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Retomada de um legado intelectual

Marialice Foracchi e a sociologia da juventude


Maria Helena Oliva Augusto

Menos do que uma etapa cronológica da vida, menos do que uma potencialidade *A data entre colchetes
rebelde e inconformada, a juventude sintetiza uma forma possível de pronunciar-se refere-se à edição origi-
diante do processo histórico e de constituí-lo. nal da obra. Ela é indicada
FORACCHI, 1965, p. 303 na primeira vez que a
obra é citada. Nas demais,
Nenhuma geração pode privar a juventude da possibilidade e do direito de levar a cabo suas indica-se somente a edi-
próprias experiências. Por outro lado, nenhuma geração pôde fazer isso até agora. ção utilizada pelo autor
HELLER, 1981 [1980]*, p. 203 (N.E.).
1. Marialice Foracchi
Como o título deste artigo menciona, sua intenção é recuperar um legado, (1929-1972) foi docente
e pesquisadora da anti-
isto é, tornar presente a preciosa contribuição para o estudo da juventude
ga cadeira de Sociologia
corporificada na obra de Marialice Foracchi1. Abrange, num mesmo movi- I da Faculdade de Filo-
mento, a aspiração de apresentá-la e ao seu trabalho àqueles que não a co- sofia, Ciências e Letras
nheceram e a expectativa de reativar a memória, dos que foram seus con- – USP, dirigida por Flo-
temporâneos, acerca do tratamento pioneiro – e ainda relevante – que deu restan Fernandes, e do
ao tema2. Questões que despertaram o seu interesse e às quais se dedicou – Departamento de Ciên-
cias Sociais da Faculda-
como a situação, o papel e a polissemia da noção de juventude3, o conceito
de de Filosofia, Letras e
de geração e a coexistência de gerações, os processos de transição para a vida Ciências Humanas, que
adulta, o estudante como categoria social e o significado dos movimentos a sucedeu em virtude da
juvenis no mundo contemporâneo, entre outros correlatos – receberam, reforma por que passou
por parte dessa estudiosa, um tratamento deveras apurado, que ainda pode a universidade em 1969.
servir de estímulo e diretriz para os(as) analistas contemporâneos(as).
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2. Ao mesmo tempo, De fato, a obra de Marialice deve ser vista como “clássica”: na medida
deseja realçar a impor- em que seus estudos permanecem centrais para a discussão atual desses
tante percepção de que
temas e ainda hoje é possível aprender com seus textos, a autora e sua obra
a retomada da reflexão
sobre o tema, neste nú- merecem um lugar privilegiado em relação a outros trabalhos e a outros
mero, além da homena- estudiosos contemporâneos da juventude e dos temas que lhe são vincula-
gem que lhe é prestada, dos. Sua reflexão permanece viva e traz contribuições para o campo de
representa também a conhecimento de que tratou, mesmo tendo passado quarenta anos da pu-
reapropriação, formal-
blicação do livro que a tornou mais conhecida4.
mente expressa, de uma
herança preciosa pelo
Algumas observações são, contudo, necessárias. O relativo esquecimen-
atual Departamento de to que tem atingido os seus trabalhos deve ser creditado, até certo ponto, ao
Sociologia, ao qual per- refluxo sofrido pelo tema que foi objeto de sua tese de doutorado – a condi-
tenceria não fosse sua ção de estudante e sua atuação política –, especialmente após os anos de
morte prematura. 1980. A partir de então, os processos de mudança que se manifestaram com
3. Para Marialice, “não mais força, no Brasil, fizeram emergir e deram mais realce a outros objetos
sendo passível de delimi- de reflexão, a outros movimentos sociais, com protagonistas até então me-
tação etária, a juventu-
nos destacados (cf. Sader, 1988), minimizando a relevância dos movimen-
de representa, histórica
e socialmente, uma ca- tos estudantis e da sua possível contribuição para a transformação social.
tegoria social gerada pe- Todavia, é necessário enfatizar que os achados e as reflexões da autora
las tensões inerentes à não se circunscreveram à discussão dessa categoria social; tampouco fica-
crise do sistema. Socio- ram limitados à análise de suas possibilidades, como fonte de contestação
logicamente, ela repre-
da ordem social. Na medida em que se mantinha vinculada ao seu tempo
senta um modo de rea-
lização da pessoa, um
e às questões propostas por ele, Marialice pôde reconhecer e incorporar à
projeto de criação insti- sua reflexão a emergência de indagações ainda hoje centrais para o debate
tucional, uma alternati- sobre a condição juvenil e sobre a sociedade moderna. Desse modo, ainda
va nova de existência que deva ser reconhecido o declínio do interesse pelo movimento estudan-
social” (1972, p. 160). til, é necessário manter viva a consciência de sua importância, apreciar
No contexto desta dis-
com respeito os assuntos que lhe são ligados e relembrar que, nas pesquisas
cussão, também deve ser
considerada a imprecisão sobre essa matéria, a autora abordou um amplo conjunto de outros tópi-
do conceito, o que acar- cos e trouxe para o debate vários temas correlatos, sobre os quais sua visão
retou a declaração de sua permanece pertinente e pode ser utilizada ainda hoje. São esses achados o
inexistência – “ ‘a juven- objeto preferencial e mais específico deste balanço.
tude’ não existe” – por
A reflexão que se segue pretende, assim, recuperar alguns dos principais
um estudioso (cf. Lagrée,
s/d) que se apóia em ar-
destaques propostos pela autora em seus trabalhos, relembrando pontos
tigo de Bourdieu (1980). centrais tratados em seus textos5 e, o que se espera de modo especial, mos-
Assim, quando não es- trando sua importância e enfatizando as contribuições que oferecem para
tiver vinculado aos tex- o exame de questões atuais relativas aos jovens e à juventude, temas que, já
tos de Foracchi, o termo há algum tempo, vêm sendo retomados com alguma ênfase nas preocupa-
será utilizado como re-
ções das ciências sociais6.

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Maria Helena Oliva Augusto

Jovem, estudante, trabalhador ferência ao período de


vida que se estende até
os 30 anos de idade, ape-
Como já mencionado, a construção da categoria social “estudante” e o
nas para distingui-lo do
tratamento dado ao movimento estudantil constituem os temas que, de iní- estágio adulto e da ve-
cio, tornaram Marialice conhecida, especialmente após a publicação, em lhice, que atualmente
1965, do estudo em que focalizava o papel dos estudantes na transformação também possuem con-
brasileira (cf. Foracchi, 1965). Nesse texto, ela ressalta ser “totalizadora, his- tornos imprecisos.
tórica e participante a perspectiva interpretativa que pretend[ia]” pôr em ação. 4. Sobre o significado de
Também destaca que a tarefa da abordagem sociológica é “caracterizar o con- “clássico”, ver a discussão
junto de mecanismos e processos que presidem à constituição do estudante desenvolvida por Alexan-
der (1991 [1987]).
como categoria social”7 e examinar as “condições sociais que balizam o seu
comportamento”, no presente, projetando as “modalidades possíveis de am- 5. Os livros O estudante
e a transformação da so-
pliação do seu horizonte de ação”, no futuro (Foracchi, 1965, pp. 3-8).
ciedade brasileira, publi-
A relação estabelecida entre as duas dimensões temporais que demarca- cado há quarenta anos,
vam a vida de estudante – presente e futuro –, evidenciando as perspectivas e A juventude na socie-
e as alternativas disponíveis para as trajetórias juvenis, já naquele momento dade moderna, objeto de
constituía um ponto a ser realçado. A análise a que se propôs contribui, sem sua tese de livre-docên-
cia, receberão uma lei-
dúvida, para a avaliação desse mesmo elo no momento atual, como se pre-
tura mais detida; serão
tende demonstrar. examinados também al-
As relações interpessoais e as manifestações vinculadas à situação de guns artigos reunidos no
classe, além da referência aos processos de transformação da sociedade in- livro A participação social
clusiva, foram os pontos destacados na análise do estudante como catego- dos excluídos, publicado
ria social (cf. Foracchi, 1965, “Introdução”). De certo modo, articulando postumamente (cf. Fo-
racchi, 1965; 1972;
esses três níveis que permitiam equacionar de forma abrangente o processo
1982).
de construção dessa categoria, a autora pôs em relevo a dinâmica educacio-
6. Como evidências des-
nal, na medida em que a educação é vista, com freqüência, como capaz de
sa retomada, além do in-
propiciar a ascensão social, tanto do indivíduo como do grupo. Também teresse de estudiosos mais
esse ponto será retomado a seguir. experientes, atraídos pelo
Marialice considerava que as relações de classe representam objetiva- conhecimento da juven-
mente “os padrões de pensamento e de experiência inerentes ao estilo de tude atual, podem ser ci-
tados trabalhos de inicia-
convivência da sociedade moderna” (Foracchi, 1965, p. 66), e também
ção científica, dissertações
avaliava como constitutivos do comportamento e da ação estudantis os de mestrado e teses de
vínculos entre o estudante universitário – estrato focalizado – e a classe doutorado produzidos a
média. Por esse motivo, a noção de classe aparece como forte suporte para partir dos anos de 1990,
a análise (cf. Idem, p. 11). alguns já publicados. Re-
Da mesma forma, as situações interpessoais constituem elemento impor- porto-me àqueles aos
quais tive acesso, origina-
tante para a configuração da categoria estudantil, uma vez que definem e
riamente apresentados no
regulamentam as relações dinâmicas em que jovens e adultos estão envol-

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Departamento de Socio- vidos. São duas as formas exploradas das relações interpessoais. De um
logia – FFLCH, na Fa- lado, a referência à família, grupo social específico no interior do qual se
culdade de Educação, no
desenvolvem relações de manutenção. Estas formalizam a situação de classe
Instituto de Psicologia, da
USP, e no Instituto de Fi- no nível das relações interpessoais, pois propiciam uma modalidade de
losofia e Ciências Huma- ajustamento entre o jovem e o adulto que envolve o modo pelo qual am-
nas, da Unicamp. Ver bos são socialmente categorizados (cf. Idem, p. 60). De outro lado, é inclu-
Abramo (1994), Corro- ído o contato entre gerações 8, para cuja caracterização Marialice se apóia
chano (2001), Jardim
fortemente na perspectiva mannheimiana (cf. Mannheim, 1952, pp. 276-
(2004), Oliveira (2001;
2005), Pimenta (1998;
322). As questões referentes à família e ao contato entre gerações ainda
2001; 2005), Silva hoje são pertinentes para a discussão do tema “juventude”.
(2003), Sousa (1999), Nos textos examinados, a reflexão sobre a experiência familiar e os con-
Spagnol (2002), Valle tatos em seu interior é utilizada para caracterizar a situação específica das
(1999). camadas médias, mas talvez possa ser estendida a outros estratos da popula-
7. Nessa acepção, o es- ção sem sofrer distorções. A reciprocidade aparece como um traço distinti-
tudante é visto como vo desse tipo de vínculo, como aliás ocorre em qualquer relação social. As
agente social da transi-
várias posições nela existentes representam papéis complementares que, por
toriedade das camadas
médias e porta-voz de sua vez, ensejam formas específicas de ajustamento e de tolerância mútua.
sua ideologia de ascen- Entre outras funções, os pais atuam como provedores; assim, quando
são (cf. Foracchi, 1965, existem recursos disponíveis, os jovens são sustentados por sua família en-
p. 119). quanto se mantêm estudando. A dependência9 econômica não chega a
8. Para Foracchi, “o con- preocupá-los, pois consideram esse encargo parte da obrigação familiar,
ceito sociológico de gera- sendo portanto “natural”. A aparente gratuidade dessa manutenção, que
ção não se baseia exclusi- afigura não exigir nenhum retorno por parte dos jovens, revela-se, entre-
vamente na definição so-
tanto, não tão desinteressada.
cial da idade, mas encon-
tra no conflito sua cate- Fica claro que a obrigatoriedade de sustento por parte da família sem
goria constitutiva” (1972, encargos correlatos é uma crença sem fundamento, já que é exigida uma
p. 160). A dimensão do contrapartida por parte do jovem estudante. Também é evidente que “os
conflito aparece nas atitu- elementos permanentes de tensão ou de oposição que caracterizam as rela-
des de oposição e de re-
ções entre jovens e adultos” (Foracchi, 1965, p. 21) ficam encobertos pelas
cusa do estilo predominan-
te de existência social, idéias de despojamento e gratuidade, ainda que isso não seja obrigatoria-
redefine-se nos planos mente notado pelos envolvidos. Os vínculos que essa situação origina de-
pessoal, institucional e monstram ser muito fortes: de fato, eles permitem o estabelecimento de
societário, e é, por conse- um controle familiar, incessante e sem tréguas, que restringe as perspecti-
guinte, compartilhada por
vas sobre amplos domínios da vida juvenil e delimita as alternativas dispo-
jovens e adultos.
níveis, incluindo manifestações individuais de vontade (cf. Idem, cap. 1).
9. A dependência signi- Sucede, todavia, que, se a atuação familiar é vista como investimento,
fica um tipo de relação
que trará seus ganhos no futuro, havendo a expectativa de que as dificul-
social no qual os laços de
dades presentes sejam recompensadas com as conquistas vindouras, isso

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não diminui a demanda por respostas adequadas dos jovens no momento reciprocidade se transfor-
em que a dependência é clara: esses laços são ampliados, atingindo direta- mam em compromissos
de retribuição, situação
mente a sua pessoa (cf. Idem, caps. 3 e 4)10.
social em que está pre-
Há, portanto, um compromisso de retribuição que é amplo e permanen- sente um estilo de con-
te, e envolve o papel conferido ao jovem nos planos familiares de ascensão (ou vivência peculiar ao gru-
de manutenção de posição) social. Assim, essa obrigação implica responsabi- po, explicitando víncu-
lidade, tanto em relação ao seu próprio destino pessoal como em relação ao los que reproduzem as
tensões atuantes no sis-
destino familiar. Seu compromisso é o de fazer efetivas as conquistas e de pro-
tema inclusivo, variam
piciar novos avanços. Assim, ainda que configurada no presente, a dívida pode socialmente e se refletem
ser deslocada para o futuro, na medida em que existe a expectativa de que sua no comportamento in-
realização profissional possibilite a manutenção ou a melhora da posição rela- dividual dos participan-
tiva da família em termos de estratificação social. tes. Assim, esses laços não
É ambíguo o sentido das relações de dependência existentes entre os apenas representam as
expressões variáveis do
estudantes e suas famílias: de um lado, elas contêm potencialidades cria-
comportamento huma-
doras; de outro, envolvem limitações evidentes. Marialice relembra que “o no, mas, com referência
modo de reagir ao vínculo é limitado pela própria instituição que o põe em à sociedade de classes, de-
prática” (Idem, p. 27). Entretanto, ainda que a subordinação dos jovens notam as condições so-
pareça total, ela não é completamente passiva e, em algumas situações, eles ciais objetivas de sua rea-
lização. Dessa forma, na
conseguem fazer sua vontade prevalecer. Desse modo, estão presentes tan-
mesma sociedade podem
to a submissão como a rebelião, parâmetros do seu agir que não são obri- existir diferentes estilos
gatoriamente opostos (cf. Idem, pp. 23-27, 69). de convivência e de de-
Aí está também manifesto um paradoxo: como lembra Marialice, “so- pendência (cf. Foracchi,
mente os estudantes totalmente mantidos pelos pais e desligados de qual- 1965, cap. 2).
quer preocupação imediata com seu próprio sustento podem reconhecer- 10. A discussão do sen-
se livres para empreender uma ‘atuação de ensaio’” que lhes permita vôos tido assumido pela re-
novos. Se comparada à dos jovens não-estudantes, essa situação de manu- lação entre “presente” e
“futuro” será feita mais
tenção constitui um privilégio. Entretanto, o compromisso familiar de
adiante.
mantê-lo como estudante provoca “a obrigação correspondente de [o jo-
vem] sentir-se vinculado e de agir de acordo com as expectativas forma-
das” pela família a seu respeito. Assim, a busca de novos modos de agir e
de viver, característica do comportamento juvenil, torna-se mais difícil,
quando não é quase inteiramente contida (cf. Idem, cap. 1).

O jovem é um ser em formação, cujo destino depende de um jogo incerto de


fatores. Tanto quanto possível, a família coordena esse jogo, incubando, no pre-
sente, condições que só se configurarão no futuro. Por isso, suas expectativas, no
que concerne ao jovem, se intercalam entre esses dois amplos momentos de realiza-
ção pessoal, sem deixar de inculcar no imaturo uma filosofia prática de vida, cujo

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11. Foracchi contrasta as imperativo fundamental é: ser alguém. Percebe-se, assim, que as expectativas de
relações de dependências retribuição, mesmo quando colocadas nesses termos, não são simplesmente
com as possibilidades de
deslocadas para o futuro. Apresentam, pelo contrário, a singularidade de redefinir-
emancipação encontra-
das pelo estudante, des- se nesses dois planos temporais, fazendo com que, progressivamente, um se resolva
se modo distinguindo si- no outro (Idem, p. 38).
tuações de autonomia e
de heteronomia. “A au- É diferente a situação do estudante que trabalha11: além de não depen-
tonomia [é definida]
der da colaboração financeira da família para continuar estudando, muitas
como a responsabilida-
de de manutenção fun-
vezes ele é quem a ajuda. Como a família não pode sustentá-lo, para poder
damentada na redefini- estudar o trabalho remunerado deixa de ser uma escolha e torna-se uma
ção dos papéis sociais do imposição. Com freqüência, a necessidade obriga o estudante a trabalhos
indivíduo. Essa condi- insatisfatórios, que não têm sentido algum para ele além da remuneração
ção, segundo a autora, só que proporcionam, e não alteram significativamente os laços de depen-
é concretizada na situa-
dência que mantém com a família; como é mencionado, “o trabalho, tal
ção de trabalho, quan-
do o estudante se firma como aqui transparece, não se reveste de qualquer sentido claro de emanci-
como unidade autôno- pação” (Idem, p. 48). A alternância das atividades torna sua vida fragmen-
ma de manutenção. Esse tada: trabalho e estudo preenchem tempos sociais distintos.
é o momento em que o A situação do trabalhador que estuda é ainda mais expressiva das dificul-
papel social do jovem é
dades envolvidas, pois, nesse caso, sua sobrevivência e a da família depen-
redefinido e ele se torna
provedor, seja do próprio dem da remuneração que recebe: “o trabalho mantém os vínculos entre o
sustento, seja do susten- estudante e a família” (Idem, p. 49) mediante um compromisso informal,
to da família” (Pimen- mas tácito. Esse compromisso afasta-o das possibilidades de dedicar-se à
ta, 2001, p. 33). preparação para a carreira que escolheu – o curso, de fato, tem para ele im-
12. A autora menciona portância acessória – e de ensaiar vôos próprios que lhe possibilitem entrar
ainda duas outras catego- em contato com alternativas, políticas ou culturais, mais amplas. O vínculo
rias de jovens que estu- impeditivo que o aprisiona é de caráter distinto, mas mais explícito: é a si-
dam e trabalham: aque-
tuação global que o produz12.
les para os quais “o tra-
balho se torna mais ab- Para fechar o círculo das condições necessárias para a reconstrução inter-
sorvente que o curso, fa- pretativa da categoria “estudante”, um terceiro elemento é apresentado, re-
zendo com que o jovem lativo aos fatores que possibilitam o processo de transformação do sistema
abandone a perspectiva inclusivo e que se manifestam no nível prático da atuação estudantil-juvenil
do estudante para pensar
(cf. Idem, p. 11). Para Marialice, isso significa que “os fatores que definem
como homem de negó-
cios”, a experiência de tra-
as condições de ajustamento do jovem ao adulto não se esgotam na esfera
balho propiciando a das relações interpessoais, mas são produzidos pela dinâmica da constitui-
emancipação; e aqueles ção do sistema global”. Sob a forma de relação de manutenção, a situação de
que atuam na política es- classe torna propícia uma modalidade de ajustamento entre jovens e adul-
tudantil, que lhes apare- tos, que envolve o modo pelo qual ambos são socialmente categorizados.
ce como tarefa decisiva,
Como é ele o responsável pelo processo de socialização das gerações mais

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novas, “as pressões modeladoras do adulto induzem o jovem a formar-se de sem, no entanto, trans-
acordo com os padrões e com a problemática incorporada pelo grupo com o formar trabalho e curso
em atividades secundárias
qual o adulto se identifica” (Idem, pp. 60-61) – assim, o padrão de depen-
(cf. Foracchi, 1965, pp.
dência presente é ao mesmo tempo intersubjetivo e social. 49-53). Elas, entretanto,
É interessante comparar as situações observadas por Foracchi (1965, não serão exploradas aqui.
1982) e aquelas encontradas em estudo sobre a transição para a vida adulta 13. “Devido ao grande
entre estudantes universitários de São Paulo (cf. Pimenta, 2001), mos- número e variedade de
trando as diferenças e as convergências que apresentam. Enquanto a pri- universidades particula-
meira se concentrou nos estudantes vinculados à USP (cf. Foracchi, 1965, res na capital, foram se-
p. 9), no segundo caso o âmbito foi ampliado para abarcar (e comparar) lecionadas duas: a Unip
(Universidade Paulista),
alunos dessa universidade pública e de duas outras universidades particu-
atualmente considerada
lares, a Unip e a Unicsul (cf. Pimenta, 2001, p. 59). Para fazer essa compa- a maior universidade
ração, é necessário ressaltar que o acesso ao ensino superior é bastante dis- privada da América La-
tinto nos dois momentos, muito mais restrito em 1960; identificar as razões tina, e a Unicsul (Uni-
para a escolha das universidades particulares no estudo de 200113; e men- versidade Cruzeiro do
Sul) [...]. A escolha da
cionar que o estudo de Foracchi não focalizou estudantes de cursos especí-
Unicsul justifica-se pelo
ficos14, enquanto na segunda pesquisa a amostra foi constituída por estu- fato de essa universida-
dantes de carreiras muito disputadas, Direito, Publicidade e Turismo15. de, localizada em um
Alguns resultados aproximam-se bastante: da mesma forma que na pes- bairro tradicionalmente
quisa anterior (cf. Foracchi, 1982, pp. 64-82), a de 2001 (cf. Pimenta, operário e [...] [com]
uma população predo-
2001, pp. 67-113) constata que, apesar do aumento relativo de estudantes
minantemente de baixa
oriundos de estratos socioeconômicos menos privilegiados, a maioria dos renda, estar voltada para
que estudam na USP provém de camadas sociais superiores, no sentido de um público estudantil de
pertencerem a estatutos socioculturais e socioeconômicos mais elevados, perfil bastante diferencia-
em contraste com a variação mais acentuada encontrada nas universidades do do público das ou-
privadas. Por outro lado, em 2001, na USP, uma porcentagem significati- tras universidades parti-
culares” (Pimenta, 2001,
va dos estudantes são filhos de pais com grau superior de escolaridade (na
pp. 59-60).
pesquisa de Foracchi, havia poucos nessas condições)16; em contraste,
14. “A amostra utilizada
correspondia a 5% da
[...] na Unicsul foi encontrada a maior parte dos estudantes oriundos de famílias população estudantil da
de camadas sociais menos privilegiadas, em que a diferença entre o estatuto Universidade de São
sociocultural e socioeconômico em relação às outras universidades é maior, e se Paulo em 1960, tal como
observa um esforço maior por parte dos filhos de conquistarem um grau de instru- se distribuía pelas dife-
rentes faculdades que
ção mais alto do que o alcançado pelos pais, assim como para alcançar ocupações
integram esse organismo
profissionais de nível superior (Pimenta, 2001, p. 89).
universitário” (Foracchi,
1965, p. 9).
Com relação aos primeiros, convergente com análise de Foracchi da déca-
da de 1960, está presente “uma estratégia familiar de manutenção do estatu-

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15. “Para a definição des- to sociocultural já alcançado pela família” (Idem, p. 77); o interessante é que,
sas carreiras, foi examina- a partir da pesquisa mais recente, é possível supor que, entre os últimos – e
do o registro da procura
também entre aqueles que possuem uma situação econômica privilegiada,
por cursos vestibulares da
Fuvest durante dez anos mas um nível de escolaridade mais baixo, ainda que exista uma diferença de
(1990-2000) e identifi- significado nesse processo –, exista “uma estratégia familiar de ascensão so-
cadas: a) quais eram as cial, em termos de capital escolar. Para uma família de condição social menos
carreiras tradicionalmente privilegiada, o investimento em educação superior faz parte de uma estraté-
mais procuradas – as que
gia de ascensão social, em busca de opções mais rentáveis de atividade econô-
mantiveram os maiores
números de inscrições
mica” (Idem, p. 77).
com pequena variação Entretanto, na medida em que os estudantes provenientes de camadas
durante o período; b) sociais menos privilegiadas tendem a se formar em escolas públicas no
quais eram as carreiras ensino básico e a freqüentar a universidade particular, e, por sua vez, os
emergentes – as que apre- estudantes provenientes de camadas sociais mais favorecidas tendem, em
sentaram aumento do
sua maioria, a se formar em escolas particulares no ensino básico e fre-
número de inscrições no
período; e c) quais eram qüentar a universidade pública, fica claro que as condições de disputa são
as carreiras que apresen- mais difíceis e acirradas para os primeiros. Essa observação permite ratifi-
taram uma concorrência car aquela feita pela pesquisa dos anos de 1960, sobre a importância atri-
alta e constante no perío- buída à educação como fator de mobilidade social, mas também confirma
do, em função da rela-
a constatação de que existe certa ilusão na relação estabelecida entre ambas.
ção candidato vaga. A par-
tir desses critérios, foram Ou seja:
definidas: 1) carreiras tra-
dicionais (foi escolhido o [...] A formação de nível superior [...] é, sobretudo, fator de consolidação da traje-
curso de Direito); 2) car- tória social já percorrida. [...] isso significa que a formação universitária representa
reiras que emergiram na
menos uma oportunidade original de ascensão na escala social do que um prêmio
década de 1990-2000 (foi
que sanciona e legaliza a conquista de novas posições. [...] A educação universitária
escolhido o curso de Pu-
blicidade); e 3) carreiras apenas ratifica uma trajetória social já realizada e para firmar-se como instrumento
‘da moda’, ou que se tor- de realização pessoal e como recurso de afirmação pessoal não prescinde – pelo
naram emergentes nos contrário, exige – de condições socioeconômicas estáveis e consolidadas (Foracchi,
três anos anteriores à pes- 1965, pp. 300-301).
quisa (foi escolhido o
curso de Turismo)” (Pi-
menta, 2001, pp. 48-60). Também é interessante apresentar a situação dos estudantes que traba-
lham, na pesquisa mais recente. Aqueles oriundos de famílias com capital
16. É importante lem-
brar que, apesar de a base
escolar inferior começam a trabalhar mais cedo, aumentando a idade con-
socioeconômica dos es- forme o crescimento da renda mensal familiar. Os alunos da Unicsul apre-
tudantes que têm ingres- sentam a menor média de idade de início da vida ativa, os alunos da USP
sado na USP estar sen- apresentam a maior, e os da Unip situam-se numa posição intermediária
do ampliada, diminuin- em relação às outras duas universidades. Quando a renda mensal é inferior a
do a concentração exis-
mil reais, o trabalho do jovem aparece como importante complemento da

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renda familiar. Nas demais faixas de renda, a motivação mais importante é tente anteriormente, a
ganhar dinheiro para o próprio consumo. Nesse caso, o trabalho proporcio- pesquisa de 2001 foca-
lizou estudantes das car-
na a remuneração necessária para os gastos pessoais, aparecendo como uma
reiras mais disputadas e
alternativa para aqueles que não têm condições de receber uma mesada dos nas quais a seleção é mais
pais e também como possibilidade de maior autonomia, uma vez que esse restritiva, o que, sem
dinheiro é administrado pelo próprio jovem. Nas faixas de renda mais altas, dúvida, concorre para o
entretanto, a vontade de trabalhar aparece em uma porcentagem significa- afunilamento das possi-
bilidades de acesso.
tiva, o que exprime uma visão do trabalho como uma experiência positiva e
desejável (cf. Pimenta, 2001, pp. 100-105). 17.Para constatar as di-
Na amostra dos estudantes da USP de 2001, predominam os perten- ficuldades de acesso ao
estudo universitário por
centes às camadas sociais mais favorecidas, oriundos de famílias com capi-
jovens trabalhadores
tal escolar superior, com renda mensal alta, cujos pais ocupam posições das camadas menos pri-
profissionais mais credenciadas. Esses estudantes encontram maior auto- vilegiadas, cf. Oliveira
nomia na busca por uma ocupação profissional realizadora, na medida em (2001) e Silva (2003).
que sua contribuição não é exigida para a obtenção da renda familiar. Por-
tanto, têm mais tempo para dedicar aos estudos e à carreira universitária e
podem optar pela situação de não-trabalho enquanto procuram alternati-
vas de inserção no mercado que estejam de acordo com suas aspirações e
expectativas. Em contraste, na amostra da Unicsul predominam aqueles
oriundos de famílias cujo capital escolar é inferior e médio-inferior, com
rendas mensais mais baixas, cujos pais ocupam posições profissionais me-
nos credenciadas. Entre essas famílias, o jovem é estimulado a começar a
trabalhar mais cedo, para complementar a renda mensal familiar e ajudar
nas despesas da casa (cf. Idem, p. 107). Nesse caso, sua dedicação aos estu-
dos é bem menor e não é surpreendente que sua vida estudantil se alongue
ou seja interrompida, nem tampouco que o curso universitário falhe em
lhe proporcionar a melhora profissional e social almejada17.
Duas categorias distintas emergem desse mapeamento – de um lado, o
jovem; de outro, o estudante –, influenciando-se de forma recíproca e le-
vantando uma questão de difícil resposta: “como ser estudante, categoria
social independente, se não é possível deixar de ser, ao mesmo tempo, jo-
vem dependente, submisso e comprometido?” (Foracchi, 1965, p. 28).
Em outro momento, essa duplicidade é, entretanto, circunstanciada: ser
estudante é um acidente na condição de jovem (cf. Foracchi, 1972, p. 110)
e essa é a condição preferencialmente atingida pela crise social mais ampla
(cf. Idem, p. 160).

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Retomada de um legado intelectual, pp. 11-33

Juventude, tempo e estilo de vida

18.Cf. nota 3. A juventude18 é caracterizada a partir de um registro tríplice: o reconhe-


cimento de que se trata de uma fase da vida, a constatação de sua existência
como força social renovadora e a percepção de que vai muito além de uma
etapa cronológica, para constituir um estilo próprio de existência e de reali-
zação do destino pessoal (cf. Foracchi, 1965, pp. 302-304).
Como etapa que antecede a maturidade, fase dramática da revelação do
eu, essencial para a formação da pessoa, a juventude corresponderia a um
momento definitivo de descoberta da vida e da história. A mobilização dos
recursos e das potencialidades que possui depende diretamente das alter-
nativas abertas aos jovens por sua inserção social, pelas posições que ocu-
pam, pelos caminhos oferecidos para sua trajetória.
As trajetórias possíveis são estabelecidas socialmente. “Cada sociedade cons-
titui o jovem à sua imagem” (Idem, p. 302), ou, utilizando outra formulação,
impõe-lhe um modo de ser, que jamais poderia surgir a partir dele próprio –
cria-o (fabrica-o) como indivíduo social (cf. Castoriadis, 1982, p. 343).
A mesma sociedade pode produzir tipos de jovens bastante diversos,
pois, originados de diferentes extrações sociais, inserindo-se em posições
distintas e apropriando-se de hábitos e valores específicos de acordo com
essa inserção, as “maneiras de ser” que lhes são impostas – ou que têm
possibilidade de constituir – não são as mesmas para todos. Na distribui-
ção diferencial que forçosamente ocorre, uns são mais privilegiados do que
outros. Desse modo, fica claro que a juventude não é una, e que a diferen-
ciação social e a diversidade econômica têm peso importante na configura-
19. De fato, a percepção ção das distintas “maneiras de ser” impostas aos jovens19.
da existência de diferen- A juventude também é identificada como força dinamizadora da vida so-
tes experiências juvenis cial, atuante em sua transformação, para o que se une a outras forças operantes
e, assim, de várias juven-
na sociedade. De um lado, sua busca por uma sociedade mais justa leva-a a
tudes é, hoje, um dado
aceito e incorporado pe- emergir como porta-voz dos desfavorecidos, revelando as formas de opressão
los estudiosos do tema. existentes; de outro, sua flexibilidade permite-lhe experimentar novas alter-
Vários dos artigos pre- nativas e adaptar-se com relativa facilidade a modos de conduta e padrões de
sentes neste número rei- vida anteriormente desconhecidos (cf. Foracchi, 1965).
teram essa constatação.
Entretanto, as mesmas características que fazem o jovem ser percebido
como forjador do futuro podem aparecer com cores negativas; há sempre
“outro lado”, outra maneira de avaliar, a partir da qual suas qualidades são
julgadas de forma ambivalente: o jovem é sério, mas imaturo; é audacioso,
mas inexperiente; impulsivo, mas indeciso. Isso faz com que suas manifes-

20 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria Helena Oliva Augusto

tações com freqüência sejam vistas somente como manifestações de espíri-


tos rebeldes, avessos à ordem e propícios a promover distúrbios e atitudes
inconseqüentes (cf. Foracchi, 1965).
Finalmente, para a autora, a juventude sintetizaria uma forma possível
de pronunciar-se diante do processo histórico e de constituí-lo, configu-
rando desse modo um estilo próprio de existência e de realização do desti-
no pessoal. Citando Bettelheim (1962), lembra que a condição de jovem
não se distingue das demais a não ser por sua capacidade singular de, ao
longo da existência humana, recriar insatisfações vitais nunca definitiva-
mente aplacadas. Trata-se, assim, de expressão da virtude que mantém
vivas as capacidades de resistência, de disputa e de renovação (cf. Foracchi,
1965, pp. 303-304).
Adulto e jovem surgem como categorias socialmente distintas, vincula-
das por um elo de continuidade e por interesses comuns. O que o primeiro
torna efetivo como realização, o segundo significa como virtualidade. Con-
figuram, portanto, papéis opostos, complementares e articulados: a passa-
gem de uma condição social à outra é assinalada por um processo tenso (cf.
Idem, pp. 56, 303).
É possível contrastar estilos de vida peculiares aos jovens e aqueles da
maturidade, vivenciados pelos adultos. Enquanto as características juvenis
referem-se principalmente a essa capacidade de vivenciar e dar origem ao
novo, a condição social de adulto caracteriza-se pela independência econô-
mica e emocional, e pela legitimação da atividade sexual, manifesta pelo
casamento e pelo direito de estabelecer família. Em momentos diferentes
da vida, dependendo de como reagimos ao que acontece, somos jovens
inconformados ou adultos acomodados.
Quando discute o convívio entre gerações, Marialice lembra que a rela-
ção estabelecida entre os adultos e os jovens se caracteriza por um antago-
nismo constante e árduo, cuja modificação, sendo difícil, não é entretanto
impossível. Nos termos em que propõe a discussão, o adulto aparece como
portador da experiência à qual se contrapõe a inexperiência do jovem. As-
sim, o primeiro é aquele(a) que sabe o que deve ser feito e como deve sê-lo,
enquanto o segundo aparece como aquele(a) que desconhece os percursos
da vida e necessita de orientação. Desse modo, o adulto pode impor e o
jovem deve submeter-se. Quando comparadas as duas posições, a condi-
ção de superioridade do primeiro fica inequívoca.
A autora menciona a necessidade de esse relacionamento ser subverti-
do, cada um dos termos sendo transformado em seu contrário: a inexpe-

novembro 2005 21
Retomada de um legado intelectual, pp. 11-33

riência, antes um elemento de inferiorização dos jovens, pode ser trans-


formada em fator de superioridade, na medida em que for levada em
conta a capacidade inovadora, traço distintivo da juventude e fundamen-
tal num mundo em constante transformação. Cada situação nova deve
ser vivida com novos recursos e a atitude prevalecente sempre necessita
envolver uma recriação. Em outras palavras, a aparente superioridade
adulta é relativa: afinal, a experiência que não possibilita a improvisação e
o escape deliberado diante da rotina, que não supre com recursos origi-
nais a ausência de habilidade e conhecimento prévios, é de fato falsamen-
te superior e pode ser vista como frustrada (e frustrante), além de inútil,
num mundo que tem a mudança como elemento constitutivo (cf. Idem,
pp. 24-26).
Num outro ângulo, é importante marcar que a distância entre gera-
ções é sintoma de uma situação menos manifesta e que envolve um fato
fundamental que lhe está subjacente: a contestação dos jovens às “certe-
zas” da experiência dos mais velhos é reveladora da rejeição à própria con-
dição adulta (cf. Foracchi, 1972, p. 16). Tal percepção propõe elementos
importantes para discutir a relação intergeracional nos dias de hoje, que
manifestam, décadas depois, um processo que já estava em curso naque-
20. “A geração é defini-
da como uma unidade les anos.
e uma totalidade unifi- Assim, num contexto diverso daquele em que Marialice sustentou a
cante, que resulta de um idéia de a juventude forjar um estilo próprio de existência, seu registro pode
contexto idêntico de so- ser utilizado de outra forma, para pensar o momento contemporâneo. Na
cialização, durante os pri-
sociedade atual, em que a longevidade é mais freqüente, possibilitando a
meiros anos de existên-
cia, quando as crianças coexistência de várias gerações20, “o envelhecimento postergado trans-
e os adolescentes rece- form[ou] o jovem, de promessa de futuro que era, em modelo cultural do
bem a marca de sua épo- presente” (Peralva, 1997, p. 230) Desse modo,
ca” (Lagrée, s/d). Dife-
rente da nota 7, em que
[...] a imagem da juventude [passou a] representa[r] o ideal de todas as idades. As
é enfatizada a dimensão
pessoas desejariam permanecer jovens e conservar os atributos da juventude: a
relacional dessa noção,
geração está pensada aqui beleza do corpo, a vivacidade do espírito, a liberdade de escolha na ocupação do
em relação àqueles que tempo, a capacidade de renovar-se constantemente [...] Em virtude disso, a idade
estão incluídos na mes- adulta perdeu seu poder de sedução e não mais constitui a norma a atingir (Gau-
ma “unidade geracional, thier, 2000, p. 24).
ou seja, são formad[os]
por uma socialização si-
milar, [e] também [cons- “Ser jovem [passou a ser] um imperativo categórico para cada geração”
tituem] uma comunida- (Finkielkraut, 1995, p. 130). Em virtude disso, a ansiedade em relação a
de de destino” (Idem). “como permanecer jovem” se estende para muito além das idades conside-

22 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria Helena Oliva Augusto

radas juvenis, tendo se tornado um objetivo aspirado por quase todos e cuja
busca é incessante.
De qualquer modo, atualmente os mais jovens parecem desinteressa-
dos de incorporar à sua vida o trajeto percorrido e o legado das gerações
anteriores. Ao mesmo tempo, os mecanismos sociais capazes de vincular a
experiência pessoal dos que agora são jovens à que sustentava a conduta e
as maneiras de ver o mundo das gerações que vieram antes já não podem
ser facilmente ativados. Afinal, com as alterações significativas que ocorre-
ram nos padrões de sociabilidade e nas formas de ser, essa experiência não
tem validade para aqueles que estão no início de sua vida. Pode-se perce-
ber, então, que o tempo decorrido é realmente passado, não faz mais sen-
tido para a vida atual.
“Ser adulto”, além de ter deixado de ser objetivo prioritário aspirado pelos
mais jovens, nem sempre é valorizado positivamente. Na verdade, hoje, há
certa recusa generalizada ao “crescer” e ao “amadurecer”, que adquiriram a
conotação de “envelhecer” (cf. Ahmadi, 2001, p. 192). Pode-se supor então
que não só privilegiar o presente (viver o agora21) tornou-se característica co- 21. Não há superposição
mum a todas as faixas etárias, como também buscar a juventude extrapola os perfeita entre a noção de
estratos juvenis, já que (quase) todos querem ser, manter-se ou parecer jo- presente e aquela referente
ao agora, que, de fato,
vens. Ao mesmo tempo, a juventude é considerada condição indispensável
corresponde ao presen-
para que ocorra uma verdadeira experiência, o que promove clara inversão na te mais imediato, aque-
maneira como a questão era proposta anteriormente. A experiência parece ter le que ocorre exatamente
deixado de significar conhecimento ancorado na sabedoria do saber fazer, acer- “neste momento”. Entre-
vo de uma vida que pode ser transmitido, para resumir-se à vivência sem las- tanto, nesta discussão,
esses termos serão usa-
tros do momento (cf. Benjamim, 1985a, 1985b).
dos como sinônimos
Entretanto, como lembra Singly, tudo depende do significado atribuí- para que não ocorram
do à formulação “ser adulto”: se fizer referência à aptidão para assumir demasiadas repetições de
responsabilidades, é identificado por pessoas mais jovens e mais velhas palavras.
como característica sua; porém, se denotar “um ser acabado que não tem
mais nada a descobrir no mundo e, sobretudo, nele próprio” (Singly, 2000,
p. 10), é igualmente rechaçado por ambas as categorias.
Do mesmo modo como estava alterada a avaliação relativa ao “ser adul-
to”, já se manifestava também a mudança, que hoje se tornou ainda mais
visível, em relação à dimensão temporal sobre a qual a ênfase recai. Na
pesquisa sobre o estudante, o jovem era considerado agente efetivo de trans-
formação social; essa possibilidade, entretanto, era sempre posta no futuro,
ainda que a partir do presente. A questão era ali colocada levando em conta
que no jovem estão contidas duas situações virtuais, na medida em que ele

novembro 2005 23
Retomada de um legado intelectual, pp. 11-33

é ao mesmo tempo jovem e estudante: sua condição juvenil

[...] faculta-lhe discernir, no plano familiar, a seqüência de gerações que o antece-


deram e avaliar criticamente [...] o mundo que [as] envolvia, separando-o, com
nitidez, do presente. A condição de estudante transforma-o, por sua vez, aos olhos
da família e quiçá aos seus próprios, no presente vivo diante do qual não é mais
22. Como lembra Bour-
dieu (1998, p. 121), “a possível se omitir (Foracchi, 1965, p. 100).
insegurança objetiva
funda uma insegurança Sendo esse presente vivo, no entanto, “ser estudante é condição especial,
subjetiva generalizada”. que pressupõe o preparo gradativo e dosado para uma atividade social fu-
23. Novotny refere-se ao tura [...] para um modo definido de participar da sociedade de seu tempo.
futuro como uma cate- É, portanto, uma virtualidade eminentemente voltada para o futuro” (Idem,
goria em extinção, su-
pp. 211-212; grifos meus).
primida e substituída
pelo presente estendido De qualquer forma, o futuro possível depende dos processos em curso na
ou prolongado. Desse sociedade inclusiva e da posição ocupada pelo jovem e sua família. Desse modo,
modo, ele não pode a perspectiva a partir da qual é vislumbrado está voltada para o momento em
mais ser tomado como curso, radica-se nele e, assim, “é incerto como solução e indefinido como op-
certo. O futuro realizar-
ção – é um futuro limitado pela perspectiva do presente” (Idem, ibidem).
se-ia agora, determina-
Não é distinta a representação do porvir atualmente predominante,
do por esse presente
ampliado, que passa a ainda que se possa dizer que a incerteza, a indefinição e os limites aludidos
absorvê-lo. Problemas acima sejam ainda mais acentuados. Diante da indeterminação e da inse-
que antes eram remeti- gurança22 que acometem a vida individual e coletiva, nos mais diversos
dos a um tempo futuro níveis, a perspectiva de futuro fica cada vez mais nebulosa. Em virtude
penetram o presente e
disso, as pessoas vêem a percepção processual do tempo alterada, o que
impõem soluções que
poderiam esperar o lhes dificulta o estabelecimento de vínculos entre o que foi e o que é, e,
amanhã, mas exigem ser conseqüentemente, impede a projeção do que virá a ser.
tratadas hoje mesmo. Em relação a esse ponto, diz um autor: podem ser encontrados jovens
Dessa forma, o futuro que “olham o futuro com os pés firmemente apoiados no chão” (Calvo,
não mais oferece o cam-
2001, pp. 77-102, apud Pais, 2003, p. 122). Todavia, muitos deles ten-
po livre para a projeção
dos desejos, esperanças
dem a fantasiá-lo ou a vê-lo como um campo aberto de possibilidades,
e crenças, cada vez mais desse modo esperando “que o presente se revelará, que as coisas acontece-
obscurecido pelas ques- rão” (Pais, 2003, p. 122). Para outros, similarmente ao que foi constatado
tões do momento. Cria- por Foracchi (1965, p. 212), “o futuro é, virtualmente, uma experiência
se, em conseqüência, do tempo presente”; nesse caso, “a preocupação a respeito do futuro é
uma dinâmica própria
compensada pelo maior valor atribuído ao presente” (Pais, 2003, pp. 124,
do presente; ele se con-
verte em seu próprio 125), que é, desse modo, prolongado23.
centro (Novotny, 1992, Similaridade, entretanto, não significa identidade absoluta. Na atualida-
p. 48). de, a percepção do futuro como virtualidade do presente não está fundada,

24 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria Helena Oliva Augusto

como no caso mencionado acima, em certa estabilidade conquistada, num


futuro que significa, ao mesmo tempo, pôr em movimento a formação profis-
sional obtida com o curso universitário e reiterar a posição social atingida pelo
núcleo familiar, ou seja, um futuro limitado, mas até certo ponto confortável.
A análise da relação entre juventude e presente merece, ainda, que se
observe outro ponto. Trata-se da aparente desconexão operada por alguns
entre aquilo que foi, o que é e o que, presumivelmente, será. Diferente-
mente do que se costumava supor, para alguns membros dos grupos mais
jovens as condutas desenvolvidas e as atitudes tomadas no presente apa-
rentam não ter conseqüências posteriores. É como se a vivência do presen-
te sempre renovado impedisse a percepção dos vínculos existentes entre o
que foi, o que está sendo e o que virá a ser. Nesse caso, o momento presen-
te é vivido como um refúgio, fora do passado e do futuro, não existindo
senão o instante, o prazer e a liberdade (cf. Pronovost, 2000, p. 37).
Hoje, para alguns, é possível viver de forma imprevidente e afirmar a
certeza de muito sucesso, riqueza, bem-estar e felicidade em relação às ex-
pectativas quanto ao porvir. Pesquisas distintas, que trabalharam com dife-
rentes grupos de jovens, exemplificam o que está sendo afirmado: uma de-
las discute as alterações que ocorrem contemporaneamente nas formas do
trabalho, e compara percepções e perspectivas de trabalhadores jovens e
maduros (cf. Evelyn, 1998); outra analisa o lazer da juventude paulistana
pertencente às camadas médias (cf. Pimenta, 1998). De forma contraditó-
ria, ao lado de acentuar a urgência pelo gozo do tempo presente e indicar a
necessidade de consumi-lo exaustivamente como se fosse o único disponí-
vel (desse modo sugerindo descrença quanto à possibilidade de um futuro
vir a suceder esse presente), expressando o que se poderia identificar com
um wishful thinking, tanto os jovens trabalhadores como os jovens de ca-
madas médias entrevistados nessas pesquisas anunciam um futuro promis-
sor para si próprios, como se o hoje e o amanhã não tivessem conexão e
entre eles não houvesse nenhum vínculo de sucessão24. 24. É interessante cons-
Paradoxalmente, nos dois casos, as atividades que ocupam seu tempo tatar que pesquisa de-
senvolvida com jovens
de forma prioritária – refiram-se elas ao trabalho remunerado, enfocado
europeus expõe esse
pela primeira, ou ao estudo, presente na segunda – são encaradas pelos
mesmo tipo de compor-
jovens como se não contribuíssem para a construção da própria vida e para tamento no que diz res-
a constituição de sua identidade; antes, mesmo sendo, aparentemente, re- peito ao privilégio do
sultados de “livre escolha”, parecem-lhes externas, estéreis, áridas, vazias presente e à abstração do
de sentido e – esse é o elemento que se quer acentuar – indiferentes para o futuro. Cf. Pais (1998).

delineamento do que virá a ser.

novembro 2005 25
Retomada de um legado intelectual, pp. 11-33

Ao lado dessa verificação, ambos os estudos também demonstram que,


hoje em dia, tanto para os jovens trabalhadores como para os jovens oriun-
dos das camadas médias não é aceito que o tempo livre disponível seja
preenchido por procedimentos que eles classificam como atividades que
exigem esforço (ou pareçam aborrecidas ou, ainda, provoquem cansaço).
Para os jovens das camadas médias, “o tempo do estudo e o tempo de
trabalho opõem-se ao tempo de lazer. Por mais que estejam estudando na
área que escolheram, [...] cursar a faculdade não é referida como uma ati-
vidade prazerosa, e sim como uma obrigação, que provoca pressão, tensão
25. Enquetes realizadas e stress” (Pimenta, 1998, p. 70). Manifestam recusa absoluta a permane-
para apreender o empre-
cer em casa nos fins de semana, principalmente à noite, para atividades de
go do tempo pelos jovens
canadenses de 15 a 24 estudo ou de aperfeiçoamento. O lazer não pode ser confundido com nada
anos, nos anos de 1986, que lembre dedicação e esforço; prazer e dificuldade parecem incompatí-
1992 e 1998, encontra- veis; desse modo, o tempo livre só pode ser bem aproveitado na balada.
ram resultados que rati- No caso dos jovens trabalhadores, por outro lado, é sempre rejeitado “o
ficam o que as pesqui-
que se parece com o trabalho ou aquilo que é obrigação, como os compro-
sas brasileiras registraram:
quando esses três anos
missos de família, mas não há vontade ou disponibilidade para algo dife-
são comparados, é pos- rente”25 (Evelyn, 1998, p. 111).
sível perceber a diminui- Essa perspectiva não é a única, porém. Em investigação que objetiva
ção dos períodos de tem- identificar valores juvenis e processos de transição para a vida adulta, obser-
po dedicados ao sono, ao vando jovens de diferentes faixas etárias, situações profissionais e familiares,
trabalho e às atividades
pertencentes a distintas categorias sociais, é percebida outra representação26.
escolares e o aumento
significativo do tempo Jovens moradores da periferia da cidade de São Paulo manifestaram expec-
dedicado ao lazer. Entre- tativa muito pessimista quanto ao futuro, em relação ao qual não têm mui-
tanto, o autor do artigo tas esperanças. Para eles, mais do que incerto – na medida em que se vêem
citado enfatiza que a ca- ameaçados no presente, não descortinam para si a possibilidade de uma vida
tegoria etária com mais
melhor –, o porvir parece muito pouco promissor e, em virtude disso, pro-
tempo livre não é com-
posta por jovens, mas por jetam e desejam para seus filhos situações diversas daquelas em que vivem,
idosos (cf. Pronovost, sem, no entanto, possuírem quaisquer bases concretas para essas cogitações
2000, pp. 34-35). (Pimenta, 2005).
26. Trata-se de grupos Dessa forma, como é possível perceber, existem variações na relação dos
focais organizados co- jovens com o tempo: para alguns, diante da incerteza quanto ao futuro e
mo parte da investiga- das satisfações que o presente torna disponíveis, é essa dimensão temporal
ção em andamento, Tra- que deve receber mais atenção, que deve ser vivida de modo intenso; para
jetórias juvenis, de Me-
outros, principalmente aqueles que se integram ao mundo do trabalho, há
lissa de Mattos Pimen-
ta, cujos resultados fa- uma antecipação do porvir, o presente representando uma passagem em
rão parte de sua tese de direção ao futuro, à vida adulta – identificada com a capacidade de inde-
doutorado. pendência –; para outros, ainda, entretanto, ocorre a constatação de que “o

26 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria Helena Oliva Augusto

mundo do trabalho para o qual foram socializados não existe mais” (Jar-
dim, 2004, p. 193).
Esses últimos sentem sua energia minada pelas dificuldades encontra-
das para se inserir na vida de trabalho produtivo e, em conseqüência, no
mundo, de modo que se consideram e passam a sentir-se “sem futuro”, ou
a vê-lo incerto e indefinido (cf. Idem, p. 229). “A incerteza quanto ao
futuro e às possibilidades de inserção aparece como fonte de sofrimento,
como algo que suspende o início da vida adulta e a assunção de responsa-
bilidades” (Idem, p. 237). A autora lembra que se poderia opor a essa
percepção o fato de que as gerações passadas, na medida em que viviam
recorrentemente em situações de desemprego, também se submetiam ao
signo da incerteza. Entretanto, argumenta,

[...] o sentido [dessa] incerteza era diferente, pois não chegava a pôr em cheque as
demais formas de experiência do tempo e do espaço. Hoje, a insegurança dos jo-
vens em relação ao trabalho coloca-os numa zona liminar, na medida em que
desloca os significados que ele possui, impulsiona a construção da identidade por
outras vias [e] desorganiza as relações entre gerações (Idem, p. 237).

Nesse contexto, instabilidade, precariedade e incerteza tornam-se as novas


condições de “normalidade” e surgem como regras de vida, as quais, entre-
tanto, não parecem amparadas por um horizonte de mobilidade. É eviden-
te o contraste (e também a convergência) entre essas conclusões e aquelas
apresentadas por Foracchi sobre essa mesma questão, mencionadas acima.
Afinal, ela constata muito bem: “Não parece razoável supor que uma socie-
dade que ofere[ce] alternativas de vida tão insatisfatórias para os jovens seja
uma sociedade integralmente aceita pelos adultos” (Foracchi, 1972, p. 13).
Ainda com relação à perspectiva de futuro, finalmente, há aqueles – por
certo representados não apenas por pessoas mais jovens – para quem “o
presente aparece [...] como resultado de uma piora progressiva, como um
tempo limite” (Jardim, 2004, p. 263). Na opinião dessas pessoas, uma saí-
da só poderá existir se houver a intervenção de um deus ex machina 27. Pode- 27.Para uma reflexão
se perceber que, nesse último caso, que não é incomum e atinge um con- sobre situações-limite
junto muito amplo de situações e de faixas etárias, a falta de segurança – abrangidas por essa con-
sideração, ver Spagnol,
revelada nas condições atuais de vida, em que ressaltam o desemprego, as
2002.
perspectivas incertas na velhice e os infortúnios da vida urbana – é a princi-
pal fonte “da difusa ansiedade em relação ao presente, ao dia de amanhã e
ao futuro mais distante” (Bauman, 2001 [2000], p. 196).

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Em decorrência da incerteza relativa ao futuro, outro elemento a consi-


derar diz respeito à simbiose que a contemporaneidade estabelece entre
juventude e presente, tema já introduzido acima. De um lado, trata-se da
valorização social desse estágio da vida, percebido como um período privi-
legiado, em que os compromissos parecem ser menos prementes e a alegria
de viver se manifesta de modo mais exuberante. De outro, trata-se da
alteração em curso na vivência social do tempo.
De qualquer forma, o destaque que é dado ao presente não significa
que seja fácil vivenciá-lo; inclusive, talvez a alternativa oposta seja mais
verossímil. Se for lembrado que o prognóstico do futuro é delimitado pela
vivência de um presente problemático, é possível compreender a relutân-
cia juvenil em enfrentá-lo. Marialice menciona a propósito um estilo novo
de adaptação que denomina de vinculação experimental ao presente, o qual
envolveria um processo de socialização específico no qual são rejeitados os
objetivos culturais propostos e os recursos institucionais mobilizados para
sua concretização (cf. Foracchi, 1972, p. 108). Nesse processo, como foi
antes pontuado, também a condição de adulto é rejeitada por ser conside-
rada muito restrita em possibilidades, diante dos obstáculos impostos pela
estruturação da sociedade inclusiva. Dessa perspectiva, “no limite, é essa
também a recusa do adulto que, como o jovem, é confrontado pela difi-
culdade de viver o presente” (Idem, p. 13).
Parece interessante articular a ênfase no presente com as características
manifestas pelas pessoas mais jovens. A juventude é vista como o futuro da
sociedade, segundo valores e critérios das gerações que a precederam, as
quais viveram suas próprias juventudes num tempo passado (o seu presen-
28. “Essa idade é prova- te), que foi crucial para a definição de sua identidade28. Para os jovens de
velmente aquela que agora, entretanto, é possível supor que esse passado – o “tempo” de seus
suscita o maior entusias- pais e avós – pareça muito distante e se revista de pouco conteúdo valora-
mo, pois está aberta a
tivo e simbólico. Afinal, o sentimento de pertença, o enraizamento, que
todos os possíveis. Mas,
ao mesmo tempo, ela configura a participação num destino comum, é distintamente vivenciado
deixa pairar tantas incer- por diferentes gerações que compartilham acontecimentos e situações num
tezas em face do futuro mesmo período de tempo. Para algumas formulações, os jovens percebem
que cria a impressão de a vida cada vez menos “como uma janela aberta para o futuro; [antes, ela]
impotência, conseqüen-
fascina pela ilusão de um eterno presente” (Furter, 1967 [1965], p. 15).
temente de temor, dian-
te das orientações a se- O comportamento juvenil da atualidade é, então, compreendido como
rem tomadas” (Gau- a busca continuamente reiniciada pela vivência do presente – percebido
thier, 2000, p. 23). como tempo de flexibilidade e de mobilidade, de ausência de compromis-
so, em que o lazer e a aventura têm um papel predominante e a possibili-

28 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria Helena Oliva Augusto

dade da emergência de perspectivas e dimensões novas para a existência é


sempre valorizada. A avaliação dessa característica, entretanto, varia.
É necessário lembrar que viver no presente pressupõe certo tipo de orien-
tação para o futuro. Quando isso já não mais ocorre, quando o agora se
transformou na única realidade temporal existente, fica difícil manter um
sentido para a vida, tanto quanto pensar e lutar por alternativas desejáveis
para aquilo que está por vir. Nessas circunstâncias, vale a pena lembrar a
reflexão de Bauman a respeito:

[...] os homens e mulheres do presente distinguem-se de seus pais vivendo num


presente “que quer esquecer o passado e não parece mais acreditar no futuro”. Mas
a memória do passado e a confiança no futuro foram, até aqui, os dois pilares em
que se apoiavam as pontes culturais e morais entre a transitoriedade e a durabilida-
de, a mortalidade humana e a imortalidade das realizações humanas, e também 29. Essa expressão tem a
entre assumir a responsabilidade e viver o momento (Bauman, 2001 [2000], pp. ver com segurança, esta-
148-149). bilidade e “confiança” de
que o que estou fazendo
hoje encontrará as con-
Da mesma forma, é interessante refletir sobre a visão de Bourdieu:
seqüências esperadas
amanhã (Giddens, 1991
[A] capacidade de se projetar o futuro [é] condição indispensável de todas as con- [1990], pp. 95-97). Ma-
dutas ditas racionais [...]. Paradoxalmente, [...] para conceber um projeto revolu- nifesta a crença de que a
cionário, isto é, uma ambição raciocinada de transformar o presente por referência continuidade entre pas-
a um futuro projetado, é preciso ter um mínimo de domínio sobre o presente sado, presente e futuro
será mantida e de que per-
(1998, pp. 121-122).
manecerão as condições
que tornaram essa pro-
O que ambos os comentários deixam patente é que a possibilidade de jeção possível. Demons-
viver o próprio tempo de modo criativo está em íntima conexão com o tra a importância da pre-
apoio no tripé que compõe a experiência do tempo. Viver o presente, sim, visibilidade de inserção de
cada um no mundo e im-
mas sem desconsiderar que o que hoje ocorre tem seu fundamento no on-
plica, de um lado, a sen-
tem e que a vida vivida no presente alicerça as possibilidades do amanhã. As sação de “ter raízes”, a per-
dificuldades provocadas por um tempo em que o movimento constante e a cepção de “fazer parte de”,
impossibilidade de âncoras resistentes inviabilizam (ou obstam em grau e, de outro, a expectati-
máximo) a “segurança ontológica”29, considerada fundamento importante va de que é possível con-
da identidade socioindividual (Giddens, 1991 [1990], pp. 95-97), restrin- tinuar sendo aquilo que
se crê ser, pois permane-
gem igualmente as possibilidades de identidades bem constituídas. Parale-
cerão constantes as con-
lamente, fazem emergir questionamentos a respeito dessa temporalidade dições materiais e os am-
em que presente, passado e futuro parecem não mais compor as dimensões bientes nos quais a vida
constitutivas do tempo. se desenrola.

novembro 2005 29
Retomada de um legado intelectual, pp. 11-33

Entretanto, talvez seja o momento de acreditar que a história não apre-


senta problemas e questões impossíveis de serem resolvidos. Se isso for fei-
to, as dificuldades ora percebidas como rupturas ameaçadoras poderão ad-
quirir outra conotação, emergindo como ocasiões para descobertas que
dêem sentido novo a esse processo. Se o nosso é o tempo de uma tal mudan-
30. Conforme certa vi- ça que o próprio tempo já não se manifesta do mesmo jeito costumeiro30, é
são, “o futuro já não é o necessário aprender a conviver com ele – e nele. Se não podemos mais apelar
que costumava ser” (cf.
para o passado, nem parece promissor aspirar pelo futuro, é necessário que o
Vaz, 2003, p. 69). Se
presente seja desvendado e a partir dele seja construída uma nova perspecti-
existem mudanças na
qualificação e no signifi- va quanto à temporalidade. Isso significa, talvez, que a mudança de ênfase –
cado de qualquer uma de sem demasiado apego ao passado e sem expectativas inconseqüentes quan-
suas dimensões, sem dú- to ao futuro – possibilite a descoberta de respostas mais adequadas às de-
vida o próprio tempo mandas cotidianas e permita que sejamos contemporâneos do nosso pró-
sofreu mutação a ser con-
prio tempo.
siderada.

***

Vários outros temas abordando o objeto “juventude” poderiam ter sido


trazidos para esta discussão, na medida em que, como já foi mencionado e
se tentou demonstrar, a obra de Marialice Foracchi suscita interesses e in-
dagações além daqueles incluídos no debate sobre a condição de estudante
e o movimento estudantil. Entretanto, pelo tempo e espaço aqui disponí-
veis, teria sido impossível focalizá-los convenientemente; em virtude disso,
as considerações aqui expostas parecem provisoriamente suficientes para
marcar a retomada da herança intelectual que nos foi legada por “essa auto-
ra sensível, lúcida e esperançosa” (Martins, 1982).

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Resumo
Retomada de um legado: Marialice Foracchi e a sociologia da juventude
O artigo faz um balanço dos textos de Marialice Foracchi (1929-1972) em que são
trabalhadas questões relativas à juventude, sua situação e seu papel, ao conceito de
geração e à coexistência de gerações, destacando sua relevância e enfatizando a impor-
tância que mantêm ainda hoje para o tratamento desses temas. Paralelamente, aspectos
que configuram a questão contemporânea da juventude serão trazidos à discussão e
relacionados à obra dessa autora.
Palavras-chave: Juventude; Geração; Transição; Tempo; Sociologia da juventude.

Abstract
A legacy reappraisal Marialice Foracchi and the sociology of youth

The article reviews writings by Marialice Foracchi (1929-1972) regarding youth, its
situation and role, the concept of generation and the coexistence of generations, high-
lighting its relevance and emphasizing the weight these texts carry to this day in the
discussion of these issues. Aspects to do with youth nowadays are brought up, ana-
lyzed and compared to the ideas put forward in Foracchi’s writings.
Keywords: Youth; Generation; Transition; Time; Sociology of youth.

Texto recebido e aprova-


do em 23/11/2005.
Maria Helena Oliva
Augusto é professora do
Departamento de Socio-
logia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. E-mail:
mhoaugus@usp.br

novembro 2005 33
Por um novo significado do futuro
mudança social, jovens e tempo
Carmen Leccardi
Tradução de Norberto Luiz Guarinello

Introdução 1. Optamos por tradu-


zir o termo “differimen-
to” por “diferimento” –
Tradicionalmente, o mecanismo denominado “diferimento das recompensas” 1 –
e não por “adiamento”
a repressão dos impulsos hedonísticos, a determinação de adiar para um (“aggiornamento”, em
tempo vindouro a satisfação possível que o tempo presente pode garantir, italiano), mais comum –
em vista dos benefícios que esse adiamento torna possíveis – estava na base para manter o caráter
dos processos modernos de socialização. Se considerarmos a fase juvenil alusivo do termo tanto
à psicanálise, na qual se
como uma fase biográfica de “preparação” para a vida adulta, o diferimento
emprega como termo
das recompensas aparece como a chave mestra para garantir o sucesso des- técnico, como às teorias
sa última. Nessa perspectiva, com efeito, é em virtude da capacidade de desconstrutivistas à la
viver o presente em função do futuro – e, portanto, sacrificar os aspectos Derrida (N. E.).
“expressivos” das ações em favor daqueles instrumentais2 – que o processo 2. Pode-se considerar
de transição pode alcançar um resultado positivo. Aqui, o presente não é “expressiva” a ação que
apenas uma ponte entre o passado e o futuro, mas a dimensão que “prepa- não pressupõe nenhum
ra” o futuro. Da mesma maneira, o tempo de vida juvenil, graças à relação investimento temporal e
que entende a ação em
positiva com o presente, construída em torno do devir que ela prefigura,
si mesma como seu pró-
pode ser representado como um tempo de espera ativa, uma fase que deve prio objetivo. A dimen-
consentir uma transição por sua vez positiva para a idade adulta. Como são temporal com a qual
escreveu Alessandro Cavalli com relação à estreita conexão entre diferimento o agir expressivo é iden-
das recompensas e disciplina temporal: “Se o objetivo é determinado e tificado é o presente. As
atividades de consumo
desejável, também a necessidade de suportar ou de impor-se uma [...]
Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

podem ser consideradas, disciplina torna-se, subjetivamente, uma estratégia adequada” (Cavalli,
sob esse ângulo, um em- 1980, p. 523). A identidade pessoal, conseqüentemente, constrói-se em
blema da dimensão ex-
relação a uma projeção de si no tempo vindouro (o que quero ser?), graças
pressiva da ação. As ações
instrumentais, ao contrá- à qual não apenas o passado adquire sentido, mas também é tolerada uma
rio, são guiadas pela ra- eventual frustração que pode acompanhar as experiências do presente.
cionalidade do objetivo Portanto, se o futuro é considerado a dimensão depositária do sentido
(Zweckrationalität) e do agir3; se é representado como o tempo estratégico na definição de si, o
pressupõem a capacida-
veículo pelo qual, em direta ligação com o passado, a narração biográfica
de de se posicionar no
interior de um horizon-
toma forma, o diferimento da recompensa pode, então, ser aceito. Nessa
te temporal distinto do perspectiva, o futuro é o espaço para a construção de um projeto de vida4 e,
aqui e agora. ao mesmo tempo, para a definição de si: projetando que coisa se fará no
3. Nas sociedades oci- futuro, projeta-se também, paralelamente, quem se será. Em suma, a pers-
dentais, a partir da Re- pectiva biográfica à qual remete o diferimento das recompensas implica a
volução Francesa, e por presença de um horizonte temporal estendido, uma grande capacidade de
quase dois séculos, o autocontrole, uma conduta de vida para a qual a programação do tempo se
sentido do agir – não
torna crucial. O tempo cotidiano é cuidadosamente investido e desfrutado
apenas individual, mas
também coletivo – foi de modo análogo ao dinheiro; é programado, e seu uso, racionalizado.
ligado ao futuro. Ver, a Max Weber escreveu páginas memoráveis sobre essa orientação específica
propósito, as reflexões de da ação em A ética protestante e o espírito do capitalismo (cf. Weber, [1922]5
Neckel (1988). 1965).
4. “A biografia de um in- Esse mecanismo é ainda considerado evidente, e as novas condições tem-
divíduo é por ele apreen- porais do agir, mesmo que freqüentemente evocadas pelo discurso comum e
dida como [...] projeto”, também pela comunicação da mídia, muitas vezes não são adequadamente
ressaltam, por exemplo,
discutidas na reflexão sobre as construções biográficas juvenis6. É necessário
Berger, Berger e Kellner
(1973, p. 71). O proje- interrogar, por exemplo, se e em que medida a relação entre projeto, tempo
to, como se sabe, está no biográfico e identidade, que o diferimento das recompensas pressupõe,
centro das reflexões da pode ainda ser considerada válida em um clima social como o contemporâ-
sociologia fenomenoló- neo, no qual o componente de incerteza tende a dominar e onde fermentam
gica. Schutz, que reto-
as vivências contingentes (cf. Beck, 1999; Bauman 2000a). Com efeito,
ma o interesse de Hus-
serl pelo caráter partici- quando a incerteza aumenta para além de certo limiar e se associa não apenas
pativo do agir (o “ser com a idéia de futuro, mas com a própria realidade cotidiana, pondo em
orientado para”), anali- causa a dimensão do que é considerado óbvio, então o “projeto de vida” tem
sa-o, por exemplo, em seu próprio fundamento subtraído. Além disso, quando a mudança, como
relação à ação, conside-
ocorre em nossos dias, é extraordinariamente acelerada, e o dinamismo e a
rada um “comporta-
mento projetado”, e es-
capacidade de performance são imperativos, quando o imediatismo é um pa-
tuda sua estrutura tem- râmetro para avaliar a qualidade de uma ação, investir num futuro a longo
poral. Cf. Schutz (1971). prazo acaba parecendo tão pouco sensato quanto adiar a satisfação. Mais do
que renunciar às recompensas que o presente pode oferecer, convém então

36 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

estar treinado para “aproveitar o instante”, para não fechar a porta ao impre- 5. A data entre colche-
visto, dispor-se mentalmente em termos positivos com relação a uma inde- tes refere-se à edição ori-
ginal da obra. Ela é
terminação carregada de potencialidade7.
indicada na primeira vez
Nesse horizonte temporal comprimido, o próprio significado da ida- que a obra é citada. Nas
de juvenil se transforma. Quem a vivencia tende a apreciá-la mais por demais, indica-se so-
aquilo que pode oferecer no presente do que pelo tempo futuro que ela mente a edição utiliza-
virtualmente descortina. Conseqüentemente, os desejos e as exigências da pelo autor (N.E.).
estruturam-se em relação ao presente: a “boa vida” não se baseia mais em 6.A esse respeito, per-
um compromisso de longa duração, a idéia de estabilidade perde valor mito-me remeter a Lec-
(cf. Rosa, 2003). cardi (2005a, pp. 123-
146).
Para compreender de maneira adequada a profundidade dessas trans-
formações, concentrarei minha atenção primeiro nas ênfases e nos aspectos 7.Para uma reflexão so-
bre esse ponto de vista
semânticos novos que caracterizam a dimensão do futuro, tendo o cuidado
existencial, ver Bauman
de esclarecer preliminarmente as modificações de significado que investi- (2000b).
ram a concepção do devir na trajetória em direção à modernidade. Em um
segundo momento, deter-me-ei nas transformações contemporâneas do
modo de conceituar o transcorrer da vida juvenil e o projeto biográfico.
Utilizando os resultados de uma pesquisa recente realizada na Itália sobre a
relação entre jovens e temporalidade, da qual participei pessoalmente8, 8. Os resultados da pes-
analisarei algumas formas novas de criação de projetos juvenis, fruto da quisa, de âmbito nacio-
nal e de tipo qualitati-
crise da juventude como fase de transição para a idade adulta e do mecanis-
vo, realizada em 2002-
mo de diferimento das recompensas que está em sua base.
2003, estão em Crespi
(2005).
Futuro e consciência do tempo

As orientações temporais sociais podem ser consideradas um indicador


das diferentes “épocas cognitivas” da humanidade, dos diferentes modelos de
mundo que se sucederam no curso do processo de civilização. Como
Norbert Elias ([1984] 1986) esclareceu, a consciência temporal, o modo de
conceber e de vivenciar o tempo, não é nem um dado biológico, nem um
dado metafísico. Trata-se, antes, de uma dimensão social que muda com a
sucessão das gerações, de acordo com seus diferentes habitus, com as dife-
rentes condições de desenvolvimento das sociedades nas quais elas vivem.
De acordo com essa interpretação, a capacidade de temporalização seria o
resultado de um longo e difícil processo evolutivo, em escala plurissecular,
procedendo do concreto em direção ao abstrato. Em outros termos, quan-
to mais as sociedades se diferenciam, mais os conceitos temporais tendem à
abstração, a um grau mais elevado de síntese conceitual.

novembro 2005 37
Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

Nesse processo, o modo de interpretar e de relacionar passado, presente


e futuro também aparece como uma variável. Ele se transforma, segundo
Elias, por meio de uma tendência análoga, segundo a qual o ponto focal da
atenção se desloca da concretude do presente para uma dimensão, como a
do futuro, não passível de experiência direta, apenas imaginária.

Assim como nas sociedades pré-estatais as cadeias de interdependência são compa-


rativamente mais curtas, da mesma maneira, entre seus membros, a percepção do
passado e do futuro como separados do presente é menos desenvolvida. Na expe-
riência desses homens o presente imediato, o aqui e o agora, tem um peso maior
que o passado, por um lado, e que o futuro, por outro. Também o agir humano é
dirigido, em seu grau máximo, para necessidades e impulsos presentes. Nas socie-
dades mais tardias, pelo contrário, o passado, o presente e o futuro são claramente
diferenciados. A necessidade e a capacidade de prever e levar em conta um futuro
relativamente longínquo exercem uma influência cada vez maior sobre todas as
atividades [...] (Idem, pp. 169-170).

Na mudança descrita por Elias sintetiza-se, como teremos ocasião de


considerar ao analisar as transformações da idéia de futuro, um percurso
que resume bem a passagem da “tradição à modernidade”.
Na época moderna, o futuro torna-se o novo centro da práxis humana,
a aposta, o risco e o desafio com os quais é necessário defrontar-se. Pela
primeira vez, com a modernidade, perdem a eficácia instâncias extra-his-
tóricas às quais se possa imputar sua criação. O futuro depende inteira-
mente do agir dos sujeitos; o mesmo acontece com a história. Ambos são
construídos e projetados.
A idéia moderna de futuro com a qual nos acostumamos – uma dimen-
são separada do presente e distinta do passado, controlável e planificável –
nasce em uma época relativamente recente, entre os séculos XVII e XVIII,
com a afirmação da concepção linear do tempo na razão cultural européia
9.Luhmann (1978) re- (cf. Gourevitch, 1975)9. Gostaria de deter-me brevemente sobre essa con-
corda que remonta ao cepção e sobre as diferenças entre as imagens de futuro nas duas percep-
período da Revolução ções, cíclica e linear do tempo, antes de considerar a categoria de futuro
Francesa o uso comum
aberto, ponto cardinal da (primeira) modernidade.
do termo futuro.
A consciência dos homens primitivos não percebe a mudança como
ruptura e descontinuidade. O futuro, por esse ângulo, não se diferencia do
passado. No novo, a mentalidade primitiva reencontra o antigo. Uma con-
cepção linear do tempo, com efeito, está totalmente ausente nas socieda-

38 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

des arcaicas. O tempo não escorre do passado ao futuro, mas é interpreta-


do segundo um esquema cíclico: o que já foi será novamente, apenas um
intervalo mais ou menos longo separa passado e futuro. São os ritmos da
natureza, a sucessão das estações e os ritmos produtivos que aqueles caden-
ciam que constituem os parâmetros temporais sociais. O tempo, aqui, não
é separado da ação ou de seus conteúdos: falta, em outros termos, qual-
quer conotação do tempo como entidade abstrata e quantificável.
Pelo contrário, o pensamento arcaico diferencia, como se sabe, entre
um tempo sagrado e um tempo profano (cf. Eliade, [1948] 1976; Dur-
kheim, [1912] 1963). O primeiro permite, por intermédio da festa e do
rito, a reprodução do tempo original, do tempo mítico. O segundo é um
tempo de preparação para a irrupção do primeiro na vida social, útil para
cadenciar os ritmos temporais, para separar claramente as áreas simbólicas
do mágico, do extraordinário, daquelas da vida ordinária. Nesse mundo
temporal descontínuo, centrado no presente, reversível, medido por even-
tos concretos, o tempo sagrado permite não apenas a perpetuação do uni-
verso, como também o “enganar” a morte.
Inexiste, nessa concepção do tempo, a idéia de futuro a longo prazo. Para
além do que ocorre no imediatismo do ambiente circunstante, estende-se
uma cortina que impede observar o tempo, interrogar-se sobre seu signifi-
cado. Para lá do presente, abre-se o território misterioso da lenda, do mito,
do qual só é possível aproximar-se por intermédio da dimensão do ritual.
De fato, todas as três áreas temporais, do passado, do presente e do futuro,
aparecem indistinguíveis umas das outras – todas as três são igualmente
subtraídas do controle humano. O mito do eterno retorno as estrutura.
Uma importância análoga da dimensão mítica da realidade dá forma à
consciência temporal helênica (cf. Vernant, [1965] 1970). Apesar de no
pensamento grego conviverem diferentes dimensões temporais, é sobretu-
do a concepção cíclica do tempo que de fato prevalece. Também nesse ce-
nário é o passado mítico, e certamente não o futuro, o coração do mundo
social. Mais uma vez, o destino governa o tempo: tanto os seres humanos
como os deuses estão submetidos a seus desejos. A percepção do tempo
resultante é essencialmente estática e externa ao conceito de evolução histó-
rica. Na Antigüidade, como afirma Gourevitch, a história coincide com “o
eterno retorno das mesmas formas políticas segundo uma ordem determi-
nada” (1975, p. 263).
A ruptura dessa imagem temporal relaciona-se com a difusão da con-
cepção cristã do tempo, a partir de uma trajetória longa e complexa. O

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Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

tempo, segundo essa concepção, não avança mais por um movimento cir-
cular, mas linear. O tempo terrestre (tempus) e o tempo da eternidade
(aeternitas) são separados conceitualmente: abre-se, assim, o primeiro es-
paço para a representação do tempo como entidade potencialmente con-
trolável pelos seres humanos.
Diferentemente do helênico, o tempo cristão não olha mais apenas para
o passado. Nem, como o tempo hebraico expresso no Antigo Testamento,
apenas para o futuro. Passado, presente e futuro inscrevem-se, todos ple-
namente, no fluir incontido do tempo que se estende entre os dois pólos –
da Gênese, por um lado, e do Apocalipse, por outro. No centro desse fluir
há o advento de Cristo (cf. Pattaro, 1975). É a dimensão vetorial – depois
herdada e transformada pela sociedade industrial – que se torna dominan-
te. Parte-se “de” para chegar “ao” último dia do mundo: a fé garante a
riqueza do sentido desse percurso.
Contrastando com a visão cíclica do tempo, fortemente presente na
cultura helênica, a concepção cristã afirma que o que ocorre no tempo
acontece apenas uma vez, é algo único e carregado de significado. O tem-
po histórico adquire consistência e estrutura-se como uma arena na qual se
expressa o livre-arbítrio: mesmo se, em última instância, a participação
humana na história é iluminada pelo fato de ser parte de um projeto divi-
no. Os atores desse tempo são, em primeiro lugar, Deus, em cujas mãos
passado, presente e futuro são confiados, e, em segundo lugar, o conjunto
da comunidade cristã; nunca o indivíduo. Em outras palavras, a idéia de
futuro, assim como a de história, apenas se torna patrimônio da humani-
dade em virtude do fato de os seres humanos serem criaturas divinas.
O futuro humano conhece, entretanto, um limite supremo: é fechado
pelo Apocalipse, o ponto final da história. O tempo cristão parece, assim,
essencialmente dramático, não apenas em razão da existência desse limite
intransponível, mas também pela conotação da vida terrestre como uma
eterna disputa entre bem e mal.

Modernidade e “futuro aberto”

A modernidade laiciza essa concepção do tempo. O tempo permanece


vetorial, mas “é expurgado de qualquer idéia de um fim e esvaziado de
qualquer outro sentido senão o de ser um processo estruturado por um
antes e um depois” (Agamben, 1978, p. 97). Um esquema desse tipo,
como sublinha Agamben, é o mais funcional – com seu tempo homogê-

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Carmen Leccardi

neo, sem qualidade, incontido e intercambiável – para a difusão das ma-


nufaturas. Aparece como conditio sine qua non para a utilização de máqui-
nas no trabalho humano. A partir da nova organização do trabalho na
sociedade industrial, o tempo linear da concepção judaico-cristã é englo-
bado em uma concepção de mundo radicalmente diferente, secularizada.
O progresso (mundano) toma o lugar da perfeição (espiritual). Nas pala-
vras de Koselleck, essa passagem substitui “a doutrina do julgamento uni-
versal pelo risco de um futuro aberto” (1986, p. 311). Novidade absoluta,
o futuro é subtraído da dupla influência divina e natural, e submetido ao
domínio humano. Abre-se, assim, tanto ao novo como ao incerto.
Formulado pela filosofia iluminista, o conceito de futuro aberto exerce-
rá, ao menos por dois séculos, uma influência profunda e difusa nos esque-
mas culturais da modernidade. Evaporada a idéia de um plano divino para
o futuro, o devir aparece ligado, por um duplo fio, às escolhas e às decisões
do presente.
Um universo cada vez mais “futurista” suplanta o universo “passadista”
anterior à Revolução Francesa. Nas palavras de Pomian, “desloca-se o cen-
tro de gravidade do tempo”, invertendo os fundamentos da tradição. Um
mundo

[...] no qual se procurava apenas produzir o que já fora, imitar respeitosamente os


exemplos transmitidos pela tradição ou tomados daquela que se julgava ser a natu-
reza, conformar-se a um costume imemorial [é substituído por] um mundo no
qual a maior estima é atribuída à inovação, à invenção, à descoberta, tanto econô-
mica como científica ou técnica; no qual o primado nas artes, nas letras e mesmo
nos costumes é concedido ao que é original, inédito, nunca visto; no qual as ante-
cipações prevalecem sobre os hábitos e as expectativas sobre as recordações (Pomian,
1981, p. 108).

Conseqüentemente, expectativas sobre o futuro e experiências amadu-


recidas no passado não são mais correspondentes: o progresso as dissocia.
O movimento e a transformação contínua e acelerada do ambiente social
enfraquecem a experiência, impedindo-a de aparecer no horizonte das ex-
pectativas (cf. Koselleck, 1986). O futuro, de modo análogo à história,
não pode, com efeito, repetir-se: por antonomásia, é o reino do novo, do
inédito, é um agente do progresso (o futuro será sempre melhor que o
passado). É desse futuro, e não mais do passado, que se origina a nova
identidade temporal das sociedades ocidentais.

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Em concordância com o profundo otimismo da ideologia do progresso,


uma ideologia que permeou de modo maciço a vida do Ocidente de meados
do século XVIII a meados, aproximadamente, do século XX, o controle so-
bre o futuro foi dado como evidente. O tempo aberto e irreversível do futuro
avança, sem incertezas, na direção de um indiscutível melhoramento.
A perda da instância extra-histórica na relação com o futuro faz conver-
gir a atenção sobre a autonomia do indivíduo: não mais sua posição defini-
da, mas sua capacidade de projetar-se individualmente torna-se a fonte pri-
mária de identidade e o princípio organizador da biografia. O futuro
aparece, com efeito, como um horizonte temporal subjetivamente influen-
ciável, à disposição dos indivíduos como espaço de experimentação. Como
já se sublinhou, a distância entre “o que acontece e o que se pode fazer” e a
exigência de superá-la estão na base da própria idéia de indivíduo moderno
(cf. Bauman, 1995).
Do ponto de vista funcional, a projeção do tempo torna-se o equivalente
moderno das práticas mágicas das sociedades arcaicas: ele aparece como um
antídoto racional contra a incerteza gerada pelo futuro. Com a conquista
humana sobre o devir, operada pela modernidade, nasce, com efeito, o pro-
blema da morte. O mundo moderno postula, como já se escreveu, “uma
infinidade de tempo em um universo indiferente à existência humana”
(Spencer, 1986, p. 686). Se a Weltanschauung religiosa trazia a vida humana
para o centro do cosmos, o universo da modernidade, guiado por forças não
espirituais, a vê como um “mero acidente ou uma excrescência” (Idem,
ibidem). Assegurar-se do futuro, projetando-o, é também um modo de
controlar a inquietação que essa situação gera. No futuro aberto, liberdade
e incerteza aparecem, com efeito, como as duas faces de uma mesma cabeça.
A partir do fim da Segunda Guerra Mundial, e com uma aceleração
progressiva, essa vivência da incerteza transforma-se em um comporta-
mento verdadeiramente defensivo. O futuro começa a ser mais temido
que almejado; seu pensamento torna-se freqüentemente, sempre que pos-
sível, exorcizado. A expressão “crise do futuro” sintetiza bem esse difuso
mal-estar (cf. Pomian, 1981).

“Segunda modernidade”, ricos globais e crise do futuro

É conveniente esclarecer, agora, a distinção, implícita nessas reflexões,


entre uma “primeira” e uma “segunda” modernidade. Seguindo a proposta
analítica de Ulrick Beck (1999), podemos definir como primeira moderni-

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Carmen Leccardi

dade o período que se estende do início da modernidade industrial, entre


os séculos XVII e XVIII, até o início do século XX, período no qual domina
a realidade do Estado-nacional e cuja lógica vencedora é a do progresso
associada à idéia de controle (em primeiro lugar sobre a natureza). Identi-
dades e papéis sociais aparecem estreitamente interligados em seu interior.
A segunda modernidade, pelo contrário, a modernidade contemporânea,
filha do sucesso da modernização, parece cada vez mais governada por pro-
cessos como a intensificação da globalização e dos mercados globais, o
pluralismo dos valores e das autoridades, o individualismo institucionali-
zado. No plano cultural, parecem favorecidas as formas de identidade
compósita, nas quais elementos globais e locais se misturam, impondo a
convivência conflituosa entre diferentes imagens de si, as “identidades cos-
mopolitas” (cf. Beck, 2004).
Como sabemos por nossa experiência direta, e não apenas por reflexões
teóricas, essa modernidade caracteriza-se por uma dimensão de riscos glo-
bais: crise ambiental, terrorismo internacional, ameaças econômicas (mas
também, por exemplo, sanitárias) de tipo planetário, novas modalidades de
desigualdade social, a partir do empobrecimento crescente de áreas cada vez
mais vastas do planeta, e, associadas a essa última, novas formas de subocu-
pação com reflexos devastadores no plano existencial. Nesse cenário, há
cada vez menos espaço para dimensões como segurança, controle, certeza,
todos os aspectos que contribuíram para definir o perfil social da primeira
modernidade. Enquanto essa última pode ser, assim, considerada a expres-
são do projeto iluminista de superação da idéia de limite – de qualquer li-
mite, a partir daqueles ligados ao conhecimento –, a modernidade contem-
porânea obriga-nos a confrontar a impossibilidade da idéia de controle (cf.
Leccardi, 1999). Se o futuro que a primeira modernidade observava era o
futuro aberto, o futuro da modernidade contemporânea é o futuro indeter-
minado e indeterminável, governado pelo risco.
Detenhamo-nos brevemente sobre essa dimensão, que se revela de uma
importância estratégica para compreender o alcance das mudanças ocorri-
das na interpretação e no estranhamento do futuro. O risco aparece, nesse
cenário, mais como resultado da perda de relação entre intenção e resulta-
do, entre racionalidade instrumental e controle, do que, na acepção cientí-
fica comum, como relação entre um evento e a probabilidade de que este
ocorra. Enquanto, na primeira modernidade, o termo risco era substanti-
vamente conceituado como uma modalidade de cálculo de conseqüências
não previsíveis – tratava-se, em suma, de “tornar previsível o imprevisível”

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Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

mediante o cálculo probabilístico –, na modernidade contemporânea a


reflexão sobre os riscos impõe instrumentos conceituais de outra ordem.
Esses riscos não parecem governáveis pelos métodos da racionalidade ins-
trumental, são riscos de alcance global e sua prevenção torna-se particular-
mente difícil. Uma espécie de “realidade virtual”, uma realidade in fieri com
caráter ameaçador, envolve o futuro em um manto de pesada incerteza.
A peculiar incerteza que esses riscos geram está ligada, sobretudo, a seu
caráter humanamente produzido, resultado do crescimento do conhecimento
que caracteriza nossa época: riscos imponderáveis mas humanamente pro-
duzidos são as mudanças climáticas – basta pensar no buraco da camada
de ozônio – ou os riscos ligados à energia nuclear; o mesmo é válido para
doenças como a BSE (“doença da vaca louca”) ou a SARS (“gripe asiáti-
ca”). Em uma época de riscos globais como a nossa, portanto, interrompe-
se o imponente processo de “colonização do futuro” posto em marcha pela
primeira modernidade. O futuro foge de nosso controle, com repercus-
sões profundas nos planos político e social. A nova realidade produzida
pela difusão de riscos globais transforma o futuro da terra prometida num
cenário pintado com tintas foscas, se não abertamente ameaçadoras, para a
existência coletiva.
É importante ressaltar o vínculo estreito entre essa categoria particular
de riscos e o futuro. Por sua própria constituição, com efeito, esses riscos
são, por assim dizer, “construídos” e alimentados em sentido próprio pela
relação com o futuro – embora nada nos digam sobre o que, de positivo,
devamos perseguir no futuro. Não nos falam de um “bem”, mas concen-
tram a atenção exclusivamente sobre os “males” que o futuro pode difun-
dir. A idéia de futuro a que conduzem é, portanto, não determinada e, ao
mesmo tempo, marcada por um sentimento difuso de alarme, associado a
uma sensação de impotência.

Novas formas de temporalização

Os cenários de riscos imensos acima mencionados – e capazes, entre


outras coisas, de projetar-se sobre arcos temporais também muito estendi-
dos: a distância temporal entre as ações e seus efeitos, na época do risco,
pode tornar-se decisivamente consistente (cf. Adam, 1998, 1999) – têm
influência sobre os modos de temporalização, sobre os quais convém agora
que nos detenhamos. Se, com o termo temporalização, entendemos a pers-
pectiva segundo a qual passado e futuro, experiências e expectativas, de-

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Carmen Leccardi

vem ser continuamente relacionados uns com os outros e sempre coorde-


nados de novo10, não é difícil perceber que em uma época de riscos difusos 10.Ver, a propósito, as
a capacidade de apreender o tempo tende a fragmentar-se. Um horizonte reflexões de Koselleck
(1986).
futuro, ocupado pela dimensão do risco, impede, por exemplo, a constru-
ção de narrativas biográficas nas quais um evento qualquer apareça relacio-
nado a um outro e seja capaz, de modo inteligível, de condicioná-lo.
Analisando os reflexos temporais das condições de incerteza contempo-
rânea, Zygmunt Bauman, por exemplo, afirma:

No passado, os períodos de tempo recebiam seu próprio significado da antecipação


de novos segmentos, ainda por acontecer, do continuum temporal; agora, esperamos
que extraiam seu próprio sentido, por assim dizer, de seu interior: que se justifi-
quem sem nenhuma referência ao futuro, ou referindo-se a ele de maneira apenas
superficial. Os intervalos de tempo dispõem-se um ao lado do outro e não em uma
progressão lógica; não há uma lógica pré-ordenada em sua sucessão; podem mudar
facilmente de posição, sem transgredir nenhuma regra de ferro: os setores do
continuum temporal são, em teoria, intercambiáveis. Qualquer momento específi-
co deve autolegitimar-se e oferecer a máxima satisfação pessoal (2000c, p. 83).

Essa pulverização da experiência do tempo – é quase inevitável – con-


duz a uma atenção especial em relação ao presente, “a única dimensão do
tempo que é freqüentada sem desconforto e sobre a qual a atenção se de-
tém sem dificuldade” (Tabboni, 1986, p. 123). Também nesse caso os
jovens são um termômetro particularmente sensível dessas transformações.
Já nos anos de 1980, as pesquisas sobre o tempo dos jovens11 registravam, 11. Ver, para a Itália,
por exemplo, a passagem do futuro para o presente, em particular para o Cavalli (1985). Tive a
possibilidade de partici-
“presente estendido”, como área de governo potencial do tempo social e
par pessoalmente dessa
individual.
pesquisa, a primeira na
Com o termo “presente estendido” entende-se o espaço temporal que Itália a defrontar-se, no
bordeja o presente, adquirindo um valor crescente, paralelamente à acele- início dos anos de 1980,
ração temporal contemporânea, favorecida pela velocidade dos tempos tec- com esse importante as-
nológicos e pela exigência de flexibilidade que é seu corolário. Segundo pecto da condição juve-
nil contemporânea.
Helga Nowotny (1994), que aprofundou esse conceito, tendo-se abolido a
categoria agora pouco funcional de futuro, torna-se necessário reformular
o conceito de presente, constituindo-o como referente central dos hori-
zontes temporais contemporâneos. Nessa perspectiva, não mais o futuro,
mas o presente mais próximo – o lapso temporal suficientemente breve
para não fugir ao domínio humano e social, mas também suficientemente

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amplo para consentir alguma forma de projeção para além no tempo –


tornar-se-ia o novo tempo da ação. Nos quadros temporais de fins do
século XX, em suma, o presente (ora mais, ora menos estendido) aparece
como a única dimensão temporal disponível para a definição das escolhas,
um verdadeiro horizonte existencial que, em certo sentido, inclui e substi-
12. Segundo o filósofo tui futuro e passado12.
alemão Hermann Lübbe Nesse contexto, parece claro o esgotamento da própria idéia de projeto –
(1998), em virtude dos que podemos definir aqui como uma forma de seleção, subjetivamente
intensos processos de
construída, entre múltiplos “futuros virtuais” disponíveis, capaz de destilar,
mudança, nos quais a
velocidade da inovação das fantasias e dos desejos que o substantivam, objetivos alcançáveis, dota-
tecnológica alia-se à ace- dos de uma clara medida temporal13. Mas pode-se ainda falar em biografia,
leração dos ritmos de em sentido próprio, na ausência de projeto? A primeira modernidade deli-
vida em um espaço glo- neou um cenário no qual não apenas os dois termos se correspondem res-
balizado, também a di-
pectivamente, mas também projeto coletivo e projeto individual represen-
mensão do presente, em
nossos dias, acabaria por tam duas faces da mesma moeda. Os objetivos do projeto coletivo –
contrair-se. Verificar-se- liberdade, democracia, igualdade, bem-estar econômico – aparecem como
ia, nesse caso, uma per- as condições básicas para a realização do projeto individual. As biografias,
da do próprio presente por sua vez, estruturam-se em torno dessa coincidência. A segunda moder-
– e não apenas do futu-
nidade tende a apagar, com a idéia de continuidade temporal, também a
ro – como espaço da es-
idéia de projeto antes construída pelo ápice da modernidade. Hoje nos con-
colha e da elaboração re-
flexiva da ação. frontamos, portanto, com construções biográficas de um caráter inédito,
desvinculadas das formas de projeto tradicionalmente entendidas.
13. Aprofundei-me nes-
se tema no volume Fu- Podemos tomar emprestado de Lévi-Strauss (1962) o conceito de bri-
turo breve (1996), dedi- colage – figura do pensamento mágico e arcaico – para enfocar o estilo
cado ao estudo das for- cognitivo particular que lhes serve de guia. Para Lévi-Strauss, o bricoleur é
mas projetivas das mu- aquele que executa um trabalho com as próprias mãos empregando instru-
lheres jovens.
mentos distintos daqueles usados por um profissional. Observando-o, o
que chama a atenção é sua capacidade de adaptar-se aos materiais disponí-
veis, de construir passo a passo o equipamento necessário. Na falta de um
projeto específico no início, as ferramentas são criadas ao sabor do mo-
mento. Nenhum elemento do conjunto sobre o qual o bricoleur atua está
vinculado a um emprego predeterminado; o resultado do trabalho liga-se
às condições e aos meios com os quais o sujeito se confronta a cada instan-
te. Os resultados do trabalho empreendido são, portanto, por definição,
contingentes. Mas não só. O resultado final pode facilmente ser estranho à
intenção inicial. Em certo sentido, o bricoleur – guiado por uma lógica
essencialmente “prática” – personifica a separação entre racionalidade e
intencionalidade.

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Carmen Leccardi

Alberto Melucci (1998) evocou a figura do “nômade” como metáfora


das trajetórias biográficas contemporâneas14. Os “nômades do presente” 14.Sobre as novas tra-
não perseguem uma meta, mas avançam/exploram envoltos pelo provisó- jetórias biográficas,
rio. Não se defrontam com a idéia de uma fronteira, com uma idéia que ver também Bauman
(1996).
ligue espaço e tempo a algo que “está à frente” e, como tal, deve ser “en-
frentado” (Cassano, 1995, pp. 118-132). As fronteiras, no universo
mediático em que vivemos, estão escancaradas. Os “nômades do presente”
rodeiam, sem uma meta precisa, por lugares não conectados, estações sin-
gulares de suas biografias, cujas conexões podem ser eventualmente iden-
tificadas como resultado de uma reflexão ex post, e não com base em um
projeto. A memória de longo prazo, que atravessa o tempo pessoal de vida,
assim como a projeção no futuro não imediato, tende a permanecer, aqui,
universo mudo. O tempo fragmenta-se em episódios, cada qual com seu
próprio sistema temporal de referência.
Adquire força, nesse contexto, a tendência à experimentação – entendi-
da, entretanto, não segundo a costumeira referência a um itinerário mar-
cado por experimentos e erros, com o objetivo de identificar as vias mais
idôneas para atingir um dado objetivo. O processo é invertido: experi-
mentam-se “aplicações sempre diferentes das capacidades, dos talentos e
dos outros recursos que possuímos, acreditamos possuir ou esperamos
possuir” procurando “qual resultado nos dá a maior satisfação” (Bauman e
Tester, 2002, p. 36). Daí deriva uma orientação para a ação pela qual “o
segredo do sucesso consiste em não ser demasiadamente conservador, evi-
tar acostumar-se com um caso particular, ser móvel e estar sempre ao al-
cance da mão” (Idem, p. 38).

Uma nova semântica do futuro

Os reflexos desses processos sobre os modelos de ação, sobre os modos


de interpretar a realidade, sobre os estilos de vida e os modos de definição da
identidade, podem ser facilmente intuídos. Seguindo o tema abordado
neste estudo, gostaria, em particular, de chamar a atenção para o papel que
essas mudanças exercem sobre o colocar, ou recolocar, em questão a pró-
pria fase de vida juvenil. Por definição, com efeito, esta possui uma dupla
conexão com o tempo: por um lado, é considerada uma condição provisó-
ria, destinada a desaparecer com o transcorrer do tempo; por outro, como
já ressaltamos amplamente, os jovens são socialmente solicitados a cons-
truir formas positivas de relação entre seu próprio tempo de vida e o tem-

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po social. Essa relação substanciava-se, até alguns decênios atrás (para os


sujeitos do sexo masculino), em fases biográficas lineares e bem reconhecí-
veis: primeiramente a preparação para o trabalho, por meio da formação
escolar; depois o exercício de um trabalho remunerado, fonte central de
identidade e signo indiscutível da idade adulta; por fim, a aposentadoria.
Hoje, essa trajetória biográfica, capaz de garantir um percurso previsí-
vel para o ingresso na vida adulta, constitui não mais a regra, mas a exce-
ção. Para os jovens, o processo de desinstitucionalização do curso da vida,
que arrasta consigo igualmente o conceito de “biografia normal”, compor-
ta o desaparecimento de um aspecto até aqui determinante na reflexão
sobre a condição juvenil: a identificação da juventude como um conjunto
de etapas, socialmente normativas, que conduzem progressivamente em
direção ao mundo adulto (cf. Côté, 2000; Pollock, 2002, pp. 59-72;
Skelton, 2002). Essas etapas, habitualmente sintetizadas pelo termo “tran-
sição”, identificavam a fase de vida juvenil como uma “travessia” guiada
15. Martin Kohli, soció- por passagens de status. Como nas três fases biográficas indicadas por Kohli15,
logo suíço e professor da também aqui a relação entre indivíduo e instituições era garantida pela
Universidade Livre de trama entre tempo da vida e tempo social, sobre a base de uma seqüência
Berlim desde 1977, rea-
linear facilmente reconhecível. Tornava-se adulto, em sentido pleno, aquele
lizou várias pesquisas e
é autor de vários livros que tivesse percorrido o trajeto que previa, em uma sucessão rápida, “eta-
e artigos sobre as idades pas” como a conclusão dos estudos, a inserção no mundo do trabalho, o
da vida e as gerações. Ver abandono da casa dos pais para morar independentemente, a construção
Kohli (1985) (N. E.). de um núcleo familiar autônomo e o nascimento dos filhos. Hoje, embora
esses acontecimentos ainda devam, em algum momento, verificar-se, de-
sapareceram tanto sua ordem e irreversibilidade como a moldura social
que lhes garantia seu sentido global.
Essa moldura de sentido, mais do que da seqüencialidade, da lineari-
dade e da rápida sucessão de cada etapa particular, era fruto do valor
simbólico do qual, no seu conjunto, elas se revestiam na vida do indiví-
duo jovem. Por seu intermédio, com efeito, ao mesmo tempo que se
confirmava o caráter “finito” da fase de vida juvenil, os dois pólos da
autonomia (interior) e da independência (social) podiam entrar numa
conjunção positiva. A juventude concebida como fase de transição, em
uma palavra, permitia pensar a relação entre identidade individual e iden-
tidade social como uma relação entre duas dimensões não apenas com-
plementares, mas superpostas de modo praticamente perfeito. A certeza
de ter alcançado a autonomia interior era garantida pela progressiva pas-
sagem a degraus cada vez mais elevados de independência, possibilitados

48 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

pela relação com instituições sociais com suficiente credibilidade e não


fragmentadas.
Hoje o cenário, em termos gerais, alterou-se. As instituições sociais
continuam a cadenciar os tempos do cotidiano, mas desapareceu sua ca-
pacidade de garantir aos sujeitos uma dimensão fundamental na constru-
ção da individualidade: o sentido da continuidade biográfica. Como já
foi comentado, na sociedade do “risco mundial”, uma trajetória social-
mente normalizada em direção à idade adulta deixou de existir16. O pon- 16. A literatura sobre esse
to de chegada dessa trajetória, por sua vez, é incerto, bem como os itine- tema já é vastíssima. Em
rários para alcançá-lo. A continuidade biográfica torna-se, assim, fruto da caráter indicativo, ver
Bynner, Chisholm e Fur-
capacidade individual de construir e reconstruir, sempre de novo, moldu-
long (1997); Cavalli e
ras de sentido, narrativas sempre novas, a despeito da moldura temporal Galland (1993); Du Bois-
presentificada. Reymond (1998, pp. 63-
A obrigação de “individualização” das biografias – em busca das solu- 79); Furlong e Cartmel
ções biográficas mais adequadas para resolver as contradições sistêmicas do (1998); Wyn e White
(1997). Ver também Lec-
momento – caracteriza, conseqüentemente, a fase histórica em que vive-
cardi e Ruspini (2005).
mos (cf. Beck e Beck-Gernsheim, 2003). Isso implica uma nova ênfase na Para uma análise detalhada
autodeterminação, na autonomia e na escolha (sem apagar, obviamente, dos processos de transfor-
os sulcos profundos traçados pelas diferenças de classe, de pertencimento mação da condição juve-
étnico e, num plano talvez menos evidente, mas não menos poderoso, de nil na Itália, ver os volu-
mes organizados pelo
gênero). Para os jovens, tudo isso se traduz na conquista de novos percur-
Istituto Iard nos últimos
sos de liberdade e de espaços de experimentação, mas também na perda do
vinte anos.
caráter evidente de uma relação positiva com o tempo social.
Se é verdade que o “prolongamento” da fase juvenil da vida constitui,
hoje, seu aspecto mais em evidência, a transformação decisiva consiste, en-
tretanto, no desaparecimento da possibilidade de ancorar as experiências
que os jovens realizam – nessa fase, como sabemos, as experiências se suce-
dem com uma intensidade existencial e um ritmo quase único – no mundo
das instituições sociais e políticas. A crise do futuro, e do projeto, que analisa-
mos nestas páginas, é uma expressão direta dessa dificuldade.

Munir-se para o confronto com o futuro na “sociedade do risco”:


as novas tendências da juventude

Para os jovens, no centro dessa crise está a separação entre trajetórias


de vida, papéis sociais e vínculos com o universo das instituições capa-
zes de conferir uma forma estável à identidade. Assim, por exemplo, é
possível entrar no mercado de trabalho, sair dele pouco depois e reingressar

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Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

novamente, sem que se possa identificar nesses ingressos uma progres-


são em direção à incorporação de papéis adultos; ou, no que se refere
aos estudos universitários, interrompê-los, retomá-los e depois concluí-
los, sem que a aquisição de credenciais educacionais superiores repre-
sente uma verdadeira “reviravolta” no plano biográfico, um empowerment
capaz de abrir o caminho para situações existenciais com um sentido
novo: não apenas sob o ponto de vista da estabilidade do trabalho, mas
também, na Europa mediterrânea, por exemplo, no que diz respeito à
escolha entre viver só ou com um parceiro, ou mesmo de construir um
núcleo familiar próprio. Em suma, a autonomia existencial dissocia-se
da aquisição da independência social e econômica.
É essencial, entretanto, que não limitemos a reflexão apenas aos aspec-
tos de perda, de redução das possibilidades de ação, associadas aos proces-
sos de redefinição temporal da segunda modernidade. Existe, com efeito,
uma vertente diferente desses mesmos processos, uma faixa de luz que é
preciso analisar com igual atenção. Sobre ela projetam-se as estratégias que
os sujeitos constroem para enfrentar essas transformações e, sempre que
possível, controlá-las. Como revelou pesquisa recente sobre as alterações
nos modos de os jovens viverem sua relação com o tempo – mencionada no
17.Ver, em particular, início destas reflexões17 –, o resultado desses importantes processos de rees-
Leccardi (2005b). truturação da relação entre jovens, tempo biográfico e tempo social não se
reduz à absolutização do presente imediato e à glorificação do aqui e agora.
As identidades não se conjugam apenas no presente. Embora essa opção
transpareça em algumas entrevistas, ela não exclui outras respostas. Diver-
sos jovens parecem empenhados, por exemplo, na busca de novas relações
entre o processo de produção e criação pessoal, comumente associado ao
futuro, e as condições particulares de incerteza nas quais esse processo é
vivenciado hoje em dia.
O futuro é relacionado, assim, com a abertura potencial – o futuro
constitui, hoje mais do que nunca, o espaço do devir possível –, mas, ao
mesmo tempo, com uma indeterminação expressa, com freqüência cada
vez maior, como insegurança. No interior da virtualidade que, por defini-
ção, caracteriza o futuro (o que existe em potência, mas não em ato), deli-
neia-se, em outras palavras, um cruzamento peculiar entre a “anarquia do
futuro”, para empregar a expressão de Elisabeth Grosz (1999), e a hesita-
ção, a ânsia, o desejo, mais ou menos subterrâneo, de substituir o projeto
pelo sonho. Diante do crescimento desses traços ambivalentes do futuro,
parece ser fundamental a capacidade de cada um/cada uma elaborar estra-

50 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

tégias cognitivas que garantam o controle sobre o tempo da vida, a despei-


to do aumento da contingência: por exemplo, desenvolvendo a habilidade
de manter uma direção ou trajetória a despeito da impossibilidade de pre-
ver seu destino final.
Numa pesquisa recente realizada com jovens franceses e espanhóis, na
qual apareceu uma orientação biográfica análoga, isso foi eficazmente defi-
nido como “estratégia da indeterminação” (Lasen, 2001, p. 90). Essa ex-
pressão procura ressaltar a crescente capacidade dos jovens com mais recur-
sos reflexivos (por exemplo, os estudantes) de ler a incerteza do futuro como
multiplicação das possibilidades virtuais, e a imprevisibilidade associada ao
devir como potencialidade agregadora, não como limite à ação. Em outras
palavras, diante de um futuro cada vez menos ligado ao presente por uma
linha ideal que os una, reforçando reciprocamente seus sentidos, uma parce-
la dos jovens – talvez não majoritária, mas com certeza culturalmente domi-
nante – elabora respostas capazes de neutralizar o temor paralisante do futu-
ro. De modo análogo, uma parte dos jovens entrevistados, de ambos os
sexos em igual número, exprime de maneira clara a tendência a abrir-se de
modo positivo para a imprevisibilidade, levando em conta antecipadamente
a possibilidade de mudanças, até mesmo repentinas, de respostas a serem
construídas em “tempo real”, à medida que as “oportunidades” se apresen-
tam. O treinamento para a velocidade imposto pelos ritmos sociais é, nesse
caso, “desfrutado” da melhor maneira: ser veloz torna-se um atout, permite
“agarrar o instante” de modo positivo, conduzir uma experimentação que
pode ter influências favoráveis no conjunto do tempo da vida.
Para esses jovens, a incerteza do futuro significa, portanto, disponibili-
dade diante do acidental, do fortuito – o “acaso” que muitos de nossos
entrevistados e entrevistadas parecem estimar. Aqui, o controle sobre o
tempo biográfico não se identifica com a capacidade de realizar projetos
específicos, o que neutraliza os eventuais imprevistos que apareçam no
caminho. O controle equivale, antes, à vontade de atingir os objetivos ge-
rais almejados – grande parte dos jovens, mesmo na ausência de verdadei-
ros projetos existenciais, possui um ou mais objetivos de grande fôlego
colocados no futuro: no tocante ao trabalho, à vida privada ou, antes, ao
“cuidado de si” à la Foucault (1984). O aspecto inovador dessa nova cons-
trução biográfica – em cujo próprio centro está a tensão de um “futuro
sem projeto” – é a capacidade de aceitar a fragmentação e a incerteza do
ambiente como um dado não eliminável, que deve ser transformado em
recurso graças a um exercício constante de consciência e reflexividade.

novembro 2005 51
Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

Deve-se ressaltar, desde logo, que aqueles que exprimem essa estratégia
temporal parecem especialmente ricos em recursos – culturais, sociais e
econômicos. Se os sujeitos dominantes de nossa época são aqueles que se
diferenciam em virtude de sua capacidade de utilizar bem, em termos de
poder, a velocidade e a mobilidade, esses jovens parecem trilhar esse cami-
nho. Quem, pelo contrário, possui poucos recursos sociais e culturais pa-
rece, sobretudo, sofrer com a perda do futuro progressivo e da capacidade
de propor projetos da primeira modernidade. Para esses jovens, o futuro,
fora de controle, pode ser somente anulado, apagado para dar lugar a um
presente sem fascínio. Nesses casos, como bem descreveu Robert Castel
(1996), refletindo sobre o individualismo contemporâneo, estamos diante
de uma forma de individualismo “por falta”: aqui, o indivíduo não possui
os suportes necessários para construir sua própria autonomia e é expulso
para uma identidade sem espessura temporal. A aceleração social torna-se,
assim, de modo evidente, fonte de exclusão social, traduzindo-se em uma
estaticidade passiva.
A maior parte dos jovens, moços e moças, em resposta às condições
sociais de grande insegurança e de risco, encontra refúgio sobretudo em
projetos de curto ou curtíssimo prazo, que assumem o “presente estendi-
do” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” da socie-
dade da aceleração com projetos sui generis, que se expressam sobre arcos
temporais mínimos e que, por isso mesmo, parecem extremamente maleá-
veis. Em alguns casos, parecem configurar-se essencialmente como uma
reação à inquietação que a própria idéia de futuro evoca; em outros, assu-
mem as características de formas projetivas marcadas pela concretude – em
geral ligadas à conclusão positiva de atividades já iniciadas – capazes de
responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em
um ambiente veloz e incerto, como à pressão social por resultados a curto
prazo. Nesse último caso, a tipologia dos “projetos curtos” aparece como
um tipo de “terceira via” entre a capacidade especial de gestão da complexi-
dade, própria do primeiro tipo de orientação biográfica que analisamos, e a
referência exclusiva ao presente daqueles que não conseguem construir rea-
ções adequadas mediante o crescimento da indeterminação do futuro. A
concentração em uma área temporalmente delimitada permite, com efeito,
a construção de uma vivência do tempo como campo unificado e contínuo,
subjetivamente controlável; por sua vez, o domínio sobre os tempos da
vida é buscado, não por meio da elaboração de metas temporalmente dis-
tantes (objetivo irrealista na sociedade da incerteza), mas em seu exercício

52 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

no aqui e agora. Essa estratégia da “via mediana” parece especialmente


atraente porque, enquanto não impede de todo uma projeção no futuro
por meio do projeto, está em sintonia com a orientação maleável que se
tornou necessária em uma época na qual os processos de mudança são rápi-
dos e freqüentemente imprevisíveis.
Concluindo: em uma época na qual o futuro a médio e longo prazos não
pode ser discutido sem suscitar preocupações e, com freqüência, um senti-
mento de verdadeiro temor, um método de ação baseado no “avaliar a cada
vez”, no “quando as portas se abrem para mim, devo procurar não fechá-
las”, no “aproveitar as oportunidades no momento em que aparecem”,
pode representar uma estratégia racional para transformar a imprevisibili-
dade em uma chance de vida, para transformar a opacidade do futuro em
uma oportunidade para o presente, para dispor-se positivamente diante do
futuro. Se, nesse cenário, o mecanismo de diferimento das recompensas
confirma sua inadequação como padrão de referência para o agir social, um
número crescente de jovens parece, todavia, capaz de substituí-lo por mo-
delos de ação construídos a partir de novas formas de disciplina temporal
(por exemplo, para períodos breves, mas intensos, “finitos”), de programa-
ção e controle atento sobre o tempo cotidiano.
Em um período histórico de crise do futuro (e de crise da concepção da
juventude como transição para a vida adulta tout court), delineia-se assim
um novo “estado de ânimo” juvenil em relação ao tempo. Em seu centro
está a necessidade de não se deixar engolir pela velocidade dos eventos, de
controlar a mudança equipando-se para agir prontamente, de não despre-
zar o tempo deixando que “as coisas aconteçam”, de não se deixar encurra-
lar pela insegurança difusa. Ainda que o tempo vivenciado seja sobrema-
neira incerto, o que parece importante é, sobretudo, “manter a rota”, não
perder a direção interior.
Se essas experimentações biográficas terão resultado positivo, permitin-
do aos jovens a necessária integração social, dependerá também da capaci-
dade do mundo adulto de reconhecer sua legitimidade como expressão da
semântica do futuro no século XXI.

novembro 2005 53
Por um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo, pp. 35-57

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RResumo

Para um novo significado do futuro: mudança social, jovens e tempo


Se a “primeira modernidade” construiu o significado do futuro como tempo da expe-
rimentação e das possibilidades, a “segunda modernidade” encara-o, ao contrário, como
dimensão incerta, como limite potencial, mais do que como fonte de recursos. Esse
novo enquadramento semântico configura também, profundamente, os modos e as
formas pelos quais as biografias juvenis são definidas. Enquanto o “projeto de vida”
constitui cada vez menos o princípio capaz de estruturar as biografias em uma época

56 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Carmen Leccardi

presentificada como a contemporânea, esboçam-se novas modalidades de relação com


o futuro (e com o tempo). Essas formas de temporalização, particularmente visíveis
nas construções biográficas juvenis, não implicam, entretanto, a pura e simples perda
do futuro e a renúncia ao projeto tout court. Ao contrário, como indicam pesquisas
recentes, uma parte ao menos do mundo juvenil aparece ativamente empenhada na
construção de formas de mediação entre a necessidade de controle subjetivo sobre o
tempo futuro e o ambiente social altamente arriscado e incerto de nossos dias.
Palavras-chave: Futuro; “Segunda modernidade”; Jovens; Biografias; Incerteza.

Abstract

Towards a new meaning of the future: social change, youths and time
If, on the one hand, the ‘first modernity’ built the meaning of the future as a time for
experimentation, on the other hand, the “second modernity” sees it as an uncertain
dimension, as a potential limit more than a source of resources. This new semantic
format also configures, in a profound manner, the ways and forms with which juve-
nile biographies are defined. While a “life project” constitutes less and less of the
principle that can structure biographies in an ever ‘presentified’ period as that of
contemporaneity, new modalities of relationship with the future (and with time) are
drawn up. These forms of temporalization, particularly visible in the construction of
juvenile biographies, however, do not imply the pure and simple loss of a future and
the renunciation of the project as such. As recent researches show, it is quite the
opposite, at least, a part of the juvenile world appears to be actively involved in the
construction of means of mediation between the need for a subjective control over Texto recebido e apro-
future time and the present highly risky and uncertain social environment. vado em 9/9/2005.
Keywords: Future; “Second modernity”; Youths; Biographies; Uncertainty. Carmen Leccardi é pro-
fessora de Sociologia da
Cultura na Faculdade de
Sociologia da Universi-
dade de Milão-Bicocca
(Itália) e dirige, desde
1992, juntamente com
Mike Crang, a revista
Time and Society (Sage).
Entre suas publicações
mais recentes estão Nuovi
orizzonti del tempo (no
prelo) e A new youth?
(2005, organizada por
Elisabetta Ruspini). E-mail:
carmen.leccardi@unimib.it

novembro 2005 57
O sentido do risco*
Salvatore La Mendola
Tradução de Norberto Luiz Guarinello

A idade moderna inicia-se convencionalmente com a chegada à América, *Este artigo foi publica-
em uma época de descobertas territoriais e científicas1. A modernidade nas- do originalmente em
1999, sob o título “Il sen-
ce, assim, sob o signo do risco: por uma representação de como possa ser a
so del rischio”, no livro
terra e pela disposição em alocar recursos e pôr em jogo a própria existência organizado por Ilvo
para demonstrar essa idéia. Um desafio aos limites da cultura daquele tem- Diamanti, La generazio-
po. Falar sobre risco é, portanto, falar sobre um tema central da cultura da ne invisibile (Milano, Il
modernidade. Sole 24 Ore) (N. E.).
O risco é aqui entendido como uma interpretação do enfrentamento do 1. A viagem é um acon-
perigo na persecução dos objetivos. Em particular, é essa interpretação que tecimento central para o
a cultura dominante na modernidade tem a pretensão de afirmar como tema do risco, tanto que
o próprio termo teve ori-
universal. Em seus traços essenciais, essa idéia sustenta que o perigo deve
gem em ambiente náu-
ser enfrentado em nível individual, potencialmente por todas as pessoas, e tico (cf. Luhmann,
que nenhuma dimensão extra-sensorial de tipo mágico-religioso estrutura 1996). Por definição, re-
o campo da ação. São os princípios do racionalismo individualista e utili- presenta, na narrativa, o
tarista que devem guiar o agente que assume a responsabilidade pelo risco; lugar da experiência, tí-
pica da modernidade,
nesses mesmos princípios se inspiraram os mecanismos sociais de premia-
mas também do classicis-
ção dos melhores, mecanismos fundados sobre a conexão competência-re- mo ocidental: com rela-
gras-sucesso. Em último lugar, mas não certamente em importância, essa ção a esse ponto, ver
perspectiva, exatamente por basear-se nos princípios do racionalismo, re- Ulisses e Eneas ou, mais
quer dos agentes sociais que limitem o espaço da dimensão corporal e próxima de nós no tem-
po e sob outra roupagem,
evitem a emergência das emoções. O termo “risco” tende, ao contrário,
O sentido do risco, pp. 59-91

a viagem de Dante. Por em muitos contextos, a tornar-se sinônimo de perigo ou de situações de


outro lado, não devemos grande perigo. Fala-se, assim, de situações ou, ainda pior, de pessoas em
esquecer que o termo
risco para significar situações e pessoas para as quais se prevê, com grande
viagem é utilizado por
várias gírias para indicar probabilidade, a ocorrência de eventos negativos.
a experiência produzida Fala-se da mesma maneira, por exemplo, da sociedade atual como sen-
pelo uso de substâncias do uma sociedade do risco ou como uma sociedade cada vez mais arriscada.
psicotrópicas. Essa perspectiva não parece, no entanto, adequada.
O deslizamento do significado do termo “risco” para seus possíveis resulta-
dos negativos oculta os pontos nodais da questão: como se Colombo quisesse
naufragar ou como se um empresário, que funda sua própria identidade social
no fato de assumir o risco do empreendimento, desejasse o fracasso de sua atua-
ção econômica. É preciso, ao contrário, partir da idéia de que o perigo é uma
condição imanente da vida individual e social, e que faz parte do conjunto de
fatores que se interpõem entre as ações dos agentes e a tentativa de alcançar os
resultados desejados explícita ou implicitamente.
Apenas a partir desses pressupostos, e analisando os vários contextos da
convivência social, poderemos começar a compreender as razões daqueles
que, por sua própria escolha, se colocam em situações de perigo e adotam
comportamentos de risco ou de imponderabilidade (azzardo), e, igual-
mente, identificar algum indício que nos permita verificar o quanto, na
realidade italiana, seja válida a interpretação do perigo em termos de risco.

O risco como ato de assumir uma responsabilidade

A dimensão do risco encontrou nos meios de comunicação de massa um


grande veículo de produção e ênfase. Para limitarmo-nos aos produtos ita-
lianos mais recentes, basta pensar nas transmissões televisivas como Ultimo
minuto ou Survival, ou em revistas como No limits: sempre “experiências”
feitas por interposta pessoa que, como afirma Goffman, é “um instrumento
para massagear nossa moralidade” (1971, p. 303), ou seja, para afirmar ou
reafirmar o valor de quem enfrenta o perigo por sua própria vontade man-
tendo sua honradez. Típico, nesse sentido, é todo o gênero do western cine-
matográfico, que foi um repertório de grande sucesso dos modelos de hon-
ra e de enfrentamento do perigo. Ainda mais determinantes, entre os
“eventos midiáticos” (Dayan e Katz, 1993), são os momentos televisivos
que interrompem nossa vida cotidiana para reafirmar os vínculos sociais
existentes ou para propor outros novos, por meio de seu poder transforma-
dor de tornar real aquilo que antes era apenas possível ou esperável – as

60 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Salvatore La Mendola

“competições”. Basta pensar, por exemplo, em quanta atenção recebeu a


corrida espacial, a conquista da lua, e como esses acontecimentos foram de-
terminantes para dar forma à cultura do mundo ocidental no pós-guerra.
É importante focar a atenção nos meios de comunicação de massa, na
medida em que, na época contemporânea, são uma das principais áreas de
elaboração dos sistemas cosmológicos, de construção da imagem do corpo,
dos símbolos e das relações nas coletividades. É interessante observar, por-
tanto, como os mass media apresentam comportamentos “perigosos” prati-
cados pelos jovens, assumindo o papel de intérpretes do alarme da opinião
pública e tornando-se os construtores dessa ansiedade coletiva. Descobre-
2. Um mecanismo com-
se, assim, que alguns comportamentos são considerados paradigmáticos
plementar àquele relativo
para a população juvenil, a ponto de transformar os protagonistas desses aos velhos, pelo qual,
atos em jovens, mesmo quando não o são2. quando um indivíduo
Consideremos o caso dos acidentes automobilísticos. Com o título de com mais de 65 anos de
“Scontro frontale, morti due giovani” (“Colisão frontal, dois jovens mor- idade se mostra ativo, ca-
paz de inovação, manten-
tos”), Il Mattino di Padova de 24 de outubro de 1998 trouxe um artigo
do todas as características
que se inicia assim: “Um terrível estrondo na noite, e duas vidas jovens de uma pessoa autônoma,
destruídas num relâmpago” (apud Ghedin, 1998, p. 39). No entanto, per- não é reconhecido como
correndo o artigo, descobre-se que os dois “jovens” tinham 36 e 39 anos! velho, mas pelo papel que
No trecho, não se retoma o lugar-comum catastrofista e demonizador que cumpre: de ator, de pre-
tantas outras vezes se encontra nos jornais, mas exatamente por isso é inte- sidente da República, de
responsável por partidos,
ressante reencontrar o estereótipo de que esse comportamento é tipica-
empresas etc. Fala-se de ve-
mente juvenil, a ponto de transformar em jovens os protagonistas daquele lhos apenas quando as pes-
trágico acontecimento3. Tal perspectiva é compartilhada pela opinião pú- soas se comportam como
blica, que tende a interpretar o fato de colocar-se em situação de risco se espera de um ancião,
como fuga, como um sinal de irresponsabilidade, uma busca improdutiva quando apresentam carac-
terísticas de dependência.
de emoções fortes para esquecer as obrigações da vida cotidiana. É emble-
mático o caso de Alessandro Gozzi, um bolonhês que aceitou ser cobaia de 3. Na Itália, de resto,
quando se introduziu a
uma nova fórmula para um anticoncepcional masculino:
obrigatoriedade do uso
de capacete para os veí-
Mas, sobretudo, creio que na vida, por vezes, é importante arriscar-se, para experi- culos de duas rodas, essa
mentar emoções. Daqui a dez anos, quando for a uma farmácia solicitar um anticon- providência foi reserva-
cepcional masculino, observarei sua confecção elegante e me lembrarei de quando o da aos menores de ida-
experimentava em mim. Isso também é uma emoção” (Manacorda, 1998, p. 287). de: os maiores de idade
são, obviamente, consi-
derados isentos da pos-
Emoção, portanto, para viver durante o experimento e para reviver tam- sibilidade de se mostra-
bém mais tarde, sentindo-se um pouco herói. Naqueles que se interessam rem irresponsáveis ou de
pela sua experiência, mas não aceitam o convite para se oferecerem como quebrarem a cabeça.

novembro 2005 61
O sentido do risco, pp. 59-91

voluntários, Alessandro percebe a falta de uma “forte motivação”, que ele


próprio julga ter, pois afirma que, no fundo, se trata de uma responsabili-
dade também em relação à sua própria namorada, e, por último, questiona
a ideologia masculina e o medo de impotência nela presente. Declara-se
disponível para outros experimentos.
Para interpretar essas escolhas não podemos, contudo, pensar que estamos
diante de uma pessoa que busca apenas emoções e que se arrisca sempre, sem
se preocupar com as condições do risco, sofrendo a coerção da repetição como
conseqüência de outras frustrações. Quando Elisa Manacorda, autora do ar-
tigo, pergunta a Alessandro se ele se disporia a fazer os experimentos em qual-
quer cidade, ele responde que não, que confia na realidade sanitária de Bolo-
nha, pois há profissionais sérios. Deve-se concluir, ao que parece, que se trata
de uma escolha de colocar-se em situação de risco, mas caracterizada por mo-
tivações que a interpretação oferecida pelo senso comum não contempla. Ain-
da que consideremos que se possa identificar nessas escolhas a vontade de ser
protagonista, é difícil, de qualquer modo, lê-las como incapacidade de saber
avaliar as próprias forças ou como fuga de uma vida monótona; e, ainda que
as emoções sejam um dos elementos almejados, elas se inscrevem como um
traço psicológico, o de assumir responsabilidades utilizando plenamente a
própria capacidade de julgamento. Alessandro sugere que sem risco não exis-
te o ato de assumir responsabilidade.
Decidir dar vida a uma série de ações arriscadas não implica necessaria-
mente adotar comportamentos de fuga. Para entender esses fenômenos, é
preciso elaborar uma interpretação tendo em mente um esquema de análi-
se que busque perceber se a série de ações sob observação é majoritaria-
mente caracterizada por uma precedente “saída de” si mesmo (que é, pre-
cisamente, o comportamento de fuga) ou de uma “entrada em” si mesmo,
proposta pela série de ações sob observação, comportamento que, em ou-
tro lugar, denominamos “busca de” (cf. Castelli e La Mendola, 1996);
todo novo si mesmo que se põe à prova é uma saída do precedente e, ao
mesmo tempo, uma entrada no novo.
Alessandro Gozzi, quando nos afirma que enfrenta o risco da experi-
mentação porque tem confiança no sistema sanitário de Bolonha, indica
um aspecto particularmente importante, sobre o qual é bom que nos dete-
nhamos. O arquiteto Renzo Piano afirma algo semelhante:

Sempre portei comigo, pelo fato de ser italiano, um amor agradecido pelas tradi-
ções, assim como um gosto instintivo pela exploração. Talvez seja essa uma carac-

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Salvatore La Mendola

terística européia, talvez especificamente italiana. É, certamente, a herança de uma


cultura humanística que consente as mais temerárias evoluções: a rede de seguran-
ça de nosso passado está sempre sob nós (Garimberti, 1998, p. 39).

Gozzi e Piano falam daquilo que Giddens (1990) denomina “sistemas


abstratos”, respectivamente “sistemas especializados” e “emblemas simbó-
licos”: o primeiro exprime confiança na competência do sistema sanitário
de Bolonha, o segundo sente que possui, na cultura humanística, uma
rede de segurança que lhe permite as “mais temerárias evoluções”. Ambos
assinalam o fato de que, junto com a dimensão do perigo – sempre implí-
cita nos comportamentos arriscados, como obstáculo que se interpõe à
consecução dos fins –, é preciso examinar as dimensões que conferem o
sentimento de segurança. Trata-se do conjunto de fatores que caracteri-
zam a experiência do risco, enfatizando em maior ou menor medida o
sentimento do perigo e o medo a ele associado, ajudando a decidir adotar,
ou não, aquela série de ações e participando na determinação do resultado
das séries de ações.Tentemos ampliar a questão. Segundo a última pesqui-
sa Iard4 (cf. Buzzi, 1997a), há uma adesão maior à cultura do risco por 4. Instituto italiano de
parte dos jovens que possuem um background cultural mais elevado5: per- pesquisa na área socio-
lógica, sem fins lucrati-
tencer às camadas privilegiadas torna-os permeáveis à idéia de que, para ser
vos (N.E.).
bem-sucedido na vida, é mais necessário saber arriscar do que ser pruden-
te. Ter esse tipo de background significa sentir que se possui um sistema de 5. A mesma pesquisa re-
vela que um elevado
proteção mais sólido, de certo modo análogo àquele identificado por Pia-
background cultural fa-
no na cultura humanística. Ou seja, significa sentir uma confiança genera- vorece também um con-
lizada, derivada da própria condição social, que facilita a constituição de tato maior com o mun-
um perfil de personalidade que se dispõe ao risco em várias dimensões. do das substâncias psi-
Em segundo lugar, é plausível que, nos modelos de socialização das classes cotrópicas (cf. Buzzi,
1997b).
sociais superiores, haja maior legitimação do comportamento de risco do
que nas outras posições sociais. Esses dois aspectos da segurança devem ser
fortemente levados em conta, tanto pelos que consideram o risco como
ato necessário de assumir responsabilidade, como por aqueles que expres-
sam preocupação pelas formas de autodestruição e heterodestruição pre-
sentes nos comportamentos de risco dos jovens.
Trata-se, então, de compreender quais são as estratégias para reduzir os
fatores de perigo e aumentar os de segurança. Desse ponto de vista, todo o
discurso das garantias sociais e das formas institucionais organizadas na
modernidade para responder a essa necessidade, ou seja, a questão do welfare
state e de suas transformações, assume um papel central. A grande ênfase

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O sentido do risco, pp. 59-91

com que se vem afirmando a necessidade de aumentar a flexibilidade do


trabalho, bem como de “inventar-se” um trabalho, deve também defron-
tar-se com essas observações. Trata-se, em realidade, de encontrar uma
forma de legitimar a importância do arriscar-se, sabendo, contudo, que
essa disposição, bem como o resultado dos comportamentos, em termos
de sucesso ou fracasso, depende igualmente das “redes de proteção” que se
6. Nos debates recentes, estendem sob quem aceita o risco6. É possível, certamente, obrigar os acro-
esse vínculo entre seguran- batas do circo a saltar sem a rede protetora, mas os eventuais resultados
ça e propensão ao risco não negativos são altamente destrutivos.
é levado em consideração,
Podemos também acrescentar que a presença de tais redes é particular-
e a questão da segurança
é analisada somente do mente importante nas fases da vida nas quais se forma a identidade. Mas
ponto de vista da ordem isso levanta o problema das modalidades pelas quais essas redes são estru-
pública, em particular da turadas. Bourguignon (1983), por exemplo, observa que estruturar dinâ-
microcriminalidade, per- micas de tipo permissivo para os comportamentos independentes pratica-
cebida como um produ-
dos pelas crianças é diferente de exercer pressões positivas para que se afirme
to da desordem causada
pela presença de imigran- neles um sentimento de independência. Na Itália, certa cultura de valori-
tes e de outros estrangei- zação da família, que se enraíza na tradição católica e que produziu respos-
ros. Esse fato nos mostra tas específicas na ação política, parece encaminhar-se mais em direção à
como o tema do risco está primeira modalidade do que à segunda.
estreitamente ligado à di-
mensão da moral, como
sugerido em Douglas
Sobre os riscos de adquirir um status e ganhar, eventualmente, a própria vida
(1979).
Sabrina Ferilli fracassa no exame para ser admitida no curso experimental
7.Informações extraí-
das de Sapori (1998). de cinema7. Giuseppe de Santis, diretor do Centro, mesmo sendo concida-
dão e conhecendo pessoalmente Ferilli, não a ajuda a passar na seleção para
8.Para um aprofunda-
mento nesse tema, ver ser admitida no curso. Tal relação – esse “capital social”8 de Sabrina – não
Bianco (1996). assume, no caso, as características de uma relação de tipo privado, no sentido
9. A irracionalidade bu-
de que De Santis não utiliza seu próprio poder para ajustar os resultados.
rocrática “tende a traçar Encontramo-nos diante de um primeiro problema: o fracasso no exa-
divisões completamente me de admissão ao curso de interpretação de uma pessoa que terá o suces-
arbitrárias entre os que so de Sabrina Ferilli indica-nos o caráter aleatório do exame, deste e de
‘passam’ e os que são ‘re-
tantos outros. Um caráter aleatório com importantes conseqüências, ten-
provados’ [...] freqüen-
do em vista que, se a carreira de Ferilli tivesse dependido daquele exame –
temente com base em
diferenças microscópicas como é o caso de muitos que não possuem redes sociais de proteção e
nos resultados obtidos” promoção social –, o mundo dos espetáculos não conheceria essa atriz que
(Gouldner, 1970, pp. muitos apreciam. Conseqüências ainda mais graves derivam do sentimen-
568-569). to de “irracionalidade” – para empregar a expressão de Gouldner (1970)9 –
que emana dessa incapacidade demonstrada pela sociedade: a de não saber

64 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Salvatore La Mendola

preparar exames que tenham a capacidade de prever e de identificar quem


tem a possibilidade de ser bem-sucedido, e mesmo, como no caso de Ferilli,
de modo muito bem apreciado10. Sabrina Ferilli, assim, arriscou-se contra 10.Um problema que,
as regras do jogo, a despeito dos resultados obtidos segundo os preceitos apenas a título de exem-
plo, diz respeito aos tes-
socialmente definidos. E o fez graças à reputação que, presumivelmente,
tes realizados para fazer
lhe forneceu De Santis, graças às informações que ele lhe transmitiu, gra-
funcionar os números
ças à confiança que lhe infundiu, por meio de um “efeito Pigmalião” programados das Uni-
(Rosenthal e Jacobson, 1997), importantíssimo mas, infelizmente, de modo versidades.
geral, minimizado e desvalorizado. Tornou-se vencedora contra as regras,
na medida em que, com seu próprio fascínio, superou e destruiu os víncu-
los burocráticos. “Fascinação”, palavra difícil de manejar.
No caso específico de Sabrina Ferilli, podemos falar de um capital comuni-
cativo e ritual que conseguiu se desenvolver graças ao fato de terem sido reco-
nhecidos os sinais – as características físicas e, além disso, comunicativas – aos
quais nosso sistema simbólico atribui um valor de distinção. Fascinação lem-
bra esconjuro – e, de modo mais geral, a questão da magia –, uma elaboração
cultural que atua entre o racional e o irracional, entre o encanto e o desencanto,
organizada, como sugere De Martino (1996), para enfrentar a incerteza com
procedimentos racionais que se revelam impraticáveis.
Estamos, assim, bem distantes da idéia de que, na sociedade contempo-
rânea, o modelo de persecução dos fins seria elaborado exclusivamente em
termos de risco, ou seja, segundo as interpretações que enfatizam unica-
mente a incidência do fator humano de acordo com os princípios do racio-
nalismo, superando as cosmogonias que fazem intervir a dimensão mágico-
religiosa na vida social.
Certamente, não estamos propondo que Sabrina Ferilli não mereça o
sucesso que faz, nem que não tenha trabalhado duramente para exercitar
suas próprias capacidades. O que nos interessa ressaltar é que seu sucesso
não ocorreu por meio de regras legitimadas, explicitamente reconhecidas e
indicadas como critérios racionais de seleção dos melhores, mas por meio
de outros mecanismos de reconhecimento social. Não há aqui nenhuma
novidade, tendo em vista que já Max Weber havia observado explicitamen-
te que a tarefa dos mecanismos de seleção da burocracia não é privilegiar os
“amadores dotados de talento”, mas apenas identificar aqueles que pos- 11. Sobre o tema da
periculosidade dos gê-
suem uma competência mediana11. Se o cenário descrito é uma boa apre-
nios, ver os trechos das
sentação da realidade, então seria conveniente afirmar explicitamente não entrevistas com os recru-
ser verdade que os melhores sempre vencerão. Só serão vencedores – e não é tadores de pessoal em La
certo que o sejam – se temperarem suas próprias características com outras Mendola (1995).

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competências de tipo ritualístico – em particular de deferência –, sem as


quais não obteriam nenhum lugar para si. Declarar tal fato reduziria certa-
mente os efeitos perversos de uma sociedade que tem como um de seus
emblemas a idéia da possibilidade de afirmação de todos os que se empe-
nham e possuem essas características; quando, pelo contrário, o que cada
um percebe nos próprios contextos de sua vida, in primis na escola, é que
são comportamentos rituais, bem como os símbolos definidores de status, o
capital cultural (cf. Bourdieu, 1978), os que produzem os vencedores. De
resto, olhando para o conjunto do star system – como nota igualmente
Gouldner (1970) –, podemos observar que o mecanismo premia de modo
irritante algumas pessoas, remunerando-as por certo tempo de modo des-
propositado e expondo-as às massas como mitos, para, logo a seguir, preci-
pitá-las no nada, sem nenhuma razão visível.
O caso de Sabrina Ferilli revela, assim, distintas formas de irracionali-
dade que levam à desconfiança em relação aos mecanismos sociais de dis-
tribuição do sucesso – em particular da pretensa relação entre arriscar-se e
obter sucesso –, inserindo-se no circuito de produção da cultura dos que
empreendem trajetórias de risco em termos ambíguos, aumentando a in-
12. Hayek (1976) inter-
roga-se também sobre o
segurança e facilitando, assim, os percursos mais destrutivos. Poder-se-ia
fato de que talvez fosse dizer: “Mas o caso das estrelas é diferente do das pessoas normais”. Mesmo
melhor induzir à crença que o fosse, se não prestássemos atenção a esses casos, acabaríamos
na possibilidade de rea- minimizando a influência simbólica que as dinâmicas relativas aos vip têm
lização mediante o em- sobre o conjunto da cultura. De qualquer modo, ampliemos a observação
penho próprio, mas ten-
para os outros percursos que estruturam a aquisição do status de adulto.
de para uma resposta ne-
gativa; a crença acaba As pesquisas de Cobalti e Schizzerotto (1994) mostram que possuir um
constituindo um meca- diploma escolar de nível mais elevado é recurso útil para encontrar um em-
nismo para desencadear prego melhor, mas que isso não elimina as desigualdades oriundas da ori-
uma profecia auto-rea- gem social; ou seja, vale mais a pena “saber guiar a cegonha na escolha” da
lizável, na medida em
família adequada, do ambiente adequado para nascer, do que estudar, ain-
que nada é mais eficaz
do que mobilizar as pró-
da que seja verdade que é melhor possuir um bom diploma do que não o ter.
prias energias para au- Nesse contexto, na vida cotidiana, todo jovem vê-se diante da questão de
mentar a possibilidade de definir se faz ou não sentido investir num estudo que, pela forma como se
os resultados esperados apresenta dia após dia, certamente, não estimula as emoções, enquanto ao
ocorrerem. Poderíamos redor se observam pessoas que fazem sucesso mesmo sem ter estudado mui-
talvez acrescentar que,
to ou obtido um bom resultado escolar. Trata-se da inevitabilidade – da
em lugar de encontrar o
caminho para o Orien- qual fala Hayek (1976) – de que pessoas com poucos méritos terão sucesso
te, se acaba descobrindo enquanto outras, merecedoras, fracassarão12. Pode-se dizer que a sociedade
um mundo novo. atual é certamente mais aberta do que foi no passado, sem que tal fato deter-

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Salvatore La Mendola

minasse problemas relevantes nas gerações precedentes. A questão crucial


está, essencialmente, na contradição da mensagem. De fato, é enorme a in-
fluência dos efeitos de desconfiança provocados quando se afirma que quem
se empenha alcançará o sucesso, sendo que os fatos, em seguida, se encarre-
gam de demonstrar que as promessas estão muito longe de serem reais. Por
exemplo, as pesquisas que procuraram investigar a relação entre sucesso es-
colar e sucesso no mercado de trabalho – tanto em termos da obtenção de
um emprego, como em termos de carreira – evidenciaram que não há ne-
nhuma relação entre esses fatores. Basta observar os resultados da última
pesquisa Istat13, apresentados na Figura 1, que ilustram a relação entre nota 13. Istituto Nazionale di
obtida na diplomação e tempo de espera por um emprego14. O cenário é Statistica: instituto autô-
desanimador e, infelizmente, análises mais sofisticadas do que as que pude- nomo de pesquisa italia-
no que atua em interação
mos realizar com os dados do Istat, efetuadas com diplomados das universi-
com o mundo acadêmi-
dades da Emília (cf. Santoro e Pisati, 1996), informam-nos que, mesmo co e científico (N.E.).
levando em conta o gênero e os diferentes cursos universitários, esse tipo de
14. Mesmo separando
relação subsiste. Ou seja, não se pode afirmar que esse resultado se vincule homens e mulheres, os
ao fato de a espera por um emprego ser mais longa para os formados na área que têm notas melho-
de humanidades, que tradicionalmente se diplomam com notas maiores: res não gozam de privi-
mesmo que se observem, por exemplo, apenas os diplomados em engenha- légios. Resultados aná-
logos também são obti-
ria – os mais requisitados pelo mercado –, tal relação continua a existir.
dos quando se descon-
Mesmo análises mais qualitativas dos critérios empregados pelos recru- sideram aqueles que não
tadores de pessoal, para identificar os recém-formados que devem ser em- procuram emprego.
pregados, vão na mesma direção e lançam uma luz sobre quais são os me-
lhores recursos para tornar-se um vencedor na carreira. Basta mencionar
alguns trechos de entrevistas com recrutadores para ter uma idéia do peso
que o percurso escolar possui sobre o sucesso no mundo do trabalho:

Realizei entrevistas com pessoas diplomadas com nota 110, com louvor, que ja-
mais teria empregado, pois, de tanto estudarem, haviam se tornado rígidas e volta-
das para si próprias. Desmistifiquei essa coisa [a nota], mas em seguida digo sem-
pre “estudem”, porque, de qualquer modo, uma boa nota sempre é... digamos que,
no momento da pré-seleção, é essencial [...]. Começa-se com 110 com louvor e se
vai descendo. No momento da entrevista, por fim, há grandes desilusões [...] a
nota é um salvo-conduto [...]. [Alguém] com 110 e louvor é a primeira pessoa a ser
convocada, mas depois, no momento da decisão... empreguei também diplomados
com 96 ou 98 cujo desempenho é muito bom, empreguei diplomados com 110
cujo desempenho é também muito bom, mas não é [esse] o elemento que define a
escolha (La Mendola, 1995, p. 209).

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FIGURA 1
Situação no mercado de trabalho dos formados em 1992, três anos após a obtenção do diploma, com base em suas notas
de formatura

[Também] para um químico a carreira quase nunca se apóia em valores técnicos;


há alguns casos, umas poucas pessoas, que buscam o sucesso na carreira por meio
de conhecimentos técnicos... em geral, é uma base, que deve ser temperada por
uma série completamente distinta de valores – capacidade de gestão, de relaciona-
mento, de análise de problemas, de gestão das pessoas... –, que consideram como
um fator secundário e, no entanto, é a única coisa que realmente... é a única coisa
que conta (Idem, p. 77).

O fato de se possuir um diploma significa para eles, inevitavelmente, “carreira”,


“sucesso” [...], mas poucos compreendem que o diploma é uma base [...] um ins-

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Salvatore La Mendola

trumento de trabalho, que pode ser bem ou mal utilizado [e] não é certo que um
diplomado esteja destinado ao sucesso ou à glória (Idem, p. 225).

Outro recrutador se expressa da seguinte maneira:

Devo dizer que observei grandes sucessos em termos de resultados profissionais e,


conseqüentemente, de carreira, em pessoas que, se devesse defini-las, diria que são
street fighters, “lutadores de rua”, ou mesmo pessoas que não se apresentaram a
mim com as melhores avaliações universitárias porque, por um motivo ou outro,
sobreviviam até mesmo com recursos econômicos bastante escassos, expondo-se a
culturas, estilos, conhecimentos, valores culturais muito diferentes dos de seu lu-
gar de origem. Diplomaram-se demonstrando, apesar de tudo, certa tenacidade na
vontade de atingir um objetivo, mas conseguem complementar as competências de
base – que, de resto, a própria empresa é capaz de desenvolver neles – e aperfeiçoá-
las progressivamente com a experiência dentro da empresa (Casoli, 1996).

A irracionalidade da competição no mercado torna-se ainda mais evi-


dente quando essas observações se dirigem às mulheres. A falta de relação
entre sucesso na formação e sucesso no mercado e na carreira castiga-as de
modo particular, na medida em que são as mulheres que detêm os melho-
res desempenhos no contexto escolar-universitário. O fato de isso contar
pouco como recurso para que vençam na carreira acaba por prejudicá-las
ainda mais. Além disso, os preconceitos, expressos em termos de adequa-
ção ou não às necessidades das empresas, prejudicam-nas também em ter-
mos de carreira (cf. La Mendola, 1997, pp. 47-66).
Os desafios propostos pela universidade, assim como, de resto, pela
escola, são, portanto, totalmente inadequados para esse fim e de maneira
inevitável acabam por encontrar pouquíssima legitimidade na cultura di-
fundida entre os jovens. Além disso, basta ter assistido a um exame univer-
sitário para dar-se conta de que o cerimonial executado nos habituais vinte
minutos de duração da prova tem um sentido ritualístico, no qual cada
participante assume um papel, nada tendo a ver com uma prova verdadei-
ra na qual se possa sentir – por parte dos participantes – que há algo de
certa importância em jogo. Não estamos falando de severidade, que está
claramente presente em alguns ambientes, por vezes beirando ao sadismo,
mas sim de sentido. Ao mesmo tempo, na maioria dos casos, a didática não
consegue transmitir um sentido derivado dos conteúdos propostos, nem a
docência consegue expressar e provocar emoções naquilo que faz. Há, evi-

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dentemente, exceções, mas essa é a “norma”, como testemunha, por exem-


plo, a linguagem cotidiana dos docentes, que falam de “carga” didática,
sublinhando o escasso investimento emocional e o escasso reconhecimen-
to atribuído a esse fazer, que constitui o momento essencial do contato
entre gerações, fato ainda mais grave em se tratando de universitários, ou
seja, aqueles a quem o sistema formativo-institucional atribui maior valor.
Estamos no centro do problema: o impulso de se expor, para exprimir
as próprias características e potencialidades, defronta-se com mecanismos
sociais que negam as promessas feitas. Determina-se, assim, um curto-
circuito cultural e psicológico de desconfiança que não anula o impulso de
mostrar-se, mas o direciona para percursos variados, e que, sob o efeito da
própria mensagem ambivalente, acaba enfatizando mais os fatores de peri-
go que aqueles de segurança, favorecendo a emergência de comportamen-
tos caracterizados pela destrutividade. A disposição por parte dos jovens
para expor-se também é testemunhada pelas respostas à pergunta sobre
qual tipo de trabalho eles prefeririam exercer, se autônomo ou como em-
pregado. Em todos os levantamentos Iard, os entrevistados (Tabela 1) ex-
pressam sua preferência pelo trabalho autônomo, em percentuais seme-
lhantes àqueles registrados para o conjunto da população (Tabela 2), o que
testemunha que o tema deste artigo não é um apanágio exclusivo da popu-
lação juvenil, mas uma questão de maior abrangência.
As motivações para tais preferências não é algo imediatamente com-
preensível. O trabalho autônomo pode ser uma expressão de criatividade e
de investimento no futuro e, ao mesmo tempo, uma manifestação da ex-
pectativa de rendimentos elevados e da implícita demanda de autonomia,
mas parece importante sublinhar que exprime também a demanda de po-
der identificar as próprias responsabilidades nos resultados obtidos. De
fato, nas organizações, sobretudo naquelas de grande porte, é muito difícil
averiguar as responsabilidades, na medida em que elas se estruturam mais
por mecanismos de atribuição de culpa, quando algo sai errado, do que pelo
reconhecimento dos méritos, quando um resultado positivo é obtido: estão
substancialmente à procura de bodes expiatórios que respondam pelos fra-
cassos. Com efeito, na longa cadeia de sujeitos e relações que intervêm nas
diversas atividades, internas e externas à organização, é difícil identificar
quem é efetivamente um sujeito detentor de méritos. A questão da culpa,
assim como, obviamente, a dos méritos, é encarada e resolvida por meio de
formas rituais e de “pertencimento a” ou de “aliança com” coalizões inter-
nas das organizações.

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Salvatore La Mendola

TABELA 1
Jovens que, nas diferentes pesquisas, declaram preferir um trabalho autônomo
1983 1987 1992 1996

59 57 62 56

Fonte: Buzzi, Cavalli e De Lillo, 1997, p. 413.

TABELA 2
Parcela da população que declara preferir um trabalho autônomo
1985 1997

62 60

Fonte: Social Trends, 1998, p. 20.

Algumas experiências de limites

Os meios de comunicação de massa estão cheios de notícias que se referem


a riscos sobre os quais ninguém pretende identificar a dimensão da responsa-
bilidade. Práticas como atravessar os semáforos em alta velocidade quando
estão vermelhos, com automóveis ou outros veículos, ou o surfing sobre trens,
ou, ainda, atirar pedras em carros ou trens em movimento são fatos caracteri-
zados como tendências autodestrutivas ou heterodestrutivas, que alarmam a
opinião pública. Ou ainda os levantamentos que assinalam que os mais jo-
vens são os mais refratários à utilização das formas de proteção contra a aids,
revelando-se, assim, como os mais expostos a contrair a doença.
Em pesquisa realizada entre jovens residentes na província de Veneza,
38% dos entrevistados declararam ter cometido atos comportamentais ca-
racterizados por “certo grau de risco ou perigo”: essa declaração é majoritá-
ria entre os jovens de sexo masculino (52%), enquanto apenas um quarto
(24%) das jovens entrevistadas responde dessa maneira (cf. Castelli e La
Mendola, 1996). Provavelmente, ao menos em parte, essa diferença seja
fruto de uma legitimação distinta do risco, presente em menor grau nos
modelos de socialização das filhas do que nos dos filhos. Na pesquisa men-
cionada, há outro interessante indício de distinção de gênero com relação
aos ambientes escolhidos como “palcos” para a prática de comportamentos
arriscados: enquanto a maioria das mulheres (51%) que declararam ter
cometido atos arriscados escolhe pôr-se à prova no ambiente, natural ou
não, a ampla maioria dos homens (61%) escolhe situações nas quais a
tecnologia está presente.

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Nos vários comportamentos de risco, parece ser possível identificar uma


demanda implícita por responsabilidade, mesmo naqueles aparentemente mais
irresponsáveis. Essa demanda deve ser considerada de modo sério, o que sig-
nifica, sem nenhuma tentativa de justificação, atribuir os ônus dos comporta-
mentos destrutivos a quem os pratica, ou seja, transformar de implícito em
explícito o ato de assumir responsabilidade. Ao mesmo tempo, no entanto,
isso implica perceber a complexidade do desafio em jogo, dos fatores envolvi-
dos nessas dinâmicas do risco. Esses fatores podem ser considerados “próxi-
mos”, isto é, ligados à interação face a face nos momentos em que ocorrem e
associados às interações com as demais pessoas significativas – adultos ou jo-
vens – com as quais esses protagonistas se defrontam; e como fatores “distan-
tes”, como os sistemas simbólicos de atribuição de valor e os procedimentos
sociais de atribuição de sucesso. Significa não requerer responsabilidade ape-
nas quando aquele que detém o controle dos recursos para a construção da
economia existencial considera isso adequado. Nada disso exclui (ao contrá-
rio, deve prevê-la explicitamente) a elaboração de sistemas de proteção que
ofereçam iguais oportunidades para assumir responsabilidade e, ao mesmo
tempo, reduzam a inserção de mecanismos perversos de autodestruição no
esquema acional e psicológico dos protagonistas, como efeito de imperativos
educacionais ambivalentes. Estamos diante de uma demanda por assumir res-
ponsabilidade, pela aquisição de poder (empowerment), que, inevitavelmen-
te, como qualquer afirmação da liberdade, comporta perigos.
15.Sobre o tema, ver É emblemático o caso da violência contra as mulheres15. Como não pen-
Terragni (1997). sar que o aumento da violência sexual seja também uma das conseqüências
do aumento da liberdade da população feminina? Sobre o conjunto do fe-
nômeno, devemos examinar, antes de tudo, a afirmação de uma cultura da
autonomia. Um aumento da auto-estima redefine o próprio conceito de
violência, favorecendo a inclusão, em tal definição, de tipos de relação que,
no passado, outras gerações de mulheres não teriam reconhecido explicita-
mente como tais, ou que não dariam lugar a denúncias, levando essas mu-
lheres a sofrer em silêncio. Trata-se da aquisição da concepção de sacralida-
de do próprio corpo e, portanto, da própria pessoa, numa demanda por
autodeterminação que se expressa particularmente no uso e na gestão do
tempo e em termos de autonomia, na presença no território, nos espaços
sociais, e se verifica a partir dos aspectos estruturais mais ligados, por exem-
plo, à posse de um rendimento próprio, traduzindo-se em uma menor dis-
posição para aceitar relações violentas, sobretudo no âmbito das relações
pessoais e familiares. Um fato que, por exemplo, não apenas expõe as mu-

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Salvatore La Mendola

lheres à violência no plano sexual, mas chega a pôr em risco sua própria
vida. Com freqüência crescente verificam-se homicídios nos quais elas são
vítimas de seus ex-maridos ou noivos: a autonomia demonstrada pela deci-
são de não aceitar a continuação de relações conjugais insatisfatórias acaba
sendo punida, ao sofrerem a violência de homens deslocados por mulheres
que aceitam correr esses perigos ao perseguir a construção de uma subjetivi-
dade própria e autônoma. Mesmo o aumento das práticas de sedução, in-
trinsecamente arriscadas, em particular nos ambientes menos submetidos
às regras do controle social, como, por exemplo, nas discotecas, mostram
essa demanda de poder e autodeterminação: trata-se de encontros que po-
dem resultar em um flerte ou em relações mais duradouras, mas que ex-
põem as mulheres a possíveis atos de violência por parte de homens desori-
entados ou pouco dispostos a experimentar relações no limite, sob novas
definições das normas de respeito e de boa conduta, novas formas de víncu-
los sociais entre os gêneros. Tais perigos, contudo, não são obviamente sufi-
cientes para que essas mulheres, jovens ou não, renunciem à tentativa, prag-
mática, de construir suas próprias identidades autônomas. Trata-se de uma
presença no tempo e no espaço que inevitavelmente comporta perigos e,
portanto, o ato de assumir riscos, mas que gera a possibilidade de afirmação
como pessoa. É importante ressaltar que esse comportamento não deve ser
lido como irresponsável, sobretudo porque emerge de várias fontes o fato
de que as mesmas mulheres põem em ação diferentes estratégias para redu-
zir o perigo e aumentar a segurança.
As tentativas de afirmação de um eu próprio livre e responsável atraves-
sam percursos que, por definição, comportam um aumento do nível de pe-
rigo. É igualmente verdade que, por vezes, tal processo se inscreve em pro-
cedimentos de tipo autodestrutivo. Mas o perigo está estruturalmente
presente em muitas práticas totalmente legítimas do ponto de vista social. A
atividade esportiva é um dos grandes ritos pelo qual nossa sociedade assina-
la a importância de respeitar as regras, indicando, ao mesmo tempo, o vín-
culo entre empenho-competência e resultados bem-sucedidos. É uma ati-
vidade reconhecida como o lugar da saúde física e moral, e por isso, por
exemplo, freqüentemente indicada como remédio e alternativa à depen-
dência química. As pesquisas (Tabela 3), no entanto, mostram que as ativi-
16. Tenha-se em mente
dades esportivas são precisamente uma das atividades que mais produzem
que esse percentual diz
acidentes: nada menos que dezesseis jovens em cada cem16 sofreram aciden- respeito a todos os jovens,
tes graves nos três anos anteriores à entrevista, aos quais poderíamos acres- mesmo aqueles que não
centar os 2% que sofreram acidentes em montanhas. Ninguém pensaria em praticam esportes.

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dizer, contudo, que o esporte faz mal à saúde e, assim, em vetar esse tipo de
17. Recorde-se que, risco, na medida em que, a partir do nascimento do “espírito” olímpico17, a
dentre os “eventos me- modernidade confere ao esporte a função de socializar as novas gerações
diáticos”, as Olimpíadas pelo vínculo competência-regras-sucesso.
são o exemplo emble-
Esses dados sobre o esporte levantam em primeiro lugar a questão de a
mático da “competição”.
que riscos é atribuído valor pela “cultura central” de nossa sociedade e, de
maneira mais geral, quem possui o poder de decidir quais riscos são passí-
veis de serem corridos legitimamente. O tema do esporte relembra-nos, de
maneira similar, uma dimensão simbólica de maior alcance, que é impor-
tante mencionar.

TABELA 3
Acidentes extradomésticos graves ou moderadamente graves nos três anos anteriores à entrevista

NA ESCOLA NO TRABALHO EM ESPAÇOS A PÉ DE CARRO DE BICICLETA DE MOTO NA MONTANHA NO ESPORTE


ABERTOS

3,3 7,0 3,6 3,9 5,4 4,4 6,7 2,0 15,7

Fonte: Buzzi, 1994, p. 175.

18. Os trabalhos de Ma- Pensemos num programa de televisão como Quelli che... il calcio, que teve
ry Douglas, em particu- o mérito, como poucos outros, de desdramatizar a seriedade do futebol ita-
lar Purezza e pericolo liano. Pois bem, nesse programa de grande sucesso, construído, ao menos
(1993) são referências
como pretexto, em torno do tema do futebol – que, por definição, deveria
para o aprofundamento
dessa observação. celebrar o nexo competência-regras-sucesso (um fator fundador da cultura
“moderna” do risco) –, proliferam símbolos e comportamentos muito próxi-
19.Nome adotado para
definir a equipe de fu-
mos a outras cosmogonias, aquelas que de modo apressado denominamos
tebol que representa o “tradicionais”18. No programa, por meio do código da ironia, assiste-se a uma
programa. multiplicação de práticas de tipo apotropaico. É emblemática a competição
20. E não apenas no entre Peter Van Wood, que prognostica os resultados das partidas com base
mundo esportivo, já que na astrologia, e Van Goof19, uma coruja (gufo) que representa o azar. Basta
se observa também com observar os gestos de esconjuro com que reagem os torcedores dos times diante
certa freqüência no am- de prognósticos favoráveis, ou mesmo as acusações de trazer azar feitas con-
biente político, desde o
tra vários personagens, em particular religiosos (verdadeiros ou falsos). De
episódio mais recente
ocorrido durante o ju- resto, no mundo esportivo, esse tipo de prática é largamente recorrente20:
ramento do governo veja-se quantos esportistas efetuam gestos rituais antes e após as partidas, ou
D’Alema, até aquele de mesmo o treinador da seleção italiana, Cesare Maldini, que durante o cam-

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Salvatore La Mendola

peonato mundial de futebol na França (1998) se virava para não olhar a Ciampi no Parlamento
marca de pênalti e evitava atrair o mau-olhado, com um comportamento de e os “velhos” gestos do
presidente Leone.
tipo apotropaico. Assim, em um contexto que deveria ser de celebração do
nexo competência-regras-sucesso aparecem furtivamente modelos de ges-
tão das incertezas relacionados com cosmogonias de tipo mágico-religioso.
Por um lado, isso pode ser lido como o fracasso dos sistemas de explicação
racional – a queda da “presença” de que fala De Martino (1996) –, mas, por
outro, pode ser interpretado como um sinal da incapacidade de o sistema
de explicação racional compreender a dimensão emocional dos agentes en-
volvidos nas séries arriscadas de ação. Na falta de esquemas interpretativos
que envolvam a dimensão emocional na explicação racional, os sujeitos vol-
tam-se para os únicos sistemas simbólicos disponíveis, ainda que socialmente
considerados atrasados e carregados de descrédito.
De modo mais geral, essa mesma perspectiva induz-nos a perguntar como
os jogos de azar podem ter tanto sucesso – e não apenas na Itália. Em suas
diferentes formas21, os jogos de azar caracterizam-se pelo fato de o jogador 21.Seria interessante
desafiar a sorte contra as probabilidades racionais de vencer. Há jogos de azar refletir sobre os efeitos
nos quais ainda subsiste algum tipo de competência; em outros, ao contrá- degenerativos induzidos
pela transformação dos
rio, como nas loterias, tudo é confiado ao acaso, ou seja, a um modo de atri-
programas de pergun-
buir o sucesso que deveria ser estranho ao sistema simbólico celebrado pelas tas e respostas na tele-
premissas da modernidade. Seria simplista liquidar a questão aplicando-lhe visão. Sobre isso, ver
a etiqueta de irracionalidade, assim como não podemos posicionar todos os Stella (1999).
que praticam jogos de azar na categoria de “jogadores patológicos”, que au-
mentam os riscos reais para sua vida, em vez de aprender modalidades de
enfrentamento de riscos em formas socialmente controladas (cf. Sarchielli e
Dallago, 1996, p. 173). Com efeito, quem se relaciona eventualmente com
o acaso por meio do jogo de azar é diferente daquele que “abusa” de tais expe-
riências, tornando-se dependente desse tipo de desafio. De resto, mesmo nos
jogos de azar pode-se, em todo caso, reconhecer a “celebração da autodeter-
minação” de que fala Goffman (1971): o jogador encontra-se em uma situa-
ção na qual não possui, por si mesmo, senão poucas probabilidades de obter
o resultado desejado. Desse modo, demonstra, para si e para suas referências
sociais, que possui caráter, que não se detém diante de situações de perigo,
que sabe assumir suas próprias responsabilidades. Deve ser dito, além disso,
que, se nos jogos de azar é demonstrável em termos matemáticos que as pro-
babilidades racionais são contrárias ao jogador, nos contextos de risco práti-
cos é difícil estabelecer quais são as probabilidades racionais; dispomos, com
efeito, apenas de uma racionalidade fraca ou de tipo processual e é fácil con-

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fundir como “jogo de azar” o que, na seqüência, será reconhecido como ino-
vação. É bom, portanto, ter cautela ao considerar equivalentes, conceitual-
mente, a prática do risco e a dos jogos de azar: trata-se, antes, de analisar as
razões do azar, sem liquidá-lo com falsos moralismos, mesmo aqueles de tipo
22. A esse respeito, o an- racionalista.
tropólogo Clifford Geertz Um tema central nesse contexto é o do consumo de álcool e tabaco, ou o
apresenta uma importan- uso de outras substâncias que modificam a percepção de si e/ou do mundo –
te observação: “A concep-
tema sobre o qual, por sua delicadeza, complexidade e diferenciação interna,
ção ocidental da pessoa
podemos apenas fazer breves referências neste artigo. O uso e o abuso dessas
como um mundo moti-
vacional e cognitivo har- substâncias representam um dos aspectos de maior alarme para a opinião pú-
mônico, único, mais ou blica e para os governos, com diferentes ênfases segundo as circunstâncias, os
menos integrado, como períodos e as épocas históricas. É um assunto difícil de tratar, pois suscita
um centro dinâmico de alinhamentos em grande medida preconcebidos e preconceituosos, sendo um
consciência, emotividade,
dos que mais consistentemente explicitam o vínculo que subsiste entre risco e
juízo e ação organizado
num conjunto distinto e moral. E é também um fenômeno social que apresenta sinais discordantes,
contraposto aos demais tendo em vista o aumento da disposição à embriaguez e ao uso daquela que é
conjuntos semelhantes e comumente denominada de “droga leve” (Buzzi, 1997b) e a redução do con-
ao seu entorno social e sumo de tabaco que se registrou nos últimos anos (mesmo sendo uma redução
cultural é, por mais es-
que afeta menos os jovens do que outras faixas da população). Para interpretar
tranho que possa parecer,
uma idéia um tanto pe-
o uso e o abuso de tais substâncias, seria necessário compreender esses com-
culiar no contexto das cul- portamentos no contexto de uma ampla análise da cultura. A cultura ociden-
turas mundiais” (Geertz, tal, cujas raízes mergulham na tradição judaico-cristã, propõe, com efeito, a
1988, p. 76). exigência da coerência pessoal22, uma exigência que pode facilmente ser atri-
23. A referência é, ob- buída à posição monoteísta dessas tradições. Por essas razões, as experiências
viamente, a obra de Max de transe, tanto de tipo extático como dionisíaco, nas quais variadas formas de
Weber; para um com- vertigem – como as define Caillois (1981) – são experimentadas, são vistas
pêndio, ver Stella (1994,
com suspeição e progressivamente marginalizadas. No âmbito do cristianis-
1996).
mo, essa perspectiva teve seu momento supremo na afirmação do calvinismo,
24. No mundo católico,
para o qual a busca de coerência devia ser um impulso válido para todos os
a falta de coerência é
certamente mais tolera-
crentes e não apenas para uma elite que a praticasse por uma via mística extra-
da, como demonstra, mundana, fora da vida profana, em um mundo separado23. Dessa maneira, a
acima de tudo, o sacra- via mística para a fé, que se abria para formas de transe, para experiências do
mento da confissão e, de “totalmente outro” vividas por meio do corpo, foi proibida, mantendo certa
modo mais geral, o re- dignidade apenas em âmbito católico, embora mesmo nesse ambiente tenha
duzido grau de mono-
sido progressivamente marginalizada24.
teísmo que deriva da ve-
neração aos santos e da A interpretação leiga e racionalista move-se na mesma direção. O pro-
proliferação das diferen- cesso da civilização ocidental tem como núcleo central o controle da agres-
tes faces da Virgem. sividade e das emoções em geral, pelos efeitos de imprevisibilidade e, por-

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Salvatore La Mendola

tanto, de desconfiança que induzem nas relações sociais. As emoções po-


dem ser expressas apenas em ambientes definidos, em sua maioria circuns-
critos a ocasiões privadas dos bastidores sociais ou a lugares socialmente or-
ganizados para sua manifestação em formas atenuadas. Elias e Dunning
(1986) mostram-nos as características de alguns desses lugares de lazer e,
junto com a atenção para o mundo esportivo, assinalam contextos que cha-
mam de “comunidades de lazer”. Trata-se de enclaves temporais nos quais
se manifestam uma afetividade mais intensa e relativamente espontânea e
uma emotividade amigável nas intenções, diferente, de modo notável, da-
quela considerada normal nos contatos profissionais e na vida rotineira em
geral. Os dois autores lembram-nos que o carburante dessas reuniões é, nor-
malmente, o consumo de álcool25. Um meio que serve para facilitar o ato de 25. De resto, muitas di-
assumir um si-mesmo adequado à situação, ajudando a romper a rigidez do mensões rituais prevêem
controle das próprias emoções, com o qual nos habituamos na rotina coti- o uso de álcool para criar
um espírito comum en-
diana; e que serve para facilitar o contato com os outros, ter um espírito
tre os participantes. Mui-
comum. Essa é uma característica comum a muitas outras substâncias, ain- tas festividades religiosas
da que não a todas, e em particular àquelas que se difundem cada vez mais ou civis, públicas e pri-
entre os jovens, como o ecstasy, reconhecido como “entactógeno”, ou seja, vadas – como a recepção
que “favorece a percepção de si próprio como parte distinta de um grupo” de um hóspede, uma
cena romântica, ou ritos
(Bricolo, 1996, p. 158). Toda sociedade, toda cultura estabelece – e todas
de transição ao longo da
por motivos razoáveis – quais substâncias e quais quantidades constituem o vida individual (aniversá-
abuso. Como dissemos, as demandas da cultura da modernidade, tanto em rios, casamentos, uma
sua versão leiga como em sua variante religiosa, em particular aquela poste- festa de formatura, a ob-
rior à reforma protestante, visam a eliminar o espaço do corpo como via tenção de um emprego,
a aposentadoria) ou co-
para a construção da identidade por meio da experiência das emoções. Ao
letiva (festas de fim de ano
mesmo tempo, contudo, os indivíduos, junto com o impulso à unidade e à
ou o batizado de um na-
coerência da pessoa, experimentam uma multiplicação dos circuitos sociais vio) –, prevêem um mo-
de pertencimento e de referência. Todos são solicitados a assumir papéis mento de compartilha-
adequados aos diferentes contextos institucionais em que se inserem, os mento no qual as bebi-
quais se multiplicam de modo significativo. Dessa maneira, o si-mesmo das alcoólicas ocupam um
lugar central.
adotado nos locais de trabalho não pode ser igual ao adotado em família. A
demanda por coerência da pessoa encontra-se, assim, diante de um impulso
contraditório que por vezes pode ser vivenciado como dilacerante. Pode-
mos, então, propor a hipótese de que a difusão do abuso de substâncias que
modificam a percepção faça parte de um percurso de (re)afirmação da idéia
de uma multiplicidade de si-mesmos: o abuso seria, portanto, um filho le-
gítimo da modernidade, filho que induz a fugir do impulso à coerência que
é próprio da época. Assim, acontece de a modernidade, reconhecida como

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26. Nos últimos anos, esse período de celebração de uma nova divindade, o ego, acabar sendo – para-
tema conheceu desenvol- doxalmente – também a fase histórica da dissolução da idéia de sua unida-
vimentos notáveis; ver,
de. Com a redução do impulso à coerência pessoal, muitos se voltam para
pelo menos, Tart (1977);
Lapassade (1976); Mar- aquele conjunto de procedimentos que as tradições orientais codificaram
gnelli (1996); Zolla em suas cosmogonias e disciplinas com o nome de “meditação”. Símbolos e
(1998). técnicas que, na realidade, não são exclusivos daquelas culturas, e que, em
27. Já havíamos feito algumas tradições ocidentais, com efeito, se encontram reduzidos a uma
menção ao fato no capí- posição subalterna à cultura dominante, mas sem serem jamais completa-
tulo sobre risco no “Se- mente anulados.
condo Rapporto del O uso de substâncias assinalaria, assim, uma redução da disposição –
Centro Nazionale di Do-
ou uma impossibilidade – de enfrentar o desafio proposto pelas experiên-
cumentazione ed Anali-
si sull’Infanzia e l’Ado- cias possíveis de si mesmo (cf. Markus e Nurius, 1986), mediante o sim-
lescenza” (1997), ao ples apelo à ação de um superego que possibilitasse à personalidade de
qual, de bom grado, re- cada um manter um todo coerente, ou pelo confinamento dessas expe-
metemos. riências a contextos sociais institucionalmente controlados.
28. Esse impulso à afir- Trata-se, em particular, de uma dificuldade ligada à sistematização da-
mação da caracterização quelas dimensões pessoais que não são reconhecíveis por meio da reflexão
da identidade individual
(racionalista) sobre si mesmas (cf. Selman, 1980) – daquele “parar para
pode ser visto como uma
vingança das téchnai ori-
pensar” que a tradição humanística considera a via mestra da construção
ginais contra a ação dos da identidade –, mas cognoscíveis apenas por meio da experimentação.
portadores de pulsão po- Assim, tende a ser relegitimada a busca de experiências de (outros) estados
lítica, da centralidade da da consciência, de transe, e ao mesmo tempo são incentivadas tentativas de
cidadania e da sociedade outra elaboração conceitual e também performativa26.
(cf. Gilli, 1988, 1994).
Estaríamos, portanto, diante da multiplicação dos indícios de que a ten-
29. Em nossa civilização, tativa de excluir a dimensão emocional do horizonte da cultura, por sua
toda vez que o corpo
periculosidade para a vida social, pela agressividade e pela falta de confiança
emerge, pedem-se descul-
pas – como após um ar- que provoca, atingiu seu esgotamento. Resultado que não podemos consi-
roto – ou emprega-se um derar inesperado se prestarmos atenção ao grande impulso que a moderni-
ritual propiciatório-apo- dade deu à afirmação do si-mesmo, do próprio potencial. Os modelos de
tropaico, como dizer “saú- socialização27 contemporâneos que conferiram – ou, ao menos, declararam
de” ou “Deus te crie” após
querer conferir – um espaço cada vez maior às características individuais
um espirro. Manifestar si-
nais com o corpo, como
moveram-se nessa direção28, incitando seus agentes e, em primeiro lugar,
coçar a cabeça, gesticular os pais, a respeitar a psicologia, as emoções e as inclinações dos mais jovens.
ou, por exemplo, mostrar O esgotamento do impulso para uma civilização fundada no controle das
a língua quando se exe- emoções e na redução do espaço do corpo29 propõe, de forma renovada, a
cuta uma tarefa obrigató- explosão de si-mesmos múltiplos e induz a procurar o caminho de saída de
ria, é sinal de má educa-
uma idéia e de um projeto pessoal que encontraram na modernidade sua
ção, aceitável nas crianças
máxima expressão.

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Salvatore La Mendola

Interpretar esse conjunto de fatos como a afirmação de impulsos de tipo que, no entanto, devem
ritualístico-narcisístico30 resolve, certamente, uma parte da questão, mas ser repreendidas para que
aprendam as boas manei-
concentra a própria análise exclusivamente nas respostas, e não nas deman-
ras. Um livro já clássico
das subentendidas, deixando-se, assim, ofuscar pela parte mais visível do sobre o tema é Galimberti
fenômeno e perdendo a oportunidade de identificar respostas alternativas (1993).
àquelas demandas por sentido que permanecem à mercê dos ofertantes 30. Como fez, por exem-
mais caducos e, com freqüência, mercantilizantes. Essa leitura, ao mesmo plo, Lasch (1981).
tempo, não permite perceber como há um impulso à experimentação dos
limites subjetivos por trás desses comportamentos. É claro que o uso de
substâncias que modificam a percepção de si e do mundo representa um
atalho com maior ou menor grau de periculosidade, e que o perigo deve ser
levado a sério. Mas levar a sério o perigo significa, ao menos para quem tem
responsabilidades coletivas e educativas, não entrar em pânico nem dar es-
paço ao delírio da onipotência: quando se está em pânico, é difícil tornar-se
um ponto de referência e fazer as escolhas adequadas; já o delírio da onipo-
tência nos faz pensar que podemos enfrentar qualquer perigo e, assim, assu-
mir uma lógica de jogo de azar que facilita os percursos destrutivos.

Algumas diferenciações

O tema do risco é, na verdade, uma questão eminentemente juvenil, mas


apenas porque os jovens são os portadores mais sensíveis de uma síndrome
que diz respeito a todos. Com seus comportamentos, muitas vezes de modo
exasperado, eles iluminam os desafios que o mundo ocidental deve enfrentar
nessa fase histórica.
O risco assume forma e relevância particulares para a fase juvenil, na
medida em que representa a “primeira vez” (Fabbrini e Melucci, 1992) de
um processo de construção, experimentação e afirmação da própria identi-
dade. Processo cada vez mais fragmentado e ambíguo que, atualmente, se
realiza por meio de um prolongamento da transição à vida adulta, no âmbi-
to de uma dinâmica geral de desinstitucionalização do curso da vida. Não
se pode, portanto, reduzir a dimensão do risco a uma questão de tipo psico-
patológico, pois se trata de uma leitura reducionista, produzida por um
difundido psicologismo que impede a justa avaliação dos fatores em jogo.
Uma perspectiva que, em vez de levar a sério as dificuldades e as demandas
dos protagonistas, finge encarregar-se do caráter problemático da situação
veiculando, ao contrário, uma boa dose de moralismo acusatório. São as-
sim construídos – ou, ao menos, enfatizados – alarmes de vários tipos para

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O sentido do risco, pp. 59-91

a opinião pública: a violência nas escolas ou nas festas, ou as badernas de


sábado à noite. Graças à sua fácil divulgação e com a cumplicidade dos
meios de comunicação de massa, sempre à procura de episódios que pos-
sam ser transformados em notícias sensacionalistas, esse “catastrofismo de
slogan” encontra amplo espaço. Argumentos mais articulados, que visam à
compreensão dos fenômenos, mesmo que não busquem justificá-los, en-
31.A esse respeito, ver contram dificuldades para superar a barreira do silêncio31.
Bourdieu (1978). Trata-se de construir uma visão mais ampla, partindo do pressuposto de
que os jovens, como diz Goffman, são “pessoas bem organizadas para a
desorganização” (1967, p. 243). O fato de realizarem ações de tipo fatal é-
lhes menos danoso e mais tolerável do que para os adultos, pois têm pouco
a perder, na medida em que não estão ainda plenamente integrados aos
vínculos das estruturas sociais. Nesse sentido, a utilização de pessoas, eles
próprios ou os outros, como campos de ação – ou seja, receber e produzir
injúrias, tanto físicas como verbais –, só pode ser considerado coerente com
aquela condição. Trata-se de uma experimentação das normas sociais, das
regras de respeito e de boa conduta; uma conseqüência do fato de não se-
rem ainda obrigados a pôr em ação a suspensão da dúvida que é a condição
32. Exceto por fazer ree- típica requerida do adulto na época moderna32. A modernidade, com efei-
mergirem tais dúvidas “no to, atribuiu-lhes, sob os espólios mentirosos do valor da responsabilidade, a
meio do caminho de nossa
demanda de suspender a dúvida de que a realidade possa ser diferente da-
vida”, nas assim chama-
quilo que é33. Ao mesmo tempo, no entanto, de modo igualmente eviden-
das crises da meia-idade
ou naquelas provocadas te, tornou cada vez mais difícil a realização dessa suspensão da dúvida, mi-
por trauma, que põem em nando – por meio da análise crítica – as certezas dos cada vez mais vastos
questão o mundo tal como territórios da cultura. Com efeito, está em jogo aqui outro impulso típico
tinha sido construído, dan- da modernidade: o da reflexividade que, como sugere Giddens (1990), é o
do vida até mesmo a tra-
desafio crucial da fase radical da modernidade34. Todo curso de ação e toda
jetórias de conversão (cf.
Berger e Luckmann, instituição, submetidos ao processo de legitimação, estão, por princípio,
1969). justificados. Os adultos são, assim, conclamados a agir “como se” fosse pos-
33.A esse respeito, ver
sível suspender a dúvida: uma situação decididamente ambivalente e cau-
Jedlowski (1994). sadora de ansiedade, em particular naqueles que devem assumir o papel de
educadores. Podemos agora reconhecer nas ações dos jovens, em especial
34. Um desafio que, na
modernidade radical, precisamente naquelas de tipo arriscado, a realização do imperativo de du-
envolve praticamente vidar: por meio de seu agir, suspendem a suspensão da dúvida, realizam
todos, e não apenas a uma forma pragmática de reflexividade. Não estamos defendendo que tal
elite, os filósofos ou os agir vise sempre à construção consciente de uma personalidade reflexiva.
artistas, como na fase
São bem evidentes os trajetos de acúmulo de experiências sem sedimenta-
áurea da modernidade.
ção para manter o desejo de onipotência, mas é igualmente evidente que

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Salvatore La Mendola

esses trajetos são também o produto do impulso e da demanda para afirma-


rem-se como pessoas autônomas e dotadas de poder.
A carga de destrutividade, para si e para os outros, implicada nesses tra-
jetos é, por um lado, o fator inevitável e constitutivo do risco – do enfrenta-
mento do perigo –, e do ato conseqüente de assumir responsabilidades. Por
outro, tal destrutividade é conseqüência direta da ambigüidade dos meca-
nismos sociais de regulamentação e de premiação dos melhores e da ambi-
valência dos valores fundadores dessa experiência e dos próprios mecanis-
mos sociais de regulamentação. Ambigüidade e ambivalência que se
configuram como fatores constitutivos da desconfiança. Explica-se, assim,
por que a comunicação não verbal, as experiências do corpo, a dimensão
das emoções representam o terreno privilegiado do risco. Com efeito, é por
meio dessas dimensões, mediante a comunicação analógica, que cada um
de nós experimenta os vínculos sociais, constrói o sentimento de confiança.
No entanto, precisamos produzir contextualizações precisas entre áreas
culturais e âmbitos sociais, na medida em que comportamentos análogos
de risco respondem a razões e assumem significados distintos em contextos
diferentes.
Tendo presente, em primeiro lugar, que em todos os contextos sociais
a juventude é a (primeira) fase de experimentação das normas, dos rituais
de respeito e de boa conduta – uma fase de fronteira que se alargou, trans-
formando-se numa condição real e verdadeira, com as características de
zona de interdição –, devem reconhecer-se as diferenças existentes entre
segmentos sociais. De modo algo sumário, poderíamos propor uma dis-
tinção em três grupos.
“Os ainda não incluídos” são aqueles para os quais as práticas de risco
da juventude têm, em geral, um caráter de treinamento predatório35 para as 35. São atribuíveis a esse
posições de poder que virão a ocupar quando forem adultos. Trata-se do grupo as diferentes for-
mas de vandalismo que,
modelo típico de transição para a idade adulta da burguesia na época áurea
periodicamente, os fi-
da modernidade. A adolescência como fase da vida na qual se admite a lhos da “boa burguesia”
incoerência, na qual o princípio predatório vale como modelo de treina- cometem, como, por
mento do macho burguês; dinâmica bem visível, por exemplo, nas confra- exemplo, no recente epi-
rias universitárias, que não por acaso têm as mulheres como principal cam- sódio de Milão, em di-
po de ação. Para esse grupo social, são válidos os princípios típicos do versas ocasiões trazido às
manchetes da crônica
liberalismo, segundo os quais, na vida social, é preciso possuir as condições
pelo cantor e composi-
para expressar o próprio potencial. Mas, nessa representação ideológica, é tor Roberto Vecchioni,
devidamente ocultado que na base de tais regras existem vantagens atribu- em virtude do que ocor-
tivas bem precisas. É válida, igualmente, a imagem de “zona de penum- reu em sua casa.

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bra” como metáfora da transição para a vida adulta. Nessa representação,


após a fase impregnada de cultura bohémienne, instaura-se a “zona de pe-
numbra”, para além da qual está a idéia do adulto entendido como sujeito
responsável: o comandante do navio. A zona de penumbra transmite a
imagem de uma transição única e definitiva, de um percurso de vida
estruturado por passagens não reversíveis. Representa uma ruptura seme-
lhante à praticada pelos ritos de transição de algumas tradições, que mar-
cavam a passagem com sinais violentos. Uma representação, precisamente,
de uma fase de experimentação e de despreocupação vivida pelo jovem, à
espera de ocupar o lugar seguro e de responsabilidade que sua própria
36.Basta citar como origem social lhe garante36. Como não reconhecer que essa representação –
exemplo a biografia de que não é senão uma aspiração de que a transição se realize – é válida
Giovanni Agnelli. apenas para as elites, apenas para aqueles que se tornarão efetivamente
comandantes, que ocuparão posições supra-ordinárias? Aos demais, resta
apenas o papel de serem heterodeterminados, de serem a tripulação do
navio. Trata-se, assim, de uma metáfora completamente equivocada para
os outros grupos sociais.
“Aqueles nas fronteiras” são os jovens que demonstram expectativas de
mobilidade social, os que vivem uma socialização antecipatória do que
ambicionam, arriscando-se em várias frentes, até mesmo mimetizando os
comportamentos típicos das elites. Foi para essa área social, em particular,
que se dirigiu a maioria das reflexões desenvolvidas neste artigo. São os
jovens que sentem com mais força o efeito de desilusão das promessas e
sobre os quais pesam majoritariamente as ambigüidades e as ambivalências
dos mecanismos sociais de premiação, provocando assim uma queda na
confiança e uma ênfase nas dinâmicas auto e heterodestrutivas. Nos siste-
mas ocidentais da modernidade radical, em conseqüência dos processos de
generalização dos direitos de cidadania, sob o influxo de demandas e bata-
lhas por democratização e inclusão social conduzidas pelos movimentos
operários e do mundo do trabalho, essa é uma área social cada vez mais
ampla – os filhos da pequena burguesia e da maioria da classe operária esta-
bilizada. Um processo, até o momento, útil para a inovação dos sistemas
capitalistas, tanto pelo viés da produção como pelo do consumo. A época
de contestação do final dos anos de 1960 pode, nesse quadro, ser vista
como o primeiro período no qual se experimentou a ampliação da zona de
fronteira. Ao mesmo tempo, naqueles anos verificou-se a convergência en-
tre uma parte “daqueles na fronteira” e “daqueles ainda não incluídos”, os
quais, levantando dúvidas sobre seu próprio futuro, contribuíram para a

82 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Salvatore La Mendola

explosão de ambivalências e ambigüidades, pondo à luz as promessas fra-


cassadas dos mecanismos de promoção aos postos de responsabilidade.
“Os excluídos”, o terceiro grupo, representa aqueles sobre os quais é
mais difícil falar. Trata-se de jovens que, por condição ou escolha, estão
completamente excluídos dos trajetos institucionalizados de transição para
a vida adulta. Suas modalidades de ingresso em percursos de risco têm
características de maior destrutividade, como demonstram as notícias pro-
venientes, em particular, das periferias dos grandes aglomerados metropo-
litanos. Nesse grupo, contudo, além das práticas mais destrutivas, há tam-
bém segmentos que promovem modelos de risco – que, em muitas ocasiões,
ainda que apenas no nível do desejo ou da utopia, surgem na vida de
muitos que não pertencem a esses grupos sociais –, nos quais a competição
não se transforma em agonismo. Uma cultura que assume a idéia de que
nem tudo que é possível deve ser feito. Também essa tendência se inclui na
cultura do risco, na medida em que nessas ações o agente aceita pagar pelas
conseqüências, desde que persiga um valor. Aos “perigos de desordem so-
cial”, estabelecidos pelo conjunto dos indivíduos pertencentes a esse ter-
ceiro grupo social, pode-se responder com um chamamento à ordem ou,
igualmente, enfrentando a questão de como lhes oferecer as oportunida-
des de reentrar no jogo.
É preciso, portanto, diferenciar a análise com base no estrato social de
pertencimento, mas também levar em conta como as orientações culturais
competem entre si e quais se tornam, com o tempo, dominantes, e como se
relacionam com as outras subculturas. Não parece convincente a interpre-
tação difusionista, segundo a qual, na Itália, está em curso uma importação
da cultura de risco de matriz anglo-saxã. As interpretações difusionistas, do
tipo “a América é nosso futuro, na Itália reproduzimos o que aconteceu lá
com dez anos de atraso”, são excessivamente mecanicistas para serem crí-
veis, pois perdem de vista as viscosidades, os conflitos, os sincretismos que
se efetuam entre as diferentes orientações37. Embora certa dinâmica de di- 37. Sobre esse aspecto,
fusão seja inegável, deve-se, contudo, discutir expressamente as formas pe- ver La Mendola (1996),
onde, como exemplo
las quais as correntes culturais que tendem à globalização se diversificam em
dessa conflituosidade,
diferentes contextos. Devem-se reconhecer, conjuntamente, as convergên-
faz-se referência, entre
cias e as divergências. Pode-se oferecer o exemplo de um tema estreitamen- outras, à figura de Nan-
te ligado à presente discussão: é bem verdade que os sistemas de welfare se do Moriconi, levada às
difundiram em todo o mundo ocidental, mas uma coisa é falar do Welfare telas por Alberto Sordi
Capitalism de tipo liberal, como o norte-americano, e outra falar do modelo em Un americano a
Roma.
social-democrático escandinavo ou dos diferentes modelos conservadores

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O sentido do risco, pp. 59-91

38.Ver a respeito Min- de tipo germânico ou italiano38. São modos distintos de interpretar a cons-
gione (1997). trução das redes de proteção e, portanto, culturas distintas de elaboração do
risco. Isso significa, por exemplo, que o impacto da assim chamada cultura
New Age é necessariamente diferente em ambientes cujos princípios de
convivência social são imbuídos de puritanismo, se comparados àqueles
como dos católicos, nos quais, ainda que na forma de uma cultura subalter-
39. E, poderíamos acres- na39, de religiosidade popular, se manteve um espaço significativo para a
centar, não apenas no dimensão das emoções, do corpo e da duplicidade da pessoa.
nível da cultura subal-
terna, tendo em vista a
Observações não conclusivas
importância da icono-
grafia na cultura religio-
sa oficial. Ver, a propó- Como o Mickey Mouse aprendiz de feiticeiro do filme Fantasia de Walt
sito, a deixa oferecida Disney, nossa cultura evocou poderes sobre os quais não consegue propor
por Stone (1969). formas de regulamentação convincentes. Infelizmente, não existe nenhum
mágico experiente, nenhum mestre que, mesmo lançando um “olhar seve-
ro”, possa vir em nosso auxílio e devolver-nos a confiança. É possível, con-
tudo, empenhar-se na proliferação de contextos nos quais funcionem pro-
vas fortes, desafios significativos que produzam emoções relevantes para os
protagonistas, de modo a associar sujeitos dispostos a obedecer a esses pro-
cessos. Sujeitos sem delírio de onipotência e sem comportamentos precon-
ceituosamente demonizantes ou justificatórios.
Solicitar e despertar os carismas para, em seguida, não oferecer oportu-
nidades reais para demonstrá-los significa favorecer a emergência de per-
cursos de tipo catastrófico. Na maioria dos casos, as expectativas encontra-
rão igualmente espaços de expressão em dinâmicas infrutíferas, estetizantes
ou anestésicas para a descarga das emoções que produzem. Ou mesmo, na
ausência de alternativas, serão expressadas por meio de rituais e de simbo-
lismos de tradições facilmente veiculadas pela moda, como no caso das
40.Para uma leitura formas mais comerciais da New Age40.
crítica e cuidadosa do As pesquisas Iard, com efeito, mostram um decréscimo das associações
fenômeno, ver Lodi de caráter político e um aumento daquelas ligadas ao voluntariado (cf.
(1998).
Albano, 1997). Tal impulso demonstra a pouca disposição dos jovens –
mas não apenas deles – de esperar longas cadeias de interdependências
entre a própria ação e a ação dos demais agentes, até verem realizado um
determinado objetivo. A desconfiança e a desilusão com relação aos meca-
nismos institucionalizados de persecução de objetivos, e portanto aos me-
canismos institucionais de risco, estimulam a adoção de percursos dos quais
“se conheçam os resultados no próprio contexto da experiência” (Goff-

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man, 1971, p. 299), que é a característica fundamental do risco. Esses


percursos ao menos permitem experimentar a emoção que deriva do in-
gresso naquele si-mesmo previsto pela situação e, além disso, por exemplo,
ver imediatamente o sentido do próprio agir nos olhos e nas emoções da
pessoa que é ajudada. As emoções experimentadas nessas ações têm o mes-
mo significado do sentir-se vivo por efeito das práticas arriscadas.
Nesse quadro, considerar o risco como equivalente ao jogo de azar im-
plica um desserviço à cultura da responsabilidade e, ao mesmo tempo, pelo
peso moralista que essa equivalência comporta, torna impossível a análise
das motivações de quem se encontra em situações de imponderabilidade. A
imponderabilidade não pode, certamente, ser vista como um sucedâneo,
como um substituto desvalorizado da responsabilidade. Nos jogos de azar,
os jogadores demonstram a si próprios que estão vivos, experimentam isso
com o próprio corpo, pelo conjunto das percepções e das emoções por que
passam. Essa é a sua necessidade: está em jogo uma real e verdadeira “cele-
bração da autodeterminação”, trata-se de uma demanda de aquisição de
poder, de uma questão de empowerment.
O deslizamento semântico do termo risco, passando a significar perigo,
assinala o medo que nossa sociedade exprime com relação à demanda prag-
mática de aquisição de poder por parte dos protagonistas, ao ato de assumir
responsabilidade que começa pela escolha de quais riscos enfrentar. Assina-
la, além disso, a tentativa recorrente de ocultar o fato de que o perigo é
imanente. Um modo de pensar que, dito de outro modo, acredita ser capaz
de anular os aspectos indesejáveis do viver, como se, com essa mudança,
fosse pronunciada uma fórmula mágica. A gestão do risco é, antes de tudo,
uma questão de ordem moral, e não diz respeito apenas à dimensão física
das pessoas, mas, em primeiro lugar, à questão da reputação construída por
meio de rituais de respeito e de boa conduta previstos pela sociedade. Dis-
cutir pragmaticamente os rituais de respeito e boa conduta significa pôr em
crise esse mundo tal como existe. No nosso caso, trata-se de uma civilização
que exprime a tentativa, em parte efetivamente bem-sucedida, de criar ilhas
pacificadas de convivência social, tornando previsíveis os comportamentos
alheios, subtraindo-os das oscilações aleatórias de quem está à mercê das
próprias emoções e, em particular, da expressão da própria agressividade.
Os desvios hetero e autodestrutivos – que devem ser considerados con-
ceitualmente distintos dos perigos estruturais dos trajetos de risco – de-
vem ser entendidos como a conseqüência lógica da desconfiança produzi-
da pelas ambivalências e pela irracionalidade, pelas promessas vãs dos

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mecanismos sociais. O fato de que, na Itália, não seja válida a relação entre
posse de um diploma, sucesso escolar e sucesso no mercado de trabalho –
ou seja, que exista o fracasso da afirmação das credenciais –, configura-se,
nesse sentido, como um impulso crucial para a determinação de dinâmicas
de desconfiança. O impulso para arriscar-se trabalha, de qualquer modo,
no interior das personalidades; permanece a necessidade de demonstrar o
próprio valor a si mesmo e aos outros, ainda que com características de
tipo narcisístico ou exibicionista. Esse impulso realiza-se de modo bastan-
te integrado com o corpo, por meio de códigos que manifestam direta-
mente os vínculos sociais e exprimem pragmaticamente o fracasso das pro-
messas buscando, mesmo sem um projeto, construir nas interações face a
face vínculos sociais que possam perdurar ainda que apenas no aqui e
agora. Desse ponto de vista, assumem grande importância os círculos so-
ciais dos pares, que por vezes algum observador apressado chama de “ban-
do”, esquecendo que todo sistema simbólico se funda e se reafirma em
relações diretas, face a face, na microrritualidade da vida cotidiana: é nesse
contexto que cada um constrói sua própria imagem e sua própria reputa-
ção; dinâmica ainda mais importante em uma sociedade constituída a par-
tir do capital social e de relações, a partir do estilo. No entanto, ninguém
chamaria de “bando” os amigos do grupo de tênis ou os participantes de
um salão, embora a dinâmica não seja muito distinta. No máximo, pode
ser verdade que, ao menos na realidade italiana, os círculos sociais de per-
tencimento ou de referência funcionassem no passado com maiores aber-
turas para o contato entre as gerações, enquanto hoje a segmentação em
faixas etárias é mais demarcada.
Deve-se afirmar, contudo, que não é mais suficiente pensar em reviver –
ou afirmar pela primeira vez – regras precisas para tentar ser um “país nor-
mal”. Trata-se de ultrapassar a separação entre racionalismo e emoções, e até
mesmo aceitar o desafio – como sugeria Fachinelli (1989) – das experiências
41. Sem cair, por outro
lado, no erro de inter-
de êxtase, sem por isso renunciar a tudo que a racionalidade produziu em
pretar a aceitação desse nossa cultura41. Nesse quadro, a era da divisão funcional dos papéis entre
desafio como uma con- regras racionalistas masculinas e cuidado/acolhimento femininos já passou,
tramodernização e um bem como o modelo de civilização fundado no controle-limitação da di-
retorno ao “reencanto”, mensão corpórea: a separação entre o racionalismo do professor de fonética
como fazem, por exem-
Higgins e o calor humano do coronel Pickering de Pigmalião não produz
plo, Berger e Kellner
(1991), claramente apa- menos danos que a separação entre as boas e civis maneiras do doutor Jekyll
vorados diante dessa e as selvagens emoções de mister Hyde. De certo modo, paradoxalmente, as
perspectiva. realidades consideradas mais atrasadas, mais ancoradas nas tradições, menos

86 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


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invadidas pelo racionalismo, encontram-se “adiante” – admitindo-se a pos-


sibilidade de empregar um modelo evolucionista – daquelas mais típicas da
modernidade. O espaço que a multiplicidade dos eus próprios manteve nes-
sas tradições culturais constitui, com efeito – não sem contradições e ambi-
valências –, um patrimônio simbólico do qual a população pode fazer uso
ou ao qual pode voltar a encarar.
A modernidade áurea procurou administrar o desafio do próprio impul-
so ao risco, à afirmação de si para além dos limites – do que Robinson Crusoé,
de Defoe, é emblemático –, apelando para a unidade e a coerência da pessoa,
por um lado, e tentando definir instituições sociais de regulamentação das
incertezas, por outro. A modernidade radical encontra-se diante de desafios
análogos. Tem, antes de tudo, a necessidade de identificar palcos para a cons-
trução e a experimentação pragmáticas de dinâmicas de confiança. Deve, além
disso, mostrar-se capaz de consentir no aumento do poder decisório dos su-
jeitos, inscrevendo o emprego de tais poderes em vínculos sociais que, além
de demonstrarem ser efetivamente eficazes e não ambivalentes, consigam, ao
mesmo tempo, levar em conta tanto a dimensão emocional como as necessi-
dades de confiabilidade relacional das pessoas envolvidas.
Este trabalho é dedicado aos não-mestres que, por um efeito não pre-
visto de sua incapacidade de assumir a responsabilidade de ser um ponto
de referência e de acompanhar o enfrentamento das incertezas, pessoais e
externas, de seus não-alunos, obrigam-nos a enfrentar sozinhos os riscos
de seu trajeto de experimentação, acabando assim por facilitar o desenvol-
vimento neles de dinâmicas auto e heterodestrutivas que seria um sinal de
sabedoria conseguir evitar.

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Resumo
O sentido do risco
O risco é um tema central da cultura da modernidade. A cultura dominante na mo-
dernidade tem a pretensão de afirmar como universal a idéia de que o perigo deve ser
enfrentado segundo os princípios do racionalismo individualista e utilitarista, que de-
vem guiar o agente que assume a responsabilidade pelo risco. O risco adquire forma e
relevância particulares para a fase juvenil na medida em que representa um processo de
construção, experimentação e afirmação da própria identidade. Um processo cada vez
mais fragmentado e ambíguo que, atualmente, realiza-se por meio de um alongamen-
to da transição à vida adulta no âmbito de uma dinâmica geral de desinstitucionaliza-
ção do curso da vida. Está em jogo aqui outro impulso típico da modernidade: o da
reflexividade que, como sugere Giddens, é o desafio crucial da fase radical da moder-
nidade. Podemos reconhecer nas ações dos jovens, em particular precisamente naque-
las de tipo arriscado, a realização do imperativo de duvidar: por meio de seu agir,
cancelam a suspensão da dúvida e realizam uma forma pragmática de reflexividade. A
modernidade radical encontra-se diante de desafios. Tem, antes de tudo, a necessidade
de identificar palcos para a construção e a experimentação pragmática de dinâmicas de
confiança. Deve, além disso, mostrar-se capaz de consentir no aumento do poder
decisório dos sujeitos, inscrevendo o emprego de tais poderes em vínculos sociais que,
além de demonstrarem-se efetivamente eficazes e não ambivalentes, consigam, ao mesmo
tempo, levar em conta tanto a dimensão emocional como as necessidades de confiabi-
lidade relacional das pessoas envolvidas.
Palavras-chave: Modernidade; Sociologia da juventude; Risco; Reflexividade.

Abstract
The meaning of risk
The risk is a central theme of the culture in modernity. The dominant culture in
modernity has the pretension of affirming as universal the idea that dangers should be
faced according to the principles of individualistic rationalism and utilitarianism that
should guide the agent that takes the responsibility for the risk. The risk assumes form
and relevance for the juvenile phase in the measure as it represents a construction

90 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Salvatore La Mendola

process, an experimentation and statement of one’s own identity. A process more and
more fragmented and ambiguous that takes place through a prolongation of the tran-
sition to the adult life in the extent of a general dynamics of de-institutionalisation of
life. What is at play here is another typical demand of modernity: the one for reflexiv-
ity, as suggested by Giddens, it is the crucial challenge of the radical phase of moder-
nity. We can recognize in the youths’ actions, and precisely in those of a risky kind,
the accomplishment of the imperative of doubting: through their acts, they suspend
the suspension of the doubt, they accomplish a pragmatic form of reflexivity. The
radical modernity produces a challenge. It has to be able to identify the proper stages
for the construction and pragmatic experimentation of dynamics of confidence. It has
to afford the empowerment of the agents, inscribing the use of such powers in social
bonds that, besides being demonstrably effective and no ambivalent, do take into
account as much the emotional dimension as the needs of the involved confidence in
people’s reliability.
Keywords: Modernity; Sociology of youths; Risk; Reflexivity.

Texto recebido e apro-


vado em 26/9/2005.
Salvatore La Mendola
é professor associado de
Sociologia da Comuni-
cação na Faculdade de
Ciência Política da Uni-
versidade de Pádua. E-
mail: salvatore.lamendo
la@unipd.it

novembro 2005 91
A geração dos anos de 1960
o peso de uma herança
Irene Cardoso

Os escritos sobre a geração de jovens dos anos de 1960 têm se caracteriza-


do, desde então, por apontar a profunda mutação cultural produzida pelos
diversos movimentos daquele momento, ao mesmo tempo em que acen-
tuam os efeitos dessas mudanças sobre as gerações seguintes. Essas gerações
seriam herdeiras das mudanças advindas com os movimentos sociais da-
queles anos, que prosseguem, em parte, nos anos de 1970: as transforma-
ções da imagem da mulher, com o feminismo; a liberação sexual; as modi-
ficações na estrutura da família; a entronização do modo jovem de ser
como estilo de vida; a flexibilização das hierarquias e da autoridade; a cons- 1. Essa questão aqui abor-
trução de novas relações entre o adulto e o jovem e o adulto e a criança; a dada resulta de uma per-
cepção relativa a greves re-
criação de um novo imaginário da fraternidade; a introdução do “novo” na
centes do movimento es-
política; a emergência das questões ecológicas como se fossem também po-
tudantil, nas quais a ge-
líticas, para ficar com algumas das referências mais destacadas. ração atual de estudantes,
As mudanças decorrentes do movimento histórico de uma geração – de em certos momentos, via-
amplitude internacional, mas com características particulares nos seus di- se realizando um “novo
versos contextos –, ao se congelar em uma unidade imaginária, “geração 68”, tendo sido assim re-
conhecida, em algumas
anos 60” ou “geração 68”, preservam o que seria seu menor denominador
situações, por figuras da
comum, ao mesmo tempo em que perdem sua historicidade. Esse proces- geração anterior, contem-
so constrói a identidade heróica de uma geração, cujo peso para as gerações porânea aos acontecimen-
posteriores tem sido considerável, senão desmedido1. tos de 1968.
A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

Os movimentos dos anos de 1960, seja na sua expressão mais propria-


mente política, seja na contracultural, ou mesmo nos modos em que com-
binaram essas expressividades, tiveram como traço característico a trans-
gressão de padrões de valores estabelecidos. Transgressão não no sentido de
uma pura negatividade, ou de uma negação absoluta dos limites estabeleci-
dos, mas de um movimento que os atravessa afirmando novos limites. Em
outros termos, um movimento que é de negação de valores estabelecidos
mas que na sua face positiva se lança no risco da afirmação de novos valores.
Pode-se dizer que os movimentos políticos, especialmente os do ano de
1968 ou que a ele estiveram referidos como antecedentes ou desdobra-
mentos, caracterizados pela simultaneidade de suas manifestações em di-
versos países do mundo – nos do capitalismo central, na América do Norte
e na Europa, e nos da periferia desse sistema, na América Latina, na África
do Norte, na Ásia, incluindo alguns países do Leste Europeu, sob a expe-
riência do “socialismo real” –, transgrediram as formas tradicionais de ação
política que caracterizavam a esquerda até então. Os jovens contestadores
que realizaram esses movimentos negavam as práticas e as concepções dos
partidos tradicionais da esquerda. Ou eram dissidentes desses partidos,
formando novas organizações políticas, ou participavam do grande con-
tingente de massa que realizava as manifestações de protesto, recusando
qualquer vinculação partidária e posicionando-se de fato fora da esfera de
poder de qualquer organização. A experiência desses jovens, nesse mo-
mento histórico, teve a marca do que se pode chamar de “cultura-revolta”.
Essa noção é aqui utilizada a partir de sua construção em Julia Kristeva
(2000), central em seu livro, no qual, para pensar a atualidade política,
diagnostica o que chama de “impasse da revolta” que a caracterizaria. Para
realizar essa análise, lança mão da psicanálise (Freud) e de textos literários
(Aragon, Sartre, Barthes), referências fundamentais do século XX. Kriste-
va considera a “necessidade de retomar a noção de revolta” para realizar a
análise sobre o momento atual. Tomando como referências históricas da
atualidade as “democracias pós-industriais e pós-comunistas”, aponta o
“vazio de poder”, a “ausência de projeto”, sinais da “nova ordem mundial”
que aparece como uma ordem “normalizadora e falsificável”, o que justifi-
caria sua interrogação sobre a possibilidade ou não da revolta. Resumindo,
e certamente perdendo os passos da análise fina que Kristeva realiza, esta-
ríamos atualmente “entre dois impasses: fracasso das ideologias revoltadas,
por um lado, enxurrada da cultura-mercadoria, por outro”. Após o diag-
nóstico desse fracasso, Kristeva reafirma a necessidade de retomar a ques-

94 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

tão da revolta, apontando, a partir de Freud, o que a psicanálise nos diria:


“a felicidade só existe ao preço de uma revolta. Nenhum de nós se satisfaz
sem enfrentar um obstáculo, uma proibição, uma autoridade, uma lei que
nos permita nos avaliar, autônomos e livres” (Idem, pp. 19-23).
Um escrito de Marcuse, de 1976, em que ele refletia sobre os aconteci-
mentos de 1968, expressa esse caráter ao mesmo tempo de negação do
2. Essa passagem, relati-
existente e de suas práticas políticas, incluindo as da esquerda tradicional, va à idéia de transforma-
e de afirmação de algo novo por meio de também novas formas de luta. ção da sociedade, é eluci-
Ele afirma que dativa da aceitação na
obra de Marcuse das he-
ranças de Marx e de
[...] a originalidade do movimento [foi] ter produzido uma nova definição de revolu-
Freud, deslocadas e rein-
ção [grifos do autor], colocando-a em relação com novas possibilidades de liberdade, terpretadas. O trecho ci-
novas potencialidades do desenvolvimento socialista, ao mesmo tempo produzidas e tado por Garcia está em
bloqueadas pelo capitalismo avançado. Novas dimensões abriram-se assim para a Actuels, de Marcuse, de
transformação da sociedade [grifo meu]. De agora em diante, essa transformação não 1976 (Paris, Galilée, p.
14).
pode ser apenas uma subversão econômica e política, isto é, o estabelecimento de
um outro modo de produção e de novas instituições; trata-se antes de tudo de sub- 3. De Certeau (1982, p.
verter o sistema dominante de necessidades e suas possibilidades de satisfação (Mar- 50) aponta na “ciência
histórica” uma inflexão,
cuse apud Garcia, 1999, p. 16)2.
importante nos anos de
1960, no que se refere às
As grandes manifestações de massa contra a guerra do Vietnã, as lutas relações necessárias com
contra a discriminação racial e as manifestações estudantis, nos Estados outras disciplinas, que a
Unidos, o “maio de 68” na França, os movimentos estudantis que irrompe- partir daí, mas em mo-
mentos diversos, pode ser
ram em diversos países do mundo e a Primavera de Praga foram interpreta-
percebida como também
dos como expressão de uma “rebelião mundial”, pela sua extensão, pela tendo ocorrido nas ciên-
aproximação dos ideais, pelas práticas políticas semelhantes e pela partici- cias humanas e sociais: “a
pação em massa de jovens. Rompendo com as práticas políticas tradicio- pesquisa não se põe mais,
nais, essas manifestações propunham uma “nova definição de revolução”, apenas, em busca das
compreensões que tive-
mantendo o nome herdado da tradição porém redefinindo seu significado
ram êxito. Retorna aos
e sua prática. Pode-se dizer, sem entrar na discussão conceitual que envolve objetos que não com-
a noção de revolução na tradição moderna e nas novas formas de expressão preende mais”. Constrói
assumidas pelos movimentos sociais dos anos de 1960, que estava ocorren- uma “cientificidade am-
do, naquele momento, uma “experiência de revolta”, como movimento de pliada que se confronta
questionamento da concepção e das práticas das experiências históricas da com as zonas que aban-
dona como seu resíduo
tradição revolucionária moderna.
ou reverso ininteligível”,
Essa experiência de revolta estava na base das problematizações cons- o que conduz à constru-
truídas pelo pensamento (na filosofia e nas ciências humanas)3, presente ção de novos objetos e
nas formas de expressão artística e nas ações de caráter propriamente políti- novas abordagens.

novembro 2005 95
A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

co. Como questionamento e transgressão dos limites estabelecidos, a expe-


riência de revolta instaurava um movimento que visava a pôr em xeque
fundamentalmente o poder instituído, a partir da contestação de suas prá-
ticas (na qual esteve presente o recurso da violência, que convivia com
ideais pacifistas), mas sobretudo dos valores que sustentavam o funciona-
mento do “sistema”. Os temas desses movimentos sociais formavam o es-
pectro das grandes questões do século XX. Algumas dessas questões não
eram propriamente novas: provinham do abalo político, cultural e ético
provocado pela Segunda Guerra Mundial. Herança da geração que viveu a
guerra, esses temas foram retomados e reinterpretados a partir de experiên-
cias políticas do pós-guerra e dos anos de 1950: a revolução socialista chi-
nesa, a guerra da Coréia, a guerra da Argélia, as lutas de libertação contra os
colonialismos em vários lugares, a “descoberta” do totalitarismo sob o so-
cialismo, a partir dos fatos que vieram à luz sobre o stalinismo, e, no final
dos anos de 1950, início da década seguinte, as lutas de libertação na Amé-
rica Latina, em especial a experiência de Cuba e da guerrilha.
Essa apropriação que não significou mera repetição, mas recontextualiza-
ções, deslocamentos, redefinições, interpretações, novas questões. Por que a
guerra? Por que as guerras? Por que o extermínio? Por que a tortura? Por que
o racismo? Por que o totalitarismo, o autoritarismo e as ditaduras? Por que a
violência? Há uma violência legítima? O que é o socialismo real? O que é o
socialismo? O que é a revolução? O que é autoridade? O que é dominação?
O que é liberdade?
A experiência da revolta constitui-se nesse momento histórico dos anos
de 1960 como movimento de negação e de abertura. Atravessar os limites
estabelecidos era negar o poder que faz a guerra, que extermina populações,
que tortura, que produz o racismo e o sustenta, que se transfigura em terror
de Estado sob o capitalismo, mas também sob o socialismo real. Negar o
poder que é violência, que petrifica as instituições. Como movimento, era
também projeção de um dado futuro (um novo horizonte, novos limites),
que não se fixava em uma recusa, mas projetava ideais de liberdade. Movi-
mento nomeado de diversos modos, que indicavam concepções teóricas e
práticas não homogêneas e mesmo conflitantes, as lutas de libertação, as
lutas antiautoritárias, as lutas “revolucionárias” da geração dos anos de
1960 tinham em comum o questionamento da situação presente e o objeti-
vo de uma transformação social.
Essas lutas, embora não homogêneas nos seus discursos e nas suas práti-
cas, foram contemporâneas nesse contexto histórico e tiveram em comum

96 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

o fato de se constituir em experiências de revolta e visar a uma transforma-


ção social. As lutas de libertação tiveram tanto o caráter de lutas nacionalis-
tas como socialistas. As lutas revolucionárias eram propostas a partir do
espectro ampliado da noção de revolução: desde a forma clássica das revo-
luções socialistas do século XX até os novos sentidos atribuídos à revolução,
como novas possibilidades de liberdade e novas potencialidades de desen-
volvimento e realização do socialismo, que emergem a partir da crítica às
experiências do socialismo real. O que as distingue das assim chamadas
lutas antiautoritárias é fundamentalmente o modo de conceber o poder e,
conseqüentemente, as formas de luta. As lutas de libertação e as lutas revo-
lucionárias visam à tomada do poder e o concebem como o lugar da domi-
nação e da repressão. As lutas antiautoritárias (e seus desdobramentos nos
anos de 1970) foram assim nomeadas por Michel Foucault a partir de uma
concepção precisa do poder como “relação de poder”. Diversamente dos
enfoques que definiam o poder pelo aspecto da repressão, o que ele propu-
nha era analisar as relações de poder por meio do antagonismo de suas es-
tratégias, o que é exemplificado pelas oposições que se teriam desenvolvido
naqueles anos: “oposição ao poder dos homens sobre as mulheres, dos pais
4. Essa noção, presente
sobre os filhos, do psiquiatra sobre o doente mental, da medicina sobre a
nos anos de 1960 como
população, da administração sobre os modos de vida das pessoas”. Essas reinterpretação a partir
lutas eram “transversais”, não limitadas a um país; eram “imediatas”, con- desse contexto histórico,
testavam o poder mais próximo e não esperavam soluções dos problemas é tomada de uma tradi-
no futuro (“isto é, liberações, revoluções, fim da luta de classe”), “lutas ção, a do movimento do
surrealismo, que procu-
anárquicas”; lutas contra o “governo da individualização” e a afirmação do
rava conciliar o “transfor-
“direito de ser diferente”; “lutas contra os privilégios do saber”; lutas que mar o mundo” de Marx
giram em torno da pergunta “Quem somos nós?”. Essa análise está presente com o “mudar a vida” de
no texto “O sujeito e o poder”, de Foucault, de 1982 (cf. Foucault, 1995, Rimbaud. Releituras e re-
pp. 234-235). interpretações de uma tra-
dição herdada, realizadas
As experiências de revolta também tiveram como ideal “mudar a vida”4,
pelos movimentos dos
tema característico dessa década, presente sobretudo, mas não exclusiva- anos de 1960 sobre o sur-
mente, nos movimentos contraculturais. Expor os grandes traços dos mo- realismo da década de
vimentos de jovens dos anos de 1960 envolve o risco de torná-los uma 1920, e pelo surrealismo
geração caricaturada. O objetivo aqui é chamar a atenção para esse risco, sobre Rimbaud (século
quando essa geração passa a ser tratada pelos seus “herdeiros” como uma XIX). Cf. para essa dis-
cussão sobre o caráter de
categoria vazia, sem historicidade. Sem condições de desenvolver detalha-
revolta do surrealismo, o
damente análises sobre esses movimentos nos diversos países em que ir- livro de Camus, O ho-
romperam, sobre os movimentos de natureza mais propriamente política e mem revoltado (1997, pp.
sobre os contraculturais, pode-se, no entanto, alertar para o fato de que 115-123).

novembro 2005 97
A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

5. Indicativo da combina- eles não foram homogêneos, apesar de apresentar questões comuns e ter
ção entre as expressões um perfil jovem. A contracultura aconteceu como movimento preponde-
contraculturais e as mais
rantemente nos Estados Unidos, embora traços dela tenham estado pre-
propriamente políticas é
o trecho do manifesto afi- sentes em outros países. Os movimentos de caráter mais político também
xado à entrada principal tiveram traços contraculturais, assim como os movimentos contracultu-
da Sorbonne, em maio de rais, que, embora rejeitassem fortemente as maneiras de fazer política de
1968, do qual restou seus jovens contemporâneos, também se viam fazendo política a seu modo.
como mais conhecida a
Assim, “mudar a vida” condensa uma diversidade de significados e esteve
frase final, como lema de
1968: “A revolução que
presente como ideal em vários lugares, tanto nas práticas cotidianas como
está começando questio- nos ideais sociais, políticos, culturais e éticos alternativos aos existentes.
nará não só a sociedade Os movimentos contraculturais, que irromperam com força nos Esta-
capitalista como também dos Unidos, direcionaram suas formas de expressão para a política, as artes
a sociedade industrial. A (na poesia, na música, no cinema, nas artes plásticas), a educação, as rela-
sociedade de consumo
ções intersubjetivas (na família, no amor, no sexo, na comunidade) e para o
tem de morrer de morte
violenta. A sociedade da cotidiano como contestação aos efeitos produzidos pela sociedade indus-
alienação tem de desapa- trial avançada, pela “tecnocracia”5. Na sua forma “organizacional” mais de-
recer da História. Estamos senvolvida, caracterizada pelos processos de racionalização em grande esca-
vivendo um mundo novo la, pela eficiência, pela modernização, pelo planejamento, a sociedade
e original. A imaginação
norte-americana (a que melhor realizou esse modelo), instaurando a era da
está tomando o poder”
(Roszak, 1972, p. 33). “engenharia social”, ampliava a administração para além do núcleo econô-
mico-industrial. O modo de vida, o lazer, a educação, a política, a cultura
6. Esse tipo de análise,
com algumas diferenças,
como um todo tornavam-se administráveis e administrados6.
foi desenvolvido em 1968 Talvez se possa dizer que o conflito de gerações sob a contracultura
e 1969 por Roszak (1972), tenha sido mais acentuado. A ruptura com a geração anterior teria sido
Birnbaum (1968) e Le- mais radical, especialmente no que se refere às experiências com as drogas
febvre (1968), e já vinha psicodélicas, ao misticismo oriental e às vivências em comunidade, expe-
sendo construída por Mar-
riências que, embora remontem a tradições anteriores, ao estarem articula-
cuse (1967), em 1964. Es-
critas no momento em das em movimentos coletivos de contestação a certo modo de vida, com
que aconteciam os movi- produções na literatura, na música e nas artes plásticas, podem ser consi-
mentos, essas análises têm deradas uma invenção dos anos de 1960. Essa geração empreendeu a bus-
o caráter de textos analíti- ca de novas formas de sensibilidade que se tornaram radicalmente críticas
cos, de referências para o
em relação às da geração de seus pais, que era considerada aprisionada a
pensamento e as ações
contraculturais naquele
uma rotina conformista. Birnbaum constrói uma reflexão sobre essa ques-
contexto histórico, cons- tão que vale a pena ser incorporada:
tituindo-se, ao mesmo
tempo, em verdadeiros [...] a geração oriunda da elite da sociedade industrial e de sua intelligentsia técnica
documentos da época. Os negou tanto a legitimidade quanto a eficácia dos métodos de ensino que seguiu.
livros Eros e civilização, de
Passou do descontentamento e da desobediência para a revolta. Fazendo isso, não

98 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

hesitou em estender sua campanha contra as instituições políticas centrais da socie- Marcuse, de 1955, e Vida
dade. Podemos notar de passagem que ela freqüentemente indicou, pelo estilo das contra morte, de Norman
Brown, de 1959, que
relações interpessoais que adotou, por seu comportamento e sua maneira de vestir,
abordavam preponderan-
o seu desprezo para com as convenções seguidas por seus pais. Resumindo, aqueles temente a questão da sub-
a quem a sociedade industrial oferecia perspectivas de futuro assegurado voltaram- jetividade por meio de
lhe as costas e procuraram avançar para o desconhecido: para uma hipotética co- uma leitura da psicanáli-
munidade de justiça, de razão e de alegria (1968, p. 195). se, também foram referên-
cias importantes para o
movimento contracultu-
Afirmar que uma experiência de revolta marcou essa geração e que seu ral (cf. Marcuse, 1968;
traço foi a transgressão dos valores estabelecidos não significa que essa ex- Brown, 1972).
periência tenha sido generalizada, nem inteiramente originária nos anos de
1960. A noção de traço, entendida na acepção de uma marca distintiva,
permite, a partir da identificação de sua presença ou ausência, explicitar
momentos em que a geração dos anos de 1960 poderia ser caracterizada
como uma experiência de revolta, assim como outros em que essa expe-
riência estaria ausente. A possibilidade dessa percepção é importante na
medida em que permite questionar o mito que foi sendo construído sobre
essa geração, quando sua imagem se congela na forma de uma unidade
imaginária.
A experiência de revolta tal como está sendo pensada é, antes de tudo,
um movimento de questionamento de limites estabelecidos, negando, rein-
terpretando e projetando valores. Nesses termos, pode ser considerada um
movimento de “desidentificação permanente”, de revolta contra as identi-
dades, e de afirmação de outros limites (valores). A revolta não se confundi-
ria nem com a negação absoluta (a revolta absoluta), como já foi dito, o que
levaria a uma abolição de limites a partir de uma “liberdade ilimitada do
desejo” (de um “gozo pleno”), nem propriamente com a revolução que, ao
pautar-se pelas ideologias do consentimento unânime, trairia suas origens
revoltadas. A experiência de revolta não pode estar desprovida, ainda, de
memória, que permitiria a criação de uma tensão permanente, necessária ao
exame dos acontecimentos na história, entre o que seria revolta e o que seria
“traição da revolta” – a petrificação de um consenso ou a inexistência de
qualquer referência à lei, a algum limite, ambas situações que podem estar
na raiz das sociedades autoritárias e mesmo totalitárias. Há uma passagem
do livro de Camus (1997) que resume bem essa questão:

O predomínio absoluto da lei não é a liberdade, mas também não o é a disponibi-


lidade absoluta. Todos os possíveis somados não dão a liberdade, mas o impossível

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A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

é escravidão. O próprio caos também é uma servidão. Só há liberdade em um


mundo onde o que é possível e o que não o é se acham simultaneamente definidos.
7. Essa construção sobre Sem lei não há liberdade” (p. 92)7.
o significado da experiên-
cia da revolta foi realiza-
Como já foi apontado, há traços na geração dos anos de 1960 que
da a partir de Kristeva
podem ser considerados herdados da geração que viveu a experiência da
(2000) – em especial o
capítulo “Sartre, ou ‘Te- Segunda Guerra Mundial e do pós-guerra. Questões construídas no regis-
mos razão de nos revol- tro daqueles contextos históricos, mas que foram retomadas e reinterpre-
tar’” – e de Camus (1997). tadas na atualidade dos acontecimentos da década de 1960, o que significa
dizer que a experiência de revolta dessa geração tem uma história e uma
memória. Considerar essa geração como herdeira de traços de experiências
de revolta da geração anterior significa apresentá-la na perspectiva de uma
linhagem e, portanto, de uma filiação. Como em toda herança, algo se
impõe à geração seguinte – ideais, modos de pensar, visões de mundo – e
é recebido antes mesmo de ser escolhido, o que constituiria seu aspecto de
passividade. No entanto, a herança não se restringe a essa característica:
outra, talvez mais importante, é a da escolha daquilo que é recebido. Essa
escolha é o movimento que parte de uma decisão de reafirmar a herança,
não apenas aceitá-la, mas “relançá-la de outra maneira”, reinterpretá-la,
criticá-la, deslocá-la, transformá-la. Diante dessa dupla injunção pode-se
falar, então, na possibilidade de uma filiação.
Filiação não é a mesma coisa que repetição e, portanto, não é nem uma
fatalidade, nem uma incorporação cega de referências da geração anterior;
aquilo que pode ser considerado uma continuidade entre gerações supõe
sempre uma separação. Os aspectos de continuidade (que não é a reprodu-
ção do mesmo), de diferença e, no limite, de negação (que não é absoluta,
mesmo quando aparenta ser) resultam daquela dupla injunção acima referi-
da, constituindo-se nos movimentos que conferem historicidade às gera-
8. Essa discussão sobre
ções. Embora possa parecer mais evidente considerar os movimentos de se-
a noção de geração foi
proposta e está desenvol-
paração de uma geração em relação à precedente a partir do ângulo do que é
vida no meu texto “A negado, continuidade também implica separação, ou não se poderia falar
questão da geração”, em diferença geracional. Para que possa haver elementos de continuidade
ainda não publicado. na herança e se possa identificar uma filiação possível, é preciso que sejam
Para a construção dessa realizados os movimentos de separação entre as gerações, condição mesma
discussão foi valiosa a
para definir o que seja ela8.
leitura do diálogo entre
Derrida e Roudinesco, Afirmar, então, que a geração dos anos de 1960 foi marcada pelo traço
“Escolher sua herança” de uma experiência de revolta e que essa experiência herdou outros tantos
(2004). traços de uma tradição anterior não pode levar ao entendimento de que

100 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

teria havido uma repetição. O que houve, do ponto de vista de uma con-
tinuidade, constituiu-se em leituras e releituras dessa tradição, reinterpre-
tações, críticas, deslocamentos, nos termos em que se definiu o movimen-
to da herança, em que está pressuposta uma separação.
Os movimentos dos anos de 1960 foram marcados por uma caracterís-
tica que pode ser considerada inédita em relação à geração precedente: sua
irrupção quase simultânea no plano internacional. Embora guardassem as
especificidades de suas realizações singulares, tiveram, sem dúvida, os tra-
ços de uma contestação do poder nas suas diversas manifestações. Aten-
tando para as referências mais significativas, sem esgotá-las, pode-se dizer
que a contestação visava desde ao poder de Estado, em especial sua mani-
festação militar na guerra do Vietnã, passando pelo poder universitário em
inúmeras universidades do mundo, até a suas manifestações em vários âm-
bitos da cultura e da subjetividade: o poder médico sobre o doente, o
poder psiquiátrico sobre o doente mental, o poder masculino sobre as
mulheres, o poder paterno sobre os filhos, o poder dos adultos sobre os
jovens, o poder da moral tradicional sobre os costumes e os comportamen-
tos. Vários desses movimentos, que mobilizaram temáticas que guarda-
vam uma proximidade maior ou menor com suas tradições de revolta,
ainda que tivessem uma dimensão internacional, não foram, de modo al-
gum, homogêneos. Atravessados por divisões e disputas de caráter político
e ideológico, não se constituíram como movimentos identitários. Essas
divisões e disputas em certos casos significaram orientações dos movimen-
tos ou de parte deles, que não tinham propriamente um conteúdo de re-
volta, mas expressavam reivindicações direcionadas a uma maior inclusão
na sociedade. Os movimentos estudantis, mesmo os de maio de 1968,
manifestaram esse tipo de divisão: desde a posição radical de negação da
universidade burguesa até posições de modernização da universidade que 9. Sem poder tratar dessa
questão em outras mani-
visavam a uma maior inclusão dos egressos, em um momento em que já
festações, é preciso ao
era visível a situação de “perda de valor da escola” e de incapacidade de
menos fazer referência ao
absorção pelo mercado de trabalho de uma qualificação em massa (cf. movimento operário, que
Rossanda, 1971; Morin, 1968; Touraine, 1968)9. no “maio de 1968” apre-
Destacar a historicidade desses movimentos, seja do ponto de vista de sentou esse tipo de divi-
sua linhagem e filiação, seja da não-homogeneidade de suas realizações, é são, e aos movimentos da
contracultura, que, pela
importante para acentuar, em contraposição, o processo de construção dos
sua quase imediata absor-
mitos dos anos de 1960, que se inicia já em 1968-1969. Esse processo de ção pelo “sistema”, reve-
depurar os movimentos de sua história, construindo identidades onde antes laram com força o aspec-
havia concepções heterogêneas e conflitantes, construindo o mito até o li- to de adaptação.

novembro 2005 101


A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

mite mesmo da produção de verdadeiras caricaturas, é resultado da lenta


assimilação, das apropriações e da normalização a que as idéias e as práticas
daqueles movimentos estiveram sujeitas nos anos que se seguiram. Quando
se produz o mito, com o congelamento de uma imagem identitária, o que se
estanca é o movimento da história e da memória (a historicidade dos movi-
mentos), anulando a perspectiva de uma referência histórica maior que vá
além dos estreitos limites da década, assim como os aspectos de heteroge-
neidade e conflito que caracterizaram aqueles movimentos.
Ao retomar textos publicados em 1968-1969, foi possível identificar a
preocupação, já naquele momento, com a assimilação dos ideais e das prá-
ticas dos movimentos contraculturais, percebida como parte de um proces-
so de apropriação por parte das campanhas publicitárias em escala mun-
dial. Esse processo é visto como uma depuração ou “ofuscação” do caráter
de contestação da contracultura, quando a “rebeldia jovem” se torna “espe-
táculo divertido para a sociedade opulenta” e se confirma a “debilidade de
seu relacionamento cultural com os desprivilegiados”. Aponta-se nesse
momento o caráter de exotismo que estaria sendo cada vez mais atribuído à
contracultura e o risco de sua redução a um “conjunto pitoresco de símbo-
los, gestos, maneiras de vestir e slogans, aceitos sem maior exame”. É inte-
ressante notar, ainda, a percepção naquele momento, e hoje tão mais evi-
dente, de que a contracultura “terminará como um estilo temporário,
continuamente deixado para a nova geração de adolescentes: um começo
promissor que jamais vai adiante”. Essa destinação seria o resultado da si-
tuação a que estaria exposta a cultura da juventude já nesse momento: a
“atmosfera de novidade que a envolveria e que lhe daria o caráter de moda
10. O livro de Roszak passageira” (Roszak, 1972, pp. 79-81)10. Vale destacar a percepção de Mar-
foi publicado nos Esta-
cuse, manifestada em junho de 1968, a respeito da dimensão midiática que
dos Unidos em 1968-
1969, com o título The seu pensamento e seus escritos adquirem: “Estou muito preocupado com
making of a counter isso. [...] Ao mesmo tempo, porém, trata-se de uma bela constatação de
culture. minha filosofia de que nesta sociedade tudo pode ser assimilado, tudo pode
11. A citação original ser digerido” (Marcuse, apud Roszak, 1972, p. 80)11.
encontra-se no artigo de O processo das diversas formas de apropriações políticas e ideológicas
Marcuse, “Varieties of produziu uma assimilação dos aspectos mais digeríveis pela ordem social,
humanism”, Center Ma- alguns de modo mais imediato, como os indicados acima, outros de modo
gazine (Center for the
mais lento, nos anos posteriores. Nos resultados desse processo predomina-
Study of Democratic
Institutions, Santa Bar- ram os aspectos provenientes dos movimentos contraculturais, especial-
bara, junho de 1968, p. mente os relativos à esfera dos comportamentos, com destaque para o que
14). foi assimilado como liberação sexual. Os aspectos de caráter político fica-

102 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

ram relativamente mais apagados, em virtude da crise dos valores socialistas


e do colapso da idéia de revolução (nas suas diversas versões), já nos anos de
1970, mas sobretudo a partir do início da década de 1990 (cf. Cardoso,
2001; Mantega, 1979). O movimento feminista, por exemplo, como parte
dos movimentos de 1968, é expressivo de uma não-homogeneidade inter-
na, de retomada de uma tradição de lutas reivindicativas pela emancipação
feminina, com destaque para a das sufragistas inglesas em 1919, que adqui-
re uma dimensão internacional com forte expressão nos Estados Unidos,
na França e na Alemanha, espalhando-se para outros países a partir dos
anos de 1970. Como movimento, trouxe para a pauta cultural questões
relativas à sexualidade feminina, ao direito de aborto, ao direito à escolha
da contracepção, aos papéis institucionalizados no interior da família de
esposa e mãe, assim como outras relativas ao mundo do trabalho. Marcado
por intensas divergências quanto à orientação política, desde o início (as
apropriações políticas e ideológicas), o movimento feminista constituiu-se
em um dos casos expressivos do processo de assimilação que foi lentamente
depurando os aspectos de contestação e sobretudo obscurecendo o caráter
de movimento cultural, até ficar reduzido a algumas conquistas usufruídas
hoje normalmente pelas novas gerações (sem dúvida importantes), mas
sem que elas possam ter a dimensão histórica desses comportamentos
como resultados de amplos movimentos de natureza política e cultural (cf.
Haug, 1999).
Esse processo foi construindo, ao longo do tempo, o mito dos anos de
1960 e de sua geração, diluindo a complexidade, a heterogeneidade, os con-
flitos, as heranças e a contextualização histórica dos movimentos. A constru-
ção do mito obscurece os traços das experiências de revolta e transforma em
identidade o que foi pluralidade e movimento de desidentificação. Desse
modo, é construída a figuração identitária da geração dos anos de 1960 (“a
geração 68”), a caricatura, cujos traçados expressam a simplificação do que
veio sendo assimilado e normalizado.
A identificação com o mito tem se manifestado episodicamente, em
alguns momentos com maior visibilidade, permitindo a percepção de um
aprisionamento das gerações mais jovens pela imagem da geração anterior.
O que aprisiona, ou, mais precisamente, o que captura, é a imagem de
uma identidade heróica cujo peso é desmedido para as gerações posterio-
res. Esse aprisionamento é indicativo da ausência de um movimento de
separação entre as gerações, o que leva a pensar, no limite, que esse proces-
so explicita as dificuldades de recebimento de uma herança, nos termos

novembro 2005 103


A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107

em que ela foi definida anteriormente, enquanto possibilidade de ser


relançada de outra maneira, de ser interpretada. Essa dificuldade é a mes-
ma que a geração mais jovem enfrenta ao colocar-se uma posição de her-
deira, apesar de ela se ver, sobretudo nas situações de caráter político, como
portadora do “espírito de 68”, realizando um “novo 68”, e algumas vezes
encontrando reforço dessa posição nos “remanescentes” da geração ante-
rior. Ao adotar essa postura, os jovens da geração atual oscilam entre os
pólos do que seria uma mesma posição: ou se vêem como representantes
autorizados daquela experiência, ou medem suas atuações pelo que julgam
ser os parâmetros de 1968, diante do que se sentem desvalorizados. Ao
confundir herança com repetição e identificar-se com os traços simplifica-
dos da caricatura, essa geração, presa ao mito, recebe não a herança, mas o
fardo da geração anterior.
No registro dos costumes e dos comportamentos, a identificação com a
imagem congelada das liberações de 1968 produz a crença imaginária de sua
efetividade. Entre as possíveis referências, talvez a mais recorrente delas seja
a da liberação sexual, em que as posições parecem oscilar entre o “tudo já foi
realizado, resta usufruir” (o que pode ser encarado como a constrição à libe-
ração total) e a percepção do caráter de exotismo dos movimentos dos anos
de 1960, em seu lado alegremente pitoresco.
Outra característica importante da geração dos anos de 1960 para a com-
preensão do seu peso desmedido para as gerações seguintes é o traço da oni-
potência, manifestado especialmente em 1968. Esse traço, já apontado por
outros autores (cf. Trigo, 1997), esteve presente em alguns dos lemas de 1968
que não podem ser desconsiderados, a despeito de terem sido, de modo qua-
se generalizado e de maneira unívoca, lidos e interpretados no registro da
utopia do movimento como a “grande recusa” que instaurava a “imaginação
12. Esses lemas foram ci- no poder”. Alguns desses lemas foram bastante expressivos dessa posição:
tados em Matos (1981)
“peçamos o impossível” (o mais explícito deles), “é proibido proibir”, “gozar
e em Trigo (1997). Tri-
go refere-se à experiên-
sem entraves”, “tutto e subito”12, e não se restringiram ao maio de 1968 na
cia da geração de jovens França, mas deram o tom da contestação aos movimentos onde quer que eles
dos anos de 1960 em São tenham irrompido, e apesar de suas particularidades.
Paulo como marcada Esse traço de onipotência presente nesses movimentos, que pode ser
pelo “imediatismo oni- interpretado, no registro antes aqui exposto, como expressão de uma “re-
potente” e pela ausência
volta absoluta” (“negação absoluta”), é indicativo das perspectivas de abo-
de “aprendizado da pos-
tergação”. Ver ainda, lição de limites, a partir do que se imaginava uma “liberdade ilimitada do
para o registro de outros desejo”: a imaginação (ilimitada do desejo) no poder. A possibilidade des-
lemas, Barbey (1998). se tipo de leitura, realizada mais facilmente hoje, de um “gozo pleno” ima-

104 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Irene Cardoso

ginário como traço de onipotência, presente nos movimentos, permite a


compreensão da dimensão heróica atribuída à geração dos anos de 1960,
cujo peso torna-se excessivo para as gerações seguintes. Parece ter havido
um deslocamento, no qual onipotência passa a significar heroísmo.
A partir dessa possibilidade de leitura, poder-se-ia avançar a hipótese de
que aquilo que o registro do “impossível” não pôde realizar (e nem poderia)
teria ficado para a geração seguinte como um ideal a ser concretizado13, 13. Uma idéia seme-
ideal que se impõe como uma espécie de “resto” do que a geração dos anos lhante relativa à relação
de 1960 não pôde realizar porque imaginado no registro do impossível. entre as gerações, em-
bora referida à questão
Nesse sentido, o fardo da herança que recai sobre a geração mais jovem pa-
das toxicomanias, está
rece sobretudo advir da imagem heróica (onipotente) da geração anterior. presente em Melman
A dificuldade de percepção do peso desmedido da herança dos anos de (1992). Há também
1960 pelas gerações mais jovens não impede que esse peso se imponha uma referência próxima
sobre elas sob a forma de uma captura. Essa dificuldade evidencia o fato de a essa no artigo “A ju-
ventude como sintoma
que a herança é pesada porque não foi transformada. Parece ter havido um
da cultura”, no qual, re-
impedimento (possivelmente decorrente da identificação com o mito e ferindo-se aos adolescen-
seu traço de onipotência) de atribuir historicidade aos movimentos daque- tes de hoje, Maria Rita
les anos, condição que criaria as possibilidades de interpretação da herança Kehl constata a “angús-
e dos modos diversos de nela inserir-se. A possibilidade de receber e esco- tia diante da demanda
de gozar ilimitadamen-
lher a herança, de estabelecer continuidades e diferenças, de relançá-la de
te, em nome dos sonhos
outros modos implica o movimento de separação das gerações, de produ-
de seus pais”, como se
ção de uma diferença geracional – condição de uma filiação possível. esses adolescentes tives-
sem “herdado a obriga-
ção de realizar os sonhos
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Irene Cardoso

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de sociabilidade e relações de gênero na Faculdade de Filosofia da USP (1934-1970).
Tese de doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo.

