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AUTONOMIA DO TRABALHO PERICIAL

O exame sereno da doutrina faz vicejar, sem

qualquer esforço, que, malgrado o lesgislador nao tenha pre-

visto uma hierarquização das provas, é irrefutável que a perí_

cia, mesmo situada como prova nominada idêntica às demais,guar

da características especialíssimas, que a realçam, havendo mes

mo quem afirme ser mais que prova.

Em palestra proferida na I Semana de Estudos

Policiais, levada a efeito em abril de 1975, publicada no vol.

XXVI da revista "Arquivos da Polícia Civil", de São Paulo, o

festejado jurista HÉLIO TORNAGHI, explicando mudanças que se

pretendiam em anteprojeto para alteração do código de Proces-

so Penal, assim afirmava:

"A perícia participa da natureza da prova, mas

acrescenta a isso uma decisão provisória, um julgamento provò^

sório, no qual o juiz pode louvar-se ou não; o juiz é livre de

aceitar ou repelir as conclusões do perito. Mas essas conclu-

sões são um juízo de valor. Ele pode rejeitar a pericia, pode

mandar fazer outra; mas, por fim, ele não se sente com os ne-

cessários conhecimentos cientificos para discordar da pericia.

Então o laudo pericial é realmente o laudo, quer dizer, é a-

quilo em que o juiz vai se louvar. Por isso os codigos moder-

nos colocam a perícia depois do capítulo da prova e antes do

capítulo da sentença, a meio caminho, porque ela participa da

natureza das duas".

Destarte, o que decorre é que o perito, eviden

temente, não é mero sujeito de prova. Aliás, se o fosse, não

se entenderia porque estar submetido às mesmas causas de sus-

peição que os juízes (arts. 105 e 280 CPP) e por que razão o

código Penal Brasileiro, no art. 347, pune a inovação artifi-

ciosa da situação de local, coisa ou pessoa, com o fim de in-

duzir a erro juiz ou perito, equiparando-os na proteção con-


tra a fraude processual.

É preciso acabar com a visão vesga que o brocar

do."VISUM ET REPERTUM" incutiu nos meios jurídicos. Ele não dá

a exata visão da significância gnosiológica e ontológica do

trabalho pericial. 0 perito não é chamado para descrever lo-

cais, objetos, coisas ou pessoas. 0 que todos clamam do peri-

to é que, através de sua cultura específica, de seus métodos

científicos, não raro exclusivos, e de seu adestramento dire-

cionado para tal fim, constate os vestigios que lhe provenham,

avalie-os e deles tire conclusão, fazendo declaração do que

pensa acerca de um fato.

Não obstante as colocações expendidas, o fato

de a perícia ser requisitada de regra na fase inquisitorial l£

va alguns a concluir, com berrante erronia, que o trabalho pe^

ricial"e instrumento ou ato de inquérito, ao qual se submete.

Entretanto, tal não se da.

0 renomado processualista JOSÉ FREDERICO MARQUES,

in "Elementos de Direito Processual", vol. I, assevera:

"A perícia, no processo penal, apresenta a pe-

culiaridade de ser uma função estatal destinada a fornecer da-

dos instrutórios de ordem técnica e a proceder a verificação

e formaçao do corpo de delito.

0 exame pericial realizado na fase preparatória

do inquérito policial não constitui, por isso, simples peça de

investigação, embora sirva para integrar a "informatio delicti".

A perícia, realizada em qualquer fase do procedimento penal, é

sempre ato instrutório emanado de órgão auxiliar da Justiça pa-

ra a descoberta da verdade. Seu valor é o mesmo, quer se trate

de perícia realizada em juízo, quer se cuide de exame pericial

efetuado durante ã fase preparatória do inquérito. A sua força

probante deriva da capacidade técnica de quem elabora o laudo

e do próprio conteúdo deste", (grifo nosso)

Exata, a nosso ver, a colocação de FREDERICO MAR

QUÊS, porquanto o perito está investido de mandato legal, incum

bido de exercer função cometida ao Estado na formação do corpo

de delito.
Evidentemente, o perito é órgão inerte, qual
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seja, precisa ser acionado pela autoridade, ex officio" ou a

requerimento das partes. Por força do art. 158 do Código de

Processo Penal, nota-se que, se da infração resulta vestígio,

i. e., se é caso de "delictum facti permanentis", a perícia é

compulsória e o art. 184 daquele mesmo diploma diz que a auto

ridade não pode recusar o exame de corpo de delito, quando re

querido pelas partes, ficando claro, no art. 564, III; b, tam

bém do CPP, que a falta do exame do corpo de delito, quando

for caso, acarreta a nulidade do processo.

