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Lidia Zuin1
Jacques Derrida, contudo, aponta para a ironia da passagem: Sócrates fazia uma crítica
aos sofistas e à substituição da memória a partir de um dispositivo que, em si, torna-se uma
"prótese para o órgão", sendo isso considerado uma perversão. Isto é, Platão defende que os
sofistas estavam usando a tecnologia da escrita como uma forma de mecanizar o discurso
filosófico, quando este seria originalmente "decorado" ou espontâneo. Significa que o medo
de Thamus em aderir à escrita é de que isso resulte em uma forma de demência, de um
"esquecimento na alma dos aprendizes".
Nesse sentido, O'Gorman alerta: o medo de que a tecnologia cause alguma deficiência
em nosso nível biológico vem de vinte cinco séculos atrás. Para embasar esse raciocínio, em
2007 um estudo foi realizado no Trinity College Dublin, descobrindo assim que 25% dos
participantes abaixo dos 30 anos não conseguiam lembrar o número de telefone de suas casas
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Lidia Zuin é bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero e mestre em Comunicação e Semiótica pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou artigos nos livros Comunicação, Tecnologia e Cultura
de Rede (2011), Comunicação e Cultura do Ouvir (2012) e no periódico Libero (2014).
sem consultar o celular. Apenas 40% dessas pessoas foram capazes de lembrar a data de
aniversário de seus familiares, enquanto 87% dos participantes acima de 50 anos se
recordaram. Para o pesquisador responsável, Ian Robertson, os resultados sugerem uma
"Atrofia de Memória Induzida pela Tecnologia".
Ainda na Coréia do Sul, o Dr. Byun Gi-Won, do Balance Brain Center em Seoul,
afirma que a demência digital não afeta apenas a memória, mas também a atenção e o
desenvolvimento emocional. Segundo ele, a disfunção é "caracterizada por déficits de
memória, distúrbios de atenção e achatamento emocional entre os jovens que passam muito
tempo jogando videogames, fazendo pesquisas online, enviando mensagens e arquivos
multimídia pelos smartphones". Para O'Gorman, um modelo como esse, que engloba mais
fatores além da memória, parece mais promissor, ainda que ele acredite que a teoria de Gi-
Won, em específico, seja controversa por se basear no conceito de lateralização do cérebro -
algo já superado em 1981 pelo neurobiólogo Roger Sperry e mais vários outros
neurocientistas, como Manfried Spitzer.
Spitzer, aliás, é autor do livro Digitale Demenz (2012), no qual amaldiçoa a mídia
digital. De acordo com sua pesquisa, os danos causados por tais suportes são irreversíveis.
Assim como já foi proposto pelo escritor Nicholas Carr e a professora universitária Maryanne
Wolf, Spitzer defende a plasticidade do cérebro conforme explica que crianças pequenas que
usam dispositivos digitais estão mais propensas a sofrer precocemente com a demência do que
aquelas que interagem com objetos táteis mais complexos. Em suas palavras, "os ambientes
digitais privam a experiência que é necessária durante os primeiros anos, para a formação
completa do cérebro".
Apesar das previsões apocalípticas de Spitzer, seu diagnóstico se diferencia dos
anteriormente citados por se fundamentar principalmente na neurociência sonora. Mas, ainda
assim, O'Gorman critica as conclusões do pesquisador, já que Spitzer afirma que os danos
causados ao cérebro são permanentes ao mesmo tempo que considera a plasticidade do
cérebro. O professor de inglês explica que "Spitzer parece associar a demência digital a
mudanças fisiológicas permanentes, tais como aquelas causadas pelo Alzheimer, por exemplo.
Mas se o cérebro é tão plástico quando ele e outros neurocientistas nos levaram a acreditar,
então por que não imaginar que a demência digital seja um tipo de demência reversível, assim
como a que é causada pela depressão, excesso de álcool e drogas, e deficiências nutricionais.
