Você está na página 1de 5

Capítulo 10

Motivação: uma tradução comportamental


Kachd Nunes iht Cunha'
( /mvaxuhidc </<• Hi.islli.i

Em primeiro lugar, quero agradecer à Presidente da ABPMC, Dra. Rachel Rodrigues


Kerbauy, pelo honroso convite para participar do VIII Encontro Brasileiro de Psicoterapia e
Medicina Comportamental. Foi-me solicitado que falasse sobre motivação, no tema
proposto para esta mesa redonda: É possivel a análise do com portamento traduzir
termos da Psicologia? Esta questão nos leva, em primeiro lugar, a explicitar que "a
análise do comportamento desenvolveu-se como uma linguagem da psicologia, aperfeiçoou
métodos de estudo para questões tradicionais da psicologia, abriu novos campos de
pesquisa e gerou tecnologias em uso por toda parte" (Todorov, 1982, 14). Isso tem se
confirmado ao longo de um período de mais de 50 anos do lançamento do empreendimento
de B. F. Skinner de promover uma ciência do comportamento: nesse sentido, o analista
do comportamento, respaldado por um conjunto de pressupostos básicos e de uma
metodologia experimental, tem desenvolvido um corpo teórico e sistemático de
conhecimento psicológico.
Esse conhecimento é diferenciado de outras abordagens psicológicas, principal­
mente no que concerne à linguagem utilizada para descrever as relações comportamentais
estudadas. Vários termos psicológicos são oriundos da linguagem coloquial, por exem­
plo, memória, consciência, inteligência, personalidade, desenvolvimento, aprendizagem,
emoção, motivação e muitos outros termos. A questão aqui colocada é se há possibilida­
des de termos como estes serem traduzidos para uma linguagem na perspectiva analíty-
co-comportamental. Antes de responder à questão, considerando o termo motivação, fai-
se necessário dizer que o traduzir, aqui colocado, significa a ênfase acerca dos enuncia­
dos que utilizamos para descrever uma relação comportamental, pois os termos psicoló­
gicos, tradicionalmente empregados pela psicologia, têm sido usados também por analis­
tas do comportamento que, ao usarem-no, identificam as condições de estímulos que os
1 Instituto de Psicologia - Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Asa Norte 70910-900 - Brasília
- DF (0xx61) 307-2625 (ramal 513). Internet: rdacunha@unb.br

74 Rachel N u n e s da C u n h a
produziram. Por exemplo, falamos em aprendizagem quando observamos uma criança
falar "mamãe" na presença de sua mãe. Em várias situações anteriores, observamos essa
criança falar "mam" e ser beijada e acariciada por sua mãe, que diz em seguida "parabéns!
você sabe falar “mamãe"; situações como esta nos permite descrever o comportamento
da criança e as condições de estímulos nas quais este comportamento ocorreu. Segundo
Skinner (1945), reforçamentos consistentes de respostas verbais na presença de estímu­
los pressupõem a ação desses estímulos sobre o comportamento do falante e da comu­
nidade reforçadora.
Parece ser problemática a situação de respostas verbais aos estímulos privados,
mas essas respostas são adquiridas e mantidas por reforçamentos apropriados baseados
em eventos públicos. Dessa forma, a comunidade verbal ensina uma criança a falar “meu
joelho dói”, por exemplo, logo após uma queda que produz escoriações no joelho. Assim,
a linguagem dos eventos privados está ancorada nas práticas públicas da comunidade
verbal, e o tratamento do comportamento verbal em termos de relações funcionais entre
respostas verbais e estímulos proporciona ao analista do comportamento uma alternativa
para enunciar relações comportamentais que pode ser o que estamos chamando aqui de
"tradução" desses termos psicológicos para a linguagem analítico-comportamental.
Neste momento, passo a tratar do termo motivação para falamos dessa possibilida­
de de tradução.

