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ORLANDO

Denison Souza Rosario


℗1992

(No amplo salão da magnífica mansão do Dr. Carlos Maria R. Guerra, situada no bairro de
Nazaré, em Salvador, na Bahia, durante o Crepúsculo das 17:54 hs)

MORDOMO

Inacabada é toda glória humana!

Navegando em minha nau de sonho,

Posso ser pirata, corsário ou bucaneiro;

Todavia, o dia-a-dia é real e minha embarcação redonda

No casco e no velame ao Mar se lança,

Com acastelamento tanto na popa como na proa,

Outrora, forte e resistente agora à toa,

Despedaçou-se nos rochedos da insegurança.

Mar revolto, Tempestade, Furacão

Açoitavam este nauseabundo em seu mergulho,

Até que a naupatia teve fim nesta mansão,


Onde me encontro enfim em porto seguro.

ORLANDO

(Indicado pelo tio mordomo como o mais novo criado na mansão.).

Todavia, querido tio, achais que irei vencer

A ansiedade e a timidez que agora me atavia?

Falam as más línguas que o patrão é esquisito e exigente

Que é marido da Ciência e da Magia, mas descasado da harmonia.

MORDOMO

Cála-te, sobrinho tolo, porque jovem!

Não sabes da sina ainda; viver no mundo é duro!

Caso não queiras, por capricho, cozinhar teu futuro,

Tu, que só conheces os atabaques e pandeiros das vielas nuas,

Comerás da vida somente o que sobrar das carnes cruas.

ORLANDO

Mas tu sabes, tio, nascido sou da rua do Bângala,

A Escola Soror Joana Angélica só me ensinou da alma.

Minha sala de aula da vida prática foi o Largo da Palma;

Baba, tambor, arraia, baleô...

Nada disso tem de fino, oh, que horror!

Não tenho classe, etiqueta, nem brasão,

Não sou do teu naipe, que se acostumou logo com o patrão.


MORDOMO

Aproveita, pois, e aprende esta empresa.

Arranjei-lhe este emprego para que não comeces sozinho,

Ao meu lado esquecerás os timbaus e o cavaquinho,

Para que manipules taças e talheres nobres com destreza.

ORLANDO

Por que meu destino tem de ser semelhante ao teu?

Somente porque tua irmã esta incumbência te deu?

MORDOMO

Não só a tua mãe, mas a lógica e a experiência;

Dois rostos separados, que por si só não fazem rir.

Juntos o fazem por causa de sua semelhança.

ORLANDO

Que coisa vã a pintura que provoca admiração

Pela semelhança com coisas cujos originais não admiramos com razão.

MORDOMO

Experimenta, então, e vê no que desemboca esta missão.

Não sei o que queres da vida; ser pirata ou capitão.

Vejo que não queres ser simples como teus concidadãos;


Orgulhoso és, mas desconheces se queres Sim ou se queres Não!

(Sai do recinto)

ORLANDO

(Sozinho)

Oh, São Salvador, Cidade do ruído!

É o ruído que nos desvia de pensar na nossa condição.

E nos diverte.

O patrão é como um rei.

Rodeado de pessoas que só pensam em diverti-lo nesta peleja.

E em impedi-lo de pensar em si mesmo, isso sei.

Porque se pensa em si, é infeliz, por mais rei que seja.

Assim se escoa a vida toda.

Procuram o repouso combatendo obstáculos;

Uma vez superados, o repouso se torna insuportável, se sentem mal.

Por isso os estrangeiros procuram a Bahia e seu Carnaval;

No período lá é Inverno e, se ficam em seus lares agasalhados,

Sofrem com lembranças de guerra, disputa espacial e atentados;

Faça-se a experiência: Deixe-se um rei sozinho pensar sossegadamente em si

Sem nenhuma satisfação dos sentidos, sem companhia aqui e ali,

E ver-se-á que um rei sem distração é um homem cheio de miséria e solidão,

Por isso tal coisa é cuidadosamente evitada: distração, negócios, distração...


(Outro cômodo da mansão)

MORDOMO

Teu filho cria problemas quando questiona nossas convicções.

CLOTILDE

Eu também tive dúvidas quando tu me convidaste para ser cozinheira da casa.

MORDOMO

Mas cedestes logo à verdade óbvia; nos dias de hoje emprego é luxo, minha cara.

CLOTILDE

Mas é pelo menos um dever buscar a verdade quando em dúvidas se está;

E quem duvida e não procura não é só infeliz, mas pessoa injusta e má.

É uma coisa monstruosa ver num mesmo coração e ao mesmo tempo paralelo,

Essa sensibilidade pelas menores coisas,

E essa estranha insensibilidade pelas maiores que não quero.

MORDOMO

(Levantando-se de súbito e decididamente)

Se não decidires, irmã, pelo futuro do teu filho, tu que és responsável,

Quem o fará? Ele...? Que é maleável?

Julgaste honesta na decisão, que agora crês democrática,

Todavia, a vida não é poesia, é Matemática!


CLOTILDE

Levantastes um assunto em que a mente fervilha e a alma arde;

Uma esfera infinita cujo centro se encontra em toda parte,

E cuja circunferência não se acha em nenhuma.

Esta é uma geografia onde a latitude e a longitude se funde em uma.

MORDOMO

Esta mansão é – passaram-se doze anos? – meu definitivo trabalho.

Fujo do desemprego como o vampiro do alho.

Se busco uma segurança para mim, a quero também para parentes.

Pois sei que segurança e paz são cartas que correm rentes.

Não preparo o que janto, não compro o que consumo,

Não pego transporte para o trabalho e do tempo tenho o sumo.

Vivo em ambiente confortável, de outra forma não teria.

Não conheço melhor trabalho que mordomo na Bahia.

Sei que o patrão é estranho, erudito e intolerante,

Que anda envolvido com estudos, com exus e bruxaria,

Mas desde que nasci no Retiro e cresci na Rua dos Bandeirantes

Que não vejo rolar tanto dinheiro cá por essas pradarias.

Na Padaria Paris, em Baixa do Sapateiro, amassei pão,

Já vendi de tudo um pouco, do Comércio ao Taboão.

Fui até Lambe-lambe, imaginem, na Praça da Piedade,


Onde aprendi, na alma do centro, a se virar por toda a cidade.

Hoje, pois, valorizo a coisa que posso chamar de minha,

Pois quando garoto, fui até vendedor na Barroquinha.

Bem sabes o pouco valor, irmã, que tem a nossa morena raça.

Passei de vender picolé na Lapa a garçom na Ladeira da Praça.

Quando me vi sem esperanças e sem sucesso, o patrão me contratou.

Hoje eu reconheço dobrado o que ele valorizou.

Vivo aqui há muitos anos, sirvo sem emitir um som.

Velho, erudito, bruxo...o que importa é o lado bom.

CLOTILDE

Não sentimos nem o frio intenso, nem o extremo calor.

As qualidades excessivas são nossas inimigas, representam apenas dor.

Nadamos num meio termo vasto, incertos e flutuantes,

Algo que perseguimos ou nos apegamos não é, depois, como era antes.

Nada se detém por nós e ardemos num desejo de aportar numa plataforma firme,

E subir numa torre que vá até o infinito e que nos confirme,

Porém os alicerces ruem e a terra se abre até o abismo.

Não procures, pois, por onde quer que ande, segurança e firmeza.

Acredita na inconstância do conforto,

Assim como crê na fugacidade da beleza.

MORDOMO
Ora, em vez de recebermos a idéia pura das coisas, convenhamos,

Tingimo-la com nosso intelecto e impregnamos de nosso ser composto

Todas as coisas simples que contemplamos.

CLOTILDE

Parabéns pela eloqüência!

Acalma, porém, teu belo raciocínio e o fôlego podes poupar.

Farei meu papel de mãe e até ele irei conversar!

MORDOMO

Vai-te, pois. Sem mais delongas e sem mais questionar.

(Enquanto isso, em universo paralelo, o panteão dos orixás

se reúne no Liceu de Oxalá)


OXALÁ

Aberta está a reunião dos deuses.

Eu, como líder espiritual máximo, os convoco.

Peço-vos de antemão evitar outras metas.

Que sejam respondidas as perguntas corretas.

EXU

Iniciarei, pois sou a ponte entre nós e os mortais;

Quem sois vós sem minha deliciosa participação?

São apenas espíritos; figuras abstratas sobrenaturais,

Que não sabem, sem meu auxílio, sair desta outra dimensão.

OXOSSI

Humm...não sei por que tanta ambição,

Mas do que trataremos hoje na reunião?

XANGÔ

Deixamos no ar, se não me falha a memória,

O nosso ilustre protegido Carlos Maria R. Guerra.

Ficamos de acompanhar a sua longa e rica história,

Todavia, há tempos não vasculhamos a Terra.

YEMANJÁ

Com a minha sensibilidade feminina percebi, a pouco, algo;

Coisa ruim está para acontecer na vida do nosso amado.


Penetrei oceanos, rochas, praias e baías;

Alguma coisa de estranho lá para aquelas pradarias.

OXALÁ

Então aguardemos para que nos chame!

Sempre ocorrem em situações vexames.

EXU

Eu, com vossa permissão, proponho visitar o nosso protegido logo!

OXALÁ

Como quiser!

(Fecha-se o Liceu, dissipa-se o Panteão dos Orixás)


(Gabinete da mansão)

CARLOS MARIA

(Folheando um livro, concentrado, sem olhar para os lados)

Você já conheceu o novo criado? É inteligente mesmo como diz a família?

SECRETÁRIO

Gente pobre é sempre igual!

Não há diferença entre um cão, jacaré ou qualquer outro animal.

Bem sabes tu como são essas incultas criaturas;

Corações moles e mentes duras.

CARLOS MARIA

De qualquer forma conversai com ele e dê teu parecer.

Não sou preconceituoso como vós e nem hei de ser.

SECRETÁRIO

Tua ordem é meu desejo, senhor!

(Sai, saudando elegantemente, do gabinete)


CARLOS MARIA

(Sozinho)

Terei eu cansado do meu mais próximo empregado?

O que antes era um homem culto sobrou apenas um arrogante e ousado.

EXU

(Aparecendo de repente na imagem do espelho na escrivaninha)

Talvez não esteja suportando ver no teu secretário

Um reflexo de ti mesmo anos atrás.

Talvez devesse trocar o teu atual por um mais otário.

(Dá uma gargalhada).

CARLOS MARIA

(Afastando-se assustado)

Oh, Criatura Infernal! Não podeis pedir licença para surgir?

Na mais inesperada das horas, sem eu, ao menos, pedir?

EXU

Vim te avisar de sua filha; para cá se aproxima e problemas ela trará!

CARLOS MARIA

Oh, Diabo...que mal uma rosa como ela traria para um pai apaixonado?

Portanto não fales asneiras, Abre-portas louco, pois fico irritado.

EXU
Falando em abrir portas...o resto do panteão quer entrar em contato;

Traze-los até ti é meu serviço e para isso tenho mandato.

CARLOS MARIA

(Como que orando aos céus)

Vem, Humanidade, vem e funde-te em mim.

Ensina-me a ser como vocês, inupto que sou de tua Entidade.

Vocês que simpatizam com tudo, vivem de tudo, como fazem?

Ensina-me, Oh, Humanidade, dá-me a carteira de sócio de teu clube.

Onde vocês são a mesma coisa de todos os modos possíveis

Ao mesmo tempo, que nunca é o agora, mas outro tempo.

Mostrem-me como vocês podem pensar em outro tempo o tempo todo;

Mostrem-me como conseguem falar tanto e pouco sentirem;

Mostrem-me como ser quotidiano e prático igual a uma máquina de costura;

Mostrem-me teus corpos nus, se é que tens nudez.

Toma banho comigo, Humanidade!

E ensina-me a ensinar a ti, Humanidade, o que tenho a ensinar de mim.

Mas se não podes nada disso ensinar-me, por favor,

Deixa-me, eu e meu deserto,

E vá encher o saco de outro que se ache mais certo.

EXU

Nossa! Enlouqueceu! Está a delirar!


(Faz gestos mágicos e surgem os Orixás)

OXOSSI

Apareço, finalmente! Ora,ora...por que bravejas o velho maestro?

Não já lhe basta a arrastada e antiga sabedoria?

