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Deveres Fundamentais

de Solidariedade
Deberes fundamentales de solidaridad
Fundamental Duties of Solidarity

Suzana Ma. Fernandes Mendonça1


1
Universidad de Lisboa, Portugal
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4159-6819
https://doi.org/10.22235/rd.v18i2.1666

Resumo: Os deveres fundamentais configuram-se como um tema frequentemente pre-


terido pela doutrina e pela jurisprudência, especialmente quando comparados com
toda a atenção dedicada aos direitos fundamentais. Entretanto, tal fato não diminui
a sua relevância valorativa para a sociedade, uma vez que constituem instrumentos
para a garantia dos meios indispensáveis não apenas para a concretização de direitos
fundamentais, mas propriamente para o alcance do bem estar social. Os deveres fun-
damentais de solidariedade, por sua vez, representam aqueles que contém um maior
grau de empatia, de modo a serem executados com o intuito de colaborar com aque-
les grupos sociais que, de alguma forma, encontram-se em situação desfavorecida. A
cooperação coletiva, de maneira complementar à atuação do Estado, é substancial na
busca pela redução dos desníveis sociais inerentes à uma comunidade, como forma
de entregar aos menos favorecidos os mecanismos imprescindíveis para uma vida com
dignidade.
Palavras-chave: deveres fundamentais, deveres fundamentais de solidariedade, dig-
nidade humana, bem-estar social.

Recibido: 23/08/18. Evaluado: 20/09. Aprovado 03/10.

Revista de Derecho (UCUDAL). 2da época. Año 14. N° 18 (dic. 2018). ISSN 1510-3714. ISSN on line 2393-6193
Suzana Ma. Fernandes Mendonça, Deveres Fundamentais de Solidariedade, 91-116

Resumen: Los deberes fundamentales constituyen un tema frecuentemente preterido


por la doctrina y la jurisprudencia, especialmente cuando comparados con toda la
atención dedicada a los derechos fundamentales. Sin embargo, tal hecho no disminuye
su relevancia valorativa para la sociedad, ya que consisten en instrumentos para la
garantía de los medios indispensables no sólo para la concreción de derechos funda-
mentales, sino propiamente para el alcance del bienestar social. Los deberes funda-
mentales de solidaridad, a su vez, representan aquellos que contienen un mayor grado
de empatía, para ser ejecutados con el propósito de colaborar con aquellos grupos
sociales que, de alguna forma, se encuentran en una situación desfavorecida. La coo-
peración colectiva, de manera complementaria a la actuación del Estado, es sustancial
en la búsqueda por la reducción de los desniveles sociales inherentes a una comunidad,
como forma de entregar a los menos favorecidos los mecanismos imprescindibles para
una vida con dignidad.
Palabras clave: deberes fundamentales, deberes fundamentales de solidaridad, dig-
nidad humana, bienestar social.
Abstract: Fundamental duties are set as a theme often overlooked by the doctrine and
the jurisprudence, especially when compared to all the attention devoted to fundamental
rights. However, this fact does not diminish their value relevance for society, since they
are instruments for guaranteeing the means indispensable not only for the realization
of fundamental rights, but also for the achievement of social welfare. The fundamental
duties of solidarity, in turn, represent those that contain a greater degree of empathy, so
that they are executed with the intention of collaborating with those social groups that
are in any way disadvantaged. Collective cooperation, in a complementary way to the
State’s performance, is substantial in the search for the reduction of the social differenc-
es inherent to a community, as a way of delivering to the less privileged the indispensable
mechanisms for a life with dignity.
Key Words: fundamental duties, fundamental duties of solidarity, human dignity, social
welfare.
Sumário: I. Deveres fundamentais. 1. Breve contextualização histórica. 2. Conceito. 3.
Classificação. II. Solidariedade e valor comunitário. 1. Dignidade como fundamento.
2. Dimensão social dos deveres. 3. Bem comum como fonte de deveres. III. Deveres
fundamentais de solidariedade. 1. Definição. 2. Hipóteses. 3. Solidariedade intergera-
cional. Conclusões finais.

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I.
DEVERES FUNDAMENTAIS

Qualificado como um dos temas mais preteridos do Direito Constitucional2, os de-


veres fundamentais se conservam presentes nos atuais textos constitucionais, porém na pe-
numbra dos direitos fundamentais, nomeadamente, quando a perspectiva em questão é a
atenção e o desenvolvimento doutrinários e jurisprudenciais. Apesar da reduzida repercussão
constitucional, especialmente no contexto de comparação com os direitos fundamentais3, os
deveres fundamentais constituem categoria jurídica autônoma4.
A concepção de deveres, por sua vez, é recorrente nas mais variadas civilizações e mo-
mentos históricos, de modo a estar presente nas esferas religiosa, filosófica e ética5. Avançaram,
assim, junto aos direitos, uma vez que a percepção de que ambos são indissociáveis perma-
nece atual, até mesmo em razão de o conjunto formado por direitos e deveres representar
valores de elevada significância para a convivência harmônica em uma comunidade6.
Entretanto, assumiram a categoria de deveres fundamentais a partir do momento que
passaram a constar de documentos constitucionais, de modo a imporem ao indivíduo o seu
devido cumprimento. Logo, de tal fato constata-se que a uma sociedade reputa-se imprati-
cável o cenário em que exista apenas um extenso catálogo direitos, não somente em razão
da inviabilidade do Estado em proporcionar a toda a comunidade nacional a integralidade
das estruturas sociais necessárias, considerando particularmente o limite orçamentário, mas
principalmente devido ao fato de que aos indivíduos são exigidos determinados deveres fun-
damentais, indispensáveis para a consciência coletiva.
Nesse sentido, seria inviável a convivência em uma sociedade onde houvessem ape-
nas direitos, já que de seus membros não se extrairia um nível mínimo de responsabilidade
2
José Casalta Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, (Coimbra: Almedina, 2015), 15.
3
Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012), 771.
4
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 36.
5
Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, Tomo IV, (Coimbra: Coimbra
Editora, 2015), 110.
6
Sarlet, A Eficácia, 770.

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social. A existência de deveres, portanto, manifesta-se essencial para a concretização dos


próprios direitos, uma vez que confere justamente esse sentido de responsabilidade social,
através da colaboração mútua, com a finalidade de alcançar o bem estar coletivo.

