Você está na página 1de 2

Pesquisas mostram que a inteligência do ser humano Giovanni, passou a sentar todo dia com Pedro, 4 anos, para

anos, para ler um


está regredindo livro e assim motivar sua curiosidade. "No caso das crianças
pequenas, celular é um entretenimento passivo, sem reflexão ou
O tempo desperdiçado nas redes sociais e a polarização desafios. Não passa de uma diversão viciante”, alerta Claudio
política são alguns dos principais responsáveis pelo recuo, depois Serfaty, do Programa de Pós-Graduação em Neurociências na
de décadas de evolução. Universidade Federal Fluminense.
Por Ernesto Neves, Caio Saad Atualizado em 1 out 2021

Objeto de análise desde os primórdios da civilização, a Colocada dessa maneira, parece que a tecnologia é um
inteligência humana é um mistério tão intrigante quanto a origem mal. Longe disso. O foguete do progresso tecnológico transportou
do universo. Na cultura ocidental, sua primeira definição remonta a humanidade para um novo patamar de conhecimento,
à Ilíada, o poema do século VIII a.C. em que Homero narra a criatividade, bem-estar e longevidade, com nítidos e incontáveis
história do herói Aquiles e da Guerra de Troia e faz referência à benefícios em todas as áreas — inclusive no estudo da inteligência.
psyche, origem do termo psique, no clássico grego uma força O ruim é o exagero. Esse ramo da ciência, de aferição cognitiva,
superior àquela que dá vida ao restante dos seres. As dúvidas sobre ganhou impulso no século XIX, quando o antropólogo inglês
o que faz os indivíduos serem mais ou menos inteligentes Francis Galton (1822-1911) esmiuçou a teoria da evolução
permanecem, mas, ao longo de milênios , o conceito foi sendo formulada por seu primo, Charles Darwin (1809- 1882). Galton
destrinchado em estudos científicos sobre os mecanismos que concluiu que a inteligência é uma característica hereditária e
movem o intelecto até se chegar a uma forma de medição desenvolveu, em 1884, o primeiro método de medida do intelecto
padronizada — o teste de Q.I. (quociente de inteligência) — humano — um conjunto rudimentar de testes físicos e
amplamente reconhecida e aceita. psicológicos. Três décadas depois, foi a vez de o psicólogo alemão
Wilhelm Stern elaborar o quociente de inteligência, só que em uma
fórmula muito complexa. Coube a Lewis Terman, especialista em
Entra década, sai década, em boa parte do século XX os psicologia educacional da Universidade Stanford, simplificar o
países mais avançados, principalmente, puderam bater no peito e teste e popularizar a sigla Q.I. Foi Terman quem sedimentou o
anunciar com orgulho que o Q.I. médio de seus habitantes subia padrão médio de Q.I. no número 100, criando a escala Stanford-
consistentemente – até a curva começar a cair e a inteligência Binet, usada até hoje.
engatar marcha a ré a partir dos anos 2000. Em sólidos
levantamentos, descobriu-se algo constrangedor para a civilização:
pela primeira vez, os filhos passaram a ter mentes menos afiadas À medida que a ciência evolui, escorada pelos avanços
do que a de seus pais. E como fugir da lembrança de movimentos da computação, o componente hereditário da inteligência
da atualidade desprovidos de massa cinzenta, como os antivacina, identificado por Galton vai ganhando a companhia de outros
os anti-instituições democráticas e os anticiência que compõem o fatores. Em pesquisa publicada em 1984, o educador americano
lado escuro da polarização ideológica que varre o planeta? James Flynn (1934-2020), tomando por base o avanço constante
do Q.I. médio nos países mais prósperos - que atingiu seu ápice na
década de 1970, com altas anuais de três pontos —, demonstrou
O esforço de tentar entender e reverter esse quadro tem que as melhorias alcançadas na medicina, na educação e no
sido tema de uma série de estudos e publicações recentes pensamento crítico haviam contribuído decisivamente para tornar
capitaneados por pesos- pesados da área, intrigados com o a população mais inteligente, um fenômeno que ganhou o nome de
fenômeno. No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, que acaba de “efeito Flynn”. Problema: passado o apogeu, as conquistas no Q.I.
ser lançado no Brasil, o renomado neurocientista francês Michel foram sendo cada vez menores até estacionarem e, na entrada do
Desmurget, diretor de pesquisas do Instituto Nacional de Saúde da século XXI, começarem a deslizar ladeira abaixo, devagar e
França, aponta as baterias de combate ao estado atual de sempre, acendendo o sinal amarelo. E a trajetória segue em queda
estagnação intelectual para o que afirma ser sua maior causa: o na capacidade cognitiva.
excesso de tempo passado diante da tela dos mais variados
aparelhos digitais. "A tela, em si, não representa um mal, mas o
número de horas despendidas na sua frente é assustador", ressaltou Um dos estudos mais incisivos sobre esse refluxo
Desmurget a VEJA. “O uso de computadores e celulares por pré- intelectual, realizado por pesquisadores da Noruega, analisou 730
adolescentes é três vezes maior para se divertir do que para fazer 000 testes de Q.I. aplicados em jovens convocados para o serviço
trabalhos escolares. No caso dos adolescentes, o número sobe para militar obrigatório nos últimos quarenta anos. Sua conclusão: os
oito”. aumentos anuais do Q.I. dos noruegueses baixaram para 2 pontos
nos anos 1980, para 1,3 ponto nos 1990 e se transmutaram em
recuo de 0,2 ponto neste século. Processo semelhante foi detectado
No trecho em que se debruça sobre o desenvolvimento no Reino Unido e na Dinamarca. Pesquisas como essas reforçam
de crianças pequenas, o especialista adverte que internet e o alerta dos especialistas para mudanças no estilo de vida que,
aplicativos de redes sociais em demasia afetam negativamente as segundo eles, estão por trás do retrocesso — aí incluída, em lugar
interações, a linguagem e a concentração, os três pilares básicos do de destaque, a imersão constante e indiscriminada nos eletrônicos.
progresso cognitivo em qualquer idade, mas de excepcional As plataformas de vídeos, as redes sociais e os aplicativos de
importância nos cinco primeiros anos da existência. É justamente mensagem alimentam as discussões embotadoras, nas quais
nesse período-chave que se observa o auge da plasticidade - nome crenças se sobrepõem à razão e a ideologia impede o confronto de
dado à frenética formação de sinapses que nunca mais se repetirá ideias enriquecido pelo saber científico - aquele que não se atém
e que resulta na evolução ultra-acelerada do potencial do cérebro. às primeiras linhas de um texto, mas se ampara nele inteiro. “As
“Até o humor do meu filho piorou com o tempo excessivo na frente pessoas entram nas chamadas bolhas de filtragem, onde são
do celular”, reconhece a assistente administrativa Hanna Ueda, 27 expostas a olhares condizentes com seu perfil e blindadas de
anos, de São Paulo. Ela restringiu o uso e, junto com o marido, pontos de vista destoantes”, afirma Philip Boucher, pesquisador do
Scientific Foresight Unit, instituto ligado ao Parlamento Europeu.
foi desastroso e o segundo, com Elsa Löwenthal, ficou marcado
pelas infidelidades. Seja qual for a medida utilizada para definir a
A turma mais nova, como bem aponta o francês inteligência, o essencial é que ela seja cultivada, porque só assim
Desmurget, é presa fácil dos efeitos deletérios do excesso digital. a humanidade caminhará para a frente, sem as radicalizações
Estudo da Universidade de Alberta, no Canadá, mostrou que comportamentais que alimentam atualmente a estupidez dos
crianças de 5 anos ou menos que passam mais de duas horas por cabeças-ocas.
dia on-line têm chance cinco vezes maior de apresentar dificuldade
de concentração e sete vezes mais risco de exibir sintomas de
transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). "Até
2 anos, o tempo de tela recomendado é zero, a não ser em bate-
papos virtuais com a família", decreta a psicóloga Sheri Madigan,
da também canadense Universidade de Calgary. Entre 2 e 5 anos,
a janela de conexão não deve passar de uma hora diária, com foco
em programas educacionais e jogos. "E os pais precisam estar do
lado, para ajudar na compreensão do que está acontecendo", diz.

Fatores comportamentais, sabe-se agora, também são


determinantes na evolução da inteligência. O pleno
desenvolvimento intelectual na infância exige interação social,
engajamento em brincadeiras e, conforme a idade, também o
enfrentamento de problemas e discussões que transcorrem fora das
telas. “Há evidências crescentes de que investir na prática de
disciplina e autocontrole tem efeito positivo tanto no nível
acadêmico quanto no Q.I. dos pequenos", diz Adriana Melibeu,
especialista em neurobiologia da Universidade Federal
Fluminense (UFF). Uma boa formação escolar é imprescindível,
bem como atividades extracurriculares que puxem o cérebro e
sirvam de desafio - o que vale também para os adultos (veja o
quadro acima), já que instigar a curiosidade é terreno fértil para o
crescimento intelectual de qualquer pessoa.

Conta pontos positivos apaixonar-se por algum assunto,


especialmente se ele exige conhecimento profundo, como
astronomia ou grego antigo, proporcionando um mergulho no tipo
de exercício que afia a atenção, estimula a perseverança e aprimora
habilidades como processamento de informações e análise.
"Inteligência não é só a bagagem que adquirimos, mas a
capacidade de interpretar e de se lançar rumo ao novo, ao
desconhecido”, ensina Chris Frith, psicólogo da University
College London. A prática de esportes é outra atividade
relacionada à expansão do intelecto porque aumenta a oxigenação
do cérebro, o que por sua vez incrementa a conectividade
neuronal- processo que se repete na alimentação equilibrada.
Consumir ovos, peixes, legumes e verduras potencializa a
produção de neurotransmissores e ajuda no desempenho cognitivo.

De tanto investigar os segredos da mente, pesquisadores


e cientistas não param de identificar novas ramificações para a
inteligência: espacial, lógica, linguística e mais uma infinidade de
variações. Há uma reflexão, inclusive, quanto à escala de valor das
habilidades. "As mais importantes são relacionadas à inteligência
adaptativa, como a criatividade, o bom senso, a empatia e a
destreza analítica", afirma o psicólogo Robert Sternberg, da
Universidade Cornell. Outra variante, a inteligência emocional,
definida como a capacidade de entender e lidar com sentimentos
próprios e alheios, fincou pé no glossário do intelecto graças à
publicação do best-seller de mesmo nome, do jornalista Daniel
Goleman, em 1995. Nessa sopa de designações, até a mente
privilegiada dos gênios (veja as ponderações de alguns deles
acima) pode escorregar. Albert Einstein (1879-1955), que nunca
fez teste mas teve seu Q.I. avaliado postumamente em
extraordinários 140 a 145 pontos, seria reprovado no exame de
inteligência emocional: o primeiro casamento, com Mileva Maric,

Você também pode gostar