Não já basta a experiência de mais de dez mil dias?

XANGÔ

Por que este burburinho?

Não já lhe basta o robusto burgo num belo bairro da cidade?

Não já lhe bastam a doce filha e o seu eterno carinho?

YEMANJÁ

Sim, tua filha...sentes falta dela?...és tudo que tem.

Enche-se de criados e livros; nada de trabalhoso há de fazer.

Solidão no leito não há; amantes várias mantem.

Mas és sozinho, pois não tens ternura para oferecer!

Rodeia-se de criados, mordomo, cozinheira e faxineiras, mil fios e mil trilhos;

Quando apenas bastava uma esposa e um punhado de filhos.

OXOSSI

Daria minha espada para desvendar a verve que agita teu coração.

Por que és sempre insatisfeito? Oferecemos o que quiseres, nunca ouviu “não”.

Quanto ao conhecimento, sua biblioteca é a mais invejável da nação.

Oferecemos a ti sabedoria de quase quatro mil anos de Religião.

YEMANJÁ
Ensinei-lhe todos os passos do balé clássico e das danças populares.

Os movimentos sagrados do Yoga e os mais profundos segredos do Tao.

Ensinei-lhe a respirar e a tocar todo e qualquer instrumento musical.

Ninguém executa Villa-Lobos melhor que você.

Sem falar no teu domínio nas artes plásticas, que tal?

OXALÁ

Escutai-me, pobre mortal, querido por nós!

Cada dez anos, para uma pessoa normal, em você vale um ano apenas.

Que queres mais? De que reclamas?

Tens 560 anos, mas aparenta 56 de idade.

Adquiristes uma experiência de mais de meio milênio...

E deves viver mais 200 anos, caso não sofra um grave acidente.

Doença não lhe deixamos atingir, nem um resfriado normal.

Tens o poder de hipnotizar a todos, da República foste Presidente.

Estudou nestes longos séculos em quinze faculdades:

És formado em Piano Clássico, Economia, Zoologia, Agricultura, Medicina, Filosofia, Direito,


Engenharia Elétrica, Artes, Letras, Comunicação e Química,

Além de Arquitetura, Física e Geometria.

XANGÔ

Portanto foste juiz, cirurgião, Phd em Química e Física, mestre em Matemática, Veterinário,
botânico, avicultor, doutor em Sociologia e Psicologia Psicodramática.

As línguas que domina, além do Português, são o Francês, o Latim, o Esperanto, Grego, Árabe,
Alemão, Russo, Japonês, Chinês, Inglês, Espanhol e o Italiano.

Escreveu 1.836 livros publicados em 83 países sobre diversos assuntos.

Casou nove vezes, nove vezes viúvo.


Morou em todos os países que quis e ganhou vários prêmios e medalhas.

Conheceu pessoalmente personalidades diversas, como Napoleão, Stalin, Schubert,


Brahms,Cézanne, Paul Klee, Haendel, Mussolini, Che Guevara, Mandela, Kafka, Molière, Goethe,
Jorge Amado, Assis Valente, Rui Barbosa, Manuel Bandeira, todos os papas e reis dos últimos
séculos.

Usou seis pseudônimos e seis aparências diferentes lhe demos,

Para que não desconfiassem de sua verdadeira idade.

Afinal, o que um ser humano quereria mais alcançar não entendo.

CARLOS MARIA

(Deixando-se cair exausto na cama)

Apenas uma coisa quereria a esta altura da minha idade;

Encontrar, em mim mesmo, a mais pura liberdade.

(dorme)

(Próximo à entrada de Santo Amaro,

Duzentas e cinq uenta famílias invadem a Fazenda Lagoa de Baixo)

JOÃO ALVES

Aqui chegamos, meu povo sem terra, e que Deus nos abençoe nesta empreitada.

Que nos perdoe se pecamos em buscar o que não nos dão por direito.

Do futuro não sabemos nada, temos apenas as mãos calejadas.


Da terra alheia fazemos milagre, do nosso trabalho tiramos o sustento.

Se eles chamam isso de invasão, em resposta só resta um lamento.

EMANOEL PEREIRA

Não lamentes, irmão, pois estamos lado a lado com a mais nobre moral.

Se adquirirmos nossa terra à força é problema do Governo Federal.

Sempre que fazemos isso, sinto como que um membro do antigo povo inca.

Onde está a Reforma Agrária prometida pelo próprio Incra?

JOSEFA MARIA

Até mesmo nós, as mulheres, havemos muito de ajudar no assentamento.

Enquanto os homens desmatam a área, nós armamos os barracos.

Não contamos, é certo e claro, com nenhum equipamento,

Mas temos a boa vontade de um povo aos prantos dados.

JOÃO ALVES

Sim, de nossos braços nus se estenderão foices e enxadas.

Sob o sol forte que, dia após dia, castiga o sertão,

Homens exaustos e mulheres maltratadas,

Plantaremos não só quiabo, batata e mandioca, mas também milho e feijão.

EMANOEL PEREIRA

Índios da Tribo Kiriri ocuparam as casas do povoado de Pau Ferro, em Banzaê.

Os posseiros saíram da reserva indígena em paz, nada puderam dizer.

A Funai não se manifestou, o Incra também não se manifestará.


Teremos tempo e terra livre para plantar, colher e se alimentar.

JOSEFA MARIA

Espero que tenhas razão, homem de Deus,

Estas terras pertencem a Dr. Carlos Maria e aos seus.

Dizem ser pessoa dura, desses de só andar com ateus.

(Calam-se, definitivamente, e passam a se concentrar no desbravamento da mata e na


montagem dos barracos)

UM LAVRADOR

Cuidado, irmãos! Estas áreas não estão solitárias, não!

Ao longe, onde a vista quase não alcança, aproximam-se capangas

Armados de rifles e montados em cavalos belos e escovados,

Vi tudo em binóculos e eles nunca estão enganados.

JOÃO ALVES

Preparem-se com armas improvisadas; latas e enxadas dão belos golpes.

Providenciarei enviar uma carta à Salvador cujo destinatário é um parente.

Devido aos seus conhecimentos com criados deste tal Carlos Maria,

Certamente tomará providências para acabar com este incidente.

JOSEFA MARIA
Vamos, senhoras e moças, mãos à massa!

Até que o Incra ou este parente de Alves tome providências,

Temos muito a que defender, vamos lá à resistência!

(Portam-se de armas improvisadas)

EMANOEL PEREIRA

Santo Deus, que o povo da cidade, com toda sua tecnologia,

Não sabe nem metade de nosso dia-a-dia,

Disso eu tenho certeza e rebeldia.

OUTRO LAVRADOR

Esqueça o povo da cidade, Emanoel!

Eles só sabem viver em seus mundos eletrônicos de velocidade febril.

Nós, aqui no sertão, somos outra coisa...somos a História do Brasil!

JOÃO ALVES

História...a verdadeira história escrevemos com pranto escarlate.

Estudantes, livros, professores, conhecimento em quilate.

Lêem apenas a História mal contada da ganância maquilada pela burguesia.

Mas isso tudo há de acabar em sangue um dia!

JOSEFA MARIA
Este dia há de ser hoje!

(Os lavradores nômades partem corpo-a-corpo

com os capangas de Carlos Maria R. Guerra, que já se aproximam atirando.

Um confronto atroz enche de vergonha o sertão e muito sangue é derramado em nome da


ignorância e do poder)

(À beira do Dique do Tororó)

CLOTILDE

Preocupo-me muito com teu irmão.

Ele foi o único que implicou com a profissão.

Moço inventivo, travesso, temperamental...

Foi o único da família a não assumir o avental.

FILHA DE CLOTILDE

A senhora tenta protegê-lo das idéias do tio,

Mas, no fundo, reconhece que ele empregou toda a família num só lugar.

Logo, sem o tio, estaríamos todos distantes e a lamentar.

CLOTILDE

Na verdade é bom ver todo o clã trabalhar num só espaço,


Todavia não estamos sendo injustos, forçando teu irmão sem dar ouvidos?

Numa coisa minhas palavras parecem atravessadas por um fio de aço:

Apesar de ser rebelde, ele é, sem dúvida, dos mais queridos.

FILHA

Mania de vaidade em pobre, sabes que sempre acaba mal.

Orlando parece atraente talvez por ter algo de original,

Mas até quando a originalidade é objetiva? Até quando é vã?

Tenho até certo orgulho de seu gênio, mas vergonha de ser sua irmã.

(Uma prima, criada da mansão, vem apressada ao encontro delas)

PRIMA CRIADA

Estão sabendo da novidade?

Receberemos nova hóspede no recinto.

A filha do patrão já está na cidade.

Um amor de menina; já uma moça, minto.

FILHA

É a tal que dizem ter estudado na Cidade Maravilhosa?

Moça inteligente, de bons modos, fina e vaporosa?

PRIMA CRIADA

Pois é...e também generosa!

Dizem que cursou Arquitetura e Economia.


Seu coração é grande e sensível; boa prosa.

E o patrão não quer deixá-la pra titia.

(No gabinete de um importante juiz

no interior do Fórum Rui Barbosa, em Salvador)

JUIZ

Salve, Dr. Guerra! Meu mestre e amigo!

Que linda moça é esta que trazes contigo?

CARLOS MARIA

É meu tesouro, por que não...? Meu olho.

A minha vida em carne e osso.

JUIZ

Suponho que seja tua esperada filha carioca

Aquela que pesquisa, calcula e piano toca.

(A moça saúda o juiz)


CARLOS MARIA

Eu também te saúdo, Grande Excelência.

E também venho dizer-lhe da minha experiência.

Minha adorável deseja ser, ainda este ano, noiva.

E eu, tolo pai, não penso n’outra coisa.

Confesso que estou alegre.

Isso na juventude é igual à febre

Pensei em apresentá-la ao teu filho advogado.

Pai tradicional eu sou, confesso que conheço o meu gado.

JUIZ

Veio ao amigo certo; geralmente o baiano é simpático,

Mas quanto ao meu filho, não conheço um mais belo do que ele;

Robusto, saudável, generoso, culto e homem prático.

Lamento apenas o que a solidão fez do semblante dele.

CARLOS MARIA

Às vezes o isolamento é uma virtude, pois o povo, no geral, tolo é.

Desde o Rodrigo ao João, desde o Maurício ao simples Zé.

Criatividade aqui há para dança sensual.

Nada se cria na política, na ciência ou na Comunidade Mundial;

Monocultural...é sempre tudo igual.

Na educação, só teoria, o povo nada cria.

Na Religião, uma perfeita confusão!

JUIZ
O que é isso, companheiro...não seja tão crítico e assim tão severo!

O povo baiano cria e exporta; a terra é tratada com muito esmero.

Não só temos famosos artistas, como competentes cientistas.

Agora, não há dúvida, é um povo alegre demais, lento e relaxado,

Mas pra quê você quer, velho como estamos, um país agitado?

Aqui cabe a Jamaica, África, Lisboa e Cuba, tudo sob um único sol matreiro.

Mas que tal voltarmos a falar do meu filho lindo e ainda solteiro?

CARLOS MARIA

Acho que tens cautela e razão.

Discutir sobre a Bahia é morrer entre as patas de um dragão.

Este matrimônio terá que ser meticulosamente planejado por nós.

Poderá ser no mês seguinte daqui a 30 luas e 30 sóis.

(Quarto de Orlando.

A sua mãe entra solene no ambiente)

CLOTILDE

Filho meu, teu tio mandou falar contigo um só instante;

Preocupa-se com teu destino, mais agora do que antes.

ORLANDO

Com todo respeito a ti, minha mãe, que é bondosa,

Não penso na idéia que ele tem de mim, pois é dolorosa.

De que me vale alguém querer me afundar no abismo da conformidade,


Enquanto uma série de opções mais dignas se encontra por toda a cidade?

CLOTILDE

Não faleis assim do teu tio querido.

ORLANDO

Uma pessoa que se promove como boa, mas que me humilha de toda forma.

Na verdade não incentiva o desenvolvimento da família, acorda!

Tem a idéia fixa de que sou um moleque de rua.

Não entende como realmente sou; tem de mim uma noção crua.

Portanto, mãe querida, poupe o fôlego e o ar.

Porque de idéias alheias não hei de me influenciar.

SECRETÁRIO

(Batendo na porta do quarto e entrando)

Com licença e desculpe se interrompo alguma conversa...