1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A história convive com a presença dos deveres nas mais variadas sociedades e em
diversos períodos. Na Grécia Antiga, por exemplo, haviam os deveres associados aos direitos
políticos na polis. Já na Roma Antiga, eram recorrentes os deveres conexos às numerosas
relações entre privados, especialmente o dever de respeito à bona fides7. Ou mesmo na Idade
Média, com aqueles deveres do vassalo para com seu suserano.
Os deveres, aliás, são tema recorrente na Filosofia. Cícero, por exemplo, discorreu
sobre os deveres nos mais variados graus de sociedade, do considerado como gênero huma-
no ao grupo de pessoas que falam a mesma língua. Os indivíduos, nesse sentido, deveriam
manter suas relações em harmonia, de modo a criar um senso de amizade, já que é mais fácil
e simples a prestação para com aqueles mais próximos8.
Santo Agostinho, por sua vez, trata sobre os deveres do homem para com Deus. O in-
verso, em seu pensamento, não seria possível, já que tudo é dado aos homem de maneira gra-
tuita. Ao indivíduo é atribuída responsabilidade por tudo que recebeu, como consequência,
a existência de determinados deveres9 associados à prática do bem. Outros grandes filósofos
também dedicaram-se ao tópico, como John Locke e Thomas Hobbes.
A ideia de deveres, portanto, surgiu inicialmente nos campos ético, filosófico e re-
ligioso. Apenas veio a tomar contornos mais próximos ao conteúdo atual de deveres fun-
damentais a partir da Constituição de Massachussets, no ano de 1780, momento que um
dispositivo referente aos deveres constou de um documento constitucional. Era prescrito
que cada cidadão estaria obrigado a contribuir mediante serviços pessoais ou mediante um
equivalente para a organização da proteção comunitária.
Posteriormente, em 1789, os deveres constaram da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, sendo três: o dever de obediência, o dever de pagar impostos e o
dever de suportar a privação da propriedade em caso de expropriação para fins de utilidade

7
Flávio Rubinstein, “A Bona Fides como Origem da Boa Fé Objetiva no Direito Brasileiro”, Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, (2004): 580.
8
Marco Túlio Cícero, Dos Deveres, (Lisboa: Edições 70, 2017), 46-47.
9
Santo Agostinho, O Livre-Arbítrio, (São Paulo: Paulus, 1995), 202-203.

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pública. Desde o início desse período, os deveres passam então a constar, seja em maior ou
em menor escala, dos documentos constitucionais do estado liberal10.
O panorama somente é alterado a partir do momento em que os deveres deixaram de
repercutir em uma determinada proporção em virtude da queda dos regimes totalitários11.
Deveres de ordens diversas estruturavam a substância emanada pelo totalitarismo, que se
utilizava de ideologia para obter o apoio do brutal vigor das massas como forma de dura-
doura manutenção no poder12. Era oportuna e necessária, portanto, a instituição de sistemas
constitucionais consideravelmente sólidos na proteção e promoção de direitos fundamentais,
até como forma de rompimento com os ideais passados. A tentativa era precisamente o esta-
belecimento de um completo antagonismo em relação aos regimes totalitários anteriormente
vigentes.
Os direitos fundamentais, após o fim da fase totalitária, passam a ser alargados e prio-
rizados, o que acarretou na construção de expressões constitucionais protetoras dos direitos
da pessoa, bem como no modelo de Estado de Direito ou Estado de direitos fundamentais13.
Logo, o papel dos deveres padeceu de uma redução na intensidade de influência quando em
comparação com os demais valores emitidos pelas constituições que sucederam tal período.

2. CONCEITO

A percepção de direitos fundamentais meramente como instrumento de poder in-


dividual contra o Estado não é compatível com o verdadeiro significado da relação entre
Poder Público e indivíduo, já que ao Estado não caberiam apenas deveres, nem mesmo
aos cidadãos seriam viabilizados apenas direitos14. Os deveres, dessa forma, impulsionam os
membros de uma comunidade a agirem não apenas conforme aquelas obrigações para com o
Estado, que em ampla perspectiva atingem a própria coletividade, mas, essencialmente, em
serviço uns dos outros, em benefício da sociedade.
Algumas concepções clássicas apontam no sentido de que o Estado de Direito não
seria compatível com a ideia de deveres fundamentais, uma vez seu conteúdo é marcado es-
sencialmente pelos direitos fundamentais. Entretanto, a pessoa humana representa o núcleo

10
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 44-45.
11
Paulo Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, Vol. I, (Coimbra: Almedina, 2016), 537.
12
Hannah, Arendt. Origens do Totalitarismo, (São Paulo: Companhia de Bolso, 2012), 278.
13
Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 537.
14
José Carlos Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, (Coimbra:
Almedina, 2004), 160.

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de um Estado de Direito, de modo a constituir a sua dignidade conteúdo inviolável em todo


o sistema.
Diferentemente das concepções clássicas, portanto, o moderno Estado de Direito é
adequadamente compatível com os deveres fundamentais, bem como com a responsabilida-
de que deles emergem em uma sociedade cujo objetivo é o respeito pela dignidade humana15.
Nessa perspectiva, assim como os direitos fundamentais, o apoio estrutural dos deveres fun-
damentais é justamente o ser humano e sua dignidade16.
Os deveres, assim, configuram-se como situações jurídicas de caráter passivo, nas
quais há a vinculação com uma determinada conduta, seja de agir ou não agir. Na hipótese
de os deveres serem consagrados em textos constitucionais, identificam-se como deveres fun-
damentais17. Constituem, portanto, deveres jurídicos do indivíduo associados a um sentido
especial para a comunidade, de modo a também poderem ser por esta vindicados18.
Identificam-se, nesse sentido, como uma participação dos cidadãos na vida públi-
ca, enquanto forma de respeito pelas normas constitucionais19, de modo a se compromete-
rem solidariamente com o desenvolvimento das adequadas condições estruturais sociais20.
Caracterizam-se, nessa perspectiva, por revelarem o objetivo de se alcançar uma ordem de na-
tureza social, tendo como instrumento a colaboração entre todos os membros da sociedade.

3. CLASSIFICAÇÃO

Há diversas formas de classificação quanto ao tema de deveres fundamentais, ape-


sar de a divisão não ocorrer de maneira similar aos direitos fundamentais21. As categorias
de deveres podem ser separadas a partir daqueles considerados como cívico-políticos, que
representam um certo grau de responsabilidade para com o funcionamento do Estado22,
caso dos deveres de voto ou de defesa da pátria. Os deveres de natureza econômica, social
e cultural, por sua vez, que emitem valores necessários à preservação e promoção de meios

15
Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 539.
16
Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 537.
17
Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 110.
18
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 64.
19
Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, 772.
20
Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 160.
21
J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, (Coimbra: Almedina, 1993), 549.
22
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 114.

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devidos para a manutenção de uma sociedade, como a defesa do patrimônio cultural ou do


meio ambiente.
Os deveres gerais23 ou de prestação geral são válidos para todos os cidadãos sem dis-
tinção, como o dever de contribuição com o sistema tributário, também conhecido como
dever de pagar impostos. Já os deveres de prestação especial são aqueles cujos agentes ativos
são pessoas específicas24, como por exemplo, os militares e seus diversos deveres.
Verifica-se, ademais, outra divisão, entre deveres autônomos e deveres conexos com
direitos fundamentais. Os deveres conexos são aqueles que representam uma espécie de re-
flexo dos direitos fundamentais, ou, ainda, apresentam uma compatibilidade de conteúdo,
tais como o dever de defesa e promoção da saúde ligado ao direito à proteção da saúde ou
dever de defesa do ambiente associado ao direito ao meio ambiente25 ecologicamente equi-
librado. Inclusive, se houver descumprimento parental do dever de educação e manutenção
dos filhos, conectado ao respectivo direito, os pais ficam sujeitos, desde que em razão de de-
cisão judicial, à serem separados pelos seus filhos, justamente pelo desrespeito pelos devidos
deveres fundamentais.
Os deveres conexos com direitos indicam, entretanto, a extensão dos obstáculos na
tarefa de delimitação exata do que seria o direito, refletido como uma vantagem, e o que seria
o dever, considerado um encargo26. Apesar de tais deveres estarem de certa forma associados
à direitos, não deixam de configurar uma categoria constitucional autônoma em relação aos
direitos fundamentais, explicitada pelos próprios deveres fundamentais27.
Por outro lado, existem aqueles deveres que não se encontram de qualquer forma
relacionados à respectivos direitos, logo, seu conteúdo não coincide com o de direitos fun-
damentais, de modo a serem classificados como deveres autônomos28. Correspondem à tal
categoria, por exemplo, o dever de serviço militar e o dever de colaboração com a adminis-
tração eleitoral.

