Você está na página 1de 5

Transtorno de Personalidade Borderline e a Família: Compreendendo no

discurso do paciente os sentimentos de sua relação com o núcleo familiar

Lucas Tadeu Rezende

lucas.nacional@hotmail.com

Resumo - O termo personalidade tem sido utilizado como um rótulo descritivo do comportamento
observável do indivíduo e de sua experiência interior subjetiva relatada. O Transtorno de
Personalidade Borderline, conhecido também como Limítrofe, caracteriza-se por um padrão de
relacionamento emocional intenso, porém confuso e desorganizado. Traço marcante neste
transtorno, a instabilidade emocional apresenta-se por flutuações rápidas e variações no estado de
humor de um momento para o outro. O paciente Borderline tem séria limitação para usufruir das
opções emocionais diante dos estímulos do cotidiano e, por causa disso, só costuma enfurecer-se
diante dos pequenos estressores. Geralmente os processos familiares no Transtorno de
Personalidade Borderline são interrompidos numa tentativa de adaptação quando se tem
conhecimento da psicopatologia. Por ser fronteiriço entre a neurose e a psicose encontra um bom
esclarecimento por meio da psicanálise freudiana. A análise do discurso do paciente Borderline
permite compreender melhor seu comportamento em relação às situações de seu cotidiano.

Palavras-chave: Personalidade Borderline, Psicanálise Freudiana, Estado limítrofe, Família do


Paciente e Sofrimento Psíquico.
Área do Conhecimento: Psicologia

Introdução
O termo personalidade tem sido utilizado como um rótulo descritivo do comportamento
observável do indivíduo e de sua experiência interior subjetiva relatada (ALENCAR, 1986). A
totalidade do indivíduo descrita dessa forma representa tanto aspectos públicos como privados de
sua vida. Na palavra personalidade pode ser acrescido certos adjetivos qualificativos com significado
psiquiátrico, como passiva ou agressiva, ou palavras sem conotações patológicas, como ambiciosa,
religiosa ou amigável. Uma série coerente desses qualificativos compondo um diagnóstico de
transtorno da personalidade implica certas predições sobre como a pessoa vai se comportar em dado
conjunto de circunstâncias (KAPLAN; SADOCK, 2007). Segundo os autores, sugere-se também a
forma que a doença psiquiátrica pode tomar caso se desenvolva.
O Transtorno de Personalidade Borderline, conhecido também como Limítrofe, caracteriza-se
por um padrão de relacionamento emocional intenso, porém confuso e desorganizado. Traço
marcante neste transtorno, a instabilidade emocional apresenta-se por flutuações rápidas e variações
no estado de humor de um momento para o outro. Reconhecendo sua própria labilidade emocional,
os portadores deste transtorno buscam justificar-se com argumentos implausíveis com intuito de
encobrir essa labilidade. Demonstram comportamentos autodestrutivos com alta freqüência, não
possuindo claramente uma identidade de si mesmos, projetos de vida ou mesmo uma escala de
valores duradoura. A instabilidade é tão intensa que acaba incomodando o próprio paciente que em
dados momentos rejeita a si mesmo, assim sua insatisfação pessoal é constante (KAPLAN;
SADOCK, 2007).
Os pacientes com Transtorno de Personalidade Borderline, em vista de se sentirem tanto
dependentes como hostis, tais indivíduos têm relacionamentos interpessoais tumultuados (KAPLAN;
SADOC, 2007). Podem ser dependentes de quem são íntimos e, quando frustrados, expressam uma
enorme raiva contra tais pessoas. Não toleram ficar sós e preferem uma procura ansiosa por
companhia, não importando quanto insatisfatória seja. Para evitar solidão, mesmo por períodos
breves, aceitam um estranho como amigo e se comportam de forma promíscua. Por vezes se
queixam de sentimentos crônicos de vazio e tédio e lhes faz falta um sentimento consistente de
identidade (difusão da identidade); Quando pressionados, queixam-se de depressão, a despeito da
multiplicidade de outros afetos.
Ter a possibilidade de uma análise de discurso de tais pacientes é uma enorme vantagem
para o melhor entendimento e compreensão desta psicopatologia que aflige severamente a vida de
algumas pessoas que são muitas vezes incompreendidas por seu núcleo familiar que costuma a
manter o paciente em um estado de isolamento devido sua volatilidade de comportamento. Neste
artigo procura-se explorar por meio do discurso de uma paciente a questão de suas relações
familiares .