Resumo
A geração dos anos 60: o peso de uma herança

O artigo propõe analisar o peso desmedido da herança da geração dos anos de 1960
sobre a geração de jovens de hoje. Procura destacar a historicidade dos movimentos
dessa década, seja do ponto de vista de sua linhagem e filiação, seja de sua não-homo-
geneidade, com o objetivo de compreender o processo que construiu, ao longo do
tempo, o mito dos anos de 1960 e a figuração identitária de sua geração, diluindo a
complexidade, a heterogeneidade, os conflitos, as heranças e a contextualização histó-
rica dos movimentos. A identificação das gerações posteriores com o mito da geração
dos anos de 1960, que tem se manifestado episodicamente, indica um aprisionamento
das gerações mais jovens pela imagem de uma identidade heróica da geração anterior,
indicativo da ausência de um movimento de separação entre as gerações, e portanto da
produção de uma diferença geracional, e das dificuldades de recebimento da herança,
isto é, da possibilidade do encontro de uma filiação.
Palavras-chave: Geração dos anos de 1960; Experiência de revolta; Movimentos polí-
ticos e contraculturais; Transmissão da herança; Filiação.

Abstract
The 60’s generation: the weight of an inheritance
The article aims at analyzing the excessive weight of the inheritance of the 60’s genera-
tion over youth today. It focuses on the historicity of the movements of that decade,
be it from the point of view of its affiliations, or of its non-homogeneity, with the
objective of understanding the process that built the myth of the 1960’s, over the
years, and of the identity figuration of its generation, diluting the complexity, the
heterogeneity, the conflicts, the inheritances and the historical contextualization of
the movements. The identification of the later generations with the myth of the gen-
Texto recebido e apro-
eration of the 60’s, that has become manifest episodically, indicates the imprisonment
vado em 26/9/2005,
of the younger generations by the image of a heroic identity of the previous genera-
tion. This points to an absence of a movement to separate the generations, and thus, Irene Cardoso é profes-
sora livre-docente do
of the production of a generational difference, and of the difficulties of receiving the
Programa de Pós-gradu-
inheritance, i.e., of the possibility of the making of a new affiliations. ação em Sociologia da
Keywords: 60’s generation; Experience and revolt; Political movements and counter- FFLCH-USP. E-mail:
culture; Inheritance transmissions; Affiliations. icardoso@usp.br.

novembro 2005 107


Jovens europeus
retrato da diversidade
José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail*

Introdução *Os autores expressam


seu agradecimento a
todos os colaboradores
Fornecer um retrato dos jovens europeus em relação às transições para a
do projeto FATE, sem
vida adulta (nomeadamente da escola para o mercado de trabalho) con- cuja contribuição este
fronta-nos com a diversidade de circunstâncias individuais e estruturais artigo não teria sido
que pautam essas transições, quando se comparam jovens de diferentes possível.
países ou mesmo em cada um dos países considerados. Pesquisas que ado-
tam diferentes paradigmas teóricos têm traçado diagnósticos e prognósti-
cos – ora otimistas, ora pessimistas – dos problemas, das situações e das
expectativas dos jovens europeus. No entanto, a complexidade das transi-
ções juvenis na contemporaneidade é consensual (cf. Pais, 1993; Cavalli e
Galland, 1995; Furlong e Cartmel, 1997).
Apesar de os processos de transformação ocorrerem em diferentes tem-
pos, consoante com as especificidades históricas de cada país, as últimas
três décadas foram palco de mudanças em várias escalas: nos níveis institu-
cional e estrutural, incidiram sobre o mercado de trabalho, o Estado Pro-
vidência e o sistema educativo; no nível societário, refletiram-se nas dinâ-
micas culturais e nas práticas sociais. Cenários sociais de crescente
flexibilização das relações laborais e precarização do emprego tiveram um
impacto particular no modo como os jovens acedem ao mercado de traba-
lho. Um emprego “para toda a vida” é algo que os jovens não podem
Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

considerar como garantido, o que tem contribuído para aumentar sua


1. Tome-se como exem- mobilidade profissional e geográfica1. Por outro lado, a extensão da dura-
plo os movimentos mi- ção média das carreiras escolares, apesar das diferenças significativas entre
gratórios que se seguiram os países, tem favorecido o prolongamento do período de residência e de-
à queda do Muro de Ber-
pendência de muitos jovens em relação a suas famílias de origem, pelo
lim e ao desmembramen-
to do eixo soviético, em- menos em comparação com as gerações predecessoras (cf., entre outros,
bora, neste caso, se de- Galland, 1997; Furlong e Cartmel, 1997). Assim, várias pesquisas têm
vam também convocar procurado caracterizar esse novo panorama, no qual a estabilidade é subs-
fatores de natureza polí- tituída pela incerteza e pelo risco, chamando a atenção para a necessidade
tica como determinantes.
de novos questionamentos teóricos na problematização dos modelos de
transição para a vida adulta (cf. Beck, 1992; Evans e Heinz, 1994;
Chisholm, 1997; Du Bois-Reymond, 1998; Looker e Dwyer, 1998; Rudd
e Evans, 1998).
As transições juvenis e o modo como são captados e geridos os recursos
que as suportam não podem, por outro lado, dissociar-se dos enquadra-
mentos familiares em que ocorrem: a autonomização dos jovens é também
constituída de dependência(s). Se, em alguns contextos nacionais, como
em países do sul da Europa (Portugal, Espanha, Itália e Grécia), com Esta-
dos sociais relativamente pouco desenvolvidos, a família sempre desempe-
nhou um papel relevante no suporte e na gestão das transições para a vida
ativa – papel reforçado pelas transformações socioeconômicas antes men-
cionadas –, nos países do norte (Alemanha, Holanda e Dinamarca, por
exemplo) os apoios estatais, embora pujantes, foram reduzidos substanci-
almente, “empurrando” as famílias para a linha de frente do apoio às tran-
sições juvenis.
Paralelamente a esse reforço ou (re)emergência do papel da família no
apoio aos jovens (material e afetivo, instrumental ou simbólico), outra área
de tensão nas transições juvenis remete aos processos de individualização,
tanto em relação aos valores e às atitudes quanto às estratégias mobilizadas
na negociação dos caminhos para a vida adulta. Apesar da persistência das
assimetrias estruturais quanto à distribuição de recursos culturais e econô-
micos, várias pesquisas têm apontado a emergência de modos reflexivos e
criativos de construção biográfica, bem como a adoção, por parte dos jo-
vens, de éticas de vida mais expressivas, conviviais e hedonistas, especial-
mente ao sublinharem a importância de valores como a autonomia, a diver-
são, a experimentação etc. (cf. Du Bois-Reymond, 1998; Pais, 1998;
Singly, 2000), além de crescentes expectativas de realização pessoal (cf.
Mörch, 1997; Côté, 2000).

110 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

Este artigo procura, assim, explorar dados quantitativos e qualitativos


recolhidos no decurso de um projeto integrado numa rede européia de
pesquisa, o FATE (Famílias e Transições na Europa)2. Procedimentos es- 2. Conduzido de 2001 a
tatísticos foram usados para aceder a perfis que permitissem ultrapassar 2004 e apoiado pela Co-
munidade Européia (Pro-
estereótipos regionais, agregando os jovens inquiridos em constelações cons-
grama Improving the
truídas a partir de suas situações correntes, trajetórias de vida e perspecti-
Socio-economic Know-
vas de futuro. Esses perfis foram reforçados por meio do recurso a extratos ledge Base), esse projeto
de entrevistas, texturizando e aprofundando os resultados das análises procurou articular as áreas
multifatoriais. O fato de a amostra do estudo não ter coberto todo o espec- da pesquisa e da política
tro possível de trajetórias juvenis deve ser realçado. No entanto, o contras- social. No aspecto teóri-
co, valorizou, em termos
te de perfis cria um patchwork ilustrativo dos modos como as transições
problemáticos, as transi-
são geridas em contextos específicos. Num primeiro momento, contudo, ções dos jovens da escola
algumas das mais relevantes contribuições teóricas da sociologia da juven- para a idade adulta (in-
tude serão discutidas, de forma a situar analiticamente os processos sociais cluindo extensões para as
subjacentes às trajetórias dos jovens pesquisados. transições para o empre-
go, a falência em larga es-
cala das indústrias tradi-
Transições para a vida adulta: percursos teóricos cionais, as elevadas taxas
de mobilidade residencial,
A resposta à pergunta “o que define a condição juvenil?” seria por si a diversificação dos esti-
só suficientemente complexa se a multiplicidade de respostas dadas pe- los de vida por gênero e
los pesquisadores nas últimas décadas servisse de indicador dessa comple- as crescentes exigências de
educação mais formaliza-
xidade. Para além de propostas que, por constrangimentos metodológicos,
da), em diferentes con-
circunscrevem a “juventude” a um determinado espectro de idades – é o textos de apoio estatal e
que acontece em pesquisas por sondagem baseadas em amostras estrati- familiar.
ficadas por faixas etárias –, a sociologia da juventude desenvolveu-se,
grosso modo, segundo dois eixos analíticos principais: ora por meio de
abordagens que procuram definir e entender as características convergen-
tes da “juventude” como categoria social, para a qual a perspectiva de
Manheim (1952) é um dos exemplos pioneiros; ora enfatizando caracte-
rísticas divergentes que configuram diversas “juventudes” como grupos
culturais autônomos, rejeitando, por isso, a existência de uma “juventu-
de” no singular (cf., entre outros, Schehr, 2000). Num caso valorizam-
se elementos cristalizadores, que estabelecem traços comuns na “juven-
tude”; em outro, realçam-se fatores discriminantes que provocam
clivagens internas nesse universo geracional.
A essas duas perspectivas acrescentar-se-ia uma terceira, que agrega es-
tudos e reflexões sobre o modo como se sai da condição juvenil. Além
disso, o “problema” das transições para a vida adulta tornou-se uma das

novembro 2005 111


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

maiores preocupações de pesquisadores e agentes políticos confrontados


com processos sociais de transformação que afetam o mercado de traba-
lho, o sistema de ensino e as dinâmicas familiares. Na verdade, como os
jovens tendem a prolongar a estadia na casa dos pais, adiam a assunção
plena do estatuto de adulto (estatuto, não identidade), quando ancorados
a passagens estatutárias tradicionais (casamento e parentalidade, por exem-
plo) ou na adoção de comportamentos “adultos” socialmente prescritos.
Assim, surgem questões como: O que é novo em ser jovem hoje? Como
são as trajetórias biográficas construídas e as transições juvenis geridas?
Como pode ser interpretado o adiamento das transições familiares (aban-
dono da família de origem e constituição de novas famílias)?
Várias são as hipóteses de resposta, com recurso a uma multiplicidade de
imagens e metáforas. Há os que sustentam a idéia do “prolongamento da
juventude” como fase de vida (cf. Wallace e Kovatcheva, 1998), ou os que
tomam os jovens contemporâneos como uma “geração suspensa”. Galland
(1997), por exemplo, considera um determinado conjunto de aconteci-
mentos ou passagens marcos do fim da juventude: emprego em período
integral, conjugalidade, parentalidade e constituição de unidades residen-
ciais autônomas da família. De sua perspectiva, registrou-se uma progressi-
va dessincronização dessas passagens, conduzindo ao já referido prolonga-
mento da juventude, num continum de passerelles que combina transições
ocorridas na esfera pública da vida (da escola para o trabalho) e na privada
(da casa dos pais para a conjugalidade). A juventude é, nessa construção
sociológica, uma categoria social cujas práticas e atitudes são estruturadas
por um efeito cronológico de idade, apesar de distinções de gênero, de clas-
se social e outras.
A idéia do “prolongamento da juventude”, freqüentemente associada
às “dificuldades de transição”, está ancorada a dois pressupostos ainda por
provar: o primeiro parte do princípio de que os jovens querem ser adultos
a qualquer custo; o segundo desprende-se da premissa de que, para uma
dada faixa etária, essa transição pode ser objetivada em eventos identificáveis
(cf. Singly, 2000, p. 9). Em qualquer dos casos, perspectivas homogenei-
zadoras esbarram num cenário de acentuada singularização de trajetórias,
atitudes e comportamentos juvenis, enfraquecendo, conseqüentemente,
as fronteiras simbólicas da juventude como grupo específico (cf. Schehr,
2000, p. 49). Por outro lado, o paradigma do prolongamento da juventu-
de é igualmente posto em causa quando, ao referir-se à transição para a
vida adulta, negligencia as múltiplas transições, concomitantes ou não, que

112 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

podem desenvolver-se em diferentes tempos e profundamente implicadas


no contexto das biografias individuais (cf. EGRIS, 2001).
Outros autores, no entanto, têm dado especial atenção à fragmentação
das trajetórias, reconhecendo, na potencial reversibilidade de algumas esco-
lhas e percursos de vida, uma tendência característica de algumas trajetórias
juvenis na Europa: a “geração ioiô” é uma das metáforas utilizadas para ilus-
trar os processos de ida e vinda entre o sistema educativo e o mercado de
trabalho, entre viver em casa própria e na casa dos pais, ou ainda entre a
conjugalidade e a vida de solteiro/a (cf. Pais, 1995; Peters e Du Bois-Rey-
mond, 1996). Apesar de as mudanças sociais e econômicas afetarem, de al-
guma forma, todos os grupos sociais, as novas gerações têm sido confronta-
das de um modo particular com a erosão de certos marcos de referência, até
aí relativamente estáveis, no que se refere aos mecanismos de socialização e
transição para a vida adulta. Para além de se terem reforçado os processos de
singularização biográfica, as transformações no mercado de trabalho (flexi-
bilização e precarização) e nas estruturas familiares (pluralização das formas
de organização familiar) enfraqueceram as referências culturais que serviam
de fio condutor biográfico às trajetórias individuais. Esse fato teria pressio-
nado os jovens a fazerem um uso “ativo” de sua agência individual para in-
ventar novos caminhos, criar novos estilos de vida, compor novas identida-
des, numa multiplicidade de opções – disponíveis ou inventadas (cf.
Schehr, 2000, p. 50).
Algumas pesquisas apontam para o fato de um número significativo de
jovens serem socializados na crença da “opção”, adotando “a liberdade de es-
colha” como uma ética de vida (cf. Rudd e Evans, 1998; Pappámikail, 2004).
O conceito de “biografias de escolha”, por oposição ao de “biografias nor-
mais”, encaixa-se nessa perspectiva por essas biografias “estarem determina-
das por um paradoxo típico na vida moderna: embora as sociedades ofereçam
mais opções de escolha, os indivíduos contemporâneos são forçados a refletir
sobre as opções disponíveis e a justificar suas decisões” (Du Bois-Reymond,
3. Entendida como “um
1998, p. 68). processo temporal de
A enfâse na agência individual3, no processo de desenhar os percursos, ação social em que os
não deveria implicar, contudo, um negligenciamento do peso que as estru- hábitos e as rotinas pas-
turas econômicas, sociais e culturais têm nas trajectórias juvenis, embora sados são contextualiza-
dos, e as possibilidades
alguns acreditem que as escolhas enfatizam a individualidade a ponto de
futuras são emolduradas
ultrapassar as segmentações sociais, como as de gênero ou classe social (cf. no quadro das contin-
Roberts e Parsell, 1994). Também há limites nas constrangedoras socieda- gências do presente”
des centradas no indivíduo: embora a difusão do desejo de aceder à indivi- (Evans, 2002, p. 248).

novembro 2005 113


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

dualidade (feita de escolhas, auto-realização, autonomia e autenticidade)


se tenha generalizado, as efetivas condições de possibilidade de concretiza-
ção desse desejo encontram-se desigualmente distribuídas (cf. Singly, 2000,
p 18; Furlong e Cartmel, 1997).
De fato, agência e estrutura, ou o modo como ambas se articulam nas
sociedades ocidentais contemporâneas, têm estado no centro das pesquisas
e dos debates teóricos sobre as transições para a vida adulta na Europa. Vá-
4.Os artigos publica- rios quadros analíticos4 têm enfrentado essa questão, inclinando-se ora para
dos no Journal of Youth o lado do peso das estruturas, ora para o lado da agência individual. Rudd e
Studies, desde a sua pri- Evans (1998), por exemplo, sugerem que as trajetórias juvenis deveriam ser
meira publicação em
analisadas pela perspectiva da individualização estruturada, reconhecendo
1998, espelham a mul-
tiplicidade desses qua- que, ainda que muita coisa dependa do indivíduo, as estruturas econômicas
dros analíticos. e sociais, mesmo que em novas modalidades, continuam desempenhando
um papel importante. Raffo e Reeves (2002) preferem seguir a tradição
conceitual de Bourdieu (1972) e, recuperando a noção de capital social pro-
posta por Coleman (1988), combinam agência e estrutura em sistemas in-
dividualizados de capital social. Esses sistemas – que tanto libertam como
constrangem as ações individuais – corresponderiam a redes ou constela-
ções dinâmicas de relações sociais fornecendo, no caso dos jovens, oportu-
nidades de aprendizagem cotidiana (cf. Raffo e Reeves, 2002, p. 148). Ja-
mes Côté (2002) propõe um modelo de capital identitário para entender o
impacto de fatores estruturais nas transições individuais. Tal modelo é ba-
seado no postulado de que certos recursos pessoais são importantes nas es-
tratégias de ação e nos projetos de vida, possibilitando retirar vantagens ou
compensar vazios ou déficits institucionais da modernidade mediante “in-
vestimentos identitários” no decurso dos processos de individuação.
Wyn e Dwyer (1999) apontam algumas fraquezas nessas perspectivas
teóricas, sobretudo quando tendem a generalizar conclusões com base em
amostras limitadas a jovens relativamente “bem-sucedidos”, o que pode
fornecer um retrato enganador das efetivas capacidades da maioria dos
jovens de lidar com os desafios – que em alguns casos são ameaças – decor-
rentes do risco e da contingência (cf. Idem, p. 19). Por outro lado, os
próprios jovens reportam suas vidas como resultado de complexas combi-
nações de recursos, diferentes graus de agência e de oportunidades, emara-
nhadas transições, complexas e interconectadas, freqüentemente envolvendo
falsas partidas e revezes, exigindo recorrentes negociações e redefinição de
possibilidades (cf. Idem, 1999; Pais, 2001). Se o conceito de trajetória se
enclausura em visões e lógicas temporais marcadas por linearidades (antes,

114 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

agora e depois), como podemos dar conta de vidas juvenis que são impres-
sas em estruturas sociais cada vez mais labirínticas? Apesar de mais difíceis
de apreender, os desalinhamentos da vida são sociologicamente tão impor-
tantes quanto seus alinhamentos, e as rupturas tão relevantes quanto as
conexões (cf. Pais, 2003, p. 120).
As sociedades contemporâneas são demasiado diferenciadas e policon-
textuais (cf. Lahire, 1998) que as experiências de transição dos jovens devem
ser compreendidas a partir de suas múltiplas filiações identitárias, que cor-
respondem à necessidade que têm de gerir quotidianamente pertenças e par-
ticipações numa multiplicidade de mundos sociais (cf. Schehr, 2000, p.
52). A singularização das experiências de vida juvenis remete, assim, à espe-
cificidade dos contextos e às múltiplas oportunidades que estes favorecem.
Os indicadores do modo como os jovens constroem e gerem as relações e as
pertenças sociais apontam para a experimentação, a atitude comunicacional
e a importância atribuída às sociabilidades e aos encontros. Suas trajetórias e
identidades podem, assim, ultrapassar os papéis sociais prescritos. As socia-
bilidades entrelaçam experiências e contextos no tecido das relações sociais
em que se enfileiram os fios condutores biográficos (cf. Idem).

Análise tipológica das transições: diversidades

O projeto Famílias e Transições na Europa combina abordagens quanti-


tativas e qualitativas na exploração das experiências de transição relaciona-
das com educação e trabalho, entrada no mercado de trabalho, situação resi-
dencial, relações intergeracionais, apoio familiar e estatal e planos de futuro.
Uma pesquisa com base em questionário foi aplicada a 1929 jovens distri-
buídos pelo Reino Unido, Alemanha (dividida em leste e oeste), Portugal,
Espanha, Itália, Holanda, Dinamarca e Bulgária. A amostra foi construída a
partir de ciclos terminais do sistema de ensino (dividido em obrigatório, se-
cundário, vocacional e superior). As idades dos inquiridos variaram entre os
16 e 34 anos, embora a maioria se concentrasse no escalão entre 18 e 23 anos.
A partir dessa mesma amostra, foram realizadas entrevistas em profundida-
de, entre seis meses e um ano depois da pesquisa com questionário: 376 jo-
vens e 219 dos seus pais foram entrevistados.
Uma análise dos dados da pesquisa com questionário, recorrendo ao
programa SPAD (Statistique pour le Analyse de Données), deu origem a
cinco grupos consistentes após uma análise classificatória hierárquica, ba-
seada em análises fatoriais de correspondências múltiplas, envolvendo as

novembro 2005 115


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

modalidades de resposta associadas às variáveis de estudo (distribuídas por


5. Foram trabalhados diferentes dimensões analíticas)5. A expectativa era poder encontrar asso-
dados de 185 questões ciações – não apenas estatísticas mas principalmente sociológicas – entre
(num total de 911 op- os múltiplos indicadores da pesquisa que dão consistência à análise tipológica
ções de resposta) na aná-
dos grupos constituídos6.
lise SPAD. Essas variá-
veis foram estruturadas
de acordo com as seguin- QUADRO 1
tes dimensões analíticas: Partição dos grupos e nacionalidades sobre-representadas
variáveis de caracteriza- GRUPOS NACIONALIDADES SOBRE-REPRESENTADAS
ção, relações familiares, (% em relação à amostra)
dinheiro, trajetória esco-
GRUPO I (22%) Holanda (38%); Espanha (26%); Reino Unido (21%)
lar, autonomização, ati-
tudes perante trabalho e GRUPO II (25%) Bulgária (52%); Portugal (27%); Espanha (17%)
sentimentos de si. Para
GRUPO III (16%) Dinamarca (51%); Reino Unido (29%)
uma leitura mais apro-
fundada sobre os resul- GRUPO IV (12%) Itália (99%)
tados dessa pesquisa,
GRUPO V (24%) Alemanha leste (61%); Alemanha oeste (37%)
consultar Biggart et al.
(2003).
Embora a amostra do estudo não seja estatisticamente representativa
6.Esses grupos são
constituídos a partir de dos países que a integram, constatou-se que em alguns grupos há uma so-
índices de sobre-repre- bre-representação de jovens de determinadas nacionalidades (Quadro 1). É
sentação que lhes con- o que acontece, notoriamente, com os jovens italianos e alemães, que prati-
ferem distintividade. O camente integram grupos autônomos, mas também com dinamarqueses,
conceito de sobre-repre-
búlgaros, holandeses e portugueses. Os jovens espanhóis e britânicos ten-
sentação é fundamental
nesse tipo de análise e
dem a uma dispersão. Vejamos, agora, as características dos grupos, cada
resulta, grosso modo, da um deles tipificando diferentes modelos de transições, orientações atitudi-
conjugação do peso es- nais e perfis juvenis: 1) autonomia proporcionada por aculturações sociais (jo-
tatístico das modalida- vens-adultos solteiros, cultos, independentes); 2) dependência gerada pela
des de resposta em cada tradicionalidade (jovens temerosos, materialistas, dependentes); 3) inde-
um dos grupos consi-
pendência precoce mas condicionada (jovens vivendo como casais, pós-mo-
derados com o peso es-
tatístico de cada grupo dernos, entravados); 4) ancoragem tensa à família de origem (jovens depen-
considerado relativa- dentes, controlados, acomodados); 5) “ética de trabalho” libertadora (jovens
mente a cada modali- coabitantes, independentes, confiantes).
dade de resposta.
Autonomia proporcionada por aculturações sociais: jovens-adultos solteiros,
cultos, independentes

Neste grupo encontramos uma sobre-representação de jovens da Ho-


landa (38%), da Espanha (26%) e do Reino Unido (21%). A dominância

116 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

dos jovens holandeses é de tal ordem que do grupo fazem parte 86% da
totalidade dos que foram inquiridos, estando também representados 56%
de jovens espanhóis e 44% de britânicos. A principal característica do gru-
po é ser constituído por uma maioria de jovens (73%) que no momento da
pesquisa estavam trabalhando, embora uma parte deles (57%) ainda vivesse
com os pais. Mas nem todos trabalham em período integral (apenas 17%):
a maioria trabalha meio período, num total de menos de quinze horas por
semana (apenas 21% trabalham entre dezesseis e 35 horas semanais).
Quanto às fontes de rendimento, um em cada cinco desses jovens afir-
ma que a totalidade do dinheiro que recebem é proveniente do trabalho.
Apesar de socializados para o mundo do trabalho, não é certo que, para
esses jovens, o sentido da vida seja dependente do emprego. Ou seja, estamos
perante jovens orientados por uma ética de valorização da individualidade
e da realização pessoal, e para quem, no trabalho, contam mais as satisfa-
ções intrínsecas (tipo de trabalho realizado, disponibilidade de tempo livre
etc.) do que seus aspectos extrínsecos ou instrumentais (o dinheiro que se
ganha). A declaração de uma jovem holandesa ilustra exemplarmente essa
atitude: “Na minha opinião, é importante que eu me divirta. Ter mais
dinheiro é bom, claro, mas eu preferiria trabalhar num lugar agradável e
receber menos a trabalhar em outro nada simpático que pagasse melhor”
(18 anos, sexo feminino, ensino secundário, Holanda).
Na sua vida cotidiana, os jovens deste grupo revelam uma independên-
cia que se manifesta na forma autônoma como desempenham algumas
tarefas pessoais: por exemplo, em cerca de 90% dos casos são eles que
(sempre ou quase sempre) preenchem seus documentos (inscrições, im-
postos etc.), sem recorrer a pessoa alguma, embora não dispensem a ajuda
da mãe na lavagem da roupa (em 91% dos casos) e na limpeza da casa
(90%). A autonomia estende-se também ao domínio dos gastos de consu-
mo. Muitas das despesas (lúdicas ou básicas) são feitas com seu próprio
dinheiro; outras, no entanto, são suportadas pelos pais, nomeadamente as
que asseguram redes comunicacionais (telefone e internet) ou de circula-
ção (59% contaram com a ajuda dos pais na aquisição da carteira de moto-
rista). Por aqui se vê que o apoio familiar também se faz sentir nas disponi-
bilidades conviviais que as redes de comunicação e circulação proporcionam.
Para a maioria, as taxas escolares também são pagas pelos pais: “Eles paga-
ram-me todo o tipo de coisas relacionadas com a minha educação e forma-
ção. Mas quando chega ao lazer e ao divertimento, nunca me pagaram
nada” (29 anos, sexo masculino, ensino secundário, Espanha).

novembro 2005 117


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

Os jovens deste grupo raramente ou nunca têm problemas ou conflitos


com os pais, vivendo um bom relacionamento familiar. Quando saem à
noite, quase sempre ou sempre os pais sabem onde eles estão, o que pode
indicar um relacionamento construído na base da confiança ou da nego-
ciação, que está subjacente ao testemunho de uma jovem irlandesa:

Desde os 15 anos que eu queria ir à Kellys (danceteria), mas, com os meus pais,
nem pensar que isso fosse acontecer com 15 anos. Já tinha 16 ou 17 quando eles me
deixaram ir, mas mesmo assim só podia ser de quinze em quinze dias [...]. Era o
suficiente. Eles costumavam dizer: “Nós preferimos que você nos diga a verdade,
para que saibamos exatamente onde você está, entende?”. Nessa altura, alguns ami-
gos meus mentiam para os pais e diziam-lhes que [...] iam dormir na casa de alguém
quando na verdade iam sair (23 anos, sexo feminino, ensino superior).

São jovens com uma elevada auto-estima, entre os quais há também


uma sobre-representação dos que, numa escala de 1 (nenhuma liberdade
para fazer suas escolhas) a 6 (liberdade total de escolha em relação às suas
vidas), se situam próximos do extremo de “muita liberdade” (43% no
nível 5 da escala). Carlos é um desses jovens: “Na minha opinião, sou uma
pessoa que sabe decidir por si própria, reajo a situações complicadas com
as minhas próprias opiniões e sou capaz de estar bem com as pessoas, nos
ambientes e comigo próprio” (24 anos, sexo masculino, ensino médio,
Espanha).
Outro traço característico do grupo é a sobre-representação de jovens
solteiros (87%) e com idades compreendidas entre 21 e 24 anos (54%) e
25 e 29 anos (18%), ao que se associam elevados níveis de escolarização:
36% atingiram o último grau do ensino secundário; 53% dos jovens euro-
peus que atingiram a universidade se encontram neste grupo. Aliás, 60%
dizem que suas mães alimentavam (ou alimentam) expectativas de eles
poderem concluir estudos universitários.
Em síntese, o grupo caracteriza-se por uma sobre-representação de jo-
vens-adultos com independência econômica e boas disponibilidades convi-
viais – alguns deles têm um relacionamento preferencial com namora-
dos(as). São jovens que contam com bom apoio familiar, em termos quer
das socializações profissionais, quer das aculturações sociais, e os relaciona-
mentos familiares estão isentos de conflitos explícitos. Os capitais culturais
que circulam em ambiente familiar criam-lhes também disponibilidades
conviviais. A independência econômica garante-lhes autonomia financeira.

118 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

Todas as características do grupo (socialização profissional, bom relaciona-


mento convivial, independência econômica etc.) convergem para uma ele-
vada auto-estima e autonomia.

Dependência gerada pela tradicionalidade: jovens temerosos, materialistas,


dependentes

Este grupo é majoritariamente constituído por jovens da Bulgária (52%),


Portugal (27%) e Espanha (17%), abarcando 87% da totalidade dos jo-
vens búlgaros inquiridos, 75% dos portugueses e 41% dos espanhóis. Um
de seus traços mais característicos é o da dependência econômica em relação
aos pais. O dinheiro que têm é tão escasso que acabam por recorrer aos
pais para enfrentar as despesas mais triviais do universo juvenil7. No caso 7.Esse grupo encerra
das despesas relacionadas com a carreira escolar, os pais continuam a ser a 76% dos jovens euro-
peus que dizem que são
principal fonte de suporte: são eles que compram os livros (em 79% dos
os pais que, sempre ou
casos, contra 45% quando se considera a totalidade da amostra). Final-
quase sempre, pagam as
mente, e como traço acentuador de dependência econômica, há uma sobre- despesas com dancete-
representação de jovens (55%) cuja fonte de rendimentos é exclusivamen- rias, bares e pubs; 72%
te a família. Essa dependência pode ser parcialmente explicada por algumas pagam idas a cinema,
características sociográficas dos jovens em questão: 96% são solteiros e teatro e concertos mu-
sicais; 58%, despesas
80% ainda vivem com os pais. Outra variável explicativa é, certamente, a
com revistas, livros e
idade predominante dos jovens que constituem o grupo: a maioria (66%) jornais; 54%, gastos
tem entre 17 e 20 anos, o que também contribui para explicar a desvincu- com celular ou internet
lação desses jovens do mundo do trabalho; no entanto, essa faixa etária não (43% afirmam que o
deixa de ter um peso considerável (47%) no conjunto dos jovens europeus celular lhes foi ofereci-
do pelos pais).
que foram inquiridos, pelo que outras razões – que não apenas as etárias –
deverão ser convocadas para a compreensão do comportamento padrão do
grupo. A dependência econômica desses jovens em relação aos pais não é
apenas uma marca do presente, uma vez que é projetada no futuro, dada a
sobre-representação de jovens que afirmam esperar que os seus pais os
ajudem no futuro.
Para contornar as dificuldades de inserção profissional, tendem a ado-
tar estratégias defensivas, de fuga ao confronto direto com o mercado de
trabalho, de refúgio no prolongamento das trajetórias escolares (em conso-
nância com as expectativas de seus pais). Estamos perante jovens que, no
contexto europeu, carregam o ônus de uma periferização econômica, bas-
tando lembrar sua origem nacional. Nesses termos, pode-se dizer que os
vínculos da tradicionalidade (pré-modernidade) são geradores de depen-

novembro 2005 119


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

dência. Ameaçados pelo futuro, esses jovens se refugiam na família, teme-


rosos em relação ao desemprego: “Sempre me apoiaram com dinheiro e
outras coisas, protegeram-me com tudo isso” (19 anos, sexo feminino,
ensino secundário, Bulgária).
Embora sujeitos a socializações intergeracionais (familiares) orientadas
por valores da “pré-modernidade”, esses jovens não deixam de estar expos-
tos a socializações complementares (intrageracionais) que tipificam um
modo de ser jovem na contemporaneidade. Essas socializações divergentes –
ora por meio de transmissões verticais (de pais para filhos), ora por intermé-
dio de transmissões horizontais (entre os jovens) – são potencialmente
conflituosas. Por um lado, surge a necessidade de dinheiro para se integra-
rem no mercado juvenil de consumo que é próprio da contemporaneida-
de; mas, porque se encontram economicamente dependentes da família,
não raro surgem problemas ou tensões familiares a propósito dos usos do
dinheiro, como explica Fernando:

Eu discuto sobre dinheiro principalmente com o meu pai. Ele está sempre recla-
mando, dizendo que um dia vai ao banco ver como está a minha conta, que saio
todas as noites [...]. Ele quer que eu me prepare para a vida, que avance, que
poupe. E eu ainda não tenho esse pensamento [...]. Quer dizer, qualquer dia chego
aos 30 e só depois é que posso começar a gastar! [...] (20 anos, sexo masculino,
ensino secundário, Portugal).

As tensões familiares não se traduzem, necessariamente, em rejeição ab-


soluta dos valores que as originam. Os valores que lhes são inculcados pelos
familiares, mesmo que negados (em um dado nível), podem ser recupera-
dos (em outro nível). Por exemplo, os valores “materialistas” (cf. Inglehart,
1977, 1990; Stoetzel, 1983) que os pais defendem, e que, eventualmente,
determinarão uma discordância em relação às despesas lúdicas por parte
dos jovens, deixarão marcas na consciência destes quando, por exemplo,
nas questões relacionadas com o emprego, tenderem a valorizar um traba-
lho que dê sobretudo dinheiro em detrimento do tempo livre ou da realiza-
ção profissional. É que eles aprenderam com os pais – mesmo a contragosto –
a dar importância ao dinheiro. Esse “materialismo” em relação ao emprego –
o que conta é o dinheiro – é também induzido por uma dramatização do
desemprego, expressa nos seguintes indicadores: “uma pessoa tem de ter um
emprego para se sentir um verdadeiro membro da sociedade”; “ter qual-
quer tipo de emprego é melhor do que estar desempregado” etc.

120 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

É nesse quadro de temor perante o desemprego que se desenha uma estra-


tégia familiar (envolvendo jovens e respectivos pais) de enfrentamento ao
futuro: a aposta na escolarização. As expectativas em atingir um grau uni-
versitário são elevadas e podem também ser induzidas pela consciência de
um handicap cultural dos pais e mães desses jovens, dadas suas fracas habi-
litações escolares. Como no caso da família do Paco, quando o pai insistiu
para que ele fosse para a universidade:

No que diz respeito aos meus estudos, acho que tive muita sorte. Meu pai disse-me
que ele pagaria a universidade sem problemas. [...] Ele insistiu muito, dizendo:
“Estude agora, que você pode trabalhar mais tarde” (23 anos, sexo masculino,
ensino secundário, Espanha).

Mas também nesse caso o investimento na educação – que corresponde


a uma estratégia defensiva contra o desemprego e de mobilidade social – não
parece isento de conflitos, especialmente quando os “sacrifícios” financei-
ros que o prolongamento das trajetórias escolares implicam não têm res-
posta satisfatória. Surgem então problemas relacionados com o aproveita-
mento escolar (notas, reprovações etc.) como efeito perverso de quem
procura creditação escolar sem ter a certeza de retorno dos sacrifícios que
tal investimento implica.

Independência precoce mas condicionada: jovens vivendo como casais,


pós-modernos, entravados

Neste grupo encontramos a quase-totalidade de jovens dinamarque-


ses inquiridos (84%) e quase metade dos britânicos (43%). Um de seus
traços essenciais é a independência econômica. Mesmo as despesas da
casa (renda, água, eletricidade etc.) são majoritariamente pagas (em 53%
dos casos) com dinheiro próprio, havendo ainda 40% deles que custeiam
as despesas de alojamento (recorde-se que apenas 17% dos jovens euro-
peus inquiridos pagam esse tipo de despesa com dinheiro próprio). Ou-
tra característica do grupo é a sobre-representação dos que já abandona-
ram a casa dos pais (47%).
Não se pode dizer que a ajuda da família não conta para esses jovens,
uma vez que 70% deles admitem que os familiares (não apenas os pais)
poderão vir a ter muita ou razoável importância no futuro. No entanto,
trata-se de um apoio circunscrito, como quando procuram emprego. O

novembro 2005 121


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

mesmo não se pode dizer em relação às ajudas propriamente materiais, em


8.No grupo há uma so- que é notória a falta de apoio familiar para alguns deles8. Essa situação é
bre-representação de jo- ilustrada com o caso de Hans:
vens que não esperam
que os pais os ajudem
Bem, se eu lhes pedisse dinheiro, provavelmente me dariam algum. Mas [...] eu sem-
a adquirir carteira de
motorista ou celular, e pre fui um bocado esbanjador. Meu consumo médio sempre foi enorme, porque
muito menos a com- sempre tive dinheiro, porque sempre tive algum tipo de trabalho. Meus pais dizem
prar um carro, moto- que se eu posso ir à cidade e comprar computadores e telefones caros, então também
cicleta ou casa. Cerca posso pôr comida na mesa (26 anos, sexo masculino, ensino superior, Dinamarca).
de um em cada quatro
desses jovens adquiriu
casa ou apartamento As famílias de alguns desses jovens podem ter vivido tensões endógenas,
com dinheiro próprio. dada a sobre-representação daqueles cujos pais se divorciaram ou separa-
ram: 31%, contra 13% do total da amostra. O desprendimento relacional
entre jovens e pais não é separável dos indicadores de autonomia manifes-
tada por esses jovens: cerca de 22% deles começaram a ter uma vida con-
jugal (ou planejam vir a tê-la) com 20 anos ou menos (19% entre 21 e 23
anos). Aliás, 44% da totalidade dos jovens europeus inquiridos com o
estatuto conjugal de casados caíram nesse grupo, em que há ainda uma
sobre-representação de jovens vivendo em coabitação (24%). Outro resul-
tado do envolvimento conjugal são os filhos: nesse grupo estão 52% da
totalidade dos jovens europeus inquiridos que possuem filhos – o que
também se compreende atendendo à sobre-representação de “jovens-adul-
tos” presentes nesse grupo: 7% têm 30 ou mais anos (correspondendo a
38% do total dos jovens europeus inquiridos com essa idade) e 20% têm
de 25 a 29 anos (23% do total da amostra).
A autonomia em relação aos pais também é favorecida pelos apoios esta-
tais: nesse grupo encontramos 47% da totalidade dos jovens europeus in-
quiridos que dizem não ter despesas com livros ou material escolar porque o
Estado os paga, e há também uma sobre-representação dos que afirmam que
o Estado paga as taxas, o alojamento, os livros e o transporte para a escola. É o
caso de Roland: “As taxas escolares eram pagas e recebíamos dinheiro para o
dia-a-dia – recebíamos 35 libras à época [...]. Talvez naquele momento nós
quiséssemos mais dinheiro, mas, olhando para trás agora, parece-me ade-
quado” (25 anos, sexo masculino, ensino secundário, Reino Unido).
Para a maioria dos jovens que integram o grupo (82%), as trajetórias
escolares ficaram aquém do ciclo terminal do ensino secundário. Em con-
seqüência, quase ninguém chegou à universidade (1%). Os pais também
não acalentam (ou acalentaram) grandes aspirações em relação à formação

122 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

de seus filhos: os horizontes de qualificação chegam ao ensino secundário


ou a uma formação profissional e, em alguns casos, os jovens desconhecem
as expectativas dos pais em relação à sua formação.
Em síntese, diríamos que os jovens desse grupo possuem uma indepen-
dência precoce mas condicionada. Boa parte deles vivendo como casais e
com tendência a abandonar cedo a casa dos pais – dos quais não têm grande
apoio –, gozam de amplas margens de autonomia. No entanto, trata-se de
uma autonomia precária, que os obriga a recorrer a subsídios estatais para
melhorar sua formação profissional (muitos deles já trabalharam) e agilizar
uma melhor colocação no mercado de trabalho. Alinham-se em posições 9.Ver, em particular,
Singly (1993) e Kauf-
“pós-materialistas” em relação ao trabalho e ao emprego, uma vez que consi-
man (1993).
deram que “uma pessoa consegue realizar-se na vida mesmo sem um em-
10.Alguns dos resulta-
prego” e que os desempregados devem ser considerados cidadãos como
dos quantitativos apre-
quaisquer outros. Os aspectos remuneratórios do trabalho são desvaloriza- sentados que dizem res-
dos em relação a outros, como se depreende do testemunho de Emil, um peito aos jovens italia-
designer dinamarquês: “Todos queremos um emprego, e isso não é tanto nos foram influenciados,
uma questão de dinheiro, mas mais de identidade” (27 anos, sexo masculi- em grande medida, pe-
no, ensino superior, Dinamarca). los procedimentos de
composição da amostra,
Os posicionamentos “pós-materialistas” não se limitam à esfera do tra-
uma vez que dela fize-
balho, estendendo-se ao domínio da família. Assim, quando questionados ram parte muitos jovens
sobre a divisão das tarefas domésticas, propendem à adesão a formas iguali- oriundos de escolas pro-
tárias, com base em um modelo de casamento relacional 9, em que predomi- fissionais. De um modo
nam relações de simetria entre os parceiros. No entanto, para alguns desses geral, na Itália, esse tipo
de formação vocacional
jovens, a constelação de valores que abraçam, muito ligados à independên-
é mais procurado por jo-
cia, entra em dissintonia com suas reais situações de vida. Sentem-se entra- vens menos favorecidos
vados, com uma autonomia atrofiada ou condicionada, o que origina um e, por isso, essas insti-
sentimento de perda de liberdade de escolha e uma queda da auto-estima. tuições gozam de menos
Por isso, sua independência (precoce) encontra-se condicionada. prestígio. Na segunda
fase da pesquisa, a aná-
lise qualitativa procurou
A ancoragem tensa à família de origem: jovens dependentes, controlados, acomodados
compensar esse desvio,
recorrendo com mais
Esse grupo é constituído exclusivamente por jovens italianos (97% dos freqüência a jovens mais
que foram inquiridos). São solteiros e sem filhos (100%), e a maioria (88%) qualificados. Semelhan-
ainda vive na casa dos pais, o que, em parte, se pode explicar pela sobre- ças entre as duas fontes
de dados foram encon-
representação de jovens com idades entre 17 e 20 anos (62%)10. Economi-
tradas, sobretudo quan-
camente, encontram-se numa situação de dependência: 52% apontam a to às atitudes, como de-
família como única fonte de receitas, embora 15% se refiram às que pro- monstram as citações
vêm integralmente de trabalho remunerado (24% trabalhavam no mo- selecionadas.

novembro 2005 123


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

mento em que foram inquiridos). Nesses termos, não espanta que 96%
dos jovens desse grupo declarem não dar nenhuma contribuição monetá-
ria a seus pais.
A dependência econômica em relação à família de origem é de tal or-
dem que, mesmo nas projeções do futuro, uma significativa porcentagem
deles conta com seu apoio, sobretudo para a compra de casa/apartamento
(51%) ou de carro/motocicleta (32%). A existência de uma retaguarda
familiar protetora não significa que esses jovens e suas famílias vivam em
situação de desafogo econômico, muito pelo contrário. Sobressaem famí-
lias numerosas, aparentemente com dificuldades econômicas: são jovens
que têm muitos irmãos, que trabalham, estudam ou estão desempregados
(76% dizem ter dois irmãos desempregados).
O certo é que esses jovens esperam poder prolongar a sua permanência
na casa dos pais e consideram que, o que para eles é normal – o prolonga-
mento da estadia em casa dos pais (cf. Santoro, 2000) –, é também ideal
para outros jovens que vivem em circunstâncias semelhantes. De fato, no
grupo há uma sobre-representação dos que acham que a idade ideal para
um jovem sair da casa dos pais é entre 24 e 26 anos (50%) ou mesmo
acima de 27 anos (14%). Paralelamente, a maioria (51%) pensa em aban-
donar a casa dos pais entre 24 e 26 anos e 22% com 27 ou mais. Aliás,
43% dos jovens desse grupo não pensam em ter filhos antes dos 27 anos.
Na opinião de Aldo, a juventude italiana em geral é “mimada”:

O problema é que somos mimados, deve ser uma coisa cultural, não sei. Eu conhe-
ço pessoas que deixaram o seu país para estudar e que são independentes financei-
ramente [...]. Mas eu, ao contrário, pensei para mim: “Como estou estudando,
vou continuar vivendo em casa!”. É a opção mais fácil (32 anos, sexo masculino,
ensino superior, Itália).

Tudo indica estarmos perante jovens cujo futuro não lhes parece muito
promissor e cujas famílias, também por razões culturais, exercerão uma
função protetora, apesar das dificuldades econômicas em que vivem. Os
problemas de inserção profissional implicarão, para muitos deles, uma
ancoragem ao reduto familiar. O futuro é temido, como explica Marco, um
jovem italiano que faz curso de formação profissional:

Eu não penso no futuro, porque me assusta [...]. Muito francamente, nunca pensei
nisso, até porque vivo dia a dia. [...] Claro, eu gostava de ter a minha família, quer

124 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

dizer, eu quero ter a minha família, mas nas circunstâncias atuais não só não penso
como não quero pensar nisso (21 anos, sexo masculino, ensino secundário, Itália).

No entanto, essa coabitação familiar, como se sugeriu, não é isenta de


conflitos, que parecem resultar de descontinuidades culturais de natureza
geracional. Quer dizer, os valores que caracterizam a geração dos pais não
estão em sintonia com os que orientam algumas atitudes de vida desses
jovens: daí as fricções derivadas dos amigos e namorados(as) que têm, do
estilo e da imagem que portam, das regras que os pais lhes impõem e que
não são muito aceites. Os jovens desse grupo parecem querer libertar-se de
uma matriz cultural rígida que os enreda em uma malha de prescrições
normativas de que seus pais não dão mostras de querer abdicar11. 11.Isso é coerente com
Em suma, o grupo caracteriza-se por envolver jovens ancorados à famí- o fato de a maioria dos
pais desses jovens não
lia de origem, com uma notória tendência a prolongar a estadia na casa dos
ter mais do que a ins-
pais, com os quais podem surgir alguns conflitos. Em meio a isso, encon-
trução primária (57%
tram-se fatores como a dependência econômica da família e o rígido con- das mães e 54% dos
trole parental, principalmente sobre as saídas noturnas, abarcando também pais). A análise quali-
problemas relacionados com o consumo, o dinheiro que recebem (ou não) tativa, por seu turno,
dos pais e o lazer. Estamos seguramente perante jovens que transitam en- veio sublinhar baixos
níveis de conflitualida-
tre dois mundos: o dos pais, marcado por valores de tradicionalidade, e o
de na família, o que, até
dos amigos, orientado por valores hedonistas. Os primeiros são tomados certo ponto, contradiz
como referência quando os jovens encaram sua vida profissional: aí se re- esse retrato de tensão fa-
traem, se mostram céticos em relação à escola, temerosos em relação ao miliar. No entanto,
emprego, materialistas nas atitudes perante o trabalho e o emprego. A ten- uma análise mais deta-
lhada indica que essa
dência que então surge é a de se refugiarem na família: embora controla-
ausência de conflito diz
dos, acomodam-se à dependência, vivendo sob uma espécie de protecio- respeito a um grupo
nismo familiar. Apesar dos conflitos, os pais financiam os consumos e, em com características so-
casa, eles contam sempre com a mãe para o desempenho das tarefas do- ciais diversas do inicial-
mésticas, nas quais pouco colaboram. mente analisado (ver
nota 10).

Ética de trabalho libertadora: jovens coabitantes, independentes, confiantes

A quase-totalidade dos jovens deste grupo (98%) é da Alemanha:


61% da parte leste e 37% da parte oeste. Poucos são os jovens alemães
que não fazem parte desse grupo: apenas 6% dos inquiridos na parte
oriental e 10% na parte ocidental. Uma importante característica que
singulariza o grupo é a elevada porcentagem de jovens (46%) que, quan-
do questionados sobre seu estatuto conjugal, se consideraram em regi-

novembro 2005 125


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

me de coabitação. Dos jovens europeus que coabitam, 60% fazem parte


desse grupo, cujo peso estatístico, no total da amostra, não chega à quarta
parte. Serão todos esses jovens verdadeiramente coabitantes? A resposta
será positiva para a maioria deles, dado que 36% já não vivem com os
pais. No entanto, para outros, também é possível que estejamos diante
de uma modalidade de interpretação – necessariamente cultural – da
questão que lhes foi colocada: “Qual é a sua situação conjugal?”. As pos-
sibilidades de resposta eram: solteiro(a), casado(a), vivo com companhei-
ro(a) ou divorciado/separado(a). Não estando ainda casados, mas pro-
vavelmente não querendo assumir o estatuto de solteiros, alguns desses
jovens poderão ter optado por escolher o estatuto de coabitante, ainda
que, na realidade, eventual ou esporádico.
No grupo há uma sobre-representação de jovens que afirmam que am-
bos os pais trabalham e, simultaneamente, cuidam da família – o que indi-
12.Essas percentagens ca uma relativa simetria na divisão das tarefas conjugais12. Outra caracte-
não constituem uma ra- rística dos jovens desse grupo é sua independência econômica. De fato, há
dical inversão da tradi-
uma sobre-representação dos que dizem ser eles próprios a pagar, com seu
cional distribuição das
dinheiro, as despesas com o percurso escolar. O apoio dos pais não é,
tarefas domésticas, que
penalizam as mulheres, todavia, descurado, já que 28% afirmam que foi com a ajuda deles que
mas apenas uma predis- conseguiram comprar casa ou apartamento e 38% conseguiram seu carro
posição opinativa a uma ou motocicleta. Entre os jovens desse grupo predominam os que já tive-
democratização da dis- ram experiências profissionais (79% já trabalharam no passado), mas não
tribuição dos papéis
necessariamente com horários rígidos. No momento em que foram inqui-
conjugais.
ridos, quase ninguém trabalhava em período integral (98%) e 64% não
tinha nenhuma atividade profissional. De onde, então, vem o dinheiro?
Em 81% dos casos, essencialmente de subsídios de formação, bolsas de
13.De fato, os “apren- estudo ou outros subsídios estatais13.
dizes” no Sistema Dual, Os relacionamentos familiares enquadram-se em redes de interajuda,
muito comum na Ale-
nas quais os presentes circulam normalmente de pais para filhos e vice-
manha, recebem um
versa, num clima de bom relacionamento. Apesar de a análise qualitativa
subsídio que aumenta
do primeiro para o ter- ter revelado a existência de alguma conflituosidade dissimulada ou har-
ceiro ano. Apenas a tí- monia forçada em famílias alemãs, muitos entrevistados, como Jana, sus-
tulo de exemplo, em tentaram que:
aprendizados estatais
(não sediados em em-
Nós não temos de fato problemas na nossa família. Não tenho problemas com o
presas), esse subsídio é
fixado em 390 euros meu pai, a minha mãe ou a minha irmã, avós. É tudo ótimo. A única coisa é que o
(cf. Stauber et al., 2004, meu pai está desempregado já faz cinco anos (22 anos, sexo feminino, ensino se-
p. 29). cundário, Alemanha leste).

126 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

O abandono da casa dos pais parece depender de uma opção indivi-


dual. Ao realizar esse movimento, há uma porcentagem considerável de
jovens (49%) que admitem poder viver em outra cidade do país, expecta-
tiva de mobilidade que poderá ser interpretada no quadro dos fluxos mi-
gracionais que a unificação da Alemanha favoreceu.
As qualificações acadêmicas desses jovens são razoáveis. A quase-totali-
dade (99%) terminou o primeiro ciclo do ensino secundário, 41% con-
cluíram o último ciclo do mesmo grau de ensino e 17% atingiram o nível
universitário. Para muitos deles, a aposta parece centrar-se na formação
profissional, se atentarmos para a sobre-representação das expectativas de
mães e pais que apontam para esse tipo de formação. Por vezes, a rigidez
institucional do Sistema Dual (experiência profissional adquirida in loco,
articulada com alguma aprendizagem escolar), combinada com a pressão
parental para integrar a formação profissionalizante, não corre particular-
mente bem, como nos dá conta Ana:

Meus pais disseram simplesmente “Vai e completa [a formação]!”. Originalmente,


eu não queria fazer isso. Só continuei porque [...] uma pessoa ouve o que os pais
dizem. [...] E, olhando para trás, eu penso: “Por que é que eu não ouvi a minha voz
interior?” Porque, assim, eu teria desistido e teria sido reorientada e talvez estivesse
no curso certo agora. [...] Porque nesses dois anos, na verdade foram três, [...] eu
creio que perdi uma quantidade louca de tempo (21 anos, sexo feminino, ensino
secundário, Alemanha leste).

Relativamente otimistas em relação ao futuro, 59% têm boas perspecti-


vas habitacionais e 48% boas perspectivas profissionais. Aliás, no grupo há
uma sobre-representação (44%) dos que acreditam que não terão dificul-
dades em arranjar emprego depois de terminarem a escolaridade ou o cur-
so. Esse fato parece estar relacionado com uma vantagem reconhecida do
Sistema Dual, que tem permitido à Alemanha manter taxas de desempre-
go juvenil relativamente baixas (por contraste com as elevadíssimas taxas
de desemprego de longa duração).
Finalmente, quanto às origens sociais desses jovens, ressalta a heteroge-
neidade. As qualificações acadêmicas dos pais são diversificadas. Quanto
ao status social, há uma sobre-representação da burguesia dirigente (10%
no caso das mães e 19% no dos pais) e ainda, em relação às mães, 39%
situam-se na pequena burguesia.
Em síntese, estamos perante jovens que experienciam a coabitação con-

novembro 2005 127


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

jugal, mesmo quando ainda vivem em casa dos pais, embora muitos deles
já se tenham desprendido da família de origem. Encontram-se orientados
por uma “ética de trabalho” fortemente associada à valorização da indepen-
dência. Os pais contribuíram para a formação desse ideário de vida, dada a
sobre-representação dos que apostam na formação profissional. Eles pró-
prios acreditam que as qualificações são determinantes na obtenção de em-
prego. Têm bons relacionamentos familiares e sociais, tudo convergindo
para a auto-estima, a confiança, o desenvolvimento de um sentimento de
liberdade.

Jovens europeus: contrastes e oposições

Embora a amostra do estudo não seja representativa dos países que a


integram, verificamos existir, em alguns grupos analisados, uma sobre-
representação de jovens partilhando a mesma nacionalidade, nomeada-
mente no que respeita aos jovens italianos e alemães (mas também dina-
marqueses, búlgaros e holandeses). Na base da amostra considerada,
notamos também diferentes fases de transição para a vida adulta, que refle-
tem os contextos nacionais dos entrevistados. Por exemplo, em relação às
idades ideais para um jovem sair da casa dos pais ou para casar-se (ou viver
com companheiro/a), é clara a oposição entre os grupos I, II e IV e os
grupos III e V (Quadro 2). Entre os jovens inquiridos na Alemanha (mas
também na Dinamarca e alguns no Reino Unido), é clara a tendência para
se desprenderem mais cedo da casa dos pais. Em contrapartida, há uma
sobre-representação de jovens italianos, búlgaros, portugueses, holande-
14.Decidiu-se não re- ses, espanhóis e alguns britânicos que tendem a considerar normal (e ideal)
correr às representações o prolongamento da estadia na casa dos pais – quer em termos gerais, quer
gráficas dessas análises no caso próprio. Aliás, no caso dos jovens sobre-representados nos grupos
fatoriais para não sobre-
I e IV, há mesmo uma tendência, embora por motivos diversos, para o
carregar o texto. Com
adiamento da paternidade.
efeito, dada a quanti-
dade enorme de variá- Mas muitas outras variáveis originam importantes segmentações entre
veis e modalidades de os jovens inquiridos. Tenha-se em conta, para efeito, o resultado de algu-
resposta contempladas, mas análises fatoriais de correspondências múltiplas que tivemos oportu-
são múltiplos os mode- nidade de realizar14. A própria composição das amostras obtidas em cada
los fatorais em análise
país é indutora de diferentes perfis juvenis que se associam, de forma di-
e o adensamento da in-
formação nos gráficos ferenciada, às modalidades de resposta consideradas. Vejamos o que se
obriga a uma constan- passa quando se tomam as variáveis de caracterização da amostra em con-
te recorrência a zooms. junção com aquelas que diretamente se prendem às situações e às transições

128 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

dos jovens. Tomando uma partição de quatro classes, destacam-se os três


principais fatores a seguir.

QUADRO 2
Idades ideais para assumir compromissos importantes e nacionalidades dos jovens que aparecem sobre-representadas nos
grupos analisados

GRUPOS I (22%) II (25%) III (16%) IV (12%) V (24%)


HOLANDA BULGÁRIA DINAMARCA ITÁLIA ALEMANHA
ESPANHA PORTUGAL REINO UNIDO (LESTE/OESTE)
REINO UNIDO ESPANHA
IDADES IDEAIS

Para um jovem sair da casa dos pais 27 ou + 21-23; 24-26 17 ou –; 18-20 24-26; 27 ou + 18-20

E no próprio caso… 24-26; 27 ou + 24-26 17 ou –; 18-20 24-26; 27 ou + 18-20; 21-23

Quando espera o(a) próprio(a) casar 24-26; 27 ou + sem resposta 20 ou –; 21-23 24-26; 27 ou + 20 ou –; 21-23
ou viver com um(a) companheiro(a)

Quando espera o(a) próprio(a) 27 ou + sem resposta sem resposta 27 ou + 21-23; 24-26
ter filhos

O fator 1 opõe:

a) Jovens da Itália e de Portugal, com 17 a 20 anos de idade, solteiros, que


vivem com os pais e não trabalham. Tendem a indicar como idade ideal
de sair de casa de 24 a 26 anos e, como razões de saída, apontam a
obtenção de emprego estável e/ou casamento, tencionando mudar-se
para uma vizinhança próxima daquela em que presentemente vivem os
pais. Tiveram ajuda ou planejam obter ajuda na aquisição de celular,
carro/motocicleta, casa, carteira de motorista. Consideram bastante di-
fícil encontrar emprego e muito importante a influência de outros para
consegui-lo, dando importância ao papel das agências de emprego. Fre-
qüentemente os pais não possuem mais do que o ensino primário.
b) Jovens da Holanda, da Alemanha (leste e oeste) e da Dinamarca. Ten-
dem a ser casados ou viver em união de fato (alguns têm filhos), ter mais
de 25 anos de idade e sair da casa dos pais para outra cidade (por razões
“práticas”). São independentes monetariamente e compraram o que têm

novembro 2005 129


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

sem ajudas (com exceção, em alguns casos, da casa). Consideram que


não é difícil encontrar emprego e não dão importância ao papel das
agências de emprego na procura de trabalho.

O fator 2 permite desvendar uma oposição entre:

a) Jovens da Dinamarca com idade inferior a 16 anos, com muitas catego-


rias de não-resposta associadas.
b) Jovens da Holanda, da Espanha e da Itália, de 21 a 24 anos, que imagi-
nam ir viver sozinhos com idades superiores a 24. Tendem a ser otimis-
tas (relativamente às suas perspectivas pessoais e profissionais) e já tra-
balham. Dão importância à sorte, à experiência e às qualificações, bem
como ao talento e ao esforço para arranjar emprego. Não consideram
importante para obter um emprego nem os amigos, nem o sexo a que
pertencem. Apresentam opiniões contraditórias quanto à importância
da intervenção de outros familiares ou de uma agência de emprego,
bem como do local onde vivem, para arranjar emprego.

Finalmente, o fator 3 identifica uma oposição entre:

a) Jovens da Bulgária, de 17 a 20 anos, cujos pais têm cursos superiores.


Predominam os estudantes, os que não trabalham, os que consideram os
estudos muito importantes e os que pensam que os pais têm influência
na obtenção de emprego. Como razão para uma mobilidade residencial
dentro da mesma cidade, apontam oportunidades de emprego; como
razão para mudar de cidade, uma melhor qualidade de vida; e como ra-
zão para sair do país, a possibilidade de encontrar melhores escolas. Indi-
cam como idade ideal para sair de casa a faixa etária de 18 a 20 (que
corresponde à entrada na universidade). Aparentam algum pessimismo
quanto a oportunidades de emprego, mas se consideram mais bem posi-
cionados que a maioria dos jovens de uma forma geral e razoavelmente
em termos de projetos pessoais.
b) Jovens da Itália e da Alemanha leste, de 25 a 29 anos, que trabalham e/
ou trabalharam no passado em período integral ou não, que não dão
grande importância aos estudos. Consideram que se encontram bem
quanto a projetos pessoais e de habitação. Os pais tendem a ter níveis de
instrução primária e secundária.

130 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

Como se constata, o fator 1 confronta, claramente, dois modelos com


distintas raízes culturais: num modelo tradicional (presente em Portugal e na
Itália), os capitais culturais (do ponto de vista das qualificações acadêmicas)
são reduzidos e os temores em relação ao desemprego são elevados, registran-
do-se uma forte dependência dos jovens, a ponto de, mesmo ao abandona-
rem a casa dos pais, eles persistirem em manter-se nas imediações, benefi-
ciando-se de suas ajudas. Claudio, um trabalhador temporário de 20 anos,
com formação em contabilidade, testemunha a experiência de jovens italia-
nos que sentem os constrangimentos econômicos que os impedem de sair de
casa, aumentando, desse modo, a dependência em relação aos pais.

Há demasiadas dificuldades a enfrentar [...] sem um emprego e sem dinheiro, teria


mais olhos que barriga [...]. Aos vinte anos, não posso ter expectativas de sair de
casa, ganhar 1500 euros e comprar uma casa [...]. É apenas impossível, porque, na
prática, não pode acontecer [...]. São demasiadas despesas se uma pessoa não tem
um emprego estável (20 anos, sexo masculino, ensino secundário, Itália).

Em contrapartida, num modelo pós-tradicional (presente na Holanda,


na Alemanha e na Dinamarca), é notório o desprendimento econômico
em relação à família de origem, para além de uma menor preocupação em
relação ao emprego. O centro de gravidade é o indivíduo, como nos mos-
tram as afirmações de Louise e Mark, respectivamente:

A coisa mais importante é que se tenha auto-estima e se acredite no que se está


fazendo. Quero dizer, é importante que não se tenham muitas dúvidas [...]. Claro
que é importante ter apoio e uma retaguarda e alguma confirmação de quem está
à sua volta, da sua rede (26 anos, sexo feminino, ensino secundário, Dinamarca).

Eu diria que, de modo geral, modelei a minha vida. As escolhas profissionais foram
minhas. Tomei todas as decisões sozinho, disciplinas no ensino secundário, serviço
militar ou cívico, qual universidade e que curso, todas as minhas idéias e decisões.
Minha família apenas me disse: “Faça o que quiser e como quiser”. Para minha
mãe, qualquer coisa menos padre católico, porque ela queria ter netos! Mas eu
peguei tudo com as minhas próprias mãos e em princípio foi o caminho certo (26
anos, sexo masculino, ensino superior, Alemanha oeste).

As raízes culturais desses modelos combinam-se com diferentes etapas


de transição associadas à idade: num grupo há predominância de jovens e

novembro 2005 131


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

solteiros; em outro, de casados e adultos-jovens. Ou seja, a faixa etária


interfere também na forma como as transições são desenhadas, pressenti-
das, projetadas.
O fator 2 mostra como os mais jovens dos inquiridos (da Dinamarca)
não manifestaram grande interesse (ou tiveram dificuldades?) em respon-
der o questionário. Já o fator 3 coloca em confronto jovens que se opõem
sobretudo pela importância dada aos estudos: ela é elevada no caso dos jo-
vens búlgaros – são universitários ou em fase de transição para a universida-
de (têm entre 17 e 20 anos) –, mas reduzida no caso dos “jovens-adultos” da
Itália e da Alemanha (entre 25 e 29 anos). O curioso é que os primeiros se
mostram mais pessimistas em relação às oportunidades de emprego – talvez
porque sejam mais exigentes ou até, na medida em que seus investimentos
na educação são mais avultados, equacionando a possibilidade de os realizar
(ou concluir) em outro país, por aí poderem encontrar melhores escolas.
Maria, uma universitária búlgara, mostra como, para além de todos os in-
vestimentos materiais e afetivos dedicados a ela pelos pais, o valor das qua-
lificações escolares foi central na sua socialização. Sua mãe insistia freqüen-
temente com ela: “Você devia estudar mais, é sua maior responsabilidade”.
Mas é também interessante verificar como as diferentes valorizações da
escolaridade têm raízes culturais. Os jovens búlgaros, que são os que mais
valorizam os estudos, tendem a ter pais com cursos superiores; os jovens ita-
lianos e alemães, que se distinguem por desvalorizam os estudos, tendem a
ter pais com baixos níveis de instrução. São dados que, inevitavelmente, nos
obrigam a refletir sobre o peso das socializações familiares e sobre o jogo das
reproduções sociais.
Para terminar, e retomando a análise global das variáveis trabalhadas na
partição de cinco classes, destacam-se os fatores a seguir.
O fator 4 identifica uma oposição entre:

a) Jovens da Europa do sul (Portugal, Espanha e Itália) e da Bulgária, com


idades compreendidas entre 17 e 20 anos e entre 24 e 26 anos, solteiros
e bastante dependentes dos pais (quer monetária, quer afetivamente).
b) Jovens que já saíram da casa dos pais suportando seus próprios encargos
e despesas. Tendem a ter idades superiores a 25 anos e a ser da Dina-
marca e da Alemanha (leste e oeste). Apresentam muitas não-respostas.

O principal efeito diferenciador, tendo em conta a totalidade das variá-


veis selecionadas, é ser ou não independente dos pais. Atente-se aos con-

132 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

trastes – em termos de vivências da transição e de dependência da família –


nos casos de Leon, um jovem alemão já independente, e de Paulo, um
jovem português da mesma idade, ainda na casa dos pais, embora prestes a
casar-se:

Eu acho que saí de casa quando tinha 21 anos. Creio que foi numa boa idade, é
algo de sólido [...] eu também olho para os meus amigos. Um deles, aos 25 ou... é
isso, sim, ele fez 25 agora e ainda vive na casa dos pais. Não sei, eu não conseguiria
fazer isso (25 anos, sexo masculino, ensino secundário, Alemanha leste).

Tenho medo de sair da casa dos meus pais... porque lá tenho roupa lavada, comida
feita... todas essas coisas [...] dinheiro para academia de ginástica... tudo. Não
tenho dificuldade nenhuma. Agora vou para a minha casa, e sei que vou sofrer.
Mas eu amo muito a pessoa com quem vou me casar e tenho a vida facilitada,
embora ainda não tenha uma carreira. [...] E mesmo depois de casar vou continuar
dependente deles. Não devia dizer isso, mas é verdade. Se não fosse assim, nem
sequer casava. [...] Foram eles que me compraram a casa [no mesmo bairro que a
dos pais] (25 anos, sexo masculino, ensino superior, Portugal).

O fator 5 identifica uma oposição entre:

a) Jovens associados a categorias de não-resposta.


b) Jovens com opiniões muito definidas (seguros quanto a sua imagem e
com uma visão muito vincada acerca do emprego e outras questões).
Tendem a ter idades compreendidas entre 21 e 24 anos, com presença
dominante de holandeses. Alguns já trabalham e tendem a viver sozi-
nhos, assim como a pagar suas próprias despesas. Seus pais apresentam
grandes expectativas em relação ao futuro dos filhos.

Nesse caso, o contraste polariza jovens que apresentam uma maior


maturidade diante daqueles que revelaram uma taxa superior de não-res-
postas. Entre os primeiros encontramos jovens como Marieke, uma pro- 15.Os jovens holande-
fessora primária de 23 anos, da Holanda15. Sua biografia é testemunho da ses segmentam-se entre
firmeza de objetivos e da capacidade de desenvolver estratégias alternativas os que tendem a pro-
longar a estadia na casa
para atingi-los, nomeadamente quando procurou sair de casa:
dos pais (como vimos
anteriormente) e os que
Bem, não foi “eu tenho de sair e vou mesmo sair, porque estou farta dos meus tipificam uma autono-
pais”. Mas sim achar que era a hora certa. Isso cresce dentro da gente durante um mização de vida.

novembro 2005 133


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

tempo, não acontece da noite para o dia. [...] Eu me inscrevi para arrendar uma
casa há cinco anos [programa de acesso às casas do Estado], mas como demora
muito tempo para ser elegível para um apartamento, decidi comprar uma casa.

Conclusão

Em termos conclusivos, diríamos que entre alguns jovens, nomeada-


mente da Dinamarca, da Holanda e da Alemanha (leste e oeste), o abando-
no da casa dos pais não aparece necessariamente associado ao casamento,
podendo corresponder a uma etapa de experimentação de uma vivência
autônoma ou de coabitação. Em contrapartida, entre alguns jovens búlga-
ros e mediterrânicos (Itália, Espanha e Portugal), nota-se uma tendência ao
prolongamento da estadia na casa dos pais, marcadamente condicionada
pela obtenção de um emprego estável. A busca de autonomia, nesses casos,
é prejudicada pela existência de um sentimento de receio que os leva ao
refúgio na família, aí se procurando cobertura para a satisfação de necessi-
dades básicas e de despesas lúdicas características do universo juvenil. As
ajudas familiares permitem a esses jovens escamotear as dificuldades de
emprego e possibilitam certa integração no mercado de consumo, ainda
16.Esse fenômeno tem que condicionada16 e potencialmente geradora de conflitos familiares,
sido bastante estudado como acontece em maior número com os jovens italianos. Em contraste,
na sociologia da juven- entre os jovens alemães, holandeses e dinamarqueses, os ganhos de autono-
tude. Ver, a propósito,
mia não aparecem associados a conflitos ou rupturas de lealdades familia-
Galland (2001).
res. Por outro lado, a auto-estima, a confiança e o sentimento de liberdade
encontram-se numa correlação estreita com a autodeterminação, represen-
tando o trabalho uma fonte importante de identidade e independência.
São jovens muito mais libertos da pressão de normas e de exigências sociais
que bloqueiam a capacidade de decisão e atuação individuais. Afastam-se,
claramente, do modelo familiar que enfatiza o papel masculino como sus-
tentáculo econômico e o papel feminino como o da governação doméstica,
modelo que ainda parece imperar entre as famílias de muitos jovens medi-
terrânicos. Enfim, são jovens mais orientados por uma democratização das
relações familiares – só possível porque o privado (família) alberga o político
(democratização); porque os direitos e deveres de cidadania se instalam na
“intimidade familiar” (Beck, 1999).
Esse deslocamento da família tradicional (em que o matrimônio apare-
ce como instituição) para uma nova família (caracterizada por uma conju-
galidade de tipo relacional) inscreve-se como parte integrante de uma cul-

134 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

tura juvenil emergente que valoriza a autonomia, a independência, a indi-


vidualidade. Nessa matriz cultural, a mulher liberta-se das amarras econô-
micas que a faziam depender do esposo, e suas expectativas de realização e
satisfação individuais são incomparavelmente mais elevadas do que nas
matrizes culturais tradicionais. Estas, segundo os dados da pesquisa, conti-
nuam a comandar a divisão do trabalho sexual em algumas famílias – prin-
cipalmente no que respeita ao desempenho das tarefas domésticas –, mas
não se fizeram sentir de forma muito acentuada quando comparamos jo-
vens dos diferentes sexos. No entanto, entre alguns jovens inquiridos sub-
siste a convicção de que o gênero é um fator de discriminação no acesso ao
mercado de trabalho17. 17.Aos inquiridos foi
Os dados sugerem que o “individualismo” contemporâneo parece ter perguntado o grau de
duas faces distintas, quando se analisam as famílias e as transições dos jo- importância que atri-
buíam a diversos fato-
vens europeus. De um lado, ele parece traduzir e acentuar uma crescente
res na obtenção de um
pluralização de trajetórias, situações e modalidades de transição. Por outro, emprego, tais como a
contudo, na expressão desse individualismo são relevantes os efeitos de família, as instituições
proteção familiar que envolvem as “redes de parentesco” (Mortain, 2002, do Estado, o talento, as
pp. 16-19), embora as malhas dessas redes tenham diferentes texturas e qualificações, a sorte e
formas protetórias, de acordo com os contextos sociais em que os jovens
vivem. Tais contextos são definidos não só por especificidades estruturais e
institucionais (mercado de trabalho, sistema educativo, políticas sociais) –
tanto regionais como nacionais –, mas também por matrizes e tradições
culturais (objetivadas individual e socialmente). Essa constatação reforça a
natureza multicontextual e diferenciada das sociedades contemporâneas de
que acima se falava (cf. Lahire, 1998).
Para traçar um retrato fidedigno das transições juvenis nesses diversos
contextos, são necessárias abordagens triangularizadas (cf. Denzin, 1979),
que ponham em diálogo diferentes escalas de análise – pesquisas extensivas
com questionário, que permitam estabelecer perfis e contrastes a serem
confrontados com testemunhos de quem vive essas transições. Assim, as
análises tipológicas e fatoriais aqui sintetizadas permitiram caracterizar e
enfatizar a crescente pluralização das trajetórias, das situações e das transi-
ções dos jovens europeus, muito além de estereótipos baseados em con-
trastes de sistemas de previdência social ou de países. Também foi dada
relevância às matrizes culturais, às singularidades das experiências indivi-
duais e ao entrelaçamento destas naquelas.
De significativo alcance analítico foi também a articulação entre os pro-
cessos de individualização e de reprodução social. Se, por um lado, a agên-

novembro 2005 135


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

cia pessoal adquire importância na condução das transições, como vimos


no Grupo I (com predominância de jovens holandeses, espanhóis e britâni-
cos), a posse de qualificações escolares conflui, decisivamente, para a aqui-
sição de competências e recursos individuais. E, em muitos contextos, ape-
sar de uma suposta igualdade no acesso à escola (universal e gratuita), há
desigualdades estruturais em relação ao sucesso escolar que derivam princi-
palmente da origem social. Além disso, no caso de Portugal, por exemplo, a
classe social de origem continua sendo um preditivo dos resultados escola-
res dos jovens, quer em termos de duração da trajetória, quer em termos de
sucesso escolar (cf. Cabral e Pais, 1998). A escolarização é mesmo um dos
canais privilegiados para a individualização porque

[...] significa escolher e planejar a própria trajetória escolar. [...] Dependendo de


sua duração e conteúdo, a educação torna possível, no mínimo, um certo grau de
autodescoberta e reflexão. A pessoa escolarizada incorpora o conhecimento reflexi-
vo das condições e perspectivas da modernidade, e por essa via torna-se um agente
da modernidade reflexiva (Beck, 1992, p. 93).

A articulação entre processos de individualização e de reprodução social


prossegue na passagem para o mercado de trabalho. Embora possa ser de-
masiado simplificador afirmar que quanto mais elevado for o grau de ensi-
no atingido maiores as chances de se vir a ter um melhor emprego (devido
às dificuldades crescentes em compatibilizar níveis de qualificação com
oportunidades no mercado de trabalho), as hipóteses de sucesso são mais
promissoras quando comparadas com aqueles que detêm fraco (ou ne-
nhum) capital escolar.
Além das credenciais escolares, outros recursos cruciais são mobilizados
no curso das trajetórias ou simplesmente nas vivências juvenis. Quando os
jovens aparentam ser capazes de obter e mobilizar recursos “próprios” (pro-
videnciados pelo Estado, herdados por via de aculturações sociais ou por
meio do estabelecimento de relações pessoais e/ou vidas profissionais
satisfatórias), a autonomia é manifesta (Grupos I e V). Já quando os recur-
sos são obtidos de forma mediada ou condicional (sobretudo por intermé-
dio da família), a autonomia existe, mas não isenta de tensões relacionais
ou ambivalências atitudinais (Grupos III e IV). Quando os recursos são
insuficientes (devido aos constrangimentos socioeconômicos), aumenta o
potencial gerador de dependência dos jovens em relação à família de ori-
gem (Grupo II).

136 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Machado Pais, David Cairns e Lia Pappámikail

As análises fatoriais realizadas, complementadas por testemunhos indi-


viduais, acrescentam uma profundidade adicional ao quadro analítico das
transições juvenis na Europa, segmentando perfis de transição por contras-
te, ou seja, sublinhando eixos diferenciadores entre grupos sociais: seja
entre grupos de jovens mais ou menos enraizados em culturas tradicionais
regionais; seja na importância atribuída aos capitais escolares; seja, final-
mente, entre jovens que já saíram de casa e outros que ainda vivem com os
pais. O resultado é um retrato empiricamente informado da complexidade
das trajetórias juvenis, tão individualizadas – em escala micro a variação
interindividual é potencialmente infinita – quanto compostas por efeitos
de reprodução e recomposição social, particularmente visíveis a uma escala
intermédia e extensiva, também adotada neste estudo.

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novembro 2005 139


Jovens europeus: retrato da diversidade, pp. 109-140

Resumo

Jovens europeus: retrato da diversidade


Este artigo explora as transições para a vida adulta de jovens de várias regiões européias
a partir de dados de uma pesquisa recente, baseada em um questionário. Para isso
aplicaram-se análises tipológicas e fatoriais: das primeiras emergiram cinco grupos,
tipificando distintas transições, orientações atitudinais e sociografias juvenis; das se-
gundas resultaram contrastes fatoriais que evidenciam diferentes modalidades de tran-
sição. Essas análises – tipológicas e fatoriais – foram complementadas com análises
qualitativas de entrevistas aprofundadas realizadas em uma amostra dos jovens inqui-
ridos e seus respectivos pais. As triangulações analíticas ilustram a diversidade das
transições, interpretadas à luz dos processos sociais (como a individualização e a repro-
dução social) e dos contextos de socialização (familiar, educacional, cultural).
Palavras-chave: Juventude; Europa; Transições para a vida adulta.

Abstract
Young europeans: a portrait of diversity

This article explores the diversity of education to work transitions amongst some Eu-
ropean young people. Following contextualisation of recent social change in issues
relating to the family, individualized trajectories and transition regimes in Europe,
youth transitions are discussed through the presentation of results of current qualita-
tive research. This research is represented by exemplary case studies from six of the
regions participating in this research, namely, Portugal, Denmark, the Netherlands,
Italy, East Germany and the United Kingdom. These accounts illustrate the range of
responses young people with contrasting social conditions across Europe make to chang-
Texto recebido e apro- ing circumstances, such as the extension and prolongation of educational pathways,
vado em 25/8/2005. the transformation of the labour market and a shifting balance between state and
José Machado Pais é pes- family support in enabling labour market entry. Dimensions such as family ties and
quisador do Instituto de future plans are also portrayed in this article in relation to current theoretical debates
Ciências Sociais da Uni-
around the issues individualization, agency and structure in youth trajectories.
versidade de Lisboa. E-
Keywords: Youth; Europe; Transitions to adult life.
mail: machado.pais@ics.
ul.pt.
David Cairns (pós-dou-
torado) e Lia Pappámi-
kail (doutoranda) pes-
quisam atualmente no
mesmo instituto, na con-
dição de bolsistas da Fun-
dação para a Ciência e a
Tecnologia.

140 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


A face oculta da transferência de renda para
jovens no Brasil
Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

Este artigo pretende analisar alguns dos pressupostos orientadores de pro-


gramas sociais públicos destinados a jovens pobres no Brasil que envolvem
transferência de renda e contemplam, em decorrência, a exigência de uma
contrapartida que figura como obrigatória1. A escolha desse tipo de inicia- 1. As reflexões aqui esbo-
tiva decorre de algumas peculiaridades dessas ações, não obstante a diver- çadas integram um cam-
sidade de orientações ou atores envolvidos, que oferecem novas questões po amplo de investigações
sobre ações de governos
para análise no campo dos estudos sobre juventude. Esses programas bus-
municipais destinadas aos
cam oferecer, diretamente aos segmentos juvenis que constituem o foco jovens em 75 cidades bra-
das ações, algum tipo de remuneração, em geral entendida como “bolsa”, de sileiras de regiões metro-
duração variável, mas cujo sentido principal não residiria apenas no pró- politanas (Projeto Temá-
prio benefício pecuniário – a renda que é transferida –, mas no conjunto tico “Juventude, Escola-
rização e Poder local”,
de metas e ações previstas nessa concessão, configuradas, assim, na idéia de
com o apoio da Fapesp e
contrapartida. do CNPq).

Os jovens e as políticas públicas

Nos últimos dez anos podem ser observadas sensíveis diferenças no


debate público em torno do tema da juventude no Brasil. Não só emerge
um novo interesse na investigação no âmbito das ciências humanas, como
se espraiam iniciativas destinadas a esse segmento por parte dos mais di-
versos atores governamentais e da sociedade civil. No ano de 1995, em
A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

diagnóstico sobre os jovens no Brasil, Rua afirmava que as políticas de


juventude situavam-se no campo “do estado de coisas” e, assim, esse seg-
mento não era objeto de ações específicas por parte dos governos, princi-
palmente no nível federal (cf. Rua, 1998). Mas nesse momento já era reco-
nhecida uma sensível atuação no âmbito de organizações não-govermentais
que se dedicavam ao trabalho com jovens, sobretudo no campo da cultura,
apesar de sua fragmentação e descontinuidade (cf. Castro e Abramovay,
1998; Sola, 1998).
No plano federal, a gestão Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
marcou uma inflexão importante por meio de iniciativas originadas em
diversos ministérios, mas sem articular essas ações no intuito de constituir
um campo de políticas públicas para os jovens (cf. Sposito e Carrano,
2003; Castro e Abramovay, 2003). No final de seu mandato, e no período
de transição para o novo governo, a visibilidade do tema ampliou-se ainda
mais com um intenso debate empreendido sobretudo por organizações da
sociedade civil que tinham como alvo o trabalho com os jovens.
O governo federal empossado em 2003 também reconheceu a im-
portância da temática ao constituir um grupo interministerial para a dis-
2. O Programa Pró-Jo- cussão das políticas de juventude, destinado a formular um conjunto de
vem oferece condições diretrizes de ação (cf. Novaes, 2005). Algumas iniciativas foram obser-
de complementação da vadas no início do mandato, como o Programa Primeiro Emprego e,
educação fundamental
mais recentemente, a criação do Programa Pró-Jovem2, ao lado da insti-
para jovens entre 18 e
25 anos que não este- tuição da Secretaria Nacional de Juventude e do Conselho Nacional de
jam vinculados ao mer- Juventude3.
cado de trabalho formal. Nesse mesmo período, na esfera do Executivo municipal, principal-
Com duração de um mente em administrações de centro-esquerda a partir de 1997, começa-
ano, o programa prevê
ram a ser implantadas ações que propunham inclusive novos desenhos
uma bolsa e deverá ser
executado em convênio
institucionais, como expressão de duas orientações: uma melhor articula-
com prefeituras de re- ção de iniciativas, que em geral permaneciam isoladas, e uma proposta de
giões metropolitanas (cf. aproximação do executivo municipal para os jovens moradores das cidades
Novaes, 2005). por meio da criação de novos canais de interlocução (cf. Sposito e Carrano,
3.Cabe também ressal- 2003; Sposito, 2003).
tar iniciativas recentes O teor e o impacto dessas iniciativas – federais e municipais – são varia-
do Legislativo federal, dos em todo o país e não refletem, necessariamente, mudanças significati-
que deu início ao pro-
vas no interior de uma agenda pública que tem a juventude e seus direitos
cesso de elaboração de
um Plano Nacional de como tema. Sinalizam, no entanto, inflexões importantes que podem cons-
Juventude e do Estatuto tituir novas arenas no âmbito da esfera pública, como lócus de disputa em
da Juventude. torno dos modelos normativos que orientam as representações sobre a con-

142 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

dição juvenil no país, bem como as expectativas de sua inserção no mundo 4. Não se pretende defi-
adulto4. nir neste momento o
conceito de juventude.
Por outro lado, a própria unanimidade em torno do caráter legítimo de
Trata-se não apenas de
um novo campo de ações no âmbito das políticas públicas especialmente reiterar o caráter histó-
voltadas para jovens não é real, indicando a existência de uma série de con- rico e cultural da condi-
flitos subjacentes à sua constituição que nem sempre são evidentes. A rigor, ção juvenil, mas de pres-
a visibilidade do tema tem privilegiado elementos de consenso que não supor que os modelos
simbólicos que tendem
deveriam obscurecer os possíveis litígios.
a compor uma imagem
Um foco mais visível de dissenso reside na disputa de recursos escassos do que devem ser os jo-
destinados às políticas sociais, ampliando cada vez mais o escopo das de- vens em uma determi-
mandas e das necessidades de novos investimentos, ao incluir novas mo- nada sociedade, além de
dalidades de público a que se destinam as ações. Essa situação atravessa as normatizar sobre o trân-
várias instâncias da federação – federal, estadual e municipal – como tam- sito para uma condição
adulta considerada dese-
bém percorre o interior dos governos, ocorrendo maior disputa por verbas
jável, delimitam aquilo
ou recursos para assegurar ações que muitas vezes são superpostas e não que pode ser reconheci-
nascem de uma estratégia clara de formulação de políticas (cf. Rua, 1998). do como o comporta-
No entanto, a obtenção de verbas em regime de escassez não constitui o mento legítimo para o
tópico mais relevante para a compreensão dos elementos que estão em próprio momento do ci-
clo de vida. Apesar da di-
jogo nessa disputa.
versidade de modelos, é
Sob o ponto de vista dos objetivos da análise a ser empreendida neste possível considerar que
artigo, é preciso reconhecer que ocorre, principalmente, um conflito em tor- algumas formas consti-
no das orientações que alimentam as ações destinadas aos segmentos juvenis, tuem dominância e pas-
incluindo nesse campo um conjunto de representações que no limite pode sam a orientar a expe-
riência concreta dos jo-
até se opor a qualquer tipo de intervenção específica destinada aos jovens5.
vens, mas adaptadas às
No campo das orientações, um primeiro eixo de conflitos diz respeito à
peculiaridades que de-
própria necessidade das políticas específicas para a juventude: as demandas correm de classe social,
dos jovens não estariam necessariamente contempladas no acesso às políti- sexo, etnia, extração re-
cas universais como saúde, educação, transporte, esporte, entre outras? Para ligiosa, condição de vida
um campo importante de atores, os jovens teriam satisfeitas suas princi- urbana ou rural.

pais demandas no âmbito dessas políticas setoriais, sendo desnecessário 5. Neste artigo, o senti-
qualquer recorte que os privilegiasse como destinatários específicos de ações do dado à noção de re-
presentação se apóia so-
públicas ou governamentais. No outro extremo estariam radicadas as posi-
bretudo em Henri Le-
ções que defenderiam as políticas da juventude apenas como ações com febvre, que recusa a di-
clara focalização, sendo nesse caso destinadas apenas aos jovens em “situa- cotomia entre o que está
ção de exclusão social” ou em condições de “vulnerabilidade”. fora e é exterior (como
Um segundo eixo reside na falta de consenso em torno da própria coisa) e as representações
definição do que seriam políticas públicas de juventude. Para alguns au- que também vêm de
dentro e são contempo-
tores latino-americanos (cf. Bango, 2003; Dávila, 2003), as políticas de

novembro 2005 143


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

râneas à constituição do juventude não estariam inscritas nas políticas setoriais, mas diriam res-
sujeito, tanto na histó- peito necessariamente a outros níveis de ação que não incidiriam sobre o
ria de cada indivíduo
objeto das grandes políticas: saúde, trabalho, habitação e educação. Es-
como na gênese do in-
dividual na escala social. tariam mais próximas, assim, de áreas articuladas às demandas culturais,
Desse modo, as represen- de tempo livre, de lazer e, principalmente, de ações que possibilitassem a
tações “não são nem fal- real participação dos jovens, ampliando a esfera de sua cidadania. Ernesto
sas nem verdadeiras, mas Rodríguez propõe, em suas análises, que as próprias demandas dos jo-
ao mesmo tempo falsas
vens em direção às políticas estariam restritas ao campo simbólico e ex-
e verdadeiras: verdadei-
ras como respostas a pro-
pressivo (cf. Rodríguez, 2001).
blemas ‘reais’ e falsas na Esses dois primeiros eixos de conflito remetem a algumas questões im-
medida em que dissimu- portantes em torno das intervenções públicas dos governos, em vários paí-
lam objetivos ‘reais’ ” ses, privilegiando uma ação específica voltada para a juventude. Tem sido
(Lefebvre, 1980, p. 55). crescente a ação governamental destinada aos jovens tanto na América La-
tina como em vários países europeus, mas é preciso reconhecer que essas
políticas aparecem como um “objeto difuso quando comparado com os
domínios mais consolidados a partir de estruturas ministeriais portadoras
de competências delimitadas de intervenção”, conforme análise de Loncle
6. Os regimes de cidada-
a partir da realidade francesa (2003, p. 24).
nia definem um conjunto
Assim, desde suas origens, as políticas de juventude constituem um es-
de direitos e traçam os
limites da intervenção do paço de intervenção pública transversal e periférico (cf. Idem, p. 25). Se con-
político na sociedade. siderarmos a experiência francesa, mais antiga nesse domínio, poderíamos
Para a autora, os jovens dizer que as políticas de juventude dificilmente seriam originadas da lógica
seriam um público prio- setorial. A principal razão para esse fato reside na dificuldade de constituição
ritário em direção aos
de uma intervenção pública a partir de uma categorização em termos de
regimes da cidadania que
poderiam ser compreen- idade. Para Loncle, duas outras razões também interferem nessa dificulda-
didos, cada um, como de: a primeira remete à forte dimensão simbólica das políticas de juventude,
conjunto hierarquizado pois em geral não estão munidas de um fundamento autônomo e, assim, em
de status: “Ao lado do ci- períodos de crise, poderiam desaparecer como problema público; a segunda
dadão normal aparecem
deriva de sua “natureza” transversal, ou seja, ao terem a “integração dos jo-
os grupos com estatuto
de ‘minorias’, tanto no
vens na sociedade“ como missão, elas dizem respeito, potencialmente, a quase
domínio dos direitos cí- todas as ações do Estado (cf. Idem, p. 27).
vicos como no dos direi- De certo modo, a experiência histórica indica que orientações explíci-
tos sociais” (Loncle-Mo- tas voltadas para a juventude exigem a aceitação do pressuposto da trans-
riceau, 2001, p. 87). Os versalidade, mas também a adoção de uma lógica que transcenda a ação
regimes da cidadania ca-
setorial, sendo capaz, de alguma forma, de assumir a perspectiva da idade
minhariam no sentido da
diferenciação das ações, nas suas orientações. Esse tipo de prática constituiria uma ampliação nas
restando sempre o desa- concepções dos direitos da cidadania, introduzindo a idéia dos “regimes
fio de sua universalização. de cidadania” tal como registra Loncle-Moriceau (2001)6.

144 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

No Brasil, torna-se extremamente complexa a adoção de perspectivas


que definem as demandas juvenis apenas no universo simbólico ou expres-
sivo, mesmo que se reconheça sua fragilidade como grupo de pressão no
âmbito da esfera pública. Pesquisas recentes confirmam que necessidades
e expectativas explicitadas pelos jovens não se limitam ao campo da cultu-
ra, mas incidem sobre melhores condições de acesso ao mundo do traba-
lho, à educação e ao transporte, entre outras7 (cf. Sposito, 2005; Guima- 7. Um dos maiores cam-
rães, 2005)8. pos de conflitos entre
A proposta de constituição de transversalidade nas ações públicas pare- jovens e poder munici-
pal, nos últimos dois
ce articular as demandas dos jovens no âmbito das “grandes políticas”,
anos, em várias cidades
sendo nelas introduzidas não apenas a perspectiva de gênero, ou de etnias, brasileiras, reside no se-
mas o reconhecimento das especificidades dos momentos experimentados tor de transportes públi-
ao longo do ciclo de vida. No entanto, essas orientações também não se- cos e no preço das tari-
riam impeditivas da abertura de novas modalidades de ação pública, espe- fas praticadas, conside-
radas abusivas pelos seg-
cialmente destinadas aos jovens.
mentos juvenis.
Um terceiro eixo de conflito reside no tipo de institucionalidade mais
8. A pesquisa conduzida
apropriado à ação, nas diversas esferas do Poder Executivo. Os debates
pelo Instituto da Cida-
ocorridos antes das eleições presidenciais, em 2002, e nos dois primeiros dania revela múltiplos as-
anos do governo Lula absorveram a experiência dos países latino-america- pectos que mobilizam os
nos ao evitar a criação precipitada de organismos que, sem nenhuma legi- jovens, sobretudo na es-
timidade no interior da máquina governamental, constituiriam agencia- fera do trabalho e da es-
mentos sobretudo burocráticos, sem poder de impacto na formulação, cola, mas que atingem
o âmbito dos principais
integração e acompanhamento das ações9. No interior do Poder Executivo
problemas sociais iden-
municipal, organismos específicos – como as assessorias, coordenadorias e tificados, entre eles o
secretarias de juventude – constituem um leque diferenciado de atribui- tema da segurança e as
ções e de graus de reconhecimento externo ou no interior da máquina expectativas de acesso aos
governamental, sendo muito difícil qualquer generalização sobre os possí- bens culturais (cf. Abra-
mo e Branco, 2005).
veis benefícios de sua criação.
No terreno das representações dominantes sobre os jovens, ocorre certo 9. A criação de um Ins-
tituto Nacional de Ju-
lastro comum que esteve presente no nascimento das ações. Grande parte
ventude foi uma das
delas operou com a imagem de uma juventude perigosa, potencialmente propostas até o momen-
violenta, que necessitava de uma ampla intervenção da sociedade para asse- to não implementadas
gurar seu trânsito para a vida adulta de modo não ameaçador a certas orien- em virtude de dificul-
tações dominantes. Por essas razões, o grande tema que ocupa a constitui- dades observadas na ex-
ção de uma opinião pública em torno dos jovens no Brasil sempre teve suas periência da América
Latina.
origens na violência, sobretudo nos centros urbanos. A temática do desem-
prego, fortalecida no fim da década de 1990, não rompe de modo funda-
mental com o campo simbólico anterior, aparecendo como um problema

novembro 2005 145


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

social por levar os jovens a uma ociosidade forçada, propiciadora de um


tempo livre perigoso, que os aproximaria, inevitavelmente, das condutas
criminosas, sobretudo aquelas ligadas ao tráfico de drogas ilícitas (cf. Cor-
rochano e Gouvêa, 2003). Felicia Madeira, ao analisar programas voltados
para o emprego juvenil, observa que as iniciativas são marcadas pelos deba-
tes conjunturais em torno do tema da violência juvenil, com forte presença
midiática, e a proposta pública aparece como um antídoto a ser utilizado
como proteção contra o contágio da violência (cf. Madeira, 2004).
É preciso reconhecer que as políticas de juventude são normativas: pres-
crevem ou enfatizam normas, significados ou conteúdos simbólicos que
incidem sobre expectativas de disseminação de condutas juvenis conside-
radas adequadas para um determinado tempo e espaço. Para Loncle, ao
analisar cem anos de políticas de juventude na França, as iniciativas sem-
pre decorreram de um tripé assentado na idéia de cidadania, de proteção e
de pacificação social. A idéia de cidadania prevalecente nessas iniciativas
estaria principalmente radicada na “obrigação de cidadania”, ou seja, trata-
se de transformar os jovens em cidadãos ativos, em indivíduos que partici-
pam da sociedade nacional, dispostos a defendê-la em tempo de guerra ou
renová-la em tempo de paz. Assim, os registros que assinalam as relações
sociais que ancoram as ações públicas estariam dominados por conteúdos
simbólicos que permitiriam principalmente “identificar os projetos glo-
bais do Estado” e com maior fragilidade resolver efetivamente os proble-
mas dos jovens (cf. Loncle, 2003, p. 15).
Tendo em vista a diversidade de orientações no Brasil, transformadas
em campo de disputa simbólica nos mais variados escalões do aparelho
estatal e dos atores da sociedade civil, incluindo nesse campo os próprios
segmentos juvenis em sua diversidade, é preciso considerar no plano da
análise as tensões e as ambigüidades que marcam as orientações e os pro-
gramas. Se acrescentarmos às questões de ordem conceitual as dificuldades
de mapeamento de ações e orientações que ainda constituem um campo
10. A designação utiliza- extremamente recente, alguns recortes se fazem necessários.
da – jovens pobres – é
intencional, uma vez A constituição de um modelo de ação para jovens pobres10
que não se pretende
aceitar alguns adjetivos
As iniciativas que envolvem algum tipo de transferência de renda ofere-
que vêm sendo adota-
dos, como “excluídos, cem problemáticas relevantes para a análise do estatuto simbólico e político
vulneráveis, em situação que a questão juvenil alcança no país. A primeira diz respeito a um campo
de risco ou miseráveis”. novo de inserção profissional possibilitada pelas demandas que sua imple-

146 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

mentação encerra, ou seja, a necessidade de envolver novos profissionais,


ainda não submetidos a um perfil técnico definido, que passam a desenvol-
ver atividades, sendo designados como estagiários, animadores culturais,
educadores sociais ou oficineiros. São modos de recrutamento vinculados
às atividades de estágio e prestação de serviços, bastante marcados por certa
informalidade, que em sua grande maioria atraem jovens, muitos de ori-
gem popular e que conseguiram prosseguir em seus estudos e ingressar no
ensino superior sem emprego definido, ou que apresentam uma história de
engajamento em ações coletivas de natureza sociocultural em seus bairros.
Essa situação pode ser encontrada tanto nos organismos municipais, que se
transformam em agentes recrutadores desse tipo de força de trabalho ou
funcionam apenas como responsáveis pelos recursos financeiros, como no
interior de organizações não governamentais, associações ou fundações par-
ceiras na execução de projetos, que, por meio do acesso a verbas públicas,
tornam-se responsáveis por sua contratação. Esse é um aspecto pouco estu-
dado, pois parece estar criando alternativas de ocupação para setores mais
escolarizados, tanto de segmentos médios como populares, que desenvol-
veriam ações cujo alvo seria também os jovens, porém aqueles mais preju-
dicados pelos processos de exclusão11. 11. Para Dubet (2004),
Uma segunda problemática também merece ser examinada, ao se eleger esse tipo de ação tam-
como eixo para a análise os jovens usuários dessas ações que asseguram algum bém pode ser interpre-
tado como uma dificul-
tipo de auxílio pecuniário. Em meio à diversidade de orientações prevale-
dade cada vez maior dos
centes, seus impactos permanecem em grande medida desconhecidos, tan- adultos de cumprirem
to na sua concepção como nos modos de implantação a partir de uma base sua tarefa educativa, o
conceitual comum. Não se trata de tecer considerações que incidam sobre que acabaria por dificul-
o tema de sua avaliação, uma vez que parte das iniciativas constitui seus tar o processo de cons-
trução da identidade
próprios mecanismos para isso, devendo o tema ser mais bem equacionado
entre os próprios jovens.
no âmbito dos estudos sobre políticas públicas nas ciências sociais (cf. Ma-
deira, 2004). Busca-se esboçar alguns recortes analíticos em torno dos for-
matos que constituem essas iniciativas, que, não obstante a diversidade de
orientações, de formas de execução ou de atores responsáveis, sinalizam
alguns aspectos comuns que tendem a configurar uma realidade nova e 12. Neste artigo serão
bastante desafiadora. examinadas apenas as
As iniciativas mais visíveis tiveram início no âmbito federal, no segundo iniciativas públicas, im-
plantadas por meio de
mandato do governo FHC, e se disseminaram em várias cidades12; outras
parcerias com associa-
nasceram no Executivo municipal. Entre as ações arroladas, três foram sele- ções da sociedade civil
cionadas para a análise dessa problemática, apenas como exemplos: o Proje- (ONGs, fundações em-
to Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano e o Serviço Civil presarias, entre outras).

novembro 2005 147


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

Voluntário (SCV), ambos iniciados no final dos anos de 1990 no âmbito


federal, e o Programa Bolsa Trabalho Renda da cidade de São Paulo (2001-
13.Doravante chama- 2004)13. São programas empreendidos tanto pelo Poder Federal como pelo
dos, respectivamente, Municipal, que exigiram parcerias para sua implementação; foram consti-
Projeto Agente Jovem,
tuídos a partir de pressupostos diversos, mas, curiosamente, apresentaram
SCV e PBT Renda.
algumas importantes semelhanças no modo de ação, sendo por essas razões
utilizados como exemplos. Por outro lado, essas propostas foram seleciona-
das também em função de sua abrangência geográfica e do escopo das ativi-
dades realizadas, pois dizem respeito a experiências nacionais que até o
momento atingiram aproximadamente mais de 100 mil jovens e a um pro-
grama já encerrado do governo de um grande município, a cidade de São
Paulo, que atingiu em torno de 50 mil jovens.

Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano

Criado em 2000, no âmbito da Secretaria de Estado de Assistência


Social (cf. MPAS, 2001a), vinculou-se ao Plano Nacional de Segurança
Pública, mais especificamente a um de seus compromissos, relacionado à
intensificação das ações de prevenção do fenômeno da violência inserido
no Programa Nacional de Direitos Humanos. O projeto atingiu 110 mil
jovens no governo FHC e, embora planeje superar os índices de atendi-
mento do governo anterior, até julho de 2005 o governo atual havia aten-
dido 57.038 jovens. Atualmente, o projeto não está mais vinculado à área
da segurança pública, sendo de responsabilidade do Ministério do Desen-
volvimento Social e de Combate à Fome (cf. MDS, 2005a), mas sem alte-
rações significativas nos objetivos ou no público-alvo.
Em sua implementação, as três esferas de governo – federal, estadual e
municipal – são envolvidas. Enquanto as duas primeiras se responsabili-
zam pela concepção, monitoramento, assessoria e avaliação, a esfera muni-
cipal realiza a execução, diretamente ou por meio de parcerias com univer-
sidades ou organizações não-governamentais. A garantia dos recursos é de
responsabilidade do governo federal, contando com a participação das duas
outras esferas e de parcerias com a iniciativa privada (cf. MPAS, 2001b).
O público-alvo são os jovens com idade entre 15 e 17 anos, prioritaria-
mente aqueles que estejam fora da escola, participem ou tenham participa-
do de outros programas sociais do governo, estejam em situação de vulne-
rabilidade e risco pessoal e social, egressos ou sob medida socioeducativa,
oriundos de programas de atendimento à exploração sexual e comercial de

148 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

menores. Adolescentes portadores de algum tipo de deficiência têm direi-


to a 10% das vagas (cf. MDS, 2005a). Anteriormente, esse público era
escolhido pelos próprios municípios ou organizações responsáveis pelo pro-
jeto, podendo dar lugar a diferentes formas de clientelismo. Na gestão
atual, embora o problema persista14, foram implementadas modificações 14.Em avaliação re-
no processo de seleção dos jovens a partir da introdução do Cadastro Úni- cente realizada pelo
co15, respondendo a critérios de renda. próprio MDS, um dos
municípios declarou
No momento de sua formulação, o projeto estabelecia como desafio a
pressão de alguns pre-
construção de uma proposta dirigida a determinado segmento juvenil que, feitos para a indicação
sem ter idade adequada para ingressar no mercado de trabalho e para o de nomes para o pro-
qual havia reconhecida escassez de programas, estaria conseqüentemente jeto (cf. MDS, 2005b).
mais exposto à “marginalidade” (MPAS, 2001b)16. 15.Sobre o novo modo
Depreende-se dessa formulação a necessidade de construir um progra- de cadastramento no
ma que pudesse “ocupar” esses jovens, retirando-os da situação de “risco” Programa Agente Jo-
vem, ver CEF (2005).
em que se encontravam. Seus objetivos específicos permanecem os mes-
mos desde sua regulamentação17: criar condições para inserção, reinserção 16.“Os jovens de 15 a
e permanência do jovem no sistema de ensino; promover sua integração à 17 anos, em localida-
des empobrecidas (mu-
família, à comunidade e à sociedade; prepará-lo para atuar como agente de
nicípios/comunidades),
transformação e desenvolvimento de sua comunidade; contribuir para a não dispõem de gran-
diminuição dos índices de violência, uso de drogas, DSTs e gravidez não des alternativas. Além
planejada; e desenvolver ações que facilitem sua integração e interação disso, os diversos pro-
quando estiver inserido no mundo do trabalho (cf. MDS, 2005a). gramas e projetos de
atendimento ofertados
No começo por um período de seis meses e a partir de 2001 por um
não suprem as necessi-
período de até doze meses, os jovens, além de continuar na escola ou dades dessa faixa, que
retornar a ela, devem freqüentar cursos de capacitação (seis meses) e imple- ainda não tem idade su-
mentar projetos de intervenção em suas comunidades (seis meses), priori- ficiente para entrar no
tariamente nas áreas de saúde, cultura, meio ambiente, cidadania, esporte e mercado de trabalho, fi-
cando à margem, sujei-
turismo. Durante todo o período, recebem bolsa mensal no valor de R$
ta à ociosidade e à mar-
65,0018 e são acompanhados por “instrutores” – profissionais de diferentes ginalidade” (MPAS,
áreas que ministram aulas – e “orientadores sociais” – preferencialmente 2001b).
estudantes universitários – que devem possuir experiência de trabalho com
17. Portaria n. 879,
jovens, responsabilizando-se por facilitar a ação social juvenil. publicada em dezem-
Seguindo essa breve descrição, emergem duas representações em torno bro de 2001 (cf. MPAS
dos jovens: fonte e vítima de problemas sociais e, ao mesmo tempo, “pro- 2001a).
tagonista” do desenvolvimento de sua “comunidade”. Quanto à primeira 18.O valor fixado no
imagem, trata-se de pensar projetos para aqueles considerados pouco inte- início do programa per-
grados socialmente, sobretudo nas instituições mais tradicionais (família e manece o mesmo.
escola), e por isso fortemente sujeitos ao risco social na perspectiva do

novembro 2005 149


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

projeto. Ao mesmo tempo, impõe-se uma tarefa ao jovem: uma vez ade-
quadamente formado – em um período bastante breve e sem muitas alte-
rações no ambiente em que vive –, ele pode e deve ser estimulado a contri-
buir para a melhoria das condições de vida de sua comunidade a partir de
uma determinada intervenção social para a qual será orientado.
Embora nesses fragmentos se reconheça certo potencial juvenil, são vi-
síveis seus limites: primeiramente, a ênfase em certos aspectos comporta-
mentais – como se todo e qualquer jovem em qualquer momento históri-
co e social fosse naturalmente predisposto a provocar mudanças –; em
segundo lugar, essa mudança será realizada apenas se o mundo adulto re-
conhecer e criar condições para isso, de onde se pode subentender a difi-
culdade do jovem em fazer-se ouvir e em agir por si só. Por fim, atribui ao
jovem uma tarefa dificílima – a de transformar a sua “comunidade”, em
geral desprovida de equipamentos públicos e serviços que assegurem um
mínimo de qualidade de vida. O envolvimento em ações e capacitações
voltadas para a “comunidade” ao lado da continuidade da trajetória escolar
são as contrapartidas exigidas pelo recebimento da bolsa. De certo modo,
espera-se que as capacitações também permitam ao jovem a preparação
para algum tipo de inserção futura no mercado de trabalho. Ora, nem o
número de horas destinadas às capacitações, nem o perfil dos profissionais
que atuam junto aos jovens parecem garantir essa possibilidade. Avaliação
realizada pelo Tribunal de Contas da União em trezentos municípios, no
ano de 2004 (cf. TCU, 2004), aponta o perfil dos chamados instrutores e
orientadores sociais como um dos aspectos mais frágeis do projeto – em
apenas 19% dos casos a equipe técnica tinha perfil adequado.
Além disso, seguindo essa avaliação, em muitos municípios os jovens
estavam desempenhando tarefas que em pouco ou nada condiziam com os
objetivos do projeto, como serviços de limpeza e datilografia, entre outros.
A despeito dos benefícios percebidos em termos de desenvolvimento pes-
soal, social e comunitário dos agentes, a falta de continuidade é apontada
como um dos entraves para que o projeto cumpra seus objetivos de inclusão
social. Nesse sentido, algumas das principais recomendações do TCU
(2004) relacionavam-se à necessidade, além do monitoramento, de articu-
lação com o Programa Nacional de Primeiro Emprego e outras iniciativas
de geração de trabalho e renda. Avaliação mais recente realizada pelo pró-
prio MDS também constatou os limites da maioria dos municípios em re-
lação a esses aspectos, mas não apresentou nenhuma proposta para sua su-
peração (cf. MDS, 2005b).

150 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

De caráter qualitativo, estudo realizado por Camacho (2004) observou


uma forte tensão entre equipes técnicas e jovens, sobretudo em relação à
situação e à condição juvenil. Ora as equipes técnicas viam os jovens quase
como crianças, incapazes de assumir responsabilidades (como declara uma
das jovens), instalando entre eles certa “moratória social”, ora como adul-
tos, quando lhes eram exigidas “condutas adequadas como agente jovem”
(Camacho, 2004).
A continuidade do projeto na gestão federal pode acenar ao menos
como uma tentativa de não interromper ações sem justificativa alguma no
âmbito público. Mas sua manutenção, sem nenhuma mudança, ao lado da
criação de novos programas para jovens, revela ainda a precariedade na
absorção das avaliações e a eventual fragmentação das ações voltadas para a
juventude.

Programa Serviço Civil Voluntário

No âmbito do Programa Nacional de Direitos Humanos, o Programa


Serviço Civil Voluntário foi criado em 1996 e iniciou suas atividades no ano
de 1998, em caráter experimental, nos estados do Rio de Janeiro e do Distri-
to Federal. Resultado da ação integrada dos anteriores Ministério da Justiça/
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos e Ministério do Trabalho/Secre-
taria de Políticas Públicas e Emprego, foi inicialmente implementado de
forma descentralizada por intermédio dos Planos Estaduais de Qualificação
(PEQS) e de parcerias com entidades da sociedade civil. Desse modo, os
responsáveis pela execução das ações eram entidades de capacitação (ONGs,
Sistema S, sindicatos e universidades) contratadas pelas secretarias estaduais
de Trabalho19. 19. Os recursos advi-
No governo atual, o SCV encontra-se alocado no Ministério do Traba- nham do FAT – Fundo
de Amparo ao Trabalha-
lho e Emprego, como um dos projetos do Programa Nacional de Primeiro
dor, por meio do extin-
Emprego. Se uma parte de seus objetivos se modificou, seu formato per-
to Planfor (cf. Ministé-
manece idêntico. rio da Justiça, 2000).
Em sua concepção original, priorizava-se a atenção a moças e rapazes na
faixa dos 18 anos excluídos e dispensados do serviço militar obrigatório,
embora alguns estudos avaliem que essas características parecem ter sido
abandonadas aos poucos (cf. Leão, 2004). No atual governo, a menção ao
serviço militar desapareceu completamente, corroborando tendência ob-
servada na gestão anterior; a faixa etária ampliou-se e jovens com Ensino
Fundamental completo e Ensino Médio incompleto também podem par-

novembro 2005 151


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

ticipar. Os atuais requisitos são: idade entre 16 e 24 anos, renda familiar


baixa (menos de meio salário mínimo por pessoa), situação de desemprego,
não freqüência à escola e escolaridade inferior ao Ensino Médio. Negros e
pardos, portadores de deficiência e filhos de famílias chefiadas por mulhe-
res devem ser priorizados no momento da seleção, realizada pelas entidades
executoras do programa, à semelhança do Projeto Agente Jovem em suas
fases iniciais (cf. MTE, 2005).
Inicialmente, o programa apresentava-se como um “rito de passagem”
da juventude à idade adulta, enfatizando prioritariamente dois aspectos: o
“despertar” do jovem para a “cidadania” – compreendida como solidarieda-
de social e desenvolvimento de ações concretas na comunidade – e a prepa-
ração para o ingresso no mundo do trabalho. Mais especificamente, estabe-
lecia como objetivos no trabalho com moças e rapazes a elevação da
escolaridade, o desenvolvimento dos valores de cidadania, participação, a
solidariedade, a não-discriminação, o respeito à diversidade social e ao meio
ambiente, a qualificação e o encaminhamento para oportunidades concre-
tas de trabalho e geração de renda. Atualmente, o fato de ser parte do Pro-
grama Nacional de Primeiro Emprego deixa mais clara a intenção de contri-
buir para a inserção do jovem, inclusive exigindo das entidades executoras a
incorporação de 20% deles no mercado formal de trabalho. Mas permane-
cem os objetivos de elevação da escolaridade, formação para a cidadania e
prestação de serviços comunitários. Novamente, aqui, a contrapartida para
o recebimento da bolsa é a realização de cursos complementares e “serviços
comunitários”.
Todos esses objetivos devem ser cumpridos ao longo de seis meses, com
uma carga horária total de seiscentas horas, abarcando três atividades funda-
mentais: elevação da escolaridade (trezentas horas), qualificação profissional
(cem horas) e formação em direitos humanos e cidadania (duzentas horas),
incluindo a prestação de serviços comunitários a partir da realização de cam-
panhas e serviços sociais, entre outras. O valor da bolsa foi alterado, de R$
100,00 no final do governo anterior, para R$ 150,00 no governo atual.
Até o ano de 2002, o programa havia sido implementado nas 27 unida-
des federativas, tendo beneficiado aproximadamente 47 mil jovens, com
20.Não foi possível investimento aproximado de R$ 47,2 milhões20. Desde o ano de criação
obter os números no do programa, a anterior Secretaria Nacional de Políticas Públicas de Em-
atual governo.
prego (gestões 1995-1998 e 1999-2002) realizou três avaliações mais
aprofundadas, nas quais foram levantados problemas e dificuldades, além
de aspectos positivos e inovadores. A última avaliação, realizada em 2001

152 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

por universidades públicas e organismos de pesquisa a partir de 27 estudos


de casos, apresenta algumas informações sugestivas, com ênfase em crité-
rios de “eficiência” e “eficácia” das ações.
De maneira geral, o estudo revelou índices elevados de eficiência e efi-
cácia – em torno de 90% a 95% no cumprimento das metas –, chegando
até mesmo a enfatizar o potencial do programa como política de juventu-
de: “O SCV ‘parece’ caro em face de sua duração (média superior a oito-
centas horas, recomendando-se no mínimo seiscentas). Mas é, sem dúvi-
da, muito mais barato que qualquer outra alternativa de contenção ou
repressão de jovens – sem falar nos benefícios registrados pelos treinandos”
(Secretaria Nacional de Políticas Públicas de Emprego, 2002, p. 19). De
qualquer modo, aqui novamente emerge um distanciamento da perspecti-
va dos direitos. Por esse estudo, o programa é avaliado como bom princi-
palmente porque ocupa os jovens, dificultando seu envolvimento com o
mundo do crime. Os possíveis benefícios registrados pelos “treinandos”
ganham lugar secundário. Mas, apesar desse “otimismo”, a avaliação tam-
bém apresentou algumas dificuldades do programa em garantir 50% das
vagas para mulheres, a inclusão de pessoas portadoras de deficiência, par-
cerias para o encaminhamento ao mercado de trabalho e a aplicação de
recursos adicionais ao antigo FAT.
Do ponto de vista dos benefícios para os jovens, a pesquisa revela que,
em média, 95% dos casos apresentam efeitos positivos, sobretudo em rela-
ção aos seguintes aspectos: incentivo à qualificação para o trabalho, maior
participação/integração na comunidade, melhoria das relações sociais e fa-
miliares, estímulo a retornar ou concluir os estudos. Mas, ao mesmo tem-
po, também foram observados índices baixos no que se relaciona à qualifi-
cação para o mundo do trabalho, à continuidade e posterior inserção no
mercado e à elevação da escolaridade.
21. Leão (2004) pesqui-
Nesse sentido, a própria avaliação recomenda a integração com ou-
sou o desenvolvimento do
tros programas, que reforcem a qualificação e ampliem as chances de in- Programa SCV em duas
serção profissional dos jovens, além da busca efetiva de garantia da reto- turmas da RMBH, du-
mada ou prosseguimento dos estudos em nível básico para 100% dos rante o ano de 2002, por
inscritos. Ou seja, a avaliação evidencia claramente que os impactos do meio de entrevistas semi-
programa quanto à inserção do jovem no mundo do trabalho e da escola diretivas com os coorde-
nadores do programa, ob-
estão aquém do esperado.
servações de campo, ques-
Conclusão semelhante quanto a esse último aspecto também foi obtida tionário para 57 jovens e
em pesquisa realizada por Leão (2004) com egressos de duas turmas do pro- treze entrevistas semi-es-
grama na região metropolitana de Belo Horizonte21. Em análise mais apro- truturadas com egressos.

novembro 2005 153


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

fundada, esse autor enfatiza o predomínio daquilo que nomeia como “pe-
dagogia da precariedade”. Observando os espaços, ouvindo jovens, educa-
dores e coordenadores do programa, conclui que os cursos oferecidos eram
tomados pelos educadores como dádivas para uma juventude empobreci-
da, vivendo em situação de risco social. Salas pouco adequadas, falta de ma-
terial, ausências freqüentes dos educadores, excesso de aulas de formação
geral em detrimento das de qualificação profissional – o que era tomado
pelos jovens como “enrolação” –, entre outros aspectos, eram evidências de
situações marcadas pela precariedade, revelando uma determinada lógica,
segundo o autor, de que para “pobre qualquer coisa parece bastar”.
A bolsa oferecida aos jovens mediante a freqüência aos cursos e o de-
senvolvimento de algum tipo de trabalho comunitário também acabava
por transformar-se em objeto de muitas polêmicas. Ainda segundo Leão,
na medida em que os jovens se frustravam com os cursos, canalizavam sua
permanência no programa particularmente em função da bolsa, do vale
transporte, do lanche, ou seja, dos benefícios recebidos (cf. Leão, 2004, p.
246). Ao mesmo tempo, sem atentar para a própria precariedade das ativi-
dades oferecidas, educadores e coordenadores acabavam por alegar que os
jovens só desejavam a bolsa, o que os levou à criação de inúmeros mecanis-
mos para controlar seu uso e os critérios de recebimento.
Além desses, outros desencontros são revelados por Leão: vários jovens
desejavam ingressar no mercado formal de trabalho, enquanto os cursos
estavam voltados para a formação para ocupações autônomas; as expectati-
vas de realização de estágios eram frustradas, pois era assegurado um total
de apenas vinte horas e, quando uma oportunidade melhor aparecia, eram
favorecidos os jovens mais “comportados”. Em relação à auto-estima, en-
quanto educadores e coordenadores enfatizavam a sua elevação como um
resultado importante do projeto, os jovens não se percebiam como porta-
dores de baixa auto-estima e não estavam preocupados com esse tema, o
que revela mais um descompasso entre os jovens e o corpo de educadores
ou técnicos, sinalizador das dificuldades de interação.
A realização do trabalho comunitário no caso estudado por Leão foi
dificultada por problemas de organização e funcionamento das turmas,
mas também pela desconsideração em relação aos desejos e aos interesses
dos jovens e das comunidades.
Seguindo tendência já observada no Projeto Agente Jovem, o novo for-
mato deste programa manteve-se praticamente inalterado. Em relação ao
compromisso das entidades responsáveis pela inserção de ao menos 20%

154 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

dos jovens no mercado formal de trabalho, um dos diferenciais do progra-


ma na gestão atual, não há ainda registros sobre seus impactos.

Programa Bolsa Trabalho Renda22 22.Inicialmente o pro-


grama foi chamado ape-
O Programa Bolsa Trabalho Renda foi implementado pela Secretaria nas de Bolsa Trabalho.
Ao longo de sua imple-
de Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade (SDTS), do município de
mentação, com a cria-
São Paulo (gestão 2001-2004), e integrou um conjunto de programas no- ção de novas modalida-
meados de redistributivos e dirigidos a diferentes faixas etárias. Além de des, como veremos a
atingir um número relativamente expressivo de jovens em apenas um seguir, o programa pas-
município, se for considerado o total de beneficiários (57.397 entre os sou a ser nomeado Bol-
sa Trabalho Renda.
meses de julho de 2001 e setembro de 2004), essa iniciativa logo em sua
formulação apresentava uma estratégia clara, diferente daquelas descritas 23. Segundo Pochmann
(2002, p. 102), “os equí-
anteriormente: diante dos elevados índices de desemprego juvenil, não
vocos de escassas ações go-
deveria ser criado um programa de incentivo à inserção23, e sim um de vernamentais voltadas à
ampliação do nível de escolaridade e formação, seguindo a lógica de expe- pressão ao primeiro em-
riências realizadas em países desenvolvidos e retardando a entrada do jo- prego juvenil mostram ser
vem no mercado de trabalho (cf. PMSP/SDTS, 2001, p. 6). ineficientes, quando não
Entre os jovens mais pobres, haveria maior dificuldade em postergar ineficazes. Como empur-
rar para o mercado de tra-
esse ingresso, dada a centralidade da geração de renda por meio do trabalho,
balho os filhos das famí-
inclusive para o término da escolaridade básica. O gestor público chamava a lias pobres, quando não
atenção para o fato de que as crescentes dificuldades dos jovens em se inserir se criam vagas necessárias
e permanecer no mercado de trabalho só seriam resolvidas a partir “da cons- para todos? Esse tipo de
tituição de um cenário econômico de desenvolvimento sustentado”, supe- ação resulta em transfe-
rir ao jovem a responsa-
rando a baixa geração de postos de trabalho no país. Não obstante esse desa-
bilidade da própria con-
fio mais amplo, em âmbito federal, o município poderia contribuir para dição de desemprego”.
que eles ampliassem sua escolaridade por meio de um programa de transfe-
24.No limite, tratava-
rência de renda, sendo esse o objetivo geral do Programa Bolsa Trabalho, a se de uma bolsa para
despeito de seu nome24. Era dirigido, assim, a jovens entre 16 e 20 anos, que o jovem não pre-
estudantes ou formados no Ensino Médio, desempregados ou não, exer- cisasse trabalhar, e não
cendo qualquer atividade remunerada, moradores da cidade de São Paulo um programa de apoio
há pelo menos dois anos e vivendo em famílias com renda familiar igual ou à inserção no mercado
de trabalho, permane-
inferior a dois salários mínimos por pessoa. Todos os participantes do pro-
cendo no seu título a
grama receberiam uma bolsa correspondente a 45% do salário mínimo, au- ambigüidade.
xílio-transporte e seguro de vida coletivo, por um período que variava de
25.A duração mais fre-
seis meses a dois anos25. Ao mesmo tempo, deveriam realizar algum tipo de qüente girou em tor-
formação complementar, que não precisava estar voltada para o mundo do no de seis meses.
trabalho.

novembro 2005 155


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

Os objetivos específicos do programa concentravam-se em torno da


oferta de capacitação adicional, não necessariamente vinculada ao mercado
de trabalho; procurava potencializar a integração dos jovens nos seus bair-
ros por meio do desenvolvimento de atividades comunitárias e buscava
melhorar as condições de vida deles e de seu grupo familiar. Mas a lógica
dominante em torno do perigo da violência atingiu também algumas das
orientações, o que pôde ser observado em seus objetivos preventivos: “Ofe-
recer meios para que os jovens não desistam de estudar e nem, na ausência
de vagas no mercado de trabalho, recorram a estratégias perigosamente fá-
ceis de ganhar a vida” (Pochmann, 2002, p. 103).
Em um primeiro momento, o PBT Renda foi implementado em par-
ceria com outros programas da própria SDTS, algumas secretarias do mu-
nicípio e empresas municipais que se responsabilizavam pela formação dos
26. Embora o processo
jovens em atividades comunitárias. Dada a diversidade de parceiros, as
de seleção tanto no Agen-
te Jovem como no SCV atividades de formação foram variadas, desde jovens que efetivamente tra-
esteja se modificando, balhavam como agentes de trânsito ou no cadastramento em postos de
por meio da implanta- saúde, até aqueles que receberam apenas formação em temáticas diversas:
ção do cadastramento cooperativismo, teatro e informática, entre outras.
único, em suas origens
Ao final do primeiro ano de implementação, avaliações realizadas pela
a própria entidade exe-
cutora realizava a seleção própria SDTS levaram a algumas mudanças no conjunto de seus progra-
dos beneficiários, práti- mas e em especial no PBT Renda. Firmou-se um termo de cooperação
ca criticada na prefeitu- técnica com a Organização das Nações Unidas (ONU), por intermédio da
ra municipal de São Pau- Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
lo por afastar-se de cri-
(Unesco), visando ao desenvolvimento de metodologia adequada. Além
térios mais impessoais
que impedissem even-
disso, o estabelecimento de convênio com outras entidades da sociedade
tuais distorções provoca- civil foi facilitado, uma vez que caberia à Unesco, juntamente com a PMSP/
das pelo clientelismo. SDTS, a seleção de instituições para oferta de cursos e de projetos por
Cada um desses dois ca- meio de um processo de licitação cujos critérios básicos de avaliação se-
minhos encerra dilemas riam a qualidade e o menor preço.
próprios, pois o recruta-
É importante observar que a inscrição permaneceu aberta a todo e qual-
mento somente a partir
de critérios técnicos, sem quer jovem e a seleção, realizada por técnicos da secretaria, obedecia a
considerar as redes e as critérios estabelecidos pelo programa, sem passar pela apreciação das enti-
relações primárias que os dades executoras26. No interior do PBT Renda, cada vez mais a SDTS
jovens mantêm, certa- passou a fazer um esforço claro para incorporar ONGs com experiência no
mente dificulta qualquer
trabalho com o segmento juvenil. Sua hipótese era de que, dessa forma,
ação no sentido da pro-
moção de identidades
seria possível desenvolver novas metodologias e adequar o trabalho ao pú-
coletivas e formas de ação blico jovem, uma vez que avaliações realizadas nos dois primeiros anos do
mais solidárias. projeto tinham indicado alguns problemas nesse sentido.

156 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

Outra mudança foi a elaboração de um documento de referência para a


organização dos cursos. A partir dele, os cursos oferecidos deveriam ser
organizados em dois módulos: um básico, de formação cidadã, com dura-
ção de até 480 horas, e outro específico, sem carga horária definida, em
que seria privilegiada a realização de “atividades de utilidade coletiva”
(PMSP/SDTS, 2002).
Embora os cursos oferecidos no módulo específico pudessem contri-
buir, no futuro, para algum tipo de inserção no mundo do trabalho, não era
esse seu objetivo central. Havia a preocupação em oferecer formações que
possibilitassem a constituição do que a equipe nomeava de “novos nichos
de mercado”, como montagem e desmontagem de exposições ou grafita-
gem, entre outras, sem que necessariamente fossem desenvolvidas estraté-
gias que tornassem possível a geração de renda e de trabalho a partir dessa
capacitação. Ao mesmo tempo, e essa era uma das ambigüidades do progra-
ma, essas novas orientações conviviam com práticas consideradas de caráter
convencional e com perspectiva mais profissionalizante, como auxiliar de
escritório e auxiliar de raio-X, entre outras. Avaliações realizadas posterior-
mente indicaram a tendência dos jovens de desejar esse tipo de formação,
ainda que um maior ou menor apreço pelos cursos parecesse depender me-
nos da temática e mais da qualidade da formação oferecida. Raramente se
possibilitava aos jovens escolher os cursos que queriam realizar, mas, nas
poucas vezes em que isso ocorreu, houve predileção pelos de caráter clara-
mente profissionalizante ou pelo exercício de algum tipo de trabalho (cf.
Dieese, 2003; Cedec, 2003).
Outras mudanças realizadas no programa ao longo de sua implementa-
ção merecem ser assinaladas. Em relação à escolaridade, logo nos primeiros
meses de cadastramento e nos primeiros levantamentos sobre o perfil dos
beneficiários, a equipe percebeu que os jovens que procuravam o progra-
ma se distanciavam do perfil do público-alvo: grande parte já tinha finali-
zado ou estava finalizando o Ensino Médio, ou seja, a presença de jovens
com baixa escolaridade era minoritária. Muitos estavam trabalhando em
ocupações precárias. Sendo assim, jovens com esse perfil passaram a poder
inscrever-se no programa. Mesmo desempenhando uma ocupação, o jo-
vem deveria integrar o PBT Renda, uma vez que seria mais bem aproveita-
do, individual e coletivamente, se, além de prosseguir nos estudos (inclu-
sive curso superior), desenvolvesse atividades sociais e comunitárias, sendo
retirado da “linha de frente” do mercado de trabalho (cf. Pochmann, 2003,
p. 88). Essa descoberta veio atrelada à constatação daquilo que a SDTS

novembro 2005 157


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

chamou de “nova pobreza” ou “nova exclusão”, que estaria atingindo jo-


vens não migrantes, com escolaridade mais elevada e membros de famílias
27.Assim, outros pro- pouco numerosas27.
gramas passaram a in- De certo modo, essas mudanças, sobretudo a ampliação do programa,
tegrar o PBT Renda: o
também parecem ter sido pautadas por resultados de avaliações realizadas
Programa Bolsa Traba-
por instituições externas contratadas para tal fim, além daquelas realizadas
lho Cursinho e o Pro-
grama Bolsa Trabalho pela própria equipe.
Estágio para jovens en- Em um dos distritos onde o Dieese (2003) realizou grupos focais junto
tre 16 e 29 anos e o a jovens egressos, a bolsa emergiu como a principal motivação para a inscri-
Programa Bolsa Traba- ção no programa, e muitos tomaram conhecimento da iniciativa por meio de
lho Emprego para jo-
suas famílias e professores. As qualidades ressaltadas foram a possibilidade
vens entre 16 e 24 anos.
Além da ampliação da de ter uma ocupação fora de casa, o contato com idosos e a qualidade dos
faixa etária, tratava-se instrutores, mais abertura para a vida e para as pessoas e melhoria no rela-
de programas dirigidos cionamento com a família e a comunidade. Quanto aos principais aspectos
a jovens que já tinham negativos, os jovens destacaram o excesso de faltas e atrasos, de alunos e
completado o Ensino
monitores, a falta de local fixo para o desenvolvimento das atividades e o
Médio.
descumprimento do horário por parte dos bolsistas. As principais sugestões
também elucidam aspectos significativos do programa: “Mais organização,
supervisão para garantir a freqüência, pontualidade e efetiva realização de
tarefas por parte dos alunos, oportunidade para os jovens que não conse-
guiram se inscrever ou desistiram, local certo para as atividades” (Dieese,
2003, p. 150).
De certo modo, os entraves e as características dos programas federais
também se reproduziram, em muitas situações, no âmbito da iniciativa
municipal. Mas, no caso do Programa Bolsa Trabalho Renda, esses resul-
tados acabaram por reforçar a necessidade de atentar para o próprio pro-
cesso de formação dos jovens, uma vez que boa parte das reclamações fez
referência à falta de preparo dos educadores, à inadequação dos espaços e
até mesmo à seriedade na condução do processo.
Com relação ao mundo do trabalho, os jovens solicitavam “compro-
vantes” dos trabalhos e atividades realizados, porque poderiam, de algum
modo, contribuir na busca de emprego, o que denota a centralidade que a
questão do trabalho parece ter entre os bolsistas, reiterada pela angústia
que manifestam com a dificuldade concreta de consegui-lo e pela busca
incessante de “qualquer trabalho” durante e após a saída do programa.
Além de reiterar boa parte das constatações do Dieese (2003), esse último
aspecto foi ainda mais enfatizado na avaliação realizada pelo Cedec (2003)
a partir de um estudo etnográfico realizado em um dos distritos do muni-

158 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

cípio. Apontando para uma forte ética que valoriza o trabalho, o estudo
observa que a participação no programa não impediu que muitos dos jo-
vens continuassem trabalhando em empregos precários ou que se preocu-
passem intensamente com o emprego durante a participação no PBT Ren-
da. Outros aspectos significativos levantados pelo Cedec foram: o fato de
os beneficiários perceberem os programas como importantes mas ao mes-
mo tempo paliativos; a centralidade do papel da educação escolar, e não
dos programas, para o rompimento do ciclo de pobreza, percepção presen-
te entre os adultos entrevistados; os vários problemas no fluxo de informa-
ção e comunicação entre os diferentes atores envolvidos.
Embora com uma estratégia mais claramente definida, de enfrenta- 28. Antes da área públi-
mento da situação do jovem no mundo do trabalho pelo retardamento de ca, essa modalidade de
ação foi bastante difun-
sua inserção, e com uma importante capacidade de realizar mudanças ao
dida entre ONGs e fun-
longo do processo de implementação, o formato geral do PBT Renda con- dações empresariais. No
tinuou muito próximo dos demais programas aqui observados. O recebi- âmbito público federal,
mento da renda permaneceu atrelado tanto ao retorno aos estudos ou con- novos programas assu-
tinuidade deles, quanto à realização de atividades de formação, tidas como mem formato semelhan-
obrigatórias. No detalhamento dessas atividades, o desenvolvimento de te, como, no atual go-
verno, o Projeto Agente
um projeto de intervenção na comunidade era apontado como desejável,
Cultura Viva, produto
mas não obrigatório, diferentemente dos programas Agente Jovem e SCV. de uma parceria do Mi-
Entretanto, a exigência de uma contrapartida ao recebimento da bolsa nistério da Cultura com
mantém-se: o retorno à escola e a realização de atividades de formação de o Ministério do Traba-
caráter complementar. O atendimento à forte demanda juvenil por traba- lho, que oferece bolsas
de R$ 150,00 por um
lho não foi considerado uma meta desse projeto, voltada para outras mo-
período de seis meses a
dalidades do programa que não atingiram um contingente expressivo de jovens entre 16 e 24
jovens, o que acabou frustrando muitas das expectativas. anos, com a obrigatorie-
dade da freqüência à es-
Pontos de convergência cola e a participação em
programas de capacita-
ção. A contrapartida é a
Embora empreendidos no interior de diferentes tipos de orientação, os
realização de trabalho vo-
programas aqui analisados assumem um formato comum, indicando ade- luntário com uma carga
são a alguns pressupostos que tendem não só a ser aceitos, como também de seis a dez horas sema-
a se disseminar28. nais. O Pró-Jovem pro-
Um aspecto relevante dessas convergências incide sobre o fato de as põe como eixo central a
oferta de escolaridade
ações considerarem a possibilidade de transferir aos jovens algum tipo de
para jovens que não con-
renda sob a forma de bolsa, operando com princípios redistributivos. Al- cluíram o Ensino Fun-
gumas avaliações já empreendidas apontam o quanto essa renda é impor- damental (cf. Novaes,
tante para esses jovens, principalmente para apoio e, ao mesmo tempo, 2005).

novembro 2005 159


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

29. O acesso direto do independência em relação à família29. Embora o montante auferido seja
jovem a esse tipo de re- percebido mais como “privilégio” do que como direito, ele constitui um
muneração também não
dos principais motivos, ainda que não o único, para a permanência dos
constitui unanimidade,
pois em algumas perspec- jovens nos programas. Para muitos, o pequeno valor recebido, a incerteza
tivas prevalecentes no diante da continuidade da iniciativa, de sua permanência como beneficiá-
âmbito da assistência so- rios, e o desejo de não ser “dependentes” do Estado reiteravam a necessida-
cial é defendida a centra- de e a prática de continuar procurando trabalho ou de realizar atividades
lidade da família como
precárias (cf. Cedec, 2003; Camacho, 2004, Leão, 2004).
alvo da ação do Estado,
em detrimento de progra-
Mas um pressuposto, igualmente recorrente em todas as ações, reside
mas de transferência de na idéia da contrapartida necessária para que a transferência de recursos
renda voltados direta- escape de um viés “meramente assistencialista”, incluindo, assim, um pos-
mente para adolescentes sível rompimento com a lógica da filantropia. Esse aspecto tende a ser
e jovens. Sem adentrar assumido praticamente como uma orientação legítima e quase natural dos
nesse debate, vale a pena
programas que têm os jovens como alvo, mas não deveria obscurecer a
assinalar que, provavel-
mente, a tutela e a subor- existência de orientações divergentes, estimulando o debate em torno das
dinação dos jovens à vida diferentes visões prevalecentes sobre as relações entre o Estado e os usuá-
familiar só tende a au- rios de programas que envolvem alguma distribuição de renda no Brasil.
mentar em um momen- Grande parte dos gestores consideram que, para romper com a idéia da
to do ciclo de vida em que
filantropia ou do assistencialismo, as iniciativas de transferência de renda
a maioria aspira por maior
autonomia e independên- demandam do indivíduo ações que estimulem seu engajamento ativo, eli-
cia (cf. Singly, 2000). minando riscos de sujeição ou atitudes de “dependência” em relação ao
30.Uma explicação
Estado30. No entanto, há algumas décadas a idéia de uma renda assegurada
possível para a perma- pelo Estado aos cidadãos tem envolvido pressupostos e orientações diver-
nência dessas posições sos, constituindo, nas diferentes versões, modos de concepção do sistema
reside na eterna descon- de proteção e de direitos tendo em vista o papel fundamental do Estado no
fiança da capacidade fomento da justiça e na atenuação das desigualdades sociais acentuadas
dos pobres no uso dos
com a crise do mundo do trabalho e do emprego assalariado.
recursos monetários.
Uma versão importante da idéia de contrapartida é formulada no inte-
rior da crise do Estado-Providência e do regime assalariado. Por meio dela,
pretende-se restabelecer a solidariedade social a partir da ação pública, cons-
tituindo, além da transferência de renda, uma espécie de distribuição de
responsabilidades que mobilize os cidadãos para a sua efetiva integração na
ordem nacional. Zaluar sintetiza essas orientações de modo claro:

Não haveria mais assistidos a socorrer, mas pessoas com diferentes utilidades so-
ciais, cuja capacidade deveria ser sempre aproveitada. Nele [Estado Ativo Provi-
dência] também haveria a socialização radical dos bens e das responsabilidades.
Uma nova concepção de solidariedade é mobilizada na ideologia desse Estado: não

160 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

é nem a caridade privada, nem o bem-estar advindo dos direitos sociais, nem a 31. Essas posições, de-
mutualidade do solidarismo do século XIX. Refazer a nação, lema dessa ideologia, fendidas por Rosan-
vallon (1981), não são
significa fomentar a solidariedade advinda do pertencimento a uma mesma comu-
totalmente endossadas
nidade nacional, na qual a seguridade é nacional – o novo sentido do social, visto por Castel (1995), para
que a questão social é nacional –, solidariedade que se traduz em direito e dever à quem a contrapartida
integração (Zaluar, 1997, p. 32)31. deveria ser acompanha-
da de políticas inclusi-
vas asseguradas pelo Es-
De outra parte, os debates sobre a renda mínima universal e incondici-
tado, centradas no em-
onal têm reunido vários defensores, agregados na BIEN – Rede Européia prego. Como afirma
da Renda Básica –, fundada em 198632. Nesse âmbito, os pressupostos da Zaluar, esse debate ocor-
transferência seriam redistributivos, sem distinção de origem, raça, sexo, re na crise financeira do
idade, condição civil ou mesmo situação socioeconômica, e sem vincula- Estado, que “reacendeu
ção a qualquer idéia de contrapartida (cf. Silva et al., 2004). a preocupação com os
que evitam o trabalho
Adotada como pressuposto naturalizado nos programas destinados aos
por terem desenvolvido
jovens, a idéia da contrapartida é multifacetada. Ela pode compreender, o ‘vício’ da dependên-
no seu âmbito mais restrito, apenas a freqüência obrigatória à escola, mas cia, tornando-se parasi-
também pode incidir sobre a necessária presença em atividades de cunho tas dos demais” (Zaluar,
socioeducativo e a participação em ações de engajamento comunitário, em 1997, p. 32). Um ba-
lanço do conjunto de
geral propostas pelas instituições parceiras responsáveis pela execução do
teses a favor do rendi-
programa no âmbito local. mento mínimo incon-
Nesse formato comum, em geral as propostas educativas são executadas dicional está em Benar-
a partir de uma base material precária e com um corpo de responsáveis – rosh (1998). A revista
educadores sociais, animadores culturais etc. – de baixa formação técnica MAUSS também dedi-
cou um número espe-
ou mesmo escolar. Com raras exceções, demandam poucos recursos mate-
cial a essa questão (cf.
riais quanto a equipamentos e podem ser realizadas a partir de um baixo
Caillé et al., 1996).
custo operacional33. Essas práticas, apesar de um discurso de engajamento e
32. Destacam-se, como
de promoção da participação, podem acentuar mecanismos perversos de
membros da rede, Klaus
reprodução de uma base humana e material precária nos programas sociais, Offe, Guy Standing,
reiterando a idéia de que não é preciso oferecer muito aos pobres. Phillipe Van Parijs e, no
Mas as propostas envolvem um campo diversificado de ações socioedu- Brasil, Eduardo Suplicy
cativas que podem estar agrupadas na idéia de educação não escolar ou não e Maria Ozanira da Sil-
va e Silva (Silva et al.,
convencional na acepção de Luiza Camacho34 (2004), compondo um con-
2004).
junto de práticas muito assemelhadas: palestras, cursos e oficinas. Na maioria
33. No entanto, a im-
dos casos, como já foi relatado, o programa/projeto pressupõe uma forma-
plantação de todos esses
ção geral voltada para o tema da cidadania e em alguns casos ocorre um dispositivos intermediá-
módulo articulado ao aprendizado de habilidades do mundo do trabalho, rios acaba por absorver
sem constituir rigorosamente formação profissional. As atividades socioe- recursos não desprezíveis
ducativas pressupõem, além de seu caráter obrigatório – para os jovens, as dos programas que po-

novembro 2005 161


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

deriam ser direcionados margens de escolha, quando existem, situam-se na sugestão de temas –,
diretamente ao público- algum tipo de orientação para a prestação de serviços à comunidade e o
alvo se não houvesse o
desenvolvimento de atividades voluntárias tidas como úteis e importantes
desenho desse conjunto
de contrapartidas. para os bairros onde esses jovens residem.
Apesar de algumas variações, verifica-se a tendência de configurar um
34. A designação “não
convencional”, de acordo
campo novo de problemas que demandam análise independentemente do
com Camacho (2004), sucesso ou eventual fracasso das iniciativas. Tais questões incidem sobre o
recobre melhor o sentido modo como se constitui um campo de orientações normativas capazes de
dessas práticas socioedu- definir o que seria importante destinar aos jovens pobres brasileiros, que
cativas, já que elas são for- passam a interagir com o poder público ou com segmentos da sociedade
malizadas e instituciona-
civil a partir de sua inserção nesse quadro de ações.
lizadas, não se adequan-
do à idéia de educação não
formal. Grupo alvo e escolaridade

Em geral, os programas destinados a segmentos de baixa renda pressu-


põem a simples obrigatoriedade da matrícula na escola pública como fa-
tor de inclusão. Nesse caso, por hipótese, como afirma Silva et al. (2004),
a contrapartida seria um meio para promover o usuário, pois a falta de
acesso à escola seria fator agravante no processo de exclusão social. Se con-
siderarmos a importância da escolarização em massa de crianças, essa con-
trapartida pode sinalizar efeitos inclusivos reais. Mesmo assim, muitos es-
tudos ressaltam que é preciso transformar as condições de funcionamento
e a qualidade da educação pública, uma vez que o abandono escolar pre-
coce muitas vezes decorre de fatores internos ao sistema de ensino, inca-
paz de acolher, efetivamente, os grupos menos privilegiados da população
brasileira.
Mas, ao ser estendida aos adolescentes e jovens, a mera obrigatoriedade
da freqüência à escola acentua mais ainda algumas ambigüidades. Os usuári-
os jovens, alvos dos programas e sempre definidos por sua condição de maior
“vulnerabilidade”, situam-se entre os grupos precocemente excluídos da es-
cola, com significativa distorção série/idade ou com importantes dificulda-
des, já consolidadas, na construção de uma relação positiva com a instituição
escolar. A mera exigência de retorno à mesma escola que não foi capaz de lidar
antes com essas situações apenas sinaliza a permanência dos mesmos proces-
sos de exclusão. Em muitos casos, o retorno à escola é computado no progra-
ma de forma burocrática, funcionando apenas como mais um controle a ser
estabelecido sobre os jovens, pouco interferindo na real interação que esses
segmentos mantêm com a instituição escolar.

162 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

Outra situação, observada por exemplo no SCV e no PBT Renda, incide


sobre o fato de que muitos jovens buscam esses programas após concluírem
sua escolaridade, pois as condições materiais da pobreza nem sempre são im-
peditivas da freqüência à escola, que isoladamente não garante a superação
da precariedade material em que eles estão imersos. Muitos usuários do PBT
Renda já haviam concluído o Ensino Médio (cf. Pochmann, 2003), e no
SCV alguns chegaram a alterar sua escolaridade, rebaixando-a, para adaptar-
se às exigências estabelecidas pelas normas vigentes (cf. Leão, 2004). No pro-
grama promovido pela Prefeitura de São Paulo, os gestores perceberam as
novas condições em que a expansão escolar ocorre, mesmo no interior dos
segmentos mais pobres, e não criaram obstáculos à freqüência desses jovens
com escolaridade básica concluída. Esses dados iniciais do aumento da esco-
laridade em situação de pobreza contribuíram para a consolidação da idéia
de uma nova exclusão. Conforme análises de Pochmann,

[...] no período posterior a 1980, o Brasil afastou-se do crescimento econômico,


agravando os problemas sociais, sobretudo em relação à nova exclusão (os deserdados
do crescimento econômico). Ou seja, as políticas de corte neoliberal implementadas
nesses anos, ao impactarem fortemente a economia do país, geraram um novo con-
tingente de excluídos, mas de perfil diferente do tradicional. Se antes a população
excluída geralmente tinha baixa escolaridade, vinha de famílias numerosas, era mi-
grante e tinha ocupação mal remunerada, hoje, na nova exclusão, as pessoas não são
analfabetas, têm alguma escolaridade, vêm de famílias pequenas, já são cidadãos ur-
banos, mas estão desempregadas (Pochmann, 2003, p. 19).

Mas outras conseqüências podem ser derivadas dessa situação: uma de-
las é o paralelismo das atividades não convencionais de caráter socioeduca-
tivo com as práticas escolares propriamente ditas. Sem interação e desarti-
culado dos sistemas escolares, esse conjunto de ações começa a criar uma
rede paralela não convencional, destinada aos jovens pobres, que muitas
vezes é uma versão piorada e precária da prática educativa da escola pública.
Pouco se aprende de significativo e não há apropriação de ferramentas que
possa interferir nas condições em que ocorre a relação desses jovens com o
conhecimento escolar.
Quando mais bem-sucedidas, as práticas não convencionais podem fa-
vorecer certas habilidades pessoais dos jovens no âmbito de suas interações
(superação da timidez, facilidade de trabalho em grupo, entre outras), mas
em geral esses efeitos são pouco absorvidos pelas orientações do mundo

novembro 2005 163


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

escolar. Se as atividades são inovadoras, os jovens tendem a estabelecer


comparações com a educação escolar, aumentando provavelmente sua re-
flexão e crítica à escola, muitas vezes sem a contrapartida dos caminhos
que fortaleceriam uma capacidade de interferência das práticas educativas
no interior da rede pública de ensino. De modo paradoxal, a crítica desti-
tuída de capacidade de ação pode favorecer um maior distanciamento da
vida escolar, sobressaindo uma relação meramente instrumental que refor-
35. Evidencia-se, tam- ça o caráter meritocrático e credencialista da educação escolar35.
bém, a quase total au-
sência de políticas edu- Por que programas socioeducativos?
cacionais articuladas a
esses programas, na me-
dida em que poderiam A imensa maioria dos programas e dos projetos destinados aos jovens
ser parceiras capazes de admite e valoriza uma ação de natureza socioeducativa, mas não explicita
participar da redefinição os pressupostos que induzem a esse apoio. Trata-se de uma adesão genera-
do tipo de escolaridade lizada que não incide, aparentemente, sobre as deficiências propriamente
e de ação educativa ade-
escolares dos sistemas de ensino, pois em nenhum momento as iniciativas
quado aos jovens.
pretendem substituir ou complementar a ação da instituição escolar, nos
aspectos relativos às habilidades pressupostas nas aprendizagens e nos pro-
cessos de transmissão do conhecimento sistematizado. A melhor qualifica-
ção dos jovens tendo em vista sua inserção no mundo do trabalho não tem
sido prioritária, tratando-se na maior parte das vezes de atividades que
estabelecem sondagens ou incursões na esfera da profissionalização, sem
assumir, rigorosamente, essa orientação como eixo estruturante das ações.
Dois caminhos analíticos podem ser trilhados, e cada um merece seu
aprofundamento. O primeiro diz respeito às concepções de cidadania que
emergem dessas ações socioeducativas e o segundo, menos explícito, está
situado na gestão do tempo livre dos jovens pobres.
Ao que tudo indica, as deficiências identificadas nos sistemas de ensino
estariam radicadas não só em seus aspectos pedagógicos, mas na própria
missão socializadora da escola, que não estaria formando os futuros cida-
36. Sobre os vários sen- dãos36. A ênfase nessa dimensão acaba por fazer emergir um conceito de
tidos contidos na idéia cidadania muito mais ligado à idéia de atividade educativa intencional,
de promoção da cidada-
marcada pelo civismo ou, em uma versão mais amena, pela absorção de
nia na sua relação com
o sistema educativo, con-
valores ligados à civilidade, que seriam a expressão de um programa civili-
sultar Barrière e Martuc- zador não cumprido pela instituição escolar. Trata-se mais de ensinar do
celli (1998). que de praticar as virtudes da cidadania, deslocando-se o foco das práticas
para a ação intencional e sistemática, veiculada principalmente pela trans-
missão de alguns conteúdos.

164 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

Além de estabelecer um diagnóstico sobre o fracasso da escola e privile-


giar a dimensão socializadora da idéia da cidadania, os conteúdos inscritos
na idéia de direitos tornam-se esvaziados ou ao menos atenuados. Assim,
pode adquirir dominância o pressuposto de que jovens e adolescentes – po-
bres – precisam ser atingidos por alguma ação que lhes ensine algo sobre a
vida em comum, permanecendo submerso o conteúdo da cidadania como
direito e como prática (cf. Loncle-Mouriceau, 2001). Se a cidadania fosse
concebida principalmente na chave dos direitos, esses adolescentes e jovens
seriam prioritariamente alvos da ação pública para a promoção da igualdade
de acesso aos bens dos quais são de modo sistemático excluídos: educação,
saúde, cultura, lazer e trabalho, entre outros. A realização de direitos impli-
caria a extensão de equipamentos e de serviços públicos, ausentes nos bair-
ros onde vivem esses jovens, tendo em vista a democratização do acesso à
cultura e ao lazer, sendo algo mais do que a formulação de programas que,
sozinhos, passam a ser sinônimo de políticas públicas de juventude e de
promoção da cidadania.

O paradoxo da ação voluntária compulsória

Os programas, por serem focalizados, atingem um segmento de jovens


que vive em territórios destituídos de serviços básicos, predominando uma
quase absoluta ausência do Poder Público. Espera-se que essa população
retorne à escola pública para concluir seus estudos (sabemos que não são
poucas as dificuldades inscritas nessa meta), participe, quase de modo diá-
rio, de atividades educativas em alguma sede de associação local e, além de
disso, promova o desenvolvimento do seu bairro, quando o Estado e outras
instituições não o fizeram. Por que esse conjunto de exigências e tais ex-
pectativas se dirigem apenas aos jovens pobres? Por que jovens de classes
médias e de elite, alguns alunos de escolas técnicas federais ou de universi-
dades públicas, usufruindo serviços gratuitos mantidos pelos impostos,
não estão também submetidos a qualquer contrapartida comunitária, sa-
bendo-se que teriam facilidades para essa ação, diante de seu capital cultu-
ral e social? Ocorre mais uma exigência voltada apenas aos pobres, aqueles
que no discurso são considerados desprovidos de direitos?
Não se nega o potencial da ação voluntária e das energias criadoras dos
segmentos juvenis que conseguem mobilizar-se para o agir em comum
mesmo em situações de vida extremamente precárias (cf. Melucci, 1991;
Sposito, 2000; Novaes, 1997). Mas, de certo modo, ocorre um novo

novembro 2005 165


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

ocultamento ou naturalização das condições em que as desigualdades so-


ciais operam, pois na ausência de direitos assegurados resta aos atores jo-
vens, muitas vezes sem nenhum apoio de caráter mais duradouro, a tarefa
de construir um projeto voltado para o “desenvolvimento local ou comu-
nitário”, deslocando-se para o sujeito a responsabilidade de empreendi-
mentos que não seriam a rigor de sua alçada. Sempre há o risco da mera
farsa ou do simulacro de projeto de ação coletiva. Mas, se os jovens são
responsáveis pelo projeto, provavelmente poderão sentir-se também res-
ponsáveis por seu fracasso, individualizando situações que encontram seus
limites nas barreiras estruturais das desigualdades. Como afirma Dubet, as
instituições passam por um processo de mutação que altera a natureza da
dominação e os indivíduos são convidados a agir “livremente” nas catego-
rias que lhes são impostas. Assim, o dominado é convidado a ser o mestre
de sua identidade e de sua experiência social, ao mesmo tempo em que é
posto em situação de não poder realizar esse projeto (cf. Dubet, 2002).
Como se trata de uma tarefa praticamente irrealizável, na maioria das
vezes o “protagonismo” juvenil e a mobilização dos jovens permanecem no
37. Uma crítica à idéia campo do discurso que dissimula a inexistência de práticas inovadoras37.
de protagonismo juvenil Por outro lado, o caráter fragmentado da iniciativa, que, devido a seu viés
pode ser encontrada em focalizado, absorve o público apenas a partir de critérios rígidos de renda,
Castro (2002), Zibas et
dificulta a possibilidade de ação coletiva e a formação de práticas mais
al., (2004 e Corti e Souza
(2005). Essas orientações solidárias, pois não reconhece os modos de vida e as redes nas quais os
privilegiaram a idéia jovens estão mergulhados em sua experiência cotidiana.
como um instrumento Verifica-se, assim, que o conjunto desses programas pouco avança
pedagógico esvaziado de no diálogo efetivo com os jovens, entendendo que eles não são apenas
seus conteúdos sociopo-
público-alvo, mas sujeitos capazes de participar efetivamente das defini-
líticos.
ções que dizem respeito aos seus interesses e à sua própria vida. Sob esse
38. Sobre o descompas-
ponto de vista, mantém-se a distância entre as razões do Poder Público,
so entre a racionalidade
do gestor que atribui ao
proponente das ações, e as orientações na vida cotidiana daqueles que
usuário uma racionalida- permanecem na base da sociedade38. Quando essa distância pretende ser
de estreita, distante das superada, vem acompanhada da tentativa de impor aos jovens as lógicas
“boas razões” dos assis- dos responsáveis pela ação, aumentando o grau de expectativas perma-
tidos, consultar o estu- nentemente frustradas.
do de François Dubet
Tendo em vista as ambigüidades dessas propostas, há outro caminho
sobre os usuários de pro-
gramas de renda míni- que merece ainda ser analisado, como hipótese para a disseminação tão
ma na França (cf. Dubet, rápida dessas ações. Trata-se de uma forma de gestão institucional do tem-
2001). po livre e ocioso dos jovens pobres, considerados uma ameaça para a or-
dem pública. De vítimas, esses segmentos rapidamente são transformados

166 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Marilia Pontes Sposito e Maria Carla Corrochano

em réus, pois a inatividade forçada seria necessariamente a ante-sala da


violência e do crime.
Para os jovens pobres, o desejo de preenchimento de seu tempo livre,
além do espaço escolar, incide de modo articulado sobre a possibilidade de
acesso à fruição, quer no âmbito da cultura, quer no âmbito do lazer (cf.
Brenner et al., 2005; Sposito, 2005; Guimarães, 2005). Mas, no mesmo
processo em que é constituída a aspiração de viver a experiência juvenil, por
meio de “uma trégua” em relação às exigências do mundo adulto (cf.
Dayrell, 2005), os jovens pobres também querem ter acesso ao mundo do
trabalho e não postergam essa busca para um tempo futuro. Para muitos, a
ocupação remunerada é a melhor condição de criação da possibilidade de
um tempo livre mais prazeroso e do acesso ao lazer predominantemente
mercantilizado (cf. Brenner et al., 2005).
Assim, nos interstícios da crise do mundo do trabalho, da ausência de
direitos efetivamente assegurados de acesso ao lazer e aos bens culturais, e
de um sistema educativo capaz de acolher seu novo público, ocorrem os
programas de transferência de renda aos jovens, incapazes por si sós de
assegurar transformações mais densas nessas esferas.
Essas questões, circunscritas pelo processo sociocultural de construção
de uma imagem sobre a juventude no Brasil, alicerçada no medo e na
percepção de que os jovens pobres são potencialmente perigosos e consti-
tuem um problema para a sociedade, tornam ainda mais intrigantes as
ações públicas que têm como meta transferir renda para eles. Para além do
evidente benefício que o acesso à renda promove, as exigências de contra-
partida constituem novos modelos que, se não estiverem submetidos à
crítica, serão potencialmente disseminadores de novas formas de domina-
ção, obscurecidas pelo discurso da inserção social e da cidadania.

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Resumo
A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil

A partir da análise mais ampla do caráter das recentes políticas públicas dirigidas a jovens
no Brasil e das orientações conflitivas inerentes a esse campo, o artigo discute os pressu-
postos contidos em três programas públicos implementados no país: o Projeto Agente
Jovem, o Programa Serviço Civil Voluntário e o Programa Bolsa Trabalho Renda. Após
uma caracterização geral de cada um deles, sem ignorar aspectos de sua diversidade, a
análise concentra-se nos paradoxos e ambigüidades subjacentes a seu formato comum: a
transferência de renda atrelada à exigência de algum tipo de contrapartida do público
juvenil, em geral o retorno/permanência na escola e a realização de atividades de caráter
socioeducativo ou comunitário. Sem negar o benefício promovido pelo acesso à renda,
o artigo alerta para a possibilidade de disseminação de novas formas de dominação a
partir da adoção desse modelo nas ações públicas dirigidas aos jovens.
Palavras-chave: Juventude; Políticas públicas; Programas socioeducativos; Transferên-
cia de renda.

novembro 2005 171


A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil, pp. 141-172

Abstract

The hidden face of the income transference for youths in Brazil


Based on a broader analysis of the character of recent public policies directed at youths
in Brazil and on the conflicting orientations inherent in this field, this paper deals
with the presuppositions contained in three public programs taking place in the coun-
try: the Young Agent Project, the Voluntary Civil Service Program and the Work-
Income Grant Program. To begin with, a general characterization of each of these
programs is made, taking into consideration the aspects of their diversity; secondly,
the analysis focuses on the paradoxes and ambiguities feature to their common under-
lining: the transference of income linked to some kind of repayment by the young-
sters, usually the return to or the carrying on at school and the fulfillment of socio-
educational or community type activities. Taking into account the beneficial side of
access to income, this paper cautions the reader on the possibility of dissemination of
new forms of domination based on the adoption of this model in public policies di-
rected at youngsters.
Keywords: Youth; Public policies; Socio-educational programs; Income transference.

Texto recebido e apro-


vado em 20/10/2005.
Marilia Pontes Sposito
é professora titular de
Sociologia da Educação
da Faculdade de Edu-
cação da USP. E-mail:
sposito@usp.br.
Maria Carla Corrochano
é mestre em Educação e
cursa o doutorado em
Educação na Faculdade
de Educação da USP. E-
mail: mcarla@usp.br.

172 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Os circuitos dos jovens urbanos*
José Guilherme Cantor Magnani

Introdução *Este artigo é consti-


tuído por dois capítu-
los (inicial e final) que
Este artigo apresenta os resultados de um trabalho sobre os jovens e suas
escrevi para a coletânea
práticas culturais e de lazer, redes de sociabilidade e relações de troca (e organizada por mim e
também conflito) no contexto urbano de uma grande metrópole, no caso por Bruna Mantese sob
a cidade de São Paulo. As pesquisas que estão na base das reflexões aqui o título Jovens na me-
apresentadas foram realizadas no âmbito do Núcleo de Antropologia Ur- trópole: uma análise an-
tropológica dos circuitos
bana (NAU/USP)1, mas devem ser levados em conta também muitos dos
de lazer, encontro e so-
trabalhos feitos na disciplina Pesquisa de Campo em Antropologia, minis- ciabilidade, no prelo, e
trada por mim no curso de graduação de Ciências Sociais da FFLCH da pelo resumo de algu-
Universidade de São Paulo2. Nessa disciplina, os alunos são iniciados nas mas das etnografias que
artes da etnografia, desde a escolha do objeto e a discussão do tema, pas- compõem essa coletâ-
sando pela elaboração do projeto e idas a campo, até a entrega do relatório nea, para que o argu-
mento do texto pudes-
final. Muitos projetos de pesquisa de pós-graduação (e carreiras acadêmi-
se ser desenvolvido.
cas) tiveram aí seu início e incentivo.
1.Elas integram meu
São justamente algumas dessas pesquisas de iniciação científica e de
projeto de pesquisa “Os
mestrado, desenvolvidas como continuação de trabalhos de graduação, as caminhos da metrópo-
aqui mostradas para expor o tema e a forma como ele foi tratado no enfo- le”, realizada com fi-
que da antropologia urbana. nanciamento da bolsa
A primeira observação a fazer é exatamente sobre a questão mais geral Produtividade em Pes-
quisa do CNPq.
que vincula este texto aos outros apresentados nesta revista, a juventude.
Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

2.E também pelo prof. Existe uma tradição nas ciências sociais, tanto na antropologia como na
Vagner G. da Silva. sociologia, preocupada com a delimitação e a conceituação dessa, digamos
assim, etapa de um processo. Essa etapa pode ser marcada tanto por fatores
biopsicológicos como por rituais de passagem, de mudança de status e in-
gresso em esferas específicas, como o mercado de trabalho, a constituição
3. Ver, a propósito, Car- de família, o pertencimento a grupos etc.3. Entretanto, não foi esse o enfo-
doso e Sampaio (1995). que adotado pelas pesquisas desenvolvidas no Núcleo: neste caso, “ser jo-
vem” foi tomado menos como uma categoria explicativa do que como um
ponto de partida, empírico, para os recortes.
Para justificar tal decisão, ponderou-se que tomar um amplo conjunto
de recortes com as mais diferentes preocupações – lazer, sociabilidade, pos-
turas afirmativas, religiosidade, ação política, transgressão, gostos musicais
etc. –, ligados a segmentos que se apresentavam, de forma genérica, como
jovens aos pesquisadores, e reduzir toda essa multiplicidade visível na paisa-
gem urbana a um comportamento padrão ditado por determinado recorte
de faixa etária, seria perder importantes dimensões explicativas que a etno-
grafia poderia revelar. Dessa forma, ao deixar de lado a variável que tradi-
cionalmente tem sido tomada como o denominador comum, a opção foi
buscar outro ponto de articulação entre temas e recortes aparentemente
desconexos.

Tribos urbanas versus circuitos de jovens

Revisando a literatura atual sobre jovens, não há como deixar de men-


cionar, logo de início, o termo pelo qual sua presença, seu comportamento
e suas práticas, sobretudo nas grandes cidades, são comumente nomeados:
“tribos urbanas”. A expressão, divulgada principalmente por influência do
livro O tempo das tribos, de Michel Maffesoli (1987), tem apelo e é imedia-
tamente reconhecida, especialmente pela mídia. Nessa obra, o sociólogo
francês analisava os comportamentos dos jovens nos centros urbanos sob a
égide do nomadismo, da fragmentação e de um certo tipo de consumo. O
ponto central era mostrar o lado “afetual” de microgrupos caracterizados
como um tipo de comunidade emocional: são efêmeros, de inscrição local,
desprovidos de organização. Com essa postura, o autor trazia para o cam-
po da análise social a perspectiva que então caracterizava uma série de trans-
formações que vinham ocorrendo no campo da literatura, da arquitetura,
da moda, das comunicações, da produção cultural, como “pós-modernas”.
No caso da emergência desses pequenos grupos, voláteis, altamente dife-

174 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

renciados, a novidade que apresentavam era sua contraposição à homoge-


neidade e ao individualismo característicos da sociedade de massas, bem
como às identidades bem marcadas da modernidade.

[...] o neotribalismo é caracterizado pela fluidez, pelos ajuntamentos pontuais


e pela dispersão. E é assim que podemos descrever o espetáculo da rua nas
megalópoles modernas. O adepto do jogging, o punk, o look retrô, os “gente-
bem”, os animadores públicos, nos convidam a um incessante travelling. Atra-
vés de sucessivas sedimentações constitui-se a ambiência estética da qual fala-
mos. E é no seio de uma tal ambiência que, pontualmente, podem ocorrer
essas “condensações instantâneas” (Hocquenghem-Scherer), tão frágeis, mas
que, no seu momento são objeto de forte envolvimento emocional (Maffesoli,
1987, p. 107).

Cabe lembrar que já se vão quase duas décadas desde que o texto de
Maffesoli surgiu4; impõe-se uma releitura de seu pioneiro insight. Num tra- 4. Há uma controvérsia
balho chamado “Tribos urbanas: metáfora ou categoria?”, de 1992, fiz uma sobre a data da publica-
crítica à utilização dessa expressão, mostrando as limitações, para a análise, ção deste livro: a edição
em português, da edito-
de seu uso mais metafórico do que conceitual. Isso não quer dizer que não
ra Forense Universitária,
se possa empregar o termo com algum proveito, mas é necessário estar aten- vem com a data de 1987,
to para as limitações e as particularidades inerentes a essa forma de utiliza- enquanto o original em
ção. Uma dessas limitações deve-se a um mal-entendido entre o sentido francês é de 1988.
que se atribui ao termo “tribo” nos estudos tradicionais de etnologia – que
aponta para alianças mais amplas entre clãs, segmentos, grupos locais etc. –
e seu uso para designar grupos de jovens no cenário das metrópoles, que
evoca exatamente o contrário: pensa-se logo em pequenos grupos bem deli-
mitados, com regras e costumes particulares, em contraste com o caráter
massificado que comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cida-
des. Não se pode descartar, ademais, a carga de preconceito em leituras que
vêem disputas de gangues como “conflitos tribais”5. 5.Para uma discussão
Além das matérias de jornal, das reportagens de televisão e de docu- mais ampla, consultar
Magnani (1992). Ver
mentários sobre a vida na metrópole em que a expressão “tribos urbanas”
também Goldman
geralmente é empregada de forma unívoca e acrítica, ela pode ser encon-
(1999, p. 94).
trada também, com diferentes graus de elaboração, em teses, livros e arti-
gos acadêmicos6. 6.Por exemplo, Pais e
Recentemente, o antropólogo espanhol Carles Feixa referiu-se a ela na Blass (2004) e Guer-
reiro (1994).
introdução ao número especial da Revista de Estudios de Juventud (n. 64,
2004), que trazia textos majoritariamente de autoria de pesquisadores da

novembro 2005 175


Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

7. Carles Feixa é antro- península ibérica7, fazendo um contraponto com outra expressão, “cultu-
pólogo, professor da Uni- ras juvenis”, para demarcar linhas de interpretação diferentes. Ao mesmo
versitat de Lleida e autor
tempo em que se registra a presença maciça, na mídia, da temática jovem,
do livro De jóvenes, ban-
das y tribus: antropología desde os anos de 1960, nas modalidades punks, mods, skinheads, heavies,
de la juventud (1998). rockers, grunges, nuevaoleros etc., não teria havido a devida correspondên-
cia nas pesquisas acadêmicas, as quais teriam ficado restritas a aspectos
estruturais – escola, trabalho, família – ou a temas clássicos como o asso-
ciacionismo, a participação, as atitudes políticas. Por outro lado, as meto-
dologias quantitativas teriam relegado a um segundo plano as abordagens
de corte etnográfico.
Ainda segundo Feixa, nesse período houve estudos empíricos e al-
guns até teóricos, que no entanto não tiveram a devida difusão. Nos
8. Não obstante a mu- últimos anos, essa situação tendeu a mudar e o tema das “tribos urba-
dança de perspectiva que nas” começou a despertar interesse no meio acadêmico de forma mais
essa nova expressão pre- sistemática. A idéia do número especial daquela revista foi retomar a
tende trazer, ainda assim
questão e propor uma nova perspectiva para tratar o assunto, que está
persiste a indiferenciação
entre esses termos, como
resumida no próprio título: “Das tribos urbanas às culturas juvenis”:
o atesta a citação de um
artigo no próprio núme- O primeiro termo (tribos urbanas) é o mais popular e difundido, ainda que esteja
ro especial da revista or- fortemente marcado por sua origem na mídia e por seus conteúdos estigmatizantes.
ganizado por Feixa: “Po- O segundo termo (culturas juvenis) é o mais utilizado na literatura acadêmica
demos entender as ‘tri-
internacional (vinculada normalmente aos estudos culturais). Essa mudança ter-
bos’ da cultura juvenil
global como a expressão minológica implica também uma mudança na forma de encarar o problema, que
do instinto [sic] de for- transfere a ênfase da marginalidade para a identidade, das aparências para as estra-
mar e reinventar as co- tégias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinqüência para o ócio, das ima-
letividades primordiais gens para os atores (Feixa, 2004, p. 6; trad. minha).
para proporcionar uma
sensação de segurança e
fechamento em um
O autor prossegue dizendo que o termo “culturas juvenis” aponta mais
mundo inseguro” (Ni- para as formas em que as experiências juvenis se expressam de maneira
lam, 2004, p. 46). coletiva, mediante estilos de vida distintivos, tendo como referência prin-
9. Fundado em 1964 cipalmente o tempo livre8. Esses “estilos distintivos”, identificados por meio
por Richard Hoggart, na do consumo de determinados produtos da cultura de massa, como roupas,
Universidade de Birmin- música, adereços, formas de lazer etc., remetem à idéia das “subculturas”,
gham, tornou-se desde tão ao gosto da tradição inaugurada pelo Centro de Estudos de Cultura
então um importante
Contemporânea9, referência obrigatória dos atuais cultural studies. Por outro
núcleo de pesquisa sobre
questões relativas à cul- lado, ainda nessa tradição, as experiências no interior das subculturas eram
tura e à identidade na vistas como rituais de resistência à dominação de uma cultura hegemônica;
atualidade. daí o caráter “chocante” e desafiador da presença, do visual e da atuação

176 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

dos skinheads, por exemplo, manifestação tida como paradigmática de uma


subcultura juvenil típica (cf. Hall e Jefferson, 1976).
Com o objetivo, porém, de oferecer uma alternativa a esses enfoques e
assim poder dialogar com eles na forma de contraposição e/ou complemen-
taridade, proponho outra denominação, “circuitos de jovens”, e outro ponto
de partida para a abordagem do tema do comportamento dos jovens nos
grandes centros urbanos. Em vez da ênfase na condição de “jovens”, que
supostamente remete a diversidade de manifestações a um denominador
comum, a idéia é privilegiar sua inserção na paisagem urbana por meio da
etnografia dos espaços por onde circulam, onde estão seus pontos de en-
contro e ocasiões de conflito, e os parceiros com quem estabelecem relações
de troca.
Mais concretamente, o que se busca com essa opção é um ponto de vista
que permita articular dois elementos presentes nessa dinâmica: os compor-
tamentos (recuperando os aspectos da mobilidade, dos modismos etc., en-
fatizados nos estudos sobre esse segmento) e os espaços, as instituições e os
equipamentos urbanos que, ao contrário, apresentam um maior (e mais di-
ferenciado) grau de permanência na paisagem – desde o “pedaço”, mais
particularista, até a “mancha”, que supõe um acesso mais amplo e de maior
visibilidade. O que se pretende com esse termo, por conseguinte, é chamar
a atenção (1) para a sociabilidade, e não tanto para pautas de consumo e
estilos de expressão ligados à questão geracional, tônica das “culturas juve-
nis”; e (2) para permanências e regularidades, em vez da fragmentação e do
nomadismo, mais enfatizados na perspectiva das ditas “tribos urbanas”.
Essa proposta tem como base uma reflexão anterior, formulada em arti-
go da Revista Brasileira de Ciências Sociais (cf. Magnani, 2002), sobre a ne-
cessidade de recortar e diferenciar uma “antropologia urbana” no interior da
vaga e pouco operativa expressão “antropologia das sociedades complexas”. 10. Esta escolha implicou
ainda deixar o campo da
A idéia era levar em conta tanto os atores sociais com suas especificidades
“juventude” e as discus-
(determinações estruturais, símbolos, sinais de pertencimento, escolhas, sões sobre os atuais limi-
valores etc.), como o espaço com o qual interagem – mas não na qualidade tes dessa faixa etária – que
de mero cenário, e sim como produto da prática social acumulada desses podem oscilar, no caso
agentes, e também como fator de determinação de suas práticas, constituin- dos grupos aqui estuda-
do, assim, a garantia (visível, pública) de sua inserção no espaço10. dos, entre os 13 e os 30
anos – em favor da op-
A escolha de circuito, dentre as outras categorias da família, deve-se à
ção de vê-los em sua in-
particularidade de ser a mais abrangente delas, pois, ao mesmo tempo que teração com a cidade, seus
possibilita identificar e construir totalidades analíticas mais consistentes e espaços, equipamentos e
coerentes com os objetos de análise, permite também extrapolar o espaço trajetos.

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

físico, mesmo na metrópole, proporcionando recortes não restritos a seu


território. Tendo em vista que essas categorias irão aparecer em várias pas-
sagens deste artigo, vale a pena retomá-las numa visão de conjunto, ainda
que resumida.
Assim, pedaço designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa)
e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla do
que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável
do que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. Man-
chas são áreas contíguas do espaço urbano, dotadas de equipamentos que
marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, com-
petindo ou complementando – uma atividade ou prática predominante. Essa
categoria foi proposta para descrever um determinado tipo de arranjo espa-
cial, mais estável na paisagem urbana se comparado, por exemplo, com a
categoria “pedaço”, mais estreitamente ligada à dinâmica do grupo que com
ela se identifica. A qualquer momento os membros de um pedaço podem
eleger outro espaço como ponto de referência e lugar de encontro. A man-
cha, ao contrário, resultado da relação que diversos estabelecimentos e equi-
pamentos guardam entre si, e que é o motivo da afluência de seu público,
está mais ancorada na paisagem do que nos eventuais freqüentadores. A iden-
tificação destes com a mancha não é da mesma natureza que a percebida
entre o pedaço e seus membros. A mancha é mais aberta, acolhe um número
maior e mais diversificado de usuários, e oferece a eles não um acolhimento
de pertencimento, mas, a partir da oferta de determinado bem ou serviço,
uma possibilidade de encontro, acenando, em vez da certeza, com o impre-
visto: não se sabe ao certo o que ou quem se vai encontrar na mancha, ainda
que se tenha uma idéia do tipo de bem ou serviço que lá é oferecido e do
padrão de gosto ou pauta de consumo dos freqüentadores.
Já o termo trajeto surgiu da necessidade de categorizar uma forma de
uso do espaço que se diferencia, em primeiro lugar, daquele descrito pela
categoria pedaço. Enquanto esta remete a um território que funciona como
ponto de referência – e, no caso da vida no bairro, evoca a permanência de
laços de família, vizinhança, origem e outros –, trajeto aplica-se a fluxos
recorrentes no espaço mais abrangente da cidade e no interior das manchas
urbanas. É a extensão e, principalmente, a diversidade do espaço urbano
para além do bairro que impõem a necessidade de deslocamentos por re-
giões distantes e não contíguas.
Com relação a circuito, trata-se de uma categoria que descreve o exer-
cício de uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de

178 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma


relação de contigüidade espacial; ele é reconhecido em seu conjunto pelos
usuários habituais. A noção de circuito também designa um uso do espa-
ço e dos equipamentos urbanos – possibilitando, por conseguinte, o exer-
cício da sociabilidade por meio de encontros, comunicação, manejo de
códigos –, porém de forma mais independente com relação ao espaço,
sem se ater à contigüidade, como ocorre na mancha ou no pedaço. Mas
ele tem, igualmente, existência objetiva e observável: pode ser identifica-
do, descrito e localizado11. 11.Para uma discussão
Uma vez delineado o quadro e estabelecido o fio condutor para a aná- mais ampla , ver Mag-
nani (2002).
lise, cabe agora um contato mais direto com os diversos circuitos de jovens,
tais como aparecem nas etnografias aqui apresentadas de forma resumida.

As etnografias
Straight edge

Analisados por Bruna Mantese em sua dissertação de mestrado, os straight


edges foram incluídos no contexto da pesquisa “Os caminhos da metrópo-
le” devido à sua particular forma de uso do espaço e das trocas que man-
têm com outros grupos e personagens urbanos. Em vez de constituir um
grupo exótico, isolado e confinado a algum gueto (como uma visão do
senso comum tenderia a considerar), eles têm, ao contrário, presença visí-
vel no cenário urbano e participação ativa em sua dinâmica. Claro, seu
comportamento é bastante distintivo e se diferencia do que comumente se
espera de um grupo de jovens. Originalmente uma variante do movimen-
to punk (com o qual ainda compartilham o estilo musical e algo do visual
“agressivo”), apresentam, porém, diferenças significativas: contrários ao
consumo de drogas e álcool, e avessos à permissividade sexual e à homofobia,
têm como traço mais acentuado a adesão ao vegetarianismo e, em alguns
casos, a uma versão mais radical, o veganismo.
Essa variante proíbe não apenas a ingestão de carne, mas o consumo de
todo e qualquer produto de origem animal ou que esteja vinculado, em
seu processo de fabricação e pesquisa, a algum tipo de utilização de ani-
mais domésticos ou silvestres. Coerentes com esse princípio, as festas do
grupo são denominadas verduradas – em contraposição às costumeiras
churrascadas ou cervejadas. É justamente essa adesão que explica o vínculo
aparentemente paradoxal que os straight edges mantêm nada mais nada

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

O sinal característico dos straight edges. Foto: Paulo Fehlauer.

menos que com os Hare Krishna, muitas vezes encarregados da comida


que é servida em suas festas.
Os jovens identificados com esse movimento constituem um bom exem-
plo de trocas e encontros surpreendentes: além do contato com os Hare
Krishna, freqüentam espaços vinculados ao movimento anarquista e ambien-
talista, devido a uma opção política. No entanto, para as festas, os encontros
e até mesmo para as opções de moradia, têm seus pontos de preferência na
cidade, conhecidos por todos e difundidos em contatos diretos e nas listas de
discussão pela internet. A pesquisa de campo realizada por Bruna mostra a
existência de um extenso circuito freqüentado pelo grupo, formado por res-
taurantes vegetarianos, determinadas sorveterias, lojas de disco, de produtos
naturais e orgânicos, casas de show, espaços culturais anarquistas etc.
Entre os vários aspectos a considerar com relação aos straight edges, cabe
ressaltar aqueles que justificaram sua inclusão na pesquisa: duas formas de
relação com espaços e equipamentos da cidade com os quais estabelecem
vínculos e onde melhor expressam as particularidades de seu estilo de vida. A
primeira delas mostra a ocupação de um espaço institucional já existente –
no caso, a Associação de Grupamento de Resgate Civil, cuja sede, alugada
para as verduradas, passava a ser regida, durante o evento, pelas normas e
valores do grupo: só se consumia comida vegan, nada de bebidas alcoólicas,
drogas ou cigarro; não se contratavam seguranças; as fitas cassete, cds, livros

180 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

e objetos de consumo à venda eram claramente identificados com os valores


do grupo.
A outra forma de relação, que permitiu um interessante acompanha-
mento etnográfico, mostra a transformação de um estabelecimento co-
mercial, inicialmente sem nenhum vínculo com os ideais do grupo, num
ponto de referência para o movimento. Trata-se da sorveteria Soroko, na
rua Augusta, que, com a freqüência dos straight edges, começou a fornecer
sorvetes sem os ingredientes interditos – principalmente o leite, que foi
substituído por soja – e terminou constituindo um “point” para os mem-
bros do grupo não apenas da capital, mas de todos os lugares, incluindo o
exterior. A rua Augusta, onde está situada a sorveteria, vem se tornando
uma região de referência para os straight edges, em parte pelo preço relativa-
mente baixo do aluguel dos apartamentos, em parte pela própria localiza-
ção, que permite fácil e rápido acesso a duas centralidades urbanas de inte-
resse para os jovens do movimento: o centro da cidade propriamente dito
(com sua oferta de restaurantes vegetarianos, produtos das lojas das Gran-
des Galerias, mais conhecidas como “Galeria do Rock”, os preços popula-
res de muitos artigos de consumo) e a avenida Paulista.
Pode-se dizer que os straight edges constituem um circuito bem delimi-
tado na cidade, estabelecem links com outros circuitos e seus freqüentado-
res, e, em sua movimentação por esses circuitos, descrevem alguns trajetos
que permitem conhecer um aspecto da dinâmica da cidade, apropriada
por um segmento jovem que, em vez de dissolver-se em categorias abran-
gentes e redundantes, marcam sua presença e seu estilo de vida de forma
pública e visível na paisagem da metrópole.

Baladas black e rodas de samba

O trabalho de campo sobre este tema foi iniciado por Márcio Macedo
na disciplina “A pesquisa de campo em antropologia”, por mim ministrada
no curso de graduação de Ciências Sociais da FFLCH/USP. Esse estudo foi
depois retomado por Márcio, que buscou rastrear, historicamente, a pre-
sença negra no centro da cidade e, a partir dessa ocupação, descrever trajetos
dentro de um circuito específico de jovens negros na noite paulistana.
“O centro é black, man!”, e não é de hoje. Sem ir muito longe, toman-
do como referência apenas a ocorrência de salões de dança, é possível re-
montar até antes do período da Frente Negra Brasileira (FNB), nos anos
de 1930, com seus bailes sociais, nos moldes dos clubes recreativos e so-

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

ciais dos imigrantes ou da elite paulistana: por volta de 1910, já se tem


notícia da expressão “negro de salão” para designar o freqüentador de clu-
bes que, em eventos familiares e bailes caseiros, se diferenciava pelas ma-
neiras e indumentária mais refinadas, adquiridas nos salões de baile do
centro da cidade.
O exercício etnográfico proposto por Márcio para a pesquisa “Os cami-
nhos da metrópole” foi partir da presença significativa de jovens negros no
centro da cidade no final da jornada de trabalho de sexta-feira, reunidos
numa roda de samba coloquialmente denominada “Samba de Bandido”
ou “Samba da Dom José” (referência à rua Dom José Gaspar, local do
evento), e a partir dela rastrear o circuito black em alguns pontos de dife-
rentes regiões da cidade. Esse ponto de encontro no centro, no calçadão de
uma das ruas até essa hora tomada por camelôs e seus produtos de origem
duvidosa (roupas, tênis, bonés, DVDs etc.) que aos poucos vão cedendo
espaço para vendedores de cds de rap, R&B, samba, e carrinhos com bebi-
das, situa-se em frente a uma lanchonete sem nome. E a rua ferve! É uma
espécie de happy hour para os jovens trabalhadores da região e ponto de
partida para a noite que, em sua versão black, promete...
São três os espaços pesquisados e que se diferenciam pelo entorno, pelo
tipo de música e de dança, pela roupa dos freqüentadores, por seu poder
aquisitivo e pela, digamos, proporção entre jovens negros e brancos. O pri-
meiro, chamado “Sala Real”, fica na Boca do Lixo (zona de prostituição),
ainda na região do centro; os ingressos são mais baratos, a maioria dos fre-
qüentadores é constituída por negros, há forte presença do hip-hop e a
música é predominantemente internacional. O outro é o “Sambarylove”,
no Bixiga: o público é também majoritariamente negro, provém de toda a
cidade e também do interior do estado (trazidos em ônibus de excursão); as
opções musicais são mais variadas: samba, samba-rock, axé music, rap,
R&B, raggamufin e “melodia” (lenta). Se na Sala Real o som é considerado
underground, aqui é mais “comercial”. A terceira casa é o “Mood Club”, no
bairro de Pinheiros: mais elitizada, conta com manobristas e tem página na
internet. A maioria do público é de jovens brancos. Ainda que a interação
entre negros e brancos seja pequena, é consenso de que as atrações da casa
são a possibilidade de encontros e paqueras inter-raciais e uma musicalida-
de mais refinada, entendida como underground. A seleção de músicas –
R&B, rap e raggamufin – privilegia as internacionais, não há pagode nem
música lenta. Outro atrativo da Mood, voltada para negros de classe média,
é que espaços como o dessa casa podem ser associados a uma noção de

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José Guilherme Cantor Magnani

Casal dança samba-rock no salão Green Express, na região central de São Paulo. Foto: Luciane Silva.

“distinção” à la Bourdieu, ou seja, busca-se criar um “estilo de vida” que


seja representativo de uma condição de classe. Dentro dessa lógica, estar
num local mais refinado, caro, confortável, heterogêneo do ponto de vista
racial, entre outras coisas, faz todo o sentido.
A Vila Madalena propriamente dita não possui casas diretamente iden-
tificadas com a black music: algumas delas oferecem esse estilo em determi-
nados dias da semana – e, nesse sentido, também fazem parte do circuito
black jovem –, para um público mais heterogêneo. Algo muito interessante
observado nesse circuito foi a tensão entre uma postura de “afirmação” e a
apropriação do estilo black internacionalizado por parte de um público
mais amplo, o que possibilita, de certa forma, encontros e contatos.
Mas não se pode esquecer que, na ponta do circuito, instaurando traje-
tos específicos na noite black, está o “Samba de Bandido”, que remete não
apenas a uma ocupação histórica do centro da cidade pelos negros, como
também a um tipo de afirmação que joga duplamente com o estigma: o
perigo atribuído à presença maciça de negros e, em menor medida, o sam-
ba, apenas um item a mais (e nem sempre o mais valorizado) na cena black
jovem e nas suas formas de afirmação.

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

B. boys e streeteiros na estação Conceição do metrô

Dois foram os pontos de interesse para a inclusão deste tema – desenvol-


vido por Fernanda Noronha, Renata Toledo e Paula Pires – na pesquisa “Os
caminhos da metrópole”: em primeiro lugar, a ocupação por parte desses
atores da estação do metrô Conceição, na zona sul da capital, seguindo a
tradição do hip-hop paulistano que, inicialmente, nos anos de 1980, ocu-
pou a estação São Bento, na região central: tanto em um caso como no
outro, trata-se de um espaço ideal para os ensaios/exibições típicos dessa
forma de manifestação. O outro aspecto é o contato e as trocas entre dois
grupos – japas e manos – que, a julgar pela procedência, classe social, prefe-
rências estéticas, trajetos na cidade, dificilmente se poderia imaginar que
pudessem estabelecer algum vínculo.
Os “japas” são adeptos da street dance e os “manos”, da break dance; os
primeiros são de classe média, descendentes de japoneses, alunos de escolas
particulares; os outros, da periferia da zona sul, já no mercado de trabalho.

B. boys realizam “parada de mão”, movimento de break, durante treino


na estação de metrô Conceição. Foto: Paulo Fehlauer.

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José Guilherme Cantor Magnani

Os manos, ou b. boys, que estão já há cinco anos no Centro Empresarial


Itaú/metrô Conceição, cultivam como estilo de dança o break (ou batida
quebrada), que é ligada ao hip-hop. É uma modalidade que exige mais força
física, alongamento prévio e as apresentações são mais individuais, culmi-
nando nos rachas ou desafios. Os b. boys criticam os streeteiros, cuja dança
não passaria de uma mistura de estilos, sem o rigor do break; ademais, eles
não teriam o “conhecimento”, elemento fundamental do estilo hip-hop.
Os streeteiros, há três anos freqüentando o Centro, desenvolvem uma
dança mais coreografada, em grupo, que exige menos condicionamento
físico e mais sincronização dos movimentos: os espelhos do Centro Em-
presarial são fundamentais para o aprimoramento dessa modalidade. En-
saiam principalmente nas manhãs e tardes de sábado, para depois se apre-
sentarem em campeonatos nos eventos da colônia. Não se identificam com
o estilo que eles próprios denominam de “japinha” (franjas dos cabelos
desfiadas, mechas coloridas, as nucas raspadas), preferindo as calças big,
camisetas Pixa-In Hip Hop Wear, tags etc., identificados com a estética
hip-hop. As meninas do grupo, contudo, não dispensam os bichinhos e
chaveirinhos nas mochilas e os celulares estilizados são a regra.
No entanto, compartilham o mesmo espaço – e as inevitáveis tensões
com seguranças e funcionários, por causa do barulho e do uso das instala-
ções em um espaço onde o público e o privado não apresentam fronteiras
nítidas – e também a mesma denominação genérica de “dança de rua”. As
diferenças, além das já apontadas, ficam por conta das formas de desloca-
mento na cidade, do calendário letivo, das férias escolares, da duração da
jornada de trabalho.
Mas o específico desse recorte é que o Centro Empresarial Itaú/metrô
Conceição constitui um ponto de intersecção entre dois circuitos que em
princípio pouco teriam por que se encontrar. No entanto, seus atores divi-
dem o mesmo espaço, entram em contato, estabelecem vínculos. A relação
é hierárquica, mas inversa à que se esperaria tomando como base nos indi-
cadores sociais costumeiros de renda, escolaridade etc.: aqui, são os japas
que reconhecem a superioridade dos b. boys e aprendem com eles os truques
e manhas da dança de rua.

A mancha de lazer da Vila Olímpia

O interesse desse recorte, escolhido por Clara Azevedo e Ana Luíza


Borges, reside em sua típica caracterização de mancha e na dinâmica da

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

ocupação do espaço num bairro remodelado, de classe média. Faz con-


traponto com o Bixiga, a primeira mancha estudada pelo NAU – que
permanece, só que mais voltada para o teatro e a gastronomia. A balada
migrou: nos anos de 1990, a Vila Madalena tornou-se o ponto de refe-
rência e, mais recentemente, a Vila Olímpia. Existe uma marcante dife-
rença desta última com relação à primeira: seguindo a tradição do bair-
ro, conhecido reduto de jovens universitários, artistas underground e
bichos-grilos em geral nos anos de 1970, na Vila Madalena o clima é
“cabeça”, cult, cool, roots... Já a Vila Olímpia é mais freqüentada por uma
moçada apreciadora de shopping centers, desfiles de moda, roupas e aces-
sórios de grife, carros do ano.
A região toda foi objeto de uma operação urbana que modificou e am-
pliou o traçado da avenida Faria Lima, em 1995, com o objetivo de abrir
um novo centro de negócios e comércio, o que evidentemente despertou o
interesse do setor imobiliário. Com efeito, a “nova” Faria Lima virou um
centro empresarial – com prédios de escritórios de vidros espelhados, lojas
de grife – que, à noite, se transforma: no final da avenida e adjacências,
contam-se aproximadamente cinqüenta estabelecimentos voltados para o
lazer, a diversão, os encontros.
Circular pela área a pé, de carro ou de moto, mostrar-se e apreciar o
movimento é fundamental. A rua, então, torna-se espaço de uma sociabi-
lidade amistosa que se intensifica com o vaivém em frente às casas notur-
nas. A própria fila para a compra de ingresso, ocasião para exibir-se, obser-
var e comparar, cumpre mais do que o mero papel de esperar a vez de
entrar: se ela for longa e demorada, é sinal de que a casa está “bombando”.
Um elemento determinante nesse processo de exibição é constituído pelos
carros, seja os importados, seja os “tunados”, isto é, aqueles com modifica-

Interior de carro “tunado”: painel exibido no posto em uma noite de balada na Vila Olímpia.
Foto: Paulo Fehlauer.

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José Guilherme Cantor Magnani

ções em seu visual: com os vidros abertos, numa flagrante inversão da


lógica de segurança que impera no dia-a-dia da cidade, permitem os pri-
meiros contatos, as paqueras, os “xavecos”.
As casas apresentam uma espécie de estabilidade efêmera, abrem e fe-
cham num ritmo que lembra sazonalidade ou obsolescência programada:
duram de dois a três anos ou então mudam de nome. No interior dos esta-
belecimentos, com ingresso e consumação caros, destacam-se alguns perso-
nagens especiais, como os promoteurs e também os convidados vip, que
funcionam como garantia do “nível” da casa. A distinção começa pela rou-
pa; nos sites e flyers, é comum a clara referência à proibição da entrada de
pessoas com camiseta regata ou de time de futebol, chinelos, bonés, o que,
nas conversas pela net e até em artigos na mídia, assume formas de clara
estigmatização: a “baianada de chinelo”, o “povão”, os “poluidores do am-
biente”, em contraposição aos “selecionados”, os “bem-nascidos” etc.
No entanto, existe uma particularidade nessa mancha: a presença de
um posto de gasolina na esquina da avenida Juscelino Kubistchek com a
Brigadeiro Faria Lima. Diferentemente do que se esperaria desse tipo de
estabelecimento – local de passagem para abastecimento ou rápida parada
para compra de algum item na loja de conveniência –, ele se transformou
em local de encontro e até de lazer. Para muitos, a balada na Vila Olímpia
começa e termina no próprio posto. A turma da “Máfia do Posto”, por
exemplo, tem aí seus privilégios para estacionar os carrões: o posto é seu
pedaço, com seus códigos, normas, regras de cumplicidade.
Em suma, como está no Blog Vila Olímpia, este não apenas é “o” local,
mas também “o local de quem sabe” o que é balada em São Paulo. Sinais
de distinção, preconceitos e mecanismos de exclusão/inclusão ocorrem tanto
no interior dos estabelecimentos noturnos como fora, nas filas, nos carros
e no posto: como a etnografia mostrou, as estratégias de diferenciação, por
meio das quais as identidades são construídas e demarcadas, ganham des-
de formatos amistosos até formatos violentos. Trata-se, enfim, de um grande
cenário, uma “mancha em movimento”, pois como bem definiram as au-
toras da pesquisa, suas bordas já avançam sobre outros bairros, incorpo-
rando trechos de ruas adjacentes.

Galeria Ouro Fino, ponto de encontro e saída das raves

A Galeria Ouro Fino, estudada por Carolina Abreu – ponto de referên-


cia e articulação de um circuito específico, o das raves –, pode ser vista

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

tanto como um exemplo de permanência como de renovação. Está locali-


zada na rua Augusta, ela própria um ícone em seu pioneirismo como refe-
rência de moda e comportamento – quem não lembra da Jovem Guarda e,
mais especificamente, daquela música do Roberto Carlos? Ademais, situa-
se no centro de uma mancha na região dos Jardins que também abriga a
rua Oscar Freire, cujo sofisticado comércio de grifes de luxo estabelece
uma clara contraposição aos shopping centers. A exemplo de sua similar no
centro da cidade, a Galeria do Rock (Grandes Galerias, na rua 24 de Abril),
a Galeria Ouro Fino, projetada no final dos anos de 1960, pode ser consi-
derada um pedaço para seus atuais freqüentadores.
Após um período de decadência e estagnação nos anos de 1980, a galeria,
a partir de 1995, tornou-se referência para as raves que começaram a aconte-
cer no Brasil, acompanhando movimentos estéticos, comportamentais e
musicais aprendidos em Londres, Paris, Nova York. São festas que duram
aproximadamente catorze horas, movidas por música eletrônica e drogas
psicoativas (em especial o ecstasy). Esses eventos, embora freqüentados por
jovens urbanos, caracterizam-se por ocorrer em áreas rurais (sítios ou fazen-
das com muito verde, cachoeiras, praia, lagos) ou em galpões desativados,
alugados na periferia de grandes cidades. Nesses espaços, palcos são monta-
dos para abrigar várias atividades: música e dança, chill out (descanso e relax),
espaços de convivência, procurando criar um ambiente de efervescência e
comunidade com fragmentos de estética indígena, oriental, indiana, cósmi-
ca, Nova Era.
Enquanto as raves escolhem repetidamente novos espaços para festejar,
revelando certa natureza efêmera, mantêm na Galeria Ouro Fino uma re-
ferência espacial fixa, que articula a mobilidade das festas e sustenta seu
circuito. É nessa galeria onde se encontram os flyers, os acessórios, a
indumentária e os ingressos antecipados para as raves; é de onde saem
também os ônibus de caravanas rumo ao local da festa. Lá, e apenas lá,
encontram-se reunidos num único espaço roupas com desenhos psicodélicos
fluorescentes, lightsticks, tênis plataforma, discos de vinil com gravações de
músicas eletrônicas, agulhas para pick-ups, malabares, maquiagem com
glitter, óculos estilosos, serviço de body piercings, tatuagens, coloração de
cabelo; além de alguns dos amigos que dançaram juntos na “balada” e os
DJ’s que discotecam nas festas.
Embora nos últimos dez anos a Galeria Ouro Fino tenha se tornado
ponto de referência para a “cena” eletrônica em geral – com suas subdivi-
sões: techno, trance, house, com todos os seus matizes em termos de vocabu-

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Loja de botas Zowie, na Galeria Ouro Fino. Foto: Paulo Fehlauer.

lário oral/gestual/escrito, modelos, cores, marca e composição das roupas,


acessórios, penteados, piercings e tatuagens (número, tamanho, formas),
idéias, atitudes e opiniões –, não é território exclusivo dos adeptos da músi-
ca eletrônica. Muitos são os personagens que a freqüentam: estilistas em
início de carreira, clubbers, tranceiros, techneros, cybermanos (clubbers de
periferia, que vão às raves a pé ou de “condução”), pessoas do bairro, clien-
tes antigos, artistas, gays, pessoal da moda e, mais recentemente, rockeiros e
a galera do hip-hop. Dessa forma, a galeria veio a ser não apenas um centro
de compras, mas também de convivência: o adjetivo “moderno” que lhe é
atribuído representa a vanguarda em moda e comportamento, ditados por
um circuito global – Paris, Londres, Nova York, Madri, San Francisco –,
que reúne “descolados” e “antenados” com essas tendências.
Em suma, a galeria pertence ao “mundo da moda” e abriga um dos
pontos do circuito global da música eletrônica entre as grandes metrópoles
contemporâneas. É também referência fixa para as itinerantes raves e seu
circuito específico – também global – que inclui localidades tão diferentes
como Ibiza, Trancoso e Goa.

Forró universitário

Daniela Alfonsi trabalha neste tema desde quando cursava a graduação,


com bolsa Fapesp de Iniciação Científica, e agora, no mestrado, também

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

com bolsa da mesma instituição, ampliou seu recorte empírico. O forró


universitário entrou no conjunto das pesquisas agrupadas no projeto “Os
caminhos da metrópole” por sua inserção num determinado espaço da
cidade, configurando uma mancha, ao mesmo tempo em que, como cir-
cuito, se expande e extrapola São Paulo, incluindo outras capitais e cidades
do sudeste, praias do sul da Bahia e norte do Espírito Santo, especialmente
Itaúnas, de onde, como diz uma das versões sobre as origens do forró
universitário, “tudo começou”...
Trata-se de um exemplo de invenção de padrões de comportamento
envolvendo gosto musical, locais de entretenimento, dança, que é muito
difundido entre um público universitário e secundarista de classe média,
entre 15 e 20 anos, e é visto como um caso de apropriação e glamourização
de uma tradição musical própria da população migrante de origem nor-
destina, a qual mantém seus próprios espaços de forró, como o Tropical
Dance, o Patativa, o Centro de Tradições Nordestinas etc.
O interessante é a forma como jovens de classe média terminaram por
adotar essa tradição, descoberta como opção de lazer em lugares de férias e
veraneio em praias do sul da Bahia e norte do Espírito Santo, cultivada em
alguns colégios de ensino médio de elite na capital paulistana e que passou
por uma série de adaptações, sendo reconhecida por músicos, produtores e
público como uma forma nova de curtir a dança e a música, que não
renega a origem mas a modifica.
Os locais onde se desfruta esse tipo de entretenimento, na cidade de São
Paulo, localizam-se no largo de Pinheiros, zona oeste da cidade, centro co-
mercial popular, movimentado, e ponto de confluência de ônibus e came-
lôs. Aí também existem casas de forró (Tropical Dance, Sandália de Prata,
Asa Branca) freqüentadas pela população migrante nordestina, mas que
não são bem-vistas pelos moradores de classe média da região, para quem
essas casas abrigam predominantemente “porteiros” e “empregadas domés-
ticas”. Eles aceitam a versão “universitária” desse estilo de dança, “aquele
que sua mãe deixa ir”, e não os mal-afamados salões “risca-faca”. Essa nova
versão surgiu na década de 1990 e configura uma mancha, na confluência
das ruas Teodoro Sampaio e Cardeal Arcoverde, que abrigou e abriga as
principais casas desse estilo na capital paulistana, como os extintos Projeto
Equilíbrio e Centro Cultural Elenko KVA e os atuais Remelexo Pinheiros e
Canto da Ema.
Os bailes começam às 23 horas, quando as ruas da mancha já estão
fervendo com trailers e ambulantes vendendo acessórios e bebidas –

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José Guilherme Cantor Magnani

Casal dança forró em Itaúnas, Espírito Santo. Foto: Daniela do Amaral Alfonsi.

xiboquinha, catuaba, pinga com mel, cipó-bravo –, e os grupos já ensaiam


passos de dança. Nas casas, a música fica a cargo de alguma banda ou trio,
e cultiva-se uma forma de dançar com estilo próprio, diferente do que
acontece no CTN ou no Patativa, por exemplo: muitas voltinhas, giros,
rodopios, mesclados com passos de samba-rock, gafieira e salsa. Caracte-
rísticas da indumentária feminina são as bolsas pequenas a tiracolo que
não precisam ser retiradas na hora da dança e sapatilhas estilo “chinesinha”,
de pano e solado baixo, que, segundo as freqüentadoras, facilitam os pas-
sos da dança.
Mas não é só pela criação de espaços próprios para os bailes, pelos mo-
dos específicos de dançar ou pela indumentária característica que o forró
universitário se destaca no circuito jovem paulistano. Há, por trás desses
elementos, um discurso a respeito do que venha a ser a verdadeira origem
do forró, o forró “raiz”, “pé-de-serra”, objeto, segundo produtores, músi-
cos e freqüentadores dos bailes, de “resgate” por meio do forró universitá-
rio. Novas bandas, formadas por jovens, surgiram para defender essa idéia
e se diferenciar, mais uma vez, dos forrós “risca-faca”, freqüentados por
migrantes nordestinos e pela população de mais baixa renda.

novembro 2005 191


Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

Fundamental para a conformação desse conjunto de idéias a respeito


das origens e do verdadeiro forró é a ligação dos bailes em São Paulo com
a vila de Itaúnas, no litoral norte do Espírito Santo. Conhecer Itaúnas,
dançar e tocar em suas praias é tido como um valor para quem curte esse
forró. Lá, jovens turistas vindos das capitais do sudeste encontram-se e
trocam informações, músicas, passos de dança. Nesse encontro, os pró-
prios bailes de Itaúnas, bem como os das cidades de origem desses turistas,
se modificam.
Em São Paulo, por trás da aparente homogeneidade dos bailes há sutis
diferenças que configuram diferentes trajetos dentro da cidade, como des-
creve Daniela:

[...] se a pessoa tem interesse em casas que toquem forró e reggae ela certamente
freqüentará o KVA às sextas e aos sábados, quando se tem, na chamada “Sala do
Nosso Ministro”, discotecagem de reggae, além do forró no ambiente ao lado, na
“Sala de Reboco”. Ela ainda poderá freqüentar uma “balada” chamada Jamming,
que ocorre, desde junho de 2002, todas as sextas-feiras no Clube Ipê, no bairro do
Ibirapuera. É uma festa onde há discotecagem e apresentação de bandas de reggae
e forró, ou, melhor dizendo, de “forreggae”. E, muito provavelmente, essa pessoa
freqüenta também o Projeto Equilíbrio, que também se dedicava a essa modalida-
de antes do encerramento de suas atividades no primeiro semestre deste ano.

Outros trajetos são delineados levando-se em conta o grau de “autenti-


cidade” determinado pelos forrozeiros para o forró que ouvem e dançam.
Assim, diante da disseminação do gênero e de sua apropriação pelo merca-
do, surgiu a tendência, por parte de algumas pessoas que realizam bailes só
para convidados, de recuperar o forró “das antigas” como forma de preca-
ver-se da vulgarização e da espetacularização. O contato faz-se por e-mail e
só para os “conhecidos”, para “os que gostam de forró”; os bailes ocorrem
em espaços não convencionais, como casas de amigos ou salões alugados
por apenas uma noite.
Desse modo, na pesquisa sobre o forró universitário operam tanto a
categoria de mancha (no estudo na cidade de São Paulo) como as de trajeto
(Idem) e de circuito, que inclui São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Brasília, Vitória, Campinas, Caraíva (BA), Itaúnas (ES). A partir dessas
categorias são mostradas as relações operadas entre as diversas formas de
usufruir o forró em São Paulo, com os “migrantes nordestinos” ou com os
“universitários”.

192 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

Jovens instrumentistas

Da pesquisa de Iniciação Científica já concluída por Camila Iwasaki,


sobre sociabilidade de um determinado grupo de jovens baseada em gosto
musical e lazer, com ênfase na categoria de circuito, cabe ressaltar o recorte
espacial e a inserção dessa prática numa mancha, a partir da qual se pode
descrever um modo de vida diferenciado, que combina lazer e trabalho.
Sábado à tarde, rua Teodoro Sampaio, bairro de Pinheiros, zona oeste
da capital paulistana: num palco improvisado, na calçada em frente a uma
loja de instrumentos musicais, a Matic, “rola” um som especial de música
instrumental, caracterizado pela improvisação. Seus protagonistas são jo-
vens que se dedicam de forma individual (não formam bandas) à música
instrumental e fazem dela seu meio tanto de lazer e de encontro como de
vida. As apresentações nesse local revestem-se de um caráter lúdico e são
marcadas por regras particulares: acompanhados pelas namoradas ou espo-
sas, tocam para eles mesmos, para os amigos, exibem sua performance, dão
“canjas”; é seu momento de lazer, de construção dos laços e de conhecer
outros músicos desse circuito. Perto dali, na praça Benedito Calixto, au-
mentando o agito, acontece nesse mesmo dia uma concorrida e tradicional
feira de antiguidades.

Apresentação de jovens instrumentistas em frente à loja Matic Instrumentos Musicais, São Paulo.
Foto: Paulo Fehlauer.

novembro 2005 193


Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

Essa loja é um ponto de referência e local de encontro para esses jovens,


entre 19 e 30 anos, para os quais a música instrumental é motivo de diver-
são, meio de sustento e estilo de vida. São guitarristas, bateristas, pianistas,
contrabaixistas, saxofonistas que mostram um paradoxo: são jovens mas
apreciam e praticam uma música por muitos considerada “de velho”. Dão
aulas, apresentam-se em casas noturnas e, justamente por ganharem muito
pouco nessas apresentações, insuficiente para seu sustento e o de suas famí-
lias, tocam de forma profissional em conjuntos que acompanham cantores
de sucesso na mídia, como Fábio Junior, Família Lima, Vanessa Camargo e
outros. Nutrem profundo desprezo, contudo, por esse tipo de música, que
consideram comercial, apelativa, de baixa qualidade: nesse caso, trata-se de
trabalho, não de lazer.
Em geral eles começaram a se interessar pela música puramente instru-
mental como diversão, hobby, no tempo livre, mas terminaram sendo ab-
sorvidos por ela: muitos até abandonaram os estudos no nível secundário,
para dedicar-se integramente ao que chamam de “música de boa qualida-
de”, de difícil execução, complexa, que exige dedicação. Formam suas pa-
nelinhas, orientam-se por hierarquias (têm seus eleitos, os “melhores”, que
ficam no topo da pirâmide), têm códigos de etiqueta que regem a ordem
de apresentação, as “canjas” e os convites.
Além da Matic, nessa mancha formada por lutherias e por lojas que
vendem partituras, cds, acessórios, instrumentos etc., há outros pontos de
referência que integram um circuito, como o conservatório Souza Lima,
além de outros estabelecimentos como bares e casas noturnas, o Supremo
Musical, The Hall (Jardins), Blen Blen Brasil (Vila Madalena), Villaggio
Café (Bixiga), Garoa (Moema). Esse circuito se expande num plano esta-
dual (Tatuí, Campinas), nacional e até internacional, que é onde os “me-
lhores” (Egberto Gismonti, Airto Moreira, Hermeto Pascoal) atuam e são
reconhecidos.
Como membros de um conjunto reconhecível na paisagem metro-
politana, os jovens instrumentistas pesquisados apresentam uma regula-
ridade de comportamento que vai além de sua prática musical, ainda
que dependente dela. Eles vivem na e da noite, inclusive para atividades
e necessidades do cotidiano, como estudar, fazer compras em estabele-
cimentos abertos 24 horas, usar caixas eletrônicos, freqüentar academias
etc.; São Paulo permite, com mais facilidade, essa inversão dia/noite.
Assim, sua articulação de trabalho e lazer, feita com relação à música que
praticam, e o uso dos equipamentos urbanos conformam um determinado

194 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

estilo de vida marcado pela imprevisibilidade do dia-a-dia, diante da qual é


preciso improvisar, tal como fazem com o estilo de tocar que cultivam; mas
mesmo nessa imprevisibilidade há um fio condutor, que é a música.

Os pichadores

Objeto de estudo de Alexandre Barbosa Pereira desde a graduação até o


mestrado, o fenômeno da pichação foi incluído no conjunto de pesquisas
abrangidas pelo projeto “Os caminhos da metrópole”, do NAU, em virtu-
de não apenas do uso das categorias circuito, trajeto e pedaço, mas pela
identificação de duas categorias nativas, o “point” e a “quebrada”, e o co-
meço de uma reflexão sobre elas.
É um tema de ampla visibilidade – as pichações estão estampadas em
fachadas de prédios, monumentos, janelas e muros de toda a cidade – e
que gera diversas (e sempre negativas) reações, assim como tentativas de
explicação, desde sua redução a atos de vandalismo puro e simples, até seu
entendimento como manifestação de rebeldia adolescente. As pichações,
que se caracterizam pela ausência de mensagens inteligíveis ao restante da
população, seja elas de protesto, declarações de amor etc., consistem na
inscrição de nomes e apelidos, com letras estilizadas e de difícil compreen-
são, preferencialmente em locais de ampla visibilidade e difícil acesso. Além
da assinatura do autor e da referência à região da cidade de onde provém
(ZO, zona oeste, por exemplo), a pichação possui ainda a “grife”, que é
uma marca de pertencimento a um grupo mais amplo de pichadores.
Um elemento correlato à pichação é o grafite, que, entretanto, é visto
como forma de arte, não como sujeira ou poluição. Tanto uma como ou-
tro têm suas origens na Nova York dos anos de 1970. Nessa mesma déca-
da, em São Paulo, apareceram as intervenções de Alex Vallauri e, nos anos
de 1980, começou a predominar o grafite “americano”, isto é, ligado à
estética hip-hop. Apesar de a maioria das análises enfatizarem a contrapo-
sição entre essas duas formas de intervenção urbana, as relações entre gra-
fite e pichação são mais estreitas e mais complexas.
O principal ponto de encontro dos pichadores paulistanos é o Centro
Cultural São Paulo, equipamento da Secretaria de Cultura do município
que fica ao lado da estação Vergueiro do metrô. Entre suas funções – bi-
blioteca, espaço de estudo, de ensaios e apresentações teatrais, local de
reunião de praticantes de RPG, entre outras –, certamente não estava pre-
vista a de ser um ponto de encontro de pichadores. Até o ano 2000, o

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

Pichadores assinam suas folhinhas no point em frente ao Centro Cultural


São Paulo. Foto: Paulo Fehlauer.

“point” dos pichadores localizava-se na ladeira da Memória, local que se


tornou impraticável para eles em razão da constante presença da polícia,
depois que esse espaço passou por um processo de restauração.
Os jovens migraram então, inicialmente, para a praça Rodrigues Alves
e, depois, para as imediações do Centro Cultural, locais próximos à esta-
ção Vergueiro do metrô. Esse uso de espaços públicos associados a estações
do metrô é comum por parte de jovens ligados a atividades de rua, como o
hip-hop; nesse sentido, a estação São Bento é uma referência e, mais recen-
temente, a estação Conceição, onde se reúnem os b. boys e os streeteiros.
Os pichadores, nessa mudança, encontraram o espaço da praça já ocupado
pelos artesãos – os “alternativos”, como se denominam –, com seu forró,
sua MPB e seu rock, com os quais passaram a dividir o espaço, a bebida e
também a maconha.
No “point”, a etiqueta é marcada pela atitude de “humildade”, que
significa cumprimentar a todos com aperto de mão e trocar “folhinhas”
(folhas guardadas em pastas com “assinaturas”, inclusive de pichadores

196 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

famosos), e pela apreciação de coleções de artigos e matérias de jornal so-


bre fatos ligados à pichação, que são exibidas como verdadeiros troféus. É
aí que combinam os “rolês” (saídas coletivas para pichar em determinado
ponto da cidade), contam suas façanhas, estabelecem alianças em torno de
“grifes”, tiram as diferenças e resolvem os conflitos, geralmente causados
por “atropelo”, ou seja, o ato de pichar sobre outra pichação. Na origem
do conflito entre duas grifes famosas, os Registrados (RGS) e a “Mais
Imundos”, por exemplo, está um “atropelo” cuja narrativa corre em várias
versões entre os pichadores. Eles também costumam organizar festas de
aniversário que são realizadas no contexto do bairro. O material que utili-
zam é comprado na galeria da rua 24 de Maio, conhecido espaço de en-
contro de muitos grupos e membros das mais diversas “cenas” dos jovens.
O melhor lugar para pichar, segundo eles, é o centro da cidade, porque
por lá passam pichadores de todas as regiões: “dá mais ibope”, dizem. A
sociabilidade desses jovens começa no bairro – mais precisamente na “que- 12. O título da pesquisa
brada”, recorte algo similar ao pedaço – e se estende por toda a cidade, em é justamente “A balada
do Senhor: o circuito
diferentes trajetos. O termo “quebrada” traz uma conotação tanto de per-
gospel na metrópole” e
tencimento como de perigo, e um convite para pichar na quebrada do sua autora, Ariana Rums-
outro é visto como um gesto amistoso. tain, que a apresentou
Assim, portanto, o circuito da pichação é constituído pelo “point” cen- como trabalho de conclu-
tral, pelos “points” regionais, pelas quebradas, pela galeria e pelos eventos, são para a disciplina de
“Pesquisa de Campo em
sendo que o “point” da Vergueiro é o local de articulação desse circuito e
Antropologia”, em 2004,
de partida para vários trajetos. E é mesmo verdade que o significado das desenvolveu o trabalho de
pichações é ininteligível para quem não é do pedaço, pois, como os pró- campo no âmbito da li-
prios pichadores afirmam explicitamente, eles não querem se comunicar nha de pesquisa “Dinâ-
com todo mundo, mas apenas entre si: as inscrições são para aqueles que mica religiosa na região
metropolitana de São
“sabem ler o muro”.
Paulo”, coordenada por
Ronaldo de Almeida, do
Fechando o circuito projeto CEM – Centro
de Estudos na Metrópo-
Por limitações de espaço, não puderam ser incluídos os resumos de duas le (Cebrap).
pesquisas: uma sobre o circuito de festas e espaços de danças de jovens 13. A autora é Adla Bour-
evangélicos e carismáticos (estes últimos ligados à Igreja Católica), que, a doukan e o título da pes-
não ser pela menção explícita de termos bíblicos ou de referências a santos quisa, também realizada
no âmbito da disciplina
nas letras das músicas, em nada se diferenciam de qualquer outra “balada”
“Pesquisa de Campo em
da noite paulistana12. A outra é sobre os góticos e voltou-se para a presença Antropologia”, é “Carpe
desse grupo na internet, por meio de listas de discussão e revistas eletrôni- noctem: góticos na
cas que constituem o que a autora denomina “pedaços eletrônicos”13. internet”.

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

A primeira coisa que as etnografias mostram, quando lidas em conjunto,


é que o circuito engloba as demais categorias, e que estas aparecem não de
forma independente, mas combinadas, de modo a captar a complexidade
das práticas culturais estudadas. Pôde-se perceber que a aplicação das cate-
gorias deu-se, assim, de uma forma inovadora: em vez do uso pontual de
uma ou de outra, o que ocorreu foi a tentativa de captar a articulação entre
várias delas, permitindo que cada grupo fosse visto de forma mais abran-
gente e em relação com outros. Não bastava, por exemplo, identificar al-
gum pedaço dos góticos ou a mancha do forró universitário: suas manifesta-
ções e o uso que fazem da cidade se apresentam na forma de estratégias e
escolhas mais amplas. Ademais, esses grupos não podem ser vistos de forma
independente, fechados em seus redutos ou confinados a algumas áreas,
pois nos trajetos pela urbe eles estabelecem uma gama mais variada de cone-
xões e contatos.
Essa é a dinâmica dos circuitos de jovens: nem pulverizados, ou isolados,
nem à deriva na cidade. Assim, passou-se das categorias consideradas indi-
vidualmente (pedaços, manchas, trajetos etc.), para arranjos que articulam e
hierarquizam duas ou mais delas em padrões estáveis, reconhecíveis: em al-
guns casos, regimes de trocas entre diversos atores sociais e, em outros, pa-
drões de inserção no espaço e circulação por ele, ou de uso de equipamen-
tos, de freqüência a pontos de encontro e até de ocorrências de conflitos.
Em muitos estudos sobre jovens, a cidade – tomada como pano de
fundo para suas práticas culturais – é apresentada como um cenário
indiferenciado para seus fluxos ou então atomizado, repartido em frag-
mentos; em ambos os casos, como um ambiente inóspito para as formas
mais amplas de troca e de comunicação. Ora, o que os protagonistas das
diferentes práticas descritas neste artigo evidenciam é a ocorrência de for-
mas de uso do espaço não limitadas a uma inscrição local, nem soltas ao
sabor da movimentação sem rumo pela cidade. De pouco adiantaria, para
a análise, enumerar as ditas “tribos” – pichadores, punks, góticos, skatistas
etc. – em uma lista aberta, vinculadas a este ou àquele marco espacial (rua,
beco), ou então flanando de forma aleatória, como nômades sem direção.
Ao contrário, parece muito significativo o que a própria pesquisa de cam-
po revelou: esses grupos se apropriam da cidade e utilizam seus equipa-
mentos de acordo com normas e valores que fundamentam escolhas mui-
to precisas.
Um exemplo, entre outros, pôde ser visto na etnografia dos straight
edges e seus trajetos, que incluem determinados restaurantes vegetaria-

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José Guilherme Cantor Magnani

nos, sorveterias (que não usam ingredientes interditos pelo ideário ve-
gan), lojas de produtos sem agrotóxicos ou conhecidas por seus preços
baixos (o que está de acordo com sua postura anticonsumista), eventos,
casas de shows e centros culturais – às vezes é o Sesc Pompéia ou o Cen-
tro Cultural Vergueiro –, quando se apresentam artistas ou bandas afi-
nadas com seu gosto estético-musical. Isso é um “arranjo”, um conjunto
de escolhas nada aleatório e que se concretiza em trajetos elaborados e
trilhados de forma coletiva.
Além do mais, os straight edges mantêm padrões de troca com os Hare
Krishnas (o elemento em comum é a opção por uma alimentação sem in-
gredientes de origem animal) e com os anarquistas (identificam-se com
suas propostas políticas, lêem sua literatura), e o fazem em alguns pontos
específicos – que podem ser considerados “enlaces” –, onde se articulam
circuitos diferentes, como mostrou Bruna Mantese em seu estudo. Ou seja,
aquilo que numa visão apressada, “de fora”, podia apresentar-se como mais
um exemplo de contatos eventuais, reforçando o estereótipo de exotismo
associado a esse grupo, na verdade tem sua lógica e razão de ser, pois se
coaduna com os princípios que regem o ethos dos straight edges.
O mesmo ocorre com os “japas” e os b. boys, cada qual com seu circuito:
o “point” da estação de metrô Conceição, contudo, é um “enlace” na
intersecção entre ambos, por sinal bastante alheios um ao outro. Nesse
“point” comum, onde estabelecem um padrão hierarquizado de trocas,
cada qual cultiva seu pedaço, conforme pôde ser visto na etnografia de
Renata Toledo, Paula Pires e Fernanda Noronha.
E assim por diante com os góticos, os pichadores, os evangélicos e/ou
católicos identificados com o estilo gospel, os jovens instrumentistas, os
forrozeiros, a turma da balada black, os cybermanos, os descolados etc.: to-
dos têm seus próprios circuitos, mas circulam – com os devidos cuidados –
por “points” de outros grupos que funcionam como nós de uma rede mais
ampla; são trajetos conhecidos, podendo até haver “treta” em razão da pre-
sença não desejada ou inoportuna nos pedaços de outros. Nada, portanto,
de um comportamento tido como espontâneo, livre e solto, há sim regula-
ridades, ações de conseqüências previsíveis, como foi possível constatar em
cada uma das etnografias apresentadas.
Assim, com base em dados sobre essa movimentação – regime de tro-
cas, passagens por circuitos afins e até conflitos entre alguns grupos –, é
agora possível sugerir um quadro classificatório em torno de dois eixos:
relações de aproximação e de evitação.

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

Relações de aproximação

1.Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, e também por afinidade
de interesse específico: é o caso dos evangélicos de distintas denomina-
ções em eventos gospel ou entre evangélicos e jovens católicos de orien-
tação carismática.
2. Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, mas com diferenças de
interesse específico. Por exemplo: pichadores/skatistas/hip-hop: o vi-
sual, os gostos musicais e até as gírias utilizadas são parecidas, mas cada
qual se dedica a uma prática diferente; outro exemplo é a relação entre
trances e adeptos da música tecno.
3. Por afinidade de interesse específico, mas com diferenças de estilo de
vida e/ou classe social: japas (street dance) e b. boys (break); os “descola-
dos” e cybermanos, nas raves; straight edges e Hare Krishnas; straight
edges e anarquistas; jovens negros (para os quais a balada black é lugar de
afirmação) e jovens brancos (que freqüentam os espaços dessas baladas
porque curtem a black music).

Relações de evitação

1. Sem enfrentamento: “selecionados” versus “baianada de chinelo”, na


mancha da Vila Olímpia, pondo às claras o preconceito; jovens
instrumentistas versus música comercial, que detestam, mas com a qual
são obrigados a entrar em contato por razões de trabalho e sobrevivên-
cia; forrozeiros “pé-de-serra” versus forró eletrônico; forró comercializa-
do versus forrozeiros “das antigas”.
2. Com enfrentamento: carecas versus straight edges; carecas versus góticos;
pichadores de grifes rivais, em razão de “atropelos”.

14.Em princípio, isso


Esse é um esquema provisório, surgido a partir da leitura das etnografias
seria mesmo de esperar,
pois seus recortes com- em conjunto, mas mostra que, não obstante o investimento em termos et-
binam sempre dois ele- nográficos em cada uma delas, em busca da especificidade de seu arranjo, é
mentos: um grupo de possível transcender as particularidades e aspirar a modelos mais gerais.
atores sociais claramen- Por último, cabe mencionar que, além do emprego de uma ou mais
te identificados por si-
categorias em cada etnografia14, houve identificação de novos termos em
nais de pertencimento
e sua inserção e/ou cir- seu uso nativo. Foi o que ocorreu com point, rolê, quebrada e cena. Alguns
culação no espaço ur- deles aparecem na fala de vários dos grupos estudados (como point, cena,
bano. rolê); outro, quebrada, aparece em um grupo particular, o dos pichadores,

200 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

que, ademais, dão um conteúdo específico ao termo rolê – uma saída cole-
tiva para pichar em determinado ponto da cidade. Alexandre Barbosa, au-
tor dessa etnografia, aponta algumas características de quebrada: esse ter-
mo alude tanto a uma forma de pertencimento bastante semelhante ao
que se verifica em pedaço, como traz uma conotação de perigo, associada à
periferia.
Dessa forma, quebrada pode ter duas leituras: uma que aponta para a
distância, as carências, as dificuldades inerentes à vida na periferia, mas
também a que permite o reconhecimento, a exibição de laços de quem é
dessa ou daquela localidade, bairro, vila. A alusão ao perigo, por sua vez,
traz, surpreendentemente, uma conotação positiva, pois não é para qual-
quer um aventurar-se pelas quebradas da vida. É preciso “humildade”,
“procedimento”, estar relacionado, e esse sentido está presente entre pi-
chadores, nas letras de rap, nas falas de seguidores das várias modalidades
do hip-hop, como uma forma de valorização de seus estilos de vida, supe-
rando a estigmatização da pobreza, da delinqüência e da violência geral-
mente associadas à periferia.
O termo point, que aparece em várias etnografias, é empregado sempre
que se quer referir a um único equipamento, geralmente de grande porte e
ocupado por vários grupos, servindo como “enlace” entre eles, como a
Galeria do Rock, a Galeria Ouro Fino, o Centro Cultural São Paulo, o
Sesc Pompéia, a estação de metrô Conceição etc.
Com relação ao termo cena, cabe uma primeira aproximação com cir-
cuito, categoria com a qual guarda algum paralelo: ambos supõem um re-
corte que não se restringe a uma inserção espacial claramente localizada.
No caso do circuito, ainda que seja constituído por equipamentos físicos
(lojas, clubes), inclui também acesso e freqüência a espaços virtuais como
chats, grupos de discussão e foruns na internet, ademais de eventos e cele-
brações. Como já foi assinalado, o que distingue circuito de mancha é o fato
de o primeiro não apresentar fronteiras físicas que delimitam seu âmbito de
sociabilidade. Cena, entretanto, apesar de compartilhar com o circuito essa
característica de independência diante da contigüidade espacial, é mais
ampla que ele, pois denota principalmente atitudes e opções estéticas e
ideológicas, articuladas nos e pelos circuitos. Se estes são formados por
equipamentos, instituições, eventos concretos, a cena é constituída pelo
conjunto de comportamentos (pautas de consumo, gostos) e pelo universo
de significados (valores, regras) exibidos e cultivados por aqueles que co-
nhecem e freqüentam os lugares “certos” de determinado circuito. Em

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Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

suma, pode-se “freqüentar” o circuito, mas “pertence-se” a tal ou qual cena;


enquanto aquele alude à rede, esta tem como referente os atores sociais,
suportes dos sinais de pertencimentos e escolhas no próprio corpo, na rou-
pa, no discurso; um é identificável na paisagem, enquanto a outra se mani-
15. Cabe ressaltar a dife- festa nas atitudes15.
rença entre esse entendi-
mento do termo “cena” Conclusão: as modulações do espaço público
e o dado por Helena
Abramo em seu pionei-
ro Cenas juvenis: punks e As etnografias apresentadas neste artigo não apenas mostraram algumas
darks no espetáculo urba- formas por intermédio das quais os jovens se relacionam entre si e com a
no (1994). Nesse traba- cidade, mas também permitem pensar, de uma maneira geral, como os
lho, a autora dá a “cena” diferentes atores sociais se apresentam no espaço urbano, circulam por ele,
um sentido mais próxi-
usufruem seus equipamentos e, nesse processo, estabelecem padrões de
mo à idéia de espetácu-
lo: “Prefiro usar o termo, troca e encontro no domínio público.
presente na literatura in- Diferentemente do que muitas vezes ocorre em análises nas quais a opo-
glesa, de estilos espetacu- sição público versus privado é tomada como princípio classificatório, não se
lares. A idéia do espeta- pode reduzir as diferentes formas de suas destinações e ocupações com base
cular permite ressaltar o
nessa dicotomia, como se ela operasse de forma unívoca: na realidade, tanto
que para mim constitui
um como outro termo apresentam nuanças e modulações. Se se toma, por
o núcleo central desses fe-
nômenos juvenis: a idéia exemplo, “casa e rua” como representações concretas dessa dicotomia, vê-se
de uma encenação, como que “casa” admite gradações; em seu domínio, é possível distinguir varan-
atuação para levantar pro- da/sala/quarto/cozinha/quintal como diferentes posições entre os pólos pú-
blematizações e provocar blico/privado: a sala, por exemplo, é o espaço mais público do interior da
reações” (p. 148).
casa (cf. Da Matta, 1979) E, às vezes, a rua vira casa, como bem mostraram
Carlos Nelson Ferreira dos Santos et al. (1985). Penso, contudo, que não se
trata de um continuum, com pontos fixos, mas de posições numa relação;
perder de vista esse caráter relacional da oposição significa reificá-la, tor-
nando-a, por conseguinte, inoperante como princípio classificatório.
O mesmo ocorre com “rua”: apesar de seu caráter emblemático, lugar
por antonomásia da realização do valor “público”, não lhe esgota o senti-
do. Nem se pode decretar o desaparecimento ou retração desse valor no
contexto das grandes cidades contemporâneas, sob o argumento de a rua
ter-se tornado inóspita, em algumas circunstâncias, para o convívio ou
circulação. Ou por ter sido substituída por outras variantes:

A própria escala de uma megacidade impõe uma modificação na distribuição e na


forma de seus espaços públicos, nas suas relações com o espaço privado, no papel
dos espaços coletivos e nas diferentes maneiras por meio das quais os agentes (mo-

202 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

radores, visitantes, trabalhadores, funcionários, setores organizados, segmentos


excluídos, “desviantes” etc.) usam e se apropriam de cada uma dessas modalidades
de relações espaciais. Para além da nostalgia pela “velha rua moderna” de Berman
(1989, p. 162) ou do “balé das calçadas” de Jane Jacobs (1992, p. 50), certamente
haveria que se perguntar se o exercício da cidadania, das práticas urbanas e dos
rituais da vida pública não teriam, no contexto das grandes cidades contemporâ-
neas, outros cenários: para tanto, é necessário procurá-los com uma estratégia ade-
quada (Magnani, 2002, p. 15).

As categorias sugeridas para pôr em prática essa estratégia apontam para


outras formas de realização do espaço público, diferentes das usualmente
associadas com a idéia tradicional (e restritiva) de rua. Circuitos, trajetos,
manchas e até pedaços (estes com seus laços mais particularistas, ao estilo de
comunidade) constituem distintas modulações de uso e desfrute do espa-
ço público: são diferentes versões da “rua” como suporte do atributo “pú-
blico”. Cada um desses arranjos corresponde a uma forma específica de se
expor, estabelecer laços, marcar diferenças, fazer escolhas, colocar-se, en-
fim, na paisagem urbana diante dos outros e em relação a eles. A experiên-
cia dos vínculos que essas categorias descrevem não se restringe ao interior
de grupos fechados e a espaços guetificados, protegidos, mas é, em vários
graus (e com todas as ressalvas que determinados fatores de ordem estru-
tural impõem às condições de vida em cidades do porte de São Paulo),
metropolitana, cosmopolita.
E como já é de praxe, ao término de cada artigo, livro ou coletânea volta-
dos para questões urbanas, surge a famosa dicotomia “antropologia na ou da
cidade” (às vezes com a inescapável obrigação de filiar-se a uma ou a outra
dessas alternativas) – quem sabe não se poderia arriscar e... ficar com as duas?
Com mais exercícios como os que foram apresentados neste artigo, clara-
mente identificados com a perspectiva de uma antropologia na cidade – por
seus alcances, recortes etc. –, mas articulados com perguntas mais gerais so-
bre a dinâmica urbana contemporânea, talvez seja possível caminhar com
mais segurança em direção a uma antropologia da cidade, que já não pode
encerrar-se nos limites de suas fronteiras político-administrativas.

novembro 2005 203


Os circuitos dos jovens urbanos, pp. 173-205

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204 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


José Guilherme Cantor Magnani

Resumo

Os circuitos dos jovens urbanos


Este artigo apresenta os resultados de um trabalho sobre o tema dos jovens e suas
práticas culturais e de lazer, redes de sociabilidade e relações de troca (e também de
conflito) no contexto urbano da cidade de São Paulo. Após a apresentação e a discus-
são dos termos “tribos urbanas” e “cultura juvenil”, proponho outra denominação,
“circuitos de jovens”, para a abordagem do tema. Em vez da ênfase na condição de
“jovens”, que supostamente remete a diversidade de manifestações a um denominador
comum, a idéia é privilegiar sua inserção na paisagem urbana por meio da etnografia
dos espaços por onde eles circulam e onde se encontram, e das ocasiões de conflito e
dos parceiros com quem estabelecem relações de troca. Com isso, busca-se articular
dois elementos presentes nessa dinâmica: os comportamentos e os espaços, instituições
e equipamentos urbanos. O que se pretende é chamar a atenção (1) para a sociabilida-
de, e não tanto para pautas de consumo e estilos de expressão ligados à questão geracio-
nal, e (2) para as permanências e as regularidades, em vez da fragmentação e do
nomadismo.
Palavras-chave: Circuitos de jovens; Cultura juvenil; Metrópole; Etnografia urbana.