Venho em nome do patrão dar as boas vindas ao novo colega, sem pressa.

CLOTILDE

(Levantando-se e saindo vagarosamente)

Tudo bem! Eu já estava de saída!

Além do mais à tarde já se vai caída!

ORLANDO

(Sozinho com o secretário)

Creio que tu és o braço direito do patrão.


Corrija-me se eu estiver errado ou confirme se eu tiver razão.

SECRETÁRIO

De fato és perspicaz como dizem os teus.

Mas o que traz você para este nobre lugar?

Amor ao próximo servir ou apenas de um emprego tratar?

ORLANDO

Diante de tanta contundência em teu pensar concebido,

Concluo não ser tão bem vindo por todos os segmentos.

Pelos meus familiares, pelo menos, fui mais bem recebido,

Mas pelo vestir nobre do senhor vejo que vens de outros fundamentos.

SECRETÁRIO

Pois saiba que perguntei algo e tu respondeste outro.

Quereis falar de tuas intenções agora ou em próximo encontro?

ORLANDO

Não haverá próximo encontro, pois tu não és autoridade.

Apenas um empregado como eu, que apenas ganha mais, isso é verdade.

Venho trabalhar temporário, pois este não é meu lugar e nem cargo eterno.

Enquanto eu estiver aqui serei bom serviçal, mas hei de usar gravata e terno.

SECRETÁRIO

(Visivelmente irritado sai do quarto)

Pois bem...sucesso em tua empreitada!


ORLANDO

(Sozinho)

Pois bem, boa nesta estou. Querem me humilhar, me influenciar, questionar...

Não posso ser eu mesmo; pela idade e pela classe social querem me julgar.

SECRETÁRIO

(Andando a sós pelo corredor da mansão)

Mas que prepotente este garoto pobre!

Nem bem chegou já está esnobe.

Nesta residência o único empregado sou eu, que é nobre.

Deste jeito quererá até tomar o meu lugar, achando que é ouro e eu, cobre.

(Vem se aproximando o patrão e sua filha)

SECRETÁRIO

Salve bela flor do campo! Salve meu patrão e amigo amado!

CARLOS MARIA

(Dizendo ao ouvido da filha)

Da boca deste crocodilo sai música para nós e veneno para qualquer subordinado.

ORLANDO

(Olhando por detrás de uma pequena abertura de sua porta)

Oh, que bela criatura que aponta deste obsoleto horizonte...


Não que seja necessariamente bonita em traços perfeitos,

Todavia possui uma beleza, ao seu modo, um tanto estranho.

Franzina, entretanto alva e gentil, pura e com belos seios.

Que belo espetáculo ambivalente avisto do cume de meu mastro.

Pessoa bonita-feia, nariz comprido, jeito desajeitado, mas castro.

Seus olhos não são claros; são negros, parecem estrelas extintas.

Devo, sim, escrever-lhe algo! Onde estão papéis e tintas?

(Entra Clotilde no quarto do Orlando)

CLOTILDE

Vistes a filha do patrão? A última vez que a vi era uma mocinha.

Agora é uma mulher, porém com todo o melindre de uma virgem ainda.

Bonita, elegante e culta, mas sua graça está na simplicidade.

Coisa boa é a vinda dela; para animar o lugar com sua suavidade.

ORLANDO

Ah, nem diga! O meu coração já está estarrecido!

Este é um estado de que ele tem mais de querido.

A presença desta moça um colorido deu a este mórbido lugar.

Agora, mais ainda, me animei para aqui, por enquanto, ficar.

Não vejo a hora de poder trocar com ela uma boa prosa.

Perfeita de traços não é, mas vejo que é formosa.

CLOTILDE
Isso porque as pessoas perfeitamente belas, à primeira vista,

Nos transmitem confiança imediata e parecem antigas companheiras.

E as pessoas imperfeitas nos transmitem encantamento e estranheza.

Porém, se forem boas, como é o caso da filha do patrão,

À medida que as conhecemos, mais nos cresce no peito a paixão.

ORLANDO

Oh, mãe querida, por favor! Ela não é feia e nem qualquer gente.

A doce criatura tem, sim, uma beleza diferente.

CLOTILDE

Humm...cuidado, filho! Menina carioca não se apaixona por pobres baianos.

Este tipo de garota tem na cabeça outros tipos de planos.

(Residência do juiz)

JUIZ

Oh, meu filho! Não me decepcione ainda!

A filha do Dr. Carlos Maria é uma jóia de menina!

Tu nunca vais encontrar esposa tão generosa e rica.


Diga onde encontras partido melhor, por favor, diga!

FILHO DO JUIZ

Não acredito! Queres, - como és egoísta – empurrar-me por dinheiro,

Valha-me Deus, santo deus casamenteiro!

Só pensas em ti; tudo por posição, poder e capital.

A filha do maestro é CEGA e eu não hei de casar com uma excepcional.

JUIZ

E daí que seja cega? Mais vale uma deficiente visual

Do que tua namorada atual;

Não tem pai e nem capital.

Mal mora com a mãe numa mísera casa normal.

FILHO DO JUIZ

Mas, pai, ela estuda Advocacia, não possui humores caprichosos

Nem fraquezas femininas, dona de feitos carinhosos,

Toda bondade, de muita sensibilidade e de face linda.

Eu a amo e nunca vi mulher melhor que minha namorada ainda.

JUIZ

Porque ainda é jovem e sadio!

Um dia serás um velho e darás importância ao conforto.

Precisarás de paz quando o teu corpo estiver baldio.

Para mim um homem casado com uma mulher sem tradição está morto.
FILHO DO JUIZ

Está dito e certo. Ligue para o maestro e diga-lhe a notícia.

Porque se me forçarem a me casar com aquela cega, será caso de polícia.

JUIZ

Tolo! Tudo bem, eu o farei, desmarcando o noivado.

Mas se a conhecesse melhor, veria que ela é doce tal qual a tua namorada.

Está, com esta decisão, atrasando teu destino, oh, pobre coitado!

Não há dúvida, tudo é tão claro: Uma tem tudo e a outra não tem nada!!!

(Salão de refeições da mansão)

(Bárbara, filha de Carlos Maria, um casal de aristocratas e o seu pai à mesa durante o almoço;
Orlando ajuda à mãe a servir)

Bárbara

(Falando ao ouvido da Clotilde, quando esta se aproxima bastante)

Por favor, criada, diga-me, nem que seja a última palavra que possa me dizer;

Que voz masculina maravilhosa é essa que escuto de vez em quando no salão?

Há algo de nobre e elegante neste timbre; adoro esta inflexão.

Mate-me esta curiosidade! Desde que cheguei, encanto-me com esta voz.

CLOTILDE
É o meu filho Orlando! Eu também me delicio diante de seu timbre.

Inteligente como uma águia, hábil como uma lebre.

ARISTOCRATA

(Percebendo o cochicho entre as duas)

Hum,hum...mas diga-nos, bela criatura, minha mulher e eu temos esta dúvida;

Que métodos extraordinários usastes para estudar Arquitetura e Economia,

Além de piano clássico no Rio de Janeiro?

Ela iria isto perguntar, mas eu resolvi fazer primeiro.

CARLOS MARIA

(Respondendo por sua filha)

Meu caro Lord, o método de Braille já invadiu todos os segmentos,

Qualquer deficiente visual hoje em dia tem acesso aos suplementos.

Além do mais, o que conta mais é a sensibilidade

E nisso minha filha é abundante, já nesta idade.

(Depois da refeição Bárbara encantou os visitantes com sua técnica pianística, mas em nenhum
momento se desconcentrou da voz de Orlando, que de vez em quando, falava ao com a sua
mãe)

ARISTOCRATA

(Batendo palmas com as gordas e suadas mãos)

Bravo, bravo! Esta doce menina executa Debussy com muita precisão!

Foi um momento precioso vê-la ao piano entrar em ação.


MULHER DO ARISTOCRATA

(Servindo-se de uma xícara de chá)

Sim, maestro, de fato tua filha é um tanto talentosa.

Por que ainda não casaste tal menina graciosa?

ARISTOCRATA

Oh, querida, não sejas tão insensível e indelicada.

A filha do maestro tem a eternidade, pois é bela e estudada.

CARLOS MARIA

(Falando baixo para a filha não ouvir)

Não, em absoluto, a dama está sendo indelicada.

Na verdade, devido à deficiência, minha filha não pode escolher.

Eu sou os olhos dela; vejo o que ela não pode ver.

BÁRBARA

(Levantando-se do piano, aborrecida)

Ora, papai, estou cansada de ser tratada como uma pobre coitada.

Com licença, pensas que não percebo quando falas de mim às costas?

Perdoem-me, esqueci de arrumar umas coisas particulares no quarto.

(Todos ficam atônitos diante de tal revolta, enquanto Bárbara se retira e fica a chorar num
corredor próximo do salão de chá)
CARLOS MARIA

Oh, que falta de tato da minha parte.

Não fiquem chocados; também têm filhos e sabem como são veementes.

Logo à noite, após o jantar, tudo ficará esclarecido, entrementes.

MULHER DO ARISTOCRATA

Oh, claro, claro! Juventude...quem pode controlar?

Esqueçamos tal incidente e voltemos ao chá.

ARISTOCRATA

Talvez tenhas razão, querida, a moça precisa de ocupação.

Algo que a faça esquecer sua própria condição.

Enquanto não amar e possuir um marido em paixão,

Será sempre complexada, voltada para si mesma, sem compaixão.

MULHER DO ARISTOCRATA

Agora tu que estais sendo indelicado.

ARISTOCRATA

E quem não é neste mundo vil?

CARLOS MARIA

Ora, ora...vocês me divertem...enquanto, no geral, assisto entediado dias cálidos,


Quando recebo visitas me divirto e o tempo passa leve como uma pena.

Poderiam me ensinar a receita de serem tão sádicos ?

Ou basta que eu, sem maiores princípios, entre em sua absurda cena ?

(Todos soltam gargalhadas enquanto fumam cachimbos, charutos e bebem chá)

BÁRBARA

(Sozinha no corredor)

Oh, Senhor, há coisa mais vil do que a discriminação?

Não consigo discernir o que vem a ser mais desumano.

Se a doença, na sua mais inafiançável atuação

Ou se o preconceito, com o seu terrível e injusto plano.

Se fizerdes, Senhor, em apenas seis dias tão perfeito palco,

Por que então permitirdes que tais injustiças usem salto alto?

ORLANDO

(Ouvindo as lamúrias da dama, aproxima-se vagarosamente)

Por qual motivo estaria uma tão honrosa dama a gemer?

Por quais castigos irei eu, em teu lugar, escolher?

Se não consegue ver com os olhos como todos vêem,

Enxerga, bela dama, com o teu coração e todos crêem.

Mas se são injustos para contigo,

Foge comigo, teu fiel e apaixonado amigo.

BÁRBARA
Oh, amigo, reconheço esta voz maravilhosa como a uma melodia esquecida.

Delicio-me com tua ternura, confesso, quero ser a tua amiga.

Mas como posso eu confiar em alguém que nem sequer fui apresentada,

Ou melhor, que antes que falassem detalhes dele, já tenha sido cortejada?

ORLANDO

Jeová abençoe este encontro raro entre nós dois aqui somente.

As montanhas se elevam, os oceanos abundam e os abismos descem carentes.

Se bem entendo dessas coisas da natureza, bem entendo os mistérios do amor.

Na minha vida não há máculas, nem paixões, muito menos dor.

Não me apresentarei por ora, para que não me julgues por título,

Não tenho nesta casa grande posição, por isso deixarei que descubra por si.

Pois é sábia como a abelha, que de teu favo se faz teu ídolo.

Digo-te apenas, com toda humildade, que a amo desde que a vi.

Percebi, à primeira vista, que és a mais doce criatura que conheci.

BÁRBARA

És privilegiado por teres me visto;

Eu, infeliz que sou, não posso nem isso.

Mas confesso que me encantai com a tua doce voz.

Incrível como tal som me invadiu de forma tão veloz.

ORLANDO

Talvez seja o canto da cotovia


Ou de alguma outra ave de rapina.

Talvez seja o dom que Deus me deu

Para atrair-te à minha sina.

BÁRBARA

Tens nobres palavras em teus lábios honrosos,

Mas perdes comigo em não querer dizer-me o que fazes aqui.

Tua mãe é Clotilde, bem sei; teu nome mencionarem ouvi.

Mas sobre tua pessoa fazes mistérios dos quais nunca vi.

Francamente não entendo por que tal estratégia louca,

Deveria aliviar-me o coração, pois não penso em outra coisa.

ORLANDO

Uma pena se a faço sofrer assim tão de repente,

Juro-te pela pátria minha que não há maldade em minha mente;

Apenas prudência é o nome a que chamo este mistério magnífico.

Através da fluidez da compreensão, o coração duro torna-se líquido.

Pelo que conheço dos parentes,

Saberá mais de mim, através de um deles;

Críticas e injúrias sobre mim sairão entre seus dentes.

BÁRBARA

Vejo pelo medo de se abrir, agires como um simples criado;

Nota-se pelo mistério, pela reverência e pelo exagerado cuidado.

O que realmente me comove é que possuis nobreza d’alma.


Tuas idéias me animam, teu tom de voz me acalma.

Percebo estarrecida, como o sol de quando nasce novo,

Que esqueci o aborrecimento ao qual me acometi ainda há pouco.

(Ouve-se passos e a conversa é interrompida, a prima do Orlando se aproxima e ele vai até a sua
direção, enquanto Bárbara caminha, pelo sentido contrário, de volta ao salão de chá, onde ainda
poderia se ver o casal de aristocratas e seu pai)

MULHER DO ARISTOCRATA

Oh, a bela mocinha resolveu pedir desculpas ao pai, afinal.

Com um pai belo e nobre como este não se pode ser radical.

Deverá herdar toda sua fortuna e deverá ser sempre dócil em sua expressão.

Deveis esquecer a juventude nesses momentos de expansão.

BÁRBARA

(Surpresa com as idéias precipitadas da mulher)

Oh, perdoem-me, todos! Por gentileza, me desculpem!

Não pensei em magoá-los, senhores, desculpem!

(Senta-se e toma chá)

Oh, doce criatura, nós que tratamos de política,

Nunca nos magoamos e ficamos insensíveis à crítica.

A melhor coisa a se possuir, além, é claro, de dinheiro,

É insensibilidade e comportamento maneiro.


CARLOS MARIA

Sim, mas desviando o assunto em questão:

O que exatamente os trazem aqui em minha ilustre mansão?

Uma fofoca nova especial ou apenas mais um problema sem solução?

ARISTOCRATA

Um pouco dos dois juntos, presumo!

Lembra-se daqueles 600 hectares de fazenda que tens na Lagoa de Baixo?

CARLOS MARIA

Sim, com muito esforço, lembro vagamente.

Nunca trabalhei aquela terra, nem nunca negociei.

Comprei num tempo longínquo e o que fazer dela não sei.

ARISTOCRATA

Pois bem, parece que invasores querem decidir por você!

Sem contar com equipamentos mecânicos e sem técnicas agrícolas conhecer,

250 famílias decidiram fazer das tuas terras, o sustento deles.

Como se você tivesse de pagar pela falta do Governo em seu dever.

Estragam a terra, sujam tudo e dizem que plantam para comer.

CARLOS MARIA

Fico estarrecido com a notícia um tanto em ponto,

Mas qual o teu interesse no assunto?


ARISTOCRATA

É que tens mais poder de fogo do que eu já tive um dia.

Se não espraiares o povo de suas terras, logo invadirão também as minhas,

Isso para mim seria uma catástrofe; tenho, das suas, terras vizinhas.

São porcos, roupas rasgadas e suadas, mãos calejadas pela enxada.

Comem pouco, desbravam a mata, constroem barracos, tudo isso por nada.

Quanta anarquia, invasão e capricho regados a lodo.

Chamam a isso Democracia; pesadelo dos abonados e arma do povo.

CARLOS MARIA

Este povo vê o dia começar e acabar trabalhando duro.

O que pretendes? Entre mim e eles levantar um muro?

Sei que não decido nada de supetão.

Agradeço pela ilustre visita, ligo outro dia, dando minha decisão.

(Quarto de Bárbara)

PRIMA CRIADA

(Arrumando a patroa para o jantar logo mais)

Estou muito feliz com a tua presença aqui. E por que não?

És mais dama do que acreditou a minha reles suposição.


BÁRBARA

Estou certa de que jamais se decepcionará comigo.

Mas quem é aquele rapaz que estava com você à tarde?

Não lembro dele da última vez, por ele minha memória arde...

PRIMA CRIADA

Oh, patroa...uma pessoa sem muita importância...

É apenas meu primo mais novo e sem juízo.

Tu não conheces porque é novo aqui por esta instância.

Mas não percamos tempo falando nele; pensar nele é prejuízo.

Tens de ter tua mente voltada para os grandes fidalgos de boa família.

Príncipes, burgueses, nobres, morares num palácio, casares numa ilha.

Se eu no teu lugar estivesse, somente alto sonharia.

Para quê perderes tempo com os homens da Bahia?

(Entra o mordomo, tio do Orlando)

MORDOMO

Senhorita, o teu pai a espera no salão de jantar.

A refeição já há tempos esfria e ele cansa de esperar.

BÁRBARA

(Consigo mesma)
Como são alienados esses empregados desta casa.

Possuem uma visão burguesa e vivem de aparência pura.

Pensam com os cotovelos e seus pensamentos possuem asas,

Mas, na verdade, são conformados e levam vida dura.

(Senta-se na mesa de jantar)

(Dia seguinte em frente ao Elevador Lacerda)

LAMBE-LAMBE

Por que vamos seguir este caminho incerto?

ENGRAXATE

Vamos pegar mais materiais. O trabalho nos espera!

Ainda que de naturezas diferentes e cada um na sua esfera.

VENDEDOR DE AMENDOIM

Mas talvez dê tempo para uma cervejinha.

Ninguém é de ferro, vamos ali na Barroquinha.

LAMBE-LAMBE

Ouviste alguém dizer algo do Orlando?

VENDEDOR DE AMENDOIM
Nada ouvi. Não freqüento a turma de Nazaré.

ENGRAXATE

É certo ainda hoje soube do Roberto.

Deixou-se seduzir o rapaz por um nobre rebento.

Apaixonou-se, imaginem só, pela filha do seu patrão.

Não sei onde queres chegar, parece até piada de salão.

LAMBE-LAMBE

São os frutos da ambição.

Ficou louco e sem noção.

De que o pobre tem seu lugar.

Que eu saiba burguês só faz jogar.

VENDEDOR DE AMENDOIM

Ah, deixemos Orlando de lado.

O que a vida tem de ser, será.

Quem sabe o destino dele é ser um frustrado apaixonado.

Ou, quem sabe, dá certo! A moça é cega e em desvantagem está!

Ela não é tão bonita, todos dizem, e Orlando bonito sempre será!

(Gabinete do patrão)

(Carlos Maria encontra-se sozinho diante do espelho)


CARLOS MARIA

Oh, Orixás! Os ignorantes não sabem aproveitar de seu poder,

Mas eu conheço do que sou capaz convosco! E disso me delicio!

Mas, por favor, apareçam para me esclarecer

O que acontece nesta casa, por que minha filha anda no cio?

EXU

(Aparecendo no amplo espelho)

Se queres nossa ajuda para esclarecermos esta novidade,

Lembre-se que te avisamos, antes de ela pisar na cidade.

Liberem-se, Orixás! Pelo meu poder eu lhes dou caminho a este mundo!

(Faz movimentos mágicos)

XANGÔ

Pelo meu machado certeiro,

Agirei como útil mensageiro,

Tua filha está apaixonada,

Sem mais nem menos, por nada.


CARLOS MARIA

Mas gostaria de saber por qual doutor.

Afinal, seu pretendente, em que se formou?

OXOSSI

Ah, ah, ah! Aqui vem a parte mais engraçada.

Este amado não é formado em nada.

Nem sequer faz parte da sociedade.

Mas é um sincero cavalheiro, isso é verdade.

OXALÁ

Paremos de conversa mole e parada.

Encare a realidade, maestro, por mais que seja odiada.

O que importa é a vontade da garota que nasceu privada de olhar.

Ao menos agora seja humano e não a prive também de amar.

CARLOS MARIA

Belíssimo argumento! Mas agora quero saber o seu nome.

Preciso saber como chama este tão sortudo homem.

IEMANJÁ

Neste momento, por exemplo, uma de suas criadas, prima dele,

Está a ler uma carta endereçada à sua filha, mandada por ele.

Bárbara está a chorar de felicidade e sorrir de emoção.

Contente fica por perceber que alguém neste mundo a ama de verdade,
Já que nas faculdades que freqüentou foi tão discriminada em vão.

OXOSSI

Ficarás surpreso ao saber que este homem é educado,

Apesar de ser pobre, Orlando, um cavalheiro delicado.

Seguro nas decisões, não se deixa endividar,

Mas ficará mais surpreso ao saber que como teu criado ele está.

CARLOS MARIA

Como? Não acredito! Orlando? Minha filha se apaixonou por um dos criados?

Mas eu só tenho empregados morenos, homens escuros, bem queimados...

De todos esses quase 600 anos em que vivi,

Um caso louco assim eu nunca vi.

XANGÔ

Mas o que esqueces é que sua filha não julga pela aparência.

A cegueira é algo próximo da demência,

Pois ela se apaixona por virtudes mais abstratas do que a roupa ou a cor,

Que a beleza ou outra coisa visível; ela o vê pela lente do amor.

CARLOS MARIA

Oh, que coisa vã! Não vejo claramente até que ponto erro em tornar-me liberal.

Ela não poderia se apaixonar por alguém de capital?

(Bárbara bate na porta e os orixás desaparecem)


BÁRBARA

Pai, em que pensais de tão grave que chegas a contorcer o teu semblante?

CARLOS MARIA

Bárbara, tu estás amando um homem que nem sequer conhece os limites.

Somente pela sensibilidade e honestidade vejo vocês quites.

BÁRBARA

Sim, pai! Sei que tu serás compreensível, apesar de não ser o que esperavas.

A vida nunca segue um roteiro fixo, como regras escritas em tábuas.

Não sei o que ocorre comigo, mas sei que perco o controle de forma veloz.

O cheiro dele, suas palavras, suas idéias, suas colocações e voz.

CARLOS MARIA

(Abraçando a filha, desolado)

Sei que estou velho e que não levarei nada para o caixão,

A não ser a avareza da reflexão.

A verdade é que minha cabeça mudou muito ao longo dos anos.

Vi famílias burguesas inteiras serem devoradas pelas suas próprias idéias.

Verdadeiras bruxas, duendes do preconceito e horrorosas Medeias.


Antes eu supervalorizava a pessoa inteligente, esclarecida, bem informada,

Eloqüente, amante das Artes e da Literatura Universal, pelas outras, invejada.

Ainda confesso atraído por elas, pois são pessoas interessantes.

Sedutoras são, mas as quero à distância!

Elas enriquecem nossas vidas monótonas, diminuem nossa ânsia.

Mas quero estar livre de suas garras ideológicas. E quero você em liberdade.

Eu, por exemplo, me enquadro entre essas pessoas de idade.

BÁRBARA

O senhor deve detestar a si próprio por isso.

Não pretende sair deste terrível compromisso?

CARLOS MARIA

Talvez, eu deixando minha filha casar com quem queira, já seja um começo.

Para alguém se tornar um ladrão, basta que roube uma vez e goste de fazer.

Assim é com o drogado ou com o fanático religioso; um vício, sem querer.

Uma vez falso e erudito, sempre falso e erudito.

Mas eu determinei para mim uma posição privilegiada.

Consiste numa estratégia: as pessoas cultas e informadas, eu as admiro!

Converso, discuto, aprendo; mas são meus inimigos!

Como eu sou de mim mesmo.

E as pessoas boas e generosas, com inteligência mediana, como você ou Orlando

Eu as quero conquistar no fundo do coração, quero-as sempre ao meu lado.


Essas são idéias de evolução que a cada ano em minha mente acalento,

Porém, confesso decepcionado; só descobri esta verdade com muito tempo.

Desprezo pessoas agarradas a livros!

Prefiro o perfume suave de pessoas esportivas.

São naturais, compreensíveis, leves, ativas...

