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A IMPORTÂNCIA DA PERÍCIA NA INVESTIGAÇÃO DE ACIDENTES DE

TRÂNSITO

Valdir Florenzo* e Ventura Raphael Martello Filho*

*Dynamics – Bureau de Perícias de Acidente de Trânsito

RESUMO
Este trabalho objetiva fornecer uma exposição geral sobre a imprescindibilidade da perícia na
investigação de acidentes de trânsito. Mostra-se aqui a perícia sob o enfoque de seus
requisitos, metodologia, técnicas, vantagens e seus ferramentais mais avançados.

A importância do trabalho pericial é destacada não só sob o aspecto da sua caracterização


como prova essencial à instrução processual (cível ou criminal), mas também quanto a sua
extrema valia no sentido de que, além de orientar programas de prevenção de acidentes,
possibilita avaliar o desempenho dos veículos e seus componentes frente à realidade dos
acidentes efetivamente ocorridos em contraste com o ambiente de laboratório dos crash tests,
como ainda apontar falhas viárias, com inestimável apoio à melhoria da segurança do trânsito.

INTRODUÇÃO
Malgrado se diga que a legislação penal e a Justiça sejam benevolentes com os infratores de
trânsito, em muitos casos ocorre até mesmo a decretação da prisão preventiva do acusado e o
julgamento é feito pelo júri popular, quando da ocorrência de homicídio na condução de
veículo fica caracterizado o dolo eventual, ou seja, quando o acusado age com tamanha culpa
que, mesmo não tendo pretendido matar alguém, assumiu conscientemente o risco de fazê-lo.
No âmbito civil, pode-se ter desde pequenos valores envolvidos, cuja indenização pode ser
discutida nos Juizados Especiais de Causas Cíveis e Criminais, até quantias valiosas,
decorrentes de indenização por perdas e danos, lucros cessantes, prestação de alimentos e
reparação de dano moral e dano estético. É comum que, passado o sofrimento imediato, as
pessoas percebam o vulto dos problemas decorrentes de um processo, criminal ou civil, ao
verificar que estão desamparadas para enfrentar a situação, muitas vezes à mercê de frágeis e
duvidosas provas testemunhais, só então se dando conta das dificuldades em se estabelecer a
verdade. Nessas circunstâncias, é forçoso convir que a deficiência probatória é desalentadora,
não só por frustrar a aplicação da justiça, mas pela forma vil com que se beneficiam os
culpados, os quais, muito freqüentemente, ceifaram vidas e provocaram tragédias a várias
famílias.
Por outro lado, cada vez mais o mito da infalibilidade da tecnologia automobilística vem
desvanecendo, impondo sucessivos recalls para reparar defeitos diversos, seja de concepção,
seja de falha no processo industrial, que vão desde aspectos “cosméticos” até importantes
itens de segurança.
Entretanto, reclamações de consumidores nem sempre refletem autêntica insatisfação de
quem possui um veículo acometido por defeito ou falha, podendo, não raro, expressar uma
tentativa de elidir a culpa de alguém que irresponsavelmente causou um acidente, mas que
prefere atribuí-lo a uma pretensa falha do veículo para se eximir de responsabilidade. Outras
vezes, pode-se estar diante de um consumidor inescrupuloso, que após se utilizar do veículo
de forma inteiramente satisfatória, imputa-lhe defeitos na tentativa de receber as benesses de
uma indenização indevida ou da imerecida substituição do veículo.

