Russell nos convida a averiguar a insuficiência do sistema axiomático de Peano no
que tange ao estabelecimento da teoria dos números naturais. Primeiramente, os três dos seus primeiros axiomas cardeais, i.e., “0 é um número”, “o sucessor de qualquer número é um número” e “não há dois números com o mesmo sucessor”, são passíveis de cadeias indeterminadas de interpretações distintas que satisfazem positivamente as suas cinco proposições. Por exemplo, se admitirmos que “0” signifique “30” e que “número” signifique os números a partir de 30 na série de números naturais, todos os axiomas estarão satisfeitos. Por outro lado, se uma interpretação postular que “número” signifique meramente um “número par”, teríamos uma série de números naturais correspondente a “0, 2, 4, 6, 8, 10, ...” que verificaria, de igual modo, as proposições em questão. Com efeito, Russell nos diz que qualquer progressão – isto é, uma série na qual há um termo inicial, um sucessor para cada termo subsequente de modo que não haja um último, sem repetições e na qual qualquer termo possa ser atingido, partindo do início, por um número finito de passos – satisfaz o sistema axiomático de Peano. Uma progressão não precisa ser, necessariamente, formada a partir de números. Os seus itens constituintes podem ser pontos no espaço, momentos no tempo ou qualquer série infinita de termos. Desse modo, uma vez que não há critério da qual dispomos, nos axiomas de Peano, para que possamos distinguir uma interpretação possível das demais, cabe ao nosso bom-senso que tomemos as proposições de “0” como não significando “1000”, “Lua”, ou qualquer outra coisa. Assim, os termos “0”, “número” e “sucessor” falham em ser definidos a partir das prescrições fornecidas pelo sistema de Peano. Os nossos números não deveriam, meramente, verificar fórmulas; queremos, antes, que eles se adequem à noção primitiva, que já se encontra em nós, embora não de maneira analítica, de correspondência com nossos dedos, braços, pernas, enfim, à totalidade dos objetos comuns passíveis de ser contados. Uma série proposicional da qual “1” pode significar “8” e “2” significar “9” não serve para os fins da vida cotidiana. Portanto, não podemos explicar os conceitos fundamentais usados por Peano em termos de outros, mais simples, donde resulta uma lacuna definicional que resulta os problemas que já ressaltamos. Desse modo, tais axiomas se veem malsucedidos em prover uma base sólida à aritmética, pois, quando qualquer progressão os satisfazem, não podemos saber se existem quaisquer conjuntos de termos que verificam os axiomas, nem sequer temos coordenadas para descobrir se há tais conjuntos. Além disso, a parte de meras propriedades formais, nossos números demandam significado definido para que sejam aplicáveis aos objetos ordinários. Sendo assim, o sistema axiomático de Peano não nos serve para fundamentar a aritmética, uma vez que, como já nos disse Frege, essa tarefa só pode ser cumprida a partir de uma definição rigorosa do conceito de número e das proposições mais simples válidas para os números inteiros positivos.