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OS PÁSSAROS NAS PALAVRAS DE JACQUES PRÉVERT E MANOEL DE


BARROS1
THE BIRDS IN THE WORDS OF JACQUES PRÉVERT AND MANOEL DE
BARROS

Janaina Jenifer de Sales2


Mestra em Literatura
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Unesp/ Assis
(j.sales@unesp.br)

RESUMO: Os pássaros são animais representantes de múltiplos signos e que inúmeras


vezes foram representados artisticamente. Este artigo procura investigar como se dão as
aparições dos pássaros em um recorte das obras do poeta francês Jacques Prévert e do
poeta brasileiro Manoel de Barros. Para tanto, partiremos da análise comparativa dessa
temática entre poemas escolhidos da obra Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001)
e Paroles (1946), que embora pertençam a dois universos distintos, apresentam diversas
semelhanças se analisadas sob certos aspectos, como por exemplo o seu caráter
metapoético. A aparente simplicidade de suas poéticas acaba por revelar a incorporação de
elementos de um requinte moderno. Ambos colhem na fala e nas imagens banais do
cotidiano o material para a confecção poética.
Palavras-chave: Manoel de Barros. Jacques Prévert. Poesia. Literatura Comparada.
Pássaro.

ABSTRACT: Birds are animals representing multiple signs and they have been represented
artistically many times. This article aims to investigate how the appearances of birds occur in
an excerpt from the works of the French poet Jacques Prévert and the Brazilian poet Manoel
de Barros. We will start from the comparative analysis of this theme between poems chosen
from the work Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo (2001) and Paroles (1946),
although they belong to two different universes, they present several similarities if analyzed
under certain aspects, like their metapoetic character. The apparent simplicity of their poetics
reveals the incorporation of elements of a modern refinement. Both gather in the speech and
in the banal images of everyday life the material for their poetic confection.
Keywords: Manoel de Barros. Jacques Prevert. Poetry. Comparative literature. Bird.

1
Capes – doutorado pleno
2
Doutoranda em Letras, na área de Literatura Comparada. Programa de Pós-Graduação em
Literatura e Vida Social. Unesp/Assis. Pesquisa financiada pela Capes, com doutorado sanduíche na
Sorbonne Université (Capes PrInt). ORCID: http://000000027699676X.

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Eu descobri que o sol, o mar, as árvores e os arrebóis


são mais enriquecidos pelos pássaros do que pelos
homens.

(Manoel de Barros)

Introdução

Os pássaros são animais comumente representados na literatura. Trata-se


de um símbolo de leveza, liberdade e sabedoria para o imaginário ocidental. Em
determinadas culturas, eles representam a ligação entre as divindades celestes e a
terra. Na cultura islâmica, por exemplo, os pássaros são símbolo da imortalidade. Na
literatura francesa, “O albatroz”, de Charles Baudelaire (1821-1867), traz encarnada
a figura do poeta. Enquanto está na terra, o pássaro é desengonçado, incapaz de
atingir sua beleza diante dos homens comuns, mas é quando alça voo que o poeta-
albatroz se faz belo e grandioso. A composição é o espaço da ascensão em busca
de sua plenitude.
Partindo do recorte temático da palavra pássaro nas obras de Prévert e
Manoel de Barros, neste trabalho investigaremos neste trabalho sua presença na
poesia de dois nomes que parecem prezar bastante por suas figuras e
representações: o poeta francês Jacques Prévert (1900-1977) e o poeta brasileiro
Manoel de Barros (1916- 2014). Para Jacques Prévert, segundo Anna E. S. Creese
(Princeton University), a figura do pássaro, muitas vezes, representa a rebelião
contra uma autoridade opressora. Para Manoel de Barros, os pássaros compõem
sua paisagem poética, alimentam o azul de seus poemas e são, por vezes, muito
mais valiosos que as riquezas do mundo pragmático. Para a confecção deste
trabalho, teremos como ponto de partida os preceitos da comparação temática,
essencialmente, sobre os livros Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001) e
Paroles (1946). No primeiro livro, buscamos pelos poemas que mencionam
pássaros e outras aves maiores, de forma que pudemos encontrar o total de vinte e
três que fazem menção ou que trazem o animal como central para a organização
poética. Já no segundo livro, buscamos pelos poemas que mencionam o animal ou
alguma palavra de seu campo lexical no título: foram encontrados seis poemas,
embora saibamos que em pelo menos nove poemas, eles sejam protagonistas.

