assim intactos os privilégios da nobreza e do clero. Em
1974, o Derg (comitê de militares) conseguiu deter a maior parte dos políticos e oficiais e, no
dia 12 de setembro desse mesmo ano o Imperador foi preso no seu palácio, acabando-se assim
com a Monarquia e o absolutismo. No dia 27 de Agosto de 1975 a mídia estatal informou que
o Imperador Haile Selassie havia morrido devido a uma insuficiência respiratória, após
complicações em uma operação de próstata4.
3
Germane Neway foi nomeado governador da província de Sidamo (a maior produtora de café), quando voltou
dos seus estudos nos Estados Unidos. Durante o seu governo iniciou um programa de construção de escolas e
defendeu a entrega de terras não cultivada ao “sem-terra”, coisa que fez que a oligarquia da província provoca-se
a sua substituição e o envio do político para uma das áreas menos povoadas do pais, Djidjiga.
4
Essa é a versão oficial, mas existe uma grande polêmica com relação à morte de Haile Selassie. Há inclusive
suspeitas de assassinato.
pelos direitos dos africanos, enquanto que seu país continuava controlado pela oligarquia
tradicional, o feudalismo e o absolutismo do Negust, que não media esforços em reprimir
protestos ou lideranças opositoras. No dia 5 de Novembro de 2000, Haile Selassie teve um
funeral ao estilo imperial realizado pela igreja Ortodoxa Etíope. Algumas figuras do
movimento rastafári, como Rita Marley (esposa de Bob Marley) assistiram ao funeral,
daquele que governou Etiópia e foi considerado um Deus pelos rastafáris.
Na década de 1930, apareceu nas favelas da Jamaica (país com aproximadamente 98% de
descendentes de escravos) o movimento espiritual chamado Rastafári ou Rasta. Na concepção
dos Rastas, o Imperador Haile Selassie era um Deus encarnado, o “Segundo Advento”, a
“reencarnação de Jesus” ou “o rei escolhido por Deus na terra”. O movimento ficou
reconhecido pelo nome que possui Haile Selassie antes de se tornar rei: Ras Tafari. Devido
sua difusão principalmente através da música reggae, Haile Selassie foi conhecido também
como o Deus “Jah Rastafári”. O movimento tem como temas principais: a proclamação da
África (e também Zion ou Etiópia) como berço original da humanidade; a rejeição da
sociedade ocidental (que chamam de Babilônia, fazendo uma metáfora com o novo
testamento cristão); o uso espiritual do cannabis; a paz; o amor; a unidade; a solidariedade e a
igualdade entre os povos. Também se destacam como temas centrais a repatriação dos afro-
americanos à África e as várias reivindicações sociais e políticas, como, por exemplo, o Pan-
africanismo – uma das reivindicações que surgiu com Marcus Garvey, considerado pelos
Rastas o profeta do movimento, seu correspondente no Cristianismo seria João Batista.
Não é objetivo de este trabalho aprofundar na história do movimento Rastafári, assim que
limitaremos a relatar sua criação relacionada ao fato de possuir como Deus o Imperador
Etíope Haile Selassie. Sendo um movimento quase religioso criado por afro-americanos, a
filosofia Rasta se espalhou pelo mundo devido à música reggae e ao seu máximo
representante, Bob Marley (1945-1981). Atualmente pessoas de todos os continentes escutam
a música reggae (desde Mongolia até Fiji), propagando-se assim a mensagem de paz, amor,
unidade, solidariedade, igualdade, respeito, etc. Uma das músicas mais revindicativas de Bob
Marley, a canção “War” de 1976, é uma versão sobre o discurso Haile Selassie na
Conferência das Naçoes Unidas em Nova York (em 1963). Como portador da mensagem dos
32 chefes de Estado africanos, Haile Selassie fazia uma chamada à paz mundial, à justiça, à
igualdade e ao fim da exploração dos povos africanos. No fim do discurso o Imperador
ressalta que o que estava dizendo eram somente palavras e que dependeria da vontade de cada
um colocá-las um valor. O discurso estava baseado portanto em como a discriminação afeta
negativamente a Paz.
A visita que realizou Haile Selassie à Jamaica, em 21 de Abril de 1966, foi histórica para o
movimento rastafári. Milhares de pessoas afro-americanas receberam o seu “Deus negro” com
cantos espirituais religiosos. O Imperador declarou no parlamento da Jamaica que “onde quer
que exista sangue africano, haverá a base de uma maior unidade” (EDMONDSON, 2010,
p.1034). Se poderia dizer que a música reggae contribuiu para a globalização de uma filosofia,
de um jeito de pensar, de uns valores universais que unificam pessoas dos mais variados tipos
e lugares. Esse estilo musical é fruto da espiritualidade e também um canto de lamento pelos
quatrocentos anos de escravidão, pela Apartheid, a discriminação racial, e outros “inventos”
das elites que tentam justificar o seu domínio sobre a maior parte da população. A música
serve também como ferramenta de luta pacifica, mostra passagens intolerantes da história
humana e serve para conscientizar as pessoas.
5. CONCLUSÃO
A controvertida figura de Haile Selassie pode ser analisada desde diferentes prismas, porém
cabe ressaltar que no âmbito internacional o Imperador teve um grande reconhecimento entre
as potências mundiais. Conseguiu “unificar” a África na Organização da Unidade Africana
(OUA) que tinha sede permanente em Adis Abbeba e estimulava a unidade e solidariedade
entre os estados africanos. Esta organização seria a porta-voz da África na lutar contra o
colonialismo e promoção da cooperação Internacional. O Negast também teve protagonismo
no Movimento dos Países Não Alinhados e realizou inúmeras visitas oficiais onde foi tratado
com o máximo respeito. Porém, o último membro da dinastia salomônica (como ele mesmo se
referia), governou duramente o seu povo, reprimindo e obstaculizando os avanços políticos e
perseguindo os opositores. Modernizou a capital e deixou à margem de seus interesses a zona
rural, que continuava sob o domínio das elites tradicionais. O país se constituía, portanto, em
um regime absolutista, onde o poder do Imperador era indiscutível e sagrado, a igreja
ortodoxa etíope conservava os seus benefícios e o sistema feudal continuava sendo mantido.
O Negast etíope representa uma figura central no movimento rastafári jamaicanos como um
Deus negro. Porém, Haile Selassie recusava esse pensamento, afirmando que ele era um
devoto cristão etíope e por esse motivo não podia ser um Deus. Não é trabalho de um
historiador julgar a Fé dos Rastas, mas sim analisar o impacto desse movimento através da
música reggae. A Etiópia, o reino cristã da África, com uma grande história percorrida, teve
visibilidade no mundo devido ao trabalho diplomático do Imperador. O movimento rastafári,
por sua vez, uniu os afrodescendentes americanos com África e a musica reggae o conectou
com o resto do mundo, através das mensagens pacifistas, de respeito e tolerância, temas
validos em qualquer lugar do mundo.
Constata-se, portanto, que Haile Selassie representa uma figura contraditória. Foi um
Imperador absolutista, que governou com “mãos de ferro” e ao mesmo tempo um Deus negro,
para muitos seguidores do movimento rastafári. Considerando que cada indivíduo tem sua Fé,
não podemos desprezar os sentimentos ou formas de pensar de qualquer outra cultura alheia a
nossa.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARON, R. Peace and war: A theory of International Relations. Londres: Weidenfeld and
Nicolson, 1966.
DE CASTRO, L. Nella terra dei Negus, pagine recolte ín Abíssinia. Milão: Fratelli Treves,
1915.
DEL BOCA, A. The Ethiopian War 1935-1941. Chicago: University of Chicago, 1969.
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África VIII, África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010. p. 849-872.
INIESTA, Ferran. Kuma Historia del África negra. Barcelona: Edicions Bellaterra, 2ª ed.
2007.
MARCUS, H.G. Haile Selassie I: The formative years, 1892-1936. Berkley: University of
California Press, 1987.
MAZRUI, A.A. Introdução. MAZRUI, A.A. História Geral da África VIII, África desde
1935. Brasília: UNESCO, 2010. p. 1-29.
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MURRELL, N.S. SPENCER, W.D. MCFARLANE, A.A.. Chanting Down Babylon: The
Rastafari Reader. Filadélfia: Tempel University Press, 1998.
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SBACCHI, A. Ethiopia Under Mussolini: Fascism and colonial Expiriences. Londres: Zed
Books, 1985.
SELLASSIE, G. Chronique du regne de Menelik II, roi des rois d’Ethiopie. Paris:
Maisonneuve, 1930.
SELASSIE, H. My life and Ethiopia’s Progress, Volume One: 1892-1937. Chicago: Frontline
Press, 2003.
1
Basilianos por pertencerem à Ordem de São Basílio Magno.
Os textos publicados no Jornal Prácia compõem uma rede discursiva sobre diferentes
assuntos. Nesse trabalho nos interessam aqueles ligados à alimentação. Entende-se que essa
rede discursiva cria e ensina saberes a respeito do paladar e da comensalidade e estão
relacionados com os jogos de verdade da respectiva época. Considera-se a noção de verdade
associada aos discursos, essa noção é fundamentada por Foucault (1999):
A verdade é desse mundo, ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele
produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade,
sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros; os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os
enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns aos outros; as
técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o
estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro
(p.12).
o alimento é algo universal e geral. Algo que diz respeito a todos os seres humanos:
amigos ou inimigos, gente de perto ou de longe, da rua ou da casa, do céu ou da
terra [...] Por outro lado, comida se refere a algo costumeiro e sadio, alguma coisa
que ajuda a estabelecer uma identidade, definindo, por isso mesmo, um grupo, classe
ou pessoa (p.55).
Embora Da Matta estabeleça uma distinção entre comida e alimento, Santos (2005)
reforça que o alimento constitui uma categoria histórica já que os padrões de permanência e
mudanças dos hábitos e práticas alimentares fazem parte da dinâmica social. “Os alimentos
não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois
constitui atitudes, ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum
alimento que entra em nossas bocas é neutro” (SANTOS, 2005, p. 165). Assim, é possível
traçar uma relação entre o que se come e os sentimentos, “sempre representados nas histórias
individuais, dos momentos ritualizados que começam com a escolha dos ingredientes,
processos culinários, maneiras de servir e de comer” (LODY, 2004, p. 14). Nessa perspectiva,
as manifestações culturais e sociais dão conta de explicar a historicidade da sensibilidade
gastronômica, pois são reflexos de seus respectivos contextos. Desse modo, “o que se come é
tão importante quanto quando se come, onde se come, como se come e com quem se come”
(CARNEIRO, 2003, p.2). Estes enunciados ilustram bem o lugar da alimentação na História.
Conforme uma das proposições iniciais desse texto, nesse momento destaca-se o que
se entende por genealogia, um conceito aqui considerado como ferramenta de análise dos
sujeitos. A idéia de genealogia em Foucault representa uma forma peculiar de análise para
compor críticas a instituições específicas e para a teorização de uma ampla gama de diferentes
práticas. No capítulo 2 do livro Microfisica do Poder, ele trabalha com o conceito de
genealogia de Nietzsche, apropria-se dele para fundamentar sua própria perspectiva de análise
genealógica. Ele defende que a finalidade da genealogia é trabalhar com aquilo que não é
histórico propondo um proceder histórico de se ater às lacunas, às descontinuidades em
oposição à metafísica enquanto pesquisa da origem (Ursprung). Foucault estabelece sua
própria noção de origem, proveniência e emergência. A pesquisa de proveniência revela que
na origem não se encontra pureza, mas sim o acidente, a descontinuidade. Associa também a
herkunft, essa proveniência ao corpo, na forma de marcas e práticas que nos foram deixados
pelos ancestrais, articulando assim o corpo com a história, que inscreveria no corpo a marca
dos acontecimentos. “A genealogia, como análise da proveniência, está, portanto, no ponto de
articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de
história e a história arruinando o corpo.” (FOUCAULT, 1999, p. 22)
Os enunciados de Foucault contribuem para o entendimento do processo de
constituição dos corpos marcados pela história. Nessa perspectiva considera-se o corpo como
passível de historização, que traz em si as mais diversas acepções humanas, dores, prazeres,
paixões, enfim, forças e fraquezas em contextos específicos.
O corpo – é tudo que diz respeito ao corpo, a alimentação, o clima, o solo – é o lugar
da Herkunft: sobre o corpo se encontra o estigma dos acontecimentos passados do
mesmo modo que dele nascem os desejos, os desfalecimentos e os erros; nele
também eles se atam e de repente se exprimem, mas nele também eles se desatam,
entram em luta, se apagam uns aos outros e continuam seu insuperável conflito.
(FOUCAULT, 1995, p. 22).
A partir dessa perspectiva considera-se que nos discursos do jornal Prácia em questão,
há sentidos que podem ser tomados como verdades e que em determinados contextos
Textos como esses que estimulam uma dieta voltada ao religioso que é seguida no
período da quaresma por boa parte dos descendentes de ucranianos. Aparecem ainda no
Prácia sugestões que ajudam a “construção” da dona de casa: como arrumar a casa ressaltando
a fé.
Que as nossas donas de casa cuidem de suas casas, para que torne-se agradável
entrar nelas [...] Quadros com imagens de Deus, de Jesus e de algum Santo devem
ser grandes e devem ser pindurados acima de todos os demais quadros ou fotos.
Deus é o todo grandioso por isso merece o primeiro lugar. Nem um outro quadro
deve ser pindurado acima das íconas [...] (JORNAL PRÁCIA, 23 de janeiro de
1964, número 3, p. 6)
2
Borch: sopa a base de repolho, carne suína e beterraba. Holupti: folha de repolho recheada com carne moída e
arroz. Babka: pão doce. Kapusniak: folhas de repolho azedo e temperado.
possível associar a tentativa de substituição dos ingredientes “originais”, da receita matriz, por
elementos disponíveis na própria propriedade rural, o que denota uma adaptação na culinária.
O Borsch, assim como outros pratos varia de acordo com cada região da Ucrânia.
Existem muitas variações de receita dessa sopa. Trata-se de um dos pratos fundamentais da
mesa natalina. Também é um prato que contempla ingredientes ricos em nutrientes, como
raízes, repolho e carne suína. Receitas como essa instigam analisar como esses enunciados
implicam em discursos a ponto de constituírem condutas e como essas noções constituem o
corpo, não um corpo dado, pré-determinado pela genética, mas inserido em espaço e tempo
específicos, imbricado nas maneiras e condições de vivência de sua época. O apontamento de
como servir tal sopa e também os acompanhamentos sugeridos, macarrão, arroz ou ovos bem
cozidos levam a pensar também as ocasiões, a comensalidade em que era servido esse prato.
As receitas constituem saberes culinários que são convertidos em práticas e
procedimentos regulados para a produção e manutenção dos enunciados, receitas culinárias e
dicas para a dona de casa e para a construção de sujeitos, ordeiros, trabalhadores e, acima de
tudo, religiosos. Muitas das receitas do Jornal Prácia correspondem a alimentos do corpo e da
alma sendo que tal concepção é reafirmada, sobretudo, nos períodos do natal e da páscoa.
O comportamento e os valores decorrentes da maneira de se preparar os alimentos
associam-se às práticas que envolvem o preparo e o consumo dos mesmos. Aparecem vivas
no cotidiano, tanto na área urbana quanto na área rural de Prudentópolis. No período da
páscoa, milhares de descendentes de ucranianos concentram-se em orações nas igrejas e em
suas casas. No sábado que antecede o dia da ressurreição, prostram-se ao redor das mais de
vinte igrejas de rito ucraniano do município levando cestas com alimentos para serem
abençoados pelo sacerdote. Durante o natal as donas de casa se agitam na cozinha preparando
os “doze pratos”. “O número 12 simbolizava os doze meses do ano e passou a simbolizar os
Apóstolos de Cristo” (PROCEK, 1998, p.7). As famílias se reúnem em torno da mesa
colocando uma vela acesa entre as iguarias. Todos rezam em voz alta, geralmente em
ucraniano. Nem todos falam a língua fluentemente, mas aprendem desde pequenos as
principais orações em ucraniano.
Já a festa da Páscoa cristã oferece também muitos elementos culturais que, no decorrer
do tempo, “foram surgindo paralelamente com a fé e criam raízes entre os povos, sendo em
seguida, transportados com as emigrações, de um país para outro, constituindo assim um rico
acervo de tradições, práticas e costumes decorrentes da celebração religiosa e cultural da
Páscoa” (ZALUSKI, s/d). A páscoa em Prudentópolis é marcada pelas as melodias do
“Christós Voskrés” (Cristo ressuscitou) cantadas e ouvidas em todo o município. Ocorrem
também as brincadeiras populares acompanhadas de danças e cânticos, as “Ghaghílky” 3,
símbolos da primavera, da vida e da alegria e que remetem ao período anterior ao cristianismo
na Ucrânia.
Atualmente a páscoa do rito católico oriental ucraniano compõe-se de dois momentos
essenciais: celebração da paixão de Cristo durante a Quaresma e da sua glorificação no
Domingo da Ressurreição. No sábado que antecede a Ressurreição são elaboradas e benzidas
as “Paschas”, que são pães especiais preparados somente para essas ocasiões e demandam
todo um ritual para a sua confecção. A pascha é o principal alimento pascoal e ocupa o centro
da cesta levada para ser abençoada pelo sacerdote no sábado, junto com outros alimentos
como carne, manteiga, queijo ou requeijão, sal e raízes amargas, o “Hrin”.
Os alimentos ou pratos considerados da tradição culinária ucraniana são preparados e
consumidos pelos descendentes ao longo de todo o ano, não apenas nas principais datas do
calendário litúrgico: páscoa e natal. Entretanto, é nessas datas que adquirem maior
visibilidade, ao lado dos demais pratos que as donas de casa preparam. Esses alimentos, que
demandam um preparo cuidadoso e ritualizado, representam a tríade base do cristianismo:
nascimento, morte e ressurreição do Cristo.
Nesse texto, portanto, compreendemos os alimentos enquanto categoria histórica,
como parte de saberes e fazeres construídos culturalmente. A culinária colocada como de
origem ucraniana possui um arcabouço culinário marcado por rituais de preparo e
simbolismos que distinguem as circunstâncias do comer e os lugares da sociabilidade e da
comensalidade. Práticas que remetem a uma tradição.
Na páscoa e no natal a comida assume um caráter central nas celebrações, se
revestindo de rituais, benzimentos, rezas e cantigas. Envolvendo os alimentos, o cristianismo
acrescentou aos mesmos o poder simbólico de nutrir também a alma. A partir dessas
3
Ghaghílky significa brincadeiras e cantigas de roda.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMARGO, Tatiana Souza de. Você é o que você come? Os cuidados com a alimentação:
implicações na constituição dos corpos. (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Educação em Ciências: Química da vida e saúde), UFRS, 2008.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
GOMES, Andréia. POLAK, Avanilde. Prácia: identidade e memória. In: 1ª JIED. Jornada
Internacional de Estudos do Discurso. Mar./2008. Universidade Estadual de Maringá –
UEM. Disponível em: http://www.dle.uem.br/jied/trab.html. Acesso em: 23/07/2011.
HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LODY, Raul Giovanni da Mota (Org.). À mesa com Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Ed.
Senac Nacional, 2004.
SANTOS, Carlos Roberto Antunes dos Santos. A alimentação e seu lugar na história: os
tempos da memória gustativa. História: questões e debates, Curitiba, n. 42, Editora UFPR,
2005, p. 103-124.
FONTES PRIMÁRIAS
ZALUSKI, Padre. Tarcísio, (OSBM – Ordem de São Basílio Magno). Jornal da Paróquia
Ucraniana. S/D.
Como referencial teórico para esse texto utilizaremos principalmente Antônio Manuel
Hespanha e Gizlene Neder3, em suas interpretações sobre a permanência da cultura jurídica
portuguesa no Brasil do século XIX e a maleabilidade da aplicação dessa justiça conforme as
necessidades das autoridades locais. Pesa também sobre essa pesquisa as ideias sobre a
inserção das formas de punição dentro dos mecanismos socioeconômicos de cada momento
3
HESPANHA, António Manuel, “Da ‘Iustitia’ à ‘disciplina’ — Textos, poder e política penal no antigo
regime”, in HESPANHA, António M. (org.), Justiça e Litigiosidade. História e Prospectiva, Lisboa, Gulbenkian,
1993. E NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro:
Freita Bastos, 2000.
4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir :nascimento da prisão. 30º Ed, tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis:
Vozes, 1987. E RUSCHE, George. & KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social..2ª. Ed. Primeira edição
em inglês de 1839, tradução Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Editora Revan,
2004.
5
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 11 de Janeiro
de 1824, AESP – C 192, P 1, D 69, O 987.
6
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1 de Maio de
1823, AESP – C 192, P 1, D 66, O 987.
Em 1826 aparece uma lista bem mais detalhada dos efetivos do destacamento militar da
freguesia de Guarapuava, produzida pelo então Cabo da Esquadra Elias de Araújo e enviada junto com
correspondência do vigário Chagas Lima ao presidente da província de São Paulo, Lucas Monteiro de
Lima9. Tal lista, de 8 de abril de 1826, trás discriminados três categorias de funcionários: tropa de
linha, ordenanças e “presos sentenciados”. Além dos nomes de cada funcionário, estão descritas as
suas ocupações e algumas outras informações que analisadas expõe uma série de ambigüidades na
formação do destacamento.
A começar pela “tropa de linha”, que teoricamente deveria ser formada pelos oficiais da
primeira linha, soldados profissionais destacados na localidade.10 Entre os doze componentes da tropa,
encontramos dois índios, “Tambor Mathias Indio” e “D. Daniel Índio”. Ao lado dos nomes dos
soldados indígenas consta a informação “preso em calceta”, o que demonstra que não estavam na
função por vontade própria, ou não mereciam confiança suficiente para permanecerem livres. Ora, tal
prática, além de não condizer com as formas de composição das tropas de linha portuguesas, ainda
7
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1 de Maio de
1823, AESP – C 192, P 1, D 66, O 987.
8
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à Lucas Antonio Monteiro de Barros de 20 de maio de 1825,
AESP – C 192, P 1, D 32, O 987.
9
AESP – Relação de Tropas de Linha, Ordenanças e Presos Sentenciados de 13 de maio de 1826. C 192, P 1, D
48, O 987.
10
Sobre a composição do exercito português no século XIX ver MENDES, Fábio Faria. Encargos, privilégios e
direitos: o recrutamento militar no Brasil nos séculos XVIII e XIX. In CASTRO, C., IZECKSOHN, V. &
KRAAY, H.nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004 e LEONZO, Nanci. As
companhias de ordenanças na capitania de São Paulo: das origens ao governo do Morgado de Matheus.
Coleção Museu Paulista, SP, v6, 1977. p. 125-239.
atenta com a discutida liberdade que deveriam ter os indígenas, a não ser em caso de guerra justa. Fica
a dúvida se esses índios cumpriam a função de soldados forçados por uma medida arbitrária das
autoridades locais, levada a cabo pela necessidade de soldados, ou teriam sido condenados a isso por
um delito qualquer. Não se pode saber. Mas sobre o caso cabe ainda uma interpretação: nos parece que
a utilização de índios na função de “tambores” – que são soldados responsáveis por vigiar e dar o sinal
sonoro em caso de ataque inimigo, foi uma estratégia militar interessante pelo fato dos indígenas
apresentarem os sentidos mais treinados para detectarem o inimigos de quem se temia o ataque, que
eram as tribos de índios ainda hostis. O treinamento dos indígenas na detecção do inimigo teria se feito
em uma vida inteira de guerras intertribais. Restava aos portugueses convencer o indígena a utilizá-la
em seu benefício.
Além da interessante e ambígua utilização dos índios como soldados, a lista nos trás algumas
funções praticadas pelos soldados da tropa de linha: guarda, cavalherisso, ajudante de cirurgia e
destacado na aldeia do Atalaia. Dois soldados da tropa de linha estavam em “deligência com o Sr.
Capitão Comandante”. Vê-se portanto o emprego dos soldados nas mais em diversas tarefas
cotidianas. É preciso entender que nesse momento histórico a Freguesia de Nossa Senhora do Belém
de Guarapuava não conta com nenhuma administração local além das autoridades eclesiástica e
militar, sendo esta última responsável por, além de prestar a proteção necessária ao desenvolvimento
da lide colonizadora, todos os serviços públicos necessários para o bom andamento da povoação,
como a construção e manutenção dos alojamentos, estradas e obras públicas, produção de alimentos e
proteção do povoamento.
Na correspondência que acompanhou a lista dos destacados até São Paulo11, Chagas Lima
ainda menciona a entrada para o serviço da ordenança mais dois índios e um paisano, dos quais não dá
maiores informações. E também sobre o destacamento de um novo cabo da Esquadra, Manuel Antonio
Vila Nova. Quanto aos “presos sentenciados” referidos na lista, são degredados, que também
serão utilizados nos serviços públicos.
As reclamações pela falta de soldados continuam a acontecer nas correspondências dos anos
seguintes, e até onde as fontes nos permitem enxergar, inicio da década de 1850, elas não são
11
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência a Lucas Antonio Monteiro de Barros de 8 de Abril de 1826,
AESP – C 192, P 1, D 48, O 987.
solucionadas. Mas no que concerne as soldados, além dos constantes pedidos para o aumento da tropa
presente em Guarapuava, encontramos diversas criticas por parte do vigário contribuem para acentuar
as tensões entre a autoridade religiosa e a militar. Na mesma correspondência de 1826, citada acima, o
padre, que se acha responsável pelo comando da povoação pela ausência temporária de Rocha Loures,
referindo-se aos soldados critica o “systema em que estão de desfructarem quanto podem a Expedição
que os sustenta; sem trabalharem para ella, se não no serviço das armas; e esse mesmo serviço feito
com muita negligência(sic)”12. A fala do padre reafirma que a utilização dos soldados não deveria se
restringir as armas, mas também em outros serviços benéficos a expedição, os quais não estão
cumprindo a contento. Em seguida, no mesmo documento, no momento em que reclama dos descuidos
do capitão para com a boa ordem da povoação, Chagas Lima Reitera as críticas aos soldados:
O mesmo posso eu dizer dos soldados de primeira linha, aqui retidos muitos annos,
sem rendimento. Estes soldados nos primeiros tempos de seus destacamentos tem
hum procedimento sofrível, mas passados estes, communmmente se tornão maos
soldados, e maos homens dando-se a vícios especialmente a freqüentes bailles, tão
indignos, como promíscuos de homens e mulheres; e a bebedeiras, de que tantos
13
males tem resultado e o socego desta Povoação (sic).
É natural que com o passar do tempo, sendo obrigados a residirem em um lugar isolado e
perigoso e não recebendo para isso recompensa suficiente, nem salários e nem sequer fardas, os
destacados do quartel de Guarapuava começassem a descorçoar. Quanto aos bailes referidos pelo
vigário, no que se pode perceber pelos relatos de alguns viajantes, eles parecem ser um costume
bastante difundido no sul do Brasil no século XIX, tornando-se um dos poucos espaços de lazer e
12
Ibdem.
13
Ibdem.
14
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência a administração da Província de São Paulo de 16 de Julho de
1831, AESP – C 192, P 2, D 47, O 987.
sociabilidade disponíveis em regiões afastadas dos grandes centros. É um costume que se associa com
a chamada “sociedade campeira” 15que se desenvolveu do comercio de animais entre a região sul e a
região das minas. Porém, para a moral religiosa do século XIX, é natural que a simples presença de
homens e mulheres em conjunto num recinto de festa deva ser reprovado.
Já sobre o consumo de bebidas alcoólicas de que fala Chagas Lima, o fato nos fornece uma
ponte para entendermos um pouco as regras internas da povoação, que eram discutidas pelas
autoridades e postas em vigor conforme as necessidades. Segundo o padre:
Para precaver de algum modo estes males [os causados pela bebida], no ano de
1819, quando se punhão os primeiros fundamentos desta Freguesia de Belém, de
acordo com o comandante, fizemos por escripto certas regras por onde se
16
governasse a sua policia (...) (sic).
Em anexo a correspondência o padre envia o Capitulo V das “Regras de Policia” que forma
feitas na povoação aos 9 de dezembro de 1819:
Em contemplação destes índios, que naturalmente amão (...) todas a bebidas, que
podem embriagar; e não menos dos Soldados, que tem feito manifesto abuzo das
agoas ardentes, que para aqui trazem os Negociantes; de onde tem nascido
innumeras desordens; he indispensável que se proíba a importação deste genero para
17
esta Conquista (...)
Tal o teor da regra que proibia as bebidas alcoólicas em Guarapuava, sob pena de confiscação
para utilização na “cura dos enfermos unicamente”. O texto da “lei” sugere que tal prática estava
disposta no Diretório dos Índios observado na comarca, do qual não temos conhecimento. O que de
mais interessante sugere a questão, é que além de uma vida precária e com poucos recursos, os
povoadores iniciais dos campos de Guarapuava sofriam algumas sanções, e o povoado, ainda que
incipiente, não estava totalmente destituído de justiça. O significado que melhor se encaixa no termo
polícia, que denomina as normas, parece ser o de conjunto de leis e regras impostos aos cidadãos
visando a moral, a ordem e a segurança pública. Cedo porém tal regra passou a ser letra morta, pelo
menos entre os soldados, de acordo com o vigário.
Essa natureza de acontecimentos, que ao que nos parece traz à tona a tentativa dos soldados
para tornar a vida na “conquista” menos monótona, por um lado, e a preocupação de Chagas Lima
15
Termo utilizado para designar a forma de sociedade pecuarista que se desenvolveu no Paraná central nos
século XVIII e XIX. WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do
Paraná, 2002.
16
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à Lucas Antonio Monteiro de Barros de 8 de Abril de 1826,
AESP – C 192, P 1, D 48, O 987.
17
Ibdem.
com a manutenção da ordem e da integridade da freguesia, ressaltam a tensão ocasionada pela reunião
de pessoas de diferentes categorias em um mesmo ambiente.
Para além das tensões internas, algumas correspondências do final da década de 1820 e início
da década de 1830 apontam para uma certa negligência por parte da administração da província para
com a freguesia. Em documentos de 1829, o capitão continua pedindo homens para ajudar na
expedição, dinheiro para comprar animais e para pagar funcionários. Os pedidos se repetem em
correspondência de 1831, onde notamos que dois anos passados as solicitações não haviam sido
atendidas.18Nessas mesmas correspondências estão reclamações pelas condições precárias da
freguesia, dificuldades de arrecadar rendas, ataques de índios, falta de animais para transporte e
alimentação. Temos que considerar a possibilidade das reclamações do capitão serem exageradas, para
angariar maiores contribuições por parte da província, mas mesmo assim as situação de Guarapuava
entre a década de 1820 e 1830 parece sempre bastante difícil.
A situação de tensão entre povoadores e indígenas chega a tal ponto em 1825, após um ataque
indígena que destrói a aldeamento do Atalaia, que os povoadores produzem um requerimento para a
extinção total dos índios. Não tivemos acesso a tal documento, porém uma resposta do padre Chagas
Lima, em texto bastante exaltado, trás um interessante panorama, aos olhos do padre, da população
que compunha a freguesia na época. Após recriminar veementemente a atitude dos povoadores e
defender a situação dos índios aldeados, Chagas Lima, ironicamente, ao comentar sobre de que forma
se efetuaria as invasões das aldeias para a requerida extinção dos índios pergunta:
Quais “hão” de ser os agentes dessas invasões? Mea dusia de soldados, outro tanto
de degradados e outros tantos de vadios dos campos gerais de Corytyba, que por
aqui se juntam; dos quais sendo huns efeminados e outros temerários, todos sem
experiência, que partido terão com aquelas feras humanas dentro dos bosques?
19
(sic)
No calor de sua indignação Chagas Lima, insinuando a incapacidade dos povoadores para
enfrentar os indígenas, coloca novamente lado a lado as três categorias de povoadores que já
analisamos no capítulo anterior, os soldados, os vadios e os degredados, como sendo elementos
presentes, e arriscamos dizer, preponderantes na emergente Freguesia de Nossa Senhora do Belém de
Guarapuava em meados da década de 1820.
18
LOURES, Antonio da Rocha. Correspondência a administração da Província de São Paulo em 6 de outubro
de 1829, AESP – C 192, P 2, D 20, O 987, de 6 de abril de 1831, C 192, P 2, D 46, O 987 e de 16 de julho de
1831, C 192, P 2, D 47, O 987.
19
LIMA, Francisco das Chagas. Correspondência à administração da província de São Paulo de 1825, AESP –
C 192, P 1, D 33, O 987.
Nesse ponto, na lide da ocupação inicial do território de Guarapuava no início do século XIX,
a história une estas três categorias de pessoas: soldados, degredados e vadios. Com o foco principal
nos soldados, é interessante promover tal comparação para demonstrar a fluidez dessas categorias e a
profunda relação entre elas durante o período, como métodos associados de transposição de população
para áreas de interesse da Coroa. Essas técnicas ressaltam a característica pragmática da política
portuguesa no tratamento de suas populações, que sempre serviram aos interesses do Estado. No caso
da região sul do Brasil, esse pragmatismo se acentua a partir do governo do Morgado de Matheus na
capitania de São Paulo, por este ser o maior representante da política do Marques de Pombal, então
Conde de Oeiras, na administração da colônia. Nessa prática de conquista de fronteira levada a cabo
na região de Guarapuava, onde por motivos diversos se mesclam diferentes estratégias de transposição
de população, encontramos os ecos da leitura autoritária e hierárquica do iluminismo em Portugal,
segundo Neder muito característica das reformas do período pombalino. Procura-se liberalizar e
otimizar a administração do Estado em modelo liberal, mesmo que pra isso se precise utilizar medidas
coercitivas extremas.
FONTES:
BIBLIOGRAFIA:
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Editora FGV, 2004.
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reflexão sobre o recrutamento e as origens sociais dos militares coloniais. Lócus – Revista de História.
Juiz de Fora, Núcleo de História Regional/Departamento de História/Arquivo Histórico. EDUFJF,
2002, v.8, n.1.
INTRODUÇÃO
Esta conferencia devia evitar dois grandes escolhos: - não se elevar tão alto
nas azas da sciência, que o povo não a pudesse comprehender: nem baixar
tanto o seu nível, de forma a enfastiar a parte letrada dos ouvistes. Era
preciso pairar em uma certa mediania, que servisse a todos os paladares.
(FERREIRA, 1923:3)
Apesar do seu devido cuidado com o público, porém, o que se coloca como
interrogação é o por que João Candido deveria ser o escolhido para explanar sobre tal assunto,
e desta forma, percebe-se que durante seu discurso, João Candido legitima sua presença, e
justifica sua empreitada pela salvação da humanidade, legitimando assim sua função, seu
papel social como médico, detentor de um poder, de uma prática científica que poucos têm
acesso.
Em uma serie de publicações tenho me occupado dos grandes flagellos, que
mais damnos causam à espécie humana. Com a divulgação, hoje, deste
pequeno trabalho levo a termo esses estudos, que visam a mesma finalidade.
De facto, estudei a prophylaxia e o tratamento da tuberculose, e peste
branca: o alcoolismo, suas funestas conseqüências e os meios de evital-o: a
syfhillis, sua diffusão alarmante e os recursos seguros para extinguil-a.
São estes, sem duvida, os três formidáveis inimigos da grandeza e pujança
de nossa raça e eu os combati, com toda energia e convicção de quem
cumpre um dever imperioso.
Agora fecho, com este ultimo elo da cadeia, o cyclo de um modesto acervo
de publicações, com o mesmo objectivo: - melhorar os destinos da
humanidade, profligando os grandes males que a flagellam.
Nesta fala torna-se clara a relação efetuada entre ciência médica e sociedade, onde
verifica-se uma relação mútua e paralela entre ambas. Assim, médicos justificam sua
existência e seu árduo trabalho em função de uma sociedade doente, que é primeiramente
diagnosticada pela classe médica, e em seguida é curada, é sanada, sua saúde é retomada. De
fato João Candido efetuou tais pesquisas sobre os “grandes flagelos”, e aqui se colocam em
ordem cronológica. O primeiro é “Profilaxia da Tuberculose”, datado de 1897. Em seguida
temos dois trabalhos datados em 1922, são eles “A Sífilis Como Problema Social” e “O
Álcool Não é Aperitivo, Nem Termogênico”. O que de fato chama a atenção é o discurso
conciso em afirmar o papel social do médico com o objetivo, o “dever imperioso” de
“melhorar os destinos da humanidade”, e que com o trabalho sobre “A Eugenia”, seu metier
estaria por finalizado. João Candido assim a delimita (grifo nosso):
Os trabalhos anteriores representam apenas o delineamento de uma grande
fabrica da qual este opúsculo é o remate: obreiros da palavra, com outra
capacidade, levarão a effeito o magestoso templo da nossa era, e do qual a
Eugenia será ainda o zimbório refulgente.
Percebemos na analise da fonte que a eugenia, conceito moderno cunhado pelo inglês
Francis Galton na segunda metade do século XIX, terá com João Candido outro significado e
será reapropriado, de forma que este dará novas denotações ao termo, e aqui encontra-se a sua
especificidade, o diferencial de sua abordagem que neste momento é analisada. Para João
Candido Ferreira a “Eugenia é a sciencia que trata do aperfeiçoamento moral e physico da
espécie humana”, “Eugenizar quer dizer – cuidar de nossos semelhantes para que o mundo se
povoe de gente forte, san, esclarecida e bella”(1923:4).
Estado no quadriênio de 1908 a 1912, tendo renunciado ao cargo pouco tempo depois, por
conflitos internos de seu partido. (FERNANDES,1988:6)
Certeau afirma que as inscrições da lei se dão sobre o corpo, seja ele individual ou
social, e sobre ele fazem sua escritura. Em seu livro “A Invenção do Cotidiano: As Artes de
Fazer”, no capítulo A Economia Escriturística, o autor consegue de forma esplendorosa
demostrar como esta escrituração sobre o corpo se dá na instância jurídica e médica,
paralelamente1.
Não há direito que não se escreva sobre os corpos. Ele domina o corpo. A
própria idéia de indivíduo isolável do grupo se instaurou com a necessidade,
sentida pela justiça penal, de corpos que devem ser marcados por um castigo
e, pelo direito matrimonial, de corpos que se devem marcar com um
preço nas transações entre coletividades. Do nascimento ao luto, o direito
se “apodera” dos corpos para fazê-los seu texto. Mediante toda sorte de
iniciações (ritual, escolar, etc.), ele os transforma em tábuas da lei, em
quadros vivos das regras e dos costumes, em atores do teatro organizado por
uma ordem social. E até para Kant e Hegel, não há direito sem pena de
morte, ou seja, sem que, em casos extremos, o corpo assinale por sua
destruição o absoluto da letra e da norma. Afirmação discutível. Seja como
for, sempre é verdade que a lei se escreve sobre os corpos. Ela se grava nos
pergaminhos feitos com pele de seus súditos. Ela os articula em um corpo
jurídico. Com ele faz o seu livro. (CERTEAU, 1998:231)
Assim, temos o corpo como objeto de escrituração, texto maleável e por isso motivo
de luta pelo poder de dominá-lo. Certeau afirma que este trabalho de inscrição sobre o corpo
antecede a figura histórica adquirida pela escritura na modernidade e ainda resistirá a esta,
empilhando-se nela e a determinando “como uma arqueologia contínua à qual não sabemos
mais que nome nem que estatuto dar”.
Outra maquinaria de escrituração de suma importância é a de tipo médica ou cirúrgica,
uma espécie de terapêutica do indivíduo e não do grupo. Surgida entre os séculos XV e
XVIII, isolando o corpo individual, para que este possa se transformar em unidade básica da
sociedade.
1
Certeau nos alerta que “Essas escrituras efetuam duas operações complementares: graças a elas, os seres vivos
são “postos num texto”, transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a
razão ou o Logos de uma sociedade “se faz carne” (trata-se de um encarnação).” (CERTEAU, 1998:231)
É apoiando-se simplesmente em Platão, que dr. João Cândido demostra em sua fala
como o Estado deveria portar-se diante das uniões entre os concidadãos brasileiros. Percebe-
se que a utilização de escritos de filósofos gregos referentes à melhoria da raça foi utilizada
pelos autores do último quarto do século XIX e início do XX. Estes intelectuais buscavam
assim justificar a retomada do pensamento eugênico, como forma de atingir um progresso
para a nação em formação. A interpretação do discurso de Cândido é revelador desta
afirmação. Porém, é somente com o advento da biologia moderna, do darwinismo, e das
teorias de eugenistas e de cunho racista, que estas ideias puderam florescer.
O surgimento da eugenia se dá na Inglaterra vitoriana, após a publicação de Charles
Darwin, “Origem das Espécies”, e em meio a um contexto onde a multidão se fazia presente,
momento de industrialização, mecanização, onde os operários viviam em péssimas condições
de higiene, e a pobreza era vista como degeneração física. Data desta época a tomada de
consciência por parte dos trabalhadores enquanto sua condição social, onde greves e
manifestações começam a fazer parte do cotidiano. E a burguesia, em oposição a este
situação, buscava alienar a multidão e diferenciar-se dela. Assim, a reurbanização, a disciplina
e as políticas de higiene pública foram aplicadas como finalidade prevenir a degradação
física. Diante desse quadro de crise social e política, higienistas e eugenistas entram em cena,
colocando em prática suas teorias. Pietra Diwan afirma que os higienistas pregavam “a
higiene moral da sociedade. Não somente a saúde, mas também a conduta passa a ser objeto
de estudo da higiene”. (2011:36)
encontro aos preceitos da lei da seleção natural, o que não é perceptível no discurso de João
Candido. Para Francis Galton:
Por isso o “estado de bem estar social” (welfare state) era visto por Galton como
antinatural, uma espécie de parasitismo, um fardo social para o Estado, e deveria ser
combatido. Assim, o sucesso da eugenia dependeria de poupar o nascimento de cidadãos que
constantemente viveriam sob a tutela do governo, além de incitar uniões e a procriação
daqueles que elevariam a prole da progênie inglesa. Neste aspecto, em relação aos
casamentos, João Candido toma por opção a proibição de casamentos que poderão
eventualmente gerar filhos com os mesmos males dos pais. Afirma ele:
Criar a dor é um crime perante a humanideade; criar a monstruosidade é um
crime perante a raça. O casamento dos doentes de espírito e de corpo, dos
monstriparos e de martyres – deve ser prohibido, ou pelo menos, não deve
ser sanccionado pela lei.
Cultivo da raça, da boa linhagem, das nobres qualidades, tudo isso deveria ser levado
em conta pela nova ciência intitulada eugenia. De modo que esta poderia ser aplicada as
plantas, aos animais, e ao homem. João Candido Ferreira, em seu texto traz por meio de
Coelho Netto, uma reflexão que demonstra as aplicações da eugenia, de modo a criticar o
esquecimento pela procriação da boa linhagem do homem.
O homem, diz elle, cuida de tudo, menos de si. Fundam-se sociedades para o
aperfeiçoamanto de todos os animaes, organizam-se e inauguram-se
exposições, com premios, de todas as castas de bichos; exhibem-se em
mostruários animalejos repugnantes, como ratos brancos; publicam-se
monographias eruditas sobre o Cavallo de guerra, sobre o boi de carro, sobre
os gatos de Angorá, até sobre os lagartos, – e sobre o homem, nem palavra.
Parece que se trama, às surdas, uma conspiração contra o rei dos
animaes...’’(FERREIRA, 1923:4)
2
“O monge Gregor Johan Mendel é hoje conhecido como o “pai da genética” por ter sido o primeiro a demostrar
as leis da hereditariedade. Através da observação dos cruzamentos de ervilhas, ele concluiu que as combinações
dos caracteres das partes cruzadas eram imutáveis, podendo ser dominantes ou recessivas, dependendo da
combinação dos pares. O mendelismo só foi conhecido em 1900 com a popularização das pesquisas efetuadas
por Mendel, que influenciarão decisivamente os darwinistas sociais.” (DIWAN, 2011:31)
Candido também faz locução aos males do álcool, onde segundo ele “o filho do
alcoolista ou soffre de eclampsia, de imbecilidade, de idiota, ou de epilecsia, ou é um
criminoso, um vagabundo e quasi sempre bado como o pai.” (1923:12)
Renato Kehl, médico e farmacêutico paulista, que dedicou sua vida à divulgação da
eugenia no Brasil, afirma em seu livro “Por que sou eugenista” como a política naquele época
estava ligada à política biológica:
Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não há
política racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz
e felicidade aos povos. Eis, porque, a política, por excelência, é política
biológica, a política com base na eugenia. (KEHL, 1937:13)
Pietra Diwan em seu livro “Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo”,
refletindo a analogia da árvore como representação da vida, onde folhas verdes diziam
respeito à corpos saudáveis e eugênicos, afirma que esta árvore não deixará de funcionar
como rede, uma rede de poder, com formas dominação e de exclusão, e que sugere contatos
entre eugenistas de todo o globo.
Embora se pretenda a-histórica e una, essa rede é histórica e diversificada.
Com a proposta de identificar alianças, as formas de visibilidade e de
Para que este trabalho se torne possível, partimos do pressuposto de que todo discurso
proferido pelo autor aqui em análise, é em seu fundo, político, ou seja, tomaremos a
biopolítica aqui analisada como política. Giogio Agamben em seu texto “Homo Sacer: O
Poder Soberano e a Vida Nua I”, traz relevantes contribuições para esta interpretação, onde
segundo o autor as decisões políticas são sobre a vida nua, que se encontra entre meio a Zoé
(vida natural) e a Bios (vida natural captada pela política), ou seja, entre o natural e o político.
Desta forma, para Agamben, a novidade não é a biolítica que para ele existe desde a
antiguidade, e sim a indistinção entre o natural e o político, a vida nua.
O que se colocava como necessário era purificar a raça, e foi por meio do estudo, da
anatomização de todas as partes dos grupos éticos que isso se tornou possível. Foucault
afirma que:
FONTES:
KEHL, Renato. Por que sou eugenista? Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1937.
BIBLIOGRAFIA:
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o Poder Soberano e a Vida Nua I. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2002.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Editora Vozes,
1998.
DIWAN, Pietra. Raça Pura: uma história da eugenia no Brasil e no Mundo. São Paulo:
Contexto, 2011.
ENVELHECER NA CIDADE:
MEMÓRIAS DE MULHERES APOSENTADAS ORIUNDAS DO ESPAÇO RURAL
(MARECHAL CÂNDIDO RONDON – 1980-2011)
Foram ouvidas sete mulheres e selecionados quatro relatos orais para compor as
questões a serem analisadas neste artigo. Os relatos trazem importantes elementos para pensar
como elas narram suas experiências em relação ao cotidiano, trabalho, família, saúde,
aposentadoria, tempo de lazer e sobre o próprio processo de envelhecimento.
O historiador Davi Félix Schreiner observa que o maior fluxo migratório ocorreu entre
1940 e 1960 e, a partir de então, a região passou a se destacar na produção agropecuária,
principalmente através de pequenas propriedades rurais. Ao se referir às migrações, ele
acredita que, “as pessoas se deslocam segundo as possibilidades abertas pelo contexto
socioeconômico de seu tempo”.1 O autor destaca a importância da conquista da terra para
estes migrantes sulistas, para quem o trabalho familiar na terra é um “elemento central na
ética camponesa”.2 Terra, família e trabalho eram valores partilhados por aqueles agricultores
que migraram para o Oeste do Paraná na busca de possibilidades de reprodução de seus
modos de vida.
Apesar de não ter ocorrido uma ruptura entre campo e cidade, ou a substituição total
do primeiro pelo espaço urbano, a mecanização da agricultura causou alterações na vida e no
cotidiano dos agricultores, promovendo mudanças no seu modo de viver e trabalhar. Exigiu,
da parte destes, novas maneiras de viver para se adaptarem às transformações presentes na
sociedade. Outros fatores intensificaram as mobilidades decorrentes da migração do mundo
rural para o urbano na região, como aponta o historiador Robson Laverdi:
1
SCHREINER, Davi Félix. Memórias da luta pela terra: de sem-terra migrantes às ocupações coletivas. Espaço
Plural. Ano X, nº 20, 1º semestre 2009, p. 95
2
Idem, p. 96.
recente. A fronteira agrícola que havia sido planejada como um modelo de agricultura
minifundiária de produção familiar e por migrantes sulinos, selecionados entre aqueles
de origem européia, começara assim a se esfacelar, antes de mostrar seus primeiros
resultados.3
Assim, muitos dos colonos, contando já com uma idade mais avançada e com os filhos
adultos resolveram mudar-se para a cidade e deixar a propriedade ao cuidado dos filhos, ou,
então, no caso dos proprietários de áreas de terra menores, acabaram vendendo-as para
grandes produtores e investindo em outro tipo de atividade ou simplesmente vivendo de sua
aposentadoria.
A maior parte das mulheres entrevistadas migrou para a cidade devido ao avanço da
idade e por não poder mais trabalhar na agricultura, em razão da saúde frágil. Algumas saíram
do campo por conta da desapropriação de suas terras, em todo ou em parte, por ocasião da
construção da usina hidrelétrica de Itaipu. Outras, buscavam oportunidades de estudo para os
filhos na cidade.
3
LAVERDI, Robson. Tempos diversos, vidas entrelaçadas; trajetórias itinerantes de trabalhadores no
extremo-oeste do Paraná. Curitiba: 2005, p.58-59.
4
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
p.85.
5
Idem, p.82
A marcação das mudanças ocorridas nos modos de vida na própria narrativa pode ser
apreendida através das lembranças de dona Irmélia, de 72 anos, casada e mãe de quatro filhos.
Ela mora no espaço urbano de Marechal Cândido Rondon há 30 anos. Anteriormente, morava
com o marido e os filhos, no interior do município, no espaço rural. Ela compara o tempo
passado com o tempo presente, considerando as mudanças que ocorreram na forma de trabalhar
e as novas relações de trabalho existentes na família hoje em dia:
E quando a gente veio morar aqui pro Paraná em 1972, no meio do mato, no meio dos
tocos. Fazia as queimadas na roça e as crianças ajudavam, as crianças eram pequeno e
tinham que ajudar, não era que nem hoje, fala que a criança não pode trabalhar, né.
Antigamente não era assim, criança quando já sabia caminhar, já tinha que ajudar, levar
os cavaquinho para fazer fogo na cozinha, fazer almoço, descascar batatinha, ajudar em
tudo, não era..., tanto fora da casa quando dentro da casa. E hoje em dia a moleza que as
crianças tem, inclusive a gente acha assim que se hoje em dia as crianças tivesse que
ajudar, em vez de ficar só na frente do computador, ou só fazendo brincadeira e essas
coisas, a criminalidade diminuía muito. Que a criança se preocupava com coisas que
tem valor, não iam olhar na televisão essas bobagens que enxergam, as coisas que
assistem e depois querem viver isso, né. Eu acho assim que é muito diferente, da vida
que a gente levava, que os nossos filhos levavam quando eram pequeno e que os netos
levam hoje.7
Percebe-se a comparação entre o cotidiano dos netos e dos filhos ao falar sobre o
passado cheio de dificuldades. O relato do passado é permeado pela análise de situações
vividas no cotidiano das gerações posteriores na família, pois, como ela afirma, “não era que
nem hoje”, pois antigamente as crianças “tinham que ajudar” nas pequenas tarefas de casa.
6
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, 14, fev. 1997, p. 37.
7
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/2011.
Dona Irmélia acha que se as crianças tivessem que ajudar os pais ao invés de ficar na
frente do computador ou assistindo televisão a criminalidade diminuiria muito. Falar da
“moleza que eles têm” mostra que na percepção dela, eles não estão acostumados a trabalhar
duro e enfrentar dificuldades. Assim, o trabalho é visto por ela, como um valor a ser cultivado
desde cedo, moldando o caráter das crianças para enfrentar desafios maiores no futuro.
Em seu relato, rico em termos de comparação, ela diz que a vida das crianças “é muito
diferente da vida que a gente levava”. Os valores mudaram. Para ela, a terra, o trabalho e a
família, valores fundamentais na vida desses camponeses, não seriam mais tão valorizados na
sociedade atual. A preocupação em relação ao futuro das gerações posteriores da família está
presente em sua fala:
O que os bisnetos vão aprender e levar da vida a gente não sabe como vai ser daqui pra
frente, porque não foi fácil. A gente tinha vaca pra cuida, tinha galinha pra cuida, tinha
a roça pra cuida, tinha a casa... Só um detalhe que era bem legal, que a gente tinha mais
tempo pros amigos do que hoje. Por que hoje a gente não vai visitar ninguém, né. Ah,
porque não dá tempo. Na época que a gente morava na roça, quando era dia de chuva,
pegava uma trouxinha de roupa embaixo do braço e ia na casa da vizinha, enquanto
remendava roupa, conversava, tomava chimarrão e era uma visita, né. E hoje, você nem
remenda roupa e nem visita a vizinha.9
Apesar de afirmar que a vida não era fácil, ela recorda que as vizinhas sempre davam
um jeito de se encontrar para conversar e tomar chimarrão, mesmo que fosse enquanto
costuravam e remendavam a roupa. Ela seleciona este fato para acentuar a sentida falta de
sociabilidades vivida por ela no presente. Para ela, hoje em dia não há trabalho nem lazer,
apesar do tempo livre proporcionado pela aposentadoria.
8
SCHREINER, Davi Félix. Cotidiano, Trabalho e Poder: a formação da cultura do trabalho no Extremo Oeste
do Paraná. 2 ed. Toledo: Editora Toledo, 1997, p.89.
9
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/2011.
Também dona Valéria, de 71 anos, representa o tempo em que morava em uma chácara
nas proximidades da cidade como de dificuldades. Viúva, mãe de 5 filhos, mora na cidade há
33 anos. Não é aposentada, mas recebe pensão por viuvez. Em suas memórias, o espaço rural
aparece como um lugar de muito trabalho. Por terem na época uma área pequena de terra,
apenas três hectares, não podiam possibilitar aos filhos a perspectiva de uma vida melhor. Seu
marido trabalhava como pedreiro na cidade para complementar a renda da família. Assim,
depois que os filhos cresceram, eles acabaram trocando a chácara em que moravam por um
terreno e uma casa na cidade para que os filhos pudessem estudar e trabalhar no comércio.
Assim ela rememora:
Daí pra ele [marido] era melhor e pros filhos era melhor, e os filhos depois, daí já eram
mais grandes, os dois mais velhos, daí eles começaram a trabalhar e daí o terceiro
também começou e aqui era melhor pra nós, só que nos primeiro tempo não era fácil,
não tinha muito serviço na cidade, sabe, a cidade não era como hoje. Hoje, os pedreiros
não ficam sem serviço, né, e naquela época não era assim, era umas época bem “braba”,
sabe.10
Ela comenta sobre a situação financeira vivida pela família no período em que
dependiam da agricultura para sobreviver. De acordo com ela, apenas “tinha pra viver”, apesar
de não terem passado fome, não sobrava muita coisa. Aquilo que produziam dava “pro gasto”
da família:
Porque na colônia, o que que a gente tinha? Não tinha muita coisa, sabe? A gente
trabalhava mais assim, pro gasto, né, corria pro gasto, vendia, tinha coisa, mas se virava,
daí só mais assim pro gasto, porque ele [marido] trabalhava fora.(...) Sempre, não era
pra dizer que nós passemo fome, mas também não tinha que sobrasse coisa, né. Tinha
pra viver.11
Ao ser perguntada sobre os produtos que cultivava e os animais criados para fornecer
alimentos e se ela vendia o excedente, respondeu:
10
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.
11
Idem.
Sim, vendia, mas, só tinha umas duas vaquinha pra vender leite, não dava muito, né. E
hoje em dia, tudo assim na colônia já é melhor, eu que acho, eu não sei também... E ali
na cidade também, hoje é mais fácil, porque tem mais serviço, sabe, naquela época não
ganhava muito serviço. Porque quando nós viemo morar pra cá, quando nós morava na
colônia, eu mandava, às vez, os filho leva uns ovos pra vender, uma dúzia de ovos, nem
achava onde vender, pra comprar um pouquinho de coisa assim, como açúcar, farinha,
uma coisa..., isso nem achava de vender, porque tinha muito sabe e poucos que
compraram, né. Depois eu comecei de vender leite aqui, mas não pra leiteiro, porque
não passava, daí os filhos fizeram assim, entregavam nas casas um pouquinho, sempre
ajudava um pouco.12
Lembranças de um tempo em que era tudo diferente, não havia ruas asfaltadas, “não
tinha nada”, comparado com a cidade atual onde, segundo ela, “mudou tudo”, pois “cresceu
bastante”.
Minha nossa!! E como. Sim, mudou bastante. Deus o livre!! Quando nós
viemos morar pra cá [para a cidade de Marechal Cãndido Rondon], não tinha
asfalto, não tinha nada. Assim, quando nós morava ali numa chácara, né. Isso
ali na cidade não tinha asfalto nem um pouquinho. E agora, desde que nós tamo
morando aqui na cidade mesmo, nossa como mudou tudo, como mudou, Deus o
livre!! Cresceu bastante a cidade.13
Lembranças de uma outra época, cheia de dificuldades, também podem ser percebidas
no relato de dona Olinda, que mora no espaço urbano de Marechal Cândido Rondon há cerca
de trinta anos, ao comparar o tempo passado em que vivia no campo com o presente:
No sítio, então de manhã, levantou as 4 hora, tomava chimarrão, ainda não ficou claro,
pegou o serrote e cortou lenha. Antigamente não era fogão a gás, agora tem tudo, por
isso acha tudo tão fácil agora.
12
Idem.
13
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.
Dona Olinda: Aqueles tempo tudo carregar com balde. E quando era seca. Longe,
longe... O que que é dois balde de água, assim é muito, mas daqueles tempo...
Dona Olinda: Do poço. E pra limpar, nós tinha casa grande lá embaixo [na colônia]
tudo calçada. Eu sei que o Harto [filho] muitas vezes, quando ele tava em casa, ele
ficou bravo, as meninas limpando a casa e ele tendo que levar água pra cima, com
esses dois baldes e já tem que correr. [risos]14
Dona Olinda 82 anos, casada e mãe de quatro filhos, lembra das dificuldades
enfrentadas no período em que era preciso fazer fogo no fogão à lenha, sendo necessário
primeiro serrar a lenha que seria usada para o fogo, processo demorado e trabalhoso, muito
diferente da praticidade do fogão a gás usado atualmente. Ainda descreve a necessidade de
puxar água do poço, para o consumo e a limpeza da casa, muito mais difícil do que
simplesmente abrir a torneira. Era um tempo em que a eletricidade ainda não havia chegado ao
campo. O modo de viver e de trabalhar mudou muito em poucos anos. A realidade vivida por
estas mulheres há alguns anos passados é muito diferente da forma como vivem atualmente as
gerações mais jovens da família.
Apesar das dificuldades apontadas nos modos de vida no campo no passado, muitas
delas ainda mantém alguns elementos que as vinculam aos modos de vida rurais vividos no
passado. É perceptível na fala dessas mulheres o vínculo que ainda permanece com a vida no
campo, seja pela propriedade rural que ainda possuem e que é cuidada por um dos filhos ou
familiares, ou, simplesmente pelos hábitos que ainda mantém.
Dona Rení, com 76 anos de idade, casada, mãe de 6 filhos, apesar de morar na cidade
há 17 anos e ser aposentada, ainda conserva hábitos comuns aos trabalhadores do campo,
como acordar bem cedo, molhar as plantas, cuidar da horta, cultivar as verduras para o
consumo próprio e cuidar da limpeza da casa.
Quando perguntada pela entrevistadora sobre o seu dia-a-dia na cidade Dona Rení diz:
14
Olinda Camila Witech, 82 anos. Entrevista realizada em 26/08/2011.
pra eu ir olhar isso de manhã. Ver se já cresceu um pouco e as flor ali [no jardim]. Isso,
eu nunca vou querer fica sem um pedacinho de terra. Acostumado.15
Ah... De manhã, eu levanto bem cedo, bem cedo, ás vez 5 horas, faço a limpeza, faço
tudo, molho tudo [rega as plantas]. Ás vez eu vou no mercado, as vez eu vou correr um
pouco ali na vizinha [visitar]. E de tarde eu vou ir jogar, o meu dia, quando é o meu dia
[de receber as amigas], se eles chegam ali, eu fico contente, mas se eu posso correr [sair
para jogar], eu já falei antes pra ele [marido]: “Hoje a tarde, na hora do meio dia eu tem
que ir renovar meu cartão [no banco] e depois de lá, eu vou ir [jogar baralho com as
amigas].16
Percebe-se que para dona Rení o prazer de trabalhar faz com que ela se sinta útil e
produtiva, possibilitando que no período da tarde ela se sinta livre e saia para se encontrar
com suas amigas para jogar baralho. Seu comportamento está pautado por um ethos do
trabalho, segundo o qual, primeiro está o trabalho, depois o prazer.
Mudou. Eu já falei pros filho, pros parente de Rio Grande, eu nunca achei que
ia ganhar um tempo que nem como eu tenho agora. Livre. Posso sair quando tu
quer.
E, como expresso na fala de dona Rení “assim nós se viremos”, é perceptível que para
ela todo o esforço valeu à pena. O trabalho na roça, inclusive nos domingos, remendando roupa
ou adiantando a comida pra semana possibilitou que agora na velhice ela possa ter uma vida
mais confortável, para usufruir de um tempo só para si, livre das obrigações que não permitiam
que ela saísse para se divertir quando mais jovem.
15
Rení Riffel, 76 anos. Entrevista realizada pela autora em 17/08/2011.
16
Idem.
17
Rení Riffel, 76 anos. Entrevista realizada pela autora em 17/08/2011.
Ih... Foi... Bom... Isso é um dinheirinho pra... Porque antigamente a gente sempre
tinha que..., eu precisava comprar isso, eu quero comprar isso... agora, não precisa
mais pedir, pra ele [pro marido]. Eu tenho agora meu dinheiro, quando quer comprar
uma coisinha. [risos] e comprar as vez um presentinho, né. Ele deu dinheiro mas ele
era assim, muito seguro. Eu também cuida, a gente era criado assim.18
Ajuda, se eu não tivesse essa pensão, essa aposentadoria, não teria o convênio. Não
teria, porque com o que eu ia pagar o convênio? Então essa, se eu não tivesse o
convênio ia depender do SUS, né, daí eu taria [sic] perdida, porque... A prefeitura,
ela ajuda muito, a gente não pode se queixar, eles ajudaram muito a gente já, quando
ele [marido] teve problema de saúde também. Mas se você depender de uma
consulta da prefeitura, você tem que esperar, às vezes uma semana, às vezes um mês,
às vezes dois, três, né, e assim no meu convênio, o dia que eu preciso, eu vou lá, eu
tenho a consulta, eu tenho os exames tudo na mão, por isso que eu tenho que manter
o convênio, se não, não teria o convênio, se não tivesse a aposentadoria. E pagar a
luz e água e telefone também, né. Mas dá exatamente isso, pagar o convênio, a luz, a
água e o telefone, e daí o resto, sustentação da casa, por isso que não dá pra sair
18
Idem.
muito, daí vai na festa, vai gastar, vai viajar, vai gastar, então a gente tem que se
manter .19
Dona Olinda participa do Clube de Idosos, muitas vezes vai para dançar mesmo sem
que o marido a acompanhe. Fala do prazer que sente ao dançar, apesar de sentir dor algumas
vezes e das limitações decorrentes da idade e de uma cirurgia sofrida no joelho recentemente:
Dona Olinda: Aham e todo o pessoal acha que eu posso dançar com esse joelho. [ela
fez cirurgia no joelho] Eu não noto nada. E tem muitos se queixa de dor. Eu não. Eu
tinha dor antes. (...) Porque eles arrumaram esse osso, [mostrou a perna e o lugar em
que foi feita a cirurgia] isso muitas vez dói. 20
19
Irmélia Drews Schmitt, 72 anos. Entrevista realizada pela autora em 08/10/ 2011.
20
Olinda Camila Wittech, 82 anos. Entrevista realizada pela autora em 26/08/2011.
estas mulheres de “explorar novos espaços da cidade, dar novas funções ao corpo e,
sobretudo, “para não ficar dentro de casa””.21
Ecléa Bosi pondera que na sociedade capitalista em que vivemos, muitos dos velhos,
esgotados de sua força de trabalho, se desesperam com a falta de sentido da vida presente.
Quando não podem mais trabalhar, se sentem desvalorizados. Para ter uma sobrevivência
digna, a autora acredita que “durante a velhice deveríamos estar ainda engajados em causas
que nos transcendem, que não envelhecem, e que dão significado a nossos gestos
cotidianos”.22 Ou seja, levar uma vida ativa, partilhando interesses e prazeres com outras
pessoas da mesma geração.
É o que faz dona Valéria. Ela mora com a filha solteira que fica fora o dia inteiro
devido ao trabalho. Para ela, “não adianta ficar só em casa e pensar no passado”, por isso ela
sai bastante, conversa com as amigas e se distrai. Ao ser perguntada pela entrevistadora se
não se sente muito sozinha ou se sai bastante, fala do seu cotidiano e de sua vida na cidade:
Através de sua narrativa percebe-se que ela tem uma vida repleta de atividades,
estando constantemente em contato com outras mulheres de sua idade, com as quais
compartilha momentos de diversão e de conversa, que faz com que se esqueça da solidão e
21
DELGADO, Josimara. Velhice, corpo e narrativa. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34,
jul/dez. 2010, p.204.
22
BOSI, Ecléa. Op. Cit. p. 80.
23
Valéria Wagner Armanje, 71 anos. Entrevista realizada pela autora em 04/11/2011.
dos problemas e dificuldades vividos no passado. De acordo com ela, não vale à pena ficar
em casa só “pensando no passado” ou em doenças, porque “o que passou, passou”. É preciso
esquecer as dificuldades físicas e a solidão. É preciso seguir em frente e procurar novas
formas de se distrair e socializar. Viver o presente e dar um novo sentido à vida. Aproveitar
as oportunidades que a vida oferece.
FONTES ORAIS
24
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 480.
25
Idem, p. 481.
26
Idem, ibidem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Projeto História, São Paulo, 14,
fev. 1997.
SCHREINER, Davi Félix. Memórias da luta pela terra: de sem-terra migrantes às ocupações
coletivas. Espaço Plural. Ano X, nº 20, 1º semestre 2009, p 94-102.
Nos meados da década de 70, no sudeste do Mato Grosso, ocorreram novas ocupações
territoriais, em especial, a expansão do plantio da soja, no intuito de desenvolver
economicamente a região. É a partir desse fluxo migratório que visualizamos no espaço
escolar do município de Primavera do Leste, á 240 km da capital Cuiabá, uma comunidade
bastante heterogênea, em que educadores e alunos advindos de outras regiões do país
(sulistas, nortistas, goianos, indígenas, etc.), somando-se a permanente transitoriedade de
alguns alunos que percorrem os caminhos dos pais, na busca de oportunidade de trabalho, e
por isso alguns autodenominam-se “pés-inchados”, “peões de trecho” ou “turistas forçados”1.
Além disso, a proximidade do município á algumas aldeias indígenas, entre elas a reserva
Sangradouro, torna relevante o número de alunos indígenas que perpassam as escolas
estaduais de Primavera do Leste e apresenta múltiplas relações sociais, num longo percurso
dividido, de forma desigual, entre memórias, identidades, e quiçá de percepções de
patrimônio cultural.
Juntamente ao cenário matogrossense, aos movimentos migratórios na região,
precisamos considerar suas consequências na (re)construção das identidades e memórias que
transitam nas E. E. João Ribeiro Vilela e E. E. Getúlio Dorneles Vargas no município de
Primavera do Leste, composta pela diversidade étnica, uma especificidade que poderá
contribuir nas múltiplas percepções de Patrimônio cultural na escola.
Os aportes teóricos que referenciam essa pesquisa circundam a História cultural,
alavancada nos idos da década de 80 pela historiografia francesa, da Escola dos Annales, a
1
CERUTTI, Leandro Genoino. Deslocamento social e trabalho temporário: práticas e Relatos de trabalhadores
em Primavera do Leste-MT /Leandro Genoino Cerutti. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato
Grosso, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, 2004, pg. 02.
qual amplia o campo das pesquisas, estabelece diálogos com a antropologia, valoriza as
minúcias do cotidiano e utiliza-se variadas fontes e metodologias de pesquisa.2
A história do tempo presente auxilia na percepção ramificada dos eventos atuais com
outras temporalidades, em particular intenciona articular o tempo imediato ao passado, sair da
superficialidade e mergulhar numa relativa profundidade histórica como indica Le Goff:
[...] tentar hierarquizar os fatos, distinguir o incidente do fato significativo e
importante, fazer do acontecimento aquilo que permitirá aos historiadores do
passado reconhecê-lo como outro, mas também integrá-lo numa longa duração e
numa problemática na qual todos os historiadores de ontem e de hoje, de outrora e
do imediato, se reúnam.3
2
BURKE, Peter. O que é história Cultural? Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.191p.
3
CHAVEAU, TÉTART, (orgs.). Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC, 1999, p. 101-102.
4
JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. Revista Brasileira de História da Educação,
n°1, p. 09-44, jan./jun. 2001, pg. 17.
5
MENESES, Ulpiano Bezerra. “A Problemática da Identidade Cultural nos Museus: De Objetivo (de Ação) a Objeto
(de Conhecimento)”. “Anais do Museu Paulista da USP - História e Cultura Material”. Nº 1, 1993, pg. 12.
Para Canclini ocorre um processo intercultural nas instituições, em que coexiste conflito
e a negociação, onde:
Utilizaremos aqui um relato de uma educadora, Gleibiane David Rech Silva, oriunda de
Caiapônia/Goiás, a qual atuou nos anos de 1996 até 2008 como professora de Ciências
Biológicas, na E. E. João Ribeiro Vilela para alunos de EJA, em seu relato sobre a percepção
de Patrimônio cultural na referida escola ela diz:
O aluno trás experiências do seu dia a dia para escola (...) por exemplo, senhor
Antonio e senhor Jarismar trouxeram todo conhecimento passado pelos pais sobre as
plantas do cerrado e esse conhecimento eles utilizaram para desenvolver um projeto
na escola, e ganharam até um prêmio8
6
CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 7 ed. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2008, pg. 202.
7
POLLAK, Michael. Estudos Históricos. Memória, esquecimento, silêncio. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989,
p. 3-15.
8
Relato da pesquisa sobre a Temática: Patrimônio cultural na escola, 2012.
9
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2004.
10
MEIHY, José Carlos Sebe; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo:
Contexto, 2010.
que segue em entrevistas que esclarecem situações contraditórias, assim, os pontos específicos
da vida pessoal do narrador devem estar ligados a temática central desta pesquisa.
Segundo Cabral o Patrimônio é um espaço em construção, campo de combate, de
educação, pois para que se preserve é preciso conhecer. Desse modo um bem cultural amplia-
se para um bem social, com usos que delineiam significado ao patrimônio para o presente e
futuro.11
Através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996), e posteriormente
nos Parâmetros Curriculares Nacionais (2005) que almejavam valorizar a cultura regional
trouxeram algumas perspectivas voltadas para questões sobre patrimônio:
Importa registrar, no entanto, que a educação é uma prática sócio-cultural. Nesse
sentido é que se pode falar no caráter indissociável da educação e da cultura ou
ainda na inseparabilidade entre educação e patrimônio. Não há hipótese de se pensar
e de se praticar a educação fora do campo do patrimônio ou pelo menos de um
determinado entendimento de patrimônio. 12
De forma prática as questões patrimoniais devem promover além de uma visão crítica,
uma maior participação na realidade, adquirida como estratégia na transmissão dos valores
que permeiam os bens culturais. Sua eficiência concretiza-se no desenvolvimento de
formação e informação que reúne identidades plurais, reflexões sobre a História e ações de
preservação patrimonial.
O ensino nesse campo visa tratar os estudantes e a população como agentes
histórico-sociais e como produtores de cultura. Para isso valoriza os artesanatos
locais, os costumes tradicionais, as expressões de linguagem regional, a
gastronomia, as festas, os modos das diversas etnias viverem e se relacionarem com
o meio e com as outras culturas que deram origem à sociedade atual. 13
O seu exercício via percepção dentro das escolas em parceria com diversas esferas
institucionais trouxeram a perspectiva de reconhecimento e compartilhamento dos seus bens
culturais na e com a comunidade local, as quais fornecem sentido ao patrimônio cultural,
tornando-o visivelmente representativo, valorizado e consequentemente preservado.
11
CABRAL, Magaly. Memória, Patrimônio e Educação. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura.
Campinas, SP:UNICAMP, n° 13, 2004.
12
CHAGAS, Mário. Educação, museu e patrimônio: tensão, devoração e adjetivação. In: Revista Eletrônica
do Iphan. Dossiê Educação Patrimonial º 3 - Jan. / Fev. de 2006. Disponível em:
http://www.revista.iphan.gov.br/ma. php?id=145 . Acessado em: 26/01/2012.
13
PELEGRINI, Sandra C. A. Patrimônio Cultural: consciência e preservação. São Paulo: Brasiliense,
2009, pg. 114.
14
GUSMÃO, Emery. Arquivos escolares, memória e cultura. UNESP – Patrimônio e memória, FCLAs –
CEDAP, V.1, n.1, 2005 pg. 64-65. Disponível em: <
http://www.cedap.assis.unesp.br/patrimonio_e_memoria/patrimonio_e_memoria_v1.n1/Artigos/Emery%20Marq
ues%20Gusmao.pdf>. Acessado em 15 de maio de 2012.
15
FERNADES, Rogério. Cultura de escola: entre as coisas e as memórias. Pro-Posições. v. 16, n. I (46) -
jan./abr. 2005. Disponível em:<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/46-dossie-
fernandesr.pdf>.Acessado em 19 de junho 2012.
16
FELGUEIRAS, Margarida. Materialidade da cultura escolar. A importância da museologia na
conservação/comunicação da herança educativa. Pro-Posições. v. 16, n. I (46) - jan./abr. 2005. Disponível em:
<http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/textos/46-dossie-felgueirasml.pdf>. Acessado em 19 de junho de 2012.
Para Felgueiras falar sobre patrimônio ou herança educativa remete a refletir sobre as
ressignificações, atribuídas pelas comunidades, na criação de laços afetivos no âmbito escolar
material e imaterial.
Na herança educativa incluímos, assim, tanto os edifícios, o mobiliário, os materiais
didácticos, os materiais dos alunos, os elementos decorativos e simbólicos presentes
nas escolas, quanto as práticas de ensino, as tácticas dos alunos, as brincadeiras e as
canções no recreio, as recordações do quotidiano escolar, que as memórias de
professores e alunos podem revelar. Da cantina ao gabinete médico, à actividade
administrativa, pretende-se ver a escola como lugar de interacções em que
professores, alunos, funcionários e famílias construíram e constroem um espaço
relacional (...).17
Tais aspectos nos levam a pensar a escola como um espaço simbolizado, mais que uma
peça do sistema, ela é viva, partilha de outras instituições, que regulam sua funcionalidade,
pesquisar seu patrimônio cultural implica em pensa-la na sua complexidade, na comunidade
que a envolve, relacionada a outras sociedades e aos sentidos que lhe são apontados, um bem
cultural, repleto de memórias.
Nesta pesquisa foram investigadas as percepções de Patrimônio Cultural escolar entre as
comunidades da E. E. João Ribeiro Vilela e da E. E. Getúlio D. Vargas através de dados
fornecidos nos questionários socioeconômico e cultural.
Podemos constatar por meio da coordenação das duas escolas que entre os anos de 2008
e 2011 foram trabalhados projetos pedagógicos que diretamente ou indiretamente buscaram o
reconhecimento das memórias, identidades e patrimônio em suas comunidades. A pesquisa
contou com relato de uma educadora (uma professora que atuou nas duas escolas), visando
dar sentido qualitativo a pesquisa e no intuito de somar esta entrevista aos questionários e
fotografias colhidos nos acervos escolares.
Esta pesquisa, em aberto, pretende ainda aprofundar debates teóricos e legislativos
sobre patrimônio cultural, além de inserir outros pontos da fonte oral temática.
Encontramos durante esse trabalho grupos diversificados no âmbito profissional, etário,
étnico, e econômico, os quais enriquecem e ampliam nosso campo de visão sobre o universo
escolar e patrimonial.
A escola como Patrimônio cultural auxilia na percepção dos simbolismos que por ela
transitam, dá visibilidade a referenciais históricos que perpassam por diferentes famílias,
comunidades que recriam identidades a partir de campos de conflitos sociais, compõem um
patrimônio cultural em evidencia, mas ainda em exploração.
17
IDEM, pg. 92.
REFERENCIAS
BURKE, Peter. O que é história Cultural? Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.191p.
CHAVEAU, TÉTART, (orgs.). Questões para a história do presente. São Paulo: EDUSC,
1999, p. 101-102.
MEIHY, José Carlos Sebe; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2010.
Essa pesquisa surgiu ainda durante a graduação, tendo sido objeto de Iniciação
Científica e Trabalho de Conclusão de Curso. Em decorrência da necessidade de
aprofundamento dessa discussão, ela também é objeto do atual curso de mestrado. O interesse
pela pesquisa veio da curiosidade pela temática étnica e pelo constante debate nos últimos
anos em torno dos quilombolas, bem como dos indígenas. Em 2007, ao responder a uma
chamada de matéria no jornal em que trabalhava na cidade de Guaíra/PR, tive o primeiro
contato com a família Ciríaco dos Santos, organizada como Comunidade Quilombola Manoel
Ciríaco dos Santos, que leva o nome de seu patriarca. Como o grupo se identifica sob a
nomenclatura de Comunidade Quilombola, também me utilizarei dela durante o exposto. Com
algum conhecimento prévio de discussões em torno da(s) cultura(s) negra(s) e da
problemática de sua homogeneização/unidade, tendo em vista que essa cultura não é una,
fiquei bastante interessada ao perceber o interesse da Comunidade em aprender capoeira ou
artesanato com fibra de bananeira. Afinal, o que levaria essas pessoas a se declararem
quilombolas, algo que não ocorria antes, e reivindicar um tratamento diferenciado do poder
público? Esse meu estranhamento motivou a pesquisa que pretendo expor. Para isso,
organizarei o texto de forma a abordar a trajetória da comunidade, a problemática do conceito
de quilombo, uma análise das políticas públicas, a preocupação teórico-metodológica do
trabalho, sempre dialogando com a análise de fontes.
Um dos primeiros aspectos que devem ser pensados nesse trabalho é discutir o
conceito de quilombo, ainda que de forma rápida, para situar de onde eu parto para considerá-
los quilombolas. A comunidade em questão difere da definição tradicional de quilombo,
pautada no “binômio fuga-resistência” (SCHMITT, TURATTI, CARVALHO, 2002. p. 2.),
mas está inserida na atual conceituação de quilombolas, modificada com o intuito de garantir
o acesso às políticas públicas pelos quilombolas, cuja formação está relacionada aos mais
diferentes processos (posse de terra por fuga, ocupação, doação e mesmo compra, durante o
período escravista ou após seu final). Sendo assim, considero quilombolas os grupos que
possuem “identidade social e étnica por eles compartilhada” (SCHMITT, TURATTI,
CARVALHO, 2002. p. 4) e ainda considero a auto-definição, o que também é considerado
pelo Governo Federal, como podemos ler em seu documento sobre o Programa Brasil
Quilombola1 “quando se fala em identidade étnica, trata-se de um processo de auto-definição
bastante dinâmico e não se reduz a elementos materiais ou traços biológicos distintivos, como
cor de pele, por exemplo” e ainda “A maneira pela qual os grupos sociais definem sua
identidade é resultado de uma confluência de fatores, escolhidos por eles mesmos: de uma
ancestralidade comum, formas de organização política e social, elementos linguísticos e
1
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário/ Secretaria Especial para Políticas de Promoção de
Igualdade Racial. Programa Brasil Quilombola. Brasília: 2005.
2
Id. Ibidem, p.9.
3
Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian Aguazo, em agosto
de 2007, Guaíra/PR.
4
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
5
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
Maracaju, tendo inclusive que arrendar parte de suas terras para sobreviver. A terra que eles
possuem era (e ainda é) pouca para os membros da família (hoje apenas 40 pessoas), que,
além disso, possuíam dívidas com bancos, que os impossibilitava de adquirir sementes,
adubos e os demais materiais necessários para ter uma produção própria. Assim, o
reconhecimento surge como forma de melhorar sua condição de vida, principalmente através
do incentivo à produção própria (a comunidade conta com uma horta e revende seus produtos
no município) e à educação, possibilidade que foi negada a muitos quilombolas, em razão da
necessidade de trabalhar para o próprio sustento.
especialmente político; como na postura dos demais proprietários de terras no Maracaju, que
ao verem a ameaça do “outro” (no momento em que o INCRA começa a pesquisa para
titulação da terra quilombola) reagem de forma violenta, numa tentativa de manter seu espaço,
sua posição de dominação. Como a marca da família Círiaco sempre foi o silêncio, o “ficar no
seu canto”, esse “aparecer” gera incômodo e incentiva, dos dois lados, uma resposta em forma
de afirmação identitária, em que um grupo se opõe ao outro para fazer uma imagem de si
mesmo.
Todo o documento segue nesse tom, de reconhecer a propriedade em que eles estão
como terra quilombola, de uso coletivo. Apesar disso, o autor do artigo acusa o INCRA de
querer desapropriar os pequenos proprietários das redondezas, em favor dos quilombolas,
pedindo que o pedido enviado ao INCRA seja refeito para que “as terras sejam demarcadas
segundo os títulos que possuem por ser mais que o suficiente a desenvolver as atividades que
desenvolvem” e ainda diz aos quilombolas que “se restrinjam tão e somente as terras
adquiridas pelo Sr. Manoel”. O autor usa esse tom acusatório, muito embora não haja menção
alguma a aumentar as terras quilombolas, mas apenas a demarcar e titular as terras já
ocupadas, com o objetivo de tornar as terras coletivas.
O autor do artigo ainda cita o arrendamento, dizendo que se ele acontece é porque,
certamente, os quilombolas não precisam das terras, insinuando que o interesse é capitalizar a
terra aos “Brancos”. Nas palavras do articulista, “a falta de terra para o trabalho não serve
6
GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos. Jornal Ilha
Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.
como tese para os Requerentes já que possuem aproximadamente onze alqueires e arrendam
aproximadamente seis alqueires aos vizinhos”7. A díspar de uma análise mais aprofundada
que essa fonte merece, o que podemos perceber nesse momento é uma caracterização do
“outro”, “eles”, em oposição ao que é o “eu” ou o “nós”.
A memória pode ser entendida como individual e coletiva, mas, em ambos os casos,
ela é socialmente construída. Mesmo as memórias individuais são construídas através das
relações que construímos em nossa vivência; ainda que voltemos a um mesmo lugar depois de
anos e recordemos dele, essas lembranças de algo passado serão mediadas pelas experiências
vividas no presente, os diferentes lugares que conhecemos ao longo da vida, por exemplo.
Assim como as memórias individuais não são iguais, mesmo que os indivíduos pertençam aos
mesmos grupos, as memórias coletivas não significam em absoluto que haja unidade dentro
do grupo. As memórias de grupos políticos ou organizados de alguma forma pretendem essa
unidade e utilizam um discurso que, por vezes, pode dar a impressão de uma unidade, apesar
disso, os diferentes sujeitos desses grupos possuem diferentes conceitos sobre si e os outros,
ainda que suas memórias sofram influência dos grupos aos quais pertençam. (POLLAK,
1992, p. 2.)
7
GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos. Jornal Ilha
Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.
Com a pesquisa, não objetivo avalizar o grupo estudado como quilombolas (ou não), o
foco é lidar com a construção de uma identidade étnica negra e seus sentidos/intenções. Para
entender esse processo, também podemos recorrer a Stuart Hall, em seu ensaio intitulado
Quem precisa de identidade?. Para ele, as identidades não são únicas, homogêneas (nem
mesmo dentro de um grupo que se pretende homogêneo), mas fragmentadas em inúmeras
outras identidades, construídas através da narrativa, das “práticas e posições”(HALL, 2000,
p.108), estando em constante processo de mudança e obedecendo à necessidade de se integrar
e se posicionar diante de outros grupos, modificando as relações de poder existentes,
tornando-se “dominante, subalterno, igual, diferente” (PRAXEDES, 2004). As narrativas do
grupo se pretendem homogêneas, na rememoração do passado negro, escravo, que merece
reparação, ainda assim, não podemos pensar esse discurso como real representante de uma
unidade identitária. Além disso, Hall ainda nos aponta, em seu A identidade cultural na pós-
modernidade, que o sujeito pós-moderno vive um processo de fragmentação de identidade,
resultado de uma contemporaneidade marcada por descentramentos. A partir disso, os sujeitos
se constituem não de uma identidade, mas de várias identidades, construídas a partir de sua
vivência (HALL, 2000). Os quilombolas de que esse estudo trata tem o objetivo definido de
se reivindicar enquanto tal, trazendo o passado de sua família como meio de legitimar suas
lutas por terra, dentre outros direitos, formando uma narrativa que se pretende homogênea,
ainda assim, devemos ficar atentos para não essencializar a identidade esse grupo, mas tratar
dos sentidos dessa tentativa de homogeneização.
Quanto ao uso de relatos orais, parto da concepção de que eles são o meio através do
qual podemos “acessar” as memórias de grupos, como a comunidade quilombola, em que o
processo da fala constitui a principal fonte na construção de identidades. Dessa forma, não
trato essas fontes como a verdade, registro do passado ou fatos, mas como fonte para
compreender/analisar o processo no qual a comunidade está inserida e através do qual
reconstrói uma imagem de si e dos outros. Para Portelli, a fonte oral “conta menos sobre
eventos que sobre significados” (PORTELLI, 1997, 31). Assim, a preocupação não é com a
afirmação ou negação da comunidade como quilombola, por exemplo, mas pensar os sentidos
que os membros dessa comunidade creditam ao se considerarem quilombolas, os significados
da construção de uma trajetória de vida marcada pela negritude.
8
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E
REFORMA AGRÁRIA. Instrução Normativa n°57, de 20 de outubro de 2009. Regulamenta o procedimento
para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação,desintrusão, titulação e registro das terras ocupadas
por remanescentes das comunidades dos quilombos de que tratam o Art. 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988 e o Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de
2003.Disponível em:
http://www.mds.gov.br/sobreoministerio/legislacao/segurancaalimentar/instrucoesnormativas/PCT%20Intrucao
%20Normativa%20no%2057-%20de%2020%20de%20outubro%20de%202009.pdf. Acesso em: 1 de setembro
de 2010.
então a genti já sofreu muito aqui...então é por isso que os irmão sofreram i
desistiram i foram embora, não agüentaram tanto sofrimento aqui...nóis
fiquemo porque nóis agarremo esse pedacinho de terra que o pai sofreu,
sofreu i dexo pra genti, intão a genti não qué vendê...9
hoje nóis num vende mais purquê nóis... a dificuldade qui passêmo, num
vendêmo... hoje num vende mais...eh...hoje já nem presta pra vendê...pra
vendê...si a pessoa tendo uma mandioca pra fazê a farinha pra fazê um
tutu...ah...a pesso véve sussegado né...véve sussegado...10
A terra aparece como resultado de muito sofrimento por parte do pai dos entrevistados,
por isso lhe é atribuída um valor ainda mais forte de pertencimento. A terra também é vista
como meio de sobrevivência, ainda que dela só seja possível retirar a mandioca para a farinha,
sem luxos, apenas o necessário para sobreviver. Outra entrevista ainda explicita que a luta
pela terra é uma das maiores reivindicações, deixando claro que a questão de tornar a terra
produtiva é o mais importante, juntamente com o apoio dos governos municipal e estadual.
A gente tem saúde, tem força, tem inteligência... achu qui si a gente tivesse
apoio... a gente não tem recurso financeiro... a terra que a gente tem é poca,
a gente tem dívida com o Banco do Brasil... purque se a gente tivesse hoje
acesso ao banco, a gente pudia montar alguma coisa pra gente tá
trabalhano... por isso qui a gente ta precisano di apoio...11
9
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
10
Depoimento oral de João, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em Guaíra/PR.
11
Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian Aguazo, em
agosto de 2007, Guaíra/PR.
Fica mais claro nessa fala, até por se tratar do representante escolhido pela
comunidade para representá-la, uma fala mais politizada, em que fica claro o projeto de futuro
do grupo, marcado pela necessidade de apoio para trabalhar e gerar renda. Em outra
entrevista, é possível entender através de que processo esse apoio se faria possível. Ao tratar
sobre o reconhecimento da comunidade como quilombola e depois de deixar claro que eles
tem o certificado de reconhecimento, um entrevistado me fala sobre os benefícios que eles
teriam “benefícios todos...”, “nóis tem tudo... todos os direitu duma pessoa que véve bem...
imbora nóis já tem us papel tudu bem feitinhu... qui véve bem... intão nóis tem o direito... até
mais... té mais... até mais nóis já tem”. Esse papel seria o Certificado da Fundação Palmares e
também a pesquisa que o precedeu, realizada pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura e que
resultou em uma espécie de livro, em que estão compiladas todas as informações recolhidas à
época, que envolvem o “processo de produção autônomo”, “capacidade de organização
político-administrativa”, “critério ecológico de preservação dos recursos”, “auto-definição dos
agentes e da coletividade”, “grau de conflito e antagonismo”, “formas de uso comum;
combinação de domínios privados (familiares, domésticos) e públicos”12, critérios do Grupo
Clóvis Moura para o reconhecimento. Esses documentos são muito importantes para a
comunidade, por constituírem um meio palpável e uma fala especializada e, por isso,
autorizada, que os reconhece como quilombolas e garante o acesso às políticas públicas.
12
GRUPO DE TRABALHO CLÓVIS MOURA. Resumo de Projeto de levantamento histórico educacional,
sócio-econômico e cultural elaborado em novembro de 2004. Disponível em:
http://quilombosnoparana.spaceblog.com.br/321649/RESUMO-DO-PROJETO-DE-LEVANTAMENTO-
HISTORICO-EDUCACIONAL-SOCIO-ECONOMICO-E-CULTURAL-NOVEMBRO-2004/. Acesso em: julho
de 2010.