O próprio Spitzer compara o uso da internet ao consumo de álcool, comparando uma
competência tecnológica à 'formação de competência alcoólica no jardim de infância ao dar
um pouco de schnapps todos os dias às crianças'".
Doença questionável
O'Gorman propõe que, eventualmente, as pessoas que fazem crítica a esse hábito
contemporâneo podem estar se utilizando de retóricas questionáveis ao descontar as
possibilidades que as novas mídias têm de, na realidade, melhorar a atenção, memória e afeto,
especialmente se nossos cérebros continuarem se adaptando a elas. Para O'Gorman, os
discursos e a ciência usada na defesa por uma demência digital são questionáveis, chegando
ao ponto de fazer com que o pesquisador sugira que, de certa forma, talvez essa doença seja
proposta mais por conta de uma vontade de nos vermos livres dos dispositivos que
constantemente fazemos uso, seja profissionalmente ou não.
O professor insinua que, principalmente aqueles que não cresceram e evoluíram com
as mídias digitais desde o nascimento, são os que têm o diagnóstico da demência digital como
"uma grande desculpa para tirar férias da tirania do e-mail, das mensagens, Facebook e assim
por diante. A existência de tal doença também dá à geração baby boom, que está realmente
enfrentando uma perspectiva de demência por envelhecimento, a evidência de que os nativos
digitais que os sucedem são menos inteligentes que os mais velhos. A demência digital,
portanto, será vista por muitos como uma pseudociência cheia de inveja grosseira e medo".
O ambiente escolar
A mídia vem como o vento que penetra pelas paredes em forma de imagens, palavras,
sons, cenas, narrativas e informações, sites, blogs, redes sociais, serviços de mensagem.
Saltamos como primatas, de janela em janela, e nos deslocamos, como nômades, por
diferentes endereços eletrônicos direcionados, propositalmente, em um navegador. Para
Baitello, essas interfaces "nos convidam a espiar o tempo todo, (...) nos hipnotizam o olhar e
nos paralisam o corpo", de modo que, mesmo entre amigos ou família, pelo menos uma
pessoa fatalmente será seduzida por uma televisão ligada. "Mesmo que a conversa seja
animada, que o assunto e o encontro sejam palpitantes, os olhares furtivos para a tela são
inevitáveis e indisfarçáveis", alerta o pesquisador.
Esse impulso estaria, portanto, totalmente conectado ao nosso impulso nômade que
retorna apenas como força que move os olhos e ouvidos: é um nomadismo voyeurista, "aquele
que só sente prazer em ver, ao longe, o objeto do desejo". Assim, novas concepções de fixidez
e referências nascem junto de diferentes percepções e vivências do espaço e do corpo. E, ao
mesmo tempo em que se deseja fugir sem sair do lugar, cria-se uma dependência por telas,
por displays de imagens. Baitello indica que adolescentes e jovens adultos são os mais
afetados por essa "patologia" (sic), sendo que, páginas a frente, ele também argumenta que
"nossas escolas se tornaram ao longo dos séculos instituições mestras em domesticar a
inquietude natural de nossas crianças".
O pesquisador comenta que anos são gastos para que uma criança aprenda a se sentar e
permanecer sentada, "preferencialmente com as mãos também em repouso". Isso passa a ser,
mais do que o conteúdo, o principal elemento do processo educacional que, atualmente,
"funda-se sobre uma escolarização para a redução e para a simplificação do indivíduo. Em
primeiro lugar, devemos aprender a ficar sentados, quase imóveis, já quando crianças bem
pequenas, nos jardins de infância e na pré-escola". O movimento, assim, explora os limites
impostos e o espaço ao redor, reduzido. Baitello comenta que chegou a ouvir o depoimento de
uma jornalista que, quando criança, sentava-se em carteiras escolares com barras situadas
sobre o tampo, de modo a imobilizar os braços e as mãos dos alunos inquietos. Como
consequência dessa lógica, o autor de O Pensamento Sentado indica que tal sedação e
assentamento fazem jus ao termo Sitzfleisch segundo Nietzsche: "constitui o maior pecado
contra a natureza do próprio homem".