1. Motivação

O conceito de motivação tem sido considerado como um fator determinante da


ação humana, historicamente esse conceito passou por várias concepções; por exemplo,
instinto, impulso e a retomada do conceito de instinto em uma perspectiva etológica.
Essas abordagens tratam a variável motivacional como processos internos determinantes
do comportamento. Tratados sobre motivação como, por exemplo, Mook (1987), ilustram
a diversidade do conceito de motivação na psicologia, o que nos leva a concluir que a
questão fundamental está no tratamento das variáveis controladoras do comportamento,
definidas por essas abordagens como processos internos inferidos. A tradução de termos,
tais como motivação, pela análise do comportamento passa por essa questão do tratamento
de variáveis controladoras do comportamento.
Na análise do comportamento, o papel de tais processos internos inferidos tem
sido minimizado em favor de causas ambientais do comportamento (da Cunha 1995).
Enfatizando o papel das variáveis ambientais como controladoras do comportamento, Skinner
(1938,1953) define motivação em termos de operações de privação, saciação e estimulação
aversiva. Dessa forma, poderíamos dizer que o termo motivação foi traduzido para a lin­
guagem analítico-comportamental que enfatiza as condições nas quais o comportamento
ocorre.
Também na perspectiva da análise do comportamento, Keller e Schoenfeld (1950)
enfatizaram a necessidade de se conceituar motivação como variáveis ambientais
controladoras do comportamento de forma a evitar o conceito de impulso dos behavíoristas
metodológicos, como, por exemplo, Clark Hull. Keller e Schoenfeld chamavam a atenção
para outros eventos ambientais além dos eventos que funcionam como reforçadores, intro­

Sobrc Com p o rtam e nto e C o ^ n iç A o 75


duzindo o termo “operação estabelecedora" para identificar esses eventos e demonstrar a
sua função motívacional. Com o termo operação estabelecedora, esse autores definiram
motivação na linguagem analítico-comportamental, demonstrando que podemos tratara
variável motivacional como uma variável independente que pode ser manipulada experi­
mentalmente. Essa tradução implica em poder executar certas operações sobre o orga­
nismo (e,g., privá-lo de alimento). Segundo Keller e Schoenfeld, estas operações têm
efeitos sobre o comportamento, que indicam uma mudança momentânea da efetividade
de um evento como reforçador e da mudança da freqüência de qualquer comportamento
que tem sido seguido por esse evento reforçador.
Na mesma linha de análise, a possibilidade de traduzir o termo motivação para a
linguagem da análise do comportamento foi considerada por Millenson (1967) que identifi­
cou o conceito de impulso (drive) como um meio de enfatizar"... a habilidade de certas
operações de estabelecer reforçadores...”. Millenson classifica dois tipos de operações
de impulso (drive operations):
1 . uma que tem a função de reduzir ou eliminar o valor reforçador (saciação) e outra