13
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural
para agricultores familiares e assentados no Brasil. Brasília: Convênio de Cooperação Técnica MDA/FAO, 2003.
BIBLIOGRAFIA
HALL, Stuart. Quem precisa de identidade?. IN: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade
e diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000.
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5,
n. 10, 1992, p. 2.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. Revista Projeto História, São
Paulo, fevereiro/2007.
PRAXEDES, Rosângela Rosa. Pensando raça e cor com Stuart Hall: algumas reflexões a
partir do significado de negro. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, ano 3, n. 36, maio de
2004.
FONTES
Depoimento de Adir Rodrigues dos Santos, concedido a Jéssica de Lima da Silva e Cristian
Aguazo, em agosto de 2007, Guaíra/PR.
Depoimento oral de José Maria, concedido a Jéssica de Lima da Silva, em agosto de 2008, em
Guaíra/PR.
GIACOMIN, Luiz Segundo. A comunidade Maracajú dos gaúchos quer a verdade dos fatos.
Jornal Ilha Grande, Guaíra, p. 07, 14 de novembro de 2009.
1
Associação cultural e esportiva Assis Chateaubriand
pequenas aglomerações urbanas. Podemos então pensar o espaço citadinos não enquanto um
conceito unicamente geográfico, como diz Roncayolo:
Por um lado, a cidade não pode ser entendida unicamente no interior dos
seus limites: ela está em relação mais ou menos estreita com o espaço que a
circunda, com outras cidades e, eventualmente, com outros espaços mais
distantes, e apresenta-se, pois, a níveis diferentes, como o centro de um
controle territorial. Assim se desenvolvem as noções de “rede urbana” e de
“estrutura urbana”. Por outro lado, a cidade não pode reduzir-se nem a um
conjunto de objetos urbanos nem a uma combinação de funções: agrupa uma
população caracterizada por uma certa composição demográfica, étnica, ou
social; é uma forma de comunidade (em certos casos, de coexistência de
comunidades) ou de coletividade; é, por principio, essencialmente política.2
Como tal a cidade é um espaço historicamente constituído, de fato ela está
intrinsecamente ligada à concepção tradicionalista de civilização que o ocidente tem. A sua
definição como um possível local de coexistência de comunidades, em especifico me parece
interessante, pois permite pensar em um provável arranjo social, e talvez político, ou uma
determinada ‘morfologia’ do espaço urbano, segundo a definição do próprio Roncayolo3. Em
outras palavras a cidade, enquanto resultado da sociedade ‘urbanizante’ teria a capacidade de
influir nos seus habitantes cristalizando “certos hábitos e interesses4” ao mesmo tempo em
que herdaria as marcas da vivência urbana de seus habitantes. Penso que a existência de
diferentes grupos, sejam eles fruto da diferenciação por critério social, demográfico ou étnico,
imprime no espaço diferentes formas de arquitetura.
As ondas imigratórias podem ser vistas como um dos efeitos da globalização, Graças a
ela as identidades nacionais sofreram uma interposição, tal fenômeno propiciado pela
2
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda, 1986. 396-487.
3
Idem, Ibidem. P. 432
4
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda, 1986. 396-487. P.
433
A comemoração tem especial importância, pois muitas vezes a mesma serve como um
elo dos sujeitos com a instância maior: O grupo. Neste sentido, as comemorações herdadas da
religião e cultura japonesa, se mostram como um instrumento que remete os sujeitos a
lembrança de seu passado comum.
As associações com fins de promoção cultural não são algo novo, quando se trata da
população de imigrantes e descendentes japoneses no Brasil. Desde o início da imigração no
5
Associação Cultural e Esportiva nipo-brasileira de Assis Chateaubriand. Sigla pela qual ficou conhecida a
A.C.E.A.C após a Década de 1990.
6
CANDAU, Joel. Memória e identidade. São Paulo : Ed.Contexto, 2001, P.105-180.
país, os nipônicos assumiram uma postura que contribuiu para a fundação de muitas
associações culturais.
Tal Postura pode ser relacionada em parte à situação de estrangeiros dos recém-
chegados. Como dependentes dos laços de colaboração que as associações davam a seus
membros na sociedade brasileira, era do interesse dos nipônicos fazerem parte de um circulo
social que ajudasse a promover sua progressão econômica e profissional no novo país.
A fundação de associações culturais pode ser explicada, então, a partir destas duas
considerações. O grupo estudado pode ser entendido como uma continuação de experiências
que os migrantes Nikkeis tiveram, quando saídos de suas naturalidades em outras regiões do
Brasil, e então chegados à cidade. Tal fato pode explicar porque as associações culturais
sobreviveram após 1945, e depois da década de 1980, quando a imigração japonesa no Brasil
a muito já não era massiva, e quando se começou a verificar o fenômeno decasségui.
7
KIMURA, Rosangela. Políticas restritivas aos Japoneses no estado do Paraná 1930-1950: (De cores proibidas
ao perigo amarelo). Maringá, 2006. P.146, Dissertação. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Estadual de Maringá, UEM.
Vale destacar sobre o conceito de comunidade, que ele, assim como outros (classe, por
exemplo) é dificilmente definível como algo palpável e fechado. Aparentemente o mundo
atual não é o palco ideal para a atuação da comunidade, como o próprio Bauman assinala 9. É
mais concernente, aparentemente, ao nosso tempo a noção de insegurança perante a mudança
constante, e a fluidez dos relacionamentos, do que o lugar paradisíaco onde é possível
encontrar apoio mútuo.
Tais tendências foram mapeadas por Stuart Hall, e segundo os apontamentos em sua
obra, esses comportamentos são classificados como tradição, para o primeiro caso, e tradução
para o segundo.
8
BAUMAN, Zygmunt. Comunidades: a busca por segurança no mundo atual. 1° ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003. P. 10.
9
Idem, Ibidem P. 18
10
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade,. 10. ed. Rio de Janeiro: dp&a, 2005. P. 86
identidade. Esta identidade além de ser reconhecida localmente também teria um valor
simbólico fora da região. Podemos afirmar que a associação cumpriria assim o papel de
outorgar ao individuo uma forma característica do mesmo relacionar-se com a sociedade e as
instituições.
Mas, além disso, a mesma configurar-se-ia como um meio de preservar uma cultura
que pode hoje ser esquecida, resgatando-a do oblívio. Assim a mesma poderia encaixar-se na
definição apontada como uma forma de tradição. Como tal ela constituir-se-ia de um retorno a
uma forma de heterodoxia cultural.
Por fim, desejo ressaltar o caráter provisório das considerações aqui feitas.
Considerando-se que os resultados da pesquisa são apenas parciais, os temas abordados aqui
fazem parte principalmente da discussão teórica e de como essa se aplica na realidade
pesquisada.
BIBLIOGRAFIA
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade,. 10. ed. Rio de Janeiro: dp&a, 2005
BAUMAN, Zygmunt. Comunidades: a busca por segurança no mundo atual. 1° ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003
KIMURA, Rosangela. Políticas restritivas aos Japoneses no estado do Paraná 1930-1950: (De
cores proibidas ao perigo amarelo). Maringá, 2006. Dissertação. Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Estadual de Maringá, UEM
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi, vol. 8. Lisboa, Casa da Moeda,
1986. 396-487
Os jornais, desde o final do século XIX, foram um dos principais canais de divulgação
da vida cotidiana Guarapuavana. Sobrevivendo aos momentos de crise enfrentados durante as
décadas de 1930 e 1940, e à mudança das elites no poder, os jornais tornaram-se parte do
cotidiano da cidade até os dias atuais.
Poucos são os que sabem das mil e uma dificuldades a serem vencidas para
a orientação e manutenção de um jornal em cidade do interior. É preciso o
seu diretor “contar até sete”, possuir verdadeiro espírito de renúncia e de
sólida vontade de ser útil ao município e à sua gente. Só assim, o jornal
local, poderá ser autêntico veículo orientador da opinião pública, usando
linguagem comedida, atendo-se unicamente a exercitar a defesa
intransigente dos problemas que interessem, direta ou indiretamente, a
coletividade. Nada de manchetes escandalosas, de linguagem desabrida,
tendenciosa, indigna de penetrar no recesso de um lar honrado, de família 1
1
PLANALTO, João do. Do meu canto (recordações de outros tempos): v. 2. Curitiba: O Formigueiro, 1981,
p.51.
Foram publicados ainda na cidade uma série de outros jornais, em sua grande maioria
de curta duração, como o Jornal das Crianças (1893), O Paraná (1894), A Lide (1894), O
Guarapuavano (1902), O Guayra (fase de 1917), O Pharol (1919), O Momento (1924), A
Cidade (1932), O Independente (1935), Brasilidade (da Propaganda Integralista Brasileira -
1935), Folha do Oeste (1937), O Liberal (órgão da Revolução de 1930), A Época (1958), O
Combate, O Carrapicho, O Jacobino, O Paraná Matutino, Ideal, O Trevo, Alerta, O Arauto,
O Marrete, O Independente, Alfinete, Carga, Torpedo, O Planalto, O leão da Serra da
Esperança, Oeste Paraná, Jornal de Guarapuava, Sentinela do Oeste, Jornal de Notícias,
Tribuna Paranaense, Folha de Guarapuava, Comarca, A Columna, O Paraná, Correio do
Oeste, em sua grande maioria com data de fundação e de duração desconhecida. Além disso,
também foram editados na cidade uma série de jornais literários e críticos como A Alvorada
(1896) O Lyrio, A Pena, O Serrote e O Farolete (1928/1929), entre outros.3
2
PLANALTO, João do. Op. Cit.1981, p.234.
3
Fontes: CARDOSO, Rosy de Sá. “Breves notas sobre a imprensa do Paraná”. In: História do Paraná. v.3,
Curitiba: Grafipar, 1969, p.207-237; PLANALTO, “Do meu Canto”, Folha do Oeste, 19 de janeiro de 1941,
p.3; MARCONDES, Gracita Gruber. Guarapuava: história de luta e trabalho. Guarapuava: Gráfica da
UNICENTRO, 1998. p.129.
4
As dificuldades de acesso a cidade acabou por incorporar entre as primeiras décadas do século XX no
imaginário local o isolamento como fator a ser superado. Este sentimento foi recorrente entre os discursos
veiculados pela imprensa local e encontrou o auge de sua discussão na questão do atraso na chegada da estrada
de ferro de Irati a Guarapuava.
O Guayra que tinha como seu redactor chefe o venerado cidadão Luiz
Daniel Cleve iniciou sua publicação a 4 de abril de 1893, causando
extraordinário sucesso por ser o documento vivo de uma grande e
assignalada vitória contra as maiores dificuldades consideradas então como
insuperáveis, pois que Guarapuava não dispunha naquella época nem siquer
de uma estrada de rodagem que a ligasse aos outros centros civilizados do
paiz (sic) 5
Além de O Guayra, outros jornais também tiveram duração não tão curta, como foi o
caso do hebdomadário O Pharol, fundado em 1919 por um membro da elite campeira
guarapuavana, Antonio Lustosa de Oliveira, na época com apenas 18 anos.
Este jornal seria o marco inicial da vida jornalística de Lustosa. Durante a década em
que o jornal foi editado a questão do já referido isolamento da cidade viveu sua fase mais
aguda. Nesse sentido, não é estranho notar que a maioria dos editorais estavam voltados à
questão da estrada de ferro. A estrada de ferro se consubstanciou no grande ideal a ser
perseguido, uma vez que se apresentava como a grande solução para as mazelas da cidade.
Segundo Lustosa, a estrada de ferro era uma promessa desde a época do Brasil- Império. 7
5
CLEVE, Jeorling J. Cordeiro. Coronel Luiz Daniel Cleve – Memória Histórica. Curitiba: Juruá, 2005, p.30.
6
IZIDORO, Heitor Francisco. Guarapuava: das Sesmarias a Itaipu. Curitiba: Vicentina, 1976. p.165-166.
7
SILVA, Walderez Pohl da. Entre Lustosa e João do Planalto: a arte da política na cidade de Guarapuava
(1930-1970). 2008. 209f. Tese (Doutorado em História Social), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
p.54.
Com uma vida jornalística extremamente ativa, ainda antes do fim de O Pharol,
Lustosa publicou outro jornal denominado de O Movimento. Após o fim de O Movimento, O
Pharol e A Alvorada, Lustosa, com mais dois amigos, David Moscalesque e Amarilio
Rezende, que pertenciam ao Movimento Integralista Brasileiro, fundou um pequeno jornal
chamado A Brasilidade (1935-1936). Os objetivos deste pequeno jornal estavam em difundir
os valores do Integralismo, que haviam adquirido um grande sucesso entre a juventude da
cidade, sobretudo entre os fazendeiros, dentro dos princípios de defesa da propriedade, da
família e da religião católica, muito caros as famílias mais tradicionais da cidade. Nesse
sentido, o “Estado Integral”, idealizado por Plínio Salgado, líder da Aliança Integralista
Brasileira, representava para os amigos e para o próprio Lustosa um ideal a ser buscado. Além
disso, por esses companheiros trazerem uma bagagem cultural acima da média para o
Guarapuavano, expressavam um ideário de “ser moderno” para Lustosa. Sob esse prisma,
para Lustosa o “Ideal Integralista” de David e Amarílio representava estar em sintonia com os
acontecimentos que agitavam o cenário nacional. 9
A importância da vida jornalística de Lustosa não se faz apenas pela sua intensa
atividade jornalística na cidade. Lustosa, além de jornalista, cronista (suas crônicas intituladas
“Do meu canto” e assinadas com o pseudônimo de João do Planalto foram publicadas por
mais de 30 anos), também foi presidente do Clube Guaíra, um político influente na cidade,
sendo prefeito municipal na década de 1940, mais especificamente entre 1944 a 1946 e por
três vezes eleito deputado estadual e primeiro suplente a deputado federal pelo Partido Social
Democrático, PSD. Ainda foi presidente do Conselho Administrativo da Caixa Econômica
8
SILVA, Op. Cit., 2008, p.50.
9
SILVA, Op. Cit., 2008, p.69.
10
OLIVEIRA, Antonio Lustosa de. Passos de uma longa caminhada (Reminiscências). Curitiba: O
Formigueiro, 1978.
Federal do Paraná, até 1964 quando foi preso e levado a depor no DOPS por acusações
diversas, sendo inocentado das acusações.11
Lustosa foi um defensor convicto de que Guarapuava deveria ser governada pelos
guarapuavanos natos, como fica explícito em uma de suas crônicas editadas sobre o nome de
“Do meu canto” e assinadas sob o pseudônimo de João do Planalto 12 e publicadas no jornal
Folha do Oeste:
11
SILVA, Walderez Pohl da. Op. Cit., 2008.
12
A escolha do nome João não é aleatória, para Lustosa, João representava um nome comum, logo assinar como
João do Planalto era tornar-se porta-voz do cidadão comum do planalto, no caso, do terceiro planalto paranaense,
onde encontra-se Guarapuava.
Ainda na continuação do trecho acima, Lustosa aponto ao prefeito eleito uma tarefa:
“Você é o herdeiro de uma tradição histórica, legada pelo seu denodado ancestral Capitão
Rocha Loures, fundador desta nossa mui nobre cidade, que foi, é e sempre será ‘Rainha do
Oeste do Paraná’” e, por essa razão, uma enorme responsabilidade. Herdeiro da tradição
histórica, ao prefeito eleito caberia a função exercida pelos demais guarapuavanos natos,
inclusive o próprio Lustosa, que pela administração passaram e buscaram levar a cidade ao
progresso.
Esse discurso pode ser mais claramente demonstrado observando uma pequena nota
publicada na parte inferior da “página social”, segunda página do Folha do Oeste de 12 de
Agosto de 1962 na qual está escrito: “Raciocínio sensato” votar em ‘candidatos de fora’, é a
mesma cousa que ‘brasileiros votassem em candidatos russos’, para estes, defenderem as
causas do Brasil. Por isso, é aconselhável que sufraguemos em 7 de outubro os ‘candidatos do
lugar’, para o bem de Guarapuava.”.
As críticas de Lustosa em seu jornal não se fazem apenas sobre os “de fora”, mas em
inúmeros casos da a entender que os madeireiros, instalados na cidade por volta da década de
1930, seriam um exemplo dos traços negativos que trouxeram a paisagem de cidade, como
podemos perceber em um artigo assinado com o pseudônimo de João do Planalto:
Embora faça um elogia a Krüger, o texto de Lustosa embute uma crítica aos
madeireiros. Segundo Lustosa, a presença dos troncos de imbuia, representando as grandes
árvores que se erguiam pelo território guarapuavano serviria para que as próximas gerações
tivessem a consciência da grandiosidade da natureza local e do estrago causado pelas serrarias
devastadoras. Desta forma, simbolicamente buscou-se inscrever no imaginário local a noção
de que as madeireiras trouxeram muito mais estragos do que benesses para a cidade.
Enquanto os métodos de confecção dos jornais até então existentes na cidade eram
demorados, a Lynotipe com apenas um empregado fazia o trabalho aproximadamente de seis.
Além disso, dispunha também da habilidade gráfica de David Moscalesque, que segundo
Lustosa era um primoroso artífice gráfico (Folha do Oeste, 3 de março de 1974, p. 2). O
jornal era produzido na mesma gráfica onde O Pharol havia sido editado, gráfica esta, que
havia surgido inicialmente com o intuito de produzir material publicitário, recebeu o nome de
“Gráfica Guairacá”, localizada na rua Dr. Vicente Machado, 1068, próxima ao centro da
cidade.
Além de uma edição mais clara e mais organizada, Lustosa ainda buscou trazer para o
jornal outros aprimoramentos técnicos, como as clicherias. É óbvio que não existiam na
cidade condições de se construir uma clicheria para a publicação de fotos no jornal. Para
realizar esse trabalho, Lustosa comprava os clichês em São Paulo ou em Curitiba, onde esses
eram produzidos. Desta forma, era algo inédito para a cidade a Folha do Oeste publicar
fotografias. Durante toda a existência do jornal sua publicação deu-se em preto e branco e a
presença das fotografias tornou-se cada vez mais freqüente.
Geralmente na sua primeira página trazia uma matéria de cunho político, discutindo os
problemas do município, em seguida, matérias econômicas, policiais , sociais, religiosas,
integravam aleatoriamente as páginas seguintes. Não existia uma organização dos conteúdos
por assuntos. Nesse sentido, o Folha do Oeste inicialmente distribuía os assuntos de acordo
com o tamanho dos textos, tendo em vista que o espaço de publicação era pequeno, de apenas
quatro páginas.
Os ideais de Lustosa quando da fundação do jornal eram muito claros. Para ele o
jornal deveria ser pautado na atitude imparcial e noticiosa, sem ligações partidárias e
intransigente na defesa dos interesses do município e sua gente. Ao mesmo tempo, o jornal
claramente deveria assumir uma postura, “dentro dos elevados postulados da doutrina cristã,
batendo-se pela integridade e amor à pátria, intangibilidade da família numa sociedade onde
13
A presença no texto a elementos que remetem ao Integralismo e a prática da Maçonaria não são fruto do acaso.
Lustosa, mesmo após o fim da Ação Integralista, sempre se posicionou em relação a alguns dos elementos que
moldaram sua vida política e jornalística em períodos anteriores, tendo em vista sua ativa participação na
campanha do “Sigma” presente nos primeiros anos do Folha do Oeste. Quanto a maçonaria, esta não apenas foi
presente na vida de Lustosa, um de seus membros ativos, mas até hoje configura-se como um grupo importante e
numeroso na cidade.
para que um jornal interiorano possa ter sua circulação normal efetiva, é
imprescindível contar com o apoio populacional do município,
principalmente, sob a modalidade de assinaturas anuais, visto que a venda
avulsa do exemplar somente poderá ser efetuada na sede municipal, e a
notícia, o edital, o anúncio comercial, deverão ser amplamente divulgados,
para conhecimento das pessoas que passam a maior parte do tempo vivendo
nas Fazendas, cuidando das suas labutas do campo ou do amanho da terra
(Folha do Oeste, 25 de junho de 1978, p.2)
Nessa perspectiva, existia uma necessidade muito grande da adoção do periódico pela
população local, tendo em vista as dificuldades financeiras em torno de sua publicação. Dessa
forma, as assinaturas, além de agilizarem a distribuição do jornal e a sua amplitude de
circulação, também favoreciam a venda de propaganda, que tornava-se um bom negócio para
o comércio local.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desta forma, a concorrência pela legitimidade nas notícias foi uma constante na cidade
e envolveria outros periódicos como a Tribuna Paranaense fundado em 1956 pelo também
político local João Ferreira Neves. Assim, o início da década de 1950 representou um novo
cenário jornalístico na cidade, tendo em vista que por mais de uma década o Folha do Oeste
foi o único jornal constante na cidade. Além disso, estabeleceu-se na cidade uma “batalha em
letras de forma” 14, onde políticos de oposição, madeireiros e fazendeiros, puderam expressar
suas idéias políticas e suas posições frente aos caminhos que o desenvolvimento da cidade
deveria tomar, sobretudo quanto a quem deveria guiar o povo Guarapuavano: aqueles que
adotaram Guarapuava de coração e buscavam uma visão mais desprendida e autônoma do
14
Referência ao capítulo escrito pela jornalista Ana Maria de Abreu Laurenza – “Batalhas em letra de forma:
Chatô, Wainer e Lacerda” – presente no livro História da Imprensa no Brasil, organizado pelas historiadoras
Ana Luisa Martins e Tânia Regina de Luca (MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de (orgs). História da
Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008, p. 179-205).
progresso ou aqueles que viam na contemplação das atitudes do passado a melhor forma para
se estabelecer os passos rumo ao progresso? . 15
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARDOSO, Rosy de Sá. “Breves notas sobre a imprensa do Paraná”. In: História do
Paraná. v.3, Curitiba: Grafipar, 1969.
CLEVE, Jeorling J. Cordeiro. Coronel Luiz Daniel Cleve – Memória Histórica. Curitiba:
Juruá, 2005.
IZIDORO, Heitor Francisco. Guarapuava: das Sesmarias a Itaipu. Curitiba: Vicentina, 1976.
SILVA, Walderez Pohl da. Entre Lustosa e João do Planalto: a arte da política na cidade de
Guarapuava (1930-1970). 2008. 209f. Tese (Doutorado em História Social), Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2008.
15
Enquanto os madeireiros e outros políticos de oposição aos políticos fazendeiros representados pelo A Época e
o Tribuna Paranaense buscavam romper com poder nas mãos das elites tradicionais da cidade, os fazendeiros
buscavam legitimarem-se no passado e na afirmação dos valores dos pioneiros da cidade presentes no imaginário
local.
INTRODUÇÃO
Passa hoje o aniversário de S.M. Guilherme II, o kaiser
Allemão. Esta data sem a mínima dúvida é altamente
auspiciosa para a numerosa colônia allemã que entre nós
estabeleceu seu lar e sua tenda de trabalho. A Allemanha
sempre foi um país amigo do Brasil; numerosos dos seus
filhos concorrem para o nosso progresso, seja ensinando
em nossas escolas, seja militando em nossos exércitos. E
devemos também confessar: a Allemanha é quase que a
única das grandes potencias da Europa da qual jamais
recebemos qualquer agravo [...] Estampando hoje em
nossas colunas o retrato do kaiser; a figura de maior
destaque no cenário europeu, desejamos com isso enviar
nossas felicitações, não só a colônia allemã entre nós
domiciliada, como também a sua grande pátria, cuja
felicidade na paz e no trabalho ardentemente desejamos.
(Diário da Tarde, 27 janeiro 1917)
Aos leitores do “Diário da Tarde” já era comum nos dias 27 do mês de janeiro
deparar-se com a notícia do aniversário do Kaiser Guilherme II. Contudo, o ano apresentado
na epígrafe acima contem marcantes peculiaridades. O mundo estava envolto nos
acontecimentos gerados pela Primeira Guerra Mundial. O conflito, cuja duração muitos
acreditavam que não se estenderia, já estava entrando em seu terceiro ano. A posição
diplomática brasileira era de neutralidade e a imprensa, ao menos teoricamente, seguia a
mesma orientação. Logo, não era de se admirar que o aniversário de Guilherme II fosse
mencionado no jornal curitibano, tendo em vista que habitavam na cidade dezenas de alemães
e seus descendentes, denominados pela imprensa como membros de uma colônia.
Três meses depois do aniversário do Kaiser o mesmo jornal, ao tratar de certos boatos,
que circulavam pela cidade fez a seguinte observação:
Nós sabemos quanto o povo allemão é ousado, e disso ele deu provas
nessa grande guerra da Europa. E os seus compatriotas que habitam o
sul do Brazil, não desmentem o gênio perseverante e audacioso do
allemão europeu. E d´elles temos a temer.
(Diário da Tarde, 21 abril 1917)
O que a sociedade curitibana deveria temer da, outrora, “auspiciosa colônia alemã”?
Quais poderiam ser os motivos de tal desconfiança quanto às pessoas de origem germânica
naquele momento? No dia 5 de abril de 1917 a Alemanha torpedeou o vapor “Paraná” e, a
partir dessa data até o final da Primeira Guerra Mundial notamos uma radical mudança de
discurso por parte da imprensa da capital do Paraná. Isso se deu, interligado ao fato de que a
própria sociedade curitibana assumia uma nova postura quanto aos alemães e seus
descendentes. Uma postura sintomática de quem parecia ter identificado um elemento a ser
“temido”, e, em alguns momentos, até um verdadeiro inimigo de guerra.
A suspensão da neutralidade do Brasil e depois a declaração de guerra à Alemanha,
em outubro de 1917, desencadearam reações em diversos locais, inclusive em Curitiba. Como
o elemento germânico foi visto naquele momento, juntamente com a análise dos demais
eventos ocorridos na capital desde a eclosão da “Grande Guerra”, foram nosso objeto de
estudo neste Artigo.
Os periódicos, “Diário da Tarde”, “A República” e o “Commércio do Paraná”, foram
utilizados como fonte para tentar elucidar um momento de bastante tensão na história dos
contatos entre alemães e seus descendentes com o restante da sociedade curitibana. Além dos
jornais, o documento “Crônicas das Irmãs da Divina Providencia”1, cujo conteúdo registrou
fatos do cotidiano das Irmãs que congregavam essa Ordem em Curitiba, incrementa a
percepção da situação, pois, nos apresenta o outro lado. Ou seja, apresenta o lado dos que
estavam sendo perseguidos pela conjuntura do momento.
Ao tratar deste objeto adentramos em alguns temas já recorrentes na historiografia,
mas outros menos privilegiados. Muito se escreveu a respeito dos benefícios do contato dos
imigrantes alemães e seus descendentes com a sociedade curitibana e, de suas contribuições
para o desenvolvimento econômico, cultural e social da capital paranaense. Ao passo que,
aspectos conflituosos do contato entre diferentes grupos, na mesma região, foram pouco
explorados pela historiografia. Para Maria Tarcisa da Silva Bega (2001), nos últimos anos há
um esforço em criar uma imagem de Curitiba pautada, quase que exclusivamente, nos moldes
1
Chronik Unserer Niederlassung in Coritiba. 1895-1944 (manuscrito).
compreendiam que era necessário cumprir todos os direitos e deveres de cidadãos no Brasil,
pois, precisavam estar inseridos politicamente em sua nova pátria. Contudo, se por um lado
assumiam a cidadania brasileira, por outro, não deixavam de ser um povo pertencente à nação
alemã (SEYFERTH, 2006). Juliana Reinhardt, escrevendo sobre a etnicidade do grupo teuto-
brasileiro em Curitiba, apontou que “[...] mesmo as diferenças regionais, de classe social e
econômica teriam sido suplantadas em detrimento a uma identidade: a de ser alemão.”
(REINHARDT, 2007, p. 87).
Faz-se necessário um esclarecimento a cerca do termo teuto-brasileiro. Esse termo é
atribuído, pela grande maioria dos estudiosos da imigração alemã, para denominar os filhos
de imigrantes alemães nascidos no Brasil. Contudo, a identidade teuto-brasileira não é
necessariamente apenas para os teuto-brasileiros, ou seja, assim como outras, essa identidade
foi construída, no caso em questão a partir da relação de contatos entre pessoas de origem
germânica com a população majoritária no Brasil. Sendo assim, por vezes, também imigrantes
vindos da Alemanha poderiam se ver, ou manifestar signos da identidade teuto-brasileira. Da
mesma forma, nem todos os teuto-brasileiros poderiam assumir essa identidade. André
Voigt (2008), em sua tese, critica justamente uma possível generalização desse “ser” teuto-
brasileiro. Para Voigt, esse conceito é uma construção, na qual muitos autores a utilizam ser
maiores reflexões, tomando a mesma como elemento a priori em suas análises. Ora,
compreendemos que assim como diversos conceitos, de fato, teuto-brasileiro como identidade
foi, e continua sendo, um conceito construído a partir da constatação da experiência dos
contatos entre diferentes. Contudo, sem pretender maiores generalizações, identificamos sim
elementos que constituem a formação e manutenção de uma identidade teuto-brasileira no
ambiente curitibano por nós trabalhado.
Feitas essas considerações acerca da identidade teuto-brasileira, passaremos a analisar
de que forma a mesma se inseriu no contexto curitibano quando as consequências da Primeira
Guerra Mundial foram sentidas de forma mais intensa pelos germânicos e seus descendentes
na cidade.
Com os avanços da Grande Guerra a Alemanha declarou, em fevereiro de 1917, que os navios
neutros passariam a serem alvos de ataques sem avisos prévios, o que ocorreu com quatro navios
mercantes brasileiros.
No dia 05 de abril de 1917 o “Diário” recebeu um telegrama, cujo conteúdo iria abalar de forma
visível o cotidiano da cidade de Curitiba, marcando o inicio de um período de tensões. Foi informado
naquele dia, a perda do mercante brasileiro “Paraná”. Nessa mesma edição o jornal lamentou o ato,
mas, afirmou que, preferia não discutir se a Alemanha tinha ou não o direito de torpedear navios de
países neutros no conflito.
Poucos dias depois esse fato, manifestantes indignados com a postura da Alemanha passaram
a organizar os chamados meetings2. Ao comentar sobre os primeiros meetings, o “Diário” apontou que,
eram organizados por acadêmicos. Estes, juntamente com o restante da população, reuniam-se nas
praças, principalmente na Praça Tiradentes e na Praça Osório, promoviam longos discursos, cantavam
hinos dos países aliados e a Marselhesa, e saíam pelas ruas de Curitiba carregando bandeiras das
nações amigas do Brasil. Fazia parte do ritual dos manifestantes seguir vaiando no decorrer do
caminho os estabelecimentos alemães, até as sedes dos jornais e dos consulados dos países aliados.
Quando esses atos ocorriam, os representantes dessas instituições discursavam para os manifestantes;
geralmente, expressavam suas opiniões sobre a guerra e sobre os alemães que se encontravam na nossa
cidade.
O “Der Kompass”, jornal de orientação católica mantida pelos padres franciscanos, pelo que
as fontes indicam, foi o primeiro alvo identificado pelos manifestantes para exteriorizarem sua
indignação contra a Alemanha; a sede desse jornal foi apedrejada logo no primeiro dia de
manifestações. Contudo, outros estabelecimentos também sofreram represálias nesse primeiro dia, a
saber: o “Teatro Hauer”, a “Escola Allemã”, a “Sociedade Teuto-Brasileira” e algumas casas
residenciais.
Nos dias de abril que se seguiram foram organizadas diversas manifestações. Segundo os
jornais, mais de dois mil pessoas caminhavam pelas ruas de Curitiba cantando hinos e carregando
bandeiras. Em um dos meetings, o orador Domingo Petrelli convidou o povo a fazer uma visita ao
“sapateiro Elias”. Segundo boatos que circulavam na cidade, este senhor de origem germânica, estava
2
“Meetings” era o termo utilizado pela imprensa para se referir as manifestações do contexto que estamos
trabalhando.
No dia 15 de abril ocorreu um grande comício3 que, segundo os jornais, chegou a reunir mais
de 20 mil pessoas nas ruas que, cantavam e se emocionavam carregando bandeiras dos países aliados e
protestando contra a Alemanha. É difícil sugerir uma precisão quanto a essa quantidade numérica de
participantes realmente ativos nos atos, ou seja, levamos em conta aqui, também a enorme quantidade
de gente que acompanhava os protestos por curiosidade ou outro motivo qualquer, não estando todos,
necessariamente envolvidos politicamente e/ou ideologicamente aos atos contra estabelecimentos e
instituições de origem germânica na cidade.
Se por um lado não podemos precisar a real intenção de todos os manifestantes, por outro, foi
possível constatar que a multidão despertou medo na população alemã e teuto-brasileira. No dia 12 de
abril, por exemplo, o jornal “A República” publicou que diversos negociantes alemães e teuto-
brasileiros haviam solicitado ao Chefe de Polícia garantias aos seus estabelecimentos, entre eles
Antonio Schneider, diretor do outro jornal alemão de visibilidade na cidade, o “Der Beobachter”.
Atos de violência também pareciam, de certa forma, ser tolerados por órgãos da imprensa
naquele momento. Exemplificamos com a publicação do “Commércio do Paraná” com a notícia
“Aventuras do Anacleto”, um:
[...] minúsculo homem, falador e beberrão, que quando bebe tem a mania de se
preoccupar com as cousas magnas da política nacional [...] Anacleto fôra preso. E
sabem os leitores porque? Pelo facto de ser patriota em excesso. Meio alcoolisado,
o nosso heroe tentou aggredir aos teutos aqui residentes. Pobre Anacleto, nem
patriota pode ser! (Commércio do Paraná, 10 abril 1917)
Ainda no mês de abril constatamos mais alguns eventos marcantes. No dia 18 de abril de 1917
foi publicado no “Diário da Tarde” a matéria “O germanismo no Paraná”. Nesta havia as seguintes
informações: os três deputados teuto-brasileiros, Bertholdo Hauer, Alfredo Heisler e Nicolau Mader,
agiam de acordo com os ideais do Kaiser; entre os redatores do “Der Kompass” estava um oficial
reformado da marinha alemã, e este junto com os padres franciscanos conspiravam contra a segurança
nacional; tanto o “Der Kompass” quanto o “Der Beobachter” funcionavam como órgãos do
imperialismo alemão; as filhas do comerciante alemão Carlos Quentel, residentes em Curitiba,
desejavam ver a Alemanha dominar “[...] o sul do Brasil para cuspir no rosto dos brazileiros.” (Diário
3
Nesse mesmo mês s jornais registraram meetings nos dia: 09, 10, 11, 12, 15, 18, 24 e 25.
da Tarde, 18 abril, 1917) Pouco tempo após essa matéria, o “Commércio da Tarde” afirmou ter
recebido informações de que na redação do “Der Kompass” funcionava uma estação radiotelegráfica.
Para tentar imaginar o alcance e a seriedade que esses fatos pareciam assumir na época, apontamos a
reação do Chefe de Polícia: este não permitiu que os manifestantes “empastelassem” o “Der Kompass”
após a circulação dessas notícias, isso porque, era preciso averiguar os fatos e revistar o local.
Ora, de fato, todas essas noticias e boatos elucidam um ambiente tomado por uma emergente
desconfiança que a sociedade atribuía aos indivíduos de origem germânica. A desconfiança também
surgia do não entendimento, ou da não aceitação, naquele momento, de ter que conviver com pessoas
que se autodenominavam “teuto-brasileiras”. Nesse sentido, o “Commércio da Tarde” elaborou um
intrigante apontamento, com a seguinte matéria, “Pão pão, queijo queijo – Não há teuto-brasileiros”:
Na última semana de abril sugiram diversas notícias relacionadas à atuação da igreja católica
alemã em Curitiba. Para o “Diário”, os franciscanos e as freiras da ordem da Divina Providência
estavam agindo de acordo com as ambições do Kaiser. O jornal acusou os membros da igreja de
“teuto-brasileiros de caráter dúbio e agressivo”, demonstrando, novamente, que o descontentamento
com pessoas “teuto-brasileiras”. Além disso, o jornal constatou que essa identidade “dúbia” fazia parte
de mais uma das artimanhas do “perigo alemão”.
As freiras da Divina Providência, após uma série de “ataques”, manifestavam sua opinião:
Nos primeiros três meses tudo ocorreu conforme estávamos acostumadas. Ninguém
imaginava a tormenta que estava formando devido a situação política brasileira,
ocasionando o corte das relações diplomáticas entre a Alemanha e o Brasil. O povo
brasileiro aproveitou a ocasião para demonstrar o seu ódio o qual já estava
escondido (grifo nosso) contra o povo alemão. Diversas manifestações de rua
aconteceram naquele tempo, principalmente na Rua do Rosário, uma vez até com
apedrejamento da nossa casa. Mas graças a rápida intervenção da polícia somente
uma das janelas foi quebrada. Em uma das classes nós achamos também uma bala
de pistola a qual tinha sido atirada contra nossa casa. (Chronik Unserer
Niederlassung in Coritiba, 1917)
Esse trecho das “Crônicas” nos parece bastante significativos. Ora, é bem provável que essas
memórias tenham sido escritas no calor dos acontecimentos. Logo, precisamos levar em conta que os
sentimentos dos teuto-brasileiros e alemães certamente estavam abalados diante da complexidade da
situação. Contudo, aponta um fator que, no mínimo, levanta uma série de questões. O que poderia
significar a afirmação, de que a população brasileira já carregava um ódio aos alemães antes da
guerra? Qual a imagem que a população brasileira foi formando no decorrer dos anos em relação aos
imigrantes alemães e seus descendentes? Esse artigo não tem como responder essas questões, mas ao
apontá-las acreditamos estar cumprindo parte do dever do historiador, a saber: apontar novas questões
a partir da interpretação.
Em outubro, após o torpedeamento de mais dois navios, o Brasil declarou guerra à Alemanha.
Parece-nos que, esse período pode ser caracterizado como o momento de maior tensão na história dos
alemães e seus descentes até, aproximadamente, o desenrolar da “Era Vargas”, momento com outra
conjuntura, mas igualmente marcado por tensões entre os grupos.
Nos últimos dias de outubro aconteceu a declaração de guerra do Brasil para com a
Alemanha. Agora estourou o ódio e a perseguição contra a descendência alemã.
Diariamente apareciam nos jornais artigos difamadores contra imigrantes alemães
e a Alemanha, em geral. Também nós não fomos poupadas. Os jornais e
principalmente o Diário da Tarde, a República e o Commércio do Paraná,
publicavam as maiores difamações contra nós e a nossa escola. Pior ainda acontecia
aos sacerdotes alemães e principalmente aos franciscanos. Líamos e ouvíamos
diariamente expressões como esta: Morra a Alemanha. Morra o Kaiser. Morram as
freiras alemãs. Abaixo os padres. A língua alemã foi proibida. Em qualquer lugar
público, bonde, ônibus ou casa, estavam anexadas as palavras “é proibido falar em
língua alemã.” Também na nossa querida igreja alemã silenciou a oração em
alemão e também os hinos em alemão como também os sermões. (...) Era a lei do
silêncio que tomava conta de nós. O martírio se tornava cada vez mais sério (...).
Curitiba, a tão querida, se tornou uma cidade muito difícil para todos os
descendentes de alemães.
E toda vez que seis súbditos do Kaiser, se reúnem e esgotam seis dúzias de bier, lá
vai Deutschland über alles... Os guardas passaram pelos boches e pediram para as
manifestações cessar, mas... ‘Goth unter uns, und bier auch’. Foram presos.
(Deutschland über alles..., 29 outubro 1918).4
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se por um lado, o Brasil pouco se envolveu diretamente nas batalhas que ocorriam no “Velho
Continente”, por outro, as consequências desse evento internacional foram duramente sentidas no
cotidiano da capital paranaense, sobretudo para pessoas de origem alemã. Estudar imigrantes alemães
e seus descendentes no período da Primeira Guerra Mundial significa adentrar em um campo repleto
de estigmas e particularidades. Ao esmiuçar as fontes, elementos que compõe a complexidade da
conjuntura emergiram. O olhar do historiador direcionado para uma análise crítica dos documentos
nem sempre acha respostas concretas e objetivas para suas indagações. No entanto, também se insere
no oficio historiográfico o levantamento de novas abordagens, e/ou problematização de novas ou
velhas questões. Nesse sentido atentamos para a questão em torno da categoria teuto-brasileira
enquanto elemento constituinte de identidade, dentro, por exemplo, de um espaço urbano como
Curitiba. Também nessa perspectiva, chamamos atenção para os periódicos, almanaques e outras
publicações escritas em alemão, enquanto formadores de opinião e influenciando na construção de
identidades. Esta questão já foi vista, por exemplo, por Giralda Seyferth em colônias de Santa
Catarina. A mesma autora chegou a citar o periódico Der Kompass editado em Curitiba, como um dos
4
A frase “Deutschland über alles” (Alemanha acima de tudo) faz parte da canção “Das Lied der Deutschen” (A
canção dos alemães), criada por August Heinrich Hoffmann Von Fallersleben, em 1841.Mais tarde, trechos da
mesma, formaram o hino nacional da Alemanha. Goth unter uns, und bier auch, poder ser traduzido como: Deus
entre nós, e cerveja também.
jornais que preservavam o Deutschtum (SEYFERTH, 2003, p.41), contudo, no Paraná este ainda não
foi devidamente explorado. Logo, acreditamos que para uma melhor compreensão da história da
formação dos contatos entre grupos diversos, é preciso que, o universo que compõe os imigrantes
alemães e seus descendentes seja mais bem vislumbrado. Nesse sentido, apontamos para a necessidade
de novos estudos a respeito desse tema.
Grande parte dos estudiosos que notaram na imigração alemã diversos elementos para análises
concordaram, ao menos em partes, que a inclusão do imigrante germânico na cidade de Curitiba foi
um processo, no mínimo, carregado de polêmicas. E, neste sentido, parece-nos que este artigo não
fugiu a esta perspectiva. Contudo, acrescentamos que as consequências em torno deste complexo
período de inserção, de diversas formas, permaneceram visíveis, ou presentes, nas relações do
cotidiano. Nessa conjuntura, levando em conta que os fatos por si só não se explicam, acreditamos que
os atos hostis provocados em Curitiba, durante os meses de abril e outubro de 1917, foram também
compostos de fragmentos formados durante anos de relações étnicas.
FONTES PRIMÁRIAS
Crônicas das irmãs da divina providência (Chronik Unserer Niederlassung in Coritiba). Curitiba.
1914-1918
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
OLIVEIRA, R. C. de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.
POUTIGNAT, P; BARTH, F; STREIFF-FENART.J. Teorias da etnicidade. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998.
REINHARDT, J. Dize-me o que comes e te direi quem és: alemães, comida e identidade.
204 f. Dissertação (Doutorado em História) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2007. Disponível em:
<http://hdl.handle.net/1884/15966>. Acesso em: 16/4/2009
________. A Liga Pangermânica e o Perigo Alemão no Brasil: análises sobre dois discursos
étnicos irredutíveis. História: Questões & debates, v.10, n.18/19, p.113-155, jun.dez. 1989.
PALAVRAS-CHAVE: Política Externa Brasileira; Imigração Alemã; Imperialismo Alemão; Relações Brasil-
Alemanha.
As relações entre Brasil e Alemanha vão para muito além do café, principal produto
brasileiro durante a Primeira República em termos de exportação, considerando que as
relações diplomáticas estabelecidas entre países envolvem motivações políticas, ideológicas e
interesses econômicos. Esses interesses estão inseridos em um contexto de mudanças
estruturais ocorridas no Brasil, como a mudança de regime político para a República em 1889.
O Brasil, apesar de grande, era ainda um ator secundário no quadro mundial, fornecendo
matérias-primas, café, açúcar, tabaco, borracha e outros produtos básicos, gravitando entre a
Grã-Bretanha e os Estados Unidos. Desta forma, a diplomacia brasileira se esforçou para
divulgar seus produtos na Europa visando às exportações, à atração de imigrantes e de
capitais.
Com uma política exterior de viés pacifista, o Brasil igualmente teve a possibilidade de
estabelecer relações com outros países, como a Alemanha, com quem passou a ampliar o
comércio de importação e exportação e atrair mão-de-obra imigrante, algo que traria grandes
transformações à economia nacional, mas também fazia parte do projeto de modernização do
país com o advento do regime republicano.
partir de então como áreas de interesse para os alemães. Além disso, o Brasil em especial, em
função da grande presença de imigrantes alemães, representava uma área de especial interesse
para a diplomacia e o comércio do Império Alemão.
Por sua vez, o Brasil tinha grande interesse em ampliar seu escopo de parceiros
internacionais, tanto para fomentar seu mercado de produtos tropicais, quanto para fornecer
mão-de-obra para lavouras de café, ocupar espaços demográficos vazios, além da formação de
pequenos proprietários agrícolas que com seu trabalho abasteceriam as grandes cidades,
construindo juntamente obras públicas. As colônias eram criadas por iniciativa de particulares
ou iniciativa dos governos, porém existiam divergências entre a política imigratória do poder
central e as reações tomadas pelos governos das províncias·
Contudo, apesar dessas intenções, muitos desses planos não se mostravam viáveis por
uma série de condições, a grande maioria dos alemães estabelecidos no Brasil aceitavam a
soberania nacional e seus filhos se reconheciam como cidadãos brasileiros, sem que esse
domínio econômico alemão fosse imposto, mas se preservassem os valores de vida alemães.
Além disso, existiam divergências entre imperialistas alemães, ministros de relações
exteriores e ministros do comércio na Alemanha. Este último considerava urgente a
exploração de novos mercados transatlânticos e mercados consumidores de produtos alemães.
De outro lado, o ministro do interior não estava interessado na emigração, pelo receio de falta
de mão-de-obra na Alemanha. Assim, vários planos de imigração e colonização com colonos
alemães não foram levados adiante:
3. AS SOCIEDADES COLONIZADORAS
originários da Europa Oriental, como poloneses, judeus, russos, interessados em uma vida
melhor na América.
1
Conforme Renaux (1995, p.39) É em nome dessa sociedade que em 1848 o Dr. Blumenau, como passou a ser
chamado o pratico de química que defendeu tese sobre alcalóides, chegou ao Brasil, financiado por grupo
hamburguês que lhe garantiu a devolução de suas despesas de viagem e o pagamento de um bom ordenado
mensal. No sul do Brasil deveria fazer o levantamento de tudo que dizia respeito à colonização e a transferência
de imigrantes europeus, para em seguida prestar informações sobre os meios de transporte, preço dos gêneros e
sistema de comércio locais.
janeiro de 1890 procurava atrair o “proletário agrícola nacional” para a tarefa de colonização
e chamava a atenção sobre a necessidade de povoamento das fronteiras.
Foi pela lei orçamentária de 1894 que a colonização e imigração passaram a ser
atribuições dos estados. Uma vez estabelecidos os imigrantes alemães interferiram
grandemente no processo econômico brasileiro, especialmente passaram a desenvolver
indústrias próprias importando maquinismos e promovendo novas técnicas, além do
comércio, fator propulsionador de progresso para o Brasil. Conforme Oberacker (1968) os
empreendimentos industriais frequentemente se associavam a casas de importação e
exportação, que passaram a adotar novos rumos de comércio no país e assim foram
proporcionadas novas possibilidades de negócios com os alemães 2. Logo, a participação
econômica de empresários ligados ao comércio de exportação e importação se tornou
fundamental para os estados meridionais do Brasil e para a formação de um segmento
empresarial num mundo burguês em expansão.
2
A firma de Theodor Wille, fundada em Santos, em 1844, pelo comerciante Hamburguês, introduziu no
mercado interno grande copia de materiais até então desconhecidos, além das máquinas, conquistou também o
mercado mundial para muitos produtos brasileiros. Na Bahia, comerciantes teutos como Suerdick, Gerardo
Danemann, Hermann Stoltz abriram o mercado mundial para o cacau e o tabaco.
3
Segundo Fouquet (1974) No Rio Grande do Sul, nomes como Becker, Bins, Berta, e Wallig lembram fundições
e metalurgia; Ritter, Bopp, Thofehrn e Becker bebidas; Oderich conservas; Dreher vinhos; Neugebauer,
chocolates; Poock, fumo; Strassburger artigos de couro; Gerdau, móveis; Sperb e Renner, produtos têxteis. No
comércio aparecem os nomes Fraeb, Bromberg, Mentz, Ullmann e Bier.
Em Santa Catarina igualmente se apresentam famílias e pessoas que se notabilizaram, como: Hering, Renaux,
Karsten, Zadrozny, Cremer, Kühnrich e Schlösser, na indústria têxtil; Albano Scmidt e Paul Werner. Em
atividades diversas, as famílias Feddersen, Lorenz, Weege, Jensen, Colin, Wetzel, Lepper, Stein, Bornschein e
Käsemodel, sendo que no comércio o primeiro lugar cabe a família Hoepke, a casa Möllmann, fundada em 1869,
é uma das mais antigas firmas comerciais.
Em Curitiba, no Paraná, a família de Gottlieb Müller desde 1878 era proprietária da indústria de ferro Marumby,
sempre em expansão, e Florian Essenfelder fundou em 1911 uma fábrica de pianos. Hauer, Boutin, Heissler e
Hatschbach, eram nomes proeminentes na indústria e no comércio. Schrappe pertencia ao ramo editorial, com a
conhecida Impressora Paranaense, enquanto os Stellfeld no ramo farmacêutico e os Johnscher no ramo hoteleiro.
Baseando-se ainda nos estudos de Hering, houve uma integração do vale do Itajaí ao
quadro amplo da industrialização brasileira, na forma de pequenas e médias empresas
familiares, independentes com relação à instituições financeiras, e que possuíam mão-de-obra
qualificada, treinada no ambiente do artesanato e da revolução industrial alemã, e que trazia
consigo a valorização da qualidade do produto final e do cooperativismo desenvolvido nas
dificuldades surgidas nos primeiros anos da imigração. Estas atitudes tiveram prolongamento
nas relações empresariais que se transformaram em empreendimentos sólidos e se expandiram
nacionalmente de forma autônoma:
se existiu algum fator de ligação externa, como muitos o querem, este não se
teria ligado através das regiões economicamente mais desenvolvidas do país,
mas sim pela expansão da economia catarinense para os projetos
internacionais. Tratava-se de relações pessoais no intercambio entre os
comerciantes alemães e os imigrantes da mesma origem. (HERING, 1987,
p.13)
alemã para o Brasil. Também surgiram colônias de parceria, pela iniciativa de latifundiários
que subdividiram suas terras para fins de colonização. De forma semelhante, podemos notar o
aparecimento de colônias de companhias de colonização, fundadas por sociedades
colonizadoras, sendo especialmente notadas no Estado de Santa Catarina, onde foi um dos
mecanismos mais utilizados pelo governo estadual para promover o povoamento e a
colonização de seu território. No entanto, é necessário considerar que muitos desses
empreendimentos fracassaram, e muitos colonos enfrentaram situações adversas, alguns
sendo enganados pela propaganda que colocava a América como um lugar ideal, por vezes os
programas de colonização foram pouco eficientes. Mesmo nos casos em que a administração
era séria e os colonos eram colocados a par das dificuldades que iriam ser enfrentadas de
antemão, os casos de insucesso também predominavam.
na experiência artesanal e fabril dos imigrantes alemães. A indústria têxtil criada se tornou a
identidade econômica da região.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através dos resultados obtidos foi possível mapear interesses alemães e brasileiros no
estabelecimento de relações diplomáticas que envolveram questões complexas como pressões
internas, necessidades econômicas e ideologias relacionadas ao imperialismo de fins do
século XIX e início do XX. Nesse jogo de poder, entre divergências, lucros e fracassos pode-
se avaliar de forma positiva os reflexos da imigração alemã para o Brasil. Os núcleos
coloniais podiam ser organizados pelos governos Federal, Estadual e mesmo Municipal.
Particulares e companhias da mesma forma participaram desse processo, visando lucros
trazidos pela venda de terras aos imigrantes, e assim, ocuparam-se áreas escassamente
povoadas.
Por outro lado, em relação à questão de que papel o Brasil poderia ter tido no tocante à
expansão do capitalismo imperialista alemão, podemos afirmar que havia sim um interesse
alemão de integrar o Brasil à sua esfera de influência. A rica e diversificada indústria alemã,
especialmente ligada à indústria eletro-mecânica, siderúrgica, de ferramentas, de produtos
químicos e farmacêuticos, tinha um interesse bastante grande de marcar sua presença no
mercado brasileiro. Também o setor financeiro e de investimentos demonstrava interesse pelo
Brasil. Nosso país ainda era em grande parte inexplorado e necessitava de investimentos para
criar uma infraestrutura física para possibilitar o desenvolvimento econômico. Investidores
alemães queriam estar presentes e participar desse empreendimento, pois significava acesso a
novas oportunidades de negócio. As próprias colônias eram em si um lucrativo negócio. A
arregimentação dos colonos, seu transporte, a criação de facilidades físicas para a colonização
e o povoamento eram empreendimentos muito interessantes em termos econômicos para
comerciantes, armadores de frotas, banqueiros e todos aqueles que estavam envolvidos no
negócio da imigração, em especial, em cidades portuárias como Hamburgo e Bremen.
No entanto, quanto à questão de os imigrantes serem vistos como porta de entrada para
produtos alemães no Brasil, as fontes pesquisadas não levam nessa direção. É certo que nos
primeiros tempos de colonização, quanto os colonos ainda não conseguiram por se estabelecer
plenamente e ainda não há uma infraestrutura montada, não existe outra opção a não ser
consumir os produtos fornecidos pela Alemanha. Muitos, inclusive se tornaram grandes
importadores de artigos alemães para o mercado brasileiro.
com a Alemanha e com as pressões do governo brasileiro para que fosse acelerada a
integração dos imigrantes alemães e de seus descendentes teuto-brasileiros, houve uma
ampliação dos interesses econômicos de empresários teuto-brasileiros em relação às
possibilidades de negócios no próprio cenário brasileiro e isso demonstra que as ligações com
a Alemanha, lentamente começaram a se enfraquecer.
6. BIBLIOGRAFIA
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ULLRICH, Volker. Die nervöse Grossmacht 1871-1918: Aufstieg und Untergang des
deutschen Kaiserreichs. Frankfurt am Main: Fischer, 2007.
1 INTRODUÇÃO
Para os estudantes a “arte popular revolucionária” era capaz de impulsionar ações que
levariam o povo a assumir o seu processo de libertação.
O Movimento de Cultura Popular, por sua vez, foi uma criação de políticos,
intelectuais, artistas e estudantes, fundado em 1960, como uma sociedade civil autônoma,
apoiado financeiramente pela administração do prefeito Miguel Arraes. Ele tinha o objetivo
de conscientizar as massas, por meio da alfabetização de adultos e da educação de base.
De acordo com Beisiegel (1992), os círculos e os centros de cultura foram
criados inicialmente no interior Movimento de Cultura Popular do Recife, como espaços que
se destinavam às discussões em torno da educação e da cultura popular acerca dos problemas
da realidade brasileira. Ali, os grupos se reuniam para debater situações do contexto social,
econômico, político e cultural, codificadas nas fichas de cultura: elas traziam a realidade
codificada na expressão imagética (desenho, fotografia e pintura) e serviam como disparador
para o debate entre os integrantes do grupo. A participação de Paulo Freire na coordenação do
Projeto de Educação do MCP/Recife foi decisiva para o amadurecimento das suas idéias em
torno da especificidade da alfabetização de adultos.
Com base nas práticas do MCP outras experiências foram desenvolvidas
dentre elas, aquela realizada na cidade de Angicos (RN), conhecida por alfabetizar
trabalhadores em “40 horas”. O tempo não deve ser considerado como elemento central, mas
o fato de que os trabalhadores de posse da leitura e escrita passaram a ter uma leitura crítica
da realidade, contestando as condições de trabalho a que estavam submetidos (FERNANDES;
TERRA, 1994).
Do mesmo modo, na cidade de Natal, no ano de 1961, Paulo Freire, em
conjunto com intelectuais, estudantes e militantes, repetiram a experiência do MCP, dentro da
“Campanha de Pé no Chão também se Aprende a Ler”, deflagrada no governo de Djalma
Maranhão, “pela Secretaria Municipal de Educação de Natal em aliança com o movimento
popular identificado como Comitês Nacionalistas ou Comitês de Rua” (GÓES, 2005, p.7).
As experiências produzidas no interior do MCP demonstraram que o
analfabetismo estava associado à pobreza e à “ignorância” das classes subalternas. A cultura
popular ganhava destaque como forma de valorizar a produção nacional, como meio de
desvelamento crítico e de enfrentamento dessas condições.
As condições da classe trabalhadora embora tenham se alterado no século
XXI, permanece a realidade excludente a que são submetidos jovens e adultos. Nesse
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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GÓES, Moacyr de. Natal, anos 60: de pé no chão também se aprende a ler & círculos de
cultura. Natal: Diário de Natal; SEECD-RN, 2005. (Projeto Ler, fascículo 1).
Os EUA, um dos principais prejudicados pelas drogas, sendo o maior mercado consumidor do
mundo, adentra em uma luta contra o narcotráfico, principalmente a partir de 1986 quando
considera o tráfico de drogas um problema de segurança nacional, a ser combatido fora de seu
território. Neste caso acaba se tornando mais um problema para a soberania colombiana, pois os
norte-americanos passam a interferir diretamente nas decisões internas do país levando até mesmo a
modificação de leis como a polêmica Lei de Extradição. Sendo assim a Colômbia acaba se
tornando um mero coadjuvante dentro de seu próprio território que acaba sendo dominado por
narcotraficantes e pelo Estados Unidos.
As facilidades trazidas pela globalização são fatores essenciais para o desenvolvimento
ocorrido no comércio internacional nas últimas décadas, tendo como importante característica o
surgimento de empresas transnacionais, as quais apoiadas em tecnologia de ponta, geram correntes
de poder e influência em todos os países onde se encontram.
1
graduado em Relações Internacionais pela Faculdade Unicuritiba, Técnico de Comercio Exterior no Centro Europeu
com MBA em Gerenciamento de Sistemas Logísticos pela Universidade Federal do Paraná – UFPR.
2
Camila Zanella, licenciada em História pelo Centro Universitário Diocesano do Sudoeste do Paraná - UNICS, Mestre
em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, Doutoranda em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná – PUC-PR.
As doutrinas teocráticas têm como ponto comum a base divina, aonde o poder vem de Deus.
Bonavides (2001, p.127) divide as doutrinas sob três diferentes concepções, primeiro a ‘’doutrina da
natureza divina dos governantes’’ aonde os governantes são aclamados e venerados como se fossem
Deuses, podemos utilizar como exemplo diversas culturas, como os faraós do Egito e os grandes
Imperadores romanos.
Seguido pela “doutrina da investidura divina’’ (Bonavides, 2001, p.129) aonde podemos
encontrar a figura do rei, agora não mais como entidade divina, mas como um humano que recebe
de Deus o poder supremo para exercendo seu sagrado direito a monarquia, assim governando seu
povo e não podendo ser contrariado, pois tem sua legalidade firmada por Deus. Finalizando com a
“doutrina da investidura providencial’’ (Bonavides, 2001, p.129) que acaba com a rigidez do direito
divino fazendo com que o governante seja designado por intermédio de Deus e com eventual
participação dos governados. Doutrina essas as quais cedem espaço para as Doutrinas
Democráticas, divididas e soberania popular e nacional.
“Doutrina da soberania popular’’(Bonavides, 2001, p.130) visivelmente a doutrina com os
maiores ideais democráticos, que tem como ponto chave o contrato social onde cada indivíduo,
membro do estado, tem direito a sua parcela de poder. Dividindo a soberania para cada um dos
indivíduos igualmente atribuídos de poder político, de acordo com Rousseau, se o Estado fosse
composto por dez mil, cada um teria a décima milésima parte da autoridade soberana. Doutrina que
influenciou vários processos com idéias democráticas se tornando o ponto base do sistema
democrático.
A “doutrina da soberania nacional’’ (Bonavides, 2001, p.131) por intermédio da revolução
do terceiro estado tira o poder soberano de cada indivíduo, fazendo prevalecer a Assembléia
Nacional, transferindo o poder soberano para a nação dotada de vontade própria, sobrepondo-se as
vontades individuais, exercendo esse poder através de um representante, deixando de lado a idéia de
soberania fracionada base da doutrina soberana popular.
O Sentimento de soberania nacional vem cada dia mais cedendo espaço para as relações
entre estados das mais diversas formas, sendo expressado por Furlan (2004, p.52) como “um
conceito dogmático em declínio. No mundo moderno as ideologias pensam mais nas relações entre
estados do que no sentimento nacional de soberania. ’’
Desta forma a soberania passa a ser limitada no plano internacional como forma de obter
uma coexistência pacífica dos poderes soberanos. Pois como citado por Aron (2002) o comércio
Internacional é uma forma importante para obter a paz entre estados acreditando que os governos se
tornam interdependentes e tendem pela paz entre as nações, como forma de obter lucros.
Mesmo o conceito clássico não mais se enquadrando na realidade internacional ele
continua sendo proclamado por muitos, como forma de garantir a cada povo o direito de definir sua
forma política não se subordinando a qualquer outra potência estrangeira. Fazendo-nos refletir na
soberania como um conceito não em decadência, pois sem ela como defendido por Mello,
consagraria o fim do estado, e sim como um conceito em evolução, se modernizando de acordo com
o sistema levando a uma flexibilidade maior.
Em seu sentido absoluto a soberania leva a negação do Direito Internacional, uma vez que
ele fica reduzido ao mero “direito estatal externo”. Porem esse conceito como já dito é mutável e
vem evoluindo e a se torna um direito do Estado que se manifesta no: “a) direito de convenção; b)
direito de legislação; c)direito ao respeito mútuo” tendo assim total liberdade na conduta de seus
negócios. Sendo considerado por Chaumont não como um conceito estático, mas um processo.
(Mello, 2001, p. 427).
A globalização pode ser considerada com uma das maiores responsáveis não só pela
influência no conceito de soberania, mas em toda nossa vida, configurando-se “com grande
mudança histórica da trajetória da humanidade, caracterizada por uma maior interdependência
global. Em que o centro da articulação da sociedade internacional desloca-se, em boa parte, dos
Estados modernos para novos atores das relações internacionais, e passa a se constituir a partir de
novos canais de comunicação e de novas referencias significativas, não mais nacionais e sim
mundiais.” (Bedin, 2001, p. 331)
Essa mundialização pode ser notada no desenvolvimento das relações econômicas que se
tornam dominantes no sistema internacional, gerando uma crescente interdependência entre estados,
fragilizando a soberania e dando espaço para novos atores.
Como observado por Leal (1999, p.103) “pela aceleração do Modo de Produção
Capitalista, os economicamente mais fortes se tornam base-referencial das grandes Empresas
Multinacionais manipuladoras do Sistema Econômico Mundial que é uma nova etapa da escala do
capitalismo. Essa ordem de poder de mercado arrasta também as vontades soberanas dos Estados,
DA INDEPENDENCIA AO NARCOTRÁFICO
“No ínterim, o tradicional sistema de fazendas com a criação de gado como principal
atividade econômica continuou como característico de outras partes do país. As grandes
propriedades predominavam nas planícies tropicais onde as populações índias nunca se
haviam estabelecido em grade número, e nas frescas e férteis savanas das quais haviam
sido progressivamente expulsas pelos espanhóis. Certas áreas montanhosas, em especial as
férteis encostas tropicais de Cundinamarca entre Bogotá e o rio Madalena, eram também
em maioria compostas de grades lotes e haviam sido convertidas quase todas em grandes
plantações de café por volta de 1920”.
Desde a colonização muitas terras vinham sendo ocupadas e utilizadas para as mais
diversas praticas como pode ser analisando no texto citado acima, todas elas na verdade eram de
propriedade do Estado, de acordo com a tradição espanhola “que exigia – teoricamente – moradia y
labor como condição para transferência da terra pública para a particular” (Hirschman, 1965,
p.117).
Acontece ainda um processo de fechamento das terras para os segmentos de baixa renda
que a princípio, no período colonial, seria para afastar os índios. Já durante o século XIX se mostrou
uma forma de dominação social, “quando o processo de incorporação de terras públicas ao valor de
mercado impede que os camponeses - ocupantes originais na maioria das vezes – tenham acesso ao
título de propriedade.” (Ribeiro, 2000, p.27)
Durante o ano de 1861 é possível notar este fato quando o decreto expedido General
Tomás Cipriano de Mosquera, diz que “as propriedades de ‘mãos mortas’, em especial os bens
eclesiásticos, passaram ao mercado aberto de terras. Essas terras foram arrematadas publicamente
por preço alto e para quem pôde pagar, sem serem re-divididas nem pela vizinhança” (Ribeiro,
2000, p.27).
Deixado assim as propriedades aos grandes fazendeiros, levando os camponeses a se
unirem em lutas agrárias contra o monopólio dos grandes latifúndios, organizando-se em grandes
grupos que muitas vezes atuavam através da luta armada, aumentando os conflitos na região que
foram constantes nas lutas entre os donos das terras e trabalhadores durante as décadas posteriores.
O movimento camponês se organizou, ganhou força nacional e criou o Instituto Colombiano de
Reforma Agrária (INCORA), com o intuito de lutar pela democratização das terras através de
reformas agrárias.
O instituto aumentava a força dos camponeses, incomodando os grandes proprietários de
terras que não tardaram para tomar providências em relação ao assunto.
“Não tardou a resistência e a contra-reforma para abafá-la. Os terratendentes organizaram-
se corporativamente no país e fundaram a Associação Patriótica Econômica Nacional
(APEN), que firmou aliança com o governo e começou a violência contra as organizações
camponesas e suas lideranças e contra a integridade física dos trabalhadores de modo legal
ou não. Ao lado dessa pressão o governo também incitava a opinião pública chamando os
dirigentes do movimento camponês de bandidos e definindo suas ações como baderna.”
(Ribeiro, 2000, p.32)
Ocorreu desta forma uma divisão do estado colombiano em duas grades classes
dominantes: “a representada pelo Partido Conservador, formada principalmente pela oligarquia
rural, que controlava os órgãos de decisão do Estado, e o Partido Liberal, que adotava uma posição
um pouco mais avançada sobre a necessidade de adotar um modelo de desenvolvimento nacional,
até pela necessidade de angariar apoio popular contra os conservadores.” (Arbex, 2005, p.61)
Esse panorama social conflituoso que se institui na Colômbia, ganhou força devido a várias
tentativas falhas do governo, através de leis para solucionar o problema das terras, que acabavam
beneficiando sempre os grandes produtores. E agravou-se com a morte do liberal populista Jorge
Eliécer Gaitán, levando ao enfraquecimento das reivindicações legais, através de sindicatos e outras
organizações, tomando proporções maiores e mais violentas, “apenas os sindicatos se mantém com
alguma força, no mais, a desintegração social se expande: o campesinato diminuiu em importância
relativa, a guerrilha substituiu as organizações camponesas, as quais distanciando-se do elemento
popular rural vão se descaracterizando ideologicamente. Novos proprietários rurais apareceram em
cena e adquirem enormes fazendas de gado, por terrorismo ou pro grandes entradas de dinheiro que
precisava ser legalizado: os traficantes.” (Ribeiro, 2000, p.32)
Aconteceram varias erupções de violência por todo o país, as revoltas se tornavam um
problema para o governo e para os Estados Unidos, que no florescer da Guerra Fria não poderia
fraquejar. Desta forma foram enviadas “instruções de Washington para desencadear a repressão. Só
entre 1948 e 1953, período conhecido como “La violencia”, morreram 145 mil pessoas.” (Arbex,
2005, p.61)
Dando seqüência ao que fala Arbex (2005, p.62), “Este foi o quadro que gerou a guerrilha:
ela nasceu de uma situação insuportável de tensão e pobreza. Em 1964, sob inspiração da tomada de
poder por Fidel Castro, em Cuba (1959), foram criadas as FARC e o ELN e dezenas de outros
grupos.” Selando desta forma um destino sombrio para o país, com o governo utilizando um
militarismo paralelo em combate contra as guerrilhas, que recrutam camponeses a força.
As guerrilhas encontraram um terreno fértil para expandir suas atividades pelo território
colombiano, principalmente no interior, distantes dos grandes centros urbanos e industriais, criando
verdadeiras fortalezas aonde ditavam as regras e faziam sua própria justiça sem a intervenção do
Estado. Desta forma, “não é por acaso que o surto de marijuana na década de 1970 apareceu em
algumas dessas zonas onde a presença guerrilheira e a marginalização social facilitava a inserção de
uma nova classe de “empresários do campo”. Desde então se começa a tecer a intrincada história de
amores e ódios entre o narcotráfico e as guerrilhas”. (Villavences-Izquierdo, apud Ribeiro, 2000, p.
63)
A marijuana deu início à história ilícita das exportações colombiana, levando o país ao
primeiro lugar de exportação da droga já no início do século XX. Porém em 1959 segundo Riley (
apud MacMACHLAN, 1995, p.189) com a revolução comandada por Fidel em Cuba, muitos
traficantes cubanos se espalharam por toda a América, e na Colômbia encontraram um ambiente já
embalado pelo tráfico de drogas e que rapidamente aprenderam o sistema de processar cocaína, o
aperfeiçoaram e se especializaram, tornando-se os maiores do mundo.
Analisando um pouco da Colômbia podemos encontrar alguns pontos fundamentais que
tornaram ela o principal país produtor de cocaína do mundo, um elemento muito importante como
colocado por Somoza (1990, p.50) “é a posição geográfica, isto é, a localização entre produtores e
consumidores.”
Os Estados Unidos, a maior sociedade consumidora do mundo, estava relativamente perto, a
distância entre Miami e Bogotá é menor que Los Angeles Miami, e os principais produtores da
folha de coca são seus vizinhos. Segundo Somoza (1990, p.50) outros fatores que também
influenciaram como as excelentes redes de transportes, telecomunicações e número elevado de
estabelecimentos bancários.
A Colômbia se destacou no comércio internacional com as exportações de café, flores e
azeite. Tendo assim diversos portos, gerando uma facilidade de escoamento das drogas, somando
com a tradição do tráfico de marijuana e com o crescente aumento da demanda norte-americana por
cocaína, levou o país a se tornar uma potência no mundo das drogas.
As exportações de café continuam sendo muito importantes para a economia colombiana
atual, no entanto foi muito mais representativa antes do boom das drogas no país que tomou o lugar
do café devido aos baixos preços que o mercado passou a pagar e muitos impostos que incidiam
sobre os produtos, como colocado por Riley (apud MacMACHLAN, 1995, p.188): “As tarifas
alfandegárias e os acordos de fixação de preços nas exportações principalmente como café, e as
taxas sobre a importação na maioria de produtos de consumo, criaram um ambiente no qual o
contrabando é uma atividade econômica aceitável. Além disso, as famílias dedicadas ao
contrabando desses produtos tendem a ser parte da elite, e conferem a suas atividades ilegais um ar
de autoridade e legitimidade.”
Outro fator que impulsionou o desenvolvimento do narcotráfico colombiano, em especial da
maconha, foi durante a segunda guerra mundial, quando a escassez do algodão, matéria-prima
importado utilizado nos mercados têxteis, fez com que o governo colombiano começa-se a importar
cânhamo da Índia, que “naquele país asiático, permitia a obtenção de fibras de excelente qualidade.
Mas, a mesma variedade experimentada em todo o território colombiano não deu os resultados
esperados. Em compensação os agricultores descobriram muito rápido que ela fornecia a maconha
consideravelmente apreciada pelos consumidores.” (Delpirou, 1988. p.223)
Em 1970 houve uma grande repressão dos Estados Unidos contra o narcotráfico,
principalmente em relação a drogas como marijuana e LSD3, artigos difundidos na população em
geral, drogas “baratas e legais” segundo Arbex (2005. p.20) e que se tornaram praticamente
3
LSD (dietilamina do acido lisérgico) é uma droga popular entre jovens com efeitos alucinógenos.
escassas no mercado. Abrindo espaço assim para a popularização da cocaína, que era até então
considerada uma droga exótica, consumida somente pelas elites.
A partir deste ponto a marijuana, a qual a Colômbia era a maior fornecedora americana,
deixou de ser o principal produto que movimentava a economia do narcotráfico, graças a
visionários que enxergaram uma oportunidade de expandir seus lucros com a produção e
distribuição da cocaína, que além de um custo maior que as demais, eram vantajosas também em
questão de volume e peso.
Com problemas na economia e com as vantagens ofertadas pelo submundo, pudemos notar
os pequenos e grandes agricultores se envolvem pelas drogas, sendo impulsionados na luta pela
sobrevivência dentro do capitalismo, a serem controlados pelas sociedades da droga, aonde “quem
cultiva a coca ganha 14 dólares ao dia, enquanto um trabalhador rural comum ganha apenas 4
dólares ao dia. Por sua vez, as pessoas empregadas para trabalhar no processo de refinação de coca
chegam a ganhar 25 a 30 dólares por dia.” (Somoza, 1990, p.51)
Desta forma a produção de cocaína colombiana aumentou exponencialmente tentando
acompanhar a demanda americana, levando os narcotraficantes a desenvolver sua capacidade de
produção e transporte como citado por Riley (apud MacMACHLAN, 1995, p.189):
“O mercado da cocaína nos Estados Unidos superava a capacidade dos colombianos para o
fornecimento através do uso de “mulas” ou indivíduos que transportavam em pequena
quantidade. Isso fez com que os colombianos organizassem também uma revolução no
transporte. O método foi desenvolver uma completa rede de formas de transporte, pontos de
transbordo e mensageiros, que os permitia enviar a droga ao Estados Unidos e a qualquer
outra parte em enormes quantidades. Por último, em curto prazo. Puderam aumentar a
capacidade da produção industrial a fim de satisfazer a crescente demanda.”
Um dos principais responsáveis por essa evolução no transporte, que impulsionou todo o
mercado do tráfico colombiano foi um ladrão de carros e pequeno traficante de marijuana, Carlos
Lehder Rivas, utilizando pequenos aviões no lugar das “mulas”, diminuindo custos, pessoal e
maximizou lucros. Segundo Robert Merkle (apud MacMACHLAN, 1995,p.27), advogado e fiscal
dos Estados Unidos “Lenhder foi para o tráfico de cocaína, o que Henry Ford foi para os
automóveis”.
A preocupação com o combate a marijuana fez com que a transição do negócio de uma
droga para a outra acontecesse espontaneamente, aproveitando de toda a infra-estrutura que os
traficantes já utilizavam anteriormente. Somando-se com a crise da indústria têxtil de Medellín,
aonde vários trabalhadores emigraram para outros pólos têxteis, levando a cidade surgir como
centro do tráfico de cocaína colombiano.
Várias são os atores que surgem no cenário internacional colaborando para a deterioração
da soberania dos países, principalmente de países subdesenvolvidos “onde a soberania do Estado é
débil ou inexistente.” (Flynn, apud MacMACHLAN, 1995, p.53) Cabe a nós citar dois que estão no
foco de nosso estudo, o Narcotráfico, e os Estados Unidos.
Dentro da Colômbia os traficantes encontraram um ambiente favorável, com a existência
de uma soberania estatal debilitada, devida a um estado enfraquecido por um longo período de
violência surgindo como um local ideal para o desenvolvimento do tráfico de drogas.
Nesses territórios o enfraquecimento do Estado é nítido, não conseguindo (raro algumas
exceções) interferir nesses bolsões, ao contrário dos narcotraficantes, que além do poder dominante
exercido em seus Estados simbólicos possuem representantes em diversas áreas, estando “abertos
para todos aqueles que quisessem investir ou estivessem sucessíveis “a colaborar”, de um modo ou
de outro, para o bom desenvolvimento dos negócios. (...) seja financeiro, político, Exército, justiça,
atualmente não existe setor que não tenha ligações com ela.” (Delpirou, 1988, p.225-226)
Desta forma os Estados Unidos tenta legitimar sua intervenção como forma de ajudar
países, principalmente da América Latina, como a Colômbia que não conseguem segundo eles,
manter a segurança de seu povo e território. Para isso acaba interferindo diretamente em países que
indiretamente estão ligados ao narcotráfico.
Desta forma, o grande perdedor é a soberania colombiana, que fica totalmente
desconfigurada, frente aos incontáveis ataques a qual sofre de todos os lados. E de um lado vemos
os EUA, maior consumidor mundial de drogas, crescendo sua economia cada dia mais, assim como
seus investimentos e guerra (contra as drogas ou não, mas sempre com o objetivo de intervir e
dominar) e o consumo de diferentes drogas, e de outro lado narcotráfico, que surge com um grande
vencedor. “Mudando habilmente de roupagens e utilizando as vantagens comparativas dos diversos
agentes sociais, o narcotráfico consegue integrar seus interesses sociais e econômicos, assim como
as esferas de produção e distribuição de droga, com esses mundos paralelos, atravessando-os, ás
vezes, com cumplicidade sutil, outras com brutal imposição. Esse poder transversal do narcotráfico
tem sido, sem dúvida, uma das forças mais importantes na construção das topografias sociais,
políticas e culturais que vão moldar a Colômbia do século XXI.” (Villaveces-Izquierdo, apud,
Ribeiro, 2000, p.62)
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”Os tempos dos lugares são esse momento preciso em que um imenso capital que
vivíamos na intimidade de uma memória desaparece para viver apenas sob o olhar
de uma história reconstituída ...Os lugares de memória são, antes de mais nada,
restos. A forma estrema em que subsiste uma consciência comemorativa numa
história que a convoca, pois a ignora. È a desritualização de nosso mundo que fez
aparecer a noção...Museus, arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários,
tratados, averbações, monumentos, santuários, associações, são os remanescentes
testemunhos de uma outra era, ilusões de eternidade. Daí o aspecto nostálgico desses
emprendimentos de piedade, patéticos e glaciais. São rituais de uma sociedade sem
ritual...signos de reconhecimento e de pertença de grupo numa sociedade tende a
reconhecer tão-somente indivíduos iguais e idênticos” 1
1
NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10, dezembro de
1996, p.12.
A história seja ela dos vencedores ou dos vencidos é feita de escolhas e portanto a
relação do historiador como o arquivo pessoal também é constituída de escolhas e questões a
serem respondidas.
O estudo de Abreu aponta os meios e a forma com que Alice Porciúncula Calmon du
Pin e Almeida encontrou para colocar a memória do marido entre os destaques do Museu
Histórico Nacional.
2
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco.1996.
Estamos em 1935, uma senhora, e uma senhora, após a morte do marido, resolve
doar um conjunto de objetos a um museu. Quem é senhora? Quem é o marido dessa
senhora? Para que museu os objetos são doados? Como se caracteriza esse museu?
Qual a sua filosofia? Quem o dirige? Para que e para quem ele funciona? Quais os
objetos escolhidos para serem doados? Como se processou essa escolha? Como
esses objetos são incorporados pelo museu? Que lugar eles ocupam na hierarquia
institucional? Quais os significados que eles encerram?3
Confidenciou ao sobrinho a intenção de fazer uma doação ao museu dos bens que
haviam pertencido ao marido. Pedro Calmon aprovou imediatamente a idéia. O
Museu Histórico Nacional era dirigido por Gustavo Barroso, o mesmo do
movimento integralista, do qual era um dos principais líderes. Gustavo Barroso era
um escritor muito conhecido, que freqüentava instituições renomadas, como a
Academia Brasileira de Letras e o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Detinha
um dom especial para a oratória, despertando entusiasmos com seus discursos.
Comentava-se, naquela época, que ele desfrutava da amizade particular do
presidente Getúlio Vargas...4
3
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco,1996, p.28.
4
idem
5
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco,1996, p.206.
6
Idem, p.211
além da problemática que o historiador apresenta, mas esta ligada diretamente as relações
estabelecidas tanto com as fontes como na busca e o acesso as mesmas.
O acervo pessoal tem uma característica peculiar o cuidado, pois mesmo cedido a uma
universidade ele faz parte de um legado familiar, afetivo e que necessita da sensibilidade por
parte do pesquisador no seu trabalho e na utilização da documentação muitas vezes sujeitas ou
não a autorização da família. Mas o cuidado não deve ser confundido com censura, romper
com idealizações, desconstruir discursos e interpretar os silêncios é essencial para analisar a
construção da memória de um personagem.
8
CORREA, Anna Maria Martinez. Os Centros de Documentação e Memória da Unesp. O Centro de
Documentação e Memória (CEDEM). In: SILVA, da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e Memória,
trajetórias e persectivas. Editora UNESP, São Paulo, 1999,p.80-81.
Nesse sentido o fundo Santo Dias apresenta uma nova perspectiva em relação a
construção da memória coletiva e a legitimação de novos atores que também fizeram e fazem
a história, o objetivo desse acervo não a idealização do personagem, mas perceber a partir dos
fragmentos que constituem sua memória, silêncios, lacunas e construções ajudam a
compreender parte importante da participação popular na resistência e difusão de espaços
alternativos de democracia e organização social.
O fundo Santo Dias é composto por uma documentação bastante diversa composta por
fontes escritas, visuais, orais e materiais, toda documentação foi trazida e reunida pelos seus
familiares, apesar que a maioria dos documentos são referentes ao período pós-morte de Santo
dias e são fruto de movimentos sociais, do sindicato e da igreja. Abaixo demonstro apenas
parte da documentação presente no Fundo Santo Dias no Cedem.
Entrevista transcrita com Ana Dias e Santinho esposa e filho de Santo Dias.
9
CAMARGO, Célia Reis.O centros de documentação nas universidades: tendências e perspectivas In: SILVA,
da Lopes Zélia (org) Arquivos, Patrimônio e Memória, trajetórias e perspectivas. Editora UNESP, São
Paulo, 1999, p.56.
Pronunciamento na Câmara dos deputados em São Paulo sobre santos Dias em 1979,
feito pelo deputado Sergio Santos.
Folha de São Paulo nos dias que antecederam e logo após o assassinato de Santo Dias.
Justificativa na Câmara Municipal de São Paulo pela preservação dos restos mortais de
Santo Dias enterrado no cemitério do Campo Grande.
Artigo sobre Santo Dias feito pelo padre Luis Giuliani destinado ao folheto “O Povo
de Deus”.
Pedido de trégua dos metalúrgicos da zona sul, após a morte de Santo dias em 1979.
Panfleto do Comitê Santo Dias para organizar e continuar a luta do operário morto.
Musicas sobre Santo Dias (Associação Santo Dias e CDDH da Arquidiocese de João
Pessoa na Paraíba)
Convocação dos estudantes da Usp para uma greve universitária em razão do enterro
de Santo Dias.
Dentro dessa perspectiva o estudo apresenta uma relação dialética entre sociedade e
individuo na medida que pretende analisar a memória de Santo Dias a partir de sua
experiência histórica e do legado constituído pelos movimentos sociais que ajudaram a
construir sua memória.
Estudar a memória de Santo Dias da Silva significa também problematizar parte das
experiências do personagem como também do contexto que esteve inserido. Experiências
estas que refletem anseios, objetivos e concepções políticas constituídas a partir da luta de
trabalhadores e na construção de espaços e de práticas democráticas em uma época de
autoritarismo e de repressão dos movimentos sociais.
A relação entre o historiador e seu objeto longe de idealizações pode ser entendida
também como uma experiência histórica, já que o próprio historiador é um sujeito histórico.
Nesse sentido ter como objeto de estudo a construção da memória de um operário é partilhar
da experiência histórica desse individuo e daqueles que com ele conviveram.
O historiador não é um elemento exógeno a sociedade, portanto qualquer que seja sua
postura tem influências do meio social, ideológico, cultural e político em que está inserido. A
busca por uma “ingênua neutralidade” pode muitas vezes levar o historiador a uma
perspectiva utilitarista e questionável quanto ao papel do social do historiador na sociedade
atual.
10
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994,
p.229.
Nas sociedades atuais a questão da memória vem sendo uma problemática constante
das ciências humanas e biológicas. Em relação a história são crescentes os números de
acervos, arquivos e sistemas de informação que trazem e são responsáveis por registrar as
representações mnemônicas e rememorativas das sociedades.
Muito esforço, em vez disso, tem sido ainda dedicado a estabelecer fronteiras entre a
História e a memória, o que só tem sentido não do ponto de epistemológico, mas
tomando-se a memória ( e as diversas práticas de seu contexto) como objetos da
analise e do entendimento do historiador.Em suma, já seria tempo e tem havido
apelos nesse sentido de começar a fazer uma História da memória, que seria não
apenas a história das teorias sobre a memória, mas se imbricasse nas práticas e
representações mnemônicas e rememorativas das sociedades e grupos, incluindo
seus suportes e estratégias de apropriação, tendências, móveis, conflitos, efeitos,
reciclagens, etc... (MENESES, 1999, p.11)
É preciso lembrar que também não se trata de exaltar a memória dos dominados em
contraposição a perspectiva dominante ou de procurar “a verdade a partir dos vencidos”, pois
os discursos mesmo dos vencidos também contem construções, lacunas e silêncios que cabem
ao historiador dialogar com esses vários discursos.
BIBLIOGRAFIA.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p.229.
GAGNEBIN, Jeanne Marie.” Memória, História e Testemunho”, In: Stella & NAXARA,
Márcia ( org) Memória e resentimento. Indagações sobre uma questão sensível.
Campinas : ED Unicamp, 2004 p. 85-94.
NORA, P. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, nº 10,
dezembro de 1996.
O Oriente Médio era até a Primeira Grande Guerra uma divisão administrativa do
Império Turco-Otomano, sendo região gerida por governantes locais e organizada em
províncias cujas delimitações físicas eram mutáveis, variando de acordo com as relações
locais, e implicando a submissão à Turquia basicamente no pagamento de taxas.
Com a Primeira Guerra Mundial, as potências aliadas buscaram o apoio da população
árabe na luta contra o Império Turco, incentivando os movimentos de independência com
promessas de medidas favoráveis à autonomia politica e à unidade árabe.
Porém mesmo antes do término do conflito França e Inglaterra acertaram entre si uma
divisão da região de acordo com seus interesses estratégicos (Acordo secreto de Sykes/Picot
de 1916) buscando consolidar sua presença na Síria e na Palestina, respectivamente, intenção
Neo-Colonialista que gera um conflito com os interesses árabes que pretendiam a autonomia.
Contrariamente a isso ao final da Guerra o que predomina na diplomacia internacional é
uma postura de rechaço ao colonialismo, influenciado pela revolução Russa e pela posição
norte-americana expressa nos 12 pontos do presidente Wilson, com o reconhecimento do
direito de autodeterminação dos povos, o que é incorporado ao Pacto da Sociedade de Nações.
Nessa conjuntura, o sistema de mandatos estabelecido nos tratados do pós-guerra, coloca-se
como saída para manter o controle sobre as áreas antes mantidas sob o domínio dos países
derrotados, camuflando o domínio colonial que se mantém sob novo formato. O Oriente
Médio é dividido entre a França e a Inglaterra sob tal regime, que em tese representaria um
controle provisório, mas sem prazo final pré-fixado ou segundo sua própia interpretação de
quando os países estivessem maduros para se autogerir.
Esse acerto é imposto à Turquia no tratado de Paz de Sérves, firmado em maio de 1920,
onde se estabelece que deixam de integrar o Império derrotado uma série de territórios, dentre
os quais a área que atualmente corresponde à Síria, Iraque, Líbano Palestina e Transjordânia,
onde são estabelecidos mandatos sob a tutela inglesa ou francesa, com a delimitação de
fronteiras artificiais, o que é reconhecido pelas Nações Unidas.
É assim implantado um novo sistema de dominação na região, com a divisão dos árabes e
o desmembramento do Império Turco no Oriente Médio em diferentes Estados colocados sob
a tutela européia, frustrando o nacionalismo árabe incentivado no curso da 1ª Guerra com o
objetivo de enfraquecer Istanbul.
O sistema de mandatos foi instituído e regulado a partir do art. 22 do Tratado de Versalhes
e corresponde à cláusula do Pacto da Sociedade de Nações (votado em 02/1919) que pretendia
regular a situação das colônias pertencentes aos países derrotadas na guerra e habitadas por
populações ainda não capacitadas para dirigir-se por si mesmas, contexto que se enquadram
as comunidades separadas do Império Otomano (Palestina, Síria, Líbano e Iraque), devendo
sua administração ser guiada por um mandatário. Esse sistema gera descontentamento e
conflitos na região, pois os árabes são liberados do domínio turco, mas colocados sob a tutela
dos impérios Francês e Britânico. Assim, ao invés da projetada nação árabe unida, tem-se a
divisão da região em nações distintas e heterogêneas, representando ainda razão adicional
para o descontentamento entre os Árabes o compromisso assumido pela Inglaterra com os
sionistas.
De acordo com José Martínez Carreras (1991,p.55), o desmembramento do Império turco
deveu-se à iniciativa francesa, que pretendia estabelecer-se na Síria e no Líbano, e dos
sionistas, que queriam ocupar a Palestina, tendo colaborado a Inglaterra ao aceitar o projeto
de divisão, ao invés de tentar estabelecer um protetorado único sobre toda a área. Ainda, é
fator que contribuiu para o desmembramento a atitude dos setores dirigentes árabes,
tradicionais e conservadores, que não apresentaram uma oposição efetiva à desagregação e
terminaram por aceita-la e cooperar com as potências mandatárias, buscando o apoio
ocidental para manter seu poder. França e Inglaterra desenvolvem uma politica de alianças
com as famílias dominantes locais, que ganham tronos, mas não independência, estando à
população submetida a um dominador estrangeiro e uma elite local que não busca mudanças.
Na Síria, com o término da 1ª Guerra o Partido da Independência Árabe proclama a
independência sob um regime de monarquia constitucional, Feysal ocupando o trono e
abrangendo o país os atuais territórios da Síria, Líbano, Transjordânia e Palestina. A França
ocupa a região e depõe o rei, instalando sua administração e delimitando novas fronteiras,
concedendo autonomia a certos territórios com o objetivo de obter apoio de grupos
minoritários e dividir a oposição , é o caso do Líbano, que se torna Estado autônomo em
relação à Síria.
