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Menos do que uma etapa cronológica da vida, menos do que uma potencialidade *A data entre colchetes
rebelde e inconformada, a juventude sintetiza uma forma possível de pronunciar-se refere-se à edição origi-
diante do processo histórico e de constituí-lo. nal da obra. Ela é indicada
FORACCHI, 1965, p. 303 na primeira vez que a
obra é citada. Nas demais,
Nenhuma geração pode privar a juventude da possibilidade e do direito de levar a cabo suas indica-se somente a edi-
próprias experiências. Por outro lado, nenhuma geração pôde fazer isso até agora. ção utilizada pelo autor
HELLER, 1981 [1980]*, p. 203 (N.E.).
1. Marialice Foracchi
Como o título deste artigo menciona, sua intenção é recuperar um legado, (1929-1972) foi docente
e pesquisadora da anti-
isto é, tornar presente a preciosa contribuição para o estudo da juventude
ga cadeira de Sociologia
corporificada na obra de Marialice Foracchi1. Abrange, num mesmo movi- I da Faculdade de Filo-
mento, a aspiração de apresentá-la e ao seu trabalho àqueles que não a co- sofia, Ciências e Letras
nheceram e a expectativa de reativar a memória, dos que foram seus con- – USP, dirigida por Flo-
temporâneos, acerca do tratamento pioneiro – e ainda relevante – que deu restan Fernandes, e do
ao tema2. Questões que despertaram o seu interesse e às quais se dedicou – Departamento de Ciên-
cias Sociais da Faculda-
como a situação, o papel e a polissemia da noção de juventude3, o conceito
de de Filosofia, Letras e
de geração e a coexistência de gerações, os processos de transição para a vida Ciências Humanas, que
adulta, o estudante como categoria social e o significado dos movimentos a sucedeu em virtude da
juvenis no mundo contemporâneo, entre outros correlatos – receberam, reforma por que passou
por parte dessa estudiosa, um tratamento deveras apurado, que ainda pode a universidade em 1969.
servir de estímulo e diretriz para os(as) analistas contemporâneos(as).
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2. Ao mesmo tempo, De fato, a obra de Marialice deve ser vista como “clássica”: na medida
deseja realçar a impor- em que seus estudos permanecem centrais para a discussão atual desses
tante percepção de que
temas e ainda hoje é possível aprender com seus textos, a autora e sua obra
a retomada da reflexão
sobre o tema, neste nú- merecem um lugar privilegiado em relação a outros trabalhos e a outros
mero, além da homena- estudiosos contemporâneos da juventude e dos temas que lhe são vincula-
gem que lhe é prestada, dos. Sua reflexão permanece viva e traz contribuições para o campo de
representa também a conhecimento de que tratou, mesmo tendo passado quarenta anos da pu-
reapropriação, formal-
blicação do livro que a tornou mais conhecida4.
mente expressa, de uma
herança preciosa pelo
Algumas observações são, contudo, necessárias. O relativo esquecimen-
atual Departamento de to que tem atingido os seus trabalhos deve ser creditado, até certo ponto, ao
Sociologia, ao qual per- refluxo sofrido pelo tema que foi objeto de sua tese de doutorado – a condi-
tenceria não fosse sua ção de estudante e sua atuação política –, especialmente após os anos de
morte prematura. 1980. A partir de então, os processos de mudança que se manifestaram com
3. Para Marialice, “não mais força, no Brasil, fizeram emergir e deram mais realce a outros objetos
sendo passível de delimi- de reflexão, a outros movimentos sociais, com protagonistas até então me-
tação etária, a juventu-
nos destacados (cf. Sader, 1988), minimizando a relevância dos movimen-
de representa, histórica
e socialmente, uma ca- tos estudantis e da sua possível contribuição para a transformação social.
tegoria social gerada pe- Todavia, é necessário enfatizar que os achados e as reflexões da autora
las tensões inerentes à não se circunscreveram à discussão dessa categoria social; tampouco fica-
crise do sistema. Socio- ram limitados à análise de suas possibilidades, como fonte de contestação
logicamente, ela repre-
da ordem social. Na medida em que se mantinha vinculada ao seu tempo
senta um modo de rea-
lização da pessoa, um
e às questões propostas por ele, Marialice pôde reconhecer e incorporar à
projeto de criação insti- sua reflexão a emergência de indagações ainda hoje centrais para o debate
tucional, uma alternati- sobre a condição juvenil e sobre a sociedade moderna. Desse modo, ainda
va nova de existência que deva ser reconhecido o declínio do interesse pelo movimento estudan-
social” (1972, p. 160). til, é necessário manter viva a consciência de sua importância, apreciar
No contexto desta dis-
com respeito os assuntos que lhe são ligados e relembrar que, nas pesquisas
cussão, também deve ser
considerada a imprecisão sobre essa matéria, a autora abordou um amplo conjunto de outros tópi-
do conceito, o que acar- cos e trouxe para o debate vários temas correlatos, sobre os quais sua visão
retou a declaração de sua permanece pertinente e pode ser utilizada ainda hoje. São esses achados o
inexistência – “ ‘a juven- objeto preferencial e mais específico deste balanço.
tude’ não existe” – por
A reflexão que se segue pretende, assim, recuperar alguns dos principais
um estudioso (cf. Lagrée,
s/d) que se apóia em ar-
destaques propostos pela autora em seus trabalhos, relembrando pontos
tigo de Bourdieu (1980). centrais tratados em seus textos5 e, o que se espera de modo especial, mos-
Assim, quando não es- trando sua importância e enfatizando as contribuições que oferecem para
tiver vinculado aos tex- o exame de questões atuais relativas aos jovens e à juventude, temas que, já
tos de Foracchi, o termo há algum tempo, vêm sendo retomados com alguma ênfase nas preocupa-
será utilizado como re-
ções das ciências sociais6.
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Departamento de Socio- vidos. São duas as formas exploradas das relações interpessoais. De um
logia – FFLCH, na Fa- lado, a referência à família, grupo social específico no interior do qual se
culdade de Educação, no
desenvolvem relações de manutenção. Estas formalizam a situação de classe
Instituto de Psicologia, da
USP, e no Instituto de Fi- no nível das relações interpessoais, pois propiciam uma modalidade de
losofia e Ciências Huma- ajustamento entre o jovem e o adulto que envolve o modo pelo qual am-
nas, da Unicamp. Ver bos são socialmente categorizados (cf. Idem, p. 60). De outro lado, é inclu-
Abramo (1994), Corro- ído o contato entre gerações 8, para cuja caracterização Marialice se apóia
chano (2001), Jardim
fortemente na perspectiva mannheimiana (cf. Mannheim, 1952, pp. 276-
(2004), Oliveira (2001;
2005), Pimenta (1998;
322). As questões referentes à família e ao contato entre gerações ainda
2001; 2005), Silva hoje são pertinentes para a discussão do tema “juventude”.
(2003), Sousa (1999), Nos textos examinados, a reflexão sobre a experiência familiar e os con-
Spagnol (2002), Valle tatos em seu interior é utilizada para caracterizar a situação específica das
(1999). camadas médias, mas talvez possa ser estendida a outros estratos da popula-
7. Nessa acepção, o es- ção sem sofrer distorções. A reciprocidade aparece como um traço distinti-
tudante é visto como vo desse tipo de vínculo, como aliás ocorre em qualquer relação social. As
agente social da transi-
várias posições nela existentes representam papéis complementares que, por
toriedade das camadas
médias e porta-voz de sua vez, ensejam formas específicas de ajustamento e de tolerância mútua.
sua ideologia de ascen- Entre outras funções, os pais atuam como provedores; assim, quando
são (cf. Foracchi, 1965, existem recursos disponíveis, os jovens são sustentados por sua família en-
p. 119). quanto se mantêm estudando. A dependência9 econômica não chega a
8. Para Foracchi, “o con- preocupá-los, pois consideram esse encargo parte da obrigação familiar,
ceito sociológico de gera- sendo portanto “natural”. A aparente gratuidade dessa manutenção, que
ção não se baseia exclusi- afigura não exigir nenhum retorno por parte dos jovens, revela-se, entre-
vamente na definição so-
tanto, não tão desinteressada.
cial da idade, mas encon-
tra no conflito sua cate- Fica claro que a obrigatoriedade de sustento por parte da família sem
goria constitutiva” (1972, encargos correlatos é uma crença sem fundamento, já que é exigida uma
p. 160). A dimensão do contrapartida por parte do jovem estudante. Também é evidente que “os
conflito aparece nas atitu- elementos permanentes de tensão ou de oposição que caracterizam as rela-
des de oposição e de re-
ções entre jovens e adultos” (Foracchi, 1965, p. 21) ficam encobertos pelas
cusa do estilo predominan-
te de existência social, idéias de despojamento e gratuidade, ainda que isso não seja obrigatoria-
redefine-se nos planos mente notado pelos envolvidos. Os vínculos que essa situação origina de-
pessoal, institucional e monstram ser muito fortes: de fato, eles permitem o estabelecimento de
societário, e é, por conse- um controle familiar, incessante e sem tréguas, que restringe as perspecti-
guinte, compartilhada por
vas sobre amplos domínios da vida juvenil e delimita as alternativas dispo-
jovens e adultos.
níveis, incluindo manifestações individuais de vontade (cf. Idem, cap. 1).
9. A dependência signi- Sucede, todavia, que, se a atuação familiar é vista como investimento,
fica um tipo de relação
que trará seus ganhos no futuro, havendo a expectativa de que as dificul-
social no qual os laços de
dades presentes sejam recompensadas com as conquistas vindouras, isso
não diminui a demanda por respostas adequadas dos jovens no momento reciprocidade se transfor-
em que a dependência é clara: esses laços são ampliados, atingindo direta- mam em compromissos
de retribuição, situação
mente a sua pessoa (cf. Idem, caps. 3 e 4)10.
social em que está pre-
Há, portanto, um compromisso de retribuição que é amplo e permanen- sente um estilo de con-
te, e envolve o papel conferido ao jovem nos planos familiares de ascensão (ou vivência peculiar ao gru-
de manutenção de posição) social. Assim, essa obrigação implica responsabi- po, explicitando víncu-
lidade, tanto em relação ao seu próprio destino pessoal como em relação ao los que reproduzem as
tensões atuantes no sis-
destino familiar. Seu compromisso é o de fazer efetivas as conquistas e de pro-
tema inclusivo, variam
piciar novos avanços. Assim, ainda que configurada no presente, a dívida pode socialmente e se refletem
ser deslocada para o futuro, na medida em que existe a expectativa de que sua no comportamento in-
realização profissional possibilite a manutenção ou a melhora da posição rela- dividual dos participan-
tiva da família em termos de estratificação social. tes. Assim, esses laços não
É ambíguo o sentido das relações de dependência existentes entre os apenas representam as
expressões variáveis do
estudantes e suas famílias: de um lado, elas contêm potencialidades cria-
comportamento huma-
doras; de outro, envolvem limitações evidentes. Marialice relembra que “o no, mas, com referência
modo de reagir ao vínculo é limitado pela própria instituição que o põe em à sociedade de classes, de-
prática” (Idem, p. 27). Entretanto, ainda que a subordinação dos jovens notam as condições so-
pareça total, ela não é completamente passiva e, em algumas situações, eles ciais objetivas de sua rea-
lização. Dessa forma, na
conseguem fazer sua vontade prevalecer. Desse modo, estão presentes tan-
mesma sociedade podem
to a submissão como a rebelião, parâmetros do seu agir que não são obri- existir diferentes estilos
gatoriamente opostos (cf. Idem, pp. 23-27, 69). de convivência e de de-
Aí está também manifesto um paradoxo: como lembra Marialice, “so- pendência (cf. Foracchi,
mente os estudantes totalmente mantidos pelos pais e desligados de qual- 1965, cap. 2).
quer preocupação imediata com seu próprio sustento podem reconhecer- 10. A discussão do sen-
se livres para empreender uma ‘atuação de ensaio’” que lhes permita vôos tido assumido pela re-
novos. Se comparada à dos jovens não-estudantes, essa situação de manu- lação entre “presente” e
“futuro” será feita mais
tenção constitui um privilégio. Entretanto, o compromisso familiar de
adiante.
mantê-lo como estudante provoca “a obrigação correspondente de [o jo-
vem] sentir-se vinculado e de agir de acordo com as expectativas forma-
das” pela família a seu respeito. Assim, a busca de novos modos de agir e
de viver, característica do comportamento juvenil, torna-se mais difícil,
quando não é quase inteiramente contida (cf. Idem, cap. 1).
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11. Foracchi contrasta as imperativo fundamental é: ser alguém. Percebe-se, assim, que as expectativas de
relações de dependências retribuição, mesmo quando colocadas nesses termos, não são simplesmente
com as possibilidades de
deslocadas para o futuro. Apresentam, pelo contrário, a singularidade de redefinir-
emancipação encontra-
das pelo estudante, des- se nesses dois planos temporais, fazendo com que, progressivamente, um se resolva
se modo distinguindo si- no outro (Idem, p. 38).
tuações de autonomia e
de heteronomia. “A au- É diferente a situação do estudante que trabalha11: além de não depen-
tonomia [é definida]
der da colaboração financeira da família para continuar estudando, muitas
como a responsabilida-
de de manutenção fun-
vezes ele é quem a ajuda. Como a família não pode sustentá-lo, para poder
damentada na redefini- estudar o trabalho remunerado deixa de ser uma escolha e torna-se uma
ção dos papéis sociais do imposição. Com freqüência, a necessidade obriga o estudante a trabalhos
indivíduo. Essa condi- insatisfatórios, que não têm sentido algum para ele além da remuneração
ção, segundo a autora, só que proporcionam, e não alteram significativamente os laços de depen-
é concretizada na situa-
dência que mantém com a família; como é mencionado, “o trabalho, tal
ção de trabalho, quan-
do o estudante se firma como aqui transparece, não se reveste de qualquer sentido claro de emanci-
como unidade autôno- pação” (Idem, p. 48). A alternância das atividades torna sua vida fragmen-
ma de manutenção. Esse tada: trabalho e estudo preenchem tempos sociais distintos.
é o momento em que o A situação do trabalhador que estuda é ainda mais expressiva das dificul-
papel social do jovem é
dades envolvidas, pois, nesse caso, sua sobrevivência e a da família depen-
redefinido e ele se torna
provedor, seja do próprio dem da remuneração que recebe: “o trabalho mantém os vínculos entre o
sustento, seja do susten- estudante e a família” (Idem, p. 49) mediante um compromisso informal,
to da família” (Pimen- mas tácito. Esse compromisso afasta-o das possibilidades de dedicar-se à
ta, 2001, p. 33). preparação para a carreira que escolheu – o curso, de fato, tem para ele im-
12. A autora menciona portância acessória – e de ensaiar vôos próprios que lhe possibilitem entrar
ainda duas outras catego- em contato com alternativas, políticas ou culturais, mais amplas. O vínculo
rias de jovens que estu- impeditivo que o aprisiona é de caráter distinto, mas mais explícito: é a si-
dam e trabalham: aque-
tuação global que o produz12.
les para os quais “o tra-
balho se torna mais ab- Para fechar o círculo das condições necessárias para a reconstrução inter-
sorvente que o curso, fa- pretativa da categoria “estudante”, um terceiro elemento é apresentado, re-
zendo com que o jovem lativo aos fatores que possibilitam o processo de transformação do sistema
abandone a perspectiva inclusivo e que se manifestam no nível prático da atuação estudantil-juvenil
do estudante para pensar
(cf. Idem, p. 11). Para Marialice, isso significa que “os fatores que definem
como homem de negó-
cios”, a experiência de tra-
as condições de ajustamento do jovem ao adulto não se esgotam na esfera
balho propiciando a das relações interpessoais, mas são produzidos pela dinâmica da constitui-
emancipação; e aqueles ção do sistema global”. Sob a forma de relação de manutenção, a situação de
que atuam na política es- classe torna propícia uma modalidade de ajustamento entre jovens e adul-
tudantil, que lhes apare- tos, que envolve o modo pelo qual ambos são socialmente categorizados.
ce como tarefa decisiva,
Como é ele o responsável pelo processo de socialização das gerações mais
novas, “as pressões modeladoras do adulto induzem o jovem a formar-se de sem, no entanto, trans-
acordo com os padrões e com a problemática incorporada pelo grupo com o formar trabalho e curso
em atividades secundárias
qual o adulto se identifica” (Idem, pp. 60-61) – assim, o padrão de depen-
(cf. Foracchi, 1965, pp.
dência presente é ao mesmo tempo intersubjetivo e social. 49-53). Elas, entretanto,
É interessante comparar as situações observadas por Foracchi (1965, não serão exploradas aqui.
1982) e aquelas encontradas em estudo sobre a transição para a vida adulta 13. “Devido ao grande
entre estudantes universitários de São Paulo (cf. Pimenta, 2001), mos- número e variedade de
trando as diferenças e as convergências que apresentam. Enquanto a pri- universidades particula-
meira se concentrou nos estudantes vinculados à USP (cf. Foracchi, 1965, res na capital, foram se-
p. 9), no segundo caso o âmbito foi ampliado para abarcar (e comparar) lecionadas duas: a Unip
(Universidade Paulista),
alunos dessa universidade pública e de duas outras universidades particu-
atualmente considerada
lares, a Unip e a Unicsul (cf. Pimenta, 2001, p. 59). Para fazer essa compa- a maior universidade
ração, é necessário ressaltar que o acesso ao ensino superior é bastante dis- privada da América La-
tinto nos dois momentos, muito mais restrito em 1960; identificar as razões tina, e a Unicsul (Uni-
para a escolha das universidades particulares no estudo de 200113; e men- versidade Cruzeiro do
Sul) [...]. A escolha da
cionar que o estudo de Foracchi não focalizou estudantes de cursos especí-
Unicsul justifica-se pelo
ficos14, enquanto na segunda pesquisa a amostra foi constituída por estu- fato de essa universida-
dantes de carreiras muito disputadas, Direito, Publicidade e Turismo15. de, localizada em um
Alguns resultados aproximam-se bastante: da mesma forma que na pes- bairro tradicionalmente
quisa anterior (cf. Foracchi, 1982, pp. 64-82), a de 2001 (cf. Pimenta, operário e [...] [com]
uma população predo-
2001, pp. 67-113) constata que, apesar do aumento relativo de estudantes
minantemente de baixa
oriundos de estratos socioeconômicos menos privilegiados, a maioria dos renda, estar voltada para
que estudam na USP provém de camadas sociais superiores, no sentido de um público estudantil de
pertencerem a estatutos socioculturais e socioeconômicos mais elevados, perfil bastante diferencia-
em contraste com a variação mais acentuada encontrada nas universidades do do público das ou-
privadas. Por outro lado, em 2001, na USP, uma porcentagem significati- tras universidades parti-
culares” (Pimenta, 2001,
va dos estudantes são filhos de pais com grau superior de escolaridade (na
pp. 59-60).
pesquisa de Foracchi, havia poucos nessas condições)16; em contraste,
14. “A amostra utilizada
correspondia a 5% da
[...] na Unicsul foi encontrada a maior parte dos estudantes oriundos de famílias população estudantil da
de camadas sociais menos privilegiadas, em que a diferença entre o estatuto Universidade de São
sociocultural e socioeconômico em relação às outras universidades é maior, e se Paulo em 1960, tal como
observa um esforço maior por parte dos filhos de conquistarem um grau de instru- se distribuía pelas dife-
rentes faculdades que
ção mais alto do que o alcançado pelos pais, assim como para alcançar ocupações
integram esse organismo
profissionais de nível superior (Pimenta, 2001, p. 89).
universitário” (Foracchi,
1965, p. 9).
Com relação aos primeiros, convergente com análise de Foracchi da déca-
da de 1960, está presente “uma estratégia familiar de manutenção do estatu-
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15. “Para a definição des- to sociocultural já alcançado pela família” (Idem, p. 77); o interessante é que,
sas carreiras, foi examina- a partir da pesquisa mais recente, é possível supor que, entre os últimos – e
do o registro da procura
também entre aqueles que possuem uma situação econômica privilegiada,
por cursos vestibulares da
Fuvest durante dez anos mas um nível de escolaridade mais baixo, ainda que exista uma diferença de
(1990-2000) e identifi- significado nesse processo –, exista “uma estratégia familiar de ascensão so-
cadas: a) quais eram as cial, em termos de capital escolar. Para uma família de condição social menos
carreiras tradicionalmente privilegiada, o investimento em educação superior faz parte de uma estraté-
mais procuradas – as que
gia de ascensão social, em busca de opções mais rentáveis de atividade econô-
mantiveram os maiores
números de inscrições
mica” (Idem, p. 77).
com pequena variação Entretanto, na medida em que os estudantes provenientes de camadas
durante o período; b) sociais menos privilegiadas tendem a se formar em escolas públicas no
quais eram as carreiras ensino básico e a freqüentar a universidade particular, e, por sua vez, os
emergentes – as que apre- estudantes provenientes de camadas sociais mais favorecidas tendem, em
sentaram aumento do
sua maioria, a se formar em escolas particulares no ensino básico e fre-
número de inscrições no
período; e c) quais eram qüentar a universidade pública, fica claro que as condições de disputa são
as carreiras que apresen- mais difíceis e acirradas para os primeiros. Essa observação permite ratifi-
taram uma concorrência car aquela feita pela pesquisa dos anos de 1960, sobre a importância atri-
alta e constante no perío- buída à educação como fator de mobilidade social, mas também confirma
do, em função da rela-
a constatação de que existe certa ilusão na relação estabelecida entre ambas.
ção candidato vaga. A par-
tir desses critérios, foram Ou seja:
definidas: 1) carreiras tra-
dicionais (foi escolhido o [...] A formação de nível superior [...] é, sobretudo, fator de consolidação da traje-
curso de Direito); 2) car- tória social já percorrida. [...] isso significa que a formação universitária representa
reiras que emergiram na
menos uma oportunidade original de ascensão na escala social do que um prêmio
década de 1990-2000 (foi
que sanciona e legaliza a conquista de novas posições. [...] A educação universitária
escolhido o curso de Pu-
blicidade); e 3) carreiras apenas ratifica uma trajetória social já realizada e para firmar-se como instrumento
‘da moda’, ou que se tor- de realização pessoal e como recurso de afirmação pessoal não prescinde – pelo
naram emergentes nos contrário, exige – de condições socioeconômicas estáveis e consolidadas (Foracchi,
três anos anteriores à pes- 1965, pp. 300-301).
quisa (foi escolhido o
curso de Turismo)” (Pi-
menta, 2001, pp. 48-60). Também é interessante apresentar a situação dos estudantes que traba-
lham, na pesquisa mais recente. Aqueles oriundos de famílias com capital
16. É importante lem-
brar que, apesar de a base
escolar inferior começam a trabalhar mais cedo, aumentando a idade con-
socioeconômica dos es- forme o crescimento da renda mensal familiar. Os alunos da Unicsul apre-
tudantes que têm ingres- sentam a menor média de idade de início da vida ativa, os alunos da USP
sado na USP estar sen- apresentam a maior, e os da Unip situam-se numa posição intermediária
do ampliada, diminuin- em relação às outras duas universidades. Quando a renda mensal é inferior a
do a concentração exis-
mil reais, o trabalho do jovem aparece como importante complemento da
renda familiar. Nas demais faixas de renda, a motivação mais importante é tente anteriormente, a
ganhar dinheiro para o próprio consumo. Nesse caso, o trabalho proporcio- pesquisa de 2001 foca-
lizou estudantes das car-
na a remuneração necessária para os gastos pessoais, aparecendo como uma
reiras mais disputadas e
alternativa para aqueles que não têm condições de receber uma mesada dos nas quais a seleção é mais
pais e também como possibilidade de maior autonomia, uma vez que esse restritiva, o que, sem
dinheiro é administrado pelo próprio jovem. Nas faixas de renda mais altas, dúvida, concorre para o
entretanto, a vontade de trabalhar aparece em uma porcentagem significa- afunilamento das possi-
bilidades de acesso.
tiva, o que exprime uma visão do trabalho como uma experiência positiva e
desejável (cf. Pimenta, 2001, pp. 100-105). 17.Para constatar as di-
Na amostra dos estudantes da USP de 2001, predominam os perten- ficuldades de acesso ao
estudo universitário por
centes às camadas sociais mais favorecidas, oriundos de famílias com capi-
jovens trabalhadores
tal escolar superior, com renda mensal alta, cujos pais ocupam posições das camadas menos pri-
profissionais mais credenciadas. Esses estudantes encontram maior auto- vilegiadas, cf. Oliveira
nomia na busca por uma ocupação profissional realizadora, na medida em (2001) e Silva (2003).
que sua contribuição não é exigida para a obtenção da renda familiar. Por-
tanto, têm mais tempo para dedicar aos estudos e à carreira universitária e
podem optar pela situação de não-trabalho enquanto procuram alternati-
vas de inserção no mercado que estejam de acordo com suas aspirações e
expectativas. Em contraste, na amostra da Unicsul predominam aqueles
oriundos de famílias cujo capital escolar é inferior e médio-inferior, com
rendas mensais mais baixas, cujos pais ocupam posições profissionais me-
nos credenciadas. Entre essas famílias, o jovem é estimulado a começar a
trabalhar mais cedo, para complementar a renda mensal familiar e ajudar
nas despesas da casa (cf. Idem, p. 107). Nesse caso, sua dedicação aos estu-
dos é bem menor e não é surpreendente que sua vida estudantil se alongue
ou seja interrompida, nem tampouco que o curso universitário falhe em
lhe proporcionar a melhora profissional e social almejada17.
Duas categorias distintas emergem desse mapeamento – de um lado, o
jovem; de outro, o estudante –, influenciando-se de forma recíproca e le-
vantando uma questão de difícil resposta: “como ser estudante, categoria
social independente, se não é possível deixar de ser, ao mesmo tempo, jo-
vem dependente, submisso e comprometido?” (Foracchi, 1965, p. 28).
Em outro momento, essa duplicidade é, entretanto, circunstanciada: ser
estudante é um acidente na condição de jovem (cf. Foracchi, 1972, p. 110)
e essa é a condição preferencialmente atingida pela crise social mais ampla
(cf. Idem, p. 160).
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radas juvenis, tendo se tornado um objetivo aspirado por quase todos e cuja
busca é incessante.
De qualquer modo, atualmente os mais jovens parecem desinteressa-
dos de incorporar à sua vida o trajeto percorrido e o legado das gerações
anteriores. Ao mesmo tempo, os mecanismos sociais capazes de vincular a
experiência pessoal dos que agora são jovens à que sustentava a conduta e
as maneiras de ver o mundo das gerações que vieram antes já não podem
ser facilmente ativados. Afinal, com as alterações significativas que ocorre-
ram nos padrões de sociabilidade e nas formas de ser, essa experiência não
tem validade para aqueles que estão no início de sua vida. Pode-se perce-
ber, então, que o tempo decorrido é realmente passado, não faz mais sen-
tido para a vida atual.
“Ser adulto”, além de ter deixado de ser objetivo prioritário aspirado pelos
mais jovens, nem sempre é valorizado positivamente. Na verdade, hoje, há
certa recusa generalizada ao “crescer” e ao “amadurecer”, que adquiriram a
conotação de “envelhecer” (cf. Ahmadi, 2001, p. 192). Pode-se supor então
que não só privilegiar o presente (viver o agora21) tornou-se característica co- 21. Não há superposição
mum a todas as faixas etárias, como também buscar a juventude extrapola os perfeita entre a noção de
estratos juvenis, já que (quase) todos querem ser, manter-se ou parecer jo- presente e aquela referente
ao agora, que, de fato,
vens. Ao mesmo tempo, a juventude é considerada condição indispensável
corresponde ao presen-
para que ocorra uma verdadeira experiência, o que promove clara inversão na te mais imediato, aque-
maneira como a questão era proposta anteriormente. A experiência parece ter le que ocorre exatamente
deixado de significar conhecimento ancorado na sabedoria do saber fazer, acer- “neste momento”. Entre-
vo de uma vida que pode ser transmitido, para resumir-se à vivência sem las- tanto, nesta discussão,
esses termos serão usa-
tros do momento (cf. Benjamim, 1985a, 1985b).
dos como sinônimos
Entretanto, como lembra Singly, tudo depende do significado atribuí- para que não ocorram
do à formulação “ser adulto”: se fizer referência à aptidão para assumir demasiadas repetições de
responsabilidades, é identificado por pessoas mais jovens e mais velhas palavras.
como característica sua; porém, se denotar “um ser acabado que não tem
mais nada a descobrir no mundo e, sobretudo, nele próprio” (Singly, 2000,
p. 10), é igualmente rechaçado por ambas as categorias.
Do mesmo modo como estava alterada a avaliação relativa ao “ser adul-
to”, já se manifestava também a mudança, que hoje se tornou ainda mais
visível, em relação à dimensão temporal sobre a qual a ênfase recai. Na
pesquisa sobre o estudante, o jovem era considerado agente efetivo de trans-
formação social; essa possibilidade, entretanto, era sempre posta no futuro,
ainda que a partir do presente. A questão era ali colocada levando em conta
que no jovem estão contidas duas situações virtuais, na medida em que ele
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mundo do trabalho para o qual foram socializados não existe mais” (Jar-
dim, 2004, p. 193).
Esses últimos sentem sua energia minada pelas dificuldades encontra-
das para se inserir na vida de trabalho produtivo e, em conseqüência, no
mundo, de modo que se consideram e passam a sentir-se “sem futuro”, ou
a vê-lo incerto e indefinido (cf. Idem, p. 229). “A incerteza quanto ao
futuro e às possibilidades de inserção aparece como fonte de sofrimento,
como algo que suspende o início da vida adulta e a assunção de responsa-
bilidades” (Idem, p. 237). A autora lembra que se poderia opor a essa
percepção o fato de que as gerações passadas, na medida em que viviam
recorrentemente em situações de desemprego, também se submetiam ao
signo da incerteza. Entretanto, argumenta,
[...] o sentido [dessa] incerteza era diferente, pois não chegava a pôr em cheque as
demais formas de experiência do tempo e do espaço. Hoje, a insegurança dos jo-
vens em relação ao trabalho coloca-os numa zona liminar, na medida em que
desloca os significados que ele possui, impulsiona a construção da identidade por
outras vias [e] desorganiza as relações entre gerações (Idem, p. 237).
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Resumo
Retomada de um legado: Marialice Foracchi e a sociologia da juventude
O artigo faz um balanço dos textos de Marialice Foracchi (1929-1972) em que são
trabalhadas questões relativas à juventude, sua situação e seu papel, ao conceito de
geração e à coexistência de gerações, destacando sua relevância e enfatizando a impor-
tância que mantêm ainda hoje para o tratamento desses temas. Paralelamente, aspectos
que configuram a questão contemporânea da juventude serão trazidos à discussão e
relacionados à obra dessa autora.
Palavras-chave: Juventude; Geração; Transição; Tempo; Sociologia da juventude.
Abstract
A legacy reappraisal Marialice Foracchi and the sociology of youth
The article reviews writings by Marialice Foracchi (1929-1972) regarding youth, its
situation and role, the concept of generation and the coexistence of generations, high-
lighting its relevance and emphasizing the weight these texts carry to this day in the
discussion of these issues. Aspects to do with youth nowadays are brought up, ana-
lyzed and compared to the ideas put forward in Foracchi’s writings.
Keywords: Youth; Generation; Transition; Time; Sociology of youth.
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Por um novo significado do futuro
mudança social, jovens e tempo
Carmen Leccardi
Tradução de Norberto Luiz Guarinello
podem ser consideradas, disciplina torna-se, subjetivamente, uma estratégia adequada” (Cavalli,
sob esse ângulo, um em- 1980, p. 523). A identidade pessoal, conseqüentemente, constrói-se em
blema da dimensão ex-
relação a uma projeção de si no tempo vindouro (o que quero ser?), graças
pressiva da ação. As ações
instrumentais, ao contrá- à qual não apenas o passado adquire sentido, mas também é tolerada uma
rio, são guiadas pela ra- eventual frustração que pode acompanhar as experiências do presente.
cionalidade do objetivo Portanto, se o futuro é considerado a dimensão depositária do sentido
(Zweckrationalität) e do agir3; se é representado como o tempo estratégico na definição de si, o
pressupõem a capacida-
veículo pelo qual, em direta ligação com o passado, a narração biográfica
de de se posicionar no
interior de um horizon-
toma forma, o diferimento da recompensa pode, então, ser aceito. Nessa
te temporal distinto do perspectiva, o futuro é o espaço para a construção de um projeto de vida4 e,
aqui e agora. ao mesmo tempo, para a definição de si: projetando que coisa se fará no
3. Nas sociedades oci- futuro, projeta-se também, paralelamente, quem se será. Em suma, a pers-
dentais, a partir da Re- pectiva biográfica à qual remete o diferimento das recompensas implica a
volução Francesa, e por presença de um horizonte temporal estendido, uma grande capacidade de
quase dois séculos, o autocontrole, uma conduta de vida para a qual a programação do tempo se
sentido do agir – não
torna crucial. O tempo cotidiano é cuidadosamente investido e desfrutado
apenas individual, mas
também coletivo – foi de modo análogo ao dinheiro; é programado, e seu uso, racionalizado.
ligado ao futuro. Ver, a Max Weber escreveu páginas memoráveis sobre essa orientação específica
propósito, as reflexões de da ação em A ética protestante e o espírito do capitalismo (cf. Weber, [1922]5
Neckel (1988). 1965).
4. “A biografia de um in- Esse mecanismo é ainda considerado evidente, e as novas condições tem-
divíduo é por ele apreen- porais do agir, mesmo que freqüentemente evocadas pelo discurso comum e
dida como [...] projeto”, também pela comunicação da mídia, muitas vezes não são adequadamente
ressaltam, por exemplo,
discutidas na reflexão sobre as construções biográficas juvenis6. É necessário
Berger, Berger e Kellner
(1973, p. 71). O proje- interrogar, por exemplo, se e em que medida a relação entre projeto, tempo
to, como se sabe, está no biográfico e identidade, que o diferimento das recompensas pressupõe,
centro das reflexões da pode ainda ser considerada válida em um clima social como o contemporâ-
sociologia fenomenoló- neo, no qual o componente de incerteza tende a dominar e onde fermentam
gica. Schutz, que reto-
as vivências contingentes (cf. Beck, 1999; Bauman 2000a). Com efeito,
ma o interesse de Hus-
serl pelo caráter partici- quando a incerteza aumenta para além de certo limiar e se associa não apenas
pativo do agir (o “ser com a idéia de futuro, mas com a própria realidade cotidiana, pondo em
orientado para”), anali- causa a dimensão do que é considerado óbvio, então o “projeto de vida” tem
sa-o, por exemplo, em seu próprio fundamento subtraído. Além disso, quando a mudança, como
relação à ação, conside-
ocorre em nossos dias, é extraordinariamente acelerada, e o dinamismo e a
rada um “comporta-
mento projetado”, e es-
capacidade de performance são imperativos, quando o imediatismo é um pa-
tuda sua estrutura tem- râmetro para avaliar a qualidade de uma ação, investir num futuro a longo
poral. Cf. Schutz (1971). prazo acaba parecendo tão pouco sensato quanto adiar a satisfação. Mais do
que renunciar às recompensas que o presente pode oferecer, convém então
estar treinado para “aproveitar o instante”, para não fechar a porta ao impre- 5. A data entre colche-
visto, dispor-se mentalmente em termos positivos com relação a uma inde- tes refere-se à edição ori-
ginal da obra. Ela é
terminação carregada de potencialidade7.
indicada na primeira vez
Nesse horizonte temporal comprimido, o próprio significado da ida- que a obra é citada. Nas
de juvenil se transforma. Quem a vivencia tende a apreciá-la mais por demais, indica-se so-
aquilo que pode oferecer no presente do que pelo tempo futuro que ela mente a edição utiliza-
virtualmente descortina. Conseqüentemente, os desejos e as exigências da pelo autor (N.E.).
estruturam-se em relação ao presente: a “boa vida” não se baseia mais em 6.A esse respeito, per-
um compromisso de longa duração, a idéia de estabilidade perde valor mito-me remeter a Lec-
(cf. Rosa, 2003). cardi (2005a, pp. 123-
146).
Para compreender de maneira adequada a profundidade dessas trans-
formações, concentrarei minha atenção primeiro nas ênfases e nos aspectos 7.Para uma reflexão so-
bre esse ponto de vista
semânticos novos que caracterizam a dimensão do futuro, tendo o cuidado
existencial, ver Bauman
de esclarecer preliminarmente as modificações de significado que investi- (2000b).
ram a concepção do devir na trajetória em direção à modernidade. Em um
segundo momento, deter-me-ei nas transformações contemporâneas do
modo de conceituar o transcorrer da vida juvenil e o projeto biográfico.
Utilizando os resultados de uma pesquisa recente realizada na Itália sobre a
relação entre jovens e temporalidade, da qual participei pessoalmente8, 8. Os resultados da pes-
analisarei algumas formas novas de criação de projetos juvenis, fruto da quisa, de âmbito nacio-
nal e de tipo qualitati-
crise da juventude como fase de transição para a idade adulta e do mecanis-
vo, realizada em 2002-
mo de diferimento das recompensas que está em sua base.
2003, estão em Crespi
(2005).
Futuro e consciência do tempo
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tempo, segundo essa concepção, não avança mais por um movimento cir-
cular, mas linear. O tempo terrestre (tempus) e o tempo da eternidade
(aeternitas) são separados conceitualmente: abre-se, assim, o primeiro es-
paço para a representação do tempo como entidade potencialmente con-
trolável pelos seres humanos.
Diferentemente do helênico, o tempo cristão não olha mais apenas para
o passado. Nem, como o tempo hebraico expresso no Antigo Testamento,
apenas para o futuro. Passado, presente e futuro inscrevem-se, todos ple-
namente, no fluir incontido do tempo que se estende entre os dois pólos –
da Gênese, por um lado, e do Apocalipse, por outro. No centro desse fluir
há o advento de Cristo (cf. Pattaro, 1975). É a dimensão vetorial – depois
herdada e transformada pela sociedade industrial – que se torna dominan-
te. Parte-se “de” para chegar “ao” último dia do mundo: a fé garante a
riqueza do sentido desse percurso.
Contrastando com a visão cíclica do tempo, fortemente presente na
cultura helênica, a concepção cristã afirma que o que ocorre no tempo
acontece apenas uma vez, é algo único e carregado de significado. O tem-
po histórico adquire consistência e estrutura-se como uma arena na qual se
expressa o livre-arbítrio: mesmo se, em última instância, a participação
humana na história é iluminada pelo fato de ser parte de um projeto divi-
no. Os atores desse tempo são, em primeiro lugar, Deus, em cujas mãos
passado, presente e futuro são confiados, e, em segundo lugar, o conjunto
da comunidade cristã; nunca o indivíduo. Em outras palavras, a idéia de
futuro, assim como a de história, apenas se torna patrimônio da humani-
dade em virtude do fato de os seres humanos serem criaturas divinas.
O futuro humano conhece, entretanto, um limite supremo: é fechado
pelo Apocalipse, o ponto final da história. O tempo cristão parece, assim,
essencialmente dramático, não apenas em razão da existência desse limite
intransponível, mas também pela conotação da vida terrestre como uma
eterna disputa entre bem e mal.
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Deve-se ressaltar, desde logo, que aqueles que exprimem essa estratégia
temporal parecem especialmente ricos em recursos – culturais, sociais e
econômicos. Se os sujeitos dominantes de nossa época são aqueles que se
diferenciam em virtude de sua capacidade de utilizar bem, em termos de
poder, a velocidade e a mobilidade, esses jovens parecem trilhar esse cami-
nho. Quem, pelo contrário, possui poucos recursos sociais e culturais pa-
rece, sobretudo, sofrer com a perda do futuro progressivo e da capacidade
de propor projetos da primeira modernidade. Para esses jovens, o futuro,
fora de controle, pode ser somente anulado, apagado para dar lugar a um
presente sem fascínio. Nesses casos, como bem descreveu Robert Castel
(1996), refletindo sobre o individualismo contemporâneo, estamos diante
de uma forma de individualismo “por falta”: aqui, o indivíduo não possui
os suportes necessários para construir sua própria autonomia e é expulso
para uma identidade sem espessura temporal. A aceleração social torna-se,
assim, de modo evidente, fonte de exclusão social, traduzindo-se em uma
estaticidade passiva.
A maior parte dos jovens, moços e moças, em resposta às condições
sociais de grande insegurança e de risco, encontra refúgio sobretudo em
projetos de curto ou curtíssimo prazo, que assumem o “presente estendi-
do” como área temporal de referência. Reagem ao “tempo curto” da socie-
dade da aceleração com projetos sui generis, que se expressam sobre arcos
temporais mínimos e que, por isso mesmo, parecem extremamente maleá-
veis. Em alguns casos, parecem configurar-se essencialmente como uma
reação à inquietação que a própria idéia de futuro evoca; em outros, assu-
mem as características de formas projetivas marcadas pela concretude – em
geral ligadas à conclusão positiva de atividades já iniciadas – capazes de
responder tanto à necessidade de assenhorear-se do tempo biográfico em
um ambiente veloz e incerto, como à pressão social por resultados a curto
prazo. Nesse último caso, a tipologia dos “projetos curtos” aparece como
um tipo de “terceira via” entre a capacidade especial de gestão da complexi-
dade, própria do primeiro tipo de orientação biográfica que analisamos, e a
referência exclusiva ao presente daqueles que não conseguem construir rea-
ções adequadas mediante o crescimento da indeterminação do futuro. A
concentração em uma área temporalmente delimitada permite, com efeito,
a construção de uma vivência do tempo como campo unificado e contínuo,
subjetivamente controlável; por sua vez, o domínio sobre os tempos da
vida é buscado, não por meio da elaboração de metas temporalmente dis-
tantes (objetivo irrealista na sociedade da incerteza), mas em seu exercício
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RResumo
Abstract
Towards a new meaning of the future: social change, youths and time
If, on the one hand, the ‘first modernity’ built the meaning of the future as a time for
experimentation, on the other hand, the “second modernity” sees it as an uncertain
dimension, as a potential limit more than a source of resources. This new semantic
format also configures, in a profound manner, the ways and forms with which juve-
nile biographies are defined. While a “life project” constitutes less and less of the
principle that can structure biographies in an ever ‘presentified’ period as that of
contemporaneity, new modalities of relationship with the future (and with time) are
drawn up. These forms of temporalization, particularly visible in the construction of
juvenile biographies, however, do not imply the pure and simple loss of a future and
the renunciation of the project as such. As recent researches show, it is quite the
opposite, at least, a part of the juvenile world appears to be actively involved in the
construction of means of mediation between the need for a subjective control over Texto recebido e apro-
future time and the present highly risky and uncertain social environment. vado em 9/9/2005.
Keywords: Future; “Second modernity”; Youths; Biographies; Uncertainty. Carmen Leccardi é pro-
fessora de Sociologia da
Cultura na Faculdade de
Sociologia da Universi-
dade de Milão-Bicocca
(Itália) e dirige, desde
1992, juntamente com
Mike Crang, a revista
Time and Society (Sage).
Entre suas publicações
mais recentes estão Nuovi
orizzonti del tempo (no
prelo) e A new youth?
(2005, organizada por
Elisabetta Ruspini). E-mail:
carmen.leccardi@unimib.it
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O sentido do risco*
Salvatore La Mendola
Tradução de Norberto Luiz Guarinello
A idade moderna inicia-se convencionalmente com a chegada à América, *Este artigo foi publica-
em uma época de descobertas territoriais e científicas1. A modernidade nas- do originalmente em
1999, sob o título “Il sen-
ce, assim, sob o signo do risco: por uma representação de como possa ser a
so del rischio”, no livro
terra e pela disposição em alocar recursos e pôr em jogo a própria existência organizado por Ilvo
para demonstrar essa idéia. Um desafio aos limites da cultura daquele tem- Diamanti, La generazio-
po. Falar sobre risco é, portanto, falar sobre um tema central da cultura da ne invisibile (Milano, Il
modernidade. Sole 24 Ore) (N. E.).
O risco é aqui entendido como uma interpretação do enfrentamento do 1. A viagem é um acon-
perigo na persecução dos objetivos. Em particular, é essa interpretação que tecimento central para o
a cultura dominante na modernidade tem a pretensão de afirmar como tema do risco, tanto que
o próprio termo teve ori-
universal. Em seus traços essenciais, essa idéia sustenta que o perigo deve
gem em ambiente náu-
ser enfrentado em nível individual, potencialmente por todas as pessoas, e tico (cf. Luhmann,
que nenhuma dimensão extra-sensorial de tipo mágico-religioso estrutura 1996). Por definição, re-
o campo da ação. São os princípios do racionalismo individualista e utili- presenta, na narrativa, o
tarista que devem guiar o agente que assume a responsabilidade pelo risco; lugar da experiência, tí-
pica da modernidade,
nesses mesmos princípios se inspiraram os mecanismos sociais de premia-
mas também do classicis-
ção dos melhores, mecanismos fundados sobre a conexão competência-re- mo ocidental: com rela-
gras-sucesso. Em último lugar, mas não certamente em importância, essa ção a esse ponto, ver
perspectiva, exatamente por basear-se nos princípios do racionalismo, re- Ulisses e Eneas ou, mais
quer dos agentes sociais que limitem o espaço da dimensão corporal e próxima de nós no tem-
po e sob outra roupagem,
evitem a emergência das emoções. O termo “risco” tende, ao contrário,
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Sempre portei comigo, pelo fato de ser italiano, um amor agradecido pelas tradi-
ções, assim como um gosto instintivo pela exploração. Talvez seja essa uma carac-
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Realizei entrevistas com pessoas diplomadas com nota 110, com louvor, que ja-
mais teria empregado, pois, de tanto estudarem, haviam se tornado rígidas e volta-
das para si próprias. Desmistifiquei essa coisa [a nota], mas em seguida digo sem-
pre “estudem”, porque, de qualquer modo, uma boa nota sempre é... digamos que,
no momento da pré-seleção, é essencial [...]. Começa-se com 110 com louvor e se
vai descendo. No momento da entrevista, por fim, há grandes desilusões [...] a
nota é um salvo-conduto [...]. [Alguém] com 110 e louvor é a primeira pessoa a ser
convocada, mas depois, no momento da decisão... empreguei também diplomados
com 96 ou 98 cujo desempenho é muito bom, empreguei diplomados com 110
cujo desempenho é também muito bom, mas não é [esse] o elemento que define a
escolha (La Mendola, 1995, p. 209).
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FIGURA 1
Situação no mercado de trabalho dos formados em 1992, três anos após a obtenção do diploma, com base em suas notas
de formatura
trumento de trabalho, que pode ser bem ou mal utilizado [e] não é certo que um
diplomado esteja destinado ao sucesso ou à glória (Idem, p. 225).
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TABELA 1
Jovens que, nas diferentes pesquisas, declaram preferir um trabalho autônomo
1983 1987 1992 1996
59 57 62 56
TABELA 2
Parcela da população que declara preferir um trabalho autônomo
1985 1997
62 60
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lheres à violência no plano sexual, mas chega a pôr em risco sua própria
vida. Com freqüência crescente verificam-se homicídios nos quais elas são
vítimas de seus ex-maridos ou noivos: a autonomia demonstrada pela deci-
são de não aceitar a continuação de relações conjugais insatisfatórias acaba
sendo punida, ao sofrerem a violência de homens deslocados por mulheres
que aceitam correr esses perigos ao perseguir a construção de uma subjetivi-
dade própria e autônoma. Mesmo o aumento das práticas de sedução, in-
trinsecamente arriscadas, em particular nos ambientes menos submetidos
às regras do controle social, como, por exemplo, nas discotecas, mostram
essa demanda de poder e autodeterminação: trata-se de encontros que po-
dem resultar em um flerte ou em relações mais duradouras, mas que ex-
põem as mulheres a possíveis atos de violência por parte de homens desori-
entados ou pouco dispostos a experimentar relações no limite, sob novas
definições das normas de respeito e de boa conduta, novas formas de víncu-
los sociais entre os gêneros. Tais perigos, contudo, não são obviamente sufi-
cientes para que essas mulheres, jovens ou não, renunciem à tentativa, prag-
mática, de construir suas próprias identidades autônomas. Trata-se de uma
presença no tempo e no espaço que inevitavelmente comporta perigos e,
portanto, o ato de assumir riscos, mas que gera a possibilidade de afirmação
como pessoa. É importante ressaltar que esse comportamento não deve ser
lido como irresponsável, sobretudo porque emerge de várias fontes o fato
de que as mesmas mulheres põem em ação diferentes estratégias para redu-
zir o perigo e aumentar a segurança.
As tentativas de afirmação de um eu próprio livre e responsável atraves-
sam percursos que, por definição, comportam um aumento do nível de pe-
rigo. É igualmente verdade que, por vezes, tal processo se inscreve em pro-
cedimentos de tipo autodestrutivo. Mas o perigo está estruturalmente
presente em muitas práticas totalmente legítimas do ponto de vista social. A
atividade esportiva é um dos grandes ritos pelo qual nossa sociedade assina-
la a importância de respeitar as regras, indicando, ao mesmo tempo, o vín-
culo entre empenho-competência e resultados bem-sucedidos. É uma ati-
vidade reconhecida como o lugar da saúde física e moral, e por isso, por
exemplo, freqüentemente indicada como remédio e alternativa à depen-
dência química. As pesquisas (Tabela 3), no entanto, mostram que as ativi-
16. Tenha-se em mente
dades esportivas são precisamente uma das atividades que mais produzem
que esse percentual diz
acidentes: nada menos que dezesseis jovens em cada cem16 sofreram aciden- respeito a todos os jovens,
tes graves nos três anos anteriores à entrevista, aos quais poderíamos acres- mesmo aqueles que não
centar os 2% que sofreram acidentes em montanhas. Ninguém pensaria em praticam esportes.
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dizer, contudo, que o esporte faz mal à saúde e, assim, em vetar esse tipo de
17. Recorde-se que, risco, na medida em que, a partir do nascimento do “espírito” olímpico17, a
dentre os “eventos me- modernidade confere ao esporte a função de socializar as novas gerações
diáticos”, as Olimpíadas pelo vínculo competência-regras-sucesso.
são o exemplo emble-
Esses dados sobre o esporte levantam em primeiro lugar a questão de a
mático da “competição”.
que riscos é atribuído valor pela “cultura central” de nossa sociedade e, de
maneira mais geral, quem possui o poder de decidir quais riscos são passí-
veis de serem corridos legitimamente. O tema do esporte relembra-nos, de
maneira similar, uma dimensão simbólica de maior alcance, que é impor-
tante mencionar.
TABELA 3
Acidentes extradomésticos graves ou moderadamente graves nos três anos anteriores à entrevista
18. Os trabalhos de Ma- Pensemos num programa de televisão como Quelli che... il calcio, que teve
ry Douglas, em particu- o mérito, como poucos outros, de desdramatizar a seriedade do futebol ita-
lar Purezza e pericolo liano. Pois bem, nesse programa de grande sucesso, construído, ao menos
(1993) são referências
como pretexto, em torno do tema do futebol – que, por definição, deveria
para o aprofundamento
dessa observação. celebrar o nexo competência-regras-sucesso (um fator fundador da cultura
“moderna” do risco) –, proliferam símbolos e comportamentos muito próxi-
19.Nome adotado para
definir a equipe de fu-
mos a outras cosmogonias, aquelas que de modo apressado denominamos
tebol que representa o “tradicionais”18. No programa, por meio do código da ironia, assiste-se a uma
programa. multiplicação de práticas de tipo apotropaico. É emblemática a competição
20. E não apenas no entre Peter Van Wood, que prognostica os resultados das partidas com base
mundo esportivo, já que na astrologia, e Van Goof19, uma coruja (gufo) que representa o azar. Basta
se observa também com observar os gestos de esconjuro com que reagem os torcedores dos times diante
certa freqüência no am- de prognósticos favoráveis, ou mesmo as acusações de trazer azar feitas con-
biente político, desde o
tra vários personagens, em particular religiosos (verdadeiros ou falsos). De
episódio mais recente
ocorrido durante o ju- resto, no mundo esportivo, esse tipo de prática é largamente recorrente20:
ramento do governo veja-se quantos esportistas efetuam gestos rituais antes e após as partidas, ou
D’Alema, até aquele de mesmo o treinador da seleção italiana, Cesare Maldini, que durante o cam-
peonato mundial de futebol na França (1998) se virava para não olhar a Ciampi no Parlamento
marca de pênalti e evitava atrair o mau-olhado, com um comportamento de e os “velhos” gestos do
presidente Leone.
tipo apotropaico. Assim, em um contexto que deveria ser de celebração do
nexo competência-regras-sucesso aparecem furtivamente modelos de ges-
tão das incertezas relacionados com cosmogonias de tipo mágico-religioso.
Por um lado, isso pode ser lido como o fracasso dos sistemas de explicação
racional – a queda da “presença” de que fala De Martino (1996) –, mas, por
outro, pode ser interpretado como um sinal da incapacidade de o sistema
de explicação racional compreender a dimensão emocional dos agentes en-
volvidos nas séries arriscadas de ação. Na falta de esquemas interpretativos
que envolvam a dimensão emocional na explicação racional, os sujeitos vol-
tam-se para os únicos sistemas simbólicos disponíveis, ainda que socialmente
considerados atrasados e carregados de descrédito.
De modo mais geral, essa mesma perspectiva induz-nos a perguntar como
os jogos de azar podem ter tanto sucesso – e não apenas na Itália. Em suas
diferentes formas21, os jogos de azar caracterizam-se pelo fato de o jogador 21.Seria interessante
desafiar a sorte contra as probabilidades racionais de vencer. Há jogos de azar refletir sobre os efeitos
nos quais ainda subsiste algum tipo de competência; em outros, ao contrá- degenerativos induzidos
pela transformação dos
rio, como nas loterias, tudo é confiado ao acaso, ou seja, a um modo de atri-
programas de pergun-
buir o sucesso que deveria ser estranho ao sistema simbólico celebrado pelas tas e respostas na tele-
premissas da modernidade. Seria simplista liquidar a questão aplicando-lhe visão. Sobre isso, ver
a etiqueta de irracionalidade, assim como não podemos posicionar todos os Stella (1999).
que praticam jogos de azar na categoria de “jogadores patológicos”, que au-
mentam os riscos reais para sua vida, em vez de aprender modalidades de
enfrentamento de riscos em formas socialmente controladas (cf. Sarchielli e
Dallago, 1996, p. 173). Com efeito, quem se relaciona eventualmente com
o acaso por meio do jogo de azar é diferente daquele que “abusa” de tais expe-
riências, tornando-se dependente desse tipo de desafio. De resto, mesmo nos
jogos de azar pode-se, em todo caso, reconhecer a “celebração da autodeter-
minação” de que fala Goffman (1971): o jogador encontra-se em uma situa-
ção na qual não possui, por si mesmo, senão poucas probabilidades de obter
o resultado desejado. Desse modo, demonstra, para si e para suas referências
sociais, que possui caráter, que não se detém diante de situações de perigo,
que sabe assumir suas próprias responsabilidades. Deve ser dito, além disso,
que, se nos jogos de azar é demonstrável em termos matemáticos que as pro-
babilidades racionais são contrárias ao jogador, nos contextos de risco práti-
cos é difícil estabelecer quais são as probabilidades racionais; dispomos, com
efeito, apenas de uma racionalidade fraca ou de tipo processual e é fácil con-
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fundir como “jogo de azar” o que, na seqüência, será reconhecido como ino-
vação. É bom, portanto, ter cautela ao considerar equivalentes, conceitual-
mente, a prática do risco e a dos jogos de azar: trata-se, antes, de analisar as
razões do azar, sem liquidá-lo com falsos moralismos, mesmo aqueles de tipo
22. A esse respeito, o an- racionalista.
tropólogo Clifford Geertz Um tema central nesse contexto é o do consumo de álcool e tabaco, ou o
apresenta uma importan- uso de outras substâncias que modificam a percepção de si e/ou do mundo –
te observação: “A concep-
tema sobre o qual, por sua delicadeza, complexidade e diferenciação interna,
ção ocidental da pessoa
podemos apenas fazer breves referências neste artigo. O uso e o abuso dessas
como um mundo moti-
vacional e cognitivo har- substâncias representam um dos aspectos de maior alarme para a opinião pú-
mônico, único, mais ou blica e para os governos, com diferentes ênfases segundo as circunstâncias, os
menos integrado, como períodos e as épocas históricas. É um assunto difícil de tratar, pois suscita
um centro dinâmico de alinhamentos em grande medida preconcebidos e preconceituosos, sendo um
consciência, emotividade,
dos que mais consistentemente explicitam o vínculo que subsiste entre risco e
juízo e ação organizado
num conjunto distinto e moral. E é também um fenômeno social que apresenta sinais discordantes,
contraposto aos demais tendo em vista o aumento da disposição à embriaguez e ao uso daquela que é
conjuntos semelhantes e comumente denominada de “droga leve” (Buzzi, 1997b) e a redução do con-
ao seu entorno social e sumo de tabaco que se registrou nos últimos anos (mesmo sendo uma redução
cultural é, por mais es-
que afeta menos os jovens do que outras faixas da população). Para interpretar
tranho que possa parecer,
uma idéia um tanto pe-
o uso e o abuso de tais substâncias, seria necessário compreender esses com-
culiar no contexto das cul- portamentos no contexto de uma ampla análise da cultura. A cultura ociden-
turas mundiais” (Geertz, tal, cujas raízes mergulham na tradição judaico-cristã, propõe, com efeito, a
1988, p. 76). exigência da coerência pessoal22, uma exigência que pode facilmente ser atri-
23. A referência é, ob- buída à posição monoteísta dessas tradições. Por essas razões, as experiências
viamente, a obra de Max de transe, tanto de tipo extático como dionisíaco, nas quais variadas formas de
Weber; para um com- vertigem – como as define Caillois (1981) – são experimentadas, são vistas
pêndio, ver Stella (1994,
com suspeição e progressivamente marginalizadas. No âmbito do cristianis-
1996).
mo, essa perspectiva teve seu momento supremo na afirmação do calvinismo,
24. No mundo católico,
para o qual a busca de coerência devia ser um impulso válido para todos os
a falta de coerência é
certamente mais tolera-
crentes e não apenas para uma elite que a praticasse por uma via mística extra-
da, como demonstra, mundana, fora da vida profana, em um mundo separado23. Dessa maneira, a
acima de tudo, o sacra- via mística para a fé, que se abria para formas de transe, para experiências do
mento da confissão e, de “totalmente outro” vividas por meio do corpo, foi proibida, mantendo certa
modo mais geral, o re- dignidade apenas em âmbito católico, embora mesmo nesse ambiente tenha
duzido grau de mono-
sido progressivamente marginalizada24.
teísmo que deriva da ve-
neração aos santos e da A interpretação leiga e racionalista move-se na mesma direção. O pro-
proliferação das diferen- cesso da civilização ocidental tem como núcleo central o controle da agres-
tes faces da Virgem. sividade e das emoções em geral, pelos efeitos de imprevisibilidade e, por-
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26. Nos últimos anos, esse período de celebração de uma nova divindade, o ego, acabar sendo – para-
tema conheceu desenvol- doxalmente – também a fase histórica da dissolução da idéia de sua unida-
vimentos notáveis; ver,
de. Com a redução do impulso à coerência pessoal, muitos se voltam para
pelo menos, Tart (1977);
Lapassade (1976); Mar- aquele conjunto de procedimentos que as tradições orientais codificaram
gnelli (1996); Zolla em suas cosmogonias e disciplinas com o nome de “meditação”. Símbolos e
(1998). técnicas que, na realidade, não são exclusivos daquelas culturas, e que, em
27. Já havíamos feito algumas tradições ocidentais, com efeito, se encontram reduzidos a uma
menção ao fato no capí- posição subalterna à cultura dominante, mas sem serem jamais completa-
tulo sobre risco no “Se- mente anulados.
condo Rapporto del O uso de substâncias assinalaria, assim, uma redução da disposição –
Centro Nazionale di Do-
ou uma impossibilidade – de enfrentar o desafio proposto pelas experiên-
cumentazione ed Anali-
si sull’Infanzia e l’Ado- cias possíveis de si mesmo (cf. Markus e Nurius, 1986), mediante o sim-
lescenza” (1997), ao ples apelo à ação de um superego que possibilitasse à personalidade de
qual, de bom grado, re- cada um manter um todo coerente, ou pelo confinamento dessas expe-
metemos. riências a contextos sociais institucionalmente controlados.
28. Esse impulso à afir- Trata-se, em particular, de uma dificuldade ligada à sistematização da-
mação da caracterização quelas dimensões pessoais que não são reconhecíveis por meio da reflexão
da identidade individual
(racionalista) sobre si mesmas (cf. Selman, 1980) – daquele “parar para
pode ser visto como uma
vingança das téchnai ori-
pensar” que a tradição humanística considera a via mestra da construção
ginais contra a ação dos da identidade –, mas cognoscíveis apenas por meio da experimentação.
portadores de pulsão po- Assim, tende a ser relegitimada a busca de experiências de (outros) estados
lítica, da centralidade da da consciência, de transe, e ao mesmo tempo são incentivadas tentativas de
cidadania e da sociedade outra elaboração conceitual e também performativa26.
(cf. Gilli, 1988, 1994).
Estaríamos, portanto, diante da multiplicação dos indícios de que a ten-
29. Em nossa civilização, tativa de excluir a dimensão emocional do horizonte da cultura, por sua
toda vez que o corpo
periculosidade para a vida social, pela agressividade e pela falta de confiança
emerge, pedem-se descul-
pas – como após um ar- que provoca, atingiu seu esgotamento. Resultado que não podemos consi-
roto – ou emprega-se um derar inesperado se prestarmos atenção ao grande impulso que a moderni-
ritual propiciatório-apo- dade deu à afirmação do si-mesmo, do próprio potencial. Os modelos de
tropaico, como dizer “saú- socialização27 contemporâneos que conferiram – ou, ao menos, declararam
de” ou “Deus te crie” após
querer conferir – um espaço cada vez maior às características individuais
um espirro. Manifestar si-
nais com o corpo, como
moveram-se nessa direção28, incitando seus agentes e, em primeiro lugar,
coçar a cabeça, gesticular os pais, a respeitar a psicologia, as emoções e as inclinações dos mais jovens.
ou, por exemplo, mostrar O esgotamento do impulso para uma civilização fundada no controle das
a língua quando se exe- emoções e na redução do espaço do corpo29 propõe, de forma renovada, a
cuta uma tarefa obrigató- explosão de si-mesmos múltiplos e induz a procurar o caminho de saída de
ria, é sinal de má educa-
uma idéia e de um projeto pessoal que encontraram na modernidade sua
ção, aceitável nas crianças
máxima expressão.
Interpretar esse conjunto de fatos como a afirmação de impulsos de tipo que, no entanto, devem
ritualístico-narcisístico30 resolve, certamente, uma parte da questão, mas ser repreendidas para que
aprendam as boas manei-
concentra a própria análise exclusivamente nas respostas, e não nas deman-
ras. Um livro já clássico
das subentendidas, deixando-se, assim, ofuscar pela parte mais visível do sobre o tema é Galimberti
fenômeno e perdendo a oportunidade de identificar respostas alternativas (1993).
àquelas demandas por sentido que permanecem à mercê dos ofertantes 30. Como fez, por exem-
mais caducos e, com freqüência, mercantilizantes. Essa leitura, ao mesmo plo, Lasch (1981).
tempo, não permite perceber como há um impulso à experimentação dos
limites subjetivos por trás desses comportamentos. É claro que o uso de
substâncias que modificam a percepção de si e do mundo representa um
atalho com maior ou menor grau de periculosidade, e que o perigo deve ser
levado a sério. Mas levar a sério o perigo significa, ao menos para quem tem
responsabilidades coletivas e educativas, não entrar em pânico nem dar es-
paço ao delírio da onipotência: quando se está em pânico, é difícil tornar-se
um ponto de referência e fazer as escolhas adequadas; já o delírio da onipo-
tência nos faz pensar que podemos enfrentar qualquer perigo e, assim, assu-
mir uma lógica de jogo de azar que facilita os percursos destrutivos.
Algumas diferenciações
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38.Ver a respeito Min- de tipo germânico ou italiano38. São modos distintos de interpretar a cons-
gione (1997). trução das redes de proteção e, portanto, culturas distintas de elaboração do
risco. Isso significa, por exemplo, que o impacto da assim chamada cultura
New Age é necessariamente diferente em ambientes cujos princípios de
convivência social são imbuídos de puritanismo, se comparados àqueles
como dos católicos, nos quais, ainda que na forma de uma cultura subalter-
39. E, poderíamos acres- na39, de religiosidade popular, se manteve um espaço significativo para a
centar, não apenas no dimensão das emoções, do corpo e da duplicidade da pessoa.
nível da cultura subal-
terna, tendo em vista a
Observações não conclusivas
importância da icono-
grafia na cultura religio-
sa oficial. Ver, a propó- Como o Mickey Mouse aprendiz de feiticeiro do filme Fantasia de Walt
sito, a deixa oferecida Disney, nossa cultura evocou poderes sobre os quais não consegue propor
por Stone (1969). formas de regulamentação convincentes. Infelizmente, não existe nenhum
mágico experiente, nenhum mestre que, mesmo lançando um “olhar seve-
ro”, possa vir em nosso auxílio e devolver-nos a confiança. É possível, con-
tudo, empenhar-se na proliferação de contextos nos quais funcionem pro-
vas fortes, desafios significativos que produzam emoções relevantes para os
protagonistas, de modo a associar sujeitos dispostos a obedecer a esses pro-
cessos. Sujeitos sem delírio de onipotência e sem comportamentos precon-
ceituosamente demonizantes ou justificatórios.
Solicitar e despertar os carismas para, em seguida, não oferecer oportu-
nidades reais para demonstrá-los significa favorecer a emergência de per-
cursos de tipo catastrófico. Na maioria dos casos, as expectativas encontra-
rão igualmente espaços de expressão em dinâmicas infrutíferas, estetizantes
ou anestésicas para a descarga das emoções que produzem. Ou mesmo, na
ausência de alternativas, serão expressadas por meio de rituais e de simbo-
lismos de tradições facilmente veiculadas pela moda, como no caso das
40.Para uma leitura formas mais comerciais da New Age40.
crítica e cuidadosa do As pesquisas Iard, com efeito, mostram um decréscimo das associações
fenômeno, ver Lodi de caráter político e um aumento daquelas ligadas ao voluntariado (cf.
(1998).
Albano, 1997). Tal impulso demonstra a pouca disposição dos jovens –
mas não apenas deles – de esperar longas cadeias de interdependências
entre a própria ação e a ação dos demais agentes, até verem realizado um
determinado objetivo. A desconfiança e a desilusão com relação aos meca-
nismos institucionalizados de persecução de objetivos, e portanto aos me-
canismos institucionais de risco, estimulam a adoção de percursos dos quais
“se conheçam os resultados no próprio contexto da experiência” (Goff-
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mecanismos sociais. O fato de que, na Itália, não seja válida a relação entre
posse de um diploma, sucesso escolar e sucesso no mercado de trabalho –
ou seja, que exista o fracasso da afirmação das credenciais –, configura-se,
nesse sentido, como um impulso crucial para a determinação de dinâmicas
de desconfiança. O impulso para arriscar-se trabalha, de qualquer modo,
no interior das personalidades; permanece a necessidade de demonstrar o
próprio valor a si mesmo e aos outros, ainda que com características de
tipo narcisístico ou exibicionista. Esse impulso realiza-se de modo bastan-
te integrado com o corpo, por meio de códigos que manifestam direta-
mente os vínculos sociais e exprimem pragmaticamente o fracasso das pro-
messas buscando, mesmo sem um projeto, construir nas interações face a
face vínculos sociais que possam perdurar ainda que apenas no aqui e
agora. Desse ponto de vista, assumem grande importância os círculos so-
ciais dos pares, que por vezes algum observador apressado chama de “ban-
do”, esquecendo que todo sistema simbólico se funda e se reafirma em
relações diretas, face a face, na microrritualidade da vida cotidiana: é nesse
contexto que cada um constrói sua própria imagem e sua própria reputa-
ção; dinâmica ainda mais importante em uma sociedade constituída a par-
tir do capital social e de relações, a partir do estilo. No entanto, ninguém
chamaria de “bando” os amigos do grupo de tênis ou os participantes de
um salão, embora a dinâmica não seja muito distinta. No máximo, pode
ser verdade que, ao menos na realidade italiana, os círculos sociais de per-
tencimento ou de referência funcionassem no passado com maiores aber-
turas para o contato entre as gerações, enquanto hoje a segmentação em
faixas etárias é mais demarcada.
Deve-se afirmar, contudo, que não é mais suficiente pensar em reviver –
ou afirmar pela primeira vez – regras precisas para tentar ser um “país nor-
mal”. Trata-se de ultrapassar a separação entre racionalismo e emoções, e até
mesmo aceitar o desafio – como sugeria Fachinelli (1989) – das experiências
41. Sem cair, por outro
lado, no erro de inter-
de êxtase, sem por isso renunciar a tudo que a racionalidade produziu em
pretar a aceitação desse nossa cultura41. Nesse quadro, a era da divisão funcional dos papéis entre
desafio como uma con- regras racionalistas masculinas e cuidado/acolhimento femininos já passou,
tramodernização e um bem como o modelo de civilização fundado no controle-limitação da di-
retorno ao “reencanto”, mensão corpórea: a separação entre o racionalismo do professor de fonética
como fazem, por exem-
Higgins e o calor humano do coronel Pickering de Pigmalião não produz
plo, Berger e Kellner
(1991), claramente apa- menos danos que a separação entre as boas e civis maneiras do doutor Jekyll
vorados diante dessa e as selvagens emoções de mister Hyde. De certo modo, paradoxalmente, as
perspectiva. realidades consideradas mais atrasadas, mais ancoradas nas tradições, menos
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Resumo
O sentido do risco
O risco é um tema central da cultura da modernidade. A cultura dominante na mo-
dernidade tem a pretensão de afirmar como universal a idéia de que o perigo deve ser
enfrentado segundo os princípios do racionalismo individualista e utilitarista, que de-
vem guiar o agente que assume a responsabilidade pelo risco. O risco adquire forma e
relevância particulares para a fase juvenil na medida em que representa um processo de
construção, experimentação e afirmação da própria identidade. Um processo cada vez
mais fragmentado e ambíguo que, atualmente, realiza-se por meio de um alongamen-
to da transição à vida adulta no âmbito de uma dinâmica geral de desinstitucionaliza-
ção do curso da vida. Está em jogo aqui outro impulso típico da modernidade: o da
reflexividade que, como sugere Giddens, é o desafio crucial da fase radical da moder-
nidade. Podemos reconhecer nas ações dos jovens, em particular precisamente naque-
las de tipo arriscado, a realização do imperativo de duvidar: por meio de seu agir,
cancelam a suspensão da dúvida e realizam uma forma pragmática de reflexividade. A
modernidade radical encontra-se diante de desafios. Tem, antes de tudo, a necessidade
de identificar palcos para a construção e a experimentação pragmática de dinâmicas de
confiança. Deve, além disso, mostrar-se capaz de consentir no aumento do poder
decisório dos sujeitos, inscrevendo o emprego de tais poderes em vínculos sociais que,
além de demonstrarem-se efetivamente eficazes e não ambivalentes, consigam, ao mesmo
tempo, levar em conta tanto a dimensão emocional como as necessidades de confiabi-
lidade relacional das pessoas envolvidas.
Palavras-chave: Modernidade; Sociologia da juventude; Risco; Reflexividade.
Abstract
The meaning of risk
The risk is a central theme of the culture in modernity. The dominant culture in
modernity has the pretension of affirming as universal the idea that dangers should be
faced according to the principles of individualistic rationalism and utilitarianism that
should guide the agent that takes the responsibility for the risk. The risk assumes form
and relevance for the juvenile phase in the measure as it represents a construction
process, an experimentation and statement of one’s own identity. A process more and
more fragmented and ambiguous that takes place through a prolongation of the tran-
sition to the adult life in the extent of a general dynamics of de-institutionalisation of
life. What is at play here is another typical demand of modernity: the one for reflexiv-
ity, as suggested by Giddens, it is the crucial challenge of the radical phase of moder-
nity. We can recognize in the youths’ actions, and precisely in those of a risky kind,
the accomplishment of the imperative of doubting: through their acts, they suspend
the suspension of the doubt, they accomplish a pragmatic form of reflexivity. The
radical modernity produces a challenge. It has to be able to identify the proper stages
for the construction and pragmatic experimentation of dynamics of confidence. It has
to afford the empowerment of the agents, inscribing the use of such powers in social
bonds that, besides being demonstrably effective and no ambivalent, do take into
account as much the emotional dimension as the needs of the involved confidence in
people’s reliability.
Keywords: Modernity; Sociology of youths; Risk; Reflexivity.
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A geração dos anos de 1960
o peso de uma herança
Irene Cardoso
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A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107
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A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107
5. Indicativo da combina- eles não foram homogêneos, apesar de apresentar questões comuns e ter
ção entre as expressões um perfil jovem. A contracultura aconteceu como movimento preponde-
contraculturais e as mais
rantemente nos Estados Unidos, embora traços dela tenham estado pre-
propriamente políticas é
o trecho do manifesto afi- sentes em outros países. Os movimentos de caráter mais político também
xado à entrada principal tiveram traços contraculturais, assim como os movimentos contracultu-
da Sorbonne, em maio de rais, que, embora rejeitassem fortemente as maneiras de fazer política de
1968, do qual restou seus jovens contemporâneos, também se viam fazendo política a seu modo.
como mais conhecida a
Assim, “mudar a vida” condensa uma diversidade de significados e esteve
frase final, como lema de
1968: “A revolução que
presente como ideal em vários lugares, tanto nas práticas cotidianas como
está começando questio- nos ideais sociais, políticos, culturais e éticos alternativos aos existentes.
nará não só a sociedade Os movimentos contraculturais, que irromperam com força nos Esta-
capitalista como também dos Unidos, direcionaram suas formas de expressão para a política, as artes
a sociedade industrial. A (na poesia, na música, no cinema, nas artes plásticas), a educação, as rela-
sociedade de consumo
ções intersubjetivas (na família, no amor, no sexo, na comunidade) e para o
tem de morrer de morte
violenta. A sociedade da cotidiano como contestação aos efeitos produzidos pela sociedade indus-
alienação tem de desapa- trial avançada, pela “tecnocracia”5. Na sua forma “organizacional” mais de-
recer da História. Estamos senvolvida, caracterizada pelos processos de racionalização em grande esca-
vivendo um mundo novo la, pela eficiência, pela modernização, pelo planejamento, a sociedade
e original. A imaginação
norte-americana (a que melhor realizou esse modelo), instaurando a era da
está tomando o poder”
(Roszak, 1972, p. 33). “engenharia social”, ampliava a administração para além do núcleo econô-
mico-industrial. O modo de vida, o lazer, a educação, a política, a cultura
6. Esse tipo de análise,
com algumas diferenças,
como um todo tornavam-se administráveis e administrados6.
foi desenvolvido em 1968 Talvez se possa dizer que o conflito de gerações sob a contracultura
e 1969 por Roszak (1972), tenha sido mais acentuado. A ruptura com a geração anterior teria sido
Birnbaum (1968) e Le- mais radical, especialmente no que se refere às experiências com as drogas
febvre (1968), e já vinha psicodélicas, ao misticismo oriental e às vivências em comunidade, expe-
sendo construída por Mar-
riências que, embora remontem a tradições anteriores, ao estarem articula-
cuse (1967), em 1964. Es-
critas no momento em das em movimentos coletivos de contestação a certo modo de vida, com
que aconteciam os movi- produções na literatura, na música e nas artes plásticas, podem ser consi-
mentos, essas análises têm deradas uma invenção dos anos de 1960. Essa geração empreendeu a bus-
o caráter de textos analíti- ca de novas formas de sensibilidade que se tornaram radicalmente críticas
cos, de referências para o
em relação às da geração de seus pais, que era considerada aprisionada a
pensamento e as ações
contraculturais naquele
uma rotina conformista. Birnbaum constrói uma reflexão sobre essa ques-
contexto histórico, cons- tão que vale a pena ser incorporada:
tituindo-se, ao mesmo
tempo, em verdadeiros [...] a geração oriunda da elite da sociedade industrial e de sua intelligentsia técnica
documentos da época. Os negou tanto a legitimidade quanto a eficácia dos métodos de ensino que seguiu.
livros Eros e civilização, de
Passou do descontentamento e da desobediência para a revolta. Fazendo isso, não
hesitou em estender sua campanha contra as instituições políticas centrais da socie- Marcuse, de 1955, e Vida
dade. Podemos notar de passagem que ela freqüentemente indicou, pelo estilo das contra morte, de Norman
Brown, de 1959, que
relações interpessoais que adotou, por seu comportamento e sua maneira de vestir,
abordavam preponderan-
o seu desprezo para com as convenções seguidas por seus pais. Resumindo, aqueles temente a questão da sub-
a quem a sociedade industrial oferecia perspectivas de futuro assegurado voltaram- jetividade por meio de
lhe as costas e procuraram avançar para o desconhecido: para uma hipotética co- uma leitura da psicanáli-
munidade de justiça, de razão e de alegria (1968, p. 195). se, também foram referên-
cias importantes para o
movimento contracultu-
Afirmar que uma experiência de revolta marcou essa geração e que seu ral (cf. Marcuse, 1968;
traço foi a transgressão dos valores estabelecidos não significa que essa ex- Brown, 1972).
periência tenha sido generalizada, nem inteiramente originária nos anos de
1960. A noção de traço, entendida na acepção de uma marca distintiva,
permite, a partir da identificação de sua presença ou ausência, explicitar
momentos em que a geração dos anos de 1960 poderia ser caracterizada
como uma experiência de revolta, assim como outros em que essa expe-
riência estaria ausente. A possibilidade dessa percepção é importante na
medida em que permite questionar o mito que foi sendo construído sobre
essa geração, quando sua imagem se congela na forma de uma unidade
imaginária.
A experiência de revolta tal como está sendo pensada é, antes de tudo,
um movimento de questionamento de limites estabelecidos, negando, rein-
terpretando e projetando valores. Nesses termos, pode ser considerada um
movimento de “desidentificação permanente”, de revolta contra as identi-
dades, e de afirmação de outros limites (valores). A revolta não se confundi-
ria nem com a negação absoluta (a revolta absoluta), como já foi dito, o que
levaria a uma abolição de limites a partir de uma “liberdade ilimitada do
desejo” (de um “gozo pleno”), nem propriamente com a revolução que, ao
pautar-se pelas ideologias do consentimento unânime, trairia suas origens
revoltadas. A experiência de revolta não pode estar desprovida, ainda, de
memória, que permitiria a criação de uma tensão permanente, necessária ao
exame dos acontecimentos na história, entre o que seria revolta e o que seria
“traição da revolta” – a petrificação de um consenso ou a inexistência de
qualquer referência à lei, a algum limite, ambas situações que podem estar
na raiz das sociedades autoritárias e mesmo totalitárias. Há uma passagem
do livro de Camus (1997) que resume bem essa questão:
novembro 2005 99
A geração dos anos de 1960: o peso de uma herança, pp. 93-107
teria havido uma repetição. O que houve, do ponto de vista de uma con-
tinuidade, constituiu-se em leituras e releituras dessa tradição, reinterpre-
tações, críticas, deslocamentos, nos termos em que se definiu o movimen-
to da herança, em que está pressuposta uma separação.
Os movimentos dos anos de 1960 foram marcados por uma caracterís-
tica que pode ser considerada inédita em relação à geração precedente: sua
irrupção quase simultânea no plano internacional. Embora guardassem as
especificidades de suas realizações singulares, tiveram, sem dúvida, os tra-
ços de uma contestação do poder nas suas diversas manifestações. Aten-
tando para as referências mais significativas, sem esgotá-las, pode-se dizer
que a contestação visava desde ao poder de Estado, em especial sua mani-
festação militar na guerra do Vietnã, passando pelo poder universitário em
inúmeras universidades do mundo, até a suas manifestações em vários âm-
bitos da cultura e da subjetividade: o poder médico sobre o doente, o
poder psiquiátrico sobre o doente mental, o poder masculino sobre as
mulheres, o poder paterno sobre os filhos, o poder dos adultos sobre os
jovens, o poder da moral tradicional sobre os costumes e os comportamen-
tos. Vários desses movimentos, que mobilizaram temáticas que guarda-
vam uma proximidade maior ou menor com suas tradições de revolta,
ainda que tivessem uma dimensão internacional, não foram, de modo al-
gum, homogêneos. Atravessados por divisões e disputas de caráter político
e ideológico, não se constituíram como movimentos identitários. Essas
divisões e disputas em certos casos significaram orientações dos movimen-
tos ou de parte deles, que não tinham propriamente um conteúdo de re-
volta, mas expressavam reivindicações direcionadas a uma maior inclusão
na sociedade. Os movimentos estudantis, mesmo os de maio de 1968,
manifestaram esse tipo de divisão: desde a posição radical de negação da
universidade burguesa até posições de modernização da universidade que 9. Sem poder tratar dessa
questão em outras mani-
visavam a uma maior inclusão dos egressos, em um momento em que já
festações, é preciso ao
era visível a situação de “perda de valor da escola” e de incapacidade de
menos fazer referência ao
absorção pelo mercado de trabalho de uma qualificação em massa (cf. movimento operário, que
Rossanda, 1971; Morin, 1968; Touraine, 1968)9. no “maio de 1968” apre-
Destacar a historicidade desses movimentos, seja do ponto de vista de sentou esse tipo de divi-
sua linhagem e filiação, seja da não-homogeneidade de suas realizações, é são, e aos movimentos da
contracultura, que, pela
importante para acentuar, em contraposição, o processo de construção dos
sua quase imediata absor-
mitos dos anos de 1960, que se inicia já em 1968-1969. Esse processo de ção pelo “sistema”, reve-
depurar os movimentos de sua história, construindo identidades onde antes laram com força o aspec-
havia concepções heterogêneas e conflitantes, construindo o mito até o li- to de adaptação.
TRIGO, Maria Helena Bueno. (1997), Espaços e tempos vividos: estudo sobre os códigos
de sociabilidade e relações de gênero na Faculdade de Filosofia da USP (1934-1970).
Tese de doutorado, São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma-
nas da Universidade de São Paulo.
Resumo
A geração dos anos 60: o peso de uma herança
O artigo propõe analisar o peso desmedido da herança da geração dos anos de 1960
sobre a geração de jovens de hoje. Procura destacar a historicidade dos movimentos
dessa década, seja do ponto de vista de sua linhagem e filiação, seja de sua não-homo-
geneidade, com o objetivo de compreender o processo que construiu, ao longo do
tempo, o mito dos anos de 1960 e a figuração identitária de sua geração, diluindo a
complexidade, a heterogeneidade, os conflitos, as heranças e a contextualização histó-
rica dos movimentos. A identificação das gerações posteriores com o mito da geração
dos anos de 1960, que tem se manifestado episodicamente, indica um aprisionamento
das gerações mais jovens pela imagem de uma identidade heróica da geração anterior,
indicativo da ausência de um movimento de separação entre as gerações, e portanto da
produção de uma diferença geracional, e das dificuldades de recebimento da herança,
isto é, da possibilidade do encontro de uma filiação.
Palavras-chave: Geração dos anos de 1960; Experiência de revolta; Movimentos polí-
ticos e contraculturais; Transmissão da herança; Filiação.
Abstract
The 60’s generation: the weight of an inheritance
The article aims at analyzing the excessive weight of the inheritance of the 60’s genera-
tion over youth today. It focuses on the historicity of the movements of that decade,
be it from the point of view of its affiliations, or of its non-homogeneity, with the
objective of understanding the process that built the myth of the 1960’s, over the
years, and of the identity figuration of its generation, diluting the complexity, the
heterogeneity, the conflicts, the inheritances and the historical contextualization of
the movements. The identification of the later generations with the myth of the gen-
Texto recebido e apro-
eration of the 60’s, that has become manifest episodically, indicates the imprisonment
vado em 26/9/2005,
of the younger generations by the image of a heroic identity of the previous genera-
tion. This points to an absence of a movement to separate the generations, and thus, Irene Cardoso é profes-
sora livre-docente do
of the production of a generational difference, and of the difficulties of receiving the
Programa de Pós-gradu-
inheritance, i.e., of the possibility of the making of a new affiliations. ação em Sociologia da
Keywords: 60’s generation; Experience and revolt; Political movements and counter- FFLCH-USP. E-mail:
culture; Inheritance transmissions; Affiliations. icardoso@usp.br.
agora e depois), como podemos dar conta de vidas juvenis que são impres-
sas em estruturas sociais cada vez mais labirínticas? Apesar de mais difíceis
de apreender, os desalinhamentos da vida são sociologicamente tão impor-
tantes quanto seus alinhamentos, e as rupturas tão relevantes quanto as
conexões (cf. Pais, 2003, p. 120).
As sociedades contemporâneas são demasiado diferenciadas e policon-
textuais (cf. Lahire, 1998) que as experiências de transição dos jovens devem
ser compreendidas a partir de suas múltiplas filiações identitárias, que cor-
respondem à necessidade que têm de gerir quotidianamente pertenças e par-
ticipações numa multiplicidade de mundos sociais (cf. Schehr, 2000, p.
52). A singularização das experiências de vida juvenis remete, assim, à espe-
cificidade dos contextos e às múltiplas oportunidades que estes favorecem.
Os indicadores do modo como os jovens constroem e gerem as relações e as
pertenças sociais apontam para a experimentação, a atitude comunicacional
e a importância atribuída às sociabilidades e aos encontros. Suas trajetórias e
identidades podem, assim, ultrapassar os papéis sociais prescritos. As socia-
bilidades entrelaçam experiências e contextos no tecido das relações sociais
em que se enfileiram os fios condutores biográficos (cf. Idem).
dos jovens holandeses é de tal ordem que do grupo fazem parte 86% da
totalidade dos que foram inquiridos, estando também representados 56%
de jovens espanhóis e 44% de britânicos. A principal característica do gru-
po é ser constituído por uma maioria de jovens (73%) que no momento da
pesquisa estavam trabalhando, embora uma parte deles (57%) ainda vivesse
com os pais. Mas nem todos trabalham em período integral (apenas 17%):
a maioria trabalha meio período, num total de menos de quinze horas por
semana (apenas 21% trabalham entre dezesseis e 35 horas semanais).
Quanto às fontes de rendimento, um em cada cinco desses jovens afir-
ma que a totalidade do dinheiro que recebem é proveniente do trabalho.
Apesar de socializados para o mundo do trabalho, não é certo que, para
esses jovens, o sentido da vida seja dependente do emprego. Ou seja, estamos
perante jovens orientados por uma ética de valorização da individualidade
e da realização pessoal, e para quem, no trabalho, contam mais as satisfa-
ções intrínsecas (tipo de trabalho realizado, disponibilidade de tempo livre
etc.) do que seus aspectos extrínsecos ou instrumentais (o dinheiro que se
ganha). A declaração de uma jovem holandesa ilustra exemplarmente essa
atitude: “Na minha opinião, é importante que eu me divirta. Ter mais
dinheiro é bom, claro, mas eu preferiria trabalhar num lugar agradável e
receber menos a trabalhar em outro nada simpático que pagasse melhor”
(18 anos, sexo feminino, ensino secundário, Holanda).
Na sua vida cotidiana, os jovens deste grupo revelam uma independên-
cia que se manifesta na forma autônoma como desempenham algumas
tarefas pessoais: por exemplo, em cerca de 90% dos casos são eles que
(sempre ou quase sempre) preenchem seus documentos (inscrições, im-
postos etc.), sem recorrer a pessoa alguma, embora não dispensem a ajuda
da mãe na lavagem da roupa (em 91% dos casos) e na limpeza da casa
(90%). A autonomia estende-se também ao domínio dos gastos de consu-
mo. Muitas das despesas (lúdicas ou básicas) são feitas com seu próprio
dinheiro; outras, no entanto, são suportadas pelos pais, nomeadamente as
que asseguram redes comunicacionais (telefone e internet) ou de circula-
ção (59% contaram com a ajuda dos pais na aquisição da carteira de moto-
rista). Por aqui se vê que o apoio familiar também se faz sentir nas disponi-
bilidades conviviais que as redes de comunicação e circulação proporcionam.
Para a maioria, as taxas escolares também são pagas pelos pais: “Eles paga-
ram-me todo o tipo de coisas relacionadas com a minha educação e forma-
ção. Mas quando chega ao lazer e ao divertimento, nunca me pagaram
nada” (29 anos, sexo masculino, ensino secundário, Espanha).
Desde os 15 anos que eu queria ir à Kellys (danceteria), mas, com os meus pais,
nem pensar que isso fosse acontecer com 15 anos. Já tinha 16 ou 17 quando eles me
deixaram ir, mas mesmo assim só podia ser de quinze em quinze dias [...]. Era o
suficiente. Eles costumavam dizer: “Nós preferimos que você nos diga a verdade,
para que saibamos exatamente onde você está, entende?”. Nessa altura, alguns ami-
gos meus mentiam para os pais e diziam-lhes que [...] iam dormir na casa de alguém
quando na verdade iam sair (23 anos, sexo feminino, ensino superior).
Eu discuto sobre dinheiro principalmente com o meu pai. Ele está sempre recla-
mando, dizendo que um dia vai ao banco ver como está a minha conta, que saio
todas as noites [...]. Ele quer que eu me prepare para a vida, que avance, que
poupe. E eu ainda não tenho esse pensamento [...]. Quer dizer, qualquer dia chego
aos 30 e só depois é que posso começar a gastar! [...] (20 anos, sexo masculino,
ensino secundário, Portugal).
No que diz respeito aos meus estudos, acho que tive muita sorte. Meu pai disse-me
que ele pagaria a universidade sem problemas. [...] Ele insistiu muito, dizendo:
“Estude agora, que você pode trabalhar mais tarde” (23 anos, sexo masculino,
ensino secundário, Espanha).
mento em que foram inquiridos). Nesses termos, não espanta que 96%
dos jovens desse grupo declarem não dar nenhuma contribuição monetá-
ria a seus pais.
A dependência econômica em relação à família de origem é de tal or-
dem que, mesmo nas projeções do futuro, uma significativa porcentagem
deles conta com seu apoio, sobretudo para a compra de casa/apartamento
(51%) ou de carro/motocicleta (32%). A existência de uma retaguarda
familiar protetora não significa que esses jovens e suas famílias vivam em
situação de desafogo econômico, muito pelo contrário. Sobressaem famí-
lias numerosas, aparentemente com dificuldades econômicas: são jovens
que têm muitos irmãos, que trabalham, estudam ou estão desempregados
(76% dizem ter dois irmãos desempregados).
O certo é que esses jovens esperam poder prolongar a sua permanência
na casa dos pais e consideram que, o que para eles é normal – o prolonga-
mento da estadia em casa dos pais (cf. Santoro, 2000) –, é também ideal
para outros jovens que vivem em circunstâncias semelhantes. De fato, no
grupo há uma sobre-representação dos que acham que a idade ideal para
um jovem sair da casa dos pais é entre 24 e 26 anos (50%) ou mesmo
acima de 27 anos (14%). Paralelamente, a maioria (51%) pensa em aban-
donar a casa dos pais entre 24 e 26 anos e 22% com 27 ou mais. Aliás,
43% dos jovens desse grupo não pensam em ter filhos antes dos 27 anos.
Na opinião de Aldo, a juventude italiana em geral é “mimada”:
O problema é que somos mimados, deve ser uma coisa cultural, não sei. Eu conhe-
ço pessoas que deixaram o seu país para estudar e que são independentes financei-
ramente [...]. Mas eu, ao contrário, pensei para mim: “Como estou estudando,
vou continuar vivendo em casa!”. É a opção mais fácil (32 anos, sexo masculino,
ensino superior, Itália).
Tudo indica estarmos perante jovens cujo futuro não lhes parece muito
promissor e cujas famílias, também por razões culturais, exercerão uma
função protetora, apesar das dificuldades econômicas em que vivem. Os
problemas de inserção profissional implicarão, para muitos deles, uma
ancoragem ao reduto familiar. O futuro é temido, como explica Marco, um
jovem italiano que faz curso de formação profissional:
Eu não penso no futuro, porque me assusta [...]. Muito francamente, nunca pensei
nisso, até porque vivo dia a dia. [...] Claro, eu gostava de ter a minha família, quer
dizer, eu quero ter a minha família, mas nas circunstâncias atuais não só não penso
como não quero pensar nisso (21 anos, sexo masculino, ensino secundário, Itália).
jugal, mesmo quando ainda vivem em casa dos pais, embora muitos deles
já se tenham desprendido da família de origem. Encontram-se orientados
por uma “ética de trabalho” fortemente associada à valorização da indepen-
dência. Os pais contribuíram para a formação desse ideário de vida, dada a
sobre-representação dos que apostam na formação profissional. Eles pró-
prios acreditam que as qualificações são determinantes na obtenção de em-
prego. Têm bons relacionamentos familiares e sociais, tudo convergindo
para a auto-estima, a confiança, o desenvolvimento de um sentimento de
liberdade.
QUADRO 2
Idades ideais para assumir compromissos importantes e nacionalidades dos jovens que aparecem sobre-representadas nos
grupos analisados
Para um jovem sair da casa dos pais 27 ou + 21-23; 24-26 17 ou –; 18-20 24-26; 27 ou + 18-20
Quando espera o(a) próprio(a) casar 24-26; 27 ou + sem resposta 20 ou –; 21-23 24-26; 27 ou + 20 ou –; 21-23
ou viver com um(a) companheiro(a)
Quando espera o(a) próprio(a) 27 ou + sem resposta sem resposta 27 ou + 21-23; 24-26
ter filhos
O fator 1 opõe:
Eu diria que, de modo geral, modelei a minha vida. As escolhas profissionais foram
minhas. Tomei todas as decisões sozinho, disciplinas no ensino secundário, serviço
militar ou cívico, qual universidade e que curso, todas as minhas idéias e decisões.
Minha família apenas me disse: “Faça o que quiser e como quiser”. Para minha
mãe, qualquer coisa menos padre católico, porque ela queria ter netos! Mas eu
peguei tudo com as minhas próprias mãos e em princípio foi o caminho certo (26
anos, sexo masculino, ensino superior, Alemanha oeste).
Eu acho que saí de casa quando tinha 21 anos. Creio que foi numa boa idade, é
algo de sólido [...] eu também olho para os meus amigos. Um deles, aos 25 ou... é
isso, sim, ele fez 25 agora e ainda vive na casa dos pais. Não sei, eu não conseguiria
fazer isso (25 anos, sexo masculino, ensino secundário, Alemanha leste).
Tenho medo de sair da casa dos meus pais... porque lá tenho roupa lavada, comida
feita... todas essas coisas [...] dinheiro para academia de ginástica... tudo. Não
tenho dificuldade nenhuma. Agora vou para a minha casa, e sei que vou sofrer.
Mas eu amo muito a pessoa com quem vou me casar e tenho a vida facilitada,
embora ainda não tenha uma carreira. [...] E mesmo depois de casar vou continuar
dependente deles. Não devia dizer isso, mas é verdade. Se não fosse assim, nem
sequer casava. [...] Foram eles que me compraram a casa [no mesmo bairro que a
dos pais] (25 anos, sexo masculino, ensino superior, Portugal).
tempo, não acontece da noite para o dia. [...] Eu me inscrevi para arrendar uma
casa há cinco anos [programa de acesso às casas do Estado], mas como demora
muito tempo para ser elegível para um apartamento, decidi comprar uma casa.
Conclusão
Referências Bibliográficas
Resumo
Abstract
Young europeans: a portrait of diversity
This article explores the diversity of education to work transitions amongst some Eu-
ropean young people. Following contextualisation of recent social change in issues
relating to the family, individualized trajectories and transition regimes in Europe,
youth transitions are discussed through the presentation of results of current qualita-
tive research. This research is represented by exemplary case studies from six of the
regions participating in this research, namely, Portugal, Denmark, the Netherlands,
Italy, East Germany and the United Kingdom. These accounts illustrate the range of
responses young people with contrasting social conditions across Europe make to chang-
Texto recebido e apro- ing circumstances, such as the extension and prolongation of educational pathways,
vado em 25/8/2005. the transformation of the labour market and a shifting balance between state and
José Machado Pais é pes- family support in enabling labour market entry. Dimensions such as family ties and
quisador do Instituto de future plans are also portrayed in this article in relation to current theoretical debates
Ciências Sociais da Uni-
around the issues individualization, agency and structure in youth trajectories.
versidade de Lisboa. E-
Keywords: Youth; Europe; Transitions to adult life.
mail: machado.pais@ics.
ul.pt.
David Cairns (pós-dou-
torado) e Lia Pappámi-
kail (doutoranda) pes-
quisam atualmente no
mesmo instituto, na con-
dição de bolsistas da Fun-
dação para a Ciência e a
Tecnologia.
dição juvenil no país, bem como as expectativas de sua inserção no mundo 4. Não se pretende defi-
adulto4. nir neste momento o
conceito de juventude.
Por outro lado, a própria unanimidade em torno do caráter legítimo de
Trata-se não apenas de
um novo campo de ações no âmbito das políticas públicas especialmente reiterar o caráter histó-
voltadas para jovens não é real, indicando a existência de uma série de con- rico e cultural da condi-
flitos subjacentes à sua constituição que nem sempre são evidentes. A rigor, ção juvenil, mas de pres-
a visibilidade do tema tem privilegiado elementos de consenso que não supor que os modelos
simbólicos que tendem
deveriam obscurecer os possíveis litígios.
a compor uma imagem
Um foco mais visível de dissenso reside na disputa de recursos escassos do que devem ser os jo-
destinados às políticas sociais, ampliando cada vez mais o escopo das de- vens em uma determi-
mandas e das necessidades de novos investimentos, ao incluir novas mo- nada sociedade, além de
dalidades de público a que se destinam as ações. Essa situação atravessa as normatizar sobre o trân-
várias instâncias da federação – federal, estadual e municipal – como tam- sito para uma condição
adulta considerada dese-
bém percorre o interior dos governos, ocorrendo maior disputa por verbas
jável, delimitam aquilo
ou recursos para assegurar ações que muitas vezes são superpostas e não que pode ser reconheci-
nascem de uma estratégia clara de formulação de políticas (cf. Rua, 1998). do como o comporta-
No entanto, a obtenção de verbas em regime de escassez não constitui o mento legítimo para o
tópico mais relevante para a compreensão dos elementos que estão em próprio momento do ci-
clo de vida. Apesar da di-
jogo nessa disputa.
versidade de modelos, é
Sob o ponto de vista dos objetivos da análise a ser empreendida neste possível considerar que
artigo, é preciso reconhecer que ocorre, principalmente, um conflito em tor- algumas formas consti-
no das orientações que alimentam as ações destinadas aos segmentos juvenis, tuem dominância e pas-
incluindo nesse campo um conjunto de representações que no limite pode sam a orientar a expe-
riência concreta dos jo-
até se opor a qualquer tipo de intervenção específica destinada aos jovens5.
vens, mas adaptadas às
No campo das orientações, um primeiro eixo de conflitos diz respeito à
peculiaridades que de-
própria necessidade das políticas específicas para a juventude: as demandas correm de classe social,
dos jovens não estariam necessariamente contempladas no acesso às políti- sexo, etnia, extração re-
cas universais como saúde, educação, transporte, esporte, entre outras? Para ligiosa, condição de vida
um campo importante de atores, os jovens teriam satisfeitas suas princi- urbana ou rural.
pais demandas no âmbito dessas políticas setoriais, sendo desnecessário 5. Neste artigo, o senti-
qualquer recorte que os privilegiasse como destinatários específicos de ações do dado à noção de re-
presentação se apóia so-
públicas ou governamentais. No outro extremo estariam radicadas as posi-
bretudo em Henri Le-
ções que defenderiam as políticas da juventude apenas como ações com febvre, que recusa a di-
clara focalização, sendo nesse caso destinadas apenas aos jovens em “situa- cotomia entre o que está
ção de exclusão social” ou em condições de “vulnerabilidade”. fora e é exterior (como
Um segundo eixo reside na falta de consenso em torno da própria coisa) e as representações
definição do que seriam políticas públicas de juventude. Para alguns au- que também vêm de
dentro e são contempo-
tores latino-americanos (cf. Bango, 2003; Dávila, 2003), as políticas de
râneas à constituição do juventude não estariam inscritas nas políticas setoriais, mas diriam res-
sujeito, tanto na histó- peito necessariamente a outros níveis de ação que não incidiriam sobre o
ria de cada indivíduo
objeto das grandes políticas: saúde, trabalho, habitação e educação. Es-
como na gênese do in-
dividual na escala social. tariam mais próximas, assim, de áreas articuladas às demandas culturais,
Desse modo, as represen- de tempo livre, de lazer e, principalmente, de ações que possibilitassem a
tações “não são nem fal- real participação dos jovens, ampliando a esfera de sua cidadania. Ernesto
sas nem verdadeiras, mas Rodríguez propõe, em suas análises, que as próprias demandas dos jo-
ao mesmo tempo falsas
vens em direção às políticas estariam restritas ao campo simbólico e ex-
e verdadeiras: verdadei-
ras como respostas a pro-
pressivo (cf. Rodríguez, 2001).
blemas ‘reais’ e falsas na Esses dois primeiros eixos de conflito remetem a algumas questões im-
medida em que dissimu- portantes em torno das intervenções públicas dos governos, em vários paí-
lam objetivos ‘reais’ ” ses, privilegiando uma ação específica voltada para a juventude. Tem sido
(Lefebvre, 1980, p. 55). crescente a ação governamental destinada aos jovens tanto na América La-
tina como em vários países europeus, mas é preciso reconhecer que essas
políticas aparecem como um “objeto difuso quando comparado com os
domínios mais consolidados a partir de estruturas ministeriais portadoras
de competências delimitadas de intervenção”, conforme análise de Loncle
6. Os regimes de cidada-
a partir da realidade francesa (2003, p. 24).
nia definem um conjunto
Assim, desde suas origens, as políticas de juventude constituem um es-
de direitos e traçam os
limites da intervenção do paço de intervenção pública transversal e periférico (cf. Idem, p. 25). Se con-
político na sociedade. siderarmos a experiência francesa, mais antiga nesse domínio, poderíamos
Para a autora, os jovens dizer que as políticas de juventude dificilmente seriam originadas da lógica
seriam um público prio- setorial. A principal razão para esse fato reside na dificuldade de constituição
ritário em direção aos
de uma intervenção pública a partir de uma categorização em termos de
regimes da cidadania que
poderiam ser compreen- idade. Para Loncle, duas outras razões também interferem nessa dificulda-
didos, cada um, como de: a primeira remete à forte dimensão simbólica das políticas de juventude,
conjunto hierarquizado pois em geral não estão munidas de um fundamento autônomo e, assim, em
de status: “Ao lado do ci- períodos de crise, poderiam desaparecer como problema público; a segunda
dadão normal aparecem
deriva de sua “natureza” transversal, ou seja, ao terem a “integração dos jo-
os grupos com estatuto
de ‘minorias’, tanto no
vens na sociedade“ como missão, elas dizem respeito, potencialmente, a quase
domínio dos direitos cí- todas as ações do Estado (cf. Idem, p. 27).
vicos como no dos direi- De certo modo, a experiência histórica indica que orientações explíci-
tos sociais” (Loncle-Mo- tas voltadas para a juventude exigem a aceitação do pressuposto da trans-
riceau, 2001, p. 87). Os versalidade, mas também a adoção de uma lógica que transcenda a ação
regimes da cidadania ca-
setorial, sendo capaz, de alguma forma, de assumir a perspectiva da idade
minhariam no sentido da
diferenciação das ações, nas suas orientações. Esse tipo de prática constituiria uma ampliação nas
restando sempre o desa- concepções dos direitos da cidadania, introduzindo a idéia dos “regimes
fio de sua universalização. de cidadania” tal como registra Loncle-Moriceau (2001)6.
projeto. Ao mesmo tempo, impõe-se uma tarefa ao jovem: uma vez ade-
quadamente formado – em um período bastante breve e sem muitas alte-
rações no ambiente em que vive –, ele pode e deve ser estimulado a contri-
buir para a melhoria das condições de vida de sua comunidade a partir de
uma determinada intervenção social para a qual será orientado.
Embora nesses fragmentos se reconheça certo potencial juvenil, são vi-
síveis seus limites: primeiramente, a ênfase em certos aspectos comporta-
mentais – como se todo e qualquer jovem em qualquer momento históri-
co e social fosse naturalmente predisposto a provocar mudanças –; em
segundo lugar, essa mudança será realizada apenas se o mundo adulto re-
conhecer e criar condições para isso, de onde se pode subentender a difi-
culdade do jovem em fazer-se ouvir e em agir por si só. Por fim, atribui ao
jovem uma tarefa dificílima – a de transformar a sua “comunidade”, em
geral desprovida de equipamentos públicos e serviços que assegurem um
mínimo de qualidade de vida. O envolvimento em ações e capacitações
voltadas para a “comunidade” ao lado da continuidade da trajetória escolar
são as contrapartidas exigidas pelo recebimento da bolsa. De certo modo,
espera-se que as capacitações também permitam ao jovem a preparação
para algum tipo de inserção futura no mercado de trabalho. Ora, nem o
número de horas destinadas às capacitações, nem o perfil dos profissionais
que atuam junto aos jovens parecem garantir essa possibilidade. Avaliação
realizada pelo Tribunal de Contas da União em trezentos municípios, no
ano de 2004 (cf. TCU, 2004), aponta o perfil dos chamados instrutores e
orientadores sociais como um dos aspectos mais frágeis do projeto – em
apenas 19% dos casos a equipe técnica tinha perfil adequado.
Além disso, seguindo essa avaliação, em muitos municípios os jovens
estavam desempenhando tarefas que em pouco ou nada condiziam com os
objetivos do projeto, como serviços de limpeza e datilografia, entre outros.
A despeito dos benefícios percebidos em termos de desenvolvimento pes-
soal, social e comunitário dos agentes, a falta de continuidade é apontada
como um dos entraves para que o projeto cumpra seus objetivos de inclusão
social. Nesse sentido, algumas das principais recomendações do TCU
(2004) relacionavam-se à necessidade, além do monitoramento, de articu-
lação com o Programa Nacional de Primeiro Emprego e outras iniciativas
de geração de trabalho e renda. Avaliação mais recente realizada pelo pró-
prio MDS também constatou os limites da maioria dos municípios em re-
lação a esses aspectos, mas não apresentou nenhuma proposta para sua su-
peração (cf. MDS, 2005b).
fundada, esse autor enfatiza o predomínio daquilo que nomeia como “pe-
dagogia da precariedade”. Observando os espaços, ouvindo jovens, educa-
dores e coordenadores do programa, conclui que os cursos oferecidos eram
tomados pelos educadores como dádivas para uma juventude empobreci-
da, vivendo em situação de risco social. Salas pouco adequadas, falta de ma-
terial, ausências freqüentes dos educadores, excesso de aulas de formação
geral em detrimento das de qualificação profissional – o que era tomado
pelos jovens como “enrolação” –, entre outros aspectos, eram evidências de
situações marcadas pela precariedade, revelando uma determinada lógica,
segundo o autor, de que para “pobre qualquer coisa parece bastar”.
A bolsa oferecida aos jovens mediante a freqüência aos cursos e o de-
senvolvimento de algum tipo de trabalho comunitário também acabava
por transformar-se em objeto de muitas polêmicas. Ainda segundo Leão,
na medida em que os jovens se frustravam com os cursos, canalizavam sua
permanência no programa particularmente em função da bolsa, do vale
transporte, do lanche, ou seja, dos benefícios recebidos (cf. Leão, 2004, p.
246). Ao mesmo tempo, sem atentar para a própria precariedade das ativi-
dades oferecidas, educadores e coordenadores acabavam por alegar que os
jovens só desejavam a bolsa, o que os levou à criação de inúmeros mecanis-
mos para controlar seu uso e os critérios de recebimento.
Além desses, outros desencontros são revelados por Leão: vários jovens
desejavam ingressar no mercado formal de trabalho, enquanto os cursos
estavam voltados para a formação para ocupações autônomas; as expectati-
vas de realização de estágios eram frustradas, pois era assegurado um total
de apenas vinte horas e, quando uma oportunidade melhor aparecia, eram
favorecidos os jovens mais “comportados”. Em relação à auto-estima, en-
quanto educadores e coordenadores enfatizavam a sua elevação como um
resultado importante do projeto, os jovens não se percebiam como porta-
dores de baixa auto-estima e não estavam preocupados com esse tema, o
que revela mais um descompasso entre os jovens e o corpo de educadores
ou técnicos, sinalizador das dificuldades de interação.
A realização do trabalho comunitário no caso estudado por Leão foi
dificultada por problemas de organização e funcionamento das turmas,
mas também pela desconsideração em relação aos desejos e aos interesses
dos jovens e das comunidades.
Seguindo tendência já observada no Projeto Agente Jovem, o novo for-
mato deste programa manteve-se praticamente inalterado. Em relação ao
compromisso das entidades responsáveis pela inserção de ao menos 20%
cípio. Apontando para uma forte ética que valoriza o trabalho, o estudo
observa que a participação no programa não impediu que muitos dos jo-
vens continuassem trabalhando em empregos precários ou que se preocu-
passem intensamente com o emprego durante a participação no PBT Ren-
da. Outros aspectos significativos levantados pelo Cedec foram: o fato de
os beneficiários perceberem os programas como importantes mas ao mes-
mo tempo paliativos; a centralidade do papel da educação escolar, e não
dos programas, para o rompimento do ciclo de pobreza, percepção presen-
te entre os adultos entrevistados; os vários problemas no fluxo de informa-
ção e comunicação entre os diferentes atores envolvidos.
Embora com uma estratégia mais claramente definida, de enfrenta- 28. Antes da área públi-
mento da situação do jovem no mundo do trabalho pelo retardamento de ca, essa modalidade de
ação foi bastante difun-
sua inserção, e com uma importante capacidade de realizar mudanças ao
dida entre ONGs e fun-
longo do processo de implementação, o formato geral do PBT Renda con- dações empresariais. No
tinuou muito próximo dos demais programas aqui observados. O recebi- âmbito público federal,
mento da renda permaneceu atrelado tanto ao retorno aos estudos ou con- novos programas assu-
tinuidade deles, quanto à realização de atividades de formação, tidas como mem formato semelhan-
obrigatórias. No detalhamento dessas atividades, o desenvolvimento de te, como, no atual go-
verno, o Projeto Agente
um projeto de intervenção na comunidade era apontado como desejável,
Cultura Viva, produto
mas não obrigatório, diferentemente dos programas Agente Jovem e SCV. de uma parceria do Mi-
Entretanto, a exigência de uma contrapartida ao recebimento da bolsa nistério da Cultura com
mantém-se: o retorno à escola e a realização de atividades de formação de o Ministério do Traba-
caráter complementar. O atendimento à forte demanda juvenil por traba- lho, que oferece bolsas
de R$ 150,00 por um
lho não foi considerado uma meta desse projeto, voltada para outras mo-
período de seis meses a
dalidades do programa que não atingiram um contingente expressivo de jovens entre 16 e 24
jovens, o que acabou frustrando muitas das expectativas. anos, com a obrigatorie-
dade da freqüência à es-
Pontos de convergência cola e a participação em
programas de capacita-
ção. A contrapartida é a
Embora empreendidos no interior de diferentes tipos de orientação, os
realização de trabalho vo-
programas aqui analisados assumem um formato comum, indicando ade- luntário com uma carga
são a alguns pressupostos que tendem não só a ser aceitos, como também de seis a dez horas sema-
a se disseminar28. nais. O Pró-Jovem pro-
Um aspecto relevante dessas convergências incide sobre o fato de as põe como eixo central a
oferta de escolaridade
ações considerarem a possibilidade de transferir aos jovens algum tipo de
para jovens que não con-
renda sob a forma de bolsa, operando com princípios redistributivos. Al- cluíram o Ensino Fun-
gumas avaliações já empreendidas apontam o quanto essa renda é impor- damental (cf. Novaes,
tante para esses jovens, principalmente para apoio e, ao mesmo tempo, 2005).
29. O acesso direto do independência em relação à família29. Embora o montante auferido seja
jovem a esse tipo de re- percebido mais como “privilégio” do que como direito, ele constitui um
muneração também não
dos principais motivos, ainda que não o único, para a permanência dos
constitui unanimidade,
pois em algumas perspec- jovens nos programas. Para muitos, o pequeno valor recebido, a incerteza
tivas prevalecentes no diante da continuidade da iniciativa, de sua permanência como beneficiá-
âmbito da assistência so- rios, e o desejo de não ser “dependentes” do Estado reiteravam a necessida-
cial é defendida a centra- de e a prática de continuar procurando trabalho ou de realizar atividades
lidade da família como
precárias (cf. Cedec, 2003; Camacho, 2004, Leão, 2004).
alvo da ação do Estado,
em detrimento de progra-
Mas um pressuposto, igualmente recorrente em todas as ações, reside
mas de transferência de na idéia da contrapartida necessária para que a transferência de recursos
renda voltados direta- escape de um viés “meramente assistencialista”, incluindo, assim, um pos-
mente para adolescentes sível rompimento com a lógica da filantropia. Esse aspecto tende a ser
e jovens. Sem adentrar assumido praticamente como uma orientação legítima e quase natural dos
nesse debate, vale a pena
programas que têm os jovens como alvo, mas não deveria obscurecer a
assinalar que, provavel-
mente, a tutela e a subor- existência de orientações divergentes, estimulando o debate em torno das
dinação dos jovens à vida diferentes visões prevalecentes sobre as relações entre o Estado e os usuá-
familiar só tende a au- rios de programas que envolvem alguma distribuição de renda no Brasil.
mentar em um momen- Grande parte dos gestores consideram que, para romper com a idéia da
to do ciclo de vida em que
filantropia ou do assistencialismo, as iniciativas de transferência de renda
a maioria aspira por maior
autonomia e independên- demandam do indivíduo ações que estimulem seu engajamento ativo, eli-
cia (cf. Singly, 2000). minando riscos de sujeição ou atitudes de “dependência” em relação ao
30.Uma explicação
Estado30. No entanto, há algumas décadas a idéia de uma renda assegurada
possível para a perma- pelo Estado aos cidadãos tem envolvido pressupostos e orientações diver-
nência dessas posições sos, constituindo, nas diferentes versões, modos de concepção do sistema
reside na eterna descon- de proteção e de direitos tendo em vista o papel fundamental do Estado no
fiança da capacidade fomento da justiça e na atenuação das desigualdades sociais acentuadas
dos pobres no uso dos
com a crise do mundo do trabalho e do emprego assalariado.
recursos monetários.
Uma versão importante da idéia de contrapartida é formulada no inte-
rior da crise do Estado-Providência e do regime assalariado. Por meio dela,
pretende-se restabelecer a solidariedade social a partir da ação pública, cons-
tituindo, além da transferência de renda, uma espécie de distribuição de
responsabilidades que mobilize os cidadãos para a sua efetiva integração na
ordem nacional. Zaluar sintetiza essas orientações de modo claro:
Não haveria mais assistidos a socorrer, mas pessoas com diferentes utilidades so-
ciais, cuja capacidade deveria ser sempre aproveitada. Nele [Estado Ativo Provi-
dência] também haveria a socialização radical dos bens e das responsabilidades.
Uma nova concepção de solidariedade é mobilizada na ideologia desse Estado: não
é nem a caridade privada, nem o bem-estar advindo dos direitos sociais, nem a 31. Essas posições, de-
mutualidade do solidarismo do século XIX. Refazer a nação, lema dessa ideologia, fendidas por Rosan-
vallon (1981), não são
significa fomentar a solidariedade advinda do pertencimento a uma mesma comu-
totalmente endossadas
nidade nacional, na qual a seguridade é nacional – o novo sentido do social, visto por Castel (1995), para
que a questão social é nacional –, solidariedade que se traduz em direito e dever à quem a contrapartida
integração (Zaluar, 1997, p. 32)31. deveria ser acompanha-
da de políticas inclusi-
vas asseguradas pelo Es-
De outra parte, os debates sobre a renda mínima universal e incondici-
tado, centradas no em-
onal têm reunido vários defensores, agregados na BIEN – Rede Européia prego. Como afirma
da Renda Básica –, fundada em 198632. Nesse âmbito, os pressupostos da Zaluar, esse debate ocor-
transferência seriam redistributivos, sem distinção de origem, raça, sexo, re na crise financeira do
idade, condição civil ou mesmo situação socioeconômica, e sem vincula- Estado, que “reacendeu
ção a qualquer idéia de contrapartida (cf. Silva et al., 2004). a preocupação com os
que evitam o trabalho
Adotada como pressuposto naturalizado nos programas destinados aos
por terem desenvolvido
jovens, a idéia da contrapartida é multifacetada. Ela pode compreender, o ‘vício’ da dependên-
no seu âmbito mais restrito, apenas a freqüência obrigatória à escola, mas cia, tornando-se parasi-
também pode incidir sobre a necessária presença em atividades de cunho tas dos demais” (Zaluar,
socioeducativo e a participação em ações de engajamento comunitário, em 1997, p. 32). Um ba-
lanço do conjunto de
geral propostas pelas instituições parceiras responsáveis pela execução do
teses a favor do rendi-
programa no âmbito local. mento mínimo incon-
Nesse formato comum, em geral as propostas educativas são executadas dicional está em Benar-
a partir de uma base material precária e com um corpo de responsáveis – rosh (1998). A revista
educadores sociais, animadores culturais etc. – de baixa formação técnica MAUSS também dedi-
cou um número espe-
ou mesmo escolar. Com raras exceções, demandam poucos recursos mate-
cial a essa questão (cf.
riais quanto a equipamentos e podem ser realizadas a partir de um baixo
Caillé et al., 1996).
custo operacional33. Essas práticas, apesar de um discurso de engajamento e
32. Destacam-se, como
de promoção da participação, podem acentuar mecanismos perversos de
membros da rede, Klaus
reprodução de uma base humana e material precária nos programas sociais, Offe, Guy Standing,
reiterando a idéia de que não é preciso oferecer muito aos pobres. Phillipe Van Parijs e, no
Mas as propostas envolvem um campo diversificado de ações socioedu- Brasil, Eduardo Suplicy
cativas que podem estar agrupadas na idéia de educação não escolar ou não e Maria Ozanira da Sil-
va e Silva (Silva et al.,
convencional na acepção de Luiza Camacho34 (2004), compondo um con-
2004).
junto de práticas muito assemelhadas: palestras, cursos e oficinas. Na maioria
33. No entanto, a im-
dos casos, como já foi relatado, o programa/projeto pressupõe uma forma-
plantação de todos esses
ção geral voltada para o tema da cidadania e em alguns casos ocorre um dispositivos intermediá-
módulo articulado ao aprendizado de habilidades do mundo do trabalho, rios acaba por absorver
sem constituir rigorosamente formação profissional. As atividades socioe- recursos não desprezíveis
ducativas pressupõem, além de seu caráter obrigatório – para os jovens, as dos programas que po-
deriam ser direcionados margens de escolha, quando existem, situam-se na sugestão de temas –,
diretamente ao público- algum tipo de orientação para a prestação de serviços à comunidade e o
alvo se não houvesse o
desenvolvimento de atividades voluntárias tidas como úteis e importantes
desenho desse conjunto
de contrapartidas. para os bairros onde esses jovens residem.
Apesar de algumas variações, verifica-se a tendência de configurar um
34. A designação “não
convencional”, de acordo
campo novo de problemas que demandam análise independentemente do
com Camacho (2004), sucesso ou eventual fracasso das iniciativas. Tais questões incidem sobre o
recobre melhor o sentido modo como se constitui um campo de orientações normativas capazes de
dessas práticas socioedu- definir o que seria importante destinar aos jovens pobres brasileiros, que
cativas, já que elas são for- passam a interagir com o poder público ou com segmentos da sociedade
malizadas e instituciona-
civil a partir de sua inserção nesse quadro de ações.
lizadas, não se adequan-
do à idéia de educação não
formal. Grupo alvo e escolaridade
Mas outras conseqüências podem ser derivadas dessa situação: uma de-
las é o paralelismo das atividades não convencionais de caráter socioeduca-
tivo com as práticas escolares propriamente ditas. Sem interação e desarti-
culado dos sistemas escolares, esse conjunto de ações começa a criar uma
rede paralela não convencional, destinada aos jovens pobres, que muitas
vezes é uma versão piorada e precária da prática educativa da escola pública.
Pouco se aprende de significativo e não há apropriação de ferramentas que
possa interferir nas condições em que ocorre a relação desses jovens com o
conhecimento escolar.
Quando mais bem-sucedidas, as práticas não convencionais podem fa-
vorecer certas habilidades pessoais dos jovens no âmbito de suas interações
(superação da timidez, facilidade de trabalho em grupo, entre outras), mas
em geral esses efeitos são pouco absorvidos pelas orientações do mundo
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Resumo
A face oculta da transferência de renda para jovens no Brasil
A partir da análise mais ampla do caráter das recentes políticas públicas dirigidas a jovens
no Brasil e das orientações conflitivas inerentes a esse campo, o artigo discute os pressu-
postos contidos em três programas públicos implementados no país: o Projeto Agente
Jovem, o Programa Serviço Civil Voluntário e o Programa Bolsa Trabalho Renda. Após
uma caracterização geral de cada um deles, sem ignorar aspectos de sua diversidade, a
análise concentra-se nos paradoxos e ambigüidades subjacentes a seu formato comum: a
transferência de renda atrelada à exigência de algum tipo de contrapartida do público
juvenil, em geral o retorno/permanência na escola e a realização de atividades de caráter
socioeducativo ou comunitário. Sem negar o benefício promovido pelo acesso à renda,
o artigo alerta para a possibilidade de disseminação de novas formas de dominação a
partir da adoção desse modelo nas ações públicas dirigidas aos jovens.
Palavras-chave: Juventude; Políticas públicas; Programas socioeducativos; Transferên-
cia de renda.
Abstract
2.E também pelo prof. Existe uma tradição nas ciências sociais, tanto na antropologia como na
Vagner G. da Silva. sociologia, preocupada com a delimitação e a conceituação dessa, digamos
assim, etapa de um processo. Essa etapa pode ser marcada tanto por fatores
biopsicológicos como por rituais de passagem, de mudança de status e in-
gresso em esferas específicas, como o mercado de trabalho, a constituição
3. Ver, a propósito, Car- de família, o pertencimento a grupos etc.3. Entretanto, não foi esse o enfo-
doso e Sampaio (1995). que adotado pelas pesquisas desenvolvidas no Núcleo: neste caso, “ser jo-
vem” foi tomado menos como uma categoria explicativa do que como um
ponto de partida, empírico, para os recortes.
Para justificar tal decisão, ponderou-se que tomar um amplo conjunto
de recortes com as mais diferentes preocupações – lazer, sociabilidade, pos-
turas afirmativas, religiosidade, ação política, transgressão, gostos musicais
etc. –, ligados a segmentos que se apresentavam, de forma genérica, como
jovens aos pesquisadores, e reduzir toda essa multiplicidade visível na paisa-
gem urbana a um comportamento padrão ditado por determinado recorte
de faixa etária, seria perder importantes dimensões explicativas que a etno-
grafia poderia revelar. Dessa forma, ao deixar de lado a variável que tradi-
cionalmente tem sido tomada como o denominador comum, a opção foi
buscar outro ponto de articulação entre temas e recortes aparentemente
desconexos.
Cabe lembrar que já se vão quase duas décadas desde que o texto de
Maffesoli surgiu4; impõe-se uma releitura de seu pioneiro insight. Num tra- 4. Há uma controvérsia
balho chamado “Tribos urbanas: metáfora ou categoria?”, de 1992, fiz uma sobre a data da publica-
crítica à utilização dessa expressão, mostrando as limitações, para a análise, ção deste livro: a edição
em português, da edito-
de seu uso mais metafórico do que conceitual. Isso não quer dizer que não
ra Forense Universitária,
se possa empregar o termo com algum proveito, mas é necessário estar aten- vem com a data de 1987,
to para as limitações e as particularidades inerentes a essa forma de utiliza- enquanto o original em
ção. Uma dessas limitações deve-se a um mal-entendido entre o sentido francês é de 1988.
que se atribui ao termo “tribo” nos estudos tradicionais de etnologia – que
aponta para alianças mais amplas entre clãs, segmentos, grupos locais etc. –
e seu uso para designar grupos de jovens no cenário das metrópoles, que
evoca exatamente o contrário: pensa-se logo em pequenos grupos bem deli-
mitados, com regras e costumes particulares, em contraste com o caráter
massificado que comumente se atribui ao estilo de vida das grandes cida-
des. Não se pode descartar, ademais, a carga de preconceito em leituras que
vêem disputas de gangues como “conflitos tribais”5. 5.Para uma discussão
Além das matérias de jornal, das reportagens de televisão e de docu- mais ampla, consultar
Magnani (1992). Ver
mentários sobre a vida na metrópole em que a expressão “tribos urbanas”
também Goldman
geralmente é empregada de forma unívoca e acrítica, ela pode ser encon-
(1999, p. 94).
trada também, com diferentes graus de elaboração, em teses, livros e arti-
gos acadêmicos6. 6.Por exemplo, Pais e
Recentemente, o antropólogo espanhol Carles Feixa referiu-se a ela na Blass (2004) e Guer-
reiro (1994).
introdução ao número especial da Revista de Estudios de Juventud (n. 64,
2004), que trazia textos majoritariamente de autoria de pesquisadores da
7. Carles Feixa é antro- península ibérica7, fazendo um contraponto com outra expressão, “cultu-
pólogo, professor da Uni- ras juvenis”, para demarcar linhas de interpretação diferentes. Ao mesmo
versitat de Lleida e autor
tempo em que se registra a presença maciça, na mídia, da temática jovem,
do livro De jóvenes, ban-
das y tribus: antropología desde os anos de 1960, nas modalidades punks, mods, skinheads, heavies,
de la juventud (1998). rockers, grunges, nuevaoleros etc., não teria havido a devida correspondên-
cia nas pesquisas acadêmicas, as quais teriam ficado restritas a aspectos
estruturais – escola, trabalho, família – ou a temas clássicos como o asso-
ciacionismo, a participação, as atitudes políticas. Por outro lado, as meto-
dologias quantitativas teriam relegado a um segundo plano as abordagens
de corte etnográfico.
Ainda segundo Feixa, nesse período houve estudos empíricos e al-
guns até teóricos, que no entanto não tiveram a devida difusão. Nos
8. Não obstante a mu- últimos anos, essa situação tendeu a mudar e o tema das “tribos urba-
dança de perspectiva que nas” começou a despertar interesse no meio acadêmico de forma mais
essa nova expressão pre- sistemática. A idéia do número especial daquela revista foi retomar a
tende trazer, ainda assim
questão e propor uma nova perspectiva para tratar o assunto, que está
persiste a indiferenciação
entre esses termos, como
resumida no próprio título: “Das tribos urbanas às culturas juvenis”:
o atesta a citação de um
artigo no próprio núme- O primeiro termo (tribos urbanas) é o mais popular e difundido, ainda que esteja
ro especial da revista or- fortemente marcado por sua origem na mídia e por seus conteúdos estigmatizantes.
ganizado por Feixa: “Po- O segundo termo (culturas juvenis) é o mais utilizado na literatura acadêmica
demos entender as ‘tri-
internacional (vinculada normalmente aos estudos culturais). Essa mudança ter-
bos’ da cultura juvenil
global como a expressão minológica implica também uma mudança na forma de encarar o problema, que
do instinto [sic] de for- transfere a ênfase da marginalidade para a identidade, das aparências para as estra-
mar e reinventar as co- tégias, do espetacular para a vida cotidiana, da delinqüência para o ócio, das ima-
letividades primordiais gens para os atores (Feixa, 2004, p. 6; trad. minha).
para proporcionar uma
sensação de segurança e
fechamento em um
O autor prossegue dizendo que o termo “culturas juvenis” aponta mais
mundo inseguro” (Ni- para as formas em que as experiências juvenis se expressam de maneira
lam, 2004, p. 46). coletiva, mediante estilos de vida distintivos, tendo como referência prin-
9. Fundado em 1964 cipalmente o tempo livre8. Esses “estilos distintivos”, identificados por meio
por Richard Hoggart, na do consumo de determinados produtos da cultura de massa, como roupas,
Universidade de Birmin- música, adereços, formas de lazer etc., remetem à idéia das “subculturas”,
gham, tornou-se desde tão ao gosto da tradição inaugurada pelo Centro de Estudos de Cultura
então um importante
Contemporânea9, referência obrigatória dos atuais cultural studies. Por outro
núcleo de pesquisa sobre
questões relativas à cul- lado, ainda nessa tradição, as experiências no interior das subculturas eram
tura e à identidade na vistas como rituais de resistência à dominação de uma cultura hegemônica;
atualidade. daí o caráter “chocante” e desafiador da presença, do visual e da atuação
As etnografias
Straight edge
O trabalho de campo sobre este tema foi iniciado por Márcio Macedo
na disciplina “A pesquisa de campo em antropologia”, por mim ministrada
no curso de graduação de Ciências Sociais da FFLCH/USP. Esse estudo foi
depois retomado por Márcio, que buscou rastrear, historicamente, a pre-
sença negra no centro da cidade e, a partir dessa ocupação, descrever trajetos
dentro de um circuito específico de jovens negros na noite paulistana.
“O centro é black, man!”, e não é de hoje. Sem ir muito longe, toman-
do como referência apenas a ocorrência de salões de dança, é possível re-
montar até antes do período da Frente Negra Brasileira (FNB), nos anos
de 1930, com seus bailes sociais, nos moldes dos clubes recreativos e so-
Casal dança samba-rock no salão Green Express, na região central de São Paulo. Foto: Luciane Silva.
Interior de carro “tunado”: painel exibido no posto em uma noite de balada na Vila Olímpia.
Foto: Paulo Fehlauer.
Forró universitário
Casal dança forró em Itaúnas, Espírito Santo. Foto: Daniela do Amaral Alfonsi.
[...] se a pessoa tem interesse em casas que toquem forró e reggae ela certamente
freqüentará o KVA às sextas e aos sábados, quando se tem, na chamada “Sala do
Nosso Ministro”, discotecagem de reggae, além do forró no ambiente ao lado, na
“Sala de Reboco”. Ela ainda poderá freqüentar uma “balada” chamada Jamming,
que ocorre, desde junho de 2002, todas as sextas-feiras no Clube Ipê, no bairro do
Ibirapuera. É uma festa onde há discotecagem e apresentação de bandas de reggae
e forró, ou, melhor dizendo, de “forreggae”. E, muito provavelmente, essa pessoa
freqüenta também o Projeto Equilíbrio, que também se dedicava a essa modalida-
de antes do encerramento de suas atividades no primeiro semestre deste ano.
Jovens instrumentistas
Apresentação de jovens instrumentistas em frente à loja Matic Instrumentos Musicais, São Paulo.
Foto: Paulo Fehlauer.
Os pichadores
nos, sorveterias (que não usam ingredientes interditos pelo ideário ve-
gan), lojas de produtos sem agrotóxicos ou conhecidas por seus preços
baixos (o que está de acordo com sua postura anticonsumista), eventos,
casas de shows e centros culturais – às vezes é o Sesc Pompéia ou o Cen-
tro Cultural Vergueiro –, quando se apresentam artistas ou bandas afi-
nadas com seu gosto estético-musical. Isso é um “arranjo”, um conjunto
de escolhas nada aleatório e que se concretiza em trajetos elaborados e
trilhados de forma coletiva.
Além do mais, os straight edges mantêm padrões de troca com os Hare
Krishnas (o elemento em comum é a opção por uma alimentação sem in-
gredientes de origem animal) e com os anarquistas (identificam-se com
suas propostas políticas, lêem sua literatura), e o fazem em alguns pontos
específicos – que podem ser considerados “enlaces” –, onde se articulam
circuitos diferentes, como mostrou Bruna Mantese em seu estudo. Ou seja,
aquilo que numa visão apressada, “de fora”, podia apresentar-se como mais
um exemplo de contatos eventuais, reforçando o estereótipo de exotismo
associado a esse grupo, na verdade tem sua lógica e razão de ser, pois se
coaduna com os princípios que regem o ethos dos straight edges.
O mesmo ocorre com os “japas” e os b. boys, cada qual com seu circuito:
o “point” da estação de metrô Conceição, contudo, é um “enlace” na
intersecção entre ambos, por sinal bastante alheios um ao outro. Nesse
“point” comum, onde estabelecem um padrão hierarquizado de trocas,
cada qual cultiva seu pedaço, conforme pôde ser visto na etnografia de
Renata Toledo, Paula Pires e Fernanda Noronha.
E assim por diante com os góticos, os pichadores, os evangélicos e/ou
católicos identificados com o estilo gospel, os jovens instrumentistas, os
forrozeiros, a turma da balada black, os cybermanos, os descolados etc.: to-
dos têm seus próprios circuitos, mas circulam – com os devidos cuidados –
por “points” de outros grupos que funcionam como nós de uma rede mais
ampla; são trajetos conhecidos, podendo até haver “treta” em razão da pre-
sença não desejada ou inoportuna nos pedaços de outros. Nada, portanto,
de um comportamento tido como espontâneo, livre e solto, há sim regula-
ridades, ações de conseqüências previsíveis, como foi possível constatar em
cada uma das etnografias apresentadas.
Assim, com base em dados sobre essa movimentação – regime de tro-
cas, passagens por circuitos afins e até conflitos entre alguns grupos –, é
agora possível sugerir um quadro classificatório em torno de dois eixos:
relações de aproximação e de evitação.
Relações de aproximação
1.Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, e também por afinidade
de interesse específico: é o caso dos evangélicos de distintas denomina-
ções em eventos gospel ou entre evangélicos e jovens católicos de orien-
tação carismática.
2. Por afinidade de estilo de vida e/ou classe social, mas com diferenças de
interesse específico. Por exemplo: pichadores/skatistas/hip-hop: o vi-
sual, os gostos musicais e até as gírias utilizadas são parecidas, mas cada
qual se dedica a uma prática diferente; outro exemplo é a relação entre
trances e adeptos da música tecno.
3. Por afinidade de interesse específico, mas com diferenças de estilo de
vida e/ou classe social: japas (street dance) e b. boys (break); os “descola-
dos” e cybermanos, nas raves; straight edges e Hare Krishnas; straight
edges e anarquistas; jovens negros (para os quais a balada black é lugar de
afirmação) e jovens brancos (que freqüentam os espaços dessas baladas
porque curtem a black music).
Relações de evitação
que, ademais, dão um conteúdo específico ao termo rolê – uma saída cole-
tiva para pichar em determinado ponto da cidade. Alexandre Barbosa, au-
tor dessa etnografia, aponta algumas características de quebrada: esse ter-
mo alude tanto a uma forma de pertencimento bastante semelhante ao
que se verifica em pedaço, como traz uma conotação de perigo, associada à
periferia.
Dessa forma, quebrada pode ter duas leituras: uma que aponta para a
distância, as carências, as dificuldades inerentes à vida na periferia, mas
também a que permite o reconhecimento, a exibição de laços de quem é
dessa ou daquela localidade, bairro, vila. A alusão ao perigo, por sua vez,
traz, surpreendentemente, uma conotação positiva, pois não é para qual-
quer um aventurar-se pelas quebradas da vida. É preciso “humildade”,
“procedimento”, estar relacionado, e esse sentido está presente entre pi-
chadores, nas letras de rap, nas falas de seguidores das várias modalidades
do hip-hop, como uma forma de valorização de seus estilos de vida, supe-
rando a estigmatização da pobreza, da delinqüência e da violência geral-
mente associadas à periferia.
O termo point, que aparece em várias etnografias, é empregado sempre
que se quer referir a um único equipamento, geralmente de grande porte e
ocupado por vários grupos, servindo como “enlace” entre eles, como a
Galeria do Rock, a Galeria Ouro Fino, o Centro Cultural São Paulo, o
Sesc Pompéia, a estação de metrô Conceição etc.
Com relação ao termo cena, cabe uma primeira aproximação com cir-
cuito, categoria com a qual guarda algum paralelo: ambos supõem um re-
corte que não se restringe a uma inserção espacial claramente localizada.
No caso do circuito, ainda que seja constituído por equipamentos físicos
(lojas, clubes), inclui também acesso e freqüência a espaços virtuais como
chats, grupos de discussão e foruns na internet, ademais de eventos e cele-
brações. Como já foi assinalado, o que distingue circuito de mancha é o fato
de o primeiro não apresentar fronteiras físicas que delimitam seu âmbito de
sociabilidade. Cena, entretanto, apesar de compartilhar com o circuito essa
característica de independência diante da contigüidade espacial, é mais
ampla que ele, pois denota principalmente atitudes e opções estéticas e
ideológicas, articuladas nos e pelos circuitos. Se estes são formados por
equipamentos, instituições, eventos concretos, a cena é constituída pelo
conjunto de comportamentos (pautas de consumo, gostos) e pelo universo
de significados (valores, regras) exibidos e cultivados por aqueles que co-
nhecem e freqüentam os lugares “certos” de determinado circuito. Em
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e identidades. São Paulo, Annablume/Capes.
Resumo
Abstract
***
Até mesmo nos grupos com forte identificação gregária, onde as trajetórias dos su-
jeitos se cruzam intensamente, existem processos que fazem com que os seus mem-
bros se distanciem por outras redes de significados, configurando as variadas possi-
bilidades de vínculos sociais que podem ser tramados nas cidades (2001, p. 16).
O jovem fala de si
mento, elas negam qualquer conexão com base em suas histórias pessoais:
se fosse assim – declarou uma das mães –, eu também tinha sido bandida. A
seguir, elas invertem a relação causal e afirmam que a punição corporal,
aplicada quando requerida, contribui para forjar o caráter, tarefa domésti-
ca por excelência: abandonado, o mundo ensina. [...] se a gente largar assim
demais, é o mundo que vai ensinar. E o mundo vai ensinar errado.
Não deixa de soar estranha essa crença na possibilidade de controle da
desordem urbana a partir do doméstico. Durante longo tempo, essa justi-
ficativa para a defesa da punição corporal foi interpretada como mero ar-
gumento para validar a prática dos castigos físicos, essa sim condenável.
Mas o julgamento moral precipitado dessa linha de argumentação tem
furtado ao exame os fatores que informam a inclinação da família brasilei-
ra pelo uso da punição corporal. Trata-se de um procedimento que não é
gratuito, nem espontâneo.
Ele tem origem nos preceitos higienistas, que associaram a disciplina
doméstica ao controle dos sujeitos no espaço público. Lopes Trovão pro-
clamava a infância como o período em que se forja “a gênese da humani-
dade mais perfeita”. Belisário Penna via na educação doméstica o disposi-
tivo capaz de assegurar a ordem sem o uso da força. Para Lourenço Filho,
a educação doméstica – mais até que o Estado – seria capaz de “guiar as
liberdades” das crianças de modo a evitar “escolhas passionais e capricho-
sas” (cf. Corrêa, 1997). Repetindo esses princípios à exaustão, o higienismo
ensinou que a lógica do universo familiar e a lógica da cidade se fundem
numa ligação de simbiose e dependência da qual a relação mãe-filho é
adubo e semente (cf. Costa, 1989). Até os anos de 1930, o higienismo
incutiu a crença de que à mãe cabe evitar o ócio, a delinqüência e o vício
da rua. Hoje, setenta anos mais tarde – ou no espaço de duas gerações –, as
mães flagram-se isoladas nessa tarefa, sem contudo renunciar a ela.
Sem contar com a orientação de ninguém, confiando no vivido para
tomar decisões cruciais no cotidiano, as mães oferecem os elementos que
permitem compreender a permanência da racionalidade higienista. Em
vez da família moderna acossada pelos técnicos, sitiada pelo saber da ciên-
cia e destituída da função de educar, típica das sociedades centrais (cf.
Lasch, 1991), a mãe brasileira queixa-se sobretudo da solidão, da falta de
amparo e de assistência. Assistindo impotente ao crescimento da crimina-
lidade, ela crê que pode proteger seus filhos das ameaças do público, e
acredita na possibilidade de disciplinar o social a partir do doméstico. En-
tende-se assim por que a família brasileira se mantém como elemento cen-
Interconectividade
Referências Bibliográficas
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AMORIM, Maria Luisa de Aguiar. (2002), “Educação e modernidade: uma contribui-
Resumo
Juventude brasileira entre a tradição e a modernidade
Dados colhidos em duas pesquisas distintas, ambas conduzidas na região metropoli-
tana do Rio de Janeiro, são comparados com a intenção de compreender as trocas
sociais entre as gerações. No primeiro estudo, a análise de discurso dos pais visava a
descrever e entender os recursos usados na criação dos filhos e os valores cuja trans-
missão é considerada essencial. No segundo, jovens foram indagados sobre os prin-
cipais problemas da juventude e as formas de enfrentá-los. Vistos em conjunto, esses
dados mostram que a família ainda ocupa um lugar importante na socialização de
crianças e jovens, pondo em questão a extensão em que a noção de individualismo
pode ser aplicada à juventude brasileira.
Palavras-chave: Juventude; Família; Individualismo.
Abstract
Brazilian youth, between tradition and modernity
Data provided by two different surveys, both conducted in Rio de Janeiro, are com-
pared in order to analyze the relations between parents and their children. The first
survey provides data on how parents raise their children and which values they believe
important to sustain their actions. The second survey provides data on which are the
main problems youth people have to face, and how they deal with them. Brought
together, they show that family values are still very important to children and youth.
In conclusion, the paper indicates that individualism may not explain the main ques-
tions on Brazilian youth.
Keywords: Youth; Family; Individualism. Texto recebido e apro-
vado em 28/9/2005.
Hebe Signorini Gonçal-
ves é doutora em Psico-
logia e membro do Nú-
cleo Interdisciplinar de
Pesquisa e Intercâmbio
para a Infância e Ado-
lescência Contemporâ-
neas, do Instituto de Psi-
cologia – UFRJ. E-mail:
hebesg@ism.com.br
[...] literalmente protagonizou a cena sindical brasileira nos últimos 20 anos, pro-
movendo enormes movimentos grevistas, mas também algumas das experiências
mais inovadoras de negociação coletiva e pactação setorial; rompeu com alguns 7. Muitos autores dedi-
caram-se ao estudo des-
aspectos da estrutura sindical oficial ao iniciar a devolução do imposto sindical aos
se movimento e de seus
trabalhadores e ao recusar os recursos à Justiça do Trabalho para a realização de
desdobramentos. Cf.,
acordos coletivos; encabeçou o movimento de unificação sindical através da funda- por exemplo, Almeida
ção da CUT; encabeçou a unificação da negociação coletiva dos sindicatos dos (1975); Maroni (1982);
metalúrgicos filiados à CUT, consubstanciada na Federação dos Metalúrgicos des- Rainho e Bargas (1983);
sa central; ostenta um índice de sindicalização (hoje em torno de 60% na categoria Sader (1988); Martins
Rodrigues (1990b);
como um todo e chegando a 90% nas montadoras de automóveis) muito superior
Boito Júnior (1991);
ao da média nacional, exibindo forte penetração, através de comissões de fábrica, Antunes (1988, 1991);
nas grandes empresas da região. Não resta dúvidas de que esse sindicalismo logrou Mangabeira (1993);
enraizar-se na sua base num país onde esse enraizamento é, formalmente, desne- Souza Martins (1994);
cessário como lastro e representação sindical. Galvão (1996); Soares
(1998); Blass (2001);
Véras de Oliveira
O conjunto dessas ações resultou, de maneira paulatina, em uma nova (2002); Paranhos (1999,
forma de atuação no campo das relações trabalhistas, que posteriormente 2002). Para uma crítica
ficou conhecida como novo sindicalismo7. A passagem de uma luta extre- da noção de “novo sin-
mamente defensiva e localizada para uma ação mais ampla, no final dos dicalismo”, ver Santana
(1999).
anos de 1970 e início da década seguinte, quando os conflitos começaram
a eclodir por todo o território nacional, com grandes greves por categorias, 8. Para uma discussão
por fábricas, e mesmo greves gerais, significou uma mudança na ação sin- sobre sindicalismo e re-
lações de trabalho no
dical no Brasil8. O momento mais representativo dessa nova atuação se
período inaugurado
expressou nas paralisações por fábrica, que, iniciando-se em São Bernardo, com as greves de 1978
em maio de 1978, estenderam-se, em seguida, por praticamente todo o até o segundo mandato
Brasil (cf. Rodrigues, 1997). de FHC, ver Oliveira
O Grande ABC9 é uma das regiões mais ricas do país. Sua renda per (2002, pp. 221-340).
capita, medida em dólar, era de 13.054 em 2000. Apenas para efeito de 9. O grande ABC é for-
comparação, a renda per capita brasileira é de 3.620 dólares, ao passo que mado pelos municípios
de Santo André, São
no estado de São Paulo ela é de aproximadamente 6 mil dólares e na região
Bernardo, São Caetano,
da Grande São Paulo, de cerca de 6.400 dólares10; a renda per capita na Diadema, Mauá, Ribei-
região do ABC é maior que a da Espanha (12.209) e um pouco inferior à rão Pires e Rio Grande
do Reino Unido (14.170). Além disso, o Produto Interno Bruto dos mu- da Serra.
nicípios que compõem o Grande ABC é superior ao PIB individual de 10. Segundo a Revista
dezenove estados da federação11. ABC Brazil, (2): 6, fev./
No tocante aos dados sobre emprego na região, os municípios que pos- mar. 2000.
suíam o maior número de postos de trabalho em 1999 eram São Bernardo 11.Revista ABC Brazil,
do Campo, com 38,1% do total; Santo André, 23,8% ; Diadema, 15,1% e (2): 6, fev./mar. 2000.
São Caetano do Sul, com 13,8% (cf. Grande ABC em números, p. 102).
Vale dizer, do conjunto dos sete municípios que fazem parte da região, os
postos de trabalho em São Bernardo equivaliam a aproximadamente 40% e
as quatro cidades acima detinham, juntas, 90,8% dos empregos.
Ainda no que tange ao emprego, chama a atenção o fato de que, no pe-
ríodo que vai de 1989 a 1999, o emprego na indústria caiu de 52% dos
postos de trabalho para apenas 30%; já o emprego no comércio, no mesmo
intervalo de tempo, subiu de 12% para 22%, ao passo que os serviços foram
de 36% para 48% (cf. Idem, p. 94). Nesses onze anos, ocorreu um cresci-
mento significativo do emprego no setor terciário, passando de 48% para
70%, e uma queda acentuada do emprego industrial. Em parte, esse pro-
cesso de perda de postos de trabalho no setor industrial na região pode ser
percebido quando se compara a participação relativa da produção de veícu-
los no total nacional entre 1975 e 1998. Naquele ano, a produção regional
foi de 803.785 veículos, o que equivalia a 86,4% da produção nacional, que
chegou a 930.235 veículos. No entanto, em 1999, a região produziu apenas
535.741 autoveículos, contra 1.585.630 fabricados no país, isto é, a parti-
cipação do ABC na produção nacional caiu para 33,8% (cf. Conceição,
2001, p. 64).
A queda na participação da produção de veículos e do emprego indus-
trial na região ganha mais relevância quando se considera que, em 1999, o
complexo da produção automotiva significava aproximadamente 40% do
valor adicionado e 27% da mão-de-obra ocupada na indústria do Grande
ABC (cf. Idem, p. 10).
Alguns fatores favoreceram a diminuição, tanto relativa como absoluta,
do trabalho industrial no ABC. Em primeiro lugar, é um processo que
acompanha uma tendência internacional – decorrência da chamada globa-
lização –, presente principalmente nos países centrais; em segundo lugar, é
resultado da ampla reorganização produtiva nas últimas duas décadas, da
guerra fiscal e das mudanças na política macroeconômica do último decê-
nio. O caso da indústria de autopeças na região é, nesse aspecto, exemplar:
[...] muito mais que o reflexo de uma transformação mais estrutural do tipo daquela
que ocorreu em economias regionais estrangeiras, os ganhos que a região obteve em
determinados setores de terciário, como, por exemplo, os serviços técnicos e profis-
sionais e o comércio varejista, relacionam-se com o caráter tardio de desenvolvi-
mento desses setores no Grande ABC em relação à região metropolitana. Mesmo
assim, a relativa participação de setores como os de serviços técnicos e profissionais
no conjunto do emprego do Grande ABC está ainda longe dos patamares da Capi-
tal, cuja pujança nesses setores permanece incontestável (Idem, ibidem).
São essas as condições que hoje norteiam o trabalho e a vida dos meta-
lúrgicos que fizeram parte da pesquisa. Sem levá-las em consideração, fica
difícil entender as atitudes e as orientações desses trabalhadores, especial-
mente dos jovens que, nascidos entre os anos de 1973 e 1982, tiveram sua
trajetória pessoal e profissional marcada por esses acontecimentos.
A pesquisa
[...] as atitudes dos operários ante o trabalho fabril e a sociedade industrial não são
as mesmas em todas as épocas e em todos os países. Embora seja possível encontrar
certos componentes “universais” do comportamento operário, que decorrem da
posição que a classe ocupa no sistema de produção e na sociedade inclusiva (defesa
de seus interesses profissionais e econômicos, de sua autonomia organizatória etc.),
as formas de organização sindical e política, assim como as ideologias, têm variado
segundo as características do processo de industrialização, do modo particular de
formação da classe, do sistema político imperante etc.
[...] não hesitei pois em situar o grupo estudado, tanto na perspectiva histórica,
quanto no complexo de problemas que hoje caracterizam a vida rural de São Pau-
lo. Como o leitor verá, quando falo nos membros do grupo que estudei, estou a
cada momento pensando no caipira, em geral; e, reciprocamente, quando procuro
compor esta abstração metodologicamente útil, a experiência real que a comprova
é, sobretudo, a do grupo que estudei (Candido, 1964, p. 6).
TABELA 1
Sexo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SEXO
Masculino 95 96
Feminino 5 4
TOTAL 100 100
TABELA 2
Raça
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RAÇA
Branca 69 79
Negra 6 7
Parda 23 14
Amarela 1 0
Indígena 1 0
TOTAL 100 100
TABELA 3
Religião
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RELIGIÃO
Católica 70 66
Batista 4 4
Assembléia de Deus 3 9
Universal 2 1
Espírita 3 1
Sem religião 4 13
Ateu 0 1
Outras 14 5
TOTAL 100 100
TABELA 4
Estado ou região de origem
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ESTADO
OU REGIÃO DE ORIGEM
São Paulo 59 91
Nordeste 23 4
Centro-Oeste 1 0
Sul 8 5
TOTAL 100 100
TABELA 5
Nascidos no estado de São Paulo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NASCIDOS EM
Capital 27 25
Interior 21 3
TABELA 6
Situação conjugal
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SITUAÇÃO CONJUGAL
Solteiro 6 59
Divorciado 4 2
Viúvo 1 0
TOTAL 100 100
Além disso, conforme a Tabela 7, quase 70% dos jovens não têm filhos e o
restante deles têm de um a dois filhos no máximo. Esses dados são, para os
maiores de 30 anos, de 23% e 44%, respectivamente. De qualquer manei-
ra, é interessante observar que apenas 6% dos funcionários dessas monta-
doras têm mais de três filhos.
7
TABELA
Número de filhos
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NÚMERO DE FILHOS
Sem filhos 9 68
1 filho 23 22
2 filhos 44 10
3 filhos 18 0
Mais de 3 filhos 6 0
TOTAL 100 100
TABELA8
Empregados que estão estudando
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
EMPREGADOS
QUE ESTÃO ESTUDANDO
Sim 16 47
Não 84 53
TOTAL 100 100
TABELA 9
Rede de ensino em que estuda
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
REDE DE ENSINO
Pública municipal 8 3
Pública estadual 13 6
Particular 79 91
TOTAL 100 100
Por outro lado, a esmagadora maioria dos jovens fez curso profissionali-
zante (82%); já entre aqueles com mais de 30 anos, esse percentual é de
60%. Entre as instituições que ajudaram na formação profissional, o Senai
aparece como a mais importante para os dois grupos estudados (a Tabela
11 permite mais de uma resposta). Vale dizer, o percentual do grupo de
faixa etária menor que está estudando é praticamente três vezes maior que
o do grupo de trabalhadores mais velhos. Além disso, nesse grupo apenas
18% não fizeram curso profissionalizante contra mais do dobro do per-
centual entre os mais velhos (40%). Conclui-se, portanto, que o grupo de
jovens operários tem maior formação profissional e é mais escolarizado,
destacando-se quando comparados com o restante de empregados de faixa
etária mais elevada.
TABELA 10
Curso profissionalizante
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
CURSO
PROFISSIONALIZANTE
Sim 60 82
Não 40 18
TOTAL 100 100
TABELA 11
Onde realizou o curso profissionalizante
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ONDE REALIZOU O
CURSO PROFISSIONALIZANTE
Empresa 21 0
Escola técnica 36 37
Senai 61 86
Sindicato 9 4
TABELA 13
Escolaridade paterna
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
ESCOLARIDADE PATERNA
Analfabeto 20 3
Ensino fundamental incompleto 45 29
Ensino fundamental completo 25 26
Ensino médio incompleto 3 9
Ensino médio completo 5 24
Superior incompleto 1 6
Superior completo 1 4
TOTAL 100 100
TABELA 14
Nível salarial
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
NÍVEL SALARIAL
Até R$ 600 1 0
De R$ 601 a R$ 1.200 2 8
De R$ 1.201 a R$ 1.800 54 50
De R$ 1.801 a R$ 2.400 18 19
De R$ 2.401 a R$ 3.000 11 17
Mais de R$ 3.000 14 6
TOTAL 100 100
O que esses dados estariam indicando? Como o grupo dos jovens tem
maior qualificação, maior escolaridade formal, seria de se esperar que seus
salários fossem mais altos. Entretanto, considerando os salários acima de
R$ 1.801,00, vemos que as porcentagens de trabalhadores das duas faixas
etárias praticamente se igualam: 43% dos mais velhos e 42% dos jovens aí
se localizam. Para uma comparação mais refinada, contudo, seria preciso
considerar o tempo de trabalho na empresa e, nesse caso, os jovens pode-
riam ter uma vantagem, visto que, mesmo com menos tempo na empresa,
recebem salários praticamente equivalentes aos dos mais velhos.
É importante ressaltar que, da época em que foi realizada a pesquisa até
setembro de 2005, ocorreram três aumentos e/ou reposições salariais. De
acordo com os dados do Dieese, da subseção do sindicato dos metalúrgicos
do ABC, para aqueles que ganhavam até R$ 5.000,00 no dia 1º de setembro
de 2005, o total da reposição salarial chegou a 41,36% nos últimos três anos.
Com relação à situação de moradia, na Tabela 15, chama a atenção o
fato de que aproximadamente 80% dos jovens entrevistados e 85% dos
TABELA 15
Situação da moradia
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
SITUAÇÃO DA MORADIA
Própria já paga 63 64
Própria ainda pagando 22 15
Alugada 9 11
Cedida de outra forma 4 3
Outra condição 2 7
TOTAL 100 100
No que tange aos bens de consumo, como mostra a Tabela 16, os jovens
trabalhadores das montadoras têm equipamentos domésticos que deno-
tam um padrão de consumo de “classe média”. Nos dois grupos de operá-
rios estudados, um número expressivo deles possui carro, máquina de la-
var, computador etc. O que chama a atenção é que entre aqueles que estão
na faixa etária de 19 a 29 anos, 93% possuem carro, contra 81% entre os
mais velhos.
TABELA 16
Bens de consumo
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
BENS DE CONSUMO
Geladeira 99 100
Rádio 98 100
Televisão 98 97
Telefone fixo 96 99
Máquina de lavar roupa 94 93
Carro 81 93
Videocassete 82 87
Telefone celular 52 77
Forno de microondas 71 75
Computador 48 66
Internet 35 55
DVD 15 32
TV por assinatura 21 22
O trabalho na empresa
TABELA17
Tempo de trabalho na empresa
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
TEMPO DE CASA
Menos de 5 anos 2 20
6 a 10 anos 18 58
11 a 15 anos 29 21
16 a 20 anos 37 1
Mais de 20 anos 14 0
TOTAL 100 100
TABELA18
Opinião sobre relação empresa/funcionário
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
RELAÇÃO EMPRESA/FUNCIONÁRIO
Ótima 21 7
Boa 60 54
Razoável 18 32
Ruim 1 7
TOTAL 100 100
TABELA19
Opinião sobre as condições de trabalho
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
CONDIÇÕES DE TRABALHO
Ótimas 19 10
Boas 64 61
Razoáveis 16 25
Ruins 1 4
TOTAL 100 100
Pela Tabela 20, apesar dessa perspectiva mais crítica dos jovens, vemos que
85% deles sentem orgulho de trabalhar na empresa, enquanto 96% dos
entrevistados com 30 anos ou mais responderam afirmativamente a essa
questão. Por fim, 3% dos mais velhos não souberam responder, contra
11% daqueles que se situam na faixa etária de 19 a 29 anos.
TABELA 20
Valorização do trabalho na empresa
FAIXA ETÁRIA 30 anos ou mais (%) Até 29 anos (%)
VALORIZAÇÃO DO TRABALHO NA EMPRESA
Sim 96 85
Não 1 4
Não sei 3 11
TOTAL 100 100
[...] não é aquilo que se entende comumente por politização, isto é, aquilo que os
aparelhos políticos estão preparados para registrar e fortalecer. É um questiona-
mento mais geral, mais vago, uma espécie de mal-estar no trabalho, algo que não é
político no sentido estabelecido, mas que poderia sê-lo; algo que se parece muito a
certas formas de consciência política ao mesmo tempo cegas em relação a si mes-
mas, porque não acharam seu discurso, e com uma força revolucionária extraordi-
nária capaz de superar os aparelhos [...] (1983, p. 118).
têm consciência de seus significados, até escolhem seu partido político, mas
não têm interesse pela política, afastam-se da militância, seja a sindical, seja a
partidária. É como se existisse uma cultura da desconfiança, certo mal-estar
e distanciamento.
Contudo, a pesquisa de Tomizaki dá uma informação importante: a ida-
de média de entrada no movimento sindical das lideranças da primeira gera-
ção é de 30 anos, enquanto para os jovens representantes a média caiu para
23 anos. Esse dado ajuda-nos a relativizar a discussão a respeito da participa-
ção política dos jovens, acatando estudos que procuram mostrar as formas
pelas quais os jovens se expressam politicamente hoje (cf. Ponte de Sousa,
1999; Novaes, 2000), sem estabelecer comparações com as gerações ante-
riores. Afinal, como lembra um trabalhador da geração mais velha entrevis-
tado por Tomizaki, “ ‘em sua época’, os jovens também participavam pouco
e precisavam ser ‘puxados’ pelos mais velhos” (2005, p. 230).
A análise desenvolvida até aqui mostrou que, em certos aspectos, a si-
tuação dos jovens trabalhadores em montadoras é melhor do que a de
outros jovens inseridos no mercado de trabalho e, em todos os sentidos,
superior à dos jovens que permanecem à margem do trabalho, seja como
desempregados, seja como subempregados. Essas diferentes juventudes
vivenciam condições de vida e de trabalho caracterizadas pela diversidade
quanto a escolaridade, qualificação profissional, tempo de trabalho na
empresa, tipo de contrato de trabalho, estabilidade no emprego, salários,
acesso a bens de consumo e possibilidades de estabelecer projetos para o
futuro. Diante das incertezas do mundo globalizado que afetam a todos,
os jovens trabalhadores das montadoras parecem protegidos, pois estão
empregados e, melhor ainda, em empresas que constituem o sonho de
grande parte da juventude. Entretanto, o que nosso estudo demonstra é
que eles também são atingidos pela insatisfação e pelo medo. Insatisfação
quanto às condições de trabalho, quanto ao reconhecimento de seus esfor-
ços e da competência adquirida na escola. Afinal, apesar do curso técnico,
59% deles são classificados pelas empresas como trabalhadores semiquali-
ficados. O trabalho que executam não exige muitos conhecimentos e o
que aprenderam em escolas como o Senai não é usado e corre o risco de ser 22. Tomamos empresta-
esquecido (cf. Tomizaki, 2005, p. 159). Além disso, os trabalhadores hoje da da autora a expressão,
ainda que ela se refira
vivem marcados por uma cultura do medo (cf. Novaes, 2000)22, diante da
particularmente aos jo-
possibilidade da perda do emprego, de não encontrar um trabalho, de não vens nascidos nos anos de
ter as qualidades ou as habilidades para executar o serviço, ou seja, diante 1970 no Rio de Janeiro,
da possibilidade de fracassarem. É essa cultura que faz com que jovens que diante da violência.
ainda não chegaram aos 24 anos afirmem que estão “velhos” para ingressar
no mercado de trabalho (cf. Corrochano, 2005)!
Por isso, não é estranho o fato de que, em nossa pesquisa, 76% dos jo-
vens metalúrgicos declarem sua preocupação em perder o emprego. Ou
que, na pesquisa “Perfil da juventude brasileira”, o desemprego apareça
como o principal problema do Brasil na atualidade (cf. Guimarães, 2005,
pp. 160-161). Os jovens têm consciência da situação que vivem e, mesmo
aqueles que aparentemente não foram atingidos pelas mazelas que afligem a
juventude hoje, manifestam sua inquietação diante do futuro.
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Resumo
Perfil socioeconômico de jovens metalúrgicos
Este artigo analisa os dados de pesquisa realizada com trabalhadores da indústria auto-
mobilística na região do ABC, com destaque para aqueles em faixa etária entre 19 e 29
anos, efetuando uma comparação entre o perfil socioeconômico desses jovens meta-
lúrgicos e o de seus colegas de trabalho com 30 anos de idade ou mais. Destacando a
heterogeneidade que caracteriza a juventude, os autores mostram as diferenças exis-
tentes não só entre os trabalhadores mais jovens e os mais velhos, mas também entre os
jovens metalúrgicos e aqueles investigados em pesquisas anteriores. A análise mostrou
que, se em determinados aspectos a situação dos jovens trabalhadores em montadoras
é melhor do que a de outros jovens inseridos no mercado de trabalho e, em todos os
sentidos, superior à dos jovens que permanecem à margem do trabalho, seja como
desempregados, seja como subempregados, isso não significa, contudo, que não apre-
sentem insatisfações e temores diante das incertezas do mundo globalizado.
Palavras-chave: Jovem trabalhador; Indústria automobilística; Sindicalismo; Região do
ABC.
Abstract
Socio-economic profile of young metalworkers
This paper analyses data from a research done with automobile workers in the ABC
region (in the State of São Paulo), with special emphasis on those who are between 19
and 29 years of age. A comparison of their socio-economic profile was made with that
of their colleagues who are thirty or over. Pointing out the heterogeneity that charac-
terizes youth, the text shows the existing differences, not only between the younger
and the older metal workers, but also between the young metal workers and other
youths that took part in previous researches. The analysis shows that, to a certain
extent, those working in the automobile industry are better off than that other youths
in the labor market in general, and in all senses, their situation is a lot superior to that
of youths who have not been absorbed by the market, either because they are unem-
ployed, or because they are underemployed. This does not mean, however, that these
A importância da juventude nas comunidades de vida no Espírito Santo 1. Não encontramos re-
gistros de pesquisadores
sobre as comunidades de
Quem estuda a Renovação Carismática Católica (RCC) no Brasil tem se
vida até o final da déca-
surpreendido com o surgimento e o crescimento das chamadas “comuni- da de 1990. Em seu li-
dades de aliança e vida no Espírito Santo”. No Brasil, esse é um fenômeno vro, Machado (1996)
recente, registrado pelos pesquisadores apenas a partir do final da década refere-se às comunidades
de 1990 e nos anos de 20001. Criadas por participantes de grupos de ora- Emanuel e Bom Pastor,
no Rio de Janeiro, que
ção carismática, essas comunidades são um fenômeno internacional, já
eram apenas “de alian-
observado por Thomas Csordas (1997) nos Estados Unidos e por Martine ça”, mas nada comenta
Cohen (1990, 1997) na França. Leigos decidem se reunir para se dedicar sobre comunidades de
ao louvor, à adoração ao Santíssimo, à evangelização, à cura espiritual e às vida. Referências a estas
mais diversas obras sociais. No léxico das comunidades, essas atividades aparecem em Carranza
são chamadas de “carismas”. (2000), que aponta sua
existência em Campinas,
Entre seus membros, existem aqueles que procuram um tipo especial
e em Miranda (1999),
de consagração e passam a compartilhar as finanças e o cotidiano com que descreve especial-
outros, dividindo o mesmo teto e as despesas domésticas: formam a cha- mente a comunidade
mada “comunidade de vida”. Os demais, que continuam a morar com Shalom de Fortaleza. Os
seus familiares e a manter sua autonomia econômica, constituem a “co- trabalhos de Oliveira
(2003, 2004) são dedi-
munidade de aliança”. Alguns entrevistados afirmaram que ambas as co-
cados à comunidade
munidades são parte de um todo e não há hierarquia espiritual que defina Canção Nova.
a superioridade da opção de participar da “comunidade de vida”; contudo,
Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião, pp. 253-273
Rego, um jovem que foi inspirado por Deus na época e já participava de 5. Segundo a fundadora
grupo de oração e tudo, e foi inspirado por Deus”. da Bom Pastor, a comu-
nidade “era um grupo de
Os fundadores da Canção Nova e da Toca de Assis, respectivamente
oração. Começamos com
um padre e um seminarista, declaram que foram os jovens que os motiva- o próprio jovem. Meu
ram a criar a comunidade de vida. marido e eu e mais qua-
Ao falar sobre sua inspiração para criar a comunidade de vida Canção tro jovens, minha filha e
Nova e para se dedicar ao carisma de evangelizar pela mídia, o padre Jonas minha sobrinha e mais
dois jovens, e daí então a
Abib refere-se diretamente ao seu trabalho com os jovens. Em suas decla-
casa ficava com a porta
rações divulgadas no site, deixa clara a importância da juventude: encostada em dia de ora-
ção e as pessoas iam en-
[...] fiz o desafio e uma grande quantidade de jovens aceitou. Isto significava que real- trando”. Essa comunida-
mente já estavam experimentando a necessidade de se entregar àquele Cristo que come- de tem orgulho de dizer
çavam a descobrir. [...] Não sabia em que aventura estava me colocando. Pensei que iria que lá se descobriu a vo-
cação de uma freira e de
ficar só naquele catecumenato... Já aconteceu tudo isso! (Em www.cancaonova.com/
um padre (o padre Zeca,
cnova/pejonas/comunidade 02.php , consultado em 3 de setembro de 2005). muito conhecido no Rio
como animador do even-
O primeiro núcleo de vida iniciou-se com o padre Jonas e doze jovens. to juvenil “Deus é Dez”).
Segundo narra Brenda Carranza (2000), esse padre já tinha muita expe-
riência na pastoral de jovens e por alguns anos vinha liderando o movi-
mento católico “Encontros de Jovens” em Lorena.
Também a Toca de Assis tem a marca da juventude em sua origem. No
site oficial da comunidade, há várias informações sobre seu fundador. Nas-
cido em 1962, o padre Roberto Lettieri teria se convertido em 1983, aos
21 anos, quando participava de um desses “Encontros de Jovens”. O pri-
meiro núcleo da Toca foi formado, em 1994, por três jovens, sob a lide-
rança do padre Roberto, que aos 31 anos de idade era ainda seminarista. O
site informa que: “Quando ordenado sacerdote, em 8 de dezembro de
1996, esta obra, espelhada nos exemplos de pobreza, obediência, castidade
e gratuidade do ‘Poverello de Assis’, já contava com a ajuda de oitenta
jovens” (www.tocadeassis.org.br/fundador.html, consultado em 3 de se-
tembro de 2005).
Embora em todas as comunidades se declare que não são aceitos meno-
res de 18 anos, idade mínima para se consagrar, são comuns os comentá-
rios sobre a existência em alguma casa da comunidade de uma consagrada 6. Como no caso da co-
munidade Eis o Cordei-
com 16 ou 17 anos, que no entanto são consideradas casos excepcionais,
ro, em Niterói, que pos-
de pessoas “muito maduras em termos espirituais”6. sui apenas uma casa, e
Das três comunidades citadas, que têm abrangência nacional, a Toca também da comunida-
de Assis destaca-se pela pouca idade de seus membros. Pelas declarações de Toca de Assis.
dos entrevistados, essa idade poderia ser ainda menor, se fosse legalmente
permitido ingressar com menos de 18 anos. Na época da coleta de dados
para nossa pesquisa, observamos que em duas casas da Toca a maior parte
dos membros tinha menos de 25 anos e a idade de ingresso era ainda
7. A entrevistada, na casa menor7. Ao abandonar o estudo e a profissionalização, ou o projeto de
das mulheres da Toca, formação de uma família pelo casamento, esses jovens passam a viver ape-
em Santa Teresa, Rio de nas de doações, e se tornam aquilo que Weber (1991) chamava de um
Janerio, explicou: “O de
“virtuose religioso”. Sem dúvida, há problemas práticos na idade madura
menor tá mais difícil de
entrar, porque antes en- que tornam a opção por comunidades de vida menos viável. Os membros
trava com treze anos, ca- das comunidades de aliança, mais velhos, muitos com mais de 40 anos,
torze, mas agora tá pre- deixam claro em seus depoimentos que não puderam, como os mais jo-
cisando, pela lei, de es- vens, optar por viver integralmente para a “obra”; comentam que essa op-
tudar”.
ção é possível apenas na juventude, quando ainda não foram assumidos
8. Ver entrevista citada compromissos anteriores8.
em artigo anterior sobre Essa retórica sobre a importância da juventude e principalmente a pou-
o tema (Mariz, 2005). ca idade de ingresso nessas comunidades levaram-nos a refletir sobre o
papel dos jovens não apenas nesse tipo de experiência, mas nos movimen-
tos religiosos em geral, em especial nos de cunho reavivado. Vários são os
relatos de pesquisas que descrevem o fervor de jovens em eventos da Reno-
9. Dados sobre o entu- vação Carismática e de igrejas pentecostais9. Sílvia Fernandes (2004), em
siasmo dos jovens da sua pesquisa com seminaristas e noviças, encontrou jovens que “descobri-
RCC aparecem em Car- ram sua vocação” participando da RCC. Em seu estudo sobre a Igreja
ranza (2000) e Oliveira
Universal do Reino de Deus no Rio de Janeiro, Bárbara Serrano (2003)
(2003). Fervor similar foi
observado por Rozicléa observa um grupo de jovens missionários que seriam verdadeiros “virtuoses
E. do Nascimento no religiosos” no sentido weberiano. Essa atração dos jovens por um tipo de
templo da Igreja Univer- opção religiosa mais radical aparece ainda no trabalho de Patrícia Birman
sal na Favela da Maré, (2000), em que analisa atitudes e discursos de pais franceses cujos filhos
Rio de Janeiro, durante
ingressaram em grupos tidos como “seitas”. Analisar uma possível relação
pesquisa promovida pelo
Ceris (Centro de Esta- entre juventude, subjetividade juvenil e virtuosismo religioso na sociedade
tística Religiosa e Inves- contemporânea é uma das questões deste artigo.
tigação Social) em 1994,
cujos resultados foram Juventude e virtuosismo religioso: retóricas e dados
publicados em Mariz
(2001).
Se, por um lado, constatamos uma atração dos jovens pelas comunida-
des, por outro podemos também perceber uma retórica sobre a maior ca-
pacidade da juventude de “doar-se”. É comum, no discurso das pastorais
católicas que procuram mobilizar a juventude, haver referências à “genero-
sidade natural do jovem”. No papado de João Paulo II ficou bem clara a
entanto, a proposta deste artigo10, que pretende apenas levantar alguns 10. Há uma ampla biblio-
pontos que podem ajudar a entender a relação entre juventude e virtuosismo grafia, que não se preten-
de analisar aqui, orienta-
religioso.
da por Machado Pais e
Bourdieu, que debate a
Qual a definição de jovem na sociedade contemporânea? conceituação de juventude
e culturas juvenis na so-
Como revelam numerosas etnografias sobre os mais diferentes povos ciedade moderna contem-
porânea. Para uma análi-
não ocidentais, a maturação biológica dos indivíduos através de seu ciclo
se desse debate e literatu-
vital tem sido sempre uma marca social importante (cf., entre outros, Evans- ra, ver Sposito (2001).
Pritchard, 2002, pp. 257-258). Os antropólogos descrevem os mais dis-
tintos ritos de iniciação de entrada na idade adulta e a antropologia tem
refletido comparativamente sobre a passagem da infância para a idade adulta
no Ocidente e entre os diversos povos já estudados (cf. Mead, 1995, entre
outros). A posição no ciclo vital, embora possa ser socialmente descrita,
categorizada e/ou interpretada de formas distintas, baseia-se em alguns
elementos da natureza biológica do ser humano. Tal como o gênero, a
natureza impõe certo limite às distintas construções culturais possíveis e,
dessa forma, sempre existem categorias que distinguem crianças de adul-
tos, assim como sempre haverá as categorias homens e mulheres nas dis-
tintas sociedades no decorrer da história.
Tanto o status de gênero como o de idade (ou posição no ciclo de vida)
são “status atribuídos”, na medida em que dependem de características
físicas definidas pela constituição biológica de cada um. No entanto, ao
contrário do gênero e dos demais status atribuídos, a idade é, por defini-
ção, um status mutável, mas sua mudança também é atribuída. É inerente
a esse status seu caráter passageiro: o indivíduo pode pertencer a uma coorte
geracional ou grupo etário, como no caso dos nuer, descrito por Evans-
Pritchard (2002), mas a etapa da vida inevitavelmente mudará.
Com efeito, em todas as sociedades, os status de “criança”, “jovem”,
“adulto”, “velho” são transitórios, como transitória é a vida. Desses, contu- 11.Em certa medida,
do, o de jovem parece ser o mais passageiro por ser concebido como situa- pode-se supor que o
ção intermediária em que o indivíduo deixa a infância e se torna adulto. forte processo de indi-
Em muitos povos, segundo descrições de antropólogos, esse período limi- vidualização da socieda-
nar pode ser relativamente breve, mas muito intenso, marcado por ritos de de moderna leva a que
se exacerbe a rejeição ao
iniciação cujas práticas por vezes chocam a sensibilidade ocidental contem-
sofrimento individual
porânea, pelo tipo de sofrimento físico que podem infligir aos indivíduos. mesmo que seja por
O caráter radical e doloroso desses rituais e experiências reforça essa passa- causas coletivas social-
gem como uma experiência coletiva11. mente legítimas.
Então a gente sai pra rua, temos a Pastoral de Rua, então ficamos de manhã, de
tarde e às vezes até à noite. Às vezes dormimos com eles até na rua, né, diante de
uma realidade, de uma personalidade, a condição que o irmão se encontra [...] às
vezes é muito flagelado pela sociedade, então a nossa presença muitas vezes inco-
moda porque foi muito maltratado [...].
[...] um problema sério [...] é dormir [...] porque nossa vida é muito cansada,
cansativa assim, [...] não existe assim um horário, até por causa da oração mesmo,
aí quem adora de madrugada, então é uma hora a menos que dorme, né? Não tem
um período assim de oito horas certinho [...] acorda cinco e meia aí tem os dias
que não acorda tão [cedo], que nem domingo acorda seis e meia, não é uma regra
[...] a gente faz o Sacramento todos os dias [...] então depende muito dos horários
das igrejas [...].
[...] uma regra de vida dentro da comunidade, todos os membros precisam partici-
par da missa todos os dias – nós precisamos rezar o rosário todos os dias – não é
nem o terço, é o rosário – e precisamos também fazer jejum quarta e sexta-feira.
Precisamos também fazer o estudo da palavra. Tem que se virar pra fazer tudo isso
durante o dia.
[...] o masoquismo, pela sua auto-renúncia radical, proporciona o meio pelo qual
o sofrimento e a própria morte do indivíduo podem ser radicalmente transcendi-
dos, a ponto de o indivíduo não só achar suportáveis essas experiências, mas até as
acolher cordialmente (1985, p. 68).
A angústia da morte [...] parece ser um dos elementos igualmente presentes na base
do engajamento do jovem em condutas violentas. No Brasil, além da marca deixada
na experiência do surf ferroviário, a angústia da morte parece ser um elemento cons-
titutivo de condições subjetivas de engajamento do jovem favelado carioca no tráfico
de drogas e na violência.
É uma convivência saudável, [...] sem mácula, uma convivência – como eu posso
dizer pra você – pura, da qual a gente não consegue perceber pela corrupção daqui-
lo que a gente tá vivendo no mundo, né, aquela sedução, a magia do mundo.
Então, eu estranhei. Pra mim, todo mundo aqui é gay. Aquela coisa assim, né. Não
gostava muito das músicas e não tava entendendo nada do que tava acontecendo.
nil/infantil para a idade adulta, mas como a ruptura com uma vida pre-
gressa impregnada de valores mundanos que agora condenam. Em seus
depoimentos, os jovens entrevistados referem-se a uma ruptura com uma
experiência anterior de vida, descrita como longa. As duas declarações
abaixo ilustram esse discurso e também deixam evidente a relatividade da
experiência temporal. Os jovens falam como se já houvessem tido uma
larga experiência de vida antes do ingresso na comunidade. A primeira é
de um membro da comunidade Canção Nova, de 26 anos:
Foi no ano de 1996 que eu resolvi aprofundar mais [...]. Eu tinha por volta de 16,
17 anos. Na época eu tinha um bom trabalho [...] um excelente trabalho, bom
salário, mas percebi que não estava por completo, precisava dar um passo a mais
decidindo a minha vocação. [...] quando eu resolvi aprofundar nesse caminho.
[...] eu conheci a Shalom quando tinha 14 anos. Já faz metade da minha vida que
eu conheço a comunidade, que estou no caminho. Mas eu demorei até descobrir
que a minha vocação era a Shalom e eu relaxei muito também, fiz muita besteira.
preferência dos adeptos15, como podem reforçar-se mutuamente. Esse re- 15. Segundo Dalgalar-
forço ocorre, por exemplo, em religiões que fazem uso ritual de substân- rondo et al. (2004) e
Sanchez et al. (2004),
cias psicoativas. Atualmente, no Brasil, dois grupos religiosos destacam-se
pesquisas no Brasil e no
por isso, o Daime e o Rastafari, ambos com um apelo especial entre a exterior têm demonstra-
juventude (cf., por exemplo, Cunha, 1993). do que a religião pode
Para entender a relação entre droga e religião, pode-se adotar o mesmo moderar o consumo de
tipo de argumento que Weber apresenta para entender a relação entre as álcool e de drogas entre
adolescentes e jovens.
diferentes esferas da vida e a religião. Como citado antes, Weber (1982b)
aponta similaridades que podem gerar ora tensões ora união entre o âmbito
religioso e outras esferas. No caso da esfera política, Weber comenta que o
sentimento de comunhão gerado pela experiência da guerra e da luta contra
um inimigo comum pode competir com, ou reforçar, a comunhão gerada
na esfera religiosa. O mesmo tipo de relação ambígua ocorreria também
entre a religião e as esferas eróticas e estéticas. Assim, tanto as artes como o
erotismo desempenham papéis similares ao das religiões, gerando estados
modificados de consciência, sentimento de solidariedade e fusão; por isso,
as religiões tanto podem competir com elas como podem reforçá-las, de-
pendendo do contexto no qual cada uma dessas experiências é interpretada
e vivida. O que para esse autor parece estar presente em todas as experiên-
cias é a possibilidade de o indivíduo encontrar sentido para sua vida e tam-
bém sentimentos de transcendência, fusão e pertencimento coletivo. Para
usar a linguagem durkheimiana e funcionalista, pode-se dizer que Weber
percebia que tais esferas da vida ameaçavam a religião, na medida em que
podiam ser funcionalmente religiosas.
Com efeito, a experiência de desvio e ruptura vivenciada pelos jovens que
optam pelas comunidades de vida tem apelo e força na medida em que pode
gerar um sentimento de forte pertencimento, característico das minorias. Sem
dúvida, uma minoria que rompe com a sociedade mais ampla procurando dis-
tinguir-se, criando certo sentimento de superioridade, pois possui laços de so-
lidariedade interna extremamente sólidos.
Nós temos um local chamado Rincão do meu Senhor. Esse lugar reúne hoje com tran-
qüilidade 15 mil pessoas em um encontro, acontecem em média dois encontros por
mês. São nos finais de semana e reúnem com tranqüilidade 15 mil pessoas – em eventos
17. A construção desse grandes chega a 30 mil pessoas. E, atualmente, né, já estamos construindo um rincão17
rincão foi concluída em para 60 mil pessoas, porque o atual já não suporta mais, tá se tornando muito pequeno.
2004.
Considerações finais
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Resumo
Comunidades de vida no Espírito Santo: juventude e religião
Dados coletados sobre a Renovação Carismática Católica (RCC) têm revelado a im-
portância dos jovens na criação, na manutenção e no crescimento das chamadas “Co-
munidades de Vida no Espírito”. A maior parte dessas comunidades foi criada para e/
ou por jovens. Dentre as estudadas, a Toca de Assis é a que mais chama a atenção pela
juventude de seus membros, sendo também a que opta por um estilo mais radical de
vida na busca da santidade. A partir desses dados e da reflexão sobre o conceito de
juventude na modernidade, pretende-se neste artigo refletir sobre a radicalidade das
experiências juvenis em distintas esferas da vida, mas especialmente na religião e na
política, para entender o papel tenso e ambíguo desempenhado pelos jovens em movi-
mentos religiosos diversos.
Palavras-chave: Juventude; Religião; Comunidade; Catolicismo; Movimento carismático.
Abstract
Communities of life in the Holy Spirit: youth and religion
Data collected on the Catholic Charismatic Renovation (CCR) has shown how im-
portant youths are in the creation, maintenance and growth of the so-called “Commu-
nities of Life in Spirit”. The majority of these communities were either founded for or
by young people. Among those studied, “Toca de Assis” is the one that stands out
because of the age of its members, and because it also chooses a more radical life style
in the search for spiritual enlightenment. Based on these data and on the discussion of
the concept of youth in modernity, this paper aims to treat the radicalism of juvenile
experiences in different domains of life, especially with regard to religion and politics,
in order to understand the tense and ambiguous role taken on by youngsters in differ-
ent religious movements.
Keywords: Youth; Religion; Community; Catholicism; Charismatic movement.
vizinhos e até mesmo de pessoas que mal conhecem. Essa união, muitas
vezes momentânea, é considerada, na maior parte dos casos, uma espécie
de organização entendida como “gangue”, bando ou quadrilha. A mídia,
por sua vez, traz esse fenômeno para pauta do dia. Há um grande alarde
sobre as atitudes desses adolescentes, principalmente quando envolve cri-
me de morte ou crimes que caminham no sentido periferia-centro. Nos
últimos anos, esse fenômeno passou a ser percebido como um problema
social e ganhou estatuto de questão nacional.
Contudo, a pobreza por si só não explica a violência nessas áreas, palco
de nossa pesquisa, uma vez que os dados sobre outras regiões da cidade,
igualmente miseráveis, apresentam um número menor de adolescentes
infratores. Além disso, mesmo nas áreas mais miseráveis, apenas uma par-
cela dos adolescentes envereda para o campo da delinqüência. Outros ele-
mentos devem existir que indiquem as causas desse fenômeno.
O modo de inserção social dos jovens de diferentes grupos na cidade de
São Paulo pode ser distinto, mas há uma marca em todos eles: o uso da vio-
lência como forma maior de expressão. Apesar de esse tema ser considerado
preocupante no cenário nacional, a violência envolvendo adolescentes não é
assunto recente e nem menos debatido. O interesse da sociedade por esse
fenômeno vem do século passado e suas diferentes propostas de soluções ca-
minharam sempre juntas.
As gangues
No Brasil
Em São Paulo
Resposta – Aí meu... num tem essa de grupo... de gangue... aqui é cada um por si.
Se eu tenho uma treta cum camarada, eu vô lá e vejo o que dá... vô chamá?...
ninguém não! É comigo memo...
Pergunta – Você nunca se envolveu com uma gangue aqui do Capão ou de Santo
Amaro?
Resposta – Eu não... nunca vi esse negócio.
Pergunta – Mas como, se você falou que fez um assalto e estavam em quatro?
Resposta – Ah! Mas tudo camarada daqui... sem esse negócio de gangue. A gente
tava aqui e falamo: vamo fazê?... Aí Zito [um amigo] disse: vamo chamá mais
gente. Chamamo mais dois e falei: tá afim da fita? Tá? É isso... fizemo. Depois
cabô... é isso aí... tá ligado?
Pergunta – Mas esses dois não eram seus amigos?
Resposta – Amigo?... ah, amigo assim... daqui, né? Tá ligado? Tavam sem fazê
nada, aí veio com a gente! Depois acabô... se pintar outra fita quem sabe a gente
vai de novo (R. S., 17 anos, Capão Redondo, internado três vezes na Febem Ta-
tuapé por roubo).
Destruição
Outro jovem, este de classe média, relatou um caso ocorrido com ele e
seu amigo:
Resposta – Ah! Quando o homem caiu pra trás saimo correndo... não vi ninguém...
Pergunta – O homem morreu?
Resposta – Não sei... acho que não... (P. J., 18 anos, Morumbi, duas passagens pela
Febem por roubo. O pai é advogado e possui um carro modelo Vectra, mesmo
modelo que ele pretendia levar da vítima).
Resposta – Camarada nosso já tinha dado a fita pra nóis. Eu e outro cara aí esperamo
a dona sair, era cedinho, assim sete hora, acho. Mó casão, cara. Ela foi tirando o
carro assim de ré, quando saiu na calçada enquadramo, cara. Tirei o trezoitão
assim, ô meu! Num tem outra. Ela ficou vermelha, começou a tremer, assim. E eu
vai, vai, vai!
Pergunta – O que você sentiu na hora? Lembra?
Resposta – Ô, meu! Senti uma coisa assim, esquisita. O dedo ali, cara, hum, num
sei não. O diabo atenta, num atenta? Dá uma vontade de apertá. Mas eu só dei
uma assim [um soco] na cabeça dela. Aí a gente foi no carro dela até o banco, mas
fui assim, na maió adrenalina, cara! Faltô isso pra apertar o cano! (W. A., 16 anos,
Paraisópolis, internado na Febem por esse seqüestro, que acabou na porta do caixa
eletrônico, onde foram pegos pela polícia).
Esses jovens levam uma vida com uma significação especial e, além de
manterem uma estrutura temporal aberta (não há o que fazer com o dia e
com a noite a não ser reafirmar a delinqüência), também organizam uma
estrutura social que engendra as diferentes linhas de ação. Vivem, assim,
constantemente entre dois pólos de instigação social. Por um lado, há a
opressão institucional que a todo instante lhes cobra a obediência à ordem
e os aconselha a seguir o caminho da “regeneração”. Por outro lado, não
têm como fugir do mundo da delinqüência. “Devem por essa via atualizar
periodicamente seu repertório de práticas deliqüenciais, ampliar seu raio
de ação e de contato. Estender seu currículo, se tornar cada vez mais auda-
cioso, enfrentar todos e todas as circunstâncias com que se defrontam em
seu caminho tortuoso” (Adorno, 1991, p. 208).
A classificação de desviantes, que os outros elaboram, só vem de encon-
tro às suas expectativas. Há um forte apelo entre esses jovens de se configu-
rarem entre os seus como uma espécie de outsiders. A forma de andar, os
gestos com os braços, com as mãos, as gírias utilizadas, não são característi-
cas apenas do jovem da periferia, mas também estão presentes, pelo menos
em parte, entre os adolescentes das classes mais abastadas. Utilizam o corpo
como forma de linguagem. Os jovens da classe média “imitam” os jovens
da periferia, identificando-se com as roupas, a linguagem, o gestual, o rap
que invadiu os condomínios dos bairros nobres da cidade. Ser tachado de
marginal pelos outros chega a ser uma conquista. De maneira geral, o pri-
Resposta – Tinha que tá lá sete da manhã. Chegava já tomava dura, tá ligado? Aí, tá
atrasado, tá atrasado. Tinha que ficá carregando caixa até as oito, nove, depois
ficava empacotando até as cinco. E só dura, só dura. Ia pro almoço, voltava, aí tá
atrasado, tá atrasado. Uma vez um saquinho tava furado, caiu a mantega de uma
mulher, ele veio me empurrou, sai! Na frente de todo mundo. Que jeito, meu? Até
a dona falô: aí, não foi nada. Cê qué o quê?
O outro eu era ajudante de pedrero. Mas ali meu, era que o pesado era comigo, tá
ligado? Carrega aquilo, aquele outro. Pega o tijolo, aí faz a massa. E o véio ficava lá,
faça isso, faça isso. Tudo eu, tá ligado? Ganhar o quê? Sai! Isso não é vida! E tem
também esse negócio de primeiro grau. Tem primeiro grau? Tem segundo grau?
Vá se fuder! (P. W., 18 anos, Capão Redondo).
Resposta – A gente tava indo pra [rua] Funchal e entramo numa banca que tem lá
perto e ficamo ali olhando. Tinha uma pá de revista legal. Saca aquela do Batman,
aquela grandona, nova, do Cavaleiro das Trevas? Então, queria levar aquela. Falei
pro cara: Vô levar essa daqui... posso pagar depois? O cara riu e falou: Claro que
não! Cê acha que eu vô deixar você levar a revista assim na manha? Nem fudendo!
Aquele jeito dele, cara... aquele jeito, meu... nem falei nada... dei um soco na cara
dele, meu... ele espatifou no canto da caixa dele. Tava com meu canivete, devia era
ter dado uns furo nele. A sorte era que tinha uma pá de gente lá fora. Aí, ele quis
levantar, pisei na cara dele! [Rindo] Ah! Seu bosta! Aí, vô levar a revista que eu
quiser aqui e cale sua boca, falô? Peguei um livrão que tinha assim na prateleira e
taquei nele assim. Ele ficou lá resmungando...
intenção de matá”. Não sabiam explicar por que mataram duas crianças
amigas deles. O que impressionou o delegado foi a tranqüilidade dos garo-
tos enquanto estavam sendo interrogados.
Podemos dizer que o mundo moderno, além de isolar o indivíduo e se-
gregá-lo de certos aspectos da convivência social, possibilita uma manipula-
ção do poder em determinados casos. Na ação estrita do assassinato, pode-
mos perceber certa sensualidade na elaboração do ato. Para Katz (1988), isso
só é possível nos indivíduos com um espírito de criminalidade, ou seja, são
necessárias uma prática no modo de ação executiva, uma criação simbólica
que define a situação e uma fina estética em reconhecer e elaborar uma possi-
bilidade sensual. Intimidar o outro, por exemplo, é uma das formas de cri-
minalidade mais essenciais ao desafio moral de um indivíduo, o ato de im-
por-se sobre o outro desde a fala até a destruição do corpo do inimigo. Não é
somente destruir o outro, mas destruir seu corpo para o social.
A sensualidade mostra-se nessa ação brutal, na forma como se mata, na
atitude e no significado de toda a cena onde se desenvolve o acontecimento.
Atirar em alguém, esfaquear um corpo, cortar partes dele4, esmagar a carne 4. “Porque é preciso
são atos que parecem envolver toda uma sensualidade recheada de significa- matá-lo, também, sim-
dos. Como o jovem que matou seu ex-patrão e antes de sair pisou em seu bolicamente, matá-lo
para a sociedade, matar
sangue, numa atitude derradeira de esmagar seu corpo (já sem vida), ou o
a possibilidade de sua
garoto que assaltou o ônibus e tentou escrever seu nome no rosto do moto- memória como pessoa.
rista. São tentativas de expurgar algo dentro de si, numa ação envolvida Não é apenas retirá-lo
com a sensualidade. Por isso esses jovens provocam o terror. Segundo Elias como corpo físico, mas
(1990), o terror está no centro da questão do pudor: o terror de se tornar também matá-lo para a
sociedade” (Martins,
vulnerável à agressão do outro e, mais especialmente, aos gestos de superio-
1996, p. 21).
ridade de um outro mais forte.
Os garotos aqui citados, assim como a maioria dos outros jovens que
concederam entrevistas, relatam suas ações com certo grau de resignação.
Não estão revoltados com a nova situação, aceitam o destino como se já
estivesse traçado e houvesse sido passado a eles sem questionamentos.
Como o caso de um jovem que, para roubar pouco mais de dezoito reais,
matou um senhor com um tiro na cabeça porque ele o “olhou assim” (de
cima para baixo) – o olhar de um superior para um inferior, de um melhor
para um pior. O desprezo do jovem para com o outro, ao atirar na cabeça de
sua vítima, reverteu essa hierarquia. Sentiu-se humilhado apenas com um
olhar, mas era um olhar recheado de signos, um olhar que o colocava fora de
seu espaço, fora de seu mundo. E se para retornar ao seu universo e restabe-
lecer as relações for necessário o aniquilamento do outro – assim será. Se-
social. Eliminar o corpo do outro pode significar, entre outras coisas, o de-
sejo de constituição de um novo corpo social, isento dos hábitos tradicio-
nais de mando e obediência. Pode igualmente traduzir disposições sociais,
que até há pouco estavam sob a epiderme do corpo social, no sentido de so-
terrar as formas tradicionais de poder, mando e autoridade, em favor de
novas modalidades de sujeição cujos contornos não é possível, no momen-
to, circunscrever.
Esses adolescentes e jovens adultos, autores de crimes graves, podem
estar assumindo o papel de porta-vozes dessa nova alteridade em constitui-
ção, cujos sinais toscos e grosseiros se espelham na crueldade e na imposição
de sofrimento às suas vítimas.
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Resumo
Abstract
A Study on delinquent youths in the city of São Paulo
The youths envolved in serious infractions in São Paulo city get the attention for the
cruelty with that they practice those actions. They are young, as much of the periph-
ery as of wealthier neighborhoods. The media collaborates boasting those events fo-
cusing mainly the youths of the periphery. It is also spoken in gangs in the city, but the
research could not find that phenomenon. Through interviews we can notice the
different forms of performance of those young ones and the cruelty with that they
practice their actions. Those actions indicate that the relationships based on reciproc-
ity are broken letting to emerge other social bows ruled through power attraction and
the destruction of the other.
Keywords: Juvenile delinquency; Homicides; Gangs; Adolescents offenders; Delin-
quents youths; Cruelty.
O “Centro” de Birmingham
Mas o senhor sempre situa o seu trabalho mais próximo da etnografia do que da
literatura ou da semiótica.
do gênero e da raça.
turalismo althusseriano, mais forte, das formações sociais. Mas não é verda-
de que eu tenha deixado de me interessar em algum momento pela estrutu-
ra. Muitas das posições estruturalistas, incluída a de Althusser, no fundo
diziam muito pouco sobre a maneira como se relacionavam os diferentes
níveis. Learning to labour é em seu conjunto um caminho para encarar essa
questão: saber como se introduz a força de trabalho e, por outro lado, en-
tender alguns dos mecanismos da autonomia, da independência e da com-
plexidade da esfera cultural.
Em outras palavras, já sei que houve uma discussão muito longa, mas
me considero um semiótico, culturalista e estruturalista.
Precisamente por isso se torna difícil entender como é possível que dentro dos
Estudos Culturais não se tenha estudado se as diferenças culturais juvenis podem
Sim.
A ausência de meninas
inferior aceitam sua sorte. Assim, sempre fico perplexo quando se critica
esse aspecto de Learning to labour.
Creio que não exista uma solução para sua pergunta, que seria: Qual é a
função, o significado e a importância, hoje em dia, das diferenciações hierár-
quicas dentro da cultura juvenil? Não creio que nada disso esteja claro. Quero
mais exemplos etnográficos empíricos sobre as relações de classe, preciso ver
os resultados, e também quero uma maior compreensão fenomenológica e
semiótica do funcionamento da cultura.
É verdade que existem algumas idéias genéricas que eu gostaria de levan-
tar. Uma delas é que a época da subcultura espetacular foi uma expressão
inocente que seguramente já chegou ao fim. Foi um momento inicial no
qual se fazia uma utilização naïf dos artigos de consumo, como os grupos
de jovens [de Learning to labour] que fumavam e bebiam há vinte anos, para
mostrar que eram superiores. Creio que os estilos formados a partir de arti-
gos de consumo foram, eles mesmos, convertidos em artigos de consumo,
que por sua vez criam um novo estilo, de maneira que não existe uma posi-
ção de classe autêntica, baseada em uma relação externa aos artigos de con-
sumo e que possa utilizar esses artigos de consumo para uma expressão
contrária ao capital, contrária à escola, ou algo parecido.
Mas já estamos há algum tempo nesse processo de conversão em artigo de
consumo e, na minha opinião, dificilmente poderemos descrever uma cultu-
ra como autêntica, como se tivesse relações e experiências sociais externas ao
mercado e utilizasse o mercado em um sentido criativo. É isso em parte o que
aconteceu com o pós-modernismo e, em parte, aquilo com o que todos nós
estamos brigando para tentar encontrar um caminho. Temos um pé no terre-
no da exploração, do cinismo e da conversão em artigo de consumo. Os signi-
ficados que nos são importantes não são proporcionados pelos sindicatos –
com freqüência nem mesmo pelas escolas –, mas por aqueles que estão fazen-
A maioria dos atuais filmes de Hollywood mostra uma visão radical no sentido
de “não acredite nos meios de comunicação”, “não acredite nos políticos”, “não
acredite na justiça” etc.
Sim, mas está estruturado de uma maneira que não se encaixa na noção
de hierarquia subcultural que Sarah Thornton utiliza. Não é só uma ques-
tão de ser mais underground ou de seguir a “corrente majoritária”, mas de
querer ver como essa noção de capital subcultural de Thornton se relaciona
com a raça, com a classe, com o gênero ou com as questões de hierarquia
geracional. Por isso digo que é uma pergunta etnográfica.
Se o que eles querem é diferenciar-se, por que não vão a museus, a galerias
de arte e a peças de Shakespeare? A elite seria uma maneira de diferenciar-se.
Se o problema é demonstrar que são superiores, por que não freqüentar insti-
tuições que dizem que você é superior se gostar da arte ocidental clássica? Ao
não utilizar a arte tradicional, isso significa que há uma resistência. Estão re-
sistindo à Arte e ao mesmo tempo à cultura popular.
E essa vontade de distinguir-se da “corrente majoritária”, da cultura mais
comercial e “normal”, podia ser anticapitalista. Ainda que seja evidente que
discutir as motivações é extremamente complicado. Do meu ponto de vista,
algumas causas reais podiam não estar na consciência, mas sim mediadas pela
forma cultural (que dará melhores recompensas e proporcionará significados,
alguns deles não verbais).
A forma estrutural do elitismo poderia influir em um certo freio do ciclo
tarde. No início dos anos de 1980, havia enormes grupos de jovens que
não conseguiriam um trabalho em toda a sua vida, que sempre teriam
uma experiência muito difícil em relação ao trabalho: falta de perspecti-
vas, desemprego, retornos a trabalhos temporários esporádicos etc.
Revisei todos aqueles aspectos do governo local relacionados com o que
denominei “nova condição social do desemprego”, que especialmente para a
classe trabalhadora consistia em transições truncadas ou quebradas: não
conseguir o poder que o salário dá, para fazer o resto das transições para a
vida adulta (transição de ir morar por conta própria, de ser consumidor, de
ter relações laborais, de relacionar-se com um sindicato etc.). Tudo isso
depende de a pessoa ter um trabalho. E ainda que essa seja uma situação
temporária – ou pelo menos eu gostaria de pensar que é – que se está pro-
longando continuamente, continuamos oferecendo, aparentemente, as
mesmas transições para o futuro. Para muitos, ao contrário, essa transição
não se completará nunca.
Com The Youth Review eu estava realizando uma tentativa muito precoce
de uma análise comprometida com a realidade. Foi uma experiência que eu
esperava que retornasse a alguns daqueles mesmos grupos, no sentido de
expressar as frustrações de sua situação, e que por sua vez também colocasse
à administração local a importância de políticas dirigidas à condição social,
às transições truncadas (em vez de acreditar que as antigas transições e a
rede de bem-estar dos programas de formação individualizados poderiam
representar muito para os jovens que estavam nessa situação). Também se
criou o fórum juvenil eleito democraticamente, que é uma representação
juvenil na comunidade, que levanta questões de calibre muito diverso. Exis-
tiam também os planos de residência específicos para os jovens. O proble-
ma é que os recursos à disposição do governo local estavam congelados ou
até mesmo se reduzindo. Tudo isso foi uma tentativa muito precoce de
apresentar a questão das transições alternativas em relação à maneira como
os serviços estatais, a prefeitura e a burocracia local deveriam tentar respon-
der às questões reais, ou às questões vividas por aqueles que estavam experi-
mentando as transições truncadas (em vez de operar com um modelo vinte
anos defasado em termos da experiência real dos próprios jovens).
A política local em Wolverhampton4 estava baseada na perspectiva da
juventude e pelo menos discutia e recodificava, e – se se quiser dizer desta
maneira – era mais sociológica, estava baseada na experiência cultural e na
experiência real daqueles que viviam essas transições. Essa tentativa de in-
fluir nas políticas concretas e de pôr a análise à disposição daqueles aos
4. Foi como participante quais ela afetava teve uma importância muito grande para meu próprio tra-
no conselho municipal balho e para a minha carreira. E agora voltei ao mundo acadêmico...
dessa cidade que Paul
Willis realizou seu estu-
do sobre o desemprego O livro Common culture e sua versão reduzida e orientada para as implicações
entre os jovens (N. T.). práticas, Moving culture, também tiveram uma influência na realidade social,
não é?
A Fundação Gulbenkian, para a qual esse estudo foi feito, oferece finan-
ciamento na área do bem-estar social, da educação e da cultura. Tenta aju-
dar o desenvolvimento cultural, social e educativo dos jovens. Antes de
Common culture, as ajudas econômicas, em termos gerais, acabavam indo
para os adultos. Eles acreditavam que sabiam o que o jovem queria. Depois
de Common culture isso mudou. Foi permitido que grupos auto-organiza-
dos de jovens recebessem subvenções.
Eu participei do Painel Consultivo do Arts Council da Inglaterra, que
há pouco tempo mudou as regras da subvenção das artes com a intenção de
orientá-la mais para os jovens e a cultura popular. E, ainda que não possa
nem queira reivindicar minha influência, o Novo Trabalhismo está se mos-
trando muito mais amigável com a cultura popular, ou pelo menos com a
sua produção, e está limitando as subvenções à cultura oficial. A visão deles
não é exatamente igual à minha, mas caminha em uma direção similar. Eles
tentam vincular o partido a uma imagem nova e moderna da Grã-Bretanha
como marca juvenil, ainda que isso talvez já comece a decair. Acredito que
meu mérito foi ter sido capaz de articular aspectos de um novo estado de
ânimo, de uma nova sensibilidade, de maneira muito precoce. Mas não
comecei nada e não estou completamente de acordo com tudo o que agora
se considera fantástico e estimulante.
Creio que em muitos sentidos é uma desgraça que, quanto à maneira de
o Estado de Bem-Estar se relacionar com a população e suas circunstâncias,
os sociólogos e aqueles que pertencem à corrente dos Estudos Culturais não
tenham jogado um papel mais importante na hora de fazer a conexão com
a experiência real, as necessidades reais, nas atuais revisões do Estado. E
acho que isso seja assim porque grande parte do Estado é inflexível, buro-
crática e nada sensível às mudanças. Grande parte da política cultural está
fundamentada na cultura oficial, enquanto a maioria dos jovens caminha
em uma direção muito diferente.
Defendi em The Youth Review que em muitos sentidos os jovens tentam
encontrar suas próprias transições alternativas e que essas transições alterna-
tivas são encaradas, do ponto de vista dos agentes estatais, como patologias,
como problemas, como desobediência às normas etc. O Estado está se con-
vertendo em inimigo, não em amigo, porque não responde às questões que
todos os jovens vivem ou experimentam. Mas são os jovens que estão nessa
situação, e não podem sair dela e escrever um livro sobre a semiótica do
estilo. Eles não podem de um momento para o outro escrever críticas mar-
xistas sobre as mudanças da globalização internacional.
Ao mesmo tempo, pesquisa não deveria ser o mesmo que política, porque
o trabalho acadêmico não é política. Mas acredito, sim, que o trabalho acadê-
mico possa ajudar a guiar a política, e possa (e esse é o elemento fundamental
de minha posição em relação à política e ao trabalho cultural) tentar ajudar
aqueles que estão implicados nela: os jovens e as jovens que estão fazendo
história. Possa tentar fazer com que a conduta de alguns deles lhes pareça mais
transparente, de maneira que tornem a mediação cultural e as escolhas possí-
veis mais legíveis. E possibilite também que o financiamento público, a nova
política de financiamento da identidade cultural, seja produto de uma rela-
ção mais dialética e reflexiva.
e dos estudos subculturais: acredito que já não se possa encontrar uma base
autêntica onde se situar e dizer que isso seja real, que seja uma expressão de
classe, que se esteja utilizando os artigos de consumo para se ser anticapita-
lista.
De alguma maneira, a posição antipopulista substituiu a posição estru-
turalista. As críticas ao chamado populismo são muito similares às críticas
dos estruturalistas aos culturalistas. E se a crítica é a de que os artigos exis-
tem para se fazer negócio, minha resposta é: “Muito bem, isso eu já sei, mas
me mostre como (com exemplos etnográficos empíricos) isso produz efeitos
ideológicos indesejáveis”. Não há dúvida alguma de que o artigo de consu-
mo existe para se fazer negócio e que os artigos que pretendem oferecer um
significado e uma receptividade comunitária não podem fazer isso porque
são fetichistas, porque são, todos eles, artigos de consumo. Meu argumento
é de que, hoje em dia, os consumidores também sabem disso e que, assim,
todos nós nos deslocamos para um estágio de desconstrução prática, cinis-
mo prático, descrédito prático generalizado.
Em conseqüência, se é essa a acusação contra os artigos de consumo, es-
tou de acordo com ela. Essa é uma questão geral, mas as antigas perguntas
continuam intactas: O que as pessoas reais fazem com os artigos de consu-
mo? Como encontrar a autenticidade real na cadeia contínua de inautenti-
cidade? Como esses elementos criativos funcionam em um contexto de ob-
tenção de lucros? Como esses elementos se relacionam com algumas
questões realmente antigas? Como se entende o trabalho? Como se entende
o não ter trabalho? Como tudo isso mudou o sentido do trabalho, quando,
pela proliferação de significados, ofertas e promessas de satisfação promíscuas, Texto recebido e apro-
o trabalho se converteu em uma fonte de identidade menos importante? vado em 31/5/2005.
Essas são as razões pelas quais não podemos ignorar o processo de co- Roger Martínez é soció-
mercialização. É necessário compreender, pelo respeito aos exemplos logo, foi professor asso-
empíricos, como funciona a cultura dos artigos de consumo. Para mim, essa ciado do Departamento
de Sociologia da Univer-
é uma pergunta etnográfica, antropológica e de cultura corrente. Para mim
sidade Autônoma de
não se trata de sentar-se em uma torre de marfim criticando a cultura po- Barcelona (2002-2003) e
pular e seu tempo. coordena atualmente a
área de Sociologia e Ciên-
cia Política dos Estudos
de Humanidades e Filo-
logia da Universidade
Aberta da Catalunha. E-
mail: rms@menta.net
relações e dos serviços que são as pás que movem o moinho da vida coti-
diana. A “atividade criativa própria” dos agentes vai de encontro a essa
nova dominação daquilo que antes lhes era “próprio”, e esse encontro
colore todo o campo cultural, que, por sua vez, está implicado nos pro-
cessos contemporâneos de reprodução social diferenciada (mantendo a
estabilidade ou levando ao conflito social). Mas o papel da “atividade
criativa própria” dos agentes, etnograficamente registrável, é crucial para
o modo como essas mudanças tecnológicas e político-econômicas se efe-
tivam ou são compreendidas como mudança cultural e social. Meu re-
cente livro, The Ethnographic imagination, atualiza a visão marxista do
papel dos bens culturais na formação da cultura moderna, argumentan-
do que, contraditoriamente, o fetichismo consumista renovado estreita,
distorce e ao mesmo tempo, de modo curioso, possibilita as produções
culturais simbólicas informais dos jovens.
Por que, para muitos jovens, essas transições nunca serão completadas? O que
fazer, então, como pesquisadores da cultura?
Na entrevista de 1998, o senhor afirmou não ser mais possível saber onde estão
os jovens de hoje. Por quê? Onde estão os jovens? É possível identificar novas
formas de expressão cultural?
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Introdução
1. Por cultura de massa [...] o advento da modernidade arranca crescentemente o espaço do tempo fomen-
entendo o processo mun- tando relações entre outros “ausentes”, localmente distantes de qualquer situação
dializado de produção e
dada ou interação face a face [...] isto é, os locais são completamente penetrados e
difusão de mercadorias de
caráter simbólico. Reme- moldados em termos de influências sociais bem distantes deles (Giddens, 1991,
to-me sobretudo às análi- pp. 27-29).
ses de Morin (1984).
2. A noção de cultura é Essa nova arquitetura do social tende a determinar outra forma de per-
aqui utilizada com um cepção do indivíduo em relação ao mundo, potencializando sua capacida-
sentido bastante especí- de reflexiva, aumentando sua capacidade de articular a multiplicidade de
fico. Extrapolando o informações a que tem acesso (cf. Benjamin, 1983; Giddens, 1994); e
sentido antropológico
tende, conseqüentemente, a introduzir uma leitura crítica e distanciada
do termo, ou seja, um
sistema de valores e nor- sobre o universo social e individual em cada um de nós (cf. Simmel, 1977;
mas de comportamento Dubet, 1996).
que orientam a prática A partir dessas reflexões, Giddens (1991, 1994) consegue sistematizar
humana, o conceito de as principais tendências que caracterizam as transformações culturais –
cultura passa a assumir
notadamente as relativas ao fenômeno da cultura de massas1 – ocorridas
outro significado no sé-
culo XX, segundo Hall. no último século, associando evolução tecnológica e material às transfor-
Ele afirma que, na série mações de ordem cultural e/ou subjetiva dos indivíduos. Ele oferece um
de transformações so- corpo de conceitos que nos possibilita analisar outras formas de interação
cioculturais da contem- e sociabilidade. Giddens apresenta-nos um pano de fundo, contextualiza
poraneidade, é possível
sociologicamente o surgimento de outra ordem social que influencia pro-
observar o crescimento
da importância da cul-
fundamente a constituição de um novo homem, a forma como esse ho-
tura como fenômeno de mem pensa sobre si mesmo e sobre suas relações, e como ele se orienta e
mercado, que passa a constrói a realidade a que pertence.
exercer um papel central Hall (1997) corrobora essa idéia afirmando que “o impacto das revolu-
na nossa existência coti- ções culturais sobre as sociedades globais e a vida cotidiana local, no final do
diana. Em suas palavras,
século XX, parece tão significativo e abrangente que justifica a afirmação de
“a expressão ‘centralida-
de da cultura’ indica aqui que a substantiva expansão da ‘cultura’”2, que hoje experimentamos, não
a forma como a cultura tem precedentes. Mais do que isso, considera que a menção desse impacto
penetra em cada recanto na “‘vida interior’ lembra-nos outra dimensão que precisa ser considerada:
davidasocialcontemporâ- a centralidade da cultura na constituição da subjetividade, da própria iden-
nea, fazendo proliferar
tidade e da pessoa como um ator social [...]”. Para ele, “é cada vez mais difí-
ambientes secundários,
mediando tudo. A cultura
cil manter a tradicional distinção entre ‘interior’ e ‘exterior’, entre o social e
está presente nas vozes e o psíquico, quando a cultura intervém” (Hall, 1997, pp. 23-24 e 27).
imagens incorpóreas que Dito isso, creio que para refletir sobre o processo de socialização con-
nos interpelam nas telas, temporâneo é necessário considerar alguns aspectos relativos à formação
nos postos de gasolina. Ela da individualidade e da subjetividade do indivíduo atual3. Considero rele-
é um elemento-chave no
vante repensar esse processo a partir da reconfiguração dos papéis das ins-
tâncias tradicionais da educação, bem como da emergência da mídia como modo como o meio am-
importante agência socializadora ou educadora4. Nesse sentido, primeira- biente doméstico é atrela-
do, pelo consumo, às ten-
mente terei de retomar alguns autores clássicos com o intuito de repensar
dências e modas mundiais
suas contribuições. Buscando desenvolver esse argumento, recuperarei al- [...]” (Hall, 1997, p. 22).
gumas visões paradigmáticas a respeito da função das instituições sociais Para uma melhor com-
no processo de socialização e, por último, apontarei as formulações teóri- preensão do conceito de
cas recentes de François Dubet e Bernard Lahire, que delineiam problemas cultura, ver Thompson
(1995), e Cuche (1999),
atuais da socialização.
entre outros.
mático, mas também em nós a idéia e o sentimento da lei, da disciplina interna ou externa, é instituído
como uma prática que pela sociedade (Idem, p. 45).
está presente de manei-
ra difusa e pulverizada
no cotidiano das rela- Por isso mesmo, o suposto antagonismo, muitas vezes admitido, entre indivíduo e
ções sociais, sobretudo sociedade não corresponde a coisa alguma no terreno dos fatos. Bem longe de esta-
no conhecimento pul- rem em oposição, ou de poderem desenvolver-se em sentido inverso, um do outro –
verizado e possibilitado sociedade e indivíduo são idéias dependentes uma da outra. Desejando melhorar a
pelo crescimento da cir-
sociedade, o indivíduo deseja melhorar-se a si próprio. Por sua vez, a ação exercida
culação de informações.
pela sociedade, especialmente através da educação, não tem por objeto, ou por efei-
5. Durkheim, em seus to, comprimir o indivíduo, amesquinhá-lo, desnaturá-lo, mas ao contrário engran-
escritos sobre educação
decê-lo e torná-lo criatura verdadeiramente humana (Idem, pp. 46-47).
e sociologia que datam
do início do século pas-
sado; Talcott Parsons e A partir dessas considerações, seria possível concluir que o agente social
George Mead entre as para Durkheim é visto como um organismo em que os instintos e os dese-
décadas de 1930 e 1950; jos infinitos devem deixar de ser regulados naturalmente. Uma educação
Peter Berger e Thomas
normativa e moral deveria assentar a unidade entre indivíduo e sociedade,
Luckmann na década de
1960 e Bourdieu nos ambos concebidos como duas faces de uma mesma realidade. Mais do que
anos de 1970 e 1980, isso, o sucesso desse processo educacional seria caracterizado pela constru-
com sua teoria do habi- ção de um ser social totalmente identificado com os valores societários.
tus. Embora todas essas Nesse sentido, existiria uma total correspondência entre ator e sistema so-
contribuições sejam refe-
cial (cf. Dubet, 1996). Segundo essa leitura, o processo de interiorização
rências, irei abordar aqui
apenas os autores citados.
das regras de comportamento moral não se constituiria como arbitrário ou
Sobre o conceito de habi- impositivo6. Ao contrário, a coerção é entendida aqui como uma etapa
tus na obra de Bourdieu a civilizatória em direção à liberdade. Assim, a educação familiar e escolar
partir de uma leitura estariam longe de ter apenas um valor instrumental, ou seja, ser a aquisição
contemporânea, ver de aprendizagens úteis. Elas exerceriam sobretudo uma influência total na
Setton (2002b).
personalidade dos indivíduos7.
6. É interessante salien- Nesse mesmo estudo, Durkheim afirma que, diferente da família, volta-
tar que, embora o pro-
da a ensinamentos de caráter privado e doméstico, a escola surge como com-
cesso de incorporação
das disposições sociocul- plementar a esta, como instituição responsável pela construção de indiví-
turais seja impositivo, o duos morais e eticamente comprometidos com o ideal público. A sociedade
indivíduo não o sente do final do século XIX, segundo o autor, demandava a construção de espíri-
como tal, mas deseja-o, tos solidários e altruístas para consolidar o projeto de modernidade do sé-
pois identifica-se com a
culo XX. A educação moral das instituições família e escola teria a responsa-
realidade que o cerca. A
partir de outra perspec-
bilidade, portanto, de forjar a personalidade de um novo sujeito social,
tiva, Fernandes (1994) agora identificado com a proposta de uma sociedade burguesa e capitalista.
aborda criticamente essa Embora até hoje as proposições de Durkheim sejam paradigmáticas,
leitura. creio que para os objetivos desta reflexão seria interessante retomar algu-
só pode ser observada no trabalho do ator social, trabalho pelo qual cons-
trói sua experiência (cf. Idem, p. 107).
Uma sociologia da experiência incita a que se considere cada indivíduo
como um intelectual, como um ator capaz de dominar, conscientemente,
pelo menos em certa medida, sua relação com o mundo. O ator não é
redutível aos seus papéis, nem aos seus interesses. O indivíduo não adere
totalmente a nenhum de seus papéis, que têm como tarefa articular lógicas
de ação, que o ligam a cada uma das dimensões de um sistema. O ator é
obrigado a combinar lógicas de ação diferentes e é a dinâmica gerada por
essa atividade que constitui a subjetividade do ator e sua reflexividade (cf.
Idem, pp. 105-107).
Essa heterogeneidade de experiências socializadoras identificada por
Dubet é também familiar a Bernard Lahire. Para ele, aquilo que vivemos
com nossa família, na escola, com amigos ou no trabalho, não é sintetica-
mente somado de maneira simples. Sem postular uma lógica de desconti-
nuidade absoluta, pressupondo contextos diferentes, pode-se pensar as
experiências como não sendo sistematicamente coerentes, homogêneas e
compatíveis. Cada vez mais o contato precoce com outros universos além
da família está presente em nossas vidas. Lahire afirma ainda que é difícil
conceber um universo coerente e harmonioso em relação ao universo fa-
miliar. Para ele, é necessário constatar que a experiência da pluralidade de
mundos tem todas as chances de ser precoce nas sociedades atuais. Vive-se
simultânea e sucessivamente em contextos sociais diferenciados e não equi-
valentes (cf. Lahire, 2002, pp. 27-31).
Lahire afirma que entre a família, a escola, os amigos e/ou as múltiplas
instituições culturais com quem ou em que a criança e o jovem são levados
a conviver, apresentam-se situações heterogêneas, concorrentes e às vezes
contraditórias, no que se refere aos princípios da socialização. A coerência
dos esquemas de ação que os indivíduos podem interiorizar depende, por-
tanto, da coerência dos princípios de socialização a que estão submetidos.
Desde que um indivíduo esteja simultânea e continuamente no seio de
uma pluralidade de mundos sociais, não homogêneos e às vezes contradi-
tórios, ou no seio de universos sociais relativamente coerentes, mas apre-
sentando em certos aspectos contradições, ele está exposto a um estoque
de esquemas de ação não homogêneos, não unificados, e conseqüente-
mente a práticas heterogêneas, variando segundo o contexto social que
será levado a valorizar (cf. Idem, pp. 32-36).
Por não ocupar posições semelhantes em todos os espaços sociais, o in-
Considerações finais
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Resumo
Introdução
As células de produção
ra muito mais estreita das colegas, que estão implicadas forçosamente (pela
detenção de uma parte do trabalho da outra) na atividade dela.
No entanto, disso não decorre uma intercomunicação5 que, pela atividade 5. Philippe Zarifian
operativa que ata uns e outros, estabelece uma teia produtiva em que a limita- (1998) sustenta resolu-
ção do trabalho individual e seu entorno (no sentido que conduz à noção de tamente essa possibilida-
de nos processos produ-
trabalho como “obra”, segundo a concepção aristotélica recuperada por
tivos modernos, mas ba-
Hannah Arendt) explode em benefício de um trabalho coletivo, que alarga a seando sua argumenta-
dimensão do trabalhador solitário obrando o seu objeto por meio do instru- ção em setores tecnolo-
mento próprio dele. E não o faz porque o obstáculo a uma sociabilidade que gicamente mais sofistica-
nasça do trabalho reside na forma que envelopa a seção e a empresa, qual seja, dos e dependentes de
uma sólida qualificação
a forma social que impõe um ritmo e uma organização ao processo de traba-
dos operadores – setores,
lho cuja inteligibilidade não reside no processo em si. Uma das manifestações portanto, diferentes da-
desse obstáculo é a própria relação salarial, que paira como orientadora de queles que são objeto de
sentido para a racionalização que os atores fazem de seu próprio trabalho. Quan- nossa pesquisa.
do, portanto, a responsabilidade pelo alcance da meta (e do prêmio) transfe-
re-se daquilo que é bem estabelecido na trabalhadora individual para o im-
ponderável do grupo, o atrito entre a solicitação das atividades dos outros como
complemento da atividade de cada um e a certeza do que é possível extrair a
partir de si mesmo expõe toda a sua gravidade, pelo fato de a operadora re-
cusar essa participação com receio de não poder manter ergonômica e signifi-
cativamente o seu próprio trabalho.
Vale lembrar que nas formas de solidariedade pré-tayloristas fazer o tra-
balho do colega era, ao contrário, indigno e uma maneira de minar a con-
fiança do grupo, já que ia de encontro às quotas impostas pelo próprio
grupo a fim de amarrar a produção. As quotas eram bastante rígidas, não
variando nem com o regime de trabalho por peça em diferentes seções de
uma mesma indústria. Em 1902, em uma fábrica de equipamentos agríco-
las mencionada por David Montgomery (1980, pp. 12-13), os departa-
mentos de polimento, prova, ferraria e máquinas ganhavam todos mais ou
menos a mesma soma, a despeito da enorme diferença de tempo de execu-
ção e grau de dificuldade para cada uma dessas atividades. Aquela combi-
nação recíproca era muitas vezes apoiada pelo sindicato, embora não o fosse
necessariamente. Na virada do século XIX para o século XX, em alguns
setores era proibido pelo sindicato que o afiliado ficasse responsável por
mais de uma máquina ao mesmo tempo, ou aceitasse pagamento por peça
(cf. Idem, p. 15). Regras estabeleciam, por exemplo, a velocidade com que
cada um deveria trabalhar. Eram, portanto, regras estritas, que diziam res-
peito a como efetuar o trabalho.
pode induzir as pessoas a ajudar umas às outras ou pode fazer com que cada
uma tente levar a melhor sobre o colega? Muitas pessoas não utilizam o
tempo livre para ajudar os outros, embora possam fazê-lo. Aqui, a respon-
sabilidade do ajuste de quem trabalha mais e quem trabalha menos é do
grupo: é ele quem fica com o fardo de cobrar desempenho de seus mem-
bros. Mas, por sobre esse ajuste social do grupo (uma operária pode não
ajudar outra por quem tem antipatia ou inimizade, por exemplo), há a
norma salarial da empresa: se cada ilha tem uma performance e um resulta-
do diferentes, a resultante em termos de distribuição do prêmio segue o
valor mais baixo. A regra funciona do seguinte modo: se a primeira ilha
atinge 100% de sua produção, mas a segunda e a terceira ilhas não atingem
o mesmo índice, no final do dia a ilha que fez 100% ganhará apenas 80%
do prêmio. “Quem fez 100 vai ganhar 80 igual às outras, umas trabalham
mais do que as outras”, diz a informante. A célula considera-se portanto
injustiçada, porque, dentro de uma ilha, umas produzem mais do que ou-
tras. “Tem que ser todo mundo igual”, diz a mesma informante. Mas, no
fundo, o que prevalece é um sentimento de resignação: “Todo mundo vai
ganhar mesmo igual, não adianta ficar discutindo...”. Só que ganhará me-
nos em relação à produtividade que poderia ser alcançada individualmente.
A expectativa da informante é de que, atingida a meta, a costureira ajude
outras colegas no decurso do tempo que lhe resta. Se a trabalhadora mais pro-
dutiva não o faz, acaba reduzindo a produtividade da “ilha” inteira. Mas o fato
é que muitas trabalhadoras não utilizam o tempo livre obtido ao terminar an-
tes a operação para ajudar suas companheiras. Na verdade, existem aquelas
operárias que “completam” o trabalho das outras – talvez em razão do tipo de
tarefa a que estão destinadas pela organização, sem uma especialidade muito
definida –, em cada célula ou entre células diferentes, o que de certo modo
dispensa as operadoras de correr atrás do trabalho excedente das demais. Mes-
mo assim, a responsabilidade do ajuste sobre quem trabalha mais e quem tra-
balha menos é do grupo: é ele que tem a responsabilidade de cobrar as colegas.
Se, por um lado, quem se esforça mais não tem esse diferencial sancionado
pelo prêmio (o que vai de encontro ao ideal taylorista de individualizar o ren-
dimento com base na tarefa), por outro lado o grupo pode rebaixar o prêmio
do membro que, segundo seu juízo, não esteja se esforçando suficientemente.
O poder “coletivo”, portanto, não é pequeno: por um lado, e perversamente,
como se viu, impede que a média da produtividade caia demasiadamente (pois
isso implicaria um prêmio subtraído da possibilidade de 100%); por outro
lado, arroga-se a capacidade discricionária de indicar aquele que não “dá tudo
Tem como fazer isso [ajudar as colegas]. Nem todas conseguem fazer. Eu não posso
ajudar outras porque o tanto que eu tenho que atingir, não tenho tempo para isso.
Mas a outra costureira que tem que me ajudar, ela tem tempo de ajudar em outro
lugar, porque ela só vai completar a minha parte e ajudar em outra operação [trata-se
da operária que “completa” os trabalhos, conforme já mencionado]: dá para fazer
isso. Tem discussões, por mais que explique lá isso direitinho, que tem que trabalhar
unido, trabalhar junto, mas sempre tem essas discussões... (costureira, célula 14).
A exclusão do grupo
tor universitário; esforço esse que é tão maior quanto mais aqueles vetores
normativos que são realçados não correspondem a uma real experiência de
trabalho. Mas exatamente porque são “vazios” de experiências é que eles
fornecem a chave do entendimento de toda a agitação em torno de células,
ISO, estoques, ordens de produção em inglês, visitas de clientes e outras
transformações visíveis na vida da fábrica. A sensação corrente é de que
alguma coisa muda, mesmo que não se saiba exatamente o que. Isso é váli-
do tanto para a Empresa A como para a Empresa B.
No entanto, isso não quer dizer que a percepção das diferenças entre o
sistema individual e o celular não tenha nenhuma repercussão na forma de
se trabalhar – a diferença, aliás, está exatamente na forma e não no conteúdo
do trabalho. Fazer mais de um produto em uma mesma jornada requer um
ajuste na passagem de uma operação a outra: perde-se tempo e há a necessi-
dade de se acostumar ao novo ritmo, algo bem conhecido pelos estudos de
organização do trabalho. Como o prêmio é atribuído em função da quanti-
dade, o tempo gasto nesse ajuste é um fardo. São duas linhas de força que
empurram para sentidos contrários, o que alimenta uma angústia perceptí-
9.E que é tão mais so- vel em muitos depoimentos9: exige-se um patamar elevado de produção de
litária na medida em um determinado artigo e, ao mesmo tempo, com a mudança de artigo au-
que não é captada por
menta-se o tempo “perdido”, que havia sido ganho com o costume na dedi-
nenhuma forma insti-
cação à operação anterior. Contudo, a possibilidade de uma única célula
tucional, nem na em-
presa, nem fora dela. confeccionar mais de um artigo está na base da virtude do modelo, uma vez
que responde às exigências de flexibilidade da demanda. Nesse ponto, o
círculo se fecha – como na equação do binômio qualidade e quantidade,
exigências que às vezes parecem incompatíveis.
Outro gênero de problema comum na dinâmica da simultaneidade
produtiva ocorre quando se tem de retirar uma costureira da célula porque
o novo artigo a ser confeccionado não exige todo o contingente anterior, o
que desloca essa trabalhadora para uma nova célula, onde ela possa fazer
uso de sua capacitação. O sucesso da acolhida na nova célula depende da
disponibilidade de um posto do mesmo tipo do que havia na célula de
origem, o que pode não acontecer. Daí a importância da polivalência: ao
aumentar a oferta de tarefas possíveis a serem realizadas por uma única
operadora, crescem as chances de encontrar um lugar para a costureira vaga
em um momento em que não é solicitada por um novo arranjo do mix de
produtos da empresa. A migração para uma nova célula, que representa
igualmente a inserção de um corpo estranho em um grupo já constituído,
desorganiza o arranjo social no destino.
de local da fábrica já é uma indicação de que, não a curto prazo, mas certa-
mente não num período muito longo, os dias de emprego estão contados.
Isso é de certa forma confirmado pela responsável de recursos humanos,
que confidenciou a preferência pelo pessoal novo (mulheres) do local, in-
clusive com programa de treinamento direcionado para esse fim e com su-
porte do Senai. A mudança, além da instabilidade inerente ao mercado de
trabalho em uma conjuntura de crise, é um sinal a mais a relembrar a inse-
gurança do estatuto de empregado(a). Os dois fenômenos – enxugamento
e deslocalização – são, aliás, faces da mesma moeda da reestruturação ampla
das firmas. As próprias operárias residentes na Zona Leste por fim teriam
percebido a irracionalidade da situação: o gasto elevado com transporte (se
fossem arcar com ele por si mesmas) e a inevitável indisposição depois de
enfrentar o trânsito até chegar à empresa – feitas as contas, não valeria mes-
mo a pena. Mas essa não foi uma escolha que lhes tivesse sido apresentada.
Com a palavra, uma operária que ficou: “Quando era em São Paulo, eu
levantava às cinco e meia; para ir para o novo endereço, levanto às quatro
horas. E de São Paulo até a minha casa, cinco e meia ou quinze para as seis
eu já estava em casa; do novo endereço pra cá, eu chego às sete horas. Então,
tem uma diferença grande”. O tempo de transcurso, no geral, aumentou
para boa parte delas, à exceção das que moram mais perto do novo local.
Mas, pelo fato de a empresa ter de arcar com o transporte para o pessoal de
15. Os ônibus condu- São Paulo (e isso significa custo: fretamento de ônibus15 ou vale-transpor-
zem as trabalhadoras no te), a percepção disseminada é de que talvez a situação não dure muito
trajeto casa-empresa- tempo mesmo para as que ficaram. O espectro da substituição pelas nova-
casa. Por vezes, costurei-
tas passa a ser um dado, um perigo iminente:
ras vizinhas não tomam
o mesmo ônibus devido
aos percursos, que po- [Ao] pegar pessoas das redondezas, que são mais próximas, para ficar no lugar da
dem ser mais próximos gente... Nós vamos ser... seríamos dispensadas. A gente mesmo fomos pra lá com
do local de moradia de esse pensamento – talvez não era o que eles [a empresa] estavam pensando, mas foi
uma delas, embora não
o que a gente mesmo estava pensando – que não seríamos mantidas.
fique longe da moradia
da colega.
O questionário permitiu, de um outro ângulo, avaliar a importância do
emprego para esse grupo operário, que compensa todos os obstáculos: per-
guntadas sobre o grau de interferência da mudança da fábrica em suas
vidas, 42% delas respondeu que não importa para onde a fábrica vá, o
importante é continuar empregada; 41% queixou-se da distância entre
casa e trabalho; e 13% afirmaram não pretender continuar trabalhando na
empresa em sua nova localização.
postos da “ilha” ou entre diferentes células segue uma modulação flexível, bus-
cando encurtar os tempos de espera de produtos semi-acabados e racionali-
20.Tal racionalização zando ao máximo o emprego da força de trabalho20. Nesse desenho, o grupo é
pode envolver também, autônomo para ajustar mais prontamente o componente do trabalho huma-
como foi o caso de uma
no ao mecanismo de simultaneidade de manufatura de artigos que o modelo
das empresas da pesqui-
comporta. A situação mais próxima da ideal seria aquela em que a figura da
sa, a mudança de loca-
lização da planta. supervisora ou da encarregada deixaria de ter uma conotação coercitiva, pas-
sando a ser apenas consultiva, para os casos em que o grupo não pudesse, ele
próprio, deliberar. Uma situação em que não fosse necessário dizer o que é
preciso fazer, mas em que cada uma decidisse segundo seu próprio “juízo”.
Nesse caso, a microcoletividade da célula pode chegar a decidir, auto-
nomamente, pela impertinência da classe.
Referências Bibliográficas
Resumo
Abstract
Work viewed from below
This paper approaches a particular type of work organization called production cells.
That model is analized in its application through plants in the garment industry, in
the state of São Paulo, Brazil. It focused on the working women experience under that
work model, from which some aspects are stressed in this paper such as the payment
system, the regulation of work by/of the worker’s group, the training and its skill
features, the productive flexibility, and the meaning of the geographical plant de-
localisation to the worker group itself. Such aspects appear to be a counterpoint to the Texto recebido em 11/
collective experience that moulded class identity in the past and that is, nowadays, 11/2004 e aprovado em
1/9/2005.
being destroyed. One of the reasons for that fact is supposed to be the well-established
private initiatives made by companies related to their workforce. This kind of strate- Leonardo Mello e Silva
é professor do Departa-
gies, among which production cells are a good example, circumscribe the labor contest
mento de Sociologia
to the inner space of the company level. The detailed report of cases discussed here
USP. E-mail: leogmsilva
intend to contribute with some elements to a comprehensive appreciation of the work @hotmail.com
organization debate as well as its further theoretical inferences in terms of the social
William Vella Nozaki
class paradigm. foi bolsista IC Fapesp
Keywords: Work organization; Post-fordism; Teamwork; Social class; Flexibility. (2002-2004).
Vladimir Ferrari Puzone
foi bolsista IC Pibic-
CNPq (2003).
está na sua temática e na combinação de dados e de vistas individuais, com o objetivo de compreender as
metodologias aplicadas. O objetivo central do projeto trajetórias passadas, as condições presentes e as orienta-
consistiu na análise das orientações para o emprego, a ções para o futuro. O roteiro de questões deu ênfase às
formação, a carreira e a família. Aênfase nessas dimen- áreas do trabalho e da família, e ao modo como ambas se
sões e na sua articulação tem caracterizado as pesquisas articulam aos cotidianos dos jovens em transição. As
mais recentes sobre a transição para a vida adulta, que se entrevistas permitiram explorar os modos como os jo-
orientam por uma perspectiva globalizante, ou seja, não vens vivenciam o processo de se tornar adultos, consi-
focalizam somente a transição da escola para o trabalho, derando seus contextos de origem e suas características
por exemplo, mas procuram analisar as interações entre sociais, e avaliando como as formas estruturais e cultu-
educação, trabalho, família e vida afetiva, situando-as rais atuam sobre experiências, estratégias e aspirações.
no conjunto de experiências que formam as trajetórias Apesar de o estudo propor uma perspectiva longitudi-
biográficas dos jovens. nal, cada participante foi entrevistado apenas uma vez,
Nesse sentido, Transições incertas não foge à regra e na qual se buscou reconstituir os percursos de vida e
procuraanalisaratransiçãonassuasmúltiplasdimensões, explorar as expectativas futuras. Outros estudos realiza-
buscando identificar earticular orientações, práticas, re- dos na Europa, orientados por essa perspectiva, anali-
presentações, valoresesignificadosàstrajetóriasdevida, sam as transições em momentos diferentes, entrando
desdeospercursosrealizadosatéosplanosparao futuro. em contato com os mesmos participantes mais de uma
Contudo, de maneira semelhante a outros estudos pu- vez durante um determinado período de tempo, o que
blicadossobreotema, acabaporapresentarcadaumadas permite refletir sobre os desdobramentos biográficos
problemáticasemcapítulosseparados, articuladosemtor- dos jovens e avaliar a reconfiguração de estratégias, pro-
nodatríadeformação, trabalhoevidafamiliar, oqueten- jetos e decisões, juntamente com os entrevistados.
deadesconectarastrajetóriasescolares, laboraisefamilia- Acomparação com outros países europeus, entre-
res/afetivasumasdasoutras. Aúnicaesferaquepermeia tanto, não é o objetivo principal da obra, que procura se
todas as seções é o trabalho, o que reforça a sua concentrar nas especificidades da realidade portuguesa,
centralidadeparaosjovensemtransição. em particular no que diz respeito às variações estrutu-
Apesquisafoi realizadacombinando doismétodos rais quanto às oportunidades educacionais e profissio-
qualitativosdiferentes: entrevistasdegrupo focalizadas nais e às fases ocupadas no processo de transição. A
e entrevistas individuais. O objetivo dos grupos focais ênfase nas diferenças de gênero e origem social, especi-
eradiscutir questõesfundamentaise valoresdominan- almente entre jovens com poucas qualificações e estu-
tesno processo de transição paraavidaadulta, particu- dantes do ensino superior, constitui uma das principais
larmenteemrelação àfamíliaeao trabalho. Esseproce- características de Transições incertas, o que a situa entre
dimento foi aplicado ao mesmo tempo emoutrosqua- os estudos que favorecem uma abordagem teórica es-
tro países europeus, com base num roteiro truturalistaparaanalisar osfenômenosobservados. Nesse
semi-estruturado detópicosparaadiscussão, o queper- sentido, os critérios de formação dos grupos e a seleção
mitiuestabelecer comparaçõesentre o que osjovensde dos entrevistados focalizaram o gênero, o nível de esco-
diferentes nacionalidades pensam acerca de questões laridade e a condição perante o trabalho.
como insegurançano emprego, percursosprofissionais, No entanto, emboraaamostranão tivesseapreten-
expectativas e prioridades quanto ao estilo de vida, ao são deser representativadapopulação portuguesa, ase-
emprego atual e futuro, relações afetivas, casamento e leção dos participantes tendeu a favorecer estudantes
filhos, entreoutras. do ensino superior solteirose semfilhos, que moravam
Num segundo momento, foram realizadas entre- comospais. Umavezque umdosprincipaisobjetosde
discussão erajustamente aconciliação entre trabalho e agrícolas e industriais e o concomitante crescimento das
vidafamiliar, o leitor estranharáapequenaparticipação ocupações no setor de serviços, a concentração das po-
dejovenscasadose/oucomfilhosentreosentrevistados pulações nos grandes centros urbanos e o desenvolvi-
– apenas cinco jovens do sexo feminino, num total de mento científico e tecnológico dos setores de produção,
quarentaindivíduos. o que implicou o aumento dos níveis de qualificação da
Emboraasmetodologiasqualitativasconstituamtéc- mão-de-obra.
nicas mais adequadas para explorar o campo das inter- Todavia, embora o acesso à educação se tenha ex-
subjetividades, elascomportamalgumaslimitações, no- pandido, o ensino básico obrigatório aindanão atingea
meadamente no que dizrespeito ao estudo doscontex- totalidade dos indivíduos nessa faixa etária. Apesar de
tosnacionaisemquesesituamaspráticaseosdiscursos se observar uma tendência ao prolongamento das car-
sobre a transição, e à representatividade dos diferentes reiras escolares, a maior parte dos jovens portugueses
atoressociais. Paracontrabalançaressaslimitações, recor- aindaentrano mercado compoucasqualificações, an-
reu-seadadosestatísticosnacionaiseeuropeus, ao mes- tesdecompletar 18 anos. Essavertentedetransição en-
mo tempo em que se procurou diversificar ao máximo treescolaetrabalho continuaaser muito condicionada
osperfisdosjovensentrevistados. por variáveis sociais. Embora estatísticas específicas
Aintegração de dados quantitativos em pesquisas acercadaorigemsocial dosjovensquenão completamo
qualitativas tem sido prática obrigatória em estudos percurso escolar obrigatório não sejamindicadas, asen-
comparativos que extrapolam contextos nacionais, trevistas sugerem que experiências escolares marcadas
dado que asdiferençassociaisexistentesentre ospaíses pelo desinteresse e pelo insucesso, ou mesmo pelo
são muito grandese condicionamosprocessosde tran- abandono, estão associadasàsclasseseconomicamente
sição demaneirasmuito distintas. Contudo, justamen- desfavorecidasesemqualificaçõessuperiores, cujospais
te por privilegiar o estudo das subjetividades por meio são operáriosouempregadosexecutantes, muitasvezes
de métodosqualitativos, como asentrevistasemgrupo deorigemafricana.
eindividuais, o trabalho temo mérito deexplorar asin- Aobra é dividida em sete capítulos analíticos, um
gularidade dasexperiênciasde vidadossujeitosjovens capítulo metodológico, introdução econclusão. Paraos
que, embora compartilhem o mesmo intervalo etário, leitores não familiarizados com a temática das transi-
vivenciamumamiríadedesituaçõesecondiçõesmuito ções, o capítulo “Transiçõesnamodernidade”identifi-
diversificadaseassimétricas. ca os principais fatores que impulsionaram os estudos
O segundo ponto relevante é o fato de que a reali- sobre a passagem para a vida adulta no final do século
dade social portuguesa aproxima-se, em muitos aspec- passado na Europa, chamando a atenção para as
tos, da realidade brasileira. Guardadas as devidas pro- especificidadesdo caso de Portugal. Nessaseção desta-
porções, a leitura de Transições incertas permite traçar cam-seaspreocupaçõesdosautorescomastransforma-
alguns paralelos que nos oferecem indicações de como çõesno mundo do trabalho, asdiferençasde gênero e a
processos semelhantes atravessam e interferem nos per- importância do papel da família no processo de
cursos biográficos dos jovens. autonomização dos indivíduos jovens, pontos que
Em primeiro lugar, de maneira semelhante ao Bra- constituemasproblemáticascentraisdaobra. Alémdis-
sil, o processo de modernização ocorreu tardiamente so, são apresentadas, de forma sintética, as principais
em Portugal e não atingiu a sociedade portuguesa de tendências observadas nos percursos de transição dos
maneira uniforme, permanecendo, em certa medida, jovens europeus, juntamente com alguns dos critérios
inacabado. Entre as principais características desse pro- utilizados por diferentes pesquisadores na construção
cesso evidenciam-se o rápido declínio das ocupações detipologias.
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O capítulo “Percurso educativo” faz a análise das timentos interferem diretamente nas escolhas e nas es-
oportunidades e desigualdades subjacentes às expe- tratégias desenvolvidas pelos jovens portugueses a fim
riênciasescolaresdosjovensportugueses, avaliando as de concretizar suas expectativas diante da idade adulta.
causasparao abandono, o desinteresseeo insucesso dos Os autores identificam as sensações de insegurança e
percursoseducativos. Por umlado, aapostanaescolari- incerteza como os principais fatores que explicam o adi-
dade tende a dificultar os percursos fora da escola e a amento e/ou a reconfiguração dos projetos de vida dos
entradano mercado detrabalho antesdaconclusão dos jovens, daí o conceito de “transições incertas”.
estudose compoucasqualificações. Por outro lado, di- O acesso ao mercado de trabalho é a questão central
ante de ummercado cadavezmaiscompetitivo, aedu- tratada na obra. Achamada “integração periférica”, em
cação formal temseconsolidado como umaocupação e oposição à inserção efetiva, não corresponde às expecta-
tambémcomo umanecessidade. Aquestão-chavenessa tivas dos jovens e, na visão dos pesquisadores (e de al-
seção é aconciliação entre trabalho e formação. Paraos guns entrevistados), vai contra a possibilidade de inici-
autores, os baixos rendimentos e a falta de incentivos ar uma vida independente ou mesmo constituir famí-
por partedo Estado edasempresas, no sentido deapoi- lia. Adespeito das mudanças estruturais que têm afetado
ar osprojetosdeformação, interferemnastransiçõesju- os percursos biográficos das gerações mais jovens, a tran-
venisao contribuíremparasobrepor educação e traba- sição para a vida adulta ainda é associada à conquista da
lho, dificultando oumesmo impossibilitando aconcili- independência financeira, situação essa que, para a qua-
ação entre projetos de carreira e responsabilidades se totalidade dos jovens, é alcançada via rendimentos
familiares. por meio do trabalho. Aimportância atribuída à inde-
O capítulo “Integração profissional” analisa as ca- pendência econômica para a aquisição do estatuto de
racterísticas da inserção na vida ativa. Segundo os auto- adulto não é uma prerrogativa apenas institucional, mas
res, as mudanças mais significativas na esfera do traba- também dos jovens que vivenciam a transição. Para a
lho têm implicado o aumento das ocupações temporá- generalidade dos entrevistados, tanto homens como
rias, mal remuneradas, marcadas por relações informais, mulheres, obter um emprego é considerado a base para
maior rotatividade entre trabalhadores e custos meno- todos os demais projetos que constituem a entrada na
res para o empregador: “Àimagem do que acontece nas vida adulta.
restantes sociedades européias, inquéritos realizados em Esseaspecto, discutido no capítulo “Vidafamiliar”,
Portugal revelam que: o trabalho precário, as ‘prestações éconsiderado fundamental paraarealização do projeto
de serviços’ e o desemprego têm aumentado; a transição familiar. Não é por acaso que as condições essenciais
para a vida adulta tende a constituir um período de parasuaconcretização são entendidascomo aobtenção
grande instabilidade profissional, transitando os jovens dacasaprópria, aindependênciafinanceira, aseguran-
entre empregos diversos, situações de formação, çaprofissional eaestabilidaderelacional. Umadascon-
subemprego ou mesmo desemprego” (p. 23). Esse pro- clusões mais interessantes do estudo é que, apesar da
cesso tem atingido principalmente os jovens com pou- enorme diversidade nosprojetose experiênciasde pas-
cas qualificações ou qualificações medianas, mas tam- sagem à idade adulta, nos vários países estudados, a
bém começa a afetar os grupos mais qualificados. maior partedosjovensconcebeavidaadulta“como um
Esse conjunto de tendências constitui um processo período de estabilidade, em que os jovens vivem casa-
caracterizado como precarização e instabilização dos vín- dos, emcasaprópriae comosfilhos”(p. 109). Isso não
culos laborais, que tem obrigado os trabalhadores a li- significa, contudo, que todos os jovens abracem esse
dar constantemente com a sensação de insegurança, as- “pacote familiar” como a única perspectiva de vida.
sociada ao aumento do risco de desemprego. Esses sen- EmboraemPortugal o modelo detransição dominante
continue a ser o de sair da casa dos pais para constituir xistência de dispositivos garantidos pelas entidades em-
família, osautoresmostramqueatransição familiar ten- pregadoras e à insuficiência dos dispositivos públicos,
de ase diversificar e ase tornar maiscomplexa: viver so- as redes informais e familiares, em particular de avós,
zinho, comamigosoucompanheiros(as) semoficializar são referidas pelos jovens portugueses com fundamen-
a união, ou permanecer em casa dos pais mais tempo, tais no apoio à conciliação entre trabalho e vida famili-
mesmo após a conclusão dos estudos e o início da vida ar” (p. 143).
ativa, têmsetornado práticascadavezmaiscomunsen- Aobra encerra com uma tipologia que identifica e
treosjovenseuropeus, aindaqueemPortugal isso cons- caracteriza sete modelos “típico-ideais” de transição,
titua uma prerrogativa dos setores da população mais combasenasorientaçõesindicadaspelosjovensnapes-
favorecidoseconomicamente. quisa: trajetóriasfortementeorientadaspelaprofissão e
O capítulo “O gênero na transição” procura explo- pelo tempo dedicado ao trabalho; trajetóriasorientadas
rar com mais detalhe as clivagens de gênero, chamando paraavalorização daindividualização earealização pes-
a atenção para a persistência de diferenças e assimetrias soal; trajetóriasquefogemao modelo familiar tradicio-
significativas entre homens e mulheres, especialmente nal (epor essarazão são classificadascomo “experimen-
no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho, à tais”); trajetóriasque obedecemaestratégiase projetos
questão dos rendimentos e ao tempo dedicado às tare- claramente definidose concretizadosprogressivamen-
fas domésticas e ao cuidado com os filhos. As mulheres te; trajetórias caracterizadas pela conjugalidade ou
portuguesas, em comparação com os demais países eu- parentalidade“precoces”(antesdos20 anos); trajetórias
ropeus, são as que mais trabalham em período integral; marcadaspelo desemprego e pelainstabilidade no tra-
contudo, por acumularem as responsabilidades famili- balho, quedificultamaautonomização earealização de
ares, tendem a ser preteridas em favor de candidatos do projetospessoais; e trajetóriasque levamao risco de ex-
sexo masculino. Além disso, os mecanismos informais clusãosocial.
de discriminação continuam a restringir as oportunida- Embora essa tipologia não seja inovadora e se baseie
des de emprego para as mulheres, especialmente as que sobretudo na avaliação quanto ao tipo de inserção no
são casadas e já têm filhos. mercado de trabalho e no maior ou menor
Esses fatores, associados à inexistência ou ao alcance distanciamento em relação ao modelo tradicional do ser
limitado do apoio do Estado, são apontados como os adulto (o indivíduo autônomo, provedor para si pró-
principais obstáculos à conciliação entre trabalho e fa- prio e para os seus dependentes), Transições incertas ex-
mília. Essa questão é discutida sobretudo no capítulo 8, plora de maneira criteriosa a pluralidade e a complexi-
em que os autores exploram as áreas em que a interven- dade das experiências biográficas das jovens gerações,
ção do Estado é considerada prioritária para a concilia- num mundo de crescentes desigualdades e acentuação
ção entre ambas as dimensões: o apoio à habitação, as de clivagens sociais. Além disso, apresenta uma agenda
licenças de parentalidade e os serviços de guarda das de pesquisa diversificada e dinâmica, que integra
crianças. Aproblemática lançada pela obra resume-se, metodologias diferentes com o intuito de reconstituir
nessa seção, à questão do gênero: a dificuldade de arti- algumas das tendências que caracterizam as transições
cular o tempo dedicado ao trabalho, aos estudos e à para a vida adulta na Europa e especificamente em Por-
família, especialmente ao cuidado das crianças, é um tugal, o que certamente servirá de inspiração para os
problema essencialmente feminino, pois são as mães pesquisadores brasileiros que se interessam pelo proces-
com filhos pequenos que têm mais dificuldade em ad- so de tornar-se adulto hoje.
ministrar a falta de tempo, de recursos e de instituições
de cuidado e educação das crianças: “Face à quase ine-
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Regina Novaes e Paulo Vannuchi (orgs.), Ju- àapresentação de propostas, enquanto outrostêmum
ventude e sociedade: trabalho, educação, carátermaisinvestigativo. Dequalquermaneira, todos
cultura e participação. São Paulo, Fundação estãoorientadosparaoentendimentodaquestãodaju-
Perseu Abramo/ Instituto Cidadania, 2004, ventude a partir de sua diversidade, em oposição à sua
homogeneização, etodosconfluemtambémcomrelação
304 pp.
à importância do protagonismo juvenil nas diferentes
questõesapresentadas.
Régia Cristina Oliveira
Doutoranda em Sociologia pela FFLCH – USP Outros entes sociais são também evocados quan-
do se trata da questão do protagonismo na resolução
dos problemas e urgências que se fazem presentes, como
Juventude e sociedade é um livro composto pela reu- a família, os órgãos governamentais e não-governa-
nião de artigos voltados para a compreensão e a ampli- mentais, os movimentos sociais e a própria sociedade
ação de temas que dizem respeito à juventude brasilei- civil.
ra. São artigos escritos por importantes estudiosos de O livro como um todo é um convite agradável à
diferentes áreas do conhecimento – sociologia, antro- leitura e à reflexão sobre questões que dizem respeito ao
pologia, filosofia, ciência política, educação, economia, universo juvenil, podendo ser manuseado de acordo
psicologia e psiquiatria –, com o intuito de discutir ques- com o interesse do leitor em um dado tema específico,
tões inscritas nos campos da educação, do trabalho, da sem que haja necessidade da obediência a uma determi-
família, dos direitos humanos, bem como da violência, nada ordem.
da ecologia e das políticas públicas. Assim, quando o assunto de interesse for a questão
Essa reunião de artigos amplia e diversifica o debate da violência relacionada à juventude, o leitor pode co-
sobre os jovens brasileiros, uma vez que diferentes ex- meçar sua incursão pelo texto do antropólogo Luiz
periências, com pesquisas específicas ou com reflexões Eduardo Soares. Com seu foco de atenção nos jovens
que permitem a sua inclusão, contribuem para salientar das camadas populares, o autor mostra-nos que a vio-
a importância desses indivíduos e das questões que lhes lência no Brasil atinge principalmente os jovens pobres
são pertinentes, no cenário nacional, a partir de suas e negros, do sexo masculino, na faixa etária entre 15 e
urgências, necessidades, modos de ser e de estar no 24 anos, por meio do recrutamento para o tráfico de
mundo, de suas possibilidades e potencialidades para drogas e armas. Em um contexto marcado pela
transformá-lo. invisibilidade desses indivíduos na sociedade, o ingres-
Nesse sentido, as diferentes especialidades do co- so no crime acaba funcionando como passaporte para o
nhecimento e as distintas abordagens, experiências e aparecimento do sujeito, dotado agora de auto-estima,
reflexões, além das variadas proposições de caminhos em virtude da conquista de certo poder que se impõe
para a inclusão pessoal e social dos jovens brasileiros, por meio do temor dos outros, e da possibilidade de
complementam-se e contribuem para a ampliação de consumo de objetos que dizem respeito aos símbolos de
temas referentes à questão juvenil e para a possibili- certo grupo juvenil.
dade aberta ao leitor de formular novas questões e Se o crime oferece vantagens a jovens sem perspec-
reflexões. tivas, sem esperanças e sem adolescência, faz-se necessá-
Nesseconjuntodeartigos, hátrabalhosqueapresen- ria a criação de condições para que ao menos as mesmas
tamumteormaisacadêmico, enquantooutrossãoinfor- vantagens de recuperação da auto-estima, de saída da
maisemsuaapresentação, aindaquepersistaacapacida- invisibilidade e de possibilidade de consumo possam
decríticanaexposiçãodasidéias; algunssãodirecionados ser oferecidas no lado de cá. Esse é o desafio apresentado
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recimento de novas áreas de profissionalização da vida, um descompromisso para consigo e para com
ambiental, que representamnovosespaçosde inserção os outros.
parao jovembrasileiro diante do esgotamento dascar- Aquestãodoconsumismotambéméobjetodeaten-
reiras tradicionais. Como percebe a autora, cada vez ção dapsicanalistaMariaRitaKhel. Emseutexto, aau-
maiso campo ambiental vemsendo instituído naesfera tora começa discutindo o conceito de juventude, mos-
públicacomo bemcomum, alcançando lugar dedesta- trando, por umlado, suaelasticidadee, por outro, arela-
que na discussão a respeito do futuro da comunidade ção hoje estabelecida entre essa dimensão da vida e o
humana, o quefazcomquesejampromovidasconstan- consumo. O jovem, representante de uma importante
tes negociações entre as esferas pública e privada, per- fatiado mercado, évisto como slogan publicitário, ima-
mitindo que, por essavia, osjovenspossamadquirir, de gem de uma certa elite vitoriosa que atinge também os
formasignificativa, experiênciapolítica. chamadosadultos. Independentementedaclassesocial,
Apreocupação com o meio ambiente surge, assim, osadolescentesidentificam-se como ideal publicitário
como novo espaço de participação política dos jovens do jovem sensual, belo(a) e livre, favorecendo um au-
brasileiros, com o aparecimento de um sujeito ecológico. mento daviolênciaentreaquelesqueestão excluídosda
Trata-se de uma transformação não apenas na forma de possibilidadedecompra.
engajamento político, mas também na maneira de viver Umadasconseqüênciasdaidealização dajuventu-
e compreender a “política”. de aliada ao consumo, que também simboliza um rito
O contexto de crise política e as possibilidades de de passagem em nossa sociedade, é a falta de um
saída, de participação e de transformação dos e pelos referencial alternativo para a ação, o que para muitos
jovens brasileiros concorre com a discussão em torno significa a entrada no universo das drogas. Nesse con-
da percepção de como se dá a inserção social desses texto, muitosadolescentesdeclassemédiaidentificam-
indivíduos na sociedade de mercado. Jurandir Freire se comosmarginalizados– comaculturahip-hop. Por
Costa, psicanalista, desenvolve seu texto fazendo re- umlado, isso representaumatentativaderecusadacul-
ferência a essa situação, mostrando ao leitor como o turado consumismo eumabuscadesentido naestética
comportamento de muitos jovens, marcado pelo con- dosexcluídos. Por outro, hásempre o perigo daidenti-
sumo desenfreado e aliado à indiferença em relação ficaçãocomaviolência.
aos demais, expressa a moral contemporânea. Trata-se Outro ponto destacado pela autora diz respeito à
de um novo modo de vida caracterizado pela neces- contradição hojeexistenteentreaidealização daadoles-
sidade de compra contínua de novos produtos, pela cência como fase áurea da liberdade e de uma menor
atenção relativa ao sucesso econômico, pelo cuidado responsabilidade e avalorização entre osjovensdagra-
com a aparência física e com o prazer das sensações. videz precoce e da maternidade. Numa sociedade de
Aadesão dos jovens a esse comportamento de con- valores individualistas, a concepção de um filho na
sumo coercitivo não é resultado apenas do apelo publi- adolescência pode ser entendida como um apelo con-
citário, mas da crença em certos signos relacionados à servador esemesperançadosjovenstanto paraafamília
distinção social. Ao mesmo tempo, há um grande au- como paraasociedade.
mento no valor dado às sensações físicas prazerosas, pen- O tema da família é objeto de atenção da antropó-
sadas como ponto de apoio na constituição das identi- loga Cynthia Andersen Sarti. Em seu artigo, ela começa
dades. Juntamente com a moral do prazer, a nova moral por demonstrar a dificuldade que envolve a discussão
do trabalho dá origem à demanda imaginária por obje- desse assunto, devido à tendência à naturalização das
tos descartáveis e, independentemente da renda que o relações familiares com base na identificação da família
indivíduo possua, caracteriza uma nova postura diante com as figuras biológicas – pai, mãe e filhos. O resulta-
do é a abertura de espaço para discursos normativos, flito como algo inerente às relações nessa esfera.
que definem o “anormal” ou o “patológico”, bases da Focalizando os jovens das camadas populares,
desqualificação sofrida principalmente pelos jovens e Gaudêncio Frigotto desenvolve seu texto com a preo-
familiares pertencentes aos estratos sociais mais baixos, cupação delevantar adiscussão arespeito davulnerabi-
que não possuem um “lugar ou uma autoridade para lidadedessesindivíduosno queserefereàescolarização
falar”. e àentradaprecoce no mundo do trabalho. Ao mesmo
Nesse sentido, e buscando afastar-se dessas armadi- tempo, o autor fazreferênciaaosnumerososjovensque,
lhas, a autora propõe pensar a família como uma catego- no campo, trabalham com a família e àqueles que per-
ria nativa, ou seja, demarcada simbolicamente por um tencemao grupo de trabalhadoressemterra. Todoses-
discurso sobre si própria. Assim, dentro de cada cultu- ses jovens vivenciam situações que os expõem à
ra, cada família constrói sua própria história – criando vulnerabilidades na relação tanto com a escola como
sua identidade – e incorpora elementos exteriores, ao com o trabalho, justificando a preocupação existente
elaborar os discursos sobre si, construindo-se, então, no âmbito daspolíticaspúblicas.
dialeticamente. Esse discurso é internalizado e O autor trabalha com dados estatísticos do IBGE
ressignificado pelos indivíduos que têm, na família, o para apoiar suas reflexões no que se refere à classificação
espaço privilegiado para elaboração e significação das da população jovem do Brasil por cor e raça, mostrando
primeiras experiências vividas. Ao reelaborarem suas ex- haver, nos quesitos escola e trabalho, uma ampla domi-
periências, os indivíduos “crescem”. Esse processo de nância de indivíduos negros em situação de desvanta-
crescimento é ao mesmo tempo biológico e simbólico. gem em relação aos brancos que pertencem à mesma
Afamília, um universo de relações recíprocas e com- faixa etária. Na esfera do trabalho, essa desvantagem
plementares, tem no jovem a figura privilegiada que refere-se tanto à necessidade de inserção precoce como à
introduz “o outro necessário”, por meio da inserção de qualidade das ocupações e ao nível de remuneração ofe-
novos referenciais, representados pelos “vários grupos recidos. No que diz respeito à escola, há um maior nú-
de pares” com os quais convive. De qualquer maneira, mero de jovens negros, em relação aos brancos, que não
para os jovens, a família é uma esfera de suma impor- completaram o ensino médio, e uma reduzida porcen-
tância, em virtude de se firmar como espaço de tagem de negros que chegam à universidade.
afetividade e também de conflitos. Ela representa o “eixo Frigotto ressalta que a questão principal não está
de referências simbólicas”. relacionada ao caráter individual, nem, a princípio, ao
No que dizrespeito à localização dos jovens no inte- gênero, à cor ou à raça, mas à classe social, inscrita em
rior da família, a autora desenvolve a idéia de que, em uma sociedade de estrutura capitalista, com profundas
nossa sociedade, o adolescente não tem um lugar social desigualdades e contradições, com destaque para a rea-
definido e, em virtude disso, ocupa socialmente o que lidade brasileira. Sem deixar de considerar as particula-
seria uma “projeção do mundo adulto”, dada pelas ex- ridades dos diferentes grupos de jovens, o autor propõe
pectativas familiares. Outra forma destacada de proje- a criação de políticas públicas que sejam capazes de reti-
ção refere-se à tendência de encontrar nele o “indesejá- rar todos os jovens e crianças do mercado de trabalho –
vel na família”, como no caso da questão das drogas. O formal e informal – até que atinjam a idade legal de
problema das drogas é satanizado pela mesma lógica conclusão do ensino médio, que deve ser pensado como
que fazcomque osvaloresfamiliaressejam“sacralizados”. educação básica, tendo por eixo central a articulação
Aautora ressalta que as projeções dos problemas famili- entre “conhecimento, cultura e trabalho”. Para aqueles
ares sobre os jovens leva à idealização do mundo famili- que já estão empregados, a proposta é criar condições
ar, ao mesmo tempo em que torna difícil pensar o condo. que permitam a escolarização mediante bolsas de estu-
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Ao mesmo tempo, o autor defende a instituição de uma ma nacional de transferência de renda, financiador da
renda mínima para aqueles que estão fora do mercado, inatividade, pode enfrentar esse desafio, que deverá
com o estabelecimento também de uma política do pri- priorizar a educação.
meiro emprego. O enfrentamentodasnovasexigênciasparaoingres-
Aquestão da juventude relacionada ao trabalho tam- so no mundo do trabalho é retomado por Antônio
bém é objeto de atenção do economista Márcio CarlosGomesCosta, queindicaalgumasiniciativasdes-
Pochmann. Para dar início às questões que o preocu- tinadasao estabelecimento deumanovaposturadiante
pam, o autor recupera a forma como o trabalho dos desse universo, relacionada com o que denomina de
jovens vem sendo pensada ao longo do tempo, eviden- “educação paravalores”. Entreessasiniciativas, ressaltaa
ciando a importância do avanço de políticas públicas aberturademicro epequenosnegócios, o trabalho coo-
destinadas ao financiamento da inatividade dos jovens perativoeassociativo, oauto-emprego, odesenvolvimen-
mediante bolsas de estudo, como medida de elevação to daocupação rural não-agrícolafeito por meio de pe-
da escolaridade e, conseqüentemente, das chances de quenaspropriedadeseo trabalho remunerado emorga-
disputa no mercado de trabalho. nizaçõesdoterceirosetor.
Nesse artigo, o autor apresenta elementos para a O autorpropõea“educaçãoparaoempreendedoris-
reflexão a respeito das perspectivas da atual condição mo”comoformadepreparaçãodasnovasgeraçõesparao
juvenil em face da complexa passagem para a vida adul- mercado detrabalho, tendo emvistao fato deque o em-
ta, ressaltando, por um lado, a elevação da expectativa prego vem deixando de ser a única forma de ingresso
de vida e, por outro, a questão da ausência de perspec- nesse mercado. De seu ponto de vista, a idéia de
tivas em relação ao emprego e à mobilidade social, o que empreendedorismo estárelacionadaao desenvolvimen-
tem levado boa parte dos jovens a migrar para o exterior to de uma atitude proativa e construtiva diante do tra-
e, aqueles com menor poder aquisitivo, a compor o cres- balho, mas também da vida. Nesse sentido, trata-se de
cente quadro de violência que assola o país. Além disso, pensar em uma abordagem que esteja voltada para três
o autor também traz informações sobre outros países, dimensõesdo desenvolvimento social do jovemno país:
buscando estabelecer comparações com a situação bra- “pessoal”, deformação do jovemautônomo; “social”, de
sileira no que diz respeito à condição juvenil. formação do jovem solidário; e “produtiva”, de desen-
Temas como a relevância da unidade familiar na volvimento do jovemcompetente. Essasdimensõesestão
vida dos jovens diante das dificuldades do desemprego circunscritasaoprocessodetransiçãodoconceitodeem-
e de independência econômica; o aumento do tempo prego para o de empregabilidade, que norteia a educa-
de preparação para o ingresso no mercado de trabalho, ção paraeno trabalho.
com destaque para o papel da educação nessa sociedade Para o entendimento de questões relacionadas espe-
do conhecimento; e as transformações e as crises no uni- cificamente ao tema das políticas públicas para a juven-
verso do trabalho contribuem para o desenvolvimento tude, o leitor pode encontrar no artigo da socióloga
da discussão em torno da importância da existência de MaryGarcia Castro informações atuais sobre iniciativas
medidas que assegurem a postergação do ingresso do não apenas dos poderes Executivo e Legislativo, mas
jovem no mercado de trabalho, no sentido de possibili- também da sociedade civil. Aautora desenvolve tam-
tar a ampliação da escolarização e sua melhor prepara- bém alguns questionamentos em torno das responsabi-
ção. lidades de cada setor envolvido, destacando o papel do
O Programa BolsaTrabalho é citado como uma ex- Estado na implementação e na administração de políti-
periência bem-sucedida nesse sentido, alertando para o cas públicas para a juventude, que estejam acordadas
fato de que somente o desenvolvimento de um pela sociedade civil. Ao mesmo tempo, ela recupera o
progradebate entre políticas universais e focalizadas, res- ticassociaisfragmentadase que vêmatingindo, de for-
saltando, posteriormente, a questão das juventudes e a ma diferente, distintos grupos sociais, em detrimento
importância de ações afirmativas de raça, gênero e gera- deumsistemaamplo eigualitário, independentemente
ção, e advogando a necessidade de que estejam integra- dasituação emquecadaumpossaseencontrar no mer-
das na tarefa de formular propostas. Assim, defende, cado de trabalho. Tendo em vista que, hoje, as formas
não basta que existam ações afirmativas. É necessário de inserção social são múltiplas e diversificadas, e não
que as políticas estejam combinadas. estão totalmente institucionalizadas, Cohn propõe o
Aautora também está preocupada com a discussão enfrentamento do desafio de construção de políticas
da necessidade de considerar as distintas identidades na públicasquelevememcontaoutrasformaspossíveisde
construção de ações afirmativas que contemplem as sin- inserção social além daquela viabilizada pelo mercado
gularidades de cada grupo – de mulheres, negros ou de trabalho – como classicamente concebido –, uma
jovens –, todas pautadas na participação dos indivídu- vezqueestepotencializaamarginalização dapopulação
os. No que se refere aos jovens, ela argumenta que as jovem. Outro desafio a ser enfrentado diz respeito ao
políticas devem ser desenvolvidas de/para/com as juven- reconhecimento dasespecificidadesdasidentidadesso-
tudes, o que revela seu posicionamento em relação ao ciais dos diferentes segmentos juvenis sem que isso re-
tema, ao considerar esses indivíduos como sujeitos e presenteumasegmentação daspolíticassociais. Por fim,
atores dessas políticas e, então, de seus direitos. Castro será importante buscar a articulação das políticas eco-
também destaca a questão da diversidade juvenil – e da nômicas com as políticas sociais, tornando-as artífices
necessidade de existência do reconhecimento, pelo Es- deumanovarelação entreasociedadeeo Estado.
tado, das diferentes linguagens na implementação e ga- Areferência a esses artigos deixa claro que o livro ora
rantia da educação e de um espaço de autonomia para apresentado não só abre espaço para a reflexão sobre os
os jovens. diversos temas no campo da juventude, mas também
A equação entre políticas públicas e juventude demonstra a existência de possibilidades reais de mu-
também é discutida no texto da socióloga Amélia danças das condições juvenis, por meio da participação
Cohn. Ao analisar essaquestão, aautorarecuperaafor- dos jovens, do governo, dos movimentos sociais e da
ma como o país vem desenhando seu posicionamento sociedade civil. Ao mesmo tempo, denota a preocupa-
emrelação àspolíticaspúblicase mostraaexistênciade ção dos autores em buscar caminhos que viabilizem esse
uma tradição, no Brasil, de contemplação de dois pú- empreendimento, seja pelo exercício da pesquisa e da
blicos-alvos: aqueles que pagam e aqueles que não pa- reflexão nas diferentes áreas do conhecimento, seja pela
gam. O segundo subdivide-seemgruposformadospor experiência compartilhada do envolvimento pessoal de
crianças, gestantes, desvalidose, recentemente, idosos; cada autor(a) em projetos e políticas em curso que con-
osjovensficamforadessaproteção. Ajuventude, como templam o tema da juventude.
um segmento em transição – da infância para a vida
adulta – não tem lugar no sistema de proteção social
brasileiro, estruturado combaseno trabalho assalariado
do mercado formal; seu espaço se reduz a programas
pontuais, osquaisestão geralmentedissociadosdeuma
concepção mais ampla que alicerce um sistema de
seguridadesocial.
Aautorarecuperaascaracterísticashistóricasdo sis-
temadeproteção social no Brasil, quesetraduzempolí
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François Dubet, Olivier Galland e Éric O último bloco traz as reflexões de Singly e Dubet
Deschavanne (dir.), Comprendre: les jeunes. sobre a juventude na sociedade contemporânea, além
[Revue de Philosophie et de Sciences de entrevista com um ex-ministro da Educação francês
Sociales, 5]. Paris, Presses Universitaires de discutindo as políticas de educação e de juventude
(Ferry). Resenhas de obras centrais para a compreensão
France, 2004, 330 pp.
do tema compõem a parte final da edição.
Maria Carla Corrochano Esse conjunto de artigos é também relevante para o
Socióloga, doutoranda da Faculdade de debate no Brasil. Um primeiro aspecto importante diz
Educação – USP. respeito ao diálogo interdisciplinar. Embora a perspec-
tiva sociológica seja predominante no conjunto da obra,
Obra fundamental para quem deseja conhecer o estão presentes outros modos de olhar, principalmente
debate europeu contemporâneo a partir de contextos da psicologia e da antropologia. Se em muitos dos arti-
disciplinares diversos – sobretudo o francês – em torno gos percebemos a valorização do diálogo interdisciplinar
das principais questões teóricas, metodológicas e políti- para a compreensão do tema, poucos de fato lançaram
cas relacionadas à juventude. Reunindo artigos de aca- mão dessa perspectiva, com destaque para Quentel. O
dêmicos das mais diversas áreas do conhecimento – so- autor esforça-se em apresentar o modo como a adoles-
ciologia, antropologia, psicologia, filosofia e direito –, cência foi debatida em contextos diversos, ao discutir a
além de entrevistas e resenhas, Comprendre: les jeunes construção dessa categoria, evidenciando como sobre-
aborda temas que vão da construção social das categori- tudo a psicologia, em especial a psicanálise, tomou para
as adolescência e juventude à definição de políticas pú- si o debate em torno da compreensão do adolescente e
blicas voltadas a esses segmentos da população. de suas diferenças em relação ao universo infantil e adul-
Os artigos são distribuídos por partes temáticas di- to.
versas: no primeiro bloco, um conjunto de três artigos Nabuscapor umacompreensão do universo juve-
apresenta os principais discursos em torno das idades nil, muitosautoresfazemreferênciaatodososmomen-
da vida e limites para a compreensão da juventude tosdavida, infância, adolescência, juventude e mundo
(Deschavanne), a construção da categoria adolescência adulto, numesforço paraconsiderar suasespecificida-
(Quentel) e a representação jurídica das crianças (Youf); des e inter-relações. Mas na análise de Youf, o foco se
outro conjunto levanta questões relativas à cultura ju- deslocaparaainfância, ao discutir arepresentação jurí-
venil: uma interpretação das raves (Blanc), a entrevista dicadascrianças. Jáno caso dadiferenciação entreado-
com o fundador de uma rádio dirigida ao público jo- lescência e juventude, a abordagem de Galland e
vem francês (Bellanger) e uma análise em torno do pa- Dubet mostra-se fundamental: embora seja cada vez
pel das mídias na formação de crianças e adolescentes maisdifícil definir ondeterminaaadolescênciaecome-
(Tisseron). çaajuventude, é evidente que são doismomentosbas-
O segundo bloco, “Ser jovem hoje”, traz um artigo tantediferenciados.
que discute as possíveis patologias mentais dos adoles- Ainda que, em alguns casos, de modo antagônico e
centes (Jeamment) e outro abordando a existência ou partindo de perspectivas disciplinares diversas, a cons-
não de uma identidade estudantil na atualidade (Erlich); trução social das categorias adolescência e juventude seja
de modo similar, a existência de uma “geração 2000” é uma presença recorrente nos artigos, e embora se reco-
debatida por Galland e Chauvel, e a chamada delin- nheçam seus estilos, gostos e preferências próprios, ou-
qüênciajuvenil é temadosartigosde Roché e Mucchielli. tro aspecto comum aos autores é não considerar jovens
e adolescentes como “tribos”, uma vez que participam
ativamente da vida social, trabalhando, estudando, cons- adequabilidade de criar-se a categoria “geração dos anos
tituindo família, votando. Também é comum a percep- 2000” e quais seriam suas características fundamentais.
ção de que os jovens constituem uma geração, na medi- As respostas avançam em direções distintas. Ao explicitar
da em que vivem em determinado contexto histórico e o que compreende por geração, diferenciando atribu-
cultural, mas, ao mesmo tempo, se diferenciam. Sobre a tos e identidade geracional, Galland examina as
relação com os adultos, muitos dos autores especificidades desses jovens e a existência (ou não) de
problematizam a idéia de conflito entre gerações. uma identidade geracional particular. O autor apresen-
Nos artigos que tratam especificamente da constru- ta um quadro de vários fatores, apontados por diferen-
ção da categoria juventude, nota-se certa recusa em con- tes pesquisas, que indicariam uma forte especificidade
siderá-la simplesmente uma etapa de transição. Como geracional entre os jovens dos anos de 1990 e 2000.
afirma Quentel, as mudanças que tomam forma nesse Entre eles, destacam-se a maior dificuldade de mobili-
período continuam tendo lugar ao longo da vida, com dade social e a generalização de empregos temporários
a diferença de que nesse momento elas são enfrentadas entre os mais jovens, a despeito dos níveis educacionais
de modo mais intenso. Esse autor evidencia que a cha- mais altos. Ao mesmo tempo, considera excessivas as
mada “crise adolescente” atinge também os familiares análises que vêem essa nova geração como de excluídos.
dos jovens. Em perspectiva bastante ancorada no cam- Em sua perspectiva, a geração dos anos de 2000 não
po da psicanálise, o autor aponta que, no momento em deve ser tomada apenas como vítima, pois também se
que os filhos deixam a infância, também os pais preci- beneficia de condições de vida e educação superiores às
sam controlar a criança imaginária existente em seu in- da geração anterior. De modo contrário, Chauvel enfa-
terior, o que se concretiza por meio dos filhos. tiza a degradação das condições de entrada dos jovens
Ainda no campo da construção da juventude, na vida adulta, o que permitiria falar de uma situação
Deschavanne refuta dois discursos correntes sobre os específica da nova geração, sujeita a uma crise social,
momentos da vida: o de sua não-distinção, ou da ju- econômica e política que torna o seu futuro profunda-
ventude encarnada como condição do homem con- mente incerto. Em sentido amplo, para Chauvel, a pi-
temporâneo; e o da luta dos diferentes períodos da vida, ora das condições de vida seria a marca principal da
ou seja, o conflito entre as gerações adultas e jovens, em geração atual. Ao mesmo tempo, os dois autores con-
questionável analogia com a luta de classes. Nesse últi- cordam quanto à intensa diversidade existente no inte-
mo caso, o princípio da solidariedade entre as gerações e rior dessa geração, com destaque para a situação dos
o fato de que a idade seria apenas condição transitória jovens de mais baixa escolaridade. Considerando as cres-
estariam sendo ignorados. Em sua perspectiva, a juven- centes dificuldades de certos grupos de jovens para con-
tude não é nem o único período da vida das sociedades quistar sua independência, sobretudo econômica, Singly
modernas, nem uma “comunidade” fundada sobre um destaca o comprometimento de sua própria autono-
pertencimento geracional: ela constitui categoria antro- mia.
pológica que existe apenas em relação ao mundo adul- Os casos de “delinqüência” seriam mais numerosos
to. Apartir disso, e pautando-se no contexto europeu entre esses jovens com maiores dificuldades de inserção
ocidental, o autor apresenta três diferentes modelos de social?Problematizando o próprio conceito, Roche des-
entrada na vida adulta, destacando o momento atual e creve os mecanismos de ingresso dos jovens no mundo
seus riscos, em que haveria uma extensão do período ao da delinqüência, apontando as dificuldades em obter
longo do qual o indivíduo se torna adulto. dados confiáveis que possibilitem compreender sua evo-
Analisando a condição juvenil na contemporanei- lução e natureza, bem como construir mecanismos de
dade, Galland e Chauvel perguntam-se sobre a prevenção. Enquanto isso, Mucchielle, ao analisar o
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dades, Ramos desenvolveu um trabalho inovador, na horários reservados para diferentes atividades. Aautora
medidaemque, nasuaabordagemmetodológica, inte- observa que as reivindicações dos jovens adultos não
graaobservação e ainterpelação do espaço apropriado são conquistadas sem conflitos, uma vez que existem
pelosjovenssujeitos. Nesse sentido, não bastarecolher tensões entre as aspirações de autonomia e as obrigações
osdiscursoseasrepresentaçõessobrecomo osestudan- impostas pela vida em comum. É interessante que o
tesnegociamseu“espaço próprio”no cotidiano dasre- gerenciamento dos conflitos implica estratégias de se-
laçõesfamiliares, masobservar, por meio davisitaàcasa paração e distinção dos domínios particulares e comuns,
dos jovens entrevistados ou de sua reconstituição que se impõem perante as diferentes necessidades de
pictográfica, como esseespaço éapropriado, ocupado e privacidade.
organizado por eles. Aescolhado quarto como umdos Asentrevistasforamrealizadascomcinqüentaestu-
objetos privilegiados de análise das relações familiares dantesentre 19 e 27 anos, emsuamaioriade classe mé-
entre paise filhosjustifica-se namedidaemque consti- dia, emPariseregião. Numprimeiro momento, o obje-
tui o local maisprivado do jovemestudantenacasa. Se- tivo foi recolher osdiscursosdossujeitossobreapartilha
gundo a autora, o sentido que o jovem adulto atribui cotidianado espaço familiaremseusentido maisamplo,
aosseusobjetos“érevelador dasrelaçõesqueestabelece levantando informaçõessobreo espaço, o uso do tempo
consigo mesmo e com aqueles que o rodeiam” (p. 25). e asdiversasrelaçõesentre osjovensadultose seuspais,
Dessemodo, parao pesquisador, observar o quarto eos irmãos, amigos(as) enamorados(as). Numsegundomo-
objetosque o compõemé ummeio de compreender as mento, tratou-se de apreender o modo como os jovens
relações, oslaçoseasidentidadesqueo indivíduo cons- vivenciam seu “espaço próprio, na casa dos pais”, entre
trói durantesuabiografia. dependênciasobjetivaseaspiraçõesdeindependênciae
Afamília atua na outra ponta das relações cotidia- autonomia. As entrevistas foram realizadas na casa dos
nas e exerce um papel fundamental no processo de informantes, o quepermitiuàpesquisadoravisitar eob-
construção identitária de cada um dos seus membros, servar o espaço doméstico e os diversos elementos que
ao mesmo tempo em que ampara e integra, estabelecen- compõem o quarto dos estudantes. Nos casos em que
do relações de dependência material e afetiva, deveres e isso não foi possível, osparticipantesforamsolicitadosa
obrigações. desenhar umaplantadahabitação.
A questão central exposta pela obra diz respeito a Aobra é dividida em duas partes. Aprimeira trata
como o jovem pode sentir-se adulto ou autônomo no especificamente do domínio privado dos jovens adul-
âmbito da coabitação intergeracional. Ao interrogar-se tos coabitantes: o quarto. Nessa seção, Ramos analisa até
de que maneiras a concepção de “espaço próprio” é ela- que ponto o “espaço próprio” dentro da casa dos pais é
borada, em oposição ao “espaço dos pais”, a autora bus- um espaço pessoal. O primeiro capítulo trata de uma de
ca investigar a evolução das relações intrafamiliares por suas funções: a separação em relação à convivência coti-
meio das quais os jovens vão construindo sua autono- diana com os demais membros da família. Aqui são
mia e sua identidade adulta. explorados os sentidos e as motivações para sua
Para isso, optou por uma abordagem sociológica efetivação, as estratégias de delimitação do privado por
compreensiva, que tem como base entrevistas indivi- parte dos jovens e os pontos de conflito entre pais e
duais. Trata-se de perceber como um jovem adulto pas- filhos.
sa a reivindicar o direito de ter seu próprio espaço no O segundo capítulo trata da função do quarto como
interior do domicílio familiar e o direito de ter seus experimentação e criação de si, por meio da ação dos
próprios princípios de organização do quarto, desde a ocupantes sobre o espaço físico. Aautora observa como,
arrumação dos objetos à regulação de quem entra e dos por intermédio de sua relação com os objetos, a identi-
dade é construída. Trata-se de um duplo esforço de pessoal no interior da esfera doméstica. Aqui a autora
análise: por um lado, o sentido que as inscrições materi- retomaafunção deseparação do quarto como local pri-
ais têm para o observador que está fora do âmbito ínti- vilegiado do privado, porémestende aanálise alémdos
mo; por outro lado, o sentido que os sujeitos atribuem limites físicos da habitação, para as relações que os jo-
às suas próprias ações. É precisamente nessa parte que se vens adultos mantêm fora da casa, nomeadamente as
encontra a originalidade do trabalho de Elsa Ramos: a relaçõesamorosas, asrelaçõesdeamizadeeassaídas, en-
sobreposição de duas leituras simultâneas sobre o mes- contros e atividades de lazer. Esse universo de relações
mo campo de interlocução simbólico e material. Os pessoaisnamaior parte dasvezesnão se desejapartilhar
objetos pessoais, os móveis que fazem parte desse espa- com os pais; desse modo, os jovens adultos desenvol-
ço e sua disposição são dotados de sentidos que refletem vem estratégias para proteger esse mundo essencial-
uma identidade expressada nos gostos pessoais, naquilo menteprivado dasinterferênciasfamiliares. Nessecapí-
que é mostrado ou apenas sugerido. O quarto, entre- tulo, Ramos explora as motivações por trás da interdi-
tanto, não é imutável no tempo: possui também uma ção do privado, especialmente no âmbito das relações
história própria, que integra a memória familiar e pes- amorosas, que envolvem os tabus sobre a sexualidade,
soal, parte importante do processo de constituição da os conflitos na convivência com namo- dos(as) e
identidade. As relações familiares revelam-se na trans- amigos(as), o uso do telefone, oshoráriosdevoltar para
formação do espaço, na descrição de como era antes e casaànoite, entreoutrosaspectos. O texto éuminteres-
nos projetos de modificações para o futuro: “O desejo sante mergulho nosaspectosmaisíntimosdasrelações
de uma re-apropriação do espaço do quarto, de uma re- entre paise filhos, explorando osconflitosentre osmo-
atualização, segue-se à tomada de consciência de uma dos de pensar dos jovens e das gerações mais velhas, os
evolução pessoal. Atransformação permite distinguir medos, osembaraços, asjustificativasparaanecessida-
dois períodos da vida do jovem adulto. Transformar o de de omitir e esconder determinados comportamen-
quarto é também um meio de se distanciar em relação tos.
aos pais” (p. 112). Finalmente, o último capítulo analisa o espaço das
Asegunda parte trata das três dimensões da cons- relações comuns entre os familiares, em que os jovens
trução do “espaço próprio”: adelimitação daquilo que adultos se sentem como “iguais” perante os pais. Esse
pertence ao jovemestudante, daquilo que é pertinente espaço é constituído por meio da participação pessoal
aos pais e daquilo que dizrespeito ao coletivo familiar. na construção da coesão familiar. É no desenrolar das
Nessaseção são analisadasasrelaçõesdenegociação das atividades em grupo, como assistir à televisão ou à hora
regras de convivência entre pais e filhos. No capítulo das refeições, que a identidade familiar é afirmada. O
três, a autora identifica o ordenamento do espaço (os sentimento despertado pelos hábitos familiares é o de
objetos, o lugar de cada um, o que se pode fazer em “nossa” casa, “nossa” família. Aprincipal característica
cada um doscômodos) e do tempo (oshorários, asfre- dessa dimensão das relações entre pais e filhos é a convi-
qüências, aduração dasatividades) fixado pelospais. As vência, os momentos de agregação dos diferentes parti-
relaçõesfamiliaressão observadasdentro daperspectiva cipantes, em que o grupo se afirma como unidade, e a
de negociação dessas regras: por um lado, de que ma- pertença ao “nós” é validada entre os próprios mem-
neiraselassão estabelecidase suaobediênciaé cobrada; bros. Segundo a autora, esse aspecto é extremamente
por outro lado, as estratégias empregadas pelos jovens importante para a constituição da identidade autôno-
no sentido de subverter ou alterar a ordem e ampliar ma do indivíduo jovem, uma vez que é no decorrer da
suaautonomia. convivência que as transformações das regras são nego-
O quarto capítulo trata da construção do mundo ciadas, o que permite aos jovens, tanto quanto aos pais,
Notas
1. Ver Jean-Claude Chamboredon, “Adolescence et
post-adolescence: la ‘juvénisation’ ”, em Adolescence
terminée, adolescence interminable, organizado por Anne
Marie Alléon et al. (PUF, Paris, 1985).