2.que trabalha para aumentar o valor dos reforçadores (privação)" (Millenson, 1967,
p. 366, citado em da Cunha, 1985, p.12).
Preocupado, também, com a linguagem, ou seja, com a forma de enunciar rela­
ções funcionais que envolvem interações do indivíduo com o ambiente, Michael (1982,
1993) retomou o conceito de operação estabelecedora, a partir de Keller e Schoenfeld
(1950) para definir motivação em uma linguagem analítico-comportamental. Michael in­
cluiu “um tipo de variável motivacional aprendida que não foi explicitamente tratada por
Skinner, 1938, 1953; Keller e Schoenfeld, 1950 e Millenson, 1967“. (da Cunha, 1995).
Essa foi uma das grandes contribuições de Michael para a análise do comportamento,
estabelecendo um novo instrumento conceituai e metodológico, caracterizado como ope­
rações estabelecedoras condicionais, especialmente as do tipo transitivas que tem sido
utilizadas para, efetivamente, tratarmos o conceito de motivação nessa linguagem.
Para tanto, Michael (1993) defirie uma operação estabelecedora (EO) como uma
variável ambiental e em função de seus dois efeitos denominados de: a) Efeito Estabelecedor
do Reforço e b) Efeito Evocativo. O efeito estabelecedor é caracterizado por, momentane­
amente, alterar a efetividade reforçadora de algum objeto evento ou estimulo; e o efeito
evocativo é caracterizado por, momentaneamente, alterar a freqüência de um tipo de com­
portamento que tem sido reforçado por aquele objeto, evento ou estímulo.
Michael (1993) também propõe que as operações estabelecedoras sejam classifi­
cadas em duas categorias: a) operações estabelecedoras incondicionais (UEOs) que são
de origem filogenética e variam de espécie para espécie, e b) operações estabelecedoras
condicionais (CEOs) que têm origem ontogenética e, portanto, relacionadas com a histó­
ria de cada organismo. Esses dois tipos de operações estabelecedoras são diferenciados
a partir do efeito estabelecedor do reforço, pois este pode ser inato ou aprendido, caracte­
rizando uma operação estabelecedora incodicional ou condicional, respectivamente. Quanto
ao efeito evocativo, este é geralmente aprendido em ambos os tipos de EOs (UEOs e
CEOs). Por exemplo, privação de água é um exemplo de UEO: água torna-se mais efetiva
como forma de reforçamento para muitos mamíferos como resultado da privação de água
sem nenhuma história de aprendizagem, mas o repertório comportamental para adquirir
água é aprendido por esses organismos.

76 R.ichcl N u n e * d.i C u n h a
No que concerne às operações estabelecedoras condicionais, elas tôm recebido
uma atenção maior dos pesquisadores na tarefa da demonstração empírica desse concei­
to motivacional e ainda foram classificadas por Michael (1993) em três tipos:
1)operaçào estabelecedora condicional substituta - refere-se a uma relação simples,
envolvendo uma correlação temporal de um evento, previamente neutro, que sis­
tematicamente antecede uma UEO ou uma CEO, resultando que deste
emparelhamento, aqueíe evento adquire a característica motivacional da UEO ou
da CEO com a qual fora emparelhado:
2 )operação estabelecedora condicional reflexiva - refere-se a uma relação mais com­

plexa em “que um evento ou estímulo sistematicamente precede alguma forma de


estimulação aversiva e, se ó removido antes da ocorrência da estimulação aversiva,
a estimulação aversiva deixa de ocorrer. São exemplos de CEO reflexiva os procedi­
mentos de esquiva sinalizada. Neste caso, o evento ou estímulo sinalizador funciona
como uma variável motivacional do tipo CEO reflexiva, e não como um estímulo
discriminativo, como enfatiza a literatura sobre esquiva sinalizada (Michael, 1993).
Esse tipo de CEO foi assim denominada por Michael porque o estímulo sinalizador
adquire a capacidade de estabelecer sua própria remoção como forma efetiva de
reforçamento condicionado e evoca qualquer comportamento que tenha produzido a
supressão deste estimulo reforçador condicionado" (da Cunha, p. 13).
3)operação estabelecedora condicional transitiva - das três relações esta é a mais
complexa e refere-se à efetividade de muitas formas de reforçamento condicionado
que pode depender de uma condição de estímulo na qual esses reforçadores
condicionados foram estabelecidos. Esse tipo de operação estabelecedora tem
sido utilizado para demonstração empírica desse conceito de motivação com
alguns trabalhos publicados (MCPherson e Osborne, 1986,1988) e com alguns
trabalhos não publicados (Lubeck, R. C. e McPherson, A., igSô1' ; McPherson,
Trappe Osborne, 19843; Alling, 1990 e da Cunha, 1993).
A concepção analítico-comportamental do conceito de motivação, como operações
estabelecedoras, não só contribui com a possibilidade de tratarmos de termos tradicio­
nais da psicologia, como também estabelece uma nova linha de pesquisa, que tem como
desafio desenvolver um procedimento que permita demonstrar empiricamente como se
estabelece o controle motivacional sobre o comportamento.
Concluindo, acredito que, enquanto analistas do comportamento, fazemos muito
mais do que meramente traduzir termos psicológicos, podemos falar de comportamento
humano a partir de um sistema de relações funcionais que são descritas em linguagem
clara e objetiva, evitando confusões conceituais e, ainda permite-nos predizer e controlar
o comportamento com perspectivas de desenvolver tecnologias comportamentais
Um dos aspectos fundamentais da proposta de Michael é a possibilidade de que a
análise do comportamento tem de investigar o controle de variáveis motivacionais, como
variáveis independentes, proporcionando, de certa forma, o resgate do tópico de motiva­
ção para uma abordagem analítica comportamental. Verifica-se que mesmo com a ressal­