Londres organiza a criação da Transjordânia, que antes integrava a Palestina, objetivando
constituir um Estado que fosse área de transição e permitisse um equilíbrio estratégico entre
Iraque, Palestina, a Arábia Saudita em formação e a Síria francesa. O governo do novo reino é
dado a Abdullah, dirigente da elite árabe que em troca renuncia a seus direitos sobreo Iraque.
Quanto à Palestina, a Inglaterra busca assegurar o domínio sobre a região para obter uma
ligação terrestre com o Canal de Suez, que já controlava, garantindo assim a rota de ligação
entre as áreas integrantes do Império Britânico e a metrópole. No curso das tratativas sobre o
futuro da região haviam sido feitas promessas contraditórias, tanto no sentido da libertação
dos povos árabes quanto no sentido de estabelecer-se ali ``Um lar nacional para o povo judeu
´´(declaração Balfour, de 11/1917), o texto da declaração é o primeiro escrito oficial Britânico
a reconhecer o direito aos Judeus de estabelecerem seu ``Lugar Nacional´´ na Palestina ,
palavras bem dúbias e que deixam o leitor interpretar como quiser , os ingleses dizem sem
dizer , num mesmo e pequeno texto tentam satisfazer judeus porém sem se comprometer com
as outras comunidades da Palestina , eis o texto , é só lelo com atenção que se perceberá a
dubiedade da redação :
Foreigen Ofice
2 de novembro de 1917
Estimado Lord Rothschild:
Sinceramente seu
Arthur James Balfour
Essa declaração acabará sendo a base para a futura configuração de uma solução de
compromisso para o problema anti-semita no continente europeu, porém redundará entretanto
e paradoxalmente num novo ``estranhamento´´ e em novos conflitos, agora entre os Judeus e
os Árabes habitantes da região palestina (e de todo oriente médio); As potências européias
nesse contexto deságuam uma contradição que é sua no mesmo movimento em que reiteram
seus preconceitos transportando-os para o oriente médio.
Com o fim da guerra, o que ocorre é a instalação do mandato inglês, atuando na região
três forças: a Potência Mandatária, os Sionistas Judeus (as condições do mandato britânico
foram objeto de negociação também com a Organização Sionista, na Conferência de Paz de
Paris) e os Árabes Palestinos, que se consideram traídos por Londres e organizam reação
dirigida contra os Judeus e também contra os Ingleses. É inevitável o fracasso do mandato
Britânico, pois deveria atender a objetivos inconciliáveis, tendo se comprometido a buscar o
desenvolvimento do povo submetido ao mandato, com a perspectiva de sua futura
independência, e com o estabelecimento de um “lar nacional para o povo Judeu” na mesma
região.
No Iraque, foi proclamada a independência sob o governo monárquico de Abdullah, o
qual é destituído a posteriore pois se mostra incompatível com os interesses Franceses e
Britânicos na área. Face às dificuldades para o controle da região por meio de um mandato
direto, a Inglaterra instala no governo um soberano aliado e reconhece e independência do
país, conservando o direito de intervenção militar em caso guerra. Em razão da riqueza da
região em petróleo, os países ocidentais tinham especial interesse na manutenção da
estabilidade politica do Iraque. Feysal, que havia sido expulso pelos Franceses da Síria, obtém
o apoio Inglês para subir ao trono do Iraque, em troca da renúncia do seu irmão Abdulahh que
é compensado com o trono da Transjordânia (outra invenção Britânica)
Podemos afirmar e nessa questão teremos certamente poucos que nos contradigam que
o sionismo é fenômeno ideológico surgido na Europa do século XIX e sem dúvida
influenciado pelos nacionalismos europeus de então.
Dentro desse contexto histórico o Sionismo foi sim outro nacionalismo surgido no
continente e com todas as características e pressupostos que tais ideologias pregavam como a
de ``Nossa Terra ´´como sendo o território de uma ``Nação´´ e esta a propriedade de um
``Povo´´ e tal sendo constituído (e somente) por elementos que compartilhassem de uma
mesma língua e história com laços que os unissem a um suposto passado em comum , e
politicamente a Nação e seu povo teriam de ter a maioria numérica dos habitantes do território
nacional e a essa maioria ``Étnica´´ é que seriam reservados os direitos de governança e não
ao voto do conjunto da sociedade e dos cidadãos , Etnia em vez de Cidadania , todas essas
premissas auxiliaram na formação da ideologia Sionista , que muito embora também estivesse
muito influenciada pelo socialismo deixou-se contaminar por pressupostos que levariam a
criação no futuro de regimes racistas na Europa , paradoxalmente em muitos aspectos o
raciocínio Sionista reproduz o discurso político nacionalista e segregacionista surgido na
segunda metade do séc.XIX na Europa .Em síntese ``O Nacionalismo Europeu condicionou o
Sionismo ´´.
Antes disso, Concomitantemente ao iluminismo continental no final do séc. XVIII
surgia também a``Haskalá´´ ou iluminismo judaico ,e que em seu arcabouço continha idéias
de integração fraterna entre os indivíduos , a futura revolução francesa e seus ideais
igualitários pareciam ser a solução para a discriminação e os preconceitos dos homens para
com os homens , e de um governo de cidadãos suplantando o antigo regime e apontando um
futuro melhor para todos independentemente de etnia , credo ou riqueza , a restauração e a
santa aliança cedo terminaram com esses sonhos e a realidade dos ``Pogrons´´ na Europa
ortodoxa dos Czares se fez logo sentir novamente , a expressão ``Anti –Semitismo´´ é anotada
em 1879 por Wilhen Mer ao dar nome a um fenômeno bem antigo em terras Européias
Ainda surgiriam outras idéias de pensadores sociais como Karl Marx e Arnold
Tonynbee que: ``Consideravam o antissemitismo um fenômeno passageiro, condenado a
desaparecer tão logo o mundo tivesse se libertado dos últimos vestígios dos preconceitos
medievais´´( Tsur,1976,p.8).
Na França o caso Dreyfus reacendeu a antiga chama do ódio racial que se imaginava
(pelo menos por uma parte da intelectualidade judaica) em vias de total extinção, Alfred
Dreyfus o único oficial judeu do estado maior do exército Francês foi acusado de traição e
condenado sem provas .Embora pertencente a uma família alsaciana de antiga cepa , que tinha
optado pela França depois de 1871 , ele jamais conseguiu ultrapassar o posto de capitão.
``Preso, em seguida julgado por atentado à segurança do estado, foi condenado à prisão
perpétua, ainda que nenhuma prova concludente pudesse ter sido estabelecida´´(
Tsur,1976,p.31)
Theodor Herzel, era um jovem jornalista judeu que se encontrava na França por
aqueles tempos e se comoveu com o caso, era originário do império austríaco, da então tida
como emancipada e esclarecida Viena.``Trancafiou-se em seu quarto de hotel (hotel de
Castile, rua Cambon, no bairro de Madeleine) e escreveu, em umas poucas semanas, um
panfleto intitulado O Estado Judeu´´ (Tsur,1976,p.32); Foi esse panfleto o marco do
movimento sionista na Europa, com seu primeiro congresso em Basiléia em 1897, muito
embora possamos identificar outros movimentos mais ao leste como o Hovevei Sion (amantes
de Sião) que realiza seu primeiro congresso antes, em 1884 em Katovice ( Bar Zohar,1967,
p.34)
Já François Massoulié nos apresenta o sionismo como um movimento politico,
integrado na Europa da segunda metade do século XIX, partidário da emancipação coletiva da
comunidade judaica. Esse caráter estratégico-laico do movimento será fortemente criticado,
sobretudo pelos religiosos ortodoxos, e manterá o sionismo como movimento minoritário pelo
menos até a primeira década do século XX. Em 1911 essas comunidades coletivistas – os
Kibutzim – são inauguradas, formando, a partir de então, “A espinha dorsal da implantação
sionista na Palestina” (Massoulié,1996, p.47).
Para Massoulié o sionismo desenvolve-se no contexto do pós-guerra, e do
retalhamento das províncias árabes do Império Otomano tombado, e sempre à sombra de uma
grande potência ocidental, e de maneira mais agressiva que aquela inaugurada anos antes.
A declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917, torna público o apoio que o governo
inglês dá à organização sionista, pois “Promete criar na Palestina um lar nacional para o povo
judaico” (Massoulié,1996,p.52-53). Esta declaração, na mesma medida em que contradiz a
promessa feita aos nacionalistas árabes de criação de seu reino, em troca do apoio destes à
derrubada otomana, atesta a dubiedade e o pragmatismo inglês, agora interessado na posição
estratégica da região (dada à proximidade desta com o Canal de Suez) e no avanço territorial
relativamente à França.
A partir de 1922, a Grã-Bretanha torna-se mandatária sobre a região Palestina, a
imigração judaica desenvolve-se atendendo ao plano dos sionistas de povoamento da região
que, contrariamente a todos os demais mandatos, não concede a seus habitantes o direito à
auto-determinação. É projeto inglês estabilizar a população judaica da Palestina em algo
próximo de um terço da população total. Assim será até a iminência da Segunda Guerra
Mundial, quando os interesses britânicos passam a dificultar a entrada de judeus provenientes
da Europa..
Isaac Akcelrud distingue três diferentes levas migratórias: “Os judeus da Europa
Oriental chegam à Palestina como pioneiros e voluntários. Os da Europa Ocidental
desembarcam as escondidas como refugiados’. A terceira começa quando da ascensão do
nazismo , ninguém queria acolher os condenados ao extermínio, como revelou a conferência
de Eviã´´. A politica inglesa de apaziguamento de Hitler fechava as portas da Palestina aos
judeus, ajudando a propaganda nazista no Oriente Médio. Começa então nova epopéia, a
imigração clandestina, a`` haapalá”. (Akcelrud,1984,pág. 61).
Lotfallah Soliman, discutindo os critérios utilizados pela agência judaica e pela
organização sionista para a concessão de vistos de imigração à Palestina (vale citar que a
emigração de judeus da Alemanha no período inicial do hitlerismo é livre), constata que, na
realidade, suas preocupações eram “menos salvar judeus que salva-los com seus capitais e,
sobretudo, levar para a Palestina apenas ‘Material Humano’ (a expressão é de Ben Gurion)
que, segundo certos critérios políticos de idade e de formação, pudesse contribuir para a
edificação de um Estado” (Soliman,1990,p.85). É nesse contexto que se realiza o acordo de
``Havaara´´ entre a agência judaica e o regime alemão, acordo comercial que levara a salvo
alguns milhares de condenados ao extermínio na Europa para a Palestina (e tão somente a ela ,
outro destino não interessava aos dirigentes do ischuv¹) , em troca de compras no parque
industrial alemão , com o próprio dinheiro dos beneficiados, retido na Europa pelos nazistas,
o maquinário e o ``Material Humano´´ iriam direito para Eretz Israel² auxiliando na
consecução do objetivo Estatal sempre em primeiro lugar , as transações que iniciaram em
1933 chegaram a 34 milhões de marcos e só findaram em 1939 com o início da guerra.
Jerusalém (que só iria deixar na guerra de 1967) e o Egito conquista o deserto do Negueve a
faixa de gaza; dia 30 é assinado um cessar fogo.
Paralelamente à ação defensiva contra os Estados Árabes, houve o recrudescimento de
um estado de guerra interna com os extremistas Israelenses do Irgum e do grupo Stern
utilizando-se dos mais variados mecanismos terroristas para expulsar os palestinos árabes dos
territórios ocupados onde sem dúvida o ponto culminante foi o covarde massacre dos
habitantes da Aldeia de Deir Yassim, o que segue um êxodo palestino de grandes proporções
(o que iria causar problemas posteriores na Jordânia, onde o Rei Hussem manda seus
Beduínos massacrar e expulsar seus “irmãos árabes” em 1970 (setembro negro) e grandes
contingentes deles refugiam-se no sul do Líbano, onde se tornam alvos de ataques israelenses,
mais do que isso sua presença agrava as divergências entre cristãos e muçulmanos quebrando
o precário equilíbrio do país sendo uma das causas da guerra civil de 1975/76.
Basta uma rápida análise da situação do Oriente Médio pós 1945 para se perceber que
um dos principais problemas originados com a criação do Estado de Israel e a imediata guerra
travada pelos Países Árabes a este foi o início da questão da população refugiada (750.000)
“expulsos de suas terras´´, segundo os Árabes, instigados a partir por seus líderes, segundo
Israelenses, ou quem sabe uma mescla de ambas as coisas, ou ainda outra. Seja como for seu
“êxodo” além de um fator de desestabilização para a região como um todo (apesar de
inicialmente Israel ter sido beneficiado pois assegurou a maioria Judaica no Novo Estado)
constituiu uma questão humana de fundamental importância e imprescindível resolução para
o mundo contemporâneo, e para todos aqueles que ainda creem que um planeta sem barreiras
ou separações advindas da causa absurda da discriminação étnica ou religiosa é possível . E
talvez quando ocorrer um real e inequívoco :
Torçamos para que pelo menos ``A Guerra entre eles´´ possa findar e as feridas
causadas por anos de agressões mútuas tenham tempo de fechar-se; Com as atuais rebeliões
em países árabes no último ano redundando por enquanto em quatro quedas de regimes
ditatoriais, Tunísia, Egito, Líbia, Yemen , (de vieses diversos claro!) , podemos depreender
que a frase de Akcelrud a cerca de 20 anos atrás , que na época poderia parecer deveras
otimista demais, hoje não parece tão utópica, pois vemos que até em Israel a opinião pública
em sua maioria não suporta mais o estado de guerra perpétua e anseia por uma paz duradoura
e talvez agora (em minha opinião) ressurja novamente a discussão sobre a alternativa de
estado único e democrático compartilhado por árabes e judeus e defendida pelo já saudoso
Edward Said que notara que a ``Palestina Histórica´´ é hoje uma causa perdida, e como Tony
judt diz concordando: ``Isso vale também para a Israel Histórica. De um jeito ou de outro uma
entidade institucional única, capaz de respeitar as duas comunidades, terá de emergir, embora
o quando ou de que forma isso possa acontecer possa parecer obscuro´´.
Sou compelido a avaliar essa alternativa como a melhor solução, porém considero
também o como de tal ocorrer uma incógnita, mas talvez no esgotamento de todas as
propostas já tentadas (o que se não ocorreu esta em vias de tal), restará finalmente e somente a
perspectiva de paz para dois povos que como escreve Márcio Scalércio foram ``Condenados a
conviver´´, e que estão ``Inextricavelmente ligados numa mesma região a Palestina´´no dizer
de Edward Said.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
SCALÉRCIO, Márcio. Oriente Médio: Uma análise reveladora sobre dois povos condenados
a conviver. Rio de janeiro: Campus, 2003.
TSUR, Jacob. A epopéia do sionismo. Paris: Plon, 1976
VIZENTINE, Paulo G.F. Oriente Médio e Afeganistão: um século de conflitos. Porto Alegre:
Leitura XXI, 2002.
1
Doutora em História pela UFPR e Mestrado em História pela UEM/UEL. Professora dos cursos de graduação e
pós-graduação da Faculdade Metropolitana de Maringá e coordenadora dos cursos de pós-graduação da mesma
instituição.
modo, uma carta entre pai e filho, ambos sem qualquer influência social maior; uma
fotografia, um diário de letras trêmulas e incertas, passaram a ter para o pesquisador
importância semelhante à de uma ata da Câmara ou de uma lei assinada por um governante ou
uma encíclica papal. Essa compreensão terminou por levar os historiadores a um interesse
maior pelos grupos ditos marginais – a palavra aqui entendida como sinônimo de
desigualdade, de exclusão - abarcando todos aqueles que a sofrem em função do gênero, da
raça, da etnia, da religião, da opção sexual, da classe social, etc.
As mulheres, por exemplo, sempre estiveram presentes entre os sujeitos
esquecidos da historiografia tradicional. Mas este silêncio foi rompido. No caso da
historiografia brasileira, por exemplo, desde a década de 1980 é cada vez maior o número de
pesquisadoras (es) na área de estudos do feminino. Inicialmente criticada por “apenas resgatar
experiências vividas por mulheres” ao invés de propor explicações ou mudanças significativas
na situação de opressão que as vitimava, a “História das Mulheres” caminhou em direção aos
estudos de gênero, quando se buscou pensar a desigualdade e a opressão vivenciada pelas
mulheres a partir de uma lógica cultural. Desde então, gênero vem sendo utilizado para
designar as relações sociais entre os sexos, rejeitando as explicações biológicas como
determinantes das diversas formas de subordinação a que as mulheres estiveram/estão
expostas e indicando a criação inteiramente social de papéis adequados aos homens e às
mulheres, sendo mesmo a primeira forma de se estabelecer relações de poder (SCOTT, 1991).
Ainda que não esteja isento de críticas quanto às limitações de seu uso, como o faz Butler
(2008, p.26) ao afirmar que “gênero é tão determinado e tão fixo quanto na formulação de que
a biologia é o destino”, não se pode negar que este conceito tem sido uma ferramenta analítica
importante, como bem definiu Scott (1991) em um texto já clássico.
O surgimento de novos sujeitos na pesquisa histórica exigiu, é certo, a adoção
de novos documentos, novas técnicas interpretativas e novos pressupostos metodológicos.
Nosso interesse aqui se volta especificamente sobre a história oral, que conquistou espaço em
diversos países e que, no Brasil, desde pelo menos meados da década de 1970, tem ampliando
grandemente as possibilidades de pesquisa (SILVA, 2010).
A história oral legitimou a validade da oralidade e da memória, e isto, associado à
expansão do movimento feminista, que legitimou as experiências das mulheres - estes seres
sempre tão fadados ao silêncio, ainda que taxadas de tagarelas – proporcionou à história
avançar por terrenos antes inexplorados. Malgrado os primeiros desacertos, quando muitos
historiadores certamente se deixaram encantar e seduzir pelos relatos nem sempre inocentes
dos entrevistados, temos hoje um grupo consolidado de historiadores por todas as regiões do
país que se valem da história oral2, particularmente para o estudo da história do tempo
presente e da história cultural, cuja ênfase se dá no simbólico e em suas interpretações.
A possibilidade de trabalhar com testemunhas que costumeiramente não têm a
chance de serem ouvidas, como é o caso de mulheres pobres, trabalhadores, crianças, idosos,
retirantes, expatriados, minorias sexuais, enfim, toda uma gama variada de pessoas com
menor poder de expressão social, é, no dizer de Meihy e Holanda, “(...) uma janela que deixa
ventilar o ar puro do tempo presente” ( 2010, p. 108). A história ganha, desse modo,
contornos mais nítidos, tem nome, cor, idade, sexo. Enfim, se humaniza.
Mas é preciso reconhecer também as limitações da história oral, sob o risco de a
pensarmos como uma espécie de varinha mágica que nos permitiria estudar a tudo e a todos
de maneira parcial e com total isenção, precedido de qualquer projeto prévio e ordenado. O
historiador ouve as histórias e as seleciona, as recorta, procura nelas indícios daquilo que
deseja que venha a ser conhecido. Também a trajetória do oral para o escrito não é uma tarefa
que se faça sem cautela, pois se deve considerar que um trabalho de história oral está
finalizado quando ele é transformado em texto. Mas entre o texto falado e o texto escrito há
distinções significativas. Este último, para efeito de forma, enxuga a fala do entrevistado,
depura-a de repetições, o que faz do historiador, em última análise, o autor do documento,
fruto da entrevista. Por isso, escrever histórias, de certa forma, é escrever um romance
seguindo tramas e indícios, ainda que não se desconsidere a clara distinção entre o historiador
e o literato: este último inventa, ficciona, ao passo que o historiador busca provas, vestígios,
confirmações (VEYNE, 1998).
Outra crítica frequente aos trabalhos que se sustentam na oralidade e na memória
é justamente a dificuldade, dizem os opositores, de controlar os falseamentos, os
esquecimentos, as distorções intencionais do entrevistado. Eis o problema: o da história como
uma reprodução fidedigna dos acontecimentos. Ciente das dificuldades, buscaremos
inspiração no mestre Marc Bloch afirmando, como este, que a própria intencionalidade dos
erros é por si só uma fonte impressionante de verdade na história. Importa saber: por que
mente aquele que mente? (BLOCH, 2001). Portanto, mais do que descobrir uma “verdade”
2
Como comprova o sucesso dos encontros regionais da ABHO.
por trás dos relatos que nos são fornecidos, temos que estar atentos às representações
implícitas nos mesmos.
Numa entrevista realizada com uma jovem mulher, gravamos horas de
depoimento em que ela nos relatou sua aflição e dor quando, por determinação judicial,
perdeu a guarda de seus filhos, enviados, posteriormente, a um abrigo. Com fala embargada,
visivelmente emocionada, ela nos contou que chegou a ser hospitalizada. Como era de praxe,
fomos chegar informações procurando a pessoa responsável pela Instituição que acolheu as
crianças. Tivemos acesso à documentação e esta nos evidenciou que, dos cinco filhos desta
mulher, realmente três crianças foram retiradas de sua guarda por ação judicial. As outras
duas foram entregues para adoção por ela própria. Além disso, ela tinha autorização para
visitas, mas não as fez. Pessoas diretamente envolvidas com o trabalho social junto a essa
família afirmaram que a causa para a tomada da decisão judicial foi a situação de risco a que
as crianças estavam expostas, cheirando cola e sofrendo mesmo abuso sexual. Se foi a mãe
quem não teve interesse de ficar com os filhos, mas diz o quanto sofreu com a perda deles,
está aí evidenciado não o comportamento que ela efetivamente teve, mas o comportamento
que, como mãe, acredita que deveria ter tido.
Isto equivale dizer que nenhum historiador oral pode prescindir das regras que
norteiam a escrita historiográfica. O que narram não é nunca uma verdade total, não é sequer
a única verdade, sendo preciso analisar o depoimento, realizando nele uma mediação entre a
fala do entrevistado e a escrita do pesquisador.
Por isso, parece que o grande desafio do historiador é o de contar uma história que
seja capaz de despertar o interesse de quem a ouve ou a lê. Vidas que, como as de duas
mulheres, Neusa e Teresa3, cujas experiências apresentaremos adiante, dariam uma novela.
Mulheres com experiências de vida muito similares e respostas parecidas no enfrentamento da
vida cotidiana, mas que possuem também diferenças comportamentais expressivas,
demonstrando, e reforçando, a alteridade do universo feminino e abdicando da perspectiva
essencialista que deixava de lado identidade e subjetividades (WOODWARD, 2009)
Não vamos perder de vista que nossas entrevistadas são mulheres pobres, com
baixíssimo grau de instrução, moradoras das franjas da cidade, e que esta condição induz,
como alerta Bourdieu (1996), um habitus produzido pelos condicionantes sociais associados à
condição correspondente e pela intermediação desses habitus e suas capacidades geradoras.
3
Todos os nomes usados neste trabalho são fictícios.
A PESQUISA EMPÍRICA:
O título deste artigo apareceu nas falas de Teresa e Neuza, que, em diferentes
momentos, assim se expressaram: “a minha vida dava uma novela”. Achamos que dava
mesmo. Vamos, pois, a elas. À época da entrevista, Teresa tinha 44 anos e cinco filhos.
Neuza, pouco mais jovem, estava com 42 anos e era mãe de quatro.
Neusa é falante, extrovertida e nos faz pensar no típico narrador de Walter Benjamim
(1980), aquele que é dotado da faculdade de contar uma história como quem troca
experiências. Teresa é mais tímida, mas não nos recusa a fala. Porém, a tudo responde com
uma espécie de recato, falando baixinho, olhando para os lados como quem teme ser ouvida.
Ambas ficaram sem as mães relativamente cedo. A de Teresa morreu pouco depois que
ela, aos 15 anos, fugira de casa com o namorado, com quem terminou se casando por
imposição do pai. Com a morte da mulher, o pai de Teresa voltou a se casar, mas também
faleceu. Seus irmãos ficaram sozinhos e, com o passar do tempo, “Foram comprando as
coisinhas, tudo pouquinho, uma mesinha, um guarda-roupinha”. O diminutivo da fala parece
demarcar a fragilidade e a pobreza dos objetos.
Neuza também já vivia na casa de uma família que, aos dez anos, a acolhera quando sua
mãe, vítima de um derrame, ficara imobilizada e incapaz de cuidar dos filhos. “Fomos morar
para o mundo, prá casa de um, prá casa de outro. Tem um irmão que foi para o Mato
Grosso, Minas Gerais. E eu fiquei aqui mesmo trabalhando prá casa dos outros”.
Na experiência de ambas, a falta da mãe demarca um momento de dispersão da família.
Os pais, sozinhos, não aparecem como capazes de cuidar da casa, dos filhos e de protegê-los
das adversidades, por isso os entrega a outras famílias. Esta prática de circulação de crianças
nos meios populares do Brasil nunca foi incomum e tem sido fonte de vários trabalhos
historiográficos (MOURA, 2002; MARCÍLIO, 1997).
Neuza nos conta que desde muito cedo trabalhava na roça. Não fazia serviço de casa,
porque não sabia, mas carpia café, colhia feijão e milho “de domingo a domingo”, além de
“apanhar muito”. Tinha menos de 12 anos quando um vizinho, de 48 anos, lhe fez um
convite inesperado, porém, tentador:
“Vamos morar comigo? Eu tiro você dessa vida, trabalhando aí com D. Neuza. Ela
te bateu. (Eu mostrando para ele o sinal nas pernas que ela tinha me batido e tal).
Vamos prá lá, você cuida da mãe, a mãe está bem velhinha, você cuida da mãe e
mais prá frente nós casa. Vou esperar você pegar idade”. Aí tá bom, juntei mais
depressa as pouca roupa que tinha, o registro e fui prá lá. D. Neuza cercou eu no
carreador de foice e cachorro grande, que era para os cachorro tocar em mim prá
mim poder os cachorro me morder a roupa ou me morder mesmo prá mim vir
embora prá casa, mas aí o João não deixou. O João com um revólver bom na
cintura deu dois tiros prá cima assim na boca do carreador. Aí nós foi prá baixo, aí
fui lá prá cuidar da velhinha, mas eu não sabia lavar e nem cozinhar. Aí foram me
ensinando
Para quem se surpreende com a decisão de Neuza ir viver com um homem mais velho e,
a despeito de ser seu vizinho, ainda assim um desconhecido, como ela própria admitiu, não
causa menor espanto a decisão de Teresa. Vejamos seu relato:
O marido era violento: “judiava muito, xingava a gente muito na rua”. Além da
violência física, ele havia lhe feito afronta maior, levando para viver com ela e os filhos,
dentro da mesma casa, uma outra mulher com quem se “amigara”. Teresa nos informa não ter
feito nada, pois “não participava leis”, confessa no seu dizer simples. A situação só foi
resolvida porque sua sogra reclamou, achando um absurdo a atitude do filho e pediu ajuda ao
patrão deste, que resolveu intervir, o desaconselhando a tal situação. A solução encontrada foi
alugar uma casinha ao lado da esposa para alojar a “outra” e ficaram assim, lado a lado,
dividindo, inclusive, a comida.
”Olha, quem está num mato sem cachorro, tenta qualquer coisa. Aí eu pensei: ‘eu
vou experimentar’. Ele tinha família, mas não contava com nenhum. Eu também não
tinha ninguém. Aí nós arrisquemo morar junto. Se desse, bem, se não desse, cada
um caçava seu rumo. Mas daí por enquanto está dando. Olha pra mim que tinha
três meninas, né? Eu achava um pouco difícil, mas achava que se arrumasse uma
pessoa seria mais fácil pra gente viver mais sossegada, porque tão perigoso este
mundo de hoje. Foi o que eu decidi fazer. Falar a verdade eu não tive medo nenhum
porque do tanto que eu já havia sofrido, não havia mais o que sofrer. Então sem
medo nenhum arrisquei”.
vista. A própria Teresa confessa que “a gente não tem aquele amor assim, mas a gente vai
vivendo, vai respeitando, vai passando”.
O surgimento do amor romântico, uma característica da família moderna e que Shorter
(s/d) considera a mudança mais importante no namoro nos séculos XIX e XX, nem sempre
tem vez entre os pobres. Nossa pesquisa empírica evidenciou que as etapas de namoro e
noivado são pouco frequentes. Assim, o que Azevedo (1981) chama de etapas de
enamoramento são puladas, seja no caso de Teresa, seja no de Neusa. Partem direto para a
união consensual, que os pobres denominam mais comumente de amigamento, mancebia,
morar junto.
Voltemos à Neusa e vamos encontrá-la desta vez ocupada em fazer os serviços da casa,
livre do trabalho pesado da roça: “Dentro de um ano eu já sabia fazer as coisas, lavar,
passar, cozinhar (...). Nisso completei treze anos”. Cumprindo a promessa feita, João “não
me relava o dedo em nada”. Mas quando a menina completou 14 anos ele achou que já era
hora de começar o namoro.
A fala, diz-nos Montenegro (2007), é um momento decisivo para as populações pobres.
Para essas mulheres falar de si sempre nos pareceu um momento de expurgo de dores, de
ressignificação de experiências, muitas vezes narradas em lágrimas, mas também se
convertendo num momento de satisfação no compartilhamento de suas memórias. Assim é
que até a lembrança da dor já não mais é dor, porque a memória transforma o vivido e as boas
lembranças são contadas devagarinho, como que querendo eternizar o prazer outrora sentido.
Porque se é verdade que o tempo é um laboratório que transforma a memória e faz com que
até a dor lembrada já não seja mais dor, também é verdade que reviver a felicidade é um
pouco ser feliz de novo.
Neusa relembra com um prazer que se evidencia na entonação da fala, tornando-a mais
pausada; no próprio corpo, que se aconchega no sofá quando dessa memorização tão doce; no
sorriso que vem, a princípio, tímido e manso, mas que se desdobra, enfim, em risada larga
nesse rememorar das alegrias tidas.
“Aí nisso fiquei numa boa. (...) me cuidava de mim muito bem, ixe. Coisa que eu não
tinha antes com ele passei ter. Roupas novas, calçados, me voltou eu à noite para
estudar, me levava. Porque eu não tinha estudo nenhum. (...). Comia do bom e do
melhor (...) Vinha prá cidade, tudo que eu quisesse comer o dinheiro estava na mão.
E o dinheiro, minha filha, guardava debaixo da cama, dentro de uma lata. Era
muito dinheiro, não era pouco não, era muito dinheiro. Ele era retireiro, ganhava
esse dinheiro para retirar leite. Depois tinha a roça toda que ele plantava e colhia
prá ele, tinha muito porco no chiqueiro, galinha caipira assim era demais, muita
galinha caipira, mamona que colhia era dele também. Então vinha prá cidade,
vendia, né? Tinha arroz, tinha feijão, não precisava comprar, banha não precisava
porque já tinha os porcos lá, matava e ficava pro gasto. Tinha de tudo, era muito
dinheiro na lata debaixo da cama. Quando vi aquilo, falei: “Mas isto vale?”. Ele
falou: “Valei, isto aqui é dinheiro”. Debaixo da cama. Sabe aquelas latinhas assim
de cera, de tampa, canário? Aquilo estava socadinha de dinheiro debaixo da cama.
Ele falou assim: “Quando vem criança aqui em casa você não fala não que o
dinheiro está aí debaixo da cama”. Falei: “Não, pode deixar”. “O dinheiro está aí
prá gastar, se precisar de um chinelo, uma coisa, a gente vai na cidade comprar”.
O casal vivia assim numa união conjugal não legalizada, porém feliz, mas a mãe de
Neusa, já muito doente e quase não mais podendo falar, começou a cobrar que eles
oficializassem o relacionamento.
“Quando foi com 17 anos e seis meses eu me casei. Comprou vestido novo para
mim, comprou tudo. Coisa que eu nunca ganhei nada de ninguém. Trouxe cá no
fórum, casei o civil. Mil maravilha né? Casada. Queria casar né, porque ficava feio.
Naquele tempo ninguém morava junto. (....) Comprou sandália prá mim, comprou
prá ele também roupa nova, calçado novo, aí viemos no fórum e casemo. Casemo,
viemo embora prá casa. Pagou um táxi. O táxi levou nos lá no Vinte do Alegre.
Levou nós de carro. Ganhei jogo de panela, ganhei jogo de prato”.
Ao contrário do que ela nos diz, muitas pessoas nessa época viviam, sim, sem oficializar
o casamento. Nesta época e sempre, uma vez que as uniões consensuais, amigamentos ou
mancebias, nomes populares, são uma constante no Brasil desde os primeiros anos de
colonização e que, aliás, encontram-se, nos dias atuais, em franco processo de expansão,
atraindo agora camadas sociais mais elevadas, antes avessas a essa forma de união conjugal.
A alegria de Neuza terminou em tristeza. No dia do casamento a sogra passou mal e
faleceu: “E eles tinha matado leitoa, tudo prá fazer uma festa prá nós (...) aí não deu prá
fazer porque nós tinha que arrumar, comprar caixão, arrumar as coisas na cidade prá
ponhar na veia. Vivi com ele 18 anos, fora os cinco de amigada”.
Com o tempo a vida foi ficando mais difícil. Nasceram as quatro filhas e o casal
resolveu vir para a cidade. “A vida foi apurando. Ele não tinha ganho. Trabalhava por dia na
prefeitura”. Ela voltou a trabalhar para ajudar nas despesas e foram morar na periferia da
cidade numa casa simples “Mais folhão do que madeira. Aquilo um dia deu um vendaval,
caiu tudo, quebrou tudo, pegou fogo duas vezes a minha casa, aí fomos abaixo. Fomos a zero
de novo. Não tinha o que comer, nem o que beber, nem o que vestir. Nada”.
A sorte começou a melhorar quando João foi efetivado no trabalho da Prefeitura e ela
conseguiu um trabalho para varrer as ruas da cidade e assim pôde ajudar nos gastos da casa.
Quando finalmente conseguiram uma casa no Conjunto Mutirão, a vida melhorou.
O projeto de casa própria seduz muito os pobres. Ter a sua própria morada é uma das
poucas formas de capitalização que estão ao alcance do trabalhador e uma das maneiras de se
obter segurança. Assim, ainda que seja um simples barraco é um sonho constantemente
perseguido.
Relembrando o ex-marido Neusa não se contém. Emocionada nos diz:
“Eu não esqueço dele. Ele foi meu primeiro amor, menina. Eu não gosto nem de
alembrar. Tem foto dele por aí tudo, as meninas até esconde pra mim não ver. Ixe,
mas olha, ele sim foi um homem de verdade. Já bem velho já e eu respeitava ele,
para mim ele parecia um homem novo. Mas ele foi homem prá mais de metro, heim?
E quando ele morreu, menina, Deus me livre. Aqui foi gente a noite inteira”.
Após a morte do marido e com o passar do tempo ela arrumou outro companheiro:
“Baixinho, moreno, igualzinho a ele, mas não é igual nada, boba, tem hora que não é não”.
Conta-nos que este é muito nervoso enquanto o João era muito calmo. Assim, primeiro nos
diz que os dois tinham semelhanças, mas depois reconsidera.
Ela nos informa que o atual companheiro é viúvo, poderiam até se casar, mas não quer e
tem para isso uma razão prática: “porque aí corta a pensão, eu ganho mais do que ele”. Há
neste trecho citado uma semelhança inequívoca com Teresa que, também viúva, recebe
pensão do marido, mas nem pensa em oficializar o relacionamento com o companheiro atual:
“Se casar eu perdo o ganho”, confessa numa sabedoria que, assim como a de Neuza, se
constrói na experiência cotidiana.
Temos outra semelhança entre essas duas mulheres, percebida quando elas nos falam
das filhas. Neuza nos diz
“Eu não queria que casasse, queria que estudasse. Igual à de 17 anos foi dezembro
passado eu tive de pagar o casamento dela. Mas por que? Ah, porque nós quer
casar, nós não quer estudar mais, o rapaz também quer casar e vai daqui, vai dali,
teve de casar. Mas eu não queria não... que estudasse, que casasse, queria que
estudasse. Então está tudo casada”.
Também Teresa lamenta que as filhas tenham deixado os estudos muito jovens para
irem viver com os namorados. Todas as quatro enfrentam grandes dificuldades, pois os
companheiros trabalham em serviços cujos salários são baixos e incertos. Para a filha mais
nova, fruto da união consensual que vivia no momento da entrevista, ela almejava um futuro
mais promissor: “Primeiro eu quero que ela estude bastante. Aí eu quero que ela aprenda
uma profissão que eu mesmo nunca tive e espero que ela não vá casar cedo igual às outras
casou”.
O estudo aparece entre as mulheres pobres como um elemento capaz de levá-las a
melhorar de vida. Com melhor grau de instrução, é verdade, elas têm melhor inserção no
mercado produtivo, conquistam seus próprios salários e, com isso, uma maior autonomia, mas
é imperativo admitir que a educação sozinha não é elemento capaz de quebrar uma estrutura
patriarcal solidamente alicerçada em categorias fundacionais de sexo e fundamentada numa
desigualdade que marginaliza as mulheres.
Voltando às nossas entrevistadas, vemos que a defesa do estudo não faz com que a
defesa do casamento seja descartada. Espera-se apenas que este não ocorra muito cedo e que o
estudo o preceda. Ter um homem, portanto, continua sendo um destino da mulher.
Apresentamos aqui o registro da vida de duas mulheres comuns. Duas mulheres sem
instrução, sem cargos importantes, vivendo na periferia de uma cidadezinha do interior do
Paraná. Uma, Teresa, foi boia-fria, agora é diarista; a outra, Neusa, trabalhou na roça quando
menina, depois foi gari, recolhendo lixos nas ruas da cidade. Agora é dona de casa. Vidas
singelas. Diríamos, mesmo, inexpressivas. Vale a pena acompanharmos suas trajetórias e
narrar-lhes o vivido? Pode ser este o questionamento de muitos que se insurgem contra essa
história vista de baixo.
A palavra história vem do grego, mas tem também raízes latinas. Para Hanna Arendt
(2009), quer dizer testemunhar, investigar e narrar. Assim, o historiador é aquele que ouve o
narrador/testemunha e, por sua vez, (re) narra o relato. Ambos estão, a um só tempo,
recolhendo memórias e elaborando registros de experiências individuais e sociais. O
historiador que se vale da história oral, e muito particularmente quando se volta para os mais
humildes, contribui para retirar da história um ranço elitista que a levou a privilegiar apenas
os relatos dos poderosos. Busca-se conhecer não só a história dos reis e dos generais; mas
também a história das minorias sociais. Daqueles (e agora também daquelas) que conduzindo
suas vidas num eterno igual de todo modo contribuíram no curso dos acontecimentos do
mundo. A história oral quebra, assim, uma visão dual: a superioridade da vida de uns poucos
sobre a insignificância das vidas de milhares de outros. Portanto, narrar as experiências de
Neusa e Teresa pode contribuir para reformular os pressupostos teóricos da história, revendo
práticas e discursos androcêndricos e apresentando novas formas de investigação crítica.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hanna. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. Tradução de Andréa Dore.
Bauru, SP: EDUSC, 2006.
AZEVEDO, Thales de. Namoro à antiga: tradição e mudança. In: Família, psicologia e
sociedade. VELHO,Gilberto. Rio de Janeiro: Campus, 1981.
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996.
MARCÍLIO, Maria Luiza. A roda dos expostos e a criança abandonada no Brasil. 1726-1950.
In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História Social da Infância no Brasil. 2.ed. São Paulo:
Cortez, 1997, p.51-76.
MEIHY, José Carlos Sebe B., HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar.
São Paulo: Contexto, 2010.
MOURA, Esmeralda Blanco Bolsonaro de. A história da criança no Brasil: algumas reflexões
a partir de dois textos. In: SAMARA, Eni de Mesquita (Org.). Historiografia Brasileira em
Debate: olhares, recortes e tendências. São Paulo: Humanitas, FFLCH/USP, 2002. p.47-54.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São
Paulo: Cortez, 2008 (Coleção para um novo senso comum, v. 4)
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Tradução de Christine Rufino
Dabat e Maria Betânia Ávila. Recife: SOS Corpo, 1991.
SILVA, Tânia Maria Gomes da Silva. Não existe pecado ao sul do Equador: uniões
consensuais nas camadas populares. São Paulo: Anablumme, 2010.
Há pouco mais de 30 anos, era publicado um texto de José Ferreira Carrato, no qual
ele fazia uma suscinta, mas importante, avaliação das “reformas pombalinas do ensino” e da
presença do Iluminismo em Portugal. Embora, hoje, possamos discordar de algumas de suas
afirmações, entendo que a discussão que vou apresentar, e que versa sobre o mesmo tema
enfocado por ele, deveria começar citando-o, até como forma de uma justa homenagem.
A certo momento de seu texto, José F. Carrato registra que D. José I, que reinou entre
1750 e 1777, foi “cognominado o Reformador”, ressalvando: “o título cabe-lhe apenas como
uma rotina de alcunha de reis, pois todas as glórias e canseiras das reformas pertencem ao seu
grande ministro”, em referência direta a Sebastião José de Carvalho e Melo (1699-1782),
conde de Oeiras (1759) e, depois, marquês de Pombal (1769). Carrato segue afirmando que o
conjunto de reformas ocorridas naquele reinado foram resultado “do movimento iluminista”
que adentrara o reino português, e que as reformas podem ser consideradas “a resposta à
necessidade de acudir aos graves problemas que afligiam o país”. Dentre as diversas “áreas”
atingidas pelas “reformas pombalinas”, destaca a da instrução, porque o poder régio ousara
“tirar da Igreja (legitur Companhia de Jesus) o controle do ensino público”;
concomitantemente, indica que se operava também uma reforma social, pela qual era
realizado o “enquadramento da nobreza em seu novo papel de classe ativa e não ociosa,
cuidando de diminuir-lhe os poderes excessivos”, assim como ocorria a ascenção da “nova
classe burguesa dos grandes mercadores” (CARRATO, pp. 23-24).
*
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – Brasil. Projeto integrado de pesquisa “Ilustração e cultura escrita na transição do Antigo Regime
português (Portugal e Brasil, 1750-1823): do domínio político ao império da língua”.
1
Para uma visão geral e recente sobre a reforma da Universidade de Coimbra, ver os artigos reunidos em
ARAÚJO, Ana Cristina (Coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra : Imprensa da
Universidade, 2000.
2
Esta é uma querela antiga: saber qual o grau de decisão experimentado pelo marquês de Pombal durante o
reinado de D. José I. Para uma discussão mais recente, ver MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José : na sombra de
Pombal. Lisboa : Círculo de Leitores, 2006, e SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Para a instrução dos
homens encarregados dos negócios públicos no final do Antigo Regime português. In: FONSECA, Thaís Nívia
de Lima e (org.). As reformas pombalinas no Brasil. Belo Horizonte : Mazza Edições, 2011, p. 73-97.
3
Para uma discussão acerca do que se designa por política pombalina, ver SANTOS, Antonio Cesar de Almeida.
Luzes em Portugal: do terremoto à inauguração da estátua equestre do Reformador. Topoi, v. 12, n. 22, p. 75-95,
jan.-jun. 2011.
4
Para uma apreciação geral das reformas educacionais durante o reinado de D. José I, ver BOTO, Carlota. A
dimensão iluminista da reforma pombalina dos estudos: das primeiras letras à universidade. Revista Brasileira
de Educação, v. 15, n. 44, p. 282-299, ago. 2010.
5
Aspectos das relações entre Ribeiro Sanches e Pombal podem ser vistos em MENDES, António Rosa. Ribeiro
Sanches e o marquês de Pombal : intelectuais e poder no absolutismo esclarecido. Cascais (PT) : Patrimonia,
1998.
idade mínima de 14 anos, receberiam uma espécie de bolsa, em valor “que se julgar bastante
para animar os que tiverem meios, e sustentar os que delles carecem para a sua subsistência”.
O curso teria uma duração de 3 anos, “que é o tempo necessário para se ditarem, conhecerem
e praticarem os principais objetos dos estudos desta mesma Escola”, cujo currículo, conforme
mencionado por Jacome Ratton, atenderia à formação de um comerciante ou de um “guarda-
livros completo”. De fato, buscava-se que “nesta pública e muito importante Escola se
ensinassem os princípios necessários a qualquer negociante perfeito” (ver SILVA, 1830, pp.
655-660 – meu destaque). Destaco a muito provável referência à obra de Jacques Savary, Le
Parfait négociant, cuja primeira edição foi publicada em 1675, isto porque Carvalho e Melo
teve contato com ela, durante sua permanência na Inglaterra (1738-1744), como atesta a
presença desse título – uma edição em francês, impressa em Amsterdam, em 1726 – entre os
livros levados por ele para Portugal (ver MELO, 1986, p. 175).
Por um lado, o “negociante perfeito”; por outro, o “perfeito nobre” (CARRATO, p.
41). O Colégio Real dos Nobres, que também ficou sob a expressa proteção do monarca
português, ainda que não tenha obtido o mesmo sucesso e posterior reconhecimento que a
Aula de Comércio, mostra-se essencial para a compreensão do projeto político dedicado à
instrução da nobreza de Portugal, com a finalidade de qualificá-la para o exercício de funções
administrativas e militares no reino e nos domínios ultramarinos. A opinião de José Ferreira
Carrato representa, no geral, o entendimento que a historiografia construiu acerca deste
estabelecimento: “não resta dúvida de que a criação do Colégio dos Nobres, por ato régio de 7
de março de 1761, e a subsequente publicação dos seus Estatutos, foram uma consequência
direta da pregação das Cartas sobre a educação da mocidade” (p. 42).
Em relação a tal afirmação, e em que pesem as óbvias relações entre as ideias
preconizadas por Ribeiro Sanches e o teor das normas que regulavam o funcionamento
daquela escola, a referida “consequência direta” não parece ser tão evidente, e o preâmbulo do
Alvará de confirmação dos Estatutos do Colégio Real dos Nobres apresenta algumas
importantes considerações acerca de um manifesto desejo de acudir à situação de “grande
decadência, em que cada dia se precipitaram com maior aceleração” os estudos dos jovens
nobres. Mais do que buscar igualar-se às outras “nações cultas” da Europa – uma expressão
comum nos documentos oficiais do período, e postura sugerida por Ribeiro Sanches –, D.
José I reconhecia a necessidade de uma “boa e regular instrução da Mocidade”, posto que dela
dependeria “o bem Espiritual e a felicidade Temporal dos Estados”, e entendia, invocando a
processo educacional, retirando das famílias a prerrogativa de decidir como (e por quem) seus
filhos seriam instruídos. O Estado queria definir o que deveria ser ensinado e, principalmente,
como isso deveria ser feito. Nesse sentido, o confinamento dos estudantes em colégios
garantia, por um lado, a vigilância sobre o que e como os professores ensinavam e, por outro,
uma desejada homogeneidade “na formação dos espíritos”, como aludiu Jacques Marcadé.
Esta disposição de controle fica evidenciada, inclusive, pelo próprio insucesso do Colégio
Real dos Nobres, que nunca conseguiu atingir o número de estudantes almejado.
Com efeito, as matrículas nunca ultrapassaram, no período de 1765 a 1772, uns
punhados de fidalguinhos internos: nesses sete anos de atividades, o Colégio dos
Nobres laureou apenas 45 alunos. No último ano do ensino científico (pois foi
extinto em 1771-1772, ficando apenas a área literária), havia uma dezena ou pouco
mais de alunos; dado o fato de serem geralmente prolíficas as famílias nobres
portuguesas, é certamente de presumir – opina o historiador Rômulo de Carvalho6 –
que a obra do Marquês de Pombal nunca foi bem aceita por elas (CARRATO, p.
44).
6
A principal referência de estudos sobre o Colégio Real dos Nobres ainda é a obra de CARVALHO, Rômulo de.
História da fundação do Colégio Real de Nobres de Lisboa, 1761-1772. Coimbra : Atlântida, 1959.
7
Sobre a alcance das “reformas pombalinas do ensino” na América portuguesa, ver CARDOSO, Tereza Maria
Rolo Fachada. As luzes da educação : fundamentos, raízes históricas e prática das aulas régias no Rio de
Janeiro, 1759-1834. Bragança Paulista (SP) : Editora da Universidade São Francisco, 2002.
de 1766, que Sebastião José de Carvalho e Mello enviou ao governador da capitania de São
Paulo, D. Luís Antonio Botelho de Souza Mourão. Junto à carta, seguiam “alguns exemplares
da Instrução dos Ofícios de Cícero”, com a finalidade de “V. Sa. aí formar alguns Homens
que sejam Capazes de discernimento e de percepção”. Conforme a referida carta, D. José I
havia mandado imprimir os livros “para a educação da Nobreza do Seu Real Colégio desta
Corte”.8
Explorar o significado que pode ser atribuído à publicação desse texto de Cícero,
naquele contexto, ajudará a compreender melhor, neste momento, aquele conteúdo do
“discurso da ilustração portuguesa”, mencionado por Francisco Lourenço Vaz, o qual estava
impregnado de um sentido ético. Entende-se que Carvalho e Melo estava fazendo referência à
obra “Ostres livros de Cicero sobre as obrigações civis, traduzidos em lingua portugueza para
uso do Real Collegio de Nobres”. Trata-se de uma tradução realizada pelo italiano Miguel
Antonio Ciera, que havia sido contratado como professor de matemática para o referido
Colégio. Ciera não verteu os “Ofícios” diretamente do latim, mas de uma versão italiana
produzida por Giácomo Facciolati, tomando-a como “a mais correta”.9
A importância dessa obra de Cícero para a formação dos jovens nobres portugueses é,
indiretamente, corroborada por um intelectual espanhol, Manuel Blanco Valbuena, que, em
1777, publicou, em Madri, uma tradução do mesmo livro.10 Esse professor de poética e de
retórica do Real Seminário de Nobres da corte espanhola, afirmava:
entre todos los libros que nos quedan de los antiguos, apenas se poderá señalar outro
más útil para enseñanza de los jóvenes que se dedican al estúdio de la lengua latina,
que este de los Ofícios de Ciceron, asi por la propriedad y elegancia de su estilo,
como por la doctrina que enseña de las obligacionaes que contituyen á los hombres
buenos ciudadanos (apud CÍCERO, 1818 – meu destaque).
8
Ver ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO (Portugal). Códice 423; carta de 22 de julho de 1766, ms.
9
De outra parte, o mestre Alberto Jacqueri de Sales, da Aula de Comércio, também trazia ao alcance de seus
alunos textos de teóricos do comércio, como Savary, Melon e Ustaritz. “Refira-se, contudo, que à semelhança do
que acontecia na Europa no domínio das traduções, que muitas vezes não respeitavam os originais, mas que de
forma bastante livre e eclética introduziam as ideias ou opiniões do tradutor e as características dos países de sua
nacionalidade, aos ensinamentos de Savary acrescentou Sales no seu texto muitos outros” (VAZ, p. 80).
10
Ver Bibliografía hispano-latina clásica (Catulo-Cicerón). Edición preparada por Enrique Sánchez Reyes.
Alicante : Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2008. [Edición digital a partir de Edición nacional de las
obras completas de Menéndez Pelayo. Vol. 45, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1952.
Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/obra/bibliografia-hispanolatina-clasica-catulociceron--0/;
acesso em: 10/02/2011].
considerarmos ser ela uma obra reconhecida como “o tratado moral mais importante de
Cícero” (SKINNER, p. 14). Para a moral ciceroneana, a principal virtude constituía-se na
honestidade, de maneira que os sujeitos deviam sempre se conduzirem “da maneira mais
virtuosa possível”, especialmente as pessoas que ocupassem posições de autoridade, as quais
deveriam evitar qualquer desvio de conduta (SKINNER, p. 53). Nesse sentido, Quentin
Skinner registra que, desde a Renascença, verificava-se a busca por uma educação
“verdadeiramente humana”, a qual ofereceria “o melhor preparo para a vida política” e
despertaria, em cada um, os valores necessários “para bem servir o nosso país: a disposição de
subordinar os interesses privados ao bem público; o desejo de combater a corrupção e a
tirania; a ambição de buscar os mais nobres fins entre todos: a honra e a glória não só
pessoais, mas de todo o país” (SKINNER, p. 13).
Para concluir este texto, considero que a formação de “bons cidadãos”, adotando o
termo utilizado por Valbuena, foi o objetivo buscado pelo marquês de Pombal, com a criação
da Aula de Comércio e do Colégio de Nobres. Esta disposição pode ser percebida naquilo que
venho designando em outros trabalhos por “mecanismo político pombalino” (SANTOS,
2010), o qual deriva, em grande medida, de proposições originadas em textos de William
Petty (1623-1687) e de Charles Davenant (1656-1714). Nesse sentido, é especialmente
significativa a presença de um manuscrito com a tradução para o português de um livro de
Charles Davenant dentre os diversos papéis transportados por Carvalho e Melo, desde
Londres para Lisboa, quando do término de sua estada na corte londrina.11 Em “Observação
sobre os methodos prováveis de fazer a huma nação lucroza no ballanço do Commercio” [An
Essay upon the probable means of making a People gainers in the Ballance of Trade (1699)],
um dos objetos de atenção de Davenant era justamente o de considerar “que um Pais não pode
crescer em riqueza e poder senão fazendo os homens particulares seus deveres ao publico e
por hum inteiro curso de honestidade e sciencia naquelles em cujos se repoz a administração
dos negócios”. Assim, em linhas gerais, percebe-se que, durante o reinado de D. José I, a
formação de homens capazes de “discernimento e de percepção” esteve associada à utilidade
pública das atividades profissionais e à conduta moral, aspectos que, como foi mostrado,
orientaram as reformas educacionais daquele período.
11
Ver BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL. Coleção Pombalina. Códice 168 (ms.).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cláudio DeNipoti
Universidade Estadual de Ponta Grossa
Dois livros sobre feitiçaria foram traduzidos e publicados em Portugal, nas últimas
décadas do século XVIII. O tradutor foi o vice reitor do Colégio dos Nobres, José Dias
Pereira. Os livros eram a Defeza de Cecilia Faragó, publicado pela primeira vez em
português em 1771, e a Arte Mágica Aniquilada, publicado em 17831. Em si, esses fatos não
deixam o historiador em alerta, uma vez que a segunda metade do século XVIII é profícua
em traduções e publicações sobre a mais ampla gama de assuntos que se possa imaginar,
desde os princípios daquilo que hoje conhecemos como ciência, até sólidas correntes literárias
da tradição ocidental2. Porém, a singularidade reside no fato de que esses livros foram os dois
principais libelos italianos de meados do século XVIII a combaterem a existência de
feitiçaria.
Indo por partes, cabe retomarmos o interesse que o Ocidente cristão manifestou com
relação à feitiçaria nos séculos que vão da Renascença ao Iluminismo. Os estudos sobre a
feitiçaria e a bruxaria tem demonstrado, por um lado, o crescente interesse dos historiadores
sobre o tema a partir de fins do século XX e, por outro, o quanto essas noções povoaram o
pensamento e a vida cotidiana das populações ocidentais no passado. Obras já consideradas
clássicas procuraram compreender a importância de crenças e práticas culturais relacionadas à
feitiçaria, partindo da análise de Keith Thomas, em Religião e o declínio da magia, publicado
originalmente em 1971, passando pelas críticas de Clifford Geertz sobre o excessivo
funcionalismo da análise de Thomas, até os estudos de Carlo Ginzburg sobre extratos
1
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó, accusada do crime de feitiçaria : obra útil para
desabusar as pesoas preoccupadas da arte magica, e os seus pretendidos effeitos Off. Manuel Coelho Amado,
1775; _____. A arte magica anniquilada do marques Francisco Scipaō Maffeo, traduzida da lingua Italiana na
Portugueza. Accresce huma nova prefaçaō, que escrivia o traductor. Publicado por Na officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1783.
2
Ver, por exemplo: DARNTON, Robert. Boemia literária e revolução; o submundo das letras no Antigo
Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987; _____. Os dentes falsos de George Washington; um guia não
convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005; CHARTIER, Roger. Inscrever e
apagar. Cultura escrita e literatura. São Paulo: Unesp, 2007.
culturais múltiplos que se manifestaram nas práticas de magia (e no combate inquisitorial), até
ainda os estudos dessas práticas em territórios nacionais3.
A obra de Ginzburg (em especial sua História noturna) parte do pressuposto de que
existem extratos culturais resultantes de contatos ancestrais entre as populações de diversas
partes da Eurásia, que culminam, na Europa do século XVI a XVIII, nas crenças populares em
magia e feitiçaria, e na transformação sistemática, pela igreja católica através da Inquisição
tridentina, dessas crenças em possessão demoníaca e sabá. A obsessão inquisitorial com a
bruxaria legou os documentos sobre os quais os historiadores podem, hoje, compreender o
quanto as crenças no sobrenatural (que não se encaixavam na ideia de religião oficial) eram
disseminadas por todos os extratos da sociedade no passado.
Nesta base documental, foram feitos diversos estudos, além das obras consideradas
fundadoras do campo (algumas das quais foram mencionadas acima) sobre as formas pelas
quais a crença na feitiçaria se manifestou na Europa moderna. Francisco Bethencourt, por
exemplo, buscou elementos do imaginário da magia na Portugal do século XVI através da
serialização temática dos depoimentos à Inquisição Portuguesa, demonstrando como a
feitiçaria visada pela Igreja era composta por conjuntos de práticas relacionadas a questões
cotidianas – relativas a problemas como conhecer o destino de marinheiros e colonos
portugueses no império, questões amorosas, etc. No cerne da discussão reside a dualidade
entre o poder de deus e o poder do demônio, visível em fontes teológicas e nos processos
inquisitoriais. “No fundo, o poder do primeiro, nesta época, afirma-se pela denúncia do poder
do segundo, que é apresentado como uma figura actuante, visível e palpável no quotidiano
dos homens. Daí a afronta que constitui o desespero e a descrença quanto à abtenção do favor
divino para o alívio dos males físicos e espirituais; daí a valorização, pela própria igreja, do
papel do mágico como um intermediário.”4 A questão se torna ainda mais complicada pela
criminalização detalhada da magia e da feitiçaria em diversos níveis, “tanto nas ordenações
régias como nas constituições sinodais e nos diplomas organizativos da Inquisição, o que
implica uma sobreposição de jurisdições, nem sempre fácil de deslindar, por parte de
instituições com estratégias de actuação diferentes"5 Ainda, os estudos de José Pedro Paiva
3
GINZBURG, Carlo. História noturna, decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 15.
4
BETHENCOURT, Francisco. O imaginário da magia; feiticeiras, salutadores e nigromantes no século XVI.
Lisboa: Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1987, p. 21.
5
BETHENCOURT, … p. 22.
Devemos ainda citar os estudos de Laura de Mello e Souza, que discutem estes temas
e abordagens em documentos relativos à história do Brasil, abordando aspectos da
religiosidade popular e da crença em feiticeiras como norteadora de ações políticas e
religiosas, fazendo uma reflexão sobre as relações entre os diferentes níveis culturais
envolvidos na representações da feitiçaria, e principalmente, do diabo, no passado colonial
brasileiro7.
Contudo, a crença na feitiçaria passou a ser, gradativamente, desde o princípio do
século XVIII, cada vez mais associada à superstição e a práticas populares de religiosidade,
afastando o pensamento erudito da crença, mas não do debate. As duas obras em foco aqui
são peças de um amplo debate europeu sobre a existência da bruxaria e da feitiçaria, que
envolveu diversos nomes do pensamento ilustrado, mas também operou como um elemento
de definição identitária das camadas ilustradas da sociedade, como o judiciário e o parlamento
ingleses e o clero anglicano, que, a partir do fim do século XVII, adotaram uma atitude cada
vez mais cética com relação à existência da feitiçaria. De fato, a última execução inglesa por
feitiçaria foi em 1684 e o último indiciamento, em 1717. Verificou-se, portanto, um "gradual
processo de descolamento eclesiástico e judicial das preocupações populares com problemas
6
PAIVA, José Pedro. Bruxaria e superstição num país sem caça às bruxas - 1600-1774. Lisboa: Notícias
Editorial. s.d., p. 19.
7
Ver, por exemplo, SOUZA, Laura de Mello. Inferno atlântico; demonologia e colonização – séculos XVI-
XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
da feitiçaria. O medo da feitiçaria que outrora unira o povo e o estado, crescentemente tornou-
se uma preocupação exclusivamente popular"8.
Inseridas, portanto em um debate em torno do redimensionamento na crença nos
fenômenos da magia e da feitiçaria, as obras em foco alinham-se com outras, principalmente
entre os pensadores do Iluminismo ibérico, como aquelas do monje beneditino Benito
Jerónimo Feijóo. Em seu esforço por "entronizar o newtonianismo como o pensamento
filosófico dominante"9 na Espanha, ele declarou guerra às falsas possessões "apresentando-se
como um denunciante das falsas crenças" numa guerra entre duas forças conflitantes: "a luz
da razão versus o crepúsculo da superstição ou ainda o bem comum contra os interesses
pessoais de certos indivíduos que capitalizavam na ingeniudade excessiva da maioria das
pessoas"10.
Em Portugal, a mudança se faz perceber mais tardiamente:
Se durante cerca de dois séculos a visão das elites portuguesas face ao fenómeno da
magia não sofreu radicais perturbações, apesar de algumas ligeiras alterações que se
detectam na prática inquisitorial e até na dos auditórios episcopais, a partir de 1750
começam a proliferar indícios de mudança. Tardiamente em relação a outras zonas
europeias como a França, Países Baixos, Suíça e até Itália, desponta uma visão
totalmente céptica em relação à possibilidade da magia diabólica. Visão que se filia
ao racionalismo e cientismo triunfantes em Setecentos e que, a longo prazo, acabará
por ser responsável pelo fim absoluto da instauração de processos judiciais por
culpas de magia em Portugal11.
8
DAVIES, Owen . Withccraft, magic and culture, 1736-1951. Manchester: Manchester University Press, 1999,
p. 79.
9
ISRAEL, Jonathan I. Radical Enlightenment; Phylosophy and the making of modernity. Oxford: Oxford
University Press, 2001, P. 534.
10
TAUSIET, Maria. From Illusion to disenchantment: Feijoo versus the 'falsely possessed' in eighteenth-century
Spain In: DAVIES, Owen & DE BLÉCOURT, Willen, eds. Beyond the witch trials. Witchcraft and magic in
Enlightenment Europe. Manchester: Manchester University Press, 2004, p. 45-48.
11
PAIVA, p. 87.
12
MAFFEI, Scipione. Nuovo invenzione d'un gravecembalo col piano, e forte. 1771.
1749 e 1754: L'arte magica dileguata, e L'arte magica annichilata13. Inclue-se ai também a
defesa que Giuseppe Rafaelli fez de Cecilia Farago, meeira italiana acusada de feitiçaria em
1769.
A Arte mágica aniquilada, ainda que traduzido e publicado em Portugal
posteriormente à obra de Rafaelli, em sua versão original a antecede, em duas décadas,
antecipando os diversos argumentos apresentados na Defesa sobre a inexistência de feiticeiras
e feitiçaria. O livro de Maffei é sempre apresentado – à sua própria época - como sendo de
enorme repercussão entre os pensadores católicos, tendo a seu favor uma visão de que a
feitiçaria em geral era pouco mais que uma miragem, como diz o apresentador (Arcebispo
deTignale) das obras completas de Maffei, em 1790: "Não se pode perdoar, neste nosso
século, tanta perturbação mental, a menos que se diga que se trata ainda de um pensamento
infantil, e que as crianças estão mais sujeitas que os outros às ilusões"14. A obra de Maffei,
delimitando os limites do sobrenatural no catolicismo, define a arte mágica como prática
supersticiosa, mas não herética, e a feitiçaria, como, em geral, charlatanice ou fruto da
ignorância, retomando o tema – caro ao Iluminismo – da emancipação do pensamento através
do conhecimento. O fato de que, além do o trabalho de Rafaelli, somente o livro final de
Mafei ter sido traduzido no contexto em foco é, em si, significativo, pois apresenta apenas as
conclusões do debate italiano sobre o tema – e sua aplicação prática, qual seja, a defesa
de Cecília Farago.
Este último texto, parte de um caso concreto de acusação de feitiçaria – como os
diversos exemplos citados por Maffei – para construir uma sólida peça jurídica contra os
processo deste tipo. Esposa de Lorenzo Gareri, nascida no início do século XVIII na Calábria,
à época parte do Reino de Nápoles, Cecília Farago pertencia a uma familia de agricultores de
uma camada social que se destacava economicamente, neste caso específico devido a um
número de pequenas propriedades rurais e bens diversos, amealhados em duas gerações, por
compra, herança ou através de dotes15. Lorenzo, estando à morte, legou seus bens ao único
filho vivo, Andrea, com o cuidado de prever que ele, Lorenzo, e sua esposa, Cecília, teriam o
usufruto da maior parte dos bens até sua morte. Lorenzo também deixou uma previsão de que
13
CASABURI, Mario. La “fattuchiera” Cecilia Farago._L'ultimo processo di stregoneria e l'appassionata
memoria di Giuseppe Raffaeli. Messina: Rubbertino, 1996. p. 9-11.
14
FIORIO, Antonio. Storia critica dell'opera del Maffei; l'arte magica destrutta. In MAFFEI. Opere. T. 2.
Veneza: Antonio Curti Q. Giacomo, 1790, p. 5.
15
CASABURI, p. 19.
fossem rezadas uma missa por ano, "in perpetuum, et mundo durante", por sua alma. O
dinheiro dessas missas deveria sair do espólio de Lorenzo. Com a morte deste, o filho Andrea,
de saúde frágil, representava a tipica figura dos meeiros em crise, que caminhava
para um lento, mas inexorável declínio; católico fervoroso como o pai, pouco atento
aos cuidados dos próprios bens e pouco inclinado a aumentar seu patrimônio com a
aquisição de de casas e terrenos, [...] atingido pela morte de seu genitor em 1762,
vítima provável de escrúpulos religiosos e sentindo próxima sua própria morte,
Andrea foi facilmente convencido por dois membros do clero [...] a doar tudo quanto
possuia à Igreja com a promessa de salvação eterna 16.
16
CASABURI, p. 20.
17
CASABURI, p. 22.
18
SEMENARO, Martino. Il tribunale del Santo Officio di Oria; inediti processi di stregoneria per la storia
dell'Inquisizione in età Moderna. Milano: Dott. A. Giuffre Editore, 2003, p. 57.
19
SEMENARO, p. 72-75.
20
CASABURI, p. 29.
21
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó... p. 56-57.
22
Pereira, José Dias. Traducção da defeza de Cecilia Faragó... p. 73.
O caso, através da obra de Rafaelli, teve repercussão fora da Itália, como exemplifica a
notícia dada, já em 1772 no Journal politique, ou Gazette des gazettes, também conhecido por
Journal de Bouillon, dirigido por Jacques Renéaume de La Tache (que também foi autor de
Observations physiques et morales sur l'instinct des animaux, publicado em 1770 em
Amsterdam23).
L'année dernière, une femme appellée Cecilia Farago, fut accussée de magie par la
veuve Victoire Rosseti, qui imputoit à ses maléfices la mort de son fils unique Don
Antonio Ferraiuolo. L'Auditeur d'Elia reçut ses plaintes & ses depositions; il ne
douta point de la possibilité du fait; il le jugea même très grave, parceque le mort
étioit Prètre. Son procès verbal & toutes les procédures qui en furent la suite,
n'offroient que des irrégularités. Un crime absurte, imaginé & cru par l'ignorance,
faillit à conduire au bûcher une femme innocente. Le Roi heureussement ordonna la
revision de ce procès ridicule, & il vient de justifier Cecilia Farago; il lui accorde les
réparations & les dédomagemens qui lui font dus aprés une affaire criminelle
injustement intentée, qui l'a exposée à des pertes considérables, & qui lui a fait subir
une prison longue, rigoureuse, & acccompagnée des inquiétudes les plus vives sur
son sort; il lui permet de prendre á partie ses accusateuers, de vérifier les motifs de
leur conduite, & de les poursuivre a son tour au criminel, s'il y a lieu." 24
a superstição "a qual, supplantando o bom senso, a boa razão, e a Filosofia, se torna origem
fecunda de erros, illusões, e fantasmas de uma imaginação esquentada que converte tudo o
que toca em lobishomens, bruxas, demonios e almas de outro mundo", Borges Carneiro
lembrou da obra de Maffei como um dos exemplos de autores que tentaram escrever sobre "as
desgraças que a humanidade tem sofrido em consequencia da credulidade sobre a magia"
ainda que não mencionasse o processo de Cecília Farago 27. Segundo Paiva, essas publicações
fazem parte de uma ampla difusão da polêmica que, pelo fim do século XVIII "tocou setores
que então já não se podiam considerar elites letradas. Em 1788, um capitão do exército
português de nome F. Silva, escreveu um manuscrito onde fala da bruxaria como um aspecto
do mundo mental das mulheres velhas, das crianças e das pessoas rústicas"28.
Chama a atenção o fato de não existirem traduções, porém, dessas obras, por mais
citadas que elas sejam. Mesmo a vasta discussão de Maffei sequer mereceu uma versão
francesa, em uma época em que o francês era considerado por todos os leitores eruditos o
idioma de difusão científica por excelência. Um levantamento das edições do século XVIII
preservadas nos arquivos revelou quen ão há traduções dos livros de Maffei, exceto talvez de
sua peça mais famosa – La Merope – traduzida para francês, inglês e alemão entre 1718 e
1751 e que mereceu uma carta de Voltaire ao autor, publicada em italiano, mas não em
francês29.
As traduções portuguesas (como parte deste mesmo movimento de mudança no
pensamento erudito sobre a feitiçaria) tiveram um percurso relativamente curto, pois a
Defesa... foi publicada, em primeira edição, em 1775, na oficina tipográfica de Manoel
Coelho Amado, com 78 páginas e novamente em 1783, impressa pela Academia de Ciências,
numa edição de 149 páginas, ao passo que a Arte Mágica só teve a edição de 1783, impressa
na "officina de Simão Thaddeo Ferreira".
Os livros sobre feitiçaria traduzidos por José Dias Pereira, como parte das práticas de
leitura do período, surgem como obras que buscam resumir o conhecimento científico sobre
os fenômenos “mágicos” com o intuito de combater a própria crença na magia. Porém, a
tradução desses livros, ainda que inscrita no contexto de um iluminismo católico português
27
CARNEIRO, Manoel Borges. Portugal Regenerado. Parábola 4, "A magia e mais superstições
desmascaradas". Lisboa: Typografia Lacerdina, 1820, p. 12.
28
PAIVA, p. 90, citando o manuscrito “Não há feiticeiras". Dissertação. BNL, ms, caixa 245, doc. 120.
29
OLTAIRE. Lettera del signor di Voltaire al sig. marchese Scipion Maffei autore della Merope italiana, e di
molte altre opere famose [Texte imprimé]. - [S. l. n. d.]. - 12 p. Disponível em
http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb41058938r/ISBD , consultado em 10/04/2012.
que visava "combater a ignorância e a superstição [...] com relação à feitiçaria" a partir dos
exemplos do iluminismo italiano30, pode ser incluída nas estratégias editoriais do
pombalismo. O tradutor, que era um presbítero secular, poeta bissexto, e participou da
Arcádia31, ocupava uma alta posição na estrutura de poder pombalina, o que nos permite
entender estas traduções tanto como o desempenho de uma missão oficial, quanto como parte
de um processo de domesticação da Inquisição portuguesa, cujo objetivo era acabar com a
crença na feitiçaria e dirigir a atuação da Inquisição para crimes políticos e comportamentais
dos sacerdotes.
Esse tipo de uso que Pombal fez do livro caracterizava um modus operandi de inserir
sua prática política no contexto da palavra impressa como parte de empreendimentos de
poder, visando marcar claramente o que deveria ser lembrado e esquecido com relação à
religião e à ciência em geral, e que pode ser observado em várias das suas ações político-
administrativas. Segundo Paiva:
Para sustentar a campanha contra os jesuítas, por exemplo, o Gabinete Real produziu
uma série de textos de caráter propagandístico, elaborados sob a direta supervisão de Pombal.
Estes libelos anti-jesuíticos foram editados em vários idiomas – Latim, Espanhol, Francês,
Italiano, Alemão e Inglês – e distribuídos no mercado europeu, visando sensibilizar a opinião
pública para os propósitos regalistas. A Relação Abreviada, de 1757, teve uma edição de
vinte mil exemplares33. Dez anos mais tarde, Pombal ainda mantinha acesa a chama
discursiva na qual pretendia que ardessem os padres inacianos. Provavelmente redigida por
30
SOUZA, Evergton Sales. The Catholic Enligtenment in Portugal. In: LEHNER, Ulrich & PRINTY, Michael,
eds. A companion to the Catholic Enlightenment in Europe. Leiden: Brill, 2010, p. 378.
31
Morato, Francisco Manuel Trigoso de Aragão, Memórias de Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato,
começadas a escrever por ele mesmo em princípios de Janeiro de 1824 e terminadas em 15 de Julho de 1835,
revistas e coordenadas por Ernesto de Campos de Andrada, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1933.
32
PAIVA, p. 88.
33
Relação abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas das provincias de Portugal e Hespanha
estabelecerão nos dominios ultramarinos das duas monarchias, e da Guerra, que neles tem movido e sustentado
contra os Exercitos Hespanhois e Portuguezes: Formada pelos registos das Secretarias dos dous Comissarios e
Penipotenciarios; e por outros Documentos authenticos. [Lisboa : Tipografia de Miguel Rodrigues, 1757]
Pombal, mas recebendo a assinatura de José Seabra da Sylva, foi publicada em 1767 a
Dedução Cronológica e Analítica34, que “constitui o mais acabado ensaio de política regalista
sobre matérias jurisdicionais consideradas exclusivas do poder régio”35. Pombal mandou
enviar A Dedução para todas as partes do reino e também para o ultramar. Em 1771, vieram à
luz dois outros textos panfletários: o Compêndio Histórico do Estado da Universidade de
Coimbra36, elaborado pelos integrantes da Junta de Providência Literária responsáveis pelos
documentos da Reforma e o opúsculo Origem Infecta da Relaxação Moral dos Denominados
Jesuítas37, publicado sem autoria, pela Régia Oficina Tipográfica. A historiadora Ana Cristina
Araújo caracterizou a criação da Impressão Régia como uma das estratégias do “dirigismo
cultural” de Pombal:
34
SILVA, José de Seabra da. Dedução chronologica, e analytica na qual se manifestão pela successiva serie de
cada hum dos reynados da moranquia portugueza...Lisboa : Officina de Miguel Manescal da Costa, 1767. 2 v.
35
SANTOS, Cândido dos. António Pereira de Figueiredo, Pombal e a Aufklärung; Ensaio sobre o Regalismo e o
Jansenismo em Portugal na 2ªmetade do século XVIII. Revista de História das Idéias, o Marquês de pombal e o
seu Tempo. Coimbra, v.4, 1982. t.1, p.188.
36
ompendio Historico do Estado da Universidade de Coimbra no tempo da invasão dos denominados Jesuitas e
dos estragos feitos nas sciencias... : Régia Oficina Tipográfica, 1772.
37
Origem infecta da relaxação da moral dos denominados Jesuitas Manisfesto dolo, com que a deduziram da
Ethica, e da Metafysica de Aristoteles, E obstinação, com que, ao favor dos sofismas da sua Logica, a
sustentaram em commum prejuizo Fazendo prevalecer as impiedades daquelle filosofo, falto de todo o
conhecimento de Deos, e da vida futura, e eterna, Contra a Escritura, contra a Moral estabelecida pelos livros dos
Officios de S. Ambrosio, pelos trinta e sinco Livros dos Moraes de S. Gregorio Magno, pelos Santos Padres, e
pelas Homilias de todos os Doutores Sagrados, que constituiram os Promptuarios da Moral Christã, Em quanto a
não corromperam aquelles malignos artificios com lamentavel estrago das consciencias dos Fieis. : Na Regia
Officina Typografica, 1771.
38
ARAÚJO, Ana Cristina. Dirigismo cultural e formação das elites no pombalismo In: _____. O Marquês de
Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2000,p.26.
39
TAVARES, Rui. Lembrar, esquecer, censurar. ... p.145.
40
Idem. p.146.
41
ARAÚJO, Dirigismo cultural ... p.87.
como o expresso objetivo de “restauração das sciencias, e artes liberaes”, contra aquilo que
foi qualificado de “notório Systema de ignorancia artificial”, ou seja a educação jesuítica42.
A historiografia portuguesa contemporânea ajuda a perceber o proposital exagero
contido nos principais textos da Reforma quando pretendiam fazer crer que o estudo das
modernas ciências inaugurava-se naquele momento, fazendo tabula rasa de todo o saber
anteriormente acumulado pelos jesuítas e outros segmentos da elite intelectual portuguesa.
Assim, Estatutos e Compêndio Histórico são obras que conjuntamente realizam com precisão
o conceito Documento/Monumento, tal como foi teorizado por Le Goff43. Esses livros foram
transformados em monumentos não apenas no que respeita a seus conteúdos mas na sua
própria materialidade, em especial os Estatutos, que receberam luxuosa encadernação e
ficaram expostos à veneração pública44.
Os Estatutos e o Compêndio Histórico instauram simultaneamente a memória da
“Nova” Universidade e o culto de seu reformador maior: Sebastião José de Carvalho e
Mello45. A ‘Reconstrução de Lisboa’ e a ‘Reforma da Universidade’ passaram a constituir o
par inextrincável da base discursiva sobre a qual foi construído o monumento maior: o
personagem Pombal.
Não obstante, há uma questão que a historiografia tem buscado responder, que é a do
significado dos processos transformados em categorias de análise aos quais os historiadores
recorrem frequentemente para criar sentidos no passado. Termos como "Antigo Regime",
"Pombalismo", Iluminismo podem ser melhor entendidos quando tentarmos ouvir o passado
ao invés de forçarmos sua voz a partir de modelos pré definidos. É nesse sentido que os
prefácios de Dias Pereira permitem compreender um pouco mais as diversas e múltiplas
implicações do debate sobre feitiçaria.
O tradutor nos diz de seu entendimento desse debate, ao manifestar os objetivos de
seu esforço de tradução. Na "prefação" da Defesa... Dias Pereira resume o tom da relação
42
Estatutos da Universidade de Coimbra, 1772. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1972. 3.v. (edição
facsimilar) Doravante referenciados como Estatutos.
43
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopédia Einaudi.Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da
Moeda, 1984. v.1. p.95.
44
FONSECA, Fernando Taveira da. A dimensão pedagógica da reforma de 1772; Alguns aspectos.
In: ARAÚJO, Ana Cristina (coord.). O Marquês de Pombal e a Universidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 2000. p.43-44. VASCONCELOS, Luís Mendes de. Do sítio de Lisboa; diálogos. Lisboa: Livros
Horizonte, 1990. p.347-348.
45
Numa escala menor, com especial apelo entre a intelectualidade os luso-brasileira, estabelece-se o culto a D.
Francisco de Lemos.
entre crença e descrença, que se coloca como oposição entre conhecimento erudito "ilustrado"
e saber popular, ao afirmar que o que gera a crença na feitiçaria são as "medonha[s]
narraç[ões] os Lobishomens, e das Fantasmas, que appareceram nos escuros lugares (com se
receasse o demonio até a luz de huma vela)" que as amas, "ordinariamente grosseiras e
supersticiosas" usam para entreter as crianças, submetidas desde muito cedo a estas histórias e
aos "casos dos Magicos, e das Feiticeiras"46. No prefácio da Arte mágica, contudo, o tradutor
é menos condescendente com a crença, preferindo construir melhor seu argumento anti-
bruxaria a partir da comparação exemplar, primeiro, dos autores que antecedem ou apoiam os
argumentos de Maffei, partindo da premissa de que a existência ou não da "arte diabólica" é
"simples ou mera opinião"47. Em segundo lugar, expondo os argumentos dos defensores da
existência da magia, para atacá-los, usando o texto de Maffei como "cabeça de praia".
Ele pretendia, por meio da tradução, "salvar os [seus] Compatriotas" menos
instruídos dos abusos gerados pela crença nas feiticeiras, pois seu trabalho permitir-lhes-ia ler
"as doutrinas do Original"48. Seu objetivo era a instrução "daquellas pessoas, que a penas
lem, e entendem a nossa língua vulgar" dentre as quais ele imaginava existir quem acreditasse
nos "prodígios magicos", por associação aos dogmas católicos da verdade dos milagres, da
obra de Deus e da existência dos anjos máus49.
O que move o tradutor (e, podemos inferir, seus "patronos") era a necessidade de
difundir as novas "luzes", não entre os intelecutais tradicionalmente associados ao Iluminismo
em Portugal, mas entre as camadas "médias", de leitores, que podemos imaginar serem
indivíduso oriundos de camadas populares que dominam a leitura mais e mais, a partir da
expansão do sistema de aulas régias, por exemplo. Se essa era a população a quem as ações
editoriais pombalinas listadas acima eram destinadas, ainda está por ser discutido a partir do
aprofundamento das investigações aqui iniciadas. Cabe somente verificarmos como o
personagem em foco (Dias Pereira) percebia sua própria ação ilustrada – entendida por ele
como uma forma esclarecida de catolicismo, com pequenas tintas nacionalistas a colorir o
quadro:
46
PEREIRA, Defesa... s./p.
47
PEREIRA, Arte mágica... p. 6.
48
PEREIRA, Defesa... s./p.
49
PEREIRA, Arte mágica... p. 3.
documentação será lida na busca dos sentidos atribuídos aos (ou construídos nos) livros e
textos de ciência, por pessoas que agiram dentro dos moldes culturais e sociais que regiam a
expressão individual. Foi isto que esperamos ter demonstrado ao contruir a rede de práticas
que acompanhou as obras de Maffei e Rafaeli de sua composição até as traduções de José
Dias Pereira.
Vale lembrar que, da segunda metade do século XVIII até fins do XIX,
Portugal vivenciou problemas tangentes, que iam desde uma pobreza concisa proveniente de
doutrinações econômicas e tentativas de industrialização; até anseios de renovação política e
cultural; dificuldades latentes de uma sociedade predominantemente rural e que se mostrou
1
RAMOS, Rui. A formação da Intelligentsia Portuguesa (1860-1880). Revista Análise Social, Vol. XXVI
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1992, p. 483-528.
2
ROCHA, Clara. Gerações, gerações, gerações... In: Revista Nova Renascença, Vol. VI nº 21, Porto, 1986.
3
Idem, p. 26-27.
afirmação literária, que certamente cada um destes indivíduos comungava. 4 Sem contar que o
critério de familiaridade de opiniões e de pensamentos não seria suficiente para agrupar
determinados escritores numa “geração literária”, já que esta comumente admite a inclusão de
pensadores que, mesmo não compartilhando de valores e ideais, sejam por razões históricas
ou culturais, se encontram ligados a um determinado grupo.5
4
Idem, p. 36-37.
5
ALONSO, Ângela. Idéias em Movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil – Império. São Paulo: Paz e
Terra, 2002.
6
Idem, p. 36-38.
7
Idem, p. 38.
8
BARRETO, Luís Filipe. Caminhos do Saber no Renascimento Português. Lisboa, 1986.
encontrando, dessa forma, seu enraizamento nos feitos de outrora.9 Dito de outro modo: a
história transportava consigo verdades de “fatos” que sustentavam a inevitabilidade do fim do
sistema monárquico e o advento do sistema republicano; e este, é claro, não poderia se firmar
sem a força vital da democracia.
[...] A nossa época é uma época de transição. É uma amalgama indecisa, hipócrita,
ilógica, torpemente imoral e de princípios opostos: direito divino, direito
revolucionário; centralização e descentralização. Um período triste. E em termos das
vontades individuais o resultado é a hesitação e a incapacidade. A nossa classe não
cabe calar-se e conter-se, é preciso ir além e fazer doer mais do que dói esta gama de
sacrilégios.12
[...] Ninguém desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação
política; e isso há muito tempo. E todos pressentem que se agita, mais forte do que
nunca, a questão de saber como deve regenerar-se a organização social. Para isso
cabe que, antes que nós mesmos tomemos nela o nosso lugar, estudar serenamente a
significação dessas ideias e a legitimidade desses interesses; investigar como a
sociedade é, e como ela deve ser.14
14
Idem, p. 76.
15
SANTOS, Maria Lima dos. Sobre os Intelectuais Portugueses do Século XIX: do Vintismo a Regeneração. In:
Revista Análise Social, Vol. XV 1979, p. 68-69.
16
Idem, p. 68.
17
LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1982.
18
CATROGA, Fernando. O Laicismo e a Questão Religiosa em Portugal (1865-1911). In: Revista Análise
Social, Vol. XXIV, 1988, p. 211-273.
Desse modo, seria fundamental para esses indivíduos que levassem adiante
suas táticas reformistas e sobrepusessem de uma só vez, com “odes libertárias e
republicanas”, aquele estado atual de apatia oriundo de um governo monárquico
constitucional, com suas “maquinações” e que, no passado, seus pais haviam julgado que os
levaria confortavelmente para o futuro.21 Oliveira Martins, em um texto publicado no Jornal A
República, alega que rejeitava o estado econômico e político atual não porque não
funcionasse, mas porque não podia funcionar.22 O constitucionalismo eram fatos confusos,
instituições caóticas, códigos sem unidade de princípio, que desorientam “as mais claras
indicações do bom senso natural”. O regime despreza as ideias, o sistema, a unidade era uma
coisa que “tanto pode ser como não ser”, e daí a degradação geral de todas as crenças, desde o
liberalismo à religião católica. E diante desses dados, as sociedades, para não sucumbirem,
necessitavam de reconstituir-se como um todo harmônico e como um organismo vivo.23
19
Idem, p. 226.
20
LOURENÇO, op. cit., p. 88.
21
SANTOS, op. cit., p.52.
22
RAMOS, op. cit., p.503-504.
23
Idem, p. 504.
24
CATROGA, op. cit., p. 231- 232.
25
Idem, p. 228.
26
GARNEL, Maria Rita Lino. A Polêmica Sobre o Celibato Eclesiástico (1820-1911). Lisboa: Roma Editora,
2003, p. 28-29.
votos perpétuos, como a castidade, constituíram alguns dos temas mais fortes do ideal
reformista de fins do século XIX português. 27
27
Idem, p. 38- 41.
28
CATROGA, op. cit., p. 233.
29
MARQUES, João. A controvérsia Doutrinária entre o Catolicismo e o Protestantismo em Portugal no
Ultimo Quartel do Século XIX. Lisboa: Nova Atlântida, 1998.
30
Idem, p. 89-91.
31
Idem, p.87.
32
GARNEL, op. cit., p. 104-105.
33
MARQUES, op.cit. p.38-39.
34
Idem, p.61- 62.
35
Idem, p. 81.
36
GARNEL, op. cit., p. 102-107.
37
QUEIROZ, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Porto: Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1889.
dela, o padre criava intrigas e estabelecia uma barreira à plena difusão e implantação dos
novos ideais modernos decisivos para a construção de um perfil de relações sociais
progressivas.38
38
GARNEL, op. cit., p. 92.
39
MARQUES, op. cit., p. 28-29.
40
Idem, p. 32.
41
CATROGA, op. cit., p. 218.
42
RIBEIRO JÚNIOR, João. O que é Positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 32-34.
43
FRANCO, José Eduardo. Anticlericalismo e Universo Feminino: polêmicas e estereótipos; in: Revista
Lusófona de Ciência das religiões. nº 11, 2007.
44
CATROGA, op. cit., p. 210.
empecilho à propagação da espécie, cujo direito de procriar e de fundar uma família eram
tidos como direitos inalienáveis, e privar alguém desses direitos era uma grave injustiça e uma
ilegitimidade.45
45
RIBEIRO JUNIOR, op.cit., p. 24-25.
46
FRANCO, op.cit., p. 256-257.
47
Idem, p. 223-224.
48
CATROGA, op. cit., p. 221.
49
Idem, p. 257-258.
serviço da cúria.50 Os militantes laicos mais radicais sob o influxo das contribuições do
Positivismo, e das ciências - darwinismo, evolucionismo - viam outros perigos nesta negação
da natureza formulada pelo aparato católico; pois contrariá-la poderia conduzir como
apontava Ramalho Ortigão “as profundidades clássicas da perversão”, causa provável das
“medonhas flagelações bestiais que ensanguentavam” as páginas do catolicismo.51
Comportamento impróprio, que corria na contramão do ideal de transformação social
proposto pelos intelectuais portugueses nas ultima décadas do século XIX. Uma
transformação entendida como necessária e ao mesmo tempo incompatível com os valores
promulgados pela Igreja Católica na época.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GARNEL, Maria Rita Lino. A Polêmica Sobre o Celibato Eclesiástico (1820-1911). Lisboa:
Roma Editora, 2003.
QUEIROZ, Eça de. O Crime do Padre Amaro. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron, 1889.
50
GARNEL, op. cit., p. 115-116.
51
Idem, p. 115.
ROCHA, Clara. Gerações, gerações, gerações... In: Revista Nova Renascença, Vol. VI nº 21,
Porto, 1986.
SANTOS, Maria Lima dos. Sobre os Intelectuais Portugueses do Século XIX: do Vintismo a
Regeneração. In: Revista Análise Social, Vol. XV 1979.
HERANÇAS DE HISTÓRIAS?
A POSSE DE LIVROS NOS INVENTÁRIOS POST MORTEM DE CASTRO, ENTRE 1800
E 1870.
1
BORBA, Oney Barbosa. Os Iapoensens. 2ª Edição. Curitiba: Editora Lítero-técnica, 1986. p. 55. Com grifo no
original.
Com relação ao estado do Paraná, é preciso inseri-lo num debate mais amplo com a
história do Brasil, porque sabemos a priori que não existe uma história do Paraná “desligada”
de uma história do Brasil. O contexto vivido nos Campos Gerais de fins do século XVIII e
início do XIX é reflexo do que estava acontecendo no mundo:
2
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 108.