23
Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 218.
24
Gregório Martínez Peces-Barba, “Los Deberes Fundamentales”, Novissimo Diggesto, (1987): 333-334.
25
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 548.
26
Santiago Varela Diaz, “La Idea de Deber Constitucional”, Revista Española de Derecho Constitucional, ano 2, n.
4, (1982): 70-71.
27
Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 169.
28
Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 548.

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II.
SOLIDARIEDADE E VALOR COMUNITÁRIO

Inicialmente fundamentada nas relações de proximidade e parentesco, a solidariedade


limitava-se à disposição de servir os mais próximos, tidos como aqueles que faziam parte de
um determinado grupo. A aplicação de tal percepção para pessoas que não eram membros de
tal comunidade, como os estrangeiros, era reduzida ou, por vezes, até inexistente.
A difusão do cristianismo, alterou a percepção de solidariedade, uma vez que os va-
lores solidários foram expandidos de modo a atingir o próximo de maneira geral, isto é, não
apenas aqueles cujo vínculo baseava-se na consanguinidade ou no senso comunitário. Assim,
as virtudes de caridade e misericórdia, provenientes dos ideais associados ao cristianismo,
conduziriam a conduta do indivíduo no amparo aos demais, como forma de manifestação
do respeito mútuo. A máxima de amor ao próximo, nesse sentido, reflete-se na moderna
compreensão de solidariedade.
Os estoicos também conferiam à solidariedade um elevado grau de relevância, sendo
considerada como um segmento essencial para a harmônica convivência humana. Nesse
sentido, na hipótese de ser o mundo composto apenas por um organismo, faz-se inevitável a
fraternidade e afinidade entre as suas partes integrantes.
Outro momento expressivo para a construção da atual concepção de solidariedade
foi o período da Revolução Francesa, conduzida por um raciocínio que percorre inevitavel-
mente um certo grau de fraternização29 das estruturas político-sociais da época, o que veio a
repercutir, inclusive, nas ordenações normativas seguintes. A fraternidade acabou por desen-
cadear, ademais, um movimento de estudo político e social, cuja influência repercutiu tanto
na prática como na interpretação política.
A solidariedade, etimologicamente, remonta ao termo solidum que em latim significa
algo coeso, inteiro, compacto30. Está associada, portanto, não apenas à valores éticos, mas
também à concepção de igualdade, uma vez que todos integram uma mesma comunidade e
devem, assim, zelar pelo seu bem estar. As marcas da solidariedade, dessa maneira, perpassam
por comunidades e momentos históricos diversos. Seu conteúdo é profundamente estudado
e aplicado em áreas variadas, de modo a exercer influência considerável nas condições e nos
alicerces que sustentam a vivência coletiva em harmonia.

29
Jean Duvignaud, La Solidarité: Liens de Sang et Liens de Raison, (Paris: Fayard, 1986), 120.
30
Francisco Fernández Segado, “La Solidaridad como Principio Constitucional”, Revista Teoría y Realidad
Constitucional, n. 30, (2012): 142-144.

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1. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO FUNDAMENTO

Consagrada nos mais variados documentos internacionais, bem como em diversas


constituições nacionais, a dignidade da pessoa humana teve seu significado elevado à condi-
ção de conceito jurídico, como consequência desencadeada pelo fim da Segunda Guerra31.
Sua condição superior reflete-se não apenas como um fundamento para ordem jurídica, mas
também da comunidade política, de modo a representar a fonte jurídico-positiva de maior
generalidade de preceitos substanciais32, bem como a origem e o fundamento dos direitos
fundamentais.
Considerado como um valor que emite a ideia de supremacia, a dignidade humana
assegura aos indivíduos uma configuração de igualdade33. Nesse sentido, a dignidade cons-
titui um valor intrínseco à pessoa, e em razão desse conteúdo associado à própria virtude da
humanidade ou mesmo ao significado da existência, todos merecem igual tratamento basea-
do no respeito34. O valor inerente à pessoa, refletido pela dignidade humana, equivale à soma
de aspectos em que todos os seres humanos guardam em comum de maneira intrínseca. Tal
conteúdo intervém na esfera jurídica a partir do momento em que se instala como origem
de direitos fundamentais35. Configura-se, portanto, como dado anterior a qualquer direito e,
ainda assim, os direitos desempenham relevante papel na sua proteção e promoção.
A dignidade, como sustentáculo da atual concepção de Estado Democrático de
Direito, emite um significado cuja essência confere à pessoa uma posição única e absoluta,
de modo a trazer consigo um volume de respeito pela sua humanidade36. O que culmina em
uma proteção do seu estado de ser autônomo e vindica a proibição de qualquer situação que
venha a causar a sua instrumentalização ou objetificação37. O princípio da dignidade, nesse
sentido, atribui ao Estado a tarefa de proteção e respeito, bem como de redução de circuns-
tâncias opositoras para o alcance de uma vida com dignidade38.

31
Luís Roberto Barroso, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo, (Belo Horizonte:
Editora Fórum, 2014), 62.
32
Robert Alexy, Teoria dos Direitos Fundamentais, (São Paulo: Malheiros, 2015), 354.
33
Jorge Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Direitos Fundamentais, Vol. I, (Coimbra:
Almedina, 2016), 62.
34
Martha Nussbaum, Political Emotions, Why Love Matters for Justice, (Cambridge: The Belknap Press of Harvard
Press, 2013), 119-120.
35
Barroso, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo, 76-77.
36
Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Direitos Fundamentais, 58-59.
37
Matthias Mahlmann, “The Good Sense of Dignity: Six Antidotes to Dignity Fatigue in Ethics and Law”, Oxford
University Press, (2013): 597-598.
38
Ingo Wolfgang Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988,
(Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011), 277.

