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JAMES HILLMAN
(Dallas)
I.
* Esse artigo foi escrito para o Nippon Life Insurance Foundation Symposium [Simpósio da
Fundação da Nippon Life Insurance] de 1982, “The Parents-Child Bonding” [“O vínculo
Mãe/Pai-Criança”] e proferido em Osaka, em novembro de 1982. A revisão publicada aqui inclui
uma coda e outras adaptações feitas para um seminário sobre “Education of the Imagination”
[“Educação da Imaginação”] realizado em janeiro de 1983 no The Dallas Institute of Humanities
and Culture [Instituto de Humanidades e Cultura de Dallas]. [Nota do Autor]
Há também estruturas arquetípicas na experiência e essas podem ser investigadas por um
método arquetípico.
Em terceiro lugar, nós presumimos que há uma criança interior, uma imago da
criança arquetípica, afetando cada um de nós e, assim, afetando cada mãe e cada ato de
maternagem.
Em quarto lugar, nós podemos distinguir entre os conteúdos arquetípicos da mãe
e da criança enquanto conteúdo em um conjunto e a estrutura arquetípica do conjunto
enquanto tal. Mãe e criança não são somente cada um o que são, mas eles são como são
porque eles estão entrelaçados em um conjunto que afeta a natureza de cada um.
Nós precisamos, portanto, observar mais atentamente os conjuntos se quisermos
compreender quaisquer conteúdos, como mãe e criança, que são compreendidos por um
conjunto. Esses conjuntos – e eu uso o termo para díades, pares, acoplamentos,
polaridades, sizígias –, quaisquer que sejam seus conteúdos, são afetados por padrões de
pensamento de oposição tais como escuro/claro, vivo/morto, ordem/desordem,
verdadeiro/falso, presença/ausência, vertical/horizontal. Filósofos elaboraram antinomias
básicas adicionais e dissecaram as oposições em diferentes classes (contradições,
contrários, complementares, etc.). Estruturalistas localizaram diferentes espécies de
oposições em práticas sociais e estruturas linguísticas.
O vínculo mãe-criança, simplesmente porque o vínculo é um conjunto, está sujeito
à influência do pensamento de oposição ou “oposicionismo” (“oppositionalism”). Esse
fato complica o que quer que nós digamos sobre o nosso assunto. Embora o
oposicionismo não seja o único modo pelo qual o pensamento reflexivo procede (pode-
se refletir em imagens, com sentimentos e ao brincar), o oposicionismo afeta, contudo, os
padrões individuais e a reflexão sobre esses padrões em qualquer relacionamento dual
específico entre homem e mulher, superior e inferior, novo e velho e, além disso, no
interior da relação mãe-criança. Mais tarde, nós faremos uma tentativa de libertar o
conjunto do oposicionismo, mas, por enquanto, é importante reconhecer que o
comportamento humano está sujeito à estruturação transhumana de configurações
arquetípicas, como, por exemplo, o conjunto.
Ao colocar a relação do conjunto em primeiro plano, eu inverti a abordagem
habitual da psicologia que geralmente considera a rubrica mãe-e-criança como prévia a
todas as outras. Quero mostrar, contudo, que ela se submete a uma categoria além de si.
Essa abordagem “meta” física a um problema empírico – a experiência da má-
maternagem – é uma contribuição do ponto de vista arquetípico à psicologia.
Um fator meta- ou superordenado aparece também na abordagem biológica do
vínculo mãe-criança. Ela igualmente imagina que o conjunto, designado como “vínculo”,
é o fator determinante a que tanto a criança quanto a mãe se submetem. Filhotes de aves
canoras esticam seus pescoços para cima e abrem suas bocas de modo a revelar o ponto
de sinalização amarelo que, antecipado pelo mecanismo de liberação inato da mãe, libera
a comida que está no bico dela para dentro das gargantas deles. A lactação na mãe humana
coincidente à busca do recém-nascido pelo mamilo é um exemplo adicional do vínculo
superordenado – um padrão coordenado delicado, complexo e de enorme durabilidade,
mantendo mãe e criança unidos em um único padrão de comportamento que, em
conformidade com Jung, nós podemos denominar uma imagem arquetípica do instinto.