3
PINTO, Elizabete Alves; GONÇALVES, Maria Aparecida Cezar. Ponta Grossa – um século de vida (1823-
1923). Ponta Grossa: Kugler Artes Gráficas Ltda., 1983. p. 17.
4
Idem. p. 17.
Sobre a formação do estado do Paraná, que começa no século XVII, temos também o
estudo de Jayme Cardoso e Cecília Westphalen, na obra “Atlas histórico do Paraná”, com
informações sobre os mapas locais, que facilitam a compreensão do processo da ocupação
geográfica e desenvolvimento primário até o século XX. Os autores afirmam que:
FIGURA 1. FONTE CARDOSO, Jayme A. & WESTPHALEN, Cecília M. Atlas histórico do Paraná. 2ª Ed.
Curitiba: Livraria do Chain Editora, 1986. p. 43.
5
WACHOWICZ, Ruy Christowam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1995. p. 79.
6
CARDOSO, Jayme Antônio & WESTPHALEN, Cecília Maria. Atlas histórico do Paraná. 2ª Edição.
Curitiba: Editora Livraria do Chain, 1986. p. s/p.
Entretanto, o palco no qual se desenrola o cotidiano e a vida das pessoas que vamos
estudar nesta pesquisa historiográfica é a antiga Vila e hoje município paranaense conhecido
como Castro. A região dos Campos Gerais, onde está localizado, é reconhecida pela passagem
dos tropeiros, e a cidade, por suas fachadas arquitetônicas em estilo antigo, hoje respeitadas
através de incentivos à preservação do patrimônio e da instalação de fiação subterrâneos.
Castro, portanto, ainda mantém detalhes de uma paisagem urbana que preserva muito das
referências de um cenário comum aos indivíduos do século XIX.
Assim, esta sociedade de Castro insere-se no período, chamado pelos autores acima
(Cardoso e Westphalen), de Paraná tradicional. É importante salientar que desde o último
quarto do século XVIII até as décadas finais do século XIX, toda a região dos Campos Gerais
esteve fortemente marcada pelo tropeirismo, atividade econômica surgida no início do
Setecentos. Segundo Wachowicz:
7
WACHOWICZ, Ruy Christowam. História do Paraná. Curitiba: Editora Gráfica Vicentina, 1995. p. 104.
8
Ver os autores que escreveram sobre a formação da Vila de Castro: Oney Barbosa Borba e Elizabete Alves
Pinto nas obras “Os Iapoenses” e “Vila de Castro: população e domicílio (1801-1830)” respectivamente.
9
BORBA, Oney Barbosa. Os Iapoensens. Op. Cit. p. 21, 22.
Outro trabalho que também faz referência ao contexto inicial do século XVIII, é de
Bruna Marina Portela, que traz:
[...] Apenas durante o século XIX, haveria uma diferenciação significativa entre
Paraná e São Paulo no que se refere aos escravos. Enquanto em território paulista a
utilização do trabalho escravo se acentuaria devido á expansão cafeeira, na região
paranaense ocorreria o inverso. O declínio econômico dos Campos Gerais e os altos
preços alcançados pelos escravos na lavoura cafeeira, provocados pela proibição do
tráfico, estimulariam a transferência de uma grande parcela de escravos para São
Paulo, alterando o panorama demográfico paranaense. 13
Assim, segundo o autor, até meados do século XIX era comum a presença de escravos
na região dos Campos Gerais, “onde predominavam as fazendas de criar ou invernar, a
10
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos Gerais.
Dicionário Histórico e Geográfico dos Campos Gerais. Disponível em: http://www.uepg.br/dicion/verbetes/a-
m/campos_gerais_ocupacao.htm. Acesso em: 18-05-2012.
11
PORTELA, Bruna Marina. Caminhos do cativeiro: a configuração de uma comunidade escrava (Castro, São
Paulo, 1800-1830). Curitiba: Dissertação de Mestrado – UFPR, 2007. Disponível em:
http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/11749/Brunamarinaportela.pdf?sequence=1 Acesso em:
10-12-2011. p. 9.
12
PORTELA, Bruna Marina. Op. Cit. p. 9.
13
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Dos escravos e outros não-morigerados. In: Semeando iras rumo ao
progresso: (ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829 – 1889). Curitiba: Ed. UFPR,
1996. p. 57, 58.
composição da população confirma que, até os meados do século XIX, a sociedade ainda
estava estruturada em torno de uma organização escravista de trabalho”.14 E, neste contexto,
ainda com relação a população de Castro, esta possuiria cerca de 5899 habitantes, destes
seriam 3618 brancos, 1895 pardos, 986 pretos e 796 escravos. 15
Até 1853, quando da emancipação política da província do Paraná, existiam as
seguintes localidades: Paranaguá, a cidade mais antiga, Guaratuba, Antonina e Morretes
ficavam no litoral; Curitiba e Lapa estavam no primeiro planalto paranaense; Ponta Grossa e
Castro eram as vilas situadas nos Campos Gerais, ou segundo planalto; e, mais a oeste, acima
da Serra da Esperança, ficava a recém criada vila de Guarapuava.
A população também era rarefeita; os pouco mais de 62 mil habitantes distribuíam-se
irregularmente pelo território conforme informação em Novacki16. A maior parte dessa
população encontrava-se no litoral e primeiro planalto, regiões com maior taxa de moradores
urbanos e que concentravam atividades fabris (engenhos de mate) e comerciais. No segundo
planalto, a principal atividade econômica ainda estava ligada ao campo, à criação e à
invernagem de animais para os mercados de São Paulo.
Pode-se, assim, considerar que essa distribuição e estrutura populacional estava
organizada conforme as atividades econômicas da região de Castro, localidade que iremos
enfocar neste trabalho. Se levarmos em conta o olhar de Debret, perceberemos que o ambiente
urbano de Castro era bastante rarefeito (mas também não muito diferente das demais cidades
da então Província do Paraná).
14
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op Cit. p. 60.
15
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op Cit. p. 59.
16
NOVACKI, Luís Henrique. “Como se liberto nascesse de ventre livre”: escravos libertos na Freguesia da
Palmeira/PR (1831-1848). Revista Vernáculo, n° 3, 2000. Documento em formato pdf. Acesso em: 20-05-2012.
p. 71.
É preciso ter em conta que a burguesia fundiária dos Campos Gerais e a burguesia
industrial e comerciante do litoral e de Curitiba souberam transformar-se ao longo
do século [XIX]. Transformaram-se, principalmente a primeira, em burguesias
letradas. Com o correr do século, cada vez mais elas eram constituídas e
politicamente representadas por bacharéis formados em São Paulo, Pernambuco ou
até na Europa. Foram justamente os filhos instruídos de fazendeiros que
monopolizaram os empregos públicos e os cargos de representação política da
província. Por conseguinte, mesmo que a vivência de fazendeiro dos Campos Gerais
ou de dono de engenho de mate seja crucial em sua percepção das coisas, não é
possível desprezar a formação intelectual de perfil cosmopolita dessas pessoas.17
17
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Op. Cit. p. 61.
18
BORBA, Oney Barbosa. Op. Cit. p. 45.
Carmencita Ditzel e Robert Lamb situam nas décadas de 1830 e 1840 o início da
alfabetização em Castro, o que nos leva a concluir que a partir desse período já havia
moradores jovens, nascidos ou não na região, leitores em potencial.
Podemos supor que nos pequenos pontos urbanos certos costumes estivessem já
descaracterizados, desde que se considere a instrução das letras como indicativo de
uma possível renovação cultural: ainda que em 1820 a instrução pública fosse
"absolutamente inexistente" em Castro, a partir de 1830 a cidade passou a contar
com um professor para os meninos, sendo em 1846 ali estabelecida uma escola para
meninas19.
Enfim, ter referência sobre o nível de instrução dos castrenses nos ajudará na
compreensão dessa sociedade, e sua aproximação com a história da palavra impressa.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
CARDOSO, Jayme Antônio & WESTPHALEN, Cecília Maria. Atlas histórico do Paraná.
2ª Edição. Curitiba: Editora Livraria do Chain, 1986.
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos
Gerais. Dicionário Histórico e Geográfico dos Campos Gerais. Disponível em:
http://www.uepg.br/dicion/verbetes/a-m/campos_gerais_ocupacao.htm. Acesso em: 18-05-
2012.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004.
NOVACKI, Luís Henrique. “Como se liberto nascesse de ventre livre”: escravos libertos na
Freguesia da Palmeira/PR (1831-1848). Revista Vernáculo, n° 3, 2000. Documento em
formato pdf. Acesso em: 20-05-2012.
PEREIRA. Magnus Roberto de Mello. Dos escravos e outros não-morigerados. In: Semeando
iras rumo ao progresso: (ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense, 1829
– 1889). Curitiba: Ed. UFPR, 1996.
19
DITZEL, Carmencita de Holleben Mello; LAMB, Roberto Edgar. Ocupação dos Campos Gerais.
Dicionário Histórico e Geográfico dos Campos Gerais. Disponível em: http://www.uepg.br/dicion/verbetes/a-
m/campos_gerais_ocupacao.htm. Acesso em: 18-05-2012.
PINTO, Elizabete Alves; GONÇALVES, Maria Aparecida Cezar. Ponta Grossa – um século
de vida (1823-1923). Ponta Grossa: Kugler Artes Gráficas Ltda., 1983.
2
Ibid, p. 63.
3
Ibid, p. 63.
4
HUNT, Lynn. História, cultura e texto. In: A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São
Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 2.
formas narrativas provocaram uma expansão que ia além das limitações impostas pela história
tradicional causando conflitos, pois ameaçava aqueles que procuravam defender a disciplina
dentro de seus padrões tradicionais. Sobre este conflito de interesses Lloyd Kramer afirma nos
anos 90:
Ainda que, com mais frequência, essa batalha seja travada entre as
tropas anônimas da academias (editores, pessoas que decidem quais
serão os artigos publicados nas revistas especializadas, grupos de
pesquisa departamental, seminários de pós-graduação) nos últimos
anos as forças literárias arregimentaram-se claramente ao redor da
proeminente liderança de Hayden White e Dominick Lacapra. 5
Lloyd Kramer faz uma abordagem sobre a crítica literária dos anos 90,
enfatizando semelhanças entre Hyden White e Dominick Lacapra. Ambos possuíam um
desejo comum: “examinar e ampliar as definições tradicionais de história e metodologia
6
histórica” Neste intento tanto White quanto Lacapra passam a questionar as fronteiras que
separam a história da literatura e demais disciplinas. Passam a contestar o que percebem como
tendências “dominantes da historiografia e a focalizarem o papel decisivo da linguagem em
7
nossas descrições e concepções da realidade histórica.” Para os dois autores uma atenção
maior à crítica literária tornaria os historiadores mais inovadores.
Na década de 1970, novas gerações de historiadores franceses ampliaram o
arsenal de fontes e abordagens da história. Neste período Jacques Le Goff e Pierre Nora
lançam a obra Nova História: problemas, objetos e abordagens, onde:
5
KRAMER, Lloyd. Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio de Hayden White e Dominick Lacapra.
In: HUNT, Lynn. A Nova História Cultural. Tradução: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes,
1992. p. 132.
6
Ibid., p. 134.
7
Ibid., p. 134.
8
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 64.
9
CAMILOTTI, Virgínia; NAXARA, Márcia Regina C. História e Literatura: fontes literárias na produção
historiográfica recente no Brasil. In: História: Questões e Debates – Revista do programa de pós graduação em
história UFPR, N. 50. Curitiba, jan./jun. 2009. p. 20.
10
Ibid, p. 28.
11
Ibid, p. 40.
12
Ibid, p. 44.
13
SEVCENKO, Nicolau. Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.299.
14
Ibid, p. 299.
15
Ibid, p. 299.
16
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 75.
sociedade inserida em seu tempo, nos mostra a história preenchida por elementos
significantes para a sociedade da qual se refere.
17
BLOCH, March. A história, os homens e o tempo. In: Apologia da História ou O Ofício do Historiador. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p. 54.
18
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1973. p. 38.
19
Ibid, p. 38.
20
FERREIRA, Antonio Celso. 2003. op. cit., p. 77.
21
Ibid, p. 81.
de estudo e se tenha em conta sua natureza: política, econômica, científica, religiosa, artística,
técnica e outra.” 22
Por mais que buscamos por teorias que nos levem a utilizar de maneira
coerente a fonte literária, é apenas do contato com a obra que o próprio pesquisador
desenvolve sua própria metodologia de trabalho buscando as respostas às indagações que
realiza no início de sua empreitada científica.
BIBLIOGRAFIA
FERREIRA, Antonio Celso. A fonte fecunda. In: PINSKY, Carla; LUCA, Tânia (orgs.). O
historiador e suas fontes. São Paulo: contexto, 2009.
HUNT, Lynn. História, cultura e texto. In: _________ A Nova História Cultural. Tradução:
Jefferson Luiz Camargo.São Paulo: Martins Fontes, 1992.
22
Ibid, p. 81.
Como Raul Seixas construiu a si próprio enquanto criador de uma Ópera Trágica? Sua
música é a sua impressão digital na terra. Um monumento a um espírito tornado livre através
da afirmação de sua alegria a partir da dor que emana dos abismos da existência. Interessa
aqui vislumbrar a obra de arte feita por nosso herói a partir de sua própria vida.
A escultura de si faz sentido. O que querem esses artistas é inscrever o querer dentro
do organismo, submeter o corpo à linha de uma vontade experimental. [...].
Todo o mecanismo social que frustra o homem que tentou anunciar o Novo Aeon às
pessoas, mas só encontrou ouvidos e olhos velhos, incapazes de enxergar os escancarados
sinais de mudança nos tempos, tendem a se tornar tristeza e pessimismo.
[...] Sentia, tocava, compunha, bebia, fumava maconha, cheirava cocaína, cultuava a
droga. Abandonara e esposa e a filha.
O culto ao não-rotulado.
Estou emaconhado noite adentro pensando no que sinto por Ti, e por ti beleza total
que minha mente se abre sem cansaço sob o efeito da cocaína com que te amo! Ó
inocente impiedoso!
Sinceramente, não falo com revolta nem rancor, mas não gosto que me classifiquem;
não me julgo classificável para ser rotulado em prateleiras ao alcance de quem me
lança mão. Não é assim tão fácil, aliás ninguém é fácil. Nem eu.
Eu não sou de nada, minha gente, não estou em nada e por nada e ao mesmo tempo
sou. Tudo, em tudo e por tudo. Incoerente e arbitrário ás vezes, muitas vezes,
milhões de vezes, todo o tempo. Sou apenas uma mistura confusa de todas as
informações que recebi com o coração batendo assustado, hoje fumando maconha
amanhã apareço chupando pirulito. Eu não sei quem sou nem quero que me
definam. Não me perguntem onde estará metido este Raul que eu não sei responder.
Não há respostas, pois não há perguntas. Senão fica assim:
[...]
Não, não estou ali ou aqui, rótulos prontos para serem usados.
Assim, vários são os usos e até eventuais apoios doutrinários que se podem extrair de
um pensamento livre, mas isso lhe amputa a única essência que tem validade diante de tal
pensamento: a essência da não essência do devir. Se quiséssemos utilizar o pensamento de
Raul ou de Zaratustra como base de ação para as nossas vidas, seria preciso ter em mente o
grande ensinamento de ambos: Torne-se você mesmo. “Cada um de nós é um universo”
(1976). Assim como Zaratustra despede todos os crentes por terem as crenças tão pouco valor,
também o Raul diz: “estou seguindo meu caminho, não peço que me sigam, cada um faz o
que pode, os homens passam e as músicas ficam.” (A Pedra do Gênesis – 1988). Diante de
uma pergunta de uma repórter sobre qual era a ideologia pregada por Raul Seixas ele
respondeu que era “Raulseixismo”. Utilizando a máxima nietzschiana de que o ultimo cristão
morreu na cruz, podemos dizer que o ultimo e único raulseixista morreu no meio de um copo
de whisky em 1989 em São Paulo.
Vamos agora a um diálogo entre Raul Seixas e Zaratustra. “[...] ele é, em primeiro
lugar e sobretudo, um músico filósofo, músico levado à meditação filosófica por uma reflexão
incessante sobre a natureza do júbilo musical. [...]” (2000, pg. 46). A citação bem poderia
estar presente em uma das biografias de Raul Seixas, compositor da “obra de si”. No entanto,
quem aqui fala é Clement Rosset, no livro “Alegria Força Maior”, referindo-se ao criador de
Zaratustra, Nietzsche. É importante destacar a presença marcante da carregada da filosofia
pessimista de Shopenhauer no caminho de ambos. Tal presença é fundamental pra se chegar a
mais jubilosa forma de alegria. Aquela que é provada pela dor, e ainda subsiste mesmo em
meio a ela. A dor, veículo necessário à criação, produz a alegria do indivíduo em sua obra.
Ao tentar “dizer nada”, a quem não queria ouvir nada, com muito bom humor,
Raulzito perdeu seu emprego. Mas este revés, longe de apontar pra um fracasso, trouxe antes
a tona um personagem que teria melhor sorte que Raulzito. Surgia o Raul Seixas querendo
cantar seu Rock n’ Roll. Ele inscreveu e foi aprovado com duas canções para o Festival
internacional da canção, da TV Globo. Em “Let me Sing My Rock n’ Roll”, o baiano que
cresceu ouvindo Luiz Gonzaga pelas estradas de ferro, tem a ousadia de juntar o Baião, ritmo
de sua infância, (de onde ele retira todos sabores que o levaram a sonhar) com o Rock, que
fez sua cabeça, e podia carregar toda a sua vontade de ser filósofo. Há nessa canção a
afirmação da verdade livre de detentores. A alegria trágica de poder criar suas verdades e
transformar abismos e desilusões em alegrias está toda aí. Curiosa também é referência a frase
dita por John Lennon, logo após o anuncio do fim dos Beatles por Paul McCartney: “O sonho
terminou”. Se o sonho acabou, é sinal que começa o tempo da realização. Foi-se o tempo de
sonhar. Agora Raul Seixas põe em prática, e traz pra vida o sonho de ser um Rock Star.
Aquele deus dançante que Zaratustra seria capaz de adorar, dança ao som do Rock, ritmo
Também essa obra redime; não apenas Wagner é um “redentor.” Com ela
despedimo-nos do norte úmido, [...] tem sobretudo o que é da zona quente, a secura
do ar, a limpidezza no ar. Em todo aspecto o clima muda. Aqui fala uma outra
sensualidade, uma outra sensibilidade, uma outra serena alegria. Essa música é
alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana [...].
(NIETZSCHE, O Caso Wagner, p. 12-13, 1999).
Talvez Zaratustra, quando procurava um “sul mais ao sul”, estava mirando algum
lugar ainda abaixo da linha do Equador. Nosso Zaratustra Raul Seixas é tropical, porque é
baiano, porque produz no Rio de Janeiro e em São Paulo. Se Zaratustra buscava o calor alegre
do sul, o Brasil tropical seria um espaço ideal para o desenvolvimento de tal tragédia.
Podemos dizer que na Bahia de Raul Seixas, deus podia dançar.
A primeira, sem refrão e bem curtida no pessimismo, decepcionado com tudo o que
conseguiu com facilidade, querendo fugir do tédio pela “sombra sonora de um disco voador”
não ofusca a afirmação da transitoriedade na segunda. A energia de Raul nesta época estava
voltada para a superação do pessimismo Schopenhaueriano:
Você já não sabe mais quem é quem. Tá aquela coisa de cabeludo, tá todo mundo
estereotipado. Por isso é que eu faço questão de dizer que eu não sou da turma pop,
que eu não tô comendo alpiste pop. Eu sei lá, eu acho que tá todo mundo de cabeça
baixa, tá todo mundo Schopenhauer, todo mundo num pessimismo incrível. [...] Eu
sou um cara muito otimista nesse ponto. Sei lá, eu não sei se é a minha
correspondência com o Planeta, vejo a coisa em termos globais. E tá realmente
acontecendo uma coisa fantástica, que é essa certeza e conscientização de que você
deve ser um rato, transar de rato pra entrar no buraco do rato, vestir gravata e paletó
para ser amigo do rato. E depois as coisas acontecem. (SEIXAS, apud PASSOS,
2003, p.95).
O álbum que trazia como título o grito de Tarzã “Krig-ha-bandolo”, lançado em 1973,
traz depois de uma introdução com a gravação do menino Raul Seixas imitando Elvis Presley,
um Candomblé. Apesar de não ser nada agradável para um público que ouvia Rock, a faixa
está ali, abrindo o disco com o ritmo da macumba, que o Mick Jagger dos Rolling Stones
disse anteriormente ao Raul num destes encontros inusitados, que era um ritmo incrível, que
carregava uma sonoridade original do Brasil. Assim o baiano Raul ousa mais uma vez. “A
mosca na sopa” irritantemente acompanhada por palmas, instrumentos de percussão e as
“senhoras baianas” aclimatando um terreiro de macumba, traz um Rock alucinante
irrompendo em meio ao ritmo africano. A grande mosca chegava “observando e abusando”,
perturbando o sono dos que fechavam os olhos. Se os Kavernistas zombavam e riam da
pobreza cultural dos acomodados, agora o Raul Seixas tinha uma missão. Vencer pelo
cansaço. Incomodar aqueles que fechavam os ouvidos. Não é possível escapar do zumbido da
mosca. Destruir uma não acabaria com as outras moscas que viriam perturbar o sono tranquilo
dos guardiões do velho aeon.
Temos aqui o anúncio do Novo Aeon da Sociedade Alternativa, que o nosso herói
chama de “A lei do forte – essa é a nossa lei e alegria do mundo”. Gita marca aquela
necessidade de se dirigir aos homens e “gritar e cantar rock e demonstrar os teoremas da
vida...” fugindo dos que ficam vomitando verdades. Necessidade semelhante a do Zaratustra,
que tinha sede de falar aos homens. O solitário em busca de companheiros, pra realizar a ideia
nova, que precisa de outras cabeças para ser visível. “Sonho que se sonha só: é só um sonho
que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade”.
Zaratustra diverte-se ao pensar que chamariam seu super-homem de diabo, e Raul nos
apresenta o Rock do Diabo, creditando a este ultimo a paternidade do Rock. Não é o diabo da
Igreja, que anda a possuir fiéis infiéis, mas o diabo que dá os toques, e por que não dizer o
diabo de Zaratustra, o super-homem, utilizando uma mascara mística, vista somente pelos
olhos de quem só sabe ler o mundo a partir de seus dogmas absolutistas de fé.
A maçã marca o amor livre de um casal que vai além dos valores milenarmente
estabelecidos da união formal do casamento. Aqui o homem sofre ao se livrar das amarras de
tudo o que aprendeu, mas entende que só na liberdade pode existir o amor. Amor Fati,
entregue às vontades que surgem no decorrer dos dias. Raul Seixas nestas três primeiras
faixas opera uma transvaloração dos valores, mas guarda pra quarta faixa o louvor ao sagrado
egoísmo, que delimita as fronteiras universais de cada indivíduo. Se Schopenhauer ditava o
rítimo com sua pregação do “Nada Infinito” aqui Raul atravessa esta ponte. Se a grande força
motriz da filosofia musical de Nietzsche foi a afirmação da Alegria em meio às dores de uma
existência trágica, não seria exagerado dizer o mesmo da música filosófica de Raul Seixas.
“Sempre avante no nada infinito” segue nosso herói trágico, armado com sua guitarra em
punho, de onde propaga, junto com sua voz, o seu Rock n’ Roll da alegria e do privilégio
existencial, mesmo quando sente-se em meio ao “nada”.
Aqui, embora ainda exista alguma suspeita de niilismo, Raul diz em “A verdade sobre
a Nostalgia” que “Atrás da curva perigosa eu sei que existe, alguma coisa nova mais vibrante
e menos triste”. Fazendo aquilo que gosta, ele abre mão de se afinar ao discurso antigo do
rock, que se tornou nos anos 70 alvo de um saudosismo paralisante. Assim o antes saudosista
Raul, corta o cabelo e faz apelo ao abandono da nostalgia em favor do “sentimento dos 70”.
“Right now the sun doesn't shine, he´s loaded on wine. Though I can laugh in the
storm, bacause I was born when the sun used to shine in June.” (Bem agora que o sol não
brilha, ele está encharcado de vinho. Embora eu possa rir em meio a tempestade, porque eu
nasci quando o sol costumava brilhar em junho).
Mas o gran finale do Novo Aeon está justamente na ultima faixa, a música homônima
ao disco, já citada no segundo ato.
Além do bem e do mal, a dança do bebê traz a tona a sociedade desprovida da culpa.
Não há nada que dê base a punição de algo que não seja você mesmo. A busca de direitos
aqui, na contramão dos direitos universais, calcados na igualdade dos homens, é antes a busca
dos direitos individuais, que só pode ser possível numa sociedade que respeite os inúmeros
caminhos passiveis de ser percorridos por cada ser humano de maneira diferente, posto que
todas as pessoas são diferentes.
A música o Homem (Eu Nasci há dez mil anos atrás, 1976), traz o indivíduo que está
decidido a voltar, no momento de partir, produzimos para a Estação Raul um intertexto com a
filosofia do eterno retorno de Nietzsche. Nesta canção encontramos um Raul que quer ser
estrela, quer estar vivo para ver o nascer do sol. Toda a dor escondida no peito pede
passagem. É a criação fazendo surgir uma nova luz, que ofusca as já falidas e obscuras luzes
antigas. É justamente aí, no sentimento de dor, que brota a tempestade que varre as ruas a
frente dos caminhos do Zaratustra tropical que segue seu caminho a entoar seu canto torto.
Todo o seu tesouro está na sua obra, que é tudo o que lhe resta na imensa festa da existência.
“O dia da Saudade” (Eu Nasci há dez mil anos atrás, 1976), com o Raul inventando
um feriado e simulando comicamente um choro no final da faixa, deixam uma imagem bem
humorada e alegre. Não uma alegria ingênua. Uma alegria fina, curtida na dor de quem pensa.
Na dor de quem sabe se diferenciar dos outros, e encarar o solitário encontro consigo mesmo.
O herói alegre que tal qual o Zaratustra de Nietzsche conversa com o sol ao
amanhecer, no disco “Raul Seixas”, se depara também com os abismos dionisíacos do
absurdo, responde ao pessimismo tentador do “espírito de gravidade” com o riso eufórico: “E
eu guardo cada pedacinho de mim Pra mim mesmo / Rindo louco, louco de euforia... Eu e o
coração, companheiros de absurdos no noturno no soturno. No entanto, entretanto e portanto...
Bom dia Sol” (1983). Zaratustra, que começa sua jornada trágica falando ao sol, afirma de
forma semelhante sua alegria: “E, quando vi o meu Diabo, achei-o sério, metódico, profundo,
solene: era o espírito de gravidade - a causa pela qual todas as coisas caem. Não é com a Ira
que se mata, mas com o riso. Eia, pois, vamos matar o espírito de gravidade!” (NIETZSCHE,
1998, pg. 67)
No mesmo disco, que leva o nome do nosso protagonista, ele diz: “E aquela coisa que eu
sempre tanto procurei, é o verdadeiro sentido da vida: Abandonar o que aprendi - parar de
sofrer. Viver é ser feliz e nada mais...”. Aí está o objetivo simples e direto do homem alegre.
Utilizar o “egoísmo sadio” de Max Stirner em direção a si mesmo, afim de chegar na
felicidade, e nada mais.
“Eu tenho uma viola, que canta assim... Minha dor ela consola [...].” A música
sertaneja no repertório do roqueiro, que busca o consolo da dor com a música, culmina na
alegria que evita o choro: “Canta a minha alegria, canta para eu não chorar. Entrarei no céu
contigo, quando minha hora chegar.” (Abre-te Sesamo, 1980). O herói trágico não nega a dor
e o sofrimento, antes usa todas estas forças que derrubam os niilistas na mais profunda
tristeza, num objeto de afirmação jubilosa de sua alegria.
REFERÊNCIAS
1974- Gita
BIBLIOGRAFIA
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2008.
___________. Assim Falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
___________. O Caso Wagner: um problema para músicos. Tradução Paulo César de
Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ONFRAY, Michel. A Escultura de Si. Tradução Mauro Pinheiro. Rio de Janeiro: Rocco,
1995.
PASSOS, Sylvio. Raul Seixas por ele mesmo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
ROSSET, Clement, Alegria Força Maior. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2000.
SEIXAS, Raul, O Baú do Raul. (Org. Ap. Tárik de Souza) São Paulo: Editora Globo, 1996.
...
Detendo-se naquilo que propôs como impensado na História, e orientado por uma
série de discussões antecedentes relativas à prática historiográfica, François Hartog procurou
pensar a instituição dessa disciplina retirando determinadas conceituações essenciais a essa
espécie de conhecimento de sua zona de conforto, lugar no qual pareciam ser naturalizados e
instrumentalizados sem ponderação e autocrítica. Nos artigos Regime de Historicidade e
Tempo e Patrimônio, o historiador procurou analisar como diferentes concepções de Tempo
histórico pareciam direcionar procedimentos divergentes na prática historiográfica e
influenciar diferentes culturas sociais relativas ao patrimônio considerado histórico.
Assumindo alguns problemas anteriores1, foi no reconhecimento e crítica a uma dita
despreocupação com essa categoria que considerava essencial ao fazer histórico – o Tempo –
que o historiador pensou ter encontrado chaves possíveis para o entendimento de algumas
similaridades sensíveis em variadas propostas de produção historiográfica ao longo da história
dessa disciplina, esperando poder propor alguns encaminhamentos analíticos àquilo que
considerava impensado, ou pelo menos não-dito, nas diferentes práticas historiográficas.
1
Como discussões antes manejadas por Walter Benjamin, Braudel e Koselleck (HARTOG, 1996 ; 2006)
2
Não irei considerar todas as formas de tempo ou experiência temporal, mas apenas aquelas que pertencem à
tradição do saber, mais precisamente, os modos por que se conectam presente, futuro e passado na escrita da
história. Estas configurações intelectuais compõem apenas uma camada nas relações complexas e intrincadas
para com o tempo mantidas por toda sociedade a cada momento, uma trama percorrendo a tapeçaria.
(HARTOG, 1996: 95)
3
Da mesma maneira, poderíamos comparar esse momento de ruptura acadêmica à análise de Max Weber
daquilo que chamou de processo de desencantamento do mundo, que teria se iniciado em finas do século XVIII e
início do XIX e se intensificado no século XX. Nesse sentido, julgamos que o homem parecia perder
gradualmente sua predisposição divina, religiosa ou/e ideológica, transformando sua visão do mundo de um
organismo ou máquina com ajustes infalíveis, para um universo de indeterminações e políticas mundanas.
dominância ou, para usar de bom tom, culminância do fazer historiográfico em relação aos
outros dois tempos (HARTOG, 1996: 107). Consequência disso, também poderia ter sido o
surgimento de uma noção da existência de variados tempos históricos que não apenas um
passado, um presente e um futuro, uma vez que aquela ordenação temporal unívoca – aquela
da marcha rumo ao progresso, medida em estágios e escalas – parecia gradualmente perder
sua credibilidade e dar espaço a uma consciência histórica sobre a possibilidade de
convivência entre vários passados, presentes e futuros – uma vez que a História passaria a ser
uma questão de interpretação e ordenação sobre os fatos baseados e problematizados num
presente específico, numa situação institucional e pessoal do historiador, de onde partiria boa
parte da demanda analítica e dos direcionamentos (porque não emocionais?) do historiador e
seu trabalho de reconstituição do passado.
Localizando as discussões no cenário acadêmico, Hartog inicia seu breve histórico de
inclusão do presente como consciência crítica e enquanto categoria fundamental para o estudo
da História comentando a respeito das intenções de Walter Benjamin de elaborar um novo
conceito de História que se distanciasse do regime moderno de historicidade e admitisse
descontinuidades no Tempo – tanto na ordem temporal das narrativas historiográficas, quanto
na maneira com que as pessoas pensam e pensaram o passado, o presente e o futuro. Ao
inserir o presente e reconhecer as implicações de gênio e de instituição do historiador em sua
empreitada historiográfica – como também faria Marc Bloch e em procedência os Annalles –,
Benjamin trabalharia a prática historiográfica como rememoração, um ato de recordar o
passado segundo as necessidades e questionamentos feitos no presente. Como comenta
Hartog, a imagem que melhor expressa esta operação é o raio de um relâmpago: uma
iluminação recíproca do passado e do presente, de um momento do presente e um do
passado, apenas por um segundo (1996: 104), operação em que se olha no passado através de
considerações de seu futuro (ou o presente do historiador).
Outro exemplo de re-elaboração da noção de temporalidade citado pelo historiador
teria sido o de Braudel ao definir a História como a dialética de diferentes ritmos e tipos de
duração (IDEM), tendo o conhecimento desta disciplina a função de perscrutar a convivência
desses tempos e os diálogos entre esses ritmos numa sociedade e cultura histórica (ROCHA,
1995: 254-246).
Entretanto, segundo a análise de Hartog, Benjamin e Braudel não teriam dado o
“passo” definitivo para encerrar o regime moderno de historicidade, sendo ainda exemplos do
longo processo de ruptura para com ele. Assim, os questionamentos de Hartog a respeito do
tratamento historiográfico dado às diferentes temporalidades não perderia seu fôlego, e daria
continuidade à sua problemática perguntando-se sobre a possibilidade de se considerar e
analisar os tempos históricos sem a tirania de um momento sobre o outro – pois considera que
mesmo Benjamin e Braudel ainda pareciam fazer do passado prisioneiro do presente, um
presente que não raras vezes assumia o papel de futuro na análise historiográfica. No sentido
desses comentários, e já reconhecendo uma continuidade que o regime moderno legaria em
parte ao núcleo do regime contemporâneo de historicidade, além de rememorar a história e
perscrutar as estruturas de cada sociedade histórica nos diferentes ritmos e níveis de
tempo/duração, a tarefa da historiografia parecia se tornar não outra senão a de tornar o
passado uma “coisa” relevante para o presente/futuro (HARTOG, 1996: 105).
A noção de regime contemporâneo de historicidade, assim como as outras duas
categorias, trata-se mais de colocações analíticas para se pensar as noções de Tempo e
historicidade compartilhada, em algum grau, nas perspectivas das práticas historiográficas de
seu momento referente, do que julgamentos definidos. Entretanto, diferente dos outros dois
regimes cujos momentos da experiência histórica, na tese de Hartog, já teriam se finalizado, a
experiência histórica da contemporaneidade ainda estaria se determinando e reformulando no
campo da disciplina da História no momento em que escreve suas considerações sobre ela.
Trata-se, portanto, mais de perguntas lançadas sobre o fazer historiográfico à atualidade do
que respostas definidas, embora a própria noção de regime de historicidade seja uma espécie
de instrumento analítico formulado por Hartog para tentar dar conta dessa sua problemática.
Em seu artigo Tempo e Patrimônio, Hartog procura pensar o problema da
temporalidade na prática historiográfica contemporânea considerando uma redefinição das
noções de “memória” e “patrimônio” enquanto sintomas de um novo regime de historicidade
(2006: 265). Segundo o autor, grande parte de suas discussões e elaborações a respeito desse
regime deram-se ao refletir sobre a situação da Alemanha após 1989, com a queda do Muro
de Berlim e a reunificação entre o setor ocidental e o oriental 4. Com a queda desse muro do
tempo (2006: 264), esses dois setores separados por quase quarenta anos e até então sob
orientações políticas, sociais e culturais diferentes, teriam sido “obrigados” a conviver com
pelo menos duas noções de temporalidade (ou História) diferentes advindas da experiência
cultural de cada lado, ao se proporem uma experiência de reunificação nacional e
4
Nota-se que o autor determina mesmo essa data, 1989, como marca da ruína do regime moderno de
historicidade (cuja duração teria sido de 1789-1989) e início do regime contemporâneo.
Essa nova noção de patrimônio e de memória seria mesmo, segundo o historiador, a maneira
da atualidade de viver e de lidar com a ruptura desse regime moderno de historicidade (2006:
272), uma espécie de apólice de seguro contra um futuro (1996: 108) que não se espera ser
mais tão promissor, ao mesmo tempo em que sugere uma vontade de criação de identidade e
reconhecimento de pequenos grupos nesse cenário “pós-moderno” (2006: 268).
Imerso nesse mesmo presente instável, a atitude historiográfica preconizada – e já
instrumentalizada na noção de regimes de historicidade – por Hartog ao investigador da
história cultural que lide igualmente com essa perspectiva de passado descontínuo e
imprevisível (1996: 119), seria justamente a de questionar suas fontes e sujeitos históricos em
busca de compreender e admitir, enquanto consciência analítica para se inserir determinada
manifestação cultural (individual ou coletiva) em um contexto, suas experiências históricas
em relação ao Tempo histórico e, assim, ter o cuidado analítico de abstrair as expectativas a
respeito do passado, presente e futuro desse sujeito histórico enquanto categoria de apreciação
historiográfica crítica. Dessa maneira, Hartog julga conseguir criar lugares e espaços
reservados às várias temporalidades que podem estar presentes em uma fonte histórica
interpretável, e não apenas uma noção de Tempo histórico narrativo anterior ao objeto de
estudo. Como comenta Hartog a respeito dessas perspectivas, essa noção de experiência e
expectativa teria o intento de elaborar uma semântica dos tempos históricos através de
considerações meta-históricas, levando em consideração como cada presente articula suas
noções de passado e futuro, lidando com um “horizonte de espera” e dando à noção de regime
de historicidade o intento de iluminar modos de relação dos “tempos possíveis” (HARTOG,
2006: 263).
...
Em nossa perspectiva, as respostas que alguns historiadores e museólogos procuraram
dar ao problema da utilidade ou relevância dos museus na atualidade e da pertinência da
narratividade dessas instituições – ou a escrita da história através do uso de objetos materiais
– no cenário contemporâneo de crítica às concepções modernas de História ligadas às grandes
narrativas unívocas, vão ao encontro das considerações a respeito das noções de
temporalidade na historiografia contemporânea descritas acima, servindo mesmo para
exemplificá-las, tanto como sintoma da emersão daquela necessidade de autoconsciência
histórica “adquirida” pelo presente, como possíveis respostas aos questionamentos sobre o
tratamento historiográfico dado ao Tempo.
dinâmica na vida das sociedades (1993: 20), sendo o objeto histórico mais de ordem
ideológica – por parte do pesquisador que procura reconstituir sua biografia cultural – do que
cognitiva. Nesse sentido, em um museu histórico orientando segundo essa acepção crítica, o
objeto material teria suas funções e valores práticos e simbólicos (anteriores à sua admissão
em uma coleção) drenados e reciclados pelo pesquisador e reorientados para assumir a função
de significar o tempo, e não exemplificar o tempo, tornando-se um objeto-portador-de-
sentido, um semióforo (1993: 19).
A partir dessa compreensão, Menezes conclama que seria tarefa do museólogo
comunicar ao público de uma exposição histórica – enquanto laboratório da história – a
respeito dessa historicidade do objeto material e a transformação que este sofre devido ao
Tempo e igualmente devido a sua alteração de contexto – como sua retirada do cotidiano
histórico para uma coleção. Dessa maneira, um ensino crítico da História através dos museus
históricos deveria ter como objetivo revelar o fetiche – ou a costumeira naturalização de
valores sociais – em relação a objetos matérias (1993: 26), procurando incutir no público uma
espécie de autoconsciência a respeito desses processos de atribuição simbólica realizadas
cotidianamente, ao mesmo tempo em que expõe o cuidado de não considerar estes objetos e
suas atribuições simbólicas enquanto representações de processos sociais dinâmicos, mas sim
como vetores desses fenômenos (1993: 39).
Nesse sentido, Ramos vem concordar com essas perspectivas ao propor uma
necessidade de preparo cognitivo e educacional dirigida ao público no intuito de ajudá-los a
perceber a historicidade dos objetos e os sentidos expostos numa narração museológica, feito
não somente através da própria exposição, mas também de uma pedagogia do objeto. Através
de um diálogo com Paulo Freire, teorizou a respeito daquilo que chamou de objeto gerador,
sendo ele um trabalho pedagógico que partiria de objetos materiais do cotidiano (ou presente)
do público, procurando dialogar sobre seus usos práticos e simbólicos e suas atribuições em
variados contextos do cotidiano, para depois partir para uma análise similar dos objetos
considerados históricos. Assim, o interesse do museólogo deveria ser o de sensibilizar os
visitantes para uma maior interação com a exposição do museu, despertando-os para uma
multiplicidade do real que pode ser observada não somente através da história dos objetos,
mas da história nos objetos (RAMOS, 2004: 20-21).
...
BIBLIOGRAFIA:
HARTOG, François. Tempo e Patrimônio. (In) Varia Historia. Belo Horizonte: Vol 22, n 36:
p 261-273, jul/dez 2006.
ROCHA, Antonio Penalves. F. Braudel: Tempo histórico e civilização material. (in) Anais do
museu paulista. São Paulo. N. Ser. V3. P 239-249 jan/dez. 1995.
Ao término de 1929, Vingren fez uma viagem aos Estados nordestinos. Ele
visitou uma Conferência em Recife, nos dias 10 a 17 de outubro, realizada
na igreja dirigida pelo irmão Joel Carlson. (VINGREN, 2007, p.154)
Isso começou a causar incômodo entre os pastores brasileiros, pois estes não
participavam das grandes decisões acerca dos rumos da igreja, até porque alguns missionários
suecos, principalmente Vingren já estavam no Sudeste e Sul do Brasil neste momento. Com a
ida de muitos missionários suecos para o eixo Sul-Sudeste, os obreiros nativos estavam
esperançosos quanto a uma maior participação sobre as igrejas do eixo Norte-Nordeste.
Em 1921 houve uma pequena reunião na Vila de São Luiz, localizada no município
de Igarapá-Açu, no Pará, local estratégico de ligação entre a igreja-mãe, em Belém, e os
demais trabalhos edificados na estrada de ferro Belém-Bragança. Nesta reunião participaram
obreiros e pastores nacionais, com a participação de missionários suecos, casos de Samuel
Nyström, e tiveram em pauta questões sobre evangelismo e esclarecimentos bíblicos. Embora,
os obreiros nacionais tenham participado da reunião, esta não passou de um acontecimento
isolado, pois a supervisão sueca em relação aos trabalhos conduzidos por pastores brasileiros
era notável, não permitindo poder de decisão para estes. Além disso, as Conferências
Pentecostais realizadas apenas com a participação dos missionários suecos colocaram ainda
mais o desejo dos obreiros nacionais em participar das reuniões.
Aliás uma fotografia oficial da Convenção de 30, realizada na cidade de Natal, nos
chama a atenção, pois nos remete para uma série de interpretações, dentre elas estas
divergências entre brasileiros e suecos.
Não entrarei em detalhes quanto à análise da fotografia, até porque este não é a
proposta central do trabalho, mas apresento-a para as diversas interpretações acerca do
mesmo. Entretanto, não posso ocultar alguns detalhes desta foto em relação ao momento e ao
ambiente daquele período nas Assembléias de Deus do Brasil. Primeiramente, observa-se que
todos os pastores e obreiros brasileiros estão, ou abaixo ou às margens em relação aos
missionários suecos que estão juntos ao centro. Seria isto uma demonstração da falta de
unidade nesta Convenção? Ou ainda uma demonstração de dissidência em relação aos suecos
por parte dos pastores brasileiros? Ou ainda uma demonstração de superioridade e de
liderança por parte dos missionários suecos e submissão dos pastores brasilerios? Ou ainda a
manifestação da liderança autóctone das Assembléias de Deus no Brasil, com os pastores
brasileiros sendo colocados a frente dos missionários suecos?
Embora, a proposta dos missionários suecos, não incluísse boa parte dos Estados do Norte e
Nordeste, o fato dos pastores brasileiros liderarem algumas igrejas e trabalhos da região já era
um grande feito. Certamente, esta liderança nas outras regiões seriam repassadas aos
brasileiros gradativamente. Mas Gedeon Freire de Alencar nos chama a atenção para uma
situação. Os brasileiros pretendiam assumir os trabalhos do Norte e Nordeste, pois as
principais igrejas da Assembléia de Deus estavam estabelecidas nestes territórios e, além
disso, os brasileiros queriam maior participação nas decisões sobre a igreja, o que vai ao
encontro com a tese sociológica de Francisco Cartaxo Rolim, de que boa parte das conversões
de católicos para o pentecostalismo, era devido a uma maior participação no culto e na igreja,
ou seja, havia uma função a ser exercida, seria um membro ativo na obra pentecostal e não
apenas um mero observador e participante periférico da igreja, como era no catolicismo
(ROLIM, 1985, p. 160-162). O fato é que as principais igrejas, ou segundo Alencar, as fortes
igrejas do Norte e Nordeste ainda permaneceram, em boa parte nas mãos dos missionários
suecos. Fato é que as duas principais igrejas daquela época na região Norte-Nordeste, Belém e
Recife, ficaram sob liderança dos missionários suecos. Vejamos uma tabela, disponibilizada
por Gedeon Freire de Alencar, através de acesso ao Mensageiro da Paz, periódico oficial das
Assembléias de Deus, no ano de 1931:
12 IGREJAS “SÉDE”
14 IGREJAS “SÉDE”
15 IGREJAS “SÉDE”
16 IGREJAS “SÉDE”
Além da igreja de Belém, que era sem dúvida importante na região Norte- Nordeste,
com várias congregações espalhadas, a outra igreja localizada em Recife era de extrema
importância pelo seu tamanho e pelo seu crescimento:
Desse modo, podemos indagar, assim como nos alerta Gedeon Freire de Alencar: será
que estes trabalhos em alguns Estados do Norte-Nordeste foram realmente entregues
totalmente aos brasileiros ou havia uma desconfiança e preocupação por parte dos
missionários suecos. Em relação a esta indagação, há um relato interessante sobre a decisão
Enfim, o que podemos afirmar certamente através do quadro e dos relatos é que a
decisão convencional de 1930 de entregar alguns campos evangelizados nas mãos dos
pastores brasileiros, fez com que boa parte dos missionários que chegavam da Suécia e
principalmente aqueles que já estavam no Brasil trabalhando no eixo Norte- Nordeste,
migrassem para o Sudeste, Sul e posteriormente para o Centro-Oeste do Brasil,
principalmente nas décadas de 30 e 40. Além disso, é relevante a constante participação dos
suecos nas decisões das Assembléias de Deus até meados da década de 1950. Contudo,
observa-se também o respeito que os pastores brasileiros foram conquistando enquanto líderes
nativos da denominação, tornando-se os grandes líderes em meados da década de 1940 e
início da década de 1950. Essa dominação dos pastores nordestinos e nortistas é perceptível
ainda hoje, quando analisamos a vida dos líderes da Convenção Geral das Assembléias de
Deus do Brasil, principalmente na figura do presidente José Wellington Bezerra da Costa,
nordestino e integrante da “velha guarda assembleiana”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALENCAR, Gedeon Freire. Todo poder aos pastores, todo trabalho ao povo, todo louvor a
Deus: Assembléia de Deus- origem, implantação e militância(1911-1946). 2000. Dissertação
(Mestrado Ciência da Religião) Universidade Metodista de São Paulo, São Bernando do
Campo.
BERG, Daniel. Enviado por Deus. 11.ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2008.
DANIEL, Silas. História da Convenção Geral das Assembléias de Deus no Brasil. Rio de
Janeiro: CPAD, 2004.
1
É interessante o fato de este relato ser uma citação, e o autor de tal afirmação não ser mencionado no livro que
o referencia.
Palavras chave: formação docente; espaço liso; espaço estriado; ensino de história.
do ensino que recebem ou que são alvos. Estes são entendidos no espaço liso, caracterizado
pela “ausência” das regras, que implica resistência e descrença para com a instituição. Nas
palavras dos autores:
seu espaço, continua abrindo brechas para os estudantes preservarem os espaços lisos.
Impossível neutralizar ou estrializar este sujeitos em sua completude.
Em meio a esta discussão que intermedeia a relação entre os espaços dos sujeitos no
campo educacional, é fundamental compreender os diferentes sentidos que a educação, o
ensino de História e a formação de professores implicam na atualidade. Este texto busca
mapear a natureza e as implicações dos afrontamentos que caracterizam este universo
relacional. A construção de uma sociedade participativa pautada no respeito à multiplicidade
de manifestações e sentidos é um compromisso que extrapola os espaços formativos e que
sugere novas formas de investimentos de sentidos, de subjetividades, de sensibilidades no
espaço do saber fazer histórico. Naura S. C. Ferreira no artigo Repensando e ressignificando a
gestão democrática da educação na ‘cultura globalizada’ discute com propriedade as
características da contemporaneidade e a necessidade de se pensar e de se ressignificar a
formação de profissionais da educação e da gestão educacional. Segundo a autora:
Neste universo estriado pelo mercado e pelos órgãos promotores das políticas
públicas, a educação e a formação de profissionais da educação aparecem reduzidas ao
economicismo do emprego e da empregabilidade, da eficiência e da eficácia, da
competitividade, da produtividade e consequente entropia da formação humana e da
cidadania (FERREIRA, 2004: 1231). Banaliza-se a realidade concreta, as diferenças, os
espaços lisos constituintes de uma sociedade que atende cada vez mais a qualificações e
capacitações mais elevadas, no entanto, desprovidas do alicerce da ética humana. Por isso:
Ressignificar se torna palavra chave para a educação. Nesse sentido, Naura defende o
investimento em uma gestão democrática que implica na formação de profissionais da
educação fundamentados na ética da cidadania. Cidadania compreendida como soberania e
autoconsciência e não dependência, alienação e subserviência. Cidadania que se dará pelo
conhecimento. Assim:
mundo, uma nova ética humana e solidária. Uma nova ética que seja o
princípio e o fim da gestão democrática da educação comprometida com a
verdadeira formação da cidadania (FERREIRA, 2004: 1242-43).
Para exemplificar esta discussão, toma-se o trabalho do professor Luis Fernando Cerri
Cidade e identidade: região e ensino de história. Neste texto, o autor problematiza a
dimensão espacial no exercício de formação de professores “aprendizes”, o que implica um
olhar para a própria identidade. Segundo ele:
indivíduos (CERRI, 2008: 37). Logo, a história local pode mostrar que não é necessário ou
obrigatório que as histórias se encaixem em uma só lógica: pelo contrário, não há uma
lógica comum a todos os eventos nos vários níveis da atividade humana, mas uma
multiplicidade de sentidos em que a história se desenvolve (2008: 40-41).
Sim, a História que se busca “ensinar”, principalmente nas escolas, parece morta.
Estática, distante da realidade dos alunos, objetiva, reducionista. Não emociona, entedia. Não
sensibiliza, desmotiva. Não provoca indignação, aliena. Não aguça reflexões e nem privilegia
a imaginação. O espaço estriado já não atende às perspectivas de formação que a atualidade
exige. E os discentes estão vivos, sensíveis, emotivos, estão à flor da pele. Formados em uma
perspectiva racionalizadora que atende aos interesses de uma sociedade conservadora,
excludente e adestrados ao mundo do trabalho e do consumo.
Como lidar com estas discrepâncias? Será que o futuro da História nas salas de aula
esta determinado apenas a esta perspectiva estriada de ensino? Porque a história reduzida aos
manuais didáticos, em histórias únicas, ainda escamoteia ou desprestigia realidades diversas,
os espaços lisos, opostos ou distantes aos objetivos oficiais? Até que ponto os professores
contribuem para a perpetuação desta realidade educacional? Por outro lado, como superá-la?
Como valorizar a História por sua poética, função social e humanizadora? A valorização dos
saberes e das práticas tradicionais, a referência aos espaços lisos, sensíveis e subjetivos dos
discentes poderiam se constituir em temas de referência para o ensino da História,
contrastando com os conteúdos de conotação científica usualmente utilizada nas salas de
aula?
Ensinar histórias também é uma arte. O professor de História lida com a arte histórica,
com a arte de transmitir histórias, com representações da história. O docente pode ser visto
como um ator que interpreta, que transmite e que provoca questionamentos e sentidos
construídos ao longo do tempo e do espaço. Atua sobre textos, imagens, narrativas, fazendo
uso de estratégias para conduzir os alunos a campos possíveis de interpretações. Um público
diverso e heterogêneo, com dificuldades e perspectivas diversas, seduzidos por um mundo
midiático que direciona seus desejos e sentidos para o imediatismo do presente, sempre
incompleto.
interrogações e sentidos. Afinal, que sentido podem os discentes dar à história se se sentem
fora ou excluídos dela?
Por tudo isso, um ponto fundamental deve ser destacado para se pensar o campo de
formação docente: da necessidade de outra lógica de compreensão para se lidar com os
problemas da educação. A formação de individualidades estanques definidas segundo
modelos racionais e científicos já não se sustenta para a construção da cidadania participativa.
A razão sentimento, ou o investimento nas subjetividades, nas possibilidades de uma
formação plural, múltipla, se mostra um caminho mais do que urgente. Nesse sentido, o
próprio diálogo que se estabelece entre o local e o global também merece ser redefinido,
apoiados no que Deleuze compreende como multiplicidade, que reforça a idéia de um ensino
que invista nas conexões entre as dimensões, na tentativa de aumentar as possibilidades de
conexões com o mundo. O que deve interessar aos professores, como destacam os autores:
São nômades por mais que não se movam, não migrem, são nômades por
manterem um espaço liso que se recusam a abandonar, e que só abandonam
Por mais simples que pareça, não é fácil situar a oposição que se apresenta no campo
de formação docente. O que fica evidenciado desta relação nem sempre harmoniosa entre
sujeitos formadores e formandos, ou seja, entre professores e discentes, é a natureza da
disjunção inclusiva, se pensarmos na fórmula deleuziana. Cabe aos professores formadores
“traduzirem” suas experiências objetivando oportunizar aos discentes formas de autonomia
que lhes transformem em protagonistas. Assim:
REFERÊNCIAS
CERRI, Luis Fernando. “Cidade e identidade. Região e ensino de História”. In: ALEGRO, Regina Célia [et al.].
Temas e questões: para o ensino de História do Paraná. Londrina: EDUEL, 2088. Pp. 27-41. p.39,40.
BEBIABO, Rui. “Sobre a história como poética”. 2000. In: http://ruibebiano.net/docs/hpoetica.pdf Acessado em
13 de junho de 2011. p.02.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.5. Ed. 34, São Paulo,
1997. Pp.157,158.
FERREIRA, Naura Syria Carapeto. “Repensando e ressignificando a gestão democrática da educação na ‘cultura
globalizada’”. In: Educação e Sociedade. Campinas, vol.25, n.89, p.1227-1249, Set./Dez. 2004. p.1236.
PAES, José Machado. “Jovens e cidadania”. In: Sociologia, problemas e práticas. N.49, 2005, pp.53-
70.
Em 1966 foi publicado pela primeira vez o indigesto – por ser crítico e difícil –
livro de Michel Foucault, As palavras e as coisas. Neste enorme sucesso de vendas foram
descritas as regras que alguns conhecimentos empíricos e especulativos compartilharam em
determinados períodos da história, cada um desses conjuntos de regras históricas Foucault
denominou de epistémê. A partir do final do século XVIII, surge a epistémê moderna e com
esta a noção de Homem, o livro se encerra com uma predição: as regras compartilhadas por
certos saberes modernos estão prestes a ruir e, consequentemente, o Homem irá morrer.
Em linhas gerias, Foucault almejou com isso afirmar, em primeiro lugar, que o
nosso conhecimento é determinado historicamente e que não evolui em direção à verdade
absoluta; o que ele já havia demonstrado em relação ao conhecimento sobre a loucura e a
doença em História da loucura e O nascimento da clínica. E, em segundo lugar, que na
modernidade se procurou estabelecer o que é o ser humano em sua essência, para assinalar
tudo o que ele pode conhecer e o que deve fazer para tornar-se o que é na Verdade; nesse
processo, nos tornamos prisioneiros dessa figura confusamente construída, denominada
Homem (FOUCAULT, 1999, p. IX-XXII, 463-473, passim).
Em uma entrevista do final de 1978, Foucault retomou e esclareceu precisamente
o que entende pela "morte do Homem": "Quando falo da morte do homem, quero pôr fim em
tudo o que quer fixar uma regra de produção, um objetivo essencial a essa produção do
homem pelo homem" (FOUCAULT, 2010, p. 325). Para além de todas as confusões e
simplificações que ele gerou na obra – e isso ele admite – a tese defendida com a "morte do
Homem" é que os seres humanos se constituem "em uma série infinita e múltipla de
subjetividades diferentes, que jamais terão fim e que jamais nos colocarão em face de alguma
coisa que seria o homem" (FOUCAULT, 2010, p. 326).
A recepção de sua tese foi péssima ou, como disse Foucault, foi "uma surra por
todos os lados". A profusão das críticas teve como ápice ou forma sintética o debate ácido
entre o autor e Jean-Paul Sartre, ocorrido entre 1966 e 1967, por meio de entrevistas em que
os debatedores nunca ficaram frente a frente. Contra o livro foram levantados, em síntese,
quatro pontos: rejeição da práxis ou, dito de outras formas, inversão da dialética, predomínio
e independência da superestrutura ou do discurso sobre as relações materiais, etc.; acepção
"monolítica" de epistémê, que seria uma unidade soberana que faria todos "pensarem igual";
primazia do sistema sobre os sujeitos, os homens como sonâmbulos das estruturas; e ênfase
na descontinuidade, predomínio da sincronia em detrimento à diacronia, o que produziria um
método a-histórico (SARTRE, 1966; ERIBON, 1990, p. 164-170 & 1996, p. 100-110).
Essas críticas foram "atualizadas" por diferentes intelectuais e acompanharam
toda a trajetória de Foucault, especialmente a noção de que ele nega ao homem a liberdade e a
possibilidade de resistir à dominação. Vejamos alguns exemplos dessa atualização: Lucien
Goldman afirmou, em 1969, que Foucault opera um "estruturalismo não genético", que nega o
sujeito e o "substitui pelas estruturas (linguísticas, mentais, sociais, etc.) e apenas atribui aos
homens e ao seu comportamento o lugar de um papel, de uma função no interior dessas
estruturas que constituem o objetivo final da pesquisa ou da explicação" (GOLDMAN apud
FOUCAULT, 2001, p. 290-291). Mais ou menos uma década depois, Jacques Leonard (entre
outros historiadores) denunciaram que a análise dos procedimentos disciplinares, afirmava a
tese de "sociedade disciplinada" (FOUCAULT, 2006, p. 330). Na mesma época, Edward P.
Thompson estendeu para o pensamento de Foucault, todas as suas críticas ao estruturalismo
de Louis Althusser, o que inclui a noção de indivíduo como trägers das estruturas
(THOMPSON, 1978: 220). Outra década e alguns anos, encontramos esta crítica novamente,
agora na obra A história do estruturalismo de François Dosse, que reúne um sem número de
intelectuais – e um sem número de equívocos – sobre a "pecha" de estruturalistas, apenas para
concluir que todos negam a história e a liberdade do homem (DOSSE, 1994).
Pois bem, contra essas interpretações é preciso retomar alguns pontos do
pensamento de Foucault, sobretudo suas noções de poder, resistência e saberes dominados, a
partir de outras perspectivas. Primeiro, com o auxilio de Paul Veyne, a partir do que o próprio
Foucault afirmou; depois, como suas noções foram utilizadas por alguns historiadores
brasileiros para pensar a resistência escrava e operária no Brasil e, por fim, discutir a "crítica"
produtiva feita por Michel de Certeau as análise de Foucault em Vigiar e Punir.
Desde o período que se convencionou denominar eixo do saber, que circunscreve
os livros publicados na década de 1960, dedicados à análise da constituição dos saberes na
perspectiva arqueológica – em oposição à fenomenologia, ao marxismo e ao existencialismo
–; Foucault sempre admitiu "que o homem toma iniciativas, mas nega que ele faça graças à
presença do logos nele e que suas iniciativas possam desembocar no fim da história ou na
pura verdade" (VEYNE, 2011, p. 185). Isto é, procurou descrever as condições históricas e
concretas (ou a priori histórico) dessas iniciativas, sem julgá-las a partir de um critério
universal de verdade, já que para ele toda a verdade é historicamente constituída.
A relação entre dominação e resistência foi problematizada no eixo do poder,
constituído pelos livros Vigiar e Punir (1975) e A vontade de saber (primeiro volume da
História da sexualidade, publicado em 1976), bem como por artigos, entrevistas e aulas
ministradas no Collège de France na primeira metade da década de 1970 1. Nesse momento,
as análises de Foucault estão saturadas por noções de combate, daí a importância do conceito
de tática, este se refere aos "núcleos" de práticas discursivas e/ou não-discursivas, que
possuem uma polivalência, ou seja, podem assumir diferentes direções. Por exemplo, o
suplício era um instrumento do monarca para demonstrar seu poder e incutir o medo e a
obediência em seus súditos; porém, este ritual era, com alguma frequência, revertido em
revoltas contra as autoridades, ou seja, existia nesses rituais, "que só deveriam mostrar o
poder aterrorizante do príncipe, todo um aspecto de carnaval em que os papéis são invertidos,
os poderes ridicularizados e os criminosos transformados em heróis" (FOUCAULT, 2003, p.
51) 2.
Correlato a esse conceito está o de estratégia, uma forma de racionalidade que dá
uma direção global as táticas, é a escolha de soluções que podem levar à vitória – é preciso
notar que as estratégias podem ser tanto da ordem da dominação quanto da resistência
(FOUCAULT, 1995, p. 247-249). A partir do final do século XVIII, por exemplo, surgiu a
estratégia de pedagogização do sexo da criança: era afirmado que toda a criança é suscetível
1
Os artigos, sobretudo Nietzsche, a genealogia e a história; entrevistas e resumos de aulas mais significativos
desse período foram reunidos por Roberto Machado e publicados no Brasil em 1979, sob o título Microfísica do
poder.
2
Outra forma de reversão dessa técnica de "punição teatralizada" pode ser pensada a partir dos estudos de E. P.
Thompson sobre Rough Music ou Charivari, ver: THOMPSON, Edward Palmer. Rough Music. In Costumes
em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998, pp. 353-405.
a atos sexuais, mas que isso é contra a natureza (um verdadeiro perigo) e devia ser evitado,
isto se manifestou no combate cerrado ao onanismo entre os séculos XVIII e XIX. Pois bem,
esta é uma estratégia global que condiciona e dá suporte às táticas locais de fiscalização dos
filhos pelos pais, dos alunos pelos professores, de instrução dos pais pelos médicos, etc. Em
contrapartida, essas táticas locais dão suporte e condicionam a estratégia de pedagogização do
sexo da criança; a forma e a própria existência da guerra contra o onanismo dependem da
forma e do que é manifestado na fiscalização feita pelos pais, professores, etc. (FOUCAULT,
1998, p. 115-116). Enfim, as táticas e as estratégias se articulam da seguinte forma:
Entre elas, nenhuma descontinuidade, como seria o caso de dois níveis diferentes
(um microscópico e o outro macroscópico); mas, também, nenhuma homogeneidade
(como se um nada mais fosse do que a projeção ampliada ou a miniaturização do
outro); ao contrário, deve-se pensar em duplo condicionamento, de uma estratégia,
através da especificidade das táticas possíveis e, das táticas, pelo invólucro
estratégico que as faz funcionar. (FOUCAULT, 1998, p. 110-111)
O dispositivo tem, portanto, uma função estratégica dominante. Este foi o caso, por
exemplo, da absorção de uma massa de população flutuante que uma economia de
tipo essencialmente mercantilista achava incômoda: existe ai um imperativo
estratégico funcionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco
tornou−se o dispositivo de controle-dominação da loucura, da doença mental, da
neurose. (FOUCAULT, 1979, p. 244)
Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é
o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de
conjunto de suas posições estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido
pela posição dos que são dominados. (FOUCAULT, 2003, p. 26-27)
O que significa que essas relações aprofundam-se dentro da sociedade, que não se
localizam nas relações do Estado com os cidadãos ou na fronteira das classes e que
não se contentam em reproduzir ao nível dos indivíduos, dos corpos, dos gestos e
dos comportamentos, a forma geral da lei ou do governo; que se há continuidade
(realmente elas se articulam bem, nessa forma, de acordo com toda uma série de
complexas engrenagens), não há analogia nem homologia, mas especificidade do
mecanismo e de modalidade. (FOUCAULT, 2003, p. 26-27)
[...] dizer que não pode existir sociedade sem relação de poder não quer dizer nem
que aquelas que estão dadas são necessárias, nem que de qualquer modo o "poder"
constitua, no centro das sociedades, uma fatalidade incontornável; mas que a análise,
a elaboração, a retomada da questão das relações de poder e do "agonismo" entre
relações de poder e intransitividade da liberdade, é uma tarefa política incessante; e
que é exatamente esta tarefa política inerente a toda a existência social.
(FOUCAULT, 1995, p. 246)
"insurreição dos saberes dominados". Este termo significa, por um lado, conteúdos históricos
sepultados pelas análises sistêmicas, por exemplo, as regras e rupturas epistêmicas aplainadas
pela história continua (progressista) da ciência. Por outro lado, os saberes das "pessoas" que
são constantemente desqualificados por possuírem uma formalização insuficiente, por
exemplo, o saber dos prisioneiros divulgado nos anos 70 pelo Grupo de informação prisão
liderado por Foucault. Deste modo, trata-se "de fazer que intervenham saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que
pretenderia filtrá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro,
em nome dos direitos de uma ciência que seria possuída por alguns" (FOUCAULT, 1999: 13),
enfim, fazer com que intervenham contra a manutenção de uma determinada relação de poder.
A partir da segunda metade da década de 1970, temos o que se convencionou
denominar eixo da ética no pensamento foucaultiano. Para alguns intelectuais, como Dosse
(1994, v. 2, p. 376, 382-383, 389), este é o momento em que o sujeito e a liberdade finalmente
são tematizados na trajetória de Foucault, resultado da repercussão psicológica de sua doença
(Aids) e homossexualidade. Muito longe dessa análise psicologizante e, no mínimo,
equivocada; devemos entender que é o momento em que o filósofo estuda as práticas e os
modos como os sujeitos constituem a si mesmos como sujeitos éticos (FOUCAULT, 2010a, p.
9-43). Para retornar uma analogia de Veyne (2011, p. 178-183), Foucault e os sociólogos,
como Pierre Bourdieu ou Max Weber, professam cada um a sua maneira a mesma doutrina, a
saber: "só existe indivíduo socializado". Portanto, é preciso estudar as condições históricas
concretas ou o conjunto de práticas que constituem os sujeitos e que estão disponíveis aos
indivíduos para constituírem a si mesmo ou, ainda, para estabelecerem outras práticas que
confrontam as dominantes e podem, inclusive, substituí-las estabelecendo outras relações de
poder/resistência.
Tudo isso é muito diferente de negar a iniciativa, a resistência dos homens ou sua
liberdade; é antes de tudo demonstrar as diferentes formas de dominação e ampliar as
possibilidades de resistência. Essa perspectiva foi apropriada, por exemplo, pelas
historiadoras brasileiras Luzia Margareth Rago (1985) e Silvia Hunold Lara (1985 & 1988)
que, durante os anos 80, estudaram respectivamente a classe operária na Primeira República e
a escravidão na colônia (1750-1808) 3. Nesta época, a historiografia sobre estes dois temas
3
É importante notar, que Rago (especificamente neste estudo) e Lara não são "historiadoras foucaultianas"; o
que significa que seus trabalhos estão profundamente abastecidos por outras referências teórico-metodológicas,
sobretudo marxistas e por isto ambas afirmam, implícita ou explicitamente, que as relações de produção
sofreu grandes mudanças, estabelecendo forte oposição às teses afirmadas pela historiografia
anterior.
Parte da historiografia marxista sobre o movimento operário tende a analisar as
condições econômicas para explicar a ação política do movimento, por exemplo, um baixo
desenvolvimento industrial explica uma ação pré-política dos operários; o que significa uma
impossibilidade ou recusa de organização do Partido operário e, consequentemente, a
impossibilidade de controlar o Estado e transformar a sociedade. Nesse sentido, os anarquistas
da Primeira República são representados como inconscientes e fadados ao fracasso, este é o
caso de trabalho urbano e conflito social de Boris Fausto (1976).
Para Rago, a microfísica do poder de Foucault – bem como o pensamento de E. P.
Thompson – permite analisar os mecanismos de dominação informais (aqueles que não
operam pela lógica do Partido e do Estado) e, consequentemente, perceber as formas diversas
de resistência e transformação social.
estabelecem o nexo explicativo das outras práticas humanas, princípio refutado por Foucault. Como veremos,
isto não desqualifica nossa tese de que o pensamento de Foucault corrobora profundamente para a percepção da
resistência escrava e operária nestes estudos.
Afirmar que a escravidão foi violenta ou cruel é quase tão inócuo quanto o juízo
moralizante do abolicionista que dizia que a escravidão era má. Se, por um lado, tais
atributos não são exclusivos das sociedades escravistas, por outro, estas
qualificações têm ainda, a desvantagem de insinuar que, nas sociedades
contemporâneas, as estratégias de reprodução das relações desiguais (para usarmos
um termo bastante amplo) não são "violentas". (LARA, 1988, p. 111)
[...] instrumentos da violência ou da ideologia, pode muito bem ser direta, física,
usar a força contra a força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada, pode ser sutil, não
fazer uso de armas nem do terror, e no entanto continuar a ser de ordem física.
(FOUCAULT, 2003, p. 26).
[...] o castigo dos escravos deve ser entendido também como luta. Não apenas a luta
do carrasco contra o condenado, do rei contra o súdito, mas como uma luta entre
saberes diferentes. Há um saber escravo que se pretendia aniquilar com o exercício
do poder senhorial. Os pretos que trabalhavam na Alfândega podiam ser "faltos de
notícia e ignorantes" da lei senhorial, mas sabiam obter coisas para si, tiradas das
mercadorias que transportavam dos navios aos armazéns. (LARA, 1985, p. 237)
Para Lara, a tarefa do historiador é reconstituir esses saberes. Nesse sentido, ela se
afasta de Foucault, pois considera que o filósofo se preocupa muito mais em descrever os
dispositivos de poder, do que os saberes dominados.
Outra análise que converge com este questionamento de Lara, é a de Michel de
Certeau em A invenção do cotidiano (1994), neste livro o autor está preocupado
principalmente com as táticas de consumo (de resistência) em oposição às estratégias globais
(de dominação). Nessa perspectiva, emerge uma análise de Vigiar e punir que coloca algumas
4
Em outro momento, seria preciso descrever como estes limites estão fundados na noção de documento
monumento e nos princípios enunciativos da raridade, exterioridade e acúmulo próprios do método
arqueológico; bem como no princípio genealógico de evitar o "sepultamento" ou a "desqualificação" dos saberes
dominados por meio de análises sistêmicas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ERIBON, Didier. Michel Foucault. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
______. Michel Foucault e seus contemporâneos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
______. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edição Graal, 1998.
______. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8. ed., São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003.
______. Conversa com Michel Foucault. In Ditos e escritos: Repensar a política. v. 6, Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
______. História da sexualidade II: o uso dos prazeres. 3. ed., Rio de Janeiro: Edição Graal,
2010a.
_____. O castigo exemplar dos escravos no Brasil Colonial. In Recordar Foucault. São
Paulo: Brasiliense, 1985, pp. 229-238.
RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: A utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-
1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
SARTRE, Jean Paul. Jean-Paul Sartre répond, L'Arc, Paris, n. 30, 1966. Disponível em
http://www.pileface.com/sollers/IMG/pdf/Sartre_repond_in_Arc.pdf Acesso em 29 outubro
de 2011.
VEYNE, Paul. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
2011.
INTRODUÇÃO
1
Utilização de pasto comum para criação de animais
2
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. São Paulo:
Martins Fontes, 1994.
A leitura é hoje tida como um ato corriqueiro, normal, uma prática que faz parte do dia
a dia de grande parte da população, mas nem sempre foi assim. Em diferentes momentos e
grupos sociais ela assumiu variadas formas, atribuindo-se a ela maior ou menor importância
levando em conta o contexto vivido.4 “Uma sociedade pode existir - existem muitas, de fato -
sem escrever, mas nenhuma sociedade pode existir sem ler”5, afinal ler não significa apenas
decifrar códigos alfabéticos dispostos em uma determinada ordem, tem a ver também com os
significados atribuídos a tudo o que está ao redor. Por isso existem muitos tipos de leitura
possíveis
3
Para mais detalhes sobre isso conf. NERONE, Maria Magdalena. Terras de plantar – terras de criar –
Sistema Faxinal: Rebouças – 1950 -1977. Tese de Doutorado em História, UNESP/Assis, 2000.
4
DARNTON, Robert. História da Leitura. In: BURKE, Peter, org. A escrita da história: novas perspectivas.
São Paulo: Unesp, 1989, p.199-236
5
. MANGUEL, Alberto. . Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
O astrônomo lendo um mapa de estrelas que não existem mais; o arquiteto japonês
lendo a terra sobre a qual será erguida uma casa, de modo a protegê-la das forças
malignas; o zoólogo lendo os rastros de animais na floresta; o jogador lendo os
gestos do parceiro antes de jogar a carta a carta vencedora; a dançarina lendo as
notações do coreógrafo e o público lendo os movimentos da dançarina no palco; o
Tecelão lendo o desenho intrincado de um tapete tendo tecido; o organista lendo
várias linhas musicais simultâneas orquestradas na página; os pais lendo no rosto
do bebê sinais de alegria, medo, admiração; o adivinho chinês lendo as marcas
antigas na carapaça de
uma tartaruga; o amante lendo cegamente o corpo amado à noite, sob os lençóis; o
psiquiatra ajudando os pacientes a ler seus sonhos pertubadores; o pescador
havaiano lendo as correntes do oceano ao mergulhar a mão na água; o agricultor
lendo o tempo no céu - todos eles compartilham com os leitores de livros a arte de
decifrar e traduzir signos. Algumas dessas leituras são coloridas pelo conhecimento
de que a coisa lida foi criada para aquele propósito específico por outros seres
humanos - a notação musical ou os sinais de trânsito, por exemplo - ou pelos deuses,
- o casco da tartaruga, o céu à noite. Outras pertencem ao acaso.6
Em todo caso o papel do leitor é atribuir legibilidade aos signos que encontra, para
então decifrá-los, em outras palavras é preciso antes de tudo conhecer as letras e as
combinações possíveis entre elas para então entender o que elas querem dizer. Por essa razão
o estudo da leitura em uma comunidade que dá grande valor a tradição oral, não cultiva o
hábito de preservar os documentos escritos e onde os moradores em sua maioria são
analfabetos se torna viável.
Ninguém nasce sabendo ler e escrever, mas todos podem adquirir estas habilidades ao
longo da vida. Porém, este é um processo que não ocorre naturalmente, mas culturalmente,
pois o ato de ler demanda todo um processo de aprendizado, pautado, quase sempre, em
técnicas e estratégicas institucionalizadas. E a grande responsável por disseminar a prática da
leitura (e também da escrita) é a escola. É através dela que se inicia o contato com o mundo
das letras. Deve-se levar em conta, no entanto, que o papel da escola não é o de meramente
ensinar a ler, escrever e fazer contas. Ela sempre visou e ainda hoje visa outros propósitos.
O acesso a tais propósitos pode se dar através da análise da legislação brasileira e
paranaense do período e também dos relatos orais de pessoas que vivenciaram tal período.
Para tanto a metodologia da história oral torna-se uma grande aliada, tomando-se, no entanto,
o cuidado de não tratar os relatos como verdades absolutas, uma vez que “levar a sério os
relatos orais não significa considerar que eles falam por si mesmos de uma forma simples ou
6
Idem.
que seus significados são auto-evidentes” 7, pois, como os documentos escritos, devem ser
também interpretados.
7
CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In: FERREIRA, Marieta de
Moraes & AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos da história oral. FGV: Rio de Janeiro, 1996, p. 149-164
8
NORONHA, Olinda. Ideologia, Trabalho e Educação. Campinas, Alínea, 2004.
9
BRITO, Silvia Helena Andrade de. A educação no projeto nacionalista do primeiro governo Vargas (1930-
1945).Disponível em <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_101.html> acesso
em 25/07/2012.
10
ANDREOTTI, Azilde L. O projeto de ascensão social através da educação escolarizada na década de
1930. Disponível em <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_023.html> acesso
15/07/2012
O FAXINAL E A EDUCAÇÃO
No período estudado não havia no Faxinal nenhuma instituição escolar subsidiada pelo
governo.11 Ainda assim algumas crianças tinham acesso à alfabetização, isso porque seus pais
pagavam uma professora particular. Os alunos eram reunidos em locais onde houvesse
disponibilidade, como no sótão da casa, por exemplo, e lá aprendiam a ler, escrever e “fazer
as contas”. A professora permanecia hospedada na casa dos alunos enquanto os ensinava e
isso podia durar 3 ou 4 meses, depois disso ia embora e as crianças “já se consideravam aptos
a ler, escrever e fazer as contas e acabavam abandonando os estudos por vários motivos,
dentre eles a distância da escola e a necessidade de trabalhar para ajudar a família.” 12
Outras, no entanto, continuavam os estudos nas escolas mais próximas o que
demandava um grande sacrifício já que “naquele tempo era difícil né, porque a escola era
longe né, dava quase dez quilômetros e a gente ia a pé” aponta o morador José Andrade de
Oliveira. As dificuldades eram transpostas em nome do acesso ao conhecimento, mesmo que
o mais cômodo fosse ficar alheio a ele. A análise da legislação educacional vigente na época e
dos relatórios e mensagens de governo, atrelada a possíveis depoimentos orais podem
fornecer pistas sobre o entendimento que se tinha acerca da alfabetização no período.
Num momento em que não dispunham de espaços institucionalizados para ter acesso
ao aprendizado da leitura, os faxinalenses buscam novas alternativas para estabelecer tal
contato. O propósito de garantir às crianças a oportunidade de ingressarem no mundo letrado
nos provoca inquietações. Inseridos em um meio eminentemente rural, onde o destino
provável era do trabalho na roça, os faxinalenses queriam aprender a ler, mas que motivos
vislumbravam a tal ponto? Em que medida a leitura poderia fazer diferença na vida de um
agricultor, dedicado quase que exclusivamente ao cultivo da terra?
Em outra pesquisa já concluída, observamos por meio dos relatos que o motivo
principal de se aprender a ler, mesmo estando fora da escola, era a possibilidade da obtenção
de um elemento distintivo diante dos demais membros da comunidade, o que conferia ao
sujeito um status. Mas isso não é tudo. O contato com a leitura permitia também ao individuo
11
Segundo documentação encontrada na Secretaria Municipal de Educação de Rebouças, a primeira escola na
região foi fundada em 1949.
12
PEREIRA, Jacieli Domingues; Sochodolak Hélio. A escola do sótão: Para uma história da leitura nos faxinais
na região sul do Paraná. In: MEZZOMO, Frank. (Org.) ; PÁTARO, Cristina Satiê de Oliveira (Org.) ; HAHN, F.
A. (Org.) . Educação, Identidades e Patrimônio. 1. ed. Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2012. v. 1. 213 p.
se afirmar diante de seus pares como alguém que não mais seria enganado por não conhecer
as letras, além de propiciar sua mobilidade fora de seu habitat. Ou seja, saber ler garantia ao
faxinalense inserir-se em outros grupos que não o seu e compreendê-lo de forma
independente.
Ainda que tenhamos encontrado respostas plausíveis, os questionamentos não
cessaram. Muitas inquietações motivam o prosseguimento da pesquisa. O que pretendemos
apreender é até que ponto a estratégia do governo foi levada em conta no processo de
alfabetização dos faxinalenses. Se houveram outras motivações que influenciaram a decisão
dos pais em incentivar os filhos a aprender, quais foram elas? A comparação entre as
narrativas produzidas pelo governo e as produzidas pelos sujeitos que vivenciaram tal
contexto, poderá ajudar no entendimento dos sentidos atribuídos à educação, e mais
especificamente à leitura no Faxinal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa, ora em andamento, não pode estabelecer conclusões, afinal isso seria
arbitrário. Estamos ainda em fase inicial, de levantamento de fontes e definição teórico-
metodológica. Ainda assim podemos vislumbrar alguns caminhos que podem ser seguidos. As
inquietações são muitas, e as possibilidades de se chegar às respostas também. A trajetória a
ser seguida enseja um árduo trabalho, pois trata-se de uma dissertação de mestrado a ser
concluída nos próximos meses.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASSIRER, Ernest. Ensaio sobre o Homem: introdução a uma filosofia da cultura humana.
São Paulo: Martins Fontes, 1994.
CRUIKSHANK, Julie. Tradição oral e história oral: revendo algumas questões. In:
FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaina (orgs). Usos e abusos da história oral.
FGV: Rio de Janeiro, 1996, p. 149-164.
DARNTON, Robert. História da Leitura. In: BURKE, Peter, org. A escrita da história:
novas perspectivas. São Paulo: Unesp, 1989, p.199-236
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. Trad. Pedro Maia Soares. São Paulo:
Companhia das Letras, 1997.
PANDINI. Carmen Maria Cipriani. Ler é antes de tudo compreender... uma sintese de
percepçào e criação. Disponível em
<http://www.periodicos.udesc.br/index.php/linhas/article/viewFile/1242/1054>
PEREIRA, Jacieli Domingues; Sochodolak Hélio. A escola do sótão: Para uma história da
leitura nos faxinais na região sul do Paraná. In: MEZZOMO, Frank. (Org.) ; PÁTARO,
Cristina Satiê de Oliveira (Org.) ; HAHN, F. A. (Org.) . Educação, Identidades e Patrimônio.
1. ed. Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2012. v. 1. 213 p.
FONTE ORAL
OLIVEIRA, José Andrade de. Entrevista concedida a Jacieli Domingues Pereira e Ancimar
Teixeira em 15/06/2009.
Um entremeio (entredeux) é uma região que, como a palavra sugere, está entre duas
outras coisas – uma região fronteiriça. Para Michel de Certeau, historiador viajante por
excelência1, o entremeio é uma categoria central no pensamento histórico: de um lado, é
constituinte do próprio discurso historiográfico, sendo este um discurso de entremeio entre a
linguagem de ontem e a linguagem de hoje (DOSSE, 2003, p. 145) – pode-se ainda lembrar
que é apenas confrontando uma estrutura de compreensão contemporânea (modelos de
explicação) com os materiais efetivos das fontes que o historiador pode fazer falar a diferença
desse Outro apartado de nós, morto, silenciado pelo tempo (CERTEAU, 2008, p. 78-93); por
outro lado, a narrativa historiográfica – ao mesmo tempo parte e produto da pesquisa –
encontra-se em um entremeio: não pode prescindir da explicação lógica como a narrativa de
ficção, poética, que só precisa se apoiar na composição da intriga, mas também não pode se
libertar da estrutura de pensamento narrativa por conta de sua pretensão de contar
determinada intriga no tempo (RICOEUR, 2010, v. 3, 312-323). Vê-se então a importância de
tal expressão, que transformarei aqui em noção para fins determinados, dentro da reflexão
sobre o pensamento de Certeau sobre a história. Neste texto, munir-me-ei dessa noção para
(1) entender um determinado estatuto de conhecimento para a história e (2) apontar
consequências práticas de tal perspectiva para a discussão do papel social do historiador.
1
Não farei aqui o inventário dos comentadores que caracterizam seu pensamento como um pensamento de
caminhante, de viajante, de passagem, sempre remetendo a uma metáfora das práticas do espaço, conforme
fiz em outros trabalhos. Contentar-me-ei em apontar aqui algumas das várias consequências epistemológicas
desse tipo de metáfora aplicada ao pensamento do historiador.
O primeiro momento que gostaria de me deter é no qual Certeau coloca: “Subir até o
alto do World Trade Center é o mesmo que ser arrebatado até o domínio da cidade. [...] Sua
elevação o transfigura em voyeur. Coloca-o à distância.” (CERTEAU, 1995, p. 170, grifo do
autor). Contextualizarei essa colocação: no primeiro capítulo dedicado às práticas de espaço
Certeau vai analisar a relação entre a visão panorâmica da cidade, uma visão totalizante desse
corpo criado que se chamou “cidade”, e a visão (e a prática) do caminhante, sempre parcial,
de quem se emaranha no labirinto de ruas em meio às grandes caixas de concreto e aço. Ele
coloca então a oposição entre a visão urbanística – totalizante, estática, técnica e
pretensamente racionalizada – e a visão praticante – parcial, móvel, inventiva, e ela também
dotada de uma racionalidade particular. O voyeurismo de que ele fala se refere, portanto, à
pretensão totalizante da visão urbanística. Eis que ele diz seu projeto em termos bastante
precisos:
Ora, trata-se de uma declaração que pressupõe algo de peso considerável: tal projeto
pressupõe que é possível encontrar ranhuras no sistema panóptico da disciplina, que é
possível escapar, mesmo que parcialmente, à vigilância, sem precisar sair de seu campo
delimitado de ação vigilante. Comentadores como Bryan Reynolds (1999) viram aí uma
oposição explícita ao projeto de Foucault: se este se contentava em analisar as tecnologias do
poder disciplinar, Certeau seria o arauto dos vigiados, responsável por libertá-los de uma
teoria totalizante. No entanto, será isso mesmo?
2
Claire Colebrook oferece um ótimo desenvolvimento a respeito da relação entre o pensamento de Foucault e
o de Certeau. Cf. COLEBROOK, Claire. Certeau and Foucault: Tactics and Strategic Essentialism. The
South Atlantic Quarterly, Durham, v. 100, n. 2, p. 543-574, 2001. Outro comentador que explora esse
Formula-se então o problema dessa relação tensa de poder nos termos de Certeau:
trata-se, no âmbito das práticas espaciais, da tensão entre lugar e espaço. Para ele, o lugar
[...] é a ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência. [...] Aí impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham
uns ao lado dos outros, cada um situado num lugar “próprio” e distinto que define.
[...] Implica uma indicação de estabilidade. (CERTEAU, 1995, p. 201)
diálogo, embora em sentido relativamente distinto, é John Marks: MARKS, John. Certeau & Foucault: the
other and pluralism. Paragraph, Edinburgh, v. 22, p. 118-132, 1999.
se porta), dos setores na fábrica, dos papéis atribuídos a cada um na família. Constroem-se
unidades sobre as quais se pode atuar disciplinando corpos: esta é a construção do lugar.
Sempre em relação a ele, temos o espaço: ele “[...] estaria para o lugar como a palavra
quando falada [...] Diversamente do lugar, não tem portanto nem a univocidade nem a
estabilidade de um próprio. Em suma, o espaço é um lugar praticado. [...]” (CERTEAU,
1995, p. 202, grifo do autor). Trata-se aqui das resistências evocadas por Foucault, das
práticas subreptícias, inventivas, tratadas por Certeau. O espaço está, portanto, intimamente
ligado à experiência: age-se sobre o lugar e também nele. Seja pela via genealógica de
Foucault, seja pela via hermenêutica de Certeau, os trabalhos que se interessam pelo espaço
buscam compreender e/ou explicar essa dimensão da experiência que deixa pouco ou nenhum
rastro – ou vestígio, para fazer referência (sem retomar aqui explicitamente) à discussão de
Paul Ricoeur em “Tempo e Narrativa”3.
Eis que dessa tensão entre o posto e o feito emerge a figura do passante:
[...] se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de
possibilidades [...] e proibições [...], o caminhante atualiza algumas delas. Deste
modo, ele tanto as faz ser como aparecer. Mas também as desloca e inventa outras,
pois as idas e vindas, as variações ou as improvisações da caminhada privilegiam,
mudam ou deixam de lado elementos espaciais. (CERTEAU, 1995, p. 177-178)
Detenhamo-nos: ele tanto as faz ser como aparecer. Aos olhos de um objetivista
convicto pode parecer uma afirmação estranha: como pode o ser da ordem depender de sua
efetivação? Ora, para Certeau, os constrangimentos da ordem só se efetuam na medida em
que há prática. Não significa comungar de certo ceticismo linguístico extremado dizendo que
“il n’y a pas de hors-texte”: há sim, um além-texto; mas esse potencial só se realiza com a
prática, a experiência. Mas permanece o problema de como conhecer essa atividade que deixa
pouco ou nenhum vestígio, para além da observação antropológica.
3
Cf. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010, v. 3, p. 197-213.
como o passante age na cidade? Poderia ele atuar tanto sobre o pensamento historiográfico
quanto sobre as múltiplas dimensões sociais de seu presente de maneira a realizar a atitude
crítica de que falamos no início do texto? Neste caso, supõe-se um historiador capaz de ser
lido e ouvido por outrem que não seus pares. A dívida com os mortos de que trata Certeau
poderia ser paga de que maneira? Seria o historiador um mero guardião de um cemitério ou
teria ele a capacidade de agir em esfera pública – não mais no sentido do ensino, mas da
própria produção de mecanismos capazes de atuar ética e politicamente?
O ENTREMEIO
Parto do que Certeau chama de “paradoxo da fronteira”: “[...] criados por contatos, os
pontos de diferenciação entre dois corpos são também pontos comuns. [...] Dos corpos em
contato, qual deles possui a fronteira que os distingue? Nem um nem o outro. Então,
ninguém?” (CERTEAU, 1995, p. 213) Põe-se então que o limite da alteridade é sempre o
ponto em que ela nos toca; são fenômenos que compartilham quaisquer elementos com
fenômenos contemporâneos, familiares. Não estamos aqui presenciando nenhuma novidade:
Paul Veyne já dizia que o motor da pesquisa histórica é a curiosidade do historiador – e a
curiosidade parte sempre de elementos comuns entre presente e passado, entre o Mesmo e o
Outro. Como os antigos viam a morte? O amor? Como se estruturavam as relações de
trabalho? Que navios, pessoas e coisas já navegaram pela superfície desse Mediterrâneo que
hoje vejo?
