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26/02/2023, 23:57 Penny dreadfuls: a literatura gótica para as massas - NotaTerapia

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Literatura

Penny dreadfuls: a literatura gótica para as massas


 Bianca Peter  24 de fevereiro de 2018 0

[Publicado anteriormente no Literatortura]

O século XIX da Rainha Vitória, na Inglaterra, foi um divisor de águas quando se trata de literatura: é sinônimo
de muitos autores que influenciaram globalmente o ofício da escrita. Podemos citar Charles Dickens, o
escritor de sucesso meteórico e de maior renome da época, com Grandes Esperanças, Oliver Twist e Um
Conto de Natal, que nunca falhou em fazer literatura de modo que entretivesse o público e, ao mesmo tempo,
oferecesse uma representação das classes sociais mais oprimidas. Também conhecemos seu rival, William
Thackeray (Vanity Fair), Charlotte, Emily e Anne Brontë com seus respectivos romances revolucionários,
George Eliot (Middlemarch), Thomas Hardy (Longe deste insensato mundo), Lewis Carroll, Robert Louis
Stevenson e, ao fim do século, Oscar Wilde. A própria obra de Dickens, como a esmagadora maioria de
outros trabalhos da Inglaterra vitoriana, demonstra uma abordagem caliginosa muito característica do Gótico.
Entretanto, não faltaram representantes mais distintivos do gênero. Personagens como Drácula, Edward Hyde
(“O Médico e o Monstro”), o Homem Invisível e até mesmo Sherlock Holmes apresentam aspectos exóticos,
sobrenaturais, ou, no caso de Holmes, uma inteligência grande demais para esse mundo. A literatura gótica,
entretanto, é uma mistura entre romance e horror que retrata principalmente elementos ocultos como
monstros, fantasmas, maldições e bruxaria (para ser bem abrangente) e seu prestígio se fez ainda mais
evidente com a mania dos “penny dreadfuls”.

Os penny dreadfuls nasceram num contexto histórico de metamorfose: a Inglaterra vivenciava mudanças
sociais que elevaram a taxa de alfabetização que, junto com a ascensão do capitalismo e da industrialização,
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levou à criação da indústria do entretenimento. A população começou a se interessar cada vez mais por
romances (o que também elucida a popularidade de Dickens) e procurar outras formas de lazer. Tais 
mudanças, além da melhora no sistema de impressão e a construção de ferrovias e motores, contribuíram
para um tipo de entretenimento direcionado às massas que deveria ser de fácil acesso e atrativo. Inicialmente
os penny dreadfuls eram intitulados “penny bloods” e contavam histórias de aventura com piratas e
salteadores de estrada, impressos em papel barato com uma ilustração preta e branca na capa e oito
páginas. Mais tarde, sucumbiram ao sucesso do gótico e foram paridas pequenas histórias sensacionalistas
de narrativa policial, em grande maioria abordando criminosos e entidades sobrenaturais. “Dreadful” significa
terrível, asqueroso e “penny” era o antigo centavo da libra. Como cada exemplar era vendido a um penny,
tendo em vista que sua venda era direcionada a membros masculinos da classe trabalhadora, foi consolidado
o título “penny dreadful”.

O primeiro penny blood foi publicado em 1836 sob o título de “Lives of the Most Notorious Highwaymen,
Footpads, &c.” (“Vidas dos Mais Notórios Salteadores de Estradas”, em tradução livre) e entre os anos 1830 e
1860 o gênero já contava com mais de 100 editoras, além de revistas que aderiram à mania. Os autores
possuíam pelo menos dez histórias diferentes em circulação e eram pagos um penny por linha. Não é
surpresa que os que tinham mais prática aprenderam que era mais rentável utilizar uma fonte staccato para
escrever, e ainda fazer com que as duas ou três palavras que finalizavam um parágrafo fossem para uma
outra linha. A ilustração, por sua vez, deveria ser mais sensacionalista possível: a principal instrução do editor
para seu ilustrador era “mais sangue! Muito mais sangue!”. Cada história era publicada em sequência, e era
comum garotos da classe trabalhadora que não dispunham de dinheiro formarem clubes para compartilhar o
custo, passando os livretos de leitor para leitor quando terminassem. Outros rapazes também compravam
exemplares consecutivos e depois alugavam para quem tivesse interesse. As histórias dos penny dreadfuls
eram, em grande parte, baseadas em pessoas reais ou ainda contos góticos recontados. Nos primórdios do
gênero, salteadores de estrada se fixaram como os protagonistas favoritos dos penny-readers. Na série
“Black Bess or the Knight of the Road” foi contada a história do real salteador Dick Turpin e perdurou por 254
episódios. Um dos grandes editores da época, Edward Lloyd, ainda pegou carona no sucesso de Dickens e
publicou uma série de dreadfuls derivados de seu trabalho, como “Oliver Twiss”, “Nickelas Nicklebery”
e “Martin Guzzlewit”. (Cara, você podia fazer melhor que isso) (Ou não).

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>Se as aventuras criminosas de Dick Turpin faziam os penny bloods venderem como água, logo os

salteadores de estrada tornaram-se previsíveis demais e deram lugar a histórias mais medonhas.
Transgressões ordinárias como envenenamentos, roubos, afogamentos foram aprimoradas com ajuda do
sobrenatural. A afeição pelo horror, oriundo do final do século XVIII, voltou à circulação com narrativas sobre
bruxas, personagens com interesse em toxicologia (o estudo dos venenos), princesas perdidas, homens
mascarados, crianças roubadas, homens de títulos homicidas e etc. O penny dreadful de maior sucesso, “The
Mysteries of London”, foi baseado em um livro francês e escrito por G W M Reynolds. Sua primeira publicação
foi em 1844 e manteve-se em circulação por 12 anos, com mais de 4 milhões e meio de palavras. The
Mysteries of London se inspirou na vida miserável dos menos afortunados de Londres, com direito a serial
killers e o menor número possível de heróis como se espera de um penny dreadful. Seu sucesso é explicado
pela realidade da narrativa, algo mais próximo da vida de seus leitores do que ladrões a cavalo. Outra história
de sucesso foi publicada em 1846 sob o título de “The String of Pearls”, apresentando-nos pela primeira vez
ao barbeiro demoníaco da Rua Fleet, Sweeney Todd, que já rendeu musicais e um filme dirigido por Tim
Burton. Apenas um adendo: há uma possibilidade de que Sweeney Todd tenha sido uma personalidade real.
Um antigo Ministro da Polícia de Paris, que serviu entre 1799 e 1815, possuía registros sobre um barbeiro
parisiense que fazia tortas de vítimas e vendia-as para consumo humano.

Se alguns penny dreadfuls não eram baseados em fatos reais, algumas situações imitaram a arte e
contribuíram para a decadência do gênero com a perseguição da imprensa. A literatura dos “garotos perdidos”
aparecia entre os principais motivos pelos quais crimes eram cometidos por menores de idades, que
supostamente roubavam seus empregadores, carregavam revólveres e fugiam de casas para viver em
ferrovias por se espelharem nos anti-heróis das histórias. Em 1895, a primeira campanha parlamentar contra
os penny dreadfuls foi lançada por serem “grosseiramente desmoralizantes” e de “caráter corruptor”. Alguns
autores do gênero conseguiram produzir ficção popular e mais respeitada, como o jornalista G A Sala e Mary
Elizabeth Braddon. A última ainda alegou que a quantidade de crime, envenenamento, traição e infâmia geral
exigida pelos leitores era algo terrível.

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Cena de Penny Dreadful (2014-2016). (Sim, isso é sangue)

O legado deixado pelos livretos, entretanto, não se dissipou junto com a sujeira do Tâmisa e os penny
dreadfuls são considerados os precursores dos “dime novels” americanos (fim do século XIX e começo do
século XX) e das revistas pulp. Em 2014, o canal de televisão Showtime começou a exibir a série “Penny
Dreadful” (finalizada em 2016), uma ótima opção para quem tenha interesse na Londres sombria e vitoriana
dos antigos folhetins sangrentos. Apesar de contar com personagens talvez sofisticados demais para os
penny dreadfuls, como Dr. Frankenstein e Dorian Gray, o criador e roteirista John Logan mantém o espírito
coletivo dos deserdados da sociedade na forma de uma gangue que combate a maldade pungente das ruas
da cidade. A Londres recriada por Logan tem vampiros, sessões de possessão, bruxas, lobisomens, museus
de cera encenando grandes crimes como os de Jack, o Estripador, e peças de horror sujando o palco de tinta
escarlate. Temos um ex-James Bond, Timothy Dalton, fazendo o papel de Sir Malcolm Murray, um explorador
do continente africano que come o pão que o diabo amassou após cometer barbaridades em nome da
ganância; uma ex-bond girl, Eva Green, no papel de Vanessa Ives (rainha) uma médium em constante
perseguição pelas forças ocultas, Ethan Chandler, um pistoleiro americano que decide auxiliá-los nos
trabalhos noturnos, e Sembene, um senegalês e principal confidente de Malcolm. Victor Frankenstein e seu
monstro, assim como Dorian Gray, são os personagens emprestados da literatura do século XIX que
completam perfeitamente os fictícios de Logan. A cada episódio identificamos os anti-heróis carregados de
demônios tão característicos dos penny dreadfuls. E nós nos tornamos cada vez mais similares aos
espectadores do teatro Grand Guignol, que assistem de boca cheia a toda a chuva de sangue e horror,
amedrontados até a espinha, mas satisfeitos com a distância entre a própria realidade e aquela dos garotos
de rua de Londres.

Arte da capa: https://mystikmask.com/

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AUTORAL BIANCA LITERATURA INGLESA PENNY DREADFULS

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