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Por outro lado, tal essência implica não apenas no reconhecimento de sua própria
dignidade, mas também na de cada pessoa39, uma vez constatada a condição de semelhan-
ça. Assim, a dignidade apresenta uma força valorativa de tal forma que além de vincular o
Estado no sentido de garantir sua proteção e promoção, subordina também os indivíduos no
âmbito das relações particulares40, o que se expressa através do respeito mútuo.
Determinados ideais, assim, conduzem atualmente a forma de vivência social, tais
como a tolerância, o respeito, o pluralismo e a inclusividade, todos fundados na igual digni-
dade e liberdade de cada indivíduo. A participação de cada pessoa em condições de liberdade e
igualdade na construção da vontade democrática, impõe aos membros da sociedade requisitos
de convivência comunitária e integração social, de modo a ser respeitado o interesse geral41.
Não é possível descartar, entretanto, a pluralidade humana, que compreende a igual-
dade e a diferença como seus aspectos. A diferença revela a variabilidade existente entre
humanos, que por isso necessitam de discurso e ação para se comunicarem. Já a igualdade
indica justamente o senso de compreensão mútuo, seja em relação às pessoas com quem
convivem ou aos antepassado e até mesmo quanto às gerações futuras42. Ambos são igual-
mente indispensáveis para a realização simultânea de que sãos os indivíduos semelhantes e
diferentes, dentro de sua dignidade43.
A constatação de que a cada pessoa é atribuído valor singular e absoluto, represen-
tado pela amplitude da dignidade humana, produz um senso de respeito à existência e à
autonomia de todos, de modo a suplantar devidamente percepções de bem em caráter in-
dividualista. Uma obrigação entre indivíduos que emana justiça, assim, apenas pode ser
adequadamente posicionada como alicerce da comunidade por eles formada a partir do
conteúdo de reconhecimento e respeito mútuos, que por sua vez, expõem a vontade de agir
em favor do outro.
A dignidade, nesse sentido, contém também um valor comunitário, não apenas exi-
gindo do Estado normas reguladoras do convívio social, mas também determinando aos
indivíduos a formação de metas coletivas. A solidariedade, dessa forma, como instrumento
social para a realização da dignidade da pessoa, expõe-se justamente como efeito do processo
de reconhecimento da dignidade individual e de todos. Logo, se a dignidade exprime-se
como o reconhecimento não apenas da sua própria dignidade mas também da dos demais, a

39
Wambert Gomes Di Lorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade, (Rio de Janeiro: Elsevier, 2010), 18.
40
Sarlet, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988, 278.
41
Reis Novais, A Dignidade da Pessoa Humana, Dignidade e Direitos Fundamentais, 63.
42
Hanna Arendt, A Condição Humana, (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007), 188.
43
Barroso, A Dignidade da Pessoa Humana no Direito Constitucional Contemporâneo, 87.

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solidariedade identifica-se no empenho para a realização do outro, até mesmo como forma
de realização pessoal.

2. DIMENSÃO SOCIAL DOS DEVERES

A pessoa, por não se tratar de um ser isolado ou solitário, é na realidade um indivíduo


socialmente solidário, de modo a suceder de tal ideia a criação de um vínculo entre sociedade
e homem, que faz deste um ser livre, porém responsável44. Essa sociabilidade, assim, conduz
à realização de que não se vive isoladamente, o que acaba por proporcionar ao agir humano
um sentido ou significado único: a consciência de que a dignidade do outro é de certa forma
a sua própria. O ato de se identificar no outro, nesse sentido, desenvolve um sentimento de
correlação humana.
Para que a pessoa autônoma integre uma comunidade política, nesse sentido, é es-
sencial ela seja capaz de sentir empatia em relação aos outros, circunstância que posiciona
a todos na condição de semelhantes45. Esse senso de empatia e reciprocidade impulsiona o
indivíduo à um empenho na colaboração e cooperação para com os seus semelhantes, em
uma verdadeira ação de responsabilidade social, evidenciada pela solidariedade.
Quando sucede a alteração da consciência individualista para uma perspectiva comu-
nitária, o indivíduo passa a participar da convivência social, deixando de adotar uma con-
duta passiva, o que o conduz a assumir responsabilidades, baseadas na solidariedade. Esta,
em sua forma de princípio social, é responsável por reger as relações em comunidade, tendo
como finalidade imediata o bem comum, razão primordial da vida social46. A solidariedade
refere-se, nesse sentido, a um papel social no adequado e indispensável exercício de deveres
para o alcance da dignidade da pessoa.
O pensamento de Pufendorf enquadra-se perfeitamente na ideia de deveres como
representação da responsabilidade social. Todo indivíduo, nesse sentido, tem o dever de
preservar e desenvolver a sociabilidade, o que gera obrigações em três níveis: deveres diante
de Deus, diante de si mesmo e diante dos outros. O dever de não fazer mal à ninguém como
ramificação da última destas categorias, configura-se como o mais primário e amplo entre

44
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 31.
45
Lynn Hunt, A Invenção dos Direitos Humanos, (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), 26.
46
Di Lorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade, 152.

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todos os deveres, além de caracterizar-se por sua facilidade, uma vez que consiste em uma
omissão47.
Há uma determinada medida de responsabilidade geral em evitar causar danos aos
outros, de modo a serem as práticas e convenções sociais os instrumentos delineadores dessa
responsabilidade. Nessa esteira, por exemplo, tais práticas convencionam que os cuidados
associados às crianças são de incumbência dos pais, logo, ninguém mais estará encarregado
por essa tarefa, o que a torna um dever dos pais48.
Os deveres, nesse sentido, reproduzem um certo grau de compromisso com a manu-
tenção harmônica da coletividade. Seja em relação à um dever específico, como é o caso dos
cuidados com as crianças cujo cumprimento é efetivado pelos pais, ou quanto aos deveres
atribuídos a todos, como a preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado. A
designação de direitos e deveres encontra sentido justamente nas próprias relações que vin-
culam solidariamente os indivíduos. Constata-se, portanto, que os deveres contêm uma di-
mensão social, que conduzem o indivíduo ao serviço comunitário, o que em última instância
reflete justamente a essência da solidariedade.

3. BEM COMUM COMO FONTE DE DEVERES

Ao fim do período em que os regimes totalitários eram vigentes, houve uma mo-
dificação na forma de tratamento e proteção da pessoa, bem como da própria finalidade
do Estado. A reação aos efeitos difundidos pelo totalitarismo foi a estruturação de direitos
fundamentais49, através do reconhecimento da posição central da dignidade humana em
termos de valores na sociedade, conteúdo responsável por resguardar não apenas os interesses
individualmente considerados, mas também aqueles concernentes ao bem comum.
O destaque para o que é considerado ser de melhor interesse coletivo sustenta o sen-
tido do bem comum, cuja essência foi transportada para o plano jurídico especialmente pelo
intermédio dos direitos fundamentais. Por outro lado, como estão os direitos sucessivamente
conectados aos deveres, também é perceptível a relação entre a concepção de bem comum e
os deveres, nomeadamente os deveres fundamentais.

47
Samuel Pufendorf. “The Whole Duty of Man According to the Law of Nature”, Online Library of Liberty, 18
de junho de 2017, http://files.libertyfund.org/pll/pdf/Pufendorf_0217_EBk_v7.0.pdf.
48
Ronald Dworkin, Justiça para Ouriços, (Coimbra: Almedina, 2011), 320.
49
Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 113 -114.