Abstract

Youngsters and their routes in town


This article presents the results of a research on youth and their cultural and leisure
practices, sociability networks and exchange relations (as well as those of conflict) in
the context of urban São Paulo. After introducing and discussing the terms “urban
tribes and juvenile culture”, I propose another term, “juvenile circuits” to deal with
the theme. Instead of emphasizing the fact that they are youths, which would suppos-
edly link a diversity of manifestations to a common denominator, the idea is to high-
light their insertion in the urban scenario through an ethnography of the spaces where
Texto recebido e apro-
they circulate and meet, the occasions where there is conflict, and the partners with vado em 9/9/2005.
whom they establish exchange relationships. By adopting this approach, I intend to
José Guilherme Cantor
articulate two elements that are present in this dynamic: the behaviors and the spaces,
Magnani é professor-
institutions and urban equipment. The idea is to call the attention to (1) sociability doutor do Departamen-
and not to consumption and styles of expression linked to the generational issue, (2) to de Antropologia da
to the permanence and regularity rather than fragmentation and nomadism. USP, coordenador do
Keywords: Youth circuits; Juvenile culture; Metropolis; Urban ethnography. Núcleo de Antropolo-
gia Urbana (NAU/USP)
e membro da comissão
editorial da Revista de
Antropologia. E-mail:
jmagnani@usp.br

novembro 2005 205


Juventude brasileira, entre a tradição
e a modernidade
Hebe Signorini Gonçalves

O individualismo tem sido afirmado como marca da sociedade contem-


porânea. A ele se submeteriam todos os protagonistas sociais, em particu-
lar os que vivem e circulam nas grandes metrópoles, açodadas pela compe-
tição e pelo consumo. Segundo esse modelo de análise, a sociedade do espetáculo,
para usar o termo cunhado por Guy Debord, impõe subjetividades e forja
modos de pensar, sentir e agir, sobretudo entre os jovens, segmento etário
tido como o mais vulnerável aos apelos do individualismo. A juventude,
na visão clássica, é entendida como “uma categoria social gerada pelas ten-
sões inerentes à crise do sistema” (Foraccchi, 1972, p. 160); estudos con-
temporâneos reafirmam seus excessos pulsionais (cf. Souza, 2005) como
motores da construção das formas pelas quais o jovem se apresenta à socie-
dade. A primeira visão acentua o conflito e a busca pela experimentação; a
segunda encaminha a postura individualista e narcísica, considerada típica
da sociedade e da juventude contemporâneas.
O interesse pela juventude desponta de tempos em tempos, mas parece
contaminado sempre por esses motores. As crises e os excessos, os conflitos
e as explosões que a eles se seguem, acompanham a história da preocupa-
ção social e acadêmica com a juventude. Os anos de 1920 presenciaram a
explosão desse interesse na razão direta da comoção gerada pela turbulên-
cia social em Chicago; naquela época, toda uma geração de jovens italia-
nos, judeus, irlandeses e afro-americanos tornou-se objeto de estudos da
Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade, pp. 207-219

sociologia, em busca de uma resposta às indagações acerca de possíveis


“implicações entre juventude, violência, criminalidade e desorganização
1. A associação entre ju- social urbana” (Zaluar, 1997, p. 18)1. Premidas nos anos de 1920 pelas
ventude e criminalidade lutas das gangues, nos anos de 1950 pela explosão demográfica nas urbes e
inspirou políticas públi-
mais recentemente pelos elevados índices de disseminação das doenças
cas também no Brasil,
sexualmente transmissíveis, as ciências humanas privilegiaram o exame da
onde “as primeiras esta-
tísticas sobre a crimina- juventude sob a ótica do negativismo.
lidade juvenil já anun- Os excessos juvenis, tomados como impulso da desordem urbana, co-
ciavam seu aumento” locaram em movimento esforços de disciplinarização. Associadas aos com-
(Santos, 2004, p. 216). portamentos disfuncionais, as pulsões da juventude tornaram-se foco da
Ao registrar essa curiosa
assepsia social que queria o controle e a correção dos vícios, e nesse percur-
constatação, a autora
oferece indícios de que so as ciências reforçaram ao longo dos anos a percepção de que boa parte
também no Brasil a preo- das mazelas sociais poderia ser creditada na conta da juventude e de seus
cupação com a juventu- anseios de diferenciação. Firmou-se no imaginário social a associação entre
de se calca em intentos a juventude e as grandes questões de cada tempo: no século XXI, quando
de regulação social.
grassam as preocupações com o individualismo exacerbado e a criminali-
dade crescente, o jovem emerge como individualista e responsável, em
grande parte, pela criminalidade urbana.
O vínculo entre juventude e criminalidade, estabelecido pelo funciona-
lismo nos anos de 1920, pode ser identificado ainda hoje em textos que
falam da modernidade, da globalização e da violência na vida das metró-
poles, propugnando um modelo de controle da criminalidade pautado
pela atenção aos pequenos delitos e aos jovens transgressores. Os textos de
Wacquant (2001) ilustram bem o modo como o controle social persegue,
ainda hoje, o ideal funcionalista.
Mas a multiplicidade de vivências, a diferença no desenho das cidades
e as formas díspares de organização comunitária, sobretudo no Brasil, não
autorizam supor a hegemonia de modelos, nem do ponto de vista da cri-
minalidade juvenil – esta mais questionada por dados que demonstram
seus equívocos –, nem do ponto de vista da preponderância do indivíduo
narcísico e desenraizado. Como nossos jovens vêem a si mesmos? Como
lidam com suas dificuldades, e de quais estratégias e laços sociais lançam
mão para ascender ao mundo adulto?

***

Começam a despontar algumas críticas à hegemonia do modelo do


sujeito marcado pelo individualismo. Questionando a natureza totalizan-

208 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Hebe Signorini Gonçalves

te dessa representação, Amorim (2002) argumenta que o individualismo


equivale ao mito no mundo clássico, pois orienta e organiza percepções
de mundo, numa denúncia de que ele faz circular representações sociais
que contribuem para produzir o que anuncia. Mais radical é Duarte
(1983), para quem o individualismo poderia ser considerado a religião
do mundo contemporâneo.
Segundo Boaventura Souza Santos, os fenômenos correlatos da globali-
zação não dão conta das questões mais prementes com as quais se batem as
sociedades periféricas 2. Nas ditas sociedades centrais, a globalização sucede 2. De acordo com San-
a um Estado forte, capaz de organizar a cultura e de oferecer ao indivíduo tos (1997), essa expres-
uma referência institucional, portanto pública. Esse modelo serve às na- são aplica-se a nações
como Portugal e Brasil,
ções européias, mas não a Portugal, nem tampouco ao Brasil, países em
onde as relações entre
que o espaço doméstico tinha e tem um forte poder de regulação social; sociedade civil, Estado
em ambos, é o doméstico que ancora o público e supre muitas de suas e mercado se regem se-
funções (cf. Santos, 1997). No Brasil, a família – e a cadeia de relações que gundo hierarquias pou-
se estrutura em torno dela – ainda é uma forte referência da subjetividade, co suscetíveis de globa-
lização.
sobretudo entre as camadas mais pobres da população. Como já mostrou
Sarti (1996), as cadeias migratórias articulam-se em torno de relações de
parentesco e amizade tanto no que diz respeito à busca pelo trabalho como
na eleição dos locais de moradia.
Admitindo que os laços de parentesco falam da tradição cultural e con-
trapõem-se aos padrões pós-modernos, seria preciso admitir aqui uma per-
manência da tradição, tornando tensos os apelos da modernidade.
Ao descrever a vida urbana, referindo-se ao município de Curitiba,
Sanchez (2001) destaca sua multiplicidade irredutível de sentidos. Lendo
a cidade como um território de disputas simbólicas, de jogos e discursos
em permanente confronto, a autora marca a impossibilidade de reduzi-la,
e a seus cidadãos, a uma única definição. Do mesmo modo, Castro (2004,
p. 24) descreve a urbe como a geografia do múltiplo e do variado, lugar
que acolhe uma “coletividade de indivíduos singulares na qual todos têm o
direito de buscarem suas vias de expressão pessoal”. Referindo-se mais di-
retamente às vivências da juventude, Pais (2003) acentua o cruzamento
das trajetórias de vida que a cidade proporciona, sucessivamente aproxi-
mando e afastando estranhos, tecendo cadeias de relações que ele chama
de interconectividade típica da juventude. Mas se é verdade que o jovem
experimenta, circula, troca de lugares e de afetos, é preciso reconhecer
também que ele organiza essas trocas segundo a lógica própria com que
persegue os sentidos na cidade. Como lembra Carrano:

novembro 2005 209


Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade, pp. 207-219

Até mesmo nos grupos com forte identificação gregária, onde as trajetórias dos su-
jeitos se cruzam intensamente, existem processos que fazem com que os seus mem-
bros se distanciem por outras redes de significados, configurando as variadas possi-
bilidades de vínculos sociais que podem ser tramados nas cidades (2001, p. 16).

Os centros urbanos brasileiros, marcados pelas enormes distâncias so-


ciais, põem em contato territórios informados pelo simbólico e permeados
pelo econômico. Nesse particular, nossa geografia urbana impõe experiên-
cias que diferem de qualquer cidade das sociedades centrais. A disparidade
de renda, a presença ou ausência das benfeitorias sociais e a maior ou me-
nor dificuldade de acesso às benesses são os elementos mais visíveis da rede
de significados que o jovem deve aprender a decodificar. A convivência
com o outro, na interconectividade das histórias vividas, mostra que uns
têm acesso amplo ao conjunto de benfeitorias sociais, outros renunciam a
elas e alguns se apropriam daquelas que lhes parecem indispensáveis. As-
sim, o jovem é chamado a construir ativamente as redes de significado, sob
pena de sucumbir aos apelos do estranho e aos perigos da cidade. Nessa
posição, que é necessariamente ativa, há de haver um nucleamento de sen-
tidos passível de identificação. Como o jovem mapeia os territórios urba-
nos e com base em que premissas se move entre eles?
A visibilidade mais ou menos explícita da distância entre os diversos
grupos sociais que convivem no meio urbano – e as formas como essas
distâncias são preenchidas – não é um problema menor, já que toca a
temática da regulação. Castro (2001) argumenta que a ocupação da cidade
por crianças e jovens só é bem-vinda quando feita nos limites da ordem
prevista pelo adulto, que submete e controla o ir-e-vir do jovem pelas
cidades. Para a autora, a regulação também contém seus excessos, e ela
interpreta como agressão e violência o que é busca de sentido e vontade de
participação. A pichação, com a qual o jovem quer imprimir sua marca
pessoal às ruas da cidade, e a zoação, o desafio do outro por meio da galhofa
e do desacato, são exemplos de atitudes comuns aos jovens, que, se con-
têm um viés de agressão, são também formas de reivindicação: “[...] o
chamamento do outro, para que preste atenção e se volte para aquele que
zoa, que reclame, que tome uma posição e que ponha limites. Na verdade,
zoar pode se tornar uma forma desesperada e última de estabelecer víncu-
lo” (Castro, 2004, p. 121).
Esse atravessamento de sentidos, em que o desejo de diferenciação do
jovem se confronta com os anseios de regulação e controle próprios da or-

210 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Hebe Signorini Gonçalves

dem social instituída e adulta, ganha contornos típicos numa sociedade em


que a regulação se exerce a partir do doméstico. Diante da tibieza das insti-
tuições, cabe à família, e àqueles que lhe são próximos, promover em pri-
meira instância a regulação da conduta. Como a família dará conta dessa
função reguladora cujo alcance deve exceder o doméstico?

O jovem fala de si

Em pesquisa coordenada por Castro et al. (2005), 1.300 jovens fo-


ram entrevistados na região metropolitana do Rio de Janeiro3. Entre ou- 3. Os resultados são apre-
tros aspectos, eles foram indagados acerca de quais seriam, em seu en- sentados em Castro et al.
tender, os principais problemas da juventude, e quais as formas de (2005). No presente tex-
to, são explorados ape-
enfrentá-los.
nas alguns dos itens in-
Os resultados mostram que as questões relacionadas à violência, à dro- vestigados. São também
ga e ao tráfico despontam como os principais problemas citados. Na des- discutidos dados parciais,
crição dos jovens, é a associação violência-droga-tráfico a resposta mais relativos a uma das co-
significativa. Observe-se que não se trata de problemas isolados que se munidades estudadas, o
bairro de Bom Retiro, no
potencializam, mas de uma única questão expressa em três vertentes indis-
município de Duque de
sociáveis, constituindo uma unidade discursiva. No entender dos jovens Caxias. Esta comunida-
entrevistados, violência-droga-tráfico constitui um problema porque im- de é destacada porque
põe um risco real – a ameaça à segurança pessoal – e uma limitação simbó- constitui um núcleo onde
lica – representada no sentimento do medo que conforma os modos de o tráfico de drogas não é
atuante e não domina as
viver e circular na cidade.
relações sociais.
Não há como escapar: polícia e traficantes aparecem como faces do mes-
mo problema; amigos de antes ingressam na marginalidade e não podem
mais compartilhar espaços nem tampouco histórias de vida; freqüentar os
bares, os pontos de encontro, é atitude que requer um esmiuçar constante
dos riscos envolvidos; a ida à escola deve considerar, a cada dia, se é possível
ir, ficar e voltar. A praça, que nas comunidades mais pobres é o lugar da
vida social, nem sempre está disponível para a brincadeira, o namoro, o
encontro com os amigos. Assim descrita, a vida nas comunidades emerge
como o lugar de uma forma bastante peculiar de socialização, em que será 4. Todas as frases e ex-
necessário ao jovem exercitar a percepção, ficar esperto4 para escapar das pressões em itálico ao
inúmeras armadilhas que as trocas sociais oferecem. É preciso resistir à ten- longo deste item e do
próximo são transcritas
tação do ganho fácil, empreender um esforço da vontade para aplicar-se nos
das entrevistas e corres-
estudos e formar um capital pessoal que mais adiante, transpostos os mui- pondem aos termos em-
tos obstáculos, possa vir a garantir um emprego que permita ao jovem apre- pregados pelos jovens e
sentar-se à sociedade, finalmente, como adulto. por seus familiares.

novembro 2005 211


Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade, pp. 207-219

O destaque aos dados coletados na comunidade de Bom Retiro serve


para desmistificar a crença de que a violência decorre das atividades ligadas
ao tráfico de drogas. Ali não há referência ao tráfico, mas, ainda assim, a
droga é o problema mais citado; ela se conecta à violência pela via subjetiva,
não pelas disputas de quadrilha pelo mercado da droga. No entender dos
jovens residentes nessa comunidade em particular, o uso de drogas é uma
escolha do sujeito, condicionada em grande parte pelos problemas que ele
não quer ou não pode enfrentar: porque tem a cabeça fraca ou porque, dian-
te das dificuldades com os pais em casa, elegeu a droga como uma resposta fácil
para seus problemas. O julgamento moral que condena o uso da droga será
aplicado, assim, às conseqüências que ela acarreta para o sujeito: a droga
impede a dedicação aos estudos, esforço necessário na construção de um
futuro estruturado com base no emprego sólido e nas relações afetivas está-
veis. A droga compromete as relações de amizade e vizinhança, pois, droga-
do, o jovem se sente superpoderoso e quer matar todo mundo. Ao deslocar o
tráfico, pode-se assim pôr em relevo as escalas de valor que orientam certas
percepções do jovem: o núcleo de sentido em suas falas é a cabeça fraca, que
afasta o jovem do emprego e da vida em família, e introduz a violência na
esfera de suas relações pessoais. Mais que a segurança pessoal, preocupa o
comprometimento de projetos de futuro que têm como rumo e norte a es-
tabilidade econômica e afetiva. Consciente das dificuldades a superar para
realizar esses projetos, o jovem deixa transparecer que só a cabeça forte o
levará até lá.
Não se trata de negar o risco das ruas, reconhecido como real. Todos os
entrevistados fazem referência a uma violência que é difusa, que está em
todo lugar, que alimenta seus medos e condiciona suas escolhas. O enfren-
tamento dessa dificuldade específica pede a ação dos setores públicos, em
particular da polícia, instância que identificam como a responsável pelo
controle da criminalidade urbana. Mas, incontinenti, apontam a polícia
como parte do problema, pois ela é corrupta, entra nas comunidades pra
esculachar, estabelecendo uma tensão que potencializa o medo e a violên-
cia, em vez de reduzi-los.
Na ausência do público como fonte de suporte para a vida social até
mesmo no que diz respeito ao controle da criminalidade, o jovem ressen-
te-se da ausência do Estado. Diante de um poder público que não tem feito
muita coisa, refluem sobre a família todas as expectativas de suporte e apoio.
Não faço a mínima idéia de com quem ele [o jovem] pode contar hoje além
da família, resume um entrevistado.

212 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Hebe Signorini Gonçalves

Na frase a família é tudo, repetida por um contingente expressivo de


jovens entrevistados, desenha-se a chave da construção de suas subjetivi-
dades. O apoio da família, vital para ampliar a chance de realizar os proje-
tos de vida, é praticamente o último reduto de seus sonhos. É um apoio
que se traduz na presença – conversar, acompanhar a vida dos jovens e ser
companheiro nos momentos difíceis – e também no esteio econômico que
permite atravessar a fase da vida em que não podem se sustentar.
Vê-se, assim, que o jovem brasileiro atribui à família expectativas que
nas sociedades centrais são compartilhadas por outras instâncias sociais; a
retração do público reforça o privado e faz com que repousem no sujeito e
no núcleo familiar as forças de agregação social. Nesse sentido, não sur-
preende que as escolhas sejam interpretadas sob um viés voluntarista – o
porque quer – orientado pelo caráter construído nas relações privadas. Não
surpreende tampouco que, convidados a enumerar as pessoas que mais ad-
miram, os jovens construam uma lista encabeçada pela mãe, descrita como
uma lutadora. A idealização da figura materna, a idealização da vida fami-
liar como esteio do próprio futuro e as expectativas lançadas sobre a família
como fonte de apoio são fatores que produzem dois efeitos: em primeiro
lugar, abrem caminho para que os valores cultivados pelos pais sejam acei-
tos como pilares do caráter; já vimos, nas expressões cabeça forte e em seu
contraponto, a cabeça fraca, como os jovens indicam que compartilham
esses valores. O segundo efeito fala da carga de expectativas lançadas sobre a
geração passada, que faz das mães e dos pais as âncoras isoladas dos proces-
sos de socialização. Como a família brasileira lida com elas?

O família fala de si, e do jovem

Dados de pesquisa acerca da violência familiar no Brasil sugerem que o


espaço doméstico não é caixa de ressonância, mas lugar organicamente arti-
culado ao social, recebendo sua influência e produzindo efeitos sobre ele
(cf. Gonçalves, 2003).
O discurso de trinta mães, entrevistadas aproximadamente na mesma
base geográfica dos jovens cujos depoimentos foram mencionados no item
anterior, indica o uso amplo da punição corporal com propósitos discipli-
nares. As entrevistadas defendem essa prática quando regulada por limites
ditados pela cultura. A essas formas punitivas, aplicadas segundo os parâ-
metros que as regulam, as mães recusam dar o rótulo de violentas. Elas
discordam, assim, da interpretação dominante que atribui ao uso da força

novembro 2005 213


Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade, pp. 207-219

física um efeito pernicioso na formação e no desenvolvimento de crianças


e jovens.
Para efeito deste texto, é importante destacar os motivos que, do ponto
de vista das entrevistadas, justificam o uso da punição corporal. Adotada
como recurso extremo, ela é empregada em situações nas quais a criança
ou mesmo o jovem, apesar de advertidos, insistem na desobediência ou no
desrespeito aos pais ou mesmo aos mais velhos com os quais mantêm rela-
ções de parentesco ou vizinhança. As mães entendem que a obediência à
hierarquia entre as gerações é o pilar nas relações sociais, pois é o respeito
ao próximo que produz o assujeitamento necessário à transmissão de valo-
res e à formação do caráter.
Mais preocupadas com a violência na rua do que com os excessos disci-
plinares domésticos, as mães entrevistadas nomeiam uma violência que
está em todo lugar e faz com que se mate por um real, ou por nenhum. Elas
invocam a atração que a marginalidade fora de controle exerce sobre o
jovem e o apelo contemporâneo pela afirmação da singularidade e da dife-
rença como armadilhas da convivência entre estranhos, características in-
contornáveis da vida na cidade. Reconhecendo que é impossível negar a
liberdade, e que seus filhos cedo ou tarde serão confrontados com os desa-
fios da cidade, as mães entendem que a tarefa de educar tem como propó-
sito central a boa formação, o caráter, a cabeça forte.
Essas expressões condensam sentidos: a boa formação não se restringe à
obediência no espaço doméstico, mas fala principalmente do comporta-
mento adequado na rua, que abarca as relações respeitosas para com os mais
velhos, a escolha adequada das amizades, o empreendimento de esforços na
escola, a esquiva dos grupos envolvidos com drogas, criminalidade ou
qualquer forma de violência. A relação dos problemas a serem evitados in-
dica a preocupação das mães com a reconstrução da sociabilidade no espaço
público. Indica, além disso, que assumem como sua essa tarefa; a frase de
uma das entrevistadas não deixa margem a dúvida: as pessoas que estão na
rua, violentando, atacando as pessoas, ela tem uma criação, né, então começa
em casa. Se você cria seus filhos na paz, eles vão sair lá fora e não vão atacar
ninguém.
Haveria elo de ligação entre a criminalidade urbana e a violência fami-
liar? Com base em dados produzidos nos Estados Unidos, Gelles (1997)
afirma que tanto o comportamento violento como a conduta criminal são
conseqüências comprovadas do abuso sofrido na infância. No Brasil, essa
associação é posta em dúvida pelas mães que entrevistei. No primeiro mo-

214 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Hebe Signorini Gonçalves

mento, elas negam qualquer conexão com base em suas histórias pessoais:
se fosse assim – declarou uma das mães –, eu também tinha sido bandida. A
seguir, elas invertem a relação causal e afirmam que a punição corporal,
aplicada quando requerida, contribui para forjar o caráter, tarefa domésti-
ca por excelência: abandonado, o mundo ensina. [...] se a gente largar assim
demais, é o mundo que vai ensinar. E o mundo vai ensinar errado.
Não deixa de soar estranha essa crença na possibilidade de controle da
desordem urbana a partir do doméstico. Durante longo tempo, essa justi-
ficativa para a defesa da punição corporal foi interpretada como mero ar-
gumento para validar a prática dos castigos físicos, essa sim condenável.
Mas o julgamento moral precipitado dessa linha de argumentação tem
furtado ao exame os fatores que informam a inclinação da família brasilei-
ra pelo uso da punição corporal. Trata-se de um procedimento que não é
gratuito, nem espontâneo.
Ele tem origem nos preceitos higienistas, que associaram a disciplina
doméstica ao controle dos sujeitos no espaço público. Lopes Trovão pro-
clamava a infância como o período em que se forja “a gênese da humani-
dade mais perfeita”. Belisário Penna via na educação doméstica o disposi-
tivo capaz de assegurar a ordem sem o uso da força. Para Lourenço Filho,
a educação doméstica – mais até que o Estado – seria capaz de “guiar as
liberdades” das crianças de modo a evitar “escolhas passionais e capricho-
sas” (cf. Corrêa, 1997). Repetindo esses princípios à exaustão, o higienismo
ensinou que a lógica do universo familiar e a lógica da cidade se fundem
numa ligação de simbiose e dependência da qual a relação mãe-filho é
adubo e semente (cf. Costa, 1989). Até os anos de 1930, o higienismo
incutiu a crença de que à mãe cabe evitar o ócio, a delinqüência e o vício
da rua. Hoje, setenta anos mais tarde – ou no espaço de duas gerações –, as
mães flagram-se isoladas nessa tarefa, sem contudo renunciar a ela.
Sem contar com a orientação de ninguém, confiando no vivido para
tomar decisões cruciais no cotidiano, as mães oferecem os elementos que
permitem compreender a permanência da racionalidade higienista. Em
vez da família moderna acossada pelos técnicos, sitiada pelo saber da ciên-
cia e destituída da função de educar, típica das sociedades centrais (cf.
Lasch, 1991), a mãe brasileira queixa-se sobretudo da solidão, da falta de
amparo e de assistência. Assistindo impotente ao crescimento da crimina-
lidade, ela crê que pode proteger seus filhos das ameaças do público, e
acredita na possibilidade de disciplinar o social a partir do doméstico. En-
tende-se assim por que a família brasileira se mantém como elemento cen-

novembro 2005 215


Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade, pp. 207-219

tral nos processos de regulação social. A despeito da eficácia questionável


das práticas educativas, é mister reconhecer que elas empreendem um es-
forço em nome do coletivo. A despeito da condenação moral dessas práti-
cas, amplamente calcadas na punição corporal, é mister reconhecer tam-
bém que seus filhos, ao ecoar suas frases e expressões e ao anunciar a família
como único suporte com que contam, contribuem para referendar sua
crença e imprimir-lhe algum grau de eficácia.

Interconectividade

Norbert Elias já disse que, em estágios mais primitivos do desenvolvi-


mento social, quando o Estado ainda não se estruturou de modo a cum-
prir com as atribuições que a modernidade lhe destina, o indivíduo cultiva
laços mais estreitos de parentesco. Isso ocorre porque, na ausência do Esta-
do, a família é a unidade capaz de prover ajuda e proteção nas situações de
necessidade. Na ausência da intermediação do Estado, a família arca com
a responsabilidade de transmitir os valores sem os quais uma sociedade
não pode ser entendida como tal. Não se trata de discutir se os métodos,
públicos ou privados, são ou não adequados ao propósito de adaptar a
criança à vida em sociedade; não se trata tampouco de discutir o grau de
satisfação e felicidade do indivíduo nesse processo. A discussão dos laços
entre indivíduo e sociedade visa, antes, a compreender os processos pelos
quais um e outra se conformam mutuamente (cf. Elias, 1994).
O texto de Norbert Elias, cuja versão original data de 1987, não se
batia ainda com as questões colocadas pela sociedade pós-moderna. Em
escritos datados dos anos de 1950, Hannah Arendt antecipava as questões
propostas por Elias e afirmava que o social, quando visto como locus de
proteção, segurança e acolhimento dos afetos, é destituído de seu caráter
político. Discutindo a aplicação do pensamento de Arendt à cidade de São
José dos Campos neste início de século, Cesar (2001) mostra que a violên-
cia, ao trazer a ameaça e o perigo aos nossos centros urbanos, força um
comportamento que quer evitar tudo o que é estranho, bloqueando a
alteridade e despolitizando o mundo.
A destituição do político, por outro lado, é apontada por Almeida e Al-
meida (2004) como produto de um Estado que continuadamente se exime
da distribuição das benesses sociais. A própria relevância que o senso co-
mum atribui à violência se conecta ao abandono da coisa pública, que ter-
mina por encarregar os sujeitos de prover por si mesmos a justiça e a segu-

216 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Hebe Signorini Gonçalves

rança. Nas comunidades pobres, que não dispõem de recursos políticos ou


econômicos para suprir a ausência do Estado, esse enfrentamento da vio-
lência dar-se-á a partir da cadeia relacional, em que a família é unidade
basilar.
Não surpreende, portanto, que os jovens entrevistados, grande parte
deles oriundos de comunidades pobres, anunciem a família como sua mais
relevante referência identitária. Ao fazê-lo, eles indicam que reconhecem e
valorizam os esforços dos pais em prol de sua geração. Ao enaltecer a garra
dos pais no esforço cotidiano pelo sustento da casa e dos membros do nú-
cleo familiar, os jovens constroem canais de troca no espaço doméstico e
indicam certa receptividade ao conjunto de valores da geração anterior, o
que pode ser indício de sua disposição em compartilhá-los.
No discurso dos pais, não foram buscados elementos de aceitação ou
recusa do respeito e da obediência, valores que eles descrevem como cen-
trais da tarefa educativa. Mas o reconhecimento dos jovens pelas figuras
paterna e materna, elevadas à condição de ideal, e seus próprios projetos de
vida, estruturados em torno da constituição do núcleo familiar, também
idealizado, autorizam supor que a família segue sendo o pólo de aglutinação
social no Brasil, neste início de século XXI. O encontro dos discursos na
expressão cabeça fraca, entendido como a falta de caráter que abre cami-
nho para a marginalidade e a violência, mostra que há intercâmbio no
discurso dessas gerações.
A solução de grupo, o enfrentamento dos problemas da juventude a par-
tir de uma base coletiva que se constrói em torno da família, indica a possi-
bilidade de que, nos centros urbanos nacionais, a interconectividade a que
se refere Pais (2003) incorpore amigos e conhecidos que se agregam ao lon-
go das histórias de vida. Mas a centralidade dos valores familiares, ampla-
mente reconhecida, sugere a possibilidade de que essa interconectividade
tenha um fio condutor: as relações de parentesco. Aqui, elas são a resposta
possível à destituição política.

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Resumo
Juventude brasileira entre a tradição e a modernidade
Dados colhidos em duas pesquisas distintas, ambas conduzidas na região metropoli-
tana do Rio de Janeiro, são comparados com a intenção de compreender as trocas
sociais entre as gerações. No primeiro estudo, a análise de discurso dos pais visava a
descrever e entender os recursos usados na criação dos filhos e os valores cuja trans-
missão é considerada essencial. No segundo, jovens foram indagados sobre os prin-
cipais problemas da juventude e as formas de enfrentá-los. Vistos em conjunto, esses
dados mostram que a família ainda ocupa um lugar importante na socialização de
crianças e jovens, pondo em questão a extensão em que a noção de individualismo
pode ser aplicada à juventude brasileira.
Palavras-chave: Juventude; Família; Individualismo.

Abstract
Brazilian youth, between tradition and modernity

Data provided by two different surveys, both conducted in Rio de Janeiro, are com-
pared in order to analyze the relations between parents and their children. The first
survey provides data on how parents raise their children and which values they believe
important to sustain their actions. The second survey provides data on which are the
main problems youth people have to face, and how they deal with them. Brought
together, they show that family values are still very important to children and youth.
In conclusion, the paper indicates that individualism may not explain the main ques-
tions on Brazilian youth.
Keywords: Youth; Family; Individualism. Texto recebido e apro-
vado em 28/9/2005.
Hebe Signorini Gonçal-
ves é doutora em Psico-
logia e membro do Nú-
cleo Interdisciplinar de
Pesquisa e Intercâmbio
para a Infância e Ado-
lescência Contemporâ-
neas, do Instituto de Psi-
cologia – UFRJ. E-mail:
hebesg@ism.com.br

novembro 2005 219


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos

Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

Introdução 1. Neste sentido, consul-


tar o texto de Carmem
Leccardi publicado nes-
De acordo com o Relatório Mundial sobre a Juventude de 2005, elaborado
te número de Tempo So-
pela ONU, existem hoje, no mundo, 1,2 bilhão de pessoas que estão em cial.
situação de risco, ou seja, 18% da população mundial. Considerando a
faixa de idade entre 15 e 24 anos, mais de 200 milhões vivem com menos
de um dólar por dia e 88 milhões não têm emprego (cf. Rodrigues, 2005b,
p. A20). Dados como esses têm sustentado argumentos que enfatizam a 2. A pesquisa, elaborada
vulnerabilidade dessa fase da vida, em que os jovens estão expostos aos por Iram Jácome Rodri-
perigos representados pelo crime, pelas drogas, pela exclusão. Torna-se gues, consistiu na apli-
cada vez mais comum o uso de um referencial teórico que, na análise da cação de questionários
aos trabalhadores das se-
sociedade contemporânea, a concebe como uma “sociedade do risco”, na
guintes montadoras:
qual a dificuldade de elaborar projetos para o futuro atingiria especialmen-
Volkswagen, Mercedes-
te os jovens. Para estes, a única certeza talvez seja a da imprevisibilidade na Benz, Ford e Scania, no
construção de uma trajetória em direção à idade adulta1. Assim, as trajetó- município de São Ber-
rias de vida dos jovens são sempre associadas à falta de linearidade, de nor- nardo do Campo. Ao
malidade e, principalmente, de homogeneidade. todo, foram 432 ques-
tionários respondidos
Com o objetivo de estabelecer um contraponto a essas análises, toma-
pelos trabalhadores, a
mos como referência um grupo de jovens que, aparentemente, apresentam partir de uma amostra es-
trajetórias socialmente normalizadas e lineares. Neste artigo, apresentare- tatística elaborada para as
mos os dados de pesquisa2 realizada com trabalhadores da indústria auto- quatro empresas.
Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

mobilística na região do ABC, com destaque para os incluídos na faixa


3. De uma maneira ge- etária de 19 a 29 anos3. Ainda que a pesquisa não tivesse como preocupa-
ral, os estudos sobre ju- ção central a questão do jovem trabalhador, foi possível desagregar 71
ventude, no Brasil, to- empregados da amostra de trabalhadores do chão de fábrica que se encon-
mam como referência o
travam naquele intervalo de idade. É sobre esse conjunto de operários que
intervalo de 15 a 24 anos.
Entretanto, especialmente este estudo se debruça, realizando uma análise comparativa entre o perfil
em textos europeus, tem socioeconômico desses jovens metalúrgicos e o de seus colegas de trabalho
sido comum o prolonga- com 30 anos de idade ou mais, que representam uma amostra de 358
mento do limite superior funcionários, já que três dos respondentes omitiram a idade.
desse intervalo, chegan-
Este estudo também dialoga com outros autores que realizaram pesqui-
do a superar até mesmo
os 30 anos, como, por sas com jovens trabalhadores em indústrias do setor metalúrgico (cf. Cor-
exemplo, em Pais (2001). rochano, 2001; Souza Martins, 2001, 2004; Tomizaki, 2005), no sentido
4. Consideramos, neste
de mostrar que, embora trabalhando com jovens inseridos no mesmo se-
artigo, que os 71 jovens tor industrial, existem diferenças significativas entre eles quanto às condi-
de nossa amostra consti- ções de vida e de trabalho que os cercam. Nesse sentido, o destaque será
tuem uma “unidade ge- dado à heterogeneidade que caracteriza a juventude4.
racional”, no sentido dado As transformações do perfil socioeconômico dos trabalhadores meta-
por Mannheim (1982, p.
lúrgicos das montadoras do ABC, ocorridas nas últimas décadas e discuti-
89), de que é possível
perceber “certa afinidade das em pesquisas recentes (cf. Rodrigues, 2002), tornam-se mais explícitas
no modo pelo qual to- quando se comparam os mais velhos com os mais jovens quanto às condi-
dos se relacionam com ções de vida e a suas opiniões sobre o local de trabalho. Essa comparação é
suas experiências comuns relevante porque a maioria dos jovens ingressou no mercado de trabalho
e são formados por elas”.
quando as transformações já estavam em curso, isto é, no final da década
Entretanto, isso não nos
impede de perceber a di- de 1990 e início desta. Isso significa que esses jovens não participaram do
versidade existente entre período mais importante (os anos de 1980 e grande parte da década se-
as “juventudes”. guinte) da luta pela melhoria das condições de trabalho e, portanto, não
5. Em 1990, eram doze vivenciaram as principais transformações desse processo.
fabricantes de veículos Nos últimos quinze anos (1988-2002) – à exceção dos anos de 1990
que contavam com de- e 1991 –, ocorreu um crescimento continuado no conjunto do setor auto-
zessete fábricas, em seis motivo brasileiro no que tange à produção de veículos. O número de
municípios do Brasil.
unidades fabricadas por ano passou, de pouco mais de 1 milhão em 1988,
No ano de 2002, exis-
tiam dezoito fabricantes para cerca de 1,8 milhão em 2002, ou seja, um aumento da ordem de
e 27 fábricas, instaladas 80%. Ao mesmo tempo, em 1988 havia 113 mil postos de trabalho e,
em dezoito municípios quinze anos depois, esse número caiu para 82 mil. Vale dizer, mesmo
(cf. Do holerite às com- com o aumento de uma dezena de novas fábricas de veículos na década
pras, Subseção Dieese-
de 1990, houve um decréscimo de 31 mil trabalhadores nas montadoras
ABC, junho 2003).
do país nesse período5. Isto é, nesse espaço de tempo, foram perdidos
aproximadamente um quarto dos postos de trabalho nas empresas

222 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

automotivas. Já em 2004 a indústria automobilística bateu um recorde


histórico no país, com uma produção total de 2.205.873 veículos, o que
representou um resultado quase 21% acima do ano anterior, 1.827.038
unidades6. 6.Cf. Carta da Anfavea,
Esses números são ainda mais dramáticos para o ABC, quando sabe- São Paulo, jan. 2005.
mos que o grande corte dos postos de trabalho ocorreu nas empresas já
instaladas no país. Isso porque as novas montadoras estão organizadas nos
marcos dos novos modelos de produção e organização do trabalho, o que
lhes possibilita uma produtividade bastante elevada com um número ex-
tremamente reduzido de empregados e permite, nas fábricas novas, alcan-
çar índices compatíveis com os padrões internacionais. De todo modo,
quando juntamos as montadoras antigas e recentes no país, no período
analisado, ocorre um salto de produtividade: de nove veículos por traba-
lhador/ano para 22 veículos por trabalhador/ano. Um crescimento sem
precedentes na indústria automobilística brasileira.
Em larga medida, o processo de reestruturação industrial foi o res-
ponsável pela diminuição abrupta do número de empregados nas mon-
tadoras e empresas de autopeças no ABC já a partir do final dos anos de
1980, tendência que se acentuou durante a década seguinte. Pela queda
da participação da região na produção total de veículos no país, assim
como no total de postos de trabalho nesse setor, isso significou um au-
mento expressivo do desemprego regional e o deslocamento territorial
da cidade dos automóveis da outrora “República de São Bernardo” para
múltiplos espaços pelo Brasil afora. Foram esses acontecimentos – acres-
cido da chamada guerra fiscal entre várias unidades da federação – que
levaram os metalúrgicos do ABC a fazer uma reflexão sobre suas práticas
cotidianas, suas demandas, suas necessidades, e a proporem novas for-
mas de atuação na tentativa de (re)construção das relações de trabalho,
em novas bases, especialmente no espaço da indústria automotiva. Essa
inflexão ocorreu nos anos de 1990. Foi a mudança do confronto para a
negociação, do discurso de fora para dentro da empresa e de uma ação
que privilegiava a negociação a partir da empresa e, ao mesmo tempo,
uma política sindical voltada à organização dos trabalhadores no interior
das unidades de produção, em particular das montadoras. Foi esse o pe-
ríodo que inaugurou a busca do consenso e do entendimento nas rela-
ções capital/trabalho, além do desenvolvimento de um conhecimento
técnico, extremamente atualizado, sobre a gestão e a organização do tra-
balho, da produção e dos modelos de produção, entre outros (cf. Rodri-

novembro 2005 223


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

gues, 2005a). Diante do exposto, três questões dirigiram a análise a res-


peito dos jovens metalúrgicos: Quem é o jovem que trabalha hoje nas
montadoras? Esses jovens trabalhadores possuem o mesmo perfil socioe-
conômico de seus companheiros mais velhos e com mais tempo de casa?
As representações que esses jovens trabalhadores possuem de seu local de
trabalho se equiparam às de seus colegas mais velhos?

Os atores em cena e a região do ABC

O ABC paulista, em particular o município de São Bernardo do Cam-


po, possui algumas peculiaridades que o tornam ímpar. Ao mesmo tempo
em que há um amplo desenvolvimento industrial e, por essa razão, existe
uma grande concentração de trabalhadores na região, ocorre também um
tipo de ação sindical que se diferencia, em muito, das práticas mais co-
muns em nosso país. Um dos principais pontos da prática que se desenvol-
veu no ABC paulista, desde os anos de 1970, se relaciona, de um lado,
com a capacidade sindical de dar respostas aos problemas que surgem no
cotidiano da produção e, de outro, com sua organização no interior das
empresas. Com uma ação amplamente amparada nos temas que surgem
no cotidiano da produção, esse sindicalismo deu voz às demandas do ope-
rariado em seus locais de trabalho. Em uma região de alta concentração
industrial, onde a grande maioria dos operários trabalhava na indústria
automotiva do município, cerca de 60% da mão-de-obra estava concen-
trada nas montadoras ali instaladas, o que foi um fator decisivo para a nova
forma de atuação trabalhista que estava sendo construída no ABC paulista
na década de 1970 e fundamental para os desdobramentos dessa nova
prática sindical (cf. Rodrigues, 1997, p. 66).
No caso da experiência brasileira, o final dos anos de 1970 foi crucial
para os novos atores sociais, entre os quais podemos destacar o Sindicato
dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema – posteriormen-
te renomeado como Sindicato dos Metalúrgicos do ABC –, pois naquele
momento essa instituição se notabilizou na esfera pública ao defender a
liberdade e a autonomia sindical, a organização dos empregados nos locais
de trabalho, o fim do controle do Ministério do Trabalho sobre os sindica-
tos, o direito de greve e a negociação direta entre patrões e empregados,
sem a ingerência do Estado, entre outros aspectos.
Analisando a trajetória do sindicalismo no ABC, Comin, Cardoso e
Campos (1997, p. 422) argumentam que ele

224 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

[...] literalmente protagonizou a cena sindical brasileira nos últimos 20 anos, pro-
movendo enormes movimentos grevistas, mas também algumas das experiências
mais inovadoras de negociação coletiva e pactação setorial; rompeu com alguns 7. Muitos autores dedi-
caram-se ao estudo des-
aspectos da estrutura sindical oficial ao iniciar a devolução do imposto sindical aos
se movimento e de seus
trabalhadores e ao recusar os recursos à Justiça do Trabalho para a realização de
desdobramentos. Cf.,
acordos coletivos; encabeçou o movimento de unificação sindical através da funda- por exemplo, Almeida
ção da CUT; encabeçou a unificação da negociação coletiva dos sindicatos dos (1975); Maroni (1982);
metalúrgicos filiados à CUT, consubstanciada na Federação dos Metalúrgicos des- Rainho e Bargas (1983);
sa central; ostenta um índice de sindicalização (hoje em torno de 60% na categoria Sader (1988); Martins
Rodrigues (1990b);
como um todo e chegando a 90% nas montadoras de automóveis) muito superior
Boito Júnior (1991);
ao da média nacional, exibindo forte penetração, através de comissões de fábrica, Antunes (1988, 1991);
nas grandes empresas da região. Não resta dúvidas de que esse sindicalismo logrou Mangabeira (1993);
enraizar-se na sua base num país onde esse enraizamento é, formalmente, desne- Souza Martins (1994);
cessário como lastro e representação sindical. Galvão (1996); Soares
(1998); Blass (2001);
Véras de Oliveira
O conjunto dessas ações resultou, de maneira paulatina, em uma nova (2002); Paranhos (1999,
forma de atuação no campo das relações trabalhistas, que posteriormente 2002). Para uma crítica
ficou conhecida como novo sindicalismo7. A passagem de uma luta extre- da noção de “novo sin-
mamente defensiva e localizada para uma ação mais ampla, no final dos dicalismo”, ver Santana
(1999).
anos de 1970 e início da década seguinte, quando os conflitos começaram
a eclodir por todo o território nacional, com grandes greves por categorias, 8. Para uma discussão
por fábricas, e mesmo greves gerais, significou uma mudança na ação sin- sobre sindicalismo e re-
lações de trabalho no
dical no Brasil8. O momento mais representativo dessa nova atuação se
período inaugurado
expressou nas paralisações por fábrica, que, iniciando-se em São Bernardo, com as greves de 1978
em maio de 1978, estenderam-se, em seguida, por praticamente todo o até o segundo mandato
Brasil (cf. Rodrigues, 1997). de FHC, ver Oliveira
O Grande ABC9 é uma das regiões mais ricas do país. Sua renda per (2002, pp. 221-340).
capita, medida em dólar, era de 13.054 em 2000. Apenas para efeito de 9. O grande ABC é for-
comparação, a renda per capita brasileira é de 3.620 dólares, ao passo que mado pelos municípios
de Santo André, São
no estado de São Paulo ela é de aproximadamente 6 mil dólares e na região
Bernardo, São Caetano,
da Grande São Paulo, de cerca de 6.400 dólares10; a renda per capita na Diadema, Mauá, Ribei-
região do ABC é maior que a da Espanha (12.209) e um pouco inferior à rão Pires e Rio Grande
do Reino Unido (14.170). Além disso, o Produto Interno Bruto dos mu- da Serra.
nicípios que compõem o Grande ABC é superior ao PIB individual de 10. Segundo a Revista
dezenove estados da federação11. ABC Brazil, (2): 6, fev./
No tocante aos dados sobre emprego na região, os municípios que pos- mar. 2000.
suíam o maior número de postos de trabalho em 1999 eram São Bernardo 11.Revista ABC Brazil,
do Campo, com 38,1% do total; Santo André, 23,8% ; Diadema, 15,1% e (2): 6, fev./mar. 2000.

novembro 2005 225


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

São Caetano do Sul, com 13,8% (cf. Grande ABC em números, p. 102).
Vale dizer, do conjunto dos sete municípios que fazem parte da região, os
postos de trabalho em São Bernardo equivaliam a aproximadamente 40% e
as quatro cidades acima detinham, juntas, 90,8% dos empregos.
Ainda no que tange ao emprego, chama a atenção o fato de que, no pe-
ríodo que vai de 1989 a 1999, o emprego na indústria caiu de 52% dos
postos de trabalho para apenas 30%; já o emprego no comércio, no mesmo
intervalo de tempo, subiu de 12% para 22%, ao passo que os serviços foram
de 36% para 48% (cf. Idem, p. 94). Nesses onze anos, ocorreu um cresci-
mento significativo do emprego no setor terciário, passando de 48% para
70%, e uma queda acentuada do emprego industrial. Em parte, esse pro-
cesso de perda de postos de trabalho no setor industrial na região pode ser
percebido quando se compara a participação relativa da produção de veícu-
los no total nacional entre 1975 e 1998. Naquele ano, a produção regional
foi de 803.785 veículos, o que equivalia a 86,4% da produção nacional, que
chegou a 930.235 veículos. No entanto, em 1999, a região produziu apenas
535.741 autoveículos, contra 1.585.630 fabricados no país, isto é, a parti-
cipação do ABC na produção nacional caiu para 33,8% (cf. Conceição,
2001, p. 64).
A queda na participação da produção de veículos e do emprego indus-
trial na região ganha mais relevância quando se considera que, em 1999, o
complexo da produção automotiva significava aproximadamente 40% do
valor adicionado e 27% da mão-de-obra ocupada na indústria do Grande
ABC (cf. Idem, p. 10).
Alguns fatores favoreceram a diminuição, tanto relativa como absoluta,
do trabalho industrial no ABC. Em primeiro lugar, é um processo que
acompanha uma tendência internacional – decorrência da chamada globa-
lização –, presente principalmente nos países centrais; em segundo lugar, é
resultado da ampla reorganização produtiva nas últimas duas décadas, da
guerra fiscal e das mudanças na política macroeconômica do último decê-
nio. O caso da indústria de autopeças na região é, nesse aspecto, exemplar:

Ao longo da década [de 1990] a indústria de autopeças foi praticamente recons-


truída, de acordo com a nova estratégia de compras de peças liderada pelas monta-
doras. Esta estratégia envolveu contratos de fornecimento global e não mais apenas
nacional ou local; a hierarquização dos fornecedores em níveis; a instalação de
unidades de fornecedores geograficamente próximas das montadoras; o suprimen-
to das linhas de montagem de veículos em forma de módulos de componentes

226 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

completos e a redução do número de empresas fornecedoras (cada montadora re-


duziu o número de seus fornecedores diretos, de milhares para algumas centenas).
Estas medidas foram facilitadas pelas políticas de liberalização de importações –
com destaque para o Regime Automotivo – e pela guerra fiscal, na segunda metade
da década (Conceição, 2001, pp. 193-194).

Dessa forma, no último decênio, as mudanças que já vinham se desenvol-


vendo de maneira paulatina na região explodiram de vez: a vocação do ABC se
transformou. De um pólo eminentemente industrial e berço da produção
automotiva, passou a ser um espaço regional de alta concentração do setor
de serviços, como sói ocorrer, de resto, em regiões, estados e/ou municí-
pios mais desenvolvidos, em muitas partes do mundo.
Segundo Klink (2001, p. 199), “na década de 1990 o Grande ABC
atravessou um momento difícil, com queda de postos de trabalho nos seto-
res-chave, como o setor metalúrgico, químico, metal-mecânico e automo-
bilístico, que é mais acentuada do que a redução de emprego nesses setores
no estado de São Paulo como um todo”. No entanto, para esse autor,

[...] muito mais que o reflexo de uma transformação mais estrutural do tipo daquela
que ocorreu em economias regionais estrangeiras, os ganhos que a região obteve em
determinados setores de terciário, como, por exemplo, os serviços técnicos e profis-
sionais e o comércio varejista, relacionam-se com o caráter tardio de desenvolvi-
mento desses setores no Grande ABC em relação à região metropolitana. Mesmo
assim, a relativa participação de setores como os de serviços técnicos e profissionais
no conjunto do emprego do Grande ABC está ainda longe dos patamares da Capi-
tal, cuja pujança nesses setores permanece incontestável (Idem, ibidem).

São essas as condições que hoje norteiam o trabalho e a vida dos meta-
lúrgicos que fizeram parte da pesquisa. Sem levá-las em consideração, fica
difícil entender as atitudes e as orientações desses trabalhadores, especial-
mente dos jovens que, nascidos entre os anos de 1973 e 1982, tiveram sua
trajetória pessoal e profissional marcada por esses acontecimentos.

A pesquisa

Uma das questões que orientaram a pesquisa, e que é também central


neste artigo, diz respeito à possibilidade de apreensão das atitudes e das
opiniões de um grupo de operários que trabalham em empresas multina-

novembro 2005 227


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

cionais do ramo automobilístico. Como observa Martins Rodrigues (1970,


p. XII),

[...] as atitudes dos operários ante o trabalho fabril e a sociedade industrial não são
as mesmas em todas as épocas e em todos os países. Embora seja possível encontrar
certos componentes “universais” do comportamento operário, que decorrem da
posição que a classe ocupa no sistema de produção e na sociedade inclusiva (defesa
de seus interesses profissionais e econômicos, de sua autonomia organizatória etc.),
as formas de organização sindical e política, assim como as ideologias, têm variado
segundo as características do processo de industrialização, do modo particular de
formação da classe, do sistema político imperante etc.

Nesse caso, analisando o grupo estudado, vamos observar percepções


diferenciadas daquelas que foram encontradas por Martins Rodrigues (1970,
1990a) ou Rodrigues (1990). Se tomarmos como exemplo o ambiente
externo às empresas, vamos observar transformações que há vinte ou trinta
anos não poderíamos imaginar, tanto no plano nacional como internacio-
nal. De outra parte, o interior da firma, palco de tantos conflitos no últi-
mo século e locus, por excelência, da relação capital/trabalho, também pas-
sou por profundas alterações. Esses fatores sem dúvida influenciaram
fortemente a percepção dos trabalhadores sobre uma vasta gama de ques-
tões. Somem-se a isso as mudanças no interior das próprias classes traba-
lhadoras. No setor em questão, a predominância é de empregados de ori-
gem urbana, segunda geração industrial, nascidos na capital do estado ou
na Grande São Paulo, com um alto grau de instrução em termos compara-
tivos, com mais idade e mais tempo na companhia e, por isso mesmo,
mais qualificados e com maior experiência de trabalho na indústria. Além
disso, mais sindicalizados e com tradição de participação política.
Os trabalhadores do segmento automotivo, em especial aqueles que
estão alocados nas quatro principais montadoras no município de São
Bernardo do Campo, possuem um diferencial significativo quando com-
parados com outros empregados de ramos distintos do setor industrial
brasileiro: têm salários bem mais altos que a média nacional, mesmo se
comparados com os que vigem em outras empresas automotivas do país,
têm muito tempo de trabalho na companhia e uma situação de emprego
bastante estável para os padrões nacionais. Além disso, nesse caso especí-
fico, esses trabalhadores possuem uma capacidade de pressão política
muito grande, significativa participação sindical construída em todos es-

228 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

ses anos e, em alguma medida, dadas as peculiaridades do sindicato dos


metalúrgicos do ABC, têm conseguido manter uma forte identidade po-
lítica como classe trabalhadora (cf. Rodrigues, 2002). Para usarmos o
termo cunhado por Waterman (1999), expressariam com sua prática um
novo sindicalismo social.
Antonio Candido, em seu livro Os parceiros do Rio Bonito, chama a
atenção para o seguinte aspecto:

[...] não hesitei pois em situar o grupo estudado, tanto na perspectiva histórica,
quanto no complexo de problemas que hoje caracterizam a vida rural de São Pau-
lo. Como o leitor verá, quando falo nos membros do grupo que estudei, estou a
cada momento pensando no caipira, em geral; e, reciprocamente, quando procuro
compor esta abstração metodologicamente útil, a experiência real que a comprova
é, sobretudo, a do grupo que estudei (Candido, 1964, p. 6).

Parafraseando Antonio Candido, poderíamos dizer que quando discor-


remos sobre o grupo de trabalhadores pesquisado estamos, “a cada mo-
mento, pensando” no empregado da grande empresa como tal e, à medida
que discutimos sobre a trajetória das classes trabalhadoras e do sindicalis-
mo brasileiros, o que nos dá a concretude real de sua experiência é, princi-
palmente, o grupo estudado.
Assim, a abordagem metodológica utilizada neste estudo procura de-
senvolver, da mesma forma, portanto, algumas questões relativas ao con-
junto dos trabalhadores da indústria automobilística, a partir do estudo de
um grupo de empregados do chão de fábrica de quatro grandes empresas
do setor automotivo. À parte o contingente de mão-de-obra empregado
nessas fábricas, é importante ressaltar a grande experiência de luta e orga-
nização desses trabalhadores. Desse modo, é um estudo que, em suas ca-
racterísticas mais gerais, pode representar uma tendência indicativa – guar-
dadas as proporções – do que se passa com amplos setores das classes
trabalhadoras em nosso país, em particular no segmento automotivo e,
mais especificamente, com jovens trabalhadores. A mesma abordagem
metodológica poderia ser pensada para a reflexão sobre a ação sindical des-
se grupo.
Os trabalhadores que compuseram a amostra foram selecionados de
um total de 30.866 operários – número de empregados nas montadoras na
base do sindicato dos metalúrgicos do ABC –, dos quais 23.399 são sindi-
calizados (dez. 2002). O grupo estudado representa a espinha dorsal do

novembro 2005 229


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

sindicalismo no ABC e foi a base, desde os anos de 1970-1980, das trans-


formações pelas quais passou o sindicalismo tanto na região como nacio-
nalmente. Assim como, naquela época, foram o ponto de apoio para o
movimento que se convencionou chamar de novo sindicalismo, hoje, com
suas atitudes, orientações e práticas estão escrevendo, quiçá, um novo ca-
pítulo da história do sindicalismo no Brasil.
A pesquisa foi realizada nas quatro montadoras entre março e junho
de 2003. Em média, levou-se um mês para a aplicação em cada empresa.
Como nas quatro firmas a densidade de sindicalização é muito alta, 76%
em média – e, no caso da Volkswagen, esse percentual atinge 85% dos
funcionários –, optou-se por fazer a aplicação dos questionários apenas
12. Esse questionário foi entre os empregados sindicalizados das quatro empresas12. A listagem dos
uma adaptação, para as funcionários sindicalizados foi obtida no sindicato e, a partir disso, ten-
quatro montadoras em
do-se chegado ao número representativo da amostra para cada empresa,
tela, do questionário con-
foi realizado um sorteio aleatório dos trabalhadores que responderiam ao
feccionado pelos colegas
José Ricardo Ramalho e questionário13.
Marco Aurélio Santana
e utilizado com os traba- A juventude metalúrgica
lhadores da fábrica da
Volskswagen de Resen-
Um dos aspectos que chama a nossa atenção na amostra da pesquisa
de, como parte de pes-
quisa comparativa entre realizada nas montadoras é a pouca presença de jovens: apenas 71, ou seja,
o sul fluminense e o ABC 16,4% do total de trabalhadores da amostra. Contudo, outros autores tam-
paulista, que estamos rea- bém têm evidenciado a presença, em maior proporção, de trabalhadores
lizando e que conta com com mais idade nas montadoras do estado de São Paulo. Em 1999, segun-
o apoio do CNPq.
do Tomizaki (2005, p. 146), 75,6% dos trabalhadores do chão de fábrica
13.Para a definição da das montadoras possuíam mais de 30 anos. Na Mercedes-Benz, em 2002,
amostra foi fundamen- a idade média dos trabalhadores era de 38,2 anos e os que estavam na faixa
tal o apoio do colega
dos 15 aos 30 anos eram 2.018 em um total de 9.327 empregados, o que
Heron do Carmo, do
Departamento de Eco- representa 21,6%. Em pesquisa realizada em três empresas metalúrgicas
nomia da USP, especia- com número diferente de trabalhadores, Corrochano (2001) verificou que
lista nessa questão, a a presença de jovens era maior na que tinha 92 funcionários (22%), do
quem agradecemos. que nas de tamanho médio (20%) e grande (11%). O que esses estudos e
outros (cf. Souza Martins, 2001, 2004) têm revelado é que os jovens ope-
rários iniciam sua trajetória profissional geralmente em pequenas indús-
trias, nas quais, muitas vezes, adquirem os conhecimentos e a experiência
que os tornam “empregáveis” em empresas maiores. Trabalhar em uma
montadora, portanto, parece constituir o ápice de uma carreira que, espe-
cialmente no caso dos jovens do sexo masculino, começa muito cedo.

230 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

No que tange ao grupo estudado, é importante ressaltar alguns aspectos:


são jovens trabalhadores empregados nas montadoras do ABC paulista, re-
gião que, como foi assinalado anteriormente, possui um amplo parque in-
dustrial automotivo – o mais antigo do país – e um sindicato que tem
desempenhado um relevante papel na organização dos trabalhadores no
âmbito local, regional e mesmo nacional nos últimos 25 anos. Além disso, é
um grupo com forte tradição operária, geralmente filhos de metalúrgicos e,
nesse aspecto, a segunda ou até mesmo a terceira geração de trabalhadores
industriais. E, dado muito significativo, 45% deles estavam no seu primei-
ro emprego, enquanto 28% já tinham experiência de trabalho na indústria.
À primeira vista, quando comparados com jovens trabalhadores metalúrgi-
cos de outras empresas que não as montadoras ou com jovens trabalhadores
em geral, poderíamos ser tentados a dizer que são privilegiados. De fato,
possuem maior nível de escolaridade e formação profissional, e emprego
estável, com carteira assinada. Além disso, se considerarmos que na região
metropolitana de São Paulo a taxa de desemprego para os jovens de 18 a 24
anos chega a quase 27%, enquanto no total da população é de 17,5%14, 14. Segundo dados refe-
somos levados a afirmar que eles constituem um grupo diferenciado, ao rentes ao mês de julho
abrigo das mazelas que atingem os trabalhadores brasileiros. No entanto, a de 2005, da Pesquisa de
Emprego e Desempre-
despeito, por exemplo, dos salários mais altos e das melhores condições de
go – PED, realizada pelo
trabalho, quando comparado com o restante da juventude trabalhadora, Dieese/Fundação Seade.
nota-se também no interior desse grupo as mesmas inseguranças com rela-
ção ao trabalho que estão presentes naqueles; o fato de terem melhores
condições em termos salariais e/ou de emprego não os afasta muito dos
problemas que são comuns à juventude.
A comparação com os dados das pesquisas realizadas com jovens meta-
lúrgicos por Corrochano e Souza Martins mostra que existe uma maior
semelhança entre eles do que com os jovens entrevistados por Tomizaki e,
obviamente, com os jovens da nossa pesquisa. Os dois primeiros estudos
foram realizados respectivamente no ABC e em Osasco, com jovens de 18
a 24 anos que trabalhavam em indústrias pequenas, médias e grandes (mas
nenhuma com mais de 1.200 empregados na produção), nas quais não
houve mudanças significativas no modo de trabalhar nem mesmo no que
se refere à introdução de inovações técnicas. Os jovens, em sua maioria
não-qualificados ou semiqualificados, aprenderam a executar suas tarefas
no próprio trabalho e são oriundos de famílias com pouca ou nenhuma
tradição operária, que vêem no trabalho na indústria metalúrgica a possi-
bilidade de aprender uma profissão. Tomizaki, por sua vez, entrevistou

novembro 2005 231


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

jovens de 20 a 34 anos, operários de uma montadora, em sua grande maioria


nascidos em municípios da Grande São Paulo, filhos de metalúrgicos e na
quase totalidade solteiros.
Poderíamos também comparar os metalúrgicos que hoje trabalham nas
montadoras do ABC com os da primeira geração de trabalhadores dessas
empresas: eram majoritariamente migrantes vindos de outras partes do país,
notadamente do Nordeste, com baixa escolaridade, sem tradição de traba-
lho na indústria, sem formação profissional, exercendo funções não-quali-
ficadas ou semiqualificadas. Mas, apesar de tudo o que enfrentaram, pode-
se dizer que são trabalhadores vitoriosos, pois ao assumir um lugar nas
montadoras atingiram “um posicionamento social ‘privilegiado’, em ter-
mos de renda, tipo de ocupação, posição no mercado de trabalho, escolari-
dade e qualificação” (Tomizaki, 2005, p. 58).
Enfim, quem são esses jovens trabalhadores, herdeiros dessa tradição?
Conforme as Tabelas 1, 2 e 3, são predominantemente do sexo masculi-
no (96%); se auto-identificam como brancos (79%), negros (7%) e par-
dos (14%); na sua maioria são católicos (66%) e 13%, um percentual
expressivo, se declararam sem religião. Entretanto, esses dados não dife-
rem substancialmente dos resultados da pesquisa “Perfil da juventude
brasileira”, na qual 11% dos jovens se declararam sem religião (cf.
Novaes, 2005, p. 266). Essa mesma autora alerta para o empobrecimen-
to das análises que apressadamente afirmam a indiferença dos jovens
diante da religião. O mais significativo, a nosso ver, é que, quando se
analisa a inserção dos jovens em grupos, o que se observa em primeiro
lugar é a participação em “grupos da Igreja” (Novaes, 2005, p. 264). Em
nossa pesquisa, apenas um terço dos jovens disseram que participavam
em atividades na comunidade, mas, destes, 65% afirmaram que essas
atividades eram relacionadas com a religião.

TABELA 1
Sexo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SEXO

Masculino 95 96

Feminino 5 4
TOTAL 100 100

232 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

TABELA 2
Raça
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RAÇA

Branca 69 79

Negra 6 7

Parda 23 14

Amarela 1 0

Indígena 1 0
TOTAL 100 100

TABELA 3
Religião
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RELIGIÃO

Católica 70 66

Batista 4 4

Assembléia de Deus 3 9

Universal 2 1

Espírita 3 1

Sem religião 4 13

Ateu 0 1

Outras 14 5
TOTAL 100 100

Como sublinhado anteriormente, optamos por mostrar nas tabelas, para


as mesmas questões, a contraposição entre o grupo etário de 19 a 29 anos
e o de mais de 30 anos. Isso, certamente, nos ajuda a compor um panora-
ma mais próximo da realidade e, ao mesmo tempo, explicita as semelhan-
ças e as diferenças entre as faixas etárias.
No tocante ao estado ou região de origem, é interessante observar que
91% nasceram no estado de São Paulo, sendo que, desses, apenas 3% são
originários do interior, como mostram as Tabelas15 4 e 5. Vale dizer, é uma 15.Agradecemos a Ce-
jovem classe operária de origem nitidamente urbana. Quando comparados cilia Pontes pela confec-
ção das tabelas.
com o grupo mais velho de empregados, esses dados tornam-se ainda mais
expressivos: neste caso, apenas 59% nasceram no estado de São Paulo.

novembro 2005 233


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

TABELA 4
Estado ou região de origem
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ESTADO
OU REGIÃO DE ORIGEM

São Paulo 59 91

Sudeste (exceto São Paulo) 9 0

Nordeste 23 4

Centro-Oeste 1 0

Sul 8 5
TOTAL 100 100

TABELA 5
Nascidos no estado de São Paulo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NASCIDOS EM

Capital 27 25

Interior 21 3

Santo André (SP) 23 36

São Bernardo (SP) 12 21

São Caetano (SP) 10 9

Grande SP (exceto SP e ABC) 7 6


TOTAL 100 100

Chama a atenção, por outro lado, o percentual de jovens trabalhadores


que nasceram na região do ABC (66%). Já no grupo com faixa etária mais
elevada, esse total é de apenas 43%. O significado desses dados é realçado
quando vemos que, na pesquisa realizada por Corrochano, 48,6% dos jo-
vens nasceram em outros estados, vindos em grande parte da zona rural,
enquanto apenas 36,1% tinham nascido no Grande ABC. E, mais ainda,
são jovens filhos de migrantes, que deixaram seus lugares de origem sozi-
nhos ou acompanhando a família, entre os anos de 1993 e 1998.
Com relação à situação conjugal, ainda que a maioria seja de solteiros,
o percentual de casados ou vivendo maritalmente aproxima-se de 40%
entre os mais jovens e de quase 90% entre os mais velhos, como mostra a
Tabela 6.

234 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

TABELA 6
Situação conjugal
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SITUAÇÃO CONJUGAL

Solteiro 6 59

Casado ou vivendo maritalmente 89 39

Divorciado 4 2

Viúvo 1 0
TOTAL 100 100

Além disso, conforme a Tabela 7, quase 70% dos jovens não têm filhos e o
restante deles têm de um a dois filhos no máximo. Esses dados são, para os
maiores de 30 anos, de 23% e 44%, respectivamente. De qualquer manei-
ra, é interessante observar que apenas 6% dos funcionários dessas monta-
doras têm mais de três filhos.

7
TABELA
Número de filhos
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NÚMERO DE FILHOS

Sem filhos 9 68

1 filho 23 22

2 filhos 44 10

3 filhos 18 0

Mais de 3 filhos 6 0
TOTAL 100 100

A questão do nível de escolaridade é tratada nas Tabelas 8, 9, 10 e


11, que mostram quem está ou não estudando, onde os trabalhadores 16. É preciso considerar
estudam, se fizeram ou não curso profissionalizante e, em caso afirmati- que, além da aplicação
vo, onde fizeram. Entre os jovens pesquisados, quase 50% estão estu- de parte do tempo re-
servado ao lazer, esses
dando, contra apenas 16% entre os mais velhos. Entre os jovens que es-
trabalhadores ainda in-
tão estudando, mais de 90% estão em escolas privadas, mas também é vestem parte de seus
alto o percentual de trabalhadores acima de 30 anos que pagam por seus salários no pagamento
estudos16. da educação.

novembro 2005 235


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

TABELA8
Empregados que estão estudando
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
EMPREGADOS
QUE ESTÃO ESTUDANDO

Sim 16 47

Não 84 53
TOTAL 100 100

TABELA 9
Rede de ensino em que estuda
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
REDE DE ENSINO

Pública municipal 8 3

Pública estadual 13 6

Particular 79 91
TOTAL 100 100

Por outro lado, a esmagadora maioria dos jovens fez curso profissionali-
zante (82%); já entre aqueles com mais de 30 anos, esse percentual é de
60%. Entre as instituições que ajudaram na formação profissional, o Senai
aparece como a mais importante para os dois grupos estudados (a Tabela
11 permite mais de uma resposta). Vale dizer, o percentual do grupo de
faixa etária menor que está estudando é praticamente três vezes maior que
o do grupo de trabalhadores mais velhos. Além disso, nesse grupo apenas
18% não fizeram curso profissionalizante contra mais do dobro do per-
centual entre os mais velhos (40%). Conclui-se, portanto, que o grupo de
jovens operários tem maior formação profissional e é mais escolarizado,
destacando-se quando comparados com o restante de empregados de faixa
etária mais elevada.

TABELA 10
Curso profissionalizante
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
CURSO
PROFISSIONALIZANTE

Sim 60 82

Não 40 18
TOTAL 100 100

236 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

TABELA 11
Onde realizou o curso profissionalizante
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ONDE REALIZOU O
CURSO PROFISSIONALIZANTE

Empresa 21 0
Escola técnica 36 37
Senai 61 86
Sindicato 9 4

Com relação ao grau de escolaridade, vemos pela Tabela 12 que a maior


proporção de trabalhadores das duas faixas etárias tem o ensino médio
completo. Entretanto, os jovens apresentam um índice maior de escolari-
dade, pois 55% deles têm o curso superior incompleto ou completo17. 17. A pesquisa realizada
por Corrochano (2001)
Entre os mais velhos, apenas 13% atingiram esse nível de ensino. É tam-
mostra uma realidade
bém entre os que têm acima de 30 anos que encontramos trabalhadores muito diferente; nela, os
que conseguiram atingir apenas o ensino fundamental (completo e incom- jovens metalúrgicos apre-
pleto), enquanto na faixa etária de 19 a 29 anos não há nenhum trabalha- sentam nível de escolari-
dor com escolaridade inferior ao ensino médio. dade mais baixo: 22%
tinham ensino funda-
mental incompleto, 15%
TABELA 12
o fundamental comple-
Escolaridade
to, 38% o ensino médio
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
incompleto, 21% ensino
ESCOLARIDADE
médio completo e ape-
Ensino fundamental incompleto 13 0 nas 4% estavam cursan-
Ensino fundamental completo 14 0 do o ensino superior.
Ensino médio incompleto 9 5 18. Comparando os
Ensino médio completo 47 40 anos de 1995 e 2001,
Superior incompleto 7 33 segundo os dados da
Superior completo 6 22
PNAD, observa-se um
crescimento de 38,5%
Pós-graduação incompleta 1 0
para todos os graus de
Pós-graduação completa 3 0
ensino. Os aumentos
TOTAL 100 100 mais significativos foram
nas taxas referentes ao
Esses dados revelam uma condição excepcional dos jovens no que se refe- ensino médio (65,1%)
e ao ensino superior
re à escolaridade. De certa forma, confirmam as informações a respeito da
(88,7%) (cf. Sposito,
redução das taxas de analfabetismo e do aumento da escolaridade média dos 2005, p. 98).
jovens brasileiros de 15 a 24 anos18. Diferentes pesquisas demonstram que,
19. Sposito, analisando
diante do mercado de trabalho cada vez mais exigente, os jovens têm prolon-

novembro 2005 237


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

gado sua permanência na escola e os adultos voltam a procurá-la, demons-


trando, assim, que a mensagem de que é necessário estudar sempre, a fim de
garantir condições que os façam ingressar mais facilmente no mercado de tra-
balho ou permanecer nele, tem sido assimilada pelos trabalhadores. Estudar,
portanto, faz parte de uma estratégia definida pelos jovens e seus pais com
vistas ao futuro, afirmando a crença na educação como um instrumento de
mobilidade social.
De outra parte, a Tabela 13 mostra a escolaridade paterna do grupo de
jovens operários, bem como dos trabalhadores com mais de 30 anos. O que
se observa, nos dois casos, é a tendência à maior escolarização dos filhos
quando comparados com os pais. Mas existem diferenças significativas en-
tre a escolaridade dos pais para as duas faixas etárias, especialmente nos ní-
veis mais baixos e mais altos do ensino. Enquanto 65% dos trabalhadores na
faixa etária acima de 30 anos tinham pais analfabetos (20%) ou com alguns
anos do curso fundamental (45%), para os mais jovens a taxa nesses dois
níveis de ensino é de pouco mais de 30%. Quanto ao ensino fundamental
completo, as taxas praticamente se igualam. É a partir do ensino médio que
as diferenças se acentuam: enquanto somente 8% dos trabalhadores com
mais de 30 anos têm pais com ensino médio completo ou incompleto, 33%
dos jovens têm pais que atingiram esse nível de ensino. E são os pais dos
jovens que apresentam uma presença maior no nível superior de ensino, seja
completo ou incompleto: 10%, contra apenas 2% da outra faixa.

TABELA 13
Escolaridade paterna
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ESCOLARIDADE PATERNA

Analfabeto 20 3
Ensino fundamental incompleto 45 29
Ensino fundamental completo 25 26
Ensino médio incompleto 3 9
Ensino médio completo 5 24
Superior incompleto 1 6
Superior completo 1 4
TOTAL 100 100

A pesquisa não permite avaliar com mais profundidade o significado da


educação e da escola para esses trabalhadores. Fica evidente que, tanto para
os mais jovens como para os mais velhos, houve uma acentuada progressão

238 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

nos níveis de escolaridade, principalmente quando comparados com os de os dados da pesquisa


seus pais. Podemos presumir que isso tem relação com as exigências do “Perfil da juventude bra-
sileira”, destaca que edu-
mercado de trabalho no contexto da reestruturação produtiva, e especifi-
cação aparece como o
camente com a necessidade de corresponder às expectativas das montado- assunto e o tema de
ras. Se considerarmos as pesquisas com jovens metalúrgicos tomadas aqui maior interesse para os
como referência, veremos que a relação dos jovens com a escola é marcada jovens (2005, pp. 109-
por contradições e ambigüidades19. Particularmente no estudo de Corro- 110). Souza (2003), em
pesquisa realizada com
chano (2001), notamos que existe por parte dos jovens o reconhecimento
jovens da última série do
da importância da escolarização, tendo em vista as exigências do mercado ensino médio noturno,
de trabalho, o desejo de buscar conhecimentos e, principalmente, a neces- mostra que esses alunos
sidade de fazer amigos, de conviver com outros jovens. Por outro lado, vêem a escola como um
contudo, afirmam que a escola não prepara para o mercado de trabalho, lugar de repetição e mo-
nem garante um lugar nele. notonia, que oferece um
conhecimento inútil
A pesquisa feita por Tomizaki na Daimler-Chrysler (Mercedes-Benz)
porque distante da rea-
encontrou jovens mais qualificados, a quase totalidade com cursos técnicos lidade, cuja única impor-
do Senai, a grande maioria com curso superior completo ou incompleto. tância é o fornecimento
Mas, tanto para esses jovens como para os da pesquisa de Corrochano, o de um certificado. Ao
trabalho na fábrica não corresponde ao que esperam para o futuro. Para os contrário, o trabalho é o
local onde existe ordem
jovens da Mercedes-Benz, a procura pelo curso superior é motivada pelo
e disciplina, em que efe-
desejo de escapar da condição operária ou, pelo menos, de ascender profis- tivamente se aprende e
sionalmente na empresa. Essa montadora tem a política de financiar em que fornece um sentido
parte os estudos de seus funcionários, mas já está repensando essa prática, para a vida. O trabalho,
pois se verifica um aumento do nível de insatisfação desses jovens operários e não a escola, represen-
ta “o novo, o inespera-
universitários que começam a perceber a impossibilidade de “crescer” den-
do” (p. 137).
tro da empresa20.
Para os jovens entrevistados por Corrochano, estudar, além de consti- 20. Cabe aqui citar Bour-
dieu (1983, p. 115) quan-
tuir um meio para escapar do trabalho na fábrica, figura também como
do diz que convém não
uma garantia de permanência em empregos que, mesmo não oferecendo esquecer que a escola “não
muitas perspectivas de ascensão profissional, garantem a sobrevivência. De é simplesmente um lu-
uma maneira geral, para uma grande parte dos jovens metalúrgicos aborda- gar onde se aprende coi-
dos nessas pesquisas, incluindo a de Souza Martins (2001, 2004), o traba- sas, saberes, técnicas etc.:
é também uma institui-
lho nas fábricas, especialmente aquelas que pagam baixos salários e não
ção que concede títulos,
oferecem boas condições de trabalho, aparece como provisório, como algo isto é, direitos e, ao mes-
pelo qual devem passar nessa fase da vida, enquanto adquirem habilidades mo tempo, confere aspi-
e competências, na escola e no emprego, que lhes permitam ascender pro- rações”.
fissional e socialmente. Mas o que se pode observar é que, cada vez mais,
esse provisório parece se transformar em definitivo e poucos são os que
conseguem escapar da condição operária.

novembro 2005 239


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

No que se refere ao nível salarial (Tabela 14), o percentual de jovens que


estava (na época) na faixa de R$ 1.201,00 a R$ 1.800,00 era, praticamente,
o mesmo entre aqueles que se encontravam na faixa etária de 30 anos ou
mais: 50% a 54%. Em compensação, a proporção de jovens nas faixas sala-
riais inferiores é quatro vezes maior do que os mais velhos, assim como é um
pouco mais que o dobro a porcentagem dos trabalhadores acima de 30 anos
que ganham salários superiores a R$ 3.000,00. Os jovens sobressaem ape-
nas nas faixas intermediárias de salários: 36% deles recebem salários que
vão de R$ 1.801.00 a R$ 3.000,00, contra 29% dos mais velhos.

TABELA 14
Nível salarial
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NÍVEL SALARIAL

Até R$ 600 1 0
De R$ 601 a R$ 1.200 2 8
De R$ 1.201 a R$ 1.800 54 50
De R$ 1.801 a R$ 2.400 18 19
De R$ 2.401 a R$ 3.000 11 17
Mais de R$ 3.000 14 6
TOTAL 100 100

O que esses dados estariam indicando? Como o grupo dos jovens tem
maior qualificação, maior escolaridade formal, seria de se esperar que seus
salários fossem mais altos. Entretanto, considerando os salários acima de
R$ 1.801,00, vemos que as porcentagens de trabalhadores das duas faixas
etárias praticamente se igualam: 43% dos mais velhos e 42% dos jovens aí
se localizam. Para uma comparação mais refinada, contudo, seria preciso
considerar o tempo de trabalho na empresa e, nesse caso, os jovens pode-
riam ter uma vantagem, visto que, mesmo com menos tempo na empresa,
recebem salários praticamente equivalentes aos dos mais velhos.
É importante ressaltar que, da época em que foi realizada a pesquisa até
setembro de 2005, ocorreram três aumentos e/ou reposições salariais. De
acordo com os dados do Dieese, da subseção do sindicato dos metalúrgicos
do ABC, para aqueles que ganhavam até R$ 5.000,00 no dia 1º de setembro
de 2005, o total da reposição salarial chegou a 41,36% nos últimos três anos.
Com relação à situação de moradia, na Tabela 15, chama a atenção o
fato de que aproximadamente 80% dos jovens entrevistados e 85% dos

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Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

mais velhos habitam em moradia própria (já paga ou ainda pagando), o


que diz muito do padrão de vida dos trabalhadores da indústria automobi-
lística. Além disso, é possível supormos que uma parte dos mais novos,
como são solteiros, morem com os pais.

TABELA 15
Situação da moradia
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SITUAÇÃO DA MORADIA

Própria já paga 63 64
Própria ainda pagando 22 15
Alugada 9 11
Cedida de outra forma 4 3
Outra condição 2 7
TOTAL 100 100

No que tange aos bens de consumo, como mostra a Tabela 16, os jovens
trabalhadores das montadoras têm equipamentos domésticos que deno-
tam um padrão de consumo de “classe média”. Nos dois grupos de operá-
rios estudados, um número expressivo deles possui carro, máquina de la-
var, computador etc. O que chama a atenção é que entre aqueles que estão
na faixa etária de 19 a 29 anos, 93% possuem carro, contra 81% entre os
mais velhos.

TABELA 16
Bens de consumo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
BENS DE CONSUMO

Geladeira 99 100
Rádio 98 100
Televisão 98 97
Telefone fixo 96 99
Máquina de lavar roupa 94 93
Carro 81 93
Videocassete 82 87
Telefone celular 52 77
Forno de microondas 71 75
Computador 48 66
Internet 35 55
DVD 15 32
TV por assinatura 21 22

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Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

Outro aspecto que cabe ressaltar é o elevado percentual daqueles que


possuem os itens de consumo considerados mais “modernos” na vida coti-
diana, como internet, telefone celular, TV por assinatura, computador e
DVD; mas, à exceção da TV por assinatura, o consumo desses bens é muito
maior no grupo de menor faixa etária. Levando-se em conta que a pesquisa
foi realizada entre março e junho de 2003, portanto há dois anos e meio,
torna-se surpreendente o percentual de empregados que – à época – pos-
suíam aparelhos de DVD e TV por assinatura.

O trabalho na empresa

Analisaremos em seguida um conjunto de tabelas sobre o trabalho que


é executado na empresa, a avaliação que os trabalhadores fazem dele, bem
como das relações de trabalho. Na Tabela 14, são fornecidas informações a
respeito do tempo de trabalho na empresa, e alguns dados chamam a aten-
ção: no grupo etário mais velho, cerca de 50% têm mais de 16 anos de
casa. Para os padrões brasileiros, esses dados são surpreendentes. Assim
como também é surpreendente o fato de 14% de empregados pertencen-
tes a esse grupo estarem há mais de vinte anos trabalhando na montadora.
De outra parte, no grupo dos jovens, quase 60% têm mais de seis anos de
empresa e nada menos que 21% têm mais de onze anos.

TABELA17
Tempo de trabalho na empresa
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
TEMPO DE CASA

Menos de 5 anos 2 20

6 a 10 anos 18 58

11 a 15 anos 29 21

16 a 20 anos 37 1

Mais de 20 anos 14 0
TOTAL 100 100

Também aqui os dados causam admiração, especialmente quando con-


frontados com pesquisas que revelam outra situação dos jovens no merca-
do de trabalho. Em sua maioria, os jovens empregados nas montadoras

242 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

apresentam uma trajetória mais linear, tendo iniciado suas atividades na


empresa após o curso técnico feito no Senai. Como dissemos anteriormen-
te, quase metade deles está no seu primeiro emprego, enquanto 28% já
tinham experiência de trabalho na indústria, dos quais 16% no setor me-
talúrgico. Os jovens encontrados por Souza Martins (2004) nas metalúrgicas
de Osasco apresentam, diferentemente, uma trajetória marcada por flu-
tuações e descontinuidades, combinando momentos de atividade e de de-
semprego, e o trânsito entre os setores da indústria, do comércio, de servi-
ços e da construção civil. Os dados dessa pesquisa mostram que 72,2%
dos jovens tinham até dois anos de trabalho na empresa e apenas 27,8%
estavam empregados há mais de três anos. A experiência em empregos
temporários, sem carteira assinada, por curtos períodos, permanecendo
geralmente entre três meses e um ano, marca as trajetórias desses jovens.
Esse quadro, aliado à alta taxa de desemprego juvenil, tem levado à inter-
pretação (cf. Madeira, apud Corrochano, 2005, p. 208) de que a rotatividade
no emprego expressa uma maior “propensão” do jovem de transitar para o
desemprego e a inatividade. Esse movimento de entrada e saída do mercado
de trabalho, combinando às vezes educação e emprego – o que Pais (2001)
chama muito apropriadamente de “trajetórias ioiô” –, seria para esses au-
tores apenas uma questão de propensão dos indivíduos, que “escolhem”
trabalhar ou não!
As Tabelas 18, 19 e 20 trazem dados interessantes com relação aos dois
grupos estudados. Em geral, nos aspectos relacionados ao cotidiano do
trabalho na fábrica, os jovens trabalhadores têm idéias bem mais críticas
sobre esses temas do que os trabalhadores que estão na faixa etária mais
alta. No que se refere às relações de trabalho (Tabela 18), os jovens con-
centram suas opiniões entre as faixas boa e razoável (86%), enquanto os
trabalhadores com mais de 30 anos as consideram boas e ótimas (71%).

TABELA18
Opinião sobre relação empresa/funcionário
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RELAÇÃO EMPRESA/FUNCIONÁRIO

Ótima 21 7

Boa 60 54

Razoável 18 32

Ruim 1 7
TOTAL 100 100

novembro 2005 243


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

Quanto às condições de trabalho (Tabela 19), os mais velhos as vêem


como boas e ótimas (83%), enquanto os jovens as avaliam como razoáveis
e boas (86%).

TABELA19
Opinião sobre as condições de trabalho
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
CONDIÇÕES DE TRABALHO

Ótimas 19 10

Boas 64 61

Razoáveis 16 25

Ruins 1 4
TOTAL 100 100

Pela Tabela 20, apesar dessa perspectiva mais crítica dos jovens, vemos que
85% deles sentem orgulho de trabalhar na empresa, enquanto 96% dos
entrevistados com 30 anos ou mais responderam afirmativamente a essa
questão. Por fim, 3% dos mais velhos não souberam responder, contra
11% daqueles que se situam na faixa etária de 19 a 29 anos.

TABELA 20
Valorização do trabalho na empresa
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
VALORIZAÇÃO DO TRABALHO NA EMPRESA

Sim 96 85

Não 1 4

Não sei 3 11
TOTAL 100 100

O percentual referente às respostas “Não sei” também pode expressar


certa indiferença com relação à empresa e, no limite, pode reafirmar a
postura mais crítica com relação à companhia. Apesar disso, o que esses
dados parecem indicar é que ainda existe por parte dos jovens uma valori-
zação do trabalho nas montadoras. Quando indagados sobre o que signifi-
ca trabalhar em uma dessas empresas, evidenciam tanto a preocupação
com o futuro da família como a valorização dos salários maiores, com 74%
e 76%, respectivamente, das indicações. Mas 40% buscam também o res-
peito como trabalhador que o emprego na montadora lhes oferece. Para os

244 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

jovens trabalhadores da Mercedes-Benz, contudo, há uma atração maior


do que essa: 44% indicam o estímulo aos estudos, expresso por meio da
ajuda de custo aos estudantes fornecida pela empresa.
A pesquisa de Tomizaki (2005) com os jovens trabalhadores da Merce-
des-Benz permite avançar um pouco mais na compreensão das diferenças
de avaliação entre os dois grupos etários. Os trabalhadores mais velhos en-
trevistados por ela comparam dois momentos em que as condições de tra-
balho e as relações com a empresa se apresentam de maneira diversa. Antes
“era uma escravidão” e hoje houve uma melhoria, com mais liberdade, “um
ambiente tranqüilo, um excelente ambiente de trabalho” (Idem, p. 65). As
relações de trabalho, especialmente com a chefia, eram difíceis, não supor-
tando questionamentos ou reivindicações por parte dos empregados, o que
levou um dos entrevistados a afirmar que “antigamente, era na base do
chicote que a gente trabalhava” (Idem, p. 55). Por isso, talvez, os trabalha-
dores que viveram esse “tempo de antes” avaliem mais positivamente as
relações de trabalho, por possuírem elementos para a comparação, enquan-
to os jovens, inseridos no processo de produção no tempo marcado pelas
novas formas de gerir e organizar o trabalho, são capazes de elaborar tam-
bém novas exigências. Os mais velhos explicam, com muita clareza, que as
mudanças para melhor nas condições de exercício do trabalho decorreram
da reestruturação produtiva e da criação da Comissão de Fábrica. A Merce-
des-Benz foi a última montadora a permitir a organização de trabalhadores
no local de trabalho, mas, a partir disso, as relações de poder no interior da
empresa foram alteradas.
Nessa análise sobre a valorização do trabalho nas montadoras, cabe ain-
da uma palavra a respeito do sonho de trabalhar na indústria metalúrgica
e, especialmente, nas montadoras do ABC, que os trabalhadores de diver-
sas gerações têm manifestado. Não se trata apenas de buscar trabalho que
garanta bons salários e perspectiva de firmar-se em uma profissão, mas há
também um alto valor simbólico, que confere status, reconhecimento, afir-
mação pessoal e social. Nas pesquisas que tomamos como referência neste
artigo, observa-se o constante empenho dos jovens e de suas famílias de
conseguirem apoio de amigos, vizinhos e parentes que já trabalham nessas
empresas. Em nossa pesquisa, 36% dos jovens têm pais que trabalham em
montadoras, sendo que a maior porcentagem está na Volkswagen (58%).
No texto de Tomizaki, um jovem entrevistado relatou a emoção de seu
pai, também trabalhador da Mercedes-Benz, quando viu um de seus filhos
trabalhando de macacão na linha de montagem.

novembro 2005 245


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

A posição mais crítica dos jovens não impede, portanto, o reconheci-


mento das vantagens de trabalhar em uma indústria como as montadoras
de automóveis. Mas expressa a insatisfação, a busca de um futuro dife-
rente do de seus pais, fora da fábrica, em que se possa aproveitar o inves-
timento feito no curso superior. Eles sabem que são diferentes de seus
pais, foram mais além do que eles em termos educacionais e profissio-
nais, e, portanto, merecem mais do que eles. Bourdieu fornece-nos o re-
gistro para entender essa “revolta confusa” que não consegue se expressar
de forma organizada e que

[...] não é aquilo que se entende comumente por politização, isto é, aquilo que os
aparelhos políticos estão preparados para registrar e fortalecer. É um questiona-
mento mais geral, mais vago, uma espécie de mal-estar no trabalho, algo que não é
político no sentido estabelecido, mas que poderia sê-lo; algo que se parece muito a
certas formas de consciência política ao mesmo tempo cegas em relação a si mes-
mas, porque não acharam seu discurso, e com uma força revolucionária extraordi-
nária capaz de superar os aparelhos [...] (1983, p. 118).

Esses argumentos permitem-nos entender os dados referentes à politiza-


ção desses jovens trabalhadores, por meio das taxas de sindicalização e de
participação nas atividades sindicais. Como dissemos anteriormente, a taxa
de sindicalização nas montadoras é de 76% e, como a pesquisa foi feita só
com sindicalizados, estamos diante de trabalhadores que apresentam um
21. A pesquisa realizada vínculo expressivo com sua entidade sindical21. Entretanto, quando consul-
por Corrochano (2001) tados a respeito do engajamento na vida sindical, 79% dos jovens afirmam
mostra uma taxa de sin-
que participam pouco ou não participam. A opinião sobre a atuação do sin-
dicalização de 57%. O
que se observa no caso dos
dicato também expressa certa postura crítica, já que 81% a consideram boa
jovens dessa pesquisa é ou regular. Mas, no geral, com relação ao empenho do sindicato nas ques-
que a sindicalização é tões que afetam a vida dos trabalhadores, esses jovens avaliam-no positiva-
maior entre os jovens com mente. Da mesma forma, se a atuação da comissão de fábrica é vista como
mais idade (22 a 24 anos), ótima por apenas 8% deles, 87% a consideram entre boa e regular. Pode-se
os que têm mais tempo
concluir que, por parte dos jovens, existe o reconhecimento da importância
na empresa, entre os tra-
balhadores semiqualifica- do sindicato para a construção da identidade operária, mas não há uma iden-
dos e qualificados, e os tificação tão estreita como a que marcou a geração que se envolveu nas lutas
que trabalham nas maio- do final dos anos de 1970 e parte dos anos de 1980. A expressão dessa he-
res empresas. rança pode ser percebida quando 75% dos jovens declaram a sua preferên-
cia pelo Partido dos Trabalhadores e apenas 19% afirmam não ter nenhum
interesse partidário. Os jovens das montadoras apóiam as lutas sindicais,

246 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

têm consciência de seus significados, até escolhem seu partido político, mas
não têm interesse pela política, afastam-se da militância, seja a sindical, seja a
partidária. É como se existisse uma cultura da desconfiança, certo mal-estar
e distanciamento.
Contudo, a pesquisa de Tomizaki dá uma informação importante: a ida-
de média de entrada no movimento sindical das lideranças da primeira gera-
ção é de 30 anos, enquanto para os jovens representantes a média caiu para
23 anos. Esse dado ajuda-nos a relativizar a discussão a respeito da participa-
ção política dos jovens, acatando estudos que procuram mostrar as formas
pelas quais os jovens se expressam politicamente hoje (cf. Ponte de Sousa,
1999; Novaes, 2000), sem estabelecer comparações com as gerações ante-
riores. Afinal, como lembra um trabalhador da geração mais velha entrevis-
tado por Tomizaki, “ ‘em sua época’, os jovens também participavam pouco
e precisavam ser ‘puxados’ pelos mais velhos” (2005, p. 230).
A análise desenvolvida até aqui mostrou que, em certos aspectos, a si-
tuação dos jovens trabalhadores em montadoras é melhor do que a de
outros jovens inseridos no mercado de trabalho e, em todos os sentidos,
superior à dos jovens que permanecem à margem do trabalho, seja como
desempregados, seja como subempregados. Essas diferentes juventudes
vivenciam condições de vida e de trabalho caracterizadas pela diversidade
quanto a escolaridade, qualificação profissional, tempo de trabalho na
empresa, tipo de contrato de trabalho, estabilidade no emprego, salários,
acesso a bens de consumo e possibilidades de estabelecer projetos para o
futuro. Diante das incertezas do mundo globalizado que afetam a todos,
os jovens trabalhadores das montadoras parecem protegidos, pois estão
empregados e, melhor ainda, em empresas que constituem o sonho de
grande parte da juventude. Entretanto, o que nosso estudo demonstra é
que eles também são atingidos pela insatisfação e pelo medo. Insatisfação
quanto às condições de trabalho, quanto ao reconhecimento de seus esfor-
ços e da competência adquirida na escola. Afinal, apesar do curso técnico,
59% deles são classificados pelas empresas como trabalhadores semiquali-
ficados. O trabalho que executam não exige muitos conhecimentos e o
que aprenderam em escolas como o Senai não é usado e corre o risco de ser 22. Tomamos empresta-
esquecido (cf. Tomizaki, 2005, p. 159). Além disso, os trabalhadores hoje da da autora a expressão,
ainda que ela se refira
vivem marcados por uma cultura do medo (cf. Novaes, 2000)22, diante da
particularmente aos jo-
possibilidade da perda do emprego, de não encontrar um trabalho, de não vens nascidos nos anos de
ter as qualidades ou as habilidades para executar o serviço, ou seja, diante 1970 no Rio de Janeiro,
da possibilidade de fracassarem. É essa cultura que faz com que jovens que diante da violência.

novembro 2005 247


Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos, pp. 221-252

ainda não chegaram aos 24 anos afirmem que estão “velhos” para ingressar
no mercado de trabalho (cf. Corrochano, 2005)!
Por isso, não é estranho o fato de que, em nossa pesquisa, 76% dos jo-
vens metalúrgicos declarem sua preocupação em perder o emprego. Ou
que, na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, o desemprego apareça
como o principal problema do Brasil na atualidade (cf. Guimarães, 2005,
pp. 160-161). Os jovens têm consciência da situação que vivem e, mesmo
aqueles que aparentemente não foram atingidos pelas mazelas que afligem a
juventude hoje, manifestam sua inquietação diante do futuro.

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Iram Jácome Rodrigues e Heloisa Helena T. de Souza Martins

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Resumo
Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos

Este artigo analisa os dados de pesquisa realizada com trabalhadores da indústria auto-
mobilística na região do ABC, com destaque para aqueles em faixa etária entre 19 e 29
anos, efetuando uma comparação entre o perfil socioeconômico desses jovens meta-
lúrgicos e o de seus colegas de trabalho com 30 anos de idade ou mais. Destacando a
heterogeneidade que caracteriza a juventude, os autores mostram as diferenças exis-
tentes não só entre os trabalhadores mais jovens e os mais velhos, mas também entre os
jovens metalúrgicos e aqueles investigados em pesquisas anteriores. A análise mostrou
que, se em determinados aspectos a situação dos jovens trabalhadores em montadoras
é melhor do que a de outros jovens inseridos no mercado de trabalho e, em todos os
sentidos, superior à dos jovens que permanecem à margem do trabalho, seja como
desempregados, seja como subempregados, isso não significa, contudo, que não apre-
sentem insatisfações e temores diante das incertezas do mundo globalizado.
Palavras-chave: Jovem trabalhador; Indústria automobilística; Sindicalismo; Região do
ABC.

Abstract
Socio-economic profile of young metalworkers
This paper analyses data from a research done with automobile workers in the ABC
region (in the State of São Paulo), with special emphasis on those who are between 19
and 29 years of age. A comparison of their socio-economic profile was made with that
of their colleagues who are thirty or over. Pointing out the heterogeneity that charac-
terizes youth, the text shows the existing differences, not only between the younger
and the older metal workers, but also between the young metal workers and other
youths that took part in previous researches. The analysis shows that, to a certain
extent, those working in the automobile industry are better off than that other youths
in the labor market in general, and in all senses, their situation is a lot superior to that
of youths who have not been absorbed by the market, either because they are unem-
ployed, or because they are underemployed. This does not mean, however, that these

novembro 2005 251


young metal workers are satisfied or that they are not fearsome of the uncertainties of
a globalized world.
Keywords: Young workers; Automobile industry; Trade unionism; ABC region.

Texto recebido e apro-


vado em 20/10/2005.
Iram Jácome Rodrigues
é professor do Departa-
mento de Economia e
do Programa de Pós-
Graduação em Sociolo-
gia da USP e pesquisa-
dor do CNPq. E-mail:
ijrodrig@usp.br
Heloisa Helena T. de
Souza Martins é profes-
sora do Programa de
Pós-Graduação em So-
ciologia da USP. E-mail:
heloisah@usp.br
Comunidades de vida no Espírito Santo
juventude e religião
Cecília Loreto Mariz

A importância da juventude nas comunidades de vida no Espírito Santo 1. Não encontramos re-
gistros de pesquisadores
sobre as comunidades de
Quem estuda a Renovação Carismática Católica (RCC) no Brasil tem se
vida até o final da déca-
surpreendido com o surgimento e o crescimento das chamadas “comuni- da de 1990. Em seu li-
dades de aliança e vida no Espírito Santo”. No Brasil, esse é um fenômeno vro, Machado (1996)
recente, registrado pelos pesquisadores apenas a partir do final da década refere-se às comunidades
de 1990 e nos anos de 20001. Criadas por participantes de grupos de ora- Emanuel e Bom Pastor,
no Rio de Janeiro, que
ção carismática, essas comunidades são um fenômeno internacional, já
eram apenas “de alian-
observado por Thomas Csordas (1997) nos Estados Unidos e por Martine ça”, mas nada comenta
Cohen (1990, 1997) na França. Leigos decidem se reunir para se dedicar sobre comunidades de
ao louvor, à adoração ao Santíssimo, à evangelização, à cura espiritual e às vida. Referências a estas
mais diversas obras sociais. No léxico das comunidades, essas atividades aparecem em Carranza
são chamadas de “carismas”. (2000), que aponta sua
existência em Campinas,
Entre seus membros, existem aqueles que procuram um tipo especial
e em Miranda (1999),
de consagração e passam a compartilhar as finanças e o cotidiano com que descreve especial-
outros, dividindo o mesmo teto e as despesas domésticas: formam a cha- mente a comunidade
mada “comunidade de vida”. Os demais, que continuam a morar com Shalom de Fortaleza. Os
seus familiares e a manter sua autonomia econômica, constituem a “co- trabalhos de Oliveira
(2003, 2004) são dedi-
munidade de aliança”. Alguns entrevistados afirmaram que ambas as co-
cados à comunidade
munidades são parte de um todo e não há hierarquia espiritual que defina Canção Nova.
a superioridade da opção de participar da “comunidade de vida”; contudo,
Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

os membros “de aliança” revelam admiração especial pelos que optaram


2. Projeto apoiado pelo pela vida consagrada. A manutenção daqueles que estão na “comunidade
CNPq desde 2003 e de-
de vida” depende em geral dos membros da comunidade de aliança: são
senvolvido com equipe de
bolsistas de Iniciação Cien-
eles que os apóiam materialmente.
tífica (em 2004 e 2005, Como seguem uma dinâmica laica e não institucional, essas comunida-
Paulo Leite Lopes, Débora des não têm sido sistematicamente registradas, nem pelos setores adminis-
Minuzzi e Walace Ferrei- trativos das paróquias e dioceses, nem pelo próprio movimento de Reno-
ra, e, em 2003, Rosiane vação Carismática. Dessa forma, não é fácil estimar quantas comunidades
Silva, Eduardo Nazareth,
desse tipo existem no Brasil. Em pesquisa preliminar2 sobre o tema foram
Jocilene Serqueira e Jana
Lessa) e de Apoio Técni- obtidos dados sobre comunidades no Rio de Janeiro por intermédio de
co (em 2004-2005, Ro- relatos dos membros da RCC: um dos entrevistados diz ter ouvido falar de
siane Silva). uma comunidade de vida, outro fornece um endereço e, a partir dessas
3. Os líderes da Toca de informações, procuramos fazer contato e visitas; nas comunidades visita-
Assis entrevistados enfa- das, descobrimos mais informações sobre outras.
tizam o projeto de se Há comunidades de vida muito conhecidas e citadas por um grande
tornar uma congregação
número de entrevistados, dentre as quais se destacam a Canção Nova, a
religiosa, e não se iden-
tificam totalmente com
Shalom e a Toca de Assis3. Dispondo de homepages e de diversas publica-
o conceito de comuni- ções, essas comunidades possuem casas em vários estados do país e tam-
dade de aliança e vida ca- bém no exterior, no caso das duas primeiras.
rismática. No entanto, as Uma característica que chamou a atenção nessas três comunidades de
trajetórias de seu funda- vida, mas também em outras sobre as quais existem dados levantados, foi
dor e membros, e a di-
a juventude de seus membros. Tendo sido criadas para jovens ou por jo-
nâmica de crescimento
e funcionamento, asse- vens, a importância deles nessas comunidades é sempre ressaltada, seja nos
melham-se muito com textos divulgados pela internet, seja nos depoimentos dos entrevistados. A
as outras comunidades juventude também parece ter papel importante nas demais comunidades
analisadas. Além disso, há estudadas no Rio de Janeiro, como a Novo Maná4, a Eis o Cordeiro e até
uma forte ligação entre
mesmo a Bom Pastor, uma comunidade basicamente de aliança5.
a Toca de Assis e a Can-
ção Nova, como mostra O papel da juventude na origem da Shalom é bem destacado em um
Oliveira (2003). relato do site dessa comunidade (www.shalomrj.com.br):
4. Segundo um entrevis-
tado, essa comunidade, Nascida no meio dos jovens, a comunidade surgiu de um ardente desejo de
cuja casa principal se lo- evangelizar os jovens mais afastados de Deus. Transformamos uma lanchonete em
caliza em Austin, na Bai- um meio de atração dos jovens a Deus. Com eles vieram as famílias, as crianças e
xada Fluminense, RJ, sur- todo um povo se formou ao redor da obra.
giu a partir de experiên-
cias da RCC e seu obje-
tivo inicial era “simples- Com efeito, a Shalom foi criada por um jovem, como ressalta um mem-
mente reunir os jovens bro da sede de Botafogo, no Rio de Janeiro: “[...] a comunidade nasceu há
numa tarde de louvor”. 22 anos, em 1982, lá em Fortaleza. O nome do fundador é Moysés do

254 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

Rego, um jovem que foi inspirado por Deus na época e já participava de 5. Segundo a fundadora
grupo de oração e tudo, e foi inspirado por Deus”. da Bom Pastor, a comu-
nidade “era um grupo de
Os fundadores da Canção Nova e da Toca de Assis, respectivamente
oração. Começamos com
um padre e um seminarista, declaram que foram os jovens que os motiva- o próprio jovem. Meu
ram a criar a comunidade de vida. marido e eu e mais qua-
Ao falar sobre sua inspiração para criar a comunidade de vida Canção tro jovens, minha filha e
Nova e para se dedicar ao carisma de evangelizar pela mídia, o padre Jonas minha sobrinha e mais
dois jovens, e daí então a
Abib refere-se diretamente ao seu trabalho com os jovens. Em suas decla-
casa ficava com a porta
rações divulgadas no site, deixa clara a importância da juventude: encostada em dia de ora-
ção e as pessoas iam en-
[...] fiz o desafio e uma grande quantidade de jovens aceitou. Isto significava que real- trando”. Essa comunida-
mente já estavam experimentando a necessidade de se entregar àquele Cristo que come- de tem orgulho de dizer
çavam a descobrir. [...] Não sabia em que aventura estava me colocando. Pensei que iria que lá se descobriu a vo-
cação de uma freira e de
ficar só naquele catecumenato... Já aconteceu tudo isso! (Em www.cancaonova.com/
um padre (o padre Zeca,
cnova/pejonas/comunidade 02.php , consultado em 3 de setembro de 2005). muito conhecido no Rio
como animador do even-
O primeiro núcleo de vida iniciou-se com o padre Jonas e doze jovens. to juvenil “Deus é Dez”).
Segundo narra Brenda Carranza (2000), esse padre já tinha muita expe-
riência na pastoral de jovens e por alguns anos vinha liderando o movi-
mento católico “Encontros de Jovens” em Lorena.
Também a Toca de Assis tem a marca da juventude em sua origem. No
site oficial da comunidade, há várias informações sobre seu fundador. Nas-
cido em 1962, o padre Roberto Lettieri teria se convertido em 1983, aos
21 anos, quando participava de um desses “Encontros de Jovens”. O pri-
meiro núcleo da Toca foi formado, em 1994, por três jovens, sob a lide-
rança do padre Roberto, que aos 31 anos de idade era ainda seminarista. O
site informa que: “Quando ordenado sacerdote, em 8 de dezembro de
1996, esta obra, espelhada nos exemplos de pobreza, obediência, castidade
e gratuidade do ‘Poverello de Assis’, já contava com a ajuda de oitenta
jovens” (www.tocadeassis.org.br/fundador.html, consultado em 3 de se-
tembro de 2005).
Embora em todas as comunidades se declare que não são aceitos meno-
res de 18 anos, idade mínima para se consagrar, são comuns os comentá-
rios sobre a existência em alguma casa da comunidade de uma consagrada 6. Como no caso da co-
munidade Eis o Cordei-
com 16 ou 17 anos, que no entanto são consideradas casos excepcionais,
ro, em Niterói, que pos-
de pessoas “muito maduras em termos espirituais”6. sui apenas uma casa, e
Das três comunidades citadas, que têm abrangência nacional, a Toca também da comunida-
de Assis destaca-se pela pouca idade de seus membros. Pelas declarações de Toca de Assis.

novembro 2005 255


Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

dos entrevistados, essa idade poderia ser ainda menor, se fosse legalmente
permitido ingressar com menos de 18 anos. Na época da coleta de dados
para nossa pesquisa, observamos que em duas casas da Toca a maior parte
dos membros tinha menos de 25 anos e a idade de ingresso era ainda
7. A entrevistada, na casa menor7. Ao abandonar o estudo e a profissionalização, ou o projeto de
das mulheres da Toca, formação de uma família pelo casamento, esses jovens passam a viver ape-
em Santa Teresa, Rio de nas de doações, e se tornam aquilo que Weber (1991) chamava de um
Janerio, explicou: “O de
“virtuose religioso”. Sem dúvida, há problemas práticos na idade madura
menor tá mais difícil de
entrar, porque antes en- que tornam a opção por comunidades de vida menos viável. Os membros
trava com treze anos, ca- das comunidades de aliança, mais velhos, muitos com mais de 40 anos,
torze, mas agora tá pre- deixam claro em seus depoimentos que não puderam, como os mais jo-
cisando, pela lei, de es- vens, optar por viver integralmente para a “obra”; comentam que essa op-
tudar”.
ção é possível apenas na juventude, quando ainda não foram assumidos
8. Ver entrevista citada compromissos anteriores8.
em artigo anterior sobre Essa retórica sobre a importância da juventude e principalmente a pou-
o tema (Mariz, 2005). ca idade de ingresso nessas comunidades levaram-nos a refletir sobre o
papel dos jovens não apenas nesse tipo de experiência, mas nos movimen-
tos religiosos em geral, em especial nos de cunho reavivado. Vários são os
relatos de pesquisas que descrevem o fervor de jovens em eventos da Reno-
9. Dados sobre o entu- vação Carismática e de igrejas pentecostais9. Sílvia Fernandes (2004), em
siasmo dos jovens da sua pesquisa com seminaristas e noviças, encontrou jovens que “descobri-
RCC aparecem em Car- ram sua vocação” participando da RCC. Em seu estudo sobre a Igreja
ranza (2000) e Oliveira
Universal do Reino de Deus no Rio de Janeiro, Bárbara Serrano (2003)
(2003). Fervor similar foi
observado por Rozicléa observa um grupo de jovens missionários que seriam verdadeiros “virtuoses
E. do Nascimento no religiosos” no sentido weberiano. Essa atração dos jovens por um tipo de
templo da Igreja Univer- opção religiosa mais radical aparece ainda no trabalho de Patrícia Birman
sal na Favela da Maré, (2000), em que analisa atitudes e discursos de pais franceses cujos filhos
Rio de Janeiro, durante
ingressaram em grupos tidos como “seitas”. Analisar uma possível relação
pesquisa promovida pelo
Ceris (Centro de Esta- entre juventude, subjetividade juvenil e virtuosismo religioso na sociedade
tística Religiosa e Inves- contemporânea é uma das questões deste artigo.
tigação Social) em 1994,
cujos resultados foram Juventude e virtuosismo religioso: retóricas e dados
publicados em Mariz
(2001).
Se, por um lado, constatamos uma atração dos jovens pelas comunida-
des, por outro podemos também perceber uma retórica sobre a maior ca-
pacidade da juventude de “doar-se”. É comum, no discurso das pastorais
católicas que procuram mobilizar a juventude, haver referências à “genero-
sidade natural do jovem”. No papado de João Paulo II ficou bem clara a

256 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

ênfase dada às pastorais juvenis, especialmente com a organização e a pre-


sença do próprio pontífice nas Jornadas Internacionais da Juventude (cf.
Carranza, 2000).
Esse tipo de retórica em torno do potencial de bondade juvenil teria
surgido no Ocidente, segundo Philippe Ariès (1981), a partir do final do
século XIX e início do XX, quando se idealiza a espontaneidade e a pure-
za dessa etapa da vida. A figura do jovem é construída como a de um
herói belo e corajoso. O conceito de juventude constitui-se, dessa forma,
ancorado em uma visão romântica. Ariès comenta: “A juventude, que
então era a adolescência, iria tornar-se um tema literário, e uma preocu-
pação dos moralistas e políticos. [...] A juventude apareceu como deposi-
tária de valores novos, capazes de reavivar a sociedade velha e esclerosada”
(Idem, p. 14).
A subjetividade juvenil é concebida como oposição aos padrões buro-
cráticos e mercantis característicos da era moderna. Guiados pela lógica da
natureza, do sentimento e da dádiva desinteressada, os jovens caracterizar-
se-iam por uma índole e uma subjetividade próprias, que os aproximariam
de valores comunitários presentes nas diferentes religiões, mas também de
ideologias políticas que se opõem à sociedade capitalista moderna. Nesse
sentido, o jovem é concebido como alguém mais propenso a atitudes he-
róicas e a virtuosismos religiosos, que busca a santidade e também a revo-
lução, e que morreria por uma causa. No entanto, seria visto também, por
isso, como menos racional e menos crítico. O espírito crítico (não no sen-
tido de oposição, mas de análise racional) e o conhecimento prático seriam
virtudes da maturidade.
A partir dessa perspectiva, tornam-se compreensíveis tanto os investi-
mentos das religiões na juventude como, do lado oposto, o cuidado dos
pais e responsáveis em proteger os jovens de grupos religiosos e ideológicos
que possam “aproveitar-se” de sua generosidade e ingenuidade. Esse cuida-
do aparece nos discursos da mídia francesa e dos pais vinculados à associa-
ção de familiares de vítimas de seitas, analisados por Birman (2000). A
atração da juventude pelas chamadas “seitas” era entendida como resultado
de seu baixo espírito crítico. Em conseqüência, como comenta a autora, a
nova lei que concede a maioridade aos 18 anos de idade na França foi con-
siderada negativa, por dar autonomia a pessoas imaturas.
No entanto, a relação entre juventude e virtuosismo religioso não per-
tence à retórica contracultural, em que a juventude é relacionada à “liber-
dade individual” e ao “hedonismo”, que se expressa por exemplo no lema

novembro 2005 257


Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

“é proibido proibir”. Nesse discurso, a rebeldia, a luta pela liberdade e a


rejeição às normas são a marca do espírito juvenil.
Em que medida essas distintas retóricas possuem correspondências em-
píricas? A análise de alguns dados pode ajudar a responder essa questão.
No censo de 2000, no Brasil, segundo Novaes (2004, p. 322), os jovens
(indivíduos pertencentes à faixa etária dos 15 aos 25 anos) estão entre os
relativamente mais secularizados, uma constatação confirmada por um con-
junto de pesquisas sobre a religião entre os estudantes universitários. O
percentual de universitários que se declaram sem religião tende a ser sem-
pre maior do que o encontrado na população mais ampla (cf. Steil, Alves e
Herrera, 2001; Camurça, 2001; Cardoso, Perez e Oliveira, 2001, entre
outros). Os dados revelam também que os jovens católicos são menos pra-
ticantes: a proporção dos que se dizem católicos praticantes é menor do
que a encontrada em outras pesquisas entre a população mais ampla (cf.,
por exemplo, Fernandes, 2002).
A menor religiosidade dos jovens não necessariamente desmente dados e
discursos sobre a atração pelo fervor e pelo virtuosismo religiosos. Uma inter-
pretação possível seria a de que essas atitudes diferentes se referem a grupos
sociais distintos: trata-se de distintas “juventudes”, com culturas e subjetivi-
dades diferentes. No entanto, a interpretação que propomos aqui é a de que a
própria experiência de juventude em nossa sociedade gera um tipo de subjeti-
vidade capaz de levar o mesmo jovem, ou jovens com o mesmo perfil social ou
a mesma vivência, a não ter religião alguma ou ter muita religião.
Estamos supondo, assim, que a juventude pode ser vista como uma va-
riável independente. Dessa forma, seria possível não apenas usar a categoria
jovem em referência a indivíduos de distintos estratos sociais no mundo
contemporâneo, mas também assumir que, apesar de pertencerem a estra-
tos distintos, compartilham algumas características sociais em comum por
serem jovens. Assume-se, portanto, que ser jovem na sociedade contempo-
rânea implica experiências específicas de vida às quais se atrela certa subjeti-
vidade mínima, que se caracterizaria por uma afinidade eletiva com os ex-
tremos ou “experiências radicais”.
Uma análise aprofundada desse tipo de argumento exigiria discutir quais
as definições disponíveis de juventude, retomando a literatura existente
sobre o que se entende por jovem, juventude, subculturas e subjetividades
juvenis na sociedade contemporânea. Seria necessário destacar as especifi-
cidades contemporâneas dessas categorias e como elas foram historicamente
construídas no Ocidente moderno. Fazer esse tipo de análise não é, no

258 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

entanto, a proposta deste artigo10, que pretende apenas levantar alguns 10. Há uma ampla biblio-
pontos que podem ajudar a entender a relação entre juventude e virtuosismo grafia, que não se preten-
de analisar aqui, orienta-
religioso.
da por Machado Pais e
Bourdieu, que debate a
Qual a definição de jovem na sociedade contemporânea? conceituação de juventude
e culturas juvenis na so-
Como revelam numerosas etnografias sobre os mais diferentes povos ciedade moderna contem-
porânea. Para uma análi-
não ocidentais, a maturação biológica dos indivíduos através de seu ciclo
se desse debate e literatu-
vital tem sido sempre uma marca social importante (cf., entre outros, Evans- ra, ver Sposito (2001).
Pritchard, 2002, pp. 257-258). Os antropólogos descrevem os mais dis-
tintos ritos de iniciação de entrada na idade adulta e a antropologia tem
refletido comparativamente sobre a passagem da infância para a idade adulta
no Ocidente e entre os diversos povos já estudados (cf. Mead, 1995, entre
outros). A posição no ciclo vital, embora possa ser socialmente descrita,
categorizada e/ou interpretada de formas distintas, baseia-se em alguns
elementos da natureza biológica do ser humano. Tal como o gênero, a
natureza impõe certo limite às distintas construções culturais possíveis e,
dessa forma, sempre existem categorias que distinguem crianças de adul-
tos, assim como sempre haverá as categorias homens e mulheres nas dis-
tintas sociedades no decorrer da história.
Tanto o status de gênero como o de idade (ou posição no ciclo de vida)
são “status atribuídos”, na medida em que dependem de características
físicas definidas pela constituição biológica de cada um. No entanto, ao
contrário do gênero e dos demais status atribuídos, a idade é, por defini-
ção, um status mutável, mas sua mudança também é atribuída. É inerente
a esse status seu caráter passageiro: o indivíduo pode pertencer a uma coorte
geracional ou grupo etário, como no caso dos nuer, descrito por Evans-
Pritchard (2002), mas a etapa da vida inevitavelmente mudará.
Com efeito, em todas as sociedades, os status de “criança”, “jovem”,
“adulto”, “velho” são transitórios, como transitória é a vida. Desses, contu- 11.Em certa medida,
do, o de jovem parece ser o mais passageiro por ser concebido como situa- pode-se supor que o
ção intermediária em que o indivíduo deixa a infância e se torna adulto. forte processo de indi-
Em muitos povos, segundo descrições de antropólogos, esse período limi- vidualização da socieda-
nar pode ser relativamente breve, mas muito intenso, marcado por ritos de de moderna leva a que
se exacerbe a rejeição ao
iniciação cujas práticas por vezes chocam a sensibilidade ocidental contem-
sofrimento individual
porânea, pelo tipo de sofrimento físico que podem infligir aos indivíduos. mesmo que seja por
O caráter radical e doloroso desses rituais e experiências reforça essa passa- causas coletivas social-
gem como uma experiência coletiva11. mente legítimas.

novembro 2005 259


Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

Rituais de passagem para a vida adulta podem ser encontrados no mundo


ocidental contemporâneo, mas tendem a ser cada vez menos intensos. Essa
intensidade diminui ao mesmo tempo em que a experiência de liminaridade
entre vida de criança e de adulto, ou seja, a juventude, se amplia.
Graças à flexibilização das normas sociais e mais recentemente ao de-
senvolvimento tecnológico, a sociedade moderna tem se destacado das
sociedades que as precederam por oferecer aos indivíduos a possibilidade
de negarem os status, como classe, profissão, religião, estado civil, renda,
nacionalidade e até gênero, que lhes foram atribuídos por critérios alheios
à sua vontade. Essas posições, que em sociedades pré-modernas eram defi-
nidas pela tradição ou pelo coletivo, passam a ser, cada vez mais, interpre-
tadas como escolhas individuais.
No entanto, quando a etapa da vida de um indivíduo – ou seja, sua ida-
de – passa a ser calculada com exatidão em termos de anos vividos, o status
de “jovem” ou “velho” a ela vinculado ganha uma natureza quase que obje-
tiva, que parece se impor à vontade individual e até a decisões sociais. Na
sociedade moderna, infância, juventude, maturidade e velhice passam a ser
igualadas a um conjunto de anos vividos, ou definidas por ele. Portanto, o
status referente ao ciclo biológico do indivíduo, ou idade, torna-se, ao con-
trário dos demais status acima citados, mais independente da escolha indi-
vidual. Por outro lado, é na modernidade que o número de anos vividos
ganha um papel importante como definidor da posição e da identidade so-
cial. Como mostra Ariès (1981, pp. 1-2), na modernidade a idade se torna
parte fundamental da identidade individual. Esse autor comenta que as pri-
meiras duas coisas que a criança aprende a dizer na sociedade contemporâ-
nea, para se identificar, são seu nome e sua idade, e ressalta que a preocupa-
ção com o registro da idade tem sido um fenômeno relativamente recente
na história ocidental.
O que se argumenta aqui é que seria uma especificidade de nossa socie-
dade identificar os ciclos da vida a faixas etárias. Esse tipo de identificação é
responsável pelo debate específico dessa sociedade sobre o número de anos
que se vive para ser considerado jovem. Evidentemente, as diferentes pro-
postas são arbitrárias: dos 14 aos 24 anos, dos 15 aos 25 anos, ou ainda as
que a estendem até os 35 anos, ou que a subdividem em “adolescência” (até
os 18 anos) e “juventude propriamente dita” (após os 18 anos). No entan-
to, na sociedade moderna a definição de juventude está também associada
à possibilidade de se desempenhar papéis reservados aos adultos. Tanto que
o adiamento do início da vida economicamente ativa e reprodutiva e o

260 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

prolongamento do período de formação educativa, como já mostraram vá-


rios autores (cf. Campiche, 1997; Fulton, 2004, entre outros), têm ampli-
ado a faixa etária definida como jovem, no Ocidente. Cada vez mais a ju-
ventude cobre uma faixa etária mais ampla. É significativo, contudo, que
12. As categorias de se-
nessas mesmas sociedades a maioridade tenda a diminuir, o que significa
nhora e senhorita, e a
que a expansão da categoria juventude não busca restringir a autonomia distinção, tradicional-
dos indivíduos que passam a fazer parte dessa categoria. mente usada no meio
Nas sociedades tradicionais, a juventude é menos definida pela idade do popular no Brasil, en-
que pelo fato de não haver o desempenho ainda dos papéis atribuídos aos tre “moça” e “mulher”,
adultos. Nessas sociedades, jovens são os que não se casaram12, não tiveram para identificar quem já
teve iniciação sexual,
filhos ou ainda não estão no mercado de trabalho, por exemplo. Deixa-se
apontam para o papel
de ser jovem não quando se alcança determinada idade, mas com o total que, para o gênero fe-
ingresso no mundo adulto. Vive-se a experiência de ser jovem enquanto minino, esse tipo de ini-
esse ingresso ainda não ocorreu totalmente e já houve o abandono dos pa- ciação desempenhava
péis infantis. Vivendo nessa liminaridade, os jovens compartilham uma como marca de entra-
da no mundo adulto.
situação de fragilidade social, o que é verdade tanto em sociedades tradicio-
Com a vida sexual dei-
nais como nas modernas. xava-se “de ser moça” e,
Essa experiência de liminaridade seria comum a todos os jovens, inde- se essa não ocorresse, a
pendentemente de sua posição na estrutura social. Apesar de ser evidente a mulher poderia tornar-
existência de várias juventudes na sociedade contemporânea, ou seja, vá- se uma “moça velha”.
rios tipos de jovens, correspondentes aos distintos estratos e grupos so- 13. Levando em conta a
ciais, é possível falar no jovem em geral. Embora influenciada pela situação observação de Weber
de classe, de etnia e de gênero, a categoria “juventude” teria relativa auto- (1982a) sobre a dificul-
dade de dar sentido à
nomia, como já foi argumentado.
morte, e conseqüente-
A juventude, tal como a concebemos em nossa sociedade, é por defini- mente ao envelhecimento
ção um período de liminaridade e, portanto, socialmente instável e frágil. na sociedade moderna,
Esse estágio se torna cada vez mais prolongado e, mais do que em outros pode-se pensar que essa
períodos da vida, parece fomentar a necessidade de sentimento de perten- é uma sociedade que es-
timula o prolongamen-
cimento e de comunhão.
to de um tipo de subjeti-
Com efeito, essa necessidade não é exclusiva dos jovens. Bauman (2003) – vidade juvenil que valo-
e vários autores antes dele – já destacou a proliferação de experiências e mo- riza a mudança constan-
vimentos que tendem a suprir essa necessidade gerada também pelo pró- te e carrega sempre um
prio contexto global de modernidade avançada13. As “comunidades de vida sonho de um futuro. A
no Espírito Santo” seriam, portanto, uma entre várias experiências que res- velhice e a morte seriam
vistas como “fracassos” e
pondem a essa necessidade. Para entender o apelo que essas comunidades
“entregas” e não como fe-
têm para os jovens propõe-se identificar similaridades entre as experiências nômenos naturais. Jovem
nas “comunidades de vida no Espírito Santo” e outras experiências com passa a ser um elogio e
conteúdos muito distintos mas que também atraem os jovens. A ênfase na velhice uma acusação.