Metodologia

Este trabalho baseia-se em um estudo de caso de uma paciente com Transtorno de


Personalidade Borderline (CID F 60.3) de 54 anos, casada, católica, com três filhos, vendedora
autônoma e possui ensino fundamental incompleto. Por ter seus direitos preservados, será
denominado como Senhora E durante todo o artigo.
O embasamento teórico utilizado foi através de livros-texto e levantamento de artigos
científicos na base de dados: SCIELO, MEDLINE, CAPES, LILACS e DEDALUS. Para a localização
dos artigos foram utilizadas as seguintes palavras: Transtorno de Personalidade Borderline,
Transtorno de Personalidade Limítrofe, Comportamento Limítrofe, Psicanálise e Borderline,
Borderline e a família. Os mesmos termos em inglês e espanhol. Foram incluídos os artigos dos
últimos 30 anos. A técnica utilizada é a análise da bibliografia encontrada, que compreende leitura,
seleção, fichamento e arquivo dos tópicos de interesse para estudo.

Resultados

A resposta ao trabalho desenvolvido foi satisfatória ao objetivo proposto. Pode-se obter um


entendimento mais claro e consistente acerca da mentalidade cotidiana do paciente com Transtorno
de Personalidade Borderline, estando ele situado e analisado em seu núcleo familiar. Uma
abordagem analítica em seu ambiente familiar se apresentou como uma forma muito interessante,
oferecendo novos recursos para uma aplicabilidade clínica mais abrangente.
Compreender o sujeito dentro de seus recursos e limitações familiares pode facilitar o manejo
clínico e o esclarecimento de onde o analista deve explorar mais o discurso do paciente. Estar
plenamente ciente do papel da família na constituição subjetiva do sujeito permite que uma
psicanálise modus operandi a La Freud seja o melhor método para o atendimento destes pacientes.
Possibilitar uma conciliação entre o referencial teórico e a prática clínica nesta abordagem
pode-se observar aquilo que é discutido por Freud sobre a proposta terapêutica; Colocando o
paciente e seus sentimentos acima de seus sintomas, permite-se compreender a existência de uma
disparidade ideológica entre o discurso psiquiátrico e o discurso psicanalítico. Deve-se estar ciente
que o paciente Borderline necessita sim de uma intervenção psicofarmacológica, não obstante, sem a
análise e os cuidados que a psicoterapia pode proporcionar, cria-se uma enorme dificuldade para se
alcançar um prognóstico favorável.

Discussão

A discussão consiste na análise do conteúdo do discurso da paciente.


(...)

Analista: Como que sua doença afeta sua família?

Sra E: Não consigo aceitar carinho dele [MARIDO], alias, de ninguém. Colocar a mão em mim já
é motivo para empurrá-lo. Eu não gosto de ser assim e isso me deixa muito revoltada, principalmente
com a minha família que são meus dois filhos e meu marido. Eles fazem carinho em mim e não
consigo aceitar, abraçar, beijar; eu não consigo, me incomoda. É uma coisa que eu não quero, aí me
revolto comigo por não ter aquele afeto que eles querem me dar, mais eu não consigo. Estes dias eu
estava passando mal, eu estava chorando, tinha discutido com esse ai (aponta para o filho), loucura
da minha cabeça. Ai meu marido disse: “vem cá preta deita aqui no meu ombro”, querendo me
agradar. Ai que me deu mais raiva, não chama não pra deitar no seu ombro. Nossa eu quero, mais eu
não consigo, entendeu... não sei porque essa porcaria é assim.”

Percebe-se no discurso da Sra. E uma enorme carga de angústia em relação a sua questão
afetiva. A Sra. E não consegue expressar sentimento de afeto carinhoso e no lugar do mesmo,
ocupando este vazio subjetivo, expressa sentimentos vorazes de raiva e ódio. Muito disto se dá aos
problemas apresentados na questão edípica que ocorre nos pacientes portadores do transtorno
estudado.
Como o sujeito Borderline se encontra entre o estado da psicose e da neurose, pode-se supor
que esse sentimento expressado pela Sra. E venha de uma possível origem da neurose de angústia.
Observando a neurose de angústia pelo ponto de vista econômico, a primeira hipótese de Freud
(1895 [1987]) encontra-se no acúmulo de excitação que se transforma em angústia; não é possível
estabelecer sua decorrência, diferentemente da histeria ou neurose traumática que permite
vislumbrar seus desdobramentos (o trauma, por exemplo). Este acúmulo é uma excitação somática
que é de natureza sexual, que teve por sua vez, em sua concepção, um mínimo de participação do
psíquico. A partir de então, conclui que: “o mecanismo da neurose de angústia terá que tentar desviar
a excitação sexual somática do psíquico e receber, por causa disso, um emprego anormal.” (FREUD,
1895). Baseando-se nisso, percebe-se uma excitação somática que não pode ser descarregada, por
isso Freud insiste na prática sexual frustrada, mais precisamente pela falta de satisfação, acarretando
num “emprego anormal” da libido. Essa insatisfação tem como consequência a diminuição
significativa do “prazer psíquico” e a angústia é relativa a esse acúmulo de tensão, de origem
somática, que se deu graças ao não-cumprimento de sua meta, a saber, a descarga.
Procurando responder as questões que vieram a surgir ao longo do desenvolvimento dessa
teoria, Freud se pergunta sobre a causalidade da manifestação da angústia, tanto em sua forma
neurótica quanto em sua forma pura, quando o psiquismo se mostra ineficiente ante a produção
somática. Nesse momento faz a equivalência entre angústia e afeto: “O afeto e a neurose a ele
correspondente se situam em um estreito vínculo recíproco; o primeiro é ante a situação exógena, e o
segundo, a reação ante uma excitação endógena análoga.” (FREUD, 1895 [1987])

(...)