A lactação não é um mecanismo simples; mãe e criança não estão invariavelmente
à serviço dessa função. Cada um traz consigo suas idiossincrasias individuais. Enquanto
conteúdos, eles afetam a relação – é evidente. E a psicologia habitualmente localiza as
estruturas psíquicas que modificam o vínculo no interior da mãe per se ou da criança per
se, assim como da interação idiossincrática entre eles. Eu desejo acrescentar uma
dimensão localizando as estruturas psíquicas que influenciam o vínculo no interior da
fenomenologia da “conjuntice” (“tandemness”). Meu ponto é que, em qualquer momento
da maternagem ou da “criançagem” (“childing”), a “dualdade” (“twoness”) arquetípica
está operando, tornando necessária uma rica fenomenologia de ambivalência,
bipolaridade, tensão que constele oposições de diversas espécies. Aqui, no conjunto, e
não meramente na mãe ou na criança ou na interação instintiva superordenada entre
ambos, os principais problemas psicológicos da maternidade (“motherhood”) e da
infância (“childhood”) começam.
A influência do oposicionismo sobre os conjuntos pode tomar diversas formas.
Para nossa consideração, eu irei destacar uma: imagina-se que a criança é boa; a mãe, má.
II.
III.
Nós agora estamos prontos para examinar essa experiência de maldade a partir de
três perspectivas e de oferecer soluções a ela. Podemos dizer, primeiro, que a má mãe
reflete a própria negatividade no arquétipo. A fenomenologia da mãe negativa foi
explicada em detalhe pela escola junguiana. O trabalho de Jung sobre os símbolos da
libido materna (1912) apresenta o contexto mito-patológico da mãe negativa e a libertação
dela por meio de batalha. Em 1938, Jung compôs um importante ensaio a partir de seus
insights sobre o arquétipo da mãe. A isso, seguiram-se os estudos mastodônticos de
Neumann sobre as manifestações simbólicas da mãe negativa e seus efeitos psicológicos.
O trabalho de ambos foi complementado por Esther Harding, por H. G. Baynes e John
Layarde, na Inglaterra, e pela escola londrina de junguianos, especialmente no que diz
respeito a crianças pequenas e no que se refere a ideias da relação mãe-criança absorvidas
de Melanie Klein, Anna Freud, Bowlby, Winnicott, Fairbairn e Guntrip.
Nessa literatura abundante, duas ideias dominantes sobressaem-se. Primeiro: a
mãe humana não é o mesmo que a imago arquetípica, embora ela seja influenciada por
ele e seja percebida pela sua criança por meio dele. Segundo: a imago arquetípica tem
uma natureza dual, dois lados, positivo e negativo. Símbolos e metáforas expressam essa
natureza dual. O oceano, que é fonte de vida, representa também afogar-se em
aniquilação. A terra tanto nos sustenta quanto nos enterra. Os recipientes (jarras, caixas,
casas, instituições, cidades) protegem e também sufocam. Os receptáculos
transformadores (alambique, forno, banheira) servem tanto à necessidade de temenos
quanto de narcisismo. Aqueles animais que representariam, de acordo com a literatura
junguiana, o arquétipo da mãe demonstra a natureza dual do modo mais claro. O amoroso
urso com seus pelos desgrenhados e abraços apertados é também um monstro que agarra,
que esmaga; a paciente vaca com sua comida ruminada e seu úbere é também passividade
estúpida, presumida; o lobo nutridor é, ao mesmo tempo, ávida voracidade.
A psicologia junguiana considera a natureza dual da experiência de maternagem
enquanto um dado arquetípico e, portanto, irredutível. Você não pode ter um lado bom
sem o outro. No momento em que a maternagem é estrelada (“stellated”), ambos os lados
são constelados (“constellated”). Tampouco é possível converter o negativo em positivo.
