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Outras palavras

RBP51-1 PR-3 (LIVRO)_2017.indb 123 29/03/17 19:56


Algumas considerações
sobre os ideogramas e sua relação
com a representação inconsciente
à luz da escrita clássica chinesa
Ricardo T. Trinca

Revista Brasileira de Psicanálise Ricardo T. Trinca  é psicanalista,


volume 51, n.1, p. 125-139 · 2017 doutor em psicologia clínica pela
Universidade de São Paulo USP e
membro filiado ao Instituto Durval
Marcondes da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
Resumo
Este artigo procura demonstrar que a escrita clássica
chinesa – ideográfica – é uma linguagem que se aproxima da
forma como as representações inconscientes organizam-se
no psiquismo. Para tanto, o autor analisa dois versos
escritos em chinês e relaciona-os com as representações
inconscientes e com os ideogramas mentais. Procura
estabelecer ainda a relação do ideograma com a formação
do pensamento inconsciente e, para isso, propõe um modelo
gráfico, ilustrativo também para as associações de ideias.
Por fim, o autor concebe o espaço mental triangular como
estrutura do ideograma.
Palavras-chave
ideograma; representação inconsciente; linguagem;
simbolização.

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Introdução como as representações inconscientes ope-


ram, ou seja, ideográfico-sinteticamente.
Procuraremos mostrar também que os

B uscaremos neste trabalho aproximar-


-nos da linguagem que se encontra entre
ideogramas possuem as características e a
lógica do sistema inconsciente, tal como
descritas por Freud (1900/1996a) e Matte-
a impressão e a palavra. E, como um -Blanco (1988).1
umbigo, os ideogramas situam-se nesse A princípio, descreveremos algumas das
lugar, o lugar de um elo, por meio do qual características do chinês clássico e anali-
o pensamento desenvolve-se metaforica- saremos duas frases. Cada uma consistirá
mente. O  presente trabalho representa na junção de cinco ideogramas e demons-
um esforço para explicitar as características trará tanto sua imprecisão e condensação
principais dessa linguagem e, assim, com- quanto uma de suas características mais
preender sua relação com a palavra falada. notáveis: a formação de imagens oníricas
Sabemos que os ideogramas não são em movimento. Nossa intenção, com isso,
somente uma matéria para linguistas  – será mostrar que, se certas linguagens ape-
há muito que os psicanalistas ocupam-se nas podem ser expressas pelos termos que
deles (Avzaradel, 2006; Bion, 1957/1994, lhes são semelhantes (Pinto & Pignatari,
1992/2000; Junqueira Filho, 1995; Money- 1975), então nada melhor do que o uso da
-Kyrle, 1996). Mas há uma dificuldade atenção livremente flutuante como um
inicial para o leitor: os ideogramas serão modo possível de acesso a essa linguagem.
tratados tanto do ponto de vista de uma
forma de escrita específica quanto das mar-
cas psíquicas provenientes de impressões Os ideogramas e sua escritura (poética)
sensoriais que se organizam no psiquismo
ideograficamente. Essa simultaneidade Desde o famoso ensaio de Ernest Fenol-
deve-se ao fato de que a escrita chinesa losa “The Chinese written character as a
clássica parece-nos a forma mais apro- medium for poetry” (1936/1977), a língua
ximada para descrever o modo como as chinesa goza de uma reputação singular.
representações inconscientes articulam-se Fenollosa foi o primeiro a evidenciar que
no psiquismo formando pensamentos. o estudo da poesia baseava-se no estudo
O termo representação será tratado aqui da linguagem. Demonstrou que na lin-
a partir do modo como foi compreendido guagem chinesa os caracteres ideográficos
por Freud, e isso significa que o relaciona- expressariam modos de relação entre ima-
remos com a pulsão, com a ausência do gens, ideias e sons, como uma composição
objeto, com o afeto, com a repressão e a complexa ou uma cena em movimento.
palavra. No entanto, nosso interesse será
considerar que os ideogramas chineses
são demonstrações aproximadas do modo