Estes seres não precisam de inteligência, cultura e habilidade no falar;

Adquirem a sabedoria sem riscos e sem desenvolverem o raciocinar.

Isso faz delas pessoas de aparência séria, mas suavemente delicadas.

BÁRBARA

Fico feliz por ti, pai. Sempre hei de te idolatrar.

Sei que não se decepcionará por tua decisão de me apoiar.

Informo-lhe que o meu amado é o Orlando, o novo criado.

Só não entendo por que é tão sério e fechado.

CARLOS MARIA

Talvez eu saiba a razão e sempre hei de achar injusto;

Quando a vida não é como observo, minha sombra é sempre um susto.

Uma pessoa boa e honesta normalmente possui um semblante triste e carregado.

Em contrapartida, o injusto e ganancioso anda com um eterno riso exagerado.

BÁRBARA

Será que a busca da verdade necessita de uma abordagem tão grave,

A ponto de marcar o semblante de quem a busca?


CARLOS MARIA

Não sei! Eu não busco a verdade faz muito tempo.

Isso não cai bem a um velho vivido como eu.

Pessoas que perderam a esperança querem é mentira, ilusão, lamento.

Só de uma coisa tenho certeza e sei:

Um defeito que toda boa moça tem é...muitas vezes trocar opiniões

Com homens de cultura mediana e inteligência de peões.

BÁRBARA

Talvez eu esteja cega também por admirá-lo, pai fecundo.

Não buscai a verdade na vida nem por um segundo?

CARLOS MARIA

Não, não é bem assim!

(Para si mesmo)

Oh, com criaturas doces e meigas como minha filha, não posso ser direto, cruel.

Deixe-me ser poético, lambuzar a realidade com um pouco de mel...

(Voltando-se para Bárbara)

Deixe-me ser mais claro; eu busco a simplicidade apenas. Eu pago por ela!

E nem sempre o simples vem acompanhado da verdade.

Somente quem tem acesso livre à simplicidade e à paz

São dois tipos de sujeitos:

O primeiro deles todos conhecem e Jesus sobre ele pregou.


É o sujeito que, por querer ter o necessário, ao excesso renunciou.

Propriedades, tesouros e bens; ele é pobre por não ter ambição.

Sente-se feliz assim mesmo, sinceramente, nesta livre opção.

A vida de um sujeito assim é tão simplificada que o tédio torna-se pretendente.

Mas não aos olhos dele, entende?

BÁRBARA

E o segundo?

O que quer do mundo?

CARLOS MARIA

Conforto e paz ao mesmo tempo!

O segundo sujeito, muito rico e extremamente prudente, disso não morre.

Porque normalmente isso não ocorre.

O segundo sujeito a ter acesso à simplicidade não renuncia a nada.

Possui dezenas de propriedades, bens e criados para lhe servir e entreter,

Mas extremamente sábio a ponto de não se deixar envolver.

BÁRBARA

E quanto ao novo rico, ao pequeno burguês, à classe média?

CARLOS MARIA

Esses são sujeitos miseráveis por excelência.

Não vivem com simplicidade e nem poderiam, por mais que tenham experiência.
Quando Mozart escreveu sua última ópera – A Flauta Mágica – revelou

Uma personalidade de leveza extraordinária, ignorando por completo a ferida;

A filosofia sinistra que dominava em seu tempo e que complicava a vida.

Para um amigo o compositor revelou o segredo de tanta suavidade:

“A Vida é permanente. Ela não precisa de signos ocultos,

Para se mostrar em beleza e eternidade.

Deus não está na tortura da alma ou na confusão do pensamento.

Mas na capacidade que o Homem tem – desde os tempos mais remotos –

De olhar as estrelas e ficar comovido.”.

BÁRBARA

Muito bem, pai. Obrigado pela prosa.

Irei dormir e pensar sobre esta conversa um tanto gostosa.

CARLOS MARIA

(Sozinho em seu gabinete, depois da saída de sua filha)

Enquanto falava em Mozart para minha filha amada,

Percebi o quanto minha vida é miserável e desperdiçada.

Em busca de uma eternidade pela metade, me envolvi com estes Orixás malditos.

Como disse Mozart: A vida não precisa de signos ocultos, nada esquisito.

Fui ganancioso em fazer um pacto com estes espíritos estranhos.

Eles ofereceram seus serviços e eu aceitei sem parâmetros.

Até que ponto eu simplifiquei minha vida?


Até quando permitirá Deus este fenômeno, sem tocar na ferida?

Estarei eu vendendo a alma ao próprio diabo?

Tenho a sensação de ser pelos deuses servido...

Mas não seria eu um escravo?

(Cozinha da mansão)

(A prima, Clotilde e mordomo estão trabalhando)

PRIMA CRIADA

Tia, tenho algo de estranho a te dizer.

Encontrei um presente na cômoda da patroa dada por Orlando.

E ela me pediu para ler uma carta escrita por ele também.

MORDOMO

(Derrubando um prato)

Oh, não! Este maldito ainda pode pôr em risco nosso emprego!

Envolver-se com pessoas do patrão é perigoso, morro de medo!

CLOTILDE

Calma, pessoal! A patroa demonstrou diante de mim atraída por sua voz.

Se ela realmente gosta dele e não só ele dela, do que temer?

Devemos ficar tranqüilos e esperar o que vai ser.

PRIMA CRIADA
Ela pode estar apaixonada por ele, mas porque não pode ver que ele é preto.

De qualquer forma isso tudo me assusta, não quero perder o meu emprego.

MORDOMO

Oh, meu deus! Meu empreguinho que lutei tantos anos para merecer!

Acho que vou ter um troço, acho que vou morrer!

CLOTILDE

Que mal há na filha do patrão se apaixonar por meu lindo filho?

Até mesmo eu, como sua mãe, várias vezes me vi encantada com sua voz,

Sua firmeza, sua coragem, sua simplicidade e beleza física.

E daí que seja moreno? Ela não é cega? Oh, inveja atroz!

Acho que o preconceito surge é do dinheiro e de você dois.

MORDOMO

Que nada! Irei eu pessoalmente contar à menina que Orlando é negro!

Duvido que consiga continuar sonhando ao lado dele. Vai é ter medo!

(O secretário pessoal do patrão escutava tudo atrás da porta da cozinha)

SECRETÁRIO

(Sozinho)

Malditos criados! Então colocaram um parente novo aqui para isso!

Estão acabando com a saúde do patrão com toda esta trama.

Tenho compromisso!
(Câmara Municipal da Cidade do Salvador)

SECRETÁRIO

Senhor, lembra-se que lhe disse que iria fazer um pedido,

Depois de todos esses anos ao senhor dedicado e querido?

Pois bem, tua filha precisa de um marido maduro,

Não muito velho e nem muito jovem, não necessariamente rico e nem nulo.

Eu me candidato a casar com ela, com a tua permissão.

Prometo-lhe protegê-la, como o senhor faria, com paixão.

CARLOS MARIA

Ah, ah, ah! Às vezes você me diverte com teu drama miserável.

Obrigado pela preocupação desnecessária,

Minha filha já tem noivo certo, meu astuto imprestável!

SECRETÁRIO

Isso porque o senhor não sabe o que vem ocorrendo na mansão;


Como Judas Iscariotes, teus criados estão cavando tua cova no chão,

Estão empurrando Orlando para tua filha ser seduzida.

Sou contra; não por ser moreno, pois todo mundo aqui é,

Mas por ser mau caráter e ter origem empobrecida.

CARLOS MARIA

Ah, ah, ah! Tolo empregado! Traga-me uma novidade fresquinha...

Dessa paixão eu já tenho conhecimento até demais.

Lembre-se que a filha não é tua, a filha é minha.

Na questão da pobreza – fico com você – isso não me satisfaz.

Mas quanto ao caráter, fontes seguras eu tenho para ficar deveras em paz.

SECRETÁRIO

Mas, senhor, não vê que os dois são incompatíveis?

Tua filha é cega, de humores passíveis;

Orlando é negro e carente; precisa de alguém maduro e estabilizado.

Só um cego não vê que está tudo trocado!

(Aproximam-se de uma baiana de acarajé na saída da Câmara)

CARLOS MARIA

Quem é você para saber quem precisa de quem?

Sabe o que há de errado em todo mundo e em ninguém?

Pois vou sinceramente te dizer uma coisa excitante e atraente;

Sabe o que em Baco e Ariadne, de Ticiano, atrai em nossa mente?


Sabe por que o romance entre Édipo e Jocasta, de Sófocles, é proibido?

O que atrai em Romeu e Julieta seu mesquinho coração sente?

Ou no amor perdido entre Margarida e Fausto, de Goethe?

SECRETÁRIO

Não! O que é?

CARLOS MARIA

Em Baco e Ariadne é a posição;

Em Édipo e Jocasta, a genética;

Em Romeu e Julieta, a família é a questão;

E em Fausto e Margarida, uma questão de ética!

Todas essas relações têm algo em comum que as resume,

Que as torna atraentes, sem idade, que as mantém no cume;

A incompatibilidade!!!

BAIANA DE ACARAJÉ

Pimenta?

SECRETÁRIO

Um pouco, por favor! Sim, mas onde o senhor quer chegar, senhor,

Com toda esta exposição literária sobre o amor?

Às vezes parece que ficaste louco.

Sabes de cor que nestes assuntos de filhos,


A sensatez deve ser muita e sentimento, pouco.

(Pegam os acarajés e sentam-se num dos bancos da Praça Municipal, abaixo da prefeitura da
cidade)

CARLOS MARIA

O que quero dizer sobre a incompatibilidade e a paixão,

É que qualquer relação amorosa é incompatível;

Bastando que queira a razão.

(O maestro se deixa levar por um livro e um charuto)

SECRETÁRIO

(Para si próprio)

O velho está enlouquecido.

Devo criar uma situação irrefutável,

Para que por mim seja convencido.

(Liceu dos Orixás)

(Panteão dos Orixás em outra dimensão)

OXALÁ

Aberta está a reunião dos deuses.


Eu, como líder espiritual máximo, os convoco.

A pauta de hoje é de ordem superior.

Não se deve descuidar para não esperar o pior.

YEMANJÁ

Tudo nos mares e lagos anda em dias,

A Terra continua com suas misérias, mas tranqüila;

O pescador com seu trabalho, a gaivota com suas crias,

Mas pelo que soube através de Oxossi, o ruim está em outras pradarias.

OXALÁ

Isso! Ele contou-me! Viajante solitário aventureiro,

Sai por outros espaços e outras dimensões estranhas em busca do novo,

Em batalhas e caças, corajoso como ele, consiste em meu maior mensageiro.

XANGÔ

Mas o que ocorre? Só a mim, pelo que estou vendo, não contaram.

OXOSSI

Escalei montanhas do espaço sideral, cavalguei por entre ondas novas,

Lutei com minha espada contra aves de rapina de outros mundos,

Fui à Gólgota recolher a última gota de sangue de Jesus crucificado,

Numa dessas minhas viagens por outros sítios, muitos desses, inundos,

Vi ao longe que na região de Centauros, em mais elevada dimensão,

Seres inocentes e indefesos precisavam de nossa imediata intervenção;


Clamavam por nós de forma comovente, através de mantra e oração.

YEMANJÁ

Portanto ir lá havemos de faze-lo logo, companheiros.

Talvez até tenhamos de convocar o resto do panteão e seus parceiros.

O povo da Terra há de agüentar um pouco.

Já que muitas das nossas ações lá não passaram de um sopro.

OXALÁ

Exu, o maestro não se importaria com nossa ausência por um tempo,

Uma vez que as coisas se equilibraram e já acabaram seus lamentos?

EXU

Eu, como ponte entre vós e os humanos, asseguro-lhes:

Conheço os humanos melhor do que eles a si próprio;

Por isso me confundem com o Diabo e isso não passa de um opróbrio.

Quando eles se encontram em perigo ou em tristeza estão,

Nos procuram de uma forma louca como se fôssemos a única solução.

Mas curiosamente não o vemos com um sorriso solto ou em estado de graça,

Quando estão felizes não existimos, vão à outra praça.


OXALÁ

O que queres dizer então é que, uma vez ajustados seus caminhos,

O maestro, tão querido por nós e por nós protegido,

Não precisará, enquanto estivermos ausentes, de nosso socorro garantido?