1. Visão genérica sobre as provas


Em última instância, a apuração da responsabilidade decorrente de um acidente de trânsito
é da alçada da Justiça, a qual o faz pela instauração de um procedimento legal
denominado genericamente de processo.
A instrução do processo faz-se pelas provas, que se constituem nos meios empregados
para formar a convicção do julgador, no sentido de que se certifique da veracidade de
determinados fatos e analise um conjunto de circunstâncias, de modo a permitir a
aplicação da legislação cabível.
As provas podem se dividir genericamente em provas orais, produzidas oralmente pela
oitiva das partes envolvidas direta ou indiretamente, tais como os motoristas, as vítimas e
as testemunhas, e provas materiais, as quais, no caso dos acidentes de trânsito, traduzem-
se principalmente pelos vestígios resultantes do acidente, tais como marcas de frenagem,
os danos nos veículos, etc. A análise idônea das provas materiais por um técnico
experimentado com o objetivo de auxiliar o juízo na formação de sua convicção é
denominada prova pericial ou prova técnica.
Quando do acidente resulta lesão corporal ou morte, ou há qualquer infração penal a ser
apurada, a prova pericial é elaborada por Perito Criminal, profissional pertencente à
Polícia Científica. Nas ações cíveis, a perícia é realizada por um Perito Judicial,
nomeado especificamente para cada caso pelo Juiz, podendo as partes também participar
de sua realização através dos respectivos Assistentes Técnicos. Contudo, nada impede
que a perícia criminal influa o processo civil e vice-versa.
A apuração de um acidente de trânsito não é tarefa simples e comezinha como parece à
primeira impressão. Fenômeno de rápida duração que é (em média um acidente consome
cerca de dois a três segundos entre o impacto e a imobilização dos veículos), raramente o
acidente é efetivamente visto pelas testemunhas. Em regra, estas têm sua atenção atraída
pelo som do embate dos veículos ou de uma freada e, quando localizam os veículos
envolvidos, já perderam a percepção do ocorrido, estando já os autos imobilizados, razão
pela qual mesmo a testemunha idônea e de boa-fé não consegue transmitir exatamente o
que ocorreu. Por outro lado, partes interessadas que são, motoristas e vítimas procuram
ocultar detalhes que os prejudiquem, realçando os que os favoreçam, além de, muitas
vezes, falsear a verdade, carregando os depoimentos com a subjetividade de suas
impressões pessoais, as quais, na absoluta maioria das vezes, está longe de se traduzir em
verdade.
Por essas razões, é extremamente indicado que os sinistros de trânsito e as falhas
veiculares sejam elucidados pela prova técnica. Com fundamento em elementos de ordem
técnico-material, aos quais se aplicam métodos científicos criados para essa finalidade
específica, pode-se deduzir criteriosamente cada fase de um acidente, determinando-se
como os veículos se aproximaram, como se deu o embate e de que forma evoluíram
posteriormente, até sua imobilização final, sendo possível sopesar cada causa, seja ela
decorrente de falha do motorista, do pedestre, da via ou do veículo.
Outra grande vantagem sobre os demais meios de prova é que, por resultar da formulação
dedutiva do acidente, a prova pericial pode ser conferida pelo crivo técnico de outro
Perito que possua conhecimentos para tanto.

2. Fases da perícia
Como toda e qualquer perícia, também a de acidente de trânsito é composta de três fases:
2.1. Constatação
Fase do exame propriamente dito, quando se realiza a verificação dos elementos de
ordem técnico-material, formando o que se convencionou denominar visum et
repertum, ou seja, tudo o que foi visto e descoberto pelo examinador, incluindo-se
aí todos os vestígios do acidente, sejam aqueles normalmente remanescentes no
pavimento, sejam os que se produzem nos veículos.
2.2. Avaliação
Etapa em que os elementos arrecadados no exame do local e dos veículos são
sopesados, analisados, ensejando o cotejo de uns com outros, permitindo calcular
grandezas físicas, ensejando cálculos e exames subsidiários.
2.3. Conclusão
Oferecimento de um juízo de valor, que consiste em uma opinião do Perito acerca
do acidente, informando retrospectiva e prospectivamente as condições em que se
deu o acidente, se as circunstâncias existentes eram previsíveis, se o acidente era
evitável, quais os fatores causais, se houve e quais foram os fatores concorrentes,
etc, tudo com o objetivo final de propiciar aos operadores do Direito conhecer
detalhadamente as questões de fato envoltas no acidente, para que se aplique o
direito cabível.
Como se vê, embora não tenha por missão julgar o acidente, tarefa essa que
compete exclusivamente ao Juiz de Direito, a influência da perícia na formação da
convicção do julgador é marcante, porquanto, mais que mostrar como ocorreu o
fato, o Perito tem condições de demonstrá-lo, com a força probante dos elementos
materiais em que se apóia, valendo dizer que, se bem elaborada, a perícia é
praticamente irrefutável.