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Trata-se de caracteres de uma língua não de vislumbrar cenas nascidas desses vín-
flexionada, em que não há nem conjuga- culos, vivas e relacionais. Por isso era dado
ção nem declinação. As relações gramati- um alto valor à caligrafia na China antiga.
cais são indicadas apenas pela ordem dos Eisenstein (1929/1977), por sua vez, obser-
caracteres na sentença (Chu, 1977), e eles vou que a escrita figural chinesa era copu-
não sofrem alterações de acordo com o lativa. Sua principal característica era a
gênero, o caso, o tempo, etc. A ordem de combinação entre dois radicais (ou partes
sucessão dos caracteres ideográficos chi- de um ideograma composto, mas também
neses expressaria, segundo Fenollosa, o ideogramas), que não poderia ser conside-
próprio movimento da natureza, sequen- rada simplesmente uma soma, mas um
cial e sucessivo.2 Fenollosa, além disso, foi produto deles, que revelaria um valor de
incrivelmente inovador por mostrar como outra dimensão, denominado por ele de
as formas das sentenças e mesmo as partes conceito. Seu interesse era demonstrar que
de um discurso brotariam umas das outras os ideogramas seriam um modelo de justa-
(1936/1977, p. 132). Essa característica pro- posição sequencial de imagens e de ideias,
vém, segundo o autor, de os caracteres e o princípio do funcionamento da monta-
chineses terem enorme plasticidade e de gem cinematográfica. No conceito formado
que uma coisa e sua ação não ficariam ou pela cópula dos radicais e pela sucessão
seriam formalmente separadas. Os ideogra- dos caracteres haveria uma ideia em movi-
mas, desse modo, teriam a característica mento, orientada justamente por meio dos
de poder significar tanto um verbo quanto seus radicais e que tenderia a ser alusiva e
um adjetivo, um advérbio ou um substan- densa, como uma pintura de ideias con-
tivo, apenas de acordo com sua ordem na densadas (Verdichtung). Associados, seriam
sentença (Chu, 1977). É interessante notar como uma união que não criaria uma uni-
como um caractere chinês não pertence a dade (Blanchot, 2007). Consideramos que
nenhuma parte específica de um discurso. um conceito significa um pensamento
Ele é abrangente, amplo, e pode significar orientado em certa direção e, assim, per-
gramaticalmente aquilo que, do ponto de manece interminável, embora sempre seja
vista da oração, o escritor pretende comuni- subordinado aos seus radicais. Observemos
car, tendo a liberdade de lidar com o carac- um exemplo de escrita ideográfica, que ire-
tere do modo como melhor lhe convenha mos analisar:
(Fenollosa, 1936/1977, p. 134).
Os ideogramas são combinações de tra-
ços que, ao expressarem ideias, revelam os
vínculos secretos que as unem (Cheng, Trata-se de um verso de Li Tai Po (Li
1977) e oferecem ao leitor a oportunidade Bai), de um poema intitulado “À despe-
dida de um amigo”.3 É um verso com-
posto por cinco caracteres (ideogramas),
cada qual expressando isoladamente

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uma ideia e um som. Haroldo de Cam- direito e acima, observamos os traços que
pos, ao analisar esse mesmo verso, deu revelam “as patas de um pássaro acima,
a ele a seguinte tradução: “nuvens volá- pairando” (Campos, 1977, p. 54). Embaixo
teis: o ânimo de quem viaja” (1977, p. 54). dele há o ideograma tzu3: “criança” (Wil-
Ricardo Portugal e Tan Xiao propuseram der & Ingram, 1922/2014, p. 1). A combina-
outra versão: “nuvens viajam mudam ção de “criança” com “as patas do pássaro
vagam ânimos” (2013, p. 78). Mário Faus- acima” seria o modo pelo qual a ideia de
tino preferiu: “A mente é ampla nuvem “confiança” seria expressa (Campos, 1977,
flutuante”, e Ezra Pound: “Mind like a p. 54). Wieger encontra nesse ideograma
floating wide cloud” (citados por Cam- a forma da “segurança ou de depender de
pos, 1977, p. 54). Já Cecília Meireles tra- alguém” (1915/2013, p. 594), e Henshall diz
duziu por: “As nuvens errantes me farão que foneticamente expressaria “flutuar”
pensar em quem viaja” (Po, 1996, p. 40). (1988, p. 560). Já essa ideia associada com o
Essas traduções procuram recriar o verso ideograma “água” expressa algo como “flu-
por meio de palavras que possam substi- tuante” ou “efêmero e transitório” (Wieger,
tuir cada um dos ideogramas ou a ideia 1915/2013, p. 594). Uma interpretação meta-
geral de sua combinação com o outro. fórica desse ideograma poderia ser feita,
O leitor pode imaginar que estamos nos tal como fez Haroldo de Campos – uma
desviando da psicanálise por adentrarmos fábula em miniatura: “flutuar com a tran-
no território da tradução, mas afirmamos quilidade e confiança com que descansa o
não ser essa a nossa intenção. Trata-se, filhote protegido pela mãe” (1977, p. 55).
inversamente, de mostrar, como já afir- Passemos agora para o caractere
mamos, como certas linguagens apenas seguinte: na parte de baixo, o ideograma
podem ser expressas pelos termos que lhes mostra a forma para “nuvens” (yün2); em
são semelhantes, pois a tradução tende a sua forma mais primitiva expressaria o
fracassar em transposições para diferentes “vapor volúvel subindo”. Também oferece
linguagens. Assim, veremos como os sen- a ideia da “evanescência” e do “espírito que
tidos diversos desse pequeno verso fazem é invisível aos olhos” (Wilder & Ingram,
com que tenhamos que apreendê-lo sin- 1922/2014, p.  152). Sua associação com a
tético-ideograficamente, e não por meio parte superior do ideograma revelaria, no
de um sentido alfabético, que nos aliena entanto, o momento em que o “úmido e
dos sentidos condensados do interior de quente vapor chega a regiões frias e con-
cada ideograma. densa-se nelas” (Wieger, 1915/2013, p. 232).
Notemos o primeiro deles: trata-se, Trata-se, possivelmente, das nuvens carre-
como outros três desse verso, de um ideo- gadas, antes da chuva e prestes a evanescer.
grama complexo. Ele é uma cena em Até esse momento, são dois ideogramas que
movimento. Do lado esquerdo desse ideo-
grama (fu2) observamos o ideograma para
“água” (Henshall, 1988, p. 560). Do lado

