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SOBRE A FENOMENOLOGIA

Uma abordagem platônica


ADOLF REINACH

SOBRE A
FENOMENOLOGIA
Uma abordagem platônica

Edição
Gabriel de Vitto

Tradução
Luís Henrique Toniolo Serediuk Silva

São Paulo
2020
Copyright © 2020 A Outra Via

Capa
Rebeca Traldi

Revisão
Gabriel de Vitto

Diagramação
Sérgio Francisco Lopes Ramalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reinach, Adolf
Sobre a fenomenologia / Adolf Reinach; tradução de Luís Hen-
rique Toniolo Serediuk Silva. – São Paulo : A Outra Via, 2020.
ISBN: 978-65-991045-2-7
1. Fenomenologia 2. Filosofia I. Título.
20-XXX CDD 142.7
Índice para catálogo sistemático:
1. Fenomenologia : Filosofia 142.7

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

Todos os direitos reservados a


A Outra Via
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Sumário

Apresentação ........................................................ 7

Sobre a fenomenologia
[I.] ................................................................... 15
[II.] .................................................................. 41

Índice onomástico ................................................ 61


Apresentação

Adolf Reinach, agora apresentado ao público de


língua portuguesa, é um daqueles não raros casos
de autores olvidados na proporção de sua influência
e profundidade. Nascido em 23 de dezembro 1883,
na cidade de Mainz, às margens do rio Reno, Rei-
nach trazia em seu espírito aquela inclinação para a
objetividade que Conrad-Martius dizia ser um traço
fundamental do povo judeu1.
Apesar de sua formação em direito, cedo interes-
sou-se pela filosofia, para a qual viria a devotar a vida.
Doutorou-se em 1905 sob a orientação de Theodor
Lipps, eminente filósofo da época, com a tese Sobre
o conceito de causa no direito penal vigente. Contudo,

(1) Hedwig Conrad-Martius, Edith Stein, Conferência pronunciada em


outubro de 1958, para a Sociedade pela colaboração entre cristãos e
judeus.
8 ADOLF REINACH

atraído por outro aluno de Lipps, Alexander Pfänder,


abandonou o psicologismo de seu orientador em fa-
vor da nascente fenomenologia de Edmund Husserl,
compondo o primeiro círculo de fenomenólogos, em
Gotinga. Desde então, tomou Husserl por seu mes-
tre, e passou a colaborar estreitamente com ele no de-
senvolvimento do método nascente, a tal ponto que
«no obituário de Reinach, Husserl lhe deu crédito de
ter ajudado em seu próprio progresso rumo à feno-
menologia pura»2. De certo modo, Reinach encarnou
a busca pelo absolutamente verdadeiro, objetivíssi-
mo, assim como anunciado por Husserl: «O verda-
deiro é absolutamente verdadeiro, é verdadeiro em si.
A verdade é una e idêntica, sejam homens ou seres
não-humanos, anjos ou deuses, os que a apreendam
pelo juízo. Esta verdade, a verdade no sentido de uma
unidade ideal frente a multidão real das raças, dos
indivíduos e das vivências, é a verdade de que falam
as leis lógicas e de que falamos todos nós, quando não
somos extraviados pelo relativismo»3.
Sendo um profundo conhecedor do método fe-
nomenológico e um eloquente professor, Reinach

(2) Herbert Spiegelberg, The Phenomenological Movement: A Histo-


rical Introduction, Springer Science + Business Media Dordrecht, Haia,
1971.
(3) Edmund Husserl, Prolegômenos às Investigações Lógicas, pará-
grafo 36. Tradução nossa a partir da trad. espanhola de José Gaos.
APRESENTAÇÃO 9

era tido por muitos dos grandes nomes da fenome-


nologia como sendo o fenomenólogo par excellence.
Foram muitos os que lhe devotaram especial afeto e
admiração, dentre os quais destacam-se, entre outros,
Edith Stein, Dietrich von Hildebrand, Conrad-Mar-
tius e Max Scheler. Em seus escritos autobiográficos,
diz Stein: «Em Breslávia, Mos havia me dado a se-
guinte indicação: ‘quando se chega a Gotinga, vai-se
primeiro ver Reinach; ele cuida do resto. (...) Ele era,
sobretudo, o elo entre Husserl e os estudantes, pois
sabia atuar socialmente, ao passo que Husserl não ti-
nha muita prática com isso»4. Além de sua afabili-
dade e sociabilidade, Reinach era um «guia seguro»
para os jovens fenomenólogos, para os quais «dirigia
os trabalhos práticos em sua casa. Reinach abordou
conosco, diz Edith Stein, as questões com as quais
ele mesmo se confrontava em suas pesquisas naquele
inverno (...) Sentíamos todos um profundo respei-
to com relação ao nosso jovem docente. Ninguém se
aventurava a falar de maneira irrefletida; eu mesma
mal ousava abrir a boca sem ser solicitada»5.
A parte da influência exercida sobre seus colegas,
Adolf Reinach deu o pontapé inicial daquilo que vi-

(4) Edith Stein, Vida de uma família judia e outros escritos autobiográ-
ficos, Paulus, São Paulo, pág. 312 e seguintes.
(5) Edith Stein, ibidem.
10 ADOLF REINACH

ria a ser chamado de «fenomenologia realista», um


método fiel ao exposto nas primeiras Investigações
Lógicas, ontologicamente fundado, que se levantou
contra a virada idealista dada por Husserl na publica-
ção, em 1913, de Ideias para uma Fenomenologia Pura
e para uma Filosofia Fenomenológica.
Além de exemplo intelectual, Reinach foi um for-
te exemplo religioso para o círculo de Gotinga, sendo
o primeiro entre os alunos de Husserl a se converter
ao cristianismo. Daí em diante, passará a ser capitão
de uma nova revolução espiritual que culminaria na
grande ética cristã de Dietrich von Hildebrand , no
projeto metafísico de Edith Stein, e ainda na antro-
pologia teológica de Karol Wojtyła (São João Paulo
II)6. Tal revolução se deve, sobretudo, a uma «nova e
mais moderna fundação metodológica a essa filoso-
fia clássica e realista das verdades necessárias»7. Esta
filosofia «clássica e realista» é representada, principal-
mente, pelos grandes nomes de Platão e Aristóteles,
Agostinho e Boaventura, Tomás de Aquino e Duns
Escoto. Para Reinach, contudo, o acento estava em
Platão; chegava mesmo a dizer que era a fenomeno-

(6) A influência sobre Wojtyła foi indireta, por meio do polaco Roman
Ingarden, aluno de Reinach e divulgador do método fenomenológico
na Polônia.
(7) Josef Seifert in Dietrich von Hildebrand, What is Philosophy?,
Routledge, Nova Iorque, 1991, pág.15.
APRESENTAÇÃO 11

logia uma «volta a Platão»; uma busca constante por


aclarar e descobrir as relações necessárias entre as es-
sências apriorísticas e objetivamente intuídas8. Reina-
ch faz, deste modo, aquilo que Josef Seifert chamará
de «reforma crítica do platonismo» – pela qual, ain-
da que sem a pretensão de entrar nos pormenores da
questão, pode-se dizer que foi operada a redenção da
filosofia moderna9.
A obra que trazemos à luz, Was ist Phänomeno-
logie?, é a transcrição de uma palestra proferida por
Reinach em 1914, três anos antes de sua morte pre-
matura. Nas palavras do próprio autor: «Não me pro-
pus a tarefa de lhes dizer o que seja a fenomenolo-
gia; senão desejo tentar pensar fenomenologicamente
com vocês. Falar sobre fenomenologia é o que há de
mais ocioso no mundo se falta o que pode dar a toda
conversa a concreta completude e evidência: a visada
fenomenológica e a atitude fenomenológica». Tal ati-

(8) Conf. Josef Seifert, Platón y la fenomenología realista: Para una


Reforma Crítica del Platonismo, Anales del Seminario de Metafísica,
n. 29-1995, Servicio de Publicaciones, Universidad Complutense, Ma-
drid.
(9) «La filosofía vuelve, así, a descubrir el ser y las estructuras de las
cosas mismas, el mundo objetivo y sus estructuras, que se considera-
ban perdidos desde Hume y Kant. Con ello, la fenomenología realista
rechaza, mediante una auténtica vuelta a la necesidad real, toda subje-
tivización del a priori y fundamenta de nuevo la filosofía y metafísica
clásicas”. Josef Seifert, ¿Qué es filosofía? La respuesta de la fenomeno-
logía realista, Anuario Filosófico, Pamplona, n.28-1995, pág. 99.
12 ADOLF REINACH

tude evidencia-se ao longo do texto pela abordagem


de problemas concretos, como, por exemplo, a na-
tureza da psicologia e da matemática, a significação
e os atos de fala, a polêmica com os pares. Trata-se,
deste modo, de um exercício vivencial do filosofar fe-
nomenológico, uma breve introdução a este método
em sua versão reinachiana; um vislumbre da presença
relatada por Edith Stein.
Desejamos que a presente edição seja útil para di-
vulgação de tão seminal autor, e que inspire o público
brasileiro a buscar mais profundamente as bases filo-
sóficas contidas na origem da «filosofia católica con-
temporânea»; tão falada quanto mal compreendida.
Por último, cabe-nos assinalar que esta publicação
prima pela clareza e transmissão segura do conteúdo,
traduzido direto do texto original em alemão, mas
espera por uma reedição crítica a ser realizada em
tempo oportuno.
O editor.
SOBRE
A FENOMENOLOGIA
– Adolf Reinach –
[I.]