Considere-se ainda que o legislador, no art.

169 CPP, cobra da autoridade policial celeridade no sentido de

providenciar a inalteração do estado das coisas até a chegada

dos peritos e, como já dito, o CPB pune a inovação artificio-

sa de local, coisa ou pessoa destinada a induzir a erro o pe-

rito, tudo estando a demonstrar que há inegável preocupação em

se preservar o corpo de delito de qualquer interferência ant£

riormente ao exame pericial, conservando o objeto de exame o

mais possível, garantindo a exata aferiçao do perito.

Há,verdadeiramente, toda uma série de disposi-

tivos normativos que estão a mostrar a autonomia garantida ao

trabalho pericial.

0 art. 161 do CPP diz expressamente: "0 exame

do corpo de delito poderá ser feito em qualquer dia e a qual-

quer hora", (grifo nosso). Como se vê, o verbo retor é "poder"

e não "dever", valendo ..dizer que, se por um lado, como preco-

nizava LOCARD, "o tempo que passa é a verdade que foge", por

outro, cabe ao perito consultar sua consciência e estabelecer


/ /
qual o momento oportuno e se possivel realizar a pericia, al-
mejando atender o desígnio de sua missão. Não há aqui confun-
dir tal procedimento com o deliberado propósito de garantir a
escusa em atender o que lhe foi solicitado. 0 que se pretende
dizer é que o perito, seguro*das condições necessárias para o
bom desempenho de sua função, saiba avaliar se o momento é o-
portuno e o exame factivei.
Ora, por tudo o que estamos a mostrar, óbvio e
que o trabalho do perito a todos interessa e, como vimos, sua

opinião influi na decisão da lide, motivo pelo qual, sob cer-

to aspecto, está seu trabalho submetido à apreciação dos suje_i

tos do processo. Mas a interferência seria germe de tumulto se

a qualquer deles fosse dado influir na orientação do trabalho

pericial, na escolha dos métodos e dos processos técnicos, ou

até na maneira de raciocinar dos peritos. Para evitar tal in-

terferência, a lei disciplinou, nesse aspecto, o relacionamen

to dos sujeitos processuais com o perito, permitindo que a au

toridade (policial ou judicial) e as partes proponham quesitos,

façam indagações a que os peritos devem responder e, mais im-

portante, determinou o momento de fazê-los. É o que se infere

do art. 176 do CPP: "A autoridade e as partes poderão formular

quesitos até o ato da diligência" (in verbis), entendido como

tal o início do exame. Não se pode, pois, estar a "fazer som-

bra" ao perito durante o procedimento do exame, indicando-lhe

o "modus faciendi" ou o assediando com indagações. Observe-se

que, mesmo tendo sido previamente formulados, ou caso haja que

sitos de praxe, serão eles respondidos sempre através do laudo

pericial, corporificação que é do trabalho pericial.

Entretanto, há que se relevar que se os quesi-

tos tolhem a intereferência no trabalho pericial, nao são de

molde a limitar a ação do perito. Nesse sentido, aludimos à o-

bra do laureado tratadista EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, in "Código

de Processo Penal Brasileiro Anotado", onde afirma que "tudo

o que represente averiguações estendidas além dos limites fi-

xados pelos quesitos, nada obsta, antes é muito recomendável,

acrescentem os técnicos aos seus laudos periciais a menção de

quanto, no seu entender, seja util ao completo conhecimento da

verdade e perfeito esclarecimento da justiça".

Quanto á avaliação, indispensável qualquer apro

fundamento, porquanto, desde o início mostramos, é a-pedra de

toque do trabalho pericial, sendo o seu limite o do conhecimen-

to técnico e da capacidade pessoal do perito. Por isso, aliás,

é órgão auxiliar da justiça e não "corpus sine pectore".