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expressam a ideia de flutuar; flutuar com com os movimentos dos braços do homem
confiança e flutuar para o alto, até evanes- que nada. Uma imagem de algo esvoaçante
cer, transformando-se. encontra-se no interior da ideia de viajar,
O terceiro ideograma é inteiramente de vagar a esmo.
sustentado pelo radical cho, que é pare- O ideograma seguinte é o ideograma
cido com uma bota e que designa a ideia para “criança” ou “mancebo” (tzu3), e
de “ir, passo por passo, ou ir e parar” (Wil- mostraria a imagem de “um recém-nascido
der & Ingram, 1922/2014, p. 5) ou o ato de enfaixado e, por isso, suas pernas não esta-
“andar” (ShaoLan, 2014, p. 112). Sobre ele riam visíveis” (Wilder & Ingram, 1922/2014,
existem outros dois ideogramas. O  pri- p. 1). Pode tratar-se ainda, na composição
meiro seria a expressão de “ramos sus- desse verso, de um sufixo (-or) referente ao
pensos, pendentes, lianas, em movimento caractere anterior.
ondulante” (Campos, 1977, p. 56). Do lado O último dos cinco ideogramas também
direito desse ideograma, há o ideograma é um ideograma complexo. Em sua parte
de “criança”, ou de um homem que tem inferior, observamos o ideograma para
suas pernas encobertas pela água, com seus “coração, mente ou sentimentos” (hsin1).
movimentos dentro dela, “mostrando ape- Acima dele, temos um radical que signi-
nas seus braços enquanto nada” (p.  56), fica “palavras e sons” (Wilder & Ingram,
parecendo uma criança num cueiro ou 1922/2014, p. 17), ou “palavras ditas”. Todo
enrolada. Os ramos pendentes pairam tam- ele pode ser compreendido como “a opi-
bém acima da criança. Wilder e Ingram nião que surge quando o coração está
(1922/2014, p. 294) demonstram haver uma cheio, repleto” ou como “pensamentos
noção de “algo esvoaçante” na combina- e intenções”, pois “o coração ou mente
ção entre esses dois radicais. Poderíamos daquele que fala é conhecido pelo som
também questionar se não expressariam que profere” (Henshall, 1988, p. 65); e, por
algo de flutuante… Associado ao ideo- extensão, que “o pensamento da mente de
grama para “ir”, teríamos a possibilidade quem escuta vem das palavras daquele que
de “jogar, brincar [play]”, “descansar” fala” (Wilder & Ingram, 1922/2014, p. 17).
(Henshall, 1988, p.  121), ou de “passear, Para a compreensão desse verso inteiro,
vagar e viajar” (Wieger, 1915/2013, p. 663). é necessária a combinação entre todos esses
De qualquer modo, observamos como um ideogramas. É preciso que o leitor tenha,
ideograma expressaria, do ponto de vista da portanto, que utilizar de sua atenção livre-
língua chinesa, inúmeras ideias ou imagens mente flutuante para que uma cena possa
em seu interior, de difícil precisão; trata-se ser vislumbrada, e que englobe não só os
de sintéticas condensações. Os ramos pen- elementos, mas o movimento que foi dado
dentes, esvoaçantes, parecem relacionar-se pelo poeta. Do ponto de vista da tradução
formal, seria indispensável observar um
movimento sequencial, da esquerda para
a direita, pois a compreensão do sujeito e

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do predicado tenderia a ser localizável no imagético-representacional, em que a ima-


próprio movimento da leitura. Trata-se de gem representa a coisa representada. Con-
uma grande dificuldade e, possivelmente, sideramos isso até mesmo em relação aos
não apenas para a nossa cultura. Mas pode- “pictográficos” ou “símbolos imitativos”
ríamos propor uma livre interpretação- (Wilder & Ingram, 1922/2014, p. vii), que
-tradução, que enfatizasse, em vez disso, não são apenas substantivos, mas também
uma lógica de correlação (Tung-Sun, 1977): verbos e adjetivos. Assim, concordamos
nela, um termo nunca é solitário – ou rela- com os nossos precursores da poesia con-
ciona-se com um outro, complementar, ou creta, que entendiam que “é preciso que
com o seu contrário: nossa inteligência habitue-se a compreen-
der sintético-ideograficamente ao invés de
Nuvens flutuantes viajam esvoaçantes, analítico-discursivamente” (Apollinaire,
Vagando até no alto esvanecerem; citado por A. de Campos, Pignatari & H.
Qual criança brincando, mostram-se de Campos, 1975, p. 156). Isso significaria
Repletas de vivos sentimentos considerar que a expressão de determinada
Para um coração de nuvens flutuantes. natureza precisaria se dar em termos que
não fossem indiferentes a essa natureza –
A tradução desse verso, porém, será e isso também vale para pensarmos sobre a
indiscutivelmente “traidora”; nossa aten- natureza da linguagem inconsciente. Como
ção flutuante percebe essa limitação. nos dizem Pinto e Pignatari:
Lembramo-nos quase instantaneamente
das palavras de Klein, ao afirmar que “não Uma linguagem vale pelo que tem de intra-
podemos traduzir a linguagem do incons- duzível, de intransponível, de irredutível a
ciente para a consciência sem emprestar- outras linguagens. Um texto, também, tem
-lhe palavras do nosso domínio consciente” valor por tudo aquilo que há nele de irre-
(1957/2006, p. 211). Ou seja, nessa transposi- dutível a outros textos em quaisquer lingua-
ção é inevitável uma mudança transforma- gens. Não tem sentido tentar exprimir uma
dora. O efeito de uma tradução é reduzir realidade de determinada natureza em ter-
a possibilidade evocativa e associativa, e mos alheios a essa realidade (1975, p. 162).
fazer com que o ideograma (que revela
um modo peculiar de pensamento) pareça Se consideramos a linguagem ideográfica
indistinto da linguagem alfabética. como a linguagem inconsciente, pensamos
Na tradução, tende-se a esgotar a ten- que deveríamos encontrar meios de expres-
são e o movimento de aproximação entre sá-la por seus próprios termos: aí reside
as imagens e ideias presentes em cada nossa dificuldade. Se, tal como afirmam
ideograma, para lidarmos apenas com a Pinto e Pignatari (1975), toda linguagem é
palavra manifesta. Pensamos que o cará-
ter evocativo dos caracteres é fruto de sua
estrutura dinâmica, e não de seu caráter