Meus senhores! Não me propus a tarefa de lhes


dizer o que seja a fenomenologia; senão desejo tentar
pensar fenomenologicamente com vocês. Falar sobre
fenomenologia é o que há de mais ocioso no mundo
se falta o que pode dar a toda conversa a concreta
completude e evidência: a visada fenomenológica e
a atitude fenomenológica. Pois este é o ponto essen-
cial: não se trata em fenomenologia de um sistema de
proposições e verdades filosóficas, de um sistema de
proposições nas quais devem crer todos aqueles que
se denominam fenomenólogos e que eu poderia aqui
demonstrar –, senão que se trata de um método do
filosofar, que é exigido pelos problemas da filosofia, e
que se distancia muito da maneira como olhamos ao
redor e nos orientamos na vida, e se distancia ainda
16 ADOLF REINACH

mais da maneira como trabalhamos ou devemos tra-


balhar na maioria das ciências. Assim quero hoje tan-
ger uma série de problemas filosóficos, na esperança
de que se ilumine para vocês nesse ou naquele ponto
o que é o peculiar da atitude fenomenológica – assim
ter-se-á dado a base para discussões ulteriores.
Há muitas maneiras como nos conduzimos com
relação aos objetos – sejam objetos existentes ou ine-
xistentes. Nós nos colocamos como seres que atuam
praticamente no mundo – nós o vemos e, ao mesmo
tempo, não o vemos; vemo-lo com maior ou menor
completude; e o que dele vemos é dirigido no ge-
ral de acordo com nossas necessidades e propósitos.
Sabemos quão fatigante é aprender a realmente ver,
qual labuta exige, por exemplo, realmente enxergar
as cores pelas quais passamos ao acaso e que, no en-
tanto, caem em nosso campo de visão. O que se apli-
ca aqui também se aplica em medida ainda maior
ao fluxo do acontecer psíquico; ao que chamamos
de viver e que, enquanto tal, não é posto diante de
nós como algo alheio como o mundo sensível, senão
que por sua essência é pertencente ao eu; aos esta-
dos, atos e funções do eu. A existência desse viver é
tão segura para nós quanto é difícil de apreender em
sua estrutura qualitativa, em sua natureza. O que o
homem normal percebe dele, o que ele nota, é muito
pouco: alegria e dor, amor e ódio, saudade, nostalgia
[I.] 17

e coisas do tipo, isso é o que se lhe apresenta. Mas


isso são apenas recortes brutos de um campo de infi-
nitas nuances. Mesmo a mais pobre vida consciente
é rica demais para que o sujeito possa apreendê-la
plenamente. Também aqui podemos aprender a ver,
também aqui é para o homem normal a arte que lhe
ensina a apreender o que antes lhe passou por alto.
Não se trata apenas de através da arte despertar em
nós vivências que não teríamos de outro modo; se-
não que também nos proporciona que vejamos, des-
de a abundância da vida, aquilo que já estava lá sem
que nos déssemos conta. As dificuldades crescem se
nos voltamos a outros elementos que se encontram
mais longe de nós – o tempo, o espaço, o número,
os conceitos, proposições e assim por diante. De to-
dos esses falamos, e, quando falamos, nos referimos
a eles, nós os mentamos – mas nessa menção ainda
nos encontramos infinitamente longe deles – e nos
encontramos também ainda longe quando os deli-
mitamos por definições. Definamos as proposições,
como, por exemplo, o que é ou falso ou verdadeiro: a
essência da proposição, o que ela é, seu «quê», não se
tornou com isso mais próximo de nós. Se queremos
apreender a essência do vermelho ou da cor, preci-
samos, em última instância, apenas dirigir a vista a
alguma cor percebida, imaginada ou representada, e
dela – que nada nos interessa enquanto indivíduo ou
18 ADOLF REINACH

enquanto real – extrair seu ser-assim1, seu «quê». Se


se trata então de nos aproximarmos das vivências do
eu dessa maneira, as dificuldades são consideravel-
mente maiores; sabemos perfeitamente que há coisas
como volições, sentimentos ou disposições de âni-
mo; sabemos também que ele, como tudo o que exis-
te, pode chegar a ser intuído adequadamente; mas
se tentamos apreendê-lo, aproximá-lo de nós em sua
particularidade, ele nos foge; é como se tivéssemos
apanhado apenas ar. O psicólogo sabe como é neces-
sária uma prática de anos para se tornar senhor dessas
dificuldades. Mas estamos nos primeiros começos no
que toca aos objetos ideais. É certo que falamos de
números e coisas do tipo, lidamos com eles, e seus
signos e regras nos bastam para alcançar os objeti-
vos da vida prática. Mas sua essência nos permane-
ce infinitamente longe; e quando somos honestos
o suficiente a ponto de não nos contentarmos com
definições que não nos aproximam um fio de cabe-
lo sequer das coisas mesmas, então, devemos dizer o
que Santo Agostinho disse do tempo: «Quando não

(1) Nota do editor: optou-se por uma tradução literal de Sosein, tendo
em vista a concepção reinachiana de «essência”, na qual há a distin-
ção entre a essência necessária para a asserção e o ser-assim dos atos
reais e das asserções temporais. Conf. J. M. DuBois, Judgment and
Sachverhalt: An Introduction to Adolf Reinach’s Phenomenological
Realism, Kluver Academics Publishers, Dordrecht/Boston/Londres,
1995, pág. 102.
[I.] 19

me perguntas o que ele seja, acredito sabê-lo. Mas


pergunta-o, e então já não mais saberei»2.
É um erro mais grave e desastroso opinar que essa
distância natural e tão dificilmente superável seria
suprimida através da ciência. Não é assim. Algumas
ciências, por sua própria ideia, se afastam do caminho
da visão direta da essência – elas se contentam, e po-
dem se contentar, com definições e deduções a partir
das definições; outras são, por sua ideia, dirigidas a
uma apreensão direta da essência, mas até agora se re-
tiraram, em seu desenvolvimento fático, dessa tarefa.
O exemplo mais significativo e mais alarmante dessas
últimas é a psicologia. Não falo dela enquanto ciên-
cia de leis, enquanto busca traçar leis do transcurso
efetivo e real da consciência – aí a situação é diferen-
te. Falo daquilo que chamamos psicologia descritiva,
da disciplina que se esforça por ser um inventário da
consciência, a fixar os tipos de vivência enquanto tais.
Não se trata, nela, de registrar existências – a vivência
individual e sua aparição no mundo em algum lugar
no tempo objetivo e sua ligação a um corpo localiza-
do espacialmente, tudo isso é indiferente nessa esfe-
ra. Não se trata de existência, senão de essência, dos
possíveis tipos de consciência enquanto tais, sendo
indiferente se, onde e quando aparecem. Certamente

(2) Santo Agostinho, Confissões, Livro XI, § 14.


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será dito que não poderíamos saber das essências das


vivências se elas não se realizassem no mundo. Mas
isso não é correto nessa forma, pois conhecemos tam-
bém tipos de vivência das quais sabemos que talvez
jamais se tenham realizado no mundo com a pureza
por nós apreendida; mas mesmo que isso fosse corre-
to, isso somente poderia apontar que nós, homens,
somos limitados no nosso acesso às espécies de vivên-
cias, limitados ao que nos é dado viver – mas com
isso não se estabelece, na verdade, uma dependência
da essência em si mesma ao que se refere a sua possí-
vel realização na consciência.
Se lançamos o olhar à psicologia que de fato existe,
então vemos que ela não teve sucesso uma vez sequer
em chegar à clareza sobre sua essência mais elevada
e delimitadora, sobre a essência do próprio psíqui-
co. Não se trata de que a oposição entre psíquico e
não-psíquico seja constituída por meio de nossas de-
terminações e definições, senão que, pelo contrário,
nossas determinações devem se reger pelas diferenças
de essência encontradas e que se dão originalmente.
De acordo com sua essência, tudo o que pode ingres-
sar na corrente de nossas vivências, o que pertence
ao eu em sentido próprio, como nosso sentir, querer,
perceber e etc., se diferencia de tudo o mais que seja
transcendente à corrente da consciência, ao que se
apresente como alheio ao eu, como casas, conceitos
[I.] 21