A partir desse espaço de contato, dessa “terra de ninguém”, como coloca Certeau,
caberia ao historiador a possibilidade de transgredir os limites de nosso pensamento: será a
nossa maneira de tratar a delinquência o único, o melhor ou o necessário? Ou a nossa maneira
de estruturar as relações de produção e trabalho? Se o historiador puder responder a essas
perguntas, ele dará o primeiro passo em direção à ideia de um historiador passante, capaz de
subverter a ordem estabelecida, inquiri-la sobre suas fundações e fazer com que se possa
4
Há que se tomar cuidado quando do uso do termo “ficção” em Certeau, conhecido por seus jogos de
significação das palavras: por um lado, o termo pode ser tomado no sentido usual, de oposição com algo que
seria real; por outro, o termo tem uma carga conceitual própria na tradição psicanalítica com da qual Certeau
certamente comunga e com a qual constantemente dialoga. Cf. CERTEAU, Michel de. História e
Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011; particularmente os três primeiros
capítulos.
5
Estabeleço aqui um diálogo certamente arbitrário com a tese de Paul Ricoeur em “Tempo e Narrativa”. Mas o
faço por ver nele uma relação possível e produtiva para a compreensão do fazer historiográfico.
pensar aquilo que a familiaridade cala. Mas, ainda na esteira do pensamento de Certeau, essa
potencialidade só se realiza quando praticada: pede-se então o segundo passo – a recepção.
Em primeiro lugar é preciso reconhecer que as incursões dos historiadores para fora
das universidades e das escolas ainda é muito tímida no Brasil. Que pese a criação de centros
de memória e o trabalho nos museus e casas de cultura, não contamos ainda com expressões
como os programas de rádio franceses dedicados à temática, ou com colunas jornalísticas
escritas por historiadores como na Inglaterra. Nossas revistas de divulgação não raro se
dedicam ainda a uma história como mosaico de curiosidades; outras enfrentam o grande
problema do financiamento de suas operações6. É preciso reconhecer: no Brasil, quem lê os
historiadores são os historiadores.
6
Tomo como referência para nosso cenário o livro “Introdução à História Pública”, publicado em 2011, o que
evidencia a pouca idade do empreendimento em nosso país. Cf. ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta.
Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
meu desejo dizer que é preciso voltar a esses tempos: as experiências do século XX nos falam
com propriedade a respeito dos projetos de sociedade fundados no poder da racionalidade
técnica.
O campo da história pública – se é que se pode falar de um “campo”, uma vez que
suas discussões abarcam desde a teoria da história até a cultura material e a história
contemporânea – dá uma resposta particular: trata-se de tornar a história acessível ao público.
Não mais pensando na vulgarização tal qual a do século XIX, nem recorrendo às recentes
pesquisas sobre o ensino de história; é fora da escola que o potencial crítico da história
poderia se realizar. A novidade da discussão dessa temática no Brasil impede que seja
possível tomar uma posição muito firme desde já, mas não há como negar a capacidade
provocativa da proposta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Juniele; ROVAI, Marta. Introdução à História Pública. São Paulo: Letra e
Voz, 2011.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
_______. História e Psicanálise: entre ciência e ficção. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.
COLEBROOK, Claire. Certeau and Foucault: Tactics and Strategic Essentialism. The South
Atlantic Quarterly, Durham, v. 100, n. 2, p. 543-574, 2001.
MARKS, John. Certeau & Foucault: the other and pluralism. Paragraph, Edinburgh, v. 22, p.
118-132, 1999.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 3 v.
1
Preferimos nos utilizar do termo culturas faxinalenses no sentido de chamar a atenção para a heterogeneidade
cultural dos faxinais. Cada faxinal possui características específicas, peculiaridades, que são próprias de cada
comunidade e que não podem ser negligenciadas pelo pesquisador.
2
Cf. ALMEIDA, W. B. Alfredo; SOUZA, Roberto M. de (Orgs.) Terras de Faxinais. Manaus: Edições da
Universidade do Estado do Amazonas – UEA, 2009. Nesta pesquisa os autores dedicam um capítulo para
mapear os faxinais do estado do Paraná, dentre eles os pertencentes à microrregião de Irati, correspondendo aos
municípios de Irati, Rio Azul, Rebouças e Mallet. Segundo os autores, na microrregião de Irati foram
identificados 37 faxinais, destacando-se Rebouças com 15 e Irati com 14 faxinais.
3
As entrevistas que foram realizadas tiveram como depoentes pessoas que viveram ou ainda vivem nos faxinais
de Irati, mais especificamente em Faxinal do Rio do Couro, Rio do Couro e Faxinal dos Mellos, e que
presenciaram a infestação de gafanhotos e a peste suína. A coleta das entrevistas seguiu a metodologia da
História Oral, sendo utilizados os procedimentos já consagrados, como o termo de ciência e esclarecimento, a
transcrição com assinatura do depoente e o termo de autorização do uso das informações para uso acadêmico.
4
Ver mais detalhes em : SOCHODOLAK, Hélio; MANEIRA, Regiane. Os faxinais na região de Irati na década
de 1940: a força de uma cultura tradicional. In: Anais do XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências
Sociais – Diversidades e (Des)Igualdades. UFBA, 2011.
5
No que diz respeito à origem do Sistema Faxinal, não existe uma unanimidade entre os pesquisadores do tema.
Segundo Maria Magdalena Nerone, o Sistema de Faxinal decorre de um arcabouço cultural transplantado via
colonizador, e cujas raízes podem ser encontradas na Península Ibérica, através das Reduções Jesuíticas
Espanholas. Este vínculo que a autora faz entre a origem dos faxinais e as reduções jesuíticas pode estar
relacionado ao fato de que as reduções Jesuíticas também possuíam como forma de organização a vida
comunitária. Man Yu Chang atribui a origem do sistema à estrutura de subsistência das grandes fazendas, que
estavam baseadas na criação de animais à solta e no cercamento das lavouras com bambu, bem como o pousio da
terra. A conexão que a autora faz entre a origem do faxinal e o sistema de criação de animais das grandes
fazendas pode estar relacionado ao fato de que o faxinal também possui como estrutura básica de funcionamento,
a criação de animais soltos no criadouro comunitário — terras de criar — e também o cercamento das terras
destinadas à prática da agricultura — terras de plantar —, estrutura que segundo a autora também era encontrada
nessas fazendas.
Outros pesquisadores vinculam o sistema faxinal à frente oriental paranaense da extração de erva-mate e a
criação extensiva de suínos, praticada desde o século XVII nessa região. Quando diminuíam os alimentos
encontrados no local em que estavam, os coletores da erva mate adentravam novamente na mata, levando
consigo os materiais utilizados no trabalho, alimentos e animais de carga e de criação, assim, o sistema de
faxinal relaciona-se com esse tipo de nomadismo.
parte da cultura faxinalense, praticada pelos caboclos e, depois, adotada pelos imigrantes
europeus, principalmente, por poloneses e ucranianos.”6
Partindo dessas definições podemos perceber que a base do faxinal seria justamente a
agricultura de subsistência e a criação de porcos. No final da década de 1940, ocorre
primeiramente a infestação de gafanhotos que devasta as plantações e em seguida a peste
suína que assola a criação de porcos nos faxinais que pesquisamos. Como os faxinalenses
conseguem sobreviver em meio às dificuldades causadas por esses eventos? Como eram suas
práticas de combate à peste e aos gafanhotos? Como pensar o faxinal sem os porcos e sem a
lavoura de subsistência? O que os documentos institucionais registram sobre os gafanhotos e
a peste? É em torno desses questionamentos que nossas reflexões e análises estarão voltadas
no decorrer deste artigo.
6
SOCHODOLAK, Hélio; CAMPIGOTO, José Adilçon Os faxinais da região das araucárias. In: MOTTA, Márcia
Menendes; OLINTO, Beatriz Anselmo e OLIVEIRA, Oseias. (orgs) História Agrária: propriedade e conflito.
Guarapuava: Unicentro, 2009. p. 195.
7
FOLHA DO OESTE. A invasão dos gafanhotos. Guarapuava, Paraná, 6 de outubro de 1946/ nº 20.
restaram foram batata, batata-doce e abóbora, bem como algumas plantações de milho que já
haviam passado pelo processo de maturação, ou aquelas, raras, que os gafanhotos não
atacaram.8
A chegada dos gafanhotos à localidade do Rio do Couro, segundo Primo, foi bastante
tumultuado, pois as pessoas ficaram desesperadas ao verem suas lavouras, hortas e a própria
mata serem destruídas pelos insetos, apesar de já saberem que os gafanhotos poderiam chegar
a qualquer momento e que causariam grandes prejuízos. Os animais, como bovinos e eqüinos,
começaram a correr de um lado para o outro, assustados com inúmeros insetos que devido à
quantidade, chegavam a tapar a luz do sol.9
A notícia que uma nuvem de gafanhotos estaria se aproximando do município de Irati
era divulgada através do rádio. Segundo Primo, nesse momento eram poucas as pessoas que
possuíam um rádio, que era o principal meio de comunicação. Era através dele, também, que
eram divulgadas as possíveis origens da nuvem de gafanhotos.10
Para Lemes a nuvem de gafanhotos que destruiu as plantações no Faxinal do Rio do
Couro, tinha origem na Argentina, lugar que, segundo ele, havia um “banhado” onde esses
insetos nasciam e proliferavam, mas também eram combatidos com inseticidas pelo governo
argentino. Todavia, nesse período houve um descuido do governo e os insetos se
multiplicaram, de maneira que se deslocaram para outros países, no caso o Brasil.11
Segundo Clara Specht seu pai lia inúmeros livros e relatava que esses gafanhotos
teriam origem na África e que devido à grande quantidade teriam vindo para o Brasil.12 Outra
explicação dada pelos faxinalenses era a de que os gafanhotos se originavam numa ilha
marítima de onde partiam em nuvem.13
O jornal “Correio do Oeste”, de Guarapuava, em uma notícia, também divulga a
possível origem da nuvem dos gafanhotos: “[...] uma enorme nuvem de gafanhotos está
atravessando pelos Estados do sul do Brasil, vinda da direção das Repúblicas Argentina e
Paraguay, tendo já atingido o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.”14
Após a infestação dos gafanhotos no Paraná, o governo estadual, juntamente com o
Ministério da Agricultura dividiu o Estado em oito zonas, cada uma delas subdividida em
8
LEME, Alvindo. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 05/02/2011.
9
PRIMO, Jerônimo Maneira. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 24/05/2011.
10
Ibidem.
11
LEME, Alvindo. Op. cit.
12
SPECHT, Clara. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 20/01/2011.
13
PRIMO, J. M. Op. cit.
14
FOLHA DO OESTE. Op. cit.
postos de abastecimento, estes ainda subdivididos em setores. Cada setor contando com uma
ou mais equipes de combates, de acordo com a intensidade da infestação.
Segundo a mensagem do então governador do Paraná, essas medidas de combates aos
gafanhotos não tiveram pleno êxito devido à falta de estradas de ferro, para o transporte dos
materiais até as regiões afetadas. Em conseqüência deste evento houve uma queda na
produção agrícola, levando muitos municípios a importar cereais para o consumo interno.15
Na mensagem de governo de Lupyon, não há referência sobre alguma ajuda que a
administração estadual tenha enviado para os pequenos agricultores, como o caso dos
faxinalenses. Nas entrevistas os moradores relatam que receberam lança-chamas e tambores
de querosene para auxiliar no combate dos gafanhotos que devoravam as plantações. Alvindo
Lemes relata que além dos lança-chamas receberam alimentos e também sementes para
iniciarem uma nova plantação.16 Contudo, os moradores não sabem se esse auxílio vinha do
governo estadual ou da própria prefeitura de Irati, na qual, não foi encontrado nenhum
registro sobre esses possíveis donativos.
Além do combate com os lança-chamas haviam outras formas para combater os
gafanhotos. Uma delas era a abertura de valas no chão, que eram utilizadas como armadilhas
para os gafanhotos da seguinte forma: as pessoas espantavam os insetos com galhos ou
mesmo com as próprias mãos para que caíssem no buraco que havia sido aberto, depois eram
queimados com querosene ou então cobertos com terra.17 Porém, essa técnica, segundo os
moradores não era muito eficaz, pois a quantidade de insetos era tanta, que enquanto os
faxinalenses se preocupavam em fazer as valas, as plantações continuavam sendo devoradas
por outras nuvens de gafanhotos.
As benzedeiras também tentaram combater a infestação nos campos por meio de
alguns rituais. Segundo Primo, na localidade do Rio do Couro, haviam inúmeros “curadores”,
que faziam vários tipos de benzeduras. Dois deles tentaram espantar os gafanhotos, um
homem, o “velho Rael” e uma mulher “a velha Gertrudes”. Primo relata que ambos se
dirigiam às lavouras e faziam alguns gestos utilizando ramos verdes, além disso, conta que a
benzedeira Gertrudes, garantia que suas rezas eram mais eficientes que os outros métodos
15
LUPYON, M. Mensagem de governo. Op. cit. p. 34.
16
LEME, Alvindo. Op. cit.
17
PRIMO, J. M. Op. cit.
utilizados pelo restante das pessoas para combater a infestação. Relatava, também, ser
responsável pela expulsão definitiva dos gafanhotos do faxinal18.
18
Idem.
19
Cf. LUPYON, M. Mensagem de governo. Curitiba, 1948. p. 31-32.
20
Idem, p. 33.
21
BERGER, Magdalena. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 27/02/2011.
telegrama enviado pela prefeitura para o Rio de Janeiro solicitando quarenta vidros da vacina
“Cristal Violeta”. Em uma nota enviada ao jornal “Correio do Sul” de Irati, a prefeitura já
havia adquirido 4.800 doses desta vacina e ainda contava com um funcionário apto para a
aplicação destas gratuitamente. No entanto, o transporte do funcionário era de
responsabilidade de quem necessitasse de seu serviço.
A partir das entrevistas coletadas com moradores das localidades de Rio de Couro e
Faxinal do Rio do Couro22, ambas localizadas na zona rural do município de Irati,
constatamos que esse funcionário não foi convocado nestas comunidades, uma vez, que cada
morador se responsabilizava em vacinar seus porcos, individualmente ou com ajuda dos
vizinhos. No faxinal Faxinal do Rio do Couro havia um morador que se disponibilizava em
aplicar a vacina para os demais moradores como afirmou-nos Alvindo Leme, morador dessa
comunidade: “[...] aqui esse responsável era o Ambrósio, só que ele não ganhava nada, saía
para fazer as aplicações e não ganhava.”23
A vacinação dos porcos não era garantia de que estes não seriam infectados ou
mesmo não morreriam com a peste. Alvindo Lemes relata que até mesmo os porcos vacinados
morriam, como testemunhou.
Seu depoimento encontra ressonância no panfleto do “Instituto Vital Brazil:
laboratório de produtos químicos e biológicos S/A”, localizado em Niterói-RJ, que trata sobre
a vacina “Cristal Violeta”, a qual foi adquirida pelo município de Irati para combater a peste
suína, que diz o seguinte:
Esta vacina é exclusivamente preventiva e só deve ser aplicada em
porcos sadios e ainda não foram contaminados pelo Vírus da peste
suína. A imunidade conferida pela vacina só se estabelece 3 semanas
após a vacinação. Durante esse período, os porcos vacinados estão
sujeitos a contraírem a doença, caso haja contaminação.24
Talvez, muitos dos porcos vacinados acabavam morrendo, como relata seu
Alvindo, por já estarem contaminados pela peste suína, ou então, acabavam se contaminando
22
Aqui faz-se necessário um esclarecimento sobre a comunidade do Rio do Couro e Faxinal do Rio do Couro.
Esses dois faxinais apesar se serem vizinhos e possuírem seus moradores a maioria de descendência italiana, são
comunidades distintas e não devem ser confundidas como a mesma localidade. As práticas culturais dessas
comunidades são bastante semelhantes, contudo, no Rio do Couro, o criadouro comunitário foi desativado na
década de 1980. Já no faxinal Faxinal do Rio do Couro, a criação de animais em regime de compáscuo ainda é
praticada.
23
LEMES, Alvindo. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 05/02/2011.
24
INSTITUTO VITAL BRAZIL: Laboratório de produtos químicos e biológicos s/a. Panfleto. Niterói-RJ, sem
data.
Uma das hipóteses para a sobrevivência do sistema faxinal, bem como a permanência
das pessoas no campo, pode estar relacionado à própria organização do sistema, que estava
baseado na solidariedade que se estendia muito além da própria comunidade. Através das
entrevistas pudemos perceber que esse elemento se fez presente tanto durante a ocorrência da
peste suína como da infestação dos gafanhotos.
Em relação à peste suína essa rede de solidariedade pode ser observada na própria
reconstituição da criação de porcos no faxinal. Segundo Berger raros foram os animais que
resistiram à doença, contudo, aqueles que restaram eram emprestados ou então vendidos para
os vizinhos para tentar recompor a criação.
Já em relação à infestação de gafanhotos, as manifestações de apoio mútuo se
fizeram ainda mais presentes. Segundo Primo o período do ano em que os gafanhotos
chegaram à localidade do Rio do Couro era o do início das plantações. Assim sendo, os
25
BERGER, Magdalena R. Entrevista concedida a Regiane Maneira em 27/02/2011.
alimentos estocados estavam praticamente no fim e os faxinalenses contavam com uma nova
colheita que foi frustrada pelos gafanhotos que devastaram as plantações, ou seja, o alimento
para as famílias e animais durante todo o ano26.
Primo nos relatou que seu pai, João Batista Maneira, era um dos poucos moradores
do faxinal que ainda possuía uma quantidade razoável de milho estocado no paiol. Após a
infestação dos gafanhotos várias pessoas começaram a procurá-lo para comprar milho ou
mesmo emprestar. Em poucos meses o paiol esvaziou:
Nós tínhamos um paiol de milho em casa cheio da safra passada e meu pai
emprestou milho até lá pro Mato Queimado, vinham buscar milho até aqui
desse faxinal, quantos e quantos vieram emprestar milho para comer, para
fazer o fubá, para fazer a farinha, não era para engordar criação [...]27
Através destes depoimentos pode-se perceber a organização social baseada na
solidariedade. Essa ajuda não ocorria somente em períodos de escassez de alimentos, mas
durante todo o ano, fazendo parte da própria cultura faxinalense: “[...] se não tinha uma coisa
para dar, o outro vinha e trazia era assim, sempre tinha.”28
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
possibilidade de criar os porcos seja para o consumo, seja para a venda aos safristas, por conta
da peste suína, sem a lavoura de subsistência, esta atacada pelos gafanhotos, que, juntamente
com os porcos garantiam o sustento das famílias, era de se esperar a ruína do faxinal. Um
êxodo para as cidades, uma migração em massa. Todavia, uma cultura cabocla, calcada no
trabalho comunitário, na religiosidade e nas relações de solidariedade possibilitaram enfrentar
os problemas causados pela infestação de gafanhotos e a peste suína.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5. FONTES:
Há dez anos, ainda durante a Graduação em História iniciei meus estudos relacionados
à Idade Média, de maneira específica relacionados à história medieval portuguesa com
destaque para as obras do Conde Pedro Afonso de Barcelos, filho bastardo do rei Dinis.
Ao longo desse percurso pude desenvolver minha monografia levantando elementos
acerca da nobreza medieval portuguesa referenciada no Livro de Linhagens1 do Conde Pedro
de Barcelos. A partir desse primeiro estudo foram suscitados novos questionamentos que
levaram à elaboração da dissertação de mestrado, defendida em 2004, intitulada “Por meter
amor e amizade entre os nobres fidalgos da Espanha. O Livro de Linhagens do Conde Pedro
Afonso no contexto tardo-medieval português.”
Na dissertação de mestrado foi analisada a construção de uma imagem ideal de Rei e
de Nobreza a partir dos trechos de narrativas históricas presentes na obra, embora geralmente
curtas, aparecem em grande quantidade, foram analisados cerca de quarenta e cinco trechos,
ligados a tradições familiares. Dentre eles encontram-se anedotas, trechos que põe em relevo
valores da vassalidade e outros que se aproximam bastante do gênero histórico presente nas
Crônicas.
A partir da análise de uma das obras do Conde Pedro de Barcelos veio o interesse em
continuar a pesquisa, ingressando assim no doutorado analisando agora a Crônica Geral de
Espanha de 13442. Trata-se de uma obra com outras características, um novo universo a ser
desvelado.
1
PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova Série. Ed. crítica
por José Mattoso. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. 2 Volumes.
2
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed.
Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990. 4 Volumes.
A presente comunicação traz alguns elementos que foram levantados até o presente
momento da pesquisa destinada à elaboração da Tese de doutorado, cuja problemática está
ligada ao levantamento de elementos, presentes na Crônica Geral de Espanha de 1344, que
possam caracterizar uma representação de rei e de nobre ideal. Tal análise será vinculada ao
trabalho já elaborado a partir do Livro de Linhagens.
O autor do Livro de Linhagens e da Crônica Geral de Espanha de 1344, o Conde
Pedro Afonso, foi filho bastardo do rei Dinis de Portugal, com Grácia Aires, nasceu por volta
de 1285 e faleceu em 1354. Pedro Afonso contou sempre com uma grande proteção de seu
progenitor chegando a receber do rei Dinis, de forma vitalícia no ano de 1314, o Condado de
Barcelos, único existente no reino português.
O reinado de Dinis ficou conhecido como a primeira administração completa que
houve em Portugal, com leis destinadas à realidade política, econômica e social. Esse
processo de concentração de poder político na pessoa do rei permitia-lhe combater o poder
senhorial. Para isso, fez uso dos instrumentos jurídicos que estavam ao seu dispor, chegando a
pegar em armas quando foi necessário para alcançar seus objetivos.
Dinis desenvolveu uma luta lenta e insidiosa, contra senhores que pudessem fazer uso
de maneira ilegítima de direitos senhoriais, com prejuízo da jurisdição régia. Como forma de
controle, fez uso das inquirições gerais3 de maneira persistente e sistemática, tornando-as
mais incisivas sobre a nobreza, especificamente sobre a nobreza mais tradicional do Norte,
visando assim delimitar honras e direitos senhoriais.
O rei chamava para si o direito de interferir na sucessão do patrimônio senhorial,
demonstrando na prática que a confirmação dos direitos dependia de sua generosidade de rei e
senhor. Em 1305 chegou a promulgar uma lei proibindo os nobres de armarem cavaleiros e
vilãos dos Concelhos, declarando-se o único que podia exercer este privilégio.
A nobreza manifestara-se contra a centralização régia, inicialmente através de
protestos nas Cortes contra a quebra de imunidades senhoriais, gerando no reino um clima de
instabilidade, que o rei tentava dissuadir através de medidas militares. As Cortes funcionavam
como um espaço “de diálogo, de cobrança, denúncia e fiscalização. Era o espaço onde se
3
Segundo Adeline Rucquoi, as inquirições eram inquéritos gerais ou recenseamentos realizadas por funcionários
reais. Tinham como finalidade o conhecimento exato da repartição dos domínios nobres e dos concelhos
urbanos, além das usurpações efetuadas pela nobreza e ordens monásticas. RUCQUOI, Adeline. História
Medieval da Península Ibérica. Lisboa, Estampa, 1995.
podia medir o grau de executabilidade, na prática, das políticas régias.” 4 Não se pode
comprovar a eficiência das Cortes em relação aos abusos e omissões dos agentes régios,
porém não se pode dizer que desempenharam um papel meramente decorativo, dentro da
organização política do reino português.
De 1285 a 1316 os nobres tentaram opor ao rei uma resistência passiva, ou através de
processos legais. Nesse período o rei continuava firme em seus propósitos, persistindo nos
inquéritos e decisões, adiando respostas a apelos judiciais, ou ainda obtendo sentenças a seu
favor. Em 1316 os esforços dos fidalgos terminam, no ano seguinte esboça-se a oposição do
Infante Afonso ao seu pai Dinis, tornando-se aberta em 1319.
O Infante Afonso, sobretudo depois de atingir a maioridade, casar e possuir Casa
própria, começou a discordar abertamente de seu pai. Rapidamente, começaram a se reunir à
sua volta os nobres descontentes, contribuindo assim para agravar os conflitos entre o rei e o
herdeiro. A maior queixa do rei em relação ao Infante estava no fato deste reivindicar para si
o regimento da justiça do reino. Os nobres aliados ao Infante esperavam conseguir assim uma
administração judicial menos rigorosa, pois poderiam reduzir as pretensões dos juristas que
desprezavam os costumes ancestrais dos nobres e só pensavam em aplicar princípios
racionais, não valorizando prestígios ou tradições.
O conflito que antes de opor grupos antagônicos dentro do reino português, opôs Dinis
e seu herdeiro Afonso, futuro Afonso IV, chegou a ser considerado por alguns autores, como
José Mattoso, como o mais prolongado e mais sangrento conflito desde o processo de
sucessão de Sancho II (1223-1247) até a crise de 1383. Ao longo da guerra civil Dinis assinou
e divulgou no reino três manifestos contra o filho e seus partidários.5
O Conde Pedro Afonso permaneceu ao lado do rei na fase inicial da Guerra Civil
(1319 a 1324). Ao mesmo tempo buscou aproximar-se do Infante Afonso, herdeiro legítimo
da coroa portuguesa. Após desentendimentos com João Afonso e Afonso Sanchez, seus
irmãos e principais oponentes do Infante Afonso, entrou em desserviço para com o rei, foi
desterrado e exilado em Castela, onde permaneceu de 1317 a 1322.
4
FERNANDES, Fátima Regina. As Cortes medievais portuguesas e sua relação com o poder régio –
segunda metade do século XIV. Anais da XIX Reunião Anual da SBPH, Curitiba, SBPH, 2000, p. 04.
5
No manifesto de 1320 Dinis queixa-se de que “os fauores que tinha feito ao Infante do tempo, em que sendo de
pouca idade lhe dera Casa, não se costumando em Portugal até então dar Casa aos Infantes, porque todos comiaõ
à mesa dos Reys seus pays; como despois em seu cazamento lha acrescentàra a elle, & à Infanta sua mulher
grandes rendas, & senhorios das terras, & lhe ajudàra a criar seus filhos com grande amor, & que naõ forão
bastantes tantas demonstraçoens de beneuolencia para o Infante lhe naõ fazer os agrauos seguintes.”
BRANDÃO, Francisco [1672] Monarquia Lusitana: parte sexta. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1980. p. 367. Et. Passim.
Ao retornar de seu exílio em 1322, procurou reconciliar-se com seu pai, para que seus
bens pudessem ser restituídos. Procurou ainda desempenhar uma função conciliatória na
demanda entre Dinis e o Infante Afonso, ao lado da rainha Isabel. As conversações de paz que
vieram a culminar com um acordo de paz em 1322, tiveram como principais intercessores a
rainha Isabel e o Conde de Barcelos, Pedro Afonso. Esse acordo só veio a ser celebrado em
1324, quando chegou a Santarém o arcebispo de Compostela, enviado pelo Papa para
confirmar os acordos de paz estabelecidos, tentando, com sua presença imprimir um caráter
definitivo à celebração da paz.
A Guerra Civil (1319-1324), desencadeada pela tentativa de “implantação de uma
autoridade monárquica que se coloca acima de todos os poderes e que tem, como primeiro
ponto do seu programa a supressão das prerrogativas dos senhores,”6 foi um conflito que
gerou polarização social com o apoio preferencial dos concelhos ao rei e dos nobres ao
Infante; além de polarização regional opondo o Norte senhorial e agrícola ao Centro e Sul
concelhio e urbano. O que estava em jogo não eram tanto os interesses de grupos sociais que
apoiavam este ou aquele contendor, mas o fato de aceitar ou não a centralização política, que
na realidade não prejudicava apenas os nobres, além de mostrar que não era possível acabar
facilmente com os privilégios senhoriais da nobreza
Os critérios definidores da nobreza continuavam a ser os mesmos durante o início do
século XIV, no entanto alternara-se a hierarquia de tais critérios, o sangue dá lugar ao serviço
ao rei, fonte primeira de benefícios, nobilitação e alçamento sócio-político em seguida vem o
patrimônio e depois o sangue. A supremacia social da nobreza baseava-se cada vez mais na
influência que exercia sobre os órgãos centrais do reino, e não tanto no exercício de poderes
senhoriais de âmbito regional. Cada vez mais a proximidade em relação ao rei tornava-se
decisiva para a manutenção dos direitos senhoriais. O rei tornava-se um árbitro das questões
entre as outras forças sócio-políticas do reino, em particular da nobreza.
Após a morte de Dinis em 1325 e a ascensão ao trono do Infante Afonso como Afonso
IV, o Conde Pedro Afonso fixou-se no Paço de Lalim, perto de Lamego, participando em
momentos de conflitos gerados entre os reinos de Castela e Portugal, combatendo ao lado de
seu irmão Afonso IV, prendendo, matando e destruindo com “braço tão forte, & golpe tam
6
MATTOSO, José. A guerra civil de 1319-1324. In: Estudos de História de Portugal. Vol. I – séculos X-XV.
Lisboa: Estampa, 1982. p. 176.
rijo, que se afogava a resistencia em seu mesmo sangue.”7 Foi nomeado por Afonso IV, para
participar do acordo de paz entre os reinos de Portugal e Castela, porém em função de
encontrar-se enfermo não pode acompanhar o Arcebispo Gonçalo Pereira na data
estabelecida.
É atribuído ao Conde Pedro Afonso um amplo conjunto de obras literárias, de variada
natureza, no qual se inclui a Crônica Geral de Espanha de 1344 e o Livro de Linhagens, além
de cantigas. Tais obras foram escritas na primeira metade do século XIV, “época de transição
dos valores mais tradicionais e do surgimento de mecanismos de poder cada vez mais subtis.”
8
Sua obra é considerada ainda uma das melhores fontes para o estudo da história social
portuguesa no período da Dinastia Afonsina: tal fato deve-se à enumeração de gestas, nomes e
de costados presentes na obra. Percebe-se em seus escritos forte influência da Corte
castelhana, na leitura de textos históricos e no método historiográfico, colocado em prática
por seu bisavô Afonso X. É reconhecido ainda como “um dos primeiros escritores de língua
portuguesa, não propriamente pelo valor da sua prosa, mas pela atividade que o situa nas
raízes do movimento historiográfico nacional.” 9
O século XIV, período em que o Conde escreveu suas obras, foi marcado por uma
colaboração cada vez maior de clérigos e leigos na constituição da cultura profana em
Portugal. Nessa conjuntura, o Conde aparece como um sintetizador de tais influências. Para
escrever suas obras o Conde “recolheu tradições criadas no mundo profano como no clerical,
histórias e narrativas das Cortes Régias como de Casas Senhoriais, de cavaleiros de origem
goda, francos ou flamengos.” 10
A história transparece nas obras do Conde Pedro Afonso como “o espelho dos grandes
homens que se haviam destacado por feitos heróicos e por uma conduta que se fundava nos
ideais de honra e valentia,”11 em função disso seria inspirada pela exaltação da nobreza, das
grandes famílias. Exaltação essa, que se faz presente em diversos momentos ao enaltecer
feitos dos fidalgos e reis além de não valorizar, ou até mesmo condenar determinadas atitudes.
7
JESUS, Rafael de. [1683] Monarquia Lusitana: Parte Sétima. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1985. p. 403.
8
FERNANDES, Fátima Regina. Discurso e poder na obra de Pedro Afonso, Conde de Barcelos. In: Anais do
IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, Belo Horizonte, PUC de MG/ ABREM/ CNPq e FAPEMIG,
2003, p. 351.
9
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. VOL. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1979. p. 374.
10
MATTOSO, José. A literatura genealógica e a cultura da nobreza em Portugal (s. XIII-XIV). In: Portugal
medieval: novas interpretações. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985. p. 327.
11
Idem. p. 373.
A obra do Conde Pedro Afonso tem como característica desvendar o quadro senhorial
português que antecede a grande crise da primeira dinastia. Além de constituir, a esse título,
um notável documento histórico para compreender a fase inicial do Reino através da
descrição das tradições e da mentalidade da nobreza.
Nesse contexto, entre o final do reinado de Dinis e o início do reinado de Afonso IV,
período em que o Conde escreveu o Livro de Linhagens e a Crônica Geral de Espanha de
1344, é que se encontra o foco principal da presente comunicação.
Durante a elaboração da dissertação de Mestrado foi possível analisar a caracterização
de “rei ideal” proposta pelo Conde no Livro de Linhagens. A imagem de “rei ideal”
construída pelo Conde é definida pela figura de um rei que domina a hierarquia da nobreza, é
ele quem define escalões, confere prestígio. O rei constitui-se, nessa visão, como elemento
chave na aplicação da justiça e das leis. As leis elaboradas pelo rei são feitas para todos do
reino. Dessa forma centralizaria sua autoridade, sobrepondo-a aos poderes locais. Essa
centralização, no entanto só seria alcançada se governasse de maneira piedosa, com justiça e
misericórdia. A justiça deixaria de ser um privilégio para tornar-se um direito de todos, em
nome do rei.
O bom rei deveria desenvolver ações a fim de que houvesse “amor” e “amizade” entre
seus súditos, zelando e promovendo o bem comum. A figura do rei como regulador e
promotor do bem comum é necessária na medida em que a nobreza encontra-se fragmentada,
desorientada e sem consciência de grupo e da importância que possui dentro do reino. Dois
valores que permitiriam à nobreza ajudar-se mutuamente: “amor” e “amizade” estariam sendo
deixados de lado. A monarquia permitiria aos nobres retornar ao “amor” e à “amizade,”
ajudaria para que não fizessem mal uns aos outros, permitindo a configuração da unidade
Hispânica, almejada e distante da realidade.
Essa imagem ideal contrasta com uma realidade bem diferente, marcada por revoltas
nobiliárquicas, disputas entre reis e infantes. Em Portugal o Infante Afonso reivindicara o
exercício da justiça dentro do reino, sendo esse um dos fatores que contribuiu para a Guerra
Civil no final do reinado de Dinis. É uma realidade marcada ainda por reis, que na busca da
centralização não souberam relacionar-se com a nobreza, não levaram em conta seus valores e
tradições, não proveram a paz e nem garantiram o bem comum em seus reinos.
Foi analisada, ainda, a imagem do “nobre ideal”, elaborada pelo Conde a partir da
valorização do ideal cavaleiresco, pautada em virtudes como Amizade, Fidelidade e Honra,
12
PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova Série. Ed.
Crítica por José Mattoso. Vol. I. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. p. 56.
universal com que se inicia o Livro das Linhagens. A Crônica começa pois como obra de um
genealogista.”13
Ao dedicar-se à refundição da Primeira Crônica Geral aparece, segundo Lindley
Cintra, o estilo amplo do cronista, no entanto podem ser encontrados ao longo do texto alguns
esquemas genealógicos e apontamentos linhagísticos, marca do autor.
Na refundição faz uso de diversas fontes, tentando “recuperar alguns elementos do
passado mais distante ausentes das fontes manuseadas para os períodos posteriores.”14
Prolonga as histórias dos reis de Navarra e Aragão, traz a história dos reis da Sicília, versões
genealógicas dos reis da Bretanha, de Inglaterra e da França, sendo que “nenhuma dessas
histórias era abrangida pela Crônica de Afonso, o Sábio.” 15 A Crônica Geral de 1344 resulta
da união de uma versão da Crônica Geral de Afonso X a extensos enxertos da Crônica do
Mouro Rasis, da Crônica dos Vinte Reis, do Liber Regum, de textos poéticos e históricos.
A primeira redação da Crônica de 1344 termina com o relato dos reis de Castela e
Leão, chegando a Afonso XI, caracterizando-se assim como uma obra marcada pela
heterogeneidade de seu autor que se desloca entre a genealogia e a crônica, pensando em uma
história genealógica universal.
Existe, no entanto, uma segunda versão da Crônica Geral de Espanha de 1344 escrita,
segundo Lindley Cintra, no período final do século XIV ou início do XV. Sendo difícil, a
partir dos registros encontrados, precisar com maior clareza a data efetiva da redação da
mesma. Na segunda redação da Crônica de 1344 os redatores se preocuparam em fazer
desaparecer muitos dos trechos genealógicos, recuperando boa parte da versão afonsina dos
períodos mais antigos, dando ao texto um estilo mais elaborado e uniforme. 16
Na versão da Crônica Geral de Espanha de 1344, elaborada após a refundição, podem
ser encontrados extratos que são atribuídos ao próprio Conde Pedro Afonso de Barcelos.
Nesses trechos refere-se de maneira muito particular aos reinados de Dinis, seu pai, e de
Afonso IV, seu irmão. São textos de relevante interesse histórico, constituindo “um precioso
13
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História Portuguesa. Ed.
Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1990. Vol. I Introdução. p.
188.
14
DIAS, Isabel de Barros. Metamorfoses de Babel, a historiografia ibérica (sécs. XIII-XIV) construções e
estratégias textuais. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2003. p.
96.
15
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. Op. Cit., p. 35.
16
DIAS, Isabel de Barros. Metamorfoses de Babel. Op. Cit., p. 97.
depoimento de um contemporâneo que, pela sua posição, estava nas melhores condições de
observar os fatos.” 17
Para poder escrever acerca desse período o Conde empregou sua vivência na Corte de
Dinis, sua ativa participação como mediador na demanda entre Dinis e o Infante Afonso
durante a Guerra Civil, que aconteceu no reino português entre 1319-1324, e sua participação
no reinado de Afonso IV, além de relatos contemporâneos.
Ao se referir ao reinado de Dinis descreve com uma minúcia de detalhes
acontecimentos nos quais ele mesmo esteve presente, como nas viagens do rei Dinis a Aragão
em 1304, não deixando, entretanto de narrar acontecimentos em que não esteve presente. Nas
referências aos períodos do reinado em que atuou diretamente junto ao rei Dinis,
desempenhando importante papel na vida pública “há inúmeras informações acerca da sua
18
actuação, algumas delas com nítido carácter de justificação de atitudes por ele tomadas.”
Emprega desta forma a Crônica para narrar suas ações, muitas vezes justificando-as.
Tal qual já fizera Afonso X, na Crônica Geral de Espanha, o conde preocupou-se com
a formatação de uma história de abordagem universalista, sendo assim onde ficaria então a
novidade em relação aos escritos já realizados na Corte de Afonso X? Segundo Lindley Cintra
a novidade encontra-se na abundância de novas fontes utilizadas na Crônica Geral de Espanha
de 1344 e na ampliação das seções dedicadas a Aragão, Navarra e Portugal. A técnica
empregada pelo Conde para redigir a obra seria a mesma já consagrada por Afonso X,
tornando-se assim “um discípulo fiel dos processos compilatórios da escola castelhana de fins
do século XIII.” 19
Percebe-se ao analisar a produção do conde Pedro Afonso uma aproximação entre a
produção linhagística e a produção cronística, buscando construir dessa forma uma nova
leitura do passado ibérico, integrando o reino Português na história peninsular. Ressalta as
origens hispânicas e o superior ideal cavaleiresco manifestado na sua nobreza guerreira,
destacando ainda o papel dos reis portugueses na valorização da solidariedade e de
reconhecimento feudal capaz de permitir e valorizar a missão cruzadística dos fidalgos
portugueses. 20
17
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. Op. Cit., p. 399.
18
Idem., p. 397.
19
Idem., p. 416.
20
KRUS, Luís. Historiografia Medieval. In: MAGALHÃES, Isabel Allegro de. (Coord.) História e antologia
da literatura portuguesa, séculos XIII – XIV, a prosa medieval portuguesa. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkin, 1997. p. 14.
Outro ponto que deve ser observado é o de que o conde Pedro Afonso ao escrever a
Crônica, com feições universalistas, representava uma tendência que estava sendo
abandonada pela historiografia. Já na segunda versão da Crônica percebe-se indícios de
restrição do campo historiográfico. O foco principal da narrativa passa a ser somente o que
está diretamente relacionado à Península Ibérica, esta mudança de foco narrativo está
diretamente relacionada ao contexto político que marca o final do século XIV e início do XV,
período supostamente de redação da segunda versão.
A partir dessa caracterização da Crônica, levando em conta a produção do Conde
Pedro Afonso e do refundidor, ou refundidores, são percebidos elementos tanto relacionados à
primeira metade do século XIV, momento de redação do Conde, quanto elementos que trazem
referências ao momento de elaboração da refundição da Crônica, na virada para o século XV.
São duas realidades distintas sim que não impossibilitam a análise, acabam por torná-la ainda
mais instigante.
Dentro de um contexto marcado pelo processo de centralização régia é que se
encontram elementos que caracterizam um modelo de rei e de nobre. Essa imagem pode ser
elaborada por meio da análise da trajetória empregada pelo autor, chegando aos reis do
momento em que está escrevendo. Destaque será dado aos trechos onde são descritos os
reinados de Dinis e Afonso IV, tais trechos, segundo Luís Felipe Lindley Cintra, teriam sido
redigidos pelo Conde Pedro Afonso de Barcelos e não por um refundidor da Crônica.
Além da imagem de “rei ideal”, estão sendo levantados elementos acerca do “nobre
ideal” apresentado ao longo da Crônica. Será possível assim construir uma imagem modelar
acerca desse nobre que vive no século XIV, momento caracterizado pela tentativa de se
fortalecer e definir seu espaço dentro da sociedade, frente às constantes tentativas
empreendidas pelos reis a fim de centralizar seu poder.
Além da análise da imagem de rei ideal e de nobre ideal será de fundamental
relevância a análise dos trechos que sabe-se são de autoria do Conde Pedro de Barcelos, essa
análise ajudará a compreender mais sobre esse autor. Trata-se de um nobre, escrevendo sobre
valores e tradições da própria nobreza, inserido nesse contexto do século XIV tendo sido
influenciado por um conjunto de fatores psicológicos (conscientes ou inconscientes) de ordem
intelectual ou afetiva, que agindo entre si acabaram por influenciar sua obra.
Como irmão do rei Afonso IV preocupou-se em acentuar a ancestralidade da
monarquia portuguesa, mostrando a necessidade do monarca como elemento organizador da
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PEDRO, Conde D. Livro de Linhagens. [1340] In: Portugaliae Monumenta Histórica, Nova
Série. Ed. crítica por José Mattoso. Lisboa: Academia das Ciências, 1980. 2 Volumes.
PEDRO, Conde D. Crónica Geral de Espanha de 1344. In: Fontes Narrativas da História
Portuguesa. Ed. Crítica por Luís Filipe Lindley Cintra. Lisboa: Academia Portuguesa da
História, 1990. 4 Volumes.
RUCQUOI, Adeline. História Medieval da Península Ibérica. Lisboa, Estampa, 1995.
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal. VOL. I. Lisboa: Editorial Verbo, 1979.
PRÁTICAS PROIBIDAS
ANÁLISE DOS PROCESSOS CRIMES DE INCESTO NA COMARCA DE REBOUÇAS -
UM ESTUDO DE CASO
INTRODUÇÃO:
1
P: pesquisador. D: vítima.
2
Lesões corporais. Art. 129 do Código Penal Brasileiro - Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem.
Não configurando ofensa e/ou agressão sexual.
que os estudiosos possam ter uma percepção do todo aparato jurídico, não desvinculado da
sua importância ou significado social (CORRÊA, 1983, p. 51).
Tal cautela encontra também abrigo junto a produções científicas
interdisciplinares:
...podemos observar que a produção historiográfica que trabalha com as relações
entre História e Direito pode ser classificada como “rala”, em termos da
interdisciplinaridade. Muitas vezes, o simples uso de fonte documental da
administração da Justiça, por exemplo, leva a afirmativas de que se trata de um
“trabalho interdisciplinar”, que aborda a relação entre História e Direito. Por outro
lado, podemos observar que as questões intrínsecas do campo do Direito
propriamente ditas não são incorporadas, levando a alguns equívocos de
interpretação. Deste fato decorre que confunde-se, frequentemente, história do
Direito com história da Justiça, além de outros problemas de interpretação que, num
certo sentido, comprometem ainda mais a visão corrente em campos intelectuais
próximos da História de que a produção de historiadores é superficial e/ou contém
pouca fundamentação teórica. (NEDER, 1998, p.2).
3
As normais penais brasileiras nunca descreveram a prática do incesto como crime autônomo, e sim como
qualificadoras (aumento de pena) para a prática de crimes sexuais, tais como: Estupro, atentado violento ao
pudor, etc.
Pois, apenas se supomos que existe uma faculdade humana que nos capacita a julgar
racionalmente, sem nos deixarmos arrebatar pela emoção ou pelo interesse próprio,
e que ao mesmo tempo funciona espontaneamente, isto é, não é limitada por padrões
e regras em que os casos particulares são simplesmente subsumidos, mas, ao
contrário, produz os seus princípios pela própria atividade de julgar, apenas nessa
suposição podemos nos arriscar nesse terreno moral escorregadio, com alguma
esperança de encontrar um apoio para os pés. (ARENDT, 2004, p. 89).
4
Cifra negra: diferença entre a ocorrência dos crimes e seu registro. Índice maior no caso dos crimes sexuais.
5
Trata-se na realidade do padrasto, sendo a terminologia pai utilizada pela vítima.
Acentuo não ser intenção desta escrita estabelecer um abismo com relação às
produções sobre a história das mulheres, e sim, ampliar a visão, produzir uma narrativa que
também problematize as relações de poder implicadas na prática destas barbáries.
Comprovando a perspectiva adotada cabe salientar que além de apontar que o
homem também pode ser vítima do gênero masculino, encontramos na história da sexualidade
humana, descrições onde a mulher é indiciada como parte ativa na prática do incesto:
P: E sua tia, o que você acha dela?
J: Eu não gosto dela!
P: O que ela fazia com você?
J: Ela batia ni mim.
P: Que mais ela fazia, J?
J: Eu não quero conversar, eu quero brincar!!! (PINTO JUNIOR, 2005, p. 163). 6
Agressora: tia paterna, 30 anos, branca, natural do interior de São Paulo. Nível
Superior, atualmente cursando o Magistério, católica. (PINTO JUNIOR, 2005, p.
120).
6
P: pesquisador. J: vítima.
não nos cabe questioná-los, porém, se utilizaram de abreviatura ou nomes fictícios, estas serão
transcritas na íntegra, mesmo que em um primeiro momento pareçam destoar da escrita ora
produzida.
Como relação à descrição dos processos criminais pesquisados, que se
encontram arquivados junto ao Cartório Criminal de Rebouças, presumi ser necessário o
encobrimento parcial do nome, utilizando-se somente a letra inicial, tanto no relato da
narrativa como na transcrição da imagem, seja por questões legais ou de moralidade, pois
alguns autores dos dramas processuais vividos, apesar de findos os processos, vivem na
região.
A fim de se resguardar a possibilidade de nova pesquisa, e/ou a comprovação
da autenticidade da documentação citada, preservei a numeração de identificação das caixas e
processos, haja vista que os mesmos continuam sobre a guarda da Justiça, sendo esta ainda
responsável pela decisão quanto à possibilidade de publicidade.
Sobre este assunto, apesar de não ter atuado como Delegado de Polícia nos
autos criminais mencionados, nem utilizado de entrevistas, é importante lembrar ainda as
considerações de Pierre Bourdieu:
7
Arquivo do Cartório Criminal de Rebouças.
8
Termo de Segurança: documento pelo qual o infrator se comprometia a não mais praticar este tipo de crime, tal
qual o Termo de Bom Viver.
9
A portaria é anterior à portaria instaurada para apurar as lesões corporais, devendo constar de um processo
aparte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
REFERÊNCIAS:
NEDER, Gizlene; PINAUD, João Luiz Duboc; MOTTA, Márcia Maria Menendes;
RAMINELLI, Ronald; LARA, Silvia. Os estudos sobre a escravidão e as relações entre a
História e o Direito. Tempo, Vol. 3 – nº 06, Dezembro de 1998.
RIBEIRO, Edméia. Meninas Ingênuas: uma espécie em extinção? Curitiba: Aos Quatro
Ventos, 2004.
INTRODUÇÃO
imaginário que estava sendo construído no período medieval, e os resultados em sua fase
final.
Os temas das obras de arte jamais são escolhidos sem um motivo. Em uma
sociedade de grandes banqueiros, a Adoração dos Reis Magos alude à homenagem
dos poderosos da Terra ao Deus nascido na pobreza, mas também ao favor de Deus
para quem, dotado de tantos bens, emprega-os para santos fins. (2003, p. 143)
Esta metodologia é feita com base nos níveis propostos por Panofsky
(2011), que são: Tema Primário ou Natural, Tema Secundário ou Convencional e Significado
Intrínseco ou Conteúdo, ou respectivamente, Análise pré-iconográfica, Análise iconográfica e
Análise Iconológica.
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal objecto identificar o
modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é
construída, pensada, dada a ler. (1990, p. 16-17)
Os Magos como Reis, indicados pelo uso de coroas, são próprios do reinado
de Otto II, imperador do Sacro Império Romano, próximo ao século IX. A cena da adoração
dos Reis Magos foi propícia para elevar o seu poder. Uma pintura contemporânea a este
reinado ilustra a cena com Magos-Reis, investidos de suas coroas de aro de ferro, que se
prostram diante da sagrada família, que estão de frente do seu “estábulo”, que tem a
arquitetura de uma pequena igreja, e humildemente entregam suas oferendas (RUSSO, 1996).
Nesta obra é verificada por sua narrativa que a santificação dada aos Magos
ocorreu durante os séculos VI-XII, através de longas peregrinações motivadas pelo culto das
supostas relíquias atribuídas aos Magos, até sua chegada à Colônia, norte da Alemanha. Em
meados do século XIII, Varazze expõe o seguinte sobre este culto:
Seus corpos repousavam em Milão, numa igreja que é agora da Ordem dos Irmãos
Pregadores, mas foram depois levados a Colônia. Anteriormente esses corpos
tinham sido trasladados para Constantinopla por Helena, mãe de Constantino, depois
foram transferidos para Milão pelo santo bispo Eutórgio, por fim o imperador
Henrique transportou-os de Milão para Colônia, às margens do Reno, onde são
objeto da devoção e da reverência do povo. (2006, p. 156)
Na edição de 2006 do livro Legenda Áurea, Franco Júnior, abre uma nota
para esclarecer alguns pontos sobre o que foi exposto por Varazze:
Escrevendo cerca de cem anos depois desses fatos, Jacopo engana-se quanto a sua
cronologia. Na verdade as relíquias dos Reis Magos foram transferidas de Milão
para Colônia pelo arcebispo Reinaldo de Dassel, chanceler do imperador Frederico
Barba Ruiva, em junho e julho de 1164, provavelmente como punição pela
insubordinação daquela cidade italiana ao poder imperial. (2006, p. 156) 1
A nota demonstra que Varazze escreveu diante da oralidade acerca da
devoção. Em Colônia, as relíquias estão coroadas, afirmando mais uma vez de maneira visual
a realeza de tais personagens.
CONCLUSÃO
1
Nota 5 – A Epifania do Senhor.
BIBLIOGRAFIA
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. v.2. São Paulo:
Cosac & Naify, 2003.
IMPELLUSO, Lucia. Metropolitan: Museum of Art Nova York. São Paulo: Folha de São
Paulo, 2009.
LE GOFF, Jacques. (sob direção de). O Homem Medieval. Lisboa: Presença, 1989.
PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Perspectiva, 2011.
RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
RUSSO, Daniel. Les représentations mariales dans l’art d’Occident Essai sur la formation
d’une tradition iconographique. In: IOGNA-PRAT, Dominique; PALAZZO, Éric; RUSSO,
Daniel. Marie: lê culte de la vierge dans la sociétóe médiévale. Paris: Beauchesne, 1996.
STARN, Randolph. Vendo a cultura numa sala para um príncipe renascentista. In: HUNT,
Lynn. A Nova História Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
Para isso, a resolução de tais imbróglios normalmente tem seu desfecho na ação do
Poder Judiciário. Isso ocorre ainda mais comumente porque sempre há população diretamente
envolvida. Nesses casos, a efetivação da Democracia Participativa3 através de plebiscitos é
alternativa usual para determinar o rumo e o destino dos territórios contestados.
É lugar-comum nos estudos das ciências humanas e sociais que problematizam a teoria
da Democracia, que o mecanismo intitulado plebiscito remonta efetivamente ao Império
Romano. Tal instituto permeou durante certo período as decisões da plebe que pretendiam
validar suas ações políticas em assembleias (Concilium plebis)4.
A partir desse momento, a utilização do plebiscito disseminou-se pelos mais diversos
países ao redor do mundo, sendo apropriado e utilizado das mais diferentes formas e com as
mais díspares intencionalidades políticas5.
No Brasil, o plebiscito atualmente é entendido através da Constituição de 1988 como
um instituto de Democracia Participativa juntamente com o referendo e a iniciativa popular.
Tais mecanismos visam ser singulares, guardando suas próprias características e
especificidades políticas e jurídicas. Todavia, essa questão ainda guarda controvérsias teóricas
e práticas a respeito.6
Por outro lado, para conceituar o plebiscito, Auad diz que: “De forma sucinta, o
plebiscito consiste em uma consulta à opinião pública para decidir questão política ou
institucional, não necessariamente de caráter normativo. A consulta é realizada previamente à
sua formulação legislativa, autorizando ou não a concretização da medida em questão”7
3
Entende-se como mecanismos da Democracia participativa ou Democracia semidireta - presentes na
Constituição brasileira de 1988 - o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.
4
DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Breves considerações sobre plebiscito, referendo e participação popular
no Brasil. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 51-65, out./dez. 2009. Disponível em:
http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/view/1314/1300. Acesso em: 20 jul. 2012.
5
Alguns casos emblemáticos a respeito. Napoleão estrategicamente usou um plebiscito para aprovar a
Constituição de 22 de brumário do Ano VIII, que abriria caminho ao golpe de Estado de Napoleão I. Já Hitler
utilizou o plebiscito como justificativa para anexar a Áustria ao III Reich, o famoso Anchluss. Atualmente, o
plebiscito é um método recorrente do governo venezuelano de Hugo Chávez para aprovar suas ações estatais.
6
Uma breve tentativa de explicação que visa diferenciar o “plebiscito” do “referendo” é esboçada em GEMMA,
Gladio. Plebiscito. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco (orgs.). Dicionário
de Política. 11. ed. Brasília: Editora UNB, 1998, p. 927.
7
AUAD, Denise. Mecanismos de participação popular no Brasil: Plebiscito, referendo e iniciativa popular.
Revista Unibero de produção científica, setembro de 2005. p. 12.
É válido constatar assim, que o plebiscito pode ser requerido por uma gama esparsa de
fatores e situações. A única necessidade é que guarde em comum o interesse coletivo das
populações envolvidas. Nesse meio, a disputa por terras entre municípios é uma dessas
situações mais frequentes no Brasil que requerem invariavelmente a utilização do plebiscito.
Questão essa, que marcou o sudoeste paranaense em diversas ocasiões.
Especificamente na década de 1960, uma das microrregiões do sudoeste 8, a que perpassa os
municípios de Chopinzinho, São João e São Jorge D´Oeste, foi reconfigurada territorialmente
por meio de um intenso contexto plebiscitário.
8
A adoção do conceito de microrregião deve-se pelo fato do recorte temático da presente pesquisa abordar três
municípios em uma gama que engloba quarenta e dois municípios no sudoeste paranaense. A lista de
microrregiões paranaense pode ser conferida em:
<http://www.ipardes.gov.br/pdf/mapas/base_fisica/relacao_mun_micros_mesos_parana.pdf> Acesso em: 20
mar. 2011.
9
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 4 ed. Petrópolis: Editora Vozes,
1987, p. 22.
segunda metade dos anos 50, que de fato abrira amplos horizontes, cedera lugar à apreensão
às contradições que se acumulavam.”10
Estabelecendo um elo entre o contexto nacional e o regional, vale destacar que os anos
sessenta, para muitas regiões, inclusive na microrregião analisada, foi um período de intensa
movimentação política, onde se firmaram várias emancipações municipais11. Logo, a disputa
pela legitimação de divisas territoriais e de pequenas comunidades foi veemente.
Nessa perspectiva de embate de forças políticas, é necessário lembrar que a
desvinculação de um distrito/comunidade de seu então município, através de um plebiscito,
ocorre normalmente porque os interesses já não são mais os mesmos, pelo contrário, os
interesses aparecem agora eventualmente de forma antagônica.
Esse é o caso de São João, emancipado politicamente de Chopinzinho em 1960 e o
caso de São Jorge D´Oeste, elevado a categoria de município junto à São João em 1963. Nas
duas situações, ambos os municípios emancipados eram distritos políticos. Ou seja, São João
pertencia administrativamente à Chopinzinho e São Jorge D´Oeste à São João12.
Interessante, e no mínimo curioso, é que São João e São Jorge D´Oeste foram
emancipados em climas políticos aparentemente amistosos, já que não foi necessária a
realização de pleitos para desmembrar tais distritos. Isto é, houve um consentimento (que
representa uma maioria mas não necessariamente uma totalidade) dos legisladores dos
municípios-sede para a devida aprovação de suas emancipações.13
Desse modo, no que se refere aos prováveis significados que as emancipações
políticas transmitiram naquele momento inúmeras perguntas surgem: O que estimulou os
10
REIS, D. A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 19.
11
ALVES, Alessandro Cavassin. Considerações sobre as emancipações municipais no Paraná. In: _______. O
processo de criação de municípios no Paraná: as instituições e a relação entre executivo e legislativo pós 1988.
Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, n.111, p.47-71, jul./dez. 2006. Disponível em:
<http://www.ipardes.gov.br/webisis.docs/rev_pr_111_cavassin.pdf > Acesso em: 10 abr. 2011.
12
Já Chopinzinho obteve sua emancipação política no ano de 1954 frente à desvinculação do município de
Mangueirinha.
13
Lembremos que São João enquanto distrito político de Chopinzinho (o maior em população e em influência
política) tinha seus representantes na Câmara Municipal de Vereadores desse município, que salvaguardavam os
possíveis interesses da comunidade. O mesmo acontecia com São Jorge D´Oeste como distrito político de São
João. Para exemplificar melhor, nas eleições municipais de 04/10/1959, o distrito de São João contava com um
candidato a prefeito de Chopinzinho, dois vereadores eleitos e quatro suplentes. Mais informações em:
https://www.tre-pr.jus.br/internet2/tre/estatico/eleicoes/anteriores/resultados/19591004A75035.pdf. Acesso em:
16 jul. 2012.
Já na relação São João x São Jorge D´Oeste, percebemos que nas eleições municipais de 08/10/1961 o distrito de
São Jorge contava com 1 vereador eleito e 3 suplentes, mostrando a influência e pressão exercida dentro do
município-sede. Dados disponíveis em:
https://www.tre-pr.jus.br/internet2/tre/estatico/eleicoes/anteriores/resultados/19611008A78719.pdf. Acesso em:
16 jul. 2012.
Como região geopolítica do Paraná, o sudoeste não pode ser analisado somente
enquanto espaço geográfico, político ou jurídico. Suas fronteiras fluídas e plurais são também
14
Essa pesquisa empírica está sendo realizada atualmente através do estudo no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Estadual de Maringá – UEM, em nível de mestrado.
15
O plebiscito realizado na comunidade de Alto Mirim em 1968 ainda gera acalorados debates entre as
administrações municipais de Chopinzinho e São João. Isso porque na circunstância o plebiscito foi favorável à
São João, já que até então a comunidade pertencia a Chopinzinho. No entanto, parte da documentação referente
ao plebiscito e à transferência de terras perante o Estado sumiu em um possível incêndio ocorrido nos acervos
documentais do governo paranaense na década de 1970. Enfim, o plebiscito é tema de um processo na justiça
movido pela prefeitura municipal de São João.
Nesse debate, entendendo que as fronteiras são espaços dinâmicos e não áreas
estáticas, Pierre Bordieu afirma que:
Evidentemente, o sociólogo francês procura alertar para o fato de que para ele, regiões
e fronteiras não são produtos “naturais”, estabelecidos a priori pela natureza e sim, são
construções e produções humanas, que atendem a interesses políticos e/ou ideológicos.
Desse modo, torna-se instigante pensar que as regiões fronteiriças – alvos de litígio –
entre os municípios em análise estabelecem áreas de contato, onde as pessoas que circulam
nesse meio (cidadãos enquanto eleitores e atores políticos como incentivadores dos eventos)
trocam experiências políticas, sociais, culturais e econômicas que podem ser determinantes
para as resoluções plebiscitárias.
16
BORDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
17
MONDARDO, Marcos Leandro; BACKES, Thaine. A dinâmica migratória na (trans) formação territorial do
Sudoeste paranaense. Cascavel, Revista Ciências Sociais em Perspectiva. v. 07, n. 12, 2009.
A hipótese das investigações sobre a cultura política é que esta, uma vez adquirida
pelo homem adulto, constituiria o núcleo duro que informa sobre as suas escolhas
em função da visão do mundo que traduz. O estudo da cultura política, ao mesmo
tempo resultante de uma série de experiências vividas e elemento determinante da
acção futura, retira sua legitimidade para a história da dupla função que reveste. É
no conjunto um fenômeno individual, interiorizado pelo homem, e um fenômeno
coletivo, partilhado por grupos numerosos. 20
do homem a visão de mundo que ele traz consigo. Ao passo que seu estudo pode determinar
as experiências vividas e ser fundamental nas ações futuras dos homens, a cultura política
legitima sua dupla função, que é ser um fenômeno individual interiorizado pelo homem e
demonstrar seu caráter coletivo, partilhado por grupos numerosos que comungam dos mesmos
interesses e ideais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo da ideia de que o plebiscito é uma eleição21, que opõe discursos, propostas e
interesses, esse fenômeno eleitoral organizado e realizado pelo Tribunal Regional Eleitoral,
(um “braço” do Estado), guarda e mantém algumas singularidades.
Por outro lado, as idas dos atores políticos para as chamadas “áreas plebiscitárias” são
frequentes, e ocorrem com o intuito de “demarcar território”, apresentar preocupação com os
21
RÉMOND, René. As eleições. Por uma História política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
Dessa maneira, se estabelece uma instigante contradição. Isso porque, apesar de terem
a mesma origem territorial, política e cultural, e assim, compartilharem ideais, motivações e
interesses, os anos sessenta colocam os mesmos municípios frente a frente brigando por
territórios, comunidades e distritos. Há a tentativa persistente de legitimação de determinados
territórios.
Nesse jogo de poder comandado pelas elites dirigentes, e que muitas vezes não leva
em conta os interesses das populações em litígio e sim apenas os próprios interesses
particulares, vale situar a relação política estabelecida entre os legisladores dos três
municípios estudados.
realizadas obras estruturais nas comunidades litigiosas, como por exemplo, melhorar as
estradas que dão acesso a ela, construir uma igreja ou pagar os professores da escola.
Assim, compreende-se a interação das relações políticas que foram construídas e (re)
construídas entre as elites locais de três pequenos municípios do interior paranaense, que
através de um âmbito plebiscitário procurou demarcar e legitimar suas ambições políticas,
econômicas, sociais e territoriais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 4 ed. Petrópolis:
Editora Vozes, 1987.
BERSTEIN, Serge, A cultura política. Para uma História cultural. Lisboa: Editorial Estampa,
1992.
REIS, D. A. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2005.
RÉMOND, René. As eleições. Por uma História política. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2003.
1
Bolsista REUNI.
2
Entende-se por comércio de secos artigos não comestíveis como: tecido, sapatos, louças, móveis e assim por
diante. Já o termo molhados era utilizado para designar todo tipo de produtos comestíveis e bebidas.
Segundo Peter Burke3 e François Dosse4, o termo biografia foi elaborado na Grécia
Antiga. Neste período o gênero biográfico foi utilizado com a intenção de transmitir valores
morais por meio de relatos de vidas militares e políticas exemplares. Tornavam-se objeto de
estudo as vidas cujos feitos poderiam servir de modelo para o restante na humanidade. O
personagem biografado era exaltado em meio a anedotas havendo uma despreocupação com a
verdade histórica. Entre os principais nomes de biógrafos deste período podemos citar:
Xenofonte, Isócrates, Suetônio e Plutarco.
Plutarco, nascido no ano 45 d.C., escreveu vidas utilizando o método biográfico
comparativo. Através de comparações entre a vida de um herói grego com a de um romano,
procurava extrair valores morais confrontando defeitos e virtudes entre ambos os heróis.
Como afirma François Dosse: “o objetivo capital do projeto de Plutarco é revelar os traços de
destaque de um caráter psicológico em sua ambivalência e complexidade, inaugurando assim
o gênero da vida exemplar com tons moralizantes”.5
Nesta forma de abordagem, o personagem só interessava enquanto constituía
modelos para a sociedade. O biógrafo voltava o seu olhar para os fatos relacionados à vida
pública do biografado. Dessa forma a singularidade do percurso individual é deixada de lado.
Nas vidas relatadas, o herói virtuoso de Plutarco era aquele que abdicava as vontades pessoais
em favor do bem geral. Neste caso, o indivíduo era visto como o elemento que agia sobre o
contexto, e os escritos biográficos tinham como objetivo eternizar as ações consideradas
exemplares.
No século IV a.C., Xenofonte e Isócrates também voltaram-se para o relato de vidas
políticas na Grécia antiga. Assim como Plutarco, ambos buscavam retratar vidas com o intuito
de transmitir valores morais. As biografias escritas por estes autores também eram recheadas
de anedotas com o objetivo de engrandecer o personagem como herói da pátria. Neste sentido,
não havia uma preocupação com a verossimilhança afastando o gênero biográfico do trabalho
realizado pelo historiador. Por outro lado, durante o século I d.C., Suetônio voltou-se para a
construção de biografias de sujeitos ligados ao mundo artístico. Buscou introduzir a crítica ao
gênero biográfico. Demonstrou uma preocupação com a autenticidade dos fatos aproximando
o trabalho do biógrafo do realizado por historiadores.
3
BURKE, Peter. “A invenção da biografia e o Individualismo Renascentista”. “Estudos Históricos:
Indivíduo, biografia, história”. Nº 19, pp. 1 – 14.
4
DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. São Paulo: Editora da USP, 2009 (cap. 2, pp.
123 – 151).
5
Idem, DOSSE, François. p. 127.
Neste período era comum relatar a vida do herói como seguidor de um percurso
entre vícios e virtudes, terminando com a glorificação do personagem. Esta forma de se
escrever biografias também foi adotada na Idade Média. Porém, neste período, o herói
político e militar, dividia espaço com o relato de vida de santos. Os hagiógrafos relatavam
vidas cronologicamente como se o indivíduo nascesse predestinado a ser santo. O biografado
era um mero cumpridor do plano divino. Este executava as ações pré-determinadas sem sofrer
influências externas e não existia enquanto indivíduo.
Pierre Bourdieu critica este tipo de abordagem biográfica. Segundo o autor, não é
possível abordar a vida como uma sucessão linear de acontecimentos orientados para
determinado fim. Não é possível compreender uma vida sem levar em conta as relações
sociais que envolvem cada sujeito. O indivíduo não nasce com um destino pré-determinado,
este vai se construindo de acordo com o meio social em que pertence. Neste sentido, Bourdieu
salienta que:
[...] não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos construído os
estados sucessivos no campo no qual ela se desenrolou e, logo, o conjunto das
relações objetivas que uniram o agente considerado – pelo menos em certos números
de estados pertinentes – ao conjunto dos outros agentes envolvidos no mesmo
campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis [...]6.
Levi, as incoerências dos sistemas normativos deixam brechas de liberdade de atuação aos
agentes, e a vida de um indivíduo deve ser abordada levando em conta suas escolhas e
hesitações. O autor renega a sucessão de acontecimentos cronológicos, e defende a idéia de
que uma trajetória deve ser estudada estabelecendo relações com seus diversos contextos.
Neste sentido, para Levi indivíduo e sociedade se constroem mutuamente. O
indivíduo age sobre o contexto e ao mesmo tempo sofre influências do meio social. Dessa
forma, defende a idéia de que a abordagem biográfica deve levar em conta as influências
externas. O biografo precisa estar atento as incertezas que estão por traz das ações humanas e
deve relacionar o indivíduo com seus diversos contextos através de uma descontinuidade
histórica.
As críticas de Bourdieu e de Levi a escrita de uma biografia somente como descrição
de um percurso que não sofre influências externas, equivalem também para as produções do
período renascentista. Com a ascensão do humanismo ocorreu um interesse maior tanto pela
construção quanto pela leitura de biografias, porém, os biógrafos continuavam a escrever
biografias como na antiguidade e no período medieval. Segundo Burke8, os escritores
renascentistas engrandeciam o biografado com características de heróis modelos e apagavam
o indivíduo. Muitos utilizavam as biografias escritas por Plutarco como padrão para suas
produções. No mesmo sentido, François Dosse afirma que Plutarco: “é lido como um
contemporâneo pelos homens da renascença, um companheiro, um exemplo a seguir.” 9
A contemporaneidade de Plutarco durante o período renascentista fazia com que os
escritores continuassem a utilizar a biografia como mestra da vida. As biografias continuavam
tendo como objetivo a transmissão de valores morais através do registro de vidas exemplares.
Os escritores continuavam a engrandecer o biografado através de anedotas, aproximando-se
do gênero literário. A personalidade continuava sendo vista como estática. As circunstâncias
mudavam e os indivíduos permaneciam os mesmos não sofrendo influências externas.
No final do século XV os trabalhos biográficos demonstraram uma mudança em
relação ao aparecimento da individualidade. Tornou-se comum a utilização de biografias nos
prefácios de obras. O objetivo era utilizar dados biográficos como uma forma de facilitar a
compreensão da obra através do conhecimento da personalidade do autor. O mesmo equivalia
para o uso de anedotas, estas passaram a ser utilizadas com o intuito de revelar dados pessoais
do biografado.
8
Idem BURKE, Peter.
9
Idem, Dosse, p. 126.
generalizações sociais. Entre estes podemos citar Thomas Carlyle (1930). Para Carlyle,
mesmo que a humanidade caminhe para um plano teológico, as compreensões dos fatos só se
tornavam possíveis por meio da compreensão do emaranhado de vidas particulares que
compõe o todo social.
Em meio a estas tensões entre particular e geral que foram demonstradas até aqui,
defende-se a ideia de que não é possível compreender uma vida sem antes compreender a
sociedade em que o indivíduo esta inserido, e não é possível compreender a sociedade sem
antes compreender as diversas vidas que a compõem. Ou seja, não se pode compreender uma
trajetória desvinculada do espaço social em que ela se realiza, e não é possível conhecer uma
sociedade sem levar em conta a singularidade da vida dos atores sociais. Uma biografia só
faz sentido e torna-se compreensível a partir do momento em que é inserida em seus diversos
contextos históricos. O particular esta inserido no todo e o todo é uma junção da existência
das diversas vidas singulares.
A partir dessa relação entre indivíduo e contexto, um único nome de uma pessoa
possibilita conhecer uma série de acontecimentos. Isto ocorre devido ao fato de qualquer
trajetória fazer parte de uma rede de relações sociais. Através de uma biografia é possível
vislumbrar o geral por meio do particular. Podemos citar como exemplo desta ligação entre
biografia e micro-história, as relações sociais que se desenvolviam em torno dos armazéns
localizados na cidade de Ivaí/PR no período de 1910 a 1975.
Os armazéns desta pequena cidade localizada no sudeste paranaense, também
incrementavam a circulação de mercadorias fazendo parte de um movimento comercial maior.
Os habitantes desta região, mais especificamente os carroceiros, vendiam produtos agrícolas e
tropas de suínos em centros consumidores maiores tais como Ponta Grossa. Após a venda as
carroças eram reabastecidas com novos produtos para serem re-vendidos nos armazéns de
secos e molhados de Ivaí. Dessa forma os carroceiros intensificavam as relações comerciais
desenvolvendo redes de sociabilidade entre espaços distintos. Levavam até os armazéns de
Ivaí as mais diversas novidades, entre elas estavam: notícias, ferramentas, alimentos, tecidos,
bebidas, vestimentas e vários produtos considerados “novos” que mexiam com a curiosidade
dos consumidores.
11
CERTEAU, Michel de; LUCE, Giard; PIERRE, Mayol. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. 6ª
edição. Rio de Janeiro-Petrópolis: Vozes, 2005, p.53.
12
DERKASCZ, Pedro. Registro de produtos consumidos no período de 1930 até meados da década de 1940.
Acervo pessoal. Mariano Derkascz. KOSS, João. Livro de registro de saída de mercadorias do período de
1970 a 1971. Acervo pessoal de Maria Kos. PYETLOWANCIW, Elias. Registro de produtos consumidos no
período de 1912 até meados da década de quarenta. Acervo pessoal de Mariano Derkascz.
13
GINZBURG, Carlos. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: Defil, 1989, p. 175.
14
LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
micro-história, Giovanni Levi utilizou a biografia do padre exorcista Giovan Battista Chiesa
para compreender relações sociais mais amplas. Partiu do indivíduo e de uma pequena
comunidade italiana do século XVII, para entender o processo de transição do feudalismo
para o capitalismo. Isto fica explicito em suas palavras: “a história de Chiesa foi, portanto,
não apenas de sua narrativa, mas também o pretexto para a reconstrução do ambiente social e
15
cultural da cidade.” Levi utilizou o indivíduo e as mudanças locais como um meio para
entender as transformações do poder central. Por meio de alguns fatos relacionados à
biografia de Chiesa, foi reconstruindo uma teia de relações sociais que demonstravam as
transformações e as instabilidades do período estudado. Desse modo, através da vida de um
indivíduo, buscou compreender a expansão do estado moderno.
Nestes aspectos, a utilização da biografia na micro-história atrela o indivíduo à
sociedade. Se para os historiadores positivas somente os fatos gerais são capazes de revelar
algo sobre a humanidade, por outro lado, a micro-história utiliza os fatos particulares para
entender acontecimentos mais amplos, porém, esta particularidade só faz sentido dentro de
um contexto social. Neste caso, a biografia pode ser utilizada como um meio para se chegar a
diversos acontecimentos, e uma forma de se dinamizar o conhecimento histórico com
incertezas, problemas e escolhas dos indivíduos. Como afirma Jacques Revel: “a abordagem
micro-histórica deve permitir o enriquecimento da análise social, torná-la mais complexa,
pois leva em conta aspectos diferentes, inesperados, multiplicados da experiência coletiva.”16
Mais uma vez podemos citar como exemplo desta ligação entre indivíduo e contexto na
micro-história, a abordagem biográfica que Giovanni Levi fez do padre exorcista Giovan
Battista Chiesa.
A herança imaterial uniu o individual com o social. O autor colocou indivíduo e
sociedade caminhando lado a lado em uma construção mutua. A realidade é vista como
resultado da interação do indivíduo com o contexto. Dessa forma, o contexto não é abordado
como algo rígido e determinante. Como vimos, para Levi o indivíduo sofre influências sociais
em suas ações, porém, as incoerências dos sistemas normativos oferecem diversas
possibilidades de atuações sobre o contexto. Na herança imaterial o contexto é construído a
partir das ações e relações sociais do indivíduo com a sociedade. As mudanças vão
aparecendo como resultado desta interação entre indivíduo e contexto. Desse modo, a obra
15
Idem, p. 47.
16
REVEL, Jacques. “Prefácio”. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial: trajetória de um exorcista no
Piemonte do século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, p. 18.
permite exemplificar que as escolhas dos indivíduos estão atreladas as relações que este
estabelece com a sociedade. A trajetória não tem sentido desvinculada do social.
Outro trabalho que pode ser citado como exemplo é religiosidade e escravidão,
século XIX: mestre Tito17 de Regina Xavier. A autora partiu do particular para entender
questões mais amplas envolvendo a vida dos africanos em Campinas durante o século XIX.
Através da vida de Tito, Regina Xavier trouxe uma série de acontecimentos sociais. Isto é
possível porque a vida de Tito não existia desvinculada do social, esta fazia parte de uma rede
de relações sociais. Desse modo, Xavier foi construindo a biografia de Tito por meio dos
vastos relacionamentos que este estabeleceu durante sua existência.
Nesta interação entre indivíduo e sociedade, a trajetória vai se construindo a partir
das relações sociais estabelecidas. Dentro desta perspectiva, um indivíduo não nasce
predestinado a cumprir determinados objetivos durante sua existência. É neste sentido que
Pierre Bourdieu criticou a idéia de relatar a vida de um indivíduo desvinculada de um espaço
social. Para isto afirmou que:
[...] Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância não é senão aquela de um nome próprio, é quase tão absurdo quanto
tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da
rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações. Os
acontecimentos biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço
social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos da estrutura da
distribuição das diferentes espécies de capital que estão em jogo no campo
considerado [...].18
Como vimos, para Bourdieu não é possível compreender uma trajetória sem antes
compreender o espaço social em que o individuo esta inserido e suas diversas relações
estabelecidas com outros agentes. O contexto influencia nas ações individuais levando o
sujeito a estar sempre em constantes transformações nos diversos campos em que atua. Por
meio desta concepção biográfica, não é possível abordar e entender o indivíduo sem antes
abordar o contexto.
Esta forma de explicar a vida de um indivíduo, presa à sociedade, é o oposto da
abordagem biográfica de casos extremos cita por Giovanni Levi. Neste tipo de abordagem, as
biografias são utilizadas para explicar o contexto e a sociedade. Parte-se do indivíduo e de
17
XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito. Porto Alegre: UFRGS,
2008.
18
Idem BOURDIEU, Pierre. 1996, p. 190.
casos extremos para entender as tramas sociais mais gerais. As duas obras citas deste
trabalho: a herança imaterial e Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito,
aproximam-se desta proposta porque os autores utilizaram o indivíduo como um meio para
revelar questões socais mais amplas. Por outro lado, afastam-se porque tanto Tito quanto
Chiesa são dois personagens que vão construindo os contextos e se construindo ao longo das
obras.
Em meio a estas diferentes formas de se abordar o contexto, conclui-se que:
biografia, micro-história, indivíduo e sociedade são elementos complementares. Uma
trajetória em sua particularidade só faz sentido se vinculada a um contexto. Por outro lado, o
contexto é resultado das ações humanas não sendo possível compreende-lo sem levar em
conta a vida dos agentes sociais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERTEAU, Michel de; LUCE, Giard; PIERRE, Mayol. A invenção do cotidiano: 2. Morar,
cozinhar. 6ª edição. Rio de Janeiro-Petrópolis: Vozes, 2005, p.53.
DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. São Paulo: Editora da USP,
2009 (cap. 2, pp. 123 – 151).
LEVI, Giovanni. “Usos da biografia”. IN: FERREIRA, Marieta de Morais & AMADO,
Janaina (orgs.). Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1996.
LORIGA, Sabina. “A biografia como problema”. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de
escalas: a experiência da micro-análise. Rio de Janeiro: editora da FGV, 1998.
XAVIER, Regina Célia Lima. Religiosidade e escravidão, século XIX: mestre Tito. Porto
Alegre: UFRGS, 2008.
1
É importante salientar que os dados referentes à cobertura florestal atual do Estado são bastante polêmicos e
variam bastante dependendo da fonte utilizada. Há que se considerar o conflito existente entre os critérios
políticos e os critérios técnicos na análise e divulgação dos mesmos.
continua desde a porção central do Rio Grande do Sul ao Sudeste do Estado de São Paulo. A
floresta com araucária compunha na verdade a maior floresta original do sul do Brasil,
chegando a cobrir um terço de toda região.
No Paraná, a região das araucárias estende-se desde o primeiro planalto,
imediatamente a oeste da Serra do Mar, até os segundo e terceiro planaltos. Também ocorre
na região dos Campos Naturais na forma de capões ou nos vales dos rios. A fitofisionomia da
floresta com araucária se caracteriza pelo fato de o pinheiro formar o patamar superior da
floresta. Com uma cobertura muitas vezes extremamente densa, olhando-se de cima parece
que a floresta é constituída unicamente de pinheiros. Olhando-se de baixo, ou seja, de dentro
da floresta, houve um tempo em que era possível caminhar dias sem ver a luz do sol, segundo
um relato de do fim do século XIX do viajante naturalista Thomas Bigg-Whiter (1974). Mas
esse foi um tempo em que a floresta ainda estava praticamente intacta e correspondia a quase
40% da área total do Estado.
Ainda que a composição da floresta com araucárias varie dependendo da região, de
forma geral eram florestas ricas em espécies como a imbuia, o cedro, o ipê e as canelas,
madeiras de grande interesse comercial, e outras espécies de enorme valor econômico como a
erva-mate e o xaxim, isso sem falar das centenas de espécies animais e botânicas
imprescindíveis na dinâmica natural desse ecossistema singular .
Os últimos dados oficiais em relação ao estado de conversação da floresta com
araucária são dos estudos realizados em 2001 pela Fundação de Pesquisas e Estudos
Florestais. Sintetizando as informações do levantamento, observou-se que as florestas em
estágio avançado correspondem a apenas 0,8% da área total da floresta com araucária e 0,24%
nos campos. São apenas nessas florestas em estágio avançado que ocorrem espécies
exclusivas e uma maior biodiversidade. Ao mesmo tempo, “essas florestas de extrema
importância são as que vem sendo mais impactadas com a retirada seletiva de madeira ou
mesmo com a retirada total da floresta”. Comparando os dados coletados ao longo dos
últimos 20 anos, a conclusão dos pesquisadores é que praticamente “não há mais
remanescentes de floresta com araucária primária” e “os poucos e dispersos fragmentos de
floresta em estágio avançado de regeneração estão em franco processo de desaparecimento”
(CAMPALINI; PROCHNOW, 2006, 76).
No caso do Paraná, a devastação das florestas com araucária torna-se ainda mais
paradoxal se levarmos em conta a importância que o pinheiro, especificamente, ocupa no
imaginário social do povo paranaense.
Com a proclamação da República em 1889 e a consolidação do federalismo, a
construção das identidades culturais tanto da nação como dos estados que a formavam se
colocava como imperativo. Mas o Paraná era um estado que, no início do século XX, ainda
carecia de uma base demográfica, econômica, social e cultural. Nem mesmo seus limites
territoriais estavam bem definidos. Em outras palavras, tratava-se de um estado sem
identidade.
Foi com vistas a suprir ao menos parte dessas lacunas que um grupo de intelectuais,
políticos e artistas se dedicou à tarefa de “inventar o Paraná”. Surgia então o Movimento
Paranista cujo papel era exatamente “forjar uma identidade regional, com base nos ideais de
progresso, modernidade e ciência que embalavam a República, em uma construção
absolutamente ufanista que faria o elogio da terra” e do povo paranaenses (PEREIRA, 1997,
88).
Em paralelo à formulação desse discurso histórico, que vinha se delineando na
verdade desde o final do século XIX mas que alcança sua cristalização entre as décadas de
1920 e 1930, toda uma produção de dispositivos simbólicos-ideológicos foi edificada com o
objetivo de estabelecer laços de afetividade, e conseqüentemente, de identificação dos
paranaenses para com as imagens, os símbolos e as representações que a partir de então os
caracterizariam. Coube às artes, sobretudo à literatura, à escultura e à pintura, a construção e a
representação dos mitos e das lendas paranistas, a promoção do paranaense ideal – assentado
na ideia do imigrante branco, trabalhador e semeador do futuro – e a sinalização e o
enaltecimento das riquezas da natureza dessa terra, tais como os rios, as montanhas da Serra
do Mar, as Quedas do Iguaçu, a erva-mate, o reino animal e o próprio clima.
Mas de todas as representações utilizadas pelo Movimento Paranista, o pinheiro foi,
sem dúvida, “o que se encaixou de forma mais concreta em suas pretensões simbólicas”
(PEREIRA, 1997, 142) e de maior eficácia e durabilidade no processo de construção da
identidade do povo paranaense. Nas analogias criadas pelos paranistas o futuro do Paraná
seria pujante, de porte agigantado e se destacaria do resto do Brasil assim como o pinheiro se
destaca no meio da floresta; o caráter do paranaense era retilíneo e altivo, tal como o tronco
daquela árvore, e assim por diante. Some-se a isso que pinheiro é uma espécie que de fato
[...] Quando um artista paranaense está só ele pensa no pinheiro; quando está
em companhia de outro artista, fala do pinheiro; e quando os artistas
reunidos são mais de dois, discutem sobre o pinheiro. (...) Discutíamos as
suas qualidades, as suas dificuldades e as suas novas possibilidades para o
campo da arte (MORRETES, 1953).
Nas obras de vários pintores renomados como Ghelfi, Freyesleben, Traple, De Bona
encontramos registradas as suas percepções e interpretações sobre a árvore-símbolo do
Estado. O próprio espaço urbano da capital se tornou tela para as intervenções paranistas e o
pinheiro passou a figurar tanto na arquitetura como nas calçadas e nos monumentos das
praças.
Porém, ao mesmo tempo em que os paranistas se empenhavam na construção de uma
identidade simbólica e intelectualmente construída para o Paraná, o principal elemento
concreto do entorno natural que sustentava tal formação discursiva, o pinheiro, começava a
rarear.
A partir da década de 1930 a indústria da erva-mate que havia a base da economia
paranaense do século XIX e, em grande parte, responsável pela introdução das relações
capitalistas de produção no Paraná foi sendo substituída por um modelo econômico pautado
no café e na madeira. De fato, o potencial econômico das florestas fez com que a indústria
madeireira se expandisse pelos municípios paranaenses. Com a colonização do norte e do
sudoeste do Paraná, e conseqüente ampliação da malha viária e ferroviária, ou seja, com a
facilitação do acesso, as florestas começavam a ser definitivamente devastadas.
Se por um lado o povoamento do Estado representava a chegada do progresso, por
outro, trazia igualmente prejuízos, sobretudo ambientais, pois o rápido desaparecimento dos
pinheirais alterava significativamente a paisagem que tanto inspirara os paranistas (BAHS,
2007, 110).
É certo, no entanto, que a destruição das matas paranaenses não passou despercebida,
ao menos não aos olhos de Romário Martins, um dos fundadores e o maior ideólogo do
movimento paranista. Romário deixou mais de 70 obras publicadas, a maioria delas sobre a
história do Paraná e é no conjunto da sua obra que podemos perceber um discurso que
entremeia a exaltação do progresso, da civilização e da modernidade e a importância da
proteção do meio ambiente, ora como processos interdependentes, ora com sobreposição do
primeiro sobre o segundo.
Romário Martins fora colaborador na redação do primeiro Código Florestal criado no
Brasil em 1907, um código estadual que, bem da verdade, nunca saiu do papel. De toda
forma, a elaboração do código expressa a necessidade de um ordenamento legal das práticas
do extrativismo florestal paranaense. O caráter pragmático e utilitarista do Código de 1907
fica ainda mais evidente na revisão deste ordenamento em 1919. Esse projeto de lei, agora de
autoria de Romário Martins, propunha o reflorestamento das áreas dizimadas e a formação de
bosques industriais. Para ele, essa seria uma iniciativa salvadora já que deslocaria a demanda
crescente em função da guerra por madeira nobres ao mesmo tempo que se reconstituiriam
artificialmente as florestas nativas derrubadas. A questão, no entanto, é que esse
reflorestamento deveria ser feito com espécies de rápido crescimento como a bracatinga e
exóticas, como o eucalipto. Ou seja, o que Romário Martins propunha era a formação de
bosques homogêneos a despeito do impacto que esses poderiam causar no solo e nas
nascentes e cursos d’água que o Código a princípio pretendia proteger.
Em 1926 Romário Martins propõe um novo projeto que “Reorganiza o código florestal
e consolida as demais leis vigentes sobre a exploração de madeiras”. A novidade desse código
é que a par da regulamentação das florestas protetoras e das florestas de exploração, já
descritas nos códigos anteriores, aparecem as reservas florestais, que seriam “as constantes de
áreas pelo governo determinadas para perpetuarem o sertão paranaense isento de alteração na
sua fisionomia natural” e cuja “finalidade será exclusivamente documentativa: cientifica,
moral e estética”.
O empenho legislativo de Romário Martins em prol da preservação das florestas
paranaenses pode ser contrastado, no entanto, com uma série de artigos publicados em jornal
de Curitiba, em 1924, sob o título Cafelândia – Terra das glebas de ouro (Impressões de
viagem), nos quais Martins exalta os pioneiros, ou seja, os primeiros grandes proprietários de
terra que colonizaram a região norte do estado, descrevendo-os como
Para ele seria essa “raça de gigantes” a responsável por dominar e conquistar o
“agressivo e maravilhoso” sertão paranaense “para o progresso e a civilização”.
Attrahidos pela magnificencia sem par das terras roxas do Norte do Paraná e
estimulados, quiçá, pelas proprias dificuldades que lhes offerecia a
aggressividade titanica da floresta imensa, - paulistas e mineiros realizaram ,
nessa Terra das Glebas de Ouro, uma das mais formidaveis affirmações das
suas actuaes energias. (MARTINS, 1924, s.p.)
margens da estrada de rodagem [...] com que gigantes [as árvores] teve de lutar o homem que
transformou em lavouras vitoriosas a selva bruta de toda a região do Norte do Paraná”
(MARTINS, 1924, s.p.).
Martins se mostra, no entanto, sensível às perdas que tal empreendimento causava à
natureza local:
Mas o sacrifício, nas sua próprias palavras, não fora inútil. Os animais e a mata virgem
haviam sido substituídos por uma riqueza que ele descreve como incomparavelmente maior,
uma lavoura que era representativa da agricultura moderna, planejada e científica – muito
diferente das roças improvisadas dos sertanejos:
[...] deixando para trás o tempo em que o pinheiro não passava de simples
motivo de inspiração de poetas idílicos que procuravam se ajustar à natureza
circundante, para ver nele ora “uma taça erguida para a luz”, ora um vulto
senhorial a quedar-se firme e ereto diante do tufão e do raio, quando era
posta em jogo a sua qualidade de presidente do Supremo Tribunal Vegetal,
titulo que lhe conferiu o poeta Raul Bopp, se não nos falha a memória. O
Sob ameaça de extinção a araucária passou a ser protegida pela legislação estadual em
1992 e pela legislação federal em 2006. A partir de então não se pode mais cortar pinheiros,
mas por outro lado também não se planta e não se deixa crescer. Isso porque a proibição de
seu aproveitamento futuro fez da araucária uma espécie maldita entre os agricultores, a
presença dela em suas propriedades é vista como um problema cuja melhor solução é a sua
eliminação ainda no estágio de muda. Essa prática tem agravado ainda mais o quadro de
extrema fragilidade a que estão submetidos os escassos remanescentes das florestas com
araucária do Estado, que sofrem diariamente com a ação criminosa de corte e retirada seletiva
de madeira.