Talvez seja por esse motivo que escolas vêm analisando o uso de dispositivos móveis
na sala de aula, como ocorreu a partir da distribuição de laptops no Uruguai ou no uso de
jogos educativos em uma escola particular de São Paulo, estudada por Tiago Mota e Silva em
seu artigo Mídia como brinquedo: considerações sobre a apropriação lúdica da tecnologia
por estudantes do primeiro ano do ensino fundamental. O jornalista descreve a experiência de
uma instituição de ensino brasileira que disponibiliza tablets para alunos do ensino médio e
fundamental, de maneira que o aparelho se torna um brinquedo educativo - isto é, a
valorização do fator lúdico presente no homem e, assim, também na sala de aula.
Desse modo, o literal uso dos dispositivos móveis, em sala de aula, seja uma possível e
literal solução à "falta de foco" diagnosticada pelos educadores. Entretanto, ainda poderíamos
questionar se o próprio método da aula expositiva, reorganizado a partir da lógica de saltos
hipertextuais, com o uso de dispositivos multimídia, também poderiam ser uma saída
aproveitável - isto é, da narrativa linear típica da escrita à adaptação pós-histórica (Flusser) do
discurso.
Homem tecno-lógico
Por fim, conforme explica O'Gorman, a proposta da demência digital pode funcionar
como uma "contra-narrativa" diante da defesa do aprimoramento do ser humano a partir da
tecnologia, como ressaltado pelo transumanismo. O pesquisador cita a Transhumanist
Declaration, que "visa à possibilidade de expansão do potencial humano ao superar o
envelhecimento, deficiências cognitivas, sofrimento involuntário e nosso confinamento no
planeta Terra". Além disso, a declaração também insiste que indivíduos devem ter "uma
ampla escolha pessoal sobre como capacitam suas vidas" e, nesse sentido, ressalta O'Gorman,
entende-se que a vida humana atual é menos capacitada ao estar atrelada ao corpo biológico.
Assim, para o transumanista, próteses tecnológicas nos possibilitariam superar nossas
limitações naturais, enquanto um interlocutor mais cético talvez visse em implantes uma
forma trágica de alteração da natureza humana.
O'Gorman acredita que ambas as visões falham ao não entender que o humano sempre
foi tecnológico. "Ver nossa espécie dessa forma ajuda a amenizar retóricas polêmicas sobre
prostética, assim como nos lembra que, em último caso, nós podemos fazer escolhas sobre
quais próteses tecnológicas queremos abraçar ou descartar, incluindo próteses de memória".
Aliás, seu artigo começa, justamente, com uma citação do conto de ficção científica Johnny
Mnemonic, de William Gibson: "E essa era a natureza do meu jogo, porque eu gastei boa
parte da minha vida como um receptáculo cego a ser preenchido com o conhecimento de
outras pessoas e então esvaziado, jorrando linguagens sintéticas que nunca entendi. Um
garoto muito técnico, com certeza".
O pesquisador conclui que, dessa forma, "não há humano (...) sem próteses (...) nós
sempre fomos técnicos" e que invenções humanas como próteses ou a ciborguização são um
"método de arquivação: o que é criado fora do homem permanece como uma matéria de
registro e cada vez mais se torna o próprio registro ou arquivo, a memória artificial ou exterior
em si". Isso pressupõe que "não há humano sem um arquivo, humano sem memória
prostética. Qualquer conceito que entende a leitura ou a escrita como algo antinatural para o
humano perde a noção de que a única coisa natural no cérebro humano é sua habilidade de se
adaptar rapidamente a ambientes e implementações tecnológicas mutáveis. Com isso em
mente, contrariando as sugestões de Maryanne Wolf e outros cientistas cognitivos, não há
nada mais natural para o cérebro humano que se adaptar às demandas técnicas da leitura".
Referências