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Os deveres fundamentais, portanto, constituem instrumentos ao alcance do bem co-


mum, ideia particularmente notável quando se trata de deveres fundamentais conexos com
direitos, também conhecidos como direitos-deveres. O bem comum perpassa pela possibili-
dade de pleno exercício dos direitos fundamentais por todos, função executada não apenas
pelo Estado, mas também pela sociedade.
A principal via de colaboração da coletividade para a efetivação dos direitos funda-
mentais consiste justamente nos deveres fundamentais, já que desempenham um papel vital
na preservação e promoção de direitos fundamentais. O direito à saúde ou ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, tendo como reflexo os respectivos deveres de defesa da saúde
e do meio ambiente, são exemplos de contribuição da sociedade para a efetivação de direi-
tos fundamentais através de deveres fundamentais, de maneira complementar às tarefas do
Estado, e como representação do objetivo de alcance do bem estar social.
Por outro lado, ao descumprimento de certos deveres está associada uma respectiva
punição, como é o caso do dever fundamental de pagar impostos. Ocorre que o receio do
indivíduo de sofrer uma penalidade, apesar de ser uma medida eficiente quanto ao recolhi-
mento de tributos, não deve conduzir o seu comportamento, especialmente em relação aos
deveres que não apresentam uma respectiva consequência punitiva.
Assim, todos os deveres fundamentais, até mesmo aqueles cujo desrespeito produz
sanções, devem ser exercidos em nome do bem comum. A conduta do indivíduo quanto ao
cumprimento dos deveres fundamentais, nesse sentido, não deve ser pautada apenas em um
comportamento que pretenda evitar eventuais punições a serem aplicadas pelo Estado, mas
propriamente visando o melhor interesse comunitário e o respeito à Constituição, prática
também válida mesmo que sua desconsideração não gere medidas punitivas.
Esse senso de responsabilidade social, expressado através do exercício dos deveres
fundamentais, não deixa de representar de certa forma a própria consciência coletiva, através
do conjunto de sentimentos e crenças dos membros de uma comunidade50, revelada pela
solidariedade. O cumprimento dos deveres, nesse sentido, é materialmente proveitoso para
toda a comunidade, uma vez que encurta a trilha para o bem estar social.
Constata-se, assim, que os deveres fundamentais expressam práticas ou condutas im-
postas de maneira obrigatória pelo texto constitucional aos titulares de direitos com a finali-
dade de se atingir o bem comum51. O respeito pelos deveres fundamentais, como reflexo do

50
Émile Durkheim, Da Divisão do Trabalho, (São Paulo: Martins Fontes, 1999), 50.
51
Maria José Roca Fernandéz, “La Tolerancia Entre Los Individuos como Deber Fundamental en el Derecho
Alemán: Consideraciones Aplicables al Derecho Español”, Revista Española de Derecho Constitucional, n. 83, (2008):
95-96.

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senso de unidade dos membros de uma comunidade, constitui precisamente um eficiente


instrumento para o alcance da igual dignidade social.

III.
DEVERES FUNDAMENTAIS DE SOLIDARIEDADE

O senso de responsabilidade social, concebido a partir do ato de reconhecer-se no


outro, conduz o indivíduo a manter sua conduta pautada no compromisso comunitário,
que está ligado às obrigações recíprocas. A associação de indivíduos em razão de um comum
objetivo de atingir um estado de bem estar coletivo, até como uma forma de cidadania ativa
e responsável, constitui um dos fundamentos para a existência de deveres de solidariedade52.
Os deveres de solidariedade são descritos por Kant como aqueles pertencentes à ca-
tegoria de deveres de virtude para com os outros. A sua exposição quanto ao tópico indica
que não é necessário ao indivíduo participar dos sofrimentos alheios, porém, consiste em
um dever se solidarizar de maneira ativa com a sua condição, tendo em vista o propósito
de alimentar os sentimentos compassivos naturais e a partir destes criar instrumentos de
solidariedade53.
A solidariedade, entretanto, não se circunscreve apenas às disposições constitucionais
referentes aos deveres, mas em última análise, representa de certa forma uma orientação das
direções do Estado. Os deveres fundamentais reproduzem a necessidade de os membros da
sociedade participarem ativamente na construção das adequadas estruturas sociais, com a
finalidade de promoção do bem estar coletivo.
Associado à noção de compromisso coletivo encontra-se justamente um catálogo de
deveres a serem cumpridos pelos titulares de direitos. O que não significa que a satisfação de
direitos dependa da efetivação de deveres fundamentais, já que a proteção dos direitos fun-
damentais enquadra-se como tarefa do Estado. Apesar disso, os direito-deveres ou deveres
conexos com direitos operam como aditivos à concretização dos direitos fundamentais, de
maneira complementar ao Estado e até mesmo como a contribuição que pode ser dada pela
comunidade nesse mesmo sentido.
O dever geral de solidariedade, assim, é expressado também a partir de sua estreita
ligação com a própria cidadania. A responsabilidade social no sentido de buscar um nivela-

52
Francisco Fernández Segado, “La Solidaridad como Principio Constitucional”, 143-145.
53
Immanuel Kant, A Metafísica dos Costumes, (São Paulo: Editora Universitária São Francisco, 2013), 162-163.

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mento entre todos os membros da sociedade a partir do momento em que se torna material-
mente desempenhada, através dos deveres fundamentais, corresponde justamente à essência
da cidadania, e como consequência, ao sentido da própria solidariedade.

1. DEFINIÇÃO

Os deveres fundamentais, de maneira ampla, evidenciam uma certa carga de envol-


vimento e empenho coletivo, que se converte em solidariedade. Revelam, ainda, o prisma
social do ser humano, enquanto materialização da concepção de solidariedade instituída
pela dignidade humana que deve ser inerente à toda a sociedade. Nesse sentido, a existência
e a convivência em uma comunidade demandam o desempenho de deveres fundamentais
por parte de cada membro integrante em relação aos demais54 a fim de que a contribuição
coletiva favoreça todos os grupos de uma sociedade, em uma verdadeira dignidade social.
É notável que há uma conexão entre o engajamento social, como revelação de um
senso de empatia, e os deveres fundamentais, especialmente aqueles cujo benefício atinge
diretamente a sociedade. O devido exercício dos deveres fundamentais, em análise simples e
direta, é o instrumento que a sociedade possui para contribuir com a efetivação de direitos
fundamentais.
Tal diagnóstico é facilmente perceptível quando a questão envolve direitos-deveres,
também chamados de deveres conexos com direitos, justamente por consistirem na proteção
e promoção dos direitos a que se referem. Entretanto, de maneira ampla, todos os deveres
fundamentais atingem, mesmo que indiretamente, a sociedade, até mesmo aqueles para com
o Estado.
Este é o caso do dever de pagar impostos ou do dever de contribuição com a admi-
nistração eleitoral, que caracterizam-se por serem exigidos diretamente pelo próprio Estado.
Assim, sem a colaboração para com as despesas do Estado, não é possível a formulação e
concretização de políticas públicas, instrumentos para a efetivação de direitos fundamentais;
já a falta de cooperação com a administração eleitoral inviabiliza a participação democrática
em razão da inexistência de material humano suficiente para a realização de eleições, sem as
quais o exercício do direito ao voto reputa-se impraticável.
Apesar de os deveres para com o Estado apresentarem a característica de gerar uma
sanção em caso de descumprimento, em última análise, a possibilidade de aplicação de me-
54
Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 539.