' MCPHERSON, A, TRAPP, N. L & OSBORNE. J G. (19B4, May). Regular and unpredlctable onset of lhe eutablishlng
stimulus. In J Q. Oaborno (chaír), The eítabllshing stirnulus Theory development and ongoing research. Sympoaium
conducted at lhe Tonth Annual Convention of th« Association for Behavior Analysis. Nashivllle, TN.
1LUBECK, R, C MCPHERSON, A. (1986, May). Establlshing stimuli with pigeons Prucedure, paramotera, and point of
wew Papor presented at tho meetlng of tho Twelfth Convention of tho Aasociation for Behavior Analysis, Milwaukeo, Wls

Sobro C om p o rtam e nto o Coflntçclo 77


va de Keller e Schoenfeld (1950) para a importância do conceito de motivação, este ficou,
por muitos anos, colocado em segundo plano, talvez em favor, por exemplo, das investiga­
ções sobre esquemas de reforçamento. A proposta conceituai e metodológica de opera­
ções estabelecedoras, retomada por Michael, não apenas estabelece uma nova linha de
pesquisa na análise experimental como também prioriza a variável motivacional como
evento ambiental tratado como uma variável independente, ou seja, enfatiza o estudo do
controle dessa variável sobre o comportamento.

B ibliografia

Alling, K. L. (1990). The effects of a conditioned establlshing operation on performance of two


component chain. Dissertação de mestrado Western Michigan University, Kalamazoo,
Ml.
Cunha, R. N. da (1993). An experimental demonstration ofthe transitive conditioned establishing
operation with pigeons. Tese de doutoramento, Western Michigan University, Kalamazoo,
Ml.
_____ (1995). Motivação e análise do comportamento. Temas em Psicologia. (Sociedade
Brasileira de Psicologia), 3, 11-18.

Keller, F. S. & Schoenfeld, W. N. (1950). Principies of Psychology. New York: Applenton-Century-


Crofts.
McPherson, A. & Osborne, J. G. (1986). The emergence of establishing-stimulus control.
Psychological Record, 36, 375-386.
_____ Osborne, J. G. (1988). Control of Behavior by an establishing stimulus. Journal of the
Experimental Analysis of Behavior, 49, 213-227.
Michael J. (1982). Distingulshing between discriminative and motivational functions of stimuli.
Journal of the Experimental Analysis of Behavior, 37, 149-155.
_____ (1993). Establishing operations. The Behavior Analist, 16, 191-206.

Millenson, J. R. (1967). Principie of Behavior Analysis. New York: Macmilliam,


Mook, D. G. (1987). Motivation. New York: W. W. Norton and Company.
Skinner, B. F. (1938). The Behavior of Organism. New York: Applenton-Century-Crofts.
_____ (1945). The operational analysis of psychological terms. Psychological Review, 52, 270-
273.
_____ (1953). Science and Human Behavior. New York: Macmilliam.
Todorov, J. C. (1982). Behaviorismo e Análise Experimental do Comportamento. Cadernos de
Análise do Comportamento, 3, 10-23.

78 Rachel N u n e s da C u n lta

Você também pode gostar