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Internada por iniciativa própria na Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima, a paciente, J.,
disse agredir seu marido e filhos, falava coisas que não queria. Bruscamente, esbofeteava-os e
mandava-os para fora de casa. Nesses episódios, deixava de trabalhar no açougue (atividade
que desenvolvia desde criança, no açougue do pai), deitava na cama e chorava, permanecendo
trancada em casa. Esse "jeito agressivo" começou quando seu marido, ao ficar desempregado,
foi trabalhar com ela no açougue.
Ao mesmo tempo em que queria todos (marido e filhos) perto dela, brigava com eles. Não
aceitou a sugestão de internação feita pelo marido, porém dias depois procurou pela indicação
de uma prima: "Eu vou acabar matando as pessoas que eu amo. Vim procurar uma clínica que
me ajudasse".
A paciente relatou o motivo de sua internação: quinze dias antes, o marido sugeriu
interná-la, ela brigou e mandou o marido e o filho pra fora de casa; depois de dias de total
isolamento, o filho forçou uma aproximação e ela pediu que voltassem. Disse que a internação
ficou na sua cabeça, "não me achava louca mas agredia como louca". Perguntou ao marido se
queria interná-la, ele confirmou mas ela não aceitou que o fizesse. Dias depois, perguntou a
uma prima se conhecia alguma clínica, que indicou a Casa de Saúde Nossa Senhora de Fátima,
mas a paciente não aceitou que a internação fosse realizada pelo marido. "Eu vou acabar
matando as pessoas que eu amo."
O diagnóstico foi a principal questão que norteou sua indicação para a Apresentação de
Pacientes: borderline orgânica? psicose? histeria?
O Borderline e a Psiquiatria
impulsividade pelo menos em duas áreas que são potencialmente autolesivas (gastos, sexo,
abuso de substâncias, condução ousada, voracidade alimentar);
instabilidade afetiva por reatividade de humor marcada (por ex., episódios intensos de
disforia, irritabilidade ou ansiedade, habitualmente durando poucas horas ou mais raramente
alguns dias);
A décima edição da Classificação Internacional das Doenças, CID-10 (1993) localiza este
transtorno num subtipo (F60.3), denominado "Transtorno de Personalidade Emocionalmente
Instável": "Um transtorno de personalidade no qual há uma tendência marcante a agir
impulsivamente sem consideração das conseqüências, junto com instabilidade afetiva. A
capacidade de planejar pode ser mínima, e acessos de raiva intensa podem com freqüência
levar à violência ou à 'explosões comportamentais'; estas são facilmente precipitadas quando
atos impulsivos são criticados ou impedidos por outros." (p.200)
Para o subtipo Borderline (F60.31), além das características citadas acima, acrescenta-se:
"... a auto-imagem, objetivos e preferências internas (incluindo sexual) do paciente são com
freqüência pouco claras ou perturbadas. Há em geral sentimentos crônicos de vazio. Uma
propensão a se envolver em relacionamentos intensos e instáveis pode causar repetidas crises
emocionais e pode estar associada com esforços excessivos para evitar abandono e uma série
de ameaças de suicídio ou atos de auto-lesão." (p.201)
O Borderline e a Psicanálise
A ego psychology
Otto Kernberg, ao tratar das personalidades narcísicas, retoma o projeto de Anna Freud de
descrever os mecanismos de defesa do eu num continuum. Para ele, os pacientes limítrofes
possuem um eu melhor integrado do que os psicóticos, com exceção nas relações humanas
íntimas. Haveria possibilidade de fazer um diagnóstico diferencial e descritivo e pode-se situar
o paciente ao longo de um continuum conforme a gravidade da patologia da personalidade.
Dessa maneira, o diagnóstico seria decidido pela patologia do eu e não pelos sintomas
apresentados (muitas vezes sintomas neuróticos típicos). Para esse autor, o Transtorno de
Personalidade Borderline é parte integrante do que ele denomina "organização borderline de
personalidade": ela "inclui um número maior de pacientes que a categoria de distúrbio de
personalidade borderline do DSM III-R e cobre um nível de patologia de caráter que inclui a
maior parte dos casos de personalidade infantil ou histriônica e narcisista, praticamente todas
as personalidades esquizóides, paranóide, 'como se', hipomaníaca e todas as personalidades
anti-sociais"[8]. O diagnóstico é baseado em três critérios: 1) falta de integração do conceito
de self e do conceito de outras pessoas (experiência crônica de vazio e percepções
contraditórias e empobrecidas dos outros); 2) organização defensiva do ego é baseada na
clivagem; 3) capacidade de teste de realidade é mantida, diferentemente do que ocorre na
psicose.