OXOSSI

Exatamente! Foi isso que também entendi!

Estamos livres de serviços, por um tempo, aqui.

Irei guiá-los por outras constelações,

Onde outra gente precisa de nossas contemplações.

OXALÁ

É com muito receio que me afasto desses seres da Terra tão amáveis.

Pois são encrenqueiros; sem nossa vigília, incontroláveis.

(Saem de cena)

(Minutos depois, o secretário entra no gabinete do patrão, sem que os Orixás tomassem
conhecimento, e rouba um livro)

SECRETÁRIO

Ele é simplesmente louco por este livro.

Basta que se coloque no lugar certo e se cria uma confusão sem igual.

Faz deste objeto empoeirado um verdadeiro mito.

Será divertido ver o pobre Orlando perder sua frágil moral.


(Sai sem ser visto e coloca o livro debaixo do colchão da cama do Orlando, enquanto este estava
ocupado em afazeres)

Ah, ah, ah! Simples como roubar num magazine.

Meu desejo é que o criado seja despedido e diante de mim se incline!

(Sai do quarto rindo pelos corredores e a prima criada estranha ver o secretário naquelas
imediações àquela hora do dia)

(Em frente ao Mercado Modelo)

O ENGRAXATE

A coisa vai indo preta no nosso ganha – pão.

Nada de melhor para o povo com estes planos de estabilização.

Talvez tenha sido bom para os que já possuíam emprego garantido.

Mas tem sido o terror dos desempregados empobrecidos.

LAMBE-LAMBE

Mas o quadro não está feio somente aqui na cidade,

No sertão, de onde viemos, a guerra civil corre solta pela liberdade.

Os nossos parentes lutam para ter uma terra particular.

São nômades involuntários, sem dinheiro e sem um lar.


O meu tio João Alves é um dos líderes do carente movimento.

Envolvem-se em confrontos, tiroteios e massacres com piedade isentos.

Matam e morrem à míngua sem intervenção do Governo Federal.

Se aqui a coisa está ruim, irmãos, lá no sertão está infernal.

VENDEDOR DE AMENDOIM

Não é lá no sertão que dizem ter uma fazenda do patrão do Orlando?

Se depender do velho, todos lá morrem ao seu mando.

Fico decepcionado, pois nosso amigo não se manifesta com o patrão.

Já que é tão rebelde e inteligente, que coloque essas virtudes em ação.

O ENGRAXATE

Eu falarei com Orlando ainda hoje à noite só.

Irei pôr-lhe na cabeça que o Homem nasce e morre pó.

Talvez você soubesse destes eventos através de cartas de sertanejos.

Mas Orlando não tem acesso a essas notícias, vive à base de vinhos e queijos.

LAMBE-LAMBE

Agora vejam vocês que injustiça social!

Enquanto soteropolitanos se preparam para o carnaval,

Nordestinos, que construíram sua cidade, morrem no canavial.

Enquanto o velho maestro possui uma extensão de fazenda quem nem precisa,

Centenas de famílias, para ter um pedaço apenas, arriscam suas vidas.


Oh, sertão escravizado e tão filmado por Glauber Rocha;

Cantado nos versos de Castro Alves, frente a frente na praça dos trouxas.

Obs.: Praça dos trouxas refere-se a Praça Castro Alves, chamada pelos manipuladores do poder
de “Praça do Povo”, onde a estátua do poeta encontra-se defronte com o extinto cinema que
levava o nome do cineasta (N. A.)

(Outro dia na mansão de Carlos Maria)

ORLANDO

(Excitado ainda pela notícia sobre o sertão

que o amigo lhe comunicou na noite anterior)

Deus Criador, com sua Justiça Infinita,

Não percebes o mal que fazem seus filhos mais perversos?

Se existe realmente o Juízo Final que a tudo finda,

Que venha logo este juízo e salve o peão desta triste sina.

Castigado fica o sertão nordestino em toda esta perseguição.

Veneno nos olhos dos justos, refresco na boca do cão.

Sei que há um mínimo de escrúpulo nos céus ainda;

Daí um pouco, Deus querido, a este povo rico da cidade linda.

BÁRBARA
(Aproximando-se do local onde Orlando se encontra)

O que ocorre neste sítio que sensibiliza minha frágil alma?

É a doce voz do meu amor que escuto? Voz que com ela sinto-me calma?

O timbre do meu escolhido amado?

O que acontece para que fique tão fúnebre e desgraçado?

ORLANDO

Oh, querida dama, não merece ouvir teu gracioso e frágil coração,

O que não poderia ver com tua visão.

É uma grave notícia que envolve teu pai, o meu patrão;

Refere-se a uma guerra civil bem no meio do sertão.

Quisera eu que nada disso ocorresse nesta condição,

Onde já é difícil conduzir o destino de nossa paixão,

Mas os acontecimentos históricos não escolhem tempo certo, nem plano de ação.

E coisas terríveis acontecem ao longe sem que tome conta o patrão.

BÁRBARA

Parece que ouvi alguma coisa a respeito dizer um aristocrata.

Mas a que exatamente se refere esta guerra no meio da mata?

ORLANDO

Famílias inteiras, sem opção, invadem terras vazias.

Capangas do teu pai, sem que ele saiba, protege a fazenda à bala.

No começo o assentamento foi normal, mas as coisas têm suas revelias,

E armas de fogo obrigam os lavradores a fazerem a mala.


Se queres para mim realizar um desejo,

Fala com teu pai sobre este ensejo.

BÁRBARA

O aristocrata não falou de guerra, somente de ameaça,

Mas sou a favor do meu amado e do povo que o poder mania tem de caça.

Dependendo de sua amada pode ficar sossegado.

Falarei logo com meu pai, está tudo arranjado.

Pedirei não só que ordene aos capangas para que parem de matar,

Mas também que doe suas terras para aquelas famílias famintas a plantar.

Sei que meu pai possui em seu coração uma sombra de bondade.

Eu, em último caso, abdico de parte da minha herança;

Prefiro ver a justiça ser feita a necessitados do que a minha bonança.

ORLANDO

Como és nobre, amada minha de sempre.

Ainda cresce mais a beleza que tenho de ti em minha mente.

(Por toda a mansão ouvem-se gritos terríveis)

CARLOS MARIA

(Em seu gabinete)

Ai, Deus meu! Todos os Orixás me acudam! Onde está meu livro?

Convoco todos os deuses...digam onde está que eu sigo!

Como pode alguém me roubar tão sagrada peça?


Onde está o ladrão, que os deuses o impeça!

BÁRBARA

(Entrando desesperada para acudir ao pai)

Misericórdia, pai! Que miséria o aflige?

CARLOS MARIA

O meu livro de cabeceira

Roubaram sem piedade;

Para mim uma verdadeira rasteira.

Para quê tamanha maldade?

MORDOMO

(Entrando também desesperado)

Só pode ter sido algum dos criados.

Por algum motivo querem o senhor irritado.

BÁRBARA

Mas, pai, que pecado mortal.

Não se sente imoral?

Enquanto famílias inteiras morrem em suas terras do sertão,

Tu fazes escândalos por um simples Alcorão!


SECRETÁRIO

(Uma vez, já introduzido no recinto, atraído pelos gritos)

Ora, ora...como ousas chamar teu pai de imoral, patroa?

Além do mais aquele livro era um exemplar de 300 anos de publicação,

Capa em pele de onça, na língua original e conservação muito boa;

Livro de muito mais valor que este tal de sertão.

BÁRBARA

Oh, pai, não acredito que preferirá dar ouvidos a este hipócrita,

Do que ouvir a tua filha, que livre está – bem sabes – de falsas retóricas.

CARLOS MARIA

Lamento, filha, mas viciei-me a ouvir este ilustre empregado, uma peste!

Foi o único a estar comigo desde a fundação desta residência.

Não com desrespeito à sua pessoa, mas não ouvi-lo seria demência.

Além do mais, não entendo a que se refere ao sertão do Nordeste.

SECRETÁRIO

Obrigado pela firme confiança em seu mais firme companheiro nesta mansão;

Apesar do amor de tua filha, bem sabes que é juvenil em seu juízo e razão.

Eu sugiro que procuremos abaixo de cada teto, acima de cada chão.

Encontraremos assim com algum criado, tenho certeza, o alcorão.

CARLOS MARIA
Ótima sugestão! Comecemos sem demora pelos quartos dos criados.

Talvez o mordomo e tu estejais, enfim, acertados.

MORDOMO

(Fala, irônico, com um sorriso leve nos lábios)

Verão que, contrariando a idéia de que o culpado é sempre o mordomo,

Estarei, ao verificarem meus aposentos, isento de tal rombo.

SECRETÁRIO

Meus aposentos, senhor, estarão eternamente abertos para tua justa vistoria,

Apesar de eu estar certo de que da minha reputação jamais desconfiaria.

(Saem à procura do livro)

MORDOMO

(Depois de duas horas de busca, encontra-se no quarto de Orlando)

Eureca! Vejam o livro! Sorrateiramente escondido deste lado!

Bem fez tu, senhor secretário, em pedir-me para olhar debaixo da cama.

É onde normalmente se esconde um roubo improvisado.

Que vergonha para mim, para meu clã, imerso em lama.

(Carlos Maria, irritado e confuso, apanha o livro

e retira-se para o seu gabinete sem falar nada a respeito)

MORDOMO
Estava Orlando a implicar com a profissão de bem servir.

Em relação à filha do patrão, metia-se em seu caminho a toda hora.

Estarei pronto para expulsá-lo daqui, é só pedir.

E também puni-lo, basta que escolhas a punição agora!

CARLOS MARIA

(Sozinho em seu gabinete)

Oh, estranhos deuses, por que não me avisaste deste roubo, deste desastre?

Apareçam, Orixás, e respondam: Quem é o ladrão, um criado ou um ilustre?

Sei que outras aventuras os impedem de me servir,

Mas não me abandonem agora! Não neste momento, não aqui!

Não me deixem – eu clamo – cometer um crime impulsionado por idéias em calor,

Julgando duramente Orlando, da minha filha, objeto de amor.

Faz tempo desconfio deste meu secretário sem cor.

Terá o rapaz roubado o livro? Falem neste instante de decisão e de louvor!

(Os Orixás não aparecem, pois estão em Centaurus, motivo pelo qual Carlos Maria não estava
ciente dos acontecimentos mais recentes)

Sozinho estou! Vazio...só dependo de mim mesmo!

Como é terrível possuir um vício em termos!

Quando há falta daquilo ao qual viciamos,

Sentimo-nos traídos por algo que criamos.

Como a mãe possessiva que se apega muito ao filho parido,

Sente-se a pobre traída, depois do filho partido.


Assim sinto eu, abandonado pelos Orixás miseráveis,

Que só aparecem quando indesejáveis.

Como me sinto impotente pensando sem eles em comunhão.

Talvez nisso esteja sua maior maldição.

Mas, pensando bem, os fatos falam por si.

Espero não estar errado, serei prático ao me decidir.

(Carlos Maria volta à presença de todos os criados)

Tomei já uma decisão que acho ser justa.

Pensam ser fácil para mim, mas muito me custa.

Cheguei à conclusão de não deixar impune tal desobediência de cargo.

Não só expulsarei Orlando da minha casa como o prenderei sem atraso.

A polícia já está avisada!

E a pena devidamente acrescentada!

(Clotilde e Bárbara soltam gritos de dor pela injustiça;

o mordomo e o secretário abaixam a cabeça cinicamente;

os outros criados, inclusive Orlando, ficam atônitos)

(A polícia chega à residência)

SECRETÁRIO

Levem este impostor, policiais, o quanto antes, sem demora!


E guardem este ladrão na mais escura das cavernas, se possível, até agora!

Retirai da vista do patrão esta vil criatura a qualquer custo.

Façam isso! Vocês que são o símbolo máximo do que é justo!

CLOTILDE

Por favor, irmão, usai tua influência para evitar tal disparidade.

Não sei se meu frágil corpo resistirá à tamanha maldade.

MORDOMO

Por que insiste em achar que teu filho é inocente?

O que prova que realmente a descoberta do crime apenas mente?

Faz tempos que avisava da ousadia deste meu sobrinho.

Quem erra deve pagar por seu erro mesquinho.

BÁRBARA

Oh, pai, não seja autor de tão grande atrocidade.