3. Elementos em que se baseia a perícia de acidentes de trânsito - a importância dos


vestígios
A perícia de acidente de trânsito fundamenta-se basicamente nos vestígios encontradiços
no pavimento, nas posições finais adquiridas pelos veículos e na sede e localização das
avarias decorrentes do acidente.
Todo acidente de trânsito é um fenômeno físico que se caracteriza pelo impacto entre pelo
menos um veículo contra um obstáculo, que pode ser um objeto qualquer, e.g., um poste,
um animal, uma pessoa ou até mesmo outro veículo.
Contudo, mesmo antes da ocorrência do impacto, os veículos já
podem estar produzindo vestígios na pavimentação, como
marcas de frenagem e de derrapagem, marcas de atritamento
metálico, sulcagens, etc, e recebendo outras marcas, como o
enegrecimento da banda de rodagem produzido por uma
frenagem mais vigorosa.
No momento da colisão, algumas marcas são produzidas no
pavimento (como derivações bruscas de vestígios de frenagem,
deposição de fragmentos de vidro,
lascas de tinta, etc) e outras, nos
veículos (como o amassamento de
algumas partes, marcas de atritamento, marcas de
esfregadura de materiais diversos, como tintas, plásticos,
borrachas, etc, deposição de manchas de sangue, fios de
cabelo, etc). Em correspondência, os corpos de pedestres,
motoristas e passageiros, quando colidem com partes externas ou internas dos veículos,
produzem certos vestígios (como marcas no cinto de segurança) e
experimentam outros, caracterizados principalmente pelos ferimentos
recebidos.
Após o impacto, ainda podem ser produzidos certos vestígios na
pavimentação e, por derradeiro, os veículos se imobilizam,
concluindo-se a coletânea de elementos de constatação que servem de
supedâneo à análise do Perito.

4. Levantamento de local
No jargão pericial, a documentação técnica do exame de um local é denominada
levantamento de local. Nesse processo, anotam-se dados genéricos e informações
preliminares acerca do acidente, identificação e características das vias, existência e
localização exata dos vestígios, identificação e danos ocorridos nos veículos, bem como
identificação e lesões aparentes em cadáveres eventualmente existentes. Elabora-se um
croqui à mão, onde são feitas as anotações, tomam-se medidas e efetua-se a fotografação
de tudo o que possa interessar ao estudo.
Quer seja um levantamento completo de local de acidente de trânsito, quer se resuma ao
exame de um veículo envolvido em um atropelamento, a possibilidade de se desenvolver
um bom trabalho pericial depende fundamentalmente da qualidade da documentação do
exame. Contudo, ressalte-se que qualidade não significa excessiva compilação de dados e
fotos inúteis, mas sim a reunião de elementos objetivos que sirvam como efetiva e
inconteste prova material acerca de como ocorreu o acidente.

5. Alguns exemplos de técnicas próprias para a solução de problemas freqüentes


Ao longo dos anos, consagraram-se nos meios periciais alguns métodos para a solução de
alguns problemas mais freqüentes, dos quais depende a elucidação de muitos casos.
5.1. A luz traseira estava acesa?
Por vezes, essa é uma questão que pode ser determinante quanto ao estudo da
causalidade de um acidente.
Quando o bulbo de uma lâmpada incandescente acesa se
fratura pelo impacto, ocorre rápida oxidação das partes
internas remanescentes. Contudo, mesmo quando não se dá a
fratura do bulbo, o exame do
filamento da lâmpada pode trazer
inestimável auxílio, já que, com
impactos mais vigorosos, há sensível deformação do
filamento quente da lâmpada acesa, o mesmo não
ocorrendo quando o filamento está frio e, portanto, a lâmpada está apagada.
5.2. É possível determinar a velocidade do veículo atropelante?
Dependendo do tipo do veículo
envolvido no atropelamento, da estatura
do pedestre e do tipo da trajetória
experimentada pela vítima, é possível
efetuarem-se cálculos com base em
diversos parâmetros, podendo-se
calcular a velocidade do veículo com
boa margem de aproximação.
5.3. Pode-se calcular a velocidade de um veículo tomando-se por base a extensão dos
vestígios de frenagem?
Desde que se empregue método adequado (como, por
exemplo, usando-se um acelerômetro) para a determinação
do fator de arrasto do veículo no local específico do acidente,
pode-se perfeitamente calcular a velocidade mínima
necessária para se produzirem vestígios de frenagem com
determinada extensão, sendo dos métodos mais utilizados.