ou números. Coloquemos a situação de eu ver um


objeto material e colorido no mundo; então ele é,
com suas particularidades e modos de ser, algo físi-
co; minhas impressões dele, entretanto, meu volver
a ele e perscrutá-lo, a alegria que sinto por ele, mi-
nha admiração, em resumo, tudo o que se descreve
como ocupação, estado ou função do eu, tudo isso é
psíquico. E agora a psicologia hodierna: ela lida com
cores, sons, odores e etc. como se neles estivéssemos
lidando com vivências da consciência, como se eles
não se colocassem diante de nós como alheios, como
as árvores mais enormes e robustas. É-nos assegura-
do que as cores e sons não são reais, mas subjetivos
e psíquicos; mas isso são apenas palavras obscuras.
Deixemos a realidade das cores e sons de lado. Supo-
nhamos que sejam irreais. Tornar-se-ão, por isso, algo
psíquico? Pode-se desconhecer a tal ponto a diferença
entre essência e existência que se confunda o negar a
existência com uma alteração da essência, da índole
essencial? Falando concretamente: uma casa grande e
maciça com cinco andares que percebo, se essa per-
cepção se mostrar como alucinação, tornar-se-á uma
vivência? Então, todas essas investigações sobre sons,
cores e odores não podem ser tomadas como uma in-
vestigação psicológica. Dos investigadores que não se
ocupam com coisa alguma além das qualidades sen-
síveis devemos dizer que o realmente psíquico lhes
22 ADOLF REINACH

permanece alheio, ainda quando se denominem psi-


có-logos3. É certo, o ver as cores, ouvir os sons, essas
coisas são funções do eu, pertencem à psicologia. Mas
como se pode confundir o ouvir os sons, que possui
sua própria essência e segue suas próprias leis, com os
sons ouvidos? Há algo como o ouvir pouco claro de
um som alto. A altura aqui pertence ao som, e a clare-
za ou falta de clareza, ao contrário, são modificações
da função do ouvir.
Naturalmente que nem todos os psicólogos des-
conheceram dessa forma a esfera do psíquico, mas
as tarefas da apreensão pura da essência foram com-
preendidas por pouquíssimos. Quis-se aprender das
ciências da natureza, quis-se «reduzir» o máximo pos-
sível as vivências. E, ainda assim, propor essa tarefa
não tem sem sentido. Quando o físico reduz cores
e sons a vibrações de determinada natureza, está di-
recionado à existência real, cuja facticidade ele quer
esclarecer. Deixemos em suspenso o sentido mais
profundo da redução: não se aplica, certamente, às
essências. Ou se se quisesse, por exemplo, reduzir a
essência do vermelho, que posso intuir em todos os
casos do vermelho, à essência das vibrações, que é,

(3) Nota do tradutor: no texto original, «Psycho-logen”, pois o autor


procura enfatizar nesse contexto que, ainda que etimologicamente se-
jam tidos por estudiosos da psique, esta lhes permanece alheia.
[I.] 23

evidentemente, outra? O psicólogo descritivo não


tem a ver com os fatos, com o esclarecimento de exis-
tências e sua redução a outras. Se ele disso se esquece,
surgem todas as tentativas de redução que, na verda-
de, são um empobrecimento e falsificação da cons-
ciência. Também se acrescenta que se estabeleçam
como essências fundamentais da consciência o sen-
tir, querer e pensar, ou o representar, julgar e sentir
ou qualquer outra divisão insuficiente. E quando se
toma alguma forma de vivência, uma das várias que
não são cobertas por essa classificação, então deve ela
ser reinterpretada em algo que ela não é. Temos, por
exemplo, o perdoar, um ato profundo e notável, de
natureza própria. Não é, por óbvio, uma representa-
ção. Daí se tentou dizer que fosse um juízo: o juízo
de que a injustiça ocasionada não seria tão grave, ou
então de que não seria injustiça – exatamente aquilo
que torna impossível um perdoar pleno de sentido.
Ou então se diz que é a cessação de um sentimento,
a cessação da ira, como se o perdoar não fosse algo
próprio, positivo, muito mais que um mero esquecer
ou desaparecer. A psicologia descritiva não explica
nem reduz algo a outra coisa, senão esclarece e guia
até a coisa. Ela deseja trazer a intuição originária, o
«quê» das vivências, do qual, em si, nos encontra-
mos tão distantes; deseja determiná-lo em si mesmo,
diferenciá-lo de outros e delimitá-lo. Certo que não
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se alcança com isso um ponto último de apoio. Às


essências se aplicam leis, leis de tal identidade e dig-
nidade que se diferenciam de todas as conexões e leis
empíricas. A intuição pura das essências é o meio
para chegar à intelecção e apreensão adequada dessas
leis. Sobre elas gostaria de falar na segunda parte des-
sas considerações.
Exige-se, também, a intuição das essências em
outras disciplinas. Exige uma análise não apenas da
essência do que se pode realizar tão frequentemente
quanto se deseja, senão também a essência do que,
por sua natureza, é único e irrepetível. Vemos o his-
toriador ocupado, não apenas com trazer à luz o des-
conhecido, senão, do mesmo modo, aproximar-nos
do já conhecido, trazê-lo à intuição adequada segun-
do a sua natureza. Aqui se trata de outros objetivos
e outros métodos. Aqui também vemos as grandes
dificuldades e os problemas do distanciamento e da
construção. Vemos como sempre falamos de desen-
volvimento e ignoramos a questão sobre o «quê» que
se desenvolve. Vemos como temerosamente se tateia
os arredores de uma coisa, somente para não analisar
a ela mesma, como se crê resolver a questão sobre a
essência de uma coisa através de respostas sobre seu
surgimento ou suas causas. Que característico é nes-
te campo pôr juntos, tão frequentemente, Goethe e
Schiller, Keller e Meyer, etc.! É característico de ten-
[I.] 25

tativas que estão condenadas, de antemão, por buscar


definir algo pelo que essa coisa não é.
Que uma apreensão direta da essência seja tão
pouco familiar e difícil, a ponto de parecer para mui-
tos impossível, se esclarece pela atitude profunda-
mente enraizada da vida prática, que apanha e utiliza
os objetos mais do que os mira contemplativamente
e penetra em seu próprio ser. Mas também se expli-
ca daí, ademais, que algumas disciplinas científicas,
em contraponto às até agora mencionadas, saem, por
princípio, da trilha de toda e qualquer intuição direta
das essências, e que provocam em todos os que a elas
se dedicam uma profunda aversão a toda apreensão
direta da essência. Aqui nomeio, antes de todas, na-
turalmente, a matemática4. É o orgulho do matemá-
tico não conhecer aquilo de que fala, não o conhecer
em sua essência material. Cito a vocês como David
Hilbert introduz os números: «Pensamos um siste-
ma de coisas, denominamos essas coisas números e os
designamos por a, b, c... Pensamos esses números em
certas relações recíprocas, cuja descrição ocorre nos

(4) Nota do editor: a partir deste momento, Reinach aplica sua tese
sobre o «a priori material” ao problema da natureza da matemática,
tema candente na filosofia alemã do início do séc. XX. Para mais in-
formações sobre o método reinachiano, conf. J.M. DuBois, op. cit.; U.
Ferrer Santos, Adolf Reinach. Las ontologías regionales, Cuadernos de
Anuario Filosófico, Pamplona, 2005.
26 ADOLF REINACH

seguintes axiomas, etc.» «Pensamos um sistema de


coisas, e denominamos essas coisas números, e então
damos um sistema de proposições às quais hão de se
subordinar essas coisas». Do «quê», da essência dessa
coisa não se fala. Sim, até mesmo a expressão «coi-
sa» diz demais. Ela não deve ser tomada no sentido
filosófico, em que ela designa uma forma categorial
definida; está apenas para o conceito mais geral e ab-
solutamente vazio de algo. Desse algo agora se enun-
cia, ou melhor, se «anota», toda sorte de coisas, como:
a + b = b + a, e se constrói um sistema dessas proposi-
ções e de um número de outras, de modo consequen-
cial e irrefutável, em uma cadeia puramente lógica,
sem qualquer contato com a essências dos objetos.
Não há como praticar o distanciamento dos objetos
para mais longe do que é feito aqui; renuncia-se por
princípio a uma intelecção de sua estrutura, a uma
evidência de suas leis fundamentais. Aqui a intelec-
ção desempenha um papel é puramente lógico; é a
evidência, por exemplo, de que um A que é B deve
ser C, quando todos os B são também C, sem que
se submetam a uma investigação as essências que se
encontram por detrás de A, B ou C. Os axiomas que
são postos como fundamento não são provados em
si mesmos, nem se comprova que são válidos – não
se faz uso do único meio de comprovação, de prova,
da matemática. São teses ao lado das quais se podem
[I.] 27

opor outras contrárias – pode-se tentar construir sobre


as teses contrárias sistemas de proposições que tam-
bém se achem livres de contradição em si mesmos.
Ainda mais. O matemático não apenas não precisa
examinar os axiomas postos como fundamentais no
mais íntimo de sua disciplina – ele não precisa sequer
compreendê-los em seu conteúdo material originá-
rio. O que significa, afinal, a + b = b + a, qual o senti-
do dessa proposição? O matemático pode recusar essa
pergunta. Para ele basta a possibilidade da comutação
de signos. Se recebemos disso mais informação, ela
não é, no geral, satisfatória. Certamente a proposição
não se refere ao arranjo espacial dos signos no papel.
Mas ela também não pode se referir ao arranjo tem-
poral de atos psíquicos de um sujeito; não pode se
referir a que seja indiferente se eu ou qualquer outro
sujeito adicione «b» a «a» ou «a» a «b». Pois temos aí
uma proposição em que de maneira alguma falamos
dos sujeitos e seus atos e seu decurso no tempo. Trata-
-se muito mais de que é indiferente se «b» se some a
«a» ou «a» a «b». O que esse somar significa, de modo
a não ser espacial ou temporal, esse é o problema,
um problema ao qual o matemático pode ficar in-
diferente, mas que deve ocupar mais intensivamente
o filósofo, ao qual não é permitido permanecer nos
signos, mas que deve penetrar a essência daquilo que
os signos designam.
28 ADOLF REINACH