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Dessa forma, foram selecionados alguns poemas que serão comparados ao longo
deste artigo.

O retrato de um pássaro

Os primeiros poemas sobre os quais gostaríamos de nos debruçar são “De


passarinhos” e “Pour faire le portrait d’un oiseau” [Para pintar o retrato de um
pássaro]. Vejamos a seguir os dois poemas.

DE PASSARINHOS

Para compor um tratado sobre passarinhos


É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach. (BARROS, 2001)

POUR FAIRE LE PORTRAIT D’UN OISEAUX

Pour faire le portrait d’un oiseau


Peindre d’abord une cage
Avec une porte ouverte
Peindre ensuite
Quelque chose de joli
Quelque chose de simple
Quelque chose de beau
Quelque chose d’utile
Pour l’oiseau
Placer ensuite la toile contre un arbre
Dans un jardin
Dans un bois
Ou dans une forêt
Se cacher derrière l’arbre
Sans rien dire
Sans bouger…
Parfois l’oiseau arrive vite
Mais il peut aussi bien mettre de longues années

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Avant de se décider
Ne pas se décourager
Attendre
Attendre s’il le faut pendant des années
La vitesse ou la lenteur de l’arrivée de l’oiseau
N’ayant aucun rapport
Avec la réussite du tableau
Quand l’oiseau arrive
S’il arrive
Observer le plus profond silence
Attendre que l’oiseau entre dans la cage
Et quand il est entré
Fermer doucement la porte avec le pinceau
Puis
Effacer un à un tous les barreaux
En ayant soin de ne toucher aucune des plumes de l’oiseau
Faire ensuite le portrait de l’arbre
En choisissant la plus belle de ses branches
Pour l’oiseau
Peindre aussi le vert feuillage et la fraîcheur du vent
La poussière du soleil
Et le bruit des bêtes de l’herbe dans la chaleur de l’été
Et puis attendre que l’oiseau se décide à chanter
Si l’oiseau ne chante pas
C’est mauvais signe
Signe que le tableau est mauvais
Mais s’il chante c’est bon signe
Signe que vous pouvez signer
Alors vous arrachez tout doucement
Une des plumes de l’oiseau
Et vous écrivez votre nom dans un coin du tableau. (PRÉVERT,
1946, p. 184)

O primeiro verso do poema “De passarinhos” é bastante semelhante ao título


do poema de Prévert: “Para compor um tratado sobre passarinhos” (BARROS, 2001,
p. 401) e “Pour faire le portrait d’un oiseau” (PRÉVERT, 1946, p.184). A tradução de
Silviano Santiago traz “pintar” no lugar de “fazer”, provavelmente para evitar um
estranhamento por parte do leitor brasileiro. Não se sabe se o poeta Manoel de
Barros chegou a ter contato com a poesia de Jacques Prévert. Apesar de ser leitor
de diversos poetas franceses, ele não menciona Prévert entre seus preferidos, o que
faz com que não possamos realizar tal afirmação. No entanto, podemos dizer que

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quanto à temática, os poemas se tocam profundamente. O poema de Manoel de


Barros pretende empreender um tratado, gênero que empresta das ciências,
sobretudo as biológicas, e que transforma em gênero poético à medida que
aproxima a composição do poema à do tratado científico. Para sua proposta
estética, a poesia é a única maneira possível de propor um tratado sobre pássaros e
ele, então, torna-se poema. “De passarinhos” nos dá a ideia tanto de algo sobre
passarinhos, voltado aos passarinhos ou aquilo que lhes é próprio.
Neste poema, o eu-lírico deseja atrair passarinhos como uma preparação
para sua escrita: é preciso chamá-los para dentro do poema. Apresenta, então,
condições ideais para recebê-los: “É preciso que haja insetos para os passarinhos”
(verso 7); ou, ainda, por meio de lugares propícios a formação de ninhos: “É preciso
por primeiro que haja um rio com árvores e palmeiras nas margens.” (versos 2 e 3).
Aconselha sobre a importância de que haja goiabeiras, insetos de pau, libélulas e
metonimicamente, representa o céu a partir do “azul” (verso 10), elemento
indispensável para a criação de uma visão dos pássaros e que constrói a ideia de
imensidão na imagem: “O azul é muito importante na vida dos passarinhos” (verso
10).