Analista: Acha que seus familiares deveriam mudar o modo de te tratarem?

Sra. E: Não. Só as brincadeiras que eu não gosto; De me chamarem de “treze”, “diazepam”,


“tiziu”, porque sou a única “pretinha”. Do mais não. Só esses dias saí correndo atrás de duas meninas
que me chamaram de “Sra. E louca”. Corri atrás até pegá-las e levei até suas mães e contei tudo o
ocorrido. Eu sou assim mesmo, me tirou do sério e ”eu acabo”...

Analista: Eles “tiram você do sério” quando te relacionam com sua patologia?

Sra. E: Tocou no que mais odeio, daí é fogo. Eu me descontrolo totalmente mesmo.

O que ocorre na percepção da doença e de si mesmo do Borderline é que o mesmo tem séria
limitação para usufruir das opções emocionais diante dos estímulos do cotidiano e, por causa disso,
costuma enfurecer-se diante dos pequenos estressores. São indivíduos sujeitos a acessos de ira e
verdadeiros ataques de fúria ou de “mau gênio”, em completa inadequação ao estímulo
desencadeante. Essas crises de fúria e agressividade acontecem de forma inesperada,
intempestivamente e costumam ter por alvo pessoas do convívio mais íntimo, como por exemplo, os
pais, irmãos, familiares, amigos, namoradas, cônjuges etc. (BALLONE; MOURA, 2008). Pode se
observar no relato da Sra. E que a mesma se enquadra especificamente nesta descrição quando se
refere a não conseguir corresponder o afeto do marido e dos filhos e devolver esse afeto com
acessos de raiva, de ira e de alta carga de comportamento estressante. É um pequeno estressor de
afeto, porém ele se repercute na Sra. E como a maior das provocações, fazendo que a mesma se
revolte por completo e tenha um verdadeiro ataque de fúria e violência gratuita contra o marido e
filhos. O mesmo acontece quando é supostamente provocada por causa de sua patologia, como
apresentou no seu relato: “Tocou no que mais odeio, daí é fogo, eu me descontrolo totalmente.”
A Sra. E relata o seu total descontrole quando as pessoas direcionam seu discurso a ofensa
por meio de sua psicopatologia. É uma percepção totalmente reduzida, com foco a se defender de
qualquer inferência que a mesma considere hostil quando citam sua enfermidade, seja em uma
discussão ou até mesmo em uma brincadeira, como os próprios filhos e marido costumam colocar-lhe
apelidos relacionados com estigmas sociais da doença. Ballone e Moura (2008) complementam que
embora o Borderline mantenha condutas até bastante adequadas em bom número de situações, ele
tropeça escandalosamente em outras triviais e simples. O limiar de tolerância às frustrações é
extremamente diminuído nessas pessoas.
É questionada a aceitação da doença com a Sra. E e a mesma demonstra muita revolta com
essa questão. Como demonstra Rezende (2009) em seu trabalho, em um ensaio clínico com uma
paciente Borderline, pode-se questionar que esse seja um fator em comum entre os pacientes
portadores desta psicopatologia.
(...)
Analista: Como sua mãe aceitou sua doença?

Sra. E: Só me jogando internada. Quando eu estava assim, e igual meu marido me suporta, que
eu casei e fui uma vez depois, porque era pra eu fazer um exame que o meu marido tinha que
assinar, mas das outras vezes ele mesmo segurou o “B.O.” em casa. Agora minha mãe, não. Ela me
internava lá no Rio de Janeiro, no Quati, Volta Redonda, onde tivesse vaga ela me jogava. Ela me
jogava lá, passado a fase, minha mãe não sabia lidar. Quando eu dava por mim eu “tava” internada,
daí meu pai... Lá no Rio de Janeiro é assim, você se interna quinze dias, depois você volta pra casa,
passa o fim de semana e você volta. Se eu chegasse em casa, meu pai aquele “negão” lá (indica
retrato), se ele não tivesse lá a mãe deixava eu voltar, por minha mãe eu vivia lá, porque no mesmo
tempo eu estava de um jeito e de outro também, entendeu...