Ou tomem vocês a lei da associação: a + (b + c) =


(a + b) + c; a proposição tem um sentido, um sentido
até mesmo de expressiva importância, e certamente
não se trata, em última instância, de que os signos
dos parênteses possam ser escritos diversamente. Os
parênteses têm um significado, e esse significado deve
ser investigável. Eles, por óbvio, não se encontram,
enquanto signos, no mesmo nível do «=« ou do «+»;
eles não significam relação ou processo, mas antes dão
uma diretiva do tipo e do ranque que encontramos
também nos sinais de pontuação. Mas através dessa
diretiva, dessa diretiva de se unir a isso ou separar da-
quilo, altera-se o significado de toda a expressão, e se
trata de compreender essa mudança de significado e
sua possibilidade, por longe que o matemático esteja
desse problema. Essa é a questão pelo sentido; ao seu
lado está a questão pelo ser; quer dizer que se trata de
levar à intuição e, quando possível, à evidência últi-
ma, se a tese é legítima, se o que expressa a proposição
a + b = b + a pode ser tipo por válido e como fundado
na essência dos números. Essa mesma consideração
se encontra especialmente longe do matemático. Ele
estabelece suas teses e, dentro de sistemas distintos,
talvez teses contraditórias. Ele estabelece algo como
axioma: por exemplo, que através de um ponto fora
de uma linha apenas pode ser delineada uma linha,
no mesmo plano, que não corte a primeira. Poderia
[I.] 29

também estabelecer a tese de que através do ponto


fora da reta mais retas ou então nenhuma podem ser
traçadas, e a partir dessas teses se pode fundar um
sistema de proposições não contraditórias em si mes-
mas. O matemático enquanto tal tem de afirmar a
equivalência de todos esses sistemas; para ele há ape-
nas as teses e a série de argumentações completamen-
te lógicas e sem contradições que se erige a partir
delas. Mas os sistemas não são equivalentes: pois há
algo como pontos e retas, ainda quando não existam
realiter no mundo. E nós podemos trazer à intuição
adequada esses objetos, em atos de índole própria.
Mas, ao fazê-lo, vemos que através de um ponto fora
de uma reta, na verdade, pode ser traçada uma reta
no mesmo plano que não corte a primeira, e que é
falso que nenhuma possa ser traçada. Então, ou se
deve entender algo diferente dessa segunda tese com
as mesmas expressões, ou se trata de um sistema de
proposições que é construído sobre uma tese que não
é válida, e que, como tal, também pode possuir um
valor, e especialmente um valor matemático. Se por
ponto e reta se entende coisas que devem satisfazer os
respectivos sistemas de axiomas, então não se pode
objetar o mais mínimo que seja. O distanciamento
de todo conteúdo material, entretanto, se torna aqui
especialmente claro.
A partir do caráter próprio da matemática se torna
30 ADOLF REINACH

compreensível o caráter próprio do apenas-matemáti-


co, que dentro da matemática certamente muito con-
seguiu, mas que danou a filosofia mais do que se pode
dizer em poucas palavras. Ele é do tipo que apenas
estabelece teses e que demonstra a partir delas, e que,
com isso, perde o sentido último e absoluto do Ser.
Esqueceu-se da contemplação; só consegue demons-
trar. Justamente com aquilo de que ele não cuida é
que a filosofia tem a ver; por isso também é uma fi-
losofia more geometrico, tomada pela própria palavra,
um contrassenso absoluto. Pode, ao contrário, a ma-
temática experimentar seu definitivo esclarecimento
apenas a partir da filosofia. Na filosofia apenas têm
sucesso as investigações das essências matemáticas
fundamentais e das leis últimas que nelas se fundam.
Apenas a filosofia é capaz, a partir daqui, de tornar
completamente compreensíveis as vias da matemática,
que se afastaram tanto do conteúdo eidético intuitivo,
para então sempre novamente a ele volver. A primeira
tarefa para nós deve ser, é certo, aprender novamente
a ver aqui o problema, a de penetrar, através da espes-
sura dos signos e das regras (que se permitem manejar
com tanta excelência), até o conteúdo material. Sobre
os números negativos, por exemplo, a maioria de nós
só despendeu pensamentos enquanto ainda criança;
na época estávamos diante de algo enigmático. De-
pois aquietamos essa dúvida, a maioria das vezes com
[I.] 31

motivos certamente contestáveis. Hoje parece que em


muitos quase desapareceu a consciência de que há nú-
meros, mas que a oposição entre positivos e negativos
se encontra em uma estipulação artificial cujo estatuto
e direito não se deixa compreender, em absoluto. Algo
parecido com o que ocorre na estipulação das pessoas
jurídicas no direito civil.
Se alcançamos aquilo que devemos alcançar en-
quanto filósofos, a saber, penetrar através dos signos,
definições e regras às coisas mesmas, ser-nos-á ofereci-
do algo muito distinto do que hoje se acredita. Permi-
tam-me, para demonstrá-lo, trazer um exemplo sim-
ples e muito fácil de passar inadvertido. A divisão dos
números em ordinais e cardinais é hoje universalmen-
te aceita. Só não se está de acordo, apenas, sobre qual
é o originário, se o ordinal ou o cardinal, ou então se
não deveríamos tomar um deles, de maneira alguma,
como originário. Se se explica o ordinal como o origi-
nário, nomeia-se geralmente a Helmholtz e Kronec-
ker, e é uma lição rica para o nosso objetivo examinar
aquilo que esses matemáticos verdadeiramente dizem.
Kronecker5 declara que encontra o ponto de partida
natural para o desenvolvimento do conceito de nú-
mero nos números ordinais, os quais apresentam um
suprimento de designações ordenadas que podemos

(5) L. Kronecker, Über den Zahlbegriff, 1887.


32 ADOLF REINACH

atribuir a um determinado conjunto de objetos. Seja


dada, por exemplo, a série das letras «a», «b», «c», «d»,
«e»; agora atribuímos a elas, uma após a outra, a de-
signação como primeiro, segundo, terceiro, quarto e,
finalmente, quinto. Se queremos designar a totalidade
dos números ordinais utilizados ou a quantidade das
letras, usamos para isso o último dos números ordi-
nais utilizados. Deveria ser claro que Kronecker aqui
introduz signos, e não números. E ainda, em seguida,
introduz ele os signos ordinais, porque então pode
utilizar o último desses signos para a designação da
quantidade. Para o filósofo, começaram aqui os pro-
blemas. Como se pode entender que o último signo
ordinal possa indicar ao mesmo tempo a quantidade
de todos os algos designados, e o que é, afinal, o nú-
mero ordinal e o que é o cardinal? Agora avançamos
uns passos no caminho que conduz à aclaração desses
conceitos. Foi proposta a questão do sentido dos
enunciados numéricos. Mais precisamente, lançou-se
o problema a respeito de que se predica a quantidade.
Foram dadas a essa questão muitas e distintas respos-
tas: analisemos mais de perto algumas delas. Uma não
exige longa consideração, e é a tese que Mill postu-
lou6: que a quantidade se enuncia das coisas contadas.

(6) J. Stuart Mill, Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva, Col. Os Pen-


sadores, Abril Cultural, São Paulo, 1974.
[I.] 33

Se convém a quantidade três realmente às coisas con-


tadas, assim como, por exemplo, convém a cor ver-
melha, então seria, cada uma delas, três, assim como
cada uma delas é vermelha. Foi dito, por isso: não é
enunciada a quantidade a partir das coisas contadas,
senão que é da coleção, do conjunto que se forma
pelas coisas contadas, que se faz o enunciado. Mas
também a isso devemos nos opor. Conjuntos podem
ter diversas qualidades, dependendo dos objetos dos
quais eles se compõem; um conjunto de árvores pode
ser contíguo a outro, um conjunto pode possuir maior
ou menor extensão, mas um conjunto não pode ser
quatro ou cinco. É certo: um conjunto pode conter
quatro ou cinco objetos; mas então o que se predica
dele é esse conter os quatro objetos, e não o quatro.
Um conjunto que contém quatro objetos é tão pouco
quatro quanto um conjunto que contém em si obje-
tos de um vermelho berrante é, ele mesmo, vermelho.
Se se pode atribuir o quatro ao conjunto quando ele
contém quatro elementos, não se pode predicar o
quatro dele; e já que, como demonstrado, não pode-
mos predicar o quatro também dos objetos contidos
no conjunto, chegamos a uma situação difícil. Essas
dificuldades permitiram a Frege conceber a quantida-
de como um enunciado que se faz de um conceito. «A
carruagem do Imperador é puxada por quatro cava-
34 ADOLF REINACH