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Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

experiência vivida e não no conteúdo ideológico dessas comunidades não


significa negar a importância do papel desempenhado por esses conteúdos.
Evidentemente, a interpretação das funções desempenhadas por determi-
nadas experiências não é suficiente para entender todas as motivações de
adesão, nem razões para criação dessas comunidades. Apesar de o cresci-
mento dessas comunidades ocorrer por intermédio dos jovens, o fato de ser
jovem não implica atração por esse tipo de comunidade. Como mostrado
acima, os jovens são atraídos por várias outras experiências similares que
possuem os mais diversos discursos. Por isso, outras interpretações comple-
mentares são não apenas possíveis, mas necessárias.
A tentativa das “comunidades de vida” de relacionar juventude e
“virtuosismo” ajuda a entender também a atração dos jovens por outras
14.Uma relação positi- vivências e práticas extremas, como por exemplo as revolucionárias14. Bus-
va entre juventude e es- ca-se, assim, identificar elementos nas “comunidades de vida” que estão
pírito revolucionário
presentes em outros grupos e experiências com conteúdos ideológicos bem
tem sido identificada
distintos, mas que também atraem e apóiam jovens e outras pessoas que
por alguns autores,
como Zanetti (1999). vivem em uma situação de liminaridade. Entre essas experiências destaca-
mos o enfrentamento da dor, o sacrifício e o risco da morte, a ruptura com
o passado e a efervescência coletiva.

Experiência do sacrifício e do risco da morte

Em todas as comunidades de vida existe o sacrifício da liberdade indi-


vidual e do próprio “eu”. Mas o que foi considerado sacrifício pelos entre-
vistados não foi o abrir mão da liberdade, mas outros tipos de provação,
como o cansaço físico ou a dor da separação dos entes queridos quando a
comunidade os envia para longe.
Relatos sobre esses tipos de sacrifício aparecem em várias comunidades,
mas alguns dos mais fortes são os de membros da comunidade Toca de
Assis. Como o principal “carisma” dessa comunidade é a adoração ao San-
tísissimo, os jovens revezam-se em turnos, ficando prostrados de joelhos
duas horas ou mais por dia diante do sacrário. Além disso, para cumprir o
segundo “carisma” com os pobres, cuidam de pessoas que vivem nas ruas e
por vezes as trazem para suas casas de acolhimento. Ambos os carismas
implicam um fardo físico e uma dose de sacrifício que os entrevistados
sentem e descrevem.
Um dos entrevistados, um paulista de 25 anos que vivia na casa de
Madureira, no Rio de Janeiro, conta sobre a atividade pastoral de rua:

262 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

Então a gente sai pra rua, temos a Pastoral de Rua, então ficamos de manhã, de
tarde e às vezes até à noite. Às vezes dormimos com eles até na rua, né, diante de
uma realidade, de uma personalidade, a condição que o irmão se encontra [...] às
vezes é muito flagelado pela sociedade, então a nossa presença muitas vezes inco-
moda porque foi muito maltratado [...].

Sobre o cotidiano da comunidade, o depoimento de uma jovem de 20


anos incompletos, entrevistada na casa da Toca de Assis de Santa Teresa,
no Rio, é esclarecedor:

[...] um problema sério [...] é dormir [...] porque nossa vida é muito cansada,
cansativa assim, [...] não existe assim um horário, até por causa da oração mesmo,
aí quem adora de madrugada, então é uma hora a menos que dorme, né? Não tem
um período assim de oito horas certinho [...] acorda cinco e meia aí tem os dias
que não acorda tão [cedo], que nem domingo acorda seis e meia, não é uma regra
[...] a gente faz o Sacramento todos os dias [...] então depende muito dos horários
das igrejas [...].

Os toqueiros comentam que têm problemas nos joelhos devido às ho-


ras que permanecem em adoração.
Outra forma de sacrifício comum é o jejum, apontado como uma prá-
tica muito importante entre os membros da comunidade de vida Canção
Nova. Um entrevistado descreve as regras dessa comunidade:

[...] uma regra de vida dentro da comunidade, todos os membros precisam partici-
par da missa todos os dias – nós precisamos rezar o rosário todos os dias – não é
nem o terço, é o rosário – e precisamos também fazer jejum quarta e sexta-feira.
Precisamos também fazer o estudo da palavra. Tem que se virar pra fazer tudo isso
durante o dia.

Embora importante no discurso cristão, o sacrifício não é de forma


alguma uma prática nem um valor exclusivos dessa tradição religiosa. A
importância do sacrifício individual nos rituais de fortalecimento de iden-
tidades coletivas é um tema bastante discutido nas ciências sociais. Os
sacrifícios são também chamados de “mortificações”, por serem, de certa
forma, experiências parciais da morte: é a morte dos impulsos do corpo e a
experiência do início do processo de destruição do próprio corpo. Eles
podem ser vistos também como uma forma de subjugar ou matar o “eu”.

novembro 2005 263


Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

Procurando analisar o significado da auto-renúncia religiosa, Peter Berger


compara-a com a experiência masoquista e comenta:

[...] o masoquismo, pela sua auto-renúncia radical, proporciona o meio pelo qual
o sofrimento e a própria morte do indivíduo podem ser radicalmente transcendi-
dos, a ponto de o indivíduo não só achar suportáveis essas experiências, mas até as
acolher cordialmente (1985, p. 68).

Dessa forma, esse tipo de experiência religiosa se aproximaria de expe-


riências mais radicais que implicam violência e riscos à própria vida. Ao pôr
em risco a própria vida, põe-se também a do outro. O confronto com a
morte do “outro” e o risco da própria morte podem ser experiências bem
próximas e complementares, especialmente quando ocorrem em contextos
de luta violenta entre grupos, em uma guerra, por exemplo. Weber (1982b,
p. 384) lembra que “a guerra cria [...] um sentimento de comunidade. A
guerra promove, portanto, uma comunhão incondicionalmente dedicada
e pronta ao sacrifício, entre os combatentes”.
A partir desse tipo de interpretação da experiência do sacrifício e da
guerra, pode-se propor uma explicação distinta da que Angelina Peralva
(1996) apresenta sobre o que chamou “juvenização” da violência. A autora
afirma:

A angústia da morte [...] parece ser um dos elementos igualmente presentes na base
do engajamento do jovem em condutas violentas. No Brasil, além da marca deixada
na experiência do surf ferroviário, a angústia da morte parece ser um elemento cons-
titutivo de condições subjetivas de engajamento do jovem favelado carioca no tráfico
de drogas e na violência.

Ao contrário de Peralva, para quem os jovens estão procurando essa


situação limite para supervalorizar sua individualidade, interpretamos esse
comportamento como fruto de uma busca de fortalecimento de um “eu”
coletivo, de uma busca de experiências coletivas mais fortes alimentadas
pela turma ou gangue.
A aparente desvalorização da vida e o fato de experimentarem as situa-
ções de enfrentamento da morte como espetáculo não se explicariam por
uma possível desvinculação em relação aos grupos, nem tampouco revela-
riam uma superindividualização. Parece mais provável que enfrentassem a
morte para alimentar um sentimento grupal que, por sua força, pareceria

264 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

protegê-los de toda a fragilidade mais ampla que vivenciavam. A realização


da empreitada por parte de um jovem reforçaria o sentimento de poder dos
demais. Aparentemente, um “surfista de trem” e um membro de uma co-
munidade de vida nada teriam em comum entre si, a não ser o fato de serem
jovens. No entanto, além de se desviarem da sociedade mais ampla, estão
experimentando a sensação de vitória e de reforço da solidariedade do gru-
po a que pertencem ao impor sofrimentos e riscos a si mesmos.

Experiência de ruptura e de desvio

Os jovens entrevistados comentam que, às vezes, são considerados lou-


cos por sua opção de romper com os valores dominantes da sociedade mais
ampla. A sensação de estar realizando uma ruptura fica evidente nas decla-
rações de vários entrevistados. Uma jovem cearense de 28 anos, que fazia
parte da comunidade Shalom havia cinco anos, nos explica que “[...] na
comunidade de vida, a pessoa é chamada a largar tudo para viver na comu-
nidade, para viver onde ela for enviada, para viver a presença de Deus
inteiramente, ela larga o seu trabalho, a sua família, o seu emprego para
viver exclusivamente para a evangelização”.
A decisão de sobreviver com doações, sem receber pelo trabalho que faz
e sem controlar suas próprias despesas, não é compreendida pelos pais
desses jovens. Em várias entrevistas, os jovens referem-se à reação de cho-
que e oposição da família ao revelarem sua opção pela vida na comunida-
de. Contam ainda que eles mesmos em seu primeiro contato com a comu-
nidade, ou com a Renovação Carismática, experimentaram também certo
choque e estranhamento devido à enorme distância entre os valores da
comunidade e os da sociedade em geral. Para um entrevistado de 25 anos
da Toca de Assis, a vida em comunidade era saudável e pura:

É uma convivência saudável, [...] sem mácula, uma convivência – como eu posso
dizer pra você – pura, da qual a gente não consegue perceber pela corrupção daqui-
lo que a gente tá vivendo no mundo, né, aquela sedução, a magia do mundo.
Então, eu estranhei. Pra mim, todo mundo aqui é gay. Aquela coisa assim, né. Não
gostava muito das músicas e não tava entendendo nada do que tava acontecendo.

Essa opção de romper com a sociedade desviando-se de seus valores é


claramente assumida pelos jovens com quem tivemos oportunidade de
conversar. Essa ruptura é interpretada não como a passagem da vida juve-

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Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

nil/infantil para a idade adulta, mas como a ruptura com uma vida pre-
gressa impregnada de valores mundanos que agora condenam. Em seus
depoimentos, os jovens entrevistados referem-se a uma ruptura com uma
experiência anterior de vida, descrita como longa. As duas declarações
abaixo ilustram esse discurso e também deixam evidente a relatividade da
experiência temporal. Os jovens falam como se já houvessem tido uma
larga experiência de vida antes do ingresso na comunidade. A primeira é
de um membro da comunidade Canção Nova, de 26 anos:

Foi no ano de 1996 que eu resolvi aprofundar mais [...]. Eu tinha por volta de 16,
17 anos. Na época eu tinha um bom trabalho [...] um excelente trabalho, bom
salário, mas percebi que não estava por completo, precisava dar um passo a mais
decidindo a minha vocação. [...] quando eu resolvi aprofundar nesse caminho.

A segunda declaração é da mesma jovem cearense já citada, membro da


Shalom:

[...] eu conheci a Shalom quando tinha 14 anos. Já faz metade da minha vida que
eu conheço a comunidade, que estou no caminho. Mas eu demorei até descobrir
que a minha vocação era a Shalom e eu relaxei muito também, fiz muita besteira.

Enquanto os membros das comunidades de vida consideram estar se


desviando de um estilo de vida e de valores negativos, a favor do “bem”,
seus pais muitas vezes percebem essa opção dos filhos de maneira oposta.
A reação desses pais assemelha-se à postura dos pais franceses cujos filhos
entraram em “seitas”. Birman (2000, p. 33) comenta que um desses pais
franceses compara as seitas com as drogas. Ambas atraem os jovens, preju-
dicam suas vidas, embotando sua consciência e tornando-os dependentes.
Ambas também seriam sintomas “[...] de uma patologia social mais pro-
funda, que se manifesta sobretudo pela desorientação dos jovens, que não
se sentem concernidos pelos valores que seus pais lhes transmitiram”.
Essa analogia entre seitas e drogas lembra a aproximação feita por Marx
entre religião e ópio. Em ambos os casos, religião e seita seriam culpadas
de privar o indivíduo da vontade própria e da capacidade de escolha, como
fazem as drogas. Essa analogia sugere também que a religião, como as
drogas psicoativas, gera estados modificados de consciência, criando expe-
riências de superação de tensões, relaxando ou dando a sensação de força e
poder. Por essas similaridades, religião e droga tanto podem competir pela

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Cecília Loreto Mariz

preferência dos adeptos15, como podem reforçar-se mutuamente. Esse re- 15. Segundo Dalgalar-
forço ocorre, por exemplo, em religiões que fazem uso ritual de substân- rondo et al. (2004) e
Sanchez et al. (2004),
cias psicoativas. Atualmente, no Brasil, dois grupos religiosos destacam-se
pesquisas no Brasil e no
por isso, o Daime e o Rastafari, ambos com um apelo especial entre a exterior têm demonstra-
juventude (cf., por exemplo, Cunha, 1993). do que a religião pode
Para entender a relação entre droga e religião, pode-se adotar o mesmo moderar o consumo de
tipo de argumento que Weber apresenta para entender a relação entre as álcool e de drogas entre
adolescentes e jovens.
diferentes esferas da vida e a religião. Como citado antes, Weber (1982b)
aponta similaridades que podem gerar ora tensões ora união entre o âmbito
religioso e outras esferas. No caso da esfera política, Weber comenta que o
sentimento de comunhão gerado pela experiência da guerra e da luta contra
um inimigo comum pode competir com, ou reforçar, a comunhão gerada
na esfera religiosa. O mesmo tipo de relação ambígua ocorreria também
entre a religião e as esferas eróticas e estéticas. Assim, tanto as artes como o
erotismo desempenham papéis similares ao das religiões, gerando estados
modificados de consciência, sentimento de solidariedade e fusão; por isso,
as religiões tanto podem competir com elas como podem reforçá-las, de-
pendendo do contexto no qual cada uma dessas experiências é interpretada
e vivida. O que para esse autor parece estar presente em todas as experiên-
cias é a possibilidade de o indivíduo encontrar sentido para sua vida e tam-
bém sentimentos de transcendência, fusão e pertencimento coletivo. Para
usar a linguagem durkheimiana e funcionalista, pode-se dizer que Weber
percebia que tais esferas da vida ameaçavam a religião, na medida em que
podiam ser funcionalmente religiosas.
Com efeito, a experiência de desvio e ruptura vivenciada pelos jovens que
optam pelas comunidades de vida tem apelo e força na medida em que pode
gerar um sentimento de forte pertencimento, característico das minorias. Sem
dúvida, uma minoria que rompe com a sociedade mais ampla procurando dis-
tinguir-se, criando certo sentimento de superioridade, pois possui laços de so-
lidariedade interna extremamente sólidos.

Experiências festivas de efervescência coletiva

Todas as comunidades analisadas realizam grandes eventos musicais


16. Oliveira (2003) for-
que se assemelham a shows profanos de dança e música. A Canção Nova
nece dados e relatos in-
é a que mais se destaca nesse sentido, pela capacidade de agregar multi- teressantes sobre esse tipo
dões nos eventos que organiza16. Um dos membros dessa comunidade de experiência na Can-
comenta: ção Nova.

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Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273

Nós temos um local chamado Rincão do meu Senhor. Esse lugar reúne hoje com tran-
qüilidade 15 mil pessoas em um encontro, acontecem em média dois encontros por
mês. São nos finais de semana e reúnem com tranqüilidade 15 mil pessoas – em eventos
17. A construção desse grandes chega a 30 mil pessoas. E, atualmente, né, já estamos construindo um rincão17
rincão foi concluída em para 60 mil pessoas, porque o atual já não suporta mais, tá se tornando muito pequeno.
2004.

A música tem um papel muito forte nas vivências religiosas em geral,


como tem sido apontado por muitos autores, inclusive Weber (1982b).
Para os jovens, a música parece ser ainda mais importante, fato amplamen-
te reconhecido por qualquer pastoral de juventude. Pesquisas com jovens
evangélicos, brasileiros e argentinos, destacam a importância desempenha-
da pelos grupos e bandas musicais (cf. Seman 1994, Leitão, 1997, entre
outros). Há relativamente poucos estudos sobre o desempenho de bandas
católicas, mas elas são bem numerosas e estão presentes em várias das co-
munidades pesquisadas. Além disso, o fervor de certos jovens em eventos
religiosos musicais de massa, como os realizados por padres cantores, como
o padre Marcelo Rossi e o padre Zeca (“Deus é dez”), tem chamado a
atenção da mídia. Esse fervor assemelha-se ao entusiasmo juvenil em shows
musicais os mais variados.
Em sua análise sobre a busca do sentimento de proteção e aconchego da
comunidade, no mundo contemporâneo, Bauman (2003) refere-se às “co-
munidades estéticas”, que seriam experiências passageiras e de massa, como
shows musicais, cultos de fãs às celebridades e ídolos da mídia, entre outras.
Atribuindo-lhes um sentido próprio e sagrado, o mundo religioso promove
experiências similares e por vezes aparentemente idênticas, que geram tam-
bém sentimento de segurança e proteção.
Sem dúvida, muitas são as experiências que criam esse tipo de senti-
mento: o êxtase em grupos religiosos, a dança, a música, o uso de drogas e
o sexo, e também guerras, lutas, violência e forte engajamento político,
entre outras. Aparentemente distintas, essas experiências assemelham-se
por reforçarem o sentimento de coletividade e por sustentarem posições
extremas e radicais, independentemente de seu conteúdo. A juventude
conhecida pelo lema “sexo, drogas e rock’n roll” poderia estar buscando,
dessa forma, o mesmo que os jovens com seu virtuosismo religioso. Pro-
por a possibilidade de uma interpretação funcionalista desse tipo não sig-
nifica negar interpretações complementares, que levam em conta o con-
teúdo de cada experiência em si, mas tem o propósito de não deixar que os
conteúdos de discursos e práticas tão distintos ofusquem essas dimensões.

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Cecília Loreto Mariz

Considerações finais

Para entender a opção dos jovens pelas “comunidades de vida no Espíri-


to Santo”, procuramos refletir neste artigo sobre o conceito de juventude e
subjetividade juvenil no mundo contemporâneo. Sem ambição de discutir
todas as dimensões ou toda a literatura sobre esse tema, defendemos a idéia
de que se pode falar de uma subjetividade juvenil, apesar de toda a plurali-
dade que a categoria jovem assume em um contexto social marcado por
uma diversidade extrema.
A partir dessa idéia, sugerimos que os discursos de jovens que pertencem
às “comunidades de vida no Espírito Santo”, suas alegadas motivações, os
sentimentos e as experiências de vida que descrevem, expressariam essa su-
posta subjetividade juvenil contemporânea. Argumentamos também que
essa subjetividade não é necessariamente religiosa em termos de conteúdo,
podendo manifestar-se, pelo contrário, em uma forte anti-religiosidade.
No entanto, o que a caracteriza é ser funcionalmente religiosa. Os próprios
movimentos juvenis de luta por liberdade individual estariam alimentados
por experiências grupais de origem coletiva que seriam alimentadas por for-
tes vínculos de solidariedade internos ao movimento.
A subjetividade juvenil teria assim uma afinidade eletiva com experiên-
cias coletivistas e comunitárias, entendidas por Durkheim (1985) como
funcionalmente “religiosas”. Devido a esse tipo de afinidade, os jovens se-
riam os mais aptos a tomar atitudes de heroísmo extremo, a ser revolucio-
nários ou virtuoses religiosos, ou a se engajar em violência radical, optando
por vezes pelo que Durkheim (1977) chamou de “suicídio altruísta”18. 18. Aqui não se pode
Da mesma forma, a música teria muito valor e importância para a ju- deixar de mencionar a
juventude dos chama-
ventude contemporânea por oferecer experiências de transcendência e co-
dos “homens-bombas”,
munhão. A afinidade entre uma subjetividade, ou subcultura, juvenil e
ligados aos movimentos
experiências coletivistas seria, assim, perceptível nos recorrentes fenôme- islâmicos radicais. A luta
nos de “efervescências coletivas” juvenis (tais como manifestações musi- armada no Brasil tam-
cais, orgiásticas ou com alucinógenos) e ainda nas manifestações de violên- bém foi vivida e lidera-
cia geradoras também do sentimento de coletividade. da por jovens.

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de sociologia. Rio de Janeiro, Zahar.
_____. (1991), Economia e sociedade. Brasília, Editora da UnB.
ZANETTI, Hermes. (1999), Juventude e revolução: uma investigação sobre atitude revo-
lucionária no Brasil. Dissertação de mestrado, Brasília, Instituto de Ciência Polí-
tica da Universidade de Brasília.

Resumo
Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião
Dados coletados sobre a Renovação Carismática Católica (RCC) têm revelado a im-
portância dos jovens na criação, na manutenção e no crescimento das chamadas “Co-
munidades de Vida no Espírito”. A maior parte dessas comunidades foi criada para e/
ou por jovens. Dentre as estudadas, a Toca de Assis é a que mais chama a atenção pela
juventude de seus membros, sendo também a que opta por um estilo mais radical de
vida na busca da santidade. A partir desses dados e da reflexão sobre o conceito de
juventude na modernidade, pretende-se neste artigo refletir sobre a radicalidade das
experiências juvenis em distintas esferas da vida, mas especialmente na religião e na

272 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Cecília Loreto Mariz

política, para entender o papel tenso e ambíguo desempenhado pelos jovens em movi-
mentos religiosos diversos.
Palavras-chave: Juventude; Religião; Comunidade; Catolicismo; Movimento carismático.

Abstract
Communities of life in the Holy Spirit: youth and religion
Data collected on the Catholic Charismatic Renovation (CCR) has shown how im-
portant youths are in the creation, maintenance and growth of the so-called “Commu-
nities of Life in Spirit”. The majority of these communities were either founded for or
by young people. Among those studied, “Toca de Assis” is the one that stands out
because of the age of its members, and because it also chooses a more radical life style
in the search for spiritual enlightenment. Based on these data and on the discussion of
the concept of youth in modernity, this paper aims to treat the radicalism of juvenile
experiences in different domains of life, especially with regard to religion and politics,
in order to understand the tense and ambiguous role taken on by youngsters in differ-
ent religious movements.
Keywords: Youth; Religion; Community; Catholicism; Charismatic movement.

Texto recebido e apro-


vado em 7/10/2005.
Cecilia Loreto Mariz é
professora de Sociologia
no Departamento de
Ciências Sociais da UERJ
e desenvolve pesquisa so-
bre o pentecostalismo e
o catolicismo no Brasil.
E-mail: cemariz@alternex.
com.br.

novembro 2005 273


Jovens delinqüentes paulistanos
Antonio Sergio Spagnol

Os jovens que se envolvem com a delinqüência na cidade de São Paulo sem-


pre chamaram a atenção de especialistas de diferentes áreas, e a literatura dos
últimos anos tem oferecido farto material para a elaboração de muitas análi-
ses. Segundo alguns estudos, a primeira causa de mortalidade entre os jovens
na faixa de 15 a 24 anos é o homicídio. O número de jovens que morrem
assassinados no Brasil, segundo a Polícia Militar, é quase sete vezes maior do
que o número de vítimas de homicídios na população total. No ano de
2000, nas Febens do estado de São Paulo, a PM registrou o dobro de inter-
nações de adolescentes acusados de prática de homicídio e tentativa de ho-
micídio. As explicações para isso seguem várias direções, passando pela de-
linqüência, a exclusão social, a cultura adolescente, as gangues de rua, até o
crime organizado.
É interessante notar também que essa violência passou a ser o foco de
preocupações dos próprios jovens. Pesquisas mostram que para 49% dos
jovens que habitam centros urbanos o principal medo e o que faz com que
se sintam mais ameaçados é a violência, independentemente da região em
que moram. Segundo dados da Fundação Perseu Abramo (2001), na re-
gião metropolitana de São Paulo, 42% dos jovens afirmaram já ter visto
pessoalmente alguém assassinado, e em cada três jovens um já foi assaltado.
Outros estudos (cf. Diógenes, 1998; Costa, 1993; Salem, 1995; Guima-
rães, 1998; Vianna, 1998) chamam a atenção para jovens que se agrupam
Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

em gangues para suas práticas delinqüenciais. No caso de Brasília, por


exemplo, Waiselfisz (1998) mostra que, de todos os jovens internados nas
Febens daquela cidade, cerca de 50% já pertenceram ou tiveram ligações
1.O estudo de Dióge- com gangues de rua, bandos ou quadrilhas1.
nes (1998), por exem- Os internos da Febem de São Paulo que praticaram roubo ou furto re-
plo, mostra como se presentam 67% do total, e a taxa daqueles que cometeram homicídios fica
organizam as gangues
em torno de 8,5% (cf. Febem, 2000). Mesmo assim, o homicídio é a mo-
da cidade de Fortale-
za, Ceará. dalidade de crime que mais chama a atenção da população em geral e pro-
voca reações mais dramáticas do que outros tipos de crimes, principalmen-
te o homicídio que choca pela extrema violência com que é praticado. O
que mais impressiona é a crueldade com que os jovens tratam suas vítimas.
Não é somente matar, atirar ou esfaquear uma pessoa, mas torturá-la, cor-
tar, furar, amassar, destruir seu corpo de maneira desumana, sem demons-
trar nenhum sinal de arrependimento. Pelo contrário – e o que se mostra
ainda mais perturbador –, parece haver prazer em matar, em destruir o
outro de maneira bárbara e cruel. Essa preocupação com a forma como é
feito o crime, por parte de jovens ainda adolescentes, revestida de uma raiva
extrema, revela algo inquietante nas relações sociais. E a sociedade, de ma-
neira geral, responde com preconceito e discriminação proporcionais à vio-
lência cometida.
A partir de uma pesquisa de campo realizada na cidade de São Paulo,
no período de 1999 a 2002, tentei analisar esse fenômeno, que me pare-
ceu tão particular quanto amedrontador. O objetivo deste artigo é reve-
lar como se desenvolveu essa pesquisa e levantar questões relativas ao
comportamento desses jovens, bem como esclarecer uma possível rela-
ção com as chamadas “gangues de jovens” e o envolvimento de jovens
pertencentes às classes média e alta na prática de homicídios.
A pesquisa teve início com entrevistas com os internos na Febem Tatua-
pé, que relataram com riquezas de detalhes como cometeram seus crimes.
Por meio dessas entrevistas, pude chegar a outros adolescentes em diferen-
tes locais da cidade. Para o trabalho de campo limitei-me à Zona Sul de São
Paulo, e a pesquisa se concentrou em bairros como Jardim Ângela e Capão
Redondo, com elevadas taxas de homicídio de uma maneira geral e que
figuram entre os mais violentos da cidade. O primeiro já chegou a ser con-
siderado um dos bairros mais violentos do mundo. Também foi escolhida a
favela de Paraisópolis, que pode ser considerada um laboratório de pesqui-
sas, dados os inúmeros estudos de que foi objeto. É uma das maiores favelas
da cidade e faz uma espécie de ligação entre os dois bairros citados e o

276 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

Morumbi, bairro nobre da capital. Foram tomados também dois municí-


pios da região metropolitana de São Paulo, Taboão da Serra e Embu, am-
bos na região sul da cidade. Para efeito de comparação, foram utilizados
três bairros considerados nobres na cidade, o próprio bairro do Morumbi,
cercado pela favela de Paraisópolis, e os bairros de Moema e Itaim-Bibi.
Ao entrar nesse mundo, acreditava que meus personagens se escondiam
nesses locais, mas percebi que, na verdade, sequer conseguiam sair deles.
Caminhando entre os barracos das favelas e as casas mal acabadas da perife-
ria, encontrava jovens armados que conversavam comigo tranqüilamente,
provocando uma sensação estranha: diante de um jovem manuseando uma
arma, contando-me como ele matou suas vítimas, precisava concentrar-me
na pesquisa proposta e, ao mesmo tempo, descobrir as “rotas de fuga”, dos
barracos, das vielas estreitas, como se tivesse que escapar a qualquer mo-
mento. Uma sensação não muito diferente surgia ao entrevistar os jovens
que habitavam as regiões consideradas nobres da cidade: em Moema, no
Itaim-Bibi ou no Morumbi, os relatos dos jovens também provocam medo
e estavam impregnados de desespero.
Não há estudos sobre a delinqüência entre os jovens pertencentes às
classes média e média alta. Entretanto, essa delinqüência existe, mas as in-
formações não chegam a público e seus familiares entram em cena imedia-
tamente para que não haja a menor possibilidade de o adolescente ingressar
na Febem como infrator. A mídia também colabora. As notícias que geram
maiores polêmicas são as de crimes praticados por adolescentes oriundos da
periferia, principalmente se forem cometidos contra a classe média. Quan-
to mais violento, sangrento e espetacular o crime, melhor para a mídia, pois
ele funciona como um forte atrativo. A violência, apresentada sobretudo
como algo perturbador e descontrolado, pode denotar uma crise em rela-
ção ao Estado (cf. Michaud, 1998), que se apressa a apresentar inúmeros
projetos visando à reintrodução do jovem infrator à sociedade. O papel da
mídia, segundo Thompson (1999), é provocar o medo, principalmente na
classe média, insistindo que a violência é oriunda das classes baixas. A in-
tenção é alardear constantemente que a violência está em todas as partes, a
todos os momentos. Glassner (1999), um estudioso da mídia norte-ameri-
cana, diz que a imprensa provoca o medo não no intuito de levantar o
debate sobre a violência, mas sobretudo para transformá-la num evento
dramatizado aos olhos da população.
Quando há debates, de maneira geral seguem divididos em duas fren-
tes: uma defende que o aumento da criminalidade juvenil é conseqüência

novembro 2005 277


Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

da falta de elaboração, por parte do Estado, de uma política eficaz no


combate a esse tipo de infração penal. Defendem o recrudescimento dos
instrumentos legais que inibem a ação criminal dos adolescentes e a dimi-
nuição da idade penal, bem como maior severidade nas aplicações das
penas e, muitas vezes, a idéia da pena de morte, para alguns casos. A se-
gunda frente discute o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, pro-
mulgado em 1990 – e sua real aplicação por parte do Estado. Acusam o
Estado de omissão em relação ao estatuto e de não desenvolver uma polí-
tica voltada para o bem-estar do adolescente infrator.
2. Regiões como Cida- Como fruto desses debates, surgiram diversas organizações dispostas a
de Ademar, Jardim Ân- propor soluções práticas, principalmente quanto à recuperação de menores
gela, Sapopemba e Ja- infratores, como aqueles internados nas unidades das Febens de São Paulo.
baquara, que são tam-
Há também inúmeros projetos direcionados aos jovens moradores de dife-
bém as regiões onde se
concentra o maior índi- rentes bairros da capital, especialmente os da periferia. A tentativa, de ma-
ce de desemprego. Es- neira geral, é resgatar esse jovem do mundo da delinqüência e/ou não per-
ses jovens são os mais mitir sua entrada nele. Mas, apesar de todas essas iniciativas, o problema
atingidos e a violência parece persistir, e a delinqüência juvenil continua ganhando destaque e
impera nesse meio, o
preocupando a sociedade, sobretudo a participação de jovens nos chama-
que os força a se uni-
dos crimes violentos.
rem em busca de segu-
rança. Para alguns, per- Os crimes cometidos por jovens de classe média que chegam à mídia
tencer a um grupo pode não são vistos, de uma maneira geral, como crimes cometidos por “as-
ser uma estratégia de sassinos”, “monstros”, “homicidas”, mas por jovens que apresentam “al-
garantia contra a violên- gum problema” que não conseguimos detectar. A questão principal que
cia. Contudo, o mesmo
se discute nesses casos é o tipo de educação ou problemas não detectados
grupo que dá a sensa-
ção de segurança pode nas relações entre pais e filhos. A pergunta que se faz é: “Onde foi que
se tornar uma ameaça, erramos?”.
já que pode ter a cono- Apesar de encontrarmos jovens de classe média envolvidos com a cri-
tação de “bandidagem” minalidade, a grande maioria dos adolescentes internados na Febem de
ligada à violência (cf.
São Paulo é oriunda da periferia da cidade e pertencente às classes traba-
Cardia, 1998): se a união
em grupos ou outras mo-
lhadoras pauperizadas2. Mas é interessante notar que nessa mesma perife-
dalidades de associação ria encontramos adolescentes submetidos às mesmas condições sociais que
oferece num primeiro em nenhum momento de suas vidas envolveram-se com o mundo do cri-
momento segurança, essa me. Pelo contrário, possuem muitas vezes um discurso de oposição aos
mesma segurança pode demais. No meio do caos em que se encontram, parece que ainda buscam
ser convertida em segre-
uma normalidade de vida no binômio escola-trabalho, que lhes dê um
gação por parte da co-
munidade, que encara o mínimo de esperança de melhoria de suas condições.
grupo como ação de É fato também que a maioria dos adolescentes que cometem delitos
marginais. não está sozinha nessas ações, mas conta com a colaboração de amigos,

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Antonio Sergio Spagnol

vizinhos e até mesmo de pessoas que mal conhecem. Essa união, muitas
vezes momentânea, é considerada, na maior parte dos casos, uma espécie
de organização entendida como “gangue”, bando ou quadrilha. A mídia,
por sua vez, traz esse fenômeno para pauta do dia. Há um grande alarde
sobre as atitudes desses adolescentes, principalmente quando envolve cri-
me de morte ou crimes que caminham no sentido periferia-centro. Nos
últimos anos, esse fenômeno passou a ser percebido como um problema
social e ganhou estatuto de questão nacional.
Contudo, a pobreza por si só não explica a violência nessas áreas, palco
de nossa pesquisa, uma vez que os dados sobre outras regiões da cidade,
igualmente miseráveis, apresentam um número menor de adolescentes
infratores. Além disso, mesmo nas áreas mais miseráveis, apenas uma par-
cela dos adolescentes envereda para o campo da delinqüência. Outros ele-
mentos devem existir que indiquem as causas desse fenômeno.
O modo de inserção social dos jovens de diferentes grupos na cidade de
São Paulo pode ser distinto, mas há uma marca em todos eles: o uso da vio-
lência como forma maior de expressão. Apesar de esse tema ser considerado
preocupante no cenário nacional, a violência envolvendo adolescentes não é
assunto recente e nem menos debatido. O interesse da sociedade por esse
fenômeno vem do século passado e suas diferentes propostas de soluções ca-
minharam sempre juntas.

As gangues

A literatura norte-americana oferece-nos inúmeros estudos sobre a for-


mação de gangues de jovens delinqüentes. A maioria aponta para o fato de
que as gangues são coletivos formalizados nos quais o objetivo principal é
proporcionar ganhos econômicos e sociais a seus membros.
Segundo Klein (1995), gangue pode ser qualquer grupo de adolescentes
cujos membros sejam reconhecidos pelos moradores de determinado terri-
tório como pertencentes a um grupo; identifiquem-se eles mesmos como
pertencentes ao grupo; e tenham cometido um número mínimo de delitos,
fazendo com que a comunidade local, bem como as autoridades, desenvol-
vam em relação a eles e ao grupo atitudes negativas.
Com a deterioração das condições de vida das pessoas pertencentes às
classes trabalhadoras e do relacionamento delas com o Estado, alguns jo-
vens desenvolvem estratégias para se tornarem empreendedores – uma dessas
estratégias é formar gangues. Em vez de rejeitarem a cultura, adaptam suas

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Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

estratégias às oportunidades e aos recursos a que têm acesso. Em contra-


partida, o Estado responde aprisionando e reprimindo seus membros, o
que só faz fortalecê-los cada vez mais. Assim, para Jankowski (1997), as
gangues influenciam a estrutura social à qual pertencem e a estrutura so-
cial da qual estão separadas, assim como influenciam e sofrem influência
do meio no qual estão inseridas. Dessa maneira, o fenômeno das gangues
seria tanto uma resposta às condições estruturais da sociedade como parte
integrante dessas condições.
O objetivo principal desse tipo de organização é proporcionar a seus
membros, basicamente, vantagens econômicas e sociais. “Numa situação
estrutural como essa, as principais atividades da gangue, como organiza-
ção, destinam-se a assegurar os recursos financeiros necessários para pro-
porcionar lazer a seus membros” (Idem, p. 30). Com a deterioração das
condições de vida das classes menos favorecidas e o retraimento do Estado
nas questões sociais, os adolescentes, principalmente aqueles oriundos de
classes menos privilegiadas, buscam novas formas de sobrevivência. Em vez
de rejeitarem a cultura econômica prevalecente, as gangues aceitam os prin-
cípios dessa cultura e adaptam suas estratégias às oportunidades e aos recur-
sos que poderiam ter. Isso não significa que elas estejam empenhadas em
acumular lucro, mas a perspectiva de ganhos, diante de uma situação eco-
nômica incerta, atrai certo número de jovens, sobretudo os oriundos de
famílias pobres.
O jovem que deseja ingressar numa gangue deve passar por uma espé-
cie de ritual de aceitação, que vai desde resistir a ser espancado até realizar
pequenos furtos para satisfazer os interesses dos mais velhos. Ele deve se-
guir uma hierarquia – obediência aos líderes e uso dos códigos internos e
informais para se comunicar. A união é que faz a força do grupo. As ativi-
dades econômicas cotidianamente desenvolvidas pelos componentes va-
riam entre as diferentes gangues, e pode ir desde proteção aos comercian-
tes do bairro até participação em prostituição, passando por roubos e assaltos
diversos (cf. Jankowski, 1991; Cohen, 1955).
Essas explicações sobre a formação das gangues, bem como a atuação
de seus membros nas comunidades norte-americanas, mostram que o fe-
nômeno proporciona ainda um vasto campo de pesquisa a ser investigado.
O que parece ser um consenso nos estudos é que grande parte da violência
das gangues norte-americanas está relacionada às questões socioeconômi-
cas. Para se manterem atuantes em meio à deterioração das condições de
vida e do caos urbano em que se encontram, os jovens unem-se em gan-

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Antonio Sergio Spagnol

gues como estratégia de sobrevivência e adaptam tais estratégias às oportu-


nidades e aos recursos a que têm acesso.
Nos Estados Unidos, as gangues ganharam espaço e fama. Elas mantêm
relações estreitas com a polícia, por exemplo, que as utiliza para expandir
seu conhecimento em áreas onde não consegue penetrar. Como não há
uma política pública efetiva, as prisões dos membros das gangues tornam-
se um círculo vicioso. A polícia prende, mas algum tempo depois o jovem
acaba sendo libertado. Assim, ambos – a polícia e os membros das gangues –
são beneficiados. No caso da imprensa, também há benefícios mútuos: ela
se utiliza das gangues para obter histórias, pelas quais a comunidade pode
ser influenciada, e a gangue se utiliza da mídia para inserir-se no espaço ur-
bano e fortalecer-se.
Todas as explicações sobre as gangues norte-americanas, junto com aqui-
lo que nos chega pela mídia impressa, e também o cinema, alimentam o
imaginário social a respeito da delinqüência juvenil e, de certa forma, in-
fluenciam nosso olhar sobre os adolescentes infratores. Podemos pensar
em gangues de delinqüentes no Brasil, em especial na cidade de São Paulo,
tal como existem nos Estados Unidos?

No Brasil

No caso brasileiro, a utilização do termo gangue, quando se trata de


delinqüência juvenil, parece ser aleatória, especialmente por parte da mídia.
Com ele se define qualquer grupo de jovens que pratique diferentes atos
infracionais. Quando um grupo é detido, não raro o termo gangue é utili-
zado para defini-lo, bastando que estejam presentes, no momento da de-
tenção, mais de três jovens, mesmo que apenas suspeitos de um determi-
nado ato infracional.
Outro termo muito utilizado no Brasil é bando, que geralmente é em-
pregado para designar um grupo de delinqüentes organizado para um ob-
jetivo comum e imediato, como um assalto, um resgate de prisioneiro ou
um ataque, que é seguido do desmantelamento do grupo.
A quadrilha, grupo formado por pelo menos quatro elementos, reali-
za ações semelhantes às do bando, mas não há necessariamente o des-
mantelamento do grupo. “As quadrilhas são compostas por um número
relativamente pequeno de pessoas, em geral jovens, que se organizam
com a finalidade de desenvolver atividades ilegais para o enriquecimento
rápido de seus membros” (Zaluar, 1997, p. 44). Isto configura um dos

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Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

pontos em comum entre as quadrilhas brasileiras e as gangues norte-ame-


ricanas: a busca de enriquecimento rápido por vias ilegais.
Interessante também é a relação que os membros de uma quadrilha es-
tabelecem com seus vizinhos. No Brasil, essas relações são bastante explíci-
tas. Um dos pontos referentes ao pertencimento de uma quadrilha a deter-
minado bairro é seu poder de interferir no cotidiano dos moradores (ao
definir, por exemplo, dias de luto, toque de recolher em escolas, em ruas, a
abertura do comércio etc.), constituindo o chamado poder paralelo. Diante
da ineficácia da atuação do Estado na manutenção da ordem e da seguran-
ça, as quadrilhas tomam a dianteira, ora auxiliando os moradores da locali-
dade, ora punindo com a expulsão deste ou daquele morador, bloqueando
ruas, fechando estabelecimentos, entre outras formas de sanção. Os delin-
qüentes acabam ocupando o espaço deixado pelo Estado, que não supri as
necessidades dos moradores, deixando-os à mercê daqueles. Grande parte
aceita, ou é obrigada a aceitar, esse poder em troca de certa proteção. Os
que não aceitam são punidos. Um dos pontos principais dessa anuência é a
promessa da quadrilha de defender os moradores contra bandidos de ou-
tros bairros. Segundo Zaluar, que trata mais especificamente da cidade do
Rio de Janeiro, “numa cidade cada vez mais dividida em territórios contro-
lados por quadrilhas e comandos infestados de pequenos ladrões e estupra-
dores, é a quadrilha local que respeita as regras de convívio com o trabalha-
dor que exerce a segurança” (1997, pp. 47-48).
Dessa forma, “o território ocupado, ao mesmo tempo que é área de se-
gurança dos bandidos, torna-se, para os moradores, um espaço protegido
das agressões de elementos da própria área e de bandidos de fora” (Guima-
rães, 1998, p. 94). O poder dos traficantes aumenta quando conseguem
dominar por completo o território, punindo os moradores que infringem as
regras determinadas por eles.
Na cidade de São Paulo, não são raros os casos de violência que têm
jovens como protagonistas – que a mídia classifica como “pertencentes a
gangues”, quadrilhas etc. –, e os motivos alegados são tentativa de invasão
da área ou simplesmente um olhar “enviesado”, constituindo os chamados
crimes cometidos por motivos fúteis.
Os traficantes paulistas seguem o mesmo ritmo dos cariocas, apenas
com alguns anos de atraso em relação ao controle e à administração do
tráfico. Grande parte da violência perpetrada pelos traficantes das fave-
las paulistas tem também como causa o controle de territórios, disputa
de pontos de venda de drogas e vingança entre os grupos. Os jovens e

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Antonio Sergio Spagnol

adolescentes, nesse contexto, participam como agentes e como vítimas.


O jovem, especialmente morador da periferia, associa-se ao tráfico, as-
sim como quando se organiza em quadrilhas, como forma de ascensão
social rápida e de participação no mercado de consumo, inacessível de
outra maneira.
No caso da cidade de São Paulo, as quadrilhas, sobretudo de traficantes
de drogas, não parecem ocupar o papel do Estado no que diz respeito ao
auxílio às comunidades. Não seguem a máxima de estar presente onde o
Estado é omisso. O controle maior é direcionado ao tráfico. A interferência
na comunidade é grande no sentido de se fazer obedecer, como por exem-
plo ao proibir a circulação de carros e pessoas numa determinada parte da
favela, fechar as portas dos estabelecimentos comerciais como forma de
respeito a algum traficante morto ou impedir a passagem numa determi-
nada rua da região. Isso tudo é imposto, salvo pequenas exceções, e nada é
oferecido em troca, como ajuda aos doentes, reformas de casas ou constru-
ção de qualquer outro tipo de empreendimento que seja necessário para a
comunidade. A imposição das vontades dos traficantes é respeitada pelo
medo, e o silêncio é a resposta. Nesse contexto, a participação dos jovens
como autores de crimes graves é extremamente reduzida. Eles aparecem
num segundo plano ou como coadjuvantes dessas ações.

Em São Paulo

Não pude constatar em minha pesquisa a presença de jovens organiza-


dos em grupos com a finalidade de praticar crimes ou outras atividades
ilícitas consideradas graves. Na cidade de São Paulo, pelo menos nas áreas
por mim pesquisadas, não há indícios de jovens organizados em gangues,
tal como esse fenômeno é definido por pesquisadores.
A preocupação principal em minha pesquisa reside nos jovens que prati-
cam atos considerados graves, como os homicídios. Nos locais pesquisados,
esses jovens não estão ligados a uma gangue ou a qualquer outro tipo de
grupo. Eles estão, sim, ligados à comunidade e se identificam como tal. Em
seus discursos, pode-se encontrar a região como característica principal de
sua origem: “Sou de Santo Amaro”, “Sou do Taboão”, “Sou do Capão”.
Apesar de haver uma grande identificação com seus bairros e região, não há
identificação com grupos ou gangues. Eles circulam pelos bairros como
moradores, mas não como pertencentes a esse ou aquele grupo, e os relatos
mostram tal independência:

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Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

Resposta – Aí meu... num tem essa de grupo... de gangue... aqui é cada um por si.
Se eu tenho uma treta cum camarada, eu vô lá e vejo o que dá... vô chamá?...
ninguém não! É comigo memo...
Pergunta – Você nunca se envolveu com uma gangue aqui do Capão ou de Santo
Amaro?
Resposta – Eu não... nunca vi esse negócio.
Pergunta – Mas como, se você falou que fez um assalto e estavam em quatro?
Resposta – Ah! Mas tudo camarada daqui... sem esse negócio de gangue. A gente
tava aqui e falamo: vamo fazê?... Aí Zito [um amigo] disse: vamo chamá mais
gente. Chamamo mais dois e falei: tá afim da fita? Tá? É isso... fizemo. Depois
cabô... é isso aí... tá ligado?
Pergunta – Mas esses dois não eram seus amigos?
Resposta – Amigo?... ah, amigo assim... daqui, né? Tá ligado? Tavam sem fazê
nada, aí veio com a gente! Depois acabô... se pintar outra fita quem sabe a gente
vai de novo (R. S., 17 anos, Capão Redondo, internado três vezes na Febem Ta-
tuapé por roubo).

Pergunta – Aqui no Taboão não tem gangue?


Resposta – Gangue?... Bem... o pessoal fala, né? O tráfico... coisa e tal.
Pergunta – Não... eu estou falando de jovens como você, 16, 17 anos... que se
juntam em grupos pra fazer uma fita...
Resposta – Eu não conheço... Eu sempre fiz sozinho... quer dizer... de vez em
quando, cê sabe... a gente faz junto.
Pergunta – Como funciona....
Resposta – A gente cumbina com um, com outro... o que tivé livre vai e quem tivé
a fim, né? Mais daí é só... cabô, se pintá de novo... (W. P., 16 anos, Taboão.)

Os jovens envolvidos na criminalidade agem segundo a expectativa do


momento, não há uma pré-elaboração de planos ou uma hierarquia. Os
que atuam em grupos não se sentem obrigados a se submeter a uma estru-
tura hierárquica, a rituais de aceitação ou de qualquer outro tipo para
participação na prática de delitos. O que há em São Paulo, em compara-
ção, são quadrilhas, similares às existentes em outras capitais, mas a pre-
sença de jovens na estrutura geral delas é secundária em quantidade e im-
portância. São poucos os adolescentes que controlam grupos de tráfico na
cidade. Os jovens quadrilheiros atuam como mensageiros, olheiros, entre-
gadores (aviões) de drogas e até como matadores de clientes endividados e
moradores que se opõem ao tráfico. Não ocupam o papel de grandes che-

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Antonio Sergio Spagnol

fes, de controladores do tráfico ou mesmo da “boca de fumo”. Eles se


reconhecem nessa posição ao se referirem aos comandantes por “pais”,
pois eles são, na verdade, filhos do tráfico.
O tráfico não deixa nenhuma dúvida quanto à forte atração que exerce
sobre uma parte dos jovens da periferia. As entrevistas realizadas com jo-
vens infratores em diferentes bairros de São Paulo indicam que esse “fascí-
nio” pela delinqüência se expressa no desejo de dominar, impor sua vonta-
de ao outro, e é visto por todos os demais membros como uma atitude de
grande relevância. Num roubo ou num assalto, por exemplo, levar o fruto
do roubo não é tão importante quanto humilhar o outro durante a ação –
dominar da forma como “bem entender”, segundo eles. A satisfação após a
ação criminosa pode ser notada quando recontam detalhes, para eles pró-
prios, daquilo que presenciaram. O relato dos jovens os identifica como
pertencentes ao grupo e legitima a ação. Acredito que essas ações podem
indicar que as relações baseadas num princípio de reciprocidade estão de
certa forma rompidas e podem, assim, fazer emergir outros laços sociais,
baseados no fascínio pelo poder de destruição.

Destruição

Para a população em geral, é muito mais compreensível a ação de um


indivíduo que rouba para sobreviver, que não tem o objetivo específico
de matar o outro, mas se apossar de bens materiais, do que em relação
àquele que anda armado e faz do roubo sua profissão e da morte do ou-
tro um meio de obtenção de prazer, um capricho. São os chamados cri-
mes “insensatos”, segundo Katz (1988).
Um jovem internado na Febem Tatuapé relatou como ele e um amigo
terminaram com a vida de seu ex-patrão. O jovem trabalhava numa loja de
ferramentas na região central da cidade de São Paulo havia dois anos. Se-
gundo ele, seu patrão, de cerca de 60 anos, agia sempre como se ele, ado-
lescente, fosse “um qualquer”, sempre falando duro e de “cara feia”. Diver-
sas vezes o patrão, que morava sozinho e tinha apenas uma empregada,
mandou que levasse compras pessoais até sua casa. Por detestar essa ativi-
dade, nutria a vontade de um dia poder assaltar aquela casa e, como o
homem morava sozinho, acreditava que não encontraria grandes dificul-
dades. A idéia ganhou força quando o jovem foi demitido, segundo ele,
“sem mais nem menos”. Convidou um amigo da rua para a empreitada.
Chegaram armados, de madrugada, e seguiram pela porta lateral, onde o

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Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

rapaz sempre deixava as compras. Enquanto ele e o amigo reviravam a sala,


foram surpreendidos pelo proprietário, que, espantado com a presença do
ex-funcionário, questionou o porquê daquilo. Os rapazes não responde-
ram e iniciaram uma sessão de espancamento descontrolada. Segundo ele,
“chutavam tudo que viam na frente”, apesar de armados.
Com uma espátula de abrir cartas, fizeram vários furos no corpo do
homem, que faleceu no centro da sala em meio a uma poça de sangue. O
adolescente, então, ergueu um vaso de flores “do tamanho de um balde” e
soltou-o sobre a cabeça do ex-patrão, já morto. Antes de sair, o jovem
voltou e pisou com a ponta do pé no sangue que estava no chão.

Pergunta – Por que você pisou no sangue?


Resposta – Aquele homem pisou ni mim por dois anos, fui lá e pisei nele.
Pergunta – O que vocês levaram de lá?
Resposta – Nada... a vida dele.
Pergunta – Você acha que precisava matar seu ex-patrão?
Resposta – Acho... ele sabia quem eu era.
Pergunta – Por que você não atirou nele?
Resposta – Porque daí era mais rápido. Ele precisava apanhá! (P. S., 17 anos, Febem
Tatuapé).

Outro jovem, este de classe média, relatou um caso ocorrido com ele e
seu amigo:

Resposta – Tava eu e um amigo meu lá na [avenida] Faria Lima, perto da Dacon.


Tava dando uma banda lá e aí a gente pensou em pegar um carro pra gente ir até o
Guarujá dar umas volta na praia. Era o quê? Umas dez horas e era sábado ainda. Aí
a gente viu um véio num Vectra estacionando numa esquina, assim, perto da
avenida. Era um véio que tava manobrando devagarzinho... olhamo e falamo: “Aí,
é esse aí?”. Amigo meu falou: “Só se for agora!”. Eu tava com uma arma, meu
amigo tinha um 38. Eu fui na porta do motorista e enquadrei. “Aí, tio, sai! Sai!” O
véio falou: “Que sai o quê? Sai você, moleque!”. “Porra”, eu falei! Qualé que é
desse véio?... “Sai daí, meu!” Meu amigo tentou abrir a outra porta, mas tava
travada. Aí, dei um grito “Aí, sai daí véio, se não vou estourar a sua cabeça!” Aí ele
parou e ficou olhando pra mim assim... E não saiu... coloquei o cano encostado no
vidro e atirei... acho que foi na barriga dele, ele caiu assim pra trás... aí caimo
fora...
Pergunta – Na Faria Lima? Ninguém ouviu?

286 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

Resposta – Ah! Quando o homem caiu pra trás saimo correndo... não vi ninguém...
Pergunta – O homem morreu?
Resposta – Não sei... acho que não... (P. J., 18 anos, Morumbi, duas passagens pela
Febem por roubo. O pai é advogado e possui um carro modelo Vectra, mesmo
modelo que ele pretendia levar da vítima).

Esses dois crimes não se enquadram no que poderíamos considerar moti-


vação para o roubo ou mesmo vingança, como no primeiro caso. Apesar de
figurar como roubo, eles transcendem as justificativas de aquisição mate-
rial. Para estudar essas ações devemos levar em consideração a dinâmica
emocional que envolve o crime em si e também as próprias definições que
o jovem apresenta aos outros, isto é, a auto-imagem que ele elabora. Se-
gundo Katz (1988), devemos prestar atenção nos fatores que relacionam o
simbolismo do mal e as emoções de desvio, assim como nas características
da prática na cena onde o crime ocorreu.
Os jovens, sobretudo os que habitam a periferia e estão envolvidos em
infrações graves, passam boa parte do dia sem fazer absolutamente nada.
Geralmente, após um assalto, um crime ou outra participação numa ação
grave, eles se retiram por um período, ficando fora de combate, “afastados”,
por algumas semanas, enquanto consomem o fruto do assalto. Os que tra-
balham com o tráfico estão mais ocupados no final da tarde e à noite, quan-
do todos os gatos são pardos. Normalmente passam o dia vendo televisão,
jogando bola nos poucos campos de terra que ainda existem na periferia,
dormem, soltam pipa, usam droga e fazem sexo. Nada incomum à vida da
maioria dos adolescentes, principalmente se se acrescentasse o item escola a
essa lista. Uma vida que, se analisada por quem está fora dela, de certa forma
parece até hedonística.
Os jovens que entrevistei, apesar de levarem uma vida em que o crime
violento faz parte de seu cotidiano, conseguem combinar outros tipos de
ações entre um crime grave e outro. O que é característico é que suas ativi-
dades estão entrecortadas pela delinqüência, o que os obriga a levar uma
vida difusa, na qual praticamente tudo o que fazem está envolvido por
ações ilícitas, desde suas relações mais pessoais, familiares, até o espaço em
que transitam. O que os seduz é a própria ação criminosa. Essa talvez seja a
grande diferença entre os criminosos jovens e adultos. Os jovens vivem essa
qualidade sedutora da ação delinqüente; já os adultos, agem mais racional-
mente antes e depois da ação. O jovem busca emoções, enquanto os adul-
tos fazem de sua vida criminosa uma profissão. Um jovem internado na

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Febem Tatuapé relatou o seqüestro relâmpago de uma jovem, próximo ao


bairro do Butantã, zona oeste de São Paulo:

Resposta – Camarada nosso já tinha dado a fita pra nóis. Eu e outro cara aí esperamo
a dona sair, era cedinho, assim sete hora, acho. Mó casão, cara. Ela foi tirando o
carro assim de ré, quando saiu na calçada enquadramo, cara. Tirei o trezoitão
assim, ô meu! Num tem outra. Ela ficou vermelha, começou a tremer, assim. E eu
vai, vai, vai!
Pergunta – O que você sentiu na hora? Lembra?
Resposta – Ô, meu! Senti uma coisa assim, esquisita. O dedo ali, cara, hum, num
sei não. O diabo atenta, num atenta? Dá uma vontade de apertá. Mas eu só dei
uma assim [um soco] na cabeça dela. Aí a gente foi no carro dela até o banco, mas
fui assim, na maió adrenalina, cara! Faltô isso pra apertar o cano! (W. A., 16 anos,
Paraisópolis, internado na Febem por esse seqüestro, que acabou na porta do caixa
eletrônico, onde foram pegos pela polícia).

Esses jovens levam uma vida com uma significação especial e, além de
manterem uma estrutura temporal aberta (não há o que fazer com o dia e
com a noite a não ser reafirmar a delinqüência), também organizam uma
estrutura social que engendra as diferentes linhas de ação. Vivem, assim,
constantemente entre dois pólos de instigação social. Por um lado, há a
opressão institucional que a todo instante lhes cobra a obediência à ordem
e os aconselha a seguir o caminho da “regeneração”. Por outro lado, não
têm como fugir do mundo da delinqüência. “Devem por essa via atualizar
periodicamente seu repertório de práticas deliqüenciais, ampliar seu raio
de ação e de contato. Estender seu currículo, se tornar cada vez mais auda-
cioso, enfrentar todos e todas as circunstâncias com que se defrontam em
seu caminho tortuoso” (Adorno, 1991, p. 208).
A classificação de desviantes, que os outros elaboram, só vem de encon-
tro às suas expectativas. Há um forte apelo entre esses jovens de se configu-
rarem entre os seus como uma espécie de outsiders. A forma de andar, os
gestos com os braços, com as mãos, as gírias utilizadas, não são característi-
cas apenas do jovem da periferia, mas também estão presentes, pelo menos
em parte, entre os adolescentes das classes mais abastadas. Utilizam o corpo
como forma de linguagem. Os jovens da classe média “imitam” os jovens
da periferia, identificando-se com as roupas, a linguagem, o gestual, o rap
que invadiu os condomínios dos bairros nobres da cidade. Ser tachado de
marginal pelos outros chega a ser uma conquista. De maneira geral, o pri-

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Antonio Sergio Spagnol

meiro passo na maioria das carreiras desviantes é a omissão de um ato não


conformista. Não é proposital, não há por trás disso uma inconformidade
intencional (cf. Becker, 1973).
Em diversos momentos da pesquisa pude constatar que os jovens se sen-
tiam eufóricos em relatar com riqueza de detalhes os assaltos, as mortes, as
ações. Era praticamente impossível anotar tudo o que falavam: as entradas
nas casas, as fugas, as mortes das pessoas como se tivessem cometido atos
heróicos e a aceitação por parte dos outros, tudo reafirmava esse heroísmo.
Apesar de internados na Febem, o relato possuía a mesma emoção. A
internação era apenas um detalhe, como se houvesse a necessidade de reafir-
mar na negação. Há momentos esparsos de resignação, de solidão, mas que
são rapidamente suplantados pelas descrições de seus crimes e pela esperan-
ça de sair da instituição. São momentos em que esses jovens transcendem
um dilema existencial, que é relacional e interno (o que sentem), à identida-
de exterior (o que pensam deles).
O espaço físico interfere também nessa construção, uma vez que é um
espaço de desprazer, principalmente a periferia. É um espaço que sensibi-
liza negativamente o sujeito, que passa então a lutar contra toda situação
desencadeadora de desprazer a fim de conseguir um equilíbrio entre prazer
e desprazer (cf. Lorenz, 1988). Um dos resultados dessas ações é que o
homem não investe em “empreendimentos que prometem ganho de pra-
zer a longo prazo. O que resulta uma impaciente demanda de satisfação
imediata a cada novo desejo” (Idem, p. 46). Entre um momento desejante
e outro, há o vazio que precisa ser preenchido. É a sensação de vazio que
assinala o momento em que é preciso preencher os espaços interiores (cf.
Sissa, 1999), o que não significa matar, mas também beber, comer, fazer
sexo etc. Ou, de outra forma, matar a fome, matar a sede, matar o outro,
o que se realiza fora dele. Essa sensação, relacionada com o outro, depen-
dente do outro, está também vinculada ao campo do erótico.
A periferia é muito feia. Os jovens que habitam essas regiões, em mui-
tos casos, sentem-se envergonhados de mostrar suas residências. A ima-
gem é sempre impregnada de negativismo, desvantagens em relação aos
outros bairros e, conseqüentemente, às outras pessoas. Eles demonstram
isso num discurso misto de revolta e orgulho: revolta por estarem “aban-
donados” nessa situação e orgulho pela tentativa de impor-se por esse
negativismo.
O jovem pertencente à classe média tem também esse mesmo posi-
cionamento e os mesmos dilemas. A imagem que prevalece para o senso

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comum é a de que são na verdade um bando de “rebeldes sem causa”,


mas o sentimento de falta é o mesmo do dos jovens da periferia. Os
relatos são os mesmos.
Segundo Bourdieu, pode-se “representar o mundo social em forma de
espaço (e várias dimensões) construído na base de princípios de diferencia-
ção, ou de distribuição, constituídos pelo conjunto de propriedades que
atuam no universo social considerado, quer dizer, essas propriedades po-
dem conferir, ao detentor delas, força ou poder nesse universo” (2000, pp.
133-134). Cada um dos agentes estaria em posição relativa nesse espaço,
cada um numa região determinada dele, e ali os indivíduos estabelecem
suas relações. Assim, o espaço pode ser descrito também como “conjunto
de relações de forças objetivas impostas a todos os que entram nesse campo
e irredutíveis às intenções dos agentes individuais, ou mesmo às interações
diretas entre os agentes. O que existe, portanto, é um espaço de relações o
qual é tão real como o espaço geográfico” (Idem, p. 137). É também nesse
espaço que os jovens se relacionam e traçam seus objetivos de vida. É aí que
falam sobre suas ações e planejam seus “crimes”. Esse espaço funciona
como estilo de vida e, portanto, não é um espaço qualquer, mas está forte-
mente marcado e preenchido de signos inclusivos, “que demarcam a pre-
sença do controle daquele território pelo grupo ou comunidade [...]. O
espaço tende a ser lido assim a partir das categorias absolutas ‘nosso’ e ‘de-
les’, aliás como os demais valores associados a essa dinâmica” (Costa Go-
mes, 2002, pp. 64-65).
A representação que o jovem tem do mundo social e a construção da
visão de mundo oriunda dessa percepção constituem a visão de sua própria
posição nesse mundo – é sua identidade social (cf. Bourdieu, 2000). O
problema surge quando essa identidade se defronta com a realidade. Isto
é, seus anseios e suas vontades são cerceados diante do real, impossibilitan-
do a ele de ser um indivíduo, tomado aqui no sentido dado por Horkhei-
mer de que “não significa simplesmente a existência sensível e espaço-
temporal de um membro particular da espécie humana, mas, além disso
tudo, a compreensão de sua própria individualidade como um ser huma-
no consciente, inclusive o reconhecimento de sua própria individualida-
de” (1976, p. 139). Contudo, tanto na periferia como na zona central, a
individualidade pressupõe um sacrifício no que diz respeito à realização
dos anseios pessoais que ele próprio percebe como difíceis de serem reali-
zados diante da carência a sua volta. E, segundo Horkheimer, o poder
social é hoje mais do que nunca mediado pelo poder sobre as coisas. Quanto

290 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

mais “intensa é a preocupação do indivíduo com o poder sobre as coisas,


mais as coisas o dominarão, mais lhe faltarão os traços individuais genuí-
nos, e mais sua mente se transformará num autômato da razão formaliza-
da” (Idem, p. 141).
Uma das alternativas é correr riscos, buscar ideais a todo custo. Se ele
consegue algo que traga benefício, na esfera legal da jurisdição, sentir-se-á
integrado; caso contrário, a resposta à negação será a violência. Os jovens
investem nos riscos e ao mesmo tempo, paralelamente, refletem sobre sua
existência. Em muitos casos esse investimento é contra outros jovens que
possuem uma imagem inversa à deles, ou seja, o que ele busca é o que o
outro é, o que o outro tem. Não é raro os jovens da periferia se referirem
aos jovens de outras regiões mais abastadas com termos como “riquinho”,
“boyzinho”, “mauricinho”, para desmerecê-los, ou então como “cuzão”,
“bundão”, para agredi-los. Ou ainda, numa mistura dos dois: “boyzinho-
cuzão”, “mauricinho-bundão”.
Numa ação violenta, como um homicídio, esses jovens buscam a todo
custo reverter os signos visíveis de desvantagens no jogo da inserção so-
cial (cf. Cassab, 2001) e, sorrindo, negam o sofrimento diante do dano
causado. A equação é invertida e a integridade inviolada, pelo menos na-
quele momento. Na verdade, eles estão vingando os outros fracassos, para
obter o respeito que lhes é devido, ou que acreditam que lhes é devido
(cf. Katz, 1988).
Para Sennet (1999), o capitalismo provocou um processo de corrosão
do caráter, sobretudo naquelas qualidades que ligam os seres humanos uns
aos outros e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável. As
pessoas passaram a agir da maneira como o sistema se impõe, isto é, ele não
permite que as pessoas desenvolvam experiências ou construam uma ima-
gem positiva de suas vidas. O caráter, como diz Sennet, concentra-se sobre-
tudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. São traços
pessoais que valorizamos em nós mesmos e pelos quais buscamos que os
outros nos valorizem, e que dependem de virtudes estáveis como a lealdade,
a confiança e a ajuda mútua. Contudo, nota o autor, essas características
estão desaparecendo com o capitalismo moderno. As pessoas que não se
enquadram nesse novo processo capitalista são jogadas para fora do sistema
e, o que parece ser um agravante, sentem-se inferiorizadas e humilhadas
diante do fracasso. Estar inserido numa sociedade em que a superabundân-
cia é vital e ao mesmo tempo ser excluído dela suscita sentimentos de humi-
lhação e também de ressentimento (cf. Oliveira, 2000) para com o outro.

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Da mesma forma que a sociedade o segrega, o jovem reage atacando-a com


o isolamento. A violência é sempre uma resposta a outra violência, é assim
que as coisas são percebidas (cf. Dadoun, 1998).
Um jovem que participa do tráfico de drogas no bairro do Capão Re-
dondo explica seus dois trabalhos anteriores ao tráfico da seguinte maneira:

Resposta – Tinha que tá lá sete da manhã. Chegava já tomava dura, tá ligado? Aí, tá
atrasado, tá atrasado. Tinha que ficá carregando caixa até as oito, nove, depois
ficava empacotando até as cinco. E só dura, só dura. Ia pro almoço, voltava, aí tá
atrasado, tá atrasado. Uma vez um saquinho tava furado, caiu a mantega de uma
mulher, ele veio me empurrou, sai! Na frente de todo mundo. Que jeito, meu? Até
a dona falô: aí, não foi nada. Cê qué o quê?
O outro eu era ajudante de pedrero. Mas ali meu, era que o pesado era comigo, tá
ligado? Carrega aquilo, aquele outro. Pega o tijolo, aí faz a massa. E o véio ficava lá,
faça isso, faça isso. Tudo eu, tá ligado? Ganhar o quê? Sai! Isso não é vida! E tem
também esse negócio de primeiro grau. Tem primeiro grau? Tem segundo grau?
Vá se fuder! (P. W., 18 anos, Capão Redondo).

Para ter um tênis de marca que pode proporcionar-lhe satisfação e pres-


tígio diante de seus iguais, um jovem não vê nenhum problema em tirar a
vida de outra pessoa, mesmo que seja a de um jovem como ele. Há inúme-
ros casos na mídia sobre homicídios de jovens que se recusaram a entregar
um boné de marca, um tênis da moda ou outro acessório qualquer a um
delinqüente.
Ter uma arma também concede poder e prestígio. Atrai a atenção de
quem se sente inferiorizado e também de potenciais companheiras, que
vêem nisso um sinal de status. Para manter-se nesse meio e satisfazer seu
desejo de aquisição, o jovem delinqüente comete outros pequenos crimes
que caracterizam o seu cotidiano. Ele leva uma vida especialmente seduto-
ra para quem quer ter algo, e consegue tê-lo grande parte do tempo. Esses
pequenos crimes vão desde sair de um bar sem pagar até furtar lojas ou
pessoas na rua, e muitas vezes exercem uma atração independentemente
do ganho material: furtar um doce na padaria, levar uma peça de roupa
qualquer na loja e sair sem pagar, furtar revistas das bancas etc. Não é o
valor da mercadoria que justifica o roubo, mas sim o prazer de fazê-lo. O
mesmo acontece com o vandalismo e as depredações, ações que não satis-
fazem o desejo de aquisição, mas o desejo de praticá-las. Praticar o ato é o
que importa. Para jovens que picham muros ou monumentos, não é a

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Antonio Sergio Spagnol

pichação em si que lhes proporciona prazer, mas a proibição do ato. Por-


tanto, quanto mais alto o local, mais difícil o acesso, mais ilícito o ato,
maior o prazer. Um doce furtado da padaria é mais gostoso do aquele
comprado. Isso transpassa a questão material. O prazer é que os crimes são
furtivos e freqüentemente emocionam os praticantes.
A emoção do furto é criada basicamente em três momentos: primeiro,
esse tipo de ação gera a experiência de ser seduzido pelo ato ilegal, ilícito, o
que torna o sujeito pertencente a um meio, isto é, a algum meio, já que
não se sente pertencente a nenhum; segundo, provoca a reconquista das
emoções, o que o torna normal; e, por fim, a apreciação do significado
reverbera uma emoção de euforia (cf. Katz, 1988). Contudo, esse estilo de
vida impõe ao jovem uma constante vigilância que determina seus passos e
objetivos de vida, que passa a ser entrecortada pelo inesperado. Ele vive
numa espécie de matar ou morrer que toma conta de seu cotidiano.
Esse processo não afeta somente jovens pobres da periferia, mas envol-
ve também jovens de bairros mais abastados da cidade. Na pesquisa, não
encontrei um número elevado de jovens nesses bairros que já tivessem
praticado assassinatos. Mas os poucos encontrados demonstram a mesma
indiferença para com suas vítimas que os da periferia, com “grande” envol-
vimento na criminalidade. O que os iguala é pertencerem à mesma faixa
etária e o que os diferencia são as classes sociais distintas. O relato de um
jovem de 16 anos, morador do Itaim-Bibi e estudante de um colégio cató-
lico do Morumbi, é esclarecedor. Ele nunca foi internado na Febem, mas
disse já haver sido preso duas vezes pela Polícia Militar, uma por roubo e
outra por agressão. Mas os dois casos, segundo ele, “não deu nada”. Tudo
foi resolvido com os advogados do pai.

Resposta – A gente tava indo pra [rua] Funchal e entramo numa banca que tem lá
perto e ficamo ali olhando. Tinha uma pá de revista legal. Saca aquela do Batman,
aquela grandona, nova, do Cavaleiro das Trevas? Então, queria levar aquela. Falei
pro cara: Vô levar essa daqui... posso pagar depois? O cara riu e falou: Claro que
não! Cê acha que eu vô deixar você levar a revista assim na manha? Nem fudendo!
Aquele jeito dele, cara... aquele jeito, meu... nem falei nada... dei um soco na cara
dele, meu... ele espatifou no canto da caixa dele. Tava com meu canivete, devia era
ter dado uns furo nele. A sorte era que tinha uma pá de gente lá fora. Aí, ele quis
levantar, pisei na cara dele! [Rindo] Ah! Seu bosta! Aí, vô levar a revista que eu
quiser aqui e cale sua boca, falô? Peguei um livrão que tinha assim na prateleira e
taquei nele assim. Ele ficou lá resmungando...

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Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

Pergunta – O que você fez com a revista?


Resposta – A do Batman? Sei lá... acho que nem levei... é não levei nada não...
[rindo] deixei lá, mas foi um barato! (V. R.,16 anos, Itaim-Bibi).

A questão não é somente o roubo, como nesse caso, mas a indiferença


descrita, a arrogância e o desprezo para com o outro. É a revelação da carên-
cia de referenciais, buscados constantemente, numa espécie de procura in-
saciável. Esses referenciais não são encontrados claramente demarcados no
sistema social. Pelo contrário, o caos em que vivem física e psicologicamen-
te indica que a sociedade não é organizada por apenas uma referência dis-
cursiva, mas por diferentes discursos. “Embora seja demandado por ele
escolher entre duas formas dominantes do laço social, a reivindicação ou o
conformismo, o adolescente identifica um terceiro modo entre exigir e re-
signar-se. Esta terceira saída é a infração, um misto de subversão do poder
do outro e de busca de tutela social” (Oliveira, 2000, p. 106).
Mas voltemos ao prazer de matar.
A emoção em cometer um ato desviante, como, por exemplo, uma
simples pichação de muros ou pequenos furtos em lojas ou residências,
está presente em jovens tanto de classes mais baixas como nos de abasta-
das. São as emoções furtivas, como já apontou Katz (1988), que surgem
quando uma pessoa tacitamente procura uma experiência na qual ela seja
seduzida pelo desejo, pelo ato ilegal, acompanhado de uma sensação de
euforia após a realização do ato. Com um pouco de esforço podemos com-
preender essas pequenas ilegalidades cometidas cotidianamente. Mas como
compreender o prazer que alguns adolescentes sentem ao matar? E, mais
ainda, com requintes de crueldade. Não é somente matar o outro, mas
destruir seu corpo.
Em março de 2000, três adolescentes de 9, 16 e 17 anos mataram com
requintes de crueldade outras duas crianças, uma menina de 8 e seu irmão
3. Folha de S.Paulo, de 9 anos3. O crime ocorreu no município de São Roque, no interior do
“Menino de 9 diz que estado de São Paulo. Os dois irmãos foram convidados a passear pelos três
matou menina de 8”, amigos e acabaram entrando num matagal. Ali foram seviciados com paus,
22/3/2000, pp. 3-1; Re-
pedras e cipós encontrados na mata. Cada um dos adolescentes teria dado
vista Época, “Pequenos
assassinos”, 27/3/2000, também dez pauladas na cabeça dos dois irmãos, além de obrigarem as
p. 47. crianças a comerem fezes. A menina, antes de morrer, teria sido violentada
pelos três adolescentes. Para a polícia, o mais velho teria dito: “Nóis três é
que matamo. Pegamo um toco e batemo na cabeça deles”. Quando ques-
tionados, um deles disse: “Quando nóis entrô no mato, nóis entrô com a

294 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

intenção de matá”. Não sabiam explicar por que mataram duas crianças
amigas deles. O que impressionou o delegado foi a tranqüilidade dos garo-
tos enquanto estavam sendo interrogados.
Podemos dizer que o mundo moderno, além de isolar o indivíduo e se-
gregá-lo de certos aspectos da convivência social, possibilita uma manipula-
ção do poder em determinados casos. Na ação estrita do assassinato, pode-
mos perceber certa sensualidade na elaboração do ato. Para Katz (1988), isso
só é possível nos indivíduos com um espírito de criminalidade, ou seja, são
necessárias uma prática no modo de ação executiva, uma criação simbólica
que define a situação e uma fina estética em reconhecer e elaborar uma possi-
bilidade sensual. Intimidar o outro, por exemplo, é uma das formas de cri-
minalidade mais essenciais ao desafio moral de um indivíduo, o ato de im-
por-se sobre o outro desde a fala até a destruição do corpo do inimigo. Não é
somente destruir o outro, mas destruir seu corpo para o social.
A sensualidade mostra-se nessa ação brutal, na forma como se mata, na
atitude e no significado de toda a cena onde se desenvolve o acontecimento.
Atirar em alguém, esfaquear um corpo, cortar partes dele4, esmagar a carne 4. “Porque é preciso
são atos que parecem envolver toda uma sensualidade recheada de significa- matá-lo, também, sim-
dos. Como o jovem que matou seu ex-patrão e antes de sair pisou em seu bolicamente, matá-lo
para a sociedade, matar
sangue, numa atitude derradeira de esmagar seu corpo (já sem vida), ou o
a possibilidade de sua
garoto que assaltou o ônibus e tentou escrever seu nome no rosto do moto- memória como pessoa.
rista. São tentativas de expurgar algo dentro de si, numa ação envolvida Não é apenas retirá-lo
com a sensualidade. Por isso esses jovens provocam o terror. Segundo Elias como corpo físico, mas
(1990), o terror está no centro da questão do pudor: o terror de se tornar também matá-lo para a
sociedade” (Martins,
vulnerável à agressão do outro e, mais especialmente, aos gestos de superio-
1996, p. 21).
ridade de um outro mais forte.
Os garotos aqui citados, assim como a maioria dos outros jovens que
concederam entrevistas, relatam suas ações com certo grau de resignação.
Não estão revoltados com a nova situação, aceitam o destino como se já
estivesse traçado e houvesse sido passado a eles sem questionamentos.
Como o caso de um jovem que, para roubar pouco mais de dezoito reais,
matou um senhor com um tiro na cabeça porque ele o “olhou assim” (de
cima para baixo) – o olhar de um superior para um inferior, de um melhor
para um pior. O desprezo do jovem para com o outro, ao atirar na cabeça de
sua vítima, reverteu essa hierarquia. Sentiu-se humilhado apenas com um
olhar, mas era um olhar recheado de signos, um olhar que o colocava fora de
seu espaço, fora de seu mundo. E se para retornar ao seu universo e restabe-
lecer as relações for necessário o aniquilamento do outro – assim será. Se-

novembro 2005 295


Jovens delinqüentes paulistanos, pp. 275-299

gundo Eliade, o que caracteriza as sociedades tradicionais é a oposição que


elas subentendem entre o território habitado e o espaço desconhecido e
indeterminado que o cerca. O primeiro é o mundo, o resto é uma espécie de
outro mundo. “Se os deuses tiverem de espancar e de esquartejar um mons-
tro marinho ou um ser para poderem criar o mundo a partir dele – o ho-
mem deve imitar essa ação” (Eliade, s/d, p. 64). É dessa maneira que simbo-
licamente o homem funda o seu próprio mundo.
Não é possível afirmar que a crueldade e o desprezo pela vida de outrem
sejam traços característicos do comportamento dos jovens de hoje – auto-
res de infrações penais graves –, principalmente pela escassez de estudos
históricos e antropológicos que contemplem esse fenômeno. Mas podemos
refletir sobre a atualidade dessa forma de comportamento. Quanto à cruel-
dade, enquanto acontecimento, ela talvez traduza um momento de ruptura
nas relações.
A emergência da crueldade como expressão recorrente da violência indi-
ca que algo se rompeu na sociedade brasileira, uma interrupção de propor-
ções consideráveis, uma vez que atravessa os mais distintos campos do dis-
curso, das relações de poder e das possibilidades de conhecimento e de
justificativa racional para tais acontecimentos.
A crueldade rompeu com o véu de uma sociedade – a brasileira – cuja
identidade esteve até recentemente marcada pela não-violência, pela reso-
lução pacificada dos conflitos e das tensões nas relações sociais, pela prefe-
rência pela reforma e pela conciliação. A ruptura discursiva indica que é pre-
ciso rever mitos e fabulações; mais do que isso, é preciso incorporar a
violência e uma de suas manifestações – a crueldade com que adolescentes e
jovens adultos praticam crimes violentos – como traço identitário dessa so-
ciedade. E ela pode indicar também que está ocorrendo uma profunda in-
terrupção nas relações de poder e de dominação tradicionais nessa socieda-
de. As imagens de passividade e sujeição incontestes dos dominados e das
classes populares parecem ter se esfumaçado no ar. As ações dos jovens que
cometem infrações podem sugerir expressões radicais de mudanças nas re-
lações hierárquicas e de dominação. Aqueles que tradicionalmente manda-
vam podem, na atualidade, se converter em vítimas potenciais, ou as víti-
mas podem estar mesmo entre iguais, entre pessoas que vivem sob as
mesmas condições adversas de existência. O desejo de destruir o outro, de
impor uma humilhação degradante, indica não apenas a vontade de des-
truição material do corpo da vítima, mas também de destruição de certa
configuração de relações de força sociais cujo campo de gravitação é o corpo

296 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

social. Eliminar o corpo do outro pode significar, entre outras coisas, o de-
sejo de constituição de um novo corpo social, isento dos hábitos tradicio-
nais de mando e obediência. Pode igualmente traduzir disposições sociais,
que até há pouco estavam sob a epiderme do corpo social, no sentido de so-
terrar as formas tradicionais de poder, mando e autoridade, em favor de
novas modalidades de sujeição cujos contornos não é possível, no momen-
to, circunscrever.
Esses adolescentes e jovens adultos, autores de crimes graves, podem
estar assumindo o papel de porta-vozes dessa nova alteridade em constitui-
ção, cujos sinais toscos e grosseiros se espelham na crueldade e na imposição
de sofrimento às suas vítimas.

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298 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Antonio Sergio Spagnol

Resumo

Jovens delinqüentes paulistanos


Os jovens que se envolvem em infrações graves na cidade de São Paulo chamam a aten-
ção pela crueldade com que praticam seus atos. São jovens tanto da periferia como de
bairros mais abastados. A mídia alardeia esses eventos focando principalmente os jovens
da periferia. Fala-se também em gangues na cidade, mas a pesquisa na qual este artigo se
baseia não pôde encontrar esse fenômeno. As entrevistas revelam as diferentes formas de
atuação desses jovens e a crueldade com que praticam suas ações. Essas ações indicam
que as relações baseadas num princípio de reciprocidade estão rompidas, deixando
emergir outros laços sociais baseados no fascínio pelo poder e pela destruição do outro.
Palavras-chave: Delinqüência juvenil; Homicídios; Gangues; Adolescentes infratores;
Jovens delinqüentes; Crueldade.

Abstract
A Study on delinquent youths in the city of São Paulo
The youths envolved in serious infractions in São Paulo city get the attention for the
cruelty with that they practice those actions. They are young, as much of the periph-
ery as of wealthier neighborhoods. The media collaborates boasting those events fo-
cusing mainly the youths of the periphery. It is also spoken in gangs in the city, but the
research could not find that phenomenon. Through interviews we can notice the
different forms of performance of those young ones and the cruelty with that they
practice their actions. Those actions indicate that the relationships based on reciproc-
ity are broken letting to emerge other social bows ruled through power attraction and
the destruction of the other.
Keywords: Juvenile delinquency; Homicides; Gangs; Adolescents offenders; Delin-
quents youths; Cruelty.

Texto recebido em 19/


11/2004 e aprovado
em 2/3/2005.
Antonio Sergio Spagnol
é doutor em Sociologia
pela FFLCH-USP e au-
tor de O desejo marginal
(Arte e Ciência, 2001).
E-mail: spagnol@usp.br.

novembro 2005 299


Cultura viva: entrevista com Paul Willis*
Por Roger Martínez

Introdução *Entrevista publicada


originalmente em Estu-
dios de Juventud, 64/04.
Em fins dos anos de 1960, em um dos andares de um cinzento e alto
edifício da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, foi concebido o
Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS), uma experiência que
acabaria por revolucionar o estudo das culturas juvenis – e da cultura
popular em geral. A tradição britânica do “Culture and Society”, herdada
de intelectuais da época, como Edward P. Thompson, Raymond Williams
e o primeiro diretor do Centro, Richard Hoggart, seria a base de um
coquetel de influências e formas de agir que mudou decisivamente o estu-
do das culturas juvenis: a partir de então elas não só foram estudadas em
relação a suas produções culturais, mas se tentou ver nelas pistas para
compreender as mudanças sociais e culturais das sociedades contemporâ-
neas.
Paul Willis chegou ao Centro como estudante pouco depois de sua funda-
ção, e hoje, quando o CCCS já não existe mais, continua sendo conhecido em
todo o mundo como uma de suas vozes mais sugestivas. Atualmente é co-edi-
tor, com Loïc Wacquant, da revista Ethnography (Sage) e ocupa a cátedra de
Etnografia Cultural e Social na Universidade de Keele, na Inglaterra. O livro
que o tornou famoso, Learning to labour [Aprendendo a trabalhar] (1977),
ilustra perfeitamente a sua contribuição aos estudos das culturas juvenis: a
Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

paixão pelo pensamento original, a aposta em uma aproximação etnográfica


como alternativa aos trabalhos que se centram unicamente na análise textual
e semiótica dos materiais da cultura popular, e a ambição teórica de pensar as
relações culturais levando em conta tanto a importância das estruturas sociais
e a autonomia da cultura como sua incorporação por parte dos indivíduos.
Seu último livro, The Ethnographic imagination [Imaginação etnográfica]
(2000), no qual estava trabalhando quando concedeu esta entrevista, consti-
tui uma rubrica dessa atitude: um denso e elaborado posicionamento de au-
tor, que defende uma voz própria em relação à corrente dominante dos atuais
Estudos Culturais. Ao longo de sua obra, da qual fazem parte também os li-
vros Profane culture [Cultura profana] (1978), The Youth Review [Revista de
Juventude] (1988), Common culture [Cultura comum] (1990) e a versão não
acadêmica deste último, Moving culture [Cultura em mudança] (1990),
Willis sempre ofereceu uma voz lúcida que ajuda a interpretar a produção
cultural dos jovens nos marcos das mudanças sociais contemporâneas. Seu
ponto de vista sempre combina uma aguda elaboração teórica com um mag-
nífico trabalho etnográfico, colocando exemplarmente em prática sua formu-
lação precisa da boa pesquisa empírica como aquela em que o pesquisador “se
deixa surpreender pela realidade” para alimentar sua elaboração teórica origi-
nal.
Nesta entrevista, feita em sua casa em 1998, Willis reflete com paixão e
profundidade sobre suas idéias e sobre os Estudos Culturais, respondendo às
principais críticas feitas a sua obra e convidando-nos a pensar as culturas
juvenis com respeito e interesse, a fim de entender melhor as mudanças so-
ciais e culturais no mundo que nos rodeia, tanto em suas manifestações sim-
bólicas como nos próprios corpos daqueles que as vivenciam.

O “Centro” de Birmingham

O senhor participou do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS)


de Birmingham quando ele era um foco de inovação. O que aqueles anos deixa-
ram em sua memória?

De fato, cheguei ao Centro pouco depois do início de suas atividades.


Richard Hoggart o havia inaugurado, creio que em 1967 ou 1968. Stuart
Hall foi seu primeiro pesquisador (research fellow) e eu fui um dos pri-
meiros estudantes, como todos no início, de pós-graduação. Era uma ins-
tituição muito pequena..., mas foi extremamente influente nos anos de

302 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

1970 e 1980. A forma de trabalhar era muito diferente da das institui-


ções tradicionais.
Quando cheguei, em 1969, Stuart [Hall] era editor da New Left Review,
uma antiga revista marxista de esquerda que já existia havia muitos anos, e
ele achava que uma instituição pequena como a de Birmingham poderia
pôr em prática novas formas de trabalho, sobretudo formas coletivas de
trabalho. Ali não havia uma relação estudante-professor no sentido tradi-
cional. Tínhamos grupos de trabalho. Era um modelo que consistia em
dirigir, utilizar e liberar os estudantes, e foi incrivelmente produtivo. A
maioria dos livros feitos então não foram elaborados pelo professorado, mas
por grupos coletivos, muitas vezes sem nem ao menos um professor.

E o senhor havia acabado de estudar inglês em Cambridge!

Sim, sobretudo do ponto de vista da minha experiência na extremamente


tradicional Cambridge, foi para mim uma revolução participar do que pare-
cia ser um contexto institucional horizontal, coletivo e progressista. Conti-
nuo acreditando que, ainda hoje, se tem que aprender muito com a maneira
como trabalhávamos então, porque, por fim, acabamos retornando mais uma
vez a uma forma institucional mais ortodoxa de trabalhar.
Por outro lado, o Centro tinha vários outros elementos muito estimu-
lantes. Creio que ele se antecipou, em muito, em levar a sério a cultura
popular, a experiência cotidiana, a música pop, o cinema e a televisão. E
para mim isso também foi uma revelação. Até então, o posicionamento do
mundo acadêmico era de que os artigos de consumo, o processo de conver-
são em artigo de consumo e a cultura popular eram lixo e estavam envene-
nando a instituição. Por isso tal posicionamento acreditava que se devia
expulsar a merda e imunizar os estudantes contra sua influência. No Cen-
tro, ao contrário, partia-se do ponto de vista de que analisar seriamente
esses novos fenômenos era extremamente interessante.
Era, portanto, um momento inebriante e emocionante. E também ha-
via a sensação de compromisso político. Nesse momento acreditávamos estar
comprometidos com o mundo real, acreditávamos que havia uma conexão
direta entre os trabalhos acadêmicos e as implicações práticas e políticas. O
primeiro trabalho de Stuart foi sobre meios de comunicação e políticas
públicas (depois ele entrou em debates mais teóricos sobre codificação e
decodificação), sobre a direção que os meios de comunicação deveriam to-
mar, sobretudo seus conteúdos culturais.

novembro 2005 303


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

Também minha primeira pesquisa, quando era um estudante de douto-


rado e trabalhava dando aulas em cinco lugares diferentes para poder sobre-
viver, e obtive minha primeira ajuda, da Unesco. Queriam que eu analisasse
1. Grupo de jovens afic- os motards 1 para entender por que não iam ao teatro, às galerias de arte e à
cionados às motocicletas, ópera. Eu tinha de tentar encontrar uma forma de fazê-los passar a freqüen-
muito tradicionais na tar esses lugares. Repensei o assunto e disse que o problema não era que eles
década de 1960 (N. T.).
não tivessem cultura, mas que tinham a sua própria cultura. Então fiz um
estudo etnográfico dos hippies e dos motards e disse à Unesco que uns e
outros já possuíam formas simbólicas, e que talvez fosse o caso de entendê-
las e apoiá-las, em vez de tentar atraí-los para a ópera como se fossem reci-
pientes vazios, sem nada com o que começar.
Assim, tanto eu quanto o Centro tínhamos essa sensação de estar com-
prometidos e fazíamos qualquer tipo de trabalho que pudesse influenciar
politicamente. Tudo isso era muito inebriante para mim. Tendo vindo de
uma universidade tradicional, era emocionante e interessante.

O Centro também se caracterizou por combinar literatura com antropologia,


com sociologia...

Sim. Era também muito interessante no que diz respeito às disciplinas e


à metodologia. Naqueles tempos, no Centro (e esta é uma explicação muito
resumida), havia uma mistura de literatura, sociologia e antropologia. De
fato, o Centro, os Estudos Culturais britânicos, foi criado a partir do depar-
tamento de literatura inglesa, não do de sociologia ou do de antropologia.
E Richard Hoggart, que foi quem o impulsionou, era professor de literatura
inglesa.
Começamos então com literatura, e me parece que a idéia inicial de
Richard Hoggart era utilizar as técnicas do criticismo literário, especial-
mente o que se chama de “leitura atenta” (close reading), ou seja, olhar uma
poesia e entender como ela funciona: por que esta palavra e esta outra? Por
que estes procedimentos e por que estas palavras nesta página? Como as
palavras produzem significados? E utilizá-las não para analisar Shakespeare,
mas Bob Dylan ou quem quer que fosse. E isso era um acréscimo muito
interessante.
Também nos voltamos na direção da sociologia, da história e, sobretu-
do, do marxismo (Gramsci, Althusser). E também para o feminismo e as
questões de raça. Passei treze anos no Centro e me sentia como se a cada
dois anos, mais ou menos, acontecesse uma nova revolução. Isso graças à

304 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

estrutura coletiva à qual me referi, que funcionava mais de baixo para


cima do que ao contrário. E nesse momento, além do mais, era um centro
apenas de pós-graduação.
O humanismo inicial do projeto literário foi criticado pelo marxismo.
Então, a partir de Althusser, se criticou o marxismo humanista. E depois
o feminismo criticou Althusser. E, posteriormente, o anti-racismo criti-
cou o feminismo e o marxismo. Em outras palavras, não era possível se
estabelecer em uma perspectiva antes que outra revolução crítica apon-
tasse um novo objetivo, e para meu próprio trabalho isso foi muito im-
portante e emocionante.

Mas o senhor sempre situa o seu trabalho mais próximo da etnografia do que da
literatura ou da semiótica.

Richard Hoggart queria manter as técnicas e as habilidades nas formas


literárias do marxismo. Em um dos primeiros seminários, à tarde, eu tinha de
fazer uma leitura detalhada de “The Tyger”, o famoso poema de William
Blake: “Tyger! Tyger! burning bright,/ In the forests of the night,/ What
immortal hand or eye/ Could frame thy fearful symmetry?”2. Tinha de expli- 2. “Tigre, tigre, viva
car as palavras que estavam na página, e depois, naquela mesma tarde, estive chama/ Que as flores-
com os motards no local onde se reuniam, no centro da cidade, realizando o tas da noite inflama/
Que olho ou mão imor-
trabalho de pesquisa do que depois se tornaria Profane culture. Para mim, a
tal podia/ Traçar-te a
vida era uma poesia. Em vez de analisar poemas, estava analisando por que os horrível simetria?” (tra-
guidões tinham forma de chifre, por que tanto aço cromado, por que eles se dução de José Paulo
negavam a usar capacete. Eu estava usando as mesmas técnicas literárias de Paes) (N. T.).
decodificação e análise, com respeito e atenção à forma simbólica. Aquelas
mesmas técnicas que utilizamos quando lemos e analisamos poesia, eu as
transferi para a vida real: a experiência era uma poesia, e para mim esse foi um
direcionamento muito interessante.
Eu já estava meio cheio de Cambridge, que havia me confundido e me
desconcertado um pouco, porque na verdade eu não tinha o capital cultural
para fazer uma leitura detalhada de um poema. Mas no que se refere à cul-
tura popular, sentia que sabia mais, e por isso me pareceu surpreendente o
fato de transferir o respeito que se tem pela poesia: aquele respeito segundo
o qual, se você não entende um poema, o problema não é dele, mas seu, e
portanto você tem de trabalhar mais para conseguir entendê-lo.
Creio que esse direcionamento, essa transferência de respeito, foi efetiva-
mente crucial: a questão não é se parece compreensível, anti-social ou sem

novembro 2005 305


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

sentido, já que, ao dar por certo que aí há um sentido, então o problema é


compreendê-lo. Isso permite que você abandone uma série de preconceitos
e se concentre em entender, em vez de se dedicar a procurar razões para
desvalorizá-lo, odiá-lo ou pensar que é um problema. Portanto, a transfe-
rência de respeito (“aqui existe um sentido”) e a transferência de uma técni-
ca (“como se produz o sentido simbolicamente”) foram muito produtivas.
Acredito que Profane culture é um texto humanístico. E em muitos sen-
tidos Learning to labour é uma luta, tanto dentro de mim como no papel,
entre um humanismo etnográfico inicial (os jovens criando e sabendo o que
estavam fazendo) e uma perspectiva marxista, que também aceitei, segundo
a qual eles se encontravam em uma situação clara de exploração, por mais
criativos que parecessem, que ficava evidenciada pelo fato de acabarem ou
trabalhando em fábricas ou na fila do desemprego. Isso me colocou então
um problema que ainda continua sendo o problema central, em muitos
sentidos. Creio que a questão de como se reúne e se usa a criatividade impli-
ca a necessidade de técnicas humanísticas, etnográficas e literárias: como a
criatividade se relaciona com as constrições estruturais, as condições estru-
turais, a reprodução estrutural?
Portanto, a mesma história do Centro formou a mim e a minha pergunta.
Creio que também foi importante o caminho por meio do qual chegamos na
cultura, ou pelo menos como eu o vivi (não se esqueça de que esta é a “minha”
história do Centro, e se você falar com qualquer outro estudante, ele contará
a história dele). O fato de partir da perspectiva literária e o interesse pelas
formas culturais foram automaticamente anti-reducionistas. E tomar em-
prestadas as técnicas da literatura impôs-nos imediatamente o respeito pela
autonomia da cultura, no mesmo sentido pelo qual nunca questionei a auto-
nomia da poesia.
Sobretudo naquele momento, isso abria uma rota claramente alternativa
para compreender a consciência e a cultura, muito diferente das oferecidas
pela sociologia ou pelo marxismo, que pareciam muito reducionistas, já que
ou reduziam a cultura a alguma outra coisa ou se limitavam a vê-la como
um problema ou uma patologia. O fato de partir do respeito pela cultura
abriu uma via mais adequada, e depois, quando levamos a sociologia e o
marxismo a sério, o fizemos à luz de um enorme respeito pela autonomia ou
relativa autonomia da forma cultural. Minha própria formação consistiu, se
se quiser, na força boa do humanismo transferida para as formas culturais
vivas e, além disso, adicionando a tudo isso todas as questões importantes
em torno da estrutura, da constrição estrutural, da reprodução e, depois,

306 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

do gênero e da raça.

Como o senhor compararia a sua abordagem com a de Stuart Hall e da princi-


pal corrente atual nos Estudos Culturais?

Quando Richard Hoggart deixou o Centro, um ano depois de minha


chegada, e foi para a Unesco, em Paris, Stuart assumiu a direção. Foi sob o
comando de Stuart que se formalizaram os temas e os textos marxistas teóricos
e sociológicos mais radicais. Creio que Richard Hoggart e os primeiros
humanistas se sentiram traídos pelo que veriam como uma invasão dos mar-
xistas nos anos de 1970. Durante um período de dez anos, até Stuart ir para
a Open University, em 1979, produziu-se a maioria das mudanças. Uma vez
na Open University, Stuart dedicou-se a seus próprios interesses, sobretudo
em relação ao pós-modernismo, ao discurso e à identidade, principalmente
em relação à raça e à identidade, que eram somente alguns dos elementos
originais dos Estudos Culturais britânicos. Não segui esse caminho, ainda
que ele me interessasse. Ele escreveu sobre todas as divisões dentro dos Estu-
dos Culturais (culturalistas, estruturalistas etc.). Seu último livro sobre o
discurso e a identidade mostra de maneira clara qual é hoje, provavelmente, a
corrente dominante dos Estudos Culturais anglo-saxãos: a da influência da
linguagem no que poderíamos chamar de “paradigma lingüístico”, na aproxi-
mação à cultura que considera que não há muito mais além de linguagem, no
sentido de que outros sistemas de símbolos, como por exemplo os museus ou
as fotografias, estão organizados como a linguagem. Ou seja, o signo não pode
estar ligado ao referente de uma forma direta, umbilical, já que só assume um
sentido a partir das exposições ou do sistema de símbolos. Além disso, há,
sem dúvida, a conexão com a filosofia francesa de Derrida, o
desconstrutivismo etc.
Vejo perfeitamente a lógica pela qual tudo isso passou a fazer parte dos
Estudos Culturais, e por que houve esse direcionamento francês e lingüísti-
co: a mesma autonomia da qual falei há pouco, que se formalizou em suas
próprias teorias, enquanto eu ainda quero voltar a vincular a forma simbó-
lica, seja ela linguagem seja qualquer outra coisa, à práxis humana. Acredito
que os Estudos Culturais britânicos estão se esquecendo um pouco, pro-
gressivamente, da práxis humana. Sem dúvida alguma, todos esses debates
e discussões são muito importantes, mas creio que há uma falta de referên-
cia a esses Estudos Culturais.
O livro que estou acabando de escrever agora [The Etnographic imagi-

novembro 2005 307


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

nation] tenta aprender com a teoria do discurso, sobretudo com o para-


digma da linguagem. Sua característica fundamental é, obviamente, o
significante flutuante: não há uma conexão necessária entre um signifi-
cante e aquilo a que ele se refere. É uma posição antiessencialista.
Creio que todos os aspectos do meu trabalho anterior tinham um essen-
cialismo humanístico no sentido de que estabelecia uma conexão demasiada-
mente simples entre a localização estrutural, as pessoas que atuavam e suas
culturas. Evidentemente, de alguma maneira esses desenvolvimentos teóri-
cos em torno do paradigma da linguagem, o significado flutuante, a não
necessária correspondência entre a expressão cultural e a localização, não são
nenhuma novidade para mim, porque já comecei com um forte senso da
autonomia da manifestação cultural como arte estética, se se quiser chamar
assim.
Na minha opinião, apesar de tudo, os desenvolvimentos mais interessan-
tes tomarão o caminho de reunir o melhor das teorias do discurso e da identi-
dade para ressituar tudo isso novamente em um sentido mais sociológico: a
arte cotidiana, a prática cotidiana, consideradas também dentro de um con-
texto estrutural. Ou seja, para mim, a classe e a exploração ainda são impor-
tantes. O que acontece é que já não sabemos como a prática cultural e a
consciência se conectam. Parece que existem alguns vazios consideráveis: au-
tonomia, falta de conexões. Não posso, apesar de tudo, acreditar que não haja
conexões. Ainda gostaria de voltar a uma unidade complexa, que incluísse
numa mesma obra a cultura, a experiência, a identidade e a posição estrutu-
ral. Talvez seja pedir demais.

Sobre o bolo e os culturalistas, semióticos e estruturalistas

Essa é a diferença entre aquilo que se denominou de sua aproximação culturalis-


ta e a perspectiva mais semiótica de, por exemplo, Dick Hebdige.

Sim, há muitas formas de cortar o bolo, mas sempre considerei isso um


pouco frustrante, porque nunca deixei de me interessar pelos símbolos. O
problema é que, para mim, a semiótica saiu voando na direção de um mun-
do de símbolos, um mundo que poderia muito bem estar flutuando livre-
mente.
Ao mesmo tempo, a outra grande divisão sobre a qual se falou é a do
estruturalismo e do culturalismo. Supõe-se que o culturalismo seja a parte
experimental e simbólica, enquanto o estruturalismo seria a parte do estru-

308 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

turalismo althusseriano, mais forte, das formações sociais. Mas não é verda-
de que eu tenha deixado de me interessar em algum momento pela estrutu-
ra. Muitas das posições estruturalistas, incluída a de Althusser, no fundo
diziam muito pouco sobre a maneira como se relacionavam os diferentes
níveis. Learning to labour é em seu conjunto um caminho para encarar essa
questão: saber como se introduz a força de trabalho e, por outro lado, en-
tender alguns dos mecanismos da autonomia, da independência e da com-
plexidade da esfera cultural.
Em outras palavras, já sei que houve uma discussão muito longa, mas
me considero um semiótico, culturalista e estruturalista.

Mas é realmente possível unir os diferentes níveis? Podemos unir a subjetividade


a que o senhor se refere com a estrutura e a forma simbólica?

Não acredito que se possa continuar utilizando o modelo marxista de


infra-estrutura e superestrutura, ainda que Marx possa ser, ainda hoje, a
melhor maneira de descrevê-lo pictoricamente, esquematicamente. Não
creio que, apesar de tudo, nos diga algo sobre a relação entre esses ele-
mentos, já que está claro que há um nível material da cultura e um nível
cultural do material. E as formas como esses níveis se relacionam são fre-
qüentemente específicas dos casos originais. Se ainda por cima se acres-
centam estruturas de subjetividade em relação ao gênero ou à raça, então
o modelo se torna complicado demais para ser controlado. Assim simples.
Por isso acredito que, de alguma maneira, precisamos ser mais modestos
teoricamente.
Hoje em dia não sabemos onde a maioria dos jovens está, e portanto é
um erro utilizar o velho modelo. Ao mesmo tempo, parece-me absurdo
acreditar que esses jovens só vivam no discurso e só adquiram suas identida-
des por meio de diferenças nos signos, já que também têm de sobreviver, e
a força de trabalho se reproduz no capital: eles continuam nas escolas, nas
fábricas, nas ruas e em suas casas. Eles têm de negociar as transições para a
vida adulta, e têm quantidades muito complexas de poder geracional en-
quanto estão empregados, em nível institucional e em relações laterais que
também são muito complexas. E tudo isso é situacional, material, específi-
co, e não relações gerais de gênero ou relações gerais da base.

Precisamente por isso se torna difícil entender como é possível que dentro dos
Estudos Culturais não se tenha estudado se as diferenças culturais juvenis podem

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Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

implicar diferentes tipos de transições às relações sociais de produção...

Sim.

Evidentemente, Learning to labour seria uma exceção, mas unicamente do pon-


to de vista etnográfico de um grupo específico de um tipo específico de jovens.

Learning to labour era um livro sobre a cultura da classe operária. Creio


que é muito interessante porque, de alguma maneira, é pós-moderno, no
sentido de dar voz aos colegas e não aceitar, por exemplo, as categorias
marxistas. Ao mesmo tempo, se nos fixarmos no material etnográfico (e
com freqüência as boas etnografias vêm antes das boas teorias), grande parte
da identidade dos jovens do livro girava em torno do consumo. De fato, eles
se distinguiam dos professores e dos conformistas por meio do uso de arti-
gos de consumo culturais: fumando, vestindo, bebendo etc.
Portanto, ainda que seja um livro sobre a antiga cultura operária de produ-
ção, muitos dos mecanismos implicados não eram os dos sindicatos, da coo-
peração, da mutualidade e de tudo aquilo que historicamente tendemos a
identificar como típico da classe trabalhadora. Sua identidade situava-se
completamente no terreno da cultura dos artigos de consumo. Ainda que
agora estejam desempregados e sejam pobres, não se vêem a si mesmos como
trabalhadores que votam em um partido de trabalhadores, mas como consu-
midores que votam nos conservadores, ou no partido trabalhista de [Tony]
Blair, que está mais à direita do que os conservadores estavam antes. Assim,
alguma coisa muito profunda e importante mudou nas relações culturais e
nessas formas culturais piramidais (estrutura, localização, experiência e ativi-
dade).

A ausência de meninas

Angela McRobbie criticou Learning to labour porque o senhor se concentrou em


grupos de colegas e deixou de lado as meninas e os conformistas ou explorados.

Considero isso muito interessante. Sempre houve muita curiosidade em


saber por que me concentrei em grupos de meninos e não nas meninas.
Minha resposta é que um método etnográfico, para que seja bom e profun-
do, requer que se limite o objeto de estudo. Não o encarei como um enfoque
sexista, antifeminista ou antigênero, porque creio que fui um dos primeiros

310 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

a indicar a importância do gênero na formação dos jovens da classe operária.


Acredito também que, uma vez mais, é isso que falta a muitas análises
semióticas, por mais sofisticadas que sejam: extrair o sentido etnográfico da
experiência cotidiana, da maneira de as diferentes ordens e categorias simbó-
licas se combinarem mutuamente. Assim, atendo-me muito de perto a um
exemplo, queria entender como as diferenças de gênero podiam relacionar-se
com outras diferenças, como a classe operária e a classe média. E, evidente-
mente – isso é muito importante –, o trabalho intelectual e o trabalho manu-
al.
Neste caso, interessavam-me as formas pelas quais a masculinidade ti-
nha se associado ao “manualismo” e ao trabalho manual, resultando em um
descrédito das posições intelectuais. As categorias marxistas nunca foram
capazes de explicar por si mesmas esse descrédito, já que o trabalho intelec-
tual e as funções intelectuais são superiores e mais bem recompensadas.
Para mim, essa continua sendo uma questão fundamental, e também en-
tender como o restante das questões (como a dos negros e dos brancos,
entre elas), em casos específicos, e com exemplos em profundidade, se rela-
ciona com a prática, se relaciona com a subjetividade e se relaciona com a
questão da reprodução. Como, definitivamente, eles vivem e aceitam seu
destino como trabalhadores homens negros e brancos.
Ainda acredito, portanto, que, para poder lidar com essas questões, seja
necessário fixar-se nelas muito de perto. Nesse sentido, a reclamação femi-
nista segundo a qual eu havia excluído as jovens não se justifica. Creio que
mais do que se fixar no objeto empírico, a lição que se tem de aprender (e
depois aplicar às mulheres e aos grupos negros) de Learning to Labour, e isso
muitas feministas não viram, é sua abertura teórica e o interesse que de-
monstra pela forma como o gênero se combinava com outras categorias. A
crítica feminista é uma crítica empiricista a um estudo empírico, que con-
siste em dizer “Onde estão as meninas?”.
Sem dúvida que teria sido melhor incluir as jovens e outros setores de
classe, mas, a não ser que se compreenda um segmento com certa profundi-
dade, nunca se poderá obter a matéria-prima para aplicar a abertura teórica
à raça, ao gênero e a outras categorias. Entendendo por que aqueles garotos
aceitavam aquele caminho (por que o grupo mais baixo aceita sua sorte?)
torna-se mais fácil entender por que outros grupos se reproduzem: porque
sempre podem encontrar alguém inferior quanto ao status ou à ordem eco-
nômica. O mais difícil é descobrir, ou entender, ao mesmo tempo que se
transmite respeito humano e dignidade, por que aqueles em uma situação

novembro 2005 311


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

inferior aceitam sua sorte. Assim, sempre fico perplexo quando se critica
esse aspecto de Learning to labour.

As rodas do consumo e as hierarquias internas nas culturas juvenis

O Centro estudou preferencialmente as culturas ou as subculturas ditas “espeta-


culares” e masculinas. Cada vez mais, ao contrário, é habitual estudar as mulhe-
res e a juventude “normal”. Qual é sua posição com relação a essa tensão entre
“normalidade” e “espetacularidade”? Até que ponto é interessante relacionar isso
com as hierarquias internas da cultura juvenil, como fez, por exemplo, Sarah
Thornton?

Creio que não exista uma solução para sua pergunta, que seria: Qual é a
função, o significado e a importância, hoje em dia, das diferenciações hierár-
quicas dentro da cultura juvenil? Não creio que nada disso esteja claro. Quero
mais exemplos etnográficos empíricos sobre as relações de classe, preciso ver
os resultados, e também quero uma maior compreensão fenomenológica e
semiótica do funcionamento da cultura.
É verdade que existem algumas idéias genéricas que eu gostaria de levan-
tar. Uma delas é que a época da subcultura espetacular foi uma expressão
inocente que seguramente já chegou ao fim. Foi um momento inicial no
qual se fazia uma utilização naïf dos artigos de consumo, como os grupos
de jovens [de Learning to labour] que fumavam e bebiam há vinte anos, para
mostrar que eram superiores. Creio que os estilos formados a partir de arti-
gos de consumo foram, eles mesmos, convertidos em artigos de consumo,
que por sua vez criam um novo estilo, de maneira que não existe uma posi-
ção de classe autêntica, baseada em uma relação externa aos artigos de con-
sumo e que possa utilizar esses artigos de consumo para uma expressão
contrária ao capital, contrária à escola, ou algo parecido.
Mas já estamos há algum tempo nesse processo de conversão em artigo de
consumo e, na minha opinião, dificilmente poderemos descrever uma cultu-
ra como autêntica, como se tivesse relações e experiências sociais externas ao
mercado e utilizasse o mercado em um sentido criativo. É isso em parte o que
aconteceu com o pós-modernismo e, em parte, aquilo com o que todos nós
estamos brigando para tentar encontrar um caminho. Temos um pé no terre-
no da exploração, do cinismo e da conversão em artigo de consumo. Os signi-
ficados que nos são importantes não são proporcionados pelos sindicatos –
com freqüência nem mesmo pelas escolas –, mas por aqueles que estão fazen-

312 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

do negócio conosco. Recolhem nossas próprias idéias e depois as devolvem,


vendendo-as de novo a nós mesmos, de forma que estamos continuamente
mudando os signos. Essa é uma questão importantíssima para mim, a da
etnografia relacionada com as formas dos artigos de consumo e as relações
associadas aos artigos de consumo.
Creio que não só os punks, os mods 3 ou as elites espetaculares, ou os semió-
ticos universitários, mas todos nós somos lançados e temos de viver em um
sistema de desconstrução prática: não acreditamos na televisão porque dize-
mos que só serve à publicidade; não acreditamos em nada do que nos dizem 3. De “modernistas”:
porque sabemos que estão tentando nos vender algo; não acreditamos no que uma tribo urbana de jo-
nos diz o professor na escola porque sabemos que, a fim de conquistar a nossa vens de origem trabalha-
dora da Inglaterra, na
atenção, ele tem de se vender como se fosse um artigo de consumo.
década de 1960 (N. T.).