O fato, no entanto, é que, mesmo em uma escala muito diminuída, os pinheiros ainda
fazem parte da paisagem paranaense, tanto da paisagem natural – na forma de espécies
isoladas, presentes no ambiente urbano, ou então na forma de pequenos bosques, bastante
característicos na zona rural – como da paisagem cultural – na forma de representações
simbólicas que ainda servem de elementos da identidade regional. Ao olhar descuidado, isso
gera a percepção (ou ilusão) de que não há motivos para tanto alarde pois “ainda há muito
pinheiro por aí”.
Ou seja, a imagem icônica do pinheiro-do-paraná, cuidadosamente cultivada na
construção da memória e da identidade social e cultural dos paranaenses, ainda subsiste
mesmo em face ao mapeamento dos processos de desmatamento e da evidente destruição de
suas florestas.
A questão que se coloca agora é como as pessoas que presenciaram essa mudança no
seu entorno natural percebem as transformações provocadas na natureza, que memórias
construíram na sua convivência com a espécie e que valores seja afetivos, estéticos ou
econômicos atribuem às florestas com araucárias, é nesse sentido que essa pesquisa caminha.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
INTRODUÇÃO
Este projeto foi esquematizado para ser realizado em três etapas, com a
duração de onze anos. A primeira etapa tinha como objetivo fazer um levantamento da fauna
e da flora da região; na segunda etapa, foram realizados estudos para entender a relação da
comunidade biológica com o ambiente e na última etapa, buscaram criar propostas para a
recuperação ambiental da bacia. Esse convênio envolveu dezenas de pesquisadores de
diversas áreas, inúmeros projetos e temas, resultando em dissertações, teses e centenas de
publicações. Como hipótese, a participação destes cientistas da universidade no Projeto
Tibagi pode ter sido resultado da emergência do ideário ecológico na cidade, pois foi a partir
da década de 1980 que as denunciais e ações de combate a poluição começaram a se tornas
mais efetivas e amplas. Objetivo Geral desta pesquisa consiste em investigar a contribuição de
cientistas no envolvimento da UEL no Projeto Tibagi. Os objetivos específicos versam em
investigar o significado simbólico da instituição, o impacto no projeto na carreira e no
departamento de biologia da UEL e investigar as contribuições de cientistas no
desenvolvimento da “era da ecologia” na cidade de Londrina.
O PROJETO TIBAGI
O rio Tibagi foi na cidade de Londrina, durante os anos de 1970 e 1980 motivo
de muita discussão e polêmica devido ao projeto de captação de suas águas para o
abastecimento da população das cidades de Londrina e Cambe. O projeto de captação foi
formulado pela Prefeitura do município de Lodrina no início da década de 1970 e previa o
abastecimento de várias cidades. No final da década, quando o sistema de abastecimento de
água já havia sido incorporado pela SANEPAR, o projeto começou efetivamente a ser
considerado imprescindível.
No início do século XXI, surgiu uma nova definição para o rio, a ideia da
“mega-biodiversidade” formulada por grupos de pesquisadores e ambientalistas empenhados
em barrar o represamento do rio por hidroelétricas nos anos finais do século XX e do início
do XXI. O rio tornou-se patrimônio ambiental, cultural, ecológico. A ameaça de falta de água
doce para o século XXI, necessário preservá-lo, o rio é agora, também, uma reserva de valor.
REFERENCIA
Donald Worster. “Para fazer história ambiental”, Estudos Históricos, (Rio de Janeiro) n°8
1991 p.200.
MARTINS, Marcos Lobato. “Teoria e Método”. In: História e meio ambiente. SP: Anna
Blume, 2007.
A ação que o homem exerce sobre a natureza, portanto sobre si mesmo, é dirigida para
determinados fins. Compreendemos esta atividade, como uma expressão da cultura, da
política e da ciência criadas e aplicadas pelo homem caracterizando cada sociedade.
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um
processo em que o homem por sua própria ação, media, regula, e controla
seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria
natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertinentes à sua
corporalidade, braços e pernas, cabeça e a fim de apropriar-se da matéria
natural de uma forma útil para sua própria vida.
Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa ele e, ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX,
1985:149)
CONTEXTO HISTÓRICO.
Nossa atual sociedade fez com que se diminuísse a duração da vida dos bens de
consumo, que por ironia são chamados de duráveis, e também investe na produção de bens
distintos, por terem seu valor ao conceder à seu possuidor uma expressão de status social.
Consideramos ser um absurdo querer conceder a cada terráqueo um carro, não só
porque seria um colossal congestionamento, mas porque não existiria matéria-prima para
construí-los, combustível para movimentá-los e estradas para que se locomovessem. O
exemplo do chamado desenvolvimento e progresso norte-americano não é possível de ser
estendido a todas nações da terra, no entanto isso não significa que estes bens produzidos
tenham que continuar concentrados nas mãos de poucos.
Devemos considerar a prática da produção segundo a ótica da termodinâmica e seu
segundo princípio o qual nos será neste momento mais elucidativo. Sadi Carnot nos apresenta
a sua descoberta a qual:
Afirma-nos que a energia não pode passar livremente de uma forma para a
outra, e que a energia térmica (o calor) pode transferir-se livremente de uma
fonte quente para outra fria, mas não em sentido oposto. "também" que não
pode existir uma máquina que transfira calor de um corpo frio para outro
quente sem dispensar trabalho. (CARNOT, Apud TIEZZI, 1988: 22).
Ora a teoria econômica não só ignora estes conceitos como introduz outro
que poderia ser resumido pela famosa frase `tempo é dinheiro'. O progresso
é medido pela velocidade com que se produz; chega-se mesmo a imaginar
que quanto mais rapidamente se transforma a natureza, tanto mais se
economiza tempo. Mas este conceito de `tempo tecnológico ou econômico' é
exatamente o oposto do `tempo entrópico'. A realidade natural obedece a leis
diferentes das econômicas e reconhece o `tempo entrópico': quanto mais
rapidamente se consomem os recursos naturais e a energia disponível no
mundo, tanto menor é o tempo que permanece a disposição de nossa
sobrevivência. O tempo tecnológico é inversamente proporcional ao tempo
entrópico; o tempo econômico é inversamente proporcional ao tempo
biológico. (TIEZZI, 1988: 32)
que a sociedade ecologista ao ser gestada por estes fundamentos poderá articular de forma
salutar o meio ambiente com a organização da sociedade humana.
A CONTRIBUIÇÃO DE MARX.
Karl Marx que analisou profundamente como se realizam as relações entre os homens,
enfatizando as relações sociais como atividade produtiva determinante de uma sociedade, não
deixou de assinalar a grande importância da terra, afirmando: “Portanto, o trabalho, não é a
única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. Dela o trabalho é o pai, como
diz William Pety, e a terra a mãe”. (MARX, 1985: 51)
Assim, poderíamos dizer que a terra, bem como os outros elementos que compõem o
universo, tem sua importância intrínseca ao seu próprio existir e extrínseco no que se refere às
relações estabelecidas com o Todo. O homem é uma parte deste universo e é composto por
este, no entanto, ele se autodeclara ter o poder de estipular a importância dos outros
componentes em relação ao seu interesse.
O homem é um ser cultural e histórico, no entanto é também um ser biológico
(natural). “O fato da vida física e espiritual do homem estar vinculada à natureza não tem
nenhum outro sentido a não ser que está vinculada consigo mesmo, pois o homem é uma parte
da natureza.” (MARX, Apud SCHMIDT, 1976: 88)
A relação homem/natureza ocorre simultaneamente e necessariamente se interagem,
produzindo e resultando ações oriundas deste relacionamento. Desta forma, ao estudar esta
interação poderemos tentar iluminar algumas partes de existência do homem, em sua busca
incessante da resposta de seus enigmas.
O homem é composto por elementos integrantes do universo, então necessariamente:
ocupa um espaço, movimenta-se no espaço e no tempo pela sua duração/degradação. No
entanto enquanto vivente possui características fisiológicas e sociais inerentes à sua espécie.
A ação que o homem/natureza exerce sobre a natureza, portanto sobre si mesmo,
enquanto pertencente a ela, é dirigida para determinados fins. Esta atividade de criação/
transformação é denominada trabalho, o mesmo pode ser compreendido como criador/criatura
da consciência, exemplo da singularidade humana composta pela cultura e raciocínio.
espacial, demonstra diferentes relações entre os homens, como também diferentes relações
com a natureza.
O homem é matéria natural e enquanto matéria recebe e emite energia proveniente dos
átomos que o compõe ou incorpora do exterior. Energia é a propriedade que tem a matéria de
realizar transformações, pois ela é composta por átomos que se movimentam.
Quando o homem come, incorpora energia sob a forma de alimentos e a libera, por
exemplo, sob a forma de calor. No entanto o homem é possuidor de uma característica
diferenciadora em relação às outras matérias, já que todas recebem e emitem energia. Ele
pode orientar a emissão de parte de sua energia para realizar determinadas tarefas, que lhe é
conferida de acordo com as condições materiais de produção num dado momento histórico.
Pode-se entender também, que no mesmo momento em que o homem está emitindo
esta energia orientada, atividade-trabalho, ele sofre modificações internas em seu
metabolismo, transformando a natureza externa e auto transformando-se como matéria natural
num processo dialético.
Assim, por exemplo, quando o homem pulveriza sua plantação agrícola com biocidas
para destruir “pragas”, irá sofrer um retorno de sua própria energia transmitida sob a forma de
doenças, ocasionadas pela ingestão de alimentos contaminados pelos biocidas.
Esta capacidade humana de orientação da aplicação da energia é resultante e se
desenvolveu pelas transformações ocorridas nas relações entre os homens e destes com a
natureza. Ambos se modificam na dinâmica de suas relações, determinando características
específicas do homem que também é natureza.
Podemos dizer que o ser humano se autoconstrói ao estabelecer relações de vivência
com indivíduos da mesma espécie e, estas relações entre os homens dirigem a aplicação de
energia para a realização de um determinado trabalho. A produção de uma sociedade
construída com os princípios originários nos moldes de uma análise ecossocialista possibilita
realizar uma ecologização social de forma democrática, plural, diversificada e policêntrica.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
FRANCO, Maria Ciavatta. Educação ambiental: Uma questão ética, In: Cadernos CEDES,
(29) Campinas: Papirus, 1993.
TIEZZI, Enzo. Tempos históricos, tempos biológicos, Trad. Frank Roy Cintra Ferreira e
Luiz Eduardo de Lima Brandão, São Paulo: Nobel, 1988.
VIOLA, Eduardo. "O movimento ecológico no Brasil 1974-1986", In: VIOLA, Eduardo e
Outros. Ecologia e política no Brasil, Org. José A. Pádua, Rio de Janeiro: Espaço e Tempo:
IUPERJ, 1987.
SENTIDOS EM DISPUTA
(Mestranda em História)
utilização do meio – ou do que se encontra nesse meio ou do que ele possibilita – para a
fixação dos grupos humanos. Criam-se assim formas de adaptação do homem ao meio. E tais
formas de adaptação representam justamente o processo de relações que se estabelecem entre
o homem e o meio – não o meio restritamente físico, mas ainda e, sobretudo o amplamente
ecológico – de modo a assegurar o equilíbrio regional.” (DIEGUES, 1960, p.18)
Apesar da abertura oficial no ano de 1954 não podemos deixar de assinalar que
existem memórias que reivindicam a existência da estrada desde o ano de 1924 como sendo
uma picada e rota da Coluna Prestes ao passar pelo sul do Brasil, conforme afirma Luciano
Dallo no livro Caminho do Colono: Vida e Progresso. (DALLO, 1998)
O Parque Nacional do Iguaçu, por sua vez, foi criado em 10 de janeiro de 1939 pelo
Decreto Nº 1035 e, algumas vezes, passou por alterações em seus limites, promovendo a
ampliação das áreas preservadas. A preocupação dos dirigentes do Parque Nacional do Iguaçu
com o Caminho do Colono sempre pareceu estar presente, como ficou expressa já no primeiro
Plano de Manejo do parque publicado no ano de 1981, no qual é indicada a necessidade de
fechamento de um caminho que cortava o Parque Nacional do Iguaçu.
1
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estamos de Luto! Trancaram nossos caminhos; mancharam nossa honra! Medianeira,
1986
2
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estrada do Colono: respeito a natureza e a honra de um povo! Medianeira, 1986
3
Panfleto distribuído pela Comissão de defesa Pró-reabertura do asfaltamento da Estrada Parque constituída pela
Prefeitura Municipal. Estrada do Colono: respeito a natureza e a honra de um povo! Medianeira, 1986
Caminho do Colono que deveria ocorrer no dia 13 de maio de 1997 nos municípios de
Capanema/Sudoeste e Serranópolis do Iguaçu/Oeste, mobilizando a população das duas
regiões.
Tal ocupação não impediu o ato público programado para o dia 13 de maio, que reuniu
cerca de 37 mil pessoas no chamado “abraço do parque”, que interligou os municípios de
Capanema e Serranópolis do Iguaçu. A manifestação pró-reabertura da estrada neste dia foi
presidida por Marcos Pagani representante desde 1992 da Associação de Integração
Comunitária Pró-Estrada do Colono _ AIPOPEC e contou com a participação de políticos de
toda a região, solidários com o movimento.
Foi possível perceber que diversos interesses moviam os sujeitos para e nas
mobilizações. Investigar esses diferentes interesses, essa pluralidade de significações
variadas, conjugadas as vivências que faziam e fazem sentido para cada um, possibilita dar
visibilidade a aspectos mais diversificados de experiência social: as contradições internas nas
mobilizações presentes nas práticas e representações dos sujeitos acerca do Caminho do
Colono na sua relação com o meio ambiente, bem como acerca de questões mais amplas da
legislação e da política ambiental.
“Então eu vim de Santa Catarina, tinha sete anos, até a gente passou aqui na Estrada do
Colono, nós viemos de Santa Catarina. Na época era tudo mato, (...) tinha sete anos, faz
quarenta anos. Aí a gente veio morar aqui em baixo na Linha Palmital, ali né, interior (...)”,
narra Elsa Carbonera.4 Sua narrativa reporta-se a uma experiência vivida ainda na infância,
indicativa de um deslocamento no tempo e espaço de sujeitos, de uma imagem do meio
natural e, portanto, de uma relação com o meio ambiente.
Nesse caso, a estrada, como é nominada pela entrevistada, é “do colono”, designação
daquilo que lhe é próprio, caracterizando um período no qual as políticas para a colonização
do Oeste e Sudoeste do Paraná eram incentivadas pelo governo e os migrantes, vindos dos
estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em sua maioria, utilizavam-se dessa estrada.
Neste sentido, na visão destes colonizadores, o percurso tornou-se seu por direito e necessário
para a população.
4
Entrevista concedida por Elsa Carbonera no dia 01/05/2012_ 47 anos_ Atualmente é funcionária pública do
município de Medianeira, atua como cozinheira em um Centro de Educação Infantil, reside em Serranópolis do
Iguaçu, participou das manifestações pró-reabertura do Caminho do Colono, era proprietária de uma barraca que
vendia lanches para os manifestantes e visitantes.
O uso do termo estrada pela entrevistada também nos remete pensar em uma via mais
larga que um caminho, utilizada para o trânsito de pessoas, animais ou veículos. O que
impulsionaria o desenvolvimento e o fluxo migratório entre as regiões levando a uma
determinada compreensão e relação com o trecho. Compreensão e relação essas ligadas à
mesma idéia de desenvolvimento e progresso difundida pela proposta de colonização
incentivada pelo governo naquele período e intitulada como a “Marcha para o Oeste”. A
ideologia da “Marcha para o Oeste”, proposta pelo governo Vargas, era formada por um
conjunto de ações governamentais bastante variadas, que ia desde a implantação de colônias
agrícolas, passando pela abertura de novas estradas, até obras de saneamento rural e de
construção de hospitais. Esta política nacional expansionista buscava a integração nacional e,
concomitantemente, a organização dos territórios, garantindo, dessa forma, além da segurança
e da efetiva posse, a exploração produtiva de imensas regiões fronteiriças praticamente
inabitadas. (LOPES, 2002)
Encontramos ainda na obra Caminho do Colono: Vida e Progresso, sobre esse mesmo
percurso memórias como a de Armando Bitencourt, primeiro dono do Porto Moisés Lupion,
que identificava o caminho como sendo uma “picada”, atalho estreito aberto no mato a golpes
de facão. “Em 1948, foi à primeira vez que passei por aqui (...). Na época a Estrada do Colono
já existia, era uma picada (...).” (DALLO, 1998, p. 63) Mesma denominação atribuída ao
percurso no registro feito por Luciano Dallo quando afirmam a passagem da Coluna Prestes
pela região no ano de 1924 utilizando-se desse caminho. “A Coluna Prestes, na época da
revolução de 1924(...), subiu do Rio Grande do Sul, atravessou o Rio Iguaçu e passou por
uma trilha primitiva do Caminho do Colono, até a localidade de Benjamim Constant. (...),
hoje apenas lembrada pelo nome de Picada Benjamim.” (DALLO, 1998, p.65)
No entanto, essas novas propostas de relacionar-se com o meio, não são prontamente
admitidas pelos sujeitos, elas precisam ser compreendidas e aceitas para tornar-se parte de
suas práticas cotidianas, passam por um processo de negociação onde concepções e
memórias, tanto coletivas quanto individuais, do passado aos poucos vão sendo
ressignificadas a partir de novos conceitos e padrões.
As questões brevemente discutidas neste texto são apenas algumas das questões
relacionadas às memórias sobre o Caminho do Colono. Tais memórias permeiam o campo de
disputa dos sujeitos e são elaboradas a partir de um contexto, reproduzindo valores e
representações sociais.
Podemos perceber que determinados valores presentes nas narrativas das entrevistas
estão fortemente associados às construções e lembranças registrados pela imprensa e o poder
público, no entanto valores que não representavam os interesses de determinados grupos
deixaram de ser registrados dificultando a compreensão da totalidade do movimento ou
mesmo contribuindo para a construção de uma “memória enquadrada” (POLLAK, 1989)
sobre o processo. No entanto não podemos deixar de ressaltar que tais valores, mesmo não
registrados, continuam presentes nas lembranças individuais de muitos sujeitos sendo
transmitidos nas estruturas de comunicações informais, permanecendo vivos na memória.
Nesses termos, ter como mote o Caminho do Colono significa pesquisar e escrever
sobre um processo que está em construção, sobre uma história que está sendo vivida e
produzida ao mesmo tempo, promovendo interpretações do passado na compreensão do
presente, uma história que está ressignificando-se na cotidianidade e na ação dos sujeitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIEGUES JR., Manuel, (1960). Regiões culturais do Brasil. Rio de Janeiro: CBPE, INEP,
MEC.
INTRODUÇÃO
Tais atividades são provenientes de um sistema produtivo onde os 20% dos habitantes
mais ricos do planeta consomem quase 80% dos recursos naturais e onde o atual estilo de vida
“[...] vivido pelos ricos dos países ricos e pelos ricos dos países pobres, em boa parte é
pretendido por aqueles que não partilham esse estilo de vida”, configurando um modelo-
limite e um “[...] sério risco para todo o planeta e para toda a humanidade”, submetendo todos
a uma mesma lógica de caráter predominantemente mercantil. (GONÇALVES, 2004, p.31)
restos de alimentos, que podem ser reaproveitados pela sociedade em outras atividades e
mesmo em processos industriais.
Em nossa pesquisa temos como objetivo investigar de que maneira o poder público de
Guarapuava elaborou suas políticas públicas ambientais e quais foram as forças sociais e
políticas que atuaram nessa elaboração, conferindo à cidade sua atual política pública
ambiental. Assim buscamos especificamente compreender como são produzidas as políticas
públicas, analisar e comparar a legislação ambiental municipal, estadual e federal e, entender
como o Estado e a sociedade local lidaram com os problemas decorrentes da geração de
resíduos sólidos urbanos (lixo domiciliar) na temporalidade estabelecida, buscando opções
para resolvê-los ou minimizá-los.
Adentrar o campo de estudos ambientais vem se tornando uma prática comum aos
historiadores e outros cientistas sociais. Apesar de relativamente novo, o interesse pela
questão ambiental por parte dos historiadores, fruto do alargamento das temáticas abordadas
pela ciência histórica no século XX, assumiu uma importância muito elevada na sociedade
devido aos diversos efeitos negativos que a atividade humana causou (e ainda causa) em todo
o planeta. (ALMEIDA, 2011; MARTINEZ, 2006).
melhorar nossa relação com a natureza, ajudando assim a sociedade e o ser humano a ter um
mundo melhor; nossa realidade demonstra que esses esforços ainda são de uma minoria.
Para Martinez (2006, p. 16) “[...] o desprezo pelo passado e a indiferença quanto ao
futuro, que a sociedade brasileira, em particular, parece nutrir secularmente, aproxima o
conhecimento histórico e o debate de questões ambientais neste início de século”. Para o autor
supracitado, esse contexto de presentificação da sociedade causa uma séria crise de apatia e
imobilismo, reforçando o sentimento de impotência individual e coletiva para promover
mudanças de maior vulto. Assim, a história tem um importante papel dentro da busca pelo
entendimento do mundo em que vivemos e das questões que nos são colocadas pela
sociedade.
Também entendemos, com base em Gonçalves (2001), que nossa sociedade está a
cada dia destruindo suas fontes de sobrevivência acreditando que a ciência e a tecnologia
poderão corrigir os erros cometidos pela nossa geração e pelas gerações anteriores. Tal
maneira de pensar parece-nos, como ao autor, um ledo engano, pois segundo Gonçalves
(2001, p. 123/124) “[...] é preciso que fique claro que a solução dos problemas ambientais não
é de natureza técnica, mas de uma opção político-cultural”.
Entendemos assim, que a abordagem proposta pela História Ambiental pode produzir
uma grande contribuição no entendimento da questão ambiental por buscar uma interrelação
entre as atividades sociais inerentes ao ser humano e seus impactos na natureza, envolvendo o
passado e o presente numa tentativa de entendimento holístico do sentido que demos e damos
à nossa vida em sociedade e às nossas ações enquanto seres pensantes.
As políticas públicas são instrumentos de decisão política através dos quais o Estado
busca resolver problemas enfrentados por uma determinada sociedade específica. A maneira
como essas decisões são tomadas depende também de como a sociedade encara esses
problemas e de como se posiciona em relação a eles e ao poder político.
Entendemos que a sociedade, ao defender seus interesses, toma posições que podem
ser favoráveis ou contrárias a determinadas posições políticas do Estado, ou de seus
representantes, pois não necessariamente o interesse do Estado e de seus agentes representa a
vontade da maioria da sociedade ou menos ainda da totalidade da sociedade.
A teoria neoinstitucional por sua vez coloca o foco de sua abordagem no papel e na
importância das instituições e, principalmente do Estado, na decisão, formulação e
implementação de políticas públicas. Essa teoria, segundo Rocha (2005), recoloca o Estado
como palco de análise privilegiado e teria sido formulada nos anos 80, sendo Skocpol (1985)
“uma das primeiras autoras a propor uma reorientação teórica em relação às abordagens
precedentes e a tentar organizar as bases da análise neoinstitucionalista”. (ROCHA, 2005, p.
13) Para o neoinstitucionalismo
Dessa forma, ao estudarmos a questão das políticas públicas ambientais, nosso esforço
de interpretação será no sentido de buscar não uma única teoria explicativa, mas uma junção
dessas três teorias para tentar melhor interpretar a maneira como foram definidas ao longo dos
anos as políticas públicas relativas a questões ambientais na cidade de Guarapuava/PR.
Tal esforço a nosso ver é de suma importância para a busca de uma interpretação mais
ampla e holística, da sociedade e das instituições do Estado como definidoras de políticas
públicas relativas ao meio ambiente. Esperamos poder contribuir para a ampliação do
entendimento da sociedade e da busca por uma opção política que melhore a relação de nossa
civilização com a natureza.
saúde pública, que está a cargo de uma empresa privada, e fiscalizar o serviço de caçambas de
entulho de construção civil.
Desta forma, interessou-nos entender como o poder público, por meio das instituições
públicas e políticas (prefeitura, câmara de vereadores, secretarias municipais, partidos,
associações), representantes do Estado e da sociedade civil na esfera municipal, formulou as
políticas públicas municipais que tratam da produção e destinação dos resíduos sólidos
domiciliares.
4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS.
5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
__________. O desafio ambiental. Org. Emir Sader. Rio de Janeiro: Record, 2004.
HAM, C.; HILL, M.. O processo de elaboração de políticas públicas no estado capitalista
moderno. Tradução de Renato Amorim e Renato Dagnino. Londres: 1993. Disponível em
<http://pt.scribd.com/doc/53092753/Texto-Processo-de-Elaboracao-de-Politicas-no-Estado-
Capitalista-Moderno-Hill> Acesso em 14/07/2012
MARTINEZ, Paulo Henrique. História ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo:
Cortez, 2006.
MORIN, Edgar; KERN, Anne Brigitte. Terra-Pátria. 2 ed. Tradução de Paulo Neves. Porto
Alegre: Sulina, 1995.
SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano
8, n. 16, p. 20-45, jul/dez 2006.
UM OLHAR À ESQUERDA:
do período e também das mudanças do pós-guerra. Documento este, escrito e assinado por
alguns oficiais da força brasileira que decidiram compartilhar a experiência que haviam
vivido em combate, mas que principalmente deixava clara a posição assumida em torno da
bandeira democrática, evidenciando a incoerência em que o país se encontrava no período, a
de enviar tropas para combater regimes autoritários no exterior, mas no âmbito interno não
gozar dessa liberdade. O manifesto, que aparece no debate político nacional em abril de 1945,
foi redigido por membros do Exército, A FEB – Símbolo Vivo da União Nacional foi assinado
por cerca de 300 militares, que em sua maioria eram oficiais de baixa patente.
1
Entrevista de Jacob Gorender para Paulo Ribeiro da Cunha em São Paulo, em 20/09/2007, e entrevista de Jacob
Gorender na obra “Histórias do poder” (DINES; FERNANDES JÚNIOR; SALOMÃO, 2000, p.127).
diretiva das Forças Armadas. Contudo, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e o
consequente alinhamento do Brasil com os Aliados, o cenário político interno se alterou
influenciado pela derrota dos regimes fascistas na Europa, trazendo a democracia para ordem
do dia. Essas transformações no cenário mundial desgastaram ainda mais o já criticado
governo brasileiro, que assistiu sua oposição aumentar, inclusive com antigos aliados, que
abandonaram o presidente ao perceberem essas mudanças. A saída de Vargas do poder se
tornava cada dia mais evidente, pressionado pela crescente oposição que agrupava diferentes
grupos, desde estudantes que organizavam passeatas pedindo democracia, até importantes
membros do Estado Maior do Exército que já articulavam a sucessão presidencial em eleições
futuras. As medidas adotadas pelo presidente, desde 1943, davam sinais de que a abertura
política estava próxima, agitando ainda mais o ambiente do país, colocando em evidencia os
diferentes posicionamentos ideológicos, que tinham a democracia como principal bandeira, o
que pode explicar a união de diferentes sujeitos e interesses na construção do manifesto da
FEB, já que independente do posicionamento político, a ideia democrática os alinhava nesse
momento específico do pós-guerra.
A elaboração do manifesto não foi a única ação desses militantes de esquerda, pois
assim que retornaram ao país , esses homens passaram a atuar em uma nova frente. Passadas
as festas do regresso, os agora veteranos de guerra, buscaram retomar suas vidas, e ao fazerem
encontraram sérias dificuldades por conta da difícil readaptação de quem vivencia os horrores
de uma guerra, mas principalmente pelo descaso das autoridades em relação a esses ex-
combatentes. A partir dessas dificuldades mencionadas, ganha força a ideia já ventilada na
Europa, onde os brasileiros conviveram de maneira direta com outras nações dotadas de maior
experiência em guerras, de se formar uma associação na qual esses veteranos pudessem se
reunir e lutar por seus direitos. Motivados pelas inúmeras queixas e dificuldades em que os
antigos pracinhas se encontravam. É justamente nesse período de grandes transtornos que os
membros de esquerda da já desmobilizada FEB vão atuar, fundando algumas associações ou
participando ativamente de suas direções.
2
O 1º Estatuto da AECB foi construído e aprovado na 1ª Convenção Nacional em novembro de 1946, sendo
reformado por mais três vezes, primeiro em 1954 na 5ª Convenção Nacional, ocorrida em Recife-PE, em 1960
na 8ª Convenção, em São Paulo-SP, e posteriormente na 2ª Convenção Nacional Extraordinária, realizada em
Niterói-RJ.
3
Entrevista com o presidente da AECB-SP BARBOSA, Raimundo Paschoal. Entrevista in: Ferraz. São Paulo, 7
de julho de 2001
as reuniões (muitas vezes alugados) e o trabalho voluntário de alguns veteranos. Poucas foram
as seções que, com o apoio dos governantes, conseguiram locais próprios e estrutura
financeira (FERRAZ, 2003, p. 260), e mesmo quando os benefícios eram adquiridos por leis
ou promessas “politiqueiras” seu comprimento, em muitas das vezes, não era efetivado,
deixando os pracinhas cada vez mais desiludidos.
Desta maneira, havia pelo menos duas propostas diferentes para as práticas públicas
da associação. De um lado, uma tendência de esquerda, que era mais contestadora e
que propunha ir além das reivindicações dos problemas específicos dos ex-
combatentes, associando os problemas nacionais aos dos expedicionários. Seu
relacionamento com as autoridades era tenso, não apenas por cobrar
intransigentemente seus direitos e não esperar por favores de governantes e de seus
prepostos, mas, principalmente, porque tais práticas eram largamente associadas, na
cultura política brasileira da época, com o comunismo. Foi justamente neste período,
entre o final da década de 40 e primeira metade da década de 50, que as polarizações
da guerra fria se tornaram mais intensas no Brasil. Reivindicações de expansão dos
direitos políticos, civis e sociais, ou manifestações de cunho nacionalista, que
tivessem o mínimo indício de apoio de grupos de esquerda, eram logo taxadas de
comunistas, subversivas, e seus defensores acusados de “inocentes úteis” (na melhor
hipótese) ou de estarem a “soldo de Moscou” (na pior). Do outro lado, havia o outro
grupo de membros da associação, que era maioria no quadro dos associados, onde as
questões políticas eram deixadas de lado, e o que se discutia e lutava era em torno
das problemáticas dos veteranos, colocando-se por um viés mais conservador,
portanto anticomunista (FERRAZ, 2003, p. 303).
lutas por melhorias na condição dos trabalhadores, passaram a fazer parte do dia a dia das
seções, gerando enorme descontentamento nos setores conservadores da associação. Essas se
transformaram em um efervescente palco de debates políticos. O jornal O EX-Combatente,
editado pela seção carioca, passou a ser o porta voz desses debates e da evidente politização,
deixando claro qual a posição que a direção da associação de veteranos estava tomando em
relação à política do país.
Azevedo, que também era um dos diretores da seção de ex-combatentes de São Paulo,
causando muita agitação.
4
O jornal que Salomão Malina dirigia era o Tribuna Popular na Capital Federal.
5
Carta de Oswaldo G. Aranha ao Conselho Nacional, de 30 de dezembro de 1947, publicado em: Ex-
Combatente. Rio de Janeiro, ano 2, n.13, p.6, jan.1948.
6
AECB-SP, Livro de Atas de Reuniões da Diretoria. São Paulo, 13 de fevereiro de 1948, n. 2, p.17. O novo
presidente da AECB-SP seria o tenente-coronel José de Souza Carvalho. Ata de Reunião da Diretoria, 20 de
fevereiro de 1948, Livro de atas, p.18.
O golpe final contra os comunistas na AECB foi dado entre 1948 e 1949, na
derrota eleitoral pelo controle da mais influente seção, a do Distrito Federal e na destituição
do então presidente do Conselho Nacional da AECB, Sampaio de Lacerda, comunista, que é
destituído por acusações, de ter apoiado a realização do Congresso da Paz, organizado pelos
comunistas. A partir desse período as lideranças hierárquicas das Forças Armadas
participaram ativamente do processo de “caça aos comunistas”, culminando no progressivo
afastamento dos veteranos das associações. Para Jacob Gorender, soldado da FEB e ativo
participante da ala comunista nas lutas da AECB, as ordens de intervenção nas associações
partiram do próprio Ministério da Guerra: “Foi uma ação mais ou menos concertada. Eles (os
oficiais superiores anticomunistas) tomaram conta das diretorias. Desde então, as associações
de veteranos se tornaram apêndices das Forças Armadas” 7.Vencidos nas eleições do
conselho, perseguidos pelas novas lideranças que eram atreladas a hierarquia militar - com o
embate político, cada vez mais oficiais da ativa começaram a se aproximar das associações
para controlar e afastar os comunistas – e colocados na ilegalidade, os veteranos comunistas
se afastaram das associações, muitos desses veteranos eram vigiados pelo DOPS. Esse
isolamento e afastamento dos veteranos de esquerda ficaram evidentes nas direções seguintes.
No jornal O EX-Combatente a linha editorial se alterou, tornando-se comuns artigos que
enalteciam a nova direção e os altos escalões das Forças Armadas, atacando os ex-
combatentes de esquerda.
7
Entrevista com Jacob Gorender. (FERRAZ, 2003).
8
Texto em: O EX-Combatente Ano 4, p. 2, fev. 1950.
que restaram9, após a queda de seu presidente em 1949, ficaram cada vez mais isolados e
enfraquecidos, abandonando seus cargos ou sendo destituídos por votações extraordinárias. O
Conselho passou a ser dirigido novamente pelo ex-combatente Oswaldo G. Aranha a partir de
195010.
9
José Leôncio Pessôa de Andrade é um exemplo desses veteranos à esquerda que ainda compunham o Conselho
Nacional da AECB.
10
Texto em: O EX-Combatente, ano 4, p. 1, Mar. 1950.
11
Entrevista Boris Schnaiderman (FERRAZ, 2001).
12
Documento do DOPS-DF: O Caso de Pedro Paulo de Sampaio Lacerda é um claro caso dessas transferências,
funcionário público do Banco do Brasil foi transferido do Rio de Janeiro para a Capital do Estado do Pará,
Belém, em 1950, por seu envolvimento em ações “comunistas”.
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CUNHA, Paulo Ribeiro da. Um manifesto elaborado nos campos de batalha. In: PENNA,
Lincoln. (Org.). Manifestos políticos do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: E-Papers,
2008. v. 1, p. 181-201.
FERRAZ, Francisco César Alves. A guerra que não acabou: a reintegração social dos
veteranos da força expedicionária brasileira, 1945-2000. 2003. Tese (Doutorado em História
Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2003.
SILVEIRA, Joaquim Xavier da. A FEB por um soldado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1989.
INTRODUÇÃO
O CASO ARGENTINO
Assim como foi visto, sabemos que os anos da década de trinta do século passado
foram de extrema agitação política e social no mundo, como os impactos da Crise de 1929, a
ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, a consolidação da Revolução socialista na URSS e
a Guerra Civil espanhola.
No que se refere à Argentina, compreende-se que tais acontecimentos externos
também colaboraram para a eclosão de diversos movimentos radicais no interior de sua
sociedade, causando uma acentuada instabilidade política no país. Desta forma, pode-se
considerar que o período pós-Grande Depressão foi marcado, na Argentina, por um forte
caráter radical, visto que o governo em exercício daquele momento - Hipólito Yrigoyen - não
conseguiu amenizar os problemas trazidos pela crise, causando intensa insatisfação popular e
oportunidade para que um golpe de Estado ocorresse. A partir de 1930, então, com o golpe do
general José Félix Uriburu, o cenário político argentino seria marcado por intensa
conturbação.
Foi sob esta ótica que se desenvolveram na Argentina movimentos similares aos
surgidos na Europa do início do século XX que, com intenso caráter nacionalista, se
aproximaram muito da essência ideológica do fascismo europeu, desencadeando um inédito
processo de extremismo-direitista na sociedade argentina, jamais visto naquele país.
Desde então, se desenvolveria uma importante reação nacionalista contra o sistema
capitalista, visto como o grande mal das sociedades baseadas na democracia-liberal, e
causador dos diversos problemas surgidos naquele país e no mundo, sejam eles de caráter
político, social ou econômico como assinala TRINDADE (2004):
Se o fascismo e o nazismo foram respostas nacionais a uma conjugação de
crises de natureza política, social, econômica, financeira e internacional nos
países capitalistas europeus que tiveram suas democracias liberais
fragilizadas, consideramos possível, apesar das diferenças socioeconômicas,
terem sido criadas condições capazes de viabilizar sua reprodução na
América Latina (TRINDADE, 2004, p.14).
Pode-se apontar, ainda, como sinal da boa relação entre estes movimentos,
informações, relacionadas à questão do antissemitismo nestas nações encontradas, no nº101
do segundo ano deste mesmo jornal, referente ao dia 09 de fevereiro de 1936:
No continente sul-americano, não foi somente o Brasil que despertou diante
do perigo do judaísmo. A Argentina também está acordando. (...)Deus livre
ao Brasil e a Argentina da instalação desse fermento em volta do Iguassú!
Argentina e Brasil não têm mais razões para rivalidades. Devem se respeitar
e amar reciprocamente como estão fazendo. Um Brasil Integral e uma
Argentina Integral serão garantias da libertação da América das garras do
judaísmo. (A Offensiva, 09.02.1936, p.10 - Judaísmo Internacional: O anti-
semitismo na Argentina, por João do Norte).
Informações como estas, entre outras, como ainda uma reportagem referente ao
poderio bélico de ambos os países e de uma possível aliança, ou ainda às estadias de
importantes nomes do poder argentino no Brasil nesta época, nos levam a crer o quão
próximos eram e o quão cordial era sua relação.
O CASO URUGUAIO
uma postura que parece deixar clara a posição deste em relação à imigração. Apesar disso, só
em 1936, é que a política acerca deste assunto foi delimitada com mais clareza, com a
aprovação da Lei de Indesejáveis, que impedia a imigração judia, bem como de militantes de
esquerda, e também a lei que proibia o uso de idiomas estrangeiros – exceto aqueles
ensinados pelo Estado – em publicações e periódicos. Essas atitudes do governo de Gabriel
Terra podem denunciar um crescente antissemitismo na sociedade uruguaia e principalmente
um caráter anticomunista, antiliberal e de simpatia com as políticas fascistas. Para Aldrighi,
no entanto, o antissemitismo ficou restrito a uma parte da sociedade:
(…) el antisemitismo no encontró en Uruguay la posibilidad de volverse
movimiento de masas. Inspiró las definiciones programáticas de grupos
políticos de escaso peso, filonazis o filofascistas, como Acción Revisionista
del Uruguay, Acción Nacional, Asociación de la Juventud Patriótica del
Uruguay y Movimiento Revisionista (ALDRIGHI, 2000, p. 132).
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
A OFFENSIVA. Rio de Janeiro: nº39, 07 fev.1935; nº46, 30 mar.1935; nº101, 09 fev. 1936;
nº107, 27 fev.1936.
DIETRICH, Ana Maria. Porta vozes de Hitler (in) Revista de História da Biblioteca
Nacional. Rio de Janeiro:Ano 2, Nº 20, p. 22-23, SABIN, 2007.
DEUTSCH, Sandra Mcgree. Las derechas: The extreme right in Argentina, Brazil, and
Chile (1890-1939). Stanford, California: Stanford University Press, 1999.
TRINDADE, Helgio. Irmãos caçulas de Adolf e Benito.Rio de Janeiro, RJ, 2010. Revista de
História da Biblioteca Nacional, ano 6, Nº 61, p. 26-27, Outubro 2010, entrevista concedida a
Marcello Scarrone.
Este texto dialoga com a comunicação, do mesmo título, preparada para o XIII
Encontro Estadual Anpuh-PR. O objetivo de ambos reside em expor para o debate com os
pares as considerações iniciais sobre minha pesquisa de mestrado, com enfoque nas reflexões
teóricas e metodológicas construídas em diálogo com as disciplinas do primeiro semestre de
curso.
O interesse por esse objeto dialoga com o atual momento histórico, no qual o Partido
dos Trabalhadores atingiu, em âmbito nacional, uma projeção significativa a partir da
conquista da presidência da república nas últimas três eleições (2002, 2006 e 2010). Dialoga-
se com a perspectiva de que essa projeção tem se dado em três direções: a institucional,
projetando o Partido; em torno de membros com maior visibilidade pública a partir de postos
O andamento da pesquisa tem indicado dois caminhos prévios, que se coadunam, para
a reflexão sobre o objeto. Primeiro, de que a formação do Partido dos Trabalhadores em Santa
Helena, e a inserção de seus membros, fundadores ou não, se deram através de diversos
movimentos sociais que dialogavam com as pautas colocadas na região. A segunda
proposição dialoga com a possibilidade de que as trajetórias do Partido e dos militantes têm
sido avaliadas no presente, dentro do contexto municipal, não a partir dos resultados obtidos
nos pleitos eleitorais, mas a partir de múltiplas inserções que o Partido e seus membros
tiveram em demandas e movimentações populares locais.
A opção pela produção de narrativas a partir da história oral está diretamente ligada às
características do objeto de pesquisa. Ao buscar compreender e problematizar as experiências
e os significados que os sujeitos constroem em torno delas, documentos burocráticos do
Partido, materiais de campanhas eleitorais ou documentos do Fórum Eleitoral não seriam
satisfatórios. Embora atendam a outras questões, essas fontes não poderiam atender aos meus
objetivos com tanta propriedade quanto as narrativas orais. Portanto, a escolha das fontes a
serem utilizadas está diretamente ligada ao problema que orienta a pesquisa.
É preciso lembrar que a escolha de fontes, seja qual for sua categoria ou linguagem,
nunca é um processo natural ou neutro, sendo sempre permeado por escolhas e juízos do
pesquisador. Tratando das fontes orais, Alessandro Portelli nos adverte para suas
peculiaridades, com implicações tanto acadêmicas quanto política, inerentes a essa escolha:
A primeira coisa que torna a história oral diferente, portanto, é aquela que
nos conta menos sobre eventos que sobre significados. Isso n ao implica que
a história oral não tenha validade factual. Entrevistas sempre revelam
eventos desconhecidos ou aspectos desconhecidos de eventos conhecidos:
elas sempre lançam nova luz sobre áreas inexploradas da vida diária das
classes não hegemônicas.1
Outra peculiaridade a que se refere Portelli diz respeito a quem tem a oportunidade de
falar a partir da história oral, ou talvez, seja mais apropriado dizer a quem temos a
oportunidade de ouvir a partir da história oral. Já que todo sujeito está constantemente
construindo seu presente, e a partir dele reconstruindo seu passado, independente de estarmos
lá pra ouvir e observar ou não. Neste ponto residem, de maneira mais enfática, as implicações
políticas de fazer história oral.
Alessandro Portelli chama a atenção para essa característica ao definir quem são os
sujeitos históricos que têm oportunidade de falar, e serem ouvidos pelos historiadores, a partir
da historia oral:
A história oral não reside onde as classes operárias falem pro si próprias. A
afirmação contrária, naturalmente não seria totalmente infundada: o relato de
uma greve nas palavras e memórias de trabalhadores, ao invés daquelas da
policia e da (sempre inamistosa) imprensa, obviamente ajuda (embora não
automaticamente) a equilibrar a distorção implícita naquelas fontes. Fontes
orais são condições necessárias (não suficiente) para a história das classes
não hegemônicas, elas são menos necessárias (embora de modo nenhum
inúteis) para a história das classes dominantes, que têm tido controle sobre a
escrita e deixaram atrás de si um registro escrito muito mais abundante.2
Portanto, a escolha da história oral também está relacionada com a opção de ouvir,
como frisei na justificativa, aqueles para quem, até agora, a História tem feito ouvidos
moucos. Protagonistas de um processo histórico de grande importância na conjuntura
histórica atual do país, mas que têm sido deixados nos bastidores em função de uma ênfase
naqueles que podem se fazer ouvir por outros meios, e em alto e melhor som.
A consciência de que a opção pela História Oral tem implicações científicas e políticas
que nascem da arbitrariedade da construção desta escolha, mantém esta pesquisadora sobre
aviso. Tanto em relação aos cuidados que se fazem necessários para não cair em armadilhas
apresentadas pelas fontes, quanto para atingir com a maior plenitude possível as
possibilidades oferecidas pelas narrativas.
1
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, n. 14, Educ – Editora da
PUC-SP, São Paulo, fev. 1997a. Pg. 31.
2
Ibidem. Pg.37.
Embora, como frisei a cima, compartilhe da premissa de que todo sujeito está
constantemente (re)organizando seu passado, independente de nós historiadores estarmos lá
para ver e ouvir, é preciso registrar que a partir do momento em que nos fazemos presente
esse processo ganha mais uma variável. Como advertem Portelli3 e Khoury4, a entrevista é
sempre um encontro. Um encontro entre sujeitos que ocupam determinados lugares sociais e
políticos, imbuídos de uma experiência histórica e subjetividade que lhes são próprias. No
processo de produção da entrevista, o diálogo se constrói por meio dessas variáveis. Assim, o
entrevistado organiza sua narrativa, articulando experiências e memórias, também em função
daquilo que ele quer dizer para seu interlocutor, do que ele acha que o interlocutor sabe e quer
saber.
A confrontação com esse problema motivou a reflexão sobre sua presença dentro de
meu objeto de pesquisa. Embora a execução da pesquisa já previsse o diálogo com mulheres e
3
Ibidem. Pg.8.
4
KHOURY, Yara Aun. Historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: MACIEL, L. A.; ALMEIDA, P.
R.; KHOURY, Y. A. (Org.) Outras histórias: memórias e linguagens. São Paulo: Olho d’Água, 2006.
5
DUARTE, A. R. F. Memórias em Disputa e Jogos de Gênero: O Movimento Feminino pela Anistia no Ceará
(1976-1979). 2009. 199f. Tese (Doutorado em História). PPGH da Universidade Federal de Santa Catarina-
UFSC, Florianópolis, 2009.
homens, não estava colocada a dimensão da questão dentro do plano historiográfico e nem
mesmo as implicações de refletir sobre as narrativas a partir de posições de gênero.
Essa definição das posições de gênero, engendrada por relações de poder e também
constituidora delas, nega às mulheres o direito de participar do que é usualmente tido como
político. Por outro lado, também recusa ao que tradicionalmente é tido como ações de
mulheres, a titulação de político, colocando-as na esfera da solidariedade e do cuidado
maternal.
6
DUARTE. Op. Cit., p. 97.
Partindo desses referenciais abrem-se possibilidades para pensar questões que estão
colocadas no diálogo com militantes mulheres que compõem minha pesquisa. Suas trajetórias
perpassam diversas esferas de atuação que imbricam o social e o político. Muitas dessas
mulheres, além de serem militantes petistas, participam de entidades religiosas voltadas à
assistência social, pastorais, associações escolares, clubes de mães, sindicatos e associações
de categorias profissionais, movimentos ligados a agroecologia e etc.
7
O Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) foi fundado em São Paulo em 1975 pela advogada Therezinha
Godoy Zerbini e ganhou filiais em outros estados, como no Ceará em 1976. O objetivo do Movimento era
reivindicar a anistia dos presos políticos do Regime Civil-Militar e dar apoio aos familiares daqueles que se
encontravam nessa situação.
O diálogo entre a história oral e a história das mulheres propiciou, de acordo com a
autora, a partir dos anos 1980, a tomada de consciência em relação à pluralidade e à
subjetividade. As mulheres deixaram de ser tomadas como um grupo uníssono para serem
compreendidas como uma multiplicidade de grupos, os quais entrecruzam em suas
experiências questões de gênero, mas também de etnia, classe, religião e etc. No que diz
respeito à subjetividade, a história oral deixou de buscar apenas as vozes excluídas, para
abarcar também os múltiplos sentidos que as experiências narradas por essas vozes poderiam
comportar.
8
SALVATICI, S. Memórias de Gênero: Reflexões sobre a História Oral de Mulheres. História Oral, São Paulo,
v.8, n.1, 29-42, 2005. P. 30.
quisesse). Pois não só a filosofia vai implícita nos fatos, mas a motivação de
narrar consiste em expressar o significado dos fatos: recordar e contar já é
interpretar.9
Este diálogo estabelecido com as contribuições da História Oral e de Gênero faz parte
das reflexões teóricas e metodológicas que estão sendo construídas para alicerçar a fase da
pesquisa que começa neste segundo semestre de curso, a realização de entrevistas orais com
os sujeitos da pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
9
PORTELLI, A. A Filosofia e os Fatos. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, 59-72, 1996. P.60, grifo no original.
KHOURY, Yara Aun. Historiador, as fontes orais e a escrita da história. In: MACIEL, L. A.;
ALMEIDA, P. R.; KHOURY, Y. A. (Org.) Outras histórias: memórias e linguagens. São
Paulo: Olho d’Água, 2006.
PORTELLI, A. A Filosofia e os Fatos. Tempo, Rio de Janeiro, v.1, n.2, 59-72, 1996.
PORTELLI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História, n. 14, Educ
– Editora da PUC-SP, São Paulo, fev. 1997a.
SALVATICI, S. Memórias de Gênero: Reflexões sobre a História Oral de Mulheres. História
Oral, São Paulo, v.8, n.1, 29-42, 2005.
INTRODUÇÃO:
A figura do bandeirante paulista tem sido tema de livros e pesquisas desde o final do
período colonial. Hora representado como mestiço e algoz das tribos indígenas, hora visto
como o pioneiro na construção da nação e alargador do território nacional; a imagem do
bandeirante caminhou entre esta dualidade, indo de anti-heróis para heróis da história do
Brasil.
1
Obviamente, não exporemos aqui todos os autores que trabalharam com os bandeirantes e representaram os
mesmos das mais diversas formas possíveis, o que demandaria um trabalho de maior fôlego. Faremos uma
seleção de acordo com as obras, consideradas por nós, mais relevantes sobre o assunto.
Segundo Carlos Davidoff, o bandeirante teria sido o fruto social de uma região
marginalizada, de escassos recursos materiais e de vida econômica restrita, e suas ações se
orientaram ou no sentido de tirar o máximo das brechas que a economia colonial
eventualmente oferecia para a efetivação de lucros rápidos e passageiros em conjunturas
favoráveis – como no caso da caça ao índio – ou no sentido de buscar alternativas econômicas
fora dos quadros da agricultura voltada para o mercado externo, como ocorreu com a busca
dos metais e das pedras preciosas (DAVIDOFF, 1994: 25-26).
Assim, por sugestão sua, o rei escreveu cartas aos mais leais vassalos
paulistas, “firmadas do seu real punho”, agradecendo a cada um de seus vassalos
individualmente, prometendo-lhe uma mercê futura. Nesse sentido, a principal
façanha de Sá e Meneses – aquela que lhe garantiu a cooperação dos paulistas e o
desvendamento da região mineradora – deu-se no campo simbólico das relações
entre o rei e seus vassalos: subvertendo a legenda negra então dominante, o
governador transformou-os de vassalos rebeldes e insubmissos em “honrados
vassalos”, animados pela “boa lealdade” (ROMEIRO, 2008: 54-55).
No entanto, o fluxo migratório de Portugal para o Brasil ganhou novo ímpeto com a
notícia das descobertas auríferas: “A chegada maciça de estrangeiros, que vinham disputar a
posse das novas riquezas aos paulistas, logo teve por consequência a eclosão de seguidos
conflitos entre os forasteiros ou emboabas e os grupos locais” (DAVIDOFF, 1994: 80).
De acordo com Boxer, o ressentimento duplo entre os dois grupos veio a ser ainda
mais inflamado pelos termos injuriosos que usavam para se descrevem uns aos outros. Por um
lado, os recém-chegados de Portugal e das ilhas do Atlântico eram chamados pejorativamente
Contudo, a imagem destes últimos já vinha sendo depreciada desde meados do século
XVII, pelos jesuítas espanhóis, a partir dos conflitos em torno das missões de Guará, pela não
observância das Leis do Reino referentes à liberdade dos índios (MONTEIRO, 2001: 106).
Também o viajante francês François Froger, em escala no Rio de Janeiro, a partir de opiniões
vigentes, descreveu os paulistas como um conjunto de bandidos de todas as nações, que pouco
a pouco formaram uma grande cidade e uma espécie de República, onde eles têm como lei
não reconhecer o governador de forma alguma (BOXER, 2000: 88).
No entanto, a obra que teve um papel decisivo para a construção da legenda negra dos
paulistas foi a Conquista espiritual, escrita por Antonio Ruiz de Montoya, e publicada em
1639, em Madri. Segundo Romeiro, como procurador da Companhia de Jesus, Montoya
empenhou-se em condenar acerrimamente os sertanistas da Vila de São Paulo, quando estava
em curso a destruição das missões do Paraguai:
A legenda negra, que aparecia nos escritos dos jesuítas, segundo Romeiro, definia os
paulistas como vassalos indômitos e rebeldes, associando-os ao “mito do homem selvagem,
transformando-os em calibans terríveis, pertencentes à esfera antitética da ordem e da
civilização” (ROMEIRO, 2005: 388). Os bandeirantes apareciam nestes discursos como
distantes dos costumes da vida na corte, das atitudes e comportamentos valorizados dentro da
ótica do Antigo Regime.
Quelen Ingrid Lopes destaca que a relação alimentada pelos paulistas com os índios
foi um dos elementos a condicionar as atribuições de sua identidade pelos reinóis:
O uso que faziam da língua indígena, presente nos inúmeros nomes a que davam aos
arraiais ou aos pontos de referência geográfica por onde se movimentavam e se
localizavam nas Minas, no seu modo de viver nas matas imbuído dos costumes dos
índios, mais os assemelhavam aos selvagens do que aos portugueses natos. E mesmo
com o restante dos forasteiros naturais da Bahia, Pernambuco ou Rio de Janeiro
(LOPES, 2008: 264).
Segundo a autora, o grupo étnico dos paulistas definia-se enquanto tal por seus
membros, e eram definidos pelos emboabas através, principalmente, dos elementos da cultura
indígena em seu comportamento e estilo de vida: “Nem completamente selvagens, nem
plenamente civilizados, na visão metropolitana, os paulistas se afastavam do modelo de
civilização europeu (...)” (LOPES, 2008: 265).
Outro topos influente da legenda negra era o caráter errante e nômade dos paulistas,
“acostumados a passar longos períodos nos matos, em busca de índios, sobrevivendo apenas
de frutos e animais silvestres” (ROMEIRO, 2008: 226-227). Para Romeiro, aos
contemporâneos, parecia estranho que uma região tão fértil como as terras de São Paulo de
Piratininga, nas quais se cultivavam o trigo e a cana-de-açúcar, não bastassem para tornar
sedentários os seus habitantes (ROMEIRO, 2008: 226-227).
Cabe destacar ainda, a composição mestiça de grande parte dos paulistas que, aos
olhos dos portugueses, aparecia como mácula de sangue. Muitos dos homens que se
aventuraram pelos sertões e participaram das descobertas das minas possuíam sangue
indígena, o que, somado ao uso da língua geral pelos mesmos, ajudava a ressaltar a imagem
de bárbaros dada aos habitantes do Planalto de Piratininga.
Os paulistas não tiveram os seus pedidos atendidos pela Coroa, nem cumpridas as
promessas feitas anteriormente. Os homens do Planalto acabaram derrotados, não apenas por
portugueses, mas também por outros aventureiros que rumaram para Minas, procedentes do
interior da Bahia, de Pernambuco e de outras regiões do Brasil, que se colocaram ao lado dos
emboabas (BOXER, 2000: 88).
Entretanto, mesmo que a segunda metade do século XVIII tenha visto essa restauração
da imagem do paulista, Danilo Z. Ferretti afirma que até 1870, não se percebe na Província de
São Paulo nenhum empenho sistemático, independente e coletivo em elaborar um discurso
identitário e muito menos em reelaborar a representação do passado regional calcado no
bandeirante (FERRETTI, 2004: 25). Na obra de Ricardo Daut (1818-1893), irlandês fixado
em Campinas, por exemplo, os paulistas antigos não são demonizados, mas também não são
louvados como “bandeirantes”, como heróis nacionais construtores do território: “Eram antes
vistos de passagem como senhores feudais, ao gosto do romantismo medievalista europeu,
sem merecer longo tratamento” (FERRETTI, 2004: 33).
Ainda segundo o autor supracitado, na visão dos indianistas de meados do século XIX,
o colono paulista apresador de índios e inimigo encarniçado dos jesuítas, passou a ser visto
como o grande vilão da história nacional. Ferretti lembra que, em 1839, o cônego Januário da
Cunha Barbosa (1780-1846) já falava do desumano procedimento que, no século XVIII,
tinham os paulistas para com os índios. Outro clérigo, o cônego Fernandes Pinheiro (1825-
1876), colocava na invenção pelos “ambiciosos colonos” das bandeiras, espécies de caçadas
de índios que lhes forneciam escravos, a origem da escravidão dos indígenas (FERRETTI,
2004: 74).
Deste modo, Ferretti, fala em uma nova versão indianista da legenda negra anti-
bandeirante, onde os paulistas são vistos como colonos ambiciosos que se antepunham aos
abnegados jesuítas. Assim, ainda que valorizassem a atuação dos colonos de Piratininga como
alargadores das fronteiras nacionais, os autores indianistas tendiam cada vez mais a identificá-
los como uma espécie de anti-heróis de nossa história que, movidos pela ganância, foram os
responsáveis pelo extermínio dos povos indígenas (FERRETTI, 2009).
Por outro lado, um grupo de monarquistas, composto por figuras como Eduardo Prado
(1860-1901), Afonso Arinos (1868-1916), Theodoro Sampaio (1855-1937), entre outros, nos
anos iniciais da República, revisaram a imagem do bandeirante num esforço de conciliação
com o passado jesuítico. Deste modo, através da valorização da mestiçagem empreendida na
Capitania de São Vicente, mostravam jesuítas e bandeirantes, não como excludentes, mas ao
contrário, como complementares. Os jesuítas teriam ajudado a civilizar o paulista, evitando os
conflitos entre brancos e indígenas e, com isso, facilitando o processo de miscigenação. Desta
De acordo com Laura de Mello e Souza, no início do século XX, os autores que mais
se destacaram na retomada da questão do bandeirante foram: Afonso D’Escragnolle Taunay
(1876-1958), Alfredo Ellis Júnior (1896-1974) e José de Alcântara Machado (1875-1941).
Segundo a autora, as obras de Frei Gaspar e de Pedro Taques foram retomadas como base
para a construção das matrizes do novo conhecimento sobre as bandeiras e os bandeirantes:
Para Souza, Taunay se detém na figura do chefe da bandeira como eixo predominante
de sua história e reconstrói a organização das bandeiras em ciclos: o da devassa das terras e o
do ouro, também nomeado de monções: “O autor valoriza a expansão territorial e não o
apresamento de índios. Considera mesmo que a escravidão indígena foi circunstancial,
enquanto se esperava as levas de escravos africanos” (SOUZA, 2000: 209). Os mamelucos
teriam formado uma raça aclimatada ao solo e ao clima, e o êxito da expansão territorial acaba
por compensar a dizimação dos povos inferiores. Tal posição é curiosa, se levarmos em conta
a influência de Capistrano de Abreu na formação intelectual do autor.
2
O argumento expostos nesse parágrafo constitui parte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida no Programa
de Pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais, com a orientação do Professor Dr. Eduardo França
Paiva. Apenas buscamos delinear alguns pontos principais do pensamento dos autores estudados, visto que, um
alongamento maior da discussão nos tiraria do foco principal deste trabalho.
Cabe destacar que o mito bandeirante desse momento esteve fortemente relacionado
com a crença na superioridade paulista em relação às demais regiões do país. Assim, colocar o
bandeirante como impulsionador da construção do Brasil significava colocar São Paulo na
vanguarda da história nacional. No entanto, esse regionalismo paulista procurou impor-se aos
demais justamente pela negação de seu caráter local, travestido de nacional: “Para isso, foi
essencial a recuperação da figura do bandeirante” (WALDMAN, 2009: 174).
Por outro lado, na década de 1950, o tema seria retomado em Caminhos e Fronteiras
(1957), de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). O autor destacou a capacidade de
adaptação como traço característico dos portugueses, afirmando que o movimento das
bandeiras deve ser entendido através desse traço cultural. A comunicação com o indígena,
bem como a mestiçagem com o gentio teriam sido fatores fundamentais para a colonização
portuguesa na América: “Influência que viria a animar, senão tornar possível, as grandes
empresas bandeirantes” (HOLANDA, 1994: 21).
Nas últimas décadas, os estudos historiográficos acerca do tema tem buscado cada vez
mais retificar a imagem heroica do bandeirante, buscando resgatar o paulista histórico, sem
fazer juízos de valores. Os trabalhos de Adriana Romeiro, amplamente citados neste texto, são
um grande exemplo disto. No entanto, a imagem mítica do herói bandeirante se estabeleceu
tão profundamente no pensamento social brasileiro que torna-se uma tarefa árdua matizá-lo.
Ainda em trabalhos recentes como O Povo Brasileiro (1995), do antropólogo Darcy Ribeiro
(1922-1997), percebe-se o conflito entre o genocídio dos indígenas e a admiração diante da
obra de expansão territorial empreendida pelos mamelucos. Para o autor, mais importante do
que o mestiço com as populações negras, os mamelucos foram os agentes principais da
história brasileira: “Enfrentaram, de um lado, a odiosidade jesuítica e a má vontade dos
reinóis e, de outro, todas as dificuldades imensas de sua vida de sertanistas. Inclusive a
hostilidade dos índios arredios (...)” (RIBEIRO, 2006: 99).
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A legenda negra que pairava sobre os paulistas no período colonial, colocava-os sobre
imagens as mais negativas possíveis: insubordinados, incivilizados, impuros. Diante do olhar
dos portugueses, esses homens eram inferiores, ainda que necessários para o projeto de
conquista do interior e para o descobrimento de minerais preciosos. Essas características
apareciam, principalmente, nos escritos dos jesuítas espanhóis, adversários dos paulistas, que
invadiam diversas missões em busca de mão-de-obra indígena.
A Guerra dos Emboabas contribuiu para acirrar essas representações, visto que os
imigrantes portugueses que seguiam em direção às Minas, consideravam os homens do
Planalto indignos de receberem mercês da Coroa, devido a todos os atributos negativos
elencados acima. Deste modo, o conflito ideológico foi tão importante quanto o conflito físico
para se entender esse episódio da história do Brasil.
BIBLIOGRAFIA:
BOXER, Charles R.. A Idade de Ouro do Brasil: Dores de crescimento de uma sociedade
colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras,
1994.
PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: Ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Ibrasa,
1981.
ROMEIRO, Adriana. Revisitando a Guerra dos Emboabas: práticas políticas e imaginário nas
Minas setecentistas. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia do Amaral
(Orgs.). Modos de Governar: Idéias e práticas políticas no Império Português, séculos
XVI a XIX. São Paulo: Alameda, 2005.
SOUZA, Laura de Mello e. Vícios, Virtudes e Sentimento Regional: São Paulo, da lenda
negra à lenda áurea. IN: Revista de História 142-143, São Paulo: 2000, pp. 261-276.
Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
83092000000100007&lng=pt&nrm=iso, acessado em 21 de outubro de 2011.
INTRODUÇÃO
É impossível dar uma definição única do que seja o anarquismo.1 Talvez isso esteja
relacionado à própria ambiguidade da palavra, derivada do grego clássico anarchos (ἄναρχος)
que, por sua vez, é composta pelos vocábulos an e arkhê, significando “ausência de
governantes”.2 Assim, o termo anarquia pode ser usado “tanto para expressar a condição
negativa de ausência de governo quanto a condição positiva de não haver governo por ser ele
desnecessário à preservação da ordem.”3 Contudo, não há acordo entre os estudiosos do
pensamento anarquista sobre qual seria sua origem. Existem três hipóteses principais sobre as
origens do pensamento anarquista. A primeira considera o anarquismo como uma disposição
quase a-histórica pela liberdade, remontando sua origem a antigos textos chineses e
pensadores da Grécia Antiga. A segunda afirma que formas potenciais de anarquismo já
podiam ser encontradas diversas sociedades primitivas ao redor do mundo. Por fim, a terceira
hipótese sustenta que o anarquismo seria um produto tardio do Iluminismo e da Revolução
Francesa.4 De qualquer forma, o anarquismo nunca foi um movimento homogêneo, tendo
suas vertentes, em comum, apenas a convicção de ser nociva, para a vida social, a existência
de um governo e o desejo de criar uma sociedade onde ele não exista.5
1
VINCENT, Andrew [1992]. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,
p. 121, WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das ideias e dos movimentos libertários. Porto
Alegre: L&PM, 2007, vol.1, p. 16 e MARSHALL, Peter [1992]. Demanding the Impossible: A History of
Anarchysm. Londres: Harper Perennial, 2008, p. 3.
2
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert (comps.). A Greek-English Lexicon. Londres: Oxford
English Press, 1996, p. 120.
3
WOODCOCK, George. Op. Cit., p. 8.
4
Ver, a esse respeito, VINCENT, Andrew. Op. Cit., pp. 122-125 e MARSHALL, Peter. Op. Cit., p. IX
5
WOODCOCK, George. The Anarchist Reader. Fontana Press, 1977, p. 11.
6
A palavra libertário foi usada como sinônimo de anarquista pelos próprios anarquistas durante a maior
parte dos séculos XIX e XX. O uso do termo tornou-se popular a partir da década de 1890, após ter sido
empregado na França como uma tentativa de se escapar à legislação antianarquista que se pretendia implementar
no país e, ao mesmo tempo, dissociar o movimento da conotação negativa que havia sido atribuída à palavra
anarquismo. (Cf. NETTLAU, Max. A short history of anarchism. Londres: Freedom Press, 1996, pp. 75-56, p.
145 e 162). Entretanto, na segunda metade do século XX, o termo foi apropriado por vários pensadores norte-
americanos defensores do “livre mercado”, como David Friedman, Robert Nozick, Murray Rothbard, e Robert
Paul Wolff. “Os 'libertários' norte-americanos do século XX são acadêmicos e não ativistas sociais, e sua
inventividade parece estar limitada a fornecer uma ideologia para o capitalismo de mercado desregulado”
(WARD, Colin. Anarchism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 82). Hoje o
termo libertarianismo indica uma filosofia política liberal que defende o máximo de liberdade individual e o
mínimo de coerção ou exercício da autoridade, encontrando-se comumente associado a correntes de pensamento
designadas “anarcocapitalistas”. Não obstante, muitos pensadores e ativistas anarquistas rejeitam o que
vertentes existentes possuía uma série de pontos em comum com a esquerda7 daquele período,
havendo, inclusive, uma frequente e complexa sobreposição de discursos e posicionamentos
entre elas. Aliás, durante boa parte do século XIX, o anarquismo era considerado parte do
movimento socialista, e muitos anarquistas chamavam-se a si mesmos de “socialistas
antiautoritários”, como forma de se diferenciarem dos “comunistas” (para eles, “socialistas
autoritários”). Consideramos que aquele anarquismo estava bastante próximo da esquerda que
lhe foi contemporânea, por partilhar com ela algumas concepções fundamentais: a noção de
que os problemas sociais deveriam ser analisados cientificamente, a ideia de que as
desigualdades existentes entre as pessoas derivam da maneira como a sociedade está
estruturada (sendo, portanto passíveis de serem eliminadas com uma reestruturação da
mesma), o desejo de libertar os povos e os indivíduos do poder político-econômico injusto e
opressivo, e de afastá-los do obscurantismo religioso, bem como livrá-los dos
constrangimentos derivados dos privilégios de casta, classe e etnia, permitindo o livre
desenvolvimento de suas capacidades, possível apenas com uma transformação radical da
sociedade.8
consideram ser uma “apropriação indevida” de uma expressão histórica e continuam a utilizar as duas palavras –
libertário e anarquista – como sinônimos.
7
Estamos utilizando “esquerda” como uma expressão genérica que denomina uma ampla pluralidade de
vertentes do espectro político que possuem em comum a tendência a apoiar mudanças sociais que visem o
estabelecimento de uma sociedade mais igualitária e livre. Consideramos “esquerda” e “direita” conceitos
historicamente relativos e não termos estáveis e portadores de uma identidade absoluta, válida para todas as
épocas e regiões. Para uma discussão mais detalhada da questão, ver BOBBIO, N. Direita e Esquerda: razões e
significados de uma distinção política. São Paulo: Editora Unesp, 1995.
8
VINCENT, Andrew. Op. Cit., p. 121.
como o conceito de cultura política, a nosso ver útil para a caracterização do anarquismo e
sua práxis. Por cultura política entendemos o
Não se trata, então, de empregar esse conceito para atribuir ao anarquismo uma
identidade fixa, imutável, mas antes de utilizá-lo como uma ferramenta que, sem
desconsiderar a importância da duração, auxilie a caracterizar o anarquismo em determinados
contextos históricos e, a partir disso, reconhecer sua linguagem, seus ícones e símbolos, além
9
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na História: novos estudos. Belo
Horizonte: Argvmentvm, 2009, pp.21-22.
10
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. Cit., pp. 22-24.
de discutir quais eram suas ideias, leituras do passado, esperanças e visões de mundo, bem
como sua práxis no movimento operário-social.
11
MANFREDONIA, Gaetano. Persistance et actualité de la culture politique libertaire. In: BERNSTEIN,
Serge. Les cultures politiques en France. Paris: Le Seuil, 1999, p. 246.
12
Ver VINCENT, Andrew. Op. Cit., pp.121-125, WOODCOCK, George. Op. Cit., p. 14-17, e
HOROWITZ, Louis. Op. Cit., p. 15.
ou de reagir face aos acontecimentos, mas igualmente uma visão de mundo comum
fundada sob um sistema de normas e de valores que lhes são próprios.13
13
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 245.
14
Idem, pp. 251-252.
A cultura política anarquista está marcada pelo signo de uma radicalidade — buscada,
reivindicada valorizada —, que cumpre a função de prover os militantes libertários de uma
identidade distinta às outras correntes políticas que buscam uma transformação mais ou
menos completa do status quo. Contudo, em meia a essa radicalidade, é a revolta o valor
aclamado pelos anarquistas, e não a violência. Revolta contra o obscurantismo clerical, contra
a manutenção da ignorância popular, contra as eleições (“fraudulentas”) que visam legitimar
um sistema socioeconômico (“corrupto e opressor”). Identidade radicalizada que — a
despeito de sua similaridade com vários grupos filiados ao movimento socialista — busca
símbolos próprios de expressão (a bandeira negra, o A estilizado), reafirma-se em diferentes
redes de sociabilidade (festas, encontros familiares, relações de camaradagem) e procura
referências históricas (a Comuna de 1871, por exemplo) que vão compondo a mitologia
política dessa corrente.
Mas a cultura política libertária, como qualquer outra cultura política, não pode ser
concebida como um dado imutável, alheio às influências do tempo, do espaço e da cultura
local.16
15
Idem, p. 256.
16
Idem, p. 245.
No começo do século XX, a atração que Outubro de 1917 exerceu sobre trabalhadores
e intelectuais anarquistas, e a expansão da influência do bolchevismo no movimento operário-
social representaram um declínio do anarquismo na maioria dos países. Situação que agravada
no período entre guerras, pois o anarquismo viu-se marginalizado em meio ao fogo cruzado
entre dois movimentos defensores de regimes inadmissíveis para eles: o fascismo e o
comunismo soviético. A reação do anarquismo foi retrair-se e olhar para si mesmo, o que de
certa maneira contribuiu para seu afastamento do centro das lutas políticas e sociais,
especialmente após a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial.
Mas as causas do relativo declínio da cultura política anarquista não foram apenas
políticas. O aprofundamento da industrialização eliminou ou diminuiu drasticamente setores
onde o anarquismo era particularmente forte, como o dos trabalhadores artesãos. Ademais,
como sublinha Manfredonia, diante da complexidade crescente das relações socioeconômicas
engendradas pelo desenvolvimento capitalista, “muitas soluções anarquistas […] apareciam
como inapropriadas, inclusive aos olhos de alguns ativistas que, pela primeira vez,
questionaram abertamente a viabilidade de suas doutrinas em termos econômicos”.17
17
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 274.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para que possa perdurar, toda e qualquer cultura política precisa modificar-se, adaptar-
se, reinventar-se e incorporar contribuições. Caso contrário, seu destino será desaparecer,
mais ou menos rapidamente.
Esse não parece ser o caso da cultura política libertária, uma vez que demonstrou ter
grande plasticidade e capacidade adaptativa. Renovada, essa cultura política aparece a muitos
ativistas como uma alternativa para se pensar o mundo contemporâneo, tendo em vista tanto o
desgaste do capitalismo e seu ordenamento político-institucional, quanto o fim do comunismo
soviético. Terão os valores defendidos pela cultura política libertária um papel de destaque no
futuro?
18
MANFREDONIA, Gaetano. Op. Cit., p. 275.
19
BOOKCHIN, Murray. Remaking Society. Montréal: Black Rose Books, 1989.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São
Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1995.
HOROWITZ, Irving Louis. The anarchists. Nova York : Dell Publishing Co., 1964.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela
historiografia. In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Culturas políticas na História: novos
estudos. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009
VINCENT, Andrew [1992]. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995.
WARD, Colin. Anarchism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2004
WOODCOCK, George. Anarquismo: uma história das ideias e dos movimentos libertários.
vol. 1. Porto Alegre: L&PM, 2007.
___________________. The Anarchist Reader. Fontana Press, 1977.
NOTA INTRODUTÓRIA
Este texto discute algumas das relações possíveis entre história, memória e
identidade do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Partiremos de uma breve apresentação
do livro de Marie-Clair Lavabre (1994), que problematiza as formas de utilização do passado
por parte dos comunistas franceses no momento em que reconstituem a sua história. A autora
demonstra que há uma articulação entre a história coletiva, os itinerários individuais dos
militantes, a história contada pelo partido e as lembranças evocadas pela militância,
conformando a identidade partidária1.
O objetivo é demonstrar que esse tipo de análise pode ser útil para o estudo das
organizações comunistas brasileiras, particularmente o PC do B, cuja problemática da escrita
de sua história ganha uma dimensão que dificilmente encontraríamos em outro partido no
Brasil. Para tratarmos do tema dentro dos limites deste trabalho, partiremos da apresentação
da temática, da abordagem e dos pressupostos teóricos do livro de Marie-Clair Lavabre. Em
seguida, discutiremos as possibilidades de utilização dessa abordagem para o estudo da
história do PC do B e, ao mesmo tempo, com a pretensão de que seja útil para compreensão
da história de grupos, partidos e organizações comunistas de uma forma geral.
1
Temos ciência que o livro de Lavabre não dá conta de toda a problemática que envolve as discussões sobre
memória e identidade. A opção aqui serve apenas para mantermos o debate nos limites de páginas desta
publicação, utilizando um trabalho que trata especificamente do caso de um partido comunista. De todo modo,
não podemos deixar de indicar a leitura de HARTOG, F; REVEL, J. (org.). Les usages politiques du passe.
Paris: Éditions de l’école des hautes études em siences sociales, 2001.
Uma primeira definição feita por Lavabre que podemos reter é a da relação entre
memória, história e identidade partidária comunista. Segundo a autora, a memória comunista
é essencialmente seletiva, muitas vezes recorrendo à falsificação e ocultação de eventos e
figuras que contrariem os imperativos políticos do momento. Ao mesmo tempo, a memória
comunista é uma forma de história oficial poderosa que é partilhada, por convicção ou
interesse, pelos membros do partido (p. 14).
Segundo a autora, essa temática geral pode ser definida como uma história dos
usos políticos do passado. Aqui ela apoia-se teoricamente nas proposições de Maurice
Halbwachs sobre a memória coletiva para procurar entender a articulação entre “a história
coletiva e os itinerários individuais, a historiografia oficial e as lembranças evocadas pelos
militantes”, considerando que, segundo Halbwachs, o “indivíduo se lembra se colocando do
ponto de vista do grupo e que a memória do grupo se realiza e se manifesta nas memórias
individuais”. Neste ponto, a autora foi buscar em Roger Bastide elementos que
complementassem as reflexões de Halbwachs, sobretudo no que diz respeito àquilo que é
plenamente individual na rememoração. Para Bastide, essa memória não se reduz a um
simples “reflexo de uma memória coletiva transcendente, exterior e superior ao indivíduo”.
Nos canais de transmissão entre o grupo e o indivíduo há espaço para tensões, o que deve ser
explorado pelo cientista social. (p.35).
Uma segunda problemática abordada pela autora, e que nos interessa diretamente
neste texto, é a da especificidade ou não da memória comunista. Em outras palavras, trata-se
de problematizar afirmações feitas por diversos autores segundo as quais os partidos
comunistas não são iguais a outros gêneros de organizações partidárias. Sobre esta difícil
questão, a autora conclui que
(os primeiros anos de militância; o ponto culminante de lutas sociais; momentos de vitória ou
derrota, etc.) são privilegiados tanto na memória partidária quanto individual. (4) A
apropriação da memória partidária deixa espaço para traços particulares que tem a ver com as
diferenças de geração, tradição familiar, aprendizagem escolar, momento da adesão, etc.
2
Sobre os aspectos gerais da história do PCdoB, ver: SALES (2007).
Um exemplo marcante desse significado foi o pedido feito pouco antes de morrer pelo
dirigente mais importante do partido, João Amazonas. O velho dirigente, que chegou a
participar da preparação da guerrilha, pediu para que as cinzas de seu corpo fossem jogadas
na região do Araguaia. No dia 21 de junho de 2002, realizou-se uma cerimônia na cidade de
Xambioá para lançar as suas cinzas, ao mesmo tempo em que se anuncia a construção de um
memorial sobre a guerrilha na região.
Da morte dos guerrilheiros até o momento em que o partido admitiu que seus
militantes houvessem morrido, haveria ainda um longo caminho a ser percorrido. Seja pelo
duro impacto da derrota, seja pelas dúvidas a respeito do que realmente havia acontecido com
os militantes - se teriam sido presos ou mortos -, somente em abril de 1976 a direção do PC
do B admitiu publicamente, através do artigo “Invencível bandeira de luta”, publicado no
jornal A Classe Operária, que havia acontecido um “temporário retrocesso na guerrilha”. Por
outro lado, ressaltava que a bandeira da “guerra popular”, empunhada pelos combatentes,
continuava válida e que a luta guerrilheira seria, com "...o exército popular, adestrado em mil
batalhas, capaz de assestar golpes demolidores nas forças de reação e libertar a pátria dos seus
piores inimigos”.
Essa não era, contudo, a posição de todo o partido, nem mesmo de toda a sua
direção, a respeito do significado da experiência guerrilheira. Um ano antes,
já haviam se iniciado as discussões a este respeito e, até aquele momento -
abril de 1976 -, não se havia chegado a um denominador comum. Em
fevereiro, o Comitê Central (C. C.) reuniu-se e aprovou uma "carta circular"
que deveria ser lida pelos militantes, a qual, apesar de não tratar diretamente
da questão do Araguaia, apontava como principal tarefa do partido a de
resguardar da repressão polical e voltar-se para o trabalho junto às massas, o
que soava como uma crítica implícita ao voluntarismo presente na
experiência guerrilheira. (Pomar, 1980: 157-165).
Seria, porém, em uma reunião do C. C. de março de 1976 que apareceriam
nitidamente as duas tendências que demarcariam território na discussão. De um lado, teríamos
a posição defendida por Angelo Arroyo - da Comissão Militar e um dos poucos sobreviventes
da guerrilha, sistematizada no documento "um grande acontecimento na vida do país",
segundo a qual a experiência teria sido "altamente positiva". Em resumo, afirmava que “o
balanço político, do ponto de vista da luta do nosso povo e do papel do Partido, no que
respeita aos sucessos do Araguaia, é altamente positivo”. (Pomar, 1980, p.278).
O desfecho das divergências não se daria sem conflitos. Em setembro de 1976, foi
publicado um artigo no jornal A Classe Operária que tentava finalizar as discussões iniciadas
na reunião de março: "gloriosa jornada de luta". A essência do artigo, porém, longe de
denunciar os erros cometidos pelo partido no Araguaia, exaltava aquela que teria sido uma
façanha histórica.
Araguaia. Havia, de uma maneira geral, duas tendências em relação à forma como se deveria
encaminhar a nova política partidária. Para muitos de seus membros, inclusive algumas
direções regionais, o PC do B deveria fazer um exame profundo dos erros que haveria
cometido nos anos sessenta. Teria que iniciar uma discussão que fosse efetivamente ampla e
que, dada a gravidade dos temas a serem discutidos, redundasse em um Congresso. 3 Para
esses setores, a VII Conferência do partido não havia debatido os problemas e teria, na
verdade, servido “para legitimar as posições e opiniões do grupo que passara a dominar o C.
C ”.4
3
Muitos dos documentos sobre as divergências internas do PC do B no período podem ser vistos no Fundo
Duarte Pereira Pacheco (FDPP), no Arquivo Edgard Leunroth (AEL), na UNICAMP. Vale consultar
principalmente aqueles pertencentes aos setores que faziam oposição ao Comitê Central, caso do Comitê
Regional da Bahia e o Comitê Regional de São Paulo “Estrutura 1” (desde 1973, por motivos organizativos e de
segurança, haviam em São Paulo duas “Estruturas” Regionais, a 1 e a 2. No decorrer dos debates, a Estrutura 1
acabou sendo um dos principais representantes da tendência que pedia um aprofundamento das discussões e a
realização de um Congresso partidário.).
4
Comitê Regional de São Paulo do PC do B (Estrutura 1). “Aos camaradas e amigos do partido.” Setembro de
1980. (FDPP, Caixa 5).
5
Secretariado Regional da Bahia. “Sobre nossos erros e divergências: sua discussão e correção”. Janeiro de
1980. (FDPP, Caixa 4).
Ainda no livro acima, que ganhou uma edição ampliada em 2005, há um último
exemplo que demonstra a preocupação do partido com a elaboração de seu passado. Entre os
materiais sobre a guerrilha há documentos produzidos pelos próprios guerrilheiros, artigos de
dirigentes, o texto de Angelo Arroyo e biografias dos participantes da guerrilha. Aqui há um
detalhe que não pode passar despercebido. Nessa publicação, versão oficial sobre a guerrilha
do Araguaia, o nome de José Genoíno Neto não figura entre os participantes da experiência
no Araguaia. Essa ausência se deve, provavelmente, ao fato de Genoíno ter entrado em
conflito com a direção do partido no início da década de oitenta, não só em relação ao
episódio do Araguaia, mas também quanto ao caminho que o partido deveria seguir diante da
nova conjuntura política que se abria.6
Esse episódio demonstra que não somente o partido se preocupa com a escrita de
sua história, como esperamos ter deixado claro no decorrer deste texto, mas que em certos
casos o esforço na elaboração do passado é ainda maior. É o caso da guerrilha, experiência à
qual o PC do B tem dedicado uma atenção especial. E não poderia ser diferente. De toda a
história do PC do B, a guerrilha do Araguaia é destacada por sua direção como o exemplo que
demonstra mais claramente as características que teriam norteado a sua trajetória de luta e de
coerência com os princípios revolucionários. Nesse caminho, usou todas as forças na
elaboração de uma história da guerrilha do Araguaia que fosse digna de orgulho para seus
militantes, na qual não se admite os erros que possam ter sido cometidos, e tenta-se mesmo
apagar a memória da participação de certas figuras que hoje não fazem parte do partido.
CONCLUSÃO
6
Ver a lista de biografados nas páginas 76-92 (PC do B, 1996). Quanto a participação de José Genoíno na
Guerrilha do Araguaia, ver entrevista sua a Marcelo Ridenti, em 6/01/1986, à disposição no Arquivo Edgard
Leuenroth - UNICAMP.
elaborou, não sem conflito, uma história e memória sobre a guerrilha que serve como
elemento de coesão de seus militantes.
BIBLIOGRAFIA
HARTOG, F; REVEL, J. (org.). Les usages politiques du passe. Paris: Éditions de l’école des
hautes études em siences sociales, 2001.
_____________. Guerrilha do Araguaia. Uma epopeia de liberdade. 4. ed. ampl. São Paulo:
Anita Garibaldi, 2005.
Prof. Dr. José Jorge Andrade Damasceno (Historia - Universidade do Estado da Bahia – Campus
II, Alagoinhas)
INTRODUÇÃO
resultou no trabalho, apresentado em 20031, que pode servir de ponto de partida para outras
pesquisas, que conduzam a entender e explicar a existência de grande número de periódicos,
alguns efêmeros, mas alguns outros de boa longevidade, em uma cidade e um tempo onde ler,
era raro.
Por sua vez, Jeane Angélica Machado da Rocha, se interessara em compreender uma
parte do processo de modernização da urbe alagoinhense, materializado pela construção do
Coreto da Praça J. J. Seabra que lhe despertara a curiosidade e, iniciou uma pesquisa, que
traçou uma parte da história da cidade, na década de 1920, culminando com o trabalho, cujo
resultado, ainda parcial, foi levantar questões em torno da construção de um “lugar de
memória”, cujo construtor nele não aparece lembrado. Ao apresentar os primeiros frutos de
sua pesquisa em 20022, Rocha abre um grande leque de possibilidades de investigação
histórica em torno de um “protagonista da história política de Alagoinhas”, até ali, relegado
ao quase total esquecimento.
Por fim, Marleide Lima de Brito Sousa, arriscou-se na utilização da técnica de história
oral, para trazer à lume, uma pequena parte da memória de um velho militante integralista de
Alagoinhas, desenvolvendo uma tarefa de dar-lhe voz, no sentido de promover a escrita da
história de um movimento político, com boa repercussão na cidade. Esta dívida com a história
daquele militante, começou a ser saudada por Marleide, com o trabalho apresentado em
1
SANTOS, Roberto Magno. ALAGOINHAS JORNAL: O comportamento da imprensa escrita no município
de Alagoinhas durante o quatriênio 1960-1964. Alagoinhas, 2003.
2
ROCHA, Jeane Angelica Machado da. A Trajetória do Coronel Saturnino da Silva Ribeiro. Alagoinhas
2002
3
ROCHA, Antonio Manoel Machado da. O PODER LEGISLATIVO EM ALAGOINHAS – 1920 A 1923.
Alagoinhas-Bahia , 2006
20064, que abriu outras possibilidades de se revisitar a história protagonizada pelos chamados
“camisa Verde”, em Alagoinhas.
Alguns anos mais adiante, destaque-se em segundo lugar, a empreitada levada a efeito
pelo Professor Doutor Raimundo Nonato Pereira Moreira, através da coordenação e/ou
execução do projeto de pesquisa “No rastro de Miranda: uma investigação histórica acerca da
trajetória de Antônio Maciel Bonfim (1905-c. 1947)” envolvendo em seu desenvolvimento,
alunos de iniciação científica e de orientação de Trabalhos de Conclusão de Curso. Com tais
iniciativas, Pereira Moreira vem conseguindo trazer à lume, elementos constitutivos da cidade
de Alagoinhas, cuja relevância para a “história” da referida urbe,não havia ainda sido tomada
4
SOUSA, Marleide Lima de Brito. VESTÍGIOS DA AÇÃO INTEGRALISTA BRASILEIRA NA TERRA DA
LARANJA: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A TRAJETÓRIA POLÍTICA DE UM INTEGRALISTA EM
ALAGOINHAS. Alagoinhas, 2006
5
FONTES, Maurílio Lopes. EDUCAÇÃO PARA O TRABALHO: A ESCOLA PROFISSIONAL
FERROVIÁRIA DE ALAGOINHAS COMO FORMADORA DE MÃO-DE-OBRA – 1941 A 1962.
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS ÊNFASE
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM METODOLOGIA DO ENSINO SUPERIOR - Alagoinhas, 2005.
na devida conta. Do esforço empreendido Por Pereira Moreira e seus orientandos, mencione-
se aqui alguns dos resultados já alcançados, ainda preliminares. O primeiro dentre eles, é a
publicação do artigo “O célebre Miranda: aventuras e desventuras de um militante comunista
entre a história e a memória”6, que ele escreveu a “dez” mãos, visto que, o autor, lista os seus
orientandos, Thiago Machado de Lima, Letícia Santos Silva,Iracelle da Crus Alves e Cláudia
Ellen Guimarães de Oliveira, como coautores da referida publicação.
Professor Carlos Nassaro A. da Paixão defendida em 200910 e, professor Moisés Leal Morais
defendida em 201111, como esforços empreendidos, no sentido de agregar elementos para a
construção daquela massa crítica acerca da qual já se falou acima, no sentido de contribuir
para impulsionar o processo de Escrita da História da Cidade de Alagoinhas, com o objetivo
de permitir aos pesquisadores que vierem a lhes seguir as pegadas,compreender os avatares de
uma cidade que, nos princípios do século XX, apresentava um ritmo pujante de crescimento e
“modernização”, fazendo crer que culminaria com a construção de um desenvolvimento
sólido e sustentável.
“em 1968, o devotado alagoinhense Dr. Israel Pontes Nonato encetou uma
campanha, obtendo, em inúmeras listas, 8.020 assinaturas subscrevendo um
Memorial, em termos candentes, rebatendo a falsa imagem criada de
ALAGOINHAS e mostrando que tinha razões prioritárias para o mesmo
Município possuir um Distrito Industrial. Esse Memorial foi às mãos do
então Governador do Estado que garantiu atender ao pleiteado”12.
10
PAIXÃO, CARLOS NÁSSARO ARAÚJO DA. TRAÇOS DA CIDADE DE ALAGOINHAS: MEMÓRIA,
POLÍTICA E IMPASSES DA MODERNIZAÇÃO (1930-1949). Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia – UNEB, Campus V, Santo Antonio de Jesus – BA,
Janeiro / 200 9.
11
Morais, Moisés Leal. Urbanização, trabalhadores e seus interlocutores no Legislativo Municipal: Alagoinhas –
Bahia, 1948- 1964. – Santo Antonio de Jesus, 2011.