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limitada, possuindo um conjunto de signos surgiria apenas após o desenvolvimento de


e de relações limitados, e que não podemos outros dois estágios:
referir-nos a coisa alguma a não ser subor-
dinados à forma da linguagem em questão, estou sugerindo que, dado um objeto […]
então percebemos que a linguagem ideográ- a respeito do qual se deve formar um pen-
fica inconsciente deveria ser compreendida samento para que a maturidade conceitual
por termos semelhantes, como a linguagem […] seja atingida, o desenvolvimento desse
ideográfica chinesa clássica. pensamento passará normalmente por três
Por outro lado, se as palavras alfabéticas estágios: identificação concreta [com o
têm relação com o ideograma, qual seria objeto a respeito do qual se deve formar
essa relação? Quando Emerson diz que um pensamento], representação ideográ-
“a linguagem é poesia fóssil” (citado por fica inconsciente, representação consciente
Campos, 1977, p. 34), aludindo a uma espé- e predominantemente verbal. Se o último
cie de mitologia da linguagem, refletimos estágio for atingido de um modo apenas teó-
que, sob cada nome ou oração pronun- rico, sem passar pelos outros dois, o conceito
ciada, haveria uma fossilização de radicais resultante parece ser imprestável para o
que talvez já eclodiram como formas vivas. desenvolvimento emocional. (1996, p. 436)
Mas, caso a linguagem proveniente dessa
sustentação ideográfica expresse palavras Uma palavra magra, fria, concreta, desti-
repletas de significado nascente, verifica- tuída de sua relação com a “representação
ríamos que obtiveram “vigência porque, ideográfica inconsciente” seria o resul-
no momento, simbolizaria[m] o mundo tado dessa palavra, já que essa representa-
para o primeiro elocutor e para o ouvinte” ção, que é associativa e metafórica em sua
(Emerson, citado por Campos, 1977, p. 34). natureza, pode nem mesmo ter se formado.
Parecem, nesse caso, ser expressão daquela Sendo assim, o alfabeto parece depender
palavra que, no momento em que nasceu do ideograma.
do ideograma, podia ser viva, repleta de
emoção e brotar da relação entre seus
radicais como uma “floração matinal”. Outras considerações
A  palavra oriunda do ideograma (e dele sobre a escritura chinesa
não dissociada) parece manter o estado de
um nascente florescimento, não a frieza de É interessante notar, nesse primeiro verso
uma palavra desarticulada do ideograma e analisado, que tanto o primeiro caractere
de sua emoção. Money-Kyrle, ao discutir quanto o terceiro e o quarto são apresenta-
a formação dos pensamentos e da maturi- ções transformadas ou completas do ideo-
dade conceitual, considera que a palavra grama tzu3 (子), que é o ideograma para
“criança”. Observamos esse ideograma rea-
parecer ao longo do verso associado com
outros radicais, que expressam significados