A maioria dos atuais filmes de Hollywood mostra uma visão radical no sentido
de “não acredite nos meios de comunicação”, “não acredite nos políticos”, “não
acredite na justiça” etc.

Esse é outro exemplo do que estou falando: os círculos contínuos de


conversão em artigo de consumo chegam ao ponto de converter a antico-
mercialização em artigo de consumo, de maneira que tudo acaba entrando
nesse círculo. Isso nos obrigou a desenvolver habilidades consideráveis de
desconstrução e diferenciação semiótica. Talvez você não saiba exatamente
como os anúncios o afetam, mas você não acredita neles e ponto, o que nos
leva a uma situação difícil em termos de desenvolvimento social e formas de
relação social mais responsáveis: “Não entendo exatamente o que você está
me dizendo, mas sei que é uma merda”. E isso se aplica aos chefes das
empresas e aos sindicatos, aos dirigentes políticos, aos professores e direto-
res de escola etc. E a questão é que em alguns desses casos as pessoas estão
tentando de forma sincera colaborar com o nosso desenvolvimento.
Acredito que isso torne muito difícil falar em qualquer tipo de cultura
autêntica que seja melhor que outra, como se houvesse um terreno não
comercializado a partir do qual se podem julgar todas essas coisas. Portanto,
em muitos sentidos, os dias das subculturas espetaculares chegaram ao fim.
Pode-se argumentar que, inclusive se você é uma pessoa normal assistindo
televisão, em grande parte a qualidade de sua relação com as imagens, os
meios e as mensagens é similar ao trabalho do subculturalismo espetacular
há trinta anos.
Quero ter um conhecimento mais etnográfico do que isso significa. Não

novembro 2005 313


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

acredito em equações simples. É uma questão etnográfica importante. De al-


guma maneira, qualquer grupo se encontra no meio de uma confluência
complexa de elementos, na qual tem de tentar encontrar sua posição. E o faz
utilizando os materiais proporcionados pelos artigos de consumo, evidente-
mente, mas também pelo gênero, pela raça e por alguns aspectos da classe. É
assim que cada um descobre por que está onde está. E os jovens se confrontam
com todo tipo de redes complexas de poder e posição: eles têm de trabalhar e
se preocupam com a transição à esfera econômica, eles têm de encontrar ca-
minhos subconscientes informais para entender a sexualidade, o gênero, a
raça etc. Há alguns recursos culturais usados para saber quem você é. Uma
identidade consiste, seguramente, em colocar isso em um mapa, no qual es-
tão os outros, os outros que não são tão diferentes, e você mesmo.

Mas esse mapa é um mapa hierárquico, não é?

Sim, mas está estruturado de uma maneira que não se encaixa na noção
de hierarquia subcultural que Sarah Thornton utiliza. Não é só uma ques-
tão de ser mais underground ou de seguir a “corrente majoritária”, mas de
querer ver como essa noção de capital subcultural de Thornton se relaciona
com a raça, com a classe, com o gênero ou com as questões de hierarquia
geracional. Por isso digo que é uma pergunta etnográfica.

Mas alguns jovens tentam, em parte, diferenciar-se da “maioria”, da “massa”, e


portanto reproduzem mecanismos elitistas.

Se o que eles querem é diferenciar-se, por que não vão a museus, a galerias
de arte e a peças de Shakespeare? A elite seria uma maneira de diferenciar-se.
Se o problema é demonstrar que são superiores, por que não freqüentar insti-
tuições que dizem que você é superior se gostar da arte ocidental clássica? Ao
não utilizar a arte tradicional, isso significa que há uma resistência. Estão re-
sistindo à Arte e ao mesmo tempo à cultura popular.
E essa vontade de distinguir-se da “corrente majoritária”, da cultura mais
comercial e “normal”, podia ser anticapitalista. Ainda que seja evidente que
discutir as motivações é extremamente complicado. Do meu ponto de vista,
algumas causas reais podiam não estar na consciência, mas sim mediadas pela
forma cultural (que dará melhores recompensas e proporcionará significados,
alguns deles não verbais).
A forma estrutural do elitismo poderia influir em um certo freio do ciclo

314 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

pós-moderno de conversão em artigo de consumo, de maneira que não fosse


questão de ser melhor em um sentido elitista, no sentido de eu ser conside-
rado melhor porque estudei em Cambridge e sei literatura, mas de ser me-
lhor no sentido mais autêntico: o mercado afetou-o menos e você tem uma
posição quanto às relações sociais e ao gosto que não é comercial. Dizendo
claramente: nenhum mau caráter está fazendo negócio com você.
Acredito que, sobretudo nas primeiras subculturas britânicas, havia uma
autenticidade, uma posição externa aos artigos de consumo, e se utilizavam
esses artigos para indicar essa posição. Mas, é claro, meu argumento é que
hoje em dia estamos totalmente no terreno do artigo de consumo e que já não
é possível ser autêntico. De maneira que o que se chama de elitismo pode ser
tranqüilamente uma tentativa de manter-se fora da comercialização. E isso é,
evidentemente, impossível.
Estamos diante de um novo elitismo situado no terreno dos artigos de
consumo e não necessariamente no sentido da distinção como é dada por
Bourdieu, de ser melhor ou superior. O antigo elitismo da cultura oficial
tenta manter-se fora da comercialização, tenta dizer que não lhe estão dan-
do materiais significativos para que você faça negócio, mas para fazer de
você uma pessoa melhor. A razão pela qual estão fracassando e estão em crise
é porque os artigos de consumo são muito mais sexys e proporcionam um
contato muito mais sensual com os consumidores. Uma questão interessan-
te é que, enquanto esse novo elitismo dentro da cultura popular também
seleciona alguns elementos da cultura oficial, ainda que isso precise ser ana-
lisado, a antiga elite continua limitando-se unicamente às suas galerias de
arte.
Essa questão da hierarquização dentro da cultura comum e de se ela
reproduz homologamente ou não a Arte como hierarquia oficial, como
arte oficial, é muito interessante. Minha resistência está ligada a possí-
veis formas de considerar o argumento. Ou seja, se isso significa que o
elitismo é aceitável, e deixamos que todo o elitismo subcultural se con-
centre, então em vinte anos teremos outra cultura oficial, com outro
Shakespeare que agradará a toda a população educada. E em termos eco-
nômicos, sociais e culturais essa população educada será diferente dos
“idiotas” que gostam das Spice Girls ou do Abba. Esse tipo de idéia me
preocupa, devido às inaceitáveis e lamentáveis conseqüências sociais do
modelo elitista que equipara Alta Cultura e Cultura Oficial.
Minha posição é que necessitamos de uma nova noção de elite. Dessa
maneira poderiam ser resgatadas as relações de capital do processo de co-

novembro 2005 315


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

mercialização para a resistência, em vez de para aquilo que o elitismo sem-


pre nos sugere: que, se existe um grupo de elite, seus membros se conside-
ram superiores, o que implica andar de mãos dadas com o resto dos signos
de dominação (que eles serão os chefes, os professores etc. do futuro).

Estudos culturais, trabalho acadêmico e compromisso político

Gostaria de falar agora da questão do compromisso ou da implicação com o


mundo real. Como se vivia, no Centro, esse compromisso com a realidade social
e política da qual o senhor falou no início da entrevista?

Na constituição dos Estudos Culturais no Centro, o fato de dirigir o


olhar para a música popular, para as subculturas e para os meios de comu-
nicação implicou um compromisso imediato com a realidade do momento.
Tínhamos a sensação de que se podia mudar o mundo e de que, portanto,
podíamos estudar a instituição em que trabalhávamos e as relações externas
em parte com essa intenção. Ainda que não estivesse muito claro como isso
devia ser feito, eu tinha a sensação de que meu trabalho era comprometido
e de que existia a possibilidade de ele ser lido fora da instituição. E talvez
também pelas mesmas pessoas que eu havia estudado.
Do meu ponto de vista, os especialistas em criticismo cultural da li-
nha mais teórica, textual e semiótica dos Estudos Culturais de alguma
maneira repetiram o distanciamento próprio das tradições da crítica cul-
tural e da Arte com maiúscula com relação aos quais pensávamos estar
nos diferenciando radicalmente. Estamos repetindo um elitismo dentro
do mundo acadêmico. O mundo acadêmico está se convertendo em uma
grande torre que já não faz parte da realidade.

Qual o seu balanço pessoal em relação à conexão entre a esfera acadêmica e a


prática política e social?

Essa é uma questão que sempre me preocupou. De fato, passei quase


dez anos fora do mundo acadêmico trabalhando para o partido trabalhis-
ta, analisando o terrível impacto do desemprego juvenil. Trabalhei ali ela-
borando o informe The Youth Review, em que analisei as experiências cul-
turais dos jovens. Eu sugeria que a posição do governo local em relação
ao desemprego tinha de mudar, porque já não se podia continuar pen-
sando que todo o mundo iria encontrar um trabalho mais cedo ou mais

316 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

tarde. No início dos anos de 1980, havia enormes grupos de jovens que
não conseguiriam um trabalho em toda a sua vida, que sempre teriam
uma experiência muito difícil em relação ao trabalho: falta de perspecti-
vas, desemprego, retornos a trabalhos temporários esporádicos etc.
Revisei todos aqueles aspectos do governo local relacionados com o que
denominei “nova condição social do desemprego”, que especialmente para a
classe trabalhadora consistia em transições truncadas ou quebradas: não
conseguir o poder que o salário dá, para fazer o resto das transições para a
vida adulta (transição de ir morar por conta própria, de ser consumidor, de
ter relações laborais, de relacionar-se com um sindicato etc.). Tudo isso
depende de a pessoa ter um trabalho. E ainda que essa seja uma situação
temporária – ou pelo menos eu gostaria de pensar que é – que se está pro-
longando continuamente, continuamos oferecendo, aparentemente, as
mesmas transições para o futuro. Para muitos, ao contrário, essa transição
não se completará nunca.
Com The Youth Review eu estava realizando uma tentativa muito precoce
de uma análise comprometida com a realidade. Foi uma experiência que eu
esperava que retornasse a alguns daqueles mesmos grupos, no sentido de
expressar as frustrações de sua situação, e que por sua vez também colocasse
à administração local a importância de políticas dirigidas à condição social,
às transições truncadas (em vez de acreditar que as antigas transições e a
rede de bem-estar dos programas de formação individualizados poderiam
representar muito para os jovens que estavam nessa situação). Também se
criou o fórum juvenil eleito democraticamente, que é uma representação
juvenil na comunidade, que levanta questões de calibre muito diverso. Exis-
tiam também os planos de residência específicos para os jovens. O proble-
ma é que os recursos à disposição do governo local estavam congelados ou
até mesmo se reduzindo. Tudo isso foi uma tentativa muito precoce de
apresentar a questão das transições alternativas em relação à maneira como
os serviços estatais, a prefeitura e a burocracia local deveriam tentar respon-
der às questões reais, ou às questões vividas por aqueles que estavam experi-
mentando as transições truncadas (em vez de operar com um modelo vinte
anos defasado em termos da experiência real dos próprios jovens).
A política local em Wolverhampton4 estava baseada na perspectiva da
juventude e pelo menos discutia e recodificava, e – se se quiser dizer desta
maneira – era mais sociológica, estava baseada na experiência cultural e na
experiência real daqueles que viviam essas transições. Essa tentativa de in-
fluir nas políticas concretas e de pôr a análise à disposição daqueles aos

novembro 2005 317


Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

4. Foi como participante quais ela afetava teve uma importância muito grande para meu próprio tra-
no conselho municipal balho e para a minha carreira. E agora voltei ao mundo acadêmico...
dessa cidade que Paul
Willis realizou seu estu-
do sobre o desemprego O livro Common culture e sua versão reduzida e orientada para as implicações
entre os jovens (N. T.). práticas, Moving culture, também tiveram uma influência na realidade social,
não é?

A Fundação Gulbenkian, para a qual esse estudo foi feito, oferece finan-
ciamento na área do bem-estar social, da educação e da cultura. Tenta aju-
dar o desenvolvimento cultural, social e educativo dos jovens. Antes de
Common culture, as ajudas econômicas, em termos gerais, acabavam indo
para os adultos. Eles acreditavam que sabiam o que o jovem queria. Depois
de Common culture isso mudou. Foi permitido que grupos auto-organiza-
dos de jovens recebessem subvenções.
Eu participei do Painel Consultivo do Arts Council da Inglaterra, que
há pouco tempo mudou as regras da subvenção das artes com a intenção de
orientá-la mais para os jovens e a cultura popular. E, ainda que não possa
nem queira reivindicar minha influência, o Novo Trabalhismo está se mos-
trando muito mais amigável com a cultura popular, ou pelo menos com a
sua produção, e está limitando as subvenções à cultura oficial. A visão deles
não é exatamente igual à minha, mas caminha em uma direção similar. Eles
tentam vincular o partido a uma imagem nova e moderna da Grã-Bretanha
como marca juvenil, ainda que isso talvez já comece a decair. Acredito que
meu mérito foi ter sido capaz de articular aspectos de um novo estado de
ânimo, de uma nova sensibilidade, de maneira muito precoce. Mas não
comecei nada e não estou completamente de acordo com tudo o que agora
se considera fantástico e estimulante.
Creio que em muitos sentidos é uma desgraça que, quanto à maneira de
o Estado de Bem-Estar se relacionar com a população e suas circunstâncias,
os sociólogos e aqueles que pertencem à corrente dos Estudos Culturais não
tenham jogado um papel mais importante na hora de fazer a conexão com
a experiência real, as necessidades reais, nas atuais revisões do Estado. E
acho que isso seja assim porque grande parte do Estado é inflexível, buro-
crática e nada sensível às mudanças. Grande parte da política cultural está
fundamentada na cultura oficial, enquanto a maioria dos jovens caminha
em uma direção muito diferente.
Defendi em The Youth Review que em muitos sentidos os jovens tentam
encontrar suas próprias transições alternativas e que essas transições alterna-

318 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

tivas são encaradas, do ponto de vista dos agentes estatais, como patologias,
como problemas, como desobediência às normas etc. O Estado está se con-
vertendo em inimigo, não em amigo, porque não responde às questões que
todos os jovens vivem ou experimentam. Mas são os jovens que estão nessa
situação, e não podem sair dela e escrever um livro sobre a semiótica do
estilo. Eles não podem de um momento para o outro escrever críticas mar-
xistas sobre as mudanças da globalização internacional.
Ao mesmo tempo, pesquisa não deveria ser o mesmo que política, porque
o trabalho acadêmico não é política. Mas acredito, sim, que o trabalho acadê-
mico possa ajudar a guiar a política, e possa (e esse é o elemento fundamental
de minha posição em relação à política e ao trabalho cultural) tentar ajudar
aqueles que estão implicados nela: os jovens e as jovens que estão fazendo
história. Possa tentar fazer com que a conduta de alguns deles lhes pareça mais
transparente, de maneira que tornem a mediação cultural e as escolhas possí-
veis mais legíveis. E possibilite também que o financiamento público, a nova
política de financiamento da identidade cultural, seja produto de uma rela-
ção mais dialética e reflexiva.

A qualidade e o populismo cultural

Em Common culture, o senhor enfatiza a criatividade implícita no consumo cul-


tural dos meios de comunicação, da roupa e inclusive da cerveja. Só no apêndice
trata da questão do “valor”, da “qualidade”, que não joga nenhum papel em seus
argumentos sobre a criatividade cultural. Por essa razão o acusaram de “populista
cultural”, ainda que, em seu livro, o senhor esclareça que se limita a concentrar-se
na relação que o sujeito estabelece com o texto, em vez de concentrar-se, como é mais
habitual, no texto mesmo. O que o senhor acha dessa crítica?

Da mesma maneira que as divisões entre culturalismo e estruturalismo,


ou entre culturalismo e análise semiótica, isso tem mais de briga acadêmica
interna do que de representação de posições que correspondam à realidade ou
à experiência de vida real. E da mesma maneira que sempre me opus à etique-
ta de culturalista, também me oponho à de populista cultural.
Para mim é muito importante o fato de que com o direcionamento
semiótico tenha havido uma perda de corpo, uma perda de sensualidade. O
paradigma lingüístico é muito útil para o sistema lingüístico, mas não creio
que seja tão útil para os sistemas de expressão corporal.
Além do mais, não disse que o comércio seja maravilhoso. O que faço é,

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Cultura viva: entrevista com Paul Willis, pp. 301-321

simplesmente, aceitar que a maior parte da experiência se baseia em signifi-


cados comercializados e continuamente reciclados que circulam. Meu pro-
blema com os estudos da cultura popular é que sempre estão falando dos
textos e das formas, em vez de centrar-se na experiência cotidiana e vivida.
Há uma clara distinção, em minha própria terminologia, entre cultura
popular e cultura comum (common culture). A cultura popular faz referên-
cia a textos e objetos, aos lucros e ao mercado, enquanto a cultura comum
faz referência à utilização disso e aos significados culturais comuns, que
também incluem os significados tradicionais, os significados interpessoais
e, se se quiser, o que sobrou da cultura original de classe.
Quando você utiliza um elemento da cultura popular, obtém satisfação
sensual e passa a fazer parte da cultura comum. Há uma distinção entre os
objetos da cultura popular e sua utilização, a prática. Se você fosse um
antropólogo que vem de Marte para ver como vivem as pessoas na Espanha,
evidentemente perceberia que elas assistem televisão! Evidentemente perce-
beria que compram roupa! Se você fosse um antropólogo, teria de levar a
sério o processo de conversão em artigo de consumo e também a cultura
popular.
Há uma diferença muito grande entre isso e dizer que estamos no me-
lhor dos mundos possíveis. Só me limito a dizer como as pessoas vivem e
quais são os materiais que utilizam. E esses materiais são os da cultura po-
pular. Do meu ponto de vista, a questão não é tanto se a cultura popular é
boa ou má, já que, simplesmente, “é o que existe”. Isso nos obriga a enten-
dê-la melhor, e entendê-la em termos das formas de utilização e possibili-
dades de mudança abertas, não em termos das perguntas que, no fundo,
são próprias da cultura oficial: é bom ou mau? É tão bom quanto
Shakespeare?
A comercialização, o ciclo de conversão em artigo de consumo e minhas
outras perguntas deslocam, portanto, a questão da quantidade. Há uma
grande diferença entre isso e dizer que não há questões sobre a qualidade, e,
de fato, tentei abordá-las em Common culture.
Claro que eu sei que a cultura popular foi criada por capitalistas cínicos
e manipuladores com o objetivo único de fazer negócio. Mas... o que isso
tem de brilhante? É claro que sei! O problema é que as pessoas antipopulis-
tas parecem querer voltar a um momento anterior à existência dos artigos
de consumo, em que havia campos da experiência independentes dos arti-
gos de consumo, campos que são uma base formal para criticar a comercia-
lização. Isso é, em parte, o que eu disse sobre o início dos Estudos Culturais

320 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Roger Martínez

e dos estudos subculturais: acredito que já não se possa encontrar uma base
autêntica onde se situar e dizer que isso seja real, que seja uma expressão de
classe, que se esteja utilizando os artigos de consumo para se ser anticapita-
lista.
De alguma maneira, a posição antipopulista substituiu a posição estru-
turalista. As críticas ao chamado populismo são muito similares às críticas
dos estruturalistas aos culturalistas. E se a crítica é a de que os artigos exis-
tem para se fazer negócio, minha resposta é: “Muito bem, isso eu já sei, mas
me mostre como (com exemplos etnográficos empíricos) isso produz efeitos
ideológicos indesejáveis”. Não há dúvida alguma de que o artigo de consu-
mo existe para se fazer negócio e que os artigos que pretendem oferecer um
significado e uma receptividade comunitária não podem fazer isso porque
são fetichistas, porque são, todos eles, artigos de consumo. Meu argumento
é de que, hoje em dia, os consumidores também sabem disso e que, assim,
todos nós nos deslocamos para um estágio de desconstrução prática, cinis-
mo prático, descrédito prático generalizado.
Em conseqüência, se é essa a acusação contra os artigos de consumo, es-
tou de acordo com ela. Essa é uma questão geral, mas as antigas perguntas
continuam intactas: O que as pessoas reais fazem com os artigos de consu-
mo? Como encontrar a autenticidade real na cadeia contínua de inautenti-
cidade? Como esses elementos criativos funcionam em um contexto de ob-
tenção de lucros? Como esses elementos se relacionam com algumas
questões realmente antigas? Como se entende o trabalho? Como se entende
o não ter trabalho? Como tudo isso mudou o sentido do trabalho, quando,
pela proliferação de significados, ofertas e promessas de satisfação promíscuas, Texto recebido e apro-
o trabalho se converteu em uma fonte de identidade menos importante? vado em 31/5/2005.
Essas são as razões pelas quais não podemos ignorar o processo de co- Roger Martínez é soció-
mercialização. É necessário compreender, pelo respeito aos exemplos logo, foi professor asso-
empíricos, como funciona a cultura dos artigos de consumo. Para mim, essa ciado do Departamento
de Sociologia da Univer-
é uma pergunta etnográfica, antropológica e de cultura corrente. Para mim
sidade Autônoma de
não se trata de sentar-se em uma torre de marfim criticando a cultura po- Barcelona (2002-2003) e
pular e seu tempo. coordena atualmente a
área de Sociologia e Ciên-
cia Política dos Estudos
de Humanidades e Filo-
logia da Universidade
Aberta da Catalunha. E-
mail: rms@menta.net

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Entrevista com Paul Willis
Por Melissa Mattos Pimenta
Tradução de Melissa Mattos Pimenta

A leitura da entrevista realizada em 1998 por Roger Martínez despertou


nosso interesse com relação ao trabalho posterior de Paul Willis e à sua
visão atual sobre os temas então abordados, com destaque para a questão da
juventude. A idéia de “atualizar” a entrevista “Culturas vivas” deveu-se tan-
to à temática específica desse número da revista Tempo Social, para a qual a
contribuição do autor é importante, quanto à própria curiosidade científi-
ca que suas proposições despertam nos leitores brasileiros familiarizados
com seu trabalho. As questões colocadas a seguir são fruto de nosso contato
on-line com Paul Willis, que muito cordialmente aceitou colaborar com o
projeto de desenvolvimento e atualização do texto publicado originalmen-
te na revista Estudios de Juventud.

Na entrevista de 1998, o senhor afirmou que vinha procurando afastar-se do


determinismo estrutural, sem, contudo, abdicar do contexto estrutural. O se-
nhor propôs integrar na mesma obra a cultura, a experiência, a identidade e a
posição estrutural. Como pesquisador, de que maneiras o senhor propõe dar
conta de todas essas dimensões?

Eu quero ser implacável na busca pela internalidade das relações possí-


veis e dos laços que se sobrepõem conectando indivíduos e estruturas mais
amplas. A cultura cotidiana é o principal meio-termo que quero acrescen-
Entrevista com Paul Willis, pp. 323-333

tar como mediação entre indivíduos e estruturas. Vejo as produções desse


campo simbólico (cultura, ou culturas dentro das diferentes esferas) como
resultado, em parte, mediante condições, da atividade própria, criativa, au-
tônoma e etnograficamente registrável dos agentes que, por meio dela,
produzem e reproduzem a si mesmos. Mas o campo simbólico também
opera em um outro nível, no qual se encontra visceralmente envolvido, na
manutenção e na formação diferenciada do todo social ou de toda forma-
ção social, incluindo a reprodução das condições pelas quais, originalmen-
te, ocorre a “atividade própria” (dos indivíduos).
Essa reprodução social não ocorre, porém, mecanicamente, como se
por meio de uma física social, mas por meio de uma complexidade socio-
simbólica que envolve, entre outras coisas, ironias e conseqüências não
intencionadas. Meu argumento é de que há uma pungência na qual a situa-
ção social/estrutural é articulada, não como uma determinação externa,
tampouco como um “apêndice” descritivo do contexto, mas como uma
relação interna e uma qualidade da “produção humana de sentido”. Por
meio das mediações simbólicas de suas culturas coletivas, os agentes so-
ciais gozam da habilidade de “perceber” ou “penetrar em” aspectos da es-
trutura ou do processo social como algo a ser compreendido, ou que provê
campos de coisas a serem descobertas ou entendidas, ou, ainda, que carre-
ga seus próprios sentidos possíveis, incluindo posições ideológicas, que
podem ser adotadas, contestadas, explicadas ou recusadas. E é por meio da
operação desses processos culturais que, por fim, contraditoriamente e sem-
pre com um duplo viés, as estruturas dominantes ou suas condições de
possibilidade são reproduzidas.

O senhor também afirmou que a era das subculturas espetaculares chegou ao


fim, e que não há mais culturas autênticas. Como devemos entender a apro-
priação do simbólico pela sociedade de consumo? O que resta aos etnógrafos
para descobrir?

Desde 1960, Asa Briggs definiu a mudança crucial produzida pela


industrialização e pela comercialização do campo simbólico: “Poderosos
interesses de mercado vêm cada vez mais dominando uma área da vida
que até recentemente era dominada pelos próprios indivíduos”. Esse
campo cultural que tanto me interessa hoje é totalmente dominado pela
produção de artigos de consumo visando ao lucro, o que traz consigo a
resultante conversão, em bens consumíveis, dos materiais culturais, das

324 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Melissa Mattos Pimenta

relações e dos serviços que são as pás que movem o moinho da vida coti-
diana. A “atividade criativa própria” dos agentes vai de encontro a essa
nova dominação daquilo que antes lhes era “próprio”, e esse encontro
colore todo o campo cultural, que, por sua vez, está implicado nos pro-
cessos contemporâneos de reprodução social diferenciada (mantendo a
estabilidade ou levando ao conflito social). Mas o papel da “atividade
criativa própria” dos agentes, etnograficamente registrável, é crucial para
o modo como essas mudanças tecnológicas e político-econômicas se efe-
tivam ou são compreendidas como mudança cultural e social. Meu re-
cente livro, The Ethnographic imagination, atualiza a visão marxista do
papel dos bens culturais na formação da cultura moderna, argumentan-
do que, contraditoriamente, o fetichismo consumista renovado estreita,
distorce e ao mesmo tempo, de modo curioso, possibilita as produções
culturais simbólicas informais dos jovens.

Atualmente, como o sentido é produzido?

A vida cotidiana implica uma produção humana, habitual, de sentido.


Os seres humanos são levados não apenas à luta pela sobrevivência por
meio da produção e da reprodução das condições materiais de existência,
mas também por intermédio da compreensão do mundo e de seu lugar
nele. Em outras palavras, do entendimento de si mesmos em seu próprio
mundo cultural. Os atos culturais são intrinsecamente motivados como
aspectos da construção da identidade. Essa identidade deve ser viável e
acreditável, no sentido de saber “como continuar em frente” no mundo
social e também no sentido de ganhar aceitação e respeito dos outros,
mesmo na luta material pela existência, buscando e encontrando dignida-
de e reconhecimento e, mais ainda, descobrindo significado e sentido cul-
tural para além dos papéis sociais específicos do “mundo informal da vida”.
Talvez o equilíbrio entre a luta instrumental e a luta expressiva tenha se
modificado de tal modo que, hoje, os humanos estejam mais empenhados
na produção de seu mundo cultural do que de seu mundo material. A
produção do sentido de si e de seu mundo cultural é alcançada, de modo
crucial, pelas práticas culturais que produzem algo que ainda não estava lá,
ao menos não completamente ou da mesma maneira.

Uma das tendências mais importantes na sociologia contemporânea é a teoria


e o debate sobre a individualização. Como pesquisador voltado para os estudos

novembro 2005 325


Entrevista com Paul Willis, pp. 323-333

culturais, de que maneira o senhor vê a produção cultural em um mundo cada


vez mais individualizado?

Os “velhos” mundos culturais não fornecem mais práticas e materiais


acreditáveis. Tradições de classe, trabalho, sindicatos, a Igreja, a família, os
parentes, a educação humanista liberal – essas coisas não mais situam e
preenchem a identidade de maneiras conexas e homogêneas. Ninguém
sabe mais quais são os mapas sociais, não há pertencimento automático, de
modo que você deve lutar e construir seu próprio significado cultural,
participando da produção e da reprodução de si próprio. Evidentemente,
isso não significa que as práticas culturais se dêem no vazio ou detenham
apenas um conteúdo “racional”. Sem tradições conscientes próprias, os
escombros remanescentes de outrora sobrevivem e sofrem mutações, en-
contrando novas áreas de relevância parcial. Há ainda tradições informais
relacionadas ao gênero, ao humor e à apresentação social, por exemplo,
que continuam constituindo o material de construção dos edifícios for-
mais decadentes e que ainda se encontram disponíveis para novas formas
de construção. Há também uma importante dimensão contemporânea nos
materiais disponíveis para a constituição do sentido. A produção de si,
tomada como produção do mundo cultural, há muito é reconhecida como
1. Ou Teddy boys, outra
um fenômeno subcultural – eu sou (ao menos por algum tempo) um Ted 1,
tribo de jovens inglesa
surgida na década de
um hippy, um mod, um skinhead –, mas hoje isso é muito mais parte da
1950, caracterizada por experiência cotidiana majoritária. Isso pode ser encontrado na participa-
vestir-se com paletós ção restrita em estilos culturais “retrôs” (não mais “juvenis”) ou em certas
longos e largos com co- paixões como futebol, Elvis, country e western. Mas também em responsa-
larinhos de veludo e bilidades corriqueiras, como decidir de que modo “seguir em frente” quando
calças justas (N. T.).
“as coisas mudaram tanto”, de que maneiras encontrar referências morais
ou critérios para fazer escolhas quando a “tradição” não ajuda muito, mas
(ao mesmo tempo) uma enorme variedade de pistas está disponível, em
uma complexa e confusa rede de chats de amigos, TV, novelas, filmes,
anúncios, programas de auditório, revistas, músicas deliberadamente colo-
cadas para tocar ou ouvidas ao acaso no rádio, conversas com colegas de
trabalho e de estudos.

Como cientistas sociais, podemos reconhecer os significados que os indivíduos


produzem para suas práticas sociais em um contexto inundado pela produção
em massa de bens de consumo?

326 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Melissa Mattos Pimenta

Os agentes sociais não são sociólogos acadêmicos nem obedecem a uma


organização em grupos de seminários, de modo que suas práticas de produ-
ção de sentido requerem alguma investigação, um pouco de interpretação
e, é claro, uma metodologia etnográfica. O “pensamento vivido” e “sensí-
vel”, incorporado e enraizado, normalmente não é expresso na linguagem.
Por vezes ele é, de fato, organizado contra a linguagem ou em conflito com
ela. Isso pode ser percebido, quase inconscientemente, como uma forma de
operação de um poder inaceitável, algo com o qual devemos lidar, que de-
vemos evitar ou recusar em vez de tomar como um reflexo transparente dos
interesses e das motivações pessoais de um indivíduo.

Depois, na entrevista, o senhor descreveu sua experiência na The Youth Review,


na qual fala sobre “a nova condição social do desemprego”. Com base em sua
experiência com jovens trabalhadores, de que maneiras o desemprego afeta as
transições para a vida adulta nos dias de hoje?

O salário permite uma série de emancipações culturais, além de dar aces-


so ao mundo do consumo. Ele traz um sentido de si mesmo e de maturida-
de que é conquistado por meio do discernimento e da experiência, mais do
que pelo mero acúmulo de anos vividos, pela atribuição de alguém ou por
uma certificação institucional. O desemprego juvenil conduz a transições
econômicas interrompidas, mas também a transições culturais, sociais e po-
líticas não concluídas. A expectativa de ter um salário tem sido negada a
parcelas significativas da classe trabalhadora, e a ameaça de deixar de recebê-
lo tornou-se uma condição permanente para todos os trabalhadores. Para
compreender totalmente o impacto disso é importante perceber que o salá-
rio não é simplesmente uma quantia em dinheiro. Certamente, é a única
recompensa visível para o trabalho sob o capitalismo, e como tal provê o
acesso aos bens culturais, aos serviços e às formas criativas das práticas cul-
turais discutidas acima. Mas o salário também é o pivô crucial de vários
outros processos e transições sociais e culturais que pouco têm a ver com
dinheiro. Mais importante que isso talvez seja o fato de que o salário ainda é
a chave de ouro (financiamento, aluguel, contas) para um domicílio pessoal
separado dos pais e separado do trabalho e da produção. A casa é a principal
personificação da “liberdade e independência” do trabalhador em relação
ao capital – além do trabalho assalariado, evidentemente, que é o preço pela
independência de viver em uma residência própria. Mas esse preço real-
mente compra alguma coisa. O domicílio é uma área de privacidade, segu-

novembro 2005 327


Entrevista com Paul Willis, pp. 323-333

rança e proteção em relação à agressividade e à exploração do trabalho, às


dependências patriarcais da casa dos pais e às vicissitudes do mercado. A
moradia separada ainda é o objetivo universal da classe trabalhadora e sua
promessa de calor e segurança mais do que compensa os riscos e a frieza do
trabalho. O trabalho assalariado é a chave para seu oposto. Não ter salário
significa não ter a chave para o futuro. A perda do salário, além disso, inter-
rompe a principal forma de preparação cultural e social para a transição da
classe trabalhadora à moradia independente em nossa cultura – a formação
do “casal” e a preparação para a família nuclear.

Como as diferenças sociais interferem nesse processo?

Ter acesso, assim como dar acesso, ao “salário familiar” masculino é


ainda uma das bases materiais mais importantes para o flerte, o romance e a
formação de casais. Para sair da casa dos pais nos melhores termos e come-
çar a pensar em ter a própria família, a jovem precisa do poder de provisão
alargado do salário masculino (ainda hoje 60% maior do que o feminino).
Para que o jovem consiga “dar conta do recado”, com todas as despesas
adicionais de ter uma residência independente, ele precisa do trabalho do-
méstico “gratuito” para obter o máximo dos bens de subsistência adquiri-
dos com seu salário. Isso confere todo um escopo afetivo à deferência femi-
nina, à admiração e ao suporte emocional do homem, e, por sua vez, ao
cuidado e à proteção patriarcal da mulher pelo homem.

Além de prover os meios para viver de forma independente, qual é o papel do


trabalho na vida adulta?

Há também transições culturais e subjetivas muito importantes associa-


das a estar no domínio mesmo da produção formal. Apesar das dificuldades
e dos sacrifícios do trabalho moderno, há, contudo, uma espécie de eman-
cipação em direção a uma vida adulta política genérica associada ao traba-
lho. Isso é muito mais do que ter direito ao voto a cada cinco anos. Trata-se
do envolvimento pessoal na “luta diária contra a natureza” a fim de prover
as necessidades e vontades humanas. É claro que o trabalho doméstico e a
produção são muito importantes e têm sido subestimados, mas o modo
coletivo de produção dominante é o capitalista e, de qualquer forma, está
invadindo as funções domésticas e convertendo-as em bens de consumo.
Mesmo que você seja o parceiro mais fraco e explorado nessa produção

328 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Melissa Mattos Pimenta

capitalista, ainda é parte do drama, das lutas de poder que o integram, do


principal modo material por meio do qual construímos a nós e aos nossos
futuros. Em parte, essa é uma questão de participar democraticamente do
poder do sindicalismo. Mas é também uma questão de tomar parte em
algumas das práticas culturais, das criatividades informais e das lutas “secre-
tas” pelo controle no trabalho. Grupos de trabalhadores procuram conti-
nuamente produzir seu próprio mundo cultural no trabalho com o objetivo
de, ou tendo como efeito, entre outras coisas, humanizar a produção e exer-
cer algum controle sobre o ritmo e a organização do trabalho. A estrutura e
a produção diária do trabalho consistem nas batalhas e nas negociações com
supervisores que tentam constantemente subjugar essa força, por meio de
modernas técnicas “centradas no empregado”, procurando colonizar o
mundo informal e fazer com que ele funcione de acordo com a ideologia e
os propósitos da administração. Também para aqueles que trabalham há
conhecimentos práticos e habilidades em saber como as coisas “realmente
são”, um certo conhecimento experimental dos processos e das capacidades
humanas envolvidas em ambos.

O que significa ser adulto hoje?

Essas relações sociais e experiências reais e contestadas são matéria para


uma visão “adulta” e “mundana” do mundo: saber como situar e julgar as
pessoas; saber quem tem mais probabilidade de estar contra e a favor de
você; saber quando falar e quando permanecer em silêncio; saber “o que há
realmente por trás das coisas”. Essas experiências e esforços também permi-
tem sucessivos contatos sociais e todo um modo de intimidade e qualidade
de relação social que provê mapas de sentido para o mundo, fornecendo
uma maneira de situar-se e um retrato tridimensional humano e
administrável da localidade, da cidade ou da metrópole em que você vive.

Atualmente, em que tipo de contexto as transições acontecem no Reino Unido?

No Reino Unido, uma proporção significativa de jovens, em especial da


classe trabalhadora e com pouca ou nenhuma qualificação, principalmente
aqueles pertencentes a minorias étnicas, tem sofrido uma quebra nas transi-
ções sobre as quais falei antes. O desemprego é severo e, mesmo que os jo-
vens estejam constantemente lutando para encontrar caminhos diferentes
rumo ao futuro, novas transições ou alternativas não têm sido propostas ou

novembro 2005 329


Entrevista com Paul Willis, pp. 323-333

oferecidas a eles. Apesar da variedade de programas estatais, habilidades,


energias e paixões redundantes não têm encontrado novos objetos nem saí-
das. Você está ou desempregado ou trabalhando em situação de pobreza.
Todas as medidas de bem-estar social para os jovens estão ajustadas para
inseri-los ou reinseri-los no trabalho assalariado. Sem um trabalho você não
é nada. É quase como se os jovens desempregados estivessem engessados na
negatividade de sua própria essência: qual é o sentido de uma “classe traba-
lhadora” sem trabalho? As agruras de não contar com um salário são dupla e
triplamente acrescidas pela negação do acesso ao mundo da construção de si
por meio do uso criativo dos bens de consumo adquiridos. Uma medida da
dureza das condições deterioradas, especialmente para o segmento mais
baixo da classe trabalhadora, é o fato de que o limite extremo do que ante-
riormente era considerado uma derrota honrosa e qualificável – a inserção
voluntária no trabalho manual – hoje seja visto como uma “época de ouro”
e que qualquer tipo de trabalho seja ardentemente almejado. Uma vez que
se torna condicional aquilo que deveria ser um direito de nascença, os filhos
da classe trabalhadora agora aspiram ao seu próprio e necessário status! Es-
cravos do contracheque, comemorem seus grilhões! Ou a perspectiva deles.

Por que, para muitos jovens, essas transições nunca serão completadas? O que
fazer, então, como pesquisadores da cultura?

Nunca antes os pobres foram submersos em tamanha estereotipia ne-


gativa, em presunções de passividade e, cada vez mais, em formas dife-
rentes de patologia e disfunção social. Hoje, mais do que nunca, nós
devemos propiciar aos grupos subordinados uma energia estética e social
independente; eles geralmente são dispostos em categorias de comporta-
mento e cultura delinqüentes, aos quais com tanta freqüência são desig-
nadas as piores ajudas. Vamos virar a mesa! Mesmo sob condições frag-
mentadas e obstruídas de transição, vamos imaginar que as culturas
subordinadas possam ser mais abertas, mais plásticas e criativas do que
as dominantes, porque elas são menos organizadas internamente pelas
exigências, inflexibilidades e tradições necessárias à manutenção da do-
minação: as auto-ilusões necessárias para o exercício da força. William
James argumenta que “a experiência, como sabemos, tem maneiras de
transbordar, e fazer com que corrijamos nossas fórmulas atuais”. É no
registro etnográfico dos transbordamentos da produção cultural em cul-
turas subordinadas que podem estar as chaves para novas formas e con-

330 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Melissa Mattos Pimenta

dições estruturais, registradas não apenas como fatos econômicos brutos,


mas como ordens segundo as quais as formas simbólicas interceptam e
incorporam os fatos, contribuindo para estabelecer os parâmetros de
acordo com os quais os sujeitos modernos são constituídos.

Como o senhor explica os fenômenos das transições “estendidas”, do “prolonga-


mento” da juventude ou da “pós-adolescência”?

Parte da cultura pós-consumo mediatizada, especialmente para os jo-


vens, parece ter a ver com marcar etapas de transição apenas por marcá-las,
pois não há perspectivas de transições efetivas a destinos finais. Tanto o iní-
cio como o final da transição se encontram desconectados da realidade ma-
terial ou contêm apenas referentes puramente simbólicos. Richard Hoggart
escreveu nos anos de 1950 sobre um breve intervalo de tempo durante o
qual jovens mulheres da classe trabalhadora nas comunidades tradicionais
de trabalhadores do pré-guerra gozavam de um rápido período de “vida de
borboleta”, constituído por saídas com as amigas depois de deixarem a es-
cola e antes de se estabelecerem na rotina sem graça de seus lares maritais. É
quase como se esse estágio de “borboleta” tivesse se tornado uma aspiração
social permanente. Pode muito bem ser o caso de a diversão associada a esse
período extremamente curto de transição para a vida independente, de ar-
ranjar um emprego e de estabelecer-se, sempre ter sido mais divertida do
que o que vinha depois. Mas, se há incerteza em toda parte, então por que
não empregar os esforços e investimentos simbólicos para transformar o su-
pérfluo no sentido da vida? Há um pouco do puer eternis em todas as coisas
de nossas vidas consumistas, mesmo quando já somos adultos. Os rituais e
a diversão de antes do ingresso em um novo estágio de vida, que outrora
eram associados a um curto período, agora se expandiram em novas possi-
bilidades, novos conjuntos de relações horizontais a serem aproveitadas por
elas mesmas, e novas e alargadas formas de “viver para o hoje”. Isso é um
indicador do quanto estamos nos tornando, se você preferir, adolescentes
permanentes.
Embora com importantes componentes imaginários, isso também tem
efeitos colaterais reais devido ao trabalho envolvido, incluindo a possibili-
dade de formação de novas identidades, desalojando identidades ulterio-
res porque elas não se fixam aos destinos esperados.

Na entrevista de 1998, o senhor afirmou não ser mais possível saber onde estão

novembro 2005 331


Entrevista com Paul Willis, pp. 323-333

os jovens de hoje. Por quê? Onde estão os jovens? É possível identificar novas
formas de expressão cultural?

No mundo da cultura de consumo e do mercado virtual, ninguém sabe


se você é da classe trabalhadora ou de que parte da cidade você vem, ou
qual é sua posição política. Aparentemente você pode abandonar seu pas-
sado. Que novas maneiras estão sendo desenvolvidas para incorporar iden-
tidades concretas, sexuais, raciais e de classe? Que novas corporificações da
sensualidade de um “manualismo” da classe trabalhadora estão se manifes-
tando? Que novas transições são visualizadas através do vidro escurecido
da cultura vivida, e a que se destinam? Mas não podemos nomear e reco-
nhecer essas práticas culturais. Elas são ora patologizadas e vistas como “o
problema da juventude de hoje”, ora simplesmente obliteradas pela domi-
nância das línguas oficiais, por falarem de cultura como “cultura erudita”:
as formas simbólicas que são altamente valorizadas, que atraem patrocínio
e reconhecimento, e que são mobilizadas para controlar as áreas de subsí-
dio, acesso e influência. A estética oculta “das massas” nunca é percebida,
reconhecida, analisada, ensinada. Então não há como desencaixotar, dig-
nificar e compreender, ou mesmo enxergar, a tragicomédia dos efeitos reais
que fluem, incompreendidos, quando o puer eternis, a vida de borboleta
preternaturalmente expandida de uma “juventude” cada vez mais alargada
encontra as estatísticas invencíveis da exploração capitalista e a interferên-
cia estatal tanto nos salários de fome como no penoso desemprego de lon-
ga duração.

Referências Bibliográficas

WILLIS, P. (1981), Aprendiendo a trabajar. Cómo los chicos de clase obrera consiguen
trabajos de clase obrera. Madri, Akal (1 ed. 1977). (Original inglês: Learning to
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______. (1987), “Notes on method”. In: ______ et al. Culture, media, language: working
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______ et al. (1988), The Youth Review. Aldershot, Gower.
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a su vez no es lo mismo que reproducción social, que tampoco es lo mismo que
reproducción”. In: VELASCO, H. M., GARCÍA, F. J. & DÍAZ, A. (eds.). Lecturas de

332 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Melissa Mattos Pimenta

antropología para educadores. El ámbito de la antropología de la educación y de la


etnografía escolar. Madri, Trotta (1 ed. 1981).
______. (1996), Common culture: symbolic work at play in the everyday cultures of the
young. Milton Keynes: Open University Press (1 ed. 1990).
______. (1998), Cultura viva: una recerca sobre les activitats culturals dels joves. Barcelo-
na, Diputació de Barcelona (1 ed. 1990). (Original inglês: Moving culture: an inquiry
into the cultural activities of young people. Londres, Gulbenkian Foundation.)
______. (2000), The Ethnographic imagination. Cambridge, PolityPress.

Texto recebido e apro-


vado em 25/10/2005.
Melissa Mattos Pimenta
é doutoranda em Socio-
logia pela FFCH-USP.E-
mail: melissa_mpimenta
@yahoo.com.br.

novembro 2005 333


A particularidade do processo de
socialização contemporâneo
Maria da Graça Jacintho Setton

Introdução

Embora os estudos sobre a problemática da socialização sejam abundantes


no campo da sociologia da educação (cf. Foracchi e Pereira, 1973; Foracchi
e Martins, 1980; Gomes, 1988, 1989; Van Zanten e Duru-Bellat, 1999), é
possível observar um tímido debate sobre a particularidade desse processo
de interação social vivido na atualidade (cf. Dubet, 1996, 1998; Charlot,
2000; Dubar, 2000, Lahire, 1998). Este artigo tem como intenção refletir
sobre a emergência de novos modelos de socialização. Pretendo abordar o
processo de construção da identidade social e pessoal do indivíduo na atua-
lidade, a partir das transformações sofridas no interior das agências tradicio-
nais da educação. Proponho ainda compreender o surgimento de outras
instâncias que compartilham a responsabilidade na formação da subjetivi-
dade e das representações dos indivíduos no mundo contemporâneo.
Para refletir sobre essas considerações, irei referir-me primeiramente às
contribuições de Anthony Giddens (1991). Creio que esse autor, ao arti-
cular três dimensões das transformações na modernidade (a ressignificação
do tempo/espaço, o desencaixe e a reflexividade), ajuda-nos a mapear uma
nova configuração social. Para Giddens, é possível observar o “‘desloca-
mento’ das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestrutu-
ração através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. Nesse sentido,
A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

1. Por cultura de massa [...] o advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomen-
entendo o processo mun- tando relações entre outros “ausentes”, localmente distantes de qualquer situação
dializado de produção e
dada ou interação face a face [...] isto é, os locais são completamente penetrados e
difusão de mercadorias de
caráter simbólico. Reme- moldados em termos de influências sociais bem distantes deles (Giddens, 1991,
to-me sobretudo às análi- pp. 27-29).
ses de Morin (1984).
2. A noção de cultura é Essa nova arquitetura do social tende a determinar outra forma de per-
aqui utilizada com um cepção do indivíduo em relação ao mundo, potencializando sua capacida-
sentido bastante especí- de reflexiva, aumentando sua capacidade de articular a multiplicidade de
fico. Extrapolando o informações a que tem acesso (cf. Benjamin, 1983; Giddens, 1994); e
sentido antropológico
tende, conseqüentemente, a introduzir uma leitura crítica e distanciada
do termo, ou seja, um
sistema de valores e nor- sobre o universo social e individual em cada um de nós (cf. Simmel, 1977;
mas de comportamento Dubet, 1996).
que orientam a prática A partir dessas reflexões, Giddens (1991, 1994) consegue sistematizar
humana, o conceito de as principais tendências que caracterizam as transformações culturais –
cultura passa a assumir
notadamente as relativas ao fenômeno da cultura de massas1 – ocorridas
outro significado no sé-
culo XX, segundo Hall. no último século, associando evolução tecnológica e material às transfor-
Ele afirma que, na série mações de ordem cultural e/ou subjetiva dos indivíduos. Ele oferece um
de transformações so- corpo de conceitos que nos possibilita analisar outras formas de interação
cioculturais da contem- e sociabilidade. Giddens apresenta-nos um pano de fundo, contextualiza
poraneidade, é possível
sociologicamente o surgimento de outra ordem social que influencia pro-
observar o crescimento
da importância da cul-
fundamente a constituição de um novo homem, a forma como esse ho-
tura como fenômeno de mem pensa sobre si mesmo e sobre suas relações, e como ele se orienta e
mercado, que passa a constrói a realidade a que pertence.
exercer um papel central Hall (1997) corrobora essa idéia afirmando que “o impacto das revolu-
na nossa existência coti- ções culturais sobre as sociedades globais e a vida cotidiana local, no final do
diana. Em suas palavras,
século XX, parece tão significativo e abrangente que justifica a afirmação de
“a expressão ‘centralida-
de da cultura’ indica aqui que a substantiva expansão da ‘cultura’”2, que hoje experimentamos, não
a forma como a cultura tem precedentes. Mais do que isso, considera que a menção desse impacto
penetra em cada recanto na “‘vida interior’ lembra-nos outra dimensão que precisa ser considerada:
davidasocialcontemporâ- a centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria iden-
nea, fazendo proliferar
tidade e da pessoa como um ator social [...]”. Para ele, “é cada vez mais difí-
ambientes secundários,
mediando tudo. A cultura
cil manter a tradicional distinção entre ‘interior’ e ‘exterior’, entre o social e
está presente nas vozes e o psíquico, quando a cultura intervém” (Hall, 1997, pp. 23-24 e 27).
imagens incorpóreas que Dito isso, creio que para refletir sobre o processo de socialização con-
nos interpelam nas telas, temporâneo é necessário considerar alguns aspectos relativos à formação
nos postos de gasolina. Ela da individualidade e da subjetividade do indivíduo atual3. Considero rele-
é um elemento-chave no
vante repensar esse processo a partir da reconfiguração dos papéis das ins-

336 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

tâncias tradicionais da educação, bem como da emergência da mídia como modo como o meio am-
importante agência socializadora ou educadora4. Nesse sentido, primeira- biente doméstico é atrela-
do, pelo consumo, às ten-
mente terei de retomar alguns autores clássicos com o intuito de repensar
dências e modas mundiais
suas contribuições. Buscando desenvolver esse argumento, recuperarei al- [...]” (Hall, 1997, p. 22).
gumas visões paradigmáticas a respeito da função das instituições sociais Para uma melhor com-
no processo de socialização e, por último, apontarei as formulações teóri- preensão do conceito de
cas recentes de François Dubet e Bernard Lahire, que delineiam problemas cultura, ver Thompson
(1995), e Cuche (1999),
atuais da socialização.
entre outros.

As visões clássicas 3. As noções de indiví-


duo, sujeito e ator social
serão usadas aqui como
Os estudos clássicos da sociologia da educação abordam dois espaços sinônimos. Embora cons-
de socialização tradicionais – a família e a escola (cf. Van Zanten e Duru- ciente das implicações
Bellat, 1999). Grande parte dos trabalhos desta área, no que se refere ao teóricas do uso indiscri-
tema socialização, tem como paradigma maior Émile Durkheim e, mais minado dessas noções,
optei por fazê-lo para
recentemente, Peter Berger e Thomas Luckmann5.
não carregar a leitura.
Em A educação – sua natureza e função, Durkheim define educação Contudo, parto do prin-
como uma cípio de que o sujeito so-
cial tem uma participa-
[...] ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontram ção ativa no processo de
construção da realidade
ainda preparadas para a vida social: tem por objetivo suscitar e desenvolver, na
a que pertence. Numa
criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela
intensa e contínua troca
sociedade política no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particular- simbólica, a relação en-
mente, se destine (1978, p. 41). tre indivíduo e institui-
ções sociais é o que man-
A educação consiste, pois, numa socialização metódica das novas gera- tém e transforma as es-
truturas do mundo cole-
ções. Segundo o autor,
tivo. A esse respeito ver,
Bourdieu (2000; 1992)
[...] a sociedade se encontra, a cada nova geração, como que diante de uma tabula
e Setton (2002b).
rasa, sobre a qual é preciso construir quase tudo de novo. É preciso que, pelos
4. Com base em Ribeiro
meios mais rápidos, ela agregue ao ser egoísta e associal, que acaba de nascer, uma
(1973), Rocco (1999),
natureza capaz de vida moral e social. Eis aí a obra da educação. Ela cria no homem
Martín-Barbero (1995,
um ser novo (1978, p. 42). 2000, 2002) e Baccega
(2002), entendo o sen-
Na verdade, o homem não é humano senão porque vive em sociedade. [...] É a
tido da prática educati-
sociedade que nos lança fora de nós mesmos, que nos obriga a considerar outros
va não apenas como o
interesses que não os nossos, que nos ensina a dominar as paixões, os instintos, e processo de aprendiza-
dar-lhes lei, ensinando-nos o sacrifício, a privação, a subordinação dos nossos fins gem de um conheci-
individuais a outros mais elevados. Todo o sistema de representação que mantém mento formal e siste-

novembro 2005 337


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

mático, mas também em nós a idéia e o sentimento da lei, da disciplina interna ou externa, é instituído
como uma prática que pela sociedade (Idem, p. 45).
está presente de manei-
ra difusa e pulverizada
no cotidiano das rela- Por isso mesmo, o suposto antagonismo, muitas vezes admitido, entre indivíduo e
ções sociais, sobretudo sociedade não corresponde a coisa alguma no terreno dos fatos. Bem longe de esta-
no conhecimento pul- rem em oposição, ou de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro –
verizado e possibilitado sociedade e indivíduo são idéias dependentes uma da outra. Desejando melhorar a
pelo crescimento da cir-
sociedade, o indivíduo deseja melhorar-se a si próprio. Por sua vez, a ação exercida
culação de informações.
pela sociedade, especialmente através da educação, não tem por objeto, ou por efei-
5. Durkheim, em seus to, comprimir o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário engran-
escritos sobre educação
decê-lo e torná-lo criatura verdadeiramente humana (Idem, pp. 46-47).
e sociologia que datam
do início do século pas-
sado; Talcott Parsons e A partir dessas considerações, seria possível concluir que o agente social
George Mead entre as para Durkheim é visto como um organismo em que os instintos e os dese-
décadas de 1930 e 1950; jos infinitos devem deixar de ser regulados naturalmente. Uma educação
Peter Berger e Thomas
normativa e moral deveria assentar a unidade entre indivíduo e sociedade,
Luckmann na década de
1960 e Bourdieu nos ambos concebidos como duas faces de uma mesma realidade. Mais do que
anos de 1970 e 1980, isso, o sucesso desse processo educacional seria caracterizado pela constru-
com sua teoria do habi- ção de um ser social totalmente identificado com os valores societários.
tus. Embora todas essas Nesse sentido, existiria uma total correspondência entre ator e sistema so-
contribuições sejam refe-
cial (cf. Dubet, 1996). Segundo essa leitura, o processo de interiorização
rências, irei abordar aqui
apenas os autores citados.
das regras de comportamento moral não se constituiria como arbitrário ou
Sobre o conceito de habi- impositivo6. Ao contrário, a coerção é entendida aqui como uma etapa
tus na obra de Bourdieu a civilizatória em direção à liberdade. Assim, a educação familiar e escolar
partir de uma leitura estariam longe de ter apenas um valor instrumental, ou seja, ser a aquisição
contemporânea, ver de aprendizagens úteis. Elas exerceriam sobretudo uma influência total na
Setton (2002b).
personalidade dos indivíduos7.
6. É interessante salien- Nesse mesmo estudo, Durkheim afirma que, diferente da família, volta-
tar que, embora o pro-
da a ensinamentos de caráter privado e doméstico, a escola surge como com-
cesso de incorporação
das disposições sociocul- plementar a esta, como instituição responsável pela construção de indiví-
turais seja impositivo, o duos morais e eticamente comprometidos com o ideal público. A sociedade
indivíduo não o sente do final do século XIX, segundo o autor, demandava a construção de espíri-
como tal, mas deseja-o, tos solidários e altruístas para consolidar o projeto de modernidade do sé-
pois identifica-se com a
culo XX. A educação moral das instituições família e escola teria a responsa-
realidade que o cerca. A
partir de outra perspec-
bilidade, portanto, de forjar a personalidade de um novo sujeito social,
tiva, Fernandes (1994) agora identificado com a proposta de uma sociedade burguesa e capitalista.
aborda criticamente essa Embora até hoje as proposições de Durkheim sejam paradigmáticas,
leitura. creio que para os objetivos desta reflexão seria interessante retomar algu-

338 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

mas considerações. Ao compreender a ação individual atrelada a um proje- 7.Durkheim (1995)


to exterior, construído por um conjunto de instituições sociais, Durkheim fala, neste caso, sobre-
tudo a respeito da con-
explicita uma concepção passiva do agente social. Ou seja, para ele, a cons-
dição dos conventos ou
tituição de um ser social e o desenvolvimento da dimensão humana dos internatos. Um exem-
indivíduos estariam totalmente condicionados ao estabelecimento de uma plo do ambiente, do
ordem coletiva em que se encontraria uma perfeita harmonia entre estí- cotidiano e do espírito
mulos externos, objetivos e materializados em valores da coletividade, e dos internatos pode ser
encontrado nas produ-
estímulos internos e subjetivos dos indivíduos. Embora contemporâneo a
ções cinematográficas
uma série de reflexões sobre o caráter conflitivo e ambíguo das relações de François Trufautt,
entre indivíduo e sociedade (cf. Freud, 1974; Simmel, 1977), Durkheim em Os incompreendidos,
enfatiza e crê na coerência entre valores institucionais e individuais na cons- de 1959, e de Louis
trução de um projeto moderno de civilização. A escola laica viria a ser o Malle, em Adeus, me-
grande veículo educativo, instituição capaz de transmitir um corpo de ninos, de 1987.

normas e referências formadoras de uma consciência e de uma personali-


dade moral e ética.
A repercussão das proposições socializadoras de Durkheim pode ser
observada nas contribuições de outros sociólogos que se debruçaram sobre
o mesmo tema. É possível identificar que grande parte das abordagens
culturais e funcionalistas da socialização acentuam essa característica es-
sencial da formação dos indivíduos, pois a entendem como a incorporação
das maneiras de ser de um grupo, uma visão de mundo e uma relação com
o futuro, em outras palavras, a interiorização incondicional de valores,
normas e disposições sociais que fazem do indivíduo um ser socialmente
identificável (cf. Dubar, 2000).
George Mead na década de 1930, Talcott Parsons e Erving Goffman
nas décadas posteriores, entre outros, embora com apropriações distintas
da obra de Durkheim, parecem ser tributários de algumas contribuições
desse autor. Atribuindo às instituições e seus agentes a função da manu-
tenção da ordem social, concebem a construção da realidade a partir de
uma coerência de propósitos entre o indivíduo e o espírito de seu tempo.
Seja na metáfora do ator representando um papel (cf. Parsons, 1973a e b),
seja na noção de self (cf. Mead, 1963), ou mesmo na dimensão dialógica e
interativa da construção da identidade (cf. Goffman, 1975), esses autores
entendem a organização social como um sistema coerente de contínuas
adaptações do indivíduo diante dos ditames institucionais.
A busca pela coerência de propostas entre agentes e instituições sociais,
tal como a exposta acima, rege também escritos mais recentes, que servem
de referência sobre o processo da socialização. Thomas Luckmann e Peter

novembro 2005 339


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

8. O texto “Socialização: Berger, no livro A construção social da realidade (1983)8, retomam e


como ser um membro da aprofundam as análises anteriores sobre o mesmo fenômeno, acrescentan-
sociedade”, de Peter Ber-
do conceitualmente uma distinção interessante entre socialização primária
ger e Brigitte Berger
(1973), embora siga de e socialização secundária9. A primeira, segundo os autores, define-se pela
uma maneira geral o ar- imersão da criança em um mundo social no qual vive não como um uni-
gumento do livro A cons- verso possível entre todos, mas como o mundo, o único mundo existente
trução social da realidade e concebível, o mundo tout court. Essa imersão se faz a partir de um conhe-
(editado pela primeira vez
cimento de base que serve de referência para que ela consiga objetivar o
em 1966), foi publicado
alguns anos depois e não
mundo exterior, ordená-lo por intermédio da linguagem, bem como refle-
enfatiza o mundo do tra- tir e projetar ações passadas e futuras. É a incorporação desse saber de base
balho como único res- na e com a aprendizagem primária da linguagem – oral e escrita – que
ponsável pelo processo de constitui o processo fundamental da socialização primária, pois assegura a
socialização secundária, posse subjetiva de um eu e de um mundo exterior (cf. Berger e Luckmann,
como veremos a seguir.
1983, pp. 173-190; Dubar, 2000, p. 98).
A ênfase é dada a todo
tipo de ambiente social, Para esses autores, os saberes básicos incorporados pelas crianças depen-
fora da esfera doméstica, derão não somente das relações entre a família e o universo escolar, mas de
que possa exercer algum sua própria relação com os adultos responsáveis pela socialização. No en-
domínio sobre o indiví- tanto, o interesse essencial desse livro reside na tentativa de construir uma
duo no processo de cons-
teoria operatória da socialização secundária, aqui definida como a “interio-
trução identitária.
rização de submundos institucionais especializados” e/ou a “aquisição de
9.É importante ressal-
saberes específicos e de papéis direta ou indiretamente enraizados na divi-
tar que, de maneira in-
formal, Durkheim já
são do trabalho”. Seriam saberes vistos como maquinarias conceituais que
havia feito a distinção compreendem um vocabulário, um programa formalizado, um verdadeiro
entre as funções das universo simbólico veiculando uma nova concepção de mundo, que, ao
instituições família e contrário dos saberes de base da socialização primária, são definidos e cons-
escola no processo de tituídos em referência a um campo especializado de atividades, adquiridos
socialização. Entretan-
sobretudo nas instituições escolares. Para os autores, contudo, a coerência
to, são Berger e Luck-
mann que conceituam entre saberes de base e saberes especializados não responde a uma dinâmica
teoricamente a distin- única (cf. Berger e Luckmann, 1983, pp. 173-190; Dubar, 2000, p. 99). A
ção entre os dois mo- linearidade ou a complementariedade entre os saberes não estariam garan-
mentos desse processo. tidas. Ao contrário, estariam sujeitas a uma série de fatores conjunturais da
história biográfica e da trajetória social dos indivíduos.
Não obstante, para os objetivos desta reflexão, o que interessa é consi-
derar que a leitura que Luckmann e Berger fazem do processo socializador
assegura um avanço em relação às concepções anteriores. Embora ainda
esteja fortemente vinculada a uma visão culturalista da socialização, essa
abordagem sobre o processo de construção social da realidade permite con-
ceber a socialização a partir da perspectiva da mudança social, e não apenas

340 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

a partir da reprodução da ordem ou da total coerência e identificação entre


indivíduo e sociedade, como pregado por Durkheim. Enfatizando a dife-
renciação e o aprendizado dos saberes institucionais especializados na oca-
sião da socialização secundária, notadamente nas instituições escolares téc-
nicas e profissionais, essa teoria abre a possibilidade de definir a mudança
social como um processo de transformação de uma identidade adquirida
na socialização primária. Nesse sentido, as instituições da socialização não
mais poderiam ser consideradas instâncias funcionalmente integradas e
complementares umas às outras. Ao contrário, elas teriam certa autono-
mia, contribuindo para a construção de mundos diferenciados. A coerên-
cia e a hierarquização dos saberes não seriam mais garantidas por um siste-
ma único de controle social e de legitimidade cultural. Em outras palavras,
os padrões normativos das instituições tradicionais da socialização primá-
ria, ao interagirem com os padrões normativos das instituições da sociali-
zação secundária, poderiam provocar uma série de conflitos identitários,
pois explicitariam lógicas de atuação e concepções de mundo muito dis-
tintas (cf. Dubar, 2000, p. 101). Dessa forma, os autores atribuem uma
participação ativa do indivíduo nas instâncias socializadoras, conferindo a
ele maior autonomia e liberdade reflexiva. Esse indivíduo é concebido como
tendo capacidade de dialogar, questionar e escolher um universo de rela-
ções, bem como os valores que constituem esse universo diferente dos
demais10. 10.As reflexões de Ber-
Apesar de o avanço teórico das reflexões de Berger e Luckmann em ger e Luckmann, se-
relação à visão clássica do processo de socialização ser inegável, e ainda gundo eles mesmos, in-
serem-se no escopo de
procedente, é necessário, não obstante, fazer algumas considerações pa-
uma sociologia do co-
ralelas. Uma delas diz respeito ao caráter datado dessas contribuições, nhecimento. Devedo-
ou seja, ao circunstanciar a socialização secundária em um aprendizado res da corrente feno-
especializado e/ou na imersão de um universo de símbolos vinculados a menológica, os autores
um mundo profissional, os autores se baseiam na realidade social de buscam um diálogo
entre teorias das ciên-
uma época. Luckmann e Berger abordam a socialização secundária deri-
cias humanas, na ten-
vada de uma situação histórica específica do século XX, em que o pro- tativa de construir um
cesso de diferenciação social e de autonomização dos campos do traba- entendimento dialéti-
lho estavam consolidados e haviam construído e fortalecido novos grupos co entre estruturas so-
em interação. Isto é, conceberam aquela realidade a partir das relações ciais e subjetividades.
nem sempre harmoniosas entre grupos de interesses e profissionais, que
opunham identidades grupais e individuais, essas definidas não somen-
te por seus interesses estratégicos, mas também por suas identidades de
cultura (cf. Dubar, 2000, p. 102).

novembro 2005 341


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

No entanto, eles poderiam ser tomados como referência para pensar o


fenômeno da socialização na atualidade? Creio que suas contribuições dei-
xam margem para refletir sobre outras instâncias socializadoras fora do
11.Os autores também mundo do trabalho11, que ocupariam papel significativo na formação das
se referem a associações identidades sociais atuais. Portanto, proponho compreender a articulação
religiosas, profissionais,
entre saberes e concepções de mundo distintos a partir da experiência da
sindicatos e exército co-
socialização contemporânea, com o apoio das reflexões de François Dubet
mo instituições respon-
sáveis pela socialização (1996) e Bernard Lahire (1998). Esses autores, ao enfatizarem o impacto
secundária. da modernização no processo de construção das identidades, podem aju-
dar na compreensão de algumas proposições.

Uma visão contemporânea

Como já foi dito, a intenção deste artigo é entender o processo de socia-


lização a partir da emergência de uma nova ordem sociocultural, identifi-
cando a presença de uma maior circularidade de experiências e referências
identitárias. Mais do que isso, é importante a heterogeneidade dos espaços
em que se produz e se troca informações, saberes e competências. Na socieda-
de contemporânea, a cultura – no sentido empregado por Hall (1997) –, a
informação e o acesso a formas simbólicas em suas diferentes linguagens – tal
12.Com sistemas peri- como identificado por Giddens na expressão dos sistemas peritos12 – alcança-
tos Giddens (1991, p. ram um nível de produção e circulação nunca antes visto. O pressuposto
35) refere-se a sistemas
aqui, portanto, é o surgimento de um universo cultural plural e diversificado.
de excelência técnica
Nesse sentido, é necessário buscar contribuições que assegurem o diá-
ou competência profis-
sional que organizam logo e as relações de interdependência entre indivíduo e sociedade, tal
grandes áreas do am- como Luckmann e Berger o fizeram na década de 1960, mas que incorpo-
biente material em que rem também a especificidade do momento cultural moderno. Sensíveis à
vivemos hoje. problemática da socialização no mundo atual, François Dubet e Bernard
Lahire contribuem na tarefa de explicitar uma nova forma de se com-
preender as experiências de socialização vividas na contemporaneidade.
No livro Sociologia da experiência, François Dubet (1996) reflete so-
bre a crise de paradigma dentro da sociologia como disciplina acadêmi-
ca. Aponta um certo esgotamento das contribuições da sociologia clássi-
ca nas questões relativas ao ator e ao sistema social. Segundo ele, essa
sociologia, representada por Durkheim, Parsons e, de certa forma, por
Norbert Elias, define o ator individual pela interiorização do social, ou
seja, a ação individual seria a realização das normas de um conjunto
social integrado em torno de princípios comuns a atores e sistemas.

342 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

Não obstante, com base em pesquisas empíricas, Dubet questiona essa


interpretação. Crê que não é mais possível explicar a ação social a partir do
modelo anterior e sugere a noção de experiência para designar as condutas
individuais e coletivas dominadas pela heterogeneidade de princípios de
orientação. A noção de experiência social parece ser, segundo ele, a menos
inadequada para designar as condutas sociais que não são redutíveis a pu-
ras aplicações de códigos interiorizados ou a encadeamentos de opções
estratégicas que fazem da ação uma série de decisões racionais. Seriam
condutas organizadas por princípios estáveis, mas heterogêneos (cf. Idem,
p. 93). É essa heterogeneidade que permite falar de experiência, esta defi-
nida pela combinação de várias lógicas de ação. A representação clássica da
sociedade deixa de ser adequada nos casos em que os indivíduos são obri-
gados a gerir, simultaneamente, várias lógicas de ação que remetem a di-
versas lógicas do sistema social. Para ele, as combinações de lógicas de ação
que organizam a experiência social do indivíduo moderno não têm centro,
não assentam sobre nenhuma lógica única ou fundamental. A experiência
social, na medida em que sua unidade não é dada, gera necessariamente
uma atividade dos indivíduos, uma capacidade crítica e uma distância em
relação a si mesmos (cf. Idem, p. 94). Para Dubet, a experiência social é
uma maneira de construir o mundo. O indivíduo não está inteiramente
socializado, não porque lhe preexistam elementos “naturais” e irredutíveis,
mas porque a ação não tem unidade, não é redutível a um programa único.
Segundo o autor, existe alguma coisa de inacabado e de opaco na experiên-
cia social do indivíduo contemporâneo, porque não há adequação absolu-
ta entre a subjetividade do ator e a objetividade do sistema. Não existe
uma socialização total, mas se processa uma espécie de separação entre a
subjetividade do indivíduo e a objetividade de seu papel. E essa socializa-
ção não é total, não porque o indivíduo escape do social, mas porque sua
experiência se inscreve em registros múltiplos e não congruentes (cf. Idem,
pp. 94-96).
Para Dubet, a heterogeneidade dos princípios da ação remete à hetero-
geneidade dos sistemas de ação e à própria heterogeneidade dos mecanis-
mos de determinação das lógicas da ação. É essa pluralidade que permite
falar de ator e não de agente, pois a construção de uma coerência da expe-
riência e de uma capacidade de ação é uma exigência. As experiências so-
ciais são combinatórias subjetivas de elementos objetivos. A sociologia da
experiência não separa ator de sistema, não recusa sua unicidade. Mas afir-
ma que, se a unidade das significações da vida social não está no sistema,

novembro 2005 343


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

só pode ser observada no trabalho do ator social, trabalho pelo qual cons-
trói sua experiência (cf. Idem, p. 107).
Uma sociologia da experiência incita a que se considere cada indivíduo
como um intelectual, como um ator capaz de dominar, conscientemente,
pelo menos em certa medida, sua relação com o mundo. O ator não é
redutível aos seus papéis, nem aos seus interesses. O indivíduo não adere
totalmente a nenhum de seus papéis, que têm como tarefa articular lógicas
de ação, que o ligam a cada uma das dimensões de um sistema. O ator é
obrigado a combinar lógicas de ação diferentes e é a dinâmica gerada por
essa atividade que constitui a subjetividade do ator e sua reflexividade (cf.
Idem, pp. 105-107).
Essa heterogeneidade de experiências socializadoras identificada por
Dubet é também familiar a Bernard Lahire. Para ele, aquilo que vivemos
com nossa família, na escola, com amigos ou no trabalho, não é sintetica-
mente somado de maneira simples. Sem postular uma lógica de desconti-
nuidade absoluta, pressupondo contextos diferentes, pode-se pensar as
experiências como não sendo sistematicamente coerentes, homogêneas e
compatíveis. Cada vez mais o contato precoce com outros universos além
da família está presente em nossas vidas. Lahire afirma ainda que é difícil
conceber um universo coerente e harmonioso em relação ao universo fa-
miliar. Para ele, é necessário constatar que a experiência da pluralidade de
mundos tem todas as chances de ser precoce nas sociedades atuais. Vive-se
simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados e não equi-
valentes (cf. Lahire, 2002, pp. 27-31).
Lahire afirma que entre a família, a escola, os amigos e/ou as múltiplas
instituições culturais com quem ou em que a criança e o jovem são levados
a conviver, apresentam-se situações heterogêneas, concorrentes e às vezes
contraditórias, no que se refere aos princípios da socialização. A coerência
dos esquemas de ação que os indivíduos podem interiorizar depende, por-
tanto, da coerência dos princípios de socialização a que estão submetidos.
Desde que um indivíduo esteja simultânea e continuamente no seio de
uma pluralidade de mundos sociais, não homogêneos e às vezes contradi-
tórios, ou no seio de universos sociais relativamente coerentes, mas apre-
sentando em certos aspectos contradições, ele está exposto a um estoque
de esquemas de ação não homogêneos, não unificados, e conseqüente-
mente a práticas heterogêneas, variando segundo o contexto social que
será levado a valorizar (cf. Idem, pp. 32-36).
Por não ocupar posições semelhantes em todos os espaços sociais, o in-

344 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

divíduo vive experiências variadas e às vezes contraditórias na contempora-


neidade. Um ator plural é então produto de experiências – cada vez mais
precoces – de socialização em contextos sociais múltiplos. Pertence simul-
taneamente, no curso da trajetória de sua socialização, a universos sociais
variados (cf. Lahire, 1998, 2002; Dubet, 1996, 1998)13. 13. É importante consi-
Diante disso, é possível afirmar que, contrários ao posicionamento clás- derar que essas afirmações
sico que, grosso modo, concebe as instâncias da socialização com a função levam a outras contribui-
ções de Dubet (1998),
de transformar valores e normas sociais em papéis identitários, os autores
como quando define o
consideram, não obstante, que a sociedade contemporânea se caracteriza processo de desinstitucio-
pela heterogeneidade de princípios de ação. Lahire e Dubet observam um nalização como um mo-
afastamento gradual, mas contínuo, entre a coerência das práticas dos ato- do de produção dos in-
res e os espaços institucionais em que circulam. divíduos nas sociedades
contemporâneas. Refere-
Eles chamam a atenção para o fato de que, à medida que os universos
se sobretudo à perda da
de referências sociais e identitários compartilhados se multiplicam e se força das instâncias tra-
diversificam, à medida que uma pluralidade de opções e escolhas está ao dicionais da educação na
alcance dos indivíduos, estes terão, conseqüentemente, cada vez mais opor- responsabilidade de cons-
tunidades de deliberar. Nesse caso, os atores sociais não se reduziriam a truir identidades coeren-
tes com suas propostas
uma identificação coerente com papéis sociais identitários e com padrões
institucionais.
normativos institucionais atribuídos a eles, nem interiorizariam linearmente
projetos institucionais, mas articulariam uma gama variada de padrões e
valores identitários. Portanto, é possível conceber suas práticas e experiên-
cias sociais com base em uma combinação de várias lógicas de ação, que os
ligam a uma variedade de espaços institucionais (cf. Dubet, 1996; Lahire,
2002). Mais do que isso, é possível afirmar que a identidade social e indi-
vidual, na contemporaneidade, não se realizaria mais a partir de uma cor-
respondência contínua entre indivíduo e sociedade, entre papéis propostos
pelas instituições e sua integral identificação pelos indivíduos. O que se
observa é uma tendência à articulação e à negociação constante entre valo-
res e referências institucionais diferenciados e as biografias dos sujeitos.

Considerações finais

Até a década de 1960, a sociologia refletiu sobre as instâncias família e


escola sobretudo como duas instituições separadas (cf. Van-Zanten e Duru-
Bellat, 1999; Sengalen, 1999a). Não antagônicas, é claro, mas cada uma
delas com sua função e com seus papéis complementares na formação e na
socialização dos indivíduos. De um lado, a família, como espaço de afeto,
espaço privado responsável por um patrimônio e uma herança cultural de

novembro 2005 345


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

base (cf. Sengalen, 1999a, 1999b; Berger e Luckmann, 1983; Bourdieu,


1979). De outro, a escola, como espaço público de formação, de educação
moral, social e profissional dos indivíduos (cf. Durkheim, 1978; Berger e
Luckmann, 1983). Instituições de socialização, coerentes e em perfeita
sintonia com seu público, ambas investem em um projeto integrado, vol-
tado para o desenvolvimento da ordem do sistema social (cf. Dubar, 2000;
Setton, 2002a).
No entanto, a partir de meados do século passado nos países desenvolvi-
dos ocidentais e capitalistas, e notadamente a partir da década de 1970 no
Brasil, com o crescimento de um mercado de bens simbólicos, podemos
visualizar outra configuração sociocultural. Em poucos anos, a sociedade
brasileira viu-se imersa em uma realidade cultural desconhecida até então.
Surge timidamente, mas aos poucos se consolida, um mercado difusor de
informações e de entretenimento com um forte caráter socializador (cf.
Ortiz, 1988; Thompson, 1995; Hall, 1997). Estamos falando do surgi-
mento da cultura de massa, que, com toda sua diversidade e seu aparato
tecnológico, com a capacidade de publicizar conselhos e estilos de vida (cf.
Morin, 1984), passa a difundir uma série de propostas de socialização. Par-
tilha, pois, com a família e a escola, uma responsabilidade pedagógica. Nes-
se contexto, é possível considerar uma nova articulação entre as instâncias
educadoras. Família e escola, tradicionalmente detentoras do monopólio
de formação de personalidades, aos poucos perdem seu poder na constru-
ção das identidades sociais e individuais dos sujeitos (cf. Dubet, 1996;
Lahire, 1998). Novos modelos familiares e novas propostas pedagógicas
surgem, constituindo uma pluralidade de projetos educativos (Singly,
2000a e b; Dayrell, 2000; Setton, 2002a; Martín-Barbero, 1995, 2000,
2002; Rocco, 1999).
Nesse sentido, retomando, quais as implicações da presença de uma
nova configuração cultural para o campo da educação? Creio que, funda-
mentalmente, a importância encontra-se nos aspectos referentes à sociali-
zação, ou seja, nas maneiras de aprendizado formal e informal, na adapta-
ção e na percepção que o indivíduo contemporâneo passa a ter sobre o
mundo e sobre ele mesmo.
O fenômeno da cultura de massa, responsável pela circulação de infor-
mações, favorecido pela fragilidade das instituições tradicionais de educa-
ção, constrói um ambiente favorável à difusão de valores e padrões de con-
duta diversificados e por vezes heterogêneos. Nesse contexto, aponta para
uma nova arquitetura das relações sociais, em que as ações educativas não

346 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Maria da Graça Jacintho Setton

se realizam apenas nos espaços institucionais tradicionais. Ao contrário,


essa nova configuração cultural alerta para outras modalidades educativas,
circunstanciando a particularidade do processo de socialização na contem-
poraneidade. E é nesse quadro que a nova ordem cultural impõe um im-
pacto ao processo de construção da identidade e da subjetividade do indiví-
duo nas formações sociais atuais. Ao dar ênfase ao caráter massivo da
difusão da informação, com enfoque na ampla difusão dos bens culturais, e
ao considerar a reestruturação das instâncias tradicionais da educação, cha-
ma a atenção o fato de que a pluralidade e a heterogeneidade das informa-
ções em circulação contribuem para o surgimento de uma nova percepção
do indivíduo sobre si e sobre os grupos que o rodeiam; contribuem para o
surgimento de novas formas de interação social, novas formas de aproxima-
ção e/ou afastamento entre os indivíduos e grupos (cf. Giddens, 1991,
1994; Dubet, 1996; Simmel, 1977); e oferecem condições de ampliar e
diversificar o conhecimento do indivíduo sobre o mundo, aumentando
suas predisposições e/ou disposições interpretativas e reflexivas.
Assim, poderíamos conceber os sujeitos sociais com um potencial refle-
xivo maior, passando a orientar suas práticas e ações, a refletir sobre a
realidade, construí-la e experimentá-la a partir de outros parâmetros que
não sejam mais exclusivamente locais e institucionais. Em outras palavras,
as biografias individuais e coletivas contemporâneas, segundo essa pers-
pectiva, não estariam mais definidas e traçadas apenas a partir de experiên-
cias próximas no tempo e no espaço, transmitidas pelos agentes tradicio-
nais da educação. Ao contrário, poderiam ser influenciadas por modelos e
referências produzidos e vividos em contextos sociais longínquos e/ou vir-
tuais, possibilitados por essa nova configuração cultural.
Para finalizar, é importante salientar que essa circulação e a intensidade
de penetração de novas formas de pensar e agir, em outras palavras, a
circularidade de novas maneiras de conceber e interpretar o mundo, serão
sempre apropriadas e experimentadas de forma particular e singular, pois
estão continuamente sujeitas aos condicionamentos sociais e às trajetórias
individuais ou de grupos. Não se trata de um processo homogêneo e mas-
sificado. Trata-se sempre de experiências individuais que se apropriam da
heterogeneidade e da complexidade do mundo social a partir de um reper-
tório conquistado a priori e um devir construído no presente.

novembro 2005 347


A particularidade do processo de socialização contemporâneo, pp. 335-350

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Resumo

A particularidade do processo de socialização contemporâneo


O objetivo deste artigo é refletir sobre o processo de socialização do indivíduo contem-
porâneo a partir do ponto de vista do educador, mais especificamente sob a ótica da
sociologia da educação. A autora aborda a particularidade do processo de socialização
pela sua contextualização em uma nova configuração sociocultural, tendo como base a
concepção de modernidade de Anthony Giddens. Procura também abordar esse fenô-
Texto recebido em 3/5/
meno a partir das contribuições de Émile Durkheim, Peter Berger, Thomas Luck- 2003 e aprovado em
mann e, mais recentemente, François Dubet e Bernard Lahire, enfatizando os limites 15/12/2003.
das concepções clássicas da socialização diante do surgimento de uma cultura midiática. Maria da Graça Jacinto
Palavras-chave: Socialização; Cultura de massa; Identidade social; Instituições sociais. Setton é professora de
Sociologia da Educação
Abstract do Curso de Pedagogia,
Licenciatura, e do Pro-
The Particularity of contemporary socializing process
grama de Pós-Graduação
The aim of this paper is to look at the contemporary individual’s socializing process
da Faculdade de Educa-
from the standpoint of the educator, more specifically, from the Sociology of Educa- ção da USP. É mestre em
tion point of view. It deals with the particularity of the socializing process through its Sociologia pela PUC-SP
contextualization in a new socio-cultural configuration, based on Anthony Giddens’ e doutora também em
concept of modernity. It also deals with this phenomenon taking Émile Durkheim, Sociologia pela FFLCH–
USP. Fez pós-doutora-
Peter Berger, Thomas Luckmann and, more recently, François Dubet e Bernard Lahire’s
do na École de Hautes
contributions, highlighting the limits of classical socialization concepts facing the Études en Sciences So-
emergence of a media-boosted culture. ciales, Paris. E-mail:
Keywords: Socialization; Mass culture; Social identity; Institutions. gracaset@usp.br

350 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


O trabalho visto de baixo
Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki
e Vladimir Ferrari Puzone

Introdução

É comum a caracterização do tempo presente como pós-fordista e pós-taylo-


rista. Essa é a chave que, na sociologia do trabalho de todo o mundo indus-
trial, abre as vias de interpretação das mudanças que estão ocorrendo no
modo de organização das empresas, no seu ambiente econômico, geográfico
e social, assim como na experiência dos trabalhadores afetados por essas mu-
danças. O presente texto irá se debruçar exatamente sobre esse último aspec-
to, tentando esmiuçar tanto quanto possível o contorno de um fenômeno
social de conseqüências não triviais para o desenho de uma modernidade
que tem nas relações entre classes sociais o seu ponto forte de sustentação.
Esse fenômeno é justamente o desmanche ou a erosão de uma identidade do
trabalho que foi historicamente alimentada por determinadas condições que
agregavam, em grandes espaços, massas de homens e mulheres vivendo e expe-
rimentando situações relativamente idênticas de exploração e opressão – e que
engendraram, como uma resposta a tais situações, formas de resistência e expec-
tativas utópicas de emancipação. É o mundo da “grande indústria”, em suma,
que está sendo posto em questão. A identidade de classe associada à “velha ques-
tão social” cede o passo mais e mais para uma interpelação individualizada da
população assalariada, que funcionava até então como portadora simbólica e
material de valores coletivos e universalizáveis, mesmo para os não-assalariados.
O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

Esse panorama, que é mundial, afeta também a realidade do trabalho industrial


no Brasil.
A experiência considerada emblemática para acompanhar as tendências
acima mencionadas é um tipo de organização do trabalho conhecido como
“células de produção”, encontradas tanto em empresas de setores tecnoló-
gica e economicamente de ponta, como naquelas de setores considerados
mais conservadores e tradicionais, como o têxtil e o de confecções. A linha
de força que ata esses dois pólos está no conjunto de exigências da firma
flexível: a conexão com o mercado global por meio de uma cadeia produti-
va que implica, de maneira diferenciada e hierarquizada, atores sociais e
segmentos produtivos obedientes a uma lógica que lhes é exterior e com
reduzida margem de deliberação. Entram nesse caso tanto a montadora de
veículos da região do ABC paulista como, em outro extremo, a empresa
que confecciona roupas íntimas para o mercado interno e externo, e tam-
bém aquela que confecciona capas para assentos de veículos – fornecedora
privilegiada da primeira. Como há bastante conhecimento acumulado so-
bre o universo das montadoras, optamos por deslocar a atenção para aquele
que recobre atividades basicamente de corte e costura, e costuma ser menos
visível nas considerações algo peremptórias sobre esse gênero de questões.
Visitas às empresas e aplicação de questionários fechados sobre a orga-
nização do trabalho compuseram a primeira parte da pesquisa. Entrevistas
abertas realizadas nos domicílios das próprias trabalhadoras complementa-
1. Agradecemos à pro- ram o conjunto de informações que dá a base à análise exposta a seguir1.
fessora Heloisa de Sou- O texto está dividido de acordo com os principais tópicos que em geral
za Martins pelas obser- são destacados na experiência de organização de trabalho em grupo ou de
vações metodológicas fei-
uma manufatura celular: são indicações oriundas de leituras de pesquisas
tas à pesquisa, então no
seu início, quando de sua feitas no Brasil e no exterior, indicações essas que muitas vezes não são
já longínqua apresenta- diretas, mas indiretas, o que tornaria enfadonho ou incompreensível arro-
ção em um Encontro da lá-las aqui. A nosso ver, o importante é o conjunto de problemas que cada
Anpocs. O caminho tri- tópico levanta, que remete ao objeto explicitado no início, isto é, a expe-
lhado desde então deve
riência do trabalho quando o ambiente microrganizacional conspira para a
muito àquelas observa-
ções, as quais procura- individualização e o ambiente social perde os referenciais coletivos centra-
mos seguir. dos na classe social.

As células de produção

Entre as “ferramentas” oriundas dos novos métodos de gestão do traba-


lho associados à implementação de programas de certificação da qualidade

352 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

e à produção em fluxo tensionado (cf. Durand, 2003) – exigências da


firma flexível –, a organização celular talvez seja uma das mais intrigantes,
porque combina, em graus variados, coerção e consentimento. Por um
lado está o caráter inerentemente antagônico da relação salarial no capita-
lismo; por outro está o apelo indiferenciado e quase comunal das virtudes
sociais do trabalho em grupo. Se é verdade que nos tempos de Taylor e
Ford os apelos para a harmonia e a paz social entre patrões e empregados
também faziam parte de seu estoque de doutrinação ideológica (a prospe-
ridade do capital e do trabalho encontrando seu locus na fábrica), não é
menos verdade que, no plano dos processos de trabalho reais das firmas –
ao menos daquelas que aplicavam o método taylorista –, a realidade era
bem outra: revoltas contra a imposição de ritmos, contra o poder do con-
trolador do trabalho e contra o ataque aos costumes do ofício (o que en-
volvia a norma operária de impedir o manuseio de máquinas especializa-
das por trabalhadores que não fossem do ramo). Eis que o novo modelo
produtivo reacende o discurso dos “interesses comuns e complementares”
entre operários e patrões, porém em uma conjuntura duplamente modifi-
cada: 1) uma relação salarial fraturada e em recorrente crise, e 2) uma
demanda de trabalho industrial que pode prescindir, para ser eficiente, da
separação fundamentalista (para Taylor) entre o trabalho de concepção e o
de execução – pedra de toque de seu sistema.
Por outro lado, a busca de um comprometimento mais incisivo do pes-
soal operacional com a produção, tal como se observa hoje entre os admi-
nistradores e gestores de empresas, não é um simples prolongamento ou
atualização da escola de “relações humanas”, que, em sua crítica à estreiteza
tayloriana simploriamente fincada no homo œconomicus, “descobriu” a vi-
gência de normas e valores próprios ao grupo social de trabalhadores postos
em uma situação de trabalho compartilhada. Contrariamente às aborda-
gens sistêmicas dos primórdios da sociologia industrial, que enfatizavam
sobremaneira o ambiente “social” da interação, sem no entanto alargar
aquela noção para incluir nela a tecnologia, a própria empresa como feixe
de conflitos e a existência de divisões de classe, a ênfase contemporânea na
produtividade do grupo está intimamente relacionada com as exigências de
qualidade e responsabilidade do aparelho econômico-produtivo. Nesse
caso, a produtividade econômica solicita de fato uma “boa” integração de
uma parte da força de trabalho desde o início, como componente constitu-
tivo, e não apenas complementar. Prova disso é que as relações humanas –
diferentemente das segmentações corporativas do passado – estão tenden-

novembro 2005 353


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

do a fundir-se nas competências propriamente técnico-especializadas do


corpo gerencial, segundo o que têm mostrado as pesquisas.
Por todos esses motivos, pareceu-nos que as células de produção cons-
tituem um ângulo de ataque, diante de outros traços possíveis dos novos
tempos (a fragilização sindical, a objetivação tecnológica de antigas fun-
ções profissionais ou a ofensiva contra os direitos trabalhistas, por exem-
plo), sociologicamente rico e cheio de implicações. Por essa razão elas fo-
ram destacadas como matéria de investigação.

A regulação pelo grupo

O sistema de organização celular é idealmente contraposto ao sistema


de produção “em linha”. Na verdade, trata-se de duas formas distintas de
busca da eficiência produtiva. Embora no início pudesse aparecer dessa
forma, a organização celular não é uma alternativa à cadeia de montagem,
à classificação funcional e à divisão do trabalho que lhe estão associadas; os
dois modelos podem conviver em muitos aspectos-chave, como demons-
tram a importância atribuída por ambos à qualificação do posto de traba-
lho e ao controle do tempo de execução das tarefas pelos operários e ope-
rárias. É certo que o trabalho em grupo pode estar associado à experiência
dos grupos semi-autônomos na Suécia, onde foram postos em prática os
ensinamentos da Escola Sociotécnica britânica, mas não é esse o padrão
seguido na maioria das aplicações que se constatam em empresas no Brasil.
Ao contrário, o trabalho em grupo realmente existente segue de perto o
formato da “linearização da produção” implementado pela indústria japo-
nesa no período do boom toyotista, quando os princípios popularizados
por Taichi Ohno (entre os quais se incluem o just-in-time e o kanban) se
estenderam para outros ramos de atividade. Nesse formato, a preocupação
com o desperdício e a ausência de estoques é uma função direta do tipo de
racionalização almejado, que é distinto (em certos aspectos fundamentais,
é verdade) do tipo de racionalização da produção em massa fordista. As-
sim, o trabalho em grupo hoje exercitado nas células de produção inclui
boa parte do repertório difundido pela chamada lean-production (produ-
ção enxuta), ou seja, qualidade, possibilidade de confecção simultânea de
mais de um produto quando se aproveita a ociosidade das máquinas,
polivalência dos operadores, reuniões periódicas para discutir pontos de
estrangulamento e busca de sugestões de melhorias, além de outros expe-
dientes que não cabe aqui detalhar.

354 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

A disposição das máquinas, no primeiro caso estudado (fábrica de con-


fecção de roupas íntimas masculinas), obedecia à descrição convencional
da chamada “manufatura em U”, em que máquinas semelhantes agru-
pam-se espacialmente em uma seqüência que lembra o desenho da letra U,
umas posicionadas diante das outras. Trata-se de uma espécie de linha,
que no entanto não está dedicada apenas a um único produto. Ao contrá-
rio, esse formato permite que vários produtos diferentes em termos de
acabamento, mas próximos quanto ao modelo de base, possam ser confec-
cionados simultaneamente, sem que as máquinas fiquem ociosas quando
não ocorrem pedidos. O ajuste rápido às mudanças sazonais na demanda é
evidente, permitindo também maior variabilidade dentro de um mesmo
padrão. Cada conjunto de máquinas dispostas em “U” era chamado de
“ilha de produção”. Uma célula é composta de várias ilhas.
Já no segundo caso estudado (fábrica de confecção de capas automotivas),
por se tratar de produtos cujas variações não exigem mudanças de máqui-
nas, mas apenas de corte e de costura que são ajustadas às mesmas máqui-
nas dependendo do tecido, dos pontos de dobra e do acabamento, a dispo-
sição não é em “U” mas em duas fileiras paralelas, tendo no meio uma
esteira que conduz as capas confeccionadas para um grande depósito em
forma de caixa, que deverá em seguida alimentar o estoque e ser então
reposto para receber novas capas, e assim sucessivamente. Os estoques não
são elevados, tanto pelo reduzido espaço físico da planta como pela organi-
zação just-in-time do sistema de fornecimento para o elemento seguinte da
cadeia produtiva: as capas vão para uma empresa que as insere nos bancos,
que só depois são entregues para as montadoras de veículos. Mas o relacio-
namento entre as montadoras e a fábrica de confecção de capas é direto e
constante, devido às estritas especificações de produto (desenho, tipo de
tecido, encaixe das emendas, dimensão etc.). Os representantes comerciais
das montadoras circulam freqüentemente pela fábrica, discutindo pedidos
e desenhos de produtos.
Tanto num caso como no outro, a representação dos próprios agentes
corroborava o senso comum da literatura gerencial sobre a existência de
duas “épocas” na vida das fábricas – uma anterior e outra posterior ao
emprego da organização celular: o “antes” era o período em que a pro-
dução estava organizada em “linha”, isto é, em linha de montagem; o
“depois” era o período contemporâneo. Nada parecia indicar uma rever-
são dessa seqüência na vida das empresas, exceto pela memória das tra-
balhadoras que, em certos momentos, instigadas por perguntas a propó-

novembro 2005 355


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

sito de um ponto ou outro do sistema, davam a entender que... antes era


melhor.

Antes e depois: a história

Como as operárias vêem a organização celular na qual elas estão enreda-


das? Na empresa de roupas íntimas masculinas, chamada a partir de agora
de Empresa A, a avaliação é apenas razoável (43%), com maior tendência
positiva (29%) do que negativa (19%). Na empresa de capas automotivas,
a Empresa B, a avaliação é mais enfática: 45% consideraram-na boa, con-
tra apenas 6% que a avaliaram como ruim. Na Empresa A, a maioria das
costureiras (66%) passou pelos dois momentos – o sistema “individual”,
anterior à organização em células, e o atual. Na Empresa B, a porcentagem
era similar (76%). Portanto, nos dois casos as respondentes estavam em
condições de julgar as principais modificações entre um sistema de traba-
lho e o outro, mesmo que a experiência no sistema antigo não tenha ocor-
rido na mesma empresa em que agora estão empregadas: metade das ope-
rárias na Empresa A vivenciaram o sistema individual (também chamado
“em linha”, porque apenas um artigo é produzido por vez) em outra em-
presa, enquanto para a Empresa B esse percentual sobe para 62%. É certo
que a rotatividade e o absenteísmo são problemas freqüentes nas duas
empresas pesquisadas (fato que os responsáveis de recursos humanos atri-
buíram, em ambos os casos, à composição exclusivamente feminina da
população trabalhadora sob o sistema de células), o que pode explicar a
alta taxa de circulação da força de trabalho: 42% das operárias que respon-
deram ao questionário trabalhavam na Empresa A havia menos de um
ano, ao passo que na Empresa B pouco mais de dois terços do total esta-
vam empregadas havia no máximo cinco anos. Tanto em uma como na
outra empresa, a mudança de uma organização em linha para uma organi-
zação celular teve lugar na primeira metade dos anos de 1990. Os questio-
2. Maiores detalhamen- nários foram aplicados no final de 20012. A organização mais tradicional,
tos sobre essa pesquisa em linha, é muito freqüente entre pequenas e médias confecções.
podem ser encontrados O aspecto mais destacado pelas operárias da Empresa A é a possibilidade
em Mello e Silva (2004),
de realizar várias operações diferentes (39%), mas um percentual quase
capítulo IV.
idêntico apontou que não há muitos aspectos positivos (34%). Já na Em-
presa B, a possibilidade de fazer várias operações diferentes saltou para
70%. O maior contato com as colegas, uma das vantagens mais alardeadas
pelo discurso gestionário, ocupa apenas 23% das preferências na Empresa

356 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

A e 13% na Empresa B. Já o ritmo intenso é a maior queixa na Empresa A


(59%), enquanto a preocupação com o erro aparece como o aspecto mais
negativo na Empresa B (54%).
A mudança de função – ou de tarefa – por meio da passagem para outras
células teve avaliações heterogêneas. A Empresa A deixou entrever que o
que aparece na teoria não se verifica na prática, pois 35% das costureiras
afirmaram que a passagem de uma célula a outra ocorre apenas raramente,
enquanto na Empresa B 47% acharam positiva a circulação, devido à opor-
tunidade de mudar de operação. Uma inquirição mais detida mostra que o
rodízio de tarefas na Empresa A ocorre muito mais no interior de uma
mesma célula (entre as “ilhas” que a compõem) do que entre células dife-
rentes. A confirmação pode ser constatada por meio de outra pergunta,
relativa à possibilidade de que as mesmas colegas continuem trabalhando
juntas em uma única célula mesmo após a mudança da fábrica: 44% afir-
maram saber que as células seriam mantidas com a mesma composição na
nova fábrica. Essas observações talvez exponham a inadequação da formu-
lação inicial da pergunta. No entanto, logo depois da opção que demonstra
a tendência de manutenção da célula, aparece um contingente de 25% que
diz encarar com naturalidade a rotação e mesmo preferi-la, uma vez que se
trata de uma oportunidade de quebra da rotina. A perseguição, pelas pró-
prias costureiras, de qualificações múltiplas, que porventura possam ser
utilizadas fora da empresa, assim como o peso constrangedor do ritmo de
trabalho, são os vetores que explicam tal juízo, que, embora não igualmen-
te predominante nos dois casos, freqüenta o ambiente.
As células e as trabalhadoras que as compõem – podemos dizer, seus “áto-
mos” – contam com pouco mais do que elas mesmas para vocalizar suas de-
mandas. O entropismo da organização, sancionado pelo pequeno mundo
da empresa, afasta-as de veleidades de afirmação de classe, fato ainda mais
agravado pela tibieza patente da representação sindical: 49% das responden-
tes na Empresa A e 60% na Empresa B consideram o sindicato distante e
deixam transparecer certo ressentimento por uma instituição que, embora
não totalmente ausente (as que afirmaram “não conhecer o sindicato” foram 3. Esses itens da Refor-
27% na Empresa A e 19% na Empresa B), não é capaz de “dar muita atenção ma Trabalhista estão in-
à base”. A desproteção política representada pela instituição sindical ancora- cluídos nos acordos co-
letivos entre sindicatos
se, para sobreviver, nos patamares assegurados pela lei – é da alçada do sindi-
patronais e de trabalha-
cato a negociação da participação nos lucros e nos resultados e do banco de dores desde a segunda
horas3. Mas o ângulo mais perverso da questão está na sua contribuição, metade dos anos de
inadvertida, à extrema privatização das experiências de trabalho, que se resu- 1990.

novembro 2005 357


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

mem ao trajeto casa-fábrica nos dias de semana e, quando há horas extras,


também nos finais de semana. O papel do sindicato como prestador de ser-
viços em sua sede (serviços odontológicos, médicos, jurídicos e de colônias
de férias são os mais comuns) mal esconde o desamparo aparente que é senti-
do na forma de uma relação longínqua, estranha e que em nada remete ao
mutualismo ou à solidariedade comunitária de seus membros, presentes no
formato original dessa forma institucional. A deriva de pertencimento pú-
blico reforça, no nível da organização do trabalho, os valores do empreende-
dorismo-de-si, quando as operárias lutam para alcançar o prêmio e contra
aquelas colegas que não são capazes de fazê-lo.
Paradoxalmente, quando o sindicato é invocado, é apenas para ajudar a
assegurar o prêmio (Empresa B), e não para questioná-lo. Eis como o sin-
dicato poderia ser útil para as operárias: contribuindo para aumentar o seu
rendimento salarial por meio da confirmação do tipo de expediente posto
em funcionamento pela empresa.

A formação de salários: o prêmio

O sistema de remuneração da organização celular é baseado na incita-


ção salarial direta, e não indireta: essa última, aliás, varia enormemente de
uma empresa para outra, no interior de um mesmo ramo (ônibus, restau-
4. É oportuno lembrar rante, creche4 etc.). É, contudo, no acréscimo salarial conhecido como
que a força de trabalho “prêmio” que reside o maior incentivo ao aumento da produtividade indi-
das duas empresas pesqui-
vidual de cada uma das operadoras, e a referência para o rendimento no
sadas é composta em sua
final do mês, mais do que o salário fixo, que é muito baixo.
esmagadora maioria de
mulheres. No entanto, O prêmio depende do alcance das metas de produção estabelecidas pela
apenas a empresa maior direção. No sistema dito “individual”, próprio da produção “em linha”, o
(cerca de quatrocentos prêmio dependia do esforço de cada operadora em seu posto de trabalho,
empregados), a de rou- envolvida nas tarefas relacionadas a ele. Esse prêmio era, por assim dizer,
pas íntimas e meias, pos-
administrado por si mesmo, isto é, pela própria trabalhadora, na medida
suía creche.
de um cálculo que opunha, de um lado, o conhecimento das próprias
possibilidades e, de outro, a resistência do equipamento, dos materiais e
dos instrumentos postos à disposição, todos eles conhecidos e aos poucos
“domados” pela prática repetitiva que o trabalho impunha. No sistema de
células, o cálculo muda, porque o ajuste entre trabalhadora e ambiente
inclui agora as próprias colegas, que fazem as vezes do fornecedor e do
cliente do trabalho efetuado por cada operadora individualmente. Nessa
concepção de posto alargado, a trabalhadora individual depende de manei-

358 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

ra muito mais estreita das colegas, que estão implicadas forçosamente (pela
detenção de uma parte do trabalho da outra) na atividade dela.
No entanto, disso não decorre uma intercomunicação5 que, pela atividade 5. Philippe Zarifian
operativa que ata uns e outros, estabelece uma teia produtiva em que a limita- (1998) sustenta resolu-
ção do trabalho individual e seu entorno (no sentido que conduz à noção de tamente essa possibilida-
de nos processos produ-
trabalho como “obra”, segundo a concepção aristotélica recuperada por
tivos modernos, mas ba-
Hannah Arendt) explode em benefício de um trabalho coletivo, que alarga a seando sua argumenta-
dimensão do trabalhador solitário obrando o seu objeto por meio do instru- ção em setores tecnolo-
mento próprio dele. E não o faz porque o obstáculo a uma sociabilidade que gicamente mais sofistica-
nasça do trabalho reside na forma que envelopa a seção e a empresa, qual seja, dos e dependentes de
uma sólida qualificação
a forma social que impõe um ritmo e uma organização ao processo de traba-
dos operadores – setores,
lho cuja inteligibilidade não reside no processo em si. Uma das manifestações portanto, diferentes da-
desse obstáculo é a própria relação salarial, que paira como orientadora de queles que são objeto de
sentido para a racionalização que os atores fazem de seu próprio trabalho. Quan- nossa pesquisa.
do, portanto, a responsabilidade pelo alcance da meta (e do prêmio) transfe-
re-se daquilo que é bem estabelecido na trabalhadora individual para o im-
ponderável do grupo, o atrito entre a solicitação das atividades dos outros como
complemento da atividade de cada um e a certeza do que é possível extrair a
partir de si mesmo expõe toda a sua gravidade, pelo fato de a operadora re-
cusar essa participação com receio de não poder manter ergonômica e signifi-
cativamente o seu próprio trabalho.
Vale lembrar que nas formas de solidariedade pré-tayloristas fazer o tra-
balho do colega era, ao contrário, indigno e uma maneira de minar a con-
fiança do grupo, já que ia de encontro às quotas impostas pelo próprio
grupo a fim de amarrar a produção. As quotas eram bastante rígidas, não
variando nem com o regime de trabalho por peça em diferentes seções de
uma mesma indústria. Em 1902, em uma fábrica de equipamentos agríco-
las mencionada por David Montgomery (1980, pp. 12-13), os departa-
mentos de polimento, prova, ferraria e máquinas ganhavam todos mais ou
menos a mesma soma, a despeito da enorme diferença de tempo de execu-
ção e grau de dificuldade para cada uma dessas atividades. Aquela combi-
nação recíproca era muitas vezes apoiada pelo sindicato, embora não o fosse
necessariamente. Na virada do século XIX para o século XX, em alguns
setores era proibido pelo sindicato que o afiliado ficasse responsável por
mais de uma máquina ao mesmo tempo, ou aceitasse pagamento por peça
(cf. Idem, p. 15). Regras estabeleciam, por exemplo, a velocidade com que
cada um deveria trabalhar. Eram, portanto, regras estritas, que diziam res-
peito a como efetuar o trabalho.

novembro 2005 359


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

O sentido de igualitarismo partia da autonomia e da diferença de cada


ofício específico. O passo seguinte do taylorismo foi atacar esse bastião de
controle operário sobre o próprio trabalho, trazendo também um igualitaris-
mo renovado, dessa vez por subtração: trabalhadores expropriados do ofício,
servos do sistema de tempos e movimentos, possuem em comum o desenrai-
zamento dos antigos códigos de honra e de ajuda mútua, agora partes
superespecializadas de um mecanismo.
Do mesmo modo, esquemas socialmente construídos por grupos de
trabalhadores para “restringir a produção” são conhecidos mesmo para
períodos posteriores à vaga de conflitos que envolveram os profissionais de
ofício em sua luta para manter a autonomia do próprio saber-fazer (início
do século XX), e ficaram célebres como estudos paradigmáticos da socio-
logia industrial, desde Elton Mayo (1933), passando por Donald Roy
6. Uma boa recensão en- (1954), até Michael Burawoy (1979)6. Todos esses exemplos indicam que
contra-se em Fournier a sociabilidade do grupo operário passa pela forma como se processa o
(1996, pp. 80-93). As ajuste interno dos “trabalhos” de cada um dos membros, em um embate
datas entre parênteses re-
entre a norma de rendimento imposta e a “quota” estabelecida pelos pró-
ferem-se ao ano de pu-
blicação dos resultados prios trabalhadores.
das respectivas pesquisas. No universo de nossa pesquisa, do ponto de vista da formação dos
salários, a passagem do sistema “individual” para o sistema de “célula”
envolve também o deslocamento da mensuração baseada na produtivi-
dade individual para uma mensuração baseada na produtividade da cé-
lula ou do grupo. No sistema “individual”, o prêmio era proporcional à
quantidade produzida além do padrão, e era também cumulativo: para
uma quantidade suplementar à “extra”, havia um prêmio adicional.
Hoje, ele é distribuído coletivamente para os membros da célula. Como
o balanceamento da produção é também atribuído à célula, ou seja, é ela
7. O individualismo quem deve dosar as quantidades de produtos semi-acabados de modo a
tayloriano fica pouco à
impedir os tempos mortos em cada ponto em particular da “ilha”, é tam-
vontade aqui, pois a in-
citação salarial, em nosso bém dela a responsabilidade pelo ajuste salarial do grupo. Aliás, a trans-
caso, não chega até ao parência crua da relação entre rendimento e resultado do trabalho, seja
ponto de diferenciar no formato individual, seja no formato coletivo de mensuração da pro-
uma operária da outra, dutividade, só é possível pela eliminação paulatina das formas sociais de
esbarrando nessa figura
mediação entre a relação salarial e a expressão da existência no seu nível
do “coletivo” que é a cé-
mais elementar, instaurando uma semântica completamente commodifi-
lula. Assim, mesmo que
cada operadora não se cada para traduzir as relações de trabalho.
esforce, não produza, o Na Empresa A, o prêmio é coletivo, não é individual: mesmo que não se
grupo garante o prêmio. esforce, não produza (tanto), o grupo garante (algum) prêmio7. O prêmio

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Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

pode induzir as pessoas a ajudar umas às outras ou pode fazer com que cada
uma tente levar a melhor sobre o colega? Muitas pessoas não utilizam o
tempo livre para ajudar os outros, embora possam fazê-lo. Aqui, a respon-
sabilidade do ajuste de quem trabalha mais e quem trabalha menos é do
grupo: é ele quem fica com o fardo de cobrar desempenho de seus mem-
bros. Mas, por sobre esse ajuste social do grupo (uma operária pode não
ajudar outra por quem tem antipatia ou inimizade, por exemplo), há a
norma salarial da empresa: se cada ilha tem uma performance e um resulta-
do diferentes, a resultante em termos de distribuição do prêmio segue o
valor mais baixo. A regra funciona do seguinte modo: se a primeira ilha
atinge 100% de sua produção, mas a segunda e a terceira ilhas não atingem
o mesmo índice, no final do dia a ilha que fez 100% ganhará apenas 80%
do prêmio. “Quem fez 100 vai ganhar 80 igual às outras, umas trabalham
mais do que as outras”, diz a informante. A célula considera-se portanto
injustiçada, porque, dentro de uma ilha, umas produzem mais do que ou-
tras. “Tem que ser todo mundo igual”, diz a mesma informante. Mas, no
fundo, o que prevalece é um sentimento de resignação: “Todo mundo vai
ganhar mesmo igual, não adianta ficar discutindo...”. Só que ganhará me-
nos em relação à produtividade que poderia ser alcançada individualmente.
A expectativa da informante é de que, atingida a meta, a costureira ajude
outras colegas no decurso do tempo que lhe resta. Se a trabalhadora mais pro-
dutiva não o faz, acaba reduzindo a produtividade da “ilha” inteira. Mas o fato
é que muitas trabalhadoras não utilizam o tempo livre obtido ao terminar an-
tes a operação para ajudar suas companheiras. Na verdade, existem aquelas
operárias que “completam” o trabalho das outras – talvez em razão do tipo de
tarefa a que estão destinadas pela organização, sem uma especialidade muito
definida –, em cada célula ou entre células diferentes, o que de certo modo
dispensa as operadoras de correr atrás do trabalho excedente das demais. Mes-
mo assim, a responsabilidade do ajuste sobre quem trabalha mais e quem tra-
balha menos é do grupo: é ele que tem a responsabilidade de cobrar as colegas.
Se, por um lado, quem se esforça mais não tem esse diferencial sancionado
pelo prêmio (o que vai de encontro ao ideal taylorista de individualizar o ren-
dimento com base na tarefa), por outro lado o grupo pode rebaixar o prêmio
do membro que, segundo seu juízo, não esteja se esforçando suficientemente.
O poder “coletivo”, portanto, não é pequeno: por um lado, e perversamente,
como se viu, impede que a média da produtividade caia demasiadamente (pois
isso implicaria um prêmio subtraído da possibilidade de 100%); por outro
lado, arroga-se a capacidade discricionária de indicar aquele que não “dá tudo

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O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

o que pode”, ou que tenta aproveitar-se dos colegas, preservando-se ou sim-


plesmente adotando a conhecida estratégia do “carona” (free-rider). Se esse com-
portamento ocorre, o grupo pode reduzir o prêmio da colega a 50% ou mes-
mo a zero, e pode ainda, a seu escrutínio, conceder o prêmio à operadora que
demonstre “força de vontade em ajudar”, mesmo sendo menos produtiva.
O sistema de células encontra-se, assim, embebido no reino do arbitrá-
rio, o que lhe confere sua força, mas também sua fraqueza, caso não seja
bem “ajustado”. A fraqueza está relacionada com a dificuldade de estabele-
cer uma medida objetiva própria do trabalho. No entanto, isso não signifi-
ca a existência de um vazio, pois, como se viu, a norma salarial da empresa
paira sobre todas as costureiras. O que é importante notar aqui é que, por
um lado, trata-se de uma discussão interna à célula, não entre a célula e a
encarregada ou supervisora, daí o ajuste “pelo grupo”; por outro lado,
quando se trata de ajuste salarial, na verdade ele não é feito pelo grupo, e
sim sobre o grupo. Isso explica a percepção entre as operárias de que “antes
era melhor”: “Hoje todo o mundo trabalha como um grupo [...]. Quando
todo mundo trabalha unido, é bom; mas, quando cada um quer ver apenas
o lado dela [pessoa] e não quer ajudar os outros, é melhor trabalhar indivi-
dual”, quando “cada um fazia a sua parte” (costureira, célula 14, com 19
anos de casa, que passou pelos dois momentos da “linha” e da “célula”).
Antes, o ganho dependida apenas do “esforço” de cada um; hoje depende
do “esforço” dos outros – daí a confusão, a briga.
A administração intestina da célula insere-se entre tendências contradi-
tórias, difíceis de compatibilizar. Se o bom senso do grupo reza que, atin-
gindo a meta, cada costureira tem que ajudar as outras, a realidade é que o
ritmo de trabalho pode conspirar contra. Assim:

Tem como fazer isso [ajudar as colegas]. Nem todas conseguem fazer. Eu não posso
ajudar outras porque o tanto que eu tenho que atingir, não tenho tempo para isso.
Mas a outra costureira que tem que me ajudar, ela tem tempo de ajudar em outro
lugar, porque ela só vai completar a minha parte e ajudar em outra operação [trata-se
da operária que “completa” os trabalhos, conforme já mencionado]: dá para fazer
isso. Tem discussões, por mais que explique lá isso direitinho, que tem que trabalhar
unido, trabalhar junto, mas sempre tem essas discussões... (costureira, célula 14).

A encarregada só se envolve quando é chamada ou em ocasiões em que


é preciso fazer realocações de costureiras por ausência, férias ou outro fator
qualquer, contanto que seja observado que a operadora a ser retirada “não

362 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

vai fazer falta”. Pelo procedimento padrão, a encarregada checa se o pro-


blema é realmente com o fator humano, se não se trata de um problema na
máquina ou de inadequação da operadora (por causa de sua capacitação,
qualificação ou ambientação ao posto) ao maquinário e à operação, ou
simplesmente por “falta de serviço” – dessa forma funcionando como um
contraponto a uma possível arbitrariedade da célula. A encarregada pode
propor então uma nova operação para a costureira recalcitrante ou sua
transferência, trocando com outra operadora de outra célula. A exclusão é
o último recurso, mas acontece. Quando o problema detectado não é téc-
nico, mas humano (como problemas de “relacionamento”), a dispensa
parece ser mesmo a única alternativa.
Nesse ponto, surge a questão – delicada – da evicção de um membro
do grupo.
Confrontadas pela pergunta de se, caso alguma companheira de seção
manifestasse dificuldade em realizar uma tarefa, as operárias procurariam
ajudá-la ou, ao contrário, continuariam fazendo sua própria tarefa, a res-
posta foi inequívoca nas duas empresas: 77% na Empresa A e 63% na
Empresa B responderam que não diminuiriam o próprio ritmo para não
comprometer a meta da célula. O comportamento orientado estritamente
para metas condena os menos produtivos a saírem do “coletivo”.
Ora, como é processada socialmente tal exclusão? O primeiro procedi-
mento metodológico necessário é deixar de lado qualquer tomada de posi-
ção essencialista na apreciação dos comportamentos – quer de ultraje, quer
de melindre, quer de frieza – dos membros dos grupos de trabalho: como
produtos do meio social que oferece as balizas de sentido para os atores,
essas reações só são inteligíveis no quadro da “naturalidade” construída da
situação. Dito isso, o segundo procedimento metodológico deve ser o de
entender (e explicar) esses comportamentos.