12
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979, P. 76.
Desde os fins do século XIX, aos meados do XX, Alagoinhas chamava atenção
daqueles que por lá passassem, que para lá fossem ou que lá vivessem, sob quaisquer
pretextos. Sua condição de entroncamento ferroviário e de entreposto comercial da região, a
colocava ao alcance de olhares atentos e argutos, produzindo neles as mais diversas
impressões, que acabaram por alçá-la à condição de objeto de descrições e reflexões
perpetuadas em obras memorialísticas, que aqui se pretende analisar, como parte de um
projeto maior e mais ambicioso, a saber, o de (re) visitar a história de Alagoinhas.
Neste sentido, convém salientar que, este artigo, ora em construção e aberto às
sugestões, pretende-se chamar a atenção para a existência de um conjunto de obras de caráter
memorialista, a partir do qual, aqueles que pretendam realizar pesquisas em torno da história
local, poderão estar diante de um farto material de trabalho, com o qual se poderão
empreender incursões no tempo histórico da cidade, com o fim de conhecer muitos momentos
da vida cotidiana, de diversas fases do processo de consolidação de Alagoinhas, enquanto
cidade “cabeça” da região Agreste da Bahia.
Tomando como ponto de partida, textos escritos por um viajante, dois observadores e
duas memorialistas que, em recortes temporais diferentes e descontínuos, registraram as
impressões deixadas pela cidade em seus espíritos. Este trabalho pretende analisar a “escrita
da história de Alagoinhas”, interessado que está seu autor, em apreender e discutir as razões
pelas quais aquela pequena localidade do interior baiano, dos finais do século XIX e meados
do XX, chamaram a atenção do viajante Durval Vieira de Aguiar, dos observadores Euclides
da Cunha e Rui Barbosa e, das memorialistas Joanita Cunha e Maria Feijó, ao ponto de seus
escritos e observações, se tornarem fontes privilegiadas no trabalho de pesquisa histórica.
Fontes de consulta obrigatória para aqueles que se enveredem por caminhos que
busquem conhecer e escrever a respeito dos diversos aspectos da história da cidade, em
conjunto os escritos dos viajantes, observadores e memorialistas, permite ao pesquisador ter
uma viva idéia de como eram seus contornos espaciais, seus hábitos culturais, seus avatares
políticos, bem como traços do modo de ser e pensar, daqueles que tomavam parte do
cotidiano local, na construção dos espaços de convivência, assim como das estruturas sociais
e econômicas, sobre as quais repousavam os elementos formadores dos “lugares de memória”.
13
AGUIAR, Durval Vieira. Descrições Práticas da Província da Bahia. Com declaração de todas as distâncias
intermediárias das cidades, vilas e povoações. Tipografia do Diário da Bahia, 1888, PP 93. Apesar de datado de
1988, provavelmente o advento da República fez o autor rever algumas posições expostas. É interessante notar
que o prefácio é datado de 1889. Neste texto, a edição a ser utilizada, será a de 1979.
14
Aguiar, Durval Vieira de. Descrições práticas da Província da Bahia : com declaração de todas as distâncias
intermediárias das cidades, vilas e povoações. — 2ª ed. — Rio de Janeiro Cátedra ; Brasília : INL, 1979, P. 95.
Aguiar, não deixa de observar, no entanto que “existem na cidade alguns bonitos
edifícios, especialmente os da Câmara Municipal e da não acabada Matriz, que é de sistema
gótico; encontrando-se também nas imediações elegantes e modernas chácaras”15.
Pode-se notar que o viajante provincial é deveras muito atento, conforme se pode
atestar na descrição seguinte:
O relato do viajante segue demonstrando o cuidado com que realizava sua tarefa,ao
observar que:
15
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.
16
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.
17
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 95.
Aguiar observa a cidade muito minuciosamente, visto ter uma percepção de futuro de
seu progresso e desenvolvimento, manifesta na longa observação que faz em torno do
transporte ferroviário, “agente motor”, do modo “alagoinhas” de ser. Atente-se para as suas
palavras:
E arremata, com uma opinião típica daquele que intentava difundir a idéia de
desenvolvimento junto aos que o quisessem trazer para aquela Bahia dos finais do XIX:
18
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P.96.
19
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. Pp. 96-98.
20
AGUIAR, Durval Vieira de. Op. Cit. P. 98.
Após informar ter chegado as “cinco e meia”, não precisando se tarde ou manhã,
Cunha, chegou as conclusões que se seguem:
Cabe aqui salientar, que o observador tinha uma visão ampla e livre do espaço
percorrido pelo comboio que o transportava, visto serem escassas as construções em todo o
trajeto desde a entrada da cidade, aproximadamente no Riacho do Mel, até cerca de 40 ou 50
metros, da estação São Francisco, permitindo ao observador dar largas ao seu olhar atento. Só
a vegetação luxuriante de vastos tabuleiros, enormes fazendas e deslumbrantes xácaras, se
apresentavam pelo caminho até a gare alagoinhense. Assim, o jornalista do Estado de São
Paulo, pôde guardar na sua memória, as impressões que perenizou em suas anotações de
campanha.
21
CUNHA, Euclides da. Diário de uma Expedição, org. Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p.130.
A laureada professora Maria Feijó de Sousa (1918-2001), por sua vez, escreve um
romance perceptivelmente autobiográfico, embora ela não o admitisse. Publicado em 1978, na
cidade do Rio de Janeiro, a autora diz ser ele “o retrato, talvez, sem retoque, tirado por mim,
na sua terna e doce fase de MENINA-MOÇA, genuinamente provinciana e bela”23. Nele,
fatos, lugares e pessoas são reconhecidos, por vezes com alguma facilidade e, por outras,
demandando alguma pesquisa e outras leituras. Sua abundante produção literária, vem sendo
discutida e redescoberta por inúmeros pesquisadores, o que torna dispensável sua enumeração
aqui.
Para os objetivos deste artigo, importa o mencionado romance de grande fôlego, cuja
leitura, mesmo a mais aligeirada, permite ao leitor um passeio pela história de Alagoinhas,
devido ao caráter cronístico com que Feijó empresta a obra. Denso e alentado, percorre-se
suas oitocentas páginas, como se o terreno palmilhado, quase que centímetro por centímetro,
fosse a cidade de Alagoinhas, saindo dela apenas pelas viagens até Salvador, feitas de trem,
ou pelas várias transferências de domicílio lecional, a que a frágil, inteligente e perspicaz
professora, Maria Luísa Peixoto de Moura, fora submetida, até retornar para Alagoinhas, onde
finalmente deu todos os saltos pessoais e profissionais que a vida lhe oportunizou, até vir a ser
bibliotecária e literata no Rio de Janeiro.
22
BARROS, Salomão A. Vultos e Feitos do Município de Alagoinhas. Salvador: Artes Gráficas, 1979, P. 267.
23
FEIJÓ, Maria. Pelos Caminhos da vida de uma professora Primária. Max, Rio de Janeiro, RJ, 1978.
Mas, o que aqui interessa, é que sua vida está diretamente relacionada com a história
da cidade de Alagoinhas, na qual grande parte da narrativa se passa. Nela, a autora aproveita
para opinar sobre os modos e costumes arraigados no modus vivendi local; emite juízo de
valor em torno da política educacional e cultural empreendida pela municipalidade; nem os
desmandos daqueles que deveriam zelar pelo bom funcionamento das instituições escolares,
escaparam de sua arguta pena.
Feijó de Sousa, não perde a chance de comentar sobre a perspectiva que norteara a
cidade no princípio do século XX, quando aparentava que Alagoinhas viveria um processo de
crescimento e desenvolvimento, a partir da qual, praticamente todos os seus administradores
prometiam avanço e “modernização”, mas que, com o passar dos anos, se torna uma cidade
conservadora sob o ponto de vista dos costumes, hábitos e gostos culturais e, até mesmo
atrasada, sob o ponto de vista da economia, do saneamento, do transporte, da expansão das
oportunidades de lazer e cultura, além de falhar por não ter uma política de criação de postos
de trabalho, que fixasse seus filhos dentro de seu espaço territorial.
24
No que tange a autoria das suas obras, ela omite o último nome, preferindo aquele pelo qual sempre fora
conhecida e, por meio do qual sempre se apresentou para enfrentar todas as lutas que se interpuzeram em sua
trajetória pessoal e profissional.
25
SANTOS, Joanita da Cunha. Traços de Ontem. Belo Horizonte: Graphilivros Editores, 1987.
Apesar de alguns esforços já feitos, entre eles, aqueles protagonizados por Cunha e
Feijó, além de outros pesquisadores, alguns deles referenciados neste arrazoado, há uma
camada de pó muito espessa, cobrindo a memória de Alagoinhas, dificultando e, por vezes
impedindo a “escrita” de sua história.
INTRODUÇÃO
Antes do acidente, antes do acidente, tinha até mais camarão como eu digo
assim não é, porque a pessoa não vai dizer que foi por causa do acidente, que
não foi o acidente, mas cada vez, cada coisa que tá acontecendo assim no
mar prejudica a pesca. [...] Acabo muitas coisas demais, meu Deus, a
natureza tá com muitas químicas, muitas coisas demais que estão aí nesse
mar, os navios jogam muita coisa demais, matam muito peixe (José P.
Honório, 2011) 1.
1
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p. José P. Honório nasceu em
10/12/1961. Os trechos das entrevistas transcritas ao longo do trabalho foram modificados quanto às falas para
um maior entendimento dos leitores.
2
Informação extraída de: PARANAGUÁ TERÁ AQUÁRIO MARINHO. Especial para a Gazeta do Povo
Matinhos. Curitiba. Jan. 2010. Disponível em:
http://ad\s.globo.com/RealMedia/ads/click_lx.ads/afrpc/gazetadopovo/online/verao/conteudo/447456040/Mi d l
e/d e f a u l t /e m p t y.g i f /7655752f6955314a2b74594142635930. Acesso em: mar. de 2010.
mostra uma percepção de tempo dinâmica, ou seja, em seu relato quando aborda sobre a pesca
“depois” do acidente3 percebe também o “antes” do acidente, seu olhar sobre o tempo traz a
marca da historicidade. Outra questão é que seu relato pode indicar uma forma de se opor as
imagens atuais. O presente trabalho investigou o modo como a comunidade de pescadores de
Amparo localizada no Litoral do Paraná constrói a percepção do acidente do Navio Vicuña
ocorrido em 2004.
A pesca praticada na comunidade de Amparo pode ser definida como artesanal. Dada
a grande complexidade das formas de organização e produção, uma definição formal e precisa
de pesca artesanal seria desfavorável. Dessa maneira, a pesca praticada pela comunidade pode
ser associada às características de uma comunidade tradicional caiçara. Nesses termos, os
pescadores seriam “tradicionais”, por adquirirem e transmitirem seus conhecimentos pela
oralidade, por conhecerem ciclos naturais e dependerem deles para a sua sobrevivência, e por
utilizarem técnicas de baixo impacto sobre a natureza como no caso da pesca artesanal, a
comunidade da Ilha do Amparo se insere nesse quadro conceitual, de comunidades
tradicionais (DIEGUES, 2005, p. 274).
A pesquisa se enquadra no campo da Etno-História, campo esse no qual privilegio o
diálogo entre História e Antropologia. A pertinência do estudo está no enfoque dado a
historicidade presente na visão na qual a comunidade em questão faz do “antes” e do “depois”
do acidente. Em certo ponto o trabalho interage também com a História Ambiental. Nesse
nível grande parte da história ambiental se dedicaria a examinar as mudanças nos modos de
subsistência e suas implicações para as pessoas e para a Terra (WORSTER, 1991, p.207).
A metodologia utilizada no trabalho é a história oral. Para Portelli (1991), a História
Oral não é o lugar onde as classes trabalhadoras falam por si. A declaração contrária não seria
totalmente infundada: como exemplo o relato de uma greve através das palavras e memórias
de trabalhadores, com auxílio dos relatos da polícia e da imprensa, ajuda a equilibrar uma
distorção implícita nas fontes. Fontes orais são necessárias, mas não suficientes para uma
história das classes não-hegemônicas, pois eles são menos necessários para a história das
classes dominantes, que tiveram controle sobre a escrita e deixaram para trás uma abundancia
de registros escritos. No entanto, o controle do discurso histórico permanece nas mãos dos
historiadores, pois é o historiador que seleciona quem será entrevistado. E aceitando que a
classe trabalhadora fala somente através da história oral, essa fala para o historiador, com o
3
Para esclarecer a pergunta direcionada a José Paulo Honório foi: Após o acidente, quais foram as mudanças no
mar?
ÁREA DE ESTUDO
(Figura 1. Mapa extraído de Angulo, R. G Mapa Cenozóico do Litoral do Estado do Paraná in: Boletim
Paranaense de Geociências, n. 55, p. 25-42, 2004. Editora UFPR).
4
Pires, Arivaldo, Amanso (Entrevista concedida em 27/07/2011) Paranaguá, 2011. 3p. Arivaldo A. Pires nasceu
em 25/08/1954.
5
O Sr. Josias do Rosário nasceu em 28/01/1973. Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011.
Paranaguá, 2011.4p.
6
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
7
Expressão utilizada pelo depoente.
concebida enquanto um trabalho é também algo considerado como uma segunda natureza por
José P. Honório:
É uma sobrevivência do pescador, o emprego do pescador a pesca. Sim,
como eu não posso pescar, olha eu fico até mais doente assim, a pessoa não
pode pescar a gente ta vendo ali, ruim que não tem quase o pescado pra
pescar, mas a pessoa dá aquela grande vontade de pescar, porque já foi assim
a natureza minha já foi mais de criação assim no mundo da pesca (José P.
Honório, 2011)8.
O significado da pesca para esses indivíduos está vinculado a uma noção de vida e
trabalho quase que como práticas indissociáveis. Dialogando com Edward P. Thompson
particularmente em sua obra Costumes em Comum, e voltando aos termos de comunidade
tradicional apresentados anteriormente9, a comunidade estudada apresenta um enfoque não
capitalista sobre a gestão de propriedade, nos termos de uma “economia moral”, no qual não
há dissociação entre vida e trabalho. Thompson em seu trabalho quando analisa o costume no
século XVIII, afirma que nas sociedades camponesas o costume constituía uma forma pela
qual se legitimava todo o uso ou prática reclamada. No século XVIII, nas sociedades rurais, o
aprendizado, se dava com a iniciação em habilitações de adultos, mas também servia para a
transmissão de geração para geração. A criança fazia seu aprendizado junto aos familiares e
junto a esse aprendizado se fazia também a transmissão das técnicas particulares, como
experiências sociais e sabedoria coletiva. O costume era uma pratica simbólica e material.
Aquele quando explodiu, nós estávamos assistindo em casa parece que era
uma novela das seis [...]. Ai, nós escutamos aquele barulho: bum. Foi um
grande barulho, daqui a pouco veio outro estalo, nós saímos pra fora e fomos
ver, deu outro estouro chegou até a dar uma tremida aqui. Nós só olhamos
pra lá, tava aquele fogo lá. Aquilo foi um desastre, o óleo foi demais e, um
óleo preto assim, um óleo queimado, meu pai do céu [...] a rede quem tinha
rede, a tarrafa assim quem deixo na água acabo com tudo (José Paulo
10
Honório, 2011) .
Teve com certeza [...] Teve alguns peixes mortos e ficou tudo, foi tudo
sempre um lado ruim para o pescador, o pescador como eu já citei, já ficou
8
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
9
Ver na página 3.
10
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
(Figura 2 e 3: Fotografias do acidente do navio Vicuña. Á esquerda Fotografia do Navio Vicuña em chamas, dia
16/11/2004, á direita vista área da mancha de óleo na Baía de Paranaguá. Fonte: Laudo Técnico do Vicuña
13
2005) .
11
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
12
Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.4p.
13
As fotografias estão disponíveis em: LAUDO TÉCNICO IAP/IBAMA (2005).. O Laudo pode ser encontrado
na integra na biblioteca do IAP/PR e no IBAMA/PR.
fossem intoxicadas14. Ao total foram 51 dias em que a pesca foi proibida nas áreas atingidas
pelo acidente.
Em 2006 dois anos após o acidente, a Gazeta do Povo (2006) afirmou que, resíduos de
291 mil litros de óleo podiam ser encontrados no litoral paranaense. “Apesar de todo o tempo
decorrido, não se tem a real dimensão dos efeitos ambientais econômicos e sociais deixados
pelo acidente”. O jornal também afirmou que em alguns trechos do litoral como em
manguezais das Ilhas das Peças e Cotinga podiam ser encontrados resíduos de óleo junto à
vegetação e no fundo do mar 15.
Em sua maior parte os jornais abordam sobre as empresas e órgãos envolvidos ou não
no acidente, as multas, os danos pelos dias de proibição de pesca. Divulgando uma
abordagem mais geral do evento. Diferentemente, a percepção que os entrevistados têm sobre
o acidente, a paralisação da pesca e as medidas tomadas pelos órgãos envolvidos durante e
após o acidente foi algo vivenciado.
De acordo com os entrevistados, no dia em que houve o acidente as medidas dos
órgãos governamentais e empresas envolvidas foram de registrar as pessoas da comunidade
pra receber dinheiro pelos dias de paralisação da pesca, bem como pequenos serviços e cestas
básicas. Porém, de acordo com os relatos ainda nem todos receberam:
A eles chamaram o pessoal na colônia lá, e fizeram, tiraram Xerox dos
documentos e fizeram para receber dinheiro, mas até agora sai de pouquinho,
quer dizer já pagaram um pouco, já pagaram, mas não tá saindo tudo de uma
vez, já faz uns quatro cinco ano, já mais (Josias do Rosário, 2011) 16.
A Catallini somente mandou pra nós uma cesta básica e nos trabalhamos aí
um mês na coleta do óleo, porque o óleo encostou muito aqui na costa, não
só aqui em Amparo, mas em todas as ilhas encostou e trabalhamos pra
Petrobrás, e Catallini um mês só (Mariano Rodrigues Lourenço, 2011) 18.
14
Dois mortos em explosão de navio em Paranaguá. Folha do Litoral, Paranaguá, 17 de nov. de 2004. Ano 3, nº
1325.
15
ÓLEO DO VICUÑA AFETA LITORAL, QUASE DOIS ANOS APÓS EXPLOSÃO. GAZETA DO POVO.
18 ago. 2006. Disponível em: www.cenacid.ufpr.br/vicunha2anos.doc. Acesso em: 10 ago. 2010.
16
Rosário, Josias (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.4p.
17
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
18
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
De acordo com os entrevistados, nos dias de paralisação a pesca não era praticada, e
logo após a normalização da pesca ocorreram mudanças no mar em relação à quantidade de
peixes e moluscos.
[...] Ah foi tudo, porque nós ficamos sem pesca não sei quantos dias parado
aí. Quando nós fomos pescar não tinha mais [...] tipo assim um peixe uma
tainha assim pela costa, não dava pra pescar, que o óleo ali prejudicou tudo,
todos os galhos, e os galhos assim na maré baixa ficaram cheios de óleo
(José Paulo Honório, 2011) 19.
Diferenciou bastante, porque o óleo é um produto que ele mata, não mata só
peixe, como mata os moluscos, a ostra, o bacucu, o siri tudo as criação do
mar, ele prejudica ele mata e aniquila. (Mariano Rodrigues Lourenço, 2011)
20
.
19
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida em 28/09/2011. 2011) Paranaguá, 2011. 9p.
20
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
Sim, é por que esses meus filhos agora um já trabalha, um já pesco também
junto comigo já aprenderam a pesca. Agora outro já foi já pra outro ramo de
vida trabalhar pra cidade, que aqui na pesca tá muito fraco não dá não é. Eu
tenho outro guri que tá com 16 anos e eu vou ter que mandar pra cidade, tá
pescando também, mas... (José Paulo Honório, 2011) 24.
Arivaldo A. Pires comenta que não quer que seus filhos sejam pescadores:
21
Lourenço, Mariano. Rodrigues (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011.3p.
22
José P. Honório está se referindo a morte de 100 toneladas de sardinha que ocorreu no início de 2011. Essa
notícia se encontra disponível em: <www.parana-online.com.br/media/uploads/2011/janeiro/05-01-
11/cid4050111.jpg">.
23
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011) Paranaguá, 2011. 9p.
24
Honório, José. Paulo (Entrevista concedida dia 28/09/2011. 2011) Paranaguá, 2011. 9p.
Não eu quero que eles não sejam, olha não quero essa, essa coisa que eu faço
pra eles, eu quero coisa melhor, porque o pescador eu acho que minha
atividade de pesca pra mim é uma boa, mais eu não quero para os meus
filhos isso aí, quero que eles sejam outras coisas e não pescador, por que
cada vez vai sendo, fica mais difícil a pesca [...] eu só to pescando hoje em
dia por que eu não tenho estudo se não eu não estava pescando (Arivaldo
Amanso, 2011) 25.
A comunidade de Amparo mesmo vivendo em seu cotidiano da pesca local não está
alheia a mudanças, conflitos e a interferências. As mudanças devido à poluição e a acidentes
ambientais é algo presente. O conhecimento da pesca que é repassado de uma geração a outra
se desmembra aos poucos, é algo que pode mudar as expectativas das imagens do futuro.
Estas mudanças são sentidas, vivenciadas e expressadas através dos relatos. Relatar o que foi
vivenciado mais que um registro é uma forma de se contrapor ao oficial, de lutar contra a falta
de peixes, de se contrapor as imagens atuais e de expressar a incerteza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
FONTES UTILIZADAS
A) JORNAIS
25
Pires, Arivaldo, Amanso (Entrevista concedida em 27/07/2011) Paranaguá, 2011. 3p.
Óleo do Vicuña afeta litoral, quase dois anos após explosão. Gazeta do Povo. 18 ago. 2006.
Disponível em: www.cenacid.ufpr.br/vicunha2anos.doc.Acesso em: 10 ago. 2010.
Paranaguá terá aquário marinho. Especial para a Gazeta do Povo Matinhos. Curitiba. Jan.
2010. Disponível em:
http://ad\s.globo.com/RealMedia/ads/click_lx.ads/afrpc/gazetadopovo/online/verao/conte
udo/447456040/Midle/defau l t /e m p t y.g i f /7655752f6955314a2b74594142635930.
Acesso em: fev. de 2010.
B) RELATÓRIO TÉCNICO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
No início do século XX, os Campos Gerais do Paraná vivenciava um novo ciclo, que
acabou por formar um dos maiores grupos de imigrantes holandeses no Brasil. Iniciando nas
terras da Fazenda Carambeí, hoje município de Carambeí, e também nas cidades de Castro e
depois Arapoti instalaram-se os novos imigrantes chegados da Holanda, estabelecendo uma
convivência cooperativa. Desde então, a presença holandesa no país permaneceu de forma
crescente até os dias de hoje.
Sua estrutura é dividida em dois pisos e conta com milhares de itens que foram
utilizados pelos imigrantes holandeses, desde utensílios, equipamentos, fragmentos,
representações imagéticas, grande acervo composto por livros, documentos, entre outros.
1
Carambeí Hoje. Disponível em <http://www.carambei.pr.gov.br/?q=node/49> acessado em 13 de agosto de
2012.
[...] imigrantes preocupados com a educação e com a religião, devido a carência de escolas
brasileiras, foram levados a ensinar seus filhos desde o início, ao mesmo tempo em que
conservavam a sua cultura através de professores da mesma etnia 4.
Faz-se importante lembrar que até a década de 1930 a escola da colônia dividia espaço
com o templo. Como não havia lugar próprio e nem adequado para as aulas e como
geralmente o templo somente era utilizado aos finais de semana, era nesse mesmo local que
ensinavam as primeiras noções de leitura, escrita e cálculo. Somente após 1930 foi construída
pela comunidade a Escola de Pilatos. Nesse período vários professores brasileiros com
vínculo empregatício junto ao Estado do Paraná ministravam aulas de português.
2
Licenciada em Educação Musical pela Faculdade de Artes do Paraná. Mestre em Educação pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa. Doutora em Engenharia de Produção-Mídia e conhecimento pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Pesquisadora Sênior do Mestrado em Educação da UEPG.
3
BOER, Jelltje de. A história do ensino em Carambeí. Carambeí, 2010. (Não Publicado)
4
CORDEIRO, Sonia V. A. Lima. A constituição da escola evangélica de Carambeí: uma instituição
educacional da imigração holandesa na região dos Campos Gerais. 2007. Dissertação (Mestrado em Educação)
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2007, p.55.
ensino oficial em português, manter o ensino da língua holandesa. Estes pilares são
percebidos até os dias de hoje em suas restritas relações e tentativas de perpetuação da cultura
holandesa.
5
SCHWARCZ, Lília M. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil (1870 –
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
6
FERNANDES, José Ricardo Oriá. SPHAN: a politica de patrimônio histórico no Brasil (1838 - 1937).
7 “
Art.70 da Constituição de março de 1824. Assignada a lei pelo Imperador, referendada pelo Secretário de
Estado competente, e selada com o Sello do Império, se guardará o original no Archivo Publico, e se remetterão
aos Esemplares dela impressos a todas as Camaras do Imperio, Tribunaes, e mais Logares, onde convenha fazer-
se publica”. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao> Acessado em 02/07/2012.
Por formularem uma história para a nação e desenvolverem uma nomenclatura própria
na historiografia brasileira, consideramos os Institutos Históricos como “lugares de
memórias” 9 e precursores da política patrimonial. Assim a história que orientou grande parte
das iniciativas de preservação do patrimônio nasceu nos Institutos Históricos, a partir de
meados do século XIX, e serviu de auxiliar na tarefa de construir a nação ou para ressaltar a
importância de uma determinada região no contexto geral do país.
O Decreto – Lei n° 25, assinado por Getúlio Vargas em 30 de novembro de 1937, viria
organizar o trabalho do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), que
criava a figura jurídica do tombamento como instrumento tutelar de preservação aos bens
culturais. Estava, portanto, institucionalizada a política federal de proteção ao Patrimônio
Histórico Nacional.
8
SCHWARCZ, Lília M. Os Guardiões da nossa história oficial. São Paulo: IDESP, 1989, p.04.
9
MAGALHÃES, Aline Montenegro. A curta trajetória de uma política de preservação: a Inspetoria dos
Movimentos Nacionais. In: Anais do Museu Histórico Nacional. Vol.36, 2004.
10 GIOVANAZ, Marlise. Mário de Andrade: ativista da preservação do Patrimônio Cultural do Brasil. Revista
da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. Porto Alegre, n. 31, jan-jun 2002. p. 210.
Pensamento que caminha contrário ao que o historiador Jacques Le Goff11 nos deixa
claro: que a memória faz conservar através de imagens, inscrições, desenhos, documentos a
lembrança de fatos consideráveis sobre a constituição da história. A composição das
memórias estabelece uma importante função social, na medida em que produz informações
mesmo ante a ausência de dados escritos, baseando-se no estudo de objetos que marcaram o
seu acontecimento.
Neste sentido, os museus históricos podem ser considerados como locais de potencial
possibilidade de estudo. Os objetos em exposição, escolhidos de acordo com determinados
critérios de quem os organizou, trazem consigo uma parte do contexto em que foram
utilizados. No Parque Histórico de Carambeí (PHC), o principal intuito das exposições fixas é
mostrar como os imigrantes holandeses viviam nos primeiros anos após a imigração.
11
LE GOFF, Jacques. Documento / Monumento. In: História e Memória. 3ª Ed. Campinas: Editora da Unicamp,
1994.
12
Licenciatura em História - Oficina de História IV por Angela Ribeiro Ferreira e Elizabeth Johansen. Ponta
Grossa: UEPG/NUTEAD, 2010, p. 21.
As alterações são decorrentes da ação dos próprios homens, sujeitos e agentes da história.
[...] Sua finalidade é estudar e analisar o que realmente aconteceu e acontece com os
homens, o que com eles se passa concretamente. [...] Explicar as transformações sociais
esclarecendo seus comos e porquês leva a perceber que a situação de hoje é diferente da de
ontem [...] O homem vive em um determinado período de tempo, em um espaço físico
concreto; nesse tempo e nesse lugar ele age sempre, em relação à natureza, aos outros
homens, etc. [...] Mesmo quando se analisa um passado que nos parece remoto, portanto,
seu estudo é feito com indagações, com perguntas que nos interessam hoje, para avaliar a
significação desse passado e sua relação conosco 13.
Conjunto as visitas monitoradas, é trabalhado ainda com a perspectiva que cada aluno
tem do APHC, conhecimento representado em fotos, pinturas, poesias e mais tarde gerando
exposições apresentadas a pais, alunos e comunidade. Proposta que tenta fornecer aos alunos
o conceito de “memória coletiva”, demonstrando que mesmo ele não sendo um descendente
holandês ele e sua família possuem uma grande parcela na construção da identidade de seu
município.
Segundo Sérgio Luiz Gadini14, um dos méritos do pensador Maurice Halbwachs15 diz
respeito ao conceito de “memória coletiva”. Os estudos referenciais desse sociólogo francês16
13
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história? Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense, 2005.
14
Graduado em comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (1990), doutor em Ciências da
Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2004). Professor adjunto da Universidade
indicam que a memória individual seria a base da “recordação”, mas se efetiva a partir de
algum suporte social, que tende a tensionar a percepção individual com as memórias dos
outros (atores), imprimindo uma dimensão coletiva às percepções dos atores que partilham
das mesmas experiências ou situações.
É deste modo que as memórias não estão restritas aos pensamentos humanos, mas ganham
visibilidades em objetos, imagens e, claro, lembranças que tais personagens tendem a
expressar nas incontáveis relações (de lembranças) da vida cotidiana. Sem a contribuição
de Maurice Halbwachs, seria difícil pensar agora que simples e pequenos utensílios
poderiam se tornar importantes para contar histórias e registrar experiências – sejam
dificuldades, desafios, desencantos ou conquistas 17.
No caso específico do PHC, como é um museu que remete a somente uma cultura, a
holandesa, percebe-se inerente à construção do espaço a sua ligação intrínseca com o
território. Uma vez que o conceito de território diz respeito às diversas manifestações de
apropriação de espaço pelo ser humano.
Para que o patrimônio material seja efetivamente preservado, uma eficiente política de
preservação deve ser integrada a comunidade, atingindo a educação em todos os níveis.
Assim, a necessidade de manter viva a herança cultural de nossos antepassados torna-se uma
demanda disseminada na sociedade, o que garante pelo menos o interesse em conhecer os
processos de preservação.
Estadual de Ponta Grossa, membro do Conselho Editorial de várias publicações, entre as quais, a Revista Pauta
Geral, Revista Internacional de Folkcomunicação, Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo,
Revista Latino Americana de Geografia e Gênero e Revista Emancipação, editor-executivo da revista Folkcom e
consultor de outras publicações. Integra o corpo docente do Programa do Mestrado em Comunicação junto a
Universidade Federal do Paraná e é Presidente do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ)Gestão
2010/2012
15
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
16
CASADEI, Eliza Bachega. Maurice Halbwachs e Marc Bloch em torno do conceito de memória coletiva.
Revista Espaço Academico, n.108, maio/2010. Disponível em:
<http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/viewfile/9678/5607>
17
GADINI, Sérgio Luiz. Memórias de objetos, imagens e ousadias humanas: recortes da imigração holandesa em
Carambeí. In CHAVES, Niltonci Batista. Imigrantes – Immigranten. História da Imigração holandesa na região
dos Campos Gerais, 1911-2011. Falando de Histórias II: Imigrantes, Educação, Culinária, Meio Ambiente,
Tecnologia, Memórias/ Niltonci Batista Chaves (Org.). Ponta Grossa: Estúdio Texto, 2011, p.124.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2001.
BOER, Jelltje de. A história do ensino em Carambeí. Carambeí, 2010. (Não Publicado)
BORGES, Vavy Pacheco. O que é história? Coleção Primeiros Passos, Editora Brasiliense,
2005.
FERNANDES, José Ricardo Oriá. SPHAN: a politica de patrimônio histórico no Brasil (1838
- 1937).
HOBSBAWN, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
A presente comunicação tem por objetivo relatar duas ações de educação patrimonial
realizadas nos Cemitérios São Bento, em Araraquara/SP, com o apoio do SESC Araraquara, e
São Francisco de Paula, em Curitiba/PR, com o apoio da Fundação Cultural de Curitiba.
Ainda que difiram em suas abordagens e materiais de suporte utilizados, propõem uma
reflexão sobre a realização de visitas guiadas a cemitérios como ações de educação
patrimonial e divulgação dos campos santos como objetos de pesquisa e espaços de
representações simbólicas acerca das sociedades em que foram construídos.
como teriam iniciado a concessão de graças, mas a maioria possui grande número de ex-votos
dos túmulos. Apenas no caso do menino Nelsinho Santana, morto aos nove anos, cujos
milagres são estudados pelos Missionários Redentoristas, encontra-se em um processo efetivo
para beatificação pela igreja católica. Outro beato muito procurado é o escravo Eduardo, cujo
túmulo concentra placas de ex-votos, preces e oferendas de umbanda.
Executar apenas uma visita guiada, sem material de apoio, poderia gerar uma
aproximação e sensibilização da população acerca do cemitério e sua necessidade de
preservação. Entretanto não seria algo tangível ao término do passeio. Segundo Poulot (2009,
p.15), a apropriação por um público – a maneira como o patrimônio é visitado, interpretado e
exerce influência – está associada também às formas de sua apresentação, assim como ao
olhar, bem acolhido ou importunado, aos catálogos ou aos itinerários.
Para concretizar não apenas a visitação em si – mas também as informações
repassadas acerca da arte tumular, do cemitério e sua produção escultórica – foi criado um
guia ilustrado com os 38 túmulos constantes no passeio e mapa com o roteiro. Um texto de
abertura abordava a criação dos cemitérios extra muros após a proibição do enterro ad sanctos
(no terreno ou contíguo às igrejas). Fazendo um contraponto com o movimento de criação dos
cemitérios na Europa e com a aplicação da legislação de criação dos mesmos no Brasil, o
texto fazia uso de autores como Phillippe Ariès e Michell Vovelle para falar da “morte
burguesa”, que busca através da arte tumular a individualização do morto, negação da morte e
demonstração de poder. Em seguida, apresenta uma breve explanação sobre progressão da
visão de morte e sua influência na arte tumular.
Um segundo texto abordava a questão do Cemitério São Bento com sua história e
características marcantes, percebidas durante o processo de pesquisa. Na página seguinte, o
mapa do cemitério indicava a sinalização numerada dos túmulos a serem visitados, seguido
das leituras dos túmulos por ordem de visitação. Fotos foram utilizadas para a identificação de
cada um dos túmulos, assim como a referência de rua e quadra. Ao final das leituras dos
túmulos, um texto baseado em Bellomo (2000, p.15) abordava a importância cultural dos
cemitérios e suas potencialidades enquanto objeto de pesquisa para:
- Fonte para conhecer formação étnica;
- Preservação da memória familiar e da comunidade;
- Fonte de estudo das crenças religiosas;
- Forma de expressão da ideologia política;
Araraquara é uma cidade localizada na região central do estado de São Paulo, distante
277 quilômetros da capital. Com cerca de 210 mil habitantes, foi fundada em 22 de agosto de
1817 e elevada à categoria de cidade em 6 de fevereiro de 1889. Inaugurado em 1895, o
Cemitério São Bento configura-se hoje como o campo santo mais antigo da cidade. Existem
relatos da existência de mais um cemitério na cidade, anterior à inauguração do São Bento,
mas que foi desativado e transformado em uma praça ainda no século XIX.
Em suas 11 mil sepulturas, que abrigam mais de 70.000 inumações, é possível
observar as ampliações e modificações no uso de materiais conforme as épocas de
sepultamento. Seguindo um traçado ortogonal, com a capela inserida ao centro do terreno, o
cemitério possui a grande maioria dos túmulos horizontalizados (são poucos os exemplares de
jazigos capela), não sendo permitida a construção de sobreposições de carneiras.
Ainda que seja uma característica de cemitérios de imigrantes alemães, as crianças
receberam uma área específica para enterramentos ainda no século XIX. Anjos e crianças
talhados em mármore adornam túmulos datados entre 1895 e 1896, época em que, segundo
funcionários do cemitério, a cidade foi assolada por uma epidemia de febre amarela.
A presença de esculturas executadas por profissionais renomados como Eugênio Prati,
Roque de Mingo, I. Martinelli e Ottore Zorlini confere ao campo santo suntuosidade
semelhante aos cemitérios da Consolação e Araçá, em São Paulo. A proximidade com a
capital do estado talvez tenha propiciado às famílias a oportunidade de encomendar as peças
diretamente desses escultores, nomes marcantes na arte tumular da capital paulista. A
Trabalhar com o cemitério como temática central sempre acarreta um maior cuidado
na divulgação da ação, já que ainda trata-se de tabu, assunto interdito. O maior entrave a ser
ultrapassado era suscitar na população a vontade de fazer parte do passeio em um local por
muitos considerado como lúgubre e que remete somente à morte. Diante disso, optou-se pela
estruturação e difusão do passeio através de imagens que não configurassem literalmente
túmulos e sim detalhes das esculturas de maior relevância artística.
A primeira visita foi agendada para um sábado, dia 06/08/2011, às 10h. O processo de
divulgação do passeio foi feito através dos meios de comunicação disponibilizados pelo SESC
Araraquara, como a programação impressa de atividades para o mês, site e cartazes, sendo
realizado com uma antecedência de 20 dias. Foram abertas 30 vagas para participação gratuita
na atividade e, antes mesmo da data de realização do passeio, já haviam sido preenchidas. Os
participantes, em número de 27, assistiram à apresentação de um arquivo com imagens e
explicações acerca da arte tumular e história dos cemitérios e seguiram com o ônibus fretado
pelo SESC para o cemitério. A visita transcorreu em um período total de três horas. Dentre os
participantes, foi notada a presença de crianças e pessoas idosas, o que surpreendeu a
organização do passeio. Ao término do trajeto, após a entrega do lanche, os participantes
foram convidados a preencher uma pesquisa avaliando toda a estrutura do passeio, o que
resultou em um retorno extremamente positivo. Em função da avaliação positiva da primeira
edição do passeio, no mês de abril deste ano foi realizada nova visitação, dessa vez com 34
participantes. Em ambas as visitas, participantes que não chegaram a efetuar a inscrição
também realizaram o passeio. Alguns compareceram especialmente para a visitação, enquanto
que outros, que visitavam o cemitério no momento do passeio, juntaram-se à turma para
acompanhar as atividades.
Nas duas visitas realizadas fica visível a reação dos participantes com relação à
mudança de visão acerca do cemitério, não mais como local apenas destinado aos
enterramentos, mas como lugar potencial de visitação turística e repleto de arte e beleza.
Outro retorno interessante foi dado pela Secretaria de Cultura de Araraquara, que solicitou o
envio de guias impressos em função da procura pela população local e de turistas pelo
material.
O turismo cultural surge como uma ferramenta que tem potencial para viabilizar a
propagação dos cemitérios enquanto locais repletos de registros e manifestações. Com o
suporte de material que oriente os visitantes a compreender melhor a importância histórica,
artística e cultural dos cemitérios, assim como a necessidade de sua preservação, poderemos
apontar esse tipo de ação também como educação patrimonial. Pois, segundo Oliveira (2011,
p.11),
Para Poulot (2009, p.159), “ao olhar instruído, o monumento ou as ruínas oferecem o
livro aberto da história. Uma espécie de imediatidade da leitura, resultados de longos esforços
preliminares culminam em uma história que se absorve pelos olhos”. Nas últimas décadas, as
atenções começaram a se voltar para os cemitérios enquanto fonte para estudos, representação
da cultura e do passado e locais inspiração artística e visitação turística. As potencialidades
de tais locais são múltiplas e podem ser desenvolvidas nas áreas da cultura, patrimônio,
história e turismo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELLOMO, Harry Rodrigues (Org.) Cemitérios do Rio Grande do Sul; Arte, Sociedade,
Ideologia. Porto Alegre, Ed. da PUCRS, 2000.
CATROGA, Fernando. O céu da memória: Cemitério Romântico e Culto Cívico dos Mortos
em Portugal (1756-1911). Coimbra: Livraria Minerva Editora, 1999.
OLIVEIRA, Cléo Alves Pinto de. Educação Patrimonial no IPHAN. 2011. 131 f. Dissertação
(Mestrado) - Departamento de Diretoria de Formação Profissional, Escola Nacional de
Administração Pública, Brasília, 2011.
conclusões que pudessem ser generalizadas. O recente contato com o vasto, diversificado e
valioso acervo de documentos e fontes históricas da LPE, até aqui desconhecido dos
pesquisadores, nos permite lançar novas luzes sobre essas importantes questões.
Foi realizado no segundo semestre de 2011 um levantamento preliminar das fontes
disponíveis – e até aqui inéditas – na sala do arquivo morto da LPE, permitindo conhecer o
potencial interpretativo e o valor histórico das seguintes coleções de documentos. Embora
árduo, o esforço de se consultar tais fontes é exequível. Trataremos de cada caso em ordem de
importância.
O conjunto de documentos mais importante diz respeito a coleção de Fichas de
Atendimento a Ex-combatentes (1946-1962) da Secretaria de Assistência Social da LPE. a
Secretaria de Assistência Social da Legião Paranaense do Expedicionário se destinava a
atender os pedidos de auxílio efetuados pelos ex-combatentes, sendo colocado a cargo de um
diretor que, como os demais membros da diretoria, exercia um mandato de dois anos. A
natureza e a variedade dos pedidos variava imensamente. As informações sobre essas
demandas eram sistematizadas em fichas individuais de atendimento, nas quais constavam
dados de identificação do ex-combatente, o auxilio demandado e o assim chamado “histórico
da solução”, onde constavam as providências tomadas para atender ao solicitado e os
resultados obtidos.
A diversidade de pedidos incluía providências solicitadas à LPE no sentido de prover
emprego, atendimento médico, obtenção e/ou manutenção de órgãos artificiais, compra de
medicamentos, pedidos de notícias de parentes, assistência jurídica para fazer valer os direitos
garantidos nas leis de amparo aos ex-combatentes, reintegração ao emprego ou a carreira
militar interrompida, hospedagem, auxílio para abertura de pequenos negócios ou comércio,
obtenção de empréstimos, financiamento para despesas fúnebres dos veteranos de guerra ou
seus familiares, etc. Incluía também ajuda emergencial, como se nota nos pedidos de
pequenas somas de dinheiro para comer, tomar banho, fazer a barba, comprar roupas ou
sapatos, etc. Essas informações estão descritas livremente na face de cada uma das 840 fichas
de atendimento a pedidos de ajuda dos ex-combatentes que foi possível localizar.
A solução dada para cada caso varia enormemente. Em um número substancial de
casos os ex-combatentes retornaram sucessivas vezes à LPE para pedir ajuda, tanto para
antigos problemas não resolvidos quanto para sanar novas dificuldades que iam surgindo no
processo de reintegração social destes. A reintegração social dos ex-combatentes é um
processo longo, complexo e cheio de contradições, cuja reconstituição histórica com base em
metodologia científica é cara e demorada. Com o exame e consulta à esta documentação é
possível acompanhar em detalhe, através do exame do histórico da solução presente no verso
dessas fichas, a vicissitudes, agruras e conquistas de cada um dos 840 casos de veteranos de
guerra atendidos pela LPE ao longo de 35 anos.
É relevante observar que, embora diversificados e complexos, os dados presentes
nessas fichas podem ser sistematizados a fim de compor uma base de dados que tanto permita
a quantificação desses processos quanto o estabelecimento de inter-relações entre suas
componentes. Utilizando-se de uma planilha de cálculo Excel pode-se lançar os dados
contidos nas fichas discriminados como segue: número da ficha, unidade da FEB a que
pertenceu o pleiteante, município de origem, data do pedido, nome do pleiteante, se
demandou órgãos artificiais, notícias de familiares, se pediu cigarro, corte de cabelo ou barba,
sapato, medicamentos, exame médico, atendimento médico, perícia médica, indicação de
emprego, carta de apresentação, se foi requerido o benefício das leis de amparo aos ex-
combatentes e a necessária assistência jurídica para se montar os processos respectivos, se foi
pedida isenção do pagamento de matrículas ou taxas escolares, reintegração ao serviço civil
ou militar, auxilio funeral, auxilio financeiro, se foram pagas as quantias emprestadas à eles
emprestadas pela LPE, passagens de avião, trem ou ônibus, despesas de viagem, estadias,
obtenção de original ou cópia de documentos, que doenças afligiam o solicitante e,
finalmente, se seu caso foi também atendido por mais de uma gestão da Secretaria de
Assistência da LPE.
Nesta planilha a coluna com maior diversidade de informações é, certamente, a que se
refere a assistência jurídica. Nela encontramos, além dos pedidos de ajuda para obter os
benefício das leis de amparo aos ex-combatentes, pedidos de auxilio para obtenção de
empréstimos, de nomeação de advogado para defender ex-combatentes acusados de crimes ou
mesmo já presos, de isenção tributária para escrituração de imóveis, de interseção junto as
autoridades públicas para resolução de problemas pessoais, etc. Contudo, mesmo nesse caso
é possível se estabelecer tipologias, se quantificar e estabelecer percentuais tanto de
recorrência dos pedidos quanto do grau de êxito na sua solução.
Um segundo conjunto de documentos relevantes diz respeito ao questionário sócio-
econômico enviado pela LPE a todos ex-combatentes paranaenses em 1973. Nessa ampla
pesquisa sobre as condições de vida dos veteranos de guerra, decorridos mais de um quarto de
século desde o fim do segundo grande conflito mundial a LPE enviou pelo correio e obteve
resposta a mais de 500 formulários contendo dados da mais alta relevância para o
entendimento do processo de reintegração social do ex-combatente.
Nesses formulários se encontra, além dos dados de identificação do veterano de
guerra, informações altamente valiosas. Dentre estas se incluem nome, filiação, data de
nascimento, profissão, local de trabalho, valor dos vencimentos que recebe, se contribui para
a previdência social, se tem casa própria, quando e a que unidade foi incorporado ao exército,
qual unidade serviu na FEB, sob qual posto serviu, se foi condecorado, se está registrado na
LPE, se requereu reforma, nomes da esposa e filhos e, finalmente, o mais importante: é
perguntado quais dificuldades enfrenta no momento? Esta última pergunta comportava uma
resposta livre, mas parece claro, a partir de um exame preliminar dos documentos, que
problemas financeiros, de saúde, emprego e falta de moradia parecem ter sido – nessa ordem -
os mais recorrentemente citados. É de se notar também que os ex-combatentes formaram
extensas famílias, algumas com até 14 filhos, mas não está claro se esse fato é discrepante em
relação ao perfil demográfico brasileiro àquela época.
Uma terceira coleção de documentos que também se prestam admiravelmente à
quantificação e à criação de uma base de dados tanto relacional quanto quantificável diz
respeito às Fichas de Inscrição como Sócios Colaboradores da LPE. Os sócios colaboradores
eram indivíduos que, sem terem sido ex-combatentes, se inscreveram como membros da LPE
para ajudar financeiramente na manutenção das suas atividades. A partir do exame e
sistematização dos dados contidos nessas fichas pode-se chegar a conclusões sobre questões
como sexo, idade, profissão e local de moradia das pessoas que, voluntariamente, se
dispuseram a ajudar com seus recursos financeiros o processo social de reintegração social
dos ex-combatentes. Trata-se de uma porta de entrada da mais alta significação, em se
tratando de entender a inserção social da LPE junto a comunidade curitibana e paranaense.
Na legislação criada para apoiar o processo de reintegração social dos ex-combatentes
estava prevista a preferência para contratação destes pelo serviço público. Muito já foi escrito
a respeito da ineficácia dessa legislação, num contexto histórico onde o clientelismo, o
nepotismo e o patrimonialismo dominavam as instâncias que decidiam sobre o emprego
público. Daí a importância da coleção de ofícios de solicitação de emprego endereçados pela
LPE a órgãos da administração pública. Neles se encontram dados sobre o solicitante e o
relativamente elevado número de estudantes voluntários nessas atividades (18) tem revelado
diversas possibilidades de interesse do desenvolvimento de métodos e técnicas do uso do
patrimônio histórico para a o ensino de história em todos os níveis, manifestas em duas
dimensões.
Em primeiro lugar, a equipe de monitores dá um caráter mais dinâmico e interativo à
visitação ao respeitar as preferências dos visitantes e propiciar um diálogo permanente deles
com os monitores. A possibilidade de circular pelas salas do Museu, de conversar com os
monitores e mesmo com os colegas de classe acabou de vez com qualquer associação que se
pudesse fazer entre a visita ao Museu e aula expositiva. O espaço museológico foi
transformado em um autêntico fórum de debates, dinâmico e participativo, no qual os
escolares eram tratados pelos monitores como seus iguais, isto é, como interessados como
eles em conhecer e pesquisar a história da participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial.
Naturalmente que a pouca diferença de idade entre os estudantes da Educação Básica e os
universitários muito favoreceu essa interação e identificação. Não podemos descartar a
possibilidade de que, em certo número de casos, os universitários tenham sido tomados como
modelos sociais pelos estudantes de Educação Básica. Se isso de fato ocorreu, os monitores
teriam inspirado pelo menos alguns estudantes dos níveis fundamental e médio a
considerarem a possibilidade deles próprios virem a optar pelo curso de História quando da
realização de seus estudos universitários.
Em segundo lugar, permitiu um aprofundamento no tratamento dos conteúdos de cada
espaço expositivo. Em vez de um único monitor “generalista” que falava sobre todo o museu
de uma única vez, agora se dispunha de monitores que se especializaram no espaço expositivo
pelo qual se tornaram responsáveis. Muitas horas de leitura, pesquisa e orientação foram
necessárias até que cada um dos monitores pudesse afirmar que dominava integralmente o
conteúdo daquela parte do Museu que era de sua responsabilidade. Mesmo porque, na
elaboração do guia de visitação daquele Museu, todos monitores envolvidos participaram
como autores do capitulo relativo ao seu espaço. Assim, os visitantes não mais se frustravam
com explicações aborrecidas, parciais ou genéricas sobre os tópicos que eram de seu interesse
e que desejavam aprofundar, à medida que tinham contato com pesquisadores com amplo
conhecimento de causa da exposição a que se referiam. Mais ainda, dividiu-se dessa forma o
extenso trabalho intelectual que se refere ao tratamento de uma variedade de suportes
informacionais (fotos, jornais, objetos, armas, uniformes, etc.) cuja análise e interpretação
sempre requer distintas metodologias.
Finalmente, de um ponto de vista prático, não podemos deixar de mencionar mais uma
vantagem da metodologia aqui adotada. Ao alocar um monitor para cada espaço expositivo,
aumentaram bastante as condições de segurança do acervo exposto. Embora não seja papel
funcional do monitor agir como agente de segurança, a verdade é que sua simples presença,
para não mencionar o interesse que sua fala era capaz de atrair, também servia para coibir
comportamentos não compatíveis por parte dos visitantes com o ambiente museológico. Os
fatos falam por si. Embora quase uma centena de alunos dos níveis fundamental e médio
frequentassem o Museu a cada vez, no segundo semestre de 2011, jamais se registrou no
decorrer da atividade extensionista qualquer incidente desagradável.
Para o futuro imediato pretende-se aperfeiçoar os métodos e técnicas de treinamento e
atuação desses monitores, tanto quanto possível através da adoção de meios audiovisuais ao
acervo exposto do Museu. O recurso às linguagens audiovisuais certamente irá expandir os
limites e possibilidades de interação dos estudantes de Educação Básica com o acervo exposto
do Museu, ao mesmo tempo em que – com toda probabilidade – irá colocar novos e
instigantes desafios aos envolvidos com a execução das atividades extensionistas.
BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro, Zahar,
2005.
FERRAZ, Francisco César Alves. Os brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro,
Zahar, 2005.
MAXIMIANO, César Campiani. Onde estão nossos heróis: uma breve história dos brasileiros
na 2ª. guerra. São Paulo, 1995.
Um objeto digital é um arquivo que guarda informações que devam ser mantidas por
um longo período de tempo. A questão central aqui é que um arquivo é um simples conjunto
de bytes que só é corretamente interpretado pelo software que o gerou. A velocidade da
transformação tecnológica entretanto é um dos fatores que mais coloca em risco a preservação
de objetos digitais. Justamente por isso, qualquer objeto de preservação digital deve optar por
padrões abertos, descritos em normas que possam ser mantidas de maneira independente
dessa ou daquela empresa de software.
A presente proposta rompe com esse modo de trabalho convencional, que é solitário,
Não é suficiente criticar o efeito de uma técnica sobre a memória, quando esta mesma
técnica não a levou em consideração em seu desenvolvimento. Efeitos adversos e negativos
sempre ocorrerão em tecnologia, o que se conclui disso é a realização da pesquisa. Por outro
lado, não se deseja somente criticar o efeito de uma técnica sobre a memória, é necessário o
reconhecimento de que a mudança da tecnologia envolve um conjunto de mudanças em
outros procedimentos, mesmo que já sejam procedimentos considerados clássicos em algumas
completamente diversos, permitindo que culturas outrora isoladas pudessem oferecer sua
contribuição a outras comunidades. Até recentemente, o enorme número de atividades
humanas que acontecem em grupos pequenos não eram tecnicamente mediadas e por isso
podiam apenas acontecer em configurações face a face. A Internet permite essa comunicação
recíproca entre pequenos grupos. Esse é um avanço importante que tendemos a considerar
como natural após 30 anos de comunicações online [Feenberg, 2012].
As tarefas rapidamente listadas aqui serão realizadas por softwares livres, utilizando
formatos abertos e padronizados, e com hardware de baixo custo, permitindo que grupos de
pesquisa com recursos limitados possam utilizar a estrutura sem arcar com o custo de
soluções comerciais.
O resultado final deste fluxo é um repositório aberto com objetos digitais confiáveis e
duráveis, em formato aberto, que possa ser acessado de maneira padronizada e aberta, criando
Este segundo fluxo é realizado em grupos de interesse por assunto e/ou documentos,
agregando esses comentários e anotações, e permitindo uma maior sinergia entre as equipes
que vão tanto realizar quanto usar essas informações como fichamentos e citações.
que sejam necessárias integrações mais sofisticadas, para evitar aumentar a complexidade do
uso do fluxo, então serão desenvolvidos módulos de software que serão disponibilizados
como software livre para a comunidade. Seguindo ainda a lógica de uso de softwares
disponíveis, esses novos módulos desenvolvidos, quando possível, serão criados como
plugins ou melhorias a softwares, e a contribuição se dará na linha principal de
desenvolvimento de cada um.
recaiu sobre o Omeka por possuir uma fácil integração com outras ferramentas e plataformas.
O presente fluxo de trabalho ainda se configura como uma proposta, mas se pretende
colocá-lo em funcionamento em duas universidades, de maneira a analisar a efetividade do
processo, e o reflexo disso no dia a dia do pesquisador e da qualidade do material produzido.
REFERÊNCIAS
Feenberg, Andrew (2011), (Re)Inventing the Internet: Critical Case Studies, Sense Publishers.
ICA-AtoM (2012), ICA-AtoM web-based archival description software, http://www.ica-
atom.org, visitado em setembro de 2012
Ocrupus (2012), Google Code Ocrupus – open source document analysis and OCR system,
http://code.google.com/p/ocrupus, visitado em setembro de 2012
1 INTRODUÇÃO
1
“Conceitos de segunda ordem são os que se referem à natureza da História, como por exemplo explicação,
interpretação, compreensão.” (LEE, 2001, pg. 20)
2
Aula Oficina é o modelo de aula em que “o aluno é efetivamente visto como um dos agentes do seu próprio
conhecimento, as atividades das aulas, diversificadas e intelectualmente desafiadoras, são realizadas por estes e
os produtos daí resultantes são integrados na avaliação.” (BARCA, 2004, pg. 131)
surge como um representante do passado no presente; os sujeitos e suas relações com o outro
no tempo, que pode ser trabalhado o processo de valoração do patrimônio pelas comunidades
na história; e as culturas locais e a cultura comum, em que o patrimônio surge como um
criador de identidades culturais.
No ano de 2012, quando o projeto foi implantado na escola, o 6º ano contava com um
total de 15 alunos, visto tratar de comunidades pequenas. O 6º ano “A”, localizado na
comunidade de Nova Brasília, estava com 7 alunos matriculados, e o 6º ano “B”, localizado
em Encantadas contava com 8 aluno matriculados. O número reduzido de alunos facilitou o
trabalho do professor, e a inserção no currículo regular da escola possibilitou tempo hábil para
todo o projeto.
Seguindo a proposta metodológica de Aula Oficina, apresentada pela pesquisadora
Isabel Barca (2004), o trabalho com os alunos em sala de aula foi dividido em várias etapas,
sendo elas: elaboração de um inventário feito pelos alunos do patrimônio da Ilha do Mel;
seleção dos patrimônios mais significativos para eles; escritas de narrativas históricas
utilizando tais bens como fonte de pesquisa (conhecimentos prévios); pesquisa de campo com
registros fotográficos, entrevistas e práticas culturais; intervenção pedagógica sobre a
construção e seleção do patrimônio histórico e história local; e atividade de metacognição
histórica, onde os alunos produziram narrativas históricas e foram avaliados os níveis de
consciência e compreensão histórica.
Na primeira fase do projeto os alunos elaboraram um inventário do patrimônio cultural
da Ilha do Mel, nesta etapa os grupos (divididos em projetos distintos) fizeram um
levantamento do patrimônio com um clima de competição entre as equipes, o resultado foi um
número total de 44 bens patrimoniais de caráter natural, 44 bens de caráter imaterial e 88 bens
de caráter material. Detalhe neste levantamento é que os alunos tiveram a liberdade de
inventariar todos os bens que julgassem patrimônio, independente se são ou não tombados.
Para possibilitar o trabalho com fontes históricas patrimoniais em sala de aula fez-se
necessário a seleção de apenas alguns bens, visto que o trabalho com todos seria de certa
forma impossível. Para tanto, partiu-se para a segunda fase do projeto que foi a seleção dos
bens mais significativos, onde cada aluno teve a oportunidade de eleger três bens que julgasse
mais importante dentre todos.
Depois de eleito os bens patrimoniais mais significativos na visão os alunos, foi
solicitado pelo professor, via questionário investigativo uma justificativa para a seleção destes
bens em detrimento aos outros. Nesta fase os alunos foram questionados sobre o passado do
patrimônio que eles escolheram; para melhor delimitar a pesquisa foi solicitado que eles
realizassem mais um filtro, isto é, dentre os três bens patrimoniais anteriormente
selecionados, deveriam escolher apenas um e responder (de maneira dissertativa) a seguinte
questão: O que você sabe sobre a História deste patrimônio? Dos 15 alunos questionados 4,
não responderam, 4 não fizeram referência ao tempo histórico, e 7 fizeram referência ao
passado em suas narrativas.
Dentre os que escreveram, porém não se reportaram ao passado, as narrativas se
basearam em dados contemporâneos e descritivos, voltados à funcionalidade do bem
escolhido, isso é percebido na narrativa do aluno Alex (6º A) ao escrever sobre a Festa da
Tainha (patrimônio imaterial): “A Festa da Tainha é muito legal, neste ano vai muita gente
para a festa que vai ter muita Tainha assada e bingo” (Alex, 6º A).
Dentre os alunos que fizeram referência ao passado muitos procuraram mostrar as
lendas e contos que fazem parte da tradição local, exemplo disso é a narrativa do aluno
Gabriel (6º B) que escreveu sobre a História da Gruta:
pesquisas sob a orientação do professor, onde foram feitos registros fotográficos, entrevistas
na comunidade e seleção de fontes a serem trabalhadas. Durante todo este processo os alunos
desenvolveram senso crítico com relação aos seus próprios conhecimentos prévios, e
entenderam a importância da fonte histórica enquanto evidência do passado.
Segundo Barca (2004) os alunos, na interpretação das fontes primárias precisam
3
“a empatia histórica pode ser melhor entendida como uma realização, algo que acontece quando sabemos o que
o agente histórico pensou, quais os seus objectivos, como entenderam aquela situação e se conectamos tudo isso
o com o que aqueles agentes fizeram.” (LEE, 2003, pg. 20)
Entendendo que a consciência histórica é expressa por meio de narrativas, “ou seja, no
ato de contar histórias, pois esta é uma forma coerente de comunicação e porque trata da
identidade histórica tanto do comunicador como do receptor” (GEVAERD, 2009, pg. 141), os
alunos foram encarados como pesquisadores e produziram suas próprias narrativas sobre o
passado.
Depois de realizada a pesquisa de campo, partiu-se para a intervenção pedagógica,
onde foi proposta uma atividade de metacognição histórica. Nesta fase da pesquisa, os alunos-
pesquisadores transcreveram as entrevistas gravadas em áudio na comunidade e tomaram-nas
como fonte histórica para a construção de suas próprias narrativas sobre o passado do
patrimônio e seu sentido atual. Isso foi possível apenas com o 6º B (Encantadas), pois não se
teve tempo hábil para concluir a pesquisa com o 6º A (Brasília).
Sendo assim, 8 alunos participaram da fase final da pesquisa relatada neste artigo. A
proposta foi que eles respondessem a mesma pergunta realizada no início do projeto: O que
você sabe sobre a História deste patrimônio? Todas as narrativas históricas fizeram referência
ao passado, isso já demonstra um avanço na consciência histórica dos alunos, pois nos
conhecimentos prévios dos 15 apenas 7 alunos fizeram tal referência.
Das 8 narrativas, 4 fizeram referência às fontes primárias, isto é, às entrevistas
realizadas na comunidade; a narrativa do Danilo (6º B) é um exemplo desta referência:
“Segundo o Tio Chuvinha, antigamente aqui na Ilha do Mel era bem diferente, pois da Gruta
até onde fica os navios era tudo praia, o Tio Chuvinha ia lá com o Vô Lavínio”. (Danilo, 6º B)
Ao tratar sobre a “História da História do Vô Lavínio” a maior preocupação do professor era
que os alunos confundissem com a “História do Vô Lavínio” e acabassem narrando a lenda,
porém os alunos surpreenderam:
Percebe-se na narrativa da Graziela (6º B), que também é feita referência à data “desde
1965”, isso ocorre em mais 2 narrativas: “o trapiche foi construído há uns 15 anos atrás”
(Leonardo, 6º B); “A pousada Caraguatá foi construída no ano de 2006”. (Francisco, 6º B).
Dentre as 8 narrativas produzidas, 4 fazem uma relação entre o tempo passado e o
tempo presente, estes alunos mostraram um nível de empatia muito bom, pois identificaram a
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Educação Histórica, neste sentido, propõe uma educação patrimonial eficaz, onde os
alunos buscam interpretar o passado histórico a partir do patrimônio, gerando assim uma
identidade histórica e cultural. Segundo Rüsen “a consciência histórica é, pois, guiada pela
intenção de dominar o tempo que é experimentado pelo homem como ameaça de perder-se na
transformação do mundo e dele mesmo.” (RÜSEN, 2001, pg. 60) A partir desta concepção,
percebe-se que uma ação preservacionista que não se apropria da consciência histórica, corre
o risco de se perder o sentido para a sociedade, pois a interpretação do passado é a geradora
de sentido à vida prática no presente.
6 REFERÊNCIAS
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. Para uma educação de qualidade:
Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Centro de Investigação em Educação (CIED)
Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho. Braga, 2004.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução: Fernando Tomaz. 12ª Ed. Editora:
Bertrand Brasil. Rio de Janeiro/RJ, 2009.
LE GOFF, Jacques (1924). História e Memória. [tradução: Bernardo Leitão, et al.] 5ª Ed.
Editora da Unicamp. Campinas/SP, 2003.
LEE, Peter. “Nós fabricamos carros e eles tinham que andar a pé”: compreensão das
pessoas do passado. In. BARCA, I. (org). Educação histórica e museus. CIED, Universidade
do Minho. Braga, 2003.
SILVA, Vagner Gonçalves. (1995) apud MAGALHÃES, Leandro Henrique, et al. Educação
Patrimonial: da teoria à prática. Editora: Unifil. Londrina/PR, 2009.
mata, para acomodar os ranchos que serviriam de moradia e as plantações dos adquirentes dos
lotes de terra.
O trabalho foi estruturado para compor o que procuramos chamar de quadro étnico
da formação da sociedade londrinense nas décadas iniciais da colonização do norte do Paraná,
nas margens esquerdas do Rio Tibagi, ao longo das décadas de 1930 a 1950. Com o apoio e
auxílio de fontes documentais presentes no Museu Histórico de Londrina e no Centro de
Documentação e Pesquisa Histórica, ambos pertencentes à Universidade Estadual de
Londrina, além de fontes orais, a pesquisa foi programada para se abordar os traços mais
significativos e persistentes de imigrantes. A proposta de finalização das etapas do projeto de
pesquisa dar-se-á com uma reflexão acerca dos migrantes chegados em Londrina, no mesmo
período identificado, particularmente aqueles de origem paulista, mineira e nordestina.
Pautou-se nas fases iniciais da pesquisa, por aprofundar o campo teórico acerca da
formação histórico-cultural da cidade de Londrina, uma cidade de formação recente, cujo
empreendimento colonizador deu-se a partir das primeiras décadas do século XX. Buscou-se
compreender a dinâmica colonizadora, empreitada pela Companhia de Terras Norte do
Paraná, de capital inglês e paulista, cujo incentivo à venda de pequenos lotes a imigrantes e
migrantes, ajudou a desenhar a ocupação territorial do norte do Paraná, especificamente em
Londrina, primeira sede e foco prioritário da ação da Companhia.
Par e passo com o estudo da formação étnica, buscou-se identificar também os sinais
das referências gastronômicas neste processo. Pratos típicos, técnicas de cocção, uso de
ingredientes locais em substituição àqueles tradicionais que não se podia encontrar nas novas
terras, constituíram-se como referências para o trabalho de pesquisa. Ao lado destas
referências, buscou-se compreender também, quais os sentidos da consolidação de uma
alimentação que foi aos poucos se adaptando ao paladar de cada etnia, porém, com os
ingredientes encontrados e conhecidos no norte do Paraná.
realidade local, foi se consolidando em meio às diversas famílias de origem árabe e entre as
demais etnias, que passaram a incorporar algumas de suas preparações.
Ao lado dos embasamento teórico, a equipe do projeto tem procurado pautar ações
práticas junto à comunidade londrinense, desenvolvendo cursos com algumas preparações
escolhidas, de acordo com cada etnia, no Laboratório de Gastronomia da UNIFIL. Estes
cursos tem permitido uma ampliação dos sentidos, ao conceber um prato finalizado, com
ingredientes particularmente identificáveis em cada momento, como sendo de natureza típica
de um país ou outro.
REFERÊNCIAS:
PATRIMONIO IMATERAIL:
(ICARAÍMA, PR)
INTRODUÇÃO:
Para que um lugar tenha sentido histórico faz-se necessário trabalhar com a memória,
esta enquanto fonte precisa ser manuseada com um cuidado que cabe ao historiador, visto que
a memória sempre está carregada de algum sentido de valor seja este individual ou coletivo,
este cuidado faz-se necessário para que o historiador não faça de seu trabalho algo carregado
de paixões, mas que consiga tornar este trabalho, estritamente científico de caráter
investigativo no que diz respeito á uma pesquisa histórica.
Neste sentido, é possível discorrer sobre a ideia de lugar a partir da reflexão de Tuan
(1983 p.6) onde: “o espaço é mais abstrato que o lugar. O que começa como espaço
indiferenciado transforma-se em lugar a medida em que o conhecemos melhor e o dotamos
de valor”.
É importante destacar que, as memórias são importantes no sentido em que estas são
lembranças de vivências que marca um determinado lugar, transformando-o em espaço de
visita ao passado, trazendo consigo os mais diversos sentimentos, que afloram nas narrativas
carregadas de percepções. Desta maneira podemos entender o lugar de memória tem em si
uma história regada de significação, afetividades, pertencimento. Assim a memória é
estratificada no lugar.
Nora (1993: 21) trata lugar como: “são lugares, com efeito, nos três sentidos da
palavra, material, simbólico, funcional [...]. Mesmo um lugar de aparência puramente
material, como um depósito de arquivos, só é lugar de memória se sua imaginação o
investe de uma aura simbólica”.
Sobre a memória Gastal (2002: 77) considera que: “conforme a cidade acumula
memória, em camadas, que, ao somarem-se vão constituindo um perfil único, surge o lugar
da memória”. Como elo de interpretação do passado, a memória constituí-se “voz e
imagem”do acontecido.
Em Le Goff (1996: 4 23) a idéia de memória toma corpo, quando ele afirma que “a
memória como propriedade de conservar certas informações remete-nos em primeiro lugar a
uma série de informações psíquicas, graças as quais o homem pode atualizar informações
Freire (1997: 45) diz que, “a memória compreende-nos melhor, estando elaborada a
partir da ausência e com o pé fincado no presente, volta-se para frente. Neste terreno, as
mais aparentemente insignificantes lembranças , são artigos de valor, sendo necessário
guardá-las, sabendo do risco que se corre coma perda desse que é nosso mais valioso e
invisível patrimônio”.
Thompson (1998: 21) afirma que “por meio da história local uma aldeia ou uma
cidade busca sentido para sua própria natureza em mudança, e os novos moradores vindos
de fora podem adquirir uma percepção das raízes pelo conhecimento pessoal da história”.
Assim quando há, por meio dos antigos moradores a contação da história do lugar, no lugar
da história, por meio da memória e das lembranças se faz possível uma interpretação da
situação contemporânea do lugar.
A Utilização de fontes orais numa utilização de reler o espaço encontra nos antigos
moradores um testemunho caracterizado de fortes afeições , carregado de sentimentos e
lembranças. Desta maneira, se o espaço se apresenta como um testemunho do que ocorreu,
os mais antigos moradores, por meio da memória ajudam a construir a memória do presente
que se constrói (Santos, 1990). Os objetos colhidos nestes lugares estão carregados de
sentimentos, afeições trazendo em si, representatividade que trazem uma singularidade do
lugar.
Outro ponto que queremos discutir é a ocupação das terras onde hoje se localiza o
Município de Icaraíma por meio da colonização feita pela COBRIMCO (Companhia
Brasileira de Imigração e Colonização brasileira), que segundo os relatos e documentos
existentes, remontam a ocupação nestas terras a partir da década de 1950, no entanto,
entendemos que os dados existentes são insuficientes para contar com mais clareza a
ocupação de Icaraíma, e desta maneira teremos como objeto de investigação o rastreamento e
assim a unificação de materiais que expliquem por exemplo a distribuição das terras da região
( escrituras, documentos oficiais da colonizadora, entre outras fontes), para que possamos
satisfazer os anseios que nos cercam para o entendimento da formação da sociedade local,
cumprindo assim parte do papel da investigação.
Neste contexto apresentaremos o papel desempenhado por estas empresas, mas claro
que nosso foco é tratar do papel da COBRIMCO (Companhia Brasileira de Imigração e
Colonização), responsável pela colonização do atual município de Icaraíma. Vale lembrar que
a colonização de iniciativa privada veio como maneira de solucionar as necessidades que o
Estado tinha de integrar junto ao modelo capitalista de sociedade estas terras, bem como de
garantir que estas terras seriam integradas definitivamente aos limites estaduais. Outro ponto
que favorecia a colonização era o fato de que para o governo havia lucratividade na venda de
títulos territoriais.
A Colonização de terras pela iniciativa privada vai ser segundo Cardoso o meio pela
qual o governo paranaense encontra solução para o problema em relação aos chamados
“aventureiros”, que pelo fato de encontrarem terras devolutas na região se achariam no direito
de possuí-las. Outra situação que favorecia a colonização privada era o fato de que qualquer
pessoa poderia adquirir lotes urbanos ou rurais mesmo não dispondo de riquezas, já que o
pagamento poderia ser feito à longo prazo. Atrativos como este eram espalhados e anunciados
por toda a parte, asa empresas colonizadoras ofereciam oportunidades de uma vida melhor,
aos que manifestassem interesse e disposição em desbravar um novo espaço era anunciado
pela empresa o fornecimento de toda uma infraestrutura, transporte, grandes geradores de
energia instalação de serrarias, entre outros (CARDOSO, 2009).
REFERÊNCIAS
ALVES, Paulo. Perspectiva acerca do método e técnica de análise dos discursos. In: História.
São Paulo, 1983. p. 33-37.
AMADO, Janaína. Construindo mitos: a conquista do oeste no Brasil e nos EUA. In:
PIMENTEL, Sidney Valadares; AMADO, Janaína. (Org.). Passando dos limites. Goiânia:
Editora UFG. 1995. p. 51-78.
BENSA, Alan. Da micro-história a uma antropologia crítica. In: REVEL, Jacques. Jogos de
Escala. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 39-76.
LE GOFF, J.História e memória. 2 ed. Campinas., São Paulo. Editora da Unicamp. 1992.
NETO, Edgard Ferreira. História e etnia. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS,
Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Campus, 1997. p.313-328.
STECA, Lucinéia Cunha; FLORES, Mariléia Dias. História do Paraná: do século XVI à
década de 1950. Londrina: EDUEL, 2002.
Palavras-chave: Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial; Memória; Ex-
combatentes.
Cada sociedade em seu tempo e espaço específico possui uma maneira distinta de
ver e de se relacionar com seu passado, ou seja, cada uma possui seu regime de historicidade,
pois espaço e tempo são o que definem a experiência/vivência do ser humano e estão sempre
mudando historicamente. Desde meados da segunda metade do século XX e principalmente
no final, percebemos uma grande mudança do regime de historicidade da sociedade.1
Pierre Nora defende a tese da “aceleração da história”, na qual o mundo moderno
afasta-se cada vez mais do seu passado e da sua tradição fazendo com que estes desapareçam
do cotidiano e precisem de lugares especiais para continuar [re]existindo. Já François Hartog
diz que hoje a sociedade dá mais extensão ao presente e produz diariamente o futuro e o
passado de que tem necessidade, o chamado “presentismo”. Andreas Huyssen, por sua vez,
fala em “passados presentes”, ou seja, uma volta, uma infestação do passado no cotidiano, em
contraposição ao culto futurista das primeiras décadas do século XX.2
O regime de historicidade, seja ele a aceleração da história, o presentismo ou a
excessiva valorização do passado, exerce influência sobre todas as formas de tornar manifesto
o passado, seja na escrita historiográfica, no estabelecimento de bens patrimoniais e na
construção de memórias e identidades. O ponto em comum entre os autores citados é
justamente o fato de haver, no fim do século XX e agora no início do século XXI, uma
obcessão pela “memória”, o que vemos na proliferação dos patrimônios e também no campo
1
HARTOG, F. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, n.36, pp. 261-273, jul/dez., 2006.;
Huyssen, A. Passados Presentes. In: Seduzidos pela Memória. Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2000.
2
HARTOG, op. cit.; HUYSSEN, A. Passados Presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória.
Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.; NORA, P. Entre memória e História: a
problemática dos lugares. Trad. Yara A. Khoury. Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.
historiográfico, onde a memória (e a identidade) tem sido a base de grande parte das
discussões. Novos estudos sobre gênero, minorias, revisitações a questões nacionais e
internacionais, buscando examinar as razões pelas quais essas questões podem ser lembradas
ou esquecidas, quais os critérios e valores que traduzem sua relevância, ou não, para a
posteridade, e quais os meios e estratégias de criação, recuperação, manutenção e
transformação das memórias inscritas em sociedades heterogêneas, como a brasileira.3
A pesquisa proposta nesta especialização em Patrimônio e História acaba por se
inserir nessa onda de estudos memorialísticos através da análise de um lugar que se
caracteriza por ser tanto produtor quanto porta-voz da memória dos soldados-civis brasileiros
que lutaram na Segunda Guerra Mundial, em especial daqueles que caíram em batalha, o
Monumento Nacional aos Mortos da Segunda Guerra Mundial (MNMSGM), localizado no
Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.
A participação brasileira na Segunda Guerra Mundial é, entre os eventos do
século XX, um dos mais comemorados por comunidades de memória. Um indício disso é o
número de patrimônios e monumentos representativos da memória da Força Expedicionária
Brasileira (FEB): ela foi composta por pouco mais de 25 mil civis recrutados por todo o país e
até meados dos anos 1980 havia 192 monumentos em todo o Brasil, numa média de
aproximadamente um monumento para cada 121 ex-combatentes.4
3
CONNERTON, P. A memória social. In: Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta Editora, 1993. p. 1-48.
4
ROSENHECK, U. Entre a comemoração do passado e a construção do futuro: os monumentos da FEB em seus
contextos. In: Revista Militares e Política, n. º 3 (jul . -dez. 2008) , pp. 7-16.
aberto, dessa vez com instruções gerais sobre o que se esperava do projeto. Entre 36 projetos
candidatos e 5 finalistas, o vencedor foi o de autoria dos arquitetos Helio Ribas e Marcos
Konder Netto, em parceria com os artistas plásticos Alfredo Ceschiatti, Anísio de Medeiros e
Júlio Cateef Filho.5
O monumento como um todo consiste em três níveis, ou três planos. O primeiro
plano consiste numa ampla plataforma onde a escadaria de subida leva primeiramente ao
Pórtico Monumental e ao túmulo do soldado desconhecido, onde há uma chama que nunca é
apagada; há ainda uma escultura metálica abstrata com linhas que simbolizam formas dos
engenhos aeronáuticos, uma escultura de granito que representa as três forças armadas com
um marinheiro, um aviador e um soldado, e uma baixa pirâmide de granito com informações
sobre a construção e inauguração do Monumento.
No segundo plano, o patamar, fica o museu, o qual contém um painel com cenas
que simbolizam a campanha da FEB e a vitória da guerra, e a exposição permanente de
objetos, roupas, armas, condecorações, fotos, etc. dos combatentes das três forças armadas; no
mesmo plano ainda há um jardim com lembranças das principais batalhas na Itália, um lago
de espelhos de água, uma painel de cerâmica em homenagem à Marinha e os Mastros onde
diariamente é hasteada a bandeira do Brasil e ocasionalmente a bandeira da Nação.
O terceiro plano (subsolo) consiste no mausoléu dividido em dois espaços por
colunas de concreto, dos quais em um lado ficam os jazigos: caixas alumínio revestidas de
mármore preto e tampa de granito branco com os nomes dos soldados6; do outro lado, há um
longo tapete que leva a um simples cenário de capela no fundo do mausoléu, contando com
uma cruz, um altar e um conjunto de cadeiras; em uma das paredes encontramos gravados em
quartzo os nomes dos mortos do Exército e da Marinha, Mercante e de Guerra; do salão do
mausoléu tem-se acesso à parte administrativa do Monumento e às dependências da Guarda,
feita a cada mês por uma das três forças Armadas, há ainda uma pequena sala de projeção
para determinados eventos e palestras.
Para além do material, o conjunto monumental, entretanto, envolve elementos
imateriais também, algumas cerimônias e solenidades que são fixas, ou o eram até alguns
anos atrás. A cada mês há a Rendição da Guarda na qual troca-se a Força Armada que fará a
5
MATTOS, G. J. B. Os Monumentos Nacionais: A Força Expedicionária no Bronze. Rio de Janeiro: SMG –
Imprensa do Exército, 1960.
6
No total são 468 jazigos, e em 13 deles está a inscrição “Aqui jaz um herói da FEB, Deus sabe o seu nome”,
pois são os não identificados, e mais dois jazigos possuem as lápides em branco representando dois corpos não
encontrados. MATTOS, op. cit., p. 60.
7
A Marinha Mercante teve 12 navios bombardeados entre fevereiro e agosto de 1942, somando uma total de
mortos maior do que a campanha da FEB na Itália, e sendo um monumento dedicado a todos os mortos em
decorrência da Segunda Guerra, é justo que tenham seus nomes na homenagem, mesmo não tendo participado de
combates enquanto militares. FERRAZ, F.C.A. Os Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2005.
8
golpe de 1964. O regime militar buscava a criação de uma identidade nacional e elencou
alguns pontos de referência pra isso, e quando regime e ideologia caíram esses pontos de
referencia também caíram. Dessa forma, a memória da FEB, antes relacionada à memória
nacional fica restringida, por uma simbiose, à memória coletiva da sua comunidade.
É importante, aqui, partindo das ideias de Ulpiano Menezes e de Astor Diehl,
discutir brevemente os conceitos de memória e identidade.9 Para Diehl, tempo, espaço e
movimento/acontecimento são elementos formantes tanto da memória quanto da identidade: o
tempo, enquanto força corrosiva, age sobre o espaço da experiência possibilitando a
sistematização do passado/lembranças em memória, o que por sua vez cria os movimentos
culturais identitários entre aqueles que fazem parte do mesmo grupo de memória. 10 A
memória, ou seja, o compartilhamento de experiências e suas narrativas na vida social de um
grupo, é o ingrediente principal da identidade, mas ainda que se diga englobante e
democrática, a construção de uma coletividade identitária acaba por encobrir diversidades e
conflitos.11Memória e identidade, no entanto, são “processos permanentes de construção e
reconstrução”12, ou seja nunca estão acabadas e sempre apresentam heterogeneidade em sua
constituição.
Menezes também trata do esquecimento enquanto uma parte e uma condição da
existência da memória, mecanismos de seleção e descarte: a memória da FEB, por exemplo,
não é consensual nem homogênea, ao contrário, há vozes que destoam da memória tradicional
e que são silenciadas/esquecidas. Mas há uma outra face do esquecimento, uma que causa
medo. Sobre isso, Huyssen comenta que a invasão do passado no presente, cria-se um pavor
do esquecimento, uma “cultura da memória”: ela vira obcessão cultural, o que acaba por gerar
uma comercialização da memória, muitas vezes uma “memória imaginada” e não vivida.13
Tais características da memória e da identidade nos levam a uma outra muito
importante, e que também se aplica aos seus lugares de memória: o presente. A constante
reconstrução da memória e da identidade e a eleição ou construção dos patrimônios e
8
FERRAZ, 2005.
9
DIEHL, A. Memória e identidade: perspectiva para a história. In: Memória Historiográfica. Memória,
Identidade e Representação. São Paulo: Edusc, 2002. p. 111-136.; MENEZES, U.T.B. A história, cativa da
memória? Para um mapeamento da memória no campo das Ciências Sociais. Rv. Inst. Est. Bras., São Paulo,
n.34, p. 9-24, 1992.
10
DIEHL, op. cit.
11
MENESES, op. cit.; SANTOS, op. cit.
12
MENEZES, op. cit., p. 10.
13
HUYSSEN, op. cit.
monumentos não devem ser vistos somente a partir do passado, mas como uma ação do
presente em resposta às necessidades do presente.
Vemos essas características de constantes mudanças e da ação do presente sobre a
memória e seus monumentos na terceira hipótese da pesquisa: é possível que um processo de
militarização dos conjuntos monumentais da FEB tenha causado o afastamento da população
e até dos homenageados dos mesmos, em especial do MNMSGM. A aproximação e
dominação do monumento e suas cerimônias pelas instituições militares pode causar
intimidação no visitante, fazendo com que ele se torne um “monumento essencialmente
militar”.14 No site do MNMSGM, por exemplo, na sua página de eventos, poucos civis são
vistos nas fotos, e quando escolas o visitam, são escolas militares.15
CONSIDERAÇÕES FINAIS
14
FERRAZ, F. C. A. A Guerra que não acabou. A reintegração social dos veteranos da Forças Expedicionária
Brasileira (1945-2000). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, Tese de Dutorado em História Social 2003.
15
Em contraposição a tal ideia, o brasilianista Uri Rosenheck nega essa militarização argumentando que nos
textos dos monumentos, exceto aqueles dentro de bases militares, dificilmente se encontra menção às forças
armadas, e que, além disso, não haveria mudanças nas construções de monumentos pós-1964 quando
comparados aos anteriores. (ROSENHECK, op.cit.).
16
FERRAZ, 2003, p. 337-338.
às forças armadas. Ele acaba por esconder muitas memórias individuais dentro de uma
coletividade, mas ainda assim, como todo patrimônio, é um importante referencial na
representação, legitimação e manutenção de uma identidade frente à sociedade.
BIBLIOGRAFIA
CONNERTON, Paul. A memória social. In: Como as sociedades recordam. Lisboa: Celta
Editora, 1993. p. 1-48.
FERRAZ, F. C. A. A Guerra que não acabou. A reintegração social dos veteranos da Forças
Expedicionária Brasileira (1945-2000). São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, Tese de Dutorado em História Social, 2003.
HARTOG, F. Tempo e Patrimônio. Varia História, Belo Horizonte, vol. 22, n.36, pp. 261-
273, jul/dez., 2006.
HUYSSEN, A. Passados Presentes: mídia, política, amnésia. In: Seduzidos pela memória.
Arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.;
NORA, P. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Trad. Yara A. Khoury.
Projeto História, São Paulo, n. 10, dez. 1993.
1
Localizada na região Norte Central do Estado do Paraná a 310 km da capital Curitiba.
O MUNICÍPIO DE CAMBIRA/PR.
Entretanto, somente a partir da década de 1940, essa região onde se encontra Cambira
passou por um processo de parcelamento, comercialização e ocupação do solo de modo mais
ofensivo. A partir desta década, intensificou a atuação de companhias de colonização, entre
elas, a da Companhia de Terras Norte do Paraná que viria a se tornar a Companhia
Melhoramentos Norte do Paraná.
Para Tomazi (2000), por meio da atuação desta empresa imobiliária, grande parte de
sua área foi sendo “re-ocupada”, mediante a plantação de extensos cafezais que substituíram a
mata fechada, e depois, contaram com a fundação de cidades, a implantação de ferrovias e
rodovias.
Tal avanço se iniciou na cidade de Londrina, a partir de 1930 e persistiu até meados da
década de 1950. Para France Luz (1997) a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná,
promovia a venda dos lotes rurais intensificando a propaganda em três aspectos, o primeiros
sobre a fertilidade do solo, ou seja, a valorização da terra roxa muito produtiva; o segundo
chamava a atenção para as vantagens do pequeno e médio agricultor que poderia adquirir
pequenos lotes com preço mais acessível; por último, difundia-se a questão da versatilidade
da produção, uma vez que as qualidades da terra tornava possível o cultivo de vários produtos
como o café, o algodão, cereais, hortaliças.
Em Cambira, assim como quase em todo o norte do Paraná a produção cafeeira foi
significativa até meados da década de 1970, no entanto com a famosa “A Geada Negra”,
ocorrida no dia 18 de julho de 1975, inúmeras plantações foram abandonadas, dando espaço
paulatinamente para o cultivo da soja, trigo, milho e principalmente nos últimos vintes anos
para a atividade pecuária, especificamente em Cambira.
A CAVALGADA DE CAMBIRA
Segundo Peter Burke (1992), o uso da imagem como fonte de pesquisa pode
enriquecer muito o conhecimento e a compreensão do passado, no entanto, exige extremo
cuidado. O historiador ao analisar uma fotografia deve pesquisar as motivações do fotógrafo,
as suas relações sociais e culturais, com qual finalidade e para quem a foto foi produzida.
Sobre os cuidados que o historiador deve tomar ao utilizar a imagética como fonte de
pesquisa histórica, Martine Joly (1994) afirma que o uso dessas pode acarretar num paradoxo
curioso:
Por um lado, temos as imagens de um que nos parece perfeitamente natural, [...]
aparentemente não exige qualquer aprendizagem, e por outro temos a sensação de
ser influenciados, de modo mais inconsciente do que consciente, pela perícia de
alguns iniciados que nos podem manipular submergindo-se da nossa ingenuidade
(JOLY, Martine, 1994, p. 10).
Depois do desfile nas ruas de Cambira, os Cavaleiros partem para a “Trilha Ecológica”
da festividade, em conformidade com os discursos das lideranças da cidade, o Sr. Jarbas
Belesi afirma:
O que tem de característica da nossa cavalgada é que da região toda, a nossa trilha é
a melhor trilha que se tem para as cavalgadas porque a gente realmente procura
evitar passar por mata, rio, pra ver a questão da mata ciliar, a gente passa pelo pasto
e evitando passar por estradas já de rotina; então você vê paisagens que
normalmente de carro você não vê.
Cabe ressaltar que a transcrição das entrevistas foi cautelosa, não se acrescentou
palavras, tampouco, se interferiu nas falas dos sujeitos históricos contatados.
Nesta fotografia, o autor do registro optou-se por utilizar uma angulação que
privilegiou a tomada da estrada onde galopam os cavaleiros, bem como a presença dos
moradores de Cambira que esperam pela passagem dos mesmos.
Após a entrega dos prêmios, é realizado o almoço, onde o prato servido desde a
primeira edição da festa é a Costela Assada. Segundo Luis Carlos de Melo, membro da
Associação dos Cavaleiros e secretário de saúde do município, a escolha pelo prato deve-se a
atividade pecuária no local que seria a principal fonte econômica da cidade. O Secretário
ressalta ainda que a festa é resultado de um esforço coletivo que envolve as associações
comerciais, a administração municipal e a comunidade cambirense.
O secretário reforça que a Cavalgada vem ganhando cada vez mais adeptos devido a
dois fatores: o primeiro refere-se à ideia de continuidade que os Cavaleiros mais velhos passar
para os seus filhos, como podemos atestar na fala do Sr. Marcelo Steffani.
Eu acho a Cavalgada uma coisa muito saudável e acho que a participação da família
é fundamental, então a Adriara sempre me acompanhou desde pequenininha ela ta
um pouco envergonhada, mas ela sempre me acompanha inclusive a gente faz
enduro a cavalo outra coisa que envolve sempre a família, e eu acho o cavalo uma
das coisas mais saudáveis, você faz amigos, você participa sempre de uma
confraternização no final e é uma coisa que eu quis transmitir a minha filha eu acho
que ajuda a dar esse censo de companheirismo, de natureza, sair um pouco do
shopping, sair do asfalto, eu sempre gostei de cavalgar, graças a Deus, minhas filhas
gosta, minha esposa gosta também, mas só que ficou com a minha pequeninha que
eu espero que também com o tempo venha a participar junto com a gente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Vale ressaltar que o presente estudo fez parte de uma série de pesquisas realizadas no
ano de 2009-2010, vinculadas ao projeto de extensão “História Local: a Educação Patrimonial
e o Exercício da Cidadania”, desenvolvido com o apoio da Secretaria de Estado de Ciências,
2
Tecnologia e Ensino Superior (SETI) – Universidade sem Fronteiras –Modalidade
Licenciaturas, coordenado pela professora Dr. Sandra C. A. Pelegrini, que teve como um dos
objetivos difundirem o conhecimento sobre a história local dos Municípios e valorizar o bens
culturais das populações residentes, por meio da socialização e popularização do
conhecimento.