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didas punitivas é motivada justamente pela relevância de tais deveres para o adequado fun-
cionamento das engrenagens sociais. Nesse sentido, o devido desempenho desses deveres
não deve ser estimulado meramente pelo receio de uma punição, como forma de evitar uma
penalidade a ser aplicada pelo Estado. Mas a conduta do indivíduo deve ser compatível com
a carga ética ou solidária dos deveres, até mesmo como respeito pela dignidade humana,
uma vez que a razão principal para o adequado cumprimento desses deveres deve ter como
alicerce justamente a solidariedade.
Assim, os deveres fundamentais de maneira geral carregam consigo um certo grau de
força solidária, já que visam o bem comum, seja indireta ou diretamente. Os deveres funda-
mentais, como uma incumbência dos membros de uma sociedade no sentido de mantê-la
em situação de bem-estar social55, estariam, portanto, associados justamente à percepção de
solidariedade.
Entretanto, quando se trata de deveres fundamentais de solidariedade, a conforma-
ção é manifestada de maneira diversa. Consistem, assim, naqueles deveres que apresentam
como finalidade primordial atingir a relação dos membros da coletividade que de alguma
forma encontram-se em condições menos favorecidas em relação aos demais.
O dever de ajudar o próximo em uma circunstância de necessidade faz parte de alguns
dos principais valores de uma sociedade há séculos. Caracteriza-se como um dever positivo
de colaboração mútua56, de modo a constituir a sustentação do que se entende como um
dever fundamental de solidariedade, isto é, uma expressão de empatia convertida em ação
em relação aos indivíduos que se encontram em alguma situação adversa.
O interesse nas condições desfavoráveis dos demais, representada pela solidariedade57,
conduz o indivíduo a atuar no sentido de minimizar a intensidade do prejuízo do próximo,
atitude que revela justamente o conteúdo do dever fundamental de solidariedade. A postura
de solicitude social em relação aos menos afortunados demonstra, ainda, a essência da res-
ponsabilidade comunitária que envolve o dever fundamental de solidariedade.
A solidariedade, assim, produz no indivíduo uma preocupação para com o outro que
não se encontra em uma conjuntura próxima à sua, de modo a ter uma atitude de deixar
de evitar locais ou situações onde os menos favorecidos estejam58. O dever fundamental de
solidariedade, nesse sentido, nada mais seria que a consciência por parte dos sujeitos de uma
comunidade de que a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada nas mais variadas

55
Otero, Instituições Políticas e Constitucionais, 344.
56
John Rawls, Uma Teoria de Justiça, (São Paulo: Martins Fontes, 2000), 122.
57
Di Lorenzo, Teoria do Estado de Solidariedade, 133.
58
Kant, A Metafísica dos Costumes,162-163.

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situações sociais, especialmente nas circunstâncias desfavoráveis à certos grupos. Tal reconhe-
cimento orienta o indivíduo no sentido de movimentar-se para colaborar com os demais,
respeitando os limites de possibilidade à ele impostos.

2. HIPÓTESES

Os deveres fundamentais de solidariedade encontram-se na rotina da sociedade, seja


na proteção da saúde dos idosos, na promoção da educação para as crianças ou mesmo no
fornecimento de condições mínimas de dignidade aos menos favorecidos. A conduta soli-
dária é essencial para minimizar situações de necessidade de certos grupos da comunidade,
de modo a elevar a sua qualidade de vida, o que aproxima a coletividade de um estado de
bem estar.
A capacidade de unidade entre os membros de uma comunidade é claramente per-
ceptível em determinadas circunstâncias, como a solidariedade que emerge a partir de uma
catástrofe natural, que apela estritamente pela participação mais intensa dos integrantes da
comunidade no sentido de prover a devida assistência aos afetados por uma calamidade. Faz
parte da natureza do ser humano, assim, o senso de colaboração comunitária, já que a ten-
dência à igualdade é inerente à sua essência. Logo, com a finalidade de se atingir o tratamen-
to em isonomia, a sociedade deve se responsabilizar por proporcionar aos menos favorecidos
condições e oportunidades para reduzir tal desnível59.
Em elevado grau de intensidade no quesito ética social, a solidariedade significa uma
consciência do indivíduo de que pertence a uma comunidade. Tal sentimento está ligado
à fraternidade, o que conduz os membros da sociedade a contribuírem reciprocamente, de
maneira compartilhada entre todos, bem como sustentarem uns aos outros em circunstân-
cias de dificuldade60. Este envolvimento comunitário ocorre, por exemplo, nos movimentos
sociais que visam reduzir a fome pela doação de alimentos, colaborar para o lazer dos idosos
através da organização de eventos culturais ou desportivos, garantir as crianças os materiais
necessários para a adequada educação ou fornecer os meios mínimos para uma vida digna
aos mais carentes.
Entretanto, a solidariedade não manifesta-se apenas como uma exigência ética, mas
também como um critério na esfera jurídica-política, especialmente quando se trata de deve-

59
Rawls, Uma Teoria de Justiça, 107.
60
Serio Galeotti, “Il Valore dela Solidarietà”, Rivista Diritto e Societá, n. 1, (1996): 3-4.

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res fundamentais. Não está associada somente aos valores de benevolência ou caridade, mas
essencialmente à própria justiça, como um poderoso instrumento de igualdade61. Além de a
solidariedade configurar-se como um mecanismo para o alcance do mínimo social, também
consiste em um valor jurídico devidamente reconhecido e garantido pelo ordenamento, o
que se evidencia justamente pela presença de dispositivos no texto constitucional que pre-
veem os deveres fundamentais de solidariedade62.
A Constituição Italiana, em seu art. 2º, garante os direitos invioláveis ao indivíduo,
bem como requer dele o cumprimento de deveres inderrogáveis de solidariedade política,
social e econômica. Assim, o texto confere aos deveres fundamentais de solidariedade um
papel essencial na construção das estruturas sociais, bem como na manutenção da harmonia
coletiva.
Discrimina, ainda, nos demais dispositivos os deveres fundamentais de cada membro
da sociedade, tais como o dever de trabalhar (art. 4º), o dever cívico (art. 48º), o dever de de-
fesa da pátria (art. 52) e o dever de fidelidade à República (art. 54º). O texto constitucional
italiano, nesse sentido, deixa clara a associação de todos os deveres fundamentais à uma carga
de solidariedade, valor que, em última análise, de fato emerge de tais deveres.
Nesse sentido, a solidariedade no ordenamento jurídico italiano seria dividida em: so-
lidariedade pública ou paterna e solidariedade fraterna ou deverosa63. A solidariedade públi-
ca refere-se justamente às tarefas atribuídas ao Estado para a devida proteção e promoção dos
direitos fundamentais pela via de políticas públicas. Já a solidariedade fraterna está associada
precisamente aos deveres fundamentais enunciados pelo art. 2º e discriminados ao longo do
texto constitucional. Assim, estes seriam realizados a partir do compromisso comunitário de
seus membros integrantes, em uma verdadeira colaboração mútua para a adequada manu-
tenção dos meios sociais.
Já a Constituição da República Portuguesa menciona diretamente os deveres funda-
mentais de solidariedade em seu art. 71º, n. 3. Além de pontuar a obrigação do Estado de
efetuar políticas públicas de prevenção e tratamento de pessoas deficientes, também desen-
volvê-la de forma a sensibilizar a sociedade em relação aos deveres de respeito e solidariedade
para com eles, sem prejuízo dos deveres e direitos dos pais ou tutores.
Ademais, é tarefa do Estado, conforme consta do art. 63º, n. 5 da Constituição
Portuguesa, fiscalizar e apoiar o funcionamento de instituições particulares de solidariedade

61
Javier de Lucas, “La Polémica sobre los Deberes de Solidaridad. El Exemplo de Deber de Defensa y su Posible
Concreción en un Servicio Civil”, Revista de Centros de Estudios Constitucionales, n. 19, (1994): 20-22.
62
Galeotti,”Il Valore dela Solidarietà”, 5-6.
63
Galeotti,”Il Valore dela Solidarietà”, 15-16.