los»7 teria que significar que, sob o conceito dos cava-


los que puxam a carruagem do Imperador, cabem
quatro objetos. Naturalmente que, com isso, nada
melhora. É enunciado do conceito que quatro objetos
cabem nele, mas o quatro não é enunciado dele. Um
conceito que contenha sob si quatro objetos é tão
pouco quatro como um conceito que contém objetos
materiais sob si se torna, por isso, material. Não aden-
trarei às várias outras tentativas de solucionar o pro-
blema. Nessas situações é compreensível que a filoso-
fia faça esta pergunta: já não entramos nesse problema
com um determinado preconceito? Sem dúvidas aqui
é assim: o preconceito já está contido na proposta do
problema enquanto tal. Pergunta-se do sujeito do
qual se predica a quantidade, mas de onde sabemos
que a quantidade deve, definitivamente, ser predicada
de algo? Pode-se supor que cada elemento do nosso
pensar deva ser predicável? Certo que não. Precisamos
apenas observar um exemplo simples. Nós dizemos,
por exemplo: apenas «A» é «B». O «apenas» corres-
ponde a um elemento importante no enunciado, po-
rém, seria evidentemente errôneo perguntar de que é
que se predica o «apenas». O «apenas» se refere ao «A»

(7) Gottlob Frege, Die Grundlagen der Arithmetik: Eine logisch-ma-


thematische Untersuchung über den Begriff der Zahl (Os Fundamentos
da Aritmética: Uma Investigação lógico-matemática sobre o conceito
de número; não encontramos uma tradução integral ao português.).
[I.] 35

de um modo determinado, mas não pode nem ser


predicado dele nem de qualquer outro algo no mun-
do. E igual é quando dizemos: todos os «A» são «B»;
ou alguns «A» são «B», etc. Todos esses elementos ca-
tegoriais são impredicáveis; eles apenas indicam o âm-
bito de um objeto que é afetado por uma predicação,
pelo «ser-B». A partir daqui também cai luz sobre a
quantidade. De duas formas se aplica a ela. Ela é, em
si e para si, impredicável. E mais ainda: ela pressupõe
uma predicação na medida em que determina o âm-
bito quantitativo de algos, a pluralidade de algos que
são afetados por uma predicação. A quantidade não
responde à questão «quantos?», senão à questão
«quantos ‘A’ são ‘B’?». Isso é de extrema importância
para a doutrina das categorias. Na medida em que a
determinação quantitativa pressupõe que alguns algos
sejam afetados por uma predicação, ela se encontra
em uma esfera bem diferente daquela, por exemplo,
das categorias de causalidade – ela sempre se encontra
numa esfera que mais tarde conheceremos como a da
situação objetiva. De resto, a partir daqui, as diferen-
ciações ulteriores mostram-se muito fáceis. Por exem-
plo, é possível que a predicação a que ela diz respeito
encontre cada um dos objetos cujo âmbito ela deter-
mina, ou esses objetos apenas em conjunto. Digamos:
cinco árvores são verdes; então se quer dizer que cada
uma das árvores é verde. Se dizemos, ao contrário:
36 ADOLF REINACH

quatro cavalos bastam para puxar a carruagem, então


é certo que não basta cada cavalo. Essas diferenças só
podem se tornar compreensíveis a partir da interpre-
tação da quantidade aqui defendida, segundo a qual
ela mesma, como dito, não é predicável, mas pressu-
põe a afetação da predicação de alguns algos, cujo âm-
bito ela então determina. Isso deve nos bastar aqui
para a determinação da quantidade. Agora, entretan-
to, ainda deve haver uma outra classe de números, os
números ordinais. Vamos, neste momento, trazê-los
para mais perto. A quantidade se revela como impre-
dicável; ao contrário, à primeira vista, parece não ha-
ver dúvida alguma sobre a predicabilidade dos núme-
ros ordinais. Certamente que eles são enunciados, e
sempre de um membro de um conjunto ordenado,
e parecem indicar a esse membro sua posição dentro
do conjunto. Está próximo dizer: o número ordinal é
aquele que determina o posicionamento respectivo
dos elementos de um conjunto ordenado. Mas exata-
mente isso não permanece em pé se abandonamos as
palavras e signos e nos volvemos às coisas mesmas. O
que há, então, com os membros da série e seu posicio-
namento? Temos, em seguida, o membro inicial, o
primeiro da série, e o correspondente membro final, o
último. Desse modo temos um que segue ao primei-
ro, depois um que segue ao que segue ao primeiro e
assim por diante. Assim se pode determinar o lugar de
[I.] 37

cada membro através da contínua referência ao mem-


bro que inaugura a série. De número ou de algo nu-
mérico, até agora, não se fala. Não se aponta um nú-
mero, com isso, ao falarmos do primeiro membro. O
primeiro tem tão pouco a ver com o um como o últi-
mo com o cinco ou o sete. E mais: não há absoluta-
mente nada mais na série, nem no caráter dos mem-
bros da série enquanto tais, de que poderíamos extrair
algo numérico. Os elementos possuem sua posição na
série, e essa posição pode ser determinada através da
relação consecutiva ao membro inicial, mas não se
fala coisa alguma de números. Porém, se é assim,
como vêm então essas designações ordinais, que sem-
pre lembram números? Muito simples. As designa-
ções de posição de há pouco eram complicadas de-
mais. Já o membro «c» deve ser designado como o
membro que segue ao que segue ao primeiro mem-
bro; isso se torna, no fim das contas, insuportável, e
deve-se pensar numa forma de designação mais cô-
moda. Agora se dão naturalmente relações entre o
conjunto e seus membros e as quantidades – note-se
as quantidades. A série contém uma quantidade de
membros e de igual forma para cada parte da série. O
membro «c» é aquele até o qual a série contém três
membros; por isso o denominamos o terceiro, assim
como o «d» é o quarto, e assim podemos aplicar a
cada membro da série uma designação dessas, porque
38 ADOLF REINACH

a série contém até cada membro uma determinada e


sempre distinta quantidade de membros. Mas agora
vocês veem a confusão a que conduziu o permanecer
nos signos. Ao lado das quantidades e dos números
cardinais deve haver uma segunda classe de números,
os ordinais, mas onde estão eles? Podemos buscar tan-
to quanto quisermos, não os encontraremos. Há as
quantidades e as designações de quantidade, e há,
além, designações ordinais, as quais, com a ajuda dos
números cardinais, podem determinar a posição dos
elementos de um conjunto ordenado. Mas não há nú-
meros ordinais. A filosofia se permitiu aturdir porque
seguiu com olhos cegos a disposição dos signos do
matemático e, com isso, confundiu a palavra com a
coisa. Foi-se muito longe ao querer derivar o número
cardeal do ordinal, ou seja, derivar a quantidade de
um modo de designação, que, além disso, tem a quan-
tidade como pressuposto. No que pertine a esse modo
de designação não se pode, naturalmente, induzir sem
mais a equiparação das designações mediante palavras
com as designações mediante cifras. As designações
mediante palavras não procedem, absolutamente,
examinando a quantidade – o primeiro não é o pri-
meiro. Se há uma forma linguística que expresse que
o membro inicial é, ao mesmo tempo, o membro até
o qual a série contém um membro, não sei. Também
não é necessário designar o membro que segue ao pri-
[I.] 39

meiro com ajuda da quantidade. Dizemos, é verdade,


o segundo [das zweite], mas em latim se diz secundus.
Então nem todas as designações ordinais são designa-
ções ordinais numéricas, naturalmente que se deve
deixar a investigação posterior ao linguista.
[II.]

Se miramos à análise das essências, naturalmente


partiremos das palavras e de seus significados. Não
é nenhum acaso que as Investigações Lógicas de Hus-
serl comecem com uma análise dos conceitos «pa-
lavra», «expressão», «significação», etc1. Isso é útil
para dominar os equívocos quase inacreditáveis que
se encontram especialmente na terminologia filosó-
fica. Husserl expôs quatorze significados distintos
do conceito de «representação», e, com isso, ele não
esgotou, de maneira alguma, todas as que têm um
papel – a maioria indistintamente – na filosofia. Fez-
-se a essas distinções de significação a acusação de
serem capciosas, «escolásticas», com muita injustiça.
Uma pequena distinção evidente em si mesma pode