Os conselhos sobre como escrever um tratado nada possuem de formal nem


de grandioso. Expressões que marcam a oralidade são empregadas diversas vezes,
como “por primeiro” (verso 2), “seria uma boa” (verso 9) e “que nem” (verso 13). Isso
acontece porque passarinhos jamais poderiam, segundo a visão poética desse eu-
lírico, ser assunto de um tratado formal, a menos que ele passasse pelo crivo da
poesia e fosse reconfigurado. A definição de “tratado”, segundo o Novo Dicionário
Aurélio, é a seguinte: “1. Contrato internacional referente a comércio, paz, etc. 2. V.
trato. 3. Estudo ou obra desenvolvida sobre uma ciência, arte, etc.” (FERREIRA, s/a,
p. 1402). Não abordamos aqui a concepção mais usual de tratado, mas esse
proposto pelo eu-lírico é uma sequência de imagens que deseja, por meio da arte,
eternizar os passarinhos, como são eternas as pinturas de Monet ou as
composições de Bach. O eterno parece ser um assunto sublime, mas eternizar
pássaros é uma inversão dessa grandeza. “Stat rosa pristina nomine, nomina nuda
tenemus” (Da rosa antiga, permanece apenas o nome, além do nomes nada temos)
dizia a frase final do romance O Nome da Rosa (1980), de Umberto Eco. A arte é

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perene e, portanto, um meio de eternizar o que quer que se deseje. Tratado é,


então, empregado de forma a ironizar o leitor que busca nele algum tipo de
informação. Por meio do humor, Manoel de Barros denuncia os excessos das
visçoes pragmáticas ao mesmo tempo em que revela a escassez da apreciação
artística. Além disso, em O livro das ignorãças (1993), já foi dito:

XV

Aos blocos semânticos dar equilíbrio. Onde o


abstrato entre, amarre com arame. Ao lado de um
primal deixe um termo erudito. Aplique na aridez
intumescências. Encoste um cago ao sublime.
E no solene um pênis sujo. (BARROS, 2010, p. 302)

A arte, aqui, propõe eternizar os ínfimos, sujar o absoluto do sublime,


inverter as grandezas em todos os âmbitos, inclusive no âmbito da palavra.
Outro ponto que pode ser tocado é sobre o objeto “passarinho”. A poética
proposta por meio de uma ironia ao gênero “tratado” está preocupada se haverá
brejos, e sobretudo “iguarias de brejos”: um par antitético bastante eficiente quando
nos propomos a associá-lo à própria feitura imagética da poesia. Para essa poética,
a matéria de poesia é tudo aquilo que não serve ao pragmatismo, que é oposto ao
valor comercial. “Iguarias” retoma algo de único, de saboroso e exótico, já “brejos”,
toda a lama, sua consistência contrária ao sabor e o seu valor pejorativo dentro do
mundo asfaltado em que vivemos. Muito embora, num segundo plano, também
possa ser associada à lama primordial, ao barro de onde viemos e para onde
retornaremos. Essa associação reconfigura a imagem do brejo como potencial de
poesia, bem como todo o poema reconfigura aquilo que deseja eternizar: além dos
passarinhos, o próprio fazer poético. O lugar do sublime nesse poema está
justamente em seu avesso. O poeta procura ressaltar a grandeza contida nos
elementos naturais e que não podem ser contabilizados pois sua riqueza é outra.
Em texto escrito para a revista Cult em dezembro de 2016, mês em que se
comemorou os cem anos do nascimento do poeta Manoel de Barros, o poeta
Douglas Diegues3 disse :

3
Douglas Diegues é um poeta carioca, autor de Dá gusto andar desnudo por estas selvas (2003),
cuja poesia flerta com as vanguardas do início do século XX. É conhecido por escrever em “portunhol
selvagem”, mistura de três línguas que adotou em sua poética. A matéria aqui citada é toda redigida

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O ilogismo que dá vida aos versos também sofre influências do tekó


eté, do modo de ser, da imaginação delirante das crianças. “A
inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram
mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece.
Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem
das percepções infantis.” Entender nunca havia sido tão parede na
literatura brasileira. Solamente sei que o néctar de la linguagem
própria de Manoel de Barros melhora o mundo y nunca me deixa
sozinho em meio a la mielda toda y nos dá la alegria selvagem
necessária ao pensamento kontra todos los fluxos que nos querem
tristes, débiles, sérios, tolos y cagones” (DIEGUES, 2016, p. 57)4.