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social e de outras cujo interesse público sem cunho lucrativo é reconhecido, tendo em vista
o devido seguimento dos objetivos relacionados à solidariedade social quando estes envolve-
rem nomeadamente: infância, juventude, terceira idade e deficientes.
É possível interpretar dos dispositivos mencionados que os movimentos sociais que
visem a assistência à tais grupos caracterizam-se como ações em razão da solidariedade e em
favor dessa parcela da comunidade que necessita de atenção e cuidados especiais. Tais ativi-
dades resultam justamente no cumprimento de deveres fundamentais de solidariedade para
com aqueles que apresentam uma certa carência por zelos característicos à cada um desses
grupos.
Assim, as crianças necessitam, por exemplo, de cuidados especiais referentes a educa-
ção compatível com a sua idade, a adequada alimentação ou ao acesso à saúde, entre outros.
Aos idosos, por sua vez, devem ser garantidos os meios para que consigam se prover devi-
damente através dos valores recebidos à título de aposentadoria, a assistência à saúde ou os
espaços de lazer. Já aos jovens, devem ser assegurados a pertinente formação profissional, as
oportunidades de emprego ou acesso à habitação. Em relação aos deficientes, a pertinente
assistência de saúde, educação, lazer e alimentação, de modo a serem os cuidados adequados
às suas necessidades.
A conduta praticada no sentido de garantir tais bens às crianças, aos idosos, aos jo-
vens e às pessoas deficientes reflete precisamente os deveres fundamentais de solidariedade,
bem como o conteúdo que emerge do comportamento compatível com os deveres previs-
tos constitucionalmente, cujos efeitos são ostentados como extremamente positivos para os
membros da sociedade. Assim, manifesta-se materialmente interessante a colaboração da
coletividade, de maneira complementar ao Estado, para com os grupos sociais que requerem
uma atenção especial.

3. SOLIDARIEDADE INTERGERACIONAL

O meio ambiente ecologicamente equilibrado configura-se como um direito de to-


dos, ou mais que isso, um direito-dever que requer um certo nível de solidariedade para que
seja atingida a sua devida concretização. Constitui um direito garantido para a atual comu-
nidade e um dever a ser cumprido também pela geração presente, porém, não somente como
forma de assegurá-lo para si, mas também para as próximas gerações.

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O dever de defesa do meio ambiente, assim, corresponde a um dever de solidarieda-


de no mais alto grau, uma vez que a atuação para sua proteção atinge gerações presentes e
futuras. Não se trata, por outro lado, de um direito das gerações futuras64, já que tal nomen-
clatura mostra-se inadequada em razão de não se saber ao certo quem são os titulares desse
direito65, por ainda não existirem para o ordenamento jurídico.
O comportamento dos indivíduos, grupos e instituições deve reconduzir para o dever
de solidariedade refletido pela atividade de preservação dos instrumentos indispensáveis para
a viabilização da vida digna das gerações futuras, especialmente o meio ambiente. A concep-
ção de responsabilidade entre gerações, de certa forma, demonstra a dimensão intertemporal
dos deveres, uma vez que podem ser conferidos a comunidades existentes em momentos
diversos, umas para com as outras66.
Nesse sentido, a Constituição Espanhola, em seu art. 45º, prevê o direito-dever
ao meio ambiente adequado, previsão próxima do art. 66º da Constituição da República
Portuguesa, porém acrescenta ao seu texto um ponto interessante. O art. 45º, n. 2, pontua
sobre a tarefa do Estado na conservação dos recursos naturais, sendo toda a atuação apoia-
da em uma solidariedade coletiva. Assim, os cidadãos são chamados a contribuírem para a
preservação do meio ambiente e para a utilização racional de recursos naturais, através do
cumprimento de seus deveres de solidariedade.
O compromisso que envolve o desenvolvimento sustentável, dessa maneira, refere-se
não apenas a atual geração, mas também as gerações futuras. Para tanto, o sociedade deve
controlar a tendência natural de tirar o máximo de proveito dos recursos naturais atualmente
disponíveis descartando os cuidados necessários para com o ambiente, com a finalidade de
atuar no sentido de buscar a isonomia entre as comunidades presente e futura67.
O direito ao meio ambiente, assim, está associado tanto à fruição de bens naturais,
como de um dever de preservação destes, em um verdadeiro cenário de solidariedade comu-
nitária. Tal necessidade de conservação conduz o indivíduo para o agir no sentido de cuidar
dos meios ambientais, preservação que pode se reverter positivamente para ele próprio ou
para o resto da comunidade, seja esta presente ou futura68.

64
Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 219.
65
Nabais, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, 54.
66
Gabriele Pepe, “La Solidarità Intergerazionale quale Strumento di Giustizia Redistributiva”, Rivista
AmbienteDiritto.it, (2016): 2-3.
67
Edith Brown Weiss, “In Fairness to Future Generations and Susteinable Development”, American University
International Law, Review 8, n. 1, (1992): 20-21.
68
Carla Amado Gomes, O Risco de Modificação do Acto Autorizativo Concretizador de Deveres de Protecção do Meio
Ambiente, (Lisboa: FDUL, 2007), 30.

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As atitudes tomadas que podem de alguma maneira vir a influenciar a devida pre-
servação do meio ambiente ecologicamente equilibrado perpassam pelo conteúdo expresso
pela solidariedade, entretanto em maior amplitude, justamente por atingirem a comunidade
com quem convivem e os seus sucessores. O reconhecimento de que os descendentes são
membros a serem considerados pelos interesses comunitários que podem vir a afetar o seu
bem estar, é materialmente interessante de maneira racional e não apenas emocional ou
humanitária69.
A inclusão de membros futuros em decisões atuais mostra-se verdadeiramente como
um princípio de justiça, considerando que as opções adotadas no presente atingem também
as gerações futuras. A solidariedade expressa pela consideração dos membros futuros da so-
ciedade, conduz a justiça a assumir um componente intergeracional como parte indispensá-
vel para a noção de similaridade ética e moral compartilhada por toda a sociedade70.
Assim, é importante oferecer as gerações futuras a oportunidade de tomar as suas pró-
prias decisões, bem como de formar as suas próprias definições do que é considerado ter uma
vida digna, de maneira compatível com o que se considerar pertinente para o momento em
que viverem. A noção de igualdade de oportunidades, desse modo, não seria aplicável apenas
aos atuais vínculos entre os indivíduos, mas também entre as gerações presente e futura71.
Mostra-se relevante, portanto, que a toda a comunidade, de maneira compartilhada,
seja igualmente conferida a responsabilidade pela utilização consciente dos recursos naturais
e pela devida preservação do meio ambiente. O adequado exercício do dever fundamental de
solidariedade referente a proteção e defesa do meio ambiente produz efeitos intergeracionais
que poderão ser determinantes para o modo como a dignidade humana será percebida pelos
sucessores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar de receberem menor atenção doutrinária e jurisprudencial em comparação aos


direitos fundamentais, os deveres fundamentais exercem um papel essencial na atual confor-
mação social. Refletem aquela conduta que deve ser praticada no sentido de manutenção dos
meios sociais indispensáveis a uma vida com dignidade.
69
Richard P. Hiskes, “Environmental Human Rights and Intergenerational Justice”, Human Rights Review,
(2006): 83-84.
70
Hiskes, “Environmental Human Rights and Intergenerational Justice”, 85.
71
Brian Barry, “Sustainability and Intergenerational Justice”, Theoria: A Journal of Social and Political Theory,
Poverty, Justice and Economy, nº. 89, (1997): 45-46.

