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Diogo dos Santos Silva

REX QUONDAM, REXQUE FUTURUS:


Sobre a essência divina dos heróis

Dissertação de mestrado apresentada ao Progama


de Pós-Graduação em Ciência da Literatura:
Literatura Comparada, Faculdade de Letras,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos nessessários à obtenção do
título de Mestre em ciência da Literatura:
Literatura Comparada.

Orientador: Professor Doutor Antonio Jardim

Rio de Janeiro
2007
Silva, Diogo dos Santos

Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a essência divina dos


heróis
150 f.
Orientador: Antonio Jardim
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/ Faculdade de Letras/
Programa de Pós Graduação em Ciência da Literatura,2007.
Referências bibliográficas: f.118
1. Mitologia 2 Mitos Galeses 3. Mito Arthuriano 4. Rei
Arthur 5. Merlin 6. Morgana I. Jardim, Antonio II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura, III. Título.

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RESUMO

SILVA, Diogo dos Santos Silva. Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a Essência Divina
dos Heróis. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.

A partir dos estudos das fontes medievais do mito arthuriano, este trabalho pretende

fazer um resgate da vigência mitológica primeira de personagens da Matéria da Bretanha.

Palavras-chave: Mitologia - Mitos Galeses - Rei Arthur - Merlin - Morgana

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ABSTRACT

SILVA, Diogo dos Santos Silva. Rex Quondam, Rexque Futurus: Sobre a Essência Divina
dos Heróis. Dissertação de Mestrado em Literatura Comparada pela UFRJ, Rio de Janeiro,
2007. 150 fls.

This work intends to make a mythological investigation of the arthurians personae.

Key-words: Mythology – Welsh myths – King Arthur – Merlin - Morgana

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SUMÁRIO

Introdução: De que forma poderemos encarar as antigas narrativas míticas?...........4


I Parte: A questão da abertura..........................................................................4
II Parte: Silêncio e memória............................................................................9
III Parte: Sociedade, memória e conhecimento mítico-poético......................15

Memória e silêncio em Le Morte D’Arthur..............................................................22


I Parte: Autoria................................................................................................22
II parte: Fontes e memória celta......................................................................27

Sobre a constituição da essência divina dos heróis..................................................40


As Forças Telúricas.........................................................................................46
Kai...................................................................................................................53
Ivan, l’Avultre.................................................................................................57
Perceval, le Galois..........................................................................................59
Fata Morgana, Rainha de Ávalon...................................................................69
Pelles, Rei de Annwn.....................................................................................79
Merlin, l’Enchanteur.......................................................................................82

O Destino de Arthur.................................................................................................92

Considerações Finais: O Tempo Devorador de Mundos........................................111

Apêndice I: Y Gymraeg..........................................................................................114

Apêndice II: Cronologia das principais fontes........................................................116

Bibliografia.............................................................................................................119

Anexos: Textos originais........................................................................................127


Le Mort d’Arthur Book VI chapter I............................................................127
Preiddeu Annwn...........................................................................................129
Le Lai de Tyolet...........................................................................................131
Ymddiddan Myrtin a Talyessin……………………………………………147
Marwnat Vthyr Pen………………………………………………………..149

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INTRODUÇÃO:

DE QUE FORMA PODEREMOS ENCARAR AS ANTIGAS

NARRATIVAS MÍTICAS?

I’ che gioir di tal vista non siglio


per lo secol noioso in chi’i’ mi trovo,
voto d’ogni valor, pien d’ogni orgoglio
(Petrarca)

I Parte: A questão da abertura

Tomaremos como partida para nossa reflexão os seguintes versos do poeta norte-

americano Longfellow:

I heard a voice, that cried,


“Balder the Beautiful
Is dead, is dead!”

Estes versos passariam indiferentes, se não fosse apenas por um nome: Balder. Vejamos

também o poema de Décio Pignatari:

Ave sem asas


Se vou dá-las
Voa.

Neste caso o nome que retém a atenção neste segundo poema é o nome “ave”.

Retomemos a Longfellow; ao ouvirmos o nome de Balder toda uma memória prévia nos é

ativada, sobre quem seria este personagem, e a qual história se refere o poema. O poema

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assim se abre, não em pensamento (em seu sentido filosófico), mas em memória, em

sentimento e em afetividade; apenas desta forma sentimos a dor na voz que grita e na

repetição da constatação: “is dead, is dead”. Se conhecemos Balder, se sabemos de sua

história, da traição de Loki pela qual foi morto, do Ragnarök que advirá deste evento, e se

nutrirmos qualquer tipo de afetividade pela Matéria da Islândia, este poema não será apenas

um amontoado de palavras e integrará e fornecerá sentido e possivelmente consolidará

memória.

Vejamos o caso da poesia de Décio Pignatari. Como dissemos anteriormente, o nome

que é clamado nestes versos é o nome “ave”. Os versos de Pignatari, ao contrário dos de

Longfellow, lidam com o genérico, não é dado um nome próprio, muito menos um nome

que articule um logós mítico. Vejamos então o seguinte poema do poeta inglês do séc XIX,

Tennyson:

Below the thunders os the upper deep,


Far, far beneath in the abysmal sea,
His ancient, dreamless, uninvaded sleep,
The Kraken sleepth: faintest sunlights flee
About his shadowy sides: above him swell
Huge sponges of millenial growth and height;
And far away into the sickly light,
From many a wondrous grot and secret cell
Unnumbered and enormous polypi
Winnow with giant fins the slumbering green.
There hath he lain for ages and will lie
Battening upon huge seaworms in his sleep,
Until the latter fire shall heat the deep;
Then once by man and angels to be seen,
In roaring he shall rise and on the surface die.

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Não seria uma difícil dedução inferir que o nome desde poema é: “The Kraken” .
Omitimos o nome do poema de Décio Pignatari, não por descuido, mas para destacar de
que forma a generalidade e o pensamento abstrato intervirão na criação poética. O poema
se chama “Liberdade”, ao acrescentar este nome, o poema se fecha e verificamos que os
três versos são apenas uma conceitualização de um verbete. Desta forma, verificar-se-á que
a ave do poema não poderá ser o rouxinol que canta em Keats, muito menos o que canta
nas Mil e Uma Noites, não será ela também um dos sábios corvos de Ódin, o corvo de Poe,
nem ao menos uma das metamorfoses de Júpiter. Esta ave é uma ave genérica ou qualquer
ave, ou melhor, nenhuma ave, já que o gênero nunca nomeia o um, o próprio. Assim como
ocorre na seguinte poesia de Pessoa, publicada sobre o heterônimo de Alberto Caeiro:

XLIII - Antes o Vôo da Ave

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,


Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.
A ave passa e esquece, e assim deve ser.
O animal, onde já não está e por isso de nada serve,
Mostra que já esteve, o que não serve para nada.
A recordação é uma traição à Natureza,
Porque a Natureza de ontem não é Natureza.
O que foi não é nada, e lembrar é não ver.
Passa, ave, passa, e ensina-me a passar!

Tanto a ave de Pignatari quanto a de Pessoa não são uma ave mito, mas uma ave
símbolo. Poderíamos, em um exercício lúdico, trocarmos a palavra “ave” do poema por
“Fênix” ou talvez por “Rouxinol”, e assim toda a carga do pensamento se perderia e uma
nova instância mítica se inauguraria no possível poema. A poesia de Pessoa faz até uma
elegia à não-memória: “Porque a Natureza de ontem não é a natureza”, nota-se assim
facilmente as duas instâncias claramente distintas do proceder poético a que nos referimos
neste trabalho.

Como foi dito anteriormente, o poema “Liberdade” fecha-se no conceito de si próprio,

desta forma não poderá como no poema de Longfellow articular memória, sentimento de

afetividade e conhecimento mítico. Voltemos, portanto, aos três últimos versos de “ The

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Kraken”, que são os seguintes: “Until the latter fire shall heat the deep;/ Then once by man

and angels to be seen, / In roaring he shall rise and on the surface die.” . Até o momento

final do poema é descrito o sono e o mar onde dorme a criatura, até que com o “fogo

latente” a criatura acordará para vir a superfície e finalmente morrer aos olhos dos anjos e

dos homens. Para se perceber a “abertura” neste poema assim como o percebemos em

Longfellow, novamente recorreremos ao nome próprio: Kraken. Qualquer um que tenha

assistido ao filme “Fúria de Titãs” e ao reconhecer o nome Kraken, perceberá de que se fala

nesta “morte na superfície”. É claro que Tennyson não assistiu a este filme, nem a nenhum

outro, sua fonte estaria nas Metamorfoses, de Ovídio. Este é um livro de contos em versos,

contos estes cujas narrativas se entrelaçam e se confundem; em um destes contos narra-se a

história do monstro marinho Ceto, derrotado por Perseu para salvar a vida da princesa

Andrômeda que fôra acorrentada para servir de sacrifício à ira de Poseidon. Ao leitor de

Ovídio, se fará notar a diferença do nome do monstro de Ceto para Kraken, que na época de

Tennyson era o nome dado a uma misteriosa criatura gigante que habitava as zonas

abissais dos mares, que sem razões aparentes emergia à superfície e destruía as frágeis

embarcações do séc XVIII. O Kraken de Tennyson pode ser tanto monstro de Julio Verne,

quanto a criatura do poema de Ovídio. Pois que seria Ceto, senão um Kraken.

Percebemos nos três poemas em que foi dito que há abertura (Longfellow, Tennyson e

Ovídio), que apesar do movimento de articulação mítica e “memorial”, não existe espaço

para articulação de questionamento, posicionamento ou pensamento filosófico. O

movimento que há nestes poemas não permite o fechamento que existe como, por exemplo,

no poema “Liberdade” pois o pensamento que é solicitado neste poema só é possível

quando há inércia. Como podemos verificar em Havelock:

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... só quando a linguagem está escrita é que se torna possível
pensar acerca dela. O meio acústico, não sendo capaz de
visualização, não alcançou reconhecimento como um fenómeno
totalmente separável da pessoa que o usava. Mas no documento
alfabetizado o meio torna-se objectificado. Aí era reproduzida
perfeitamente no alfabeto, não uma imagem parcial, mas uma
totalidade, já não apenas uma função de “mim”,o falante, mas um
documento com existência independente. ( A Musa aprende a
escrever, p. 132)

Em suas teorias sobra a oralidade e a literacia na Grécia antiga, Havelock nos coloca a

questão de que com o advento do alfabeto fonético e sua aceitação por diferentes camadas

desta sociedade permitiu-se que a poesia absorvesse para si características que até então

eram próprias à filosofia.

Na época em que era a vez de Platão partir, em meados do


século IV, a musa grega tinha abandonado todo o mundo do
discurso oral e do “conhecimento” oral. Tinha aprendido
verdadeiramente a escrever, a escrever em prosa filosófica.(A Musa
aprende a escrever, p. 136)

Sabemos que esta crise que surgiu especificamente na Grécia antiga entre a cultura oral

e cultura letrada, não foi apenas uma crise estritamente própria àqueles séculos da cultura

clássica. Algo semelhante persistiu na Idade Média européia e em todas as demais eras de

literatura escrita, já que boa parte do cânone literário ocidental tem origem na literatura oral

ou de fundamento oral.

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II Parte: Silêncio e memória

A primeira particularidade que salta aos sentidos de um leitor moderno das Sagas

Germânicas é o silêncio. No decorrer de toda narrativa o leitor curioso não encontrará

quaisquer referências ou representações diretas de pensamentos ou sentimentos dos

personagens. Como nos explica Borges em seu Curso de literatura inglesa:

...como (a saga) tinha uma origem oral, era proibido o narrador


entrar na consciência dos heróis. Ele não podia contar o que um
herói sonhou; não podia dizer que uma pessoa odiava ou amava -
isso era se intrometer na mente dos personagens. Só podia contar o
que os personagens faziam e obravam. (p.364)

Este interdito ao narrador nada mais é que o mesmo silêncio que faz manifestar uma

abertura, assim como no poema de Tennyson, abertura esta que permite o que nas palavras

de Tolkien denomina-se “aplicabilidade”:

Gosto muito mais de histórias, verdadeiras ou inventadas, com sua


aplicabilidade variada ao pensamento e à experiência dos leitores. Acho
que muitos confundem “aplicabilidade” com “alegoria”; mas a primeira
reside na liberdade do leitor, e a segunda na dominação proposital do
autor.

Tolkien, neste trecho que faz parte do prefácio de sua obra mais famosa O Senhor dos

Anéis, quando fala em “alegoria” e em “dominação proposital do autor”, refere-se a este

fechamento, causado principalmente pelo uso dos genéricos e abstratos e, principalmente,

pelo aprisionamento da arte pela filosofia como nos alerta Havelock.

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Um caso interessante é o que ocorre na obra crucial do Ciclo Arthuriano que é Le Morte

D`Arthur, de Thomas Malory. Esta obra é uma espécie de compilação tardia da Matéria da

Bretanha concernente aos episódios envolvendo Rei Arthur e seus cavaleiros publicada em

1485 por William Caxton. Durante diversos momentos da obra, o autor diz ser um mero

tradutor, outras um recontador do conjunto de obras francesas hoje conhecidas como a

Vulgata Arthuriana, escritas no princípio do séc XIII . Estas afirmações por parte do autor

levaram diversos críticos a realmente acreditarem que a obra de Malory não passava de

uma mera tradução para o Inglês dos textos franceses, no entanto, nota-se que em Malory,

há, na verdade, uma recriação do mito, com a inserção de novas histórias como a de Balin

e Balan, a exclusão de outras como a de Lancelot, e a total recriação como a de Tristão.

Esta obra é comumente denominada de “a bíblia” sobre o ciclo Arthuriano, pois

atravessa em um único volume, de uma forma consistente e homogênea, todo o percurso

histórico do reinado arthuriano, desde os dias de seu pai Uther Pendragon até seus últimos

momentos quando é ferido mortalmente por seu filho Mordred e levado pelas damas do

Lago em um barco para a ilha de Ávalon. Esta obra é de tal importância para a literatura

dos anos que se transcorreram não apenas por ser um grande compendio de relatos bretões,

como também ter influenciado de maneira decisiva diversos autores, poetas e prosadores.

Tennyson rimou seus Idílios do Rei a partir da obra de Malory, também podemos citar a

obra de Howard Pyle, T. H. White, Morris, além das pinturas e gravuras de Burne-Jones,

Rosseti, Beardsley, Doré e o filme Excalibur, de John Boorman.

É curioso o fato desta que seria a principal obra medieval, no sentido da força e

vivacidade em que ecoou pelos séculos, seja uma obra repleta de “buracos”. Sua narrativa

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apesar de se parecer extremamente linear, fácil e agradável como um conto de fadas, torna-

se, no percorrer das páginas, um emaranhado de contos que se sobrepõem confundindo-se

eles entre si até formar uma rede, um tecido, tal qual como quase todas as narrativas épicas

antigas que são antes de tudo uma narrativa de contos; ao contrário da narrativa tipicamente

moderna, o romance, que se articula em episódios. Estes contos que constituem o livro de

Malory, que aparentemente contariam todos os fatos que envolvem os personagens ligados

ao ciclo arthuriano, não dão conta de todos os eventos e histórias da Matéria Arthuriana.

Diversos episódios que exercem papéis fundamentais para o fluxo dos acontecimentos e

dos eventos são totalmente ignorados. Os eventos contados do Lancelot du Lac são

ignorados, os contos envolvendo Sir Gawaine, são eliminados da narrativa, o sobrinho do

Rei e outrora maior cavaleiro da Távola Redonda torna-se apenas um coadjuvante. O mito

de Tristão é completamente reestruturado, toda a matéria que compreende os Lais de Maria

de França e que serviram de base para o romance de Bédier e para a ópera de Wagner é

relevada, o tema do amor perene e constante também é abandonado, surgindo desta forma

um conto misterioso e instigante que constitui a maior parte do livro e é conhecido como o

Tristão, de Malory. Note que este que seria o personagem mais importante de Le Morte

D’Arthur, a partir de certo ponto na narrativa deixa de ser mencionado por completo, sendo

que o evento de sua morte ou da de Isolda não é narrado, nem ao menos comentado por

nenhum personagem!

Perguntamo-nos, portanto, como pode estar obra ter alguma importância, já que sua

narrativa seria falha ou inconstante. Sabemos que não seria por preguiça que o autor ignora

certas passagens importantes do mito arthuriano, fato este comprovado pelas diversas

inserções de contos dispensáveis ao fluxo da narrativa (como é o caso do Livro II). De que

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maneira então se comporta este silêncio, marca esta presente e intrínseca ao livro de

Malory?

Vejamos então o caso da poesia Völuspá (a profecia da vidente), obra esta presente no

conjunto conhecido modernamente como Edda Poética, preservada no manuscrito irlandês

do séc XII Codex Regius. O Völuspá seria uma espécie de teogonia da antiga cultura

norueguesa. Ódin, em sua eterna busca por conhecimento, vai ao encontro de uma profetiza

cega que disserta ao pai dos deuses sobre o passado, a criação dos nove mundos e dos seres

que neles habitam, faz revelações sobre a batalha que culminará no fim dos deuses e do

antigo mundo, o Ragnarök, para por fim ter uma breve visão sobre o nascer do novo

mundo. .

A um curioso que pretenda através da Edda Poética, ou no Völuspá, encontrar um

compêndio sobre o qual se possa dissertar abertamente sobre a mitologia nórdica, sobre

seus deuses e suas entidades, não haverá respostas muito exatas, pois mais uma vez a

técnica que pontuará este poema será o silêncio. Segundo a teoria de Henry Adams

Bellows, estas lacunas se devem ao fato de os espectadores que presenciariam a execução

oral desta obra terem total conhecimento acerca do tema narrado, sendo assim, não haveria

a necessidade do didatismo (como ocorre na obra de Wagner, O Anel dos Nibelungos), os

vazios do texto transformam-se, portanto, em abertura, o silêncio, em vigência de memória,

e o texto ao em vez de didatismo ( “dominação proposital do autor”, como diz Tolkien),

manifestará deleite poético.

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Percebemos a força que este silêncio poderá produzir principalmente pelas últimas

estrofes do poema, em que há a visão de um novo mundo após o Ragnarök, visão muito

mais carregada de mistério que as anteriores, quando se vê o dragão Nithhogg, que

devorava em Niflheimr as raízes da Yggdrasill, a árvore que sustinha o mundo, sobrevoar a

terra dos homens que viviam, agora, em paz. Qual o significado desta visão? Nunca

saberemos, nem saberemos se alguma vez já houve algum significado.

Da mesma forma ocorre com a obra de Malory na qual o silêncio torna-se uma técnica

narrativa em que o espectador é convidado, mas nunca de maneira lúdica ou didática a

participar da obra, esta é a aplicabilidade da qual nos fala Tolkien. Ao evitar a infância de

Lancelot, ou o nascimento de Merlin, ao excluir do texto o desfecho da história de Tristão,

o livro de Malory clama para si não apenas a memória do espectador, como também ele trás

para a sua tecedura todos os outros textos realizados ou ainda não-realizados do ciclo

arthuriano.

Como bem ficou provado pelo professor Mamede Mustafa Jarouche, o livro As Mil e

Uma Noites chegou ao ocidente antes mesmo de ter sido terminado no oriente. Quando a

primeira tradução européia do livro publicada em francês entre 1704 e 1717, por Antoine

Galland - consolidando-se como uma das obras literárias de maior importância, influência e

sucesso editorial no ocidente - no oriente tratava-se ainda de uma obra inacabada, pois as

histórias que completariam as mil e uma noites ainda não haviam sido redigidas. Mas esta

incompletude do livro não seria relevante, visto que o numeral mil indica apenas infinitude,

o número mil seria apenas uma meta a ser alcançada por Sharazade para a sua liberdade.

Assim como Le Morte D’Arthur, e como toda narrativa épica, As Mil e Uma Noites traz

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consigo o silêncio e a abertura e vemos esse silêncio ecoar pelas Novas Mil e Uma Noites,

de Stevenson, no Paraíso Terrestre, de Morris, no Seis Problemas para Dom Isidro Parodi,

de Borges e Casares; pois o silêncio e a abertura desta obra permite que ela seja sempre

continuada, intercedida e reconstruída.

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III Parte: Sociedade, memória e conhecimento mítico-poético

A produção cultural que compreende o período conhecido como Baixa Idade Média é

marcada, dentre diversas outras características, pela consolidação do cristianismo e de seu

conflito com os conhecimentos e tradições bárbaras e pagãs. Na literatura, encontraremos

nitidamente os reflexos das questões deste tempo, que, por sua profundidade e tensões

primordiais, são também as questões que permeiam qualquer tempo humano.

Para compreendermos de alguma forma esta crise e de que maneira este conflito

interpor-se-á nas questões da memória mítico-poética; um dos caminhos que podem ser

tomados seria perguntarmo-nos primeiramente pelo que seria o Graal, qual sua origem

mítica ou literária, quais as suas fontes e versões. Sabemos que existem duas principais

fontes que são as fontes pagãs: a moderna coletânea de matéria celta galesa conhecida

como O Mabinogion; e o Perceval, de Chrétien de Troyes. E as fontes cristãs: Robert de

Boron, Ciclo de Map ou Pós-Vulgata e Le Morte d’Arthur, de Thomas Malory.

Cabe ressaltar que a origem deste nome, Graal, não é uma certeza nem para estudiosos

do ciclo arthuriano, nem para filólogos. A fonte mais antiga desta nomeação está no

Perceval, de Chrétien, apesar de em nenhum momento o autor descrever o Graal. É curioso

o fato de toda a demanda empenhada por Percival ser feita justamente pelo fato de o herói

não ter feito a pergunta “o que é o Graal” para o rei Pescador quando viu a procissão que

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carregava o Graal como seu maior tesouro. A busca de Percival não é a busca pelo Graal,

mas sim a busca pelo que seria o Graal, é a busca pelo verbo e não pelo objeto.

A procissão do Graal no Percival, de Chrétien de Troyes, causou a “euforia” de muitos

estudiosos por ser uma procissão composta por rapazes e por uma mulher, detalhe este

modificado em autores e copistas posteriores a Chrétien. Por que esta procissão seria

composta por uma mulher que carrega um objeto tão sagrado como o Graal se as mulheres

são relacionadas, para o conhecimento religioso cristão medieval, ao profano e não ao

sagrado? Seria talvez por dois motivos: ou pela obra de Chrétien não responder a uma

cultura eclesiástica e sim a uma cultura bretã, ou pelo fato de à época de Chrétien, o Graal

ainda não ter assumido o caráter sagrado que assumiria nos anos posteriores. No Peredur

de O Mabinogion também há a procissão do Graal, no entanto, o Graal celta (cabe lembrar

que este objeto ainda não era nomeado desta maneira), não era o cálice como nós o

conhecemos, mas sim uma cabeça humana decepada.

Nas narrativas celtas é sempre comum episódios em que seus personagens lançam-se em

viagens a lugares desconhecidos e longínquos e no decorrer de seu percurso acabam por

visitar o mundo habitado por criaturas do outro mundo, o Annwn, que será chamado nas

próprias fontes como Vffern, ou seja, inferno. Este contato é feito por água (por mar ou

rios) ou através de objetos mágicos, sendo que um destes objetos era a cabeça humana

decepada, que para os celtas, interligava os dois mundos. No romance francês Perlesvaus

escrito aproximadamente por volta de 1220, há em diversos eventos aventuras decorrentes

desta ligação que faz a cabeça decepada com o outro mundo. Para o celta, o conhecimento

do mundo dos mortos ou do mundo feérico era uma das mais elevadas formas de

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conhecimento. Por isso carregava a jovem uma cabeça na procissão do castelo do Rei

Pescador – note que na primeira tradução do conto Peredur, do Mabinogion feita para o

inglês, por Lady Charlotte Guest, publicada no ano de 1849, este Graal celta fora

totalmente omitido; há o castelo do Rei Pescador, a procissão, os objetos sagrados, assim

como no Percival de Chrétien; no entanto, a cabeça sendo carregada em uma travessa não

aparece em sua tradução.

Da cabeça que ligava os dois mundos no imaginário celta, da questão fundamental na

obra inacabada de Chrétien, o Graal passará a se caracterizar, nas obras cristãs, como o

cálice sagrado, descrito ora como o cálice usado por Jesus Cristo na última ceia, ora como o

cálice em que José de Arimatéia recolheu o sangue de Cristo quando ferido mortalmente na

cruz pela lança de Longuinius.

Configura-se assim para os cristãos o Graal, não só como o objeto de conhecimento para

o mundo obscuro, como também o objeto de comunhão com a mais elevada das entidades e

de consagração dos homens mais valorosos, pois estes serão presenteados com a presença

do Graal.

A primeira ilusão que deverá se dissipar para uma melhor percepção da questão tratada

neste capítulo é o fato de o conceito de sagrado não se contrapor ao conceito de profano. O

profano é uma das características que compõe o sagrado e não algo que anule o sagrado. É

necessário marcar que os dogmas eclesiásticos de forma alguma são os determinantes do

saber religioso, ou da tradição religiosa, seja de uma cultura popular, seja de uma cultura

letrada. Portanto, não podemos, a partir de conceitos retirados de tratados filosóficos ou

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institucionais, inferir sobre qualquer qualidade de uma tradição ou obra literária, seja ela

cristã, mulçumana, hindu, ou de qualquer outra espécie. O conhecimento e a tradição

religiosa dos leigos ou da arte são sempre diferentes dos dogmas institucionais,

principalmente em se tratando da Idade Média, momento da história em que a cultura oral

exercia um papel literário muito mais forte que a cultura letrada.

A partir deste conceito verificaremos que o profano e o interdito são partes constituintes

da organização mítica-religiosa de uma dada cultura. As entidades presentes em diversos

panteões míticos conhecidas como demônios (sejam eles os djins dos árabes ou os youkais

dos japoneses) são tão sagradas quanto as suas respectivas entidades celestiais. Assim

verificar-se-á que o interdito é algo presente em qualquer aspecto do sagrado, seja ele o

profano ou o celestial.

Diante destes eventos narrados no ciclo cristão arthuriano perceberemos que os mitos

medievais não respondem apenas a uma necessidade de uma história pelo entretenimento

ou pela justificação de uma certa ordem social. Estes mitos tratam de uma memória de

tempos remotos conservada pelo saber literário oral.

Para toda a leitura de poesia antiga é exigido um conhecimento prévio, conhecimento

este que era compartilhado por todos. Seja em Imru Al-Qays, Catulo, Virgílio, é utilizada

uma série de imagens ou associações pertinentes a sua própria sociedade, que hoje

dificultam o acesso de um leigo a suas poesias e a suas imagens a não ser pelo recurso das

notas explicativas. A poesia moderna evitou a utilização deste recurso...

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Quando um estudioso ou um mero curioso se debruça sobre o conhecimento religioso

dos antigos, este homem moderno observa este saber como se olhasse para as religiões de

seu tempo. Mas, assim como a arte, as religiões de outrora não são como as de hoje.

Hoje muda-se de religião como se muda de partido político. A religiosidade antiga não

tem vigência em afiliação. O sagrado, o profano, o mágico e o mítico vigem na vivência de

uma tradição de memória. Apenas para um homem moderno é possível distinguir, separar

claramente arte, religião, história, saber, memória e arte marcial. Para os antigos nunca

seria possível separar arte “sacra”, de arte não-religiosa ou profana, o conhecimento mítico-

religioso atravessa não só a arte como a todas as formas de conhecimento.

Quando se percebe o real sentido do saberes antigos, percebe-se assim o verdadeiro

costume de práticas antigas. A intolerância religiosa dentro de um povo estava muitas vezes

ligada à tentativa de não se perder a memória e a tradição de seus antepassados, mesmo

porque na antiguidade não havia intolerância religiosa com povos estrangeiros. A perda da

memória de um povo é uma cruel derrota. A religiosidade estava muito mais ligada a um

real de memória e tradição que a uma transcendência e fé.

Primeiramente há a memória de um passado heróico a ser recontado e que permeia a

lembrança de um povo. Há um passado de lendas e um presente de mitos muito antigos. Há

uma infinidade de versões, de fatos, artefatos e de heróis a serem recolhidos e tecidos nesta

infinita obra de tapeçaria que os vikings chamavam de saga. Na antiguidade para se criar

uma obra havia este jogo que permeava as obras e encantavam os espectadores, sejam

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ouvintes ou leitores. Nunca, nunca mesmo, poderemos, nós homens modernos, escutar a

Ilíada da mesma forma que escutavam os gregos, não só pela questão da língua, mas pela

questão da memória que se entrelaça pelos fios desta obra, é como olhar para um quadro de

Bosch e não ver suas cores.

Vejamos o caso do mito de Sigurd, em suas fontes pagãs da Saemundar Edda (a Edda

Poética) e na Völsunga Saga. A história conta mais ou menos o seguinte: o jovem Sigurd, o

último da linhagem abençoada por Ódin e iniciada pelo rei Völsung, parte em busca de

aventuras. Em uma delas, a mando de Regin, seu tutor, mata o dragão Fafnir e banha seu

corpo com o sangue do monstro, tornando-se invulnerável. Posteriormente, conquista o

manto (ou elmo, dependendo da versão) da invisibilidade que antes pertencia ao rei dos

anões, subjugando-o, torna-se assim senhor de Niflheimr, ou Niblheimr, terra dos

Nibelungos, um dos nove mundos sustentados pela Yggdrasill. Posteriormente Sigurd

liberta Brynhild,a valquíria, que fora lacrada por Ódin em Midgard (o mundo dos homens),

em um longínquo castelo nos Alpes cercado por uma montanha de fogo. Posteriormente, na

saga, Sigurd dispensa o amor de Brynhild por Gudrun, evento este que culminará na morte

do próprio herói.

Tendo em vista a lenda de Sigurd apenas deixando-se levar pelos eventos e pela

narrativa (que são realmente inebriantes) não perceberemos que conhecimento e que

sabedoria têm vigência no desenrolar dos fatos. Como diz Havelock:

Todas as sociedades fundam sua identidade e a reforçam por meio da


conservação de seus mores. Uma consciência social, erigida como um
consenso, é, por assim dizer continuamente estocada para reutilização.

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Sociedades letradas fazem-na por meio de documentos; as sociedades pré-
letradas obtêm o mesmo resultado pela composição de narrativas poéticas
que servem também como enciclopédias de conduta (...) e à medida que
são continuamente recitadas constituem um apanhado – uma reafirmação -
do éthos comunitário, e também uma recomendação de observá-los. (A
Revolução da Escrita na Grécia, p.164).

22
MEMÓRIA E SILÊNCIO EM LE MORTE D’ARTHUR

I Parte: Autoria

O fascínio por esta estranha obra começa em sua própria história. A primeira edição,

e a edição de maior circulação de Le Mort D’Arthur é a de William Caxton que data de

1485. Nesta edição há um prefácio feito pelo próprio Caxton, em que ele afirma ser

responsável pela divisão em capítulos e pelos resumos antes de iniciar cada capítulo. Assim

vemos que nasce uma nova obra, mesmo que minimamente alterada, da editora de Caxton.

Então, perguntamo-nos quem seria este Sir Thomas Malory?

Não é conhecida de fato a autoria deste que é o grande épico em língua inglesa e

talvez o grande épico da Europa Ocidental. Mas esta obra é creditada a um Sir Thomas

Malory, um nobre que ocupou por duas vezes uma cadeira no Parlamento Inglês. A vida

deste Sir seria por si só algo digno de alguma atenção. Acusado de tentativa de emboscada

ao Duque de Buckingham, e de roubo, furto, e estupro, escapou da prisão duas vezes, uma

nadando e a outra lutando com os guardas até conseguir abrir seu caminho. Acredita-se que

este Sir Thomas Malory teria escrito sua grande obra quando em prisão durante a Guerra

das Duas Rosas, já que o narrador do livro, em certo momento, faz um pedido a seu

possível leitor para que reze “por este nobre cavaleiro que jaz em prisão”.

23
Até 1934 a edição de Caxton foi considerada a edição mais próxima ao original de

Malory. No entanto, durante a catalogação, neste ano de 1934, do acervo do Winchester

College fora descoberto um manuscrito intitulado: The Hoole booke of kyng Arthur & of his

noble knyghtes of the rounde table. Este manuscrito, atribuído a Thomas Malory, seria algo

mais próximo a um possível original; ele é dividido em quatro livros, ao contrário dos vinte

e um da edição de Caxton. Um fato curioso é que através de alguns estudos concluiu-se que

este manuscrito passou pela oficina de William Caxton, no entanto não fora utilizado, já

que ele apresenta algumas diferenças em relação à famosa edição. Isto nos pode levar a

inferir que talvez esta obra tenha obtido um certo número de cópias e que tenha circulado

um certo número de exemplares.

John Leland, um erudito do século XVI, dizia ser Thomas Malory de origem galesa.

Isto nos leva a questionar o crédito desta obra ao Sir Thomas Malory, primeiro devido a

esta cópia de Winchester, lançando a possibilidade da execução da obra em um tempo

muito anterior, e da possibilidade de uma circulação de cópias, traduzidas ou não de um

original. Segundo, devido a esta inferência da nacionalidade galesa do escritor feita por

Leland em um tempo muito mais próximo da confecção da obra atribuída a Malory.

Poderia esta obra nem ter sido originalmente escrita em inglês, sendo talvez uma tradução

do gaélico ou do francês. Possivelmente esta autoria dada a este Sir seria apenas uma busca

por uma afirmação literária inglesa. Sabemos que a produção épica medieval inglesa, que

fôra registrada e sobrevivera até nossos dias, resume-se basicamente ao Beowulf, e a Sir

Gawain and the Green Knigth, que são poemas curtos. Tolkien, em uma de suas cartas, diz

que um dos fatores que o levou a criar sua mitologia, foi o entristecimento que lhe causava

24
a pobreza dos antigos mitos de seu país, a Inglaterra, frente a riqueza dos mitos dos gregos,

romanos, celtas, vikings e finlandeses.

Devemos, portanto, nos acautelar diante destas afirmações tanto de autoria quanto

de nacionalidade quando tratarmos de um modo de produção literário muito diverso ao

modo de proceder da modernidade, em que não existia, ou pelo menos, não era plenamente

institucionalizada a posse da obra por seu “autor”. Muitas obras são creditadas a certas

pessoas como Boron ou Gautier Map, no intuito de conferir ao livro autoridade e

credibilidade no tema tratado. Aliando-se a isto a necessidade moderna da criação de uma

História da Literatura e de auto-afirmação de uma nacionalidade, credita-se Le Morte

D’Arthur a este Sir Thomas Malory.

Vejamos agora o capítulo I, extraído do quarto livro da obra de Malory, editada por

Caxton, tradução para o português feita pelo autor do presente trabalho a partir da edição

em inglês estabelecida por Elizabeth J. Bryan (o texto original encontra-se em anexo):

cap I – De como Merlin amou de louca paixão uma das damas do lago,
e como foi lacrado em uma pedra debaixo de uma rocha e lá morreu.

Assim, após as aventuras de sir Gawaine, sir Tor, sir Kei e sir
Pellinor; aconteceu que Merlin caiu em louco amor pela donzela que o
Rei Pellinore trouxera à corte, e ela era uma das damas do lago, a bela
Nimue. E Merlin não lhe permitia descansar, pois sempre queria estar
com ela. E sempre fez ela a Merlin boa companhia, até que aprendeu dele
todas as espécies de coisas que desejou; e ele a amou loucamente, de
forma que ele não poderia afastar-se dela. Então, um dia, ele disse ao Rei
Arthur que ele não duraria, mesmo com todos seus artifícios, ele deveria
ser colocado por terra brevemente. E assim ele disse ao rei muitas coisas
que aconteceriam, mas sempre alertou ao rei para bem guardar sua espada
e que sua bainha seria roubada pela mulher em que mais confiava.
Também disse ao Rei Arthur que ele sentiria falta dele –tanto que você
desejará perder todas as suas terras para ter-me novamente. Ah, disse o

25
Rei, já que sabe de sua aventura, precavenha-se dela, e afaste-se por seus
artifícios desta desaventura. Não, disse Merlin, assim não será; e assim ele
partiu do rei. E dentro em pouco, a Dama do Lago partiu e Merlin foi com
ela eternamente para onde quer que ela fosse. E sempre Merlin poderia tê-
la possuído em segredo através de seus engenhosos artifícios; então ela o
fez jurar que ele nunca poderia fazer algum encantamento sobre ela, se ele
desejasse ter sua vontade. E assim ele jurou; assim foram através do mar
para a terra de Benwick, onde o Rei Ban era rei que teve grande guerra
contra o Rei Claudas, e ali Merlin falou com a esposa do Rei Ban, uma
bela e boa dama, e seu nome era Elaine, e ali ele viu o jovem Launcelot.
Ali a rainha fez grande lamento pela guerra mortal que Rei Claudas fazia
contra seu senhor e em suas terras. Não tome nenhum abatimento, disse
Merlin, pois esta mesma criança dentro destes vinte anos deverá vingá-la
em Rei Claudas, de tal maneira que toda cristandade falará sobre isso, e
esta mesma criança será o homem de maior fama no mundo, e seu
primeiro nome é Galahad, isto eu bem sei, disse Merlin, desde quando
você havia anunciado que ele era Launcelot. Isto é verdade, disse a
rainha, seu primeiro nome é Galahad. Oh, Merlin, disse a rainha, viverei
eu para ver meu filho um homem de tais façanhas? Sim, Dama, com
minha palavra de fé você deverá ver isto, e viver muitos invernos depois.

E assim, logo depois, a donzela e Merlin partiram, e pelo caminho,


Merlin mostrou a ela muitas maravilhas, e chegaram a Cornualha. E
sempre Merlin insistia em dormir com a donzela para ter sua inocência,
ela cansava-se dele, e de bom grado ter-lhe-ia entregue, mas ela o temia
por ser ele um filho do demônio, assim ela não poderia deitar-se com ele
de maneira alguma. E assim, certa vez, aconteceu que Merlin mostrou-lhe
uma pedra onde havia uma grande maravilha, e forjada por encantamento,
que ia por debaixo de uma grande rocha. Assim, por seu astuto trabalho,
ela fez Merlin ir para debaixo daquela rocha, para ela presenciar aquelas
maravilhas, e ali forjou de tal maneira para ele, que ele jamais saiu,
mesmo com todos os artifícios que podia fazer. E assim ela partiu e
deixou Merlin.

Foi selecionado este capítulo primeiramente por ser ele um evento importantíssimo

dentro da matéria arthuriana, tendo influenciado diversos pintores e poetas modernos.

Outro valor deste capítulo reside em sua beleza e na utilização de diversas técnicas

presentes ao longo da obra das quais falaremos a seguir.

Uma das intersecções feitas por Caxton foi a divisão em vinte e um livros e estes

livros em capítulos perfazendo um total de quinhentos e sete capítulos. E foi feito para cada

26
um destes um pequeno resumo do que se sucederia. Neste trecho selecionado percebemos a

intersecção de Caxton, pois no texto não há nenhuma referência à morte de Merlin, o que

ocorre no resumo que o precede.

Quando Merlin se despede do Rei Arthur, o feiticeiro faz uma série de previsões e

dentre elas ressalta que a bainha da Excalibur “seria roubada pela mulher em que mais

confiava”. É feita, neste momento, pelo narrador, e por intermédio do personagem de

Merlin, uma referência a eventos futuros que serão narrados ao longo da obra, ao contrário

do que ocorre nas previsões de Merlin concernentes à infância e à juventude de Lancelot.

Toda a matéria que compreende o livro Lancelot du Lac da Vulgata Francesa não é relatada

por Malory, uma matéria importante e de cunho decisivo para os eventos que compõem o

ciclo arthuriano. Para um olhar acostumado aos modos de proceder da modernidade isto

pareceria fruto de um desleixo ou mera ignorância, no entanto percebemos aí, nesta técnica,

o modo originário da antigüidade de relacionamento com a memória e o logós mítico.

27
II Parte: Fontes e memória celta

Por muitos anos acreditou-se que a obra de Thomas Malory não passava de uma

mera tradução do conjunto de obras conhecido como a Vulgata Francesa. A Vulgata foi o

grande projeto de unificação e compilação de lendas e contos envolvendo a matéria

arthuriana, empreendida possivelmente por monges cistercienses. Esta grande obra, erigida

por vários autores, foi atribuída a Gautier Map e escrita em prosa francesa em meados do

século XIII. Baseada principalmente na obra de Robert de Boron, divide-se em cinco livros:

O Livro de José de Arimatéia: Influenciado pelos evangelhos apócrifos, narra os

eventos envolvendo o Santo Cálice e sua chegada a Inglaterra.

Merlin: O nascimento do famoso enchanteur, a concepção de Arthur, o surgimento

da Távola Redonda.

Lancelot du Lac: O maior livro da Vulgata, narrando o nascimento e as aventuras

de Lancelot, sua chegada à corte de Arthur e de seu amor proibido com a rainha.

A Demanda do Santo Graal: A maior aventura dos cavaleiros da Távola Redonda.

A chegada do mais puro dos homens: Galahad, que porá fim a todas as maravilhas do

Reino de Logres.

A Morte do Rei Arthur: A dissolução da Távola Redonda, a descoberta da traição

de Lancelot, a morte de Gawain e a de Arthur.

28
Como dissemos anteriormente, por muitos anos se repetiu e repete-se à exaustão a

degradação da obra de Malory, dizendo-se que esta obra não passaria de uma mera tradução

da supracitada Vulgata, uma falácia que pode ser facilmente deduzida pelo fato de o autor

se referir, durante diversos momentos, a um certo livro francês em que teria baseado suas

narrativas. Entretanto, como podemos ver na seguinte tabela, a matéria das duas obras nem

ao menos se correspondem tão perfeitamente quanto se acredita:

29
Le Mort d’Arthur: matéria da obra
Divisão do livro Divisão Possíveis Fontes
segundo a edição segundo o de Malory na Principais Eventos na obra de Malory
de Caxton Manuscrito de Vulgata
Winchester Francesa
Livros 1 a 4 The tale of King Merlin Livro 1: Nascimento e coroação de Arthur,
Arthur Arthur recebe Excalibur da Dama do Lago,
tentativa de assassinato de Mordred.
Livro 2: A história de Balin e Balan: “ O
Doloroso Golpe”.
Livro 4: Merlin é lacrado por Nimue, aventuras
de Gawain, Uwain e Marhaus com a deusa
Danu.
Lancelot du Lac Não são relatados diretamente de 15 a 20 anos:
______ ________ Gawain mata Pellinore, Mordred é encontrado,
infância de Lancelot e sua chegada `a corte.
Livros 5 a 12 The book of Sir Livro 5: Conquista de Roma.
Tristam de Livro 8: Início do livro de Tristam, é contado
Lyones ______ seu nascimento.
Livro 10: História de Alisander, le Orphelin,
Aventuras de Tristão, fim de suas aventuras no
castelo da Joiosa Guarda, onde vive com Isolda.
Livro 11: Concepção de Galahad.
Livro 12: Loucura de Lancelot.
Livros 13 a 17 The Tale of the A Demanda do Livro 13: Chegada de Galahad à Távola
Sangreal Santo Graal Redonda
Livro 15: Lancelot falha em sua demanda.
Livro 17: Galahad, Boors e Percival e sua irmã
embarcam no navio do Rei Salomão, encontram
a espada de David, morte da irmã de Percival, a
conquista do Graal e o retorno de Boors.

Livros 18 a 21 A Morte do Rei Livro 18: Elaine, a bela de Astolat.


Arthur Livro 20: Agravain flagra Lancelot e
Guenevere em Carlisle, Arthur faz guerra
contra Lancelot na França.
Livro 21: Traição de Mordred, morte de
Gawain, morte de Arthur: HIC IACET
ARTHURUS, REX QUANDAM, REXQUE FUTURUS.

30
Verificar-se-á, na análise desta tabela, que todo os episódios do livro Lancelot du

Lac, que ,como já fora dito anteriormente, constitui a maior parte da Vulgata Francesa, não

é narrado diretamente na obra de Malory; há, no entanto, a utilização de uma técnica muito

comum nesta obra que se caracteriza pela referência a eventos futuros ou passados que não

serão ou não foram narrados. Muitos destes eventos são importantíssimos para a estrutura e

o desenvolvimento da história, e com isso cria-se um forte laço desta obra com a memória

de seu leitor, pois ela clama por textos já ouvidos ou que serão ouvidos, ou até mesmo

nunca serão ouvidos, restando ao leitor a criação destes episódios que pairam sob a

penumbra, e que sempre irão pairar, visto que cada cópia de obra medieval apresenta sua

própria versão dos feitos e acontecimentos, portanto nunca se conhecerá a versão de

Malory, a versão que se constituiria com o sentido próprio da obra que é única, como cada

obra o é.

O episódio da morte de Pellinore, o pai de Perceval, por exemplo, não é narrado em

seu fluxo cronológico, ele é apenas comentado, não pelo narrador, mas por seus

personagens em um momento muito posterior. Já ao caso da infância de Mordred e de

como ele escapara da morte tramada por seu próprio pai e tio, o Rei Arthur, não é feita

qualquer referência, seja futura ou passada dentro da obra de Malory. O leitor vê Mordred,

em um primeiro momento, como um nenê em um barco à deriva, e em um segundo

momento o vê sagrado cavaleiro, já considerado sobrinho de Arthur e irmão de Gawain.

Mais uma vez somos afrontados pelo estranho proceder medieval que faz de nossa memória

e de nosso próprio espírito criador elemento determinante na fruição de sua literatura.

31
Ao entrarmos em contato com Le Mort D’Arthur, dificilmente não nos deixaremos

levar por seus estranhos episódios, com sua oculta memória que a muitos de nós, homens

modernos, pouco ou nada diz. Para eximirmos nossa erudição de tamanha afronta, o que

fazer? Dizemos que são meros contos de fadas, folktales, histórias sem razão, nem

propósitos. No entanto, veremos que esta memória pertence a um conhecimento que remete

a priscas eras, eras tão ocultas e misteriosas, que, delas, os mais cultos e eruditos de nossas

eras coletam apenas migalhas.

Ao lançarmo-nos na obra de Malory, somos de imediato imersos no mundo em que

sucederão as aventuras, assim é dito na primeira frase, abrindo, sem hesitação aos seus

leitores, a matéria:

Aconteceu que nos dias de Uther Pendragon, quando ele era rei de toda
a Inglaterra, e assim reinava, e havia um poderoso duque na Cornualha
que mantinha guerra contra ele por longo tempo. (Tradução do autor)

Seguem-se dessa forma os eventos que relatam o caso de Uther com a esposa do

duque, e a conseqüente concepção de Arthur por intermédio dos artifícios de Merlin. A

história continua por relatar a morte de Uther e a coroação de Arthur e suas primeiras

aventuras. Ao chegarmos ao segundo livro uma estranha narrativa é colocada; os feitos e

aventuras de Arthur e seus cavaleiros são abandonados pelo narrador para ser então relatada

a história de Balin, um cavaleiro que era mantido prisioneiro na corte de Arthur, sob a

acusação de ter matado certo cavaleiro, sobrinho do rei. Este conto faz uma ponte entre os

primeiros eventos do ciclo arthuriano ao livro da Demanda do Santo Graal, mostrando

muito antes, o castelo do Rei Pelles e de que maneira através do “doloroso golpe” desferido

32
por Balin, Pelles tornou-se o Rei Ferido (“The Maimed King”), e seu país, a Terra Arrasada

(“The Waste Land”)

Existe um livro de origem Irlandesa denominado O Livro das Conquistas (Lebor

Gabála Érenn), em que é contada a origem mítica do povo celta e de como chegaram às

ilhas da Grã-Bretanha. Uma curiosidade deste livro é que há uma mistura entre elementos

mitológicos tipicamente celtas com eventos, personagens e narrativas bíblicas. Ou seja, o

compilador da obra de origem tipicamente celta, a fim de torná-la mais interessante, mais

digna, ou por qualquer outro motivo, a teceu juntamente com a mitologia judaica de seu

conhecimento.

Neste livro são relatadas as façanha dos Tuatha dé Danann, ou Danaans (Povo de

Dana), um povo constituído por heróis e semideuses que viajam para a Irlanda trazendo

consigo quatro tesouros:

Caldeirão de Dagda, o bom deus. O tesouro mais importante, possuía a

característica de fornecer todo a alimento que fosse desejado, além de nunca esvaziar e

nunca deixar algum homem faminto. Além disto os guerreiros mortos em batalha, se

jogados em seu interior, os levantava novamente para a batalha, mas retirava o dom da fala

destes guerreiros tombados.

Lança de Lug, também conhecida como Luisne, ou seja, a que queima, a

flamejante. Usada por Lug para derrotar o Olho do Mal, rei da raça de gigantes, os

33
formorianos, que habitavam a Grã-Bretanha antes da chegada dos celtas. Devido a esta

arma, Lugh ficou conhecido sob o epíteto de “o de longos braços”, pois esta lança tinha a

habilidade de nunca errar o alvo, além de sempre retornar ao braço de quem a arremessara.

Era conhecida como “a flamejante” pois ela ardia em fogo; além de pingar sangue e de ser

sedenta por sangue, devido a isto devia ser sempre guardada de cabeça para baixo, dentro

do Caldeirão de Dagda.

Espada da Luz. Sobre este tesouro não há muitas informações, exceto pelo fato de

ser uma arma poderosíssima e de ter a habilidade de poder cortar seus inimigos pela

metade.

Pedra do Destino. Também conhecida como o umbigo da deusa. Quando o correto

rei da Irlanda subisse nesta pedra, ela ressoaria em alegria. Todos os reis da Irlanda foram

coroados nesta pedra, até que Cúchulainn cortou-a em dois pedaços por não ter sido eleito

por ela. Dizia-se, ainda, que a Pedra do Destino possuía a habilidade de rejuvenescer seus

monarcas e de sustentar a Irlanda por sobre as ondas do mar.

Fizemos este longo parêntese pois perceberemos que a memória destes artefatos

mágicos ressoa de certa forma nos tesouros do Rei Pelles. O Santo Graal, do qual falaremos

mais detalhadamente adiante, remontaria ao caldeirão celta, que no Livro da Conquistas

recebe o nome de Caldeirão de Dagda. A Lança de Lug ressoaria na cristã Lança de

Longuinius, também conhecida como a Lança do Destino, por ter sido com ela desferido o

golpe mortal a Jesus Cristo, provocando, por sua vez, a ferida por onde jorrou o sangue que

José de Arimatéia recolheu no cálice sagrado.

34
Restam-nos ainda dois dos quatro tesouros que descrevemos acima: a Espada da

Luz e a Pedra do Destino. Se atentarmos à matéria do conto de Balin e Balan, ainda

persistem dois artefatos mágicos envolvidos nos eventos, e são eles: a espada de Balin e a

pedra flutuante em que foi cravada a espada por Merlin. Esta espada terá papel importante

futuramente, no episódio da Demanda do Santo Graal, pois Galahad será aquele, assim

como havia previsto Merlin, que retirará a espada de Balin da pedra e terminará com a

maravilha da pedra flutuante e mais uma vez será ele provado o sucessor de Cristo, o Rei

dos Reis.

Vejamos a seguir uma tabela com a correspondência entre os quatro tesouros celtas

do Livro das Conquistas e as Maravilhas do castelo de Rei Pelles.

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As três maravilhas do castelo do Rei Pelles, Grã--
Os quatro tesouros celtas trazidos à Grã
Corbin: Bretanha
Br etanha pelos Danaans (ou Tuatha dé
Danann):

O Sangraal Atributos: O Caldeirão Atributos: O


(ou Santo Alimentava física e de Dagda, o caldeirão nunca
Graal ou espiritualmente, além bom deus esvaziava e fornecia
Santo Vaso) de possuir poderes de todo o alimento que
cura. fosse desejado.

A Lança de Atributos: Pingava A lança de Atributos: Pingava


Longuinius sangue, e seria usado Lugh, o de sangue, era
(ou Lança do para desferir o longos braços. flamejante, nunca
Destino ou Doloroso Golpe, (Luisne- “a errava seu alvo e
Lancea transformando o reino flamejante” ou sempre retornava a
Longini) de Pelles na Terra “a que seu dono depois de
Arrasada (The Waste queima”) lançada, era
Land). guardada de cabeça
para baixo no
caldeirão de Dagda.

A espada na Atributos: Elegeria o A espada de Atributos: Cortava


pedra melhor de todos os Nuanda os inimigos pela
flutuante cavaleiros, o sucessor (Claíomh metade
de Cristo. Solais –
Espada da
Luz)

A Pedra do Atributos: Elegia o


Destino (Lia rei da Irlanda,
Fáil) rejuvenescia os
monarcas e
sustentava a Irlanda
por cima das ondas.

36
Um dos temas da matéria arthuriana que grande fascínio exerceu através dos séculos

foi o episódio da Demanda do Santo Graal, tanto pela enigmática presença do objeto do

Santo Vaso, quanto pelas misteriosas e diferentes versões medievais que temos desta

aventura. Como sabemos, o primeiro registro que nos chegou em que tal objeto é nomeado

como “o Graal”, está em em Chrétien de Troyes, em seu Perceval ou o Romance do Graal.

No entanto, a demanda pelo objeto do caldeirão mágico, é um tema que remonta a

arcaísmos da lenda arthuriana.

Encontramos a demanda pelo caldeirão no Culhwch e Olwen, presente no

manuscrito conhecido como O Livro Vermelho de Hergest (Llyfr Coch Hergest), que

servira de base para O Mabinogion, de Lady Charlotte Guest. Este conto, apesar de ter sido

compilado pela primeira vez por volta do século XI, advém de uma composição oral que

remonta a séculos anteriores. A linguagem deste conto é extremamente rica e em diversas

passagens nota-se a utilização das famosas Tríades Galesas. Nesta narrativa, para que o

herói Culhwch possa desposar a filha de um rei gigante, a bela Olwen, ele deverá completar

uma série de demandas pelos tesouros conhecidos como As Maravilhas do Reino de

Logres. E uma destas maravilhas é um certo caldeirão mágico.

Uma das demandas de memória mais primitiva está presente no livro de poemas

Livro de Taliesin (Llyfr Taliesin), onde estão reunidos setenta e sete poemas atribuídos ao

bardo Taliesin, que teria vivido na época do mítico Arthur, e que no Culhwch e Olwen é

apresentado como o chefe dos bardos de Arthur. O poema que apresenta esta demanda

intitula-se Preiddeu Annwn, que aqui traduzimos como: Roubo em Annwn. A tradução

37
deste poema foi feita pelo autor através do texto em galês estabelecido por Sarah Higley e

das traduções para o inglês de Higley e também de Roger Sherman Loomis (o texto original

encontra-se em anexo). Vejamos a seguir as cinco primeiras estrofes, pois nas duas últimas

cessam as referências à Arthur:

Eu celebro o senhor, príncipe do reino, o Rei


Cuja majestade espalhou-se pelo traço do mundo
Equipada estava a prisão de Gweir na Fortaleza do Monte
Através dos cálculos de Pwyll e Pryderi.
Ninguém antes dele havia entrado nela
Dentro da pesada corrente cinza; um leal servo a guardava
E diante do roubo em Annwn, amargamente ele cantou
Até o julgamento deve durar [nossa] bárdica invocação
Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos
Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do Monte

Sou honrado em louvores, a canção foi ouvida


No Castelo dos Quatro Picos, quatro foram suas voltas
Minha poesia, do caldeirão foi proferida
Do sopro de nove donzelas foi aquecido
O caldeirão do chefe de Annwn, quais eram suas formas?
Uma negra crista em volta de sua borda e pérolas
Ele não ferve a comida de um covarde, a isto não fora designado
A brilhante espada de Lleawch, a ele fora erguida
E pelas mãos de Lleminawc ele fora levado
E diante das portas de Vffern, tochas ardiam
E quando fomos com Arthur, árdua aventura,
Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza delirante

Sou honrado em louvores, a canção foi ouvida


No Castelo dos Quatro Picos, ilha dos rígidos portões
Correntes de água e o crepúsculo fundem-se
Umedecidos pelo reluzente vinho diante da comitiva
Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos
Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do Rigor

[Eu não valorizo os pequenos homens de letras]


Além da Torre de Vidro, eles não viam o valor de Arthur
Seis mil homens estavam no alto do muro
Foi difícil falar a seus sentinelas
Três vezes repleto, de Prydwen nós desembarcamos
Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza da Noite

Eu não valorizo os que afrouxam a presilha dos escudos


Eles não sabem em que dia os homens foram criados

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Em que hora do meio-dia o deus foi nascido
Quem o fez? Quem não foi ao prado de Defwy.
Eles não conhecem o boi malhado, fina era sua tiara
Sete correntes constituíam seu colar
E quando nós fomos com Arthur, dolorosa visita,
Além de sete, ninguém retornou da Fortaleza do cume de Deus

Neste poema, percebe-se que há, em um primeiro plano, a execração de uma

determinada classe de homens letrada e, conseqüentemente, da auto-afirmação do poeta,

pois segundo ele, apenas um verdadeiro guerreiro, que teria participado desta terrível

aventura junto com Arthur poderia conhecer a história em todos seus detalhes e cantá-la.

O que nos diz a história que só este bardo guerreiro (possivelmente Taliesin)

poderia cantar? Nos é relatada uma invasão ao castelo de Annwn, por parte de Arthur e

seus cavaleiros. Annwn seria “o outro mundo” na mitologia celta, muitas vezes

identificado, ou traduzido como “Inferno”, neste mesmo poema é usada a palavra Vffern (v.

20) como um sinônimo de Annwn. Pwyll é o senhor de Annwn, e Pryderi, seu filho. Este

Pwyll será futuramente conhecido como Pelles, o rei pescador.

No poema de Taliesin, a invasão ao castelo de Pwyll é feita através de Prydwen, o

navio de Arthur; na cultura celta a ligação entre o mundo dos homens e o mundo feérico é

feito através da água, seja por rio, lagos ou pelo mar. Na Demanda do Santo Graal, de

Malory, os três cavaleiros da demanda, Percival, Boors e Galahad, também chagam ao

castelo do Graal em um navio, que fora construído pelo rei Salomão e pela mais sábia de

suas esposas.

39
Vejamos o décimo quarto verso, que diz: “Do sopro de nove donzelas foi aquecido

(o caldeirão)”. Lembremos do Vita Merlini, de Geoffrey de Monmouth que diz: “Com

branda lei, governam (Ávalon) nove irmãs”. O Vita Merlini, conta-nos sobre um certo

Merlin, um grande rei e guerreiro que, horrorizado com a guerra, abandona sua corte para

viver como um profeta nas montanhas. Estas nove donzelas serão aquelas donzelas

celebradas na obra de Merlin como as donzelas do lago, ordem de feiticeiras sábias e belas,

que tinham, segundo Geoffrey, Morgana como líder. Vale notar que as donzelas do lago,

tanto na Vulgata quanto em Malory não possuem ligação direta com eventos envolvendo o

Graal.

No décimo sétimo verso lê-se o seguinte: “Ele (o caldeirão) não ferve a comida de

um covarde, a isto não fora designado”. O tesouro mágico só terá sua vigência para aqueles

que forem dignos; no caso do caldeirão de Pwyll, ele só trará a abundância aos cavaleiros

cuja coragem os torna dignos de tal maravilha. Este interdito aos menos valorosos ecoa

também na Demanda do Santo Graal, no entanto a dignidade é conferida agora aos

guerreiros castos, atribuindo-se, desta maneira assim um valor tipicamente cristão à antiga

lenda celta. Lancelot, um dos cavaleiros mais celebrados na obra de Malory, falha em sua

demanda ao Graal, justamente por esbarrar neste interdito cristão. Seu valor e sua coragem

como cavaleiro são insuperáveis, no entanto seu duplo pecado pela traição o impossibilita

de conquistar o mais alto de todos os tesouros do reino de Logres.

40
SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA ESSÊNCIA DIVINA NOS HERÓIS

É notável a relação que antigas divindades possuíam com animais ou com forças da

natureza. Na mitologia nórdica Ódin está sempre seguido em seus poemas por dois corvos:

Hugin e Munin, Pallas Athenas, por sua vez, é conhecida como a “olhos de coruja”.

Possivelmente os deuses em sua forma originária teriam até mesmo o aspecto e sua

representação como animais.

Com os caminhos percorridos pelos homens em seu afastamento da proximidade do

selvagem e com a consolidação da vida em cidades, estas entidades divinas que antes

seriam ou teriam em si o próprio do que vige na natureza - que poderiam ser os animais ou

elementos - tornam-se cada vez mais antropomórficas, paulatinamente perdendo sua

ligação com a terra, até tornarem-se um único deus, ideal e afastado.

Este percurso de afastamento das divindades foi, como dissemos, extremamente

lento, mesmo quando a representação divina deixava de apresentar características

zoomórficas, a imagem da divindade estaria associada a algum ser zoomórfico ou ele teria

algo em si ou em seus epítetos que o fizesse confundir com alguma força ou algum

elemento da natureza. Tal afastamento completo do divino da physis seria apenas

consolidado no ocidente com a Reforma Protestante, pois o cristianismo católico ainda

41
assimila diversos cultos, entidades e elementos do paganismo, como é possível notar, por

exemplo, numa memória celta no ciclo arthuriano já cristianizado.

Se durante este percurso de consolidação da entidade única e ideal, o divino se

afastou da natureza e de suas forças, o homem também se afastou do divino. Sobre o povo

germânico conhecido por nós como vikings, é espantoso o grau de proximidade que o

homem tem com suas divindades. Um exemplo forte disto é o Lai de Thrym, presente na

Edda Poética, em que o grande deus do trovão, Thor, filho de Ódin, é ridicularizado quando

deve trajar-se de mulher a fim de recuperar seu martelo, o Mjölnir, de um gigante que o

havia roubado. Em uma instância originária de relação com o divino, não existia o

distanciamento promovido por uma postura rígida e plácida ou de inferioridade diante do

divino. Quando as forças divinas são com os animais e as força da natureza, tornam-se,

desta forma, algo próprio e convivente ao homem. Diante disto, espantam-se os homens

modernos com o aparente desrespeito que certas culturas tinham com seus deuses, no

entanto não se trata de respeito, pois Thor, Ódin, Dana ou Morrigan são assim como um

irmão, uma mãe, um cão, uma fera, um vento, um desejo para um homem antigo. A

divindade está sempre presente na vida, no florescer ou no fenecer, nunca no inalcançável

ou naquilo que deve ser alcançado no pós-vida.

Quando os deuses ainda habitavam a terra com homens, antes mesmo de se

refugiarem no longínquo topo do Monte Olimpo, quando os homens eram filhos dos

deuses, quando os deuses eram irmãos de lavradores ou eram bardos de valorosos reis,

somente o que os separava da humanidade era o dom da imortalidade. Os reis, os

lavradores, as donzelas, bardos e guerreiros pereceriam enquanto as divindades

42
continuavam com seu perambular pela terra. Quando estas entidades, devido à caminhada

humana em direção ao afastamento da physis, vão aos poucos perdendo seu caráter divino,

perdem também sua imortalidade, tornando-se os heróis de outrora.

Discutiremos a seguir sobre como os heróis de outrora carregam consigo a memória

de um caráter divino que em priscas eras já lhes pertenceu.

Como já fora extensamente discutido, o Rei Arthur, apesar de não ter uma evidência

histórica ou arqueológica que o comprovem, sabemos ser ele uma persona possível dentro

de um certo contexto histórico. O Arthur histórico seria dux bellorum que teria obtido

algumas vitórias contra os saxões. Tal herói teria obtido tamanha fama no decorrer dos

séculos que diversos elementos, eventos, personagens e até divindades foram absorvidos e

apropriados por sua matéria, tornando-se o grande rei que conhecemos hoje, cujo poder se

estendia por toda a Grã-Bretanha e pela França, sendo coroado Imperador de Roma.

Para um retorno aos arcaísmos que compuseram o mito arthuriano em sua primeira

instância galesa, retornemos, portanto, a seus textos em que uma articulação mais primitiva

do mito se faz presente. Busquemos então o conto Culhwch e Olwen compilado por um

autor anônimo por volta de 1300 no livro conhecido como O Livro Vermelho de Hergest

(Llyfr Coch Hergest) e presente na obra O Mabinogion.

O conto Culhwch e Olwen é uma das principais, senão a principal fonte daqueles

que desejam entrar em contato com o Arthur arcaico. Apesar de o Livro Vermelho ser uma

43
obra do século XIV, acredita-se que sua primeira compilação tenha sido feita no século XII,

que por sua vez remontaria este conto a uma composição oral em meados do século IX.

A uma primeira instância salta-nos deste texto sua linguagem tão rica e construída

de forma tão prolixa. Na construção nota-se a utilização de diversas Tríades Galesas,

ressaltando assim, mais uma vez, seu caráter típico de uma cultura primariamente oral. As

Tríades Galesas eram um conjunto de frases mnemonicamente construídas a fim de se

conservar um conhecimento mítico entre os bardos. Chamam-se tríades, pois sempre se

constituem na ordem de três.

Quando Culhwch chega a corte de Arthur, como sempre é de costume na matéria da

Bretanha, o jovem guerreiro pede um dom ao grande rei. Arthur, precavendo-se diz:

- Já que não queres quedar entre nós, terás a dádiva que a tua cabeça e
tua língua nomearem, seja ela qual for e mesmo que esteja tão longe
quanto o vento possa enxugar, a chuva molhar e no seu giro, o sol
alumiar; mesmo que esteja tão longe quanto o mar possa banhar e tão
longe quão vasta é terra. Essa dádiva será tua, salvo se for meu veleiro ou
meu manto; salvo se for Caledvwlch, minha espada, ou Rhongomyant, a
minha lança; salvo se for Wynebgwrthucher, o meu escudo, ou
Carnwenhan, o meu punhal; ou se for Gwenhwyvar, a mulher que é
minha. Pela verdade que esta nos céus o afirmo: será com alegria que a
darei. Diz-me o que é. (In: O Mabinogion, p.156)

Por duas vezes três itens são citados por Arthur: o veleiro, o manto, a espada; em

seguida: a lança, o escudo o punhal. Em seguida e nomeada sua esposa Gwenhwyvar

(Guenevere) que também são três segundo uma das Tríades Galesas:

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Três Grandes Rainhas de Arthur:

Gwenhwyvar, filha de Cywryd Gwent, e Gwenhwyvar filha de


Gwythyr, filho de Greidiawl, e Gwenhwyvar, filha de Gogfran ,o gigante.
(tradução do autor)

O caráter oral deste texto torna-se, portanto determinante e não só devemos nos

atentar para estas pequenas referências que não remontam apenas para uma série de normas

mnemônicas pertencente à classe dos bardos, mas sim para um passado em que se vigia um

proceder mítico outro.

Culhwch pede um dom a Arthur e, como já havíamos visto, Arthur diz que “essa

dádiva será tua”, o grande chefe não poupará esforços para conceder o dom ao guerreiro

que lhe pede. E Culhwch pede nada menos que ajuda para conseguir a mão de Olwen, a

filha de Yspaddaden, o gigante. E como já havia sido profetizado que Yspaddaden morreria

apenas no dia em que sua filha se casasse, o gigante exige uma série de quarenta demandas

a serem cumpridas por Culhwch, demandas essas impossíveis, além disto Yspaddaden

ainda acrescenta:

- Ainda que consigas, há uma coisa de que não és capaz. Na tua


demanda por todas essas coisas terás de estar sempre vigilante e nem uma
só noite poderás dormir. Isto é coisa que não hás de conseguir e minha
filha não será tua. (In: O Mabinogion, p. 185)

E cada vez que o gigante descrevia uma das quarenta demandas Culhwch lhe

interrompia e acrescentava: “Tudo isto farei sem custo, ainda que tu penses ser custoso”

(p.176- 185). Mesmo que o herói afirme resolutamente que sem esforço serão completadas

45
estas demandas, passam-se vários anos e diversos eventos são relatados, pois diversos

cavaleiros da corte de Arthur envolvem-se nesta demanda.

Mesmo que para completar sua demanda Culhwch tenha tido a necessidade da ajuda

de Arthur e seus guerreiros, um colossal esforço ele teve, a de permanecer sempre de vigília

até o fim das aventuras, esforço exigido por Yspadadden para a validação da demanda. Por

mais que as qualidades de um herói ultrapassem as limitações humanas, percebemos nesta

habilidade, não uma característica simplesmente fantástica, mas sim algo que transcende ao

humano, pois Culhwch apodera-se para si de uma força primeva da natureza e da existência

dos seres que é o sono, vencer o sono seria como vencer a morte, sua irmã.

Seria apenas esta característica de superar o humano, que levaria ao herói mítico ser

uma manifestação do divino?

46
As forças telúricas

Ao lançar-se ao contato das antigas narrativas míticas e épicas não é raro ao leitor

moderno o espanto e o desconforto que causam sua crueldade e sua brutalidade. O que seria

a violência para estes povos, seria talvez algo celebrado, ou, possivelmente um ornamento

para as suas narrativas? É possível que estes atos violentos sejam uma manifestação de um

conhecimento que remonte a eras longínquas, das quais não retemos qualquer memória.

Este espanto e desconforto foram sentidos por Longfellow, quando compôs o poema

chamado Tegner´s Drapa, em que são relatados os funerais de Balder. Longfellow foi um

dos entusiastas da poesia germânica medieval durante durante o século XIX. Diversos

poemas seus lidam com a matéria germânica, e denotam uma profunda intimidade com ela,

por isso a necessidade de consideração acerca das estrofes de seu famoso poema.

Claramente seus versos nos fazem lembrar do Voluspá, poema de abertura da antologia

islandesa conhecida como Edda Poética.

No Voluspá, em suas misteriosas últimas estrofes, com a queda da Yggdrasil e o fim

do Ragnarök, é relatado o surgimento de uma nova era e o renascimento de Balder. Muitos

pesquisadores identificam nesta passagem a influência da cristianização sobre a cultura

escandinava. Mas o que é esta aversão ao cruel que sentimos e que marcou as últimas

47
estrofes do poema de Longfellow que, em contrapartida, não encontramos nos versos da

sibila cantados a Ódin.

Na primeira parte de Tegner´s Drapa há uma grande lamentação pela traição que

ocasionou a morte de Balder, filho de Ódin. Balder é uma figura do panteão mítico

germânico freqüentemente associada à figura de Jesus Cristo devido a seu caráter sublime e

pacífico. Podemos verificar sua descrição na Edda em Prosa de Snorri Sturluson:

O segundo filho de Odin é Balder, e boas coisas devem ser ditas sobre
ele. Ele é melhor, e tudo o glorifica; tão belo em feições, e tão radiante,
que a luz emana dele. Uma certa erva é de tal forma branca como são os
cabelos de Balder; de qualquer relva ele é mais alvo, e assim tu poderás
julgar sua beleza, tanto em seu cabelo como em seu corpo. O mais sábio
dos aesires, e o de mais belo discurso e mais gracioso; e tal qualidade o
cuida, que ninguém poderá contradizer seus julgamentos. (Tradução do
autor)

Vejamos a seguir alguns extratos do poema de Longfellow, Tegner´s Drapa:

I heard a voice, that cried,


"Balder the Beautiful
Is dead, is dead!"
And through the misty air
Passed like the mournful cry
Of sunward sailing cranes.
I saw the pallid corpse
Of the dead sun
Borne through the Northern sky.
Blasts from Niffelheim
Lifted the sheeted mists
Around him as he passed.

And the voice forever cried,


"Balder the Beautiful
Is dead, is dead!"
And died away
Through the dreary night,
In accents of despair.

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Balder the Beautiful,
God of the summer sun,
Fairest of all the Gods!
Light from his forehead beamed,
Runes were upon his tongue,
As on the warrior' s sword.

All things in earth and air


Bound were by magic spell
Never to do him harm;
Even the plants and stones;
All save the mistletoe,
The sacred mistletoe!

Hoeder, the blind old God,


Whose feet are shod with silence,
Pierced through that gentle breast
With his sharp spear, by fraud,
Made of the mistletoe!
The accursed mistletoe!

They laid him in his ship,


With horse and harness,
As on a funeral pyre.
Odin placed
A ring upon his finger,
And whispered in his ear.

They launched the burning ship!


It floated far away
Over the misty sea,
Till like the sun it seemed,
Sinking beneath the waves.
Balder returned no more!

So perish the old Gods!


But out of the sea of Time
Rises a new land of song,
Fairer than the old.
Over its meadows green
Walk the young bards and sing.

Build it again,
O ye bards,
Fairer than before;
Ye fathers of the new race,
Feed upon morning dew,
Sing the new Song of Love!

The law of force is dead!


The law of love prevails!
Thor, the thunderer,

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Shall rule the earth no more,
No more, with threats,
Challenge the meek Christ.
Sing no more,
O ye bards of the North,
Of Vikings and of Jarls!
Of the days of Eld
Preserve the freedom only,
Not the deeds of blood!

A dor da perda de Balder configura-se como uma das grandes motivações da poesia

mítica islandesa, dor esta que ecoará na poesia anglo-saxã com Beowulf e que vemos

novamente em Longfellow, pela perda do mais belo dos deuses. No entanto, em

Longfellow, Balder é destituído de sua ressurreição; sua morte não marca, como no

Voluspá, o início do crepúsculo dos deuses, mas sim o anúncio para a nova era cristã em

que os homens não mais estarão sujeitos ao jugo de um deus cruel e brutal como Thor.

Possivelmente um antigo islandês não qualificaria sua era como brutal, muito menos se

sentiria submetido a Thor. Apesar de tentar aproximar-se da poesia antiga, Longfellow a

recria ao modo moderno, juntamente com seus juízos.

Mas estes juízos, determinados por uma inadequação do modo cristão ao modo

poético do brutal, não são exclusivos de tempos modernos, em tempos arcaicos já se

encontra este desconforto com a crueldade de priscas eras. No seguinte fragmento de

Anacreonte de Teos (VI séc a.C.) vemos um sentimento similar ao de Longfellow:

Dai-me a lira de Homero,


Mas sem a corda sanguinária.
Trazei-me a taça consagrada,
Trazei-ma, quero enchê-la
Como é costume, a fim de que
A embriaguez me ponha a dançar.
Tomado de furor sagrado,

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Cantando ao som da lira,
Quero clamar por Baco
Dai-me a lira de Homero,
Mas fora a corda sanguinária.

Mais uma vez o poeta clama pelo épos de antigos mitos, no entanto se guarda, não o

aceita inteiramente, não aceita o sangue que é vertido por seus heróis. Esta força primeva

que rege e embebeda os antigos heróis em um frenesi, esta força que provoca as

deformações de Cúchulainn, que é a mesma que faz Aquiles desfigurar o corpo de Heitor,

também é a mesma que rege Thor quando recupera seu Mjolnir e massacra os gigantes. Que

força será esta, que, já abandonada, quando lembrada, causa náuseas.

Lancemo-nos, portanto, à escuta desta força e tentemos nos aproximar desta

primitiva energia que alimentava o frenesi dos antigos heróis.

Se o poder da physis exerce tal efeito no homem, é devido principalmente ao seu

caráter dúbio, se ela é a mãe que alimenta e acolhe seus filhos, ela é também a mulher que o

apunhala pelas costas e devora sua cria. Com a mesma força que cria, a natureza destrói

rapidamente. Ao afastar-se da proximidade da terra-mãe, com a vida nas cidades, o homem

deseja afastar-se de seus domínios, a deusa mãe é então substituída por um deus pai;

regulador e racional. As entidades femininas de sustento, alento, paixão, magia e ira, vão

dando lugar aos deuses mediadores da construção, do crescimento, do amor sóbrio e da

guerra racional.

51
Surgem assim duas castas divinas, a de um primeiro panteão, ligado aos fenômenos

da physis e dos desejos; e um segundo panteão, dos novos deuses, onde não encontrarão

espaço as forças iracundas. Estes novos deuses simbolizarão um anseio de um novo tempo,

em que o homem não se sujeitará aos arroubos femininos da terra-mãe, mas será seu

patrono, passará a cultivar a terra, e não mais será a terra que irá florescer para alimentar o

homem.

Zeus será o patriarca deste novo tempo em sua Hélade, e Ódin na Germânia. Este é

o tempo em que a magia será o dom das mulheres e a guerra, o trabalho dos homens.

Não foi, contudo, uma transição rápida; muitos dos dois sistemas conviveram nas

diferentes religiões arcaicas. Se por um lado Aquiles manifesta o ódio e a ira fundamentais

das divindades primevas, Heitor configura-se como o soldado prudente e ciente de seu

contexto da polis. Por isso será Heitor, e não Aquiles, o grande herói grego festejado na

Baixa Idade Média, e assim também os furiosos guerreiros celtas, deixarão suas primordiais

características para integrarem uma nova necessidade cristã de heróis sensatos e comedidos.

O caso do mito arthuriano

Os personagens que estão envolvidos no Ciclo Arthuriano exercem tanto ou até

mesmo maior fascínio que o próprio Rei Arthur. Seus nomes carregam uma forte força

mítica fundadora de presença e memória: Morgana, Gawain, Ivan, Lancelot, Perceval,

Tristão, a Dama do Lago, Merlin. Que poder e que presença nos é dada apenas pela escuta

destes nomes!

52
Alguns destes personagens possuem suas próprias histórias, desvinculados da

figura central do grande rei bretão, outros ainda, possuem seu próprio ciclo independente.

Todo grande mito tem o poder de conjurar a si todos os mitos menores, incorporando-o a

seu próprio ciclo mítico, e assim ocorreu com o mito Arthuriano.

No entanto, neste processo de formação e criação mítica, muitos destes personagens

foram desapropriados de suas características primeiras, características estas, que, muitas

vezes respondiam a uma cultura primariamente celta e ligada às forças divinas e da physis.

Talvez por uma necessidade de enquadrar estes heróis bárbaros a uma exigência cristã?

Não saberemos. Mas poderemos nos perguntar quem são estes heróis e de como vigiam seu

épos de tempos outros.

53
Kai

No decorrer da história das compilações dos mitos arthurianos Kai, o irmão de

Arthur, que era um dos mais valorosos guerreiros de cort passará a apresentar-se como um

bufão, um tolo e inexperiente cavaleiro, digno, não de honras como seus companheiros,

mas de toda humilhação e sarcasmos.

Em Culhwch e Olwen, Kai é mostrado como um grande guerreiro, iracundo e

dotado de maravilhosas habilidades, era um dos mais capazes e valorosos guerreiros da

corte de Arthur. Diversos guerreiros são citados neste texto (citações estas, possivelmente

executadas em sua instância oral através da técnica das Tríades Galesas), mas apenas a Kai

é reservado o elogio a suas habilidades:

Cai tinha o especial jeito de agüentar nove noites e nove dias debaixo de
água com um só fôlego; e também de agüentar nove noites e nove dias sem
dormir. E ferida feita pela espada de Cai não havia físico que a pudesse sarar. E
tinha ainda um dom de maravilhar, que era o de, sempre que lhe apetecesse,
tornar-se tão alto como a mais alta de todas as árvores da floresta. E outro dom
ainda tinha, e era este: quando a chuva caía, por mais grossa e copiosa que fosse,
tudo o que estivesse por cima ou por baixo da sua mão, à distância de um palmo,
se seco estivesse seco continuaria a estar, tal era o grande calor que das suas
mãos se soltava; e quando o mais intenso frio afligia os seus companheiros, as
mãos de Cai serviam de brasa para acender lume. (In: O Mabinogion, p. 167)

As habilidades de Kai são sem par na corte de Arthur. Ele era o mais valoroso dos

guerreiros, e devido a isto, Arthur concede a seu irmão a liderança do grupo que saíra em

busca das demandas de Yspaddaden. Quando Kai rompe com Arthur, será o próprio rei que

deverá continuar a liderar o grupo em busca dos tesouros. O grupo é originalmente

54
composto pelos seguintes cavaleiros: Kai, Bedwyr (Bedivere), Kynddelig, o guia; Gwrhyr

Gwalstawr Ieithoed, que sabia todas as línguas; Gwalchmei (Gawain) e Menw.

Posteriormente entraria também ao grupo Goreu.

Ao terminar a demanda pelas barbas de Dillus, fazendo a trela com seus pêlos

conforme havia requerido Yspaddaden. Ao retornar à corte Kai coloca-a nas mãos de

Arthur, e seu irmão canta-lhe o seguinte englyn:

Cai fez uma trela


Com a barba de Dillus, filho de Erei.
Estivera ele vivo, seria a morte tua.(p. 196)

Devido a seu caráter de guerreiro furioso, Kai a partir deste momento rompe com

seu irmão e é dito que assim nunca mais os dois haverão de estar lado a lado. Este

rompimento com Arthur também ocorre no romance Perlesvaus, compilado pelos

princípios do século XIII. Este romance é um tanto curioso por não se encaixar na

cronologia da História Régia Britânica, de Geoffrey, nem na Vulgata, esta obra também se

caracteriza por ser uma possível continuação do Perceval, de Chrétien de Troyes, no

entanto utilizando apenas alguns elementos desta obra. Perlesvaus guarda, portanto, muitas

singularidades, aliadas a seu caráter essencialmente onírico resgatando diversos arcaísmos

do mito arthuriano.

O caráter primitivo de Kai, destituindo-o de uma persona bufona, realizará um dos

eventos mais importantes deste Perlesvaus, que será a guerra entre os dois irmãos Kai e

Arthur. Como já vimos em diversos momentos deste trabalho a guerra entre irmãos é um

55
tema recorrente na literatura celta; é possível que esta guerra entre Arthur e Kai seja uma

lembrança do rompimento que entre os dois personagens no Culhwch e Olwen. Cabe notar

que este desentendimento não é muito detalhado, é possível que tenham havido relatos

arcaicos desta guerra, e que se perderam. O Culhwch e Olwen apresenta alguns eventos

muito bem detalhados dentro se sua narrativa, muitos outros são apenas citados,

acentuando-se assim a possibilidade de este romance apresentar um grande espaço dentro

da cronologia primitiva de Arthur, com diversos eventos que teriam uma importância

diferenciada e que participassem de outros relatos dentro do ciclo.

A guerra entre estes dois irmãos no Perlesvaus é causada quando chega a corte uma

donzela trazendo uma caixa em que continha a cabeça de um cavaleiro morto, um dos

cavaleiros de Arthur teria assassinado este cavaleiro e somente este que o matou poderia

abrir a caixa com a cabeça decapitada. Assim um a um todos os cavaleiros tentam abrir,

mas falham por fim, Kai aproxima-se e abre a caixa, em seu interior vê-se a cabeça do

cavaleiro e Guenevere o reconhece, é Loholt, seu filho com Arthur. a donzela então explica

que Loholt conservava o estranho hábito de dormir sobre os corpos dos que havia matado, e

isto acontece, como é seu costume, ao dormir sobre o corpo de um gigante muito poderoso

que havia derrotado. Kai o encontra neste estado, mata Loholt e leva a cabeça do gigante à

corte de Arthur para ter para si a honra desta aventura. Em seguida a estes eventos, Kai

afasta-se da corte e une-se aos inimigos de Arthur e começa a realizar uma série de ataques

ao reino de seu irmão enquanto este viajava em uma peregrinação ao castelo do Graal. Em

um rompante de ira, durante esta guerra, Kai toma o castelo de Arthur e mata sua esposa

Guenevere.

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Vemos assim que o Kai primitivo em nada pertence ao Kai de Chrétien ou da

Vulgata que é descrito como um bufão falastrão além de ser um cavaleiro de pouco ou

nenhum valor. A persona de Kai arcaica aproxima-se, assim, dos heróis épicos arcaicos,

que como Aquiles e Cúchulainn são alimentados por uma fúria guerreira, conquistando

desta forma sua fama através de seus atos pouco honrados ao juízo cristão.

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Ivan, l’Avoutre

Este é um dos cavaleiros que em certo período exercia um papel importante nos

relatos arthurianos e que, a partir da Vulgata Francesa, começou a ser relegado cada vez

mais a papéis secundários.

Ivan nas narrativas galesas é sempre acompanhado por uma tropa de cento e

cinqüenta corvos, já no romance Ivan, de Chrétien e em sua contraparte galesa Owein, este

cavalcomeeiro será acompanhado por um leão que o ajudará em suas batalhas.

Apesar de ser um dos personagens que primeiro acompanhou Arthur, Ivan não

sofreu a descaracterização pela qual padeceram Kai, Gawain e seus irmãos. Seu caráter

belicoso e aventureiro foi conservado nas narrativas mais tardias, exercendo um papel

importante na última batalha de Arthur nas planícies de Salisbury contra Mordred, o

traidor. E, desta forma, é citado na seguinte Tríade Galesa, posto ao lado do celebrado

Lancelot du Lac:

Três cavaleiros de Batalha que havia na corte de Arthur:


Cadwr, Conde da Cornualha, e Lanslod Lak, e Owein, filho de Urien
Rheged. As peculiaridades destes eram que eles nunca fugiam pelo medo de
lança ou espada ou flecha; e Arthur nunca se envergonharia em batalha no dia
em que visse seus rostos em campo de batalha. E assim eles eram chamados
Cavaleiros de Batalha.( Tradução do autor)

Ivan é um personagem histórico pertencente ao ciclo dos bretões do norte que foi

assimilado pelas narrativas arthurianas. Assim como seu pai, Uriens, diversos poemas

atribuídos ao bardo Taliesin lhe são dedicados. São poemas que tratam de suas batalhas,

58
aventuras e morte. Taliesin celebra os feitos e as qualidades de Uriens e Ivan históricos que

ficaram famosos pela resistência bretã ao lutarem contra os Anglos de Bernícia. Ivan teria

sucedido o trono com a morte de pai, para logo depois ser assassinado. Diversos destes

poemas de Taliesin são concluídos com a seguinte estrofe:

E quando a idade me abater


na dolorosa necessidade da morte
Que eu não esteja sorrindo,
Se eu não exaltar Urien
(Traduçãodo autor)

A maternidade de Ivan é comumente atribuída a Morgana, a fada. Assim a

concepção de Ivan é revestida de um caráter mágico, já que sua mãe é a líder das damas do

lago. No seguinte trecho encontrado no Trioedd Ynys Prydein (Tríades da Ilha da

Bretanha), vemos o primeiro encontro de Uriens com Morgana:

Em Denbighshire há uma paróquia que é chamada Llanferes, e há lá o


Vau Ladrador. Nos dias antigos, os cães da região costumavam se reunir ao lado
daquele vau para ladrar, e ninguém ousava ir para descobrir o que lá havia até
que Urien Rheged chegou. E quando ele chegou ao lado do vau, nada viu exceto
uma mulher se banhando. Assim, os cães cessaram de ladrar, e Urien observou a
mulher e assim ele teve seu desejo sobre ela; e então ela disse: “Deus abençoe os
pés que vos trouxeram até aqui”. “Por quê?” Disse ele. “Porque estive fadada a
banhar-me aqui até conceber um filho de um cristão. E sou filha do rei de
Annwn, e vinde aqui ao término do ano e então recebereis aquele garoto”. E
assim ele chegou e recebeu o garoto e a garota: que são Owein, filho de Urien e
Morfudd, filha de Urien. (Tradução do autor)

Sobre este trecho retornaremos em um momento apropriado para elucidar sobre o

que seria o Annwn e sobre quem seria Morgana.

59
Perceval, le Galois

Perguntar por Perceval é também perguntar pelas aventuras envolvendo a Demanda

do Santo Graal, já que indissociavelmente está este personagem articulado a este episódio.

Filho de um grande cavaleiro (em Malory, seu pai é Pellinore, o maior de todos os

cavaleiros em perícia), Perceval viveu desde cedo em uma floresta, pelo medo que sua mãe

tinha de seu filho tornar-se cavaleiro e sofrer o mesmo destino de seu pai, a morte em

batalha. Assim configura-se a primeira característica de Perceval que é a de ser um

cavaleiro de origem humilde e provinciana, desta forma no início de suas aventuras, este

herói passará por situações constrangedores por desconhecer os códigos dos guerreiros.

A seguir veremos um trecho do Lai de Tyolet, de autoria anônima, no qual

encontramos uma história que em muito se assemelha àquela contada por Chrétien em seu

Perceval, possivelmente este Lai seria uma fonte para o poeta armórico, talvez os dos

tivessem uma mesma fonte que se perdeu, já que não encontramos o personagem de

Perceval nas primeiras fontes galesas; nunca saberemos.

Este é o lai de Tyolet

Outrora, quando o Rei Arthur governava sobre o país da Bretanha, que


hoje é chamada Inglaterra, lá havia, creio, muito menos homens na terra, como
há nesses dias. Mas, Arthur, cujo valor eu, em alta conta exalto, tinha em sua
companhia muitos bravos e nobres cavaleiros. Em verdade há até hoje
cavaleiros de alta fama e renome, mas já não são como os dos tempos antigos.

60
Naqueles dias, os melhores e os mais bravos cavaleiros saiam a vagar
pela terra, buscando aventuras no dia e na noite, nunca levando escudeiro como
companhia, e é provável que nos dias de sua jornada eles não encontravam nem
casa ou torre, ou por sorte poderiam encontrar duas ou três. Ou na penumbra da
noite poderiam encontrar belas aventuras, que eram narradas na corte, assim
como haviam ocorrido. E os clérigos da corte belamente as escreviam em
pergaminhos na língua latina, de tal forma que, nos dias que viriam, os homens
pudessem ouvi-las atentamente. E estes contos foram passados do Latim para o
Romance, e destes, como dizem nossos ancestrais, os Bretões fizeram vários
Lais.

E certo Lai que fizeram vos contarei, assim como eu já ouvira o conto.
Havia um rapaz, belo e hábil, orgulhoso e bravo e valente. Tyolet ele era
chamado e conhecia estranhos ardis, pois com um assovio ele poderia chamar as
feras dos bosques para uma armadilha, tanto quanto assim o rapaz o desejasse.
Uma fada lhe ensinara esta habilidade, e nunca uma fera que Deus havia criado
poderia evitar seu assovio. Sua mãe era uma dama que habitava na vasta floresta
onde seu senhor fizera sua residência para o dia e para a noite, e o lugar era
deveras solitário, pois por dez léguas não havia outra morada.

Agora, o cavaleiro, seu pai, já havia morrido há quinze anos, e Tyolet


tornou-se belo e alto. Mas nunca um cavaleiro armado ele havia visto em todos
os seus dias, e raramente qualquer outra pessoa naquela vasta floresta onde sua
mãe morava. Nunca fora além, pois sua mãe o mantinha com muito carinho, mas
na floresta ele poderia vagar por onde o agradasse, e mais nenhum outro ofício
ele alguma vez conheceu. Quando ele assoviava e as feras o ouviam, então elas
vinham até ele suavemente e ele as matava e as levava para sua mãe, e desta
forma viviam, os dois sós, pois nem irmão nem irmã ele tinha, e sua mãe era
uma dama nobre e cortês de vida leal.

Certo dia ela chamou seu filho e pediu a ele gentilmente (pois o amava
muito) para ir até a floresta e matar um cervo; e o rapaz foi direto para a floresta
e vagou pelos bosques até a noa, mas nem cervo, nem fera de qualquer tipo
encontrou. Então estava ele tão aborrecido em seu coração e pensou em retornar
para casa, desde que nada poderia encontrar na floresta, quando, sob uma árvore,
ele viu um cervo que era tão grande quanto belo, e no instante assoviou para ele.

O cervo ouviu seu assovio e olhou para ele, mas o animal não veio em
seu chamado, nem esperou pela sua chegada, mas a passos suaves saiu do
bosque, e Tyolet o seguiu até que o animal chegou a um rio e o atravessou. A
correnteza era forte e profunda, perigosa de atravessar e as margens distantes
entre si, e o cervo chegou são e salvo até a margem oposta. Tyolet olhou para
cima e para baixo, e viu uma corça gorda e bem crescida vindo até ele, assim
conservou seus passos e assoviou, e assim que o animal se aproximou, o rapaz
pegou sua faca e a encravou em seu corpo, matando-o rapidamente.

Mesmo tendo assim feito, Tyolet olhou através do rio, e vede! O cervo
que atravessou as águas havia mudado suas formas e tornara-se um cavaleiro,
totalmente armado como um cavaleiro deveria, e montado em um galante cavalo
de guerra. Assim ele estava na margem do rio, e o rapaz, que nunca em sua vida

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havia visto coisa igual, tomou como grande maravilha e permaneceu em
silêncio, admirando-o, e imaginando qual era o sentido de estranha vestimenta.

Então o cavaleiro falou com ele através do rio com gentis palavras,
cortesmente perguntando seu nome, e quem ele era e o que havia visto. E Tyolet
o respondeu: “Filho eu sou da dama viúva que vive na grande floresta, e Tyolet
me chamam, assim nomeiam meu nome. Agora me dizei se sabeis quem sois e
que nome tendes”.

Assim, aquele que estava na margem do rio falou: “Cavaleiro eles me


chamam”.

“Que fera é esta a quem chamam de Cavaleiro?”, perguntou Tyolet.


“Onde é que ele habita, e de onde ele veio?”

“Por minha fé te direi, verdadeiramente e sem mentiras. Esta é uma fera


imensamente temida, pois arrebata e devora outras feras. Certas vezes ela habita
nos bosques, e certas vezes nas terras abertas.”

“Por minha fé,” disse Tyolet, “Esta é grande maravilha, pois nunca,
desde que vago por estas terras selvagens, havia eu visto tal fera; já que conheço
ursos e leões, e todo tipo de cervo. Nem há ao menos alguma fera em toda
floresta que eu não conheça, mas eu as arrebato sem transtorno; apenas a vós eu
desconheço . Apesar de temível fera parecerdes. Dizei-me, Cavaleiro-Fera, o que
carregais em vossa cabeça? E o que é isto que pende de vosso pescoço, que é
vermelho e reluzente?”

“Em verdade eu te direi, e não mentirei. Isto que carrego em minha


cabeça é uma coifa que os homens chamam de elmo, com aço em seu derredor; e
isto é um manto no qual estou envolto, e isto em meu pescoço, um escudo, em
ouro banhado”.

“E isto com o qual vos vestis, parece-me todo perfurado em pequenos


buracos?”

“Isto é uma cota de malha, os homens a chamam de couraça.”

“E com que vos calçais? Contai-me por amizade.”

“Sapatos e grevas de ferro eu tenho, bem forjados.”

“E o que tendes cintado a teu lado. Dizei-me se desejardes.”

“Homens a chamam espada, ela é bela para o olhar, e a lâmina rígida e


afiada.”

“E esta longa madeira que segurais? Contai-me, e não a escondais de


mim.”

“Desejas saber?”

62
“Sim, de verdade.”

“Isto é uma lança, isto que carrego comigo. Agora eu te disse a verdade
sobre tudo que tu exigiste de mim.”

“Senhor,” perguntou Tyolet, “E vos agradeço, e peço a Deus que eu


tenha tal vestimenta como tendes, tão bela quão graciosa; uma cota e uma coifa
e um manto assim como vestis. Dizei-me, Cavaleiro-Fera, pelo amor de Deus e
de Seu regozijo, se há outras feras assim como vós, belas de se olhar?”

“Verdadeiramente”, disse o cavaleiro, “Eu te mostraria mais de uma


centena deles.”

Assim como o conto nos diz, em pouco tempo vieram através da


campina duzentos cavaleiros armados, todos da corte do rei; eles haviam até
mesmo tomado uma fortaleza sob seu comando, e a colocaram sob o fogo e as
chamas, e agora eles retornavam em seu caminho cavalgando em um esquadrão
de três fileiras.

O Cavaleiro-Fera disse a Tyolet e pediu para que avançasse um pequeno


passo e que olhasse para além do rio, e o rapaz fez assim como pedira, e viu os
cavaleiros armados em seu assalto; e gritou em alta voz, “Vejo agora as feras
que carregam coifas em suas cabeças! Nunca havia visto eu tal visão! Se a Deus
agradar, eu também serei um Cavaleiro-Fera!”

Então o cavaleiro que estava na margem do rio falou novamente e disse


“ Tu serás bravo e valente?”

“Sim, em verdade, juro-vos isto.”

“Vá, então, em teu caminho, e quando tua mãe te vir, ela dirá: “Belo
filho, dize-me, o que te aflige, e sobre que pensas?” E tu deverás responder que
tens muito a pensar, pois tu desejas tornar-te como um Cavaleiro-Fera que viras
na floresta, e por isto estás pensativo; ela dirá então que isto muito a entristece o
haveres visto tal fera que arrebata e devora as outras. Assim dirás, por tua fé,
pouca alegria ela terá de ti se tu não fores como tal fera, e vestires tal coifa sobre
a cabeça; e quando ela ouvir isto, prontamente ela te trará outra vestimenta, cota
e manto, elmo e espada, grevas, e uma longa lança, assim como tu havias visto
aqui.”

Então Tyolet partiu, pois brevemente teria de estar em casa, e ele deu a
sua mãe a corça que trouxera, e contou a ela todas as suas aventuras assim como
ocorrera. E sua mãe respondeu-lhe que isto muito a entristecia ele ter visto tal
fera, “Pois ela arrebata e devora muitas outras”

“Por minha fé,” disse Tyolet, “doravante assim será: se eu não for tal
fera como a que vi, pouca alegria terás de mim deste momento em diante.”
Quando sua mãe ouviu isto, respondeu imediatamente que toda arma que
tivesse, traria a ele, e ela trouxe aquelas que haviam pertencido a seu senhor, e
armou seu filho neste momento, e quando estava montado em seu cavalo, Tyolet
realmente parecia ser um Cavaleiro-Fera.

63
“Agora,” disse ela, “belo filho, sabes o que deves fazer? Deves ir rumo
ao Rei Arthur, e toma bom conselho em minhas palavras, não acompanhes
homem ou mulher que não forem de gentil nascimento e criação.” Então ela o
abraçou e o beijou, e o rapaz seguiu em seu caminho, e viajou por muitos dias
sobre colinas e sobre planícies e sobre vales, até alcançar a corte do Rei Arthur,
que valente e cortês foi.

O rei estava sentado à mesa, e se fazia servir ricamente, mas Tyolet não
esperou no salão de entrada; vestido como estava em sua armadura e montado
em seu cavalo de batalha, cavalgou até a mesa, onde sentava-se Arthur, o Rei, e
não disse palavra, nem saudou qualquer homem.

“Amigo,” disse o Rei, “desmontai, e vinde, come conosco. Então


podereis dizer-me o que buscais, e quem sois, e como vos chamam os homens.”

“Por minha fé,” disse o rapaz, “Eu vos direi antes mesmo de comer. Rei,
meu nome é Cavaleiro-Fera, muitas feras eu matei, e os homens me chamam
Tyolet. Bem sei como capturar cervos, se isto vos agradar. Senhor, eu sou filho
da viúva da floresta, e em segurança ela me enviou a vós para aprender
habilidade e sabedoria e cortesia. Gostaria de aprender sobre a cavalaria, os
torneios e as justas, a conceder dons e ser generoso, pois nunca antes havia eu
estado na corte de um rei, e penso que nunca novamente irei aprender tão bela
educação e cortesia. Agora que vos disse o que busco, o que tendes em mente,
senhor Rei?”

E Arthur disse, “Senhor Cavaleiro, vem agora e come!”

“Senhor,” disse ele, “Muito vos agradeço.”

Assim Tyolet apeou, e desarmaram-no e o vestiram com uma túnica e


com um leve manto, e trouxeram água para suas mãos e ele sentou-se para
comer. Com isto, adentrou uma donzela, uma gentil e nobre senhorita, de sua
beleza não falarei, pois mais bela não haveria a trovar, e bem suponho que nem
Dido, nem Helena poderiam ser tão belas. Ela era filha do Rei de Logres, e veio
cavalgando em um palafrém branco como neve, trazendo com ela um cão
farejador de pêlo branco, macio e brilhante, em seu pescoço pendia um pequeno
sino de ouro. Assim ela postou-se diante do Rei, em seu palafrém e o saldou:
“Rei Arthur, Deus te saúde, O todo poderoso que reina nas alturas .”

“Bela amiga, que Aquele que considera os justos, vos guarde”

“Senhor, eu sou uma donzela, filha de rei e de rainha, e meu pai reina
sobre Logres. Ele e minha mãe mais filhos não possuem, eles te pedem teu
amor, como um correto e valente monarca. Se houver um entre teus cavaleiros
que seja de tal valor que por mim corte o branco pé de certo cervo, se houver tal
cavaleiro, eu te peço, ó Rei, para que eu o tome como meu senhor, pois, em
verdade, outro não terei. Pois nenhum homem terá meus favores, se ele não
trouxer a mim o branco pé daquele grande e belo cervo, seu pêlo reluz como
ouro, e é guardado por sete leões.”

64
“Por minha fé” disse o Rei, “Tal acordo firmarei convosco que aquele
que trouxer o pé do cervo, a vós tomará como esposa.”

“E eu, Senhor Rei, juro-te que assim será o acordo.” Assim rapidamente
fizeram eles o pacto, e nenhum cavaleiro no salão que tinha fama ou renome
disse que iria e buscaria o cervo, pois não sabiam onde poderia ser encontrado.

A donzela falou: “Este cão farejador vos guiará para onde está o cervo e
sua morada.”

Então Lodoer, que muito desejava ser o primeiro a buscar o cervo, pediu
a permissão de Arthur, e o Rei não poderia negar-lhe. Assim ele pegou o cão
farejador, montou e saiu em demanda pelo pé do cervo. Mas o cão o levou em
direção a um rio, que era largo e longo, negro, volumoso e medonho de se olhar,
pois de quatrocentas braças era sua largura, bem cem de profundidade, e o cão
farejador sem hesitar saltou na correnteza, cuidando que o cavaleiro o estaria
seguindo de perto.

Mas segui-lo não poderia Lodoer: ele não tinha em sua mente a idéia de
entrar na correnteza, pois tinha ele pouco desejo da morte, e disse a si mesmo:
“Aquele que não tem a si mesmo, nada tem, este tem bem um castelo, penso eu,
pois toma cuidado com sua vida”.

Assim saiu o cão da água, e retornou a Lodoer, e Lodoer voltou com o


cão farejador em direção à corte, onde havia grande companhia reunida, e
devolveu o cão à donzela, a filha do Rei de Logres.

Então o Rei Arthur perguntou-lhe se havia trazido a pata; e Lodoer


respondeu que um outro poderia arriscar-se por ele, que a demanda ainda o
aguardava. Então por todo o salão zombaram dele, mas ele abanou sua cabeça e
disse que procurassem a pata, que por sorte poderiam trazê-la à corte.

Assim muitos saíram em demanda pelo cervo, e para ganhar a donzela,


mas nunca ninguém cantou outra canção senão aquela que Lodoer, em
necessidade, cantou, pois era realmente um cavaleiro valente; a exceção de um,
que era bravo e de pés ligeiros, a quem chamavam os homens de Cavaleiro-Fera,
apesar de seu nome, como bem sabeis, ser Tyolet. Pois este cavaleiro foi em seu
caminho ao Rei Arthur, e pediu para que a donzela fosse mantida na corte para
ele, desde que iria terminar a demanda da pata do cervo; nunca, disse, poderia
retornar até que tivesse cortado a branca pata do cervo.

O Rei lhe concedeu permissão, e Tyolet bem se armou, e foi até a


donzela para pedir o cão farejador, o que ela concedeu-lhe, e assim despediu-se.
Quando já havia cavalgado e viajado o suficiente, chegou ao rio da grande e
veloz água que era profunda e mortal; o cão mergulhou na correnteza, e nadou e
Tyolet jogou-se em seguida, e, desta forma, montado em seu cavalo, seguiu o
cão até chegar à terra firme. E o cão corria sempre em sua frente e o guiou até o
lugar onde poderia ser visto o cervo; sete leões eram aqueles que o guardavam, e
o amavam de grande amor.

65
Então Tyolet olhou, e viu o cervo que sozinho, na campina, alimentava-
se, e nenhum dos leões estava por perto; e esporeou o cavalo, e passou diante
dele assoviando. O cervo veio prontamente em sua direção, e quando Tyolet
havia assoviado sete vezes, ele parou. Então Tyolet desembainhou sua espada, e
tendo a pata branca do cervo em sua mão, cortou-a na junta, e guardou-a em seu
manto. Com isto o cervo lançou um alto grito, e os leões, que não estavam muito
longe, vieram rapidamente e logo o viram.

Um dos leões lançou-se sobre o cavalo que Tyolet montava, e o feriu tão
gravemente, que arrancou toda a pele e a carne de seu ombro direito, e quando
isto viu Tyolet, desferiu sobre o leão um poderoso golpe no peito, partindo em
pedaços nervo e tendão – e assim, com aquele leão, não teve ele mais
dificuldades. O cavalo caiu por terra, e por mais que o cavaleiro afastasse os
leões, eles estavam sobre ele, por todos os lados. Eles arrancaram a boa
armadura de suas costas, e a carne de seus braços e costelas, e o feriram tão
gravemente, que próximos estavam de devorá-lo. Dilacerado estava, mas por fim
ele os matou, apesar de por pouco ter sido rasgado por suas garras. Então,
tombou sem sentido entre os leões, pois tão dilacerado e despedaçado estava,
que de pé não permanecia.

Agora, enquanto deitado sem seus sentidos, veio um cavaleiro montado


em um cavalo com a cor do cinza do aço, e soltou suas rédeas e olhou para o
jovem cavaleiro,e lamentou sobre ele. Então Tyolet abriu seus olhos, e contou
tudo que ocorrera, e pediu para que retirasse a pata de seu peito.

Assim fez o cavaleiro, jubilando-se em seu interior, pois há muito


almejava ganhar aquela pata. Mas enquanto virava suas rédeas para partir,
cuidou que por sorte o jovem cavaleiro poderia ainda viver; se vivesse, então o
mal recairia sobre ele; então voltou pensando em matar o cavaleiro ali, antes que
o desafiasse mais tarde. Então desembainhou sua espada, e atravessou o corpo
de Tyolet – que desta chaga irá se curar – e partiu em seu caminho, pensando
que o havia matado.

Assim veio o cavaleiro à corte do Rei Arthur, e mostrou a pata branca, e


exigiu a donzela. Mas o cão farejador que havia levado Tyolet ao cervo não o
reconhecera. Então ele clamou a si pelo comprometimento aquela bela donzela,
desde que ele havia cortado a pata branca do cervo e a trouxera à corte. Mas o
Rei, que era sábio, exigiu oito dias para esperar o retorno de Tyolet, antes que
reunisse sua corte, pois tinha consigo apenas aqueles cavaleiros de sua casa,
nobres e corajosos. Assim o cavaleiro deveria respeitar o adiamento e
permanecer na corte até que os oito dias estivessem decorridos.

Mas o bom e cortês cavaleiro, Galvão, partiu secretamente em busca de


Tyolet, pois o cão farejador havia retornado sozinho à corte, e Galvão
considerou que certamente ele o levaria ao cavaleiro. E realmente o cão o levou
à campina aonde ele encontrou Tyolet deitado sem vida entre os leões.

Quando Galvão viu o cavaleiro e a matança que havia feito, ele


lamentou imensamente a terrível sorte, e desmontando falou suavemente a seu
amigo, e Tyolet debilmente respondeu, contando-lhe o que o havia levado a isto;
e enquanto falava, passou por ali uma donzela bela ao olhar, montada em uma

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mula, e cumprimentou cortesmente a Galvão. Então Galvão retornou o
cumprimento, e a chamou até ele, e a abraçou, pedindo a ela muito gentilmente e
muito cortesmente, para que ela levasse esse cavaleiro, que era realmente um
cavaleiro correto e valente, ao médico da Montanha Negra; e a donzela fez assim
como ele a instruiu, e levou Tyolet ao médico, pedindo a ele para que cuidasse
dele pelo amor de Galvão.

O médico prontamente recebeu o cavaleiro, e retirou sua armadura,


deitando-o à mesa. Então ele lavou suas feridas, libertando-o das roupas
banhadas em sangue, e viu que bem poderia se curar, e são poderia estar
novamente dentro de um mês. Mas Galvão retornou em seu caminho à corte e
desmontou dentro do salão. E encontrou lá o cavaleiro que havia trazido a pata
branca; ele permanecera na corte até o oitavo dia que havia passado, e agora ele
vinha ao Rei, saudando-o e pedindo para manter o acordo que a donzela de
Logres havia firmado, para o qual havia dado Arthur seu consentimento, no
qual, quem trouxesse a pata branca, a ele ela tomaria como senhor; e Arthur
disse, “Isto é verdade”.

Mas quando isto ouviu Galvão, aproximou-se rapidamente, e disse ao


Rei: “Senhor, isto não é assim, diante de vós, que sois Rei, devo desmentir a
qualquer homem, seja cavaleiro ou escudeiro, e devo dizer que este mente, e
que nunca ganhou a pata branca do cervo da maneira em que se vangloria.
Grande vergonha faz os cavaleiros que se elogiam dos feitos de outro e se
vestem no manto de outro, que poderiam roubar os bens e ornar-se com o que
pertencia a outros. Não poderá isto ser visto nesta corte; o que vós conquistastes
nada vale; fazei vossa investida em outro lugar, buscai noutro lugar pelo que
desejais, tal donzela não é para vós!”

“Pela fé,” disse o cavaleiro, “Sire Galvão, tendes a mim como um


covarde e um vilão, pois que dizeis que não ouso empunhar uma lança em riste
para uma justa, e como roubar os bens de outros. Mas falais falsamente como
descobrireis, se pensais em provar vossas palavras pela força das armas, e
considerar que não me encontrareis em campo!”

Enquanto assim disputavam, viram Tyolet, que vinha até eles com
pressa e havia desmontado fora do salão. O Rei levantou-se de seu trono para
encontrá-lo, e jogou seus braços em seus ombros, e o beijou, pois grande amor
tinha por ele, e Tyolet ajoelhou-se diante de seu rei.

Então Galvão o abraçou, e Urien, e Quéia, e Ivan, o filho de Morgana, e


o bom cavaleiro Lodoer, e todos os outros cavaleiros.

E o cavaleiro que desejava ganhar a donzela com a pata que Tyolet lhe
entregara, falou novamente a Arthur, e novamente fez o pedido. Mas Tyolet,
quando soube que ele exigia a donzela, falou-lhe cortesmente, e pediu-lhe
gentilmente: “Senhor Cavaleiro, dizei-me aqui na presença do Rei, com que
direito reclamais esta donzela?”.

“Por minha fé,” disse ele, “Eu vos direi. Eu lhe trouxe a pata branca do
cervo; o Rei e a donzela assim firmaram o contrato”.

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“Fostes vós quem cortou a pata? Se for verdade, então não vos poderá
ser negado.”

“Sim, eu a cortei, e a trouxe comigo.”

“Quem então matou os sete leões?”

O cavaleiro olhou para ele e não disse palavra, mas avermelhou-se,


encolerizando.

Então Tyolet novamente falou: “Senhor Cavaleiro, quem é aquele que


fora alvejado pela espada, e quem é aquele que o alvejara? Dizei-me, peço-vos,
pois em verdade, penso que fostes vós” E o cavaleiro abaixou sua cabeça, em
vergonha “Mas isto foi, creio, para fazer o mal pelo bem, quando fizestes tal
feito. Em minha boa fé eu vos dei a pata que havia cortado do cervo, e por isto
desferistes o golpe que perto esteve de matar-me; morto deveria estar em
verdade. Concedo-vos um dom: que vos arrependais agora, com a espada que
carregais, com a espada com que atravessastes meu corpo, cuidando em matar-
me. Se negardes, aqui eu dirigirei ao Rei Arthur meu desafio que irá provar-vos
diante desta nobre companhia.”

Quando o cavaleiro isto ouviu, e porque temia mais a morte que a


vergonha, implorou por misericórdia, sabendo que falava a verdade. A nada
ousava opor-se, e postou-se aos comandos do Rei Arthur.

Então Tyolet, tomando conselho com o Rei e seus barões, perdoou-lhe, e


o cavaleiro caiu de joelhos e beijou seus pés. Tyolet levantou-o e o beijou, e
desde este dia não mais ouvi falar dele. O cavaleiro devolveu a pata do cervo, e
Tyolet deu-a à donzela.

A flor de lis ou a rosa nova, quando brotam no belo verão, são menos
belas que esta donzela. Assim Tyolet pediu sua mão em casamento, e com sua
permissão, Rei Arthur a deu a ele. E assim ela o tomou em suas mãos, e ele foi
rei, ela foi rainha.

De Tyolet o lai se finda.


(Tradução do autor- o texto original encontra-se em anexo)

Até Robert de Boron, Perceval será celebrado como o grande herói da Demanda do

Santo Graal, mas a partir da Vulgata, este herói ficará em segundo plano, devido a Galahad,

filho de Lancelot. Dividirá com este e com Boors a conquista do Graal. Possivelmente

devido ao processo de cristianização do mito, o Graal não poderá mais ser conquistado

68
apenas pelos mais valorosos cavaleiros (como vemos no poema de Taliesin) ele servirá

apenas aos mais castos. E assim uma nova característica é atribuída a Perceval: a castidade.

O herói galês torna-se assim apenas um reflexo de Galahad.

Na seguinte Tríade Galesa, que responde a uma tradição bem tardia, vemos estes

três cavaleiros castos da corte de Arthur:

Três cavaleiros virgens havia na corte de Arthur:


Bwrt, filho de Bwrt da Gasconia, e Peredur, filho do conde Efrog, e
Galath, filho de Lanslod Lak. Onde quer que fossem, ode pudesse haver um
gigante, uma feiticeira ou ser terrível - tais não poderiam opor-se a um destes
Três Cavaleiros Virgens.(Tradução do autor)

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Fata Morgana, Rainha de Ávalon

É possível que nenhuma personagem mitológica feminina exerça tal fascínio e

mistério quanto a irmã de Arthur, Morgana, a fada. E tal fascínio deve-se principalmente

pelo fato de Morgana nos trazer à memória as antigas feiticeiras da cultura celta, quem

eram estas feiticeiras, quais eram suas habilidades, suas características? Pouco, ou quase

nada sabemos. No entanto, Morgana, a fada, líder das donzelas do lago; sobre ela algo

conhecemos, e com ela vige muito dos tempos de outrora.

Filha de Igrane com Gorlois, duque da Cornualha, na tradição francesa, o

nascimento de Morgana não é ligada a nenhuma maravilha. No entanto, na tradição galesa

seria ela mesma filha de um rei do Annwn (como vimos no capítulo dedicado a Ivan),

ressaltando, desta forma sua relação com o obscuro e a sabedoria.

Em um conto galês chamado Arthur e Caledvwlch, vemos uma outra tradição que

ligaria o saber de Morgana ao grupo conhecido como das donzelas do lago, este trecho do

conto se passa após a morte do Duque da Cornualha, quando Uther já estava por casar com

Igrane:

E pouco tempo depois Uther ofereceu uma festa a ser preparada aos
nobres da ilha e naquela festa ela casou-se com Eigyr (Igrane) e fez as pazes
com os homens de Gwrleis e todos seus aliados. Gwrleis tinha duas filhas com
Eigyr, Gwyar e Dioneta. Gwyar era uma viúva, e após a morte de seu marido
Ymer Llydaw, ela morou na corte de seu pai, com seu filho Hywel. Agora Uther
fez com que Lleu, filho de Cynvarch, casasse com ela, e eles tiveram filhos, dois
garotos, Gwalchmei e Medrawd, e três filhas, Gracia, Graeria, e Dioneta. A

70
outra filha do duque, Uther a enviou a ilha de Avallach, e sobre todas de sua
idade ela era a mais habilidosa nas sete artes. (Tradução do autor)

Esta filha chamada aqui Dioneta, é Modron, a Morgana dos romances franceses, que

é descrita por Geoffrey de Monmouth no Vita Merlini como a líder das nove sacerdotisas

de Ávalon:

Mas Tylos, em eterna primavera,


flores e frondes dá que reverdecem,
nem perdem seu verdor coma as estações.
A seu lado outra existe: a Afortunada
Ilha dos Pomos, onde o campo fértil
não carece do arado dos colonos.
Sem cultivo, a não ser da Natureza,
por sua conta produz seara e uvas
em vez de grama; árvores frutíferas
do chão das matas crescem por si mesmas.
Cem anos, ou bem mais, ali se vive.
Com branda lei, governam nove irmãs
que vem a elas das paragens nossas.
Uma é sábia nas artes de curar
e supera as irmãs em formosura:
Morgana a chaman, e aprendeu das ervas
a virtude que sana o corpo enfermo.
Pode as formas mudar e os ares corta,
qual Dédalo, vestindo nove penas;
vai quando quer a Brest, a Chartes, a Pavia,
e pousa quando quer em nossas praias.
Ensinou matemática às irmãs:
Moronoe, Mazoe, Gliten, Glitonea,
Gliton, Tyronoe, Thiten, e a de nome
Thiton, muito formosa pela cítara.
Foi nesse rumo que, ferido em Kamblan,
transportamos Arthur; e com Barinto,
que as águas sabe e os astros reconhece,
guiando a nau, com ele ali chegamos.
A nós como convém, honra Morgana;
pondo o rei em seu quarto, em áureo leito,
com a mão prudente lhe cobre a chaga.
Longamente a contempla. E diz por fim
que, se quiser os filtros seu provar,
e muito tempo lá ficar com ela,
salvo haverá de ser. Nós jubilosos,

71
o rei lhe confiamos e partimos,
dando as velas aos ventos favoráveis.
(Antonio Furtado, in: Artur e Alexandre, p 90, 1995)

Se nos deixarmos levar pelas inúmeras viagens que os heróis celtas realizam,

viajaremos por florestas maravilhosas, campos sombrios, montanhas perigosas, e sempre;

inevitavelmente, por dois lugares, que em alguns momentos permanecem inominados,

lugares estes tão fortes como personagens, lugares mutáveis que dizem, mas nunca se

pronunciam, e ao viajante atento estes dizeres não passaram ao vento, pois sábio é aquele

que, como Math, ouve tudo que lhe é trazido aos ouvidos, e estes lugares são Ávalon e o

Annwn.

Ávalon, a Ilha dos Pomos. Morgana é a rainha desta ilha de mulheres. Durante o

decorrer da vida de Arthur estas mulheres, que são exímias feiticeiras, permaneceram ao

lado do grande rei bretão. Elas lhes deram sua espada: Excalibur; deram-lhe também sua

bainha; enviaram-lhe Viviane e por fim cuidaram de suas chagas mortais na Ilha da Eterna

Juventude, no lar das feiticeiras, Ávalon.

Conhecer Morgana é rememorar o antigo saber das mulheres.

É necessário, portanto vasculhar nos antigos romances, nos antigos poemas, nas

antigas palavras o que era próprio deste saber. Devemos tentar resgatar esta palavra e não a

resgatarmos pelo menos seu sentido das era primevas, falhamos e devemos, assim, nos

resignar em nossa ignorância tipicamente moderna. Pronunciemos então tal palavra e

72
deixemos que ela nos guie em nossa demanda por Morgana em Ávalon; pronunciemos o

nome deste antigo saber das mulheres, pronunciemos a magia.

Para retornarmos a esta primeira instância, em que havia uma saber próprio ao

femino, façamos junto com Bran, a viagem para a Ilha da Eterna Juventude. Esta narrativa é

de origem irlandesa e escrita em gaélico. Não procuraremos, neste trabalho, encontrar

infindáveis paralelos entre as narrativas galesas e irlandesas, procuraremos, outrossim, em

uma antiga narrativa, independente de ser de origem celta, a viagem que alguns heróis

realizaram para esta Ilha das Mulheres.

Foram cinquenta quartetos cantados pela mulher de terras desconhecidas


no chão da casa de Bran, filho de Febal, quando a casa real estava repleta de
reis, que não sabiam de onde havia vindo a mulher pois o forte estava fechado.

Este é o começo da história. Nas vizinhanças da fortificação, certo dia,


Bram saiu só, quando ouviu música atrás de si. Toda vez que olhava para traz, a
música ouvi-se por trás. Por fim dormiu ao som da música, tal era sua
suavidade. Quando acordou viu um ramo de prata com brancas flores, não era
fácil distinguir suas flores de seus ramos. Assim Bran levou o ramo para sua
casa real. Quando as hostes estavam em sua casa, eles viram uma mulher em
estranhas vestimentas no chão da casa. Foi aí então que ela cantou os cinquenta
quartetos a Bran, enquanto as hostes a ouviam, e todos a observavam.

A misteriosa mulher canta então as maravilhas da Ilha da Eterna Juventude

Irlandesa, de como eram belos seus prados, seus cavalos, de como o alimento não faltava a

seus habitantes e de como aqueles que ali viviam não sentiam o peso dos anos e de outras

maravilhas mais as quais Bran fôra convidado a presenciar. E assim, como misteriosamente

chegara à corte, depois de terminado o seu canto, a mulher desapareceu. No dia seguinte

Bran reúne seus melhores homens e parte em busca da ilha.

73
E ele viu uma ilha, ele remou ao seu derredor e uma grande comitiva
festejava e ria. Eles todos olhavam a Bran e sua comitiva, mas não poderiam
ficar para conversar. Eles continuavam a dar deleitosas gargalhadas. Bran enviou
um dos seus à ilha. Ele esperou junto com os outros e estava rindo como aqueles
da ilha. Ele continuou a remar em volta da ilha. Quando quer que seu homem se
aproxime de Bran, seus companheiros tentavam se comunicar. Mas ele não
poderia conversar com eles, pois poderia apenas olhar para eles e rir. O nome
desta ilha é Ilha da Alegria (Joy). Assim eles o deixaram ali.

. Não demorou após isto que chegassem à Ilha das Mulheres. Eles viram
a líder das mulheres no porto. Disse a chefe das mulheres: aproxima-te da terra.;
oh Bran filho de Febal! Bem vinda é tua chegada! Bran não se aventurou a
chegar na costa. As mulheres jogaram um novelo em direção ao rosto de Bran.
Bran colocou suas mãos no novelo que penetrou em sua palma. O fio do novelo
estava nas mãos da mulher, assim ela puxou o barco até o porto. Após eles
foram até uma grande casa, na qual havia uma cama para casal, no total de três
vezes nove camas. A comida que era posta nos pratos não desaparecia de sua
frente. Pareceu que um ano passaram na ilha -- em verdade foram muitos anos.
Nenhum sabor lhes faltava.

A saudade os abateu, até mesmo Nechtan, filho de Collbrain. Seus


companheiros insistiam que Bran deveria retornar a Erinn com ele. A mulher
lhes contou que a partida iria lhes trazer arrependimento. No entanto, eles
partiram, e a mulher disse que nenhum deles deveria tocar a terra, e que eles
deveriam visitar e levar com eles o homem que fora deixado na Ilha da Alegria.

Assim eles foram até chegar em Srub Brain. O homem perguntou a eles
quem eram que vinham pelo mar. Disse Bran: “Eu sou Bran, filho de Febal”,
disse ele. No entanto o outro disse: “Nós não conhecemos tal pessoa, apesar de
A Viagem de Bran estar entre nossas antigas histórias”

Nechtan filho de Collbrain, desceu do barco e tão logo tocou a terra de


Erinn, imediatamente era uma pilha de cinzas, como se estivesse em terra por
centenas de anos. Foi aí então que Bran cantou este quarteto:

Para o filho de Collbrain grande fora a insensatez. De levantar suas mão


contra as eras. Sem ninguém para lançar uma onda de pura água sobre Nechtan,
o filho de Collbrain.

Assim ao povo da reunião Bran contou sua errância do início até aqueles
dias. E ele escreveu estes quartetos em Ogam1, e assim desejou-lhes adeus. E
desde aquele dia sua errância não é mais conhecida2.

1
Ogam é a antiga escrita irlandesa.
2
Esta tradução foi feita com o auxílio da tradução para o inglês de Kuno Meyer in: The voyage of Bran, son
of Febal to the Land of Living.

74
Muitas narrativas como estas eram apreciadas pelos antigos celtas, de como herói

errante é amaldiçoado pelo dom da imortalidade. Ao aproximar-se do divino, afasta-se

completamente do mundo dos homens, por um interdito que não pode ser quebrado por

qualquer força, pois é o próprio tempo que o impõe.

A Ilha da Eterna Juventude, assim que a chamam no conto irlandês, e assim como

esta viagem de Bran será aquela de São Brandão em busca do Paraíso Terrestre. Mas ao

que parece nestes relatos, a maravilha da eterna juventude, a beleza e a alegria e os prazeres

eternos são inerentes a seus habitantes. Já nos relatos galeses estas maravilhas são o

resultado do saber de suas fadas. A Ilha da Bem-Aventurança, não é tão pouco, nos relatos

galeses, uma terra longínqua perdida no vasto oceano ocidental, ela é um território oculto

pela ilusão de um lago, daí o nome da ordem das feiticeiras que a habitavam: As Donzelas

do Lago. E porque tal nome: donzelas? Pois assim como Pallas Athenas, tais mulheres não

se sujeitavam ao homem, elas retinham o saber das eras ancestrais, o saber próprio a Dana e

a Morrígan.

Os saberes próprios de Dana, que são o saber da terra e da natureza. No romance

português de Amadis de Gaula, de Affonso Lopes Vieira, reconhecemos tais saberes na

descrição de Urganda, a feiticeira:

Uma vez, indo Gandales seu caminho, apareceu-lhe uma donzela que lhe
disse:
-Ai, Gandales! Se muitos altos senhores soubessem o que eu sei,
cortavam-lhe a cabeça...
Pasmou o bom cavaleiro.
Acrescentou aquela:
- Porque em tua casa guardas a morte deles.

75
- Donzela, por Deus rogo vos expliqueis!
Então ouviu Gandales tais palavras maravilhosas:
- Digo-te que aquele que achastes no mar será a flor da Cavalaria: fará
tremer os fortes, humilhará os soberbos, defenderá os agravados, e tudo obrará
com honra, e será também o cavaleiro que com mais bela lealdade há de manter
seu amor!
- Ah! Senhora, dizei-me quem sois!
- Sou Urganda, a Desconhecida, mas não me busques que não me
acharias.
E, ao passo que assim dizia, de moça formosa se mudou em velha
trôpega. Isto vendo, teve Gandales a Urganda por uma daquelas mulheres que
possuem saber de sortes e encantamentos, conhecem a virtude das palavras, das
águas e das ervas e guardam o segredo de manter mocidade, beleza e poderio.

“A virtude das palavras”, como pensou Gandales, e assim nos lembramos das

mulheres no conto de Bran, com suas belas canções capazes de adormecer, em sua candura,

um atento e temível guerreiro. Este é o poder da antiga poesia, o poder de manipular suas

palavras de tal forma que se tornam elas ricas em poderes mágicos. E as fadas conheciam

tal poder.

“O saber das águas e das ervas”, o saber da terra, o saber de Dana, a deusa-mãe. É

com a manipulação de ervas, que, segundo Boron, Merlin adquire sua habilidade de

metamorfose. E, possivelmente, será com as ervas que as fadas adquirem sua juventude

eterna, pois com o contato com a terra, aproxima-se assim do divino, pois que é próprio do

divino o não consumir-se com o tempo.

Estes são os saberes de Dana que guardam as feiticeiras, através dos quais exercem

a antiga arte da magia.

76
O Grego Clássico possuía duas importantes palavras para designar o que

conhecemos com a palavra “poder”, que são a dizer: dýnamis e exousía. O sentido de

exousía diz do poder político, da possibilidade de exercer seus direitos frente a uma

comunidade.

Já a dýnamis diz do poder que é próprio da physis e do divino, indicando “não

somente a energia e força física presente em todos os setores da realidade concreta

empírica, mas também as forças vitais e vegetativas e sensitivas como descreve Platão

(Rep. 5.4777 cd)... Os estóicos consideram a dýnamis a causa eficiente dos fenômenos,

apresentando-a como energia primordial que move a si mesma e ao mundo ”3. A

manipulação desta força primeira a anterior a uma fundamentação humana e tipicamente

social é que se denomina magia. É através da manipulação desta força que o homem intenta

participar e aproximar-se do poder e dos mecanismos que são próprios do divino e da

physis4.

E há também os saberes de Morrígan, a Grande Rainha, de quem Morgana muito

herdou; os saberes da guerra. As habilidades de Morrígan foram indispensáveis para a

vitória nas batalhas dos Tuatha de Danann, pois que com suas canções explodiam estes

guerreiros em fúria para o canglor da batalha.

3
João Evangelista Martins Terra O Deus dos Indo-Europeus p. 421.
4
Em diversos dicionários míticos ou etimológicos é divulgado que a palavra “magia”, de radical “magi-”,
tenha entrado no léxico das línguas européias através de um empréstimo grego do antigo persa maguš, que
designava uma tribo Meda de sacerdotes zoroatristas. No entanto, acreditamos que esta venha a ser uma
palavra de origem outra, possivelmente indo-européia, visto que na religião hindu encontramos Maya
(Mahamaya – Grande Maya),a deusa, que posteriormente, na filosofia dármica designará a ilusão do mundo.

77
A arte da guerra foi de certa forma algo não muito próprio às Donzelas do Lago nos

mais famosos romances, no entanto Perceval, no Peredur, sendo já um vigoroso guerreiro é

treinado em armas por nove feiticeiras inominadas, que sabemos muito bem quem são; e

quem é sua rainha:

Mais adiante [Peredur] avistou um castelo no alto de uma montanha.


Para lá cavalgou e, ao chegar, bateu às portas do castelo com a ponta da lança.
Um garboso mancebo de cabelos castanhos logo as abriu. Tinha a estatura e o
arcaboiço de um guerreiro, mas era de idade mui moça. Quando Peredur entrou
no salão, viu uma grande e majestosa dama assentada em um caldeirão e, em seu
redor, um sem-número de aias e donzelas. Aquela boa senhora deu-lhe boas
vindas e, chegada a hora da ceia, foram comer. Depois de haverem comido,
disse-lhe a dama:
“Farias mui bem, senhor, se fosses dormir para outro lugar”
“Não poderei dormir aqui?”
“Aqui há nove bruxas, amigo”, disse a dama. “E com elas estão seu pai e
a sua mãe. São as nove bruxas de Caer Loyw”. (In: O Mabinogion)

De Morrigan, Morgana herda seu saber, o saber das artes da guerra, mas com isto

herda também seu caráter divino, que é sempre um caráter dúbio. Por vezes vemos

Morgana ao lado de Arthur, por vezes a vemos contra seu irmão organizando complôs e

instigando traições entre os cavaleiros da Távola Redonda e por fim a vemos levando o

Arthur moribundo junto com outras duas donzelas do lago para Ávalon. Malory explica a

causa deste caráter dúbio devido a sua paixão secreta por Lancelot, mas seu caráter não

responde a uma condição humana, pois como todos os heróis detêm em si a condição do

divino, a paixão de Morgana pode ser mesmo verdadeira, no entanto seu caráter dúbio

poderá ser apenas uma presentificação de uma deusa, a Deusa Mãe, a Grande Rainha que

conjuga em si todo o acalanto e a violência conviventes da natureza, pois ela é a própria

Encontramos no antigo egípcio a palavra mana, um conceito que em muito se assemelha ao grego dynamis; o
mesmo radical ocorre em manifestatio.

78
natureza. Arthur, assim como Cúchulainn, saboreou a impotência do homem diante da

Grande Deusa.

79
Pelles, Rei de Annwn5

Em diversos momentos deste trabalho já nos deparamos com o inferno Galês, mas,

guardando os cuidados que em cada mitologia deva ser pensado, o que seria o Annwn? Um

lugar para onde a alma dos mortos se encaminha, um lugar riquíssimo, muitos tesouros

maravilhosos possuem seus reis. No Mabinogion, é Pwyll que traz o primeiro rebanho de

suínos às ilhas da Grã-Bretanha, despertando a cobiça dos guerreiros de Math. Poucos são

aqueles que vivos, conseguem penetrar nos domínios do Annwn, pois ela é feita por uma

porta de difícil acesso. O Annwn está sempre relacionado a um lugar montanhoso, cercado

por águas caudalosas. Squire nos fala sobre Gales, e de como a geografia deste misterioso

país teria alimentado a mitologia dos antigos bretões:

Essa identificação de um simples território mortal com o outro mundo


parece-nos estranha, mas para nossos ancestrais celtas era um pensamento
bastante natural. Todas as ilhas - e penínsulas, que, vistas de uma costa oposta,
na certa pareciam ilhas - eram por eles julgados como sendo preeminentemente
lares dos sombrios Poderes de Hades. De acesso difícil, protegidas pelo mar
turbulento e perigoso, às vezes se tornando quase invisíveis por nevoeiro e
serração em outras, assomando fantasmagóricas no horizonte, muitas vezes,
ocupadas por remanescentes de uma raça hostil inferior, adquiriram um mistério
e uma santidade segundo a lei da mente humana que sempre encarou o
desconhecido como terrível. (pág 221)

O Annwn nunca está em uma realidade paralela, este reino está sempre no mundo

dos homens, e assim, aquele que se aventurando, lança-se a perambular pelas ilhas bretãs,

encontrará este reino, seu rei e suas riquezas. Isto ocorre com Perceval, que vê a procissão

80
do Graal no castelo de Pelles, que é Pwyll, rei de Annwn, e também com Balin, quando

desfere o “Doloroso Golpe”. Toda a Demanda do Santo Graal, nada mais é que uma

demanda pelo roubo dos tesouros do Annwn, como também é uma demanda pela

fertilização deste reino obscuro, pois sua terra fenecia, junto com seu rei. Apenas o Graal,

que é o Caldeirão que na mão dos virgens e jovens cavaleiros, poderia novamente florescer

o outrora mais rico e próspero dos reinos, um reino habitado por deuses, o mais sagrado dos

reinos.

Muitas são as características que ligam Corbin, o castelo de Pelles, ao Annwn. É um

castelo, que some e aparece, o caminho até ele não é algo que possa ser mapeado, apenas

com o vagar do cavaleiro errante poderá se vislumbrar em alguns momentos, através das

nuvens o castelo de Corbin, que muitas vezes está também circundado por caudalosos rios,

talvez por isso seja Pelles o Rei Pescador, rei das águas. Muitas vezes este castelo poderá

ser apenas alcançado através destas águas que o cercam, assim como fizeram os três

cavaleiros Boors, Perceval e Galahad em Le Mort d’Arthur6, a bordo do navio construído

por Salomão.

5
Pelles, ou Pwyll, é o rei de Annwn nas narrativas arthurianas, no Mabinogion seu rei é Arawn, sendo que
por um período de um ano Pwyll e Arawn trocam seus lugares. Já em diversas narrativas populares é Gwynn
filho de Nudd que governa o Annwn e as fadas das fontes e dos lagos são suas filhas.
6
Da obra de Malory costuma-se dizer que há uma confusão, pois parece haver uma diferenciação do
rei ferido como o rei pescador, na verdade não há bem uma confusão por parte do autor, visto que esta mesma
divisão do personagem de Pelles ocorre também no romance Peredur. Talvez pela lembrança do filho Pwyll,
Pryderi, que em algumas matérias acompanha seu pai.

81
Lembremos que em certo texto Morgana (Mobron) é filha do rei de Annwn. Quando

Uriens a encontra em um vau, ela diz a seu futuro marido que era filha do senhor de

Annwn, o que para nós pareceria estranho já, que a fada, seria uma das irmãs de Arthur e

líder das nove feiticeiras de Ávalon. Mas como já dissemos a relação de Annwn e Ávalon

age de estranha maneira a nossas expectativas modernas

Morgana é filha de seu rei no trecho do seu primeiro encontro com Uriens. No

poema Priddeu Annwn Morgana também está no Annwn, junto com ao Caldeirão. No

Peredur Morgana está em um lugar que muito lembra o Annwn, novamente junto ao

caldeirão, mas sem um de seus famosos reis; Pelles está em outro castelo, em outro reino.

Já na Vulgata e na obra de Malory, estes dois reinos, o Annwn e Ávalon terão suas funções

nitidamente distinguidas.

82
Merlin, l’Enchanteur

No ano de 1188, o arcebispo da Cantuária, realizou uma viagem levando consigo

um acompanhante, Giraldus Cambrensis, por este fabuloso país que conhecemos pelo nome

de País de Gales. A partir destas viagens, Geraldo de Gales escreveu dois livros

(Itinerarium Cambriae em 1191 e Descriptio Cambriae em 1194), em um gênero muito

apreciado por seus contemporâneos. Este livro relatava algumas fábulas, os costumes,

algumas descrições e observações acerca de Gales.

Em diversos momentos Geraldo de Gales nos oferece alguns valiosos préstimos

quando nos fala sobre Arthur, Merlin e Geoffrey. Talvez tenha sido ele o primeiro a falar de

dois “Merlins”: Merlinus Ambrosius e Merlinus Silvester:

Continuamos então nossa viagem ao longo da costa, com o mar de um


lado e um íngreme penhasco do outro, até chegarmos ao Rio Conway, cujas
águas são frescas. Não muito longe da nascente de Conway, onde as montanhas
de Snowdonia começam e estendem-se ao norte, está Dinas Emrys, que significa
Colina de Ambrosius, onde Merlin fez suas profecias, enquanto Vortigern
sentava-se ao lado da fonte. Havia dois Merlins. Um chamado Ambrosius, que
tinha dois nomes, profetizou quando Vortigern era rei. Ele era filho de um
íncubo e foi descoberto em Carmathen, que significa Cidade de Merlin, pois ela
leva este nome pelo fato dele ter sido encontrado aí. O segundo Merlin veio da
Escócia. Ele é chamado Celidonius, pois profetizara na Floresta da Caledônia. É
também chamado de Silvestre, pois certa vez quando lutava, olhou para o céu e
viu um terrível monstro. Como resultado, enlouqueceu e fugiu para a floresta
onde passou o resto de sua vida como um selvagem dos bosques. Este segundo
Merlin viveu nos tempos de Arthur. É dito que ele fez mais profecias que seu
homônimo. (Tradução do autor)

83
Quem seriam estes dois “Merlins”? Acredita-se que as matérias destes dois

personagens, antes não associadas, se fundem para criar um único personagem, o feiticeiro

Merlin, profeta e conselheiro do Rei Arthur.

A matéria de Merlin Silvestre (Myrddin Wyllt) englobam o Vita Merlini, atribuído a

Geoffrey de Monmouth, e seis poemas galeses, sendo três encontrados no Livro Vermelho,

dois no Livro Negro e um último em um manuscrito tardio do século XV. Esta matéria, a

do Merlin Silvestre, o louco, nos conta, assim como nos disse Geraldo de Gales, sobre um

rei que, horrorizado com a guerra, enlouquece, abandona seu reino, seus súditos, sua irmã e

vive junto com os animais em uma floresta, compondo poemas e profetizando.

Há um destes seis poemas galeses intitulado Ymddiddan Myrddin a Thaliesin (O Diálogo


entre Myrddin e Taliesin) em que vemos este horror sentido por Merlin diante da guerra. Este
poema é um diálogo entre o rei e Taliesin que é o pennbard de Arthur.

O Diálogo entre Myrddin e Taliesin

Myrddin:
I. Quão triste estou, quão triste
Cedfyl e Cadfan sucumbiram?
Cegante e tumultuosa fôra a matança
Perfurado fôra o escudo de Trywruyd.

Taliesin:
II. Foi Maelgwn que eu vi lutar
Aclamado em meio ao canglor.

Myrddin:
III. Diante de dois, em Nevtur ancorarão
Diante de Erith e Gwrith em cavalos
De esbelta baía irão fazer-se ao mar
Logo avistarão sua comitiva junto a Elgan.
Dor por sua morte! Longa jornada!

84
Taliesin:
IV. Rhys, de um dente, escudo de um palmo
A ti veio a benção da batalha.
Cyndur caíra, em longo choro lamentado
Generosos guerreiros foram mortos
Três notáveis, estimados por Elgan.

Myrddin:
V. Novamente e outra vez, em grande tropel
De longe, muito além, eis Bran e Melgan
Em sua batalha, mataram Diwel,
filho de Erbin, e todo o seu exército.

Taliesin:
VI. Prontos vieram os de Maelgwn
À rubra planície, à matança armados.
Mