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Capítulo 3

Transtornos de ansiedade e de humor:


limites da terapia individual

R egina C h ristin a W íelen sk a

O tratamento psiquiátrico de portadores de transtorno bipolar (TB) e transtorno


obsessivo-compufsivo (TOC) propõe, com freqüência, a associação da farmacoterapia
à intervenção psicológica, de abordagem analítico-comportamental ou cognitivo-
comportamental. Um dos determinantes da decisão pelo encaminhamento do portador
ao psicólogo seria favorecer a adesão à farmacoterapia.
E, de fato, intervenções predominantemente psicoeducacionais, desenvolvidas
em sessões individuais ou em grupo para portadores e suas famílias podem beneficiar
grande número de portadores e suas famílias. Um exemplo é o trabalho de Miklowitz,
George, Richards, Simoneau e Suddath (2003), o qual demonstrou que a psicoeducação
da família propicia melhor ajustamento do portador de TB após um episódio de alteração
de humor e sua maior adesão ao tratam ento farm acológico. Estas sessões
psicoeducacionais podem tomar mais reforçadora a interação com a equipe de saúde
responsável pelo caso. Para que isto ocorra, o participante precisa ser acolhido, com
suas queixas, temores e dúvidas, receber informações numa linguagem precisa e
acessível, aprender que na sessão pode abertamente contestar afirmações, expressar
suas emoções e pensamentos acerca do diagnóstico e tratamento. O objetivo é
estabelecer um relacionamento terapêutico pautado na colaboração recíproca, por meio
da comunicação franca e sensível às necessidades do cliente. Em termos gerais, os
programas de psicoeducação visam tornar o cliente o cliente capaz de:
■Reconhecer seus sintomas precisamente, e de preferência, logo que se manifestem;
•Descrever, com entendimento, os mecanismos etiológicos do transtorno (geralmente, os
determinantes são relações complexas entre fatores biológicos e de história de vida),
principalmente inserindo esta informação na compreensão de sua própria história de vida;
•Buscar atendimento médico com a regularidade necessária, tomar medicação conforme
prescrita, reportar dados relevantes (por exemplo, história pessoal, evolução do
tratamento, recaídas, sintomas, efeitos colaterais, eventos vitais, etc.);
Aceitar que parte do tratamento envolve reconhecer sua condição de portador e enfrentar os
problemas decorrentes dos padrões de comportamento tipicamente emitidos por quem
apresenta algum transtorno (aqui salienta-se a importância do desenvolvimento do repertório
de enfrentamento apropriado ao manejo das dificuldades pertinentes a cada caso).
Uma das características distintivas da abordagem analítico-comportamental é

Sobre C om portam ento e C ognição


a análise sistemática das variáveis de controle do comportamento do cliente, emitido
dentro e fora da sessão. Colocam-se em evidência as contingências ambientais,
passadas e presentes, em vigor nos contextos da família, escola, trabalho, etc.
Na maioria dos casos, são criadas estratégias para que o cliente aprenda a analisar
estas contingências e possa valer-se deste instrumento para processos de tomada de
decisão em sua vida, mesmo após o encerramento da terapia. Certamente não se trata
de negligenciar as variáveis biológicas, em detrimento das ambientais. Ao contrário,
provavelmente predisposições genéticas e alterações neuroquimicas, em si, participem
de distintas relações organismo-ambiente. Uma das possibilidades é compreender as
variáveis biológicas como operações estabelecedoras, capazes de modular o valor
reforçador de certos estímulos e, com isso, influenciar a probabilidade da ocorrência de
classes de respostas operantes controladas por uma relação de tríplice contingência
na qual estes mesmos estímulos sejam a conseqüência produzida pelo operante.
Além de provavelmente estabelecer o vafor reforçador de certas conseqüências, variáveis
biológicas modulam a sensibilidade do organismo aos estímulos, modificando o
resultado de processos de condicionamento clássico. E, por último, também é provável
que o controle de estímulos em diversas contingências operantes seja igualmente
alterado pelo nível biológico de determinação do comportamento.
Assim posto, o que a presente discussão pretende destacar ê que
conseqüências ambientais (providas aos comportamentos do cliente) podem propiciar
melhoras ou, pelo contrário, favorecer a manutenção ou agravamento do quadro clinico.
E uma intervenção psicoeducacional seria o primeiro passo, geralmente indicado para
o cliente que recebeu seu diagnóstico há pouco tempo, com insuficiência de informações
adequadas sobre sua condição psiquiátrica. Muitos terapeutas, em consultório particular,
nos serviços públicos ou colaborando com associações de portadores promovem
ações psicoeducacionais eficazes, que previnem ou atenuam o risco de abandono de
tratamento, discriminação social, tratamentos sem validação científica, etc.
Há, no entanto, casos graves, reais desafios terapêuticos, para os quais a
psicoeducação mostra-se insuficiente. Caracterizam-se por persistente baixa adesão,
inicio precoce do transtorno, muito tempo sem tratamento adequado, má resposta a
vários tratamentos, exuberância sintomatológica e/ou intenso prejuízo funcional. Por
vezes, nos casos de difícil controle, encontramos também marcantes efeitos colaterais
da medicação, história de surtos psicóticos, tentativas de suicídio, afastamento laborai
ou aposentadoria por sintomas incapacitantes e internações sucessivas.
Para boa parte dos portadores, em particular os mais graves, a terapia individual
ou em grupo toma-se uma indicação necessária (Wielenska, 2001; Scott, 2006). Aspectos
como freqüência e objetivos das sessões, escolha e implementação de procedimentos,
e outros temas são alvo de inúmeras pesquisas voltadas para o teste e validação dos
melhores programas de tratamento aos portadores de transtornos psiquiátricos. Mas
nem sempre somos bem sucedidos e, não raramente, um terapeuta às voltas com um
caso grave, constata que a terapia individual, aplicada com seriedade por um período
significativo de tempo, produziu apenas resultados medíocres, pouco satisfatórios.
Em geral, a análise do insucesso nos leva a concluir que a terapia exercer
reduzida influência sobre um dos am bientes mais influentes para sobre o
comportamento daquele cliente com TOC ou TB: suas relações próximas, usualmente
com a família nuclear, seja composta por pais, irmãos, cônjuge e/ou filhos. Nem sempre
conseguim os plena ce rte za sobre a cadeia de eventos determ inantes dos
comportamentos-problema. Até que ponto as relações na família estão prejudicadas
porque o transtorno é grave e isto afetou demais a capacidade do portador de interagir

Ifeffinâ C h riítin â W ieienska


socialmente? Ou, num raciocínio inverso, o quanto o transtorno se agravou em função
dos relacionamentos apresentarem baixa qualidade ou das interações familiares
favorecerem primordialmente os comportamentos ‘'doentes”?
Talvez seja inútil despender esforços para descobrir se o ovo (ou seja, as
alterações com porta mentais correspondentes ao transtorno) chegaram antes ou depois
da galinha (neste caso, o conjunto de relações de contingências que historicamente
operam sobre o portador e sua família). Embora as intervenções psicoeducacionais e a
terapia (individual ou de grupo) sejam escolhas adequadas e com respaldo na literatura,
não bastaram para auxiliar um dado cliente. Neste momento se considera a inclusão da
família no tratamento psicológico. Alguns episódios que ilustram este ponto:
A incidência de conflitos entre o cliente e sua família permanece alta, com freqüentes
brigas, atrasos e confusões, por exemplo, toda vez que este indivíduo com TOC se recusa
a sair com a família para um compromisso sem antes executar determinado ritual longo;
■Uma família não suporta as conseqüências devastadoras de um episódio de mania
durante o qual a filha gastou todas as economias, entregou pertences de valor a
desconhecidos na rua, fez propostas sexualmente indecorosas a vários vizinhos e
funcionários do condomínio, etc.;
■Dados como a freqüência, intensidade ou duração de sintomas, indica que eles parecem
ser mantidos ou agravados por aspectos da relação com familiares: um cliente bipolar
piora muito quando escuta de seus pais a acusação de “que sua fraqueza de caráter é
o propulsor da própria infelicidade e daqueles ao seu redor";
■Outro cliente com TOC recebe muito apoio da família na execução de rituais, todos
renunciaram a suas vidas para tomar conta do portador e atendem às suas demandas.
Claro que não apenas os motivos acima apresentados esgotam os motivos de
encaminhamento para modalidades de atendimento analítico-comportamental voltadas
ao ambiente familiar. O essencial é entender que em certos casos deveríamos conversar
com o cliente sobre a necessidade de orientar sua família, fazer terapia familiar ou
conjugal, ou introduzir um acompanhamento terapêutico (AT) no ambiente doméstico.
Este momento costuma gerar reações variadas nos clientes, eis algumas
possibilidades:
•Raiva, porque "o terapeuta vai ensinar minha família que não pode me reassegurar
com as obsessões”;
-Alívio, porque gostaria de repartir com mais pessoas a tarefa complexa de refazer sua
vida, modrficar o que precisa;
■Medo de que o terapeuta revele informações sigilosas à família, ou que os familiares
assumam o papel de delatores, informantes do terapeuta;
■Sensação de que o terapeuta desconfia de seus relatos, que apenas quer tirar a “prova
dos nove” com a família;
Esperança, porque o terapeuta parece validar sua opinião de que os problemas de
relacionamento na família colaboram na manutenção ou piora dos sintomas psiquiátricos;
■Desesperança, porque “se nem remédio, nem terapia ajudaram...".
Para reduzir a chance da nova proposta terapêutica (seja AT, atendimento familiar
ou conjugal) trazer mais prejuízo do que benefício ao cliente, recomenda-se discutir de
antemão, pelo tempo necessário, todas as dúvidas, temores, expectativas, solicitações
referentes ao rumo proposto para o atendimento. Nada pode ser feito sem o consentimento