Widlöcher discorda de Kernberg, argumentando que não ocorre clivagem do ego nos
estados-limite, que aí a clivagem não é resultante de uma estratégia do ego e sim de uma
fixação pulsional arcaica[9].
Para Jean Bergeret, o borderline é parte do que ele denomina estados-limite, é um dos
casos graves da organização-limite; nele se poderia observar de forma aumentada o que se
observa nos demais.
Dessa maneira, o recalque cedeu seu lugar de referência clínica a foraclusão e, ainda mais,
a foraclusão ganhou estatuto de generalizada, universal à espécie humana, fruto do paradigma
da subjetividade humana tomada a partir da psicose. Dessa maneira, na concepção anterior
(baseada na neurose) a presença do significante Nome-do-Pai, pelo retorno do recalcado,
produzia uma resposta ao real através da neurose, e a foraclusão desse significante induzia a
uma psicose, mesmo que não deflagrada. Aquele modelo é substituído por este, que postula
que frente a foraclusão generalizada a possibilidade reside em suplências à falta estrutural no
simbólico. Na suplência não se trata da busca de um complemento ou restauração de um
sentido, não se faz metáfora e não se trata da metáfora delirante. Na suplência trata-se sim do
sujeito encontrar soluções, ela pode permitir uma conexão com a vida e com o Outro.
Retornando ao caso
Este caso foi uma oportunidade ímpar de demonstrar modos diferentes de diagnóstico
que, certamente, implicam em modos diferentes de condução do tratamento. A psiquiatria
define os diagnósticos pela classificação e catalogação de sintomas e o caso de J. presta-se de
maneira exemplar a cumprir seus requisitos. A ego-psychology utiliza as funções do eu como
critério de diagnóstico dos chamados borderlines. A palavra utilizada, "estados-limite", já
enuncia: trata-se de estado, passível de mudança gradativa, pode-se então estar menos ou
mais no limite ou na normalidade.
Com Lacan, durante o período de seu ensino dedicado à releitura de Freud, um avanço
ocorreu no terreno externo à neurose, a clínica evocava o não ceder frente à psicose. Com a
orientação lacaniana, ao trabalhar o último período de ensino de Lacan, a partir da
Conversação de Arcachon, acompanhamos mais um ganho clínico: delimita-se um possível
para o tratamento da psicose, deflagrada ou não, e dos casos inclassificáveis.
Texto publicado na Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n. 43, pp.
101 a 107.
[1] A Apresentação de pacientes aqui referida se trata de uma das atividades desenvolvidas no
interior da Seção Clínica da Clínica Lacaniana de Atendimento e Pesquisas em Psicanálise –
CLIPP (associada ao Instituto de Campo Freudiano de São Paulo), que se deu na Casa de Saúde
Nossa Senhora de Fátima.
[3] SONENREICH e outros. Psiquiatria: propostas, notas, comentários. São Paulo: Lemos-
Editorial, 1999, p. 149.
[4] LAURENT, Éric. "Há algo de novo nas psicoses", Curinga no. 14, abr. 2000, p.162.
[5] HEGENBERG, Mauro. Borderline. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000, 2 ed., p.14.
[6] SONENREICH e outros. Psiquiatria: propostas, notas, comentários. São Paulo: Lemos-
Editorial, 1999, p. 149.
[9] WIDLÖCHER, D. "Clivage et sexualité infantile dans les états limites", in André, J. (org.) Les
états limites, Paris: PUF, 1999.
[10] FREUD, S. "Dois verbetes de enciclopédia". ESBOPC, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,
1976, p. 302.
[11] LAURENT, Éric. "A extensão do sintoma hoje". Opção Lacaniana – Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise no. 23, dezembro 1998, p. 17.