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A posição de relevância dos direitos fundamentais já está devidamente consolidada


no ordenamento jurídico vigente. Os deveres, entretanto, apesar de integrarem o catálogo
de dispositivos constitucionais, não são reconhecidos por apresentar força semelhante aos
direitos. Sua relevância para a construção de uma sociedade harmônica, no entanto, não
deve ser esquecida.
Nesse sentido, a existência de uma sociedade sustentada apenas por direitos reputa-se
impraticável, uma vez que não há comunidade que resista ao cenário em que seus integrantes
detenham apenas direitos e não possuírem qualquer dever para com a coletividade. O Estado
de Direito, assim, não é capaz de suportar as demandas de uma sociedade que possua apenas
direitos, sem a existência de deveres para com o próprio Estado ou para com a comunidade.
Os deveres fundamentais, assim, estão presentes na Constituição da República
Portuguesa em extensão maior que as suas antecedentes, porém, em forma de um catálogo
reduzido em comparação com o rol de direitos fundamentais. Apesar disso, os deveres apre-
sentam-se claramente situados no texto constitucional, de modo a conferir aos membros
da comunidade atribuições a serem cumpridas como forma de contribuir com o Estado ou
mesmo com a própria sociedade.
A colaboração com o Estado ocorre através do cumprimento de determinados deveres
essenciais para o devido funcionamento da máquina estatal, como por exemplo, o dever fun-
damental de pagar impostos. Ademais, apenas em razão do potencial contributivo, o Estado
demostra a sua capacidade de oferecer as condições necessárias a concretização de direitos
fundamentais, como a formação e a manutenção de políticas públicas, o que comprova que
a sociedade também é atingida pelo cumprimento ou não do dever de pagar impostos.
Outro exemplo de dever fundamental cujo receptor direto é o Estado corresponde
ao dever de colaboração com a administração eleitoral. Entretanto, se não houver material
humano suficiente para oferecer os mecanismos necessários para a realização de eleições, a
sociedade também é atingida, de modo a ter o seu direito-dever de voto inviabilizado.
Por outro lado, há deveres fundamentais que visam atingir diretamente a comunida-
de, como o dever de defesa da saúde, o dever dos pais de educação e manutenção dos filhos,
o dever de proteger o meio ambiente ou o dever de preservar o patrimônio cultural. Assim,
o cumprimento de deveres dessa ordem reflete o instrumento que as pessoas possuem para
cooperar com a sociedade, de maneira complementar ao Estado.
A colaboração dos indivíduos por meio da prática de deveres para com a comuni-
dade, assim, corresponde ao mecanismo que eles dispõem contribuir para o alcance de um
estado de bem estar social. Está associado a essa conduta um valor comunitário que conduz

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os indivíduos a unidade através do auxílio mútuo, o que culmina com benefícios para todas
as partes envolvidas.
O reconhecimento da condição de semelhança em relação aos demais, em uma verda-
deira identificação da dignidade do outro, conduz o indivíduo a atuar no sentido de oferecer
a sua parcela de contribuição para a comunidade. A dignidade humana representa, assim,
uma energia valorativa de tal modo que, além de vincular o Estado para disponibilizar os
meios indispensáveis a garantia da sua proteção e promoção, submete também as pessoas na
esfera das relações privadas, o que se verifica através do respeito mútuo.
A ajuda mútua manifesta-se como elemento essencial para que se alcance o bem
comum, objetivo principal de uma comunidade. A noção de que o bem estar de todos
depende de um empenho social ativo expressa um estímulo responsável por romper com o
individualismo e conduzir as pessoas para uma atuação em favor da coletividade, através do
cumprimento de deveres.
A prática de deveres reflete, portanto, o senso de uma responsabilidade social, a partir
da qual os indivíduos optam por atuar para o benefício coletivo. A consciência coletiva pro-
duz uma intenção em colaborar com os demais membros de uma comunidade, o que não
deixa de remeter ao conteúdo expresso pela solidariedade
O entendimento da essência da solidariedade passa pela identificação de que a aliança
natural entre os integrantes de uma sociedade revela-se como um elemento substancial para
seu progresso e sua manutenção. Nesse sentido, o conteúdo expresso por direitos e deve-
res encontra significado precisamente nas próprias relações que vinculam solidariamente as
pessoas.
Assim, dentro da sua liberdade, os indivíduos optam por compactuarem solidaria-
mente com a responsabilidade social que lhes é atribuída. A partir dessa atuação comple-
mentar às tarefas Estado, a sociedade adquire os meios indispensáveis para buscar igualar as
intensas e amplas diferenças presentes nos mais diversos grupos sociais a ela inerentes.
Os deveres fundamentais de solidariedade, nesse sentido, mostram-se extremamente
relevantes para equilibrar tamanho desnível social. Configuram-se como a consciência por
parte dos sujeitos de uma comunidade de que a dignidade humana deve ser observada nos
mais diversos cenários sociais, nomeadamente nas situações consideradas desfavoráveis à cer-
tos grupos.
Os sujeitos beneficiados pelo cumprimento de deveres de solidariedade, dessa manei-
ra, são aqueles cujo contexto apresenta-se como desvantajoso, inadequado ou incompatível
com o que se considera necessário para uma vida digna. As pessoas mais carentes, as crianças,

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os jovens, os idosos e os deficientes constituem alguns desses grupos aos quais os deveres
de solidariedade são aplicáveis como forma de concretização de seus respectivos direitos
fundamentais.
Ademais os deveres de solidariedade não encontram repercussão apenas no texto
constitucional, mas também em outras áreas na esfera jurídica, como no direito civil, através
do cumprimento de obrigações, da responsabilidade social ou pelo princípio da boa fé; no
direito penal, pela omissão de auxílio ou socorro. Além disso, tais deveres também produzem
ressonância no âmbito do direito internacional, como nos movimentos de ajuda humanitá-
ria ou até mesmo em relação a situação dos refugiados.
O dever de preservação do meio ambiente ecologicamente equilibrado, por sua vez,
constitui um dever de solidariedade singular. Diverge dos demais por se tratar de uma atua-
ção que envolve uma solidariedade intergeracional, isto é, o dever de proteção do meio
ambiente não atinge apenas a comunidade atual, mas também as gerações futuras. Nesse
sentido, o cumprimento do dever de solidariedade relacionado ao meio ambiente procurar
oferecer aos sucessores as oportunidades de se ter uma vida com dignidade, como uma ver-
dadeira expressão de isonomia intergeracional.
Portanto, os deveres fundamentais de solidariedade são a manifestação do caráter
generoso e empático do ser humano, que ocorre pelo cumprimento das incumbências que
lhe foram conferidas pelo texto constitucional. A prática dos deveres fundamentais constitui,
assim, uma ferramenta que o indivíduo possui para contribuir com a estruturação dos meios
sociais, de modo a efetivar direitos fundamentais das pessoas menos favorecidas como forma
de reduzir o desnível coletivo e atingir o bem comum.

Para citar este trabajo: Mendonça, Suzana M., “Deveres fundamentais de solida-
riedade”, Revista de Derecho. Ucudal N° 18 (Dic.- 2018), ISSN 1510-3714, ISSN On line
2393-6193, 91-116.

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