REFERÊNCIAS
DE VARAZZE, J. (2003). Legenda áurea: vida de santos. São Paulo, Companhia das
Letras.
2
O Programa Universidade sem Fronteiras, da SETI – Paraná vem apoiando o desenvolvimento de projetos
concernentes aos subprogramas: Licenciatura; Incubadora dos Direitos Sociais; Apoio aos Núcleos da Infância e
da Juventude; Diálogos Culturais; Apoio à Agricultura Familiar; Apoio à Produção Agro-ecológica Familiar;
Apoio à Pecuária Leiteira; e Extensão Tecnológica Empresarial (EDITAL n.4-
2007- SETI-PR).
ELIADE, Mircea. Tratado de História das Religiões. São Paulo. Editora Martins Fontes.
1992.
FONSECA, M. C. L. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio
cultural. In: ABREU, R. & CHAGAS, M. (orgs.). Memória e patrimônio: ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na história oral. In:
FENELON, Déa (et al., orgs.) Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’ Água,
2004.
Tava dormindo
Angoma me chamou
Disse levanta povo
Cativeiro se acabou1.
1
Este é um dos versos do canto ecoado entre várias comunidades jongueiras (IPHAN, 2007, Dosiê n. 5).
vem se desarticulando. Outro aspecto que nos chama a atenção é o fato que o jongo reúne as
práticas de poesia, música, dança e religiosidade com códigos próprios e que não podem ser
interpretados isoladamente para evitarmos equívocos sobre a apreensão dos significados dos
elementos representados na cultura afro-brasileira.
O jongo como forma de expressão característica de um grupo deve ser compreendido
por meio de uma leitura que permita a percepção de sua importância na esfera da transmissão
de saberes de geração em geração, e como tal, exige um conhecimento especifico das
temáticas e dos ritos estabelecidos, conferindo-lhe singularidades que garantem seu
reconhecimento como patrimônio imaterial.
Também conhecido como “tambu” ou “caxambu”, o jongo apresenta um ritmo
marcado por instrumentos de percussão e de coreografias criadas coletivamente, cujo objetivo
é reverenciar a vida e a ancestralidade. Logo, podemos afirmar que essas manifestações,
assim como tantas outras existentes no Brasil, transitam no universo sagrado e profano porque
se revestem de uma áurea mística, mas não negam sua interface de diversão e lazer. O
respeito pelos ancestrais e tributo aos deuses/orixás, protetores dos jongueiros, apresentam-se,
lado a lado, como um meio de celebrar a existência humana. Daí a relevância de seu estudo
dessa prática como bem patrimonial imaterial entre as comunidades residentes na cidade de
Cunha, interior de São Paulo, bem como da compreensão do seu “desaparecimento” nas
atuais Festas do Divino.
Cabe-nos lembrar de que as manifestações favoráveis à preservação do patrimônio
cultural imaterial da humanidade surgiram das necessidades próprias do contexto de
mudanças aceleradas, onde a rapidez da informação e o estímulo à mudança comprometem a
manutenção de costumes e modos de viver. Assim, salientamos que a partir do final do século
XX, vários pesquisadores vêm concentrando esforços com o intuito de garantir a proteção e
difusão do patrimônio intangível.
Para nossa sociedade, a atribuição do conceito de patrimônio a algum artefato,
manifestação religiosa, práticas cotidianas ou alimentares, remonta a uma herança
representativa com algum valor para a comunidade, por estar associado as suas memórias e
identidades. No entanto, ao longo do processo histórico temos percebido que os bens de valor
material têm sido visto com mais cuidado, talvez porque garantam a perpetuação dos valores
eurocentristas de cultura, em detrimento das produções de outras localidades que não tendo
reconhecido seus bens de valor material para a humanidade são contempladas apenas com a
escolha de bens intangíveis.
O patrimônio está relacionado às práticas e saberes que compõe os processos culturais
das várias sociedades. A cultura é um bem supervalorizado na conjuntura, sendo vista como
redentora das mazelas sociais, conferindo a ela uma funcionalidade que a limita como forma
de expressão resultante da maneira como as pessoas se organizam. Como salienta Sandra C.
A. Pelegrini, a cultura não é algo dado, uma simples herança que se possa transmitir de
geração em geração. Para a historiadora trata-se de uma produção histórica, integrante das
relações entre os grupos sociais. (PELEGRINI, 2008, p. 19).
Consideramos a cultura como um bem híbrido fruto das interações existentes na
sociedade, que se articula em um jogo de influências e adquire contornos em função
processos de assimilação e acomodação capazes de lhes conferir um sentido dinâmico. A
compreensão da cultura nesses termos por parte dos historiadores é uma conquista recente,
elaborada a partir de uma mudança na concepção que, em muito se deve a aproximação dessa
área do conhecimento com a antropologia. Além disso, não devemos nos esquecer da
revolução dos métodos historiográficos que questionavam antigas formas de pensar,
fundamentais para a efetivação de mudanças como a ampliação e uso de fontes diversificadas,
assim como a postura que deve ser adotada pelo pesquisador perante elas, incentivou o
desenvolvimento de novas abordagens, metodologias e questionamentos necessários para a
realização da investigação historiográfica.
Esse conjunto de fatores suscitou o interesse dos estudiosos por temas anteriormente
renegados a planos secundários e abriu caminho para o desenvolvimento de pesquisas
envolvendo a temática sobre feiticeiras, boêmios, relações cotidianas e festas, entre outros
assuntos que passaram, cada vez mais, a ganhar notoriedade entre os historiadores. Pautados
pela perspectiva antropológica, os estudos sobre as culturas ampliaram-se, difundiram-se e
colocaram em xeque as concepções mensuradas por enfoques evolucionistas e vetores
hierarquizados.
O estudo da cultura popular embora distinto, desde o século XIX, passou a fazer parte
dos interesses dos pesquisadores e demonstrou por meio do rigor metodológico ser um
caminho viável para compreensão das formas de organização da sociedade. A cultura
produzida por pessoas comuns ganhou destaque no século XX e reforçou questões relevantes
sociabilidade entre os membros das comunidades negras têm sido exaltadas como importantes
por dar visibilidade às várias identidades que compõem a nossa cultura.
Vale lembrarmos que, de acordo com a pesquisa liderada pelo Inventário Nacional de
Referências Culturais (INRC), articulado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular,
privilegiou-se o inventário de “danças de roda” comuns entre comunidades rurais e nos
circuitos periféricos de pequenas e médias cidades.
No decorrer dos trabalhos os pesquisadores detectaram embates sociais relacionados a
“clivagens raciais e de classe”, a “divergências religiosas” e conflitos no âmbito do “mercado
de bens na cultura de massa em contraste com a relativa invisibilidade e exclusão
socioeconômica das comunidades e grupos tradicionais” (IPHAN, 2007, p.13).
Outro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato de que no decorrer do levantamento
inicial dos locais e características das práticas jongueiras, os próprios grupos manifestaram
grande interesse em apresentar a candidatura do jongo ao registro como patrimônio nacional.
Este constitui o estímulo primordial para a condução dos trabalhos do Centro Nacional de
Folclore e Cultura Popular e do Iphan.
No Espírito Santo, os principais grupos de jongo identificados foram os de São Mateus
e Conceição da Barra, já no estado do Rio de Janeiro foram arroladas comunidades existentes:
1. Bairro de Madureira;
2. Morro da Serrinha;
3. Comunidade da Fazenda São José (cidade de Valença);
4. Barra do Piraí;
5. Miracema;
6. Pinheral;
7. Santo Antônio de Pádua;
8. Comunidades como Bracuí e Mambucaba (Angra dos Reis).
No que tange ao estado de São Paulo, foram levantadas comunidades jongueiras em:
1. Guaratinguetá;
2. São Luís do Paraitinga;
3. Lagoinha;
4. Piquete;
5. Cunha.
REFERÊNCIAS
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2008.
CASTELLS, Manuel. O poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Retórica da Perda. Rio de Janeiro: Editora UFRJ;
Iphan, 2002
IPHAN. Jongo no Sudeste. Brasília –DF: Iphan, 2007.
MAIA, THEREZA; MAIA, TOM. Vale do Paraíba. Festas Populares. São Paulo: Centro
educacional Objetivo, 1998.
MELLO E SOUZA, Marina. Reis negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2006.
PELEGRINI, S C. A; FUNARI, P. P. O Que é Patrimônio Cultural Imaterial. 1° edição. São
Paulo: Editora Brasiliense, 2008.
PENTEADO JUNIOR, Wilson Rogério. Jongueiros Tamandaré: um estudo antropológico da
prática do jongo no Vale do Paraíba paulista (Guaratinguetá-SP). Unicamp: 2004.
Dissertação de mestrado.
SHIRLEY, Robert. O Fim de uma Tradição: cultura e desenvolvimento no município de
Cunha. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.
WILLEMS, Emilio. Cunha Tradição e transição em uma cultura rural do Brasil. São Paulo:
Secretária da Agricultura, 1947.
Solange Cordeiro
(Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Orientadora Profa. Dra. Yonissa Marmitt Wadi
tenta apreender o registro das nuanças das sensibilidades de uma época, seus valores,
conceitos, noções sobre a vida dos homens e suas práticas sociais.” (SANTOS, 2005, p.36).
A História é uma construção de histórias sobre o mundo; nela, compõem-se enredos
sobre o passado, é a narrativa. A Literatura por sua vez, é o registro de alguma coisa que
também se passou, na esfera do sensível, é o registro de algo que diz respeito a anseios,
sensibilidades, medos, apreensões, percepções sobre o mundo é também narrativa. A loucura,
qualquer que seja sua forma ou diagnóstico, em matéria de seu conteúdo, é a representação
dos conteúdos psicológicos de um sujeito, simbolizados em discursos ou imagens, é, portanto,
narrativa. (SANTOS, 2005, p.36).
Desta forma é importante vislumbrar que a literatura está plena de narrativas sobre a
loucura, desde os tempos mais remotos, e que há muito elas fazem parte do imaginário das
sociedades. Há muitos escritores e artistas, de todas as épocas, que também se preocuparam
em relatar estados alterados de seu psiquismo, bem como relatar experiências pelas quais
passaram no manicômio, como o faz Maura Lopes Cançado, através de seus escritos
autobiográficos, pois a Literatura, assim como outras artes, é a expressão de sensibilidades,
por excelência.
A literatura como uma portadora fiel de um imaginário que se encontra do outro lado
do concreto, pode-se constituir numa narrativa do sensível fidedigna sobre a
loucura, no momento em que mostra a voz do paciente revelada pelo personagem, o
considerado “louco”, através de um discurso não oficial, mostra o outro lado da realidade.
(SANTOS, 2005, p.58).
Houve uma época em que a razão fazia literatura com a loucura, há uma época que a
razão faz literatura com a loucura, mas é com a loucura fazendo literatura que esta encontrou
seu mais desconcertante sentido. Literatura, loucura e história cultural, todas trabalham com
sistemas simbólicos, passíveis de serem interpretadas em ambas as faces do imaginário. Desta
forma, sua inter-relação, no campo deste imaginário, pode satisfazer a meta de descortinar
sensibilidades sobre a loucura, ocultadas pelas práticas sociais de exclusão. (SANTOS, 2005,
p.62).
Ao ler o delírio do louco, em textos literários de gêneros diversos é de certa forma,
um desafio, que orienta uma leitura em direção ao simbólico, pois o que se chama delírio,
nada mais é do que o conteúdo simbólico do imaginário de uma pessoa, retratando também o
imaginário coletivo. “Na verdade, este sistema simbólico constituinte do imaginário de um
paciente, traz à tona a sensibilidade sobre a loucura de certa época dada, onde ele se insere na
corrente histórica que lhe deu origem.” (SANTOS, 2005, p.63).
Contudo, como caracterizar a loucura neste jogo dos mecanismos entre loucura e
literatura? Conforme Almeida:
Com isso, observamos que a figura da loucura remonta a uma linguagem excluída
por transgredir as regras de linguagem. Em “A Loucura e a Sociedade”, Foucault (1999)
ressalta que o louco é excluído dos domínios sociais circunscritos pela problemática da
sexualidade, do discurso, das festas e dos eventos sociais e do trabalho. É excluído sim do
âmbito cultural referente à linguagem e aos gestos, isto é, da sociedade. Sendo assim,
podemos pensar que tanto literatura quanto loucura são atualizações do movimento repetitivo
da linguagem, sendo esta última excluída pela sociedade. (FOUCAULT 1999 apud
ALMEIDA, 2008, p.274).
Todavia, a literatura é vista por Foucault (199), em “A Loucura e a Sociedade”,
como uma linguagem anárquica, marginal e transgressiva que foge às regras da linguagem
cotidiana, daí o seu parentesco com a loucura. “Quer dizer que há uma curiosa afinidade entre
a literatura e a loucura. A linguagem literária não está obrigada às regras da linguagem
cotidiana”. (FOUCAULT 1999 apud ALMEIDA, 2008, p.274).
A oposição entre linguagem transgressiva e linguagem cotidiana se faz valer nesta
aproximação entre loucura e literatura. Ambas fogem às regras de linguagem comumente
aceitas no dia-a-dia. No entanto, em “Loucura, Literatura, Sociedade”, observa-se uma
nuança, Foucault afirma que a força intrínseca de adaptação e absorção do capitalismo retirou
da literatura seu poder transgressivo no século XX. É como se a função transgressiva da
literatura só vingasse no século XIX. (FOUCAULT 1999 apud ALMEIDA, 2008, p.274).
A literatura e a loucura têm seu parentesco garantido pela linguagem transgressiva
que lhes é constitutiva, entretanto, a última é excluída – ela é considerada como fora da
sociedade – enquanto a primeira é aceita no interior desta. Entretanto, cada vez mais os
escritos dos “loucos” estão sendo considerados como literatura, e sendo analisadas como tal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Marcos Francisco; MACEDO Joaquim Manuel de. História e Literatura em diálogo:
representações da escravidão em Bernardo Guimarães. Revista Eletrônica Cadernos de
História publicação do corpo discente do Departamento de História da Universidade Federal
de Ouro Preto, Ano V, n.° 2, Dezembro de 2010.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1965.
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Com os olhos de Clio ou a Literatura sob o olhar da história a
partir do conto Alienista de Machado de Assis. In: Confrontos e perspectivas. Revista
Brasileira de História, ANPUH-editora Contexto, SP, v.16, nº3 e32, 1996, p.108-118.
PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.) Leituras cruzadas: diálogos da História com a Literatura.
Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2000.
INTRODUÇÃO:
A série investigada tem como título Queer as Folk, traduzido no Brasil como Os
Assumidos750. A série a Queer as folk- Os Assumidos foi transmitida pelo canal a cabo
Eurochanel, mas este vinculou apenas a versão britânica e logo depois a HBO do Brasil
comprou a versão norte americana e passou a apresentá-la no canal Cinemax, nas
sextas-feiras a meia noite entre os anos de 2000 a 2005. O seriado teve sua primeira
produção na Inglaterra criada por Russel T. Davies e devido ao sucesso de público
Daniel Lipmann e Ron Cowen em um projeto conjunto com a rede Showtime passaram
a produzi-la nos Estados Unidos da América.
750
Neste trabalho utilizarei a nomenclatura em inglês seguida pela tradução em português, leia-se Queer
as Folk- Os Assumidos.
Ted Schmidt(Scott Lowel): Ted é um cara amoroso, sensível, solitário no que diz
respeito a seus relacionamentos amorosos, acha-se feio e pouco atraente, sofre de baixa
autoestima. Trabalha como contador em uma grande empresa, sente-se frustrado com
seu emprego e resolve dar uma guinada em seu campo profissional quando é demitido.
Posteriormente passa a usar drogas, tornando-se um dependente.
merece atenção no sentido de explorar quais as classes sociais que tiveram acesso ao
seriado? como ele se difundiu? Entre outras inquietações. Pela crítica, foi considerado o
seriado que mais teria se aproximado do chamado “mundo homossexual”, embora
quando utilizo essa expressão esteja, de certa forma, restringindo uma gama de
experiências sociais e suas compreensões na vida cultural.
O seriado se coloca como objeto e fonte dessa pesquisa por conta dele apontar as
problemáticas, é ele quem dá o aporte essencial para pensar minhas inquietações e
consequentemente as formas de verificação da outro tipologia de fonte utilizada: a
internet. Dentro do contexto da série uma gama de possibilidades se coloca a cada
temporada, pra não dizer a cada episódio.
Não quero de forma alguma dar a impressão de que tudo o que é feito
com as redes digitais seja “bom”. Isso seria tão absurdo quanto supor
que todos os filmes são excelentes. Peço apenas que permanecemos
abertos, benevolentes, receptivos em relação à novidade(LÉVY, 1999,
p. 12).
muitas vezes são utilizadas como uma forma de manifesto contra as representações
homossexuais feitas pelas TV aberta, debates em torno dos episódios do seriado Queer
as Folk- Os Assumidos e também escritos de experiências pessoais dos internautas de
vivencias inseridas em seus cotidianos. As comunidades podem ser aquelas que falam
um pouco mais do usuário do Orkut, pois no perfil pessoal, se coloca a idade, cidade,
filmes que gosta, músicas preferidas, religião, estado civil dos membros do orkut, mas
essas informações gerais não são suficientes para sugerir quem somos, assim as
comunidades também podem falar um pouquinho sobre o usuário.
Uma gama de representações são tecidas por meio da Internet, construindo laços
de amizades, questões profissionais, relacionamentos amorosos, proporcionando
possibilidades de contatos que tem seus desdobramentos no cotidiano das pessoas, em
suas relações sociais. Nas comunidades, muitas questões que o seriado Queer as Folk-
Os Assumidos havia pautado ao longo das 5 temporadas, estavam sendo debatidas no
espaço da internet e vale a pena ressaltar que o número de comunidades direcionadas ao
seriado é bastante grandioso. As mais frequentadas são as que tem como tema central o
seriado, mas elas vão se desmembrando em vários outras, que levam como título os
nomes dos personagens, ex: Ted Schmidt- Queer as folk
A comunidade que mais me ative até o presente momento tem como título
“Queer as folk- Os Assumidos” e conta com 22.912 membros, está comunidade me
despertou maior interesse por conta de trazer discussões muito pertinentes para esta
pesquisa. Os tópicos que lá estão postados vão desde: Qual o personagem mais bonito,
qual o personagem que os telespectadores mais se identificaram, joguinhos com
intenção de colocar em pauta questões relativas a sexo e dentre vários tópicos cheguei
até um chamada Confessionário. Neste tópico as discussões vão de confissões
referentes a términos de namoros, saudades do seriado, o inicio de todas as frases desse
tópico é “confesso que”.
como: a comunicação e a filosofia. O que pode num contexto geral se tornar uma
premissa muito rica do ponto da interdisciplinaridade.
CONLUSÃO
Redes Sociais são, antes de tudo, relações entre pessoas, estejam elas
interagindo em causa própria , em defesa de outrem ou em nome de
uma organização, mediadas ou não por sistemas informatizados; são
métodos de interação que sempre visam algum tipo de mudança
concreta na vida das pessoas, no coletivo e/ou nas organizações
participantes(AGUIAR, 2007, p.2).
tema de suma importância e relevância, dessa forma espero que minha pesquisa se
também se constitua como uma forte defesa aos direitos e ao respeito a alteridade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Sônia. Redes Sociais na Internet: desafios à pesquisa. In: VII Encontro de
de Núcleos de Pesquisa em comunicação-NP tecnologias da informação e da
comunicação. 29 de Agosto a 2 de Setembro de 2007. Santos- SP.
Em suas páginas a revista tentou representar uma forma de sociabilização elegante que
era almejada por alguns indivíduos abastados, ou seja, ela imprimia em suas edições um
estilo de vida que se tentou implantar no Brasil.
Por ser uma revista de generalidades, as charges se faziam presentes em grande
quantidade em cada edição. Essas charges ilustravam as mais diversas representações do
universo político, do social e do cultural. No entanto, destacam-se as representações
sociais acerca das mulheres. Tais charges eram sempre imbuídas de uma comicidade de
duplo sentido que evocavam o comportamento desejável para a sociedade carioca, como
também o que não se aceitava.
As charges da Careta demonstram o que o chargista e a revista desejavam que
fosse colocado em evidência naquela sociedade. Desta forma, Mannoni indica que as
representações sociais podem ter o poder de mudar ou de reforçar certas práticas ou
valores dos indivíduos receptores. No entanto, devemos ressaltar também que por trás
das representações sociais da Careta vamos encontrar formas de discursos.
Para Michel Foucault, em toda sociedade a produção do discurso é controlada,
selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por
função conjurar seus poderes e perigos e dominar seu acontecimento aleatório
(FOUCAULT, 2002. pp.8,9). Mas, no entanto, Foucault ressalta também as condições
do funcionamento do discurso, as quais impõem aos indivíduos certo número de regras
de forma a não permitir que todo mundo tenha acesso a ele. Desta forma, Foucault
questiona quem possui legitimidade para emitir o discurso (FOUCAULT, 2002, p.37).
Por mais que o discurso seja aparentemente pouca coisa, as interdições que o atingem
revelam logo, rapidamente, sua ligação com as relações de poder. Foucault aponta que o
discurso não é simplesmente aquilo que manifesta o desejo, é também o objeto de
desejo (FOUCAULT, 2002, p.10).
Nas próximas páginas pretendemos esboçar o perfil feminino apresentado pela
Careta e, ao mesmo tempo, o perfil masculino, demostrando as relações conflituosas
entre estes dois campos. Junto disto, reconstruiremos a trajetória de um grupo em que
aqui, nesse artigo, não se destaca nomes ou personagens específicos, mas que é
entendido como um grupo de mulheres que estavam dispostas a quebrar barreiras e lutar
por direitos; não um grupo organizado coletivamente, mas que, individualmente, cada
uma com seu modo de negar a submissão e a passividade ajudou a construir um novo
panorama e fazer com que muitas outras mulheres pudessem enxergar um novo
horizonte em suas vidas.
fachadas, assim como a proibição de uma série de outros costumes que passaram a ser
tidos como “bárbaros” e “incultos” (NEEDELL, 1993, p.57).
Devemos ressaltar que houve uma tentativa de imposição de tais mudanças
comportamentais, tentando fazer com que as pessoas incorporassem esses novos
hábitos. Todavia tais mudanças não necessariamente aconteceram. Podemos perceber
então que para além das medidas para as transformações urbanísticas, procurou-se
também mudar hábitos e costumes. Consequentemente, essa tentativa de construção de
novas práticas consideradas elegantes em grandes centros urbanos gerou outra mudança
social: um número cada vez maior de mulheres751 das classes altas caminhando pelas
grandes avenidas recém-abertas, fazendo compras, passeando, tomando chá, indo ao
cinema, e tudo isso sem a presença masculina (HAHNER, 2003, p.183).
751
- Nossas análises a partir da categoria gênero são feitas através do diálogo com Joana Maria Pedro,
Margareth Rago, Joan Scott, entre outras, compartilhando do entendimento destas do que seja a categoria
gênero. Para essa última gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um primeiro modo de dar significado às relações de
poder”. SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Recife: Corpo e
Cidadania, 1990, p. 14.
752
- As informações sobre o artigo citado foi retirado do Livro I Do Direito de Família, do código civil
brasileiro de 1916. Captado em: <http://www.soleis.adv.br/direitodefamiliacodcivil.htm >. Acesso em: 13
de Outubro de 2011.
753
- Não se negava ou restringia o acesso da mulher pobre ao trabalho, pois se reconhecia a necessidade
econômica que estas possuíam. Porém, o trabalho braçal feminino para as elites era tido como algo vulgar
associado à corrupção moral.
das mulheres era cuidar da família, e para isso necessitava de um casamento. Afirmava-
se, então, que a “profissão” das mulheres era o casamento. Na cidade catarinense de
Desterro, posteriormente conhecida como Florianópolis, o jornal A República
apresentava inúmeras matérias que se dedicavam à figura feminina. Nestes textos as
mulheres eram retratadas como “caçadoras de marido” (PEDRO, 1994, p.53).
Esse exemplo catarinense é importante para mostrar que essa não era uma visão
exclusiva da Careta e muito menos uma perspectiva restrita à cidade do Rio de Janeiro.
Porém, a revista Careta vai mais longe em relação às demais publicações deste tipo.
Em seu quadro “A Arte de ser Marido” (coluna de pequenas frases sobre o
comportamento feminino no casamento), temos um pequeno manual de como o homem
deveria agir no casamento.
754
- A Mensageira foi uma revista literária dedicada à mulher brasileira. Lançada por Presciliana Duarte
de Almeida circulou em São Paulo entre os anos de 1897 a 1900. Destinada à produção literária feminina,
publicava também artigos que defendiam a emancipação das mulheres, reivindicando especialmente uma
educação de qualidade. Em suas páginas figuravam nomes como os da escritora Júlia Lopes de Almeida e
da portuguesa Guiomar Torrezão, escritora e líder feminista. KAMIT, Rosana Cássia. Revista “a
mensageira”: alvorecer de uma nova era? Estudos feministas. Florianópolis, 2004. Captado em:
<http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/10268/9513>. Acesso em: 15 de outubro de
2011. p. 164.
755
- A Revista Feminina foi uma publicação “escrita” e dirigida por mulheres, inteiramente voltada ao
público feminino, sendo criada no início do séc. XX (1914-1936). A Revista Feminina ao trazer assuntos
ditos de “interesse da mulher” estabelecia um discurso sobre as referências socialmente condicionadas e
condicionantes da natureza dos femininos e masculinos possíveis. SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho.
Tinturas petalina, creme dermina e a felicidade ao alcance de uma página: a revista feminina e seus
trabalho. Nesse sentido, os homens que desejassem ser percebidos como honrados, além
de possuírem uma boa educação e um labor, deveriam ter também preocupações com a
saúde do corpo e principalmente com a sua aparência física.
A moda masculina diz muito em relação aos comportamentos sociais da época,
por isso merece um destaque. Na imprensa em geral eram muito comuns colunas sociais
apresentando o homem galante. Na revista Careta, além de fotografias encontramos
muitas charges fazendo menção aos homens ricos e também, em oposição, aos homens
pobres. Paulo Knauss afirma que “a imagem é capaz de atingir todas as camadas sociais
ao ultrapassar as diversas fronteiras sociais pelo alcance do sentido humano da visão.
Como lembra John Berger, a visão vem antes das palavras” (KNAUSS, 2006, p.69).
Por isso as imagens da Careta se fazem tão importantes, já que este tipo de
distinção social que se tinha através do vestuário se fazia muito presente nas páginas da
revista, como uma forma visual de caracterizar cada camada social.
Nas representações abaixo (figuras 2 e 3), da revista Careta, percebemos
claramente as diferenças entre os homens pobres e os ricos, não só pelo vestuário, mas
também pela aparência física. Na primeira imagem, vemos homens de classes
populares. As figuras são desajeitadas, com aparência cansada e nada saudável, além
das vestimentas simples indicarem a sua classe social. Já na segunda imagem temos a
representação social de um homem de classe abastada. A revista retrata-o com uma
postura ereta, firme, forte e com aspecto saudável, já que como afirmamos a beleza e a
higiene eram sinônimos de saúde.
Fig.2 - Revista Careta, novembro de 1911. Ed. 181 Fig. 3 - Revista Careta, julho de 1919. Ed. 578
A aparência era muito importante no início do século XX. Martins afirma que
“um indivíduo que andasse pelas ruas da capital [...] que tivesse aparência de pobre,
corria o risco de ser detido pelos inspetores de segurança [...] e recolhido à delegacia
sob a alegação de prática de vadiagem” (MARTINS, 1993, p.283).
Nessas duas charges acima (Figuras 4 e 5), de 1920, representando uma manhã
pós-carnaval, percebemos a condição submissa das mulheres: enquanto os homens vão
às festas, as mulheres ficam restritas ao lar. Na Figura 4, um homem bêbado, dormindo
ou desmaiado, está sendo carregado; não se sabendo onde ele mora, o guarda manda
deixá-lo em qualquer casa que tenha uma mulher na porta com um pão, demonstrando
uma visão submissa das mulheres. Esta imagem pode também ser compreendida como
uma representação social das mulheres à procura de um homem para o casamento, já
que em várias passagens a revista insinua que muitas mulheres são “caçadoras de
marido” e que têm medo de ficar sozinhas. A mulher na porta de casa pode ainda
representar uma mulher solteira que aceitará qualquer homem que aparecer.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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KAMIT, Rosana Cássia. Revista “a mensageira”: alvorecer de uma nova era?. In.
Estudos feministas. Florianópolis, 2004. Disponível em:
http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/10268/9513 Acesso em: 15 de
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PISCITELLI, Adriana, (Org) Olhares Feministas. Brasília: Ministério da Educação:
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SCOTT, Joan W. Gênero: Uma Categoria Útil para a Análise Histórica. Recife:
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TEIXEIRA, Luiz Guilherme Sodré. O traço como texto: A história da charge no Rio
de Janeiro de 1860 a 1930. Rio de Janeiro: Editora casa Rui Barbosa, 2001. (coleção
papéis avulsos).
ZANON, Maria Cecilia. A sociedade carioca da Belle Époque nas páginas do fon-fon!
In.Revista Patrimônio e Memória. UNESP, V. 4, N. 2, 2009.
1. INTRODUÇÃO
A pergunta central do presente texto foi uma das questões da tese de doutorado
“A comodificação feminina na rede de práticas discursivas que promovem o Funk”. A
referida tese parte do principio de que a mulher é comodificada, é transformada em um
produto sexual ou em um objeto de consumo no Funk. Isso acontece porque também se
parte do principio de que esse gênero musical, em todos os seus textos (músicas, clipes,
capas de CDs, reportagens sobre as mulheres fruta) é um gênero pornográfico.1 Ele o é?
Para organizar essa discussão apresentam-se aqui uma revisão teórica sobre as
questões sexistas nas músicas funk (ESSINGER, 2005; MEDEIROS, 2006) e a
discussão histórica sobre a diferença entre pornografia e erotismo (HUNT, 1988; LEITE
JÚNIOR, 2006; MORAES; LAPEIZ, 1985), Em seguida, apresentam-se também
algumas imagens pertencentes à análise total da tese, cujas quais apresentam
características que retomam, em suas estruturas, a definição da pornografia.
Definir o Funk como gênero musical pornográfico não era a centralidade da
pesquisa iniciada, mas esse enfoque ganhou corpo na medida em que a pornografia usa
a mulher como mote principal e que, em tempos modernos, acostumamo-nos com a
pornografia, ela é legitimada em diferentes gêneros textuais e midiáticos, sempre nos
influenciando pelo discurso do consumo.
Vender diferentes produtos a partir da pornografia e da imagem feminina, porém
com novas estruturas discursivas é uma forma de manter discursos sexistas sobre o
1
Sobre a história do Funk, ver Essinger (2005).
Estas práticas sociais foram e são justificadas e naturalizadas por textos que
organizam sua estrutura léxico-gramatical de forma a criar uma identidade feminina
objetificada, associando a mulher a produtos comestíveis e à venda. 2 Na modernidade
tardia, esta relação de valor de consumo é acelerada pelo consumismo (BAUMAN,
2
A Linguística Sistêmico Funcional- LSF estuda a ligação entre a estrutura dos textos e os discursos que
circulam na mídia. Ver Halliday (2004).
2008). Para Irigaray (1985), as mulheres sempre tiveram um valor social ditado pelo
momento histórico, seja como boa mãe, boa esposa, etc. (IRIGARAY, 1985, p. 170).
Também Neves (2006) afirma que, atualmente, esta comodificação está em todas as
áreas da vida humana. Desde a luta por formação escolar, por melhores condições de
trabalho, até mesmo por mudanças na aparência física, tudo está associado ao lucro
(BAUMAN, 2008).
Para muitos dos pesquisadores sobre o Funk (ARAÚJO, 2006; MEDEIROS,
2006; ESSINGER, 2005; YÚDICE, 2004; HERSCHMANN, 2005; VIANNA, 2003), o
universo funk apresenta questões pertinentes estudos de gênero, em especial o
preconceito contra as mulheres através da linguagem. Em Oliveira (2008), houve a
investigação e discussão sobre questões como os papéis sociais atribuídos às mulheres
nas músicas e nos bailes funk, a posição feminina dentro da comunidade funk e os
sistemas de classificação das mulheres presentes nas músicas, sendo que o conjunto
dessa análise apontou para um discurso sexista no Funk.
Para Vianna (2003), a violência física e o sentimento de superioridade masculina
no Funk são fatores que precisam ser estudados a partir de uma perspectiva cultural,
3
associando esse quadro à situação específica da juventude pobre do Rio de Janeiro.
Para o autor, outra forma de preconceito contra a mulher faz parte da estrutura
organizacional da comunidade funk: as mulheres raramente podem ser MCs (mestres de
cerimônia), uma posição de destaque no baile funk, geralmente assumida por quem
canta as músicas e organiza o andamento do baile. Às mulheres cabe um papel
secundário nesses bailes, sendo constantemente convidadas para dançar (VIANNA,
2003, p.88).
Medeiros (2006, p.87-97), por outro lado, argumenta já haverem mulheres MCs,
e que elas seriam as representantes de um neo-feminismo. Porém, a porcentagem de
mulheres cantoras de Funk é insignificante (OLIVEIRA, 2008; HERSCHMANN,
2005). A própria Medeiros comenta que as mulheres MCs muitas vezes nada têm a ver
com as a imagem que passam em suas apresentações, enquanto interpretam. São
mulheres simples, tímidas e sempre de camadas pobres, geralmente com baixo nível de
escolaridade (MEDEIROS, 2006, p. 97). Ao descreverem os MCs masculinos, por
outro lado, todos os autores e autoras que estudaram o Funk exploraram o lado social e
as questões e dilemas próprios do universo do jovem funkeiro pobre (e.g. VIANNA,
3
Esse autor escreveu vários livros sobre a juventude, alguns voltados para o estudo do Funk.
4
Todos os autores relacionados ao funk usam o substantivo ‘Batidão’ como sinônimo do gênero musical.
Esse termo está relacionado à base musical rápida e às frases musicais repetidas que caracterizam o funk.
Aurélio (2008) sugere, para a motivação sexual do indivíduo. Embora a compra seja
voltada para consumidores masculinos e femininos, as representações de homens e
mulheres nestes textos não são iguais. Só a figura feminina é representada
pornograficamente, sobretudo no sentido de nudez.
A nudez é uma qualidade do pornográfico. Enquanto no erótico a nudez é
opcional, ou parcial, no pornográfico a mesma é essencial. É acompanhada do
fetichismo (LEITE JÚNIOR, 2006) e da exposição de partes recortadas do corpo,
sobretudo as femininas (MORAES; LAPEIZ, 1984), além da explicitude do ato sexual,
uma característica das coreografias do Funk, bem como o fato de ser assumidamente
produzida para a comercialização e para o olhar masculino (LEITE JÚNIOR, 2006,
MORAES; LAPEIZ, 1984).5
Segundo Gerbase (2006, p. 41), o erótico está à mostra e o pornográfico ocupa
um espaço restrito, reservado. Essa seria uma distinção comercial. Atualmente essa
fronteira não existe, pois os textos que promovem o Funk, bem como muitos outros
diferentes textos midiáticos trazem para o público a nudez e a representação do ato
sexual. Isso demonstra que a aceitação do apelo sexual visual mudou, sob a influência
dos meios de comunicação.
Esse ver o erótico e adquiri-lo está no âmbito da pornografia. A nudez, a
fragmentação do corpo feminino, a exposição da genitália (sobretudo a feminina), a
representação do ato sexual e o jogo de sedução, ligados ao proibido, são do campo
pornográfico. Mas a cultura pós-moderna aceita essas novas representações e as
naturaliza. Segundo Leite Júnior (2006, p.12), “a prática da transgressão vem sendo
cada vez mais normalizada pelo mercado”.
Portanto, existe uma transformação do erótico em pornográfico, um aumento da
tolerância visual. O que era obsceno em outros tempos hoje é só erótico e isso é
favorável ao consumo. Ao mostrar mais os corpos e naturalizar a oferta do sexo, cria-se
uma mercadoria. Não é a insinuação (erótico), é o cumprimento da promessa, a nudez e
o ato sexual exposto (pornografia). Nessa reflexão, o sexo é um recurso material para o
comércio, para o consumo. Na pornografia, as pessoas se transformam em objetos
(MORAES; LAPEIZ, 1984, p. 131). Sendo assim:
Ela [a pornografia] oferece o simulacro de um mundo pan-erótico, onde o
sexo está sempre disponível, onde as mulheres são infinitamente dóceis e
5
O fetichismo está ligado à ideia de feitiço, de encantamento. Na pornografia, corresponde à associação
de desejo ardente com certas partes do corpo da mulher, ou certos artigos do vestuário feminino
(STEELE, 1997).
desejosas, onde o sexo se oculta em todo escritório, em toda rua e casa, sexo
sem o prelúdio amoroso e gloriosamente livre de qualquer consequência e
responsabilidade. (STAM, 2000, p. 82)
Duas foram as fontes de pesquisa selecionadas: 119 capas de CDs funk obtidas
entre 2005 e 2010, na internet e nos camelódromos e 25 reportagens do Jornal Folha de
São Paulo Online. É possível observar que as poses fotográficas usadas para falar das
mulheres fruta são as mesmas usadas na maioria das capas dos CDs funk aqui
analisados, ou seja, ênfase nas nádegas femininas. Como parte de um texto multimodal,
a imagem completa a mensagem do discurso desses textos, onde as mulheres fruta e as
funkeiras são, em resumo, descritas como ‘coisas’, sempre de forma irônica ou sensual.6
Muitos outros textos promocionais também apresentam a mesma estrutura de
imagens, organizando a figura feminina para um olhar masculino. A semelhança entre
esses textos multimodais, produzidos em diferentes espaços, suportes e datas, pode ser
observada no quadro abaixo:7
Capas de CDs funk e imagens das reportagens sobre as ‘mulheres fruta’ como textos com
características pornográficas
6
Na tese sobre a comodificação feminina, as ferramentas analíticas foram a Gramática Visual e a teoria
dos atores sociais. Ver Kress e Van Leewven (1996) e Van Leewven (1997).
7
As fontes sobre as reportagens apresentando as mulheres fruta encontram-se nas referências. São do
Jornal Folha de São Paulo. Já as fontes das capas de CDs estão organizadas no anexo 1.
texto imagético para um leitor que olha sempre para o mesmo enfoque: as nádegas
femininas. E esse leitor é idealizado como sendo masculino.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6. REFERÊNCIAS
IRIGARAY, Luce. This Sex Which Is Not One. New York: Cornell University Press,
1985.
KRESS, Gunther.; VAN LEEUWEN, Teo. Reading Images: The Grammar of Visual
Design. London: Routledge. 1996.
LEITE JÚNIOR, Jorge. Das maravilhas e prodígios sexuais - A pornografia "bizarra"
como entretenimento. 1. ed. São Paulo: Annablume/ Fapesp, 2006.
MEDEIROS, Janaína. Funk carioca: crime ou cultura? O som dá medo e prazer. 1ª. ed.
São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2006.
MONETTI, T. Capa da "Playboy", Garota-Melancia anuncia turnê pela Europa. Folha
Online Ilustrada. São Paulo, 03 de junho de 2008 - 21h33. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u408508.shtml>. Acesso em: 11 de
dez. de 2009.
MORAES, Eliane Robert .; LAPEIZ, Sandra Maria. O que é pornografia. São Paulo:
Ed. Brasiliense, 1984.
NEVES, Bárbara M. A Nova Revolução Industrial: As pessoas-máquinas de David Brin
e seu "Piecework". In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 7, 2006,
Florianópolis, UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em
http://www.fazendogenero7.ufsc.br/artigos/B/Barbara_Maia_das_Neves_36.pdf.
Acesso em: 26 de junho de 2010.
OLIVEIRA, Edinéia. A expressão da identidade feminina no gênero música funk:
estudo de caso em letras de canções da fase erótica do movimento funk. Tese de
mestrado. UNISUL, 2008. Disponível em:
http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/cd/Port/45.pdf Acesso em: 01 jan.
2009.
PRADO, Miguel Arcanjo. Mulher Melancia pára Ceagesp em SP. Jornal Folha
Online. 11 de abril de 2008. Disponível em
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u391267.shtml. Acesso em: 11 de
dez. de 2009.
SANT´ANNA, Affonso Romano de. Canibalismo Amoroso: o desejo e a interdição
em nossa cultura através da poesia. 4ª ed. RJ: Rocco, 1994.
STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: editora
ática, 2000.
STEARNS, Peter N. História das relações de gênero. São Paulo: Contexto, 2007.
INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma discussão inicial que
realizamos na pesquisa ainda em curso intitulada “Campina Grande, escolarização e
presença masculina no magistério infantil: experiências modernas às avessas?”1. Nesta
investigação estudamos a relação entre o avanço da escolarização e a diminuição da
presença masculina no magistério infantil, questionando em que medida esses aspectos
se relacionam na constituição de experiências modernizadoras do espaço escolar durante
os primeiros anos republicanos em Campina Grande-Pb. Trata-se também de uma
discussão sobre a instituição de um novo modelo escolar – o Grupo Escolar - e os
movimentos que deram visibilidade ao mesmo.
A escolarização no contexto histórico que estudamos compreende um processo
de incorporação de novos saberes, discursos e práticas que alteraram o panorama geral
das atividades educativas, como a passagem das cadeiras isoladas para os grupos
escolares, da inovação dos métodos educativos que deixaram gradativamente de serem
instrucionais para se tornarem formativos, da criação das seriações que dividiram os
alunos e alunas por estágio de desenvolvimento, de uma maior especialização dos
professores e professoras, em suma, das transformações que racionalizaram o ensino,
tornando-o afeito aos ideais burgueses e republicanos.
1
A referida pesquisa está vinculada ao Programa de Pós-graduação em História e Espaços da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob orientação do Prof. Dr. Durval Muniz de Albuquerque
Júnior.
2
Constituição Federal de 1891, Capítulo IV (apud NISKIER, 1989, p. 68)
3
O grupo escolar é um agrupamento, uma reunião de um múltiplo que põe em ação e unifica sob o
mesmo espaço arquitetônico séries, classes, controles, novos sujeitos de uma outra organização
educacional sob um projeto de modernização do ensino e da própria cidade. (CURY, Carlos Roberto.
Prefácio. In.: PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da era das cadeiras isoladas à era dos grupos
escolares na Paraíba. Campinas/SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade São Francisco, 2002,
p. xi).
que significaria a instituição desse modelo escolar presente no relatório do Diretor Geral
da instrução pública enviado para o Presidente do Estado:
4
Segundo Pinheiro (2002, p. 8-9), o termo cadeira está historicamente vinculado ao ensino superior no
Brasil, no entanto durante algum tempo foi utilizado para designar disciplinas ou “matérias” do nível de
ensino secundário, não se restringindo apenas a estas conotações também designara cadeiras de ensino
primário ou elementar. O termo cadeira isolada refere-se, então, a escola isolada, marcada pela presença
do mestre-escola em um espaço menos complexo do que o apresentado pelos grupos escolares.
5
O primeiro grupo escolar inaugurado no Estado foi o Dr. Thomaz Mindello, em João Pessoa,
19/07/1916, (idem, p. 140).
6
Entendemos o conceito de espaço escolar como um espaço disciplinar a partir FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. 34 Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.,
conforme explicitaremos ao longo do texto.
7
A mundialização da economia, com o avanço do modelo capitalista-industrial, dos hábitos e costumes
burgueses atrelados às práticas higienistas nas cidades. Ver RAGO, Margareth Luzia. Do cabaré ao lar:
a utopia da cidade disciplinar. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
8
A chegada do trem a Campina Grande em 1907 foi relevante no processo de integração da cidade com
outros centros urbanos do país e do mundo. Ver ARANHA, 2003, p. 79-132.
9
Ver FREYRE, Gilberto. Sobrados e mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
do urbano. 8. ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 1990.; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval M. De Fogo
Morto: mudança social e crise dos padrões tradicionais de masculinidade no Nordeste no começo do
século XX. História Revista (UFG), Goiânia, v. 10, n. 1, p. 153-181, 2005.
10
De acordo com o filosofo Michel Foucault o século XX foi marcado pelas preocupações acerca do
espaço devido as transformações tecnológicas que permitiram uma mudança estrutural nas relações
humanas, diminuindo distâncias, reduzindo o tempo das ações no espaço, alterando as percepções
espaciais, que antes eram marcadas pela localização, e depois passaram a ser compreendidas aos poucos
como relações de posicionamentos (FOUCAULT, 2001, p. 411-422).
11
Os mestres-escola, em sua maioria homens, eram professores que se dedicavam ao ensino de maneira
autônoma, pois atuavam sob precário controle do Estado, e foram agentes fundamentais na produção do
conhecimento instrucional até aproximadamente a passagem do século XIX para o XX, imprimindo uma
prática educativa artesanal aprendida com o exemplo dos seus mestres, que contrastava com “o trabalho
pedagógico dos professores nos grupos escolares que perdeu, gradualmente, seu caráter artesanal, para
incorporar o espírito do industrialismo, mesmo que a prática pedagógica tenha conservado certa nostalgia
da formação artesanal.” (PINHEIRO, 2002, p. 9)
12
Para Albuquerque Júnior (2005a, p. 258) a “instrução”, ou ensino que pensava a criança como um
armazém onde se acumulava a maior quantidade possível de conhecimentos, estava baseada apenas nas
atividades de ler, escrever e contar. Era um ensino voltado para desenvolver a capacidade de
memorização, o aprendizado de técnicas mnemônicas que permitisse guardar uma gama de fatos, datas,
nomes, detalhes, fórmulas, sem que estas fossem conectadas entre si por qualquer tipo de explicação.
13
O periódico era editado pelo Instituto Pedagógico e seu conteúdo trazia discussões sobre questões
gerais de âmbito nacional e local, mas também apresentava sessões exclusivamente às noticias escolares
da cidade.
14
Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano. Artes de Fazer 1. Petrópolis, 2008, p. 199-217.
15
A idéia de “formação” nasce a partir de uma visão historicista que pensa a identidade como construção
que se dá no tempo, como aperfeiçoamento progressivo do corpo e da mente humana, de suas habilidades
e de seus valores e costumes (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2005, p. 261).
16
O funcionamento das cadeiras isoladas nas residências dos professores acarretava problemas de ordem
administrativa quanto de ordem pedagógica. Em relação a este último aspecto, alguns gestores da
instrução pública consideravam “promiscua” a convivência entre os discípulos e a família do professor,
reunidos na mesma casa (Pinheiro, 2002, p. 73).
17
A Pedagogia cientifica e experimental surgem na segunda metade do século XIX ao se distanciarem da
filosofia e tornarem-se independentes da política para reconstruir o saber pedagógico em contato com as
ciências positivas, que tratam do homem (a fisiologia, a antropologia, a psicologia) e da sociedade (a
sociologia, a etnologia, a criminologia), renovando seu método e seu conteúdo pela adoção do paradigma
científico, indutivo e experimental, articulado em conhecimentos baseados em “fatos”, é sobretudo o
positivismo que delineia o modelo de ciência ao qual a pedagogia deve adequar-se. (CAMBI, 1999, p.
498-499)
18
Tanto o Estado quanto os municípios argumentavam que por conta das constantes secas era impossível
investir em instalações escolares: “flagello das secas que frequentemente assolam nosso territorio e que
estão fora do alcance da influencia exclusiva” Parahyba do Norte, Estado da, 1909, p. 27 (apud
PINHEIRO, 2002, p. 69).
Com isso, as iniciativas particulares foram mais intensas que aquelas realizadas pelo
poder público19.
Os homens e mulheres, meninos e meninas, numa sociedade que pretendia-se
moderna, deveriam ser educados, tinham que ser escolarizados, formados por
especialistas em ensino.
Estes especialistas, diferentes dos que atuavam como mestres-escola, deveriam
abrir mão do improviso, da intuição, dos exemplos dos velhos mestres, dos espelhos da
tradição na figura de uma educação centrada nos valores patriarcais, para se colocarem a
disposição da formação, do aprendizado, dos conhecimentos da pedagogia, dos seus
métodos mais eficazes e condizente com um mundo em transformação, muitas vezes,
simbolicamente, transfigurados na figura feminina20, na sua suposta21 flexibilidade e
inata capacidade de gestar o mundo. Daí a importância dos institutos de educação, das
escolas normais em formarem especialistas em ensino, pessoas dotadas da capacidade
de entender que a educação escolar deveria voltar-se para a visão integral da formação
humana e não mais a diluição do binômio casa-escola em um só elemento, em que a
casa representaria o espaço privado, exercendo um peso maior na educação das pessoas
do que a escola.
Essa passagem da profissionalização da carreira docente ocorreu concomitante a
valorização do trabalho, do investimento na experimentação da cidade com todas suas
possibilidades de opções profissionais22, uma vez que o trabalho escravo fora abolido
havia poucas décadas, lutava-se para incorporar outra visão acerca deste que estivesse
associada a liberdade, a emancipação das pessoas, e não mais as formas de
aprisionamento dos seus corpos e espíritos.
Se por um lado essa mutação no campo das profissões levara a exigir um sujeito
mais apto ao desenvolvimento de atividades como a indústria, que começara a ganhar
força no país, por outro mobilizava também a presença das mulheres nesse processo.
19
As iniciativas mais significativas em oferta de ensino para a população em Campina Grande partiram
do setor privado, em 1919 foi criado Instituto Pedagógico (atual Colégio Alfredo Dantas) e em 1931 o
Colégio Diocesano Pio XI e o Colégio Imaculada Conceição – DAMAS.
20
As alegorias femininas foram recorrentes durante os anos iniciais da República no Brasil, isso tinha
uma clara associação pedagógica do uso das imagens como símbolos do sistema político republicano que
buscava se legitimar. Ver CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da
República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
21
Procuramos neste texto colocar em suspeita todas as formas de distinção naturalizada do
comportamento que distinguem homens e mulheres, a fim de inscrever nossos escritos nos estudos pós-
estruturalistas.
22
Ver SEVCENKO, 1998, p. 7-48.
Instrucção Publica
A base do governo representativo é a instrucção e sobre tudo a popular. Sem
Ella as instituições nem se comprehendem nem se estimam. Cada forma
política vive de uma série de idéas, que se devem tornar praticas e communs
para não haver lucta entre os que obedecem e os que executam. Em quanto
systema se não naturalisar no paiz a que é applicado, e os povos lhe não
24. Gendramento é uma forma aportuguesada do termo gender que foi cunhado entre as estudiosos/as de
gênero anglo-saxões para se referirem a determinado espaço/papel social marcado por características
atribuídas aos homens ou as mulheres.
25. As mulheres só passaram a ter direito a votar no Brasil a partir da Constituição de 1934, que
estabelecia também o voto secreto e reduzia a idade mínima do eleitor de 21 para 18 anos. A participação
feminina no mundo do trabalho reproduzia o “lugar” social quase sempre da mãe/chefe do lar, logo a
ocupação que melhor se afeiçoava a ela era o magistério infantil.
26. O primeiro Grupo Escolar de Campina Grande, o Solon de Lucena, foi inaugurado em 1924 apesar de
já existir nesta cidade cadeiras de ensino funcionando em instituições públicas, algumas nas chamadas
escolas rudimentares, e em instituições particulares (Cf: PINHEIRO, 2002).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
28
Em 1924 foi criado o Grupo Escolar Solon de Lucena, localizado no Centro da cidade, em 1937 o
Grupo Escolar Clementino Procópio, localizado no bairro São José.
ALMEIDA, Elpídio de. História de Campina Grande. João Pessoa: UFPB, 1962.
ALMEIDA, Jane Soares de. Mulher e educação: a paixão pelo possível. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1998.
___________. Outros Espaços. In: Ditos e Escritos. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001, p. 411-422.
LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In.: DEL PRIORI, Mary (org.).
História das Mulheres no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 1997.
PINHEIRO, Antonio Carlos Ferreira. Da Era das cadeiras isoladas à Era dos Grupos
Escolares na Paraíba. Campinas, SP: Autores Associados, São Paulo: Universidade
São Francisco, 2002.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Porto Alegre: Educação
e Realidade, 16(2): 5-22, jul/dez. 1990.
1
As revistas circularam entre os ricos de Fortaleza em meados dos anos 1920, com linhas editoriais
convergentes em alguns pontos. Em geral, divulgavam pequenas notícias locais e traduzidas sobre
assuntos variados, um pouco de literatura, opiniões, aniversários e viagens de pessoas importantes,
propagandas, discussões sobre a cidade, notas com concursos variados, que julgavam desde a beleza das
mulheres até o melhor jornalista ou o melhor poeta cearense. A revista Ceará Illustrado, criada em 1925 e
vendida a 1$000, apresentava-se como semanário independente, mais literário que propagandístico. Ba-
Ta-Clan foi fundada em 1926 – começou custando $400, mas chegou a 1$000 – voltada ao público
Todas as revistas e o jornal tinham suas redações dirigidas por homens: Aldo
Prado em A Jandaia, ao lado do redator-chefe Gastão Justa; Demócrito Rocha, que
dirigia Ceará Illustrado (e posteriormente fundou o jornal O Povo), com Tancredo
Moraes como redator-chefe; e Ba-Ta-Clan, cujo diretor e secretário assinavam com os
pseudônimos de Mister Butterfly e Dom Casmurro, respectivamente. Michelle Perrot
assinalava o fato de que quase a totalidade das representações de mulheres são criações
masculinas (Perrot, 1992, p. 17).
Focalizamos a cidade de Fortaleza nos anos 1920, em uma reflexão que parte
de dois eixos. Primeiramente, os discursos encontrados nas imprensa foram, em sua
maioria, produzidos por homens sobre a beleza e/ou feiúra das mulheres – o que já
fornece uma série de elementos para pensar em jogos de poder. Em segundo lugar,
deseja-se mostrar algumas repercussões da proliferação desses discursos, tanto sobre os
corpos femininos quanto os masculinos.
Tanto a beleza como a fealdade não são pensadas aqui como essências não-
históricas ou conceitos absolutos, mas situadas no tempo, culturalmente complexas e
não necessariamente opostas, além permeadas por diversas zonas de coação e liberdade.
Nesses termos, não abordamos beleza e feiúra de forma dicotômica, mas
compreendendo que essas noções são sempre provisórias, com fronteiras fluidas e
incessantemente remodeladas. Há mais paradoxos do que soluções. Nesse sentido, o
corpo é considerado “um processo. Resultado provisório das convergências entre
técnica e sociedade, sentimentos e objetos, ele pertence menos à natureza do que à
história” (Sant’Anna, 1995, p.12).
A noção de gênero também colabora na tarefa de desnaturalizar o corpo e
discuti-lo do ponto de vista histórico, sempre em relação com o outro e em meio a
tensões, concessões, conflitos. A partir dos estudos de gênero, é possível pensar nas
feminilidades e masculinidades descoladas dos corpos de mulheres e homens. Nas
palavras de Swain,
feminino, publicada aos sábados e de propriedade da Empreza Cearense de Annuncios, com uma proposta
quase exclusiva de propagandas. A Jandaia, fundada em 1924, revista de arte, literatura e atualidades, de
caráter mais frívolo, e publicada semanalmente. Seu valor de capa era de $500 a 1$500. Por último, o
jornal O Povo foi fundado em janeiro de 1928 por Demócrito Rocha, com uma linha independente e
contra os interesses das oligarquias.
A natureza tem desses caprichos: dar tudo a alguns e negar tudo a outros.
E foi assim para com ella – D. Feia: não lhe deu um só encanto.
Tem-nos ao corpo, feio e magro, aos cabellos, ralos e poucos, aos pés,
grandes e largos, ao nariz, longo e recurvo, aos olhos baços e fundos, á bocca,
rasgada e enorme ás faces, descoradas e murchas.
E’ feia; toda ella é feia, da cabeça aos pés, e a sua fealdade é tanto maior,
quando, por um milagre de alegria, ri: o seu riso é bem mais um rictus
amargurado, uma contracção angustiada, revelando-nos toda a agonia
immensa do seu immenso soffrimento.
A intelligencia, que possue brilhante, não lhe permitte desconhecer a sua
desventura e envergonha se de tanta infelicidade.
Retrae-se, cala-se, esquece-se, ou procura esquecer-se, para fugir á dôr que,
de continuo, a aguilhôa, sempre que, á sua vista, casquinam risotas perversas
ou sussurram cochichos malevolos.
E’ uma grande desgraçada.
As crianças, de longe, a apontam, receiosas, como que vendo no seu vulto o
de uma bruxa das lendas, esquivando-se-lhe aos carinhos que, tantos ! quizera
fazer lhes, na expansão do instincto maternal, já agora a esterilizar-se-lhe no
intimo.
Pois se ninguem a pode ver, ninguem a poderá, jamais, amar!...
E’ tão feia ... 2
2
Fortaleza, Ba- Ta- Clan, edição especial nº 5 de 1926.
de Siry “devido talvez a magreza do corpo e a finura dos membros”. Rebelde, não tinha
seu corpo gerido pelas normas. Defendia-se ou revidava a provocação dos moleques da
rua respondendo em voz alta, com “um vocabulario, assás longo, de termos indecentes
que fazem temer de pudor até as próprias pedras, como replica promta que ella sempre
tem aos que a insultam”3.
Na imprensa, a ideia corrente da feiúra como contra-exemplo utilizava
basicamente personagens femininas. Para elas, não era aceitável não ter a aparência ou
não realizar investimentos no corpo para aparecer na cidade, que despontava
remodelada (ou apenas com ambições de renovação) no alvorecer do século XX. Como
postulou uma frase de rodapé encontrada em A Jandaia, “Não há mulheres feias; há só
mulheres que não sabem como hão de parecer bonitas. – BERRYER”4. Mas por quê
gostariam de parecer belas? A frase de Anatole France, em outro rodapé da revista,
forneceria uma chave para pensar sobre o cultivo das aparências das mulheres. “Para
amar, os homens precisam de formas e de côres; exigem imagens. As mulheres só
exigem sensações. Ellas amam melhor do que nós: são cegas”5. A mulher precisaria do
corpo para a conquista e nele estaria seu destino.
O corpo feminino estava em evidência nas propagandas, sempre permeadas
pelos interesses de mercado e flutuações da moda. No caso dos produtos de beleza e
remédios, a figura ideal da mulher também era construída a partir do olhar médico e
científico. “A senhorinha deseja ficar bella?”6, instiga o anúncio. “Use a pasta. Use o
sabonete. Use o pó de arroz. Use a agua de colonia. Use as loções e extratos. Use a
brilhantina. Use o creme cutis. DULCE”. A chamada para as Pilulas de Foster chama a
atenção com as frases: “Coitadinha! Parece uma velha!”, para em seguida elencar os
“malefícios de um sangue envenenado” associados à ideia de velhice7. Na mesma linha,
tornando a velhice algo desconfortável, a Pomada Onken fala diretamente com a leitora:
“QUE IDADE TEM A SENHORA?”8. Destinado às mulheres, o texto recomenda:
“Escolhei a vossa idade antes de responder. E isso consiste numa questão de apresentar
excellente pelle que representa mocidade”. O rosto, os braços, o colo, as mãos e o
pescoço devem ser massageados com o produto, que os livraria das ameaças à aparência
jovial, como “sardas, rugas, espinhas, por mais rebeldes que sejam”. A pomada é
3
Fortaleza, O Povo, 18 de janeiro de 1928.
4
Fortaleza, A Jandaia, 2 de agosto de 1925.
5
Fortaleza, A Jandaia, 17 de janeiro de 1925.
6
Fortaleza, O Povo, 24 de fevereiro de 1928.
7
Fortaleza, O Nordeste, 25 de setembro de 1928.
8
Fortaleza, O Nordeste, 5 de julho de 1928.
tanto pelas características físicas, postas em segundo plano. A partir desta imagem,
percebe-se que olhos vivos, mãos delicadas ou gestos graciosos não são mais suficientes
para definir a beleza – feminina, vale salientar. Pouco a pouco, as propagandas, os
concursos, as fotografias e o cinema multiplicam, universalizam, uniformizam e
possibilitam o consumo de imagens femininas, enquanto dessacraliza o corpo da mulher
e reitera os padrões.
Não por acaso, todos exemplos até aqui mostrados referem-se às mulheres. A
leitura dos textos e imagens encontrados nas fontes pesquisadas, dos anos 1920,
mostram o quanto o corpo feminino era colocado no centro das atenções, sendo
exaustivamente observado, julgado, redefinido e disciplinado de várias formas – embora
passasse a desfrutar também de liberdades inéditas até então, como roupas mais leves,
passeios ao ar livre, banhos de mar. Virtudes e desvirtudes femininas também passavam
pelos corpos e pelas proximidades e distâncias que eles guardavam das noções de beleza
e fealdade. Reconhecemos o corpo como variável historicamente – e também são
variáveis os sentidos a ele conferidos em diferentes culturas, espaços e temporalidades.
Assim, o corpo feminino – ou melhor, determinadas regiões dele – e o gestual
eram submetidos a um conjunto de normas e ao julgamento dos editores e leitores nos
diversos concursos promovidos pelas revistas ilustradas que circulavam entre os bem
nascidos de Fortaleza. Os atributos de beleza e, por conseguinte, o novo perfil de
mulher, eram avaliados em competições como “Os mais lindos olhos”, “A mais bela
cabeleira à la garçonne”, “A mais bela pianista”, “A mais bela freqüentadora do Passeio
Público”, “A mais bela freqüentadora do cine Moderno”. Enquanto isso, para os
homens, os concursos eram outros: “O príncipe dos poetas cearenses” (4 de janeiro de
1925, n. 26), “Qual o mais brilhante jornalista cearense” ou “Qual o maior médico
cearense” (ambos em 18 de janeiro de 1925, n, 28).
As legendas das fotos masculinas exaltam a inteligência, os cargos políticos, a
ocupação de chefias e administrações de escolas ou da polícia, o exercício da medicina,
da engenharia e do direito, o talento como escritor ou musicista. A discrição e a
moderação do ponto de vista da expressão, do vestuário e do próprio enquadramento da
imagem são sublinhados. O que prevalece é o homem sério, chefe de família,
circunspecto e racional. Nas mulheres, é a vez das formas arredondadas. Não apenas no
desenho do corpo, mas no sorriso e nos cabelos – tudo são curvas. Moles e delicados, os
corpos femininos aparecem na maioria das vezes sentados ou deitados, transmitindo a
ideia de uma certa imobilidade. Eloquentes, as imagens marcam o papel social da
9
No original: “évoquent les manières dont le corps est construit et organisé à l’interieur d’un système qui
ne cesse pas de le diviser en apparence et essence”.
10
Cf. Perrot, 1998 e Sant’Anna, 1994.
11
No original: “La beauté accentue la féminité, et de plus la première est perçue comme la stratégie
spécifique de la seconde. Le trop bel homme perd son temps et sa virilité s’il sait qu’il est beau. La
femme laide perd sa féminité”.
12
“Para que adviesse a idolatria do belo sexo, foi preciso – condição necessária mas, por certo, não
suficiente – que surgisse a divisão social entre classes ricas e classes pobres, classes nobres e classes
laboriosas, tendo como correlato uma categoria de mulheres isentas de trabalho. Essas novas condições
sociais permitiram relacionar mais estreitamente feminidade e práticas de beleza: nas longas horas de
ociosidade de que dispõem as mulheres das classes superiores, elas passam a se dedicar a maquiar-se,
enfeitar-se, fazer-se belas para se distrair e agradar ao marido. (...) A cultura do belo sexo exigiu a
desigualdade social, o luxo e o desprezo pelo trabalho produtivo das leisured classes” (Lipovetsky, 2000,
p. 107-8).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1
CASTILHO, Kathia; GALVÃO, Diana (Org.); LIMA, Vera. A moda do corpo o corpo da moda. São
Paulo: Esfera, 2002.
Um dos prováveis motivos para esta lenta adoção de novidades seria o lento
intercâmbio (tomando o referencial de velocidade de informação contemporâneo) entre
os diferentes povos europeus. Não que não existisse a troca de referências estética entre
diferentes nações, mas estas influências ocorriam proporcionais ao contato que os países
mantinham uns com os outros, decorrentes de guerras, dominação territorial ou
negociações comerciais.
Já para o sociólogo Norbet Elias, desde a idade média, a moda é uma
prerrogativa das elites (nobreza), onde estas se utilizavam de modus operandi
excêntricos para se distanciar das classes por ela julgadas subalternas, pois:
sua vez, também seriam copiados e, tão logo, seria necessário inventar novos padrões.
Esta incessante procura por destinção seria a causa da moda.
Em contrapartida Lipovetsky assinala que a distinção das classes sociais,
que Elias coloca como origem, é senão uma das funções sociais da moda:
2
PIRES, Dorotéia Baduy (Org.); BARRETO, Suzana. Design de Moda: olhares diversos. Barueri.
Estação das Letras e Cores, 2008.
Isto é, o corpo vive, o corpo fala, o corpo sente, e como consequência ele
adquiriu dupla função, em que pode ser ator e cenário histórico.
“O corpo é um grande gerador de linguagens” (CASTILHO, 2002, p. 63), e “a
moda, ou melhor, o conjunto de nossos trajes, adornos, […], etc., sobrepõem-se a ao
corpo como suporte ideal da moda no qual esta constrói e consolida novos desejos e
crenças, atualizando nosso sistema de escritura e valores sociais” (CASTILHO, 2002,
p.63). Situamos desta maneira, a moda como uma comunicação não verbal, que utiliza o
corpo como aporte de seus signos e significados que se alteram conforme o lugar
histórico:
3
O mesmo que “dândi”, indivíduo que se veste e age com requinte e elegância.
4
Mente, espírito, alma, pensamento, essência humana, idéias (tradução nossa).
5
Anos loucos (tradução nossa).
mesmos direitos que os homens, pois como em Castilho, “o corpo enquanto objeto de
significação e de comunicação constrói significados, na forma como se mostra e é
mostrado, em determinados contextos” (CASTILHO, 2002, p.63).
Cabelos curtos, seios achatados e quadris pequenos, tudo isso para se parecerem
“comme un garçon6”. Entretanto, as pernas alongadas à mostra continham reflexos de
feminilidade, tornando o garçon em “garçonne7” (Figura 2).
Assim temos que cada um dos empréstimos por parte das garçonnes do
vestuário dos homens, portam a marca da ambivalência do masculino-feminino. Ela
fuma, mas utiliza uma elegante cigarreira, usa calças, mas são calças pijamas, amplas,
fluídas e sensuais. Seus vestidos ganham linhas simples, retas, masculinas, mas são
feitos de tecidos leves e justos ao corpo, e estas adaptações ao “costume” masculino
tornaram-se o ideal de beleza feminina desta temporalidade, conforme descrito por
Victor Margueritte em trechos de seu romance La Garçonne, que foi considerado um
grande difusor da moda de nome homônimo:
6
“como um rapaz” (tradução nossa).
7
O Vocábulo “Garçonne”, com acepção de mulher emancipada e independente, não existia na Língua
Francesa até a década de 1920. O feminino de garçon (rapaz) é fille (moça, menina). Portanto o termo
garçonne é uma composição do prefixo “garçon”+ “e” (letra que indica o gênero feminino no idioma
francês).
Coiffée d’un béret de cuir rouge, le cou nu dans le manteau dégrafe, elle
conduisait avec une décision attentive, si joliment garçonnière que Régis ne
put s’empêcher, tout maussade qu’il fût, de l’admirer. Oui, tout de même, il y
avait là une nouvelle réalisation de grâce féminine! Un être encore singulier,
quoique naissant par milliers d’exemplaires, et avec lequel il fallait
dorénavant compter, comme avec un égal… Constatation qui, loin de le
satisfaire, l’ancrait dans sa répugnance à tout ce qu’il englobait dans ce mot
pour lui malsonnant: “féminisme” (MARGUERITTE, 1922, p.254)8.
Com isto, temos que garçonne, foi mais que uma moda que revolucionou as
aparências, ela representou um novo tipo de mulher, uma mulher com liberdade.
Quando Margueritte retrata Monique Lebier como a heroína de seu romance, ele mostra
não só uma mulher emancipada legalmente, mas uma mulher emancipada socialmente,
pois ela fuma, frequenta cafés, dança jazz, se droga e experimenta o amor de vários
homens, assim como o de outras mulheres.
Na década de 1920, o gênero feminino percebeu-se intelectual e ativamente
capaz em relação ao gênero masculino. Em resultado da 1ª Guerra Mundial as mulheres,
no ocidente, pela primeira vez encararam o mercado de trabalho de modo maciço, e esta
experiência assalariada lhes deu o gosto da independência.
A nova silhueta tubular e não ajustada à sinuosidade do corpo feminino (tão
distinta da do século anterior) expressava o desejo em obter os mesmos “poderes” do
sexo masculino, porém sem perder a feminilidade. Conforme Yapp, “o design dos anos
20 era atrevido, extravagante, revolucionário e em sua maioria de uma extraordinária
beleza” (1998, p.222).
Vale ainda, ressalvar que, no início dos anos loucos, algumas senhoras resistiram
às mudanças de comportamento. Submersas em valores machistas e conservadores,
observaram os novos costumes e atitudes das mulheres mais jovens como subversão,
mantendo o uso dos espartilhos (figura 3) e assim expressando seus sentimentos de
censura.
8
Com um gorro de couro vermelho na cabeça, o pescoço nu, no manto desbotado, ela guiava o carro com
uma decisão atenta, tão “garçonnière” que Régis não pode deixar, por mais casmurro que estivesse, de
admirá-la. Sim, sem dúvida alguma ele tinha ali uma nova realização da graça feminina! Um ser ainda
singular, embora nascendo por milhares de exemplares e com o qual, doravante, era preciso contar como
igual… Constatação, afinal, que em vez de o satisfazer, o aferrava à sua repugnância por tudo o que ele
englobava nesta palavra para ele malsoante: “feminismo” (MARGUERITTE, 1922, p.254).
Num primeiro momento, se vestir à la garçonne foi tido como uma atitude
perturbadora, pois uma moda, no instante em que se instaura, é vista como uma ruptura
com as normas aceitas até então, para mais a frente vir a se tornar o padrão. No entanto,
apesar da resistência inicial, com o passar do tempo as mudanças foram sendo
consentidas pela sociedade, e mais mulheres aderiram aos hábitos de vestir do estilo
“garçonne” em razão das novas tarefas cotidianas.
O grande desenvolvimento dos meios de comunicação (rádio, telégrafo, telefone
e cinema) e de transporte (aviões, carros e comboios) acelerou a rotina de todos, dando
início aos tempos modernos. Essa agitação teve reflexos diretos no universo feminino,
em que a figura da fêmea inerte que só fica em sua residência, nesta temporalidade,
tornou-se uma imagem ultrapassada.
A prática de esportes, o trabalho, a luta por direitos, a liberação sexual, as idas
aos salões de dança e a formação acadêmica, fizeram necessária a liberação do
incômodo espartilho. O contorno tubular dos corpos era resultante das novas
necessidades femininas. O corpo da mulher tinha neste momento que ser ágil, forte,
rápido e travesso. A inércia ficara para trás, do mesmo modo que a vida pacata dos
tempos anteriores.
Assim sendo, pretendemos com este artigo estabelecer que “o corpo, é antes de
tudo, um corpo imaginário, tudo no corpo se desenvolve a partir da imagem que uma
cultura faz dele” (CASTILHO, 2002, p. 66), e que ele é alterado por meio da moda, a
roupa permite reelaborar novos traços e novas linhas corpóreas, mas as evoluções do
corpo, em resultado das dietas de restrição ou abundância alimentar, assim como novas
práticas cotidianas, (re)configuram a moda.
“Pensar o corpo, portanto, significa confrontar-se com um sujeito/objeto, […]
consideramos o corpo como alguma coisa que somos e possuímos. Ou melhor, é o único
caso que tratamos de um ser e haver não alusivos, mas sim conjuntos” (CASTILHO,
2002, p.64). Entendemos, destarte, que a relação estabelecida entre corpo e moda é de
troca e não de sequência linear unilateral.
Portanto, este recorte histórico e geográfico (Paris na década de 1920)
proporcionou a esta comunicação interrogar historicamente as relações de causa e
consequência entre corpo e moda, e situar o corpo como agente e cenário histórico, e,
deste modo, igualmente proporcionar que rumemos a futuros estudos, nos quais
questionaremos os usos destas relações no século XXI, que pela lógica tendem a ser
mais conturbadas ainda.
Referências Bibliográficas
BARD, Christine. Les Garçonnes: Modes et fantasmes des Années folles. Paris:
Flammarion, 1998.
PIRES, Dorotéia Baduy (Org.). Design de Moda: olhares diversos. Barueri. Estação
das Letras e Cores, 2008.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: Uma história dos costumes. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1994.
YAPP, Nick. 1920’s: Decades of the 20th century. Hagen: KÖNEMANN, 1998.
MOREIRA, Rosemeri
(Dra. História - Unicentro)
1
Sobre a construção do sistema sexual dimórfico na Biologia e na Medicina Ver LAQUEUR, 2001.
2
As instituições disciplinares e suas respectivas estruturas são construídas a partir do século XVIII quando os
suplícios dão lugar ao encarceramento. O corpo, sujeito do poder, transforma-se em objeto de vigilância dos
organismos disciplinares que assegurariam “a ação da sociedade sobre cada indivíduo”, e dentre eles, todos os
tipos de milícias (FOUCAULT, 1987, p. 81).
A experiência da guerra total, inaugurada no século XX, trouxe em seu bojo a erosão
dessa composição de masculinidade vinculada à potência viril e ensaiou a presença de corpos
de mulheres em atividades além das funções próprias às representações do feminino.
Mulheres passaram a assumir “papéis proibidos como a militarização” (CAPDEVILA, 2005,
p. 87), atuando no campo de batalha da guerra propriamente dita, na resistência, nas
guerrilhas (WOLFF, 2007) e, como já dito, nas forças policiais dos estados nacionais.
Levando em conta o poder simbólico de nomear alguém ou algo, tornando-o dizível e
oficial3, questiono como o interdito à violência, presente nas representações sobre o corpo das
mulheres, é amenizado ou nuançado a ponto de permitir a existência de um corpo
militar/policial feminino? Como o indizível se torna dizível?
Refletindo sobre o uso coletivo da violência, as guerras, combates e batalhas,
corriqueiramente representadas como espaços de homens, contaram, em diversos períodos
históricos e lugares, com a presença de mulheres, de crianças, de famílias e clãs em geral. Nos
períodos precedentes à concepção de guerra total, própria do séc. XX4, as vivandeiras,
cantineiras, lavadeiras, enfermeiras, surgiennes; as transportadoras do butim, dos
mantimentos, dos feridos e das armadilhas; as prostitutas, e também as combatentes, faziam
parte do cotidiano dos enfrentamentos bélicos (CAIRE, 2002. p.15-35).
O processo de profissionalização dos exércitos, ensejado pelos estados absolutistas
europeus, apesar de inúmeras tentativas não conseguiu distanciar as mulheres dos espaços de
conflito e confinar o soldado num mundo exclusivamente de homens (CAIRE, 2002, p. 17). A
profissionalização dos exércitos, atingida nos séculos XIX e XX, se definiu, em larga medida,
pela separação dicotômica entre família/civis versus combatente/militares. Entretanto, longe
de isolar-se das mulheres e dos “civis”, a concepção de guerra total, desde que se tornou
realidade, e até os dias atuais, diluiu o espaço do front, antes tido como um local
geograficamente delimitado e dissolveu a noção de civis e militares na concepção de inimigo
a ser aniquilado. Paradoxalmente ao grau de profissionalização, atingido pelas Forças
Armadas, em que a dualidade virilidade/feminilidade é deveras reforçada, as mulheres
participaram em massa dos conflitos do século XX.
3
O poder simbólico “é um poder de fazer coisas com palavras” (BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo:
Brasiliense, 1990. p. 167).
4
Características dos conflitos do século XX, guerras totais são aquelas em que a mortalidade em massa
inaugurada pela possibilidade técnica se dá paradoxalmente, em nome da vida e da sobrevivência da população
nacional. Essa concepção de inimigo que necessita ser exterminado enseja o desaparecimento da fronteira entre
combatentes e civis; a noção de guerra contínua; e a percepção da fragilidade do corpo humano (AUDOIN-
ROUZEAU, 2008, p. 365-416).
vários exércitos beligerantes criou um desconforto às delimitações usuais do gênero, uma vez,
que não se pode negar o deslocamento de um “feminino” de armas em punho7.
As percepções sobre “ir” e “ficar”, “casa” e “rua”, relacionadas à instituição da guerra e
à ação na esfera pública, sustentam a ação mítica de proteção por parte dos homens, o que não
corresponde à história das guerras propriamente ditas, e nem à participação histórica de
homens e mulheres, seguindo a estreita delimitação público/privado.
Além de pretender reafirmar a presença histórica de mulheres, em diversas situações de
combate - na guerra e na “guerra” da rua -, o exposto acima tem a intenção de apontar o
silenciamento, a negação, ou a ênfase na “excepcionalidade”8 como mecanismos que
instituem, reafirmam ou reatualizam construções simbólicas. Assim como, o “não dito” se
torna o não existente, a “[...] passagem do implícito ao explícito nada tem de automático”
(BOURDIEU, 2009, p. 143). Dessa forma, seguem se perpetuando representações da guerra e
da rua, como espaços construtores da masculinidade/virilidade, que dentro da lógica do
dimorfismo sexual pertencem aos corpos de homens.
É necessário historicizar a exaltação do corpo do combatente e a sua erosão, que no meu
entendimento contribuíram para a possibilidade da invenção de um “feminino” nas
instituições militares e policiais no mundo ocidental no século XX.
Audoin-Rouzeau afirma que a partir de 18609, a experiência corporal do combate se
torna uma prova física para grande parcela da população masculina europeia: “uma espécie de
norma social” (2008, p. 367). O corpo objetivado da medicina (ver: FAURE, 2008;
MARTINS, 2004; MOULIN, 2008) - explorado, classificado e inventariado - se transforma
em palco de investimento de autocontrole.
Processo iniciado na segunda metade do século XIX, o treinamento físico como parte
do desenvolvimento pessoal, passa a ser um ponto central da identidade (VIGARELLO, 2008;
VIGARELLO & HOLT, 2008). O tema da ascensão social – que não é inédito – passa pelo
trabalho sobre si, sobre seu corpo. Um corpo maleável e transformável indefinidamente é
exacerbado no decorrer do século XX. No período anterior a guerra total, as futuras nações
7
As atividades de mulheres como combatentes em diversos conflitos no século XX estão exemplificadas pela
ação das libertárias espanholas e também nos grupos armados durante os governos militares na América do Sul
(Ver: WOLFF, 2007. p. 19-38; LIMA, 2000, p. 203-17).
8
Simone de Beauvoir reflete criticamente sobre a utilização de sua própria imagem de intelectual bem sucedida
como “mulher-desculpa”, a despeito das demais, uma mulher exceção. O que exemplifica os pressupostos
individuais da capacidade dos sujeitos e que coloca poucas mulheres como capazes de competirem com os
homens. BEAUVOIR, Simone Apud SCHWARZER, 1986. p. 68).
9
Experiência esta iniciada no continente europeu a partir de 1798 com as guerras revolucionárias e imperiais.
beligerantes se encontram seduzidas, em graus variados, pela cultura militar da ginástica que
numa concepção mais refinada de corpo, é posta como transformadora da vontade,
construtora de tenacidade, da segurança e autocontrole. Um body building, na nomenclatura
americana, capaz de transformar fraqueza em força.
Ou seja, o trabalho sobre o corpo, é um trabalho sobre a vontade do indivíduo “que se
reivindica mais senhor de si com a modernidade” (VIGARELLO, 2008, p. 220). Corpo como
palco de um “tornar-se” físico que é ao mesmo tempo producente de novas prospecções
internas, de uma verdade interior. A Alemanha, altamente militarizada, investe na
“encarnação do povo no corpo” (Idem, p. 230), através da distinção conseguida por um
treinamento que enrijece também o espírito. Demais nações, e principalmente a França após
1870, seguirão esse modelo de busca de saúde física da raça, onde a ginástica se configura
como prática normativa e coletiva do corpo com evidentes fins militares10.
No século XIX a atividade esportiva é uma celebração da potência masculina
(VIGARELLO & HOLT, 2008, p. 452). Entretanto, às mulheres, o treinamento do corpo
como base de melhoria da raça e fortalecimento do espírito, não passou despercebido, mesmo
que os discursos médicos enfatizassem sua fragilidade física e indisposição ao esforço. No
início do século XX, no caso da Alemanha, se esboçam defesas do treinamento também dos
corpos das mulheres, baseadas no viés ainda militarista da boa saúde reprodutiva. Na França
se percebe a metamorfose do feminino através das palavras de Alice Milliat: “A educação
física e o esporte dotam as meninas e as moças de uma saúde e de uma força que sem causar
dano a sua graça natural, as tornam mais aptas a cumprirem no futuro o dever social que delas
se espera” (apud VIGARELLO, 2008, p. 226). No século XIX a ainda medicina enfatizava a
diferença entre os sexos e a impropriedade do esforço físico e agressividade presentes nos
esportes às mulheres, mas no final desse mesmo século se esboçam reações que rejeitam essa
noção de fragilidade e passividade intrínseca.
Mesmo que timidamente, e a despeito dos discursos declarados de fragilidade física,
mulheres iniciam o processo de treinamento do corpo, pela ginástica e pelo esporte 11. A
concepção do corpo como transformável, se expande na sociedade como um todo e nem
10
Vigarello (2008) analisa as disputas existentes nas concepções sobre a prática física entre o modelo da
ginástica e do esporte no decorrer do século XIX. O primeiro modelo, acentuado nas nações mais militarizadas,
no período das guerras totais se expande as demais nações. No pós-guerra o esporte supera de vez a ginástica.
11
A ginástica sueca, o golf (flexível e elegante), a adaptação do hóquei sobre a grama, o tênis (grande mercado
matrimonial) serão os esportes das mulheres de classe média (VIGARELLO & HOLT, 2008).
mesmo o discurso de fragilidade física inerente ao feminino passa incólume. É uma brecha
que se abre nas concepções de feminino/masculino do período.
Sobre a fragilidade intrínseca do corpo das mulheres é importante lembrar ainda que
mesmo os discursos médicos e jurídicos, não as distanciaram do esforço do trabalho fabril, do
trabalho rural e das pesadas atividades domésticas. De qualquer maneira a abstração
“mulheres” é distanciada da capacidade de esforço físico e agressividade e também da
capacidade guerreira. Mas, no decorrer do século XX, tanto a concepção de corpo moldável
pelo treinamento, quanto à experiência da guerra total modificam esse horizonte.
As guerras de massa da primeira metade do século XX são postas por diversos
pesquisadores como espaços transformadores da masculinidade (CAPDEVILA, 2007;
MOSSE, 1990; AUDOIN-ROUZEAU, 2008; BADINTER, 1993; SHOWALTER, 1993),
enquanto que para outros o gênero é sobremaneira reforçado (PERROT, 2005; THÉBAUD,
1995). Longe de pensar essas posições como excludentes, defendo que uma se entrelaça a
outra. Ou seja, o deslocamento de identidades masculina (s) e feminina (s) enseja momentos
de reforço do gênero.
Luc Capdevila, abordando o contexto francês, defende que houve uma migração da
identidade masculina, pautada no ethos guerreiro, para o investimento afetivo na paternidade,
devido à experiência traumática da Grande Guerra. Para Capdevila, “[...] os homens foram
pouco a pouco abandonando sua identidade guerreira para, ao contrário, reforçar sua
identidade paternal” (2007, p. 87), o que veio a diminuir sobremaneira o limiar de tolerância
com relação à violência. Contradizendo o contexto francês, Georges Mosse (1996;1990)
afirma que, na Alemanha e na Itália, a sociedade se brutalizou e militarizou mais ainda após a
primeira guerra mundial em busca do “homem novo” apregoado pelo fascismo.
No entremeio desse debate, Audoin-Rouzeau aponta que o grande paradoxo do século
XX foi a destruição do masculino através da guerra total e ao mesmo tempo a manutenção do
ethos guerreiro, proclamando não o seu fim, mas as diversas maneiras de sua erosão. Para
esse autor “[...] o estereótipo do guerreiro ocidental estava ligado há muito tempo - desde o
século XVIII – a concepção de virilidade moderna para sair tão facilmente de cena” (2008, p.
394), mesmo que a atividade do combate tenha perdido toda a glória anterior.
A mutação da guerra - da glória à erosão do masculino - é uma experiência do século
XX. Do porte aos uniformes, antes decorativos e desejosos de visibilidade, se passa a uma
invisibilidade necessária a guerra total. Invisibilidade exigida tanto na funcionalidade da
retorno glorioso, na maneira de ver a si mesmo, tanto para os derrotados quanto para os
vencedores. O fortalecimento do pacificismo após a 2ª Guerra se contrapõe a nobreza do
militarismo do final do século XIX.
Elaine Showalter considera que a crise de identidade tanto masculina quanto feminina,
acentuada pelas guerras do século XX, é anterior a elas. Para essa autora, no fin de siécle era
visível a assustadora “impossibilidade da sexualidade e os papéis sexuais serem contidos
dentro dos limites simples e permanentes da distinção sexual” (1993, p. 22). A incapacidade
exposta da sustentação desses papéis foi fonte de ansiedade e também de reações
antifeministas, uma vez que a crença nas esferas isoladas, cultuada na maior parte do século
XIX, era cada vez mais posta à prova pelas próprias reivindicações das mulheres.
Considerando a identidade de gênero como sendo referente, relativa e reativa, para
Elizabeth Badinter (1993, p. 11), sempre que as mulheres deslocam sua identidade a
masculinidade se desestabiliza. As atitudes de valorização exacerbada da virilidade no fin de
siécle foram reações ao mesmo tempo antifeministas e antifemininas, junto ao contexto do
imperialismo, que se firmou pela adoção de valores viris como política de Estado. Uma
França efeminada é largamente lamentada na literatura e na pintura após a derrota de 1870
(SHOWALTER, 1993, p. 25). De qualquer forma, a virilidade exacerbada no período que
precede a guerra total, relacionada como reação a “feminização” da política e da cultura, e
frente a um contexto imperialista que viriliza a política do Estado, sai da experiência da
guerra profundamente abalada na percepção dos combatentes.
Para Badinter (1993) as crises anteriores de masculinidade possuíram caráter limitado,
visto que restritas a aristocracia e/ou burguesia. No final do século XIX, mais extensa e mais
profunda, a crise encontrará “[...] exutórios sucessivos nas duas grandes guerras mundiais
[...]” (1993, p. 11) à ansiedade masculina. Para essa autora, contrariamente a Capdevila
(2007), Mosse (1997) e Andoin-Rouzeau (2008), as guerras foram espaços de reafirmação da
virilidade. Concordando parcialmente com Badinter, os discursos anteriores as guerras
propriamente ditas, foram firmemente baseados na exaltação da virilidade da nação
imperialista. No entanto, a experiência de guerra, tal qual afirmam os autores acima citados,
trouxeram transformações subjetivas nos combatentes e nas sociedades beligerantes como um
todo, que se distanciaram da auto-estima viril/militar na composição da masculinidade. Se o
século XIX, a partir de uma sistemática exploração efetuada pela medicina, foi uma
celebração à potência do corpo (VIGARELLO, 2008; VIGARELLO & HOLT, 2008), e
15
As práticas de aviltamento total do corpo do inimigo, segundo Audoin-Rozeau (2008, p. 402), visíveis e banais
principalmente no pacífico, estiveram ausentes na frente ocidental em que os adversários, a despeito da forte
hostilidade, possuíam um “sentimento de pertença e uma humanidade comum”.
Polícia de Los Angeles. Em Nova York esse processo iniciou-se a partir de 1926 após intensa
campanha desenvolvida por 62 associações de mulheres (APPIER, 1998, p. 34).
Com exceção das policiais inglesas – Policewomen - esses demais agrupamentos
adotaram precavidamente a nomenclatura de “Assistentes de Polícia” ou “Auxiliares Sociais
de Polícia”. Essas pioneiras passam a formar grupos uniformizados, com regulamentos
próprios e com a função específica de “amparar” a população necessitada. Como vítimas ou
delinquentes, os pobres em geral, as mulheres, os idosos e os chamados “menores” serão o
foco discursivo da presença de mulheres na atividade policial, tanto na Europa, quanto nos
EUA.
No caso brasileiro, a reabertura dos debates públicos será a tônica dessa concepção
civilizadora/humanizadora da presença de mulheres nas atividades policiais e militares: após o
Estado Novo varguista em relação às Polícias e após o período da Ditadura Militar, no que
concerne às Forças Armadas.
As Forças Armadas e as Forças Militares ao agregarem a concepção de “feminino” a
constituição de sua auto representação, exemplificam o atravessamento do gênero no
pensamento político formador da concepção de Estado sob o qual suas “Forças” não passam
incólumes.
Em fins do século XX, o desenvolvimento da concepção de Segurança Humana, e da
Paz como peacekeeping e peacebulding, defendidos pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas (MATHIAS, 2009; DONATIO & MAZZOTA, 2009), ampliaram mais ainda a
discussão sobre a presença das mulheres e da urgência de um “feminino” na composição do
corpo militar, tanto no mundo da caserna quanto na atividade policial. Um feminino, antes tão
fora de lugar, passa a ser base discursiva para a legitimação de aparatos repressivos.
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