Sobre C om portam ento < C ognição


do cliente, após reflexão cuidadosa sobre vantagens e desvantagens prováveis. No entanto,
se o cliente estiver sem capacidade de decidir, psicótico, com prejuízo cognitivo e/ou risco
de suicídio, comunicar-se prontamente com o médico e informar a família torna-se um
imperativo ético, o qual justifica quebrar eventuais acordos estabelecidos com o cliente (a
respeito das relações triangulares entre psicoterapeutas, seus pacientes e médicos,
sugere-se o artigo de Chiles, Carlin, Benjamin, Beitman, 1991).
Alguns clientes e eu experimentamos com sucesso uma estratégia para
estabelecimento do contato inicial com a família que se mostra refratária ao atendimento
psicológico, e vale partilhar esta estratégia com o leitor. Determinados clientes
identificam corretamente que seu cônjuge (ou qualquer outro parente significativo) estaria
pouco inclinado a vir para terapia. Em muitos casos isto ocorre porque a família se
esquiva do contato, gerado pela terapia, com evidências da relação funcional entre as
características e comportamentos do cliente (referentes, ou não, ao transtorno) e as
características e comportamentos daquele familiar. É usual que o portador seja visto
como desajustado ou doente, e a família, esgotada, com raiva ou desesperança, entende
que já faz o melhor por aquela pessoa. Aceitaria no máximo ser orientada, talvez tirar
dúvidas, conversar algumas vezes com o terapeuta, para ajudá-lo a ‘'consertar” o
comportamento disfuncional do cliente. Se esta é a única via de acesso, e apenas se
houver uma sólida relação terapêutica, pode-se combinar que a famiiia seja inicialmente
atendida, pelo terapeuta do cliente ou outro membro da equipe, partindo-se desta
expectativa distorcida. Com habilidade refinada e algum tempo, o terapeuta poderá
ensinar a todos que:
-O cliente não é culpado pelo transtorno psiquiátrico e sua condição psiquiátrica não
deveria ser a característica definidora da individualidade, e que ninguém escolhe ser
acometido pelo transtorno (ao contrário, uma combinação entre genética, ambiente
físico e social e outros fatores elegeu o portador);
o relacionamento familiar funciona com base numa rede de relações de influência
recíproca, da qual todos participam, quer planejem, ou não, tal efeito e, portanto, padrão
de relacionamento pode ser modificado se os indivíduos envolvidos aprenderem novos
comportamentos (na linguagem leiga, “vamos descobrir novas alternativas, e se errarmos,
será um erro novo, chega de fazer sempre o que já sabemos que não funciona");
•a terapia conjugal ou familiar não pode se tomar foro privilegiado para discussões estéreis,
acusações, cobranças e vitimizações, mas sim um espaço, conduzido profissionalmente
e com regras democraticamente estabelecidas, para facilitação do diálogo assertivo,
aprendizagem de estratégias de enfrentamento, formação de relações de apoio mútuo
em direção ao crescimento, resolução de problemas e desenvolvimento da autonomia.
Geralmente é possível chegar a um consenso e envolver o casal (por exemplo)
na discussão sobre como resolver seus vários problemas (de relacionamento sexual,
educação dos filhos, finanças, comunicação, estilo de vida, metas, valores norteadores
da vida a dois, etc.). O transtorno psiquiátrico muitas vezes sairá de cena, para se tornar
pano de fundo, e ceder espaço para a análise funcional e intervenção sobre os
relacionamentos entre os participantes. Neste caso, haveria uma alternância entre
focalizar os efeitos dos sintomas psiquiátricos sobre todos e o planejamento e
implantação de estratégias mais amplas, com foco nas interações familiares.
Em suma, precisamos atentar para o tato de que casos psiquiátricos como TOC e
TB podem se beneficiar da associação entre farmacoterapia e múltiplas formas de intervenção
analítico-comportamentat, visando reduzir a aversividade do tratamento, promoção da
qualidade de vida para o portador e familiares e melhor controle dos transtornos psiquiátricos,

Kcoina C hristlna W íetensk«


Referências

Chiles JA, Carlin AS, Benjamin GAH, Beitman BD (1991). A physician, a nonmedical psychotherapist,
and a patient: the pharmacotherapy-psychotherapy triangle. In: Beitman BD, Klerman GL
(orgs.), integrating pharmacotherapy and psychotherapy. Washington (DC): American
Psychiatric Press, p. 105-118.
McLean P, Whrttal ML, Thordarson DS, Taylor S, Sqchtingl, Koch WJ Paterson R , Anderson KW
(2001). Cognitive Versus Behavior Therapy In the droup Treatment of Obsessive-Compulsive
Disorder. J Consulting and Clinical Psychology, Vol. 69, N°. 2, 205-214
Miklowitz DJ, George EL, Richards, JA, Simoneau TL, Suddath RL (2003). A Randomized Study of
Family-Focused Psychoeducation and Pharmacotherapy in the Outpatient Management of
Bipolar Disorder, Arch Gen Psychiatry, 60: 904-912,
Scott J (2006). Psychotherapy for bipolar disorders - efficacy and effectiveness. J Psychophannacology
Vol. 20, No. 2 suppl, 46-50.
Wie/enska RC (2001). Terapia comportamental do transtorno obsessivo-compulsivo. Rev. Bras.
Psiquiatr., vol. 23, suppl. 2, Sao Paulo.

S obre C o m portam ento t C ognição

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