Analista: A senhora acha que é tratada de forma ideal em sua casa ou acha que tinha que ser tratada
de maneira diferente?

Sra. E: Não. Aqui em casa sou tratada como uma pessoa normal. Eu acho que nós temos esse
problema, deveríamos ser tratados como uma pessoa normal. “Ta” certo que tem que ter vários
cuidados comigo, mas se eu quero sair, eu saio; se eu quero vender, eu vendo; se eu quero ir para o
Rio de Janeiro ver minha mãe, eu vou. Eles (família) me dão dinheiro e eu vou de ônibus. Vou
sozinha, não tem que ficar cheio de “não me toque”. Ai o que quer aconteca com as pessoas que são
tratadas assim, eles não conseguem lutar por si mesmas e se entregam. E eu aqui em casa, graças a
Deus, eu saio, eu faço o que eu quero, trabalho, vendo, viajo. Se eu falo pro meu marido: “Quero ver
minha mãe lá no Rio”, ele me dá o dinheiro, as vezes com os meninos, se não tem ninguém vou
sozinha, vou na cidade, faço as coisas, também faço muita coisa errada, esqueço as coisas que é pra
fazer, mas eles me dão liberdade para ser uma “pessoa normal”.

Geralmente os processos familiares são interrompidos numa tentativa de adaptação quando


se tem conhecimento da psicopatologia (REZENDE; SOUZA, 2007). No caso da Sra. E observa-se
de início, quando questionada sobre a aceitação da mãe com a doença, uma cisão nos processos
familiares, pois a mãe não se interessava em interagir com a filha e trabalhar no próprio lar os
problemas da mesma, a internando sempre que possível. A Sra. E apresenta sentimentos de
abandono nesta fase de sua vida, com certa angústia, pois não podia contar com sua mãe; Sua mãe
era apenas fundamental no manejo interventivo e nada mais, sem fornecer nenhum apoio psicológico
ou afetivo para a filha.
A Sra. E quando questionada sobre as relações em sua casa, afirma ser “tudo normal”,
apesar de que deve se ter um “cuidado” ao lidar com ela e todos respeitam isso. Porém mostra um
enorme descontentamento com a resposta social do estigma de não “ser normal”, afirmando que um
dos grandes problemas que encontra nas relações sociais é o estigma de “ser doente” e “não ser
normal”. Uma observação pertinente realizada pela parte crítica de sua personalidade que não é
abalada por sua psicopatologia.

Conclusão

Foi apresentado ao longo do desenvolvimento deste trabalho por meio da análise do discurso
do paciente Borderline pode-se compreender melhor seu comportamento em relação às situações de
seu cotidiano. Possibilitar uma visão global do contexto e da realidade de um paciente com
Transtorno de Personalidade Borderline pode por consequência permitir um método interventivo mais
elaborado e consistente para o acolhimento destes pacientes. Nestes casos, o analista além de
interpretar o discurso com a escuta analítica, necessita de certos momentos de acolhimento para com
o paciente, pois devido a sua personalidade instável, certas interpretações podem fazer com que
trabalho de análise não se desenvolva como deveria e se perca devido o estresse desencadeado por
uma interpretação em um momento inoportuno. A prática do manejo clínico para com esses pacientes
é fundamental.
Compreender o paciente em sua individualidade faz parte do trabalho psicanalítico nos seus
mais diversos campos, não obstante, reconhecer tal ponto no paciente Borderline é uma tarefa de
extrema importância, pois cada manifestação deste transtorno possui particularidades especiais que
geralmente advém da formação do paciente como sujeito na sociedade em que vive. Observar e
analisar o meio em que o paciente passa a maioria dos seus dias é de fundamental importância para
um manejo clínico mais efetivo.

Referências

ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de. Psicologia: Introdução aos princípios básicos do


comportamento. 7. Ed. Petrópolis: Vozes, 1986.
BALLONE GJ; MOURA EC. Personalidade Borderline – In: PsiqWeb, Internet. Disponível em
http://virtualpsy.locaweb.com.br/www.psiqweb.med.br/, revisto em 03 mai 2016.
FREUD S. A propósito de las críticas a La ‘neurosis de angustia’ (1895). In: Obras Completas. V.
3. Buenos Aires: Amorrortu, 1987.
KAPLAN, SADOCK. Compêndio de psiquiatria. 9 ed. Porto Alegre: Artmed, 2007.
REZENDE LT. LACRIMAS PROFUNDERE: A Percepção que o depressivo tem de si mesmo.
Faculdade Anhanguera de Taubaté: Taubaté, 2009.
REZENDE LT; SOUZA GA. Intervenção de Enfermagem na Depressão em Esquizofrenia. Anais do XI
Encontro Latino Americano de Iniciação Científica e VII Encontro Latino Americano de Pós-
Graduação – Universidade do Vale do Paraíba, 2007.

Você também pode gostar