Ficarás, é claro, difamado por toda esta cidade.

Todos gostam de Orlando, ele é inocente e deposito confiança nele.

Mais importante que o livro, é o amor que sinto por ele.

CARLOS MARIA

Não me tente mais com tua visão feminina.

Você não pode alterar, de Orlando, a triste sina.

O que está feito, está feito! Perda de tempo é lamentar.

Levem-no daqui, guardas, agora mesmo, já!


SECRETÁRIO

Muito bem, senhor, em certas horas é preciso ser ardente.

Chega a ser uma questão de honra e não se é ou não inocente.

Devemos ser convictos em nossas decisões sem piedade.

E não acredito que seja importante o que pensa toda a cidade.

ORLANDO

Não quero discutir aqui, senhor, sobre minha inocência.

Francamente não interessa provar ou não alguma decência,

Pois mais importante que isso, está acontecendo no sertão;

Espero que lembre dos que lá morrem por suas terras,

O dia em que se arrepender do que faz agora e pedir perdão.

(Orlando sai algemado e Clotilde corre para o seu quarto)

(Manhã seguinte ao dia da prisão de Orlando)

PRIMA CRIADA

(Entrando no quarto de Clotilde)

Oh, que horror! Que todos os arcanjos entrem de férias nos céus!

Santa Clara do Desterro! A tia querida jaz sozinha em seu quarto,


Em seu santo leito de morte. Oh, tragédia! Um sepulcro largo!

(Todos da mansão vem até o quarto ver à morta)

OUTRA CRIADA

Mas que escândalos são esses, minha jovem? O que viu?

Oh, Clotilde está realmente desfalecida.

Quietinha em sua cama querida.

Oh, que cena mais injusta! Tragédias mil!

BÁRBARA

Vêem vocês? O que causou a sua morte foi a prisão do filho.

Nunca vi cena tão injusta; impossível movimentar sequer um cílio.

Enquanto todos o odiavam, D. Clotilde nutria verdadeira paixão.

Em verdade vos digo, diante de tal tragédia, Orlando é inocente, é amigo, é irmão.

SECRETÁRIO

Calúnia! Não dêem ouvidos a esta cega que nada enxerga!

PRIMA CRIADA

Senhor, não fala assim de tal menina singela,

Trata-a mal assim porque não está na frente do patrão.

Quando, diante de sua imagem, teu coração gela.

SECRETÁRIO
Respeita-me, serva inútil! Deixa de ser altruísta, sua pobre!

Sou o único funcionário aqui com poderes para despedir, pois sou nobre.

O patrão só tem ouvidos para mim, que sou de confiança,

Eu sou seu porto seguro, aqui sou ouro, criado aqui é cobre.

Parecem adultos, mas sem nós, são apenas crianças.

BÁRBARA

E você, mordomo? Não fala nada? Era tua irmã...nada faz?

Afinal é um sangue teu que neste leito jaz.

MORDOMO

Que posso eu fazer?

Tem tempo a Clotilde andava desgostosa com o filho que achava santo.

Na verdade, Orlando a matou muito mais do que nós mesmos, eu garanto.

BÁRBARA

Pensas assim para garantir o teu emprego mendigado.

Pois eu farei de tudo para meu pai estar por mim avisado.

SECRETÁRIO

O mordomo está com a razão!

Não criemos mais polêmica aqui na casa do senhor...

Quem trabalha aqui e precisa de emprego, que o faça por amor,

Acompanhe suas idéias e garantem sua estadia desta maneira.


Vamos, enterremos a velha e limpemos esta sujeira!

CARLOS MARIA

O que aqui se sucede neste humilde aposento?

O que merece tamanha balbúrdia?

Onde estão os empregados desta casa, quando eu preciso deles em meu leito?

BÁRBARA

Pai, precisas ouvir com atenção, para chegarmos a uma convergência.

Uma de suas mais leais criadas faleceu esta manhã e isso revela uma urgência.

De revermos se foi correta a atitude de mandar à prisão,

Aquele que nunca causou mal a casa, somente servidão.

SECRETÁRIO

Senhor, com todo respeito a sua querida filha, não a ouça neste momento;

Seu coração está tomado de paixão fútil, seu raciocínio é só tormento.

CARLOS MARIA

O secretário tem razão, minha filha, não posso dar ouvidos à juventude;

Agarrados ao instante, inflamados de sonhos, um ser fácil que se ilude.

Estou velho e cansado; preciso tomar decisões e não voltar atrás.

Ninguém respeita quem volta atrás em decisões, só respeitam quem é capaz.

SECRETÁRIO

Vamos, vocês ouviram o patrão!


Ajudem-me aqui com este corpo e limpem esta confusão!

(O secretário possuía um sorriso de satisfação; Bárbara corria solitária, sem ter quem a
consolasse, para o seu quarto; a perícia foi chamada e tudo foi resolvido muito rápido sem
deixar vestígios; as duas pessoas que ela mais admirava na casa haviam desaparecido de sua
vida, agora tão vazia)

(Cárcere em Mata Escura)

(Orlando recebe uma carta de Bárbara e lê em voz alta)

ORLANDO

“ Querido meu, espero que estas linhas encontrem contigo em paz.

Porque de minha parte tudo tem andado mal e para trás.

Minha saudade de tua pessoa é penetrante e incomensurável.

Mas há algo pior: sei que lhe dizer isto em tal carta é censurável.

Tua mãe faleceu no dia seguinte à sua partida;

Encontraram-na sem consciência e julgam que o estresse a levou exaurida.

Na verdade quem encontrou o corpo primeiro foi tua prima,

Que era minha amiga e por mim guardava grande admiração,

Mas agora me evita e nem sequer me dá mais atenção.

Percebo uma pressão terrível por parte do secretário particular do meu pai,

Todos os criados, parentes teus, parecem dominados pelo medo do desemprego.

Em uníssono aparentam não ter a real consistência.

Que percebi em você e tua mãe, a própria personificação da inocência.


Sinto-me, em meio a tudo isso, frágil e doente.

Sem um ombro amigo, sem prantos divididos, não há força que me sustente.

Há quem diga que nessas horas só me resta o fenômeno da fé.

Todavia, tenho outra fraqueza, além de deficiente, sou mulher.

E uma mulher que encontrou o seu amor de verdade.

Nem mesmo tuas cartas eu tenho acesso na cidade,

Pois o secretário filtra toda correspondência amiga.

Dizem ter sido você o causador de tanta intriga.

Entretanto, o meu coração não há de se enganar à toa,

Sei que sou mais astuta do que apenas uma menina boa.

Por isso perdi o respeito do meu pai e o que sobrou de sua clemência.

Sabe, meu anjo, entrego toda minha herança por um minuto de tua presença.

Sei que isso é impossível para sempre e, aos poucos, desfaleço.“

(Uma gota de lágrima de Orlando cai sobre a última linha

e a desmancha em parte)
(Quarto de Carlos Maria)

(Carlos Maria encontra-se sozinho orando)

CARLOS MARIA

Oh, deuses meus! Sinto-me como que cometido um crime contundente.

Vejo cristalino o meu erro, mas o orgulho o disfarça através de sua lente.

Enganei-me, sei disso, ao dar ouvidos ao canalha do meu empregado,

Apenas para não ver casada minha filha com um criado.

Escutai-me, por favor, minhas preces, Yalorixá

Tu, que de todos os outros orixás, vive a cuidar.

YALORIXÁ

(Surgindo)

Cuido, sim, dos outros membros de Umbanda para todo sempre.

Mas por que invocaste a mim e não a Exu?

Eu devo ser chamado em último caso, em suicídio da mente.

CARLOS MARIA

Faz dias que não consigo manter contato com os outros.

YALORIXÁ
Tens razão, limitado humano, estão os orixás em outra dimensão.

Mas posso trazê-los, todos quanto precise, com uma só expressão.

CARLOS MARIA

(Acendendo um incenso forte e fazendo gestos)

Oxum, deusa da beleza e do amor...Oraieieu!!! Diga-me sobre minha filha.

OXUM

Feriste cruelmente o coração da tua filha doente.

Pagarás um alto preço pelo teu capricho de não vê-la casada com Orlando.

A sua paixão pelo rapaz a fazia feliz, tua intervenção a faz descontente.

CARLOS MARIA

Iansã, deusa da tempestade e do fogo...Eparei! O que ocorre nesta confusão?

IANSÃ

Ora, em meio a esta tempestade só há uma carta em jogo;

Foste traído pelo teu secretário, pelo qual teve um livro em roubo.

Fizera pensar que o jovem cometera a falta.

Tua dor na consciência vem da injustiça que cometeste alta.

Brincaste com fogo sem saber não se queimar e encontrar sua corriqueira paz.

Destruíste a juventude do Orlando, o amor da tua filha, a vida da mãe do rapaz.

E ainda acolhe com orgulho um tirano em teu princípio e moral.

Tantos anos de experiência não o ensinaram a esquivar-se do mal.

CARLOS MARIA
Xangô, deus da Justiça...Oba nixê caé! Como julgarei tal empregado?

XANGÔ

Simplesmente troque os papéis e os palcos de atuação;

Coloque teu secretário no cárcere e, como pedido de perdão,

Nomeei Orlando teu novo secretário particular.

Não vejo forma de tu seres mais justo e do teu erro consertar.

Faça isso logo, antes que seja tarde!

Tua filha desfalece na desesperança e seu coração arde.

Fazei o que é justo e apresenta à tua filha a nova realidade.

E verá ela ficar boa, saudável, feliz de verdade.

(Carlos Maria sai terrivelmente arrependido do quarto

e providencia a prisão imediata do tirano secretário)

CARLOS MARIA

(Entrando vagarosamente no quarto escuro da filha)

Filha, venho trazer-te boas novas do dia;

Mandei prender o maldito secretário que a atormentava quando sadia,

E em breve mandarei libertar teu Orlando, pois inocente está.

Imagino que nenhum outro desejo gostaria de ver realizar.

BÁRBARA

(Com muita dificuldade em falar)


Fico muito contente pela claridade agora do teu pensamento, pai amado,

Mas presumo que esteja, de novo, enganado.

Um desejo realmente importante que a cada instante me atormenta,

É que esta guerra injusta na tua fazenda tenha uma conclusão certa.

Realiza este sonho, meu e do meu amado Orlando:

Deixa as terras para as famílias de lavradores do sertão,

Não precisas daqueles hectares e não vejo melhor indenização.

Muita gente já morreu...capangas, crianças, lavradores inocentes...

Nisto não há reparos, mas indeniza com tuas terras esta boa gente!

CARLOS MARIA

Agora, descansa, filha!

Providenciarei estes atos nobres,

Pois quero reparar minhas injustiças, afrouxar minha cinta.

Quero merecer o teu perdão e ter minha consciência limpa.

(Sai e deixa a filha dormindo)

Cárcere em Mata Escura

(Orlando percebe, através de robustas grades,

o vulto do patrão se aproximando no corredor)

ORLANDO

O que o traz aqui?


Não está satisfeito com o que fez da minha vida?

O que ainda queres de mim?

Aumentar-me a ferida?

CARLOS MARIA

Não, caro jovem, bem disseste que um dia eu pediria perdão pelo meu erro.

Encontro-me aqui, e de joelhos, imploro-te perdão de corpo inteiro.

Providenciei o isolamento do autor de tal atrocidade.

Fui enganado, é verdade,

Mas confesso, arrependido, que aproveitei a oportunidade.

Quero abençoar o teu casamento com minha querida filha apaixonada,

Bem sei também de tuas intenções para com o povo da região devastada.

Pretendo todos os erros do passado apagar;

Logo, sem demora, nomeio como secretário particular.

ORLANDO

Agradeço de boa fé esta incumbência que me ofereces,

Chego até a pensar que Deus, afinal, ouviu as minhas preces,

Entretanto não devo aceitar, isso é muito claro, esta missão;

Tua casa não é meu futuro, apenas tua filha e o sofrido sertão.

Logo o acompanharei até a fazenda para tratarmos do acordo.

Não ficarei satisfeito enquanto não se resolver; ainda não estou morto!

Quanto ao cargo, sugiro meu tio, o mordomo.


Pobre homem ranzinza, frio, mas leal e sem ambição;

O coitado nunca deve ter sonhado com este cargo ou promoção.