A exclusão do grupo

Aparentemente, o mal-estar moral advindo da exclusão do outro não é


suficientemente constrangedor para fazer frente ao poder onipresente do prê-
mio. Todas as entrevistadas sancionaram a lógica mercantil que subjaz a ele.
Mas a situação terrível que essa decisão acarreta transparece no cuidado em
colocar-se fora do drama. A informante mais velha faz questão de marcar que
nunca passou por isso. O julgamento é transferido para outros, deslocado do
campo da decisão que lembra o desagradável da situação. Por outro lado, a

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O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

decisão do grupo também não é indeterminada; ela é limitada pelos movi-


mentos do tipo sístole-diástole que o desenho flexibilizante do modelo pro-
dutivo impõe à vida da fábrica. A empresa pode diminuir parte do contingen-
te da célula devido à falta de demanda dos clientes, por oscilações no mercado
de produto, pela concorrência capitalista no ramo ou simplesmente devido às
férias de algumas operadoras. O estado mais ou menos endêmico de crise dos
setores ligados à produção manufatureira no Brasil, com seu horizonte tími-
do em termos de planejamento, alternando crescimento e estagnação em pe-
ríodos curtos de tempo, conspira para agravar a oscilação das posições e das
qualificações dentro do processo de trabalho. Assim, começa a fazer parte do
costume dos assalariados da geração pós-reestruturação produtiva a sensação
de instabilidade permanente como regra. O arranjo equilibrado da célula, se
alcançado, dificilmente poderia durar muito. De todo o modo, ainda que
com o aguilhão representado pela inserção na cadeia produtiva a desempe-
nhar o seu papel, é preciso enfrentar as escolhas. Então, o que se faz quando
alguém tem de sair? “Quando a gente trabalha há bastante tempo junto com a
outra, fica meio confuso, meio complicado, né?, a gente ter que resolver isso:
ter que tirar uma pessoa do grupo.” No caso prosaico de uma costureira tirar
férias e ser substituída por outra, que acaba se revelando mais produtiva, mais
cooperativa do que a titular, surge de novo o dilema: o grupo acaba se acostu-
mando com o novo membro, que lhe dá uma fluidez melhor, e “esquece” a
primeira, de modo que, quando ela volta, seu lugar está ameaçado. “É uma
decisão muito difícil”, tomada em reuniões que acontecem no próprio horá-
rio de trabalho. “Vai mais pelo prêmio, e não pela amizade. Se você não atin-
8. Mesmo que os geren- ge, você não ganha. É complicado... A pessoa pensa mais no prêmio, no que
tes não acreditem real- ela vai ganhar no fim do mês.”
mente naquilo que vei- No entanto, quem é esse “outro” que convive lado a lado nas células?
culam, não se pode ig- Uma assalariada indiferenciada, que sanciona a identidade geral de força
norar o poder persuasi-
de trabalho, ou uma “parceira”, uma “colaboradora”, uma “colega”, que
vo da repetição, uma das
características precípuas
sanciona uma identidade privada de membro da coletividade da empresa,
da doutrina. Não se segundo o discurso apologético da gerência8? Isso nos remete à nossa pró-
pode saber até que pon- xima questão.
to os gerentes e super-
visores acham de fato – Critérios para a composição das células
na ausência de um dis-
curso antagonista – que
as células podem preen- O critério para a composição humana das células é definido pela espe-
cher um espaço de con- cialidade da operação, e não por qualquer atributo “social” anterior. O
vivência social. constrangimento técnico é aqui preponderante: ele agrupa as pessoas que

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Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

sabem fazer determinado tipo de artigo, como na época do trabalho indi-


vidual. Não há a interveniência de aspectos como a amizade ou a vizinhan-
ça, por exemplo. Portanto, o elemento da qualificação do trabalho é ainda
determinante na manufatura celular e está associado simultaneamente ao
tempo do “trabalho individual”, conforme é lembrado de imediato pela
costureira com maior tempo de casa da amostra.
Quando as células foram montadas, escolheu-se, para cada artigo, o
conjunto das costureiras que já se dedicavam à confecção daqueles produ-
tos (meias e cuecas, basicamente), de modo que não houve uma ruptura
muito pronunciada. Isso pode explicar a relativa indiferença e até mesmo
espanto pelo marco epocal sempre evocado na narrativa tanto gerencial-
empresarial como dos pesquisadores que fazem suas primeiras incursões
ao campo buscando os sinais evidentes da “mudança” ocasionada pela apli-
cação de novos paradigmas produtivos. Ao contrário, do ponto de vista do
trabalho efetivamente executado, a mudança não parece ter sido tão signi-
ficativa, exceto pelo acréscimo de especialidades diferentes no novo forma-
to celular, o que de fato é uma novidade em relação ao trabalho individual,
quando cada uma fazia um determinado artigo. Hoje, há células que che-
gam a fazer dois ou três artigos diferentes, cada um deles com o seu tempo,
o que altera o ritmo individual e causa também problemas de desbalancea-
mento no interior da célula.
A mudança, no caso, não é vista pelas costureiras com surpresa, sobretu-
do porque não alterou as formas consagradas de realizar o trabalho, mas
tão-somente marcou o início de uma “nova fase” na vida da empresa, uma
deliberação de cima para baixo que realça novas metas, novos objetivos
(produtividade, qualidade do produto, competitividade da qual depende
os esforços individuais e coletivos etc.): é sob a marca de um discurso que
enfatiza a nova “missão” para a qual elas foram convocadas que se situa o
entendimento do antes e do depois (trabalho em grupo e trabalho indivi-
dual) entre as operárias. E é isso também o que torna compreensível para
elas a nova orientação que estão abraçando, o que fica bem evidente nas
justificativas para a introdução do sistema de produção encontradas nos
depoimentos, com toda a panóplia de certificações e a obsessão por medi-
ções que o acompanha: a repetição enfadonha (pelos elementos mais “es-
clarecidos” entre as trabalhadoras, em especial o pessoal de supervisão) dos
mesmos argumentos convencionais (técnico-econômicos) da gerência
num quadrante “popular” revela o enorme esforço de processar a lingua-
gem objetiva da organização em um discurso plausível para um interlocu-

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O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

tor universitário; esforço esse que é tão maior quanto mais aqueles vetores
normativos que são realçados não correspondem a uma real experiência de
trabalho. Mas exatamente porque são “vazios” de experiências é que eles
fornecem a chave do entendimento de toda a agitação em torno de células,
ISO, estoques, ordens de produção em inglês, visitas de clientes e outras
transformações visíveis na vida da fábrica. A sensação corrente é de que
alguma coisa muda, mesmo que não se saiba exatamente o que. Isso é váli-
do tanto para a Empresa A como para a Empresa B.
No entanto, isso não quer dizer que a percepção das diferenças entre o
sistema individual e o celular não tenha nenhuma repercussão na forma de
se trabalhar – a diferença, aliás, está exatamente na forma e não no conteúdo
do trabalho. Fazer mais de um produto em uma mesma jornada requer um
ajuste na passagem de uma operação a outra: perde-se tempo e há a necessi-
dade de se acostumar ao novo ritmo, algo bem conhecido pelos estudos de
organização do trabalho. Como o prêmio é atribuído em função da quanti-
dade, o tempo gasto nesse ajuste é um fardo. São duas linhas de força que
empurram para sentidos contrários, o que alimenta uma angústia perceptí-
9.E que é tão mais so- vel em muitos depoimentos9: exige-se um patamar elevado de produção de
litária na medida em um determinado artigo e, ao mesmo tempo, com a mudança de artigo au-
que não é captada por
menta-se o tempo “perdido”, que havia sido ganho com o costume na dedi-
nenhuma forma insti-
cação à operação anterior. Contudo, a possibilidade de uma única célula
tucional, nem na em-
presa, nem fora dela. confeccionar mais de um artigo está na base da virtude do modelo, uma vez
que responde às exigências de flexibilidade da demanda. Nesse ponto, o
círculo se fecha – como na equação do binômio qualidade e quantidade,
exigências que às vezes parecem incompatíveis.
Outro gênero de problema comum na dinâmica da simultaneidade
produtiva ocorre quando se tem de retirar uma costureira da célula porque
o novo artigo a ser confeccionado não exige todo o contingente anterior, o
que desloca essa trabalhadora para uma nova célula, onde ela possa fazer
uso de sua capacitação. O sucesso da acolhida na nova célula depende da
disponibilidade de um posto do mesmo tipo do que havia na célula de
origem, o que pode não acontecer. Daí a importância da polivalência: ao
aumentar a oferta de tarefas possíveis a serem realizadas por uma única
operadora, crescem as chances de encontrar um lugar para a costureira vaga
em um momento em que não é solicitada por um novo arranjo do mix de
produtos da empresa. A migração para uma nova célula, que representa
igualmente a inserção de um corpo estranho em um grupo já constituído,
desorganiza o arranjo social no destino.

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Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

Se o conteúdo da operação não muda, a agregação de diferentes traba-


lhos significa um esforço suplementar num posto que se alarga com a incor-
poração de novas tarefas. Afinal, mesmo quando se trata de uma única má-
quina, os trabalhos podem ser bem diferentes de acordo com os modelos: a
operação de uma galoneira para um determinado modelo, por exemplo,
não quer dizer uma transição sem solução de continuidade para a operação
da mesma galoneira em outro modelo: “Para quem não está acostumado,
fica complicado, né?” (costureira, célula 14). A contraprova dessa segmen-
tação de tarefas, que no fundo permanece, é o treinamento dispensado para
aquelas costureiras que, ao terem de mudar, são apresentadas a uma situa-
ção na qual não podem desempenhar suas tarefas sozinhas. O treinamen-
to10 injeta, de maneira esquemática11, o conteúdo que preenche o déficit de 10. Existe um treina-
certo saber de ofício, ou então – o que é uma alternativa totalmente oposta à mento básico, inicial,
que é diferente do trei-
primeira situação – apresenta uma especialidade totalmente nova e específi-
namento especializado,
ca, às vezes intransferível para outra empresa. Mas, como quer que seja, a
para quem já está den-
situação de treinamento é uma situação de desvalorização econômica evi- tro. Quando entra uma
dente: o prêmio cai, chega no máximo a 80% para a operária individual- costureira nova, o tem-
mente ou para o grupo com a costureira em treinamento, uma vez que o po médio de treinamen-
habitus produtivo duramente alcançado é desestabilizado. A desorganiza- to antes de ir para a cé-
lula é de aproximada-
ção observada no nível individual repercute diretamente no nível do coleti-
mente 1 mês.
vo, da célula.
11. O treinamento, ao
Fica claro que a polivalência, nesse formato específico de manufatura
menos na conjuntura das
celular, não tem nada a ver com o espírito dos grupos semi-autônomos de visitas, não era incorpo-
organização do trabalho. Trata-se de uma maneira de alocar rapidamente rado como elemento es-
uma nova peça no mecanismo, sobretudo em um ambiente no qual o tratégico da empresa. O
absenteísmo fustiga o planejamento da relação tecida entre elemento hu- treinamento “universal”
em todos os tipos de má-
mano e máquinas, bastante presente em um tipo de produção trabalho-
quinas, embora fosse
intensivo. Os problemas de balanceamento da produção como um todo,
computado como im-
incluindo a relação mencionada acima, tornam-se, do ponto de vista da portante, apenas podia
gerência, mais complexos. Do ponto de vista do trabalho, que é o que nos ter lugar nos momentos
interessa neste artigo, eles marcam uma mudança em relação à fixidez do de folga de pedidos, o
estilo taylorista-fordista de organização e projetam uma situação de incer- que parecia algo raro.

teza mais ou menos permanente na força de trabalho submetida a esse tipo


de método. Ela sabe que o tempo de permanência no posto se estreita e
que passa a ser sua a responsabilidade de “se virar”, de encontrar alguma
coisa melhor quando a vida útil no posto (ou na empresa) tiver se esgota-
do. Isso certamente terá repercussões na experiência de classe, na medida
em que esses métodos se generalizem.

novembro 2005 367


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

O treinamento e seus ardis

Um bom posto de observação para perscrutar essa percepção difusa, ao


mesmo tempo de deriva e de esforço para recuperar uma posição de classe
ameaçada, é o treinamento. O aspecto ambíguo do treinamento emerge
quando ele passa a ser encarado, pelas costureiras, não como um incremen-
to da qualificação para a empresa, mas como uma agregação de conheci-
mento útil para uso próprio, em uma estratégia individual que não inclui a
empresa como meta final. Esse aspecto é bem conhecido tanto das gerên-
cias, com sua lógica marginalista, como dos cientistas sociais, com a ênfase
na lógica social que informa a escolha dos atores. No primeiro caso, o dile-
ma é real e acossa boa parte do bom senso organizacional: para que investir
tanto no treinamento se os mais bem treinados... vão embora? Para atraí-
los, seria preciso a um só tempo reduzir os fatores de turn-over e tornar mais
atraente a remuneração – dois problemas, aliás, que o taylorismo e o
fordismo históricos resolveram ao seu tempo (cf. Ford, 1954; Taylor,
12. Para uma abordagem 1987)12. Mas deixemos com os gerentes (e economistas) a resolução desse
compreensiva, é interes- dilema. Vejamos o segundo caso, o da lógica social que está por trás das
sante consultar os relatos escolhas em “sair” ou “ficar”. A primeira coisa que chama a atenção é a
sobre o taylorismo real-
fragilidade dos temores totalizantes de que a empresa envelope toda a vida
mente existente, e não
como tipo-ideal; para isso do trabalhador, isto é, que ela o faça “vestir a camisa” e cancele todas as
são imprescindíveis os tra- diferenças entre as suas escolhas pessoais e as escolhas da firma. Mesmo que
balhos de Montgomery esse excesso de integração seja sancionado pelos êxitos sucessivos na teia de
(1980) e Nelson (1984, adulação que a empresa monta para atrair operários e operárias com boa
pp. 51-66).
performance, o perigo de “queda” no mercado de trabalho13, isto é, de dis-
13. Essas observações pensa, está sempre à espreita, desfazendo portanto o idílio de que empresas
são devidas a Robert Ca-
e trabalhadores formam um só corpo. Em segundo lugar, essa escolha é em
banes, em uma discus-
são preliminar desses re-
boa medida sobredeterminada pelas próprias condições do mercado de tra-
sultados. balho (como também na época de Taylor e de Ford): salários atraentes do
concorrente em situação de não-monopólio. Mas é na inserção em um pro-
jeto de vida coerente dos agentes – que pode incluir a empresa ou não – que
essas escolhas devem ser enquadradas. De todo o modo, o uso da qualifica-
ção terá uma ponderação aqui que depende de muitas variáveis, as quais
fogem do universo do processo de trabalho. Muitas costureiras aderirão ao
treinamento porque “acham uma coisa boa pra elas porque... a gente não
fica a vida inteira em uma empresa só! Você, saindo daquela empresa, já
tem condições de trabalhar fora numa coisa até diferente daquilo que você
faz; é mais fácil pra você [...]”.

368 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

A polivalência, ademais, aponta para um incremento do salário: o trei-


namento dentro da empresa, isto é, a capacitação para operar três ou quatro
máquinas, implica ganhos maiores. Desde que o treinamento acarrete um
ganho efetivo na produtividade da operária: “Você teria que produzir, não
só aprender. Porque só aprender, pra eles, não é um resultado. Você tem
que saber produzir naquela função que você tá fazendo” (costureira, Em-
presa A). O pragmatismo do treinamento exige da contraparte que foi trei-
nada o “resultado”, e esse contrato é desde logo bem entendido por ambas
as partes, a do capital e a do trabalho. O treinamento, do ponto de vista da
empresa – o que é também imediatamente captado pelo seu destinatário –,
não é uma dávida ou um conjunto vago de conhecimentos que se dissipa
em uma aquisição abstrata, mas, ao contrário, exige uma aplicação imedia-
ta, uma prova; numa palavra, trata-se de uma espécie de bem-estar carim-
bado, transferindo para a situação de trabalho a mentalidade presente no
procedimento do tipo means-tested – o modelo liberal de auxílio aos real-
mente necessitados, segundo a classificação proposta por Esping-Andersen
(1990)14 para os formatos exemplares de proteção social do capitalismo. 14. O primeiro capítu-
Mas o olhar voltado para o lado de fora, como se verá, tem sua razão lo deste livro foi tradu-
de ser. zido para o português na
revista Lua Nova, 24,
set. 1991.
Se ficar o bicho pega, se correr o bicho come

Em fins de 2001 e início de 2002, a fábrica de confecção de roupa ínti-


ma masculina, então exclusivamente de capital nacional, transferiu-se da
Zona Oeste da cidade de São Paulo para um município limítrofe, como
resultado da aquisição por uma empresa norte-americana, que preferiu
centralizar toda a atividade produtiva do grupo naquele ramo em um único
lugar. Pouco tempo antes, o questionário pôde aquilatar o estado de ânimo
das trabalhadoras quanto a essa mudança: 60% delas afirmaram preferir
que a empresa permanecesse onde estava. De fato, o temor tinha funda-
mento. Com a mudança da fábrica, algumas operárias, as que moram no
extremo oposto da cidade (Zona Leste), foram dispensadas, evidenciando
um corte geográfico nítido: três horas de ônibus entre o local de moradia e
o local de trabalho pareceu inviável para a direção – as operárias chegariam
muito cansadas e o custo do transporte em ônibus da empresa também
sairia muito caro. A expectativa do pessoal, inclusive o que ficou – a maior
parte, portanto –, era de que, aos poucos, o antigo contingente fosse substi-
tuído por outro composto de pessoal da região. Nesse sentido, a mudança

novembro 2005 369


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

de local da fábrica já é uma indicação de que, não a curto prazo, mas certa-
mente não num período muito longo, os dias de emprego estão contados.
Isso é de certa forma confirmado pela responsável de recursos humanos,
que confidenciou a preferência pelo pessoal novo (mulheres) do local, in-
clusive com programa de treinamento direcionado para esse fim e com su-
porte do Senai. A mudança, além da instabilidade inerente ao mercado de
trabalho em uma conjuntura de crise, é um sinal a mais a relembrar a inse-
gurança do estatuto de empregado(a). Os dois fenômenos – enxugamento
e deslocalização – são, aliás, faces da mesma moeda da reestruturação ampla
das firmas. As próprias operárias residentes na Zona Leste por fim teriam
percebido a irracionalidade da situação: o gasto elevado com transporte (se
fossem arcar com ele por si mesmas) e a inevitável indisposição depois de
enfrentar o trânsito até chegar à empresa – feitas as contas, não valeria mes-
mo a pena. Mas essa não foi uma escolha que lhes tivesse sido apresentada.
Com a palavra, uma operária que ficou: “Quando era em São Paulo, eu
levantava às cinco e meia; para ir para o novo endereço, levanto às quatro
horas. E de São Paulo até a minha casa, cinco e meia ou quinze para as seis
eu já estava em casa; do novo endereço pra cá, eu chego às sete horas. Então,
tem uma diferença grande”. O tempo de transcurso, no geral, aumentou
para boa parte delas, à exceção das que moram mais perto do novo local.
Mas, pelo fato de a empresa ter de arcar com o transporte para o pessoal de
15. Os ônibus condu- São Paulo (e isso significa custo: fretamento de ônibus15 ou vale-transpor-
zem as trabalhadoras no te), a percepção disseminada é de que talvez a situação não dure muito
trajeto casa-empresa- tempo mesmo para as que ficaram. O espectro da substituição pelas nova-
casa. Por vezes, costurei-
tas passa a ser um dado, um perigo iminente:
ras vizinhas não tomam
o mesmo ônibus devido
aos percursos, que po- [Ao] pegar pessoas das redondezas, que são mais próximas, para ficar no lugar da
dem ser mais próximos gente... Nós vamos ser... seríamos dispensadas. A gente mesmo fomos pra lá com
do local de moradia de esse pensamento – talvez não era o que eles [a empresa] estavam pensando, mas foi
uma delas, embora não
o que a gente mesmo estava pensando – que não seríamos mantidas.
fique longe da moradia
da colega.
O questionário permitiu, de um outro ângulo, avaliar a importância do
emprego para esse grupo operário, que compensa todos os obstáculos: per-
guntadas sobre o grau de interferência da mudança da fábrica em suas
vidas, 42% delas respondeu que não importa para onde a fábrica vá, o
importante é continuar empregada; 41% queixou-se da distância entre
casa e trabalho; e 13% afirmaram não pretender continuar trabalhando na
empresa em sua nova localização.

370 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

As dispensas, contudo, não tiveram como único motivo o local de mora-


dia. Quando há uma deslocalização produtiva, ela pode vir acompanhada de
uma reversão ou modificação de partes do processo de trabalho; mas não foi
esse o caso da empresa de confecção em questão. As operações (funções) man-
tiveram-se as mesmas, o que sugere a idéia (e confirma a percepção popular)
de que a empresa possa ter aproveitado a oportunidade para simplesmente se
livrar de uma parte de sua população trabalhadora. A organização celular tam-
bém não foi desmantelada com as mudanças, já que as pessoas dispensadas
estavam distribuídas pelas células – não foram escolhidas de uma única célu-
la –, demonstrando certa indiferença quanto ao sistema organizacional e os
conseqüentes transtornos na força de trabalho.
Por outro lado, o “tempo de casa” em uma firma renomada pode fun-
cionar como uma marca facilitadora do acesso a outra empresa, como no
caso da Empresa A, e também como “escola”, pois as outras empresas do
ramo chegam a dispensar a necessidade de treinamento para uma função
equivalente quando contratam essas trabalhadoras.

Flexibilidade como regra e seus efeitos na qualificação

É comum ocorrer a mudança de produtos ou artigos manufaturados


em uma mesma jornada, o que acarreta perda de tempo e desorganização
do hábito (adequação entre operador e máquina) já obtido e “estabiliza-
do”16 com certo esforço, como se viu anteriormente (ver a seção “Critérios 16.É o que mostra, por
para a composição das células”) – afinal, leva tempo para a operadora acos- exemplo, os trabalhos
tumar-se a uma nova máquina. Na Empresa A, a introdução de um novo de Christophe Dejours
1991).
modelo em determinada célula, por exemplo, transferiu o artigo ali con-
feccionado para outra célula (a de nossa informante), que assim passou a
produzir dois produtos diferentes, o antigo e o novo. Há casos, contudo,
em que a célula, ao ser montada, já começa produzindo dois modelos em
vez de se especializar em apenas um. É certo que a diferenciação entre os
modelos pode esconder uma forte semelhança em sua manufatura, mu-
dando apenas o número de referência (código) do produto: em outras
palavras, os modos operatórios exigidos não são muito díspares, levando a
uma adequação mais tranqüila. Mas há situações também em que isso não
ocorre: o novo modelo é bastante diferente e exige um esforço de adapta-
ção, sendo necessária a utilização de tipos diferentes de máquina pelas
operadoras para dar conta dos pedidos. Nesse caso, as novas máquinas são
trazidas para a célula, convivendo com as máquinas antigas, para evitar-se

novembro 2005 371


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

o deslocamento. Quando isso acontece, não é apenas a operação que muda,


mas a função.
Vejamos esse tópico de maneira mais detida, porque ele é indicativo do
deslizamento de sentido do termo “qualificação”, em direção agora a uma
definição mais restrita. Um mesmo tipo de máquina (a galoneira, por
exemplo, do caso visto mais acima) pode servir ao artigo de número 643 ou
17. Os artigos ou mode- 97817, ambos cumprindo funções diferentes. “Função” e “posto de traba-
los são identificados por lho” têm aqui significados apenas parcialmente semelhantes. Quando por-
números ou códigos. ventura a máquina dedicada a um novo modelo não cabe no espaço físico
da célula para a qual é trazida, por entre as ilhas, ela pode ser alocada em
outra célula próxima, que também possa fazer uso dela. Acompanham-na
algumas costureiras. Porém, quando o novo modelo exige que a costureira
apenas realize a mesma operação a que está acostumada em sua célula de
origem, então não há necessidade de deslocamento. Nenhuma das duas al-
ternativas é uma aproximação exata do que se pode chamar de “função”.
Esse relato confirma dois elementos do sistema. Em primeiro lugar, o
fato de que a fidelidade da célula obedece primordialmente ao planejamen-
to do produto e da quantidade e diversidade de produtos que cada célula é
capaz de dar conta. Os problemas de coordenação do trabalho, tanto no
interior da célula como entre as células, quando vários produtos são de-
mandados, não são de menor monta e acabam dando lugar a arranjos ad
hoc do tipo antes descrito pela informante – nesse caso, ocorre uma “inva-
são” de uma célula por outra (o deslocamento de operárias na verdade não é
incomum, pois é solicitado também no acabamento). Em segundo lugar, o
fato de que a qualificação está em função não apenas da operação padroni-
zada (corte, overlock, galoneira, colocação de elástico etc.), mas às vezes da
característica de um produto único, dada a especialidade requerida. So-
mente quando o novo modelo exige o uso de maquinário diferente é que se
faz necessária a migração do serviço de parte da célula para outra; quando
isso não ocorre, a costureira continua na célula de origem, manufaturando
uma parte do produto que no entanto será incorporada no novo modelo:
ela usa a mesma máquina como uma espécie de “base” de manufatura de
um componente universal que entra no leque de artigos da empresa –
como, por exemplo, o elástico, o qual, ainda que sirva para o novo modelo,
serve também para os outros, e a costureira pode continuar na mesma má-
quina especializada. Mas há situações em que a maneira de colocar o elásti-
co define uma “função” – por exemplo, no caso da cueca infantil. A “fun-
ção”, portanto, nesse caso, recobre o modelo ou artigo inteiro. É isso que

372 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

permite dizer que um novo modelo alterou a “função”, embora aparente-


mente ela seja a mesma (colocação do elástico). A habilidade, o treinamen-
to ou a qualificação no manuseio de uma máquina especializada, nesse
exemplo, não esgota completamente a “função”, pois ela agora depende de
uma distinção, quer técnica, quer de modo de operação.
A flexibilidade produtiva joga com as qualificações de sempre, sem ter
de criar outras, exceto naqueles casos em que o novo modelo exige uma
operação melindrosa, diferente do estoque já existente – mas, ainda nesse
caso, apenas para uma parte do processo. A confusão das terminologias ex-
pressa a indeterminação do trabalho: se a “função”, na sintaxe do velho mo-
delo produtivo, era associada imediatamente à qualificação do posto, no
modelo produtivo das células ela perde seu significado coletivo (e apropriá-
vel institucionalmente) para se particularizar em produtos da empresa:
muda a função quando muda a máquina que fabrica um produto específico
(patente, segredo industrial etc.) da empresa. Mesmo assim, tal particulari-
zação não é excludente de um reconhecimento social, via mercado: as cos-
tureiras da empresa, como são bem treinadas, encontram emprego em ou-
tras confecções. As outras empresas, concorrentes de igual porte ou
menores, sabem disso, e as trabalhadoras também: no questionário, 34%
responderam que teriam possibilidade de encontrar um novo emprego
(mesmo que em outra função), e 31% afirmaram que encontrariam com
facilidade um novo emprego porque as trabalhadoras da Empresa A são
muito bem treinadas. O que quer dizer que o trabalho efetuado ali pode,
sim, ser aproximado de outros. No entanto, o mais impressionante é a rela-
tiva sem-cerimônia com que a função pode prescindir de uma definição
precisa em termos de localização: afinal, a função é – ou foi – base para a
construção de critérios de classificação de qualificações que entram na com-
posição da grade salarial. Talvez isso ocorra porque a relação salarial na em-
presa depende mais do prêmio: o salário de base expressa, em tese, qualifi-
cações coletivamente avalizadas (as quais, aliás, no caso das atividades de
costura, não parecem ser muito variadas: ajudante, overloquista, trabalha-
dora de galoneira etc.); se ele é baixo, o prêmio faz a diferença e, logo, mais
importante do que o salário mediano entre as faixas de qualificação está a
possibilidade de aumentar o rendimento via prêmio. Como este último é o
que funciona como referência, não é a qualificação mediana que conta, mas
aquela que permite chegar mais rapidamente ao prêmio. Essa é a “função”
que freqüenta a linguagem das informantes para designar aquilo que é feito
por elas mesmas; uma terminologia que vem de cima porque provavelmen-

novembro 2005 373


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

te é mais fiel às mudanças rápidas de modelo ou artigo – mais do que associ-


ar “função” ao acompanhamento de máquinas mais ou menos “universais”
na costura.
O acabamento, ao contrário, não exige a troca de máquinas; por ser
fixo, ou seja, sem a possibilidade de deslocamento entre as células, permite
também um maior acomodamento no sentido de adequação do trabalha-
dor ao posto: “Pra mim é mais fácil ficar no acabamento do que ir traba-
lhar na outra máquina, porque eu rendo... a minha produtividade no aca-
bamento é muito maior do que numa outra máquina. Pelo modo de
trabalho, [nos casos em que] o artigo é diferente” (costureira, célula 14).
Assim, uma função pouco nobre de um ponto de vista do “ofício” (acaba-
mento) é preferível àquelas mais dinâmicas, nas quais, no entanto, em
compensação, a carga de trabalho é maior. Volta aqui, mais uma vez, a
nostalgia do período em que não vigorava todo o modernismo da organi-
zação celular.
Por outro lado, deve-se notar que o costume das antigas costureiras no
trato de suas próprias funções, ou seja, sua qualificação desde sempre exer-
citada quando a fábrica ainda se localizava em São Paulo e já com as célu-
las, não é sumariamente descartável: mesmo com o aproveitamento de
muita gente nova que mora na região ou nas redondezas do novo endere-
ço, houve certa dificuldade de repor a antiga força de trabalho, pelo menos
em um primeiro momento. “Elas não tinham o mesmo ritmo de trabalho
que a gente. Eles não podem dispensar os antigos porque não é tão fácil
fazer as funções que a gente faz” (Idem).
A seleção do pessoal “certo” para cada tipo de operação não é fruto de um
processo planejado e objetivo; longe disso, é muito mais empírico e induti-
vo. Assim, o que ocorre na realidade é que, diante da necessidade de treina-
mento em uma nova máquina ou em uma operação nova para a costureira,
experimentam-se várias operárias até que se encontre aquela mais produtiva:
“Muitas vezes eles fazem a troca da costureira de uma máquina para outra
máquina para ver se é mais vantagem, principalmente quando se troca de
artigo: então, às vezes muda para ver [em que posto] a pessoa que se dá me-
lhor” (idem). Na falta de um treinamento elaborado, a adequação da operá-
ria ao posto é medida na prática: entra-se “com a cara e a coragem” e o apren-
dizado “vai de sopetão”, para ver se a pessoa “pega o jeito”.
A Empresa B, embora seja menor em relação à sua contraparte da amos-
tra, também sofre variações recorrentes de modelo/artigo. Os pedidos das
montadoras de veículos encetam um dinamismo tão ou mais frenético que

374 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

o da confecção de roupas íntimas. Mas a percepção do treinamento entre as


costureiras dessa empresa é menos reconfortante. Na região (Itaquacetuba),
a concorrência em termos de mão-de-obra vem de uma empresa de outro
ramo (colchões), que fica à espreita, pronta para absorver as operárias que,
por algum motivo, saem da Empresa B. No questionário, 44% delas disse-
ram que teriam muita dificuldade em arranjar um novo trabalho por causa
do desemprego. Um percentual menor (37%) admitiu que encontraria um
novo emprego com facilidade, porque são muito bem treinadas.

Balizas de uma deriva de classe

Há muitas maneiras de abordar a problemática das classes sociais. Mes-


mo considerando todas as mudanças do capitalismo nos últimos anos (das
quais as células de produção são uma expressão mediada pelo novo formato
da empresa), essa problemática ainda nos parece pertinente. Exemplos de
estudos monográficos recentes orientados por essas mudanças mostram que
o desafio de articular a estrutura social e as ações de grupos e coletividades
precisamente demarcados no tecido industrial vem sendo perseguido18. 18. Ver o trabalho de
Neste trabalho, não são discutidos aspectos da formação, da consciência ou Estanque (2000), sobre
os trabalhadores do se-
da luta de classes. Limitamo-nos a uma consideração pontual, empirica-
tor de calçados na região
mente circunscrita, a fim de tentar responder à seguinte pergunta: Quais
de São João da Madei-
mudanças estão ocorrendo na morfologia da classe, a partir dos novos mo- ra, Portugal.
delos de organização industrial que as empresas vêm implantando no Brasil?
Mesmo que a classe não perceba a si mesma como classe, na interpretação
que lhe dá Edward Thompson (1968, pp. 9-15), é inegável que algumas
características distinguem – mesmo que de maneira estática – um segmento
preciso da população trabalhadora como participante do mundo industrial,
na condição de assalariamento. Partindo dessa evidência e da pergunta ini-
cial, tentamos obter algumas indicações com base em nossa pesquisa, as
quais seguem uma direção que pode ser resumida em quatro tópicos: 1) ten-
dência à privatização do coletivo, entendido como tradução de uma deter-
minada experiência de classe; 2) processo de individualização, observado
tanto do ponto de vista da formação do salário como da organização do tra-
balho; 3) reiteração da exclusão, isto é, quanto mais o modelo se aprofunda
(just-in-time, qualidade total etc.), mais excludente se torna – em outros ter-
mos, uma contradição: quanto mais o modelo dá certo, mais ele desemprega
ou promove a insegurança – com a diferença (importante) de que o sujeito
que exclui é membro do próprio coletivo; 4) deslocamento do lugar onde

novembro 2005 375


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

está situado o conflito: para além de um conflito interclasses, observa-se


também um conflito intraclasse que de alguma forma “pacifica” o primeiro.
Esses quatro tópicos reforçam-se mutuamente, oferecendo um quadro coe-
rente que fornece inteligibilidade ao movimento e ao juízo dos atores na si-
tuação de trabalho.
Somente dessa maneira pode-se interpretar a irrelevância da presença
sindical nas empresas estudadas. Na verdade, o contingente que desconsi-
dera a ação dos sindicatos sofre já os efeitos da organização celular. Se 50%
a 60% das respondentes do questionário, assim como a totalidade das in-
formantes em situação de entrevista, não vêem o sindicato como uma bali-
za importante do cenário da vida ordinária de trabalho, não é porque não o
conheçam ou porque ele não exista, mas exatamente porque as células de
produção conspiram contra a formação de identidades coletivas. Enfim,
mesmo que o sindicato fosse presente, isso não anularia o fato de que o tipo
de organização celular é “anti-sindical”, sem precisar dizê-lo abertamente.
É a indiferença – e não o recolhimento em função de uma derrota política –
que é o traço saliente da situação entre as classes.
Por outro lado, a impotência do sindicato não significa o cancelamento
da experiência de classe. Essa última, aliás, pode existir mesmo sem sindica-
19. Uma dificuldade
adicional no caso brasi- to ou mesmo de maneira fragmentada, ou seja, ela não passa necessaria-
leiro é a persistência de mente pela conversão da experiência coletiva em instituição (sindicato).
um padrão em que a ex- Grande parte do debate nos primórdios do “novo sindicalismo” no Brasil
periência de classe pas- freqüentou esse tipo de dilema19. A questão hoje aparenta ser mais séria e
sa historicamente pelo
poderia ser apresentada da seguinte maneira: segundo o quadro de signifi-
sindicato, seja em virtu-
de do corporativismo, cação acima referido, tudo parece conduzir à conclusão de que nas células
seja, paradoxalmente, de produção não é gerado nenhum tipo de conflito de classes. É essa a cone-
por conta do “paradig- xão entre experiência de trabalho e experiência de classe. Uma conexão pela
ma ABCD” (crítico do negativa. Sabemos que tal inferência, bastante geral, emitida a partir de ca-
corporativismo), que se
sos pontuais circunscritos temporal e espacialmente, pode parecer um tanto
tornou nos últimos anos
um modelo “desejado”
arriscada. Mas a alternativa de acumular várias experiências diferentes de
por outros sindicatos e células de produção ou trabalho em grupo, para em seguida qualificar uma
lideranças. De qualquer experiência de classe, levaria à perda do ponto central de nosso argumento.
modo, experiências co- Vejamos, agora, a título conclusivo, como se comportam os dados de
letivas ou solidárias da campo descritos ao longo do texto diante do pano de fundo da breve dis-
parte do trabalho sem a
cussão encetada nesta última seção.
concorrência do sindi-
cato (ou de uma orga- A experiência das costureiras das duas fábricas analisadas mostra, no que
nização referida a ele) respeita à identidade de classe social, duas faces que não formam uma uni-
não são muito visíveis. dade significativa; ao contrário, encontram-se em planos que não se cru-

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Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

zam. Por um lado, elas não são propriamente “excluídas” do mercado de


trabalho, porque seu acesso ao mundo do trabalho se dá por meio de um
estatuto formal. São, portanto, inquestionavelmente participantes da classe
trabalhadora. Por outro lado, tal participação não desemboca em uma ação
autônoma, reivindicativa ou diferenciada. O plano da situação econômica
no mercado e da relação com a classe antagônica não corresponde ao plano
da ação. Grande parte do descompasso entre os dois planos é reforçado pela
organização do trabalho em “células”, que promove o controle recíproco
entre membros do grupo e a responsabilização “para baixo”, isto é, dos qua-
dros gerenciais até o pessoal operacional, passando por supervisoras e coor-
denadoras. Finalmente, a polivalência forçada, alicerçada nas altas taxas de
absenteísmo e na necessidade de dar conta dos pedidos, deixa entrever, pa-
radoxalmente, a importância da qualificação para cada posto em particular,
e não o seu abandono em nome de uma abertura para múltiplas competên-
cias profissionais simultâneas: as próprias operárias sabem disso, e valori-
zam o treinamento e a qualificação adquirida na firma, mesmo que signifi-
que uma intensificação do ritmo, porque o destino fora da empresa pode
eventualmente requerer tal qualificação, encarada como um bem próprio, e
não da empresa.
Em outro âmbito, o da remuneração, a percepção de que o sistema de tra-
balho individual era melhor do que o coletivo demonstra a inadequação das
filosofias integracionistas de organização do trabalho e seu pendor comunitá-
rio, quando confrontadas com as escolhas das próprias envolvidas diante dos
resultados de um ajuste incerto entre o grupo e as capacidades de trabalho de
cada uma, além de uma dose de arbitrariedade pairando no interior do grupo
quando a “maioria” pode excluir, por alguma razão, a “minoria”.
Os novos métodos de produção, dos quais as células são um exemplo, con-
vertem uma parte do antigo e desaparecido discurso pela autonomia no traba-
lho (ou por um “trabalho autônomo”) – discurso que não acompanha a po-
pulação visada nesta pesquisa em particular, mas que é de qualquer modo
patrimônio da classe social à qual ela pertence – em um instrumento de exclu-
são e controle das próprias colegas (ver a seção “A exclusão do grupo”). A pos-
sibilidade de sair da monotonia da linha e abraçar novos modos de produzir,
com máquinas e desafios diferentes – mesmo que parcamente limitada pelo
campo de alternativas técnicas que as fábricas oferecem –, contém um apelo
que não passa completamente despercebido, ainda mais porque novas quali-
ficações são vistas também como formas de se libertar da dependência de uma
única empresa, como observado no decorrer do texto. Porém, a rotação pelos

novembro 2005 377


O trabalho visto de baixo, pp. 351-379

postos da “ilha” ou entre diferentes células segue uma modulação flexível, bus-
cando encurtar os tempos de espera de produtos semi-acabados e racionali-
20.Tal racionalização zando ao máximo o emprego da força de trabalho20. Nesse desenho, o grupo é
pode envolver também, autônomo para ajustar mais prontamente o componente do trabalho huma-
como foi o caso de uma
no ao mecanismo de simultaneidade de manufatura de artigos que o modelo
das empresas da pesqui-
comporta. A situação mais próxima da ideal seria aquela em que a figura da
sa, a mudança de loca-
lização da planta. supervisora ou da encarregada deixaria de ter uma conotação coercitiva, pas-
sando a ser apenas consultiva, para os casos em que o grupo não pudesse, ele
próprio, deliberar. Uma situação em que não fosse necessário dizer o que é
preciso fazer, mas em que cada uma decidisse segundo seu próprio “juízo”.
Nesse caso, a microcoletividade da célula pode chegar a decidir, auto-
nomamente, pela impertinência da classe.

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378 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Leonardo Mello e Silva, William Vella Nozaki e Vladimir Ferrari Puzone

Resumo

O Trabalho visto de baixo


O texto detém-se sobre um tipo particular de organização do trabalho, chamado de
células de produção, aplicado em fábricas do ramo de confecção em São Paulo, focando
a experiência das operárias que trabalham sob esse formato. Vários aspectos são ressal-
tados a partir dele, tais como o sistema de remuneração, a regulação do/pelo grupo, o
treinamento e as exigências de qualificação, a flexibilidade produtiva e o significado,
para o grupo operário, do deslocamento geográfico de unidades de produção. Tais
aspectos aparecem como contraponto à experiência coletiva que conformou uma iden-
tidade de classe, hoje em processo de aparente decomposição. Uma das razões para isso
seria o sucesso de iniciativas privativas e confinadas ao espaço da empresa, das quais as
células de produção são um exemplo. A descrição pormenorizada de casos concretos
pretende contribuir com alguns elementos para uma apreciação compreensiva do fe-
nômeno e suas implicações teóricas para o debate sobre as classes sociais.
Palavras-chave: Organização do trabalho; Pós-fordismo; Classe social; Flexibilidade;
Manufatura celular.

Abstract
Work viewed from below

This paper approaches a particular type of work organization called production cells.
That model is analized in its application through plants in the garment industry, in
the state of São Paulo, Brazil. It focused on the working women experience under that
work model, from which some aspects are stressed in this paper such as the payment
system, the regulation of work by/of the worker’s group, the training and its skill
features, the productive flexibility, and the meaning of the geographical plant de-
localisation to the worker group itself. Such aspects appear to be a counterpoint to the Texto recebido em 11/
collective experience that moulded class identity in the past and that is, nowadays, 11/2004 e aprovado em
1/9/2005.
being destroyed. One of the reasons for that fact is supposed to be the well-established
private initiatives made by companies related to their workforce. This kind of strate- Leonardo Mello e Silva
é professor do Departa-
gies, among which production cells are a good example, circumscribe the labor contest
mento de Sociologia
to the inner space of the company level. The detailed report of cases discussed here
USP. E-mail: leogmsilva
intend to contribute with some elements to a comprehensive appreciation of the work @hotmail.com
organization debate as well as its further theoretical inferences in terms of the social
William Vella Nozaki
class paradigm. foi bolsista IC Fapesp
Keywords: Work organization; Post-fordism; Teamwork; Social class; Flexibility. (2002-2004).
Vladimir Ferrari Puzone
foi bolsista IC Pibic-
CNPq (2003).

novembro 2005 379


Maria das Dores Guerreiro e Pedro Abrantes, (CIES) do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
Transições incertas. Lisboa, Comissão para da Empresa (ISCTE), a socióloga integra, juntamente
a Igualdade no Trabalho e no Emprego, Di- com Pedro Abrantes, a Rede Européia “Conciliação Tra-
reção Geral de Estudos, Estatística e balho e Vida Familiar e Solidariedade Intergeracional”,
que desde 1996 tem centrado suas preocupações de
Planeamento, Lisboa, 2004, 183 pp.
pesquisa comparada no tema da transição para a vida
adulta dos jovens europeus e nas formas como estes
Melissa de Mattos Pimenta
Doutoranda em Sociologia pela FFLCH – USP encaram o trabalho e a família no futuro.
A obra aqui abordada é resultado desse trabalho de
pesquisa de âmbito europeu e contou com o apoio da
O estudo das transições para a vida adulta conhe- Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego
ceu, nos últimos anos, um grande desenvolvimento na (CITE), entidade voltada para a promoção de pesqui-
Europa e em outros países industrializados de língua sas e políticas que enfocam a igualdade de oportunida-
inglesa, como os Estados Unidos da América, o Canadá des e a conciliação entre trabalho e família. Nesse senti-
e também a Austrália. Esses estudos surgiram na esteira do, as desigualdades de gênero observadas nos proces-
das preocupações com a inserção profissional das jovens sos de transição e a questão dos apoios do Estado, das
gerações diante de um cenário de encolhimento dos entidades empregadoras e da própria família à proble-
mercados de trabalho e de recrudescimento das taxas mática da articulação entre trabalho e vida familiar es-
de desemprego juvenil. tão entre as principais questões tratadas na obra.
Até meados da década de 1990, a maior parte das Alémdisso, Transiçõesincertastrazumareflexão so-
pesquisas sobre o tema concentrava-se nos diferentes breo impacto dastransformaçõesestruturais– quetêm
contextosnacionaise/ouregionaisespecíficos, e, embo- afetado as sociedades modernas industrializadas – nos
ra constituíssem foco de interesse para pesquisadores e processosde transição para a vida adulta. Por um lado,
especialistas na área da juventude, elas não permitiam analisa os efeitos do desenvolvimento científico e
comparaçõesentreestatísticasoficiaisetampouco ofere- tecnológico, edo aumento dasqualificaçõesescolarese
ciampistasparaumamelhor compreensão do impacto profissionais, sobreadinâmicadeinserção/exclusão no
quecondicionantessociaisparticularestinhamsobreas mercado de trabalho; e a influência das alterações dos
coortesetáriasqueestavamchegando àidadeadulta. Es- comportamentosdemográficosefamiliares, dospapéis
pecialmenteno contexto daUnião Européia, emqueos e identidades sexuais, sobre as relações entre pais e fi-
diversos países membros detêm diferentes modelos de lhos e sobre a dinâmica das relações conjugais entre os
sistemaseducacionaisedeapoio do Estado, evidenciou- gêneros. Por outro lado, avaliaosefeitosdo recrudesci-
seanecessidadedeconduzirpesquisascomparativasque mento dasdesigualdadessociais, dadesregulamentação
avaliassemosefeitos, sobreaspopulaçõesjovens, dasmu- das relações de trabalho e dos fenômenos de
danças estruturais que nos últimos vinte anos vêm afe- individualização e de enfraquecimento de algunssiste-
tando asrelaçõesde trabalho e asrelaçõesentre asgera- masdeproteção social quecompõemo cenário no qual
ções. sedesenrolamasprincipaismodalidadesdepassagemà
O trabalho da socióloga portuguesa Maria das Do- condição de adultos entre os jovens portugueses, esta-
res Guerreiro insere-se nesse amplo conjunto de estu- belecendo comparaçõescomosresultadosobtidosem
dos comparativos entre países europeus. Participante outrospaísesenvolvidosemestudossimilares.
do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia O interesse da obra para os pesquisadores brasileiros
Resenhas, pp. 381-404

está na sua temática e na combinação de dados e de vistas individuais, com o objetivo de compreender as
metodologias aplicadas. O objetivo central do projeto trajetórias passadas, as condições presentes e as orienta-
consistiu na análise das orientações para o emprego, a ções para o futuro. O roteiro de questões deu ênfase às
formação, a carreira e a família. Aênfase nessas dimen- áreas do trabalho e da família, e ao modo como ambas se
sões e na sua articulação tem caracterizado as pesquisas articulam aos cotidianos dos jovens em transição. As
mais recentes sobre a transição para a vida adulta, que se entrevistas permitiram explorar os modos como os jo-
orientam por uma perspectiva globalizante, ou seja, não vens vivenciam o processo de se tornar adultos, consi-
focalizam somente a transição da escola para o trabalho, derando seus contextos de origem e suas características
por exemplo, mas procuram analisar as interações entre sociais, e avaliando como as formas estruturais e cultu-
educação, trabalho, família e vida afetiva, situando-as rais atuam sobre experiências, estratégias e aspirações.
no conjunto de experiências que formam as trajetórias Apesar de o estudo propor uma perspectiva longitudi-
biográficas dos jovens. nal, cada participante foi entrevistado apenas uma vez,
Nesse sentido, Transições incertas não foge à regra e na qual se buscou reconstituir os percursos de vida e
procuraanalisaratransiçãonassuasmúltiplasdimensões, explorar as expectativas futuras. Outros estudos realiza-
buscando identificar earticular orientações, práticas, re- dos na Europa, orientados por essa perspectiva, anali-
presentações, valoresesignificadosàstrajetóriasdevida, sam as transições em momentos diferentes, entrando
desdeospercursosrealizadosatéosplanosparao futuro. em contato com os mesmos participantes mais de uma
Contudo, de maneira semelhante a outros estudos pu- vez durante um determinado período de tempo, o que
blicadossobreotema, acabaporapresentarcadaumadas permite refletir sobre os desdobramentos biográficos
problemáticasemcapítulosseparados, articuladosemtor- dos jovens e avaliar a reconfiguração de estratégias, pro-
nodatríadeformação, trabalhoevidafamiliar, oqueten- jetos e decisões, juntamente com os entrevistados.
deadesconectarastrajetóriasescolares, laboraisefamilia- Acomparação com outros países europeus, entre-
res/afetivasumasdasoutras. Aúnicaesferaquepermeia tanto, não é o objetivo principal da obra, que procura se
todas as seções é o trabalho, o que reforça a sua concentrar nas especificidades da realidade portuguesa,
centralidadeparaosjovensemtransição. em particular no que diz respeito às variações estrutu-
Apesquisafoi realizadacombinando doismétodos rais quanto às oportunidades educacionais e profissio-
qualitativosdiferentes: entrevistasdegrupo focalizadas nais e às fases ocupadas no processo de transição. A
e entrevistas individuais. O objetivo dos grupos focais ênfase nas diferenças de gênero e origem social, especi-
eradiscutir questõesfundamentaise valoresdominan- almente entre jovens com poucas qualificações e estu-
tesno processo de transição paraavidaadulta, particu- dantes do ensino superior, constitui uma das principais
larmenteemrelação àfamíliaeao trabalho. Esseproce- características de Transições incertas, o que a situa entre
dimento foi aplicado ao mesmo tempo emoutrosqua- os estudos que favorecem uma abordagem teórica es-
tro países europeus, com base num roteiro truturalistaparaanalisar osfenômenosobservados. Nesse
semi-estruturado detópicosparaadiscussão, o queper- sentido, os critérios de formação dos grupos e a seleção
mitiuestabelecer comparaçõesentre o que osjovensde dos entrevistados focalizaram o gênero, o nível de esco-
diferentes nacionalidades pensam acerca de questões laridade e a condição perante o trabalho.
como insegurançano emprego, percursosprofissionais, No entanto, emboraaamostranão tivesseapreten-
expectativas e prioridades quanto ao estilo de vida, ao são deser representativadapopulação portuguesa, ase-
emprego atual e futuro, relações afetivas, casamento e leção dos participantes tendeu a favorecer estudantes
filhos, entreoutras. do ensino superior solteirose semfilhos, que moravam
Num segundo momento, foram realizadas entre- comospais. Umavezque umdosprincipaisobjetosde

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Resenhas

discussão erajustamente aconciliação entre trabalho e agrícolas e industriais e o concomitante crescimento das
vidafamiliar, o leitor estranharáapequenaparticipação ocupações no setor de serviços, a concentração das po-
dejovenscasadose/oucomfilhosentreosentrevistados pulações nos grandes centros urbanos e o desenvolvi-
– apenas cinco jovens do sexo feminino, num total de mento científico e tecnológico dos setores de produção,
quarentaindivíduos. o que implicou o aumento dos níveis de qualificação da
Emboraasmetodologiasqualitativasconstituamtéc- mão-de-obra.
nicas mais adequadas para explorar o campo das inter- Todavia, embora o acesso à educação se tenha ex-
subjetividades, elascomportamalgumaslimitações, no- pandido, o ensino básico obrigatório aindanão atingea
meadamente no que dizrespeito ao estudo doscontex- totalidade dos indivíduos nessa faixa etária. Apesar de
tosnacionaisemquesesituamaspráticaseosdiscursos se observar uma tendência ao prolongamento das car-
sobre a transição, e à representatividade dos diferentes reiras escolares, a maior parte dos jovens portugueses
atoressociais. Paracontrabalançaressaslimitações, recor- aindaentrano mercado compoucasqualificações, an-
reu-seadadosestatísticosnacionaiseeuropeus, ao mes- tesdecompletar 18 anos. Essavertentedetransição en-
mo tempo em que se procurou diversificar ao máximo treescolaetrabalho continuaaser muito condicionada
osperfisdosjovensentrevistados. por variáveis sociais. Embora estatísticas específicas
Aintegração de dados quantitativos em pesquisas acercadaorigemsocial dosjovensquenão completamo
qualitativas tem sido prática obrigatória em estudos percurso escolar obrigatório não sejamindicadas, asen-
comparativos que extrapolam contextos nacionais, trevistas sugerem que experiências escolares marcadas
dado que asdiferençassociaisexistentesentre ospaíses pelo desinteresse e pelo insucesso, ou mesmo pelo
são muito grandese condicionamosprocessosde tran- abandono, estão associadasàsclasseseconomicamente
sição demaneirasmuito distintas. Contudo, justamen- desfavorecidasesemqualificaçõessuperiores, cujospais
te por privilegiar o estudo das subjetividades por meio são operáriosouempregadosexecutantes, muitasvezes
de métodosqualitativos, como asentrevistasemgrupo deorigemafricana.
eindividuais, o trabalho temo mérito deexplorar asin- Aobra é dividida em sete capítulos analíticos, um
gularidade dasexperiênciasde vidadossujeitosjovens capítulo metodológico, introdução econclusão. Paraos
que, embora compartilhem o mesmo intervalo etário, leitores não familiarizados com a temática das transi-
vivenciamumamiríadedesituaçõesecondiçõesmuito ções, o capítulo “Transiçõesnamodernidade”identifi-
diversificadaseassimétricas. ca os principais fatores que impulsionaram os estudos
O segundo ponto relevante é o fato de que a reali- sobre a passagem para a vida adulta no final do século
dade social portuguesa aproxima-se, em muitos aspec- passado na Europa, chamando a atenção para as
tos, da realidade brasileira. Guardadas as devidas pro- especificidadesdo caso de Portugal. Nessaseção desta-
porções, a leitura de Transições incertas permite traçar cam-seaspreocupaçõesdosautorescomastransforma-
alguns paralelos que nos oferecem indicações de como çõesno mundo do trabalho, asdiferençasde gênero e a
processos semelhantes atravessam e interferem nos per- importância do papel da família no processo de
cursos biográficos dos jovens. autonomização dos indivíduos jovens, pontos que
Em primeiro lugar, de maneira semelhante ao Bra- constituemasproblemáticascentraisdaobra. Alémdis-
sil, o processo de modernização ocorreu tardiamente so, são apresentadas, de forma sintética, as principais
em Portugal e não atingiu a sociedade portuguesa de tendências observadas nos percursos de transição dos
maneira uniforme, permanecendo, em certa medida, jovens europeus, juntamente com alguns dos critérios
inacabado. Entre as principais características desse pro- utilizados por diferentes pesquisadores na construção
cesso evidenciam-se o rápido declínio das ocupações detipologias.

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O capítulo “Percurso educativo” faz a análise das timentos interferem diretamente nas escolhas e nas es-
oportunidades e desigualdades subjacentes às expe- tratégias desenvolvidas pelos jovens portugueses a fim
riênciasescolaresdosjovensportugueses, avaliando as de concretizar suas expectativas diante da idade adulta.
causasparao abandono, o desinteresseeo insucesso dos Os autores identificam as sensações de insegurança e
percursoseducativos. Por umlado, aapostanaescolari- incerteza como os principais fatores que explicam o adi-
dade tende a dificultar os percursos fora da escola e a amento e/ou a reconfiguração dos projetos de vida dos
entradano mercado detrabalho antesdaconclusão dos jovens, daí o conceito de “transições incertas”.
estudose compoucasqualificações. Por outro lado, di- O acesso ao mercado de trabalho é a questão central
ante de ummercado cadavezmaiscompetitivo, aedu- tratada na obra. Achamada “integração periférica”, em
cação formal temseconsolidado como umaocupação e oposição à inserção efetiva, não corresponde às expecta-
tambémcomo umanecessidade. Aquestão-chavenessa tivas dos jovens e, na visão dos pesquisadores (e de al-
seção é aconciliação entre trabalho e formação. Paraos guns entrevistados), vai contra a possibilidade de inici-
autores, os baixos rendimentos e a falta de incentivos ar uma vida independente ou mesmo constituir famí-
por partedo Estado edasempresas, no sentido deapoi- lia. Adespeito das mudanças estruturais que têm afetado
ar osprojetosdeformação, interferemnastransiçõesju- os percursos biográficos das gerações mais jovens, a tran-
venisao contribuíremparasobrepor educação e traba- sição para a vida adulta ainda é associada à conquista da
lho, dificultando oumesmo impossibilitando aconcili- independência financeira, situação essa que, para a qua-
ação entre projetos de carreira e responsabilidades se totalidade dos jovens, é alcançada via rendimentos
familiares. por meio do trabalho. Aimportância atribuída à inde-
O capítulo “Integração profissional” analisa as ca- pendência econômica para a aquisição do estatuto de
racterísticas da inserção na vida ativa. Segundo os auto- adulto não é uma prerrogativa apenas institucional, mas
res, as mudanças mais significativas na esfera do traba- também dos jovens que vivenciam a transição. Para a
lho têm implicado o aumento das ocupações temporá- generalidade dos entrevistados, tanto homens como
rias, mal remuneradas, marcadas por relações informais, mulheres, obter um emprego é considerado a base para
maior rotatividade entre trabalhadores e custos meno- todos os demais projetos que constituem a entrada na
res para o empregador: “Àimagem do que acontece nas vida adulta.
restantes sociedades européias, inquéritos realizados em Esseaspecto, discutido no capítulo “Vidafamiliar”,
Portugal revelam que: o trabalho precário, as ‘prestações éconsiderado fundamental paraarealização do projeto
de serviços’ e o desemprego têm aumentado; a transição familiar. Não é por acaso que as condições essenciais
para a vida adulta tende a constituir um período de parasuaconcretização são entendidascomo aobtenção
grande instabilidade profissional, transitando os jovens dacasaprópria, aindependênciafinanceira, aseguran-
entre empregos diversos, situações de formação, çaprofissional eaestabilidaderelacional. Umadascon-
subemprego ou mesmo desemprego” (p. 23). Esse pro- clusões mais interessantes do estudo é que, apesar da
cesso tem atingido principalmente os jovens com pou- enorme diversidade nosprojetose experiênciasde pas-
cas qualificações ou qualificações medianas, mas tam- sagem à idade adulta, nos vários países estudados, a
bém começa a afetar os grupos mais qualificados. maior partedosjovensconcebeavidaadulta“como um
Esse conjunto de tendências constitui um processo período de estabilidade, em que os jovens vivem casa-
caracterizado como precarização e instabilização dos vín- dos, emcasaprópriae comosfilhos”(p. 109). Isso não
culos laborais, que tem obrigado os trabalhadores a li- significa, contudo, que todos os jovens abracem esse
dar constantemente com a sensação de insegurança, as- “pacote familiar” como a única perspectiva de vida.
sociada ao aumento do risco de desemprego. Esses sen- EmboraemPortugal o modelo detransição dominante

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Resenhas

continue a ser o de sair da casa dos pais para constituir xistência de dispositivos garantidos pelas entidades em-
família, osautoresmostramqueatransição familiar ten- pregadoras e à insuficiência dos dispositivos públicos,
de ase diversificar e ase tornar maiscomplexa: viver so- as redes informais e familiares, em particular de avós,
zinho, comamigosoucompanheiros(as) semoficializar são referidas pelos jovens portugueses com fundamen-
a união, ou permanecer em casa dos pais mais tempo, tais no apoio à conciliação entre trabalho e vida famili-
mesmo após a conclusão dos estudos e o início da vida ar” (p. 143).
ativa, têmsetornado práticascadavezmaiscomunsen- Aobra encerra com uma tipologia que identifica e
treosjovenseuropeus, aindaqueemPortugal isso cons- caracteriza sete modelos “típico-ideais” de transição,
titua uma prerrogativa dos setores da população mais combasenasorientaçõesindicadaspelosjovensnapes-
favorecidoseconomicamente. quisa: trajetóriasfortementeorientadaspelaprofissão e
O capítulo “O gênero na transição” procura explo- pelo tempo dedicado ao trabalho; trajetóriasorientadas
rar com mais detalhe as clivagens de gênero, chamando paraavalorização daindividualização earealização pes-
a atenção para a persistência de diferenças e assimetrias soal; trajetóriasquefogemao modelo familiar tradicio-
significativas entre homens e mulheres, especialmente nal (epor essarazão são classificadascomo “experimen-
no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho, à tais”); trajetóriasque obedecemaestratégiase projetos
questão dos rendimentos e ao tempo dedicado às tare- claramente definidose concretizadosprogressivamen-
fas domésticas e ao cuidado com os filhos. As mulheres te; trajetórias caracterizadas pela conjugalidade ou
portuguesas, em comparação com os demais países eu- parentalidade“precoces”(antesdos20 anos); trajetórias
ropeus, são as que mais trabalham em período integral; marcadaspelo desemprego e pelainstabilidade no tra-
contudo, por acumularem as responsabilidades famili- balho, quedificultamaautonomização earealização de
ares, tendem a ser preteridas em favor de candidatos do projetospessoais; e trajetóriasque levamao risco de ex-
sexo masculino. Além disso, os mecanismos informais clusãosocial.
de discriminação continuam a restringir as oportunida- Embora essa tipologia não seja inovadora e se baseie
des de emprego para as mulheres, especialmente as que sobretudo na avaliação quanto ao tipo de inserção no
são casadas e já têm filhos. mercado de trabalho e no maior ou menor
Esses fatores, associados à inexistência ou ao alcance distanciamento em relação ao modelo tradicional do ser
limitado do apoio do Estado, são apontados como os adulto (o indivíduo autônomo, provedor para si pró-
principais obstáculos à conciliação entre trabalho e fa- prio e para os seus dependentes), Transições incertas ex-
mília. Essa questão é discutida sobretudo no capítulo 8, plora de maneira criteriosa a pluralidade e a complexi-
em que os autores exploram as áreas em que a interven- dade das experiências biográficas das jovens gerações,
ção do Estado é considerada prioritária para a concilia- num mundo de crescentes desigualdades e acentuação
ção entre ambas as dimensões: o apoio à habitação, as de clivagens sociais. Além disso, apresenta uma agenda
licenças de parentalidade e os serviços de guarda das de pesquisa diversificada e dinâmica, que integra
crianças. Aproblemática lançada pela obra resume-se, metodologias diferentes com o intuito de reconstituir
nessa seção, à questão do gênero: a dificuldade de arti- algumas das tendências que caracterizam as transições
cular o tempo dedicado ao trabalho, aos estudos e à para a vida adulta na Europa e especificamente em Por-
família, especialmente ao cuidado das crianças, é um tugal, o que certamente servirá de inspiração para os
problema essencialmente feminino, pois são as mães pesquisadores brasileiros que se interessam pelo proces-
com filhos pequenos que têm mais dificuldade em ad- so de tornar-se adulto hoje.
ministrar a falta de tempo, de recursos e de instituições
de cuidado e educação das crianças: “Face à quase ine-

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Resenhas, pp. 381-404

Regina Novaes e Paulo Vannuchi (orgs.), Ju- àapresentação de propostas, enquanto outrostêmum
ventude e sociedade: trabalho, educação, carátermaisinvestigativo. Dequalquermaneira, todos
cultura e participação. São Paulo, Fundação estãoorientadosparaoentendimentodaquestãodaju-
Perseu Abramo/ Instituto Cidadania, 2004, ventude a partir de sua diversidade, em oposição à sua
homogeneização, etodosconfluemtambémcomrelação
304 pp.
à importância do protagonismo juvenil nas diferentes
questõesapresentadas.
Régia Cristina Oliveira
Doutoranda em Sociologia pela FFLCH – USP Outros entes sociais são também evocados quan-
do se trata da questão do protagonismo na resolução
dos problemas e urgências que se fazem presentes, como
Juventude e sociedade é um livro composto pela reu- a família, os órgãos governamentais e não-governa-
nião de artigos voltados para a compreensão e a ampli- mentais, os movimentos sociais e a própria sociedade
ação de temas que dizem respeito à juventude brasilei- civil.
ra. São artigos escritos por importantes estudiosos de O livro como um todo é um convite agradável à
diferentes áreas do conhecimento – sociologia, antro- leitura e à reflexão sobre questões que dizem respeito ao
pologia, filosofia, ciência política, educação, economia, universo juvenil, podendo ser manuseado de acordo
psicologia e psiquiatria –, com o intuito de discutir ques- com o interesse do leitor em um dado tema específico,
tões inscritas nos campos da educação, do trabalho, da sem que haja necessidade da obediência a uma determi-
família, dos direitos humanos, bem como da violência, nada ordem.
da ecologia e das políticas públicas. Assim, quando o assunto de interesse for a questão
Essa reunião de artigos amplia e diversifica o debate da violência relacionada à juventude, o leitor pode co-
sobre os jovens brasileiros, uma vez que diferentes ex- meçar sua incursão pelo texto do antropólogo Luiz
periências, com pesquisas específicas ou com reflexões Eduardo Soares. Com seu foco de atenção nos jovens
que permitem a sua inclusão, contribuem para salientar das camadas populares, o autor mostra-nos que a vio-
a importância desses indivíduos e das questões que lhes lência no Brasil atinge principalmente os jovens pobres
são pertinentes, no cenário nacional, a partir de suas e negros, do sexo masculino, na faixa etária entre 15 e
urgências, necessidades, modos de ser e de estar no 24 anos, por meio do recrutamento para o tráfico de
mundo, de suas possibilidades e potencialidades para drogas e armas. Em um contexto marcado pela
transformá-lo. invisibilidade desses indivíduos na sociedade, o ingres-
Nesse sentido, as diferentes especialidades do co- so no crime acaba funcionando como passaporte para o
nhecimento e as distintas abordagens, experiências e aparecimento do sujeito, dotado agora de auto-estima,
reflexões, além das variadas proposições de caminhos em virtude da conquista de certo poder que se impõe
para a inclusão pessoal e social dos jovens brasileiros, por meio do temor dos outros, e da possibilidade de
complementam-se e contribuem para a ampliação de consumo de objetos que dizem respeito aos símbolos de
temas referentes à questão juvenil e para a possibili- certo grupo juvenil.
dade aberta ao leitor de formular novas questões e Se o crime oferece vantagens a jovens sem perspec-
reflexões. tivas, sem esperanças e sem adolescência, faz-se necessá-
Nesseconjuntodeartigos, hátrabalhosqueapresen- ria a criação de condições para que ao menos as mesmas
tamumteormaisacadêmico, enquantooutrossãoinfor- vantagens de recuperação da auto-estima, de saída da
maisemsuaapresentação, aindaquepersistaacapacida- invisibilidade e de possibilidade de consumo possam
decríticanaexposiçãodasidéias; algunssãodirecionados ser oferecidas no lado de cá. Esse é o desafio apresentado

38 6 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 2


Resenhas

peloautor, queindicaalgunscaminhos, acomeçarpelas nacionaisnareivindicação, paratodos, do que foi con-


políticasdesegurançapúblicaparaapopulaçãojovem, sagrado naRevolução Francesa: liberdade, igualdade e
quenãodevemaisseafirmarpeloavesso. solidariedade.
Rubem César Fernandes, antropólogo, também tra- O texto apresenta os conceitos de democracia, di-
ta da questão da violência relacionada à juventude. Par- reitos humanos e direitos do cidadão a partir de uma
tindo de sua experiência como diretor-executivo do Viva abordagem histórica, referida à realidade nacional, no
Rio, o autor traça um panorama da situação atual das intuito de dirigir-se aos jovens brasileiros por meio de
regiões mais vulneráveis à violência no país – os bairros referenciais para a ação coletiva, para a pressão sobre os
pobres –, levantando algumas reflexões e apontando poderes públicos pela garantia dos direitos sociais, bem
possibilidades de saída de uma situação que vitima es- como para a reflexão a respeito da responsabilidade de
pecialmente os jovens de sexo masculino entre 15 e 24 todos na construção do bem comum, mediante a ação
anos de idade, com quatro a sete anos de estudo. política dos cidadãos.
Um dos caminhos apontados pelo autor refere-se No campo dapolítica, o texto deRenato JanineRi-
ao sistema educacional, mais precisamente à necessi- beiro trazreflexões sobre a perda de prestígio dessa di-
dade de melhoria da qualidade do ensino público, o mensão e, ao mesmo tempo, avalorização dajuventude
que resultaria em maior atratividade para os jovens e nos dias atuais. Por meio de um apanhado histórico, o
representaria, ao mesmo tempo, o enfraquecimento autor reconstrói amaneiracomo a“política”foi conce-
das alternativas desviantes e o fortalecimento da po- bidadesde amodernidade até osdiasde hoje. Segundo
pulação pobre em seu poder de resistir à violência. sua análise, a principal razão da falta de interesse atual
Segundo o autor, o segmento mais exposto aos ris- pela política é que, especialmente nos países mais po-
cos da violência é formado pelos adolescentes e jovens brese nasdemocraciasrecentes, osregimesdemocráti-
que estão fora da escola. A modificação desse quadro cos não obtiveram êxito no quesito promoção social,
passa por iniciativas que promovam a inclusão educaci- não conseguindo resolver aquestão dadesigualdadeso-
onal, a exemplo do que ocorre no Viva Rio, no Sesi e na cial, deixada pelos regimes ditatoriais, o que repercute
Fundação Ayrton Senna. em uma imagem negativa da política, vista como área
O autor também aponta alguns desafios com re- desenergizada, quenão conseguecumprir o queprome-
lação aos jovens que já se tornaram protagonistas da teu.
violência, destacando a necessidade do reconhecimento Para o autor, as fontes de energia capazes de trans-
desses indivíduos na formulação de políticas públi- formar a situação atual vêm sobretudo dos movimentos
cas, o estabelecimento de limites, com autoridade, a sociais e da indignação ética. Nesse sentido, ganham
conscientização desses indivíduos e a abertura de al- força: as organizações não-governamentais, em virtude
ternativas. da ação voluntária que promovem em benefício dos
Passando parao campo dosdireitoshumanos, Ma- mais pobres, fazendo com que obtenham cada vezmais
riaVictoriaBenevidesiráestabelecer relaçõesentrepolí- a legitimidade das pessoas; a juventude e, com ela, as
tica, direitoshumanose juventude, no sentido de tam- possibilidades de surgimento de algo novo; e a ecologia,
bémpropor o envolvimento dessesindivíduosnaação um dos destaques dessa indignação moral, que está le-
coletivaedesolidariedade, possível somentepelarecusa vando à redefinição dos direitos humanos.
daposturado “salve-se quempuder”. Aautorarecupe- A questão ecológica é tratada por Isabel Cristina
ra um pouco da história das lutas pelos direitos huma- Carvalho, que a entende como um campo bastante pro-
nose chegaao reconhecimento, hoje, dadignidade in- missor para a atuação dos jovens na esfera pública, tan-
trínsecadetodo ser humano edaabolição dasfronteiras to na política como na vida profissional, devido ao apa-

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Resenhas, pp. 381-404

recimento de novas áreas de profissionalização da vida, um descompromisso para consigo e para com
ambiental, que representamnovosespaçosde inserção os outros.
parao jovembrasileiro diante do esgotamento dascar- Aquestãodoconsumismotambéméobjetodeaten-
reiras tradicionais. Como percebe a autora, cada vez ção dapsicanalistaMariaRitaKhel. Emseutexto, aau-
maiso campo ambiental vemsendo instituído naesfera tora começa discutindo o conceito de juventude, mos-
públicacomo bemcomum, alcançando lugar dedesta- trando, por umlado, suaelasticidadee, por outro, arela-
que na discussão a respeito do futuro da comunidade ção hoje estabelecida entre essa dimensão da vida e o
humana, o quefazcomquesejampromovidasconstan- consumo. O jovem, representante de uma importante
tes negociações entre as esferas pública e privada, per- fatiado mercado, évisto como slogan publicitário, ima-
mitindo que, por essavia, osjovenspossamadquirir, de gem de uma certa elite vitoriosa que atinge também os
formasignificativa, experiênciapolítica. chamadosadultos. Independentementedaclassesocial,
Apreocupação com o meio ambiente surge, assim, osadolescentesidentificam-se como ideal publicitário
como novo espaço de participação política dos jovens do jovem sensual, belo(a) e livre, favorecendo um au-
brasileiros, com o aparecimento de um sujeito ecológico. mento daviolênciaentreaquelesqueestão excluídosda
Trata-se de uma transformação não apenas na forma de possibilidadedecompra.
engajamento político, mas também na maneira de viver Umadasconseqüênciasdaidealização dajuventu-
e compreender a “política”. de aliada ao consumo, que também simboliza um rito
O contexto de crise política e as possibilidades de de passagem em nossa sociedade, é a falta de um
saída, de participação e de transformação dos e pelos referencial alternativo para a ação, o que para muitos
jovens brasileiros concorre com a discussão em torno significa a entrada no universo das drogas. Nesse con-
da percepção de como se dá a inserção social desses texto, muitosadolescentesdeclassemédiaidentificam-
indivíduos na sociedade de mercado. Jurandir Freire se comosmarginalizados– comaculturahip-hop. Por
Costa, psicanalista, desenvolve seu texto fazendo re- umlado, isso representaumatentativaderecusadacul-
ferência a essa situação, mostrando ao leitor como o turado consumismo eumabuscadesentido naestética
comportamento de muitos jovens, marcado pelo con- dosexcluídos. Por outro, hásempre o perigo daidenti-
sumo desenfreado e aliado à indiferença em relação ficaçãocomaviolência.
aos demais, expressa a moral contemporânea. Trata-se Outro ponto destacado pela autora diz respeito à
de um novo modo de vida caracterizado pela neces- contradição hojeexistenteentreaidealização daadoles-
sidade de compra contínua de novos produtos, pela cência como fase áurea da liberdade e de uma menor
atenção relativa ao sucesso econômico, pelo cuidado responsabilidade e avalorização entre osjovensdagra-
com a aparência física e com o prazer das sensações. videz precoce e da maternidade. Numa sociedade de
Aadesão dos jovens a esse comportamento de con- valores individualistas, a concepção de um filho na
sumo coercitivo não é resultado apenas do apelo publi- adolescência pode ser entendida como um apelo con-
citário, mas da crença em certos signos relacionados à servador esemesperançadosjovenstanto paraafamília
distinção social. Ao mesmo tempo, há um grande au- como paraasociedade.
mento no valor dado às sensações físicas prazerosas, pen- O tema da família é objeto de atenção da antropó-
sadas como ponto de apoio na constituição das identi- loga Cynthia Andersen Sarti. Em seu artigo, ela começa
dades. Juntamente com a moral do prazer, a nova moral por demonstrar a dificuldade que envolve a discussão
do trabalho dá origem à demanda imaginária por obje- desse assunto, devido à tendência à naturalização das
tos descartáveis e, independentemente da renda que o relações familiares com base na identificação da família
indivíduo possua, caracteriza uma nova postura diante com as figuras biológicas – pai, mãe e filhos. O resulta-

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Resenhas

do é a abertura de espaço para discursos normativos, flito como algo inerente às relações nessa esfera.
que definem o “anormal” ou o “patológico”, bases da Focalizando os jovens das camadas populares,
desqualificação sofrida principalmente pelos jovens e Gaudêncio Frigotto desenvolve seu texto com a preo-
familiares pertencentes aos estratos sociais mais baixos, cupação delevantar adiscussão arespeito davulnerabi-
que não possuem um “lugar ou uma autoridade para lidadedessesindivíduosno queserefereàescolarização
falar”. e àentradaprecoce no mundo do trabalho. Ao mesmo
Nesse sentido, e buscando afastar-se dessas armadi- tempo, o autor fazreferênciaaosnumerososjovensque,
lhas, a autora propõe pensar a família como uma catego- no campo, trabalham com a família e àqueles que per-
ria nativa, ou seja, demarcada simbolicamente por um tencemao grupo de trabalhadoressemterra. Todoses-
discurso sobre si própria. Assim, dentro de cada cultu- ses jovens vivenciam situações que os expõem à
ra, cada família constrói sua própria história – criando vulnerabilidades na relação tanto com a escola como
sua identidade – e incorpora elementos exteriores, ao com o trabalho, justificando a preocupação existente
elaborar os discursos sobre si, construindo-se, então, no âmbito daspolíticaspúblicas.
dialeticamente. Esse discurso é internalizado e O autor trabalha com dados estatísticos do IBGE
ressignificado pelos indivíduos que têm, na família, o para apoiar suas reflexões no que se refere à classificação
espaço privilegiado para elaboração e significação das da população jovem do Brasil por cor e raça, mostrando
primeiras experiências vividas. Ao reelaborarem suas ex- haver, nos quesitos escola e trabalho, uma ampla domi-
periências, os indivíduos “crescem”. Esse processo de nância de indivíduos negros em situação de desvanta-
crescimento é ao mesmo tempo biológico e simbólico. gem em relação aos brancos que pertencem à mesma
Afamília, um universo de relações recíprocas e com- faixa etária. Na esfera do trabalho, essa desvantagem
plementares, tem no jovem a figura privilegiada que refere-se tanto à necessidade de inserção precoce como à
introduz “o outro necessário”, por meio da inserção de qualidade das ocupações e ao nível de remuneração ofe-
novos referenciais, representados pelos “vários grupos recidos. No que diz respeito à escola, há um maior nú-
de pares” com os quais convive. De qualquer maneira, mero de jovens negros, em relação aos brancos, que não
para os jovens, a família é uma esfera de suma impor- completaram o ensino médio, e uma reduzida porcen-
tância, em virtude de se firmar como espaço de tagem de negros que chegam à universidade.
afetividade e também de conflitos. Ela representa o “eixo Frigotto ressalta que a questão principal não está
de referências simbólicas”. relacionada ao caráter individual, nem, a princípio, ao
No que dizrespeito à localização dos jovens no inte- gênero, à cor ou à raça, mas à classe social, inscrita em
rior da família, a autora desenvolve a idéia de que, em uma sociedade de estrutura capitalista, com profundas
nossa sociedade, o adolescente não tem um lugar social desigualdades e contradições, com destaque para a rea-
definido e, em virtude disso, ocupa socialmente o que lidade brasileira. Sem deixar de considerar as particula-
seria uma “projeção do mundo adulto”, dada pelas ex- ridades dos diferentes grupos de jovens, o autor propõe
pectativas familiares. Outra forma destacada de proje- a criação de políticas públicas que sejam capazes de reti-
ção refere-se à tendência de encontrar nele o “indesejá- rar todos os jovens e crianças do mercado de trabalho –
vel na família”, como no caso da questão das drogas. O formal e informal – até que atinjam a idade legal de
problema das drogas é satanizado pela mesma lógica conclusão do ensino médio, que deve ser pensado como
que fazcomque osvaloresfamiliaressejam“sacralizados”. educação básica, tendo por eixo central a articulação
Aautora ressalta que as projeções dos problemas famili- entre “conhecimento, cultura e trabalho”. Para aqueles
ares sobre os jovens leva à idealização do mundo famili- que já estão empregados, a proposta é criar condições
ar, ao mesmo tempo em que torna difícil pensar o condo. que permitam a escolarização mediante bolsas de estu-

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Ao mesmo tempo, o autor defende a instituição de uma ma nacional de transferência de renda, financiador da
renda mínima para aqueles que estão fora do mercado, inatividade, pode enfrentar esse desafio, que deverá
com o estabelecimento também de uma política do pri- priorizar a educação.
meiro emprego. O enfrentamentodasnovasexigênciasparaoingres-
Aquestão da juventude relacionada ao trabalho tam- so no mundo do trabalho é retomado por Antônio
bém é objeto de atenção do economista Márcio CarlosGomesCosta, queindicaalgumasiniciativasdes-
Pochmann. Para dar início às questões que o preocu- tinadasao estabelecimento deumanovaposturadiante
pam, o autor recupera a forma como o trabalho dos desse universo, relacionada com o que denomina de
jovens vem sendo pensada ao longo do tempo, eviden- “educação paravalores”. Entreessasiniciativas, ressaltaa
ciando a importância do avanço de políticas públicas aberturademicro epequenosnegócios, o trabalho coo-
destinadas ao financiamento da inatividade dos jovens perativoeassociativo, oauto-emprego, odesenvolvimen-
mediante bolsas de estudo, como medida de elevação to daocupação rural não-agrícolafeito por meio de pe-
da escolaridade e, conseqüentemente, das chances de quenaspropriedadeseo trabalho remunerado emorga-
disputa no mercado de trabalho. nizaçõesdoterceirosetor.
Nesse artigo, o autor apresenta elementos para a O autorpropõea“educaçãoparaoempreendedoris-
reflexão a respeito das perspectivas da atual condição mo”comoformadepreparaçãodasnovasgeraçõesparao
juvenil em face da complexa passagem para a vida adul- mercado detrabalho, tendo emvistao fato deque o em-
ta, ressaltando, por um lado, a elevação da expectativa prego vem deixando de ser a única forma de ingresso
de vida e, por outro, a questão da ausência de perspec- nesse mercado. De seu ponto de vista, a idéia de
tivas em relação ao emprego e à mobilidade social, o que empreendedorismo estárelacionadaao desenvolvimen-
tem levado boa parte dos jovens a migrar para o exterior to de uma atitude proativa e construtiva diante do tra-
e, aqueles com menor poder aquisitivo, a compor o cres- balho, mas também da vida. Nesse sentido, trata-se de
cente quadro de violência que assola o país. Além disso, pensar em uma abordagem que esteja voltada para três
o autor também traz informações sobre outros países, dimensõesdo desenvolvimento social do jovemno país:
buscando estabelecer comparações com a situação bra- “pessoal”, deformação do jovemautônomo; “social”, de
sileira no que diz respeito à condição juvenil. formação do jovem solidário; e “produtiva”, de desen-
Temas como a relevância da unidade familiar na volvimento do jovemcompetente. Essasdimensõesestão
vida dos jovens diante das dificuldades do desemprego circunscritasaoprocessodetransiçãodoconceitodeem-
e de independência econômica; o aumento do tempo prego para o de empregabilidade, que norteia a educa-
de preparação para o ingresso no mercado de trabalho, ção paraeno trabalho.
com destaque para o papel da educação nessa sociedade Para o entendimento de questões relacionadas espe-
do conhecimento; e as transformações e as crises no uni- cificamente ao tema das políticas públicas para a juven-
verso do trabalho contribuem para o desenvolvimento tude, o leitor pode encontrar no artigo da socióloga
da discussão em torno da importância da existência de MaryGarcia Castro informações atuais sobre iniciativas
medidas que assegurem a postergação do ingresso do não apenas dos poderes Executivo e Legislativo, mas
jovem no mercado de trabalho, no sentido de possibili- também da sociedade civil. Aautora desenvolve tam-
tar a ampliação da escolarização e sua melhor prepara- bém alguns questionamentos em torno das responsabi-
ção. lidades de cada setor envolvido, destacando o papel do
O Programa BolsaTrabalho é citado como uma ex- Estado na implementação e na administração de políti-
periência bem-sucedida nesse sentido, alertando para o cas públicas para a juventude, que estejam acordadas
fato de que somente o desenvolvimento de um pela sociedade civil. Ao mesmo tempo, ela recupera o

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Resenhas

progradebate entre políticas universais e focalizadas, res- ticassociaisfragmentadase que vêmatingindo, de for-
saltando, posteriormente, a questão das juventudes e a ma diferente, distintos grupos sociais, em detrimento
importância de ações afirmativas de raça, gênero e gera- deumsistemaamplo eigualitário, independentemente
ção, e advogando a necessidade de que estejam integra- dasituação emquecadaumpossaseencontrar no mer-
das na tarefa de formular propostas. Assim, defende, cado de trabalho. Tendo em vista que, hoje, as formas
não basta que existam ações afirmativas. É necessário de inserção social são múltiplas e diversificadas, e não
que as políticas estejam combinadas. estão totalmente institucionalizadas, Cohn propõe o
Aautora também está preocupada com a discussão enfrentamento do desafio de construção de políticas
da necessidade de considerar as distintas identidades na públicasquelevememcontaoutrasformaspossíveisde
construção de ações afirmativas que contemplem as sin- inserção social além daquela viabilizada pelo mercado
gularidades de cada grupo – de mulheres, negros ou de trabalho – como classicamente concebido –, uma
jovens –, todas pautadas na participação dos indivídu- vezqueestepotencializaamarginalização dapopulação
os. No que se refere aos jovens, ela argumenta que as jovem. Outro desafio a ser enfrentado diz respeito ao
políticas devem ser desenvolvidas de/para/com as juven- reconhecimento dasespecificidadesdasidentidadesso-
tudes, o que revela seu posicionamento em relação ao ciais dos diferentes segmentos juvenis sem que isso re-
tema, ao considerar esses indivíduos como sujeitos e presenteumasegmentação daspolíticassociais. Por fim,
atores dessas políticas e, então, de seus direitos. Castro será importante buscar a articulação das políticas eco-
também destaca a questão da diversidade juvenil – e da nômicas com as políticas sociais, tornando-as artífices
necessidade de existência do reconhecimento, pelo Es- deumanovarelação entreasociedadeeo Estado.
tado, das diferentes linguagens na implementação e ga- Areferência a esses artigos deixa claro que o livro ora
rantia da educação e de um espaço de autonomia para apresentado não só abre espaço para a reflexão sobre os
os jovens. diversos temas no campo da juventude, mas também
A equação entre políticas públicas e juventude demonstra a existência de possibilidades reais de mu-
também é discutida no texto da socióloga Amélia danças das condições juvenis, por meio da participação
Cohn. Ao analisar essaquestão, aautorarecuperaafor- dos jovens, do governo, dos movimentos sociais e da
ma como o país vem desenhando seu posicionamento sociedade civil. Ao mesmo tempo, denota a preocupa-
emrelação àspolíticaspúblicase mostraaexistênciade ção dos autores em buscar caminhos que viabilizem esse
uma tradição, no Brasil, de contemplação de dois pú- empreendimento, seja pelo exercício da pesquisa e da
blicos-alvos: aqueles que pagam e aqueles que não pa- reflexão nas diferentes áreas do conhecimento, seja pela
gam. O segundo subdivide-seemgruposformadospor experiência compartilhada do envolvimento pessoal de
crianças, gestantes, desvalidose, recentemente, idosos; cada autor(a) em projetos e políticas em curso que con-
osjovensficamforadessaproteção. Ajuventude, como templam o tema da juventude.
um segmento em transição – da infância para a vida
adulta – não tem lugar no sistema de proteção social
brasileiro, estruturado combaseno trabalho assalariado
do mercado formal; seu espaço se reduz a programas
pontuais, osquaisestão geralmentedissociadosdeuma
concepção mais ampla que alicerce um sistema de
seguridadesocial.
Aautorarecuperaascaracterísticashistóricasdo sis-
temadeproteção social no Brasil, quesetraduzempolí

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François Dubet, Olivier Galland e Éric O último bloco traz as reflexões de Singly e Dubet
Deschavanne (dir.), Comprendre: les jeunes. sobre a juventude na sociedade contemporânea, além
[Revue de Philosophie et de Sciences de entrevista com um ex-ministro da Educação francês
Sociales, 5]. Paris, Presses Universitaires de discutindo as políticas de educação e de juventude
(Ferry). Resenhas de obras centrais para a compreensão
France, 2004, 330 pp.
do tema compõem a parte final da edição.
Maria Carla Corrochano Esse conjunto de artigos é também relevante para o
Socióloga, doutoranda da Faculdade de debate no Brasil. Um primeiro aspecto importante diz
Educação – USP. respeito ao diálogo interdisciplinar. Embora a perspec-
tiva sociológica seja predominante no conjunto da obra,
Obra fundamental para quem deseja conhecer o estão presentes outros modos de olhar, principalmente
debate europeu contemporâneo a partir de contextos da psicologia e da antropologia. Se em muitos dos arti-
disciplinares diversos – sobretudo o francês – em torno gos percebemos a valorização do diálogo interdisciplinar
das principais questões teóricas, metodológicas e políti- para a compreensão do tema, poucos de fato lançaram
cas relacionadas à juventude. Reunindo artigos de aca- mão dessa perspectiva, com destaque para Quentel. O
dêmicos das mais diversas áreas do conhecimento – so- autor esforça-se em apresentar o modo como a adoles-
ciologia, antropologia, psicologia, filosofia e direito –, cência foi debatida em contextos diversos, ao discutir a
além de entrevistas e resenhas, Comprendre: les jeunes construção dessa categoria, evidenciando como sobre-
aborda temas que vão da construção social das categori- tudo a psicologia, em especial a psicanálise, tomou para
as adolescência e juventude à definição de políticas pú- si o debate em torno da compreensão do adolescente e
blicas voltadas a esses segmentos da população. de suas diferenças em relação ao universo infantil e adul-
Os artigos são distribuídos por partes temáticas di- to.
versas: no primeiro bloco, um conjunto de três artigos Nabuscapor umacompreensão do universo juve-
apresenta os principais discursos em torno das idades nil, muitosautoresfazemreferênciaatodososmomen-
da vida e limites para a compreensão da juventude tosdavida, infância, adolescência, juventude e mundo
(Deschavanne), a construção da categoria adolescência adulto, numesforço paraconsiderar suasespecificida-
(Quentel) e a representação jurídica das crianças (Youf); des e inter-relações. Mas na análise de Youf, o foco se
outro conjunto levanta questões relativas à cultura ju- deslocaparaainfância, ao discutir arepresentação jurí-
venil: uma interpretação das raves (Blanc), a entrevista dicadascrianças. Jáno caso dadiferenciação entreado-
com o fundador de uma rádio dirigida ao público jo- lescência e juventude, a abordagem de Galland e
vem francês (Bellanger) e uma análise em torno do pa- Dubet mostra-se fundamental: embora seja cada vez
pel das mídias na formação de crianças e adolescentes maisdifícil definir ondeterminaaadolescênciaecome-
(Tisseron). çaajuventude, é evidente que são doismomentosbas-
O segundo bloco, “Ser jovem hoje”, traz um artigo tantediferenciados.
que discute as possíveis patologias mentais dos adoles- Ainda que, em alguns casos, de modo antagônico e
centes (Jeamment) e outro abordando a existência ou partindo de perspectivas disciplinares diversas, a cons-
não de uma identidade estudantil na atualidade (Erlich); trução social das categorias adolescência e juventude seja
de modo similar, a existência de uma “geração 2000” é uma presença recorrente nos artigos, e embora se reco-
debatida por Galland e Chauvel, e a chamada delin- nheçam seus estilos, gostos e preferências próprios, ou-
qüênciajuvenil é temadosartigosde Roché e Mucchielli. tro aspecto comum aos autores é não considerar jovens
e adolescentes como “tribos”, uma vez que participam

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Resenhas

ativamente da vida social, trabalhando, estudando, cons- adequabilidade de criar-se a categoria “geração dos anos
tituindo família, votando. Também é comum a percep- 2000” e quais seriam suas características fundamentais.
ção de que os jovens constituem uma geração, na medi- As respostas avançam em direções distintas. Ao explicitar
da em que vivem em determinado contexto histórico e o que compreende por geração, diferenciando atribu-
cultural, mas, ao mesmo tempo, se diferenciam. Sobre a tos e identidade geracional, Galland examina as
relação com os adultos, muitos dos autores especificidades desses jovens e a existência (ou não) de
problematizam a idéia de conflito entre gerações. uma identidade geracional particular. O autor apresen-
Nos artigos que tratam especificamente da constru- ta um quadro de vários fatores, apontados por diferen-
ção da categoria juventude, nota-se certa recusa em con- tes pesquisas, que indicariam uma forte especificidade
siderá-la simplesmente uma etapa de transição. Como geracional entre os jovens dos anos de 1990 e 2000.
afirma Quentel, as mudanças que tomam forma nesse Entre eles, destacam-se a maior dificuldade de mobili-
período continuam tendo lugar ao longo da vida, com dade social e a generalização de empregos temporários
a diferença de que nesse momento elas são enfrentadas entre os mais jovens, a despeito dos níveis educacionais
de modo mais intenso. Esse autor evidencia que a cha- mais altos. Ao mesmo tempo, considera excessivas as
mada “crise adolescente” atinge também os familiares análises que vêem essa nova geração como de excluídos.
dos jovens. Em perspectiva bastante ancorada no cam- Em sua perspectiva, a geração dos anos de 2000 não
po da psicanálise, o autor aponta que, no momento em deve ser tomada apenas como vítima, pois também se
que os filhos deixam a infância, também os pais preci- beneficia de condições de vida e educação superiores às
sam controlar a criança imaginária existente em seu in- da geração anterior. De modo contrário, Chauvel enfa-
terior, o que se concretiza por meio dos filhos. tiza a degradação das condições de entrada dos jovens
Ainda no campo da construção da juventude, na vida adulta, o que permitiria falar de uma situação
Deschavanne refuta dois discursos correntes sobre os específica da nova geração, sujeita a uma crise social,
momentos da vida: o de sua não-distinção, ou da ju- econômica e política que torna o seu futuro profunda-
ventude encarnada como condição do homem con- mente incerto. Em sentido amplo, para Chauvel, a pi-
temporâneo; e o da luta dos diferentes períodos da vida, ora das condições de vida seria a marca principal da
ou seja, o conflito entre as gerações adultas e jovens, em geração atual. Ao mesmo tempo, os dois autores con-
questionável analogia com a luta de classes. Nesse últi- cordam quanto à intensa diversidade existente no inte-
mo caso, o princípio da solidariedade entre as gerações e rior dessa geração, com destaque para a situação dos
o fato de que a idade seria apenas condição transitória jovens de mais baixa escolaridade. Considerando as cres-
estariam sendo ignorados. Em sua perspectiva, a juven- centes dificuldades de certos grupos de jovens para con-
tude não é nem o único período da vida das sociedades quistar sua independência, sobretudo econômica, Singly
modernas, nem uma “comunidade” fundada sobre um destaca o comprometimento de sua própria autono-
pertencimento geracional: ela constitui categoria antro- mia.
pológica que existe apenas em relação ao mundo adul- Os casos de “delinqüência” seriam mais numerosos
to. Apartir disso, e pautando-se no contexto europeu entre esses jovens com maiores dificuldades de inserção
ocidental, o autor apresenta três diferentes modelos de social?Problematizando o próprio conceito, Roche des-
entrada na vida adulta, destacando o momento atual e creve os mecanismos de ingresso dos jovens no mundo
seus riscos, em que haveria uma extensão do período ao da delinqüência, apontando as dificuldades em obter
longo do qual o indivíduo se torna adulto. dados confiáveis que possibilitem compreender sua evo-
Analisando a condição juvenil na contemporanei- lução e natureza, bem como construir mecanismos de
dade, Galland e Chauvel perguntam-se sobre a prevenção. Enquanto isso, Mucchielle, ao analisar o

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discurso dos jovens sobre a violência e a posição dos dequeaidentidadeestudantil estáconectadatambémà


sociólogos, é muito mais sensível à distribuição social da identidadedageração naqual osestudantesseinserem,
delinqüência juvenil, chamando a atenção para a signi- não apenaspelaproximidade de idade, maspelaspreo-
ficação política das violências urbanas. cupaçõesepráticasdesociabilidadecomuns, esobretu-
No campo psíquico, Jeammet não tem dúvidas de dopelaaquisiçãoprogressivadaautonomia.
que asociedade atual temcriado dificuldadesespecífi- Umexamedosdesafiosatuaisdosistemaescolarfran-
casparaosjovens: háumenfraquecimento dasinterdi- cês, sobretudo em sua relação com os jovens, é tema da
ções (quase tudo é permitido) nunca visto antes, ao entrevistarealizadacomLucFerry. Aanáliseeasinterroga-
mesmo tempo em que aumentam as exigências de de- çõessobreaspolíticasdejuventudevêmassociadasàapre-
sempenho e sucesso individual. Procurando escapar ciaçãodapolíticaeducacionalfrancesa. Nãohánacoletâ-
das representações correntes em torno dos problemas neanenhumoutroartigoquepauteaspolíticasdejuven-
de comportamento juvenis, por vezes bastante ambí- tudeemâmbitomaisamplo.
guas, o autor buscacompreender aspatologiasmentais Questões relativas à cultura de massa e às mídias
dosadolescentes, revelando emque medidaaperdada ocupam espaço maior no conjunto da obra, sendo tema
mediação e dasregrase a dificuldade em afirmar clara- de três artigos com percepções diversas. Na interpreta-
menteasdiferenças(remetendo assimparao caso dafa- ção de Blanc, os jovens têm criado estratégias para esca-
mília) podem produzir perturbações psíquicas, desde par do controle midiático, com destaque para o fenô-
condutasagressivas, dirigidasasi próprio ouaosoutros, meno das raves. Bellanger toma como exemplo sua ex-
atéaquelasmaisinteriorizadas, dominadaspelainibição periência em uma rádio dirigida aos jovens e explica seu
epeloisolamento. sucesso em função do espaço que oferece, ao contrário
Aidentidadeestudantil étemadeapenasumartigo. das demais instituições. Por fim, Tisseron relativiza o
Ao tomar como parâmetro a ampliação do número de poder e a capacidade da mídia (sobretudo da TV) de
jovenscomacesso ao ensino superior eachegadadeno- produzir efeitos, principalmente perversos, entre crian-
vosgrupossociaisaesse nível de ensino, Erlich pergun- ças e adolescentes; o mesmo autor questiona pesquisas
ta-sesobreapossibilidadedesefalar deumaidentidade que avaliam tal impacto apenas pelo número de horas
estudantil (universitária) que se diferencie de outras diante daTV, desconsiderando a programação e outros
identidadesjuvenis. Pararesponder aessaquestão, o au- fatores relacionados ao consumo televisivo, como as re-
tor percorrediferentesrepresentaçõesemtorno dacate- lações com família, escola, amigos e meio ambiente, en-
goriaestudante, sejano âmbito do senso comum, sejana tre outros. Embora o foco de sua atenção seja a criança,
esferaacadêmicaoudaspolíticas, eaomesmotempopro- a conclusão se dirige ao universo juvenil, mostrando
curadesvendar asparticularidadesouheterogeneidades como a mídia também pode servir às necessidades emo-
das condições materiais e sociais dos estudantes e seus cionais e relacionais de muitos jovens, com destaque
diferentes níveis de integração no seio do mundo uni- para o papel da internet.
versitário esocial. O autor defendeaexistênciademúlti- Aimportância de o mundo adulto assumir seu pa-
plassituaçõesestudantisqueprecisamser evidenciadas, pel no espaço público é aprofundada na discussão de
entre elas a do estudante que ainda vive com seus pais e Dubet sobre a experiência juvenil contemporânea. A
apenasestuda, ado estudantetrabalhador, ado estudan- juventude é definida pelo autor como uma dupla ex-
te pai de famíliae ado estudante morador do centro ou periência: a da liberdade e a da excelência, em que o
da periferia. Ao mesmo tempo, destaca uma espécie de risco de ficar fora do jogo é cada vez maior. Nesse con-
coesão relacionadaacertosbenefíciosmateriaisesimbó- texto, os adultos têm se recusado progressivamente a
licosobtidosapartir dacondição deestudante, eenten- cumprir seu papel de proteção e de responsabilidade,

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Resenhas

além de fugirem do debate, em situações nas quais a


emergência e a explicitação de conflitos podem ter im-
portante papel educativo na estruturação das identida-
des jovens.
Dubet reconhece a dificuldade dessa tarefa educa-
tiva, uma vez que os adultos não ocupam o mesmo
lugar de outrora, mas, ao deixarem de exercer seu papel,
acabam dificultando o processo de construção de iden-
tidade entre os próprios jovens. Para deixar claro o que
quer dizer, oferece-nos como exemplo uma situação
bastante recorrente em vários trabalhos desenvolvidos
com jovens: a de delegar a outros jovens, supostamente
mais próximos, o trabalho educativo junto àqueles con-
siderados “mais difíceis”.
Poderíamos apontar alguns temas que não foram
abordados nessa coletânea, mas chamamos a atenção
para a ausência da questão do trabalho. Embora cita-
do em vários dos artigos, sobretudo pelas dificulda-
des crescentes das novas gerações em adentrar e per-
manecer no mercado de trabalho, o tema não é obje-
to específico de nenhum deles. Tal omissão, embora
relevante, não torna a obra menos importante. Em
boa medida, para nós, essa lacuna parece refletir, em
contraste com o que ocorre no Brasil, o lugar (ou o
não-lugar) ocupado pelo trabalho na sociedade euro-
péia, na construção da categoria juventude. Todavia,
a diversidade de temas e pontos de vista apresenta-
dos nessa coletânea é fundamental para quem deseja
compreender não apenas as questões e as contradi-
ções inerentes à juventude, mas a própria sociedade
contemporânea.

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Resenhas, pp. 381-404

Elsa Ramos, Rester enfant, devenir adulte: publicaçõessobreo tema.


la cohabitation des étudiants chez leurs Contudo, a justificativa para a permanência pro-
parents. Paris, L’Harmattan, 2002 (col. longada na casa dos pais pelo viés da falta de trabalho
Logiques Sociales), 264 pp. não é suficiente: como explicar a decisão de permanecer
em casa por parte de jovens que trabalham, têm rendi-
mentos próprios e são independentes financeiramente?
Melissa Mattos Pimenta Vários fatores têm sido apontados como causa desse
Doutoranda em Sociologia pela FFLCH – USP fenômeno, entre eles o entendimento de que a “pós-
adolescência” seria um período de “experimentação” e
Rester enfant, devenir adulte debruça-se sobre um de “desfrute” da juventude, antes da assunção das res-
dosfenômenosquemaistêminquietado pesquisadores ponsabilidades tradicionalmente atribuídas ao indiví-
na área de juventude: a permanência, cada vez mais duo adulto.
prolongada, de jovensadultosnacasadospais. Esse fe- Masapermanênciaprolongadanaresidênciadafa-
nômeno vem sendo observado desde meados da déca- míliadeorigemtambéméatribuídaaoutrosfatoreses-
da de 1980, quando Jean-Claude Chamboredon truturais, entre eles os crescentes custos da habitação
identificou uma “nova idade da vida”, que batizou de que, emdiversospaíses, têmdificultado o acesso dosjo-
“pós-adolescência”1. Asrazõesapontadasparaessefenô- vens à casa própria. Contudo, um dos aspectos mais
meno são bastanteconhecidas: por umlado, agenerali- importantessão asmudançassignificativasnasrelações
zação do acesso à educação e a progressiva extensão da entre pais e filhos, que estabelecem novos padrões de
escolaridade obrigatória têm levado cada vez mais jo- convivência, permitindo maior autonomia aos jovens
vens a prolongar seus estudos; por outro lado, as cres- no âmbito dasrelaçõesfamiliares.
centes dificuldades de inserção efetiva no mercado de Aobraaqui tratadaocupa-se justamente dasnovas
trabalho têm levado as novas gerações a experimentar dinâmicasderelacionamento entreasgeraçõesno inte-
períodoscadavezmaislongosde instabilidade laboral, rior do espaço doméstico. ElsaRamos, sociólogadeori-
marcadospor contratostemporários, condiçõesdetra- gemportuguesaradicadanaFrança, édoutoraemSoci-
balho insatisfatóriasourendimentosinsuficientespara ologia pela Universidade de Paris V e membro do
aconcretização deprojetospessoais, muitasvezesalter- CentredeRecherchessur lesLiensSociaux(Cerlis), di-
nados com períodos de desemprego e procura por va- rigido por FrançoisSingly. Rester enfant, devenir adulte
gas. Acombinação desses dois fatores tem levado à ex- é fruto do trabalho desenvolvido por ela, no âmbito do
tensão do período entreaconclusão dosestudoseo iní- tema“FamíliaeIdentidades”, umadasquatro linhasde
cio da vida ativa, fazendo com que muitos jovens pesquisado Centro, voltadaparao estudo doshábitos,
posterguemosplanosdeabandonar o lar familiar, casar daindividualização, dasformasde vidaemcomum, da
eter filhos. Esseintervalo maior entreo término dapre- reformulação dos laços entre os indivíduos na esfera
paração profissional eaformação deumafamília, carac- privadae daconstrução dasidentidades. O trabalho da
terizado tanto como um “adiamento” da vida adulta, pesquisadora, que em 2001 obteve o primeiro prêmio
quanto um “prolongamento” da situação de juventu- no concurso anual do Observatório da Vida Estudan-
de, tem sido preenchido por práticas e estilos de vida til, enfocaaconstrução do “espaço próprio”entre oses-
alternativosao modelo familiar tradicional, como viver tudantesquecoabitamcomospais. No decorrer deseu
sozinho ou emcoabitação e ter filhosforado casamen- texto, aautoraprocuramostrar dequemaneirasaapro-
to. Essastendênciastêmocupado pesquisadoresemdi- priação de um espaço particular no interior da esfera
versas áreas do conhecimento e produzido inúmeras domésticaprivadaparticipadaconstituição daprópria

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Resenhas

identidadedosjovensestudantes. de afirmação da autonomia, que passam pela negocia-


O fenômeno do “prolongamento” da juventude ção e pelo estabelecimento dos limites do “espaço pró-
evidencia as ambigüidades do processo de tornar-se prio”, tanto no âmbito do espaço físico como das rela-
adulto nacontemporaneidade. Se, antes, amaturidade ções entre pais e filhos. Apesquisadora apresenta, assim,
eraatribuídaao completar umaseqüênciadeetapasque uma nova definição de autonomia: a capacidade do
tradicionalmentemarcavamatransição entreumaeou- indivíduo de julgar a si próprio e de reajustar seus mé-
tra fase da vida, hoje tornar-se adulto é percorrer um todos em função dos seus objetivos, baseada na capaci-
caminho cadavezmaissinuoso, commuitasmudanças dade reflexiva, que confere ao indivíduo poder sobre si
deorientação, atalhos, alternativasqueassinalammúlti- mesmo.
plasdireçõeseobstáculosquelevamadesvios, paradase Essa concepção de autonomia é um traço funda-
mesmo ao retorno sobreosprópriospassos. Nessesenti- mental do individualismo característico das sociedades
do, adefinição do quesignificaser adulto não selimitaa modernas. No caso dos jovens estudantes, o que lhes
determinantesobjetivos, taiscomo aindependênciade confere o sentido de autonomia é a capacidade de defi-
residênciaoufinanceira, masenvolve, necessariamente, nir seus próprios projetos, de reconhecer-se a si mesmos
aconstrução desi mesmo como pessoaautônomaeres- e, sobretudo, de fazer com que sejam aceitos e legitima-
ponsável. dos pelos pais.
Adificuldade emreconhecer apassagemde estatu- A construção da identidade do jovem adulto que
to nos processos de transição contemporâneos está no mora com a família dá-se por essa via. Aautora observa
fato de que durante muito tempo a idade adulta foi que a constituição do ser adulto sobrepõe-se à consti-
fundamentada em critérios objetivos de independên- tuição de si; todavia, não há um único modelo para esse
cia e autonomia que tendem a ser muito restritivos processo e é preciso, portanto, ouvir e atribuir sentido
quando tomados como a única definição. É precisa- às diferentes maneiras segundo as quais os indivíduos
mente porque há muitas formas de ser adulto que o elaboram a construção de sua auto-identidade.
conceito precisa ser relativizado. Segundo Ramos: “A Apesquisa realizada por Elsa Ramos é centrada na
autonomia remete à idéia de que o indivíduo determi- perspectivadacoabitação entre paise filhos. Essapers-
na a si mesmo as próprias regras, enquanto a indepen- pectivadesdobra-seemtrêsdimensõesfundamentais: a
dência é um estado no qual o indivíduo se encontra dimensão espacial, queobservaaação dosocupantesso-
desde que disponha de recursos (nomeadamente eco- bre o espaço físico da casa; a dimensão temporal, que
nômicos) suficientesparaestar livreparaatar laçoscom analisa as variações no espaço entre coabitantes no de-
quemquiser. Aautonomiaé consideradaumapercep- correr do tempo, em função da presença e da ausência
ção positiva de si à qual o indivíduo tende e difere da dosmembrosdafamílianosdiferenteshoráriosdo diae
independência na medida em que esta aparece como épocas do ano; e a dimensão relacional, que estuda o
emancipação dacasadospais. Aautonomiarefere-se a gerenciamento do espaço doméstico (asdelimitações, as
categoriassubjetivas, enquanto aindependênciase re- regras, apartilha, asreivindicações), ouseja, anegocia-
fereacategoriasobjetivas. Osmarcosdaindependência çãocotidianaentreindivíduosquevivemconjuntamen-
são osmesmosutilizadosparafalar dapassagemàidade te. Essatransação não selimitaao interior do âmbito do-
adulta, principalmente a independência residencial e méstico, masse estende aoutrosdomíniosdaconstru-
econômica”(p. 18). ção desi, como osestudos, assaídas, asrelaçõesamorosas
Ao optar por pesquisar o caso dos estudantes que edeamizade.
vivem com a família de origem, que não são indepen- Partindo da hipótese de que o espaço é um indica-
dentes, a autora deparou-se com estratégias particulares dor significativo do processo de construção dasidenti-

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dades, Ramos desenvolveu um trabalho inovador, na horários reservados para diferentes atividades. Aautora
medidaemque, nasuaabordagemmetodológica, inte- observa que as reivindicações dos jovens adultos não
graaobservação e ainterpelação do espaço apropriado são conquistadas sem conflitos, uma vez que existem
pelosjovenssujeitos. Nesse sentido, não bastarecolher tensões entre as aspirações de autonomia e as obrigações
osdiscursoseasrepresentaçõessobrecomo osestudan- impostas pela vida em comum. É interessante que o
tesnegociamseu“espaço próprio”no cotidiano dasre- gerenciamento dos conflitos implica estratégias de se-
laçõesfamiliares, masobservar, por meio davisitaàcasa paração e distinção dos domínios particulares e comuns,
dos jovens entrevistados ou de sua reconstituição que se impõem perante as diferentes necessidades de
pictográfica, como esseespaço éapropriado, ocupado e privacidade.
organizado por eles. Aescolhado quarto como umdos Asentrevistasforamrealizadascomcinqüentaestu-
objetos privilegiados de análise das relações familiares dantesentre 19 e 27 anos, emsuamaioriade classe mé-
entre paise filhosjustifica-se namedidaemque consti- dia, emPariseregião. Numprimeiro momento, o obje-
tui o local maisprivado do jovemestudantenacasa. Se- tivo foi recolher osdiscursosdossujeitossobreapartilha
gundo a autora, o sentido que o jovem adulto atribui cotidianado espaço familiaremseusentido maisamplo,
aosseusobjetos“érevelador dasrelaçõesqueestabelece levantando informaçõessobreo espaço, o uso do tempo
consigo mesmo e com aqueles que o rodeiam” (p. 25). e asdiversasrelaçõesentre osjovensadultose seuspais,
Dessemodo, parao pesquisador, observar o quarto eos irmãos, amigos(as) enamorados(as). Numsegundomo-
objetosque o compõemé ummeio de compreender as mento, tratou-se de apreender o modo como os jovens
relações, oslaçoseasidentidadesqueo indivíduo cons- vivenciam seu “espaço próprio, na casa dos pais”, entre
trói durantesuabiografia. dependênciasobjetivaseaspiraçõesdeindependênciae
Afamília atua na outra ponta das relações cotidia- autonomia. As entrevistas foram realizadas na casa dos
nas e exerce um papel fundamental no processo de informantes, o quepermitiuàpesquisadoravisitar eob-
construção identitária de cada um dos seus membros, servar o espaço doméstico e os diversos elementos que
ao mesmo tempo em que ampara e integra, estabelecen- compõem o quarto dos estudantes. Nos casos em que
do relações de dependência material e afetiva, deveres e isso não foi possível, osparticipantesforamsolicitadosa
obrigações. desenhar umaplantadahabitação.
A questão central exposta pela obra diz respeito a Aobra é dividida em duas partes. Aprimeira trata
como o jovem pode sentir-se adulto ou autônomo no especificamente do domínio privado dos jovens adul-
âmbito da coabitação intergeracional. Ao interrogar-se tos coabitantes: o quarto. Nessa seção, Ramos analisa até
de que maneiras a concepção de “espaço próprio” é ela- que ponto o “espaço próprio” dentro da casa dos pais é
borada, em oposição ao “espaço dos pais”, a autora bus- um espaço pessoal. O primeiro capítulo trata de uma de
ca investigar a evolução das relações intrafamiliares por suas funções: a separação em relação à convivência coti-
meio das quais os jovens vão construindo sua autono- diana com os demais membros da família. Aqui são
mia e sua identidade adulta. explorados os sentidos e as motivações para sua
Para isso, optou por uma abordagem sociológica efetivação, as estratégias de delimitação do privado por
compreensiva, que tem como base entrevistas indivi- parte dos jovens e os pontos de conflito entre pais e
duais. Trata-se de perceber como um jovem adulto pas- filhos.
sa a reivindicar o direito de ter seu próprio espaço no O segundo capítulo trata da função do quarto como
interior do domicílio familiar e o direito de ter seus experimentação e criação de si, por meio da ação dos
próprios princípios de organização do quarto, desde a ocupantes sobre o espaço físico. Aautora observa como,
arrumação dos objetos à regulação de quem entra e dos por intermédio de sua relação com os objetos, a identi-

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Resenhas

dade é construída. Trata-se de um duplo esforço de pessoal no interior da esfera doméstica. Aqui a autora
análise: por um lado, o sentido que as inscrições materi- retomaafunção deseparação do quarto como local pri-
ais têm para o observador que está fora do âmbito ínti- vilegiado do privado, porémestende aanálise alémdos
mo; por outro lado, o sentido que os sujeitos atribuem limites físicos da habitação, para as relações que os jo-
às suas próprias ações. É precisamente nessa parte que se vens adultos mantêm fora da casa, nomeadamente as
encontra a originalidade do trabalho de Elsa Ramos: a relaçõesamorosas, asrelaçõesdeamizadeeassaídas, en-
sobreposição de duas leituras simultâneas sobre o mes- contros e atividades de lazer. Esse universo de relações
mo campo de interlocução simbólico e material. Os pessoaisnamaior parte dasvezesnão se desejapartilhar
objetos pessoais, os móveis que fazem parte desse espa- com os pais; desse modo, os jovens adultos desenvol-
ço e sua disposição são dotados de sentidos que refletem vem estratégias para proteger esse mundo essencial-
uma identidade expressada nos gostos pessoais, naquilo menteprivado dasinterferênciasfamiliares. Nessecapí-
que é mostrado ou apenas sugerido. O quarto, entre- tulo, Ramos explora as motivações por trás da interdi-
tanto, não é imutável no tempo: possui também uma ção do privado, especialmente no âmbito das relações
história própria, que integra a memória familiar e pes- amorosas, que envolvem os tabus sobre a sexualidade,
soal, parte importante do processo de constituição da os conflitos na convivência com namo- dos(as) e
identidade. As relações familiares revelam-se na trans- amigos(as), o uso do telefone, oshoráriosdevoltar para
formação do espaço, na descrição de como era antes e casaànoite, entreoutrosaspectos. O texto éuminteres-
nos projetos de modificações para o futuro: “O desejo sante mergulho nosaspectosmaisíntimosdasrelações
de uma re-apropriação do espaço do quarto, de uma re- entre paise filhos, explorando osconflitosentre osmo-
atualização, segue-se à tomada de consciência de uma dos de pensar dos jovens e das gerações mais velhas, os
evolução pessoal. Atransformação permite distinguir medos, osembaraços, asjustificativasparaanecessida-
dois períodos da vida do jovem adulto. Transformar o de de omitir e esconder determinados comportamen-
quarto é também um meio de se distanciar em relação tos.
aos pais” (p. 112). Finalmente, o último capítulo analisa o espaço das
Asegunda parte trata das três dimensões da cons- relações comuns entre os familiares, em que os jovens
trução do “espaço próprio”: adelimitação daquilo que adultos se sentem como “iguais” perante os pais. Esse
pertence ao jovemestudante, daquilo que é pertinente espaço é constituído por meio da participação pessoal
aos pais e daquilo que dizrespeito ao coletivo familiar. na construção da coesão familiar. É no desenrolar das
Nessaseção são analisadasasrelaçõesdenegociação das atividades em grupo, como assistir à televisão ou à hora
regras de convivência entre pais e filhos. No capítulo das refeições, que a identidade familiar é afirmada. O
três, a autora identifica o ordenamento do espaço (os sentimento despertado pelos hábitos familiares é o de
objetos, o lugar de cada um, o que se pode fazer em “nossa” casa, “nossa” família. Aprincipal característica
cada um doscômodos) e do tempo (oshorários, asfre- dessa dimensão das relações entre pais e filhos é a convi-
qüências, aduração dasatividades) fixado pelospais. As vência, os momentos de agregação dos diferentes parti-
relaçõesfamiliaressão observadasdentro daperspectiva cipantes, em que o grupo se afirma como unidade, e a
de negociação dessas regras: por um lado, de que ma- pertença ao “nós” é validada entre os próprios mem-
neiraselassão estabelecidase suaobediênciaé cobrada; bros. Segundo a autora, esse aspecto é extremamente
por outro lado, as estratégias empregadas pelos jovens importante para a constituição da identidade autôno-
no sentido de subverter ou alterar a ordem e ampliar ma do indivíduo jovem, uma vez que é no decorrer da
suaautonomia. convivência que as transformações das regras são nego-
O quarto capítulo trata da construção do mundo ciadas, o que permite aos jovens, tanto quanto aos pais,

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acomodar as mudanças inerentes ao amadurecimento e


às necessidades de adaptação do grupo familiar.
Por meio do estudo aprofundado dasrelaçõesfami-
liares, ElsaRamosapresentaindíciosimportantesparaa
compreensão dosfatoresque possibilitamaconvivên-
cia prolongada de pais e filhos no mesmo espaço do-
méstico. Num contexto em que há maior liberdade
paraexperimentar diferentesrelaçõesafetivaseo exercí-
cio dasexualidade antesdo matrimônio e daconquista
de umaresidênciaprópria, Rester enfant, devenir adulte
provoca muitas reflexões sobre o papel da família na
mediação entre o imperativo daprivacidade e asneces-
sidadesdo indivíduo no processo de construção daau-
tonomia.

Notas
1. Ver Jean-Claude Chamboredon, “Adolescence et
post-adolescence: la ‘juvénisation’ ”, em Adolescence
terminée, adolescence interminable, organizado por Anne
Marie Alléon et al. (PUF, Paris, 1985).

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