6. O estado-da-arte
Embora a perícia de acidente de trânsito ainda se baseie fundamentalmente nos vestígios
remanescentes na pavimentação, na sede, orientação, desenvolvimento e intensidade dos
danos em cada qual dos veículos, nas posições finais destes, etc, há hoje recursos que
possibilitam o aprofundamento do exame, podendo-se simular em computador a colisão
entre dois automóveis, respondendo-se a indagações há muito ansiadas, além de melhorar
a análise da dinâmica do acidente e permitir o aprimoramento da forma de apresentação
dos resultados, seja por impressos, seja por imagens de vídeo em movimento.
Todos os cálculos necessários são rapidamente obtidos, com margens de erro
insignificantes, mediante a utilização de softwares específicos. Graças a isso, pode-se, em
muitos casos, levando-se em conta o peso do veículo, a distância entre-eixos, a região
atingida e o ângulo da principal direção da força de impacto, calcular a velocidade de um
automóvel pela largura e pelas ordenadas da deformação resultante do impacto sofrido no
acidente, determinando-se de forma muito mais acurada as verdadeiras causas de um
acidente.
Com a criação do National Highway Traffic Safety Administration, como uma divisão do
Departamento de Transportes dos EUA, em 1966, de pronto foi firmado convênio com o
Cornell Aeronautical Laboratory para o desenvolvimento de um algoritmo adequado,
com a finalidade de analisar a dinâmica de acidentes de trânsito. Com o advento dos
personal computers, aqueles programas foram aprimorados, chegando-se à criação de um
modelo de simulação de colisão de veículos, que é um programa analítico-interativo,
baseado nas três leis de Newton para a Dinâmica, tendo como parâmetros dados obtidos
de infindáveis levantamentos sobre deformação de estrutura veicular catalogados pelo
NHTSA.
Muito embora se tenham notícias de utilização da computação na produção de provas
processuais até mesmo aqui no Brasil, note-se que, em geral, nos casos em que o emprego
do computador objetiva mostrar o desenrolar do fato, frise-se que tem apenas sido mais
uma mídia de apresentação de cena de crime, substituindo as fotos, filmes e desenhos
tradicionais pela computação gráfica animada, conjugando-se a aplicação de softwares de
uso genérico, tais como AutoCAD, 3D Studio e Animator. Contudo, a versão apresentada
não passa de obra de criação artística, podendo-se dar ao evento a evolução que se quiser.
Diferentemente, os simuladores de colisão de
automóveis são alimentados com dados específicos,
envolvendo, entre outros, massa e distância entre-
eixos dos veículos; coeficientes de deformação pré-
estudados, variáveis de acordo com a região
atingida e o tipo de veículo; posições de embate e
velocidades presumidas; coeficiente de atrito do
pavimento; manobras corretivas ou evasivas de
esterçamento provocadas pelos condutores;
frenagens ou acelerações; valores incrementais de tempo desejados; etc. Após complexa
sessão de input, o simulador "digere" todos os dados, mediante complexos cálculos,
fornecendo ao final não só a dinâmica completa do acidente, mostrando toda a evolução
dos veículos até a imobilização, como também a sede e a intensidade dos danos
resultantes, além de volumosos relatórios de cálculo, detalhando todos os parâmetros
utilizados e os resultados a cada fração de tempo. Pode-se ainda traçar qualquer gráfico
que se queira instantaneamente. O mais empolgante é que esses simuladores permitem
não só a impressão dos resultados, mostrando o acidente na fração de tempo que se quiser
e os danos nos veículos, como também a visualização do acidente em movimento pelo
monitor do computador, o que, hoje, significa a possibilidade de um notebook "levar o
acidente" à sala de audiência, reduzindo sensivelmente a possibilidade de erro quanto ao
perfeito entendimento de como ocorreu de fato determinado acidente de trânsito.

CONCLUSÕES
Da acurácia da determinação das causas de um acidente de trânsito depende não só a
aplicação perfeita da justiça, como também qualquer tipo de programa sério de prevenção, em
razão do que é preciso banir de vez métodos investigatórios empíricos, valorando-se sistemas
de análise com fundamentação científica e com supedâneo em seguros elementos de prova de
ordem técnico-material.
Por outro lado, é importante reconhecer que a perícia de acidentes de trânsito caracteriza-se
hoje como uma ciência com vida própria, com marcante avanço tecnológico, podendo auxiliar
no desenvolvimento de veículos e sistemas viários mais seguros.

BIBLIOGRAFIA
RUHL, Roland A. and OWEN, Dwayne G. – Vehicle Accident Investigation, Champaign,
Illinois, EUA, 1994;
BOHAN, Thomas L. and DAMASK, Arthur C. – Forensic Accident Investigation: Motor
Vehicles, Michie Butterworth, Charlottesville, Virginia, EUA, 1995;
FRICKE, Lynn B. – Traffic Accident Reconstruction, Northwestern University Traffic
Institute, Evanston, Illinois, EUA, 1990;
ARAGÃO, Ranvier Feitosa – Acidentes de Trânsito – Aspectos técnicos e jurídicos, Ed.
Sagra Luzzato, Porto Alegre, RS, Brasil, 1.ª ed., 1999.

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