CARLOS MARIA

Vejo que minha filha não errara ao escolher-te como noivo e futuro marido.

No final és nobre até mesmo com quem foi injusto contigo.

Todas essas coisas que venho percebendo me deixam muito contente,

Pois nunca imaginava poder reparar um erro tão inconseqüente.

(Saem juntos, satisfeitos)

(De volta à mansão)

(Todos recepcionam Carlos Maria e Orlando

profundamente entristecidos e tímidos)

CARLOS MARIA

Por que tal tristeza invade teus semblantes?

Agora está tudo acertado numa feliz aurora, não mais como antes.

Nossa chegada deveria ser motivo de carnaval!

Qual motivo de tão melancólica expressão? Que há de mal?

MORDOMO

Senhor, sei o quanto é motivo de festa teu retorno,

Mas uma tragédia assolou nosso lugar como um mal infindo.


Uma morte nunca aparece sozinha num sítio qualquer em torno.

Quando pensávamos que tudo tinha acabado, mais uma miséria tinha vindo.

ORLANDO

Afinal, Tio, do que estás a tratar?

De quem o senhor estás a falar?

MORDOMO

Senhor, sinto muito por ser eu a dar uma notícia tão carregada.

Quisera eu evitar, se pudesse, assistir esta terrível saga.

Todavia, a vida, injusta que é e soberana, deve ser vista de frente,

Pois tua filha faleceu no seu leito, coitada, de tão doente.

ORLANDO

Oh, maior dor, impossível!

Minha amada!

CARLOS MARIA

Não. Será crível?

Eu sou o único culpado deste assassínio.

Pelos meus erros, meu egoísmo, meu terrível raciocínio.

Orlando, enfia-me este punhal no peito!

Eu mereço ser punido por ter sido mais cego que a minha filha.

Que julgue-me corretamente este pleito!


ORLANDO

(Abraçando ternamente o patrão)

Acalma esta tempestade vil, homem de Deus! É preciso acreditar!

Os acontecimentos não podem ser maiores que tua esperança de recomeçar!

(Todos acompanham Carlos Maria e Orlando

para ver o corpo de Bárbara no seu leito de morte)

CARLOS MARIA

Oh, vejam, senhores, o quanto a morte é uma bruxa mesquinha em seu canto;

A minha garota consegue ainda, como uma cheirosa flor do campo,

Manter a sua beleza imortal, invencível, em seu fúnebre manto;

Sua pureza e inocência ainda sobrevivem em seu espírito póstumo.

Deitarei uma última homenagem à doce criatura com um sincero ósculo.

PRIMA CRIADA

Oh, tragédia, tão bela e tão morta! Oh, Deus! Não hei de nunca crer!

Certas criaturas na Terra não mereciam deste jeito morrer!

(Orlando toca, com ternura, o corpo frio de sua noiva sem emitir uma só palavra)

CARLOS MARIA

Darei, com orgulho, dignidade às últimas palavras da minha filha, por mim amada.

Realizarei, com honra, o desejo último de sua vida frustrada.

Tudo que a pobre desejou não foi realizado, mas realizarei o último dos seus;
Trarei seu desejo à realidade como uma forma de ser perdoado por Deus.

ORLANDO

E do que estás tratando, senhor, que tratas com mistério?

Afinal, qual o desejo que Bárbara possuiu para merecer tal critério?

CARLOS MARIA

O mesmo que o teu, jovem justo e bondoso!

Que o povo lavrador tenha sua terra para sobreviver neste país cruel;

Que uma vistoria séria seja encaminhada, a guerrilha, enfim, término;

Que todas as famílias atingidas sejam indenizadas com sementes em tonel.

Uma vez que as autoridades desprezam o seu povo e o Incra é um clérigo.

(Fazenda da Lagoa, próximo a Santo Amaro)

(Os lavradores e capangas se enfrentam mutuamente)

JOÃO ALVES

(Lutando contra um capanga)

Pode Deus estar só, pode o mar invadir o sertão e nos afogar,

Pode Deus não estar apenas só, sem seus arcanjos, mas também estar cego,

Do seu altar sagrado, à nós todos, abandonar.

Não haveremos de nos entregar a um povo fraco e temeroso.

Haveremos de passar por cima, com suor e sangue, deste Estado inescrupuloso.
EMANOEL PEREIRA

(Lutando também em meio aos tiros)

Esqueça dessas coisas sacras e religiosas!

O lavrador tem, é verdade, boa vontade, respeito e admiração,

Mas os homens que mandam nos desanimam de até ter Religião,

Nos faz ver apenas uma forma de tratar a coisa:

Sangue, sangue e sangue...sem razão!

(Neste momento é atingido e morre)

JOSEFA MARIA

(Ajudando algumas mulheres feridas)

Oh, abandonado sertão nordestino!

Irei deixar uma mensagem em sua laje tumular:

Aqui jaz um povo inocente, vítima de um desatino,

Que só fez lutar, à base de seu próprio suor rubro, de seu vinho secular,

Por um espaço digno para plantar, para comer, para viver.

Dizem eles que somos uma gente ignorante, manipulável pelo PT,

Mas digo que somos puros, fortes, ricos em amor e no saber.

JOÃO ALVES

Desgraçado, parente da cidade crua e maldosa.

Oh, cidade distante, para o sertão, uma estranha saudosa.

Ou não recebestes minha carta longa,


Ou não leu o que o jornal, em parte, sonda.

JOSEFA MARIA

Não odeia, João, a teu parente lá de longe;

O correio deste país maldito é falho, o presidente dos telégrafos, um monge,

Os jornais falam de nós como se fôssemos peças de um jogo de dama.

Temos que vencer por nós, pois somos o povo que clama!

JOÃO ALVES

O meu companheiro Emanoel jaz nesta terra sagrada e abandonada.

Nos cartórios este solo tem um dono criminoso, mas aqui é por nós tomada!

JOSEFA MARIA

Não é apenas o corpo de Emanoel que neste solo jaz morto;

A cada corpo de lavrador que cai, morre da esperança um pouco.

Da esperança de um país jovem, mais justo, mais leve, mais solto.

E não este pandemônio de leis que orquestram este concerto louco.

A maldade de Brasília é tanta e variada,

Que chega a nós, por efeito, em verdadeiras manadas.

É preciso que o povo recolonize o Brasil,

Que os mestiços tomassem o poder, com facas, cordas e fuzil.

Ainda assim hei de lutar até que a aurora nos venha banhar,

Ao invés deste sol quente e seco, que só vem nos castigar.

Até o dia, irei lutar, em que a terra faça brotar os frutos naturais,
Para que os nossos filhos, nova geração que representam, possam continuar,

Possam dar uma vitória mais completa a esta luta eterna,

Entre esta sociedade vil que domina as terras

E o povo espremido que cuida delas.

JOÃO ALVES

Pouco importa toda e qualquer coisa que se diga;

Para mim não há, num país, mais pobreza de espírito do que brigar pela barriga.

A fome vem a ser o fenômeno mais vergonhoso da face da Terra, de tão vil.

Termos braços e mente e não termos terra para plantar é a maior decadência

Deste pedaço de mundo mal-tratado chamado Brasil.

(Neste momento Josefa é terrivelmente baleada)

JOSEFA MARIA

Atingida estou, e estaria sempre, ao longo de séculos de história.

Nesta terra sagrada desfaleço,

Mas, com certeza, não perco,

Apenas ganho...e ganho a cada dia contra esta eterna escória.

Coisa suja é o dinheiro criminoso,

Quando para dar luxo à alguns,

Leva à morte tantos inocentes...lacrimoso!

Amo a força de vontade deste povo,

Mas, deste governo, morro agora e sempre, de vergonha, de desprezo e nojo!


(Desfalece sobre a terra seca, com o corpo suado, tendo, em uma das mãos, um punhado de
mato fértil e, tendo na outra, uma enxada manchada de sangue.

Sangue do sertão nordestino)

Epílogo

Gritos anunciam a chegada do proprietário e os capangas param de lutar ao mando de cessar


fogo por parte dos mensageiros

MENSAGEIRO

Podem cessar fogo, companheiros! Não há necessidade mais de luta.

O senhor, dono das terras, vem a favor dos pobres lavradores.

Parar de guerrear e matar parece ser a decisão mais culta.

Lavradores, abaixem a bandeira da fome e da revolta!

Livrem-se do medo, pois o patrão vos dará segura escolta.

Os capangas não serão despedidos, porque aqui vivem apenas na obediência.

Serão freqüentemente orientados, por certo, quanto à nova consciência.

JOÃO ALVES

(Aproximando-se de Carlos Maria e Orlando)

Tens noção, Senhor, do conforto distante de tua residência urbana,

Do que ocorre aqui no interior desta região de lei mundana?

Parentes e chegados meus morrem à míngua pela saúde da família.

O sertão só precisa de um mar para parecer uma ilha.


Autoridades distantes, mídia enganosa e ternura ausente.

A civilização e o governo precisam nos ver sob uma outra lente.

O luxo e ostentação de certos grupos não justificam o massacre.

Sertanejos sem esperanças lutam sem armas, sem estudo, sem um acre.

Lutar por terra é coisa atrasada e nada há nisso de especial.

Queremos viver o nosso século, não em plena era medieval.

CARLOS MARIA

Fala por mim, Orlando, bem sabe das minhas nobres intenções.

ORLANDO

(Falando alto e excitado)

Falarei não só a você, pobre homem lutador, mas a todos vocês, lavradores...

A partir deste momento toda esta área está libertada, sem maiores temores.

JOÃO ALVES

Outras quinhentas famílias estão se encaminhando para esta fazenda

Que possui mais de mil hectares; esta peregrinação, no futuro, será lenda.

O clima aqui é tenso, mas pretendemos nos defender a ferro e arma na mão,

Até que o Incra faça a vistoria da fazenda para a devida desapropriação.

ORLANDO

E qual vem a ser o motivo real desta ocupação?

Creio que isso tudo deva a uma falta do governo federal e da União.

Explique-nos o que pensas tu e teus concidadãos.


JOÃO ALVES

Fico surpreso por querer nos dar ouvidos atentos.

Estamos acostumados a interesses, da parte de vós, um tanto quanto lentos.

CARLOS MARIA

Poupe o fôlego, homem de Deus!

E aproveita a oportunidade que damos aos seus.

Descarrega tua causa! Responde-nos o que perguntaste o meu amigo,

Para que possamos dar uma posição, hoje, contigo!

JOÃO ALVES

Esta ocupação faz parte de um trabalho de conscientização,

D’onde um dos motivos mais políticos, é ao Incra fazer pressão,

A adotar providências que solucionem nossa maior carência.

Isto não é movimento sindical, não, senhor...é pura luta de sobrevivência.

Junto aos desempregados da região do Recôncavo Baiano e de Santo Amaro,

Lutamos pelo que há de mais básico e que não falta ao homem claro:

O direito a poder trabalhar e sustentar sua prole ao mínimo.

As 500.000 famílias sem terra apenas ouvem as balas como resposta dos cínicos.

ORLANDO

Pois bem, ouçam todos!

Para a felicidade deste pedaço de terra no mundo e de uma sociedade mais justa,
Faremos parte de uma doação, pelo nosso erro, que muito não nos custa.

Trataremos da desapropriação da área inteira para entregá-la à cada família,

E que isto aqui se torne uma bela e unida comunidade agrícola, e não uma ilha.

Doaremos equipamentos e dois meses de orientações técnicas gratuitas,

Pagaremos, em dinheiro, uma indenização aos parentes de lavradores mortos.

E que este modelo sirva para a Fazenda do Alto, de Boi Preto e de Coutos

E, quem sabe, de todas as demais fazendas do sertão baiano.

Dr. Carlos Maria usará de total influência para falar até mesmo ao presidente

E talvez um pouco de felicidade seja possível a este país de terceiro mundo.

A vocês, em nome de minha noiva, falecida recentemente,

Desejo amor sincero e profundo.

(Os lavradores, paulatinamente, olham uns aos outros, largam suas armas e, cansados, olham
para o semblante sério daquele jovem corajoso e decidido.

Um sorriso de profunda alegria estampa o rosto exausto de Carlos Maria e Orlando, finalmente,
percebe o quanto ainda há de lutar; encontrou ali a sua verdadeira missão de vida.)

FIM

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