A experiência da mãe empírica de sua maldade é a intimação de uma realidade
arquetípica. Kali espreita eterna, de modo que sempre haverá impulsos de destruir a
criança. O abuso infantil, mesmo um deleite instintivo nele, é dado pela natureza
arquetípica da maternagem. A experiência plena da maternagem invoca o impulso de
destruir a criança, de alimentar-se de sua vida, de transformá-la em pedra, de enlouquecê-
la, de abusar dela ou de abandoná-la. Esse lado da maternagem aparece na madrasta dos
contos-de-fadas.
A terapia junguiana tem como objetivo tornar essa sombra, esse lado mau, da
maternagem consciente à paciente individual que está procurando lidar com seus
sentimentos de ódio em relação à sua criança e com sua inferioridade em relação ao seu
ideal somente-positivo de maternagem. Ao reconhecer sua lealdade 2 a um princípio em
que a natureza dual está sempre presente, há menos probabilidade de que ela caia em um
oposicionismo cruel com sua criança (levando-a a encenar a mãe cruel negativa em
sinistras punições e apaixonados acessos).
Ao deslocar a maldade da identificação pessoal para localizá-la no lado negativo
do arquétipo em si, uma terapia junguiana pode aliviar autorrecriminações torturantes. A
maldade não pode ser legitimada por esse deslocamento, mas, ao menos, a paciente pode
enxergar sua necessidade arquetípica. Pois os arquétipos são os portadores sobre-
humanos da consciência coletiva e, assim, auxiliam o humano comum a carregar os fardos
sobre-humanos da vida. (Os arquétipos todos têm uma função de maternagem). Enquanto
um evento humano universal, a má-maternagem pertence a qualquer mãe e à Grande Mãe.
Essa perspectiva arquetípica deixa a mãe menos solitária com sua maldade e, assim,
menos impelida a reprimi-la e então forçada a atuá-la.
Segundo: a má mãe, enquanto um fenômeno arquetípico, implica a boa mãe. Se a
primeira perspectiva localizava a experiência no lado negativo do arquétipo, a segunda
perspectiva re-instala (“re-locates”) o negativo em si na conjunção de opostos no interior
do arquétipo. Em vez de opor lados positivos e negativos e de oscilar entre sentimentos e
comportamentos denominados de bons e de maus, nós compreendemos, aqui, que a
dualidade significa que há sempre o bom na experiência do mau.3
Aqui, volto-me para a ideia budista de Sunyata, O vazio ou vácuo metafísico.
Contra esse pano de fundo, os sentimentos de inferioridade e de fracasso – de que não se
tem nada a oferecer, de que se é destituído de valores, de amor, de beleza e das virtudes
positivas da maternagem – assume um significado mais profundo. A culpa em relação a
uma imagem plenamente positiva da maternagem é esvaziada, evacuada. Isso esvazia a
própria imagem positiva de modo que a mãe pode ver através de seu aspecto idealizado
delirante. Esse esvaziamento permite à culpa mover-se. Não mais ela é má porque
fracassou em relação à imagem idealizada da boa mãe. Agora a própria imagem
idealizada, tomada de sua mãe, de sua avó, de sua cultura, mostra sua própria vacuidade.
Os ídolos caem; os santos solidários esvanecem. Ela desperta para a percepção de que
boas imagens têm maus efeitos. E, à medida que o bom revela sua maldade, a experiência
mais profunda de sua maldade (sua inferioridade e seu fracasso) prova ser onde reside, de
fato, sua bondade.
O que eu quero dizer aqui é que a sensação de maldade sobre sua maternagem é,
de fato, onde ela se aproxima àquele terreno de ser, a Grande Mãe, cujo apoio aparece
exatamente quando ela se sente desiludida por todas as fantasias normativas, toda a
bondade ausente. Onde nada a sustenta, ela descobre que o Nada a sustenta. O sunyata
enquanto um vácuo metafísico torna-se manifesto na ausência de vontade pessoal dela de
fazer o bem e ser correta. Nessa condição esvaziada, ela pode ser nutrida por momentos
de não ser nada além do que ela é. Reações não ponderadas afirmam o vínculo.