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diferentes por meio dele, em uma espécie Trata-se de uma sentença que se encon-
de metamorfose de forma e de sentido. Ele tra no artigo de Ernest Fenollosa citado
mesmo aparece inteiro, reluzente, como anteriormente. Esses cinco caracteres são
o quarto caractere do verso. Salta-nos aos traduzidos por Fenollosa e usados para
olhos essa metamorfose, tal como impressio- desenvolver a ideia de que a sucessão
nou Fenollosa em seu estudo sobre a língua dos ideogramas revelaria um fato intrín-
chinesa. A essa “rima visual”, Fenollosa deu seco ao pensamento: o seu caráter suces-
o nome de harmônico. Nesse verso, trata-se sivo, como uma redistribuição de forças
da metamorfose do ideograma tzu3 – uma de um termo do qual se parte para um
metamorfose com condensações e desloca- outro termo ao qual se chega (1936/1977,
mentos, por meio de uma associação de for- p. 127). Neles não se empregam as conjun-
mas semelhantes, em que o sentido parece ções coordenativas, como na língua portu-
subordinado à associação de sua forma. guesa. Uma tradução para esses ideogramas
Nessa maneira de reaparecer sob sentidos seria: “Lua radia como pura neve” (p. 121).
diversos, o ideograma tzu3 associa-se a outros Observamos, nessa versão, que cada um
ideogramas destituídos de conjunções coor- dos ideogramas significaria uma palavra.
denativas, tão necessárias em nosso modo O primeiro “Lua”, o segundo “radia”, o ter-
de expressão e incrivelmente ausentes tanto ceiro “como”, o quarto “pura” e o quinto
nessa forma de escrita quanto nos sonhos. “neve”. Mas, como havíamos demonstrado
Além disso, verificamos como as ideias de anteriormente, cada ideograma complexo
“flutuar” e de “água” existem também nos constitui-se de uma cena, em que vários
três primeiros ideogramas; parecem, assim, elementos não só estão presentes em seu
harmônicos ideativos, ou transformações e interior, mas relacionam-se com os outros.
invariâncias (Bion, 1965/2004b). Podemos observar isso nesses cinco caracte-
Há uma determinação explícita sobre o res também. O primeiro ideograma (yüeh4)
tipo de vínculo que deve ser estabelecido é o ideograma “pictográfico” para “Lua”,
entre palavras ou entre ideias por meio das para “a lua crescente, completamente visí-
conjunções coordenativas. Mas essa deter- vel” (Wieger, 1915/2013, p. 165).
minação não se aplica ao modo de orga- O segundo ideograma (yao4) é um ideo-
nização da linguagem inconsciente, e o grama complexo, em que vários elementos
chinês clássico mostra-nos um exemplo estão presentes. Há na sua esquerda o ideo-
de sintaxe puramente relacional, baseada grama kuang1, que significaria algo “glo-
na ordem dos caracteres. Para observarmos rioso, resplandecente e luminoso” (Wieger,
mais claramente essas questões, vamos ana- 1915/2013, p. 614). Em sua direita, na parte
lisar mais um grupo de ideogramas. Obser- de baixo, há o ideograma chui1, que repre-
vemos a frase: sentaria um “pássaro com rabo pequeno”

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(p. 334). Já a sua combinação com a parte água], que está fresco e verde” (Henshall,
superior revelaria o ideograma ti2, que 1988, p. 13). Associado com o ideograma
significa “faisão” (p.  163). É  interessante para “Sol”, ele significaria “um céu claro”
notar nesse ideograma como uma imagem (Wieger, 1915/2013, p.  584), revelando a
parece desdobrar-se da outra – por exemplo, limpidez do céu ou a pureza.
como um pássaro com rabo pequeno está O último ideograma (hsüeh3) é com-
no interior de um faisão. O ideograma yao4, posto por dois radicais (yü3 e chi4). O ideo-
esse segundo ideograma, significaria, assim, grama na parte superior (yü3) significa “as
tanto “glorioso e honroso” como “brilho e gotas de água que caem de uma nuvem
iluminado” (p. 658). Podemos conjecturar que paira no céu” (Wieger, 1915/2013,
também que significaria algo alado, pela p.  26), e que são evanescentes. O  ideo-
presença do pássaro em seu interior, como grama na parte inferior dele é o ideograma
um brilho alado em sua glória. para “mão”. Ou seja, “uma chuva que
O ideograma seguinte é o ideograma pode ser pega com a mão ou varrida para
ju2. Ele é a combinação do radical nü3, longe” (Wilder & Ingram, 1922/2014, p. 148),
“mulher”, que está à esquerda, com o radi- a “neve”. Recriamos esse verso assim:
cal k’ou3, “boca”, que é o radical fonético
que atribui o som ao ideograma. Ele signi- Lua esplendorosa,
fica “falar como uma mulher, com habi- cai a neve pura;
lidade feminina; e a disposição de um uma é como a outra:
homem para agradá-la”. Como extensão do – brilho pelo chão!
significado, expressaria “como”, “gostar” ou
estar “de acordo com” (Wilder & Ingram, Nesse exemplo, a oração dos cinco
1922/2014, p.  180). Ou seja, para agradar caracteres pode mostrar tanto a nostalgia
uma mulher, dever-se-ia ter a habilidade de uma noite enluarada quanto a frieza de
feminina de estar de acordo com ela. Não uma Lua distante. Podemos ainda pensar
deixa de ser um curioso modo de pensar. no calor do brilho da Lua sobre a neve, e
Já o ideograma seguinte (ch’ing2) é na neve pura que radia como a Lua. São
um ideograma complexo, formado por diferentes cenas e emoções, mas oriun-
dois ideogramas (jih4 e ch’ing1). O  pri- das da mesma fonte. Porém, como numa
meiro deles é o ideograma para “Sol”. única imagem composta, em que o brilho
O segundo é uma ligação entre a ideia do da pureza encontra-se sobre a Lua refle-
crescimento das plantas e de vida com a tida na neve, e em que a pureza da neve é
representação de um receptáculo feito para vista com o brilho da Lua sobre ela, esses
o crescimento, ou seja, significaria o “cres- cinco ideogramas relacionam-se e articu-
cimento em torno de um poço cheio [de lam-se sem que uma imagem desfaça a
imagem anterior. Fundamentalmente, o
que determina cada cena do ideograma é a
existência de uma cena total, uma unidade