EDUARDO ESPINOLA FILHO (op. cit.), invocando

seu colega francês, GARRAUD, socorrendo-se ainda da inteligen-


cia do MIN. BENTO DE FARIA, este patrício, assevera:

"Ha, explica o professor francês, as operações

de verificação dos fatos e circunstâncias materiais, cuja di-

reção pertence exclusivamente ao técnico, mais apto que nin-

guém, à vista do problema, a resolver, para decidir o que lhe

cumpre fazer, o que não merece consideração. "Se o perito não

pode entregar-se a verdadeiras enquetes, no sentido legal da

palavra, pode, entretanto, sem sair do seu papel e do seu man-

dato, recolher, de qualquer pessoa, todas as indicações pró-

prias a esclarecê-lo, sobre os pontos que lhe são submetidos.

0 único limite, que lhe imposto, resulta dos próprios termos

da sua missão". Proclama o Ministro Bento de Faria que a "fun

ção do perito não é nem de acusador, nem de defensor, mas li-

mita-se a constatar o fato, indicando a causa que o motivou.

Mas nem por isso está impedido de proceder às indagações que •

julgar necessárias, devendo consignar, com imparcialidade, to

das as circunstâncias, ainda quando favorável ao acusado".

Prosseguindo, ESPINOLA FILHO arremata:

"A segunda série de operações de que trata o

esquema de GARRAUD transforma o perito de testemunha em juiz.

Neste ponto, adverte o autor, o trabalho do técnico é absolu-

tamente pessoal, senhor absoluto, como é ele sempre, das suas

convicções, sem que se possa permitir qualquer intervenção,se-

ja mesmo do juiz, no sentido de nortear as suas conclusões,

nesta ou naquela direção", (grifo nosso)

0 eminente professor CAMARGO ARANHA, in "Da pro

va no Processo Penal", comunga também desse ponto de vista, ad

vertindo que "para a efetivação da pericia os expertos podem

utilizar todos os meios admissíveis, podendo socorrer-se de la-

boratórios, informes, etc., devendo mencioná-los, quando usa-

dos .

Para ultimarmos a análise da questão, resta sa

ber se há ofensa à aqui decantada autonomia do trabalho peri-

cial, à vista do art. 182 do CPP, que diz: "0 juiz não ficará

adstrito ao laudo, podendo aceita-lo ou rejeitá-lo, no todo ou

em parte".
Para tanto, auxi li cirno-nos mais uma vez de Ca-

margo Aranha (op. cit.), ele próprio brilhante representante

da magistratura e q.ue assim se manifesta a respeito:

"Como induvidosamente demonstrado e sabido por

todos nós, a perícia somente se justifica e é admissível quan

do a conclusão sobre determinado fato sujeito ou influenciador

do julgamento exigir a manifestação opinativa de pessoa porta

dora de conhecimentos técnicos altamente especializados. Ora,

se ao juiz, sob a ótica da lógica, da coerência, fosse possí-

vel contrapor sua opinião à do louvado, contrariando-a, emitin

do um juízo de valor em oposição ao apresentado pelo perito,

estaria desmentindo a própria natureza da perícia.

Dai porque a nossa afirmativa de que, embora o

julgador não esteja vinculado à perícia, somente pode rejeita

- l a nos casos provados "de erro ou dolo".

0 que se conclui de nossa incursão na matéria

é que, independentemente de qualquer fator, seja de ordem ad-

ministrativa, política, funcional ou institucional, o perito

criminal é E F E T I V A M E N T E A U T Ô N O M O , amparan

do-o todas as fontes processuais, não se podendo admitir qua_l

quer mostra de tibieza e pusilanimidade no desenvolvimento de

sua missão primordial, como ÓRGÃO TÉCNICO AUXILIAR DO JUÍZO.

Deve o perito conhecer os contornos de sua mij=

são, saber de sua importância, fazendo valer sua autonomia.

Entender a autonomia do trabalho pericial é en

tender a natureza de sua função. Intervir nela é, de forma

coacta, deturpar a imparcialidade que se lhe exige, descarac-

terizando-a e, mais grave, atentar contra função estatal da

qual é órgão e para o que esta investido de mandato legal.


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Trabalho apresentado pelo Perito Criminal e Pro

fessor da Academia de Policia Civil de São Paulo Ventura Raphael

Martello Filho," "em 22/10/87, quando da realização d$ IX CONGRES

SO NACIONAL DE CRIMINALÍSTICA.

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