A culpa também encontra, então, uma nova localização. A culpa – que força ações
literais de direcionamento e de correção desse ou daquele caso de maldade – torna-se a
voz interior do sunyata: “eu fracasso porque o fracasso é inerente a todas as ações
motivadas pela minha vontade. ” Elas podem ter êxito apenas quando elas surgem do
terreno do vazio, quando eu estou enraizada em uma maternagem indefinida, esvaziada,
que está além de todas as noções positivistas, técnicas a seu respeito. Eu abandono a busca
por como ser mãe. Sustentar em si sustenta; em minha ausência, tudo no mundo além de
mim e fora de mim ampara minha criança. A minha própria negatividade torna-se a via
negativa, não apenas da maternagem, mas a maternagem torna-se também uma atividade
que faz a alma, psicoterapêutica. A maternagem torna-se desliteralizada de somente o
cuidado em si de uma criança empírica para um caminho de aprofundamento da
compreensão da bondade sustentadora do mundo.
A psicoterapia conduz ao sunyata ao liberar – não somente normas idealizadas,
mas permitir que, a partir da terapia, se atinja o fundo do poço. Sua busca corretiva,
construtiva, fracassa. Uma terapia completamente não-solidária. Cai-se no colo do poço
sem fundo. Pois somente a criança abandonada pode ser encontrada pela loba maternal.
É a criança abandonada que descobre o sunyata.
Antes de prosseguir com a minha principal preocupação, a terceira perspectiva –
a má mãe em conjunto com a boa criança -, nós precisamos relembrar que essa criança,
assim como mãe, carrega símbolos sobre suas costas. Criança, também, é uma metáfora
arquetípica, que indica tanto uma pessoa jovem de fato quanto uma aura de conotações
simbólicas impessoais. E, assim como mãe pode ser abstraída em positivo e negativo,
criança pode ser dividida nas oposições entre puerilidade (“childlikeness”) e infantilidade
(“childishness”). O oposicionismo assombra o discurso da psicologia.
De acordo com os estudos de Freud, Jung, Kerenyi, Neumann, Brown, Campbell
e Bachelard sobre sua fenomenologia arquetípica, nós encontramos essas qualidades e
expectativas em relação à criança. Futuridade: a liberação de fantasias esperançosas
adiante no tempo ou além do tempo; redenção do presente pelo renascimento no futuro.
“E uma criança pequena irá conduzi-los.” Crescimento: maturação enquanto um processo
desenvolvimental com aumento na dimensão e na diferenciação da função. Simplicidade:
a criança enquanto energia primitiva, natural, uma intensa semente de ser. Origens: os
diminutos princípios de qualquer processo, seja enquanto princípio em um mundo além,
com conhecimento inato desse além, seja nesse mundo enquanto o novo fresco e
imprevisível. Amoralidade: a dedicação ao prazer e à perversão polimorfa, próxima ao
animal ou ao insano, e, portanto, necessitado de batismo, iniciação e educação.
Dependência: fraqueza, exposição, abandono – sentimentos que produzem em série os
desejos por onipotência de muitos tipos de heroísmo, magia e faz-de-conta. Alegria: um
deleite onde o eu e o mundo encontram-se fundidos: “o arquétipo da felicidade simples”
(Bachelard).
Nós somos obrigados a lembrar essas implicações arquetípicas da criança em
discussões relativas a crianças de fato e infância. Nós devemos ser cuidadosos a respeito
do que dizemos sobre crianças de fato até que possamos vê-las e não poderemos vê-las
muito claramente até que possamos ver as noções que governam nossos modos de ver, as
projeções arquetípicas que surgem quando quer que a imago da criança seja constelada.
A história das ideias sobre crianças na psicologia profunda mostra que elas, assim como
os primitivos, os animais, os artistas, os inventores e os insanos, foram forçadas a carregar
todo tipo de fragmento descartado e fantástico da psyche que os adultos e as adultas
“normais” excluíram de seu domínio. Por definição, as crianças são o grupo arquetípico
minoritário, seja idolatradas como perfeitas desde o princípio seja denegridas como
pedaços de natureza indomada que necessitam de disciplina para convertê-las à
maioridade (“adulthood”). Nós não poderemos vê-las pelo que são até que possamos ver
o que consideramos “infantil” (“childish”) – i.e., rudimentar, principiante4, menor,
dependente, imaturo – em nossas próprias mentes, até que nós tenhamos recuperado das
crianças e da infância uma variedade de possibilidades que nós, enquanto adultos,
renegamos e situamos nesse mundo especial denominado infância.
Listemos as atitudes e os comportamentos desse domínio especial que
supostamente pertence às crianças: espontaneidade, criatividade, divertimento, fantasia,
fascínio, curiosidade; vivacidade emocional em lugar de abstrações conceituais;
necessidade de prazeres sensuais e gratificação imediata dos desejos; processos de
pensamento que superam leis naturais ou o que é frequentemente denominado
pensamento mágico e uma percepção mágica de ações e objetos concretos; história
enquanto lenda em vez de enquanto tempo passado factual; timidez e vergonha em lugar
de decoro afetado; uma imaginação eidética conduzindo à familiaridade fácil com vozes,
faces e figuras de faz-de-conta, assim como com animais e fantasmas; alegria retórica –
hipérbole, melopeia, aliteração, rima, ruídos onomatopeicos e apotropaicos, sequências
narrativas e o amor por histórias. Tudo isso em uma palavra: imaginação. 5
Esses traços, essa imaginação pertencem ao arquétipo da criança e não
literalmente à infância e às crianças de fato. A identificação literal de uma pessoa de fato
a uma personificação arquetípica é o erro psicológico onde quer que nós a encontremos;
a feminilidade literalizada e esperada somente de mulheres, o senex literalizado somente
em pessoas idosas, a sombra escura literalizada somente em grupos étnicos escuros.
Agora, à terceira perspectiva: a má mãe emerge no interior do conjunto com a boa
criança. Nós não mais falaremos da má mãe enquanto uma figura autocontida como foi o
caso na primeira e na segunda perspectivas – ambas baseadas em ideias de negatividade
no interior de um único arquétipo. Agora nós olhamos para o conjunto que é
superordenado ou a mãe ou a criança e que afeta ambos. O conjunto tem este efeito: as
qualidades que a criança de fato recebe da projeção arquetípica empobrecem a mãe dessas
mesmas qualidades. Dito do modo mais extremo: o que a criança tem e é, a mãe não tem
e não é.
Embora ingressar na maternidade possa expandir a existência da mulher nas
direções encontradas nos modelos de mãe do mito, da cultura e da tradição familiar, ainda
assim, devido ao conjunto com a criança, a maternidade também a restringe a uma
existência mais singularmente adulta. Espera-se que ela se distancie de atitudes
imaginativas e comportamentos espontâneos que pertencem ao arquétipo da criança. Ela
sente que não lhe é mais permitido ser imatura, rudimentar, principiante. A mãe torna-se
separada de sua criança de fato devido à sua separação da infantilidade. Ela pode
ressentir-se de sua criança de fato por reter qualidades das quais ela é agora privada
simplesmente por sua posição no conjunto. Ou ela pode tentar recuperar essas
possibilidades agarrando-se à sua criança de fato. Estruturas básicas de má-maternagem
– a rejeição de sua criança, o ressentimento em relação à sua criança, a dependência de
sua criança e o fomento da dependência por parte de sua criança– derivam da relação da
mãe empírica no interior do conjunto.
Além disso, ela perde a habilidade de imaginar uma saída//a. Tendo perdido a
criança, ela perdeu a imaginação, que seria o próprio caminho de retorno. Por exemplo, a
mudança radical nos sentimentos sexuais depois do parto (uma reclamação de maridos
sobre suas esposas) pode ser parcialmente compreendida enquanto uma mudança
arquetípica, um movimento no mito e um movimento para o interior de um novo conjunto.
A mulher perdeu sua criança ao dar-lhe à luz. Tornou-se separada de sua perversão
polimorfa, de sua curiosidade e de sua espontaneidade – o terreno divertido da alegria
sexual.
IV.
V.
A educação das crianças, como Jung disse em sua palestra sobre o assunto em 1924,
começa com a educação de pais e professores e começa na educação básica – não na
educação superior; em níveis atrasados, não avançado; ao abaixarmos nossas visões e
seus padrões, de quatro, com pintura a dedo, com tambores, com pés descalços; com dias
mais lentos e não horas mais longas; com saborear e não testar; com nonsense em vez de
jargão. Demasiado Rousseau e a educação sentimental? Demasiado Rudolph Steiner,
escolas livres e jardins de infância alegres-alternativos? Não me entenda mal: eu estou
falando sobre nós, adultos – não sobre o que as crianças deveriam estar fazendo.
Se rimas nonsense e pinturas a dedo parecem demasiado infantis, veja o que nós
fazemos agora com a criança – bicos de ressentimento e junk food, violência esportiva
passivo-agressiva na frente da TV, baldes de pipoca, baldes de cerveja. O ambiente
doméstico adulto com seus brinquedos da Apple, o lar como uma Radio Schack9, uma
ilha de fantasia ou um armário de itens colecionáveis, seus salões de jogos, seus
apetrechos e aparelhos para construir corpos enquanto a imaginação é barateada e seca.
Mary Kay e livros comprados no supermercado. Enquanto isso, o crescimento, a
originalidade e a iniciativa, essas forças primordiais da criança, são consumidas pela
hiperativa fantasia de onipotência denominada “desenvolvimento” - seja pessoal, místico
ou financeiro, o projeto de si mesmo no espaço.
Rimas nonsense e pintura a dedo significam que eu não estou recomendando a
substituição de infantilidade ordinária por formas superiores de puerilidade10, como os
devaneios de Bachelard a respeito da infância, a criança divina de Jung, a inocência e o
deleite de Blake, a fascinante criança platônica no cosmos. Uma educação terapêutica
deve ter cautela em relação ao curso enobrecedor. A terapia é uma educação que opera
com equivalências, não conversões. É uma questão de escambo honesto. Nós não
podemos transformar pecadores em santos ou centavos em dólares sem passar a perna na
sombra. Então, em troca de dedilhar botões, pintura a dedo; em vez do jogo nonsense de
linguagem da TV, Lewis Carroll; em vez de Kodachrome, ovos de Páscoa. O escambo
primitivo da estupidez pela simplicidade – principiando no X da questão.
A educação, contudo, não pode parar onde começa. Por definição, a educação
deve “conduzir para fora”11. Ela conduz a simples fantasia à imaginação. Os próprios
dedos e a língua, torcendo-se em seu coro silábico, desejam mais do que repetições. Os
dedos e a língua encontram novidade ao sofisticarem a fantasia em imaginação.
Nós chegamos ao antigo enigma - a diferença entre fantasia e imaginação – e,
agora, podemos localizar essa diferença no conjunto mãe-criança. A fantasia é a atividade
da criança sem mãe (“motherless”); a imaginação é fantasia maternada (“mothered”): ela
é proposital, responsiva, cuidadosa. Ela materna porque é focada na criança – focada na
imaginação. A palavra-chave do imaginar é, portanto, não livre, mas fecundo; seu
objetivo, portanto, não é somente explorar, mas promover; e a euforia da fantasia é
contida pela consistência e pelo cuidado. Criança e Mãe, ambos. Para sermos conduzidos
a esse Ambos, nós devemos elaborar outra equivalência psicológica, substituindo a
criança de fato enquanto foco da educação pelo foco na imaginação do adulto. Nós
retomamos a infância. Essa recuperação da infância do domínio das crianças dá-lhes sua
oportunidade de postura graciosa, dignidade e sobriedade, seu desejo por razão e por
dever, à medida que retornamos ao armário da nossa infantilidade. Esse movimento é
primordial porque a fantasia de educar a imaginação foi completamente posta sobre as
crianças de fato – o que elas deveriam fazer por nós. Elas tiveram que fazer o que a nós,
adultos, não é permitido (exceto em asilos e naquele asilo nacional, a Califórnia, o estado
de ouro da infância) 12, deixando-nos com uma infantilidade subnutrida, carente, muda,
abusada e violenta, digna de Pacman, Star Wars e Halloween – entretenimento da mente
adulterada.
Essa mente adulterada é a má mãe em seu ápice. Ao forçar a infância sobre as
crianças, cada um de nós tornamo-nos más mães. Cada um de nós uma “mamã” – e isso
quando quer que, onde quer que, nós recorramos a uma resposta não-imaginativa, na
linguagem, na política administrativa, nas relações humanas, no consumo.
Encontros diários com a cidade do mundo são momentos imaginativos para a
mente de uma criança. Para a imaginação, eventos são histórias, pessoas são figuras,
coisas e palavras são imagens. Para a imaginação, o próprio mundo é uma mãe, uma
grande mãe. Nós estamos aninhados em sua linguagem, apoiados por suas instituições,
nutridos por suas coisas. O complexo da grande mãe que tanto aflige nossa psiquê
ocidental – seu pavor da e seu fascínio pela matéria; sua negação da dependência, que nós
chamamos de Livre Arbítrio; o anseio oral da economia do consumidor (“consumer
economics”) enquanto cura para a depressão - não pode ser resolvido pela terapia pessoal
apenas. A terapia pessoal enquanto cura, e a própria noção de cura, é uma defesa
apotropaica contra ela – banindo a cidade do consultório. A pequena mãe do consultório
pode cuidar de nós por um momento, mas do lado de fora jaz o enorme, imenso mundo e
apenas o enorme, imenso mundo pode nos curar – não da Grande Mãe, mas por meio
dela, pois a palavra “cura” (“cure”) vem de cura, “cuidado”. O semelhante cura o
semelhante porque os semelhantes cuidam um do outro. A própria cidade materna-nos
uma vez que nós recuperamos a criança de imaginação.
Nós precisamos apenas nos lembrarmos de que a cidade, a metro-polis, significa
em sua raiz uma Mãe corrente, fluente, aglomerante. Nós somos suas crianças e ela pode
nutrir nossas imaginações se nós nutrirmos a dela. Assim, a magna mater não é a magna
culpa. A culpa de fato por tudo – todo o combo do centro da cidade e do orçamento, do
analfabetismo e do rearmamento, do declínio ético e do veneno ecológico, da causa do
fenecimento de nossas instituições (governo, escolas, família, comércio e serviços,
editoração e linguagem) - é a negligência da cidade. E a cidade pode ser restaurada
enquanto mãe pela criança de imaginação. Sem essa criança, nós não podemos imaginar
nossa civilização além desse ponto ou promover a imaginação da nossa civilização, de
modo que a própria civilização se torna uma má mãe, não oferecendo nenhum terreno ou
trago à alma. Evidentemente, a mãe individual se sente um fracasso. A experiência da
má-maternagem é dada pela própria civilização quando a educação da imaginação é
negligenciada.
Portanto, para terminar onde nós começamos, com uma conclusão clássica, cíclica
apropriada ao modo retórico do arquétipo que estamos invocando, a mãe interminável:
sim, restaure a criança à mãe, a imaginação às instituições de educação, incluindo a
psicoterapia – mais, à totalidade da cidade do mundo – e, de fato, você re-vê os alicerces
da vida cotidiana.
1
Cf. Patricia Berry, “What’s the Matter with Mother” [“Qual é o problema com a mãe?”] in
Echo’s Subtle Body [O corpo sutil de Eco] (Dallas: Spring Publications, 1982). [Nota do Autor]
O termo “matter” pode ser traduzido como “assunto”, “matéria”, “questão”, “problema”; a
expressão “what’s the matter?” é empregada para perguntar “qual é o problema?”. O título do
artigo de Patricia Berry enfatiza, por meio da assonância, o vínculo entre matter (“problema”) e
mother (“mãe”). É digno de nota que matter e mother derivam, respectivamente, de materia
(“matéria”) e de mater (“mãe”), termos latinos cuja raiz é comum. [Nota da Tradutora]
2
No original, Hillman emprega “fealty” que significa a lealdade, especialmente em relação a um
rei ou a uma rainha. [NT]
3
Ibid. [NA]
4
Trata-se de tradução para “infantile”. O termo “infantile” refere-se pejorativamente ao que é
típico de uma criança e, portanto, inadequado ao adulto. Nesse contexto, poderia ser traduzido,
possivelmente de modo mais preciso, como “infantil” ou “imaturo”. Entretanto, optei por traduzir
“infantile” por “principiante” de modo a evitar a repetição vocabular, uma vez que, ao longo do
texto, os termos “childish” e “imature” são traduzidos por “infantil” e “imaturo”. [NT]
5
Cf. Christine Downing, “To Keep Us Imagining: The Child” [“Para manter-nos imaginando: a
criança”] in The Goddess [A deusa] (New York: Crossroads, 1981). Também o meu “Abandoning
the Child” [“Abandonando a criança”] em Loose Ends [Pontas soltas] (Spring Publications,
1975). [NA]
6
Cf. Berry, “An Approach to the Dream” [“Uma abordagem ao sonho”] in Echo, pp. 63-64. [NA]
7
No original, “upsidaisy/downsidaisy”. “Upsidaisy” é uma expressão costumeiramente utilizada
para reconfortar uma criança que tropeçou e/ou que está sendo levantada. A expressão empregada
por Hillman assinala a alternância entre “up” (“em cima”) e “down” (“embaixo”) como o
movimento da gangorra. [NT]
8
No original, “[…] through re-kindling fantasies, re-finding pleasures, releasing spontaneity, re-
awakening dreams.” Por meio da repetição do prefixo re-, é enfatizado caráter de realizar
novamente. Optei por manter essa ênfase e traduzir esse trecho como “[...] pelo re-avivamento de
fantasias, re-encontro de prazeres, re-lançamento de espontaneidade, re-despertar de sonhos”.
Entretanto, tradução menos estranha ao português seria ““[...] pelo re-avivamento de fantasias,
re-encontro de prazeres, liberação de espontaneidade, re-despertar de sonhos”. [NT]
9
Radio Schack é uma cadeia de lojas varejistas de artigos eletrônicos sediada nos EUA. [NT]
10
No original, “[...] I am not recommending the replacement of trashy childishness with higher
forms of childlikeness […]”. Optei por manter, ao longo do texto, a tradução de “childishness”
por “infantilidade” e de “childlikeness” por “puerilidade”. Nesse trecho, contudo, é digna de
observação a oposição sutil e significativa entre “childishness” e “childlikeness”, enfatizada no
nível verbal pelo destaque gráfico dos sufixos -ish e -ness. [NT].
11
No original, “lead out”, literalmente “conduzir para fora”, pode ser traduzido como “mostrar a
saída”. [NT]
12
No original, “[...] except in asylums and in that national asylum, California, the golden state of
childhood”. O termo “asylum”, traduzido por “asilo”, pode ter o sentido de “refúgio”, “santuário”
ou de “manicômio”, “hospício”. Embora Hillman subscreva ao primeiro sentido, implica
ironicamente o segundo. [NT]