Numa linha de contraponto à herança hermética da poesia francesa, Manoel


de Barros, como diz Diegues, segue uma vertente muito mais democrática de
poesia. Trata-se de um fazer poético que envolve a imitação da fala, misturada a
outros recursos, mas sobretudo baseada na linguagem infantil da experimentação.
Por esse motivo, a poesia de Manoel de Barros se faz acessível: remonta ao
experimento da linguagem, não à moda de Mallarmé, mas à um berço comum da
língua brasileirs, algo de simples e natural durante o aprendizado, e que, sendo
broto da linguagem, promove uma reflexão sobre a própria poesia, e mais a fundo,
uma outra sobre a recriação de uma língua que deixa de lado as pompas da
metrópole, como quem clama uma identidade só nossa.
Algo de parcialmente semelhante se passa na composição do poema de
Prévert, que, em vez de um tratado, busca ensinar como pintar o retrato de um
pássaro. Bem como no poema de Manoel de Barros, o eu-lírico aponta para certas
condições ideais para a pintura. O primeiro passo seria “Primeiro pintar uma gaiola/
com a porta aberta/ pintar depois /algo de lindo/ algo/ de simples/ algo de belo/ algo
de útil/ para o pássaro.” (versos 1- 9) A gaiola é a nossa referência quando
pensamos na captura de um animal ou de um ser humano. Traz à tona a ideia de
privação de liberdade, de tristeza e a lembrança de como podemos ser terríveis
quando encarceramos, segundo uma lógica punitivista, ou frágeis quando somos
encarcerados, submetidos a condições limites de sobrevivência. Sendo símbolo da

nesta nova língua. Sua poética se identifica com a de Manoel de Barros, na medida em que retoma
os restos, a fragmentação moderna como mote da poesia. Algumas destas informações foram
obtidas em: https://oglobo.globo.com/cultura/livros/critica-portunhol-de-vanguarda-do-carioca-douglas-
diegues-18365752. Acesso em: 16/08/2019 às 10h48.
4
DIEGUES, Douglas. Viagem a las fontes selvagens de Manoel de Barros. Revista Cult, N. 219, ano
19, dezembro 2016, p.52-57

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liberdade, o pássaro faz dessa tarefa algo de impossível para o artista, seja ele
pintor ou poeta. A beleza não poderá ser capturada, mas somente admirada pelo
humano, porque é o puro presente. Este valor também dialoga com a proposta
poética de Manoel de Barros: a poesia é antes resistência que produto, e, portanto,
não será enjaulada, não terá um preço a ser pago. A beleza em jogo jamais poderá
ser transformada em propriedade privada. Apesar de fazer uso da imagem da
pintura, o eu-lírico pinta com palavras, e portanto, ambos os poemas não têm suas
propostas distanciadas neste aspecto.
O segundo passo apresentado para a feitura do retrato é: “depois/
dependurar a tela numa árvore/ num jardim/ num bosque/ esconder-se atrás da
árvore/ sem nada dizer/ sem se mexer…//às vezes o pássaro chega logo/ mas pode
ser também que leve muitos anos/ para se decidir” (versos 9-17). Como um caçador
silencioso o artista deverá esperar, e o eu-lírico alerta que tal procedimento poderá
demorar anos. Se o pássaro chegar, não há garantias de que ele cantará, mas o
artista deverá apagar uma a uma as grades das gaiolas, sem tocar no pássaro. Feito
isso, poderá arrancar uma de suas penas para a assinatura do quadro. Bem como
no poema visto anteriormente, o eu-lírico oferece uma série de ensinamentos sobre
a pintura de um pássaro, mas sob um viés totalmente poético. Isto porque não seria
possível, também segundo sua visão, pintar um pássaro de outra forma. O retrato, a
pintura é o flagrante de um instante que se eterniza e, por vezes, congela um
movimento no decorrer de sua ação. O pássaro, na pintura de palavras, não está
imóvel: a liberdade é sua condição.
Apesar de tratar de um assunto metapoético, o poeta o faz segundo
perspectivas que podem ser aproximadas às de Manoel de Barros: quando traz uma
linguagem acessível para o jogo poético, quando não impõe práticas rebuscadas,
nem tampouco assuntos sublimes, mas antes uma inversão de valores que busca
ressaltar o que de mais simples possa haver na apreensão e na produção do que é
belo, sem deixar de lado o requinte próprio da linguagem poética.
Além disso, a presença do pássaro se dá em ambos os poemas como o
ideal, a perfeição do objeto contemplado. Aqui não se trata de uma ave exótica, mas
de “passarinho” ou “oiseau” pura e simplesmente. Os poemas trazem na tentativa de
representação de um bom pássaro “e depois esperar que o pássaro queira cantar/

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se não cantar/ mau sinal/ sinal de que o quadro é ruim/ mas se cantar bom sinal/
sinal de que pode assiná-lo.” (versos 39-44) o constante duelo entre o sucesso e o
fracasso em que se encontra o poeta moderno. Consciente de sua insuficiência
diante da beleza, não almeja mais alcançar o inalcançável, mas encontra a plenitude
na tentativa do poema.
No entanto, a presença do pássaro nem sempre traz ao poema uma
atmosfera de leveza e liberdade, por vezes é portador da tristeza inesperada, como
no poema “Les oiseaux du souci”, de Jacques Prévert. Observemos a seguir:

LES OISEAUX DU SOUCI


Pluie de plumes plumes de pluie
Celle qui vous aimait n’est plus
Que me voulez-vous oiseaux
Plumes de pluie pluie de plumes
Depuis que tu n’es plus je ne sais plus
Je ne sais plus où j’en suis
Pluie de plumes plumes de pluie
Je ne sais plus que faire
Suaire de pluie pluie de suie
Est-ce possible que jamais plus
Plumes de suie... Allez ouste dehors hirondelles
Quittez vos nids... Hein ? Quoi? Ce n’est pas la saison
des voyages ?...
Je m’en moque sortez de cette chambre hirondelles du
matin
Hirondelles du soir partez... Où? Hein? Alors restez
c’est moi qui m’en irai...
Plumes de suie suie de plumes je m’en irai nulle part
et puis un peu partout
Restez ici oiseaux du désespoir
Restez ici... faites comme chez vous.

(PRÉVERT, 1949, p.179-180)

O poema “ Les oiseaux du souci” evoca a figura da andorinha, que durante o


inverno migra para outras regiões, retornando somente depois da estação fria. O
pássaro é apresentado no poema como um símbolo da falta daquela que amava os
pássaros e que se foi, como eles também costumam ir: “celle qui vous aimait n’est
plus” (verso 2). No entanto, os pássaros ficam e sua presença incomoda o eu-lírico,

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uma vez que o fazem lembrar de outro tempo, em que a amada estivera presente.
Além disso, a cor de suas penas compõem a atmosfera escura do quarto, o cobrindo
de chuva e de fuligem : “Plumes de pluie pluie de plumes” (verso 1) [penugem de
chuva chuva de penugem], que se torna “Plumes de suie suie de plumes” (verso 18)
[penugem de fuligem fuligem de penugem]. Ao final do poema, já cansado de
mandá-los embora e de ameaçar deixar seu próprio quarto, o eu-lírico escolhe pedir
para que fiquem os “pássaros do desespero”, e que sintam-se confortáveis como se
estivessem em sua própria casa.
O poema 39 da segunda metade do Tratado geral das grandezas do ínfimo,
chamada “O livro de Bernardo”, de Manoel de Barros traz também para o texto os
elementos chuva e andorinha:
39

Andorinhas passeiam
na chuva
e no meu ocaso.
(BARROS, 2010, p. 419)

Embora bem mais curto, o poema do eu-lírico Bernardo da Mata traz os


mesmos elementos evocados pelo poema de Jacques Prévert. No entanto, quando
pensamos em Bernardo da Mata, temos um eu-lírico essencialmente camponês,
cuja relação com os animais, plantas e outros elementos da natureza é de
igualdade. Bernardo está incorporado na paisagem poética à qual pertence. Por este
motivo, podemos dizer que embora tragam os mesmos elementos para o centro do
poema, o poema de Manoel de Barros não apresenta a mesma atmosfera de perda
e de certa melancolia, em que os pássaros representam o “desespero” (verso 20),
mas cria-se uma imagem em que as andorinhas são elementos centrais de uma
pintura interior: o céu alaranjado pelo entardecer de si mesmo, os pássaros
sobrevoando e a água da chuva. Não se estabelece, neste poema, juízo de valor em
relação aos pássaros que voam sob a chuva, mas cria-se apenas a anotação
constatando uma imagem poética no caderno de Bernardo.
Outros dois poemas que entrarão para esta breve análise serão “Au hasard
des oiseaux”, de Prévert e “A disfunção”, de Barros. Vejamos os poemas a seguir:

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AU HASARD DES OISEAUX

J’ai appris très tard à aimer les oiseaux


je le regrette un peu
mais maintenant tout est arrangé
on s’est compris
ils ne s’occupent pas de moi
je ne m’occupe pas d’eux
je les regarde
je les laisse faire
tous les oiseaux font de leur mieux
ils donnent l’exemple
pas l’exemple comme par exemple Monsieur Glacis
qui s’est remarcablement courageusement conduit
pendant la guerre ou l’exemple du petit Paul qui était
si pauvre et si beau et tellement honnête avec ça et qui
est devenu plus tard le grand Paul si riche si vieux si
honorable et si affreux et si avare et si charitable et si
pieux
ou par exemple cette vieille servante qui eut une vie et
une mort exemplaires jamais de discussions pas ça
l’ongle claquant sur la dent pas ça de discussion avec
monsieur ou avec madame au sujet de cette affreuse
question des salaires
non
les oiseaux donnent l’exemple
l’exemple comme il faut
exemple des oiseaux
exemple des oiseaux
exemple les plumes les ailes le vol des oiseaux
exemple le nid les voyages et les chants des oiseaux
exemple la beauté des oiseaux
exemple le coeur des oiseaux
la lumière des oiseaux.

(PRÉVERT, 1949, p. 209-210)

A DISFUNÇÃO

Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de


a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1 – Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 – Percepção de contiguidades anômalas entre

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verbos e substantivos.
4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
(BARROS,2010, p. 400)

O primeiro poema apresentado, “Au hasard des oiseaux”, de Jacques


Prévert traz, primeiramente, um eu-lírico que conta a lição que aprendeu com os
pássaros. Do primeiro verso ao décimo, ele conta como demorou para aprender a
gostar dos pássaros. Diz que só foi possível aprendê-lo quando deixou de tentar
encarregar-se deles e passou a observá-los. Nesse momento, o eu-lírico põe em
andamento o exercício da contemplação: próprio da natureza dos poetas. O poeta,
para ele e para sua poética, encarna a figura do observador atento, que, ao tentar
traspôr a realidade segundo sua perspectiva, aciona os princípios poéticos de seu
próprio entorno. Para o poeta moderno, a poesia consiste na revisitação de um
mesmo lugar: a paisagem cotidiana.
Observar os pássaros, para o eu-lírico, ensina valores. Segundo ele, “todos
os pássaros dão o seu melhor/ eles dão o exemplo” (verso 9 e 10), mas não o
exemplo socialmente esperado, o dos homens de bem. Para ressaltar as diferenças
entre os comportamentos exemplares dos pássaros e do homem de bem, o eu-lírico
faz uso de repetidos advérbios: “remarcablement , courageusement conduit”
[notavelmente, corajosamente conduzido] e “si pauvre et si beau et tellement
honnête” [tão pobre e tão belo e tão honesto] (versos 12 e 14). Para o eu-lírico-
poeta, dentro do poema mais valem os exemplos deixados pelos pássaros que os
modelos sociais de beleza, suposta honestidade e coragem.
Algo de semelhante se pode dizer sobre o poema “A disfunção”, de Manoel
de Barros. O eu-lírico inicia o poema discordando de uma afirmação da sabedoria
popular: “Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de/ a menos” (versos 1 e
2). Para ele, o mais justo seria a ideia de um parafuso trocado, no lugar de faltando.
Isto porque exerce o papel de inversão da ordem vigente e, portanto, é considerado
portador de uma “disfunção”. Não se trata de uma disfunção biológica, como evoca à

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primeira vista, mas é antes uma oposição à função, bem como o é o exemplo dado
pelos pássaros em relação ao exemplo de Monsieur Glacis. Embora traga uma
abordagem metapoética ainda mais explícita, listando 7 sintomas da “doença” dos
poetas, ambos chegam a lugares próximos fazendo uso da imagem dos
passarinhos: “les oiseaux donnent l’exemple/ l’exemple comme il faut/ l’exemple des
oiseaux”. (versos 24, 25 e 26), no poema de Prévert e “Essas disfunções líricas
acabam por dar mais/ importância aos passarinhos que aos senadores” (versos 19 e
20). No poema de Prévert, o cidadão exemplar está concentrado nas figuras do
Senhor Glacis e da velha dona de uma vida e uma morte exemplares, já no poema
de Manoel de Barros, o exemplo social ao qual não se dá importância é o dos
senadores, figuras políticas cuja função é a de debater projetos de lei, emendas
constitucionais, etc. Trata-se de um papel de grande importância social, mas assim
como a figura do Senhor Glacis no primeiro poema analisado, é insignificante para a
ordem poética. Dado o histórico político brasileiro, pode-se dizer também que os
senadores são evocados de forma irônica pelo eu-lírico.

Liberté, Modernité & Simplicité

Alfonso Berardinelli, em seu texto “As muitas vozes da poesia moderna”


(1983) critica a reflexão proposta em Estrutura da lírica moderna (1956), de Hugo
Friedrich, em que o autor traça um panorama de parte da produção literária da
modernidade. Tal estudo, para Berardinelli, deixou de fora alguns autores muito
importantes para a concepção dessa visão de poesia moderna. Para ele, Friedrich
contribuiu para naturalizar entre os leitores um tipo de literatura representante de
certa tendência hermética de poesia. Sistematizando esse fazer poético como
molde, ele ajuda a estipular um estilo para a atividade poética moderna calcada
fundamentalmente numa “tradição de ruptura”, que também foi bastante abordada
por outros estudiosos das tendências modernas.
Sendo assim, acredita-se que Manoel de Barros possa ser inserido num
quadro que constitui a poesia moderna e que localiza-se dentro de uma tradição
moderna. No entanto, traz em sua poética uma proposta mais acessível de
linguagem, embora a ruptura também seja um dos eixos norteadores de sua poética.
Trata-se daquela que tenta reestabelecer o elo entre o humano e a natureza por

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meio não do elemento sublime da linguagem, ou da poesia pela poesia, mas do


olhar reencantado que recai sobre o corriqueiro, e mais do que isso, sobre a língua
imposta pela colonização. Manoel de Barros fala aos seus. O mesmo movimento de
reinterpretação do cotidiano em prol de um sublime corriqueiro pode ser constatado
nos poemas de Jacques Prévert. Apesar de o poeta estar inserido em uma outra
paisagem, parece lançar um olhar poético sobre um cotidiano mais urbano, mas que
contempla a simplicidade contida no banal dos dias: o poeta passeia e espreita os
pássaros, as árvores, as moças, as crianças. No mais, ambas as poesias se tocam
ao revelar sua receita de concepção: para Manoel, a poesia é feita de nadas, de
coisas sem importância que, ao serem redimensionadas pelo poeta, ganham nova
forma. Para Prévert, a poesia também é contemplação, observação e transformação
da paisagem pela qual passa.
Essa poesia mais supostamente acessível, de temática, por vezes singela,
faz parte, conforme já dito por Berardinelli, de uma outra vertente de poesia
moderna, oposta à uma veia mais centrada em si mesma. Ainda que não se trate de
poesias enigmáticas à moda francesa, ambas carregam o signo da metalinguagem
espalhado por toda sua extensão, seja ao desnudar os processos do poema, seja ao
tentar traçar com liberdade o perfil do poeta, ou ainda na criação de passagens em
que o humor prevalece. Dessa forma, conclui-se que os poetas Manoel de Barros e
Jacques Prévert, mesmo distantes tanto cronologica quanto espacialmente, podem
ser aproximados quanto às temáticas de reinvenção do cotidiano, seja ele urbano ou
camponês. Além disso compartilham da simbologia do pássaro para dar vida às
temáticas metapoéticas, pois parecem enxergar no voo da ave aquilo que desejam
para suas palavras ou para sua língua.

Referências

BARROS, M. Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.


BERARDINELLI, A. As muitas vozes da poesia moderna. In:______. Da poesia à
prosa. São Paulo: Cosac Naify, 1983, p. 16-40.
CREESE, A. E. S. L’oiseau dans les Paroles de Jacques Prévert : Symbolisme
et structure . Chimeres – A journal of French and Italian Literature. Princeton
University. Volume XIX. Número 2. s/a, p. 61-80. Disponível em:
https://journals.ku.edu/chimeres/article/view/6438 acesso em 06/9/19 às 19h32.

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DIEGUES, D. Viagem a las fontes selvagens de Manoel de Barros. Revista Cult,


N. 219, ano 19, dezembro 2016, p. 52-57.
PRÉVERT, J. Paroles. Paris: nrf - Gallimard, 1961.

Recebido em 31 de março de 2022


Aprovado em 07 de junho de 2022

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