(1) Conf. Edmund Husserl, Investigações Lógicas, Primeira Investi-


gação (Expressão e Significação). Há tradução brasileira pela editora
Forense Universitária.
42 ADOLF REINACH

levar a derrubar teorias filosóficas inteiras, quando o


grande filósofo em questão não atentou para ela. Já o
termo «representação», ou também o termo «concei-
to», com suas numerosas e fundamentalmente dis-
tintas significações, são exemplo elucidativo disso.
Mais ainda, e esse ponto de vista trabalhamos mais a
fundo agora: a análise dos conceitos pode não apenas
conduzir a fazer distinções, senão também a supri-
mir distinções injustificadas. É compreensível que a
jovem fenomenologia primeiro admirasse a infinita
riqueza daquilo que até agora se havia excluído ou
descuidado. Em seu desenvolvimento, ela também
terá de eliminar algumas coisas que pretendem ser
falsamente elementos próprios; um exemplo disso
me parecem ser os números ordinais. No restante,
não preciso acentuar mais especialmente que a aná-
lise das essências que reclamamos não se esgota, de
maneira nenhuma, nas investigações sobre a signifi-
cação. Também quando nós nos referimos a palavras
e a significações de palavras, isso nos deve apenas
conduzir às coisas mesmas, as quais é preciso escla-
recer. Mas o acesso direto às coisas é possível sem o
guia através da significação das palavras. Não apenas
há que aclarar o já sabido, senão que novas essências
hão de ser descobertas e trazidas à intuição. É, por
certo, o caminho de Sócrates a Platão que aqui é pos-
to em questão. Análise de significação foi o que mo-
[II.] 43

veu Sócrates quando propunha suas perguntas nas


ruas de Atenas: «você está falando disso ou daquilo;
mas o que quer dizer com essas coisas?». Aqui conta
iluminar a falta de clareza e as contradições dos sig-
nificados, um procedimento que, aliás, não tem ver-
dadeiramente nada a ver com a definição ou até com
a indução. Platão, ao contrário, não parte de palavra
e significado, seu objetivo é a contemplação direta
das ideias, a apreensão das essências como tais.
Já insinuei que a análise das essências não é um
fim último, mas um meio. Sobre as essências valem
leis, e essas leis são incomparáveis com todos os fatos
e todas as conexões entre os fatos de que nos dá notí-
cia a percepção sensível. Elas valem sobre as essências
enquanto tais, em virtude de sua essência – nelas não
temos um contingente «ser-assim», senão um neces-
sário «deve-ser-assim» e um «por essência, não pode
ser diferente». Pertence ao mais importante na filoso-
fia que haja essas leis, e, quando pensamos o assunto
até o final, mesmo ao mais importante no mundo.
Expô-las em toda a sua pureza é, assim, uma tarefa
significativa da filosofia; mas não se pode negar que
ela não completou essa tarefa. Sempre se reconheceu
o a priori: Platão o descobriu, e, desde então, não
desapareceu mais do campo de visão da história da
filosofia; mas ele foi mal compreendido e constrin-
gido, mesmo por aqueles que defenderam seu di-
44 ADOLF REINACH

reito. Duas acusações devemos, acima de tudo, levan-


tar: a da subjetivação do a priori e o da sua constrição
arbitrária a algumas poucas áreas, pois seu âmbito de
domínio se estende sobre absolutamente tudo. Deve-
-se tratar, logo a seguir, da subjetivação. Em um pon-
to sempre se está de acordo: conhecimentos apriorís-
ticos não se criam da experiência. Para nós isso
resulta sem mais das nossas considerações anteriores.
Experiência remete, enquanto percepção sensível, ao
individual, ao «isso-aqui», e procura apreendê-lo en-
quanto tal. O que se quer experimentar força o sujei-
to, por assim dizer, a se aproximar: a percepção sensí-
vel é, por sua própria essência, apenas possível a partir
de algum ponto; e onde nós, seres humanos, percebe-
mos, lá se deve encontrar esse ponto de partida da
percepção, nos arredores mais próximos do percebi-
do. Com o a priori, ao contrário, trata-se da visão da
essência e do conhecimento da essência. Mas para
apreender a essência não se requer percepção sensível
alguma, aqui se trata de atos intuitivos de tipo com-
pletamente diverso, que se podem levar a cabo a todo
momento, inclusive onde quer que se encontre o su-
jeito representante. De que, para tomar um exemplo
bem simples e trivial, o laranja, por sua qualidade, se
encontre entre o vermelho e o amarelo, posso me
convencer com toda a certeza já de uma olhada,
quando me ocorre trazer à intuição clara a correspon-
[II.] 45

dente quididade, sem que eu tivesse que me referir a


alguma percepção sensível que me conduzisse a al-
gum lugar do mundo, onde se pudesse encontrar um
caso de laranja, vermelho e amarelo. Não se trata ape-
nas, como tão amiúde se diz, de que seja preciso
apenas perceber um único caso para apreender nele a
legalidade apriorística; não é preciso também, na ver-
dade, perceber, «experimentar» o caso individual; não
é preciso perceber coisa alguma: a imaginação pura
basta. Onde quer que nos encontremos no mundo,
em qualquer lugar e sempre, está aberto o acesso ao
mundo das essências e de suas leis. Mas aqui mesmo,
nesse ponto incontroverso, apareceram os mais fatí-
dicos mal-entendidos. O que não nos vem, por assim
dizer, ao encontro na percepção sensível a partir de
fora parece ter que ser encontrado no interior. Assim
se estampam os conhecimentos apriorísticos ao patri-
mônio da alma, ao – ainda quando apenas virtual –
inato, ao qual o sujeito deve apenas direcionar o olhar
para descobrir o seu com indubitável certeza. Na pos-
se do conhecimento, de acordo com essa imagem pe-
culiar e tão eficaz historicamente, são todos os ho-
mens, no fundo, iguais. Somente na maneira de
levantar o tesouro comum é que se diferenciam. Al-
guns vivem e morrem sem ter ideia de sua riqueza. Se
se traz à luz, porém, um conhecimento apriorístico,
então ninguém pode escapar de sua intelecção. Fren-
46 ADOLF REINACH

te a ele há descobrimento ou não-descobrimento,


mas nunca engano ou erro. Em favor desse ponto de
vista se encontra o ideal pedagógico do Sócrates pla-
tônico, tal como o concebeu a filosofia do Iluminis-
mo: o que extraiu do escravo, através de simples per-
guntas, as verdades matemáticas, das quais só é
necessário despertar sua recordação2. Uma variante
dessa concepção é a doutrina do consensus omnium
como garantia indubitável dos princípios supremos
do conhecimento. Uma variante dela é, mais adiante,
também a conversa sobre os conhecimentos apriorís-
ticos como necessidades do nosso pensar, como con-
sequência do «ter que pensar assim» e «não poder
pensar de outra forma». Mas tudo isso é radicalmente
falso, e o empirismo, frente a tais concepções, se en-
contra em posição vantajosa. Conexões apriorísticas
existem, sendo indiferente se todos ou muitos ou ab-
solutamente nenhum homem ou outros sujeitos as
reconhecem. Elas são universalmente válidas no má-
ximo, no sentido de que todo o que queira julgar cor-
retamente deve reconhecê-las. Mas isso não é especí-
fico das verdades apriorísticas, senão de absoluta-
mente todas as verdades. Também a mais suprema
verdade empírica de que para qualquer homem em
qualquer ponto no tempo um pedaço de açúcar terá

(2) Platão, Mênon, 82 B e seguintes.


[II.] 47

gosto doce, também essa verdade é universalmente


válida nesse sentido. De modo completo e definitivo,
entretanto, devemos rechaçar o conceito da necessi-
dade do pensar como nota essencial do apriorístico.
Se me pergunto o que se passou antes, a Guerra dos
Trinta Anos ou a Guerra dos Sete Anos, sinto uma
necessidade de pensar a primeira como mais antiga,
e, no entanto, se trata de um conhecimento empíri-
co. Em contrário, quem sempre nega uma conexão
apriorística, quem negue o princípio da não contra-
dição ou não admita o princípio da determinação
unívoca de tudo o que acontece, não comprovou ne-
nhuma necessidade do pensar. O que serão, pois, to-
das essas falsificações psicologistas! É certo que a ne-
cessidade desempenha um papel no a priori; só que
não é uma necessidade do pensar, senão uma necessi-
dade do ser. Atentemos apenas a essas relações de se-
res. Um objeto se encontra em qualquer lugar no es-
paço ao lado de outro; isso é um ser contingente,
contingente no sentido de que ambos os objetos, por
sua essência, poderiam também estar afastados um
do outro. Mas, ao contrário: a reta é a linha mais cur-
ta entre dois pontos. Aqui não há sentido falar que
poderia ser de outra maneira; na essência da reta en-
quanto reta já se funda ser a linha de ligação mais
curta; aqui temos um «ser assim» necessário. Isso é,
portanto, o essencial: o apriorístico são as situações
48 ADOLF REINACH

objetivas, e o são na medida em que nelas a predica-


ção, por exemplo, o ser B, é exigida pela essência de
A, na medida em que se funda necessariamente nessa
essência. Mas situações objetivas existem, sendo indi-
ferente qual consciência as apreende, ou se consciên-
cia alguma as apreende. O a priori, em si e por si, não
tem o mais mínimo a ver com o pensar e com o co-
nhecer. É preciso evidenciar isso com toda exatidão.
Se se compreendeu isso, pode-se evitar também os
pseudoproblemas que se erigiram sobre o a priori, e
que na história da filosofia conduziram às mais bizar-
ras construções. Conexões apriorísticas encontram
aplicação, por exemplo, no que ocorre na natureza.
Se se interpreta como leis do pensar, então se pergun-
ta como é possível essa aplicação, como se explica que
a natureza obedeça às leis do nosso pensar; se pergun-
ta se devemos admitir uma harmonia enigmática
preestabelecida, ou se é que a natureza não pode pre-
tender um ser próprio e em si, se se deve pensá-la em
alguma dependência funcional dos atos pensantes e
ponentes. Na realidade, não há como evidenciar por
que a natureza tenha que se submeter às leis do nosso
pensar. Não se trata, entretanto, de maneira alguma,
das leis do nosso pensar. Trata-se de que na essência
de algo se funda o ser assim ou comportar-se assim; é,
então, de se espantar que tudo o que participa dessa
essência seja afetado pela mesma predicação? Falemos
[II.] 49

em concreto e tão simples quanto possível. Quando


na essência da mudança se funda o estar em depen-
dência unívoca dos processos temporalmente prece-
dentes – não se devemos pensar assim, senão quando
deve ser assim –, é então de se estranhar que isso valha
também para cada mudança concreta e única no
mundo? Creio que seria inconcebível que fosse de
outra maneira, ou, melhor dito: é evidente que não
pode ser de outra maneira.
Quando se comprovou em si mesma a peculiari-
dade das conexões apriorísticas, como formas de si-
tuações objetivas, não como formas do pensar, pode-
se lançar como segundo problema a pergunta sobre
como nos são dadas propriamente essas situações ob-
jetivas, como são pensadas, ou melhor, conhecidas.
Foi falado sobre a evidência imediata do a priori em
contraposição à não-evidência do empírico. Mas essa
oposição não é sustentável. O que se quer é claro.
Que isso que se apresenta diante de mim como sub-
sistente e existente subsista e exista realmente, temos,
no próprio ato de percepção, um apoio, mas não uma
garantia indiscutível. A possibilidade de que as casas
e árvores que percebo não existam permanece sempre
aberta frente a esse perceber – não há aqui uma últi-
ma e absoluta evidência. Se, então, se quisesse dizer
que juízos sobre a existência real do físico não podem
pretender uma evidência última, ter-se-ia toda razão;
50 ADOLF REINACH

mas isso se diz de maneira bem geral sobre os juízos


empíricos, e aí há um erro. Suponhamos que a per-
cepção da casa de que eu falei seja uma ilusão, que a
casa percebida, portanto, não exista – ainda se tem,
naturalmente, o fato de que tive essa percepção, ain-
da que enganosa; como poderia falar senão de ilusão?
O juízo «eu vejo uma casa» possui, em contraposição
ao juízo «lá se encontra uma casa», uma evidência úl-
tima e indiscutível; é, evidentemente, um juízo empí-
rico, não se funda na essência do eu que se veja uma
casa – então não é a carência de evidência um traço
característico dos conhecimentos empíricos. Apenas
uma coisa é certa: que todos os conhecimentos aprio-
rísticos, sem exceção, são capazes de uma evidência
indiscutível, ou seja, de uma intuição originária de
seu conteúdo. O que se funda na essência dos obje-
tos pode ser trazido originariamente na intuição da
essência. Certamente que há conhecimentos apriorís-
ticos que não podem ser conhecidos em si mesmos,
senão que requerem uma derivação de outros. Tam-
bém esses, porém, remitem, em última instância, às
conexões originárias e evidentes em si mesmas. É cer-
to que esses conhecimentos não se admitem de um
modo cedo, não se constroem sobre um consensus om-
nium de fábula, nem sobre uma mítica necessidade
do pensar. Nada fica mais distante da fenomenologia
do que isso; antes, é preciso trazê-los ao esclarecimen-
[II.] 51

to, ao dado na intuição originária, e o que ressalta-


mos é que, para isso, é preciso um esforço e método
próprios. Com todo rigor, porém, devemos combater
a tentativa de querer justificar novamente as cone-
xões apriorísticas originárias, de querer demonstrar
seu direito ao derivá-las de outra coisa; combater a
tentativa de fundamentar as absolutamente claras e
evidentes fontes do conhecimento remitindo a fatos
não evidentes que só podem se fundamentar através
daquelas. Aqui me parece fazer-se novamente válido
aquilo de que já falamos, o medo de ter diante dos
olhos as conexões originárias mesmas, o cego ape-
lo a outra coisa que o sustente – como se também
uma tal tentativa de fundamentação, se não há de ser
totalmente arbitrária, não tivesse que se apoiar nas
conexões originárias evidentes.
Até agora me voltei contra a subjetivação do a
priori; isso não é menos pior do que aquilo que há
pouco denominei o empobrecimento do a priori. Há
poucos filósofos que não tenham reconhecido, de al-
guma forma, o fato do a priori, mas não há nenhum
que não o tenha reduzido a uma pequena província
do seu território verdadeiro. Hume nos enumera al-
gumas relações de ideias: são conexões apriorísticas;
mas não é possível visualizar por que ele as limita a
relações, e, ainda, a umas poucas. E particularmente
a estreiteza com que Kant concebeu o a priori seria
52 ADOLF REINACH

desastrosa para a filosofia que se seguiu. Na verdade,


o território do a priori é incalculavelmente grande; o
que sempre conhecemos dos objetos é que todos eles
têm seu «quê», sua «essência», e de todas as essências
contam leis de essência. Falta razão, toda razão, para
se estreitar o a priori ao formal em qualquer sentido;
também do material, mesmo do sensível, dos sons
e cores, há leis apriorísticas. Com isso se abre à in-
vestigação um terreno tão grande e tão rico que nós
hoje de maneira nenhuma podemos vislumbrar. Per-
mitam-me mencionar apenas algumas poucas coisas.
Nossa psicologia se orgulha de ser uma psicologia
empírica. Segue-se que ela negligencia todo o inven-
tário de conhecimentos que se funda na essência das
vivências, na essência do perceber e do representar,
do julgar, sentir, querer, etc. Se topa com essas leis,
toma-as, erroneamente, por empíricas. Cito a vocês
o clássico exemplo de David Hume: fala, no começo
de sua obra principal, sobre a percepção e a represen-
tação, e diz que a toda percepção corresponde uma
representação do mesmo objeto; isso é para Hume
uma das bases de sua filosofia3. Mas como devemos
interpretar essa proposição? Quer dizer que em toda

(3) David Hume, Tratado da natureza humana: uma Tentativa de In-


troduzir o Método Experimental de Raciocínio nos Assuntos Morais,
Editora Unesp, São Paulo, 2009, Livro I, Parte I, Seção I (Da origem
de nossas ideias).
[II.] 53

consciência em que se efetua a percepção de um ob-


jeto deva se realizar também uma representação do
mesmo objeto? Isso seria uma proposição bem ques-
tionável; pois nós percebemos, certamente, muitas
coisas que não nos representamos, que provavelmen-
te ninguém mesmo jamais se representa; de qualquer
forma, não temos direito algum de afirmar o contrá-
rio. Como Hume chega, entretanto, a colocar essa
proposição como ponta de suas meditações? De onde
vem à proposição a força de convicção que tem? Na-
turalmente é certo que para toda percepção há uma
representação correspondente e vice-versa; no senti-
do, por exemplo, como a toda reta corresponde um
círculo, cujo raio é ela mesma. Não se trata de uma
existência real, não de algo que ocorre na consciência
empírica, mas de uma adição real. E assim também a
conexão que Hume tem por empírica é, na realidade,
apriorística, fundando-se na essência da percepção
e da representação. Algo similar ocorre com a se-
gunda proposição, que constitui um dos fundamen-
tos da teoria humeana do conhecimento: que toda re-
presentação, segundo seus elementos, pressupõe uma
percepção anterior do mesmo sujeito, que nós, então,
apenas podemos representar aquilo que, segundo seus
elementos, já tenhamos percebido antes. A propo-
sição conduz a problemas difíceis; uma coisa, porém,
é certa com antecedência: não ser de natureza em-
54 ADOLF REINACH

pírica. Como saberemos se a criança recém-nascida


primeiro tem percepções ou representações? Não se
pode dizer: é evidente por si mesmo que ele deve ter
percebido primeiro, antes que represente. Justo on-
de se utiliza esses «evidentes por si mesmos» é que
devemos nos ater; eles todas as vezes se referem a co-
nexões de essência que esperam agora o esclarecimen-
to científico.
Até agora estávamos nas vivências periféricas, mas
nos estratos psíquicos mais profundos não é diferen-
te. Pensem vocês, antes de todas as coisas, nas rela-
ções de motivação que perseguimos, na vida prática
e também nas disciplinas históricas, como algo evi-
dente por si mesmo. Nós entendemos que desta ou
daquela disposição de ânimo, dessa vivência, esta
ou aquela ação pôde surgir ou teve que surgir. Aqui
não é o caso, cuja experiência tivemos tão amiúde, de
que homens com certas vivências tenham agido nesse
ou naquele sentido, e que digamos agora: também se
torna presumível que também esse homem aja dessa
forma. Entendemos que é assim e que deve ser as-
sim, entendemos a partir da vivência que o motiva.
Em um puro fato empírico, no entanto, não há com-
preensão alguma. O historiador, que persegue com
empatia uma relação de motivação, o psiquiatra, que
segue um processo de doença, todos eles entendem,
também quando se lhes apresenta pela primeira vez o
[II.] 55

processo em questão, deixam-se guiar pelas conexões


de essência, ainda quando não tenham formulado ja-
mais essas conexões de essência, nem possam, de for-
ma alguma, formulá-las. Aqui existe a conexão entre
psicologia e história, de que tanto se falou; a conexão,
porém, que não diz respeito à psicologia empírica,
senão apriorística, cujo início é coisa do futuro. A
psicologia empírica não é, de forma alguma, inde-
pendente da apriorística. As leis que se fundam na
essência da percepção e da representação, do pensar e
do julgar, são persistentemente pressupostas quando
se investiga o percurso empírico dessas vivências na
consciência. Hoje o psicólogo extrai essas leis das es-
curas representações do viver natural, elas pertencem
a esse âmbito de coisas turvas evidentes por si próprias
de que não mais cuida o psicólogo. E, mesmo assim,
uma doutrina psicológica das essências acabada pode-
ria ganhar um significado similar ao que a geometria
tem para as ciências da natureza. Pensem vocês nas
leis de associação. Como foram mal compreendidas
em seu sentido próprio! Sua formulação é, frequente-
mente, diretamente falsa. Não é correto que, quando
percebi ao mesmo tempo A e B, e apenas represento
A, exista uma tendência de também representar B.
Eu tenho que ter percebido A e B juntos em uma
unidade fenomenológica – e ainda isso seria apenas
a mais débil relação para que essa tendência se tor-
56 ADOLF REINACH

nasse compreensível. Sempre onde dois objetos nos


aparecem em uma relação, amarra-se uma associação;
e mais: se se trata, com isso, de uma relação fundada
nas próprias ideias, como semelhança ou contraste,
então não é sequer necessário esse aparecer prévio,
então conduz a representação de um A já, como tal, à
representação de seu B a ele similar ou contrastante,
sem que eu alguma vez precise ter percebido A e B
juntos. É deveras arbitrário quando se embasa a as-
sociação em várias relações determinadas, como hoje
ocorre; por exemplo, a contiguidade ou a semelhança
espacial ou temporal. Pois que toda relação é capaz
de fundar associações. Acima de tudo, porém, não se
trata com isso de fatos empiricamente recompilados,
senão de conexões inteligíveis e fundadas na essência
das coisas. Naturalmente que o que aqui se nos apre-
senta é uma nova espécie de conexões de essência,
não conexões de necessidade, mas conexões de possi-
bilidade. É-nos compreensível que a representação de
um A possa levar à representação de um B que lhe é
semelhante, não que precise levar a ela. Igualmente as
conexões de motivação, em grande parte, são aquelas
de que trata um «poder ser assim» por essência, não
um «dever ser assim».
Como se requer uma doutrina da essência do psí-
quico também é requerida uma doutrina da essência
da natureza; deve-se, naturalmente, renunciar com
[II.] 57

isso à atitude específica das ciências da natureza, que


persegue fins e objetivos bem determinados, por di-
fícil que isso aqui nos seja. Devemos também aqui
lograr apreender os fenômenos com pureza, aprofun-
dar em sua essência sem conceitos prévios ou precon-
ceitos: na essência da cor, da dilatação e da matéria,
da luz e da escuridão, dos sons, etc. Também deve-
mos investigar a constituição das coisas fenomênicas,
puramente em si mesmas, de acordo com sua estru-
tura essencial, na qual, por exemplo, a cor certamen-
te desempenha outro papel que a dilatação ou que
a matéria. Em todo lugar estão em questão as leis
de essência; em lugar algum se introduz a existên-
cia. Com isso não trabalhamos no sentido contrário
da ciência da natureza, senão estabelecemos os fun-
damentos a partir dos quais podemos entender sua
construção. Não posso me ocupar disso mais proxi-
mamente. O primeiro esforço da fenomenologia tem
sido comprovar as relações de essência nos mais di-
versos domínios, na psicologia e estética, na ética e na
ciência jurídica; em toda parte se abrem a nós novos
territórios. Mas se passamos por cima dos novos pro-
blemas, também aquilo que nos transmite a história
da filosofia recebe uma nova iluminação sob o pon-
to de vista da consideração das essências, sobretudo
o problema do conhecimento. Que sentido deve ter
definir o conhecimento, reinterpretá-lo e restaurá-lo,
58 ADOLF REINACH

distanciar-se dele todo o possível para poder imputar-


lhe algo que ele não é? Falamos todos do conhecer e
mentamos algo com isso. E se essa menção é para nós
demasiado imprecisa, então podemos nos orientar,
em qualquer caso em que tenha lugar um conhecer,
um conhecer seguro e indubitável; o exemplo mais
descomplicado e trivial é o melhor. Pensem no caso
em que conhecemos que nos enche um sentimento
de alegria, ou que vemos um vermelho, ou que som e
cor são distintos, ou qualquer coisa semelhante. Não
nos interessam aqui também os casos singulares do
conhecer e sua existência, mas neles intuímos, como
em todo lugar, o quê, a essência do conhecer, que se
encontra em um aceitar, em um receber e fazer pró-
prio algo que se oferece. A essa essência devemos nos
aproximar, é o que temos que investigar; mas não nos
é permitido imputar-lhe algo alheio. Não nos é per-
mitido, por exemplo, dizer que o conhecer seria, na
verdade, um determinar, um colocar, ou algo do gê-
nero; não nos é permitido, pois que podemos reduzir
cores a vibrações, mas não essências a outras essências.
Por óbvio que existe algo como o colocar ou o de-
terminar, e também sua essência deve ser esclarecida.
Temos lá o juízo, especialmente a asserção, como ato
espontâneo, pontual e ponente; e temos certas asser-
ções que se mostram como posições determinantes;
assim as asserções da forma A é B. Quando, porém,
[II.] 59

nos aproximamos, segundo sua essência, de um de-


terminar que efetuamos, vemos com clareza que ele
não é idêntico à essência do conhecer; e, mais ainda,
vemos, que toda determinação, segundo sua essência,
remete a um conhecer, do qual pode obter sua justi-
ficação e sua confirmação. Se se diz que homens não
podem efetuar nenhum ato de conhecimento, senão
apenas atos determinantes, isso seria uma afirmação
temerária, que não se sustentaria, mas que não seria
em si mesma sem sentido. Se se diz, contudo, que
o conhecimento é, em verdade, determinação, en-
tão isso se encontra exatamente na mesma altura que
se se dissesse que os sons fossem, na verdade, cores.
Naturalmente, a análise da essência não se exaure,
senão, antes, é implementada com ela discriminar
tudo aquilo que não se pode confundir com o que se
está investigando. E é isso, precisamente, o que com
todo rigor gostaria de imprimir a vocês. Quando nós
queremos na fenomenologia romper com as teorias
e construções, e quando nos esforçamos por voltar
às coisas mesmas, à pura e não oculta intuição das
essências, não é a intuição, com isso, pensada como
uma repentina inspiração e iluminação. Ainda hoje o
enfatizei incessantemente; exige-se peculiares e gran-
des esforços para sair do distanciamento em que por
si nos encontramos dos objetos, para sua apreensão
clara e nítida: precisamente em virtude disso é que
60 ADOLF REINACH

falamos de um método fenomenológico. Aqui se dá


uma aproximação cada vez maior, e há nesse cami-
nho, também, todas as possibilidades de engano que
todo conhecer traz consigo. Também intuições das
essências devem ser trabalhadas, e esse trabalho se
encontra sob a imagem que Platão descreve no Fe-
dro4, das almas que devem ascender ao céu para con-
templar as Ideias. No instante em que, no lugar das
ocorrências súbitas, se implanta o cansativo trabalho
de esclarecimento, o trabalho filosófico sai das mãos
do indivíduo para as das gerações que continuam a
trabalhar e se sucedem. As gerações posteriores não
compreenderão que uma pessoa isolada possa idear
filosofias, assim como hoje não se concebe que uma
pessoa isolada ideie a ciência da natureza. Se se chega
à continuidade dentro do trabalho filosófico, o pro-
cesso evolutivo da história universal, no qual uma
ciência após a outra se desgarrou da filosofia, também
se completará na própria filosofia. Ela se tornará ciên-
cia rigorosa; não em imitar outras ciências rigorosas,
senão em que se dê conta de que seus problemas exi-
gem um processo próprio, que necessita, para sua rea-
lização, de um trabalho de séculos.

(4) Conf. Platão, Fedro, 247 A e seguintes.


Índice onomástico

Agostinho .................. 2 Keller ......................... 3


Goethe ....................... 3 Kronecker .................. 5
Helmholtz .................. 5 Meyer ......................... 3
Hilbert ....................... 4 Mill ............................ 6
Hume................. 10, 11 Platão ............... 8, 9, 13
Husserl ....................... 7 Schiller ....................... 3
Kant ......................... 10 Sócrates .................. 8, 9
ESTE LIVRO ACABOU DE SE IMPRIMIR
A 2 DE OUTUBRO DE 2020.

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