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contraditória, em que são possíveis várias estágio ideográfico, tal como descrito por
tomadas sucessivas, de diferentes ângulos, Money-Kyrle (1996). Enquanto a constituição
com variadas perspectivas a partir dela; de representações inconscientes depende de
uma cena absolutamente condensada e uma capacidade de registrar aquilo que não
que revela movimentos, de modo que as está presente, o pensar, por sua vez, implica
emoções tornam-se perspectivas decorren- pôr em movimento associativo essas repre-
tes de cada ângulo observado, em tomadas sentações, como um fenômeno ainda mais
distintas, como cenas infinitas. complexo. A Vorstellung seria o representante
Há ainda um novo ponto a ser debatido. ou uma representação da pulsão. Esse repre-
Tomemos como exemplo o ideograma 浮. sentante da pulsão (Triebrepräsentanz) seria
Trata-se, como já analisamos, do ideo- a exigência de esforço da pulsão para que se
grama “flutuante”. Seu nome “flutuante” tornasse algo de psíquico. Podemos dizer,
é apenas a ponta do iceberg do seu universo como Garcia-Roza (2004), que uma repre-
simbólico. A  ligação entre seus radicais sentação, que é o representante da sua pul-
ocorre em pares. “As patas de um pássaro são, é o modo como a própria pulsão se faz
acima” relacionam-se com “criança”; sua presente no psiquismo. A Vorstellung é uma
aproximação gera “confiança”; “confiança” Triebrepräsentanz repleta de carga afetiva e
associa-se com “água”; sua decorrência designaria, de modo geral, o aspecto ideativo
será “flutuante”. A tensão provocada pela ou imagético quando investida pela pulsão.
associação de dois radicais é geradora de Quando nos perguntamos acerca de um
um nome; esse nome funda-se nos seus pensamento inconsciente, precisamos ter
radicais. Há, assim, uma triangulação na em vista que Freud (1915/1996c) estabelece
composição do ideograma complexo: dois que grupos de representações inconscientes
radicais geram um nome. O nome, por sua investidos por uma quota de afeto poderiam,
vez, não anula os radicais. Nessa tensão, pela repressão, ter seus afetos suprimidos na
o nome não tem uma explicação defini- passagem desses pensamentos para a cons-
tiva e produz somente associações. Nesse ciência, pela palavra. Isso corresponderia à
sentido, é possível entender quando Bion assertiva de que pensamentos inconscien-
diz: “o ideograma evoca associação livre e tes estruturados por meio de conjuntos de
o alfabeto não” (1992/2000, p. 361). representações inconscientes existiriam
independentemente das representações
de palavra, ou seja, pensamentos oníricos
Ideograma, representação e som inconscientes seriam conglomerados de
representações inconscientes.
Podemos compreender que as represen- Compreendemos que, entre as repre-
tações inconscientes, no entanto, ainda não sentações de traços de objetos na mente e a
são propriamente ideogramas, pelo menos no
sentido mais amplo que eles possuem, mas o
pensar já seria expressão e resultado de um

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Algumas considerações sobre os ideogramas e sua relação com a representação inconsciente 135
à luz da escrita clássica chinesa
Ricardo T. Trinca

articulação dessas representações em uma produzindo evocações. Nessa copulativa


forma ou estrutura ideográfica – tal como simbólica, a produção de um nome é refe-
preferimos denominar  –, é necessário que rência aos seus radicais e um movimento
um modelo edípico e triangular opere sobre que clama ligação com outras triangulações
elas, para que assim se estabeleçam matri- ideográficas por meio de encadeamentos
zes de pensamentos. Como destino da cena ideativos, metonímicos e paronomásticos,4
primal, ela assumiria o caráter de um ideo- engendrando pensamentos inconscientes.
grama primário (Bion, 1992/2000, p.  211). O modo como esses encadeamentos
Britton, ao discutir sobre o papel da crença, ocorrem, por meio de aliterações, con-
fala da importância da constituição interna densações, deslocamentos, ritmo, rima,
da situação edípica, que “requer aquilo que semelhança, similaridade ou contiguidade,
eu descrevo como espaço psíquico triangu- constitui parte da observação psicanalítica,
lar – torna-se necessária uma terceira posição quando pacientes associam livremente e
no espaço mental, a partir da qual o self sub- ligam ideias desconexas através de ideias,
jetivo pode ser observado tendo uma relação imagens, sons ou partes de sons. Observe-
com uma ideia” (2003, p. 29). Essa terceira mos o modelo gráfico a seguir, um modelo
posição no espaço mental seria correspon- que procura relacionar a estrutura ideo-
dente à própria estrutura ideográfica, que gráfica triangular e as associações sonoras
permite o desenvolvimento de pensamentos entre as palavras – corresponderia a uma
por meio de uma relação triangular; referi- estrutura associativa inconsciente:
mo-nos neste trabalho à ideia como um con-
ceito ou o nome do ideograma, ou seja, uma
palavra associada com a representação ideo-
gráfica inconsciente (Money-Kyrle, 1996).
O discurso manifesto, expressão articu-
lada de nomes de ideogramas, é o resul-
tado da reunião e cópula dos seus radicais
inconscientes, que produzem em cada
ideograma aquela alteridade sempre des-
conhecida. Uma palavra, sustentada por
uma estrutura ideográfica, nunca se refere
unicamente àquilo que representa, pois
se apoia nos radicais que fazem com que
ela seja sempre mais ampla do que a sua
representação. Os radicais jamais se unem
de fato, e permanecem em relação tensa,
Modelo para a relação entre a estrutura triangu-
lar do pensamento e as associações sonoras entre
as palavras.

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volume 51, n.1 · 2017

Nessa figura observamos como represen- meio dessa função, seriam formados ideo-
tar significaria dar continuidade associativa gramas, através dos quais os pensamentos
e fluidez fonética, ideativa e afetiva por poderiam desenvolver-se.
meios diversos, possivelmente como uma Bion (1963/2004a) considera que a
estrutura de adiamentos, capturas e trans- transformação dos elementos beta em ele-
formação da energia pulsional. Os radicais mentos alfa ainda não seria propriamente
1 e 8 (r1 e r8) são também nomes, mas asso- constituição de pensamentos, mas de qua-
ciam-se a outros radicais para a formação lidades psíquicas; elas poderiam ser arma-
de novos nomes, tal como observamos nos zenadas e relacionadas com outras (como
ideogramas fu2 e cho, que seriam represen- representações emocionais), para uma
tados, por exemplo, pelo triângulo [nome3, “pensabilidade”; seriam protoideias, ante-
r8, r7(fonético), r9 e r10]. Trata-se de um riores a um pensamento propriamente dito,
modelo em que grupos de representações pois seriam elementos formadores de con-
estariam encadeados entre si, formando ceitos. Observamos anteriormente que os
pensamentos associados por sons e por ideogramas complexos possuem em sua
ideias inconscientes. Sua forma pode ser constituição uma estrutura formal de natu-
identificada como uma malha, uma malha reza triangular, e não seria um erro afirmar-
de representações, dando suporte e sendo mos que, psiquicamente, eles constituiriam
o próprio aparelho psíquico, que tem a uma “unidade” simbólica mínima. A trian-
forma de uma estrutura para simbolizações gulação ideográfica pressupõe uma orga-
inconscientes. nização das representações inconscientes
por meio da cópula, de modo que o nome
(ou o conceito) é o produto de associações
Ideogramas e ideogramatização entre protoideias; elas prestam-se para a
cópula e, portanto, para o desenvolvimento
Bion, em diversos trabalhos (1957/1994; emocional. Observemos alguns exemplos:
1992/2000), utiliza-se dos termos ideograma
e ideogramatização. Ele costuma utilizar a. Quando Bion (1957/1994) descreve par-
esses termos para descrever como, diante tes de um objeto expelidas projetiva-
de uma impressão sensorial, foi constituída mente após ser destruído pelo paciente,
uma forma (imagem) e, por meio dela, ele demonstra um ataque aos vínculos
uma comunicação verbal. Esse trabalho internos do ideograma e à fragmentação
de formalização da impressão sensorial é o e expulsão de partes dele, partes tanto
nome dado por ele para o trabalho de ideo- sonoras (fonéticas) quanto ideativas, o
gramatização. O ideograma, por sua vez, é que faz com que ele se torne irreconhe-
o produto dessa função ideográfica: tornar cível. A nova composição ideográfica,
a experiência apta para armazenamento e
utilização. Ela seria uma função de agrupa-
mento de radicais e, portanto, criativa. Por

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Algumas considerações sobre os ideogramas e sua relação com a representação inconsciente 137
à luz da escrita clássica chinesa
Ricardo T. Trinca

produto da parte expelida, é parecida si (violino, pênis, mãos, moça, mastur-


com uma composição cubista, em uma bação) e, além disso, que há uma ligação
nova condensação, como nos sonhos. entre os radicais na formação de uma
“Se o pedaço de personalidade for rela- cadeia associativa com outros ideogra-
cionado à visão, o paciente achará que mas. Já no caso do outro paciente, pode-
o gramofone quando estiver tocando mos conjecturar que a relação entre
estará olhando para ele” (p. 61). “violino” e “órgão sexual masculino” é
equivalente e simétrica, ou seja, não é
b. Quando Freud (1901/1996b), em Psico-
simbólica e triangular. Isso significa que
patologia da vida cotidiana, refere-se ao
não existiria nem uma terceira posição
esquecimento de Signorelli, associando
no espaço mental nem um ideograma;
Botticelli, Boltrafio, Bósnia, Boltrafio,
portanto, um radical apenas seria equi-
Trafoi, Herzegovínia, Signor (Herr)…,
valente ao outro.
ele produz uma associação paronomás-
tica e metonímica, explicitando a rup-
tura, via esquecimento, por meio do
Espaço e metáfora
recalque, da ligação entre ideogramas
através de seu aspecto fonético. Pode-
A organização simbólica tem como
mos dizer, nesse caso, que é o som que
resultado um acúmulo de metáforas, que
liga os distintos ideogramas, cada qual
produzem sentidos figurados e analógicos,
repleto de pensamentos nascentes.
referenciados por seus radicais, por meio
c. Hanna Segal (1983), por sua vez, em de uma lógica de equivalência e alusão.
suas “Notas a respeito da formação de Assim, para nós, “as metáforas se foram
símbolos”, discute a diferença entre dois superpondo em camadas quase geológi-
pacientes na utilização do violino como cas” (Fenollosa, 1936/1977, p. 138).
símbolo. Ao tocarem violino, ambos sen- Os ideogramas, que se utilizam de
tiam tratar-se de um ato masturbatório. imagens concretas para sugerir ou evo-
No entanto, enquanto um deles expe- car relações abstratas, são o produto dessa
rimentava o violino como sendo o pró- organização ideográfica que podemos des-
prio órgão genital masculino, o outro crever como metafórica. A metáfora parece
se utilizava do instrumento como uma ser o sentido eletivo da ligação entre os
representação dele. De nosso ponto de radicais. O pensamento inconsciente, um
vista, a diferença explicitada por Segal verdadeiro palimpsesto ideográfico, criaria
descreve que a representação de um ato sugestões ao relacionar as representações
masturbatório implica a possibilidade e os afetos, tornando cada “unidade” sim-
de relação de diferentes radicais entre bólica um acúmulo excedente de sentido
metafórico por meio de seu agente estru-
tural, o espaço vazio. A ausência do objeto,
no ideograma, pode ser considerada tanto o

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138 Revista Brasileira de Psicanálise
volume 51, n.1 · 2017

elemento de apoio para os radicais quanto a como quaternária, pois além do nome e
forma vazia na qual as ligações associativas, dos radicais há o elemento do espaço, da
metonímicas, ocorreriam, quando se é pos- ausência do objeto, que é a base em que
sível pensar, por meio de saltos para ligações o ideograma, como “unidade” simbólica,
sobre o espaço. A estrutura triangular do parece formar-se e encadear-se com outros
ideograma pode ser considerada, portanto, ideogramas.

Notas
1 Compreendemos assim que, nessa linguagem, pode- mas com sentidos diferentes, próximas umas das
mos observar: ausência de contradição, deslocamento, outras. “Elemento nuclear e fundante de todo bom
ausência de temporalidade (mas presença de movi- poema, que tece a gama de plurivalências da instân-
mento ou de sequência), condensação e ausência de cia sonora” (Chalhub, 1987, pp. 58-59). A metonímia,
identidade (determinada pela condensação, já que A por sua vez, é um modo de associação de palavras
pode ser ou fazer parte de B e vice-versa). por meio de seus sons ou partes deles (fonemas). Em
2 Bion, em Cogitações (1992/2000, pp. 332-335), uma cadeia associativa, significaria “tomar a parte
demonstrou não apenas ter conhecimento desse tra- pelo todo”, ou seja, as palavras relacionam-se com
balho de Fenollosa como estar reflexivo sobre o pro- as outras por meio de seu aspecto sonoro, como um
blema da sucessão do pensamento de um ponto de modo de pensar associativo através de partes de seu
vista psicanalítico. som. O sintagma, por sua vez, indica uma relação
3 Para a leitura completa desse belo poema, incluindo sonora ou ideativa em que um elemento tem uma
o original chinês, recomendo a tradução de Ricardo relação de dependência com o outro; uma opera-
Primo Portugal e Tan Xiao (2013, p. 78). ção de seleção daqueles que devem combinar-se na
4 A  paronomásia é uma figura fônica que emprega cadeia associativa, criando nexos de subordinação
palavras parônimas (com sonoridades semelhantes), entre eles.

Algunas consideraciones sobre los ideogramas y su Considerations on the ideogram and its relation
relación con la representación inconsciente a la luz to the unconscious representation in the light of
de la escritura china clásica Chinese classical writing

Este artículo pretende demostrar que la escritura This article’s purpose is to demonstrate that Chinese
china clásica – ideográfica – es un lenguaje que se classical writing, also called ideographic writing, is
aproxima a la forma en que las representaciones a language that approaches the way unconscious
inconscientes se organizan en la psique. Para ello, representations are organized in the psyche. To this
el autor analiza dos versos escritos en chino y los end, the author analyzes two verses written in Chinese
relaciona con las representaciones inconscientes and relates them to unconscious representations
e ideogramas mentales. Su objetivo es establecer and mental ideograms. The author attempts to
la relación del ideograma con la formación de establish the relation between ideogram and the
pensamiento inconsciente. Propone un modelo way unconscious thinking is formed. To this end, he
gráfico, ilustrativo también para las asociaciones de proposes a graphical model, which may also illustrate
ideas. Por último, concibe el espacio mental como la mental association (association of ideas). Finally, the
estructura triangular del carácter. author conceives of a triangular mental space as a
Palabras clave: ideograma; representación structure of the ideographic character.
inconsciente; idioma; simbolización. Keywords: ideogram; unconscious representation;
language; symbolization.

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Ricardo T. Trinca

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completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. cado em 1922)

[Recebido em 18.01.2016, aceito em 15.06.2016] Ricardo Trapé Trinca


Rua João Moura, 627/61
05412-911 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3085-9176
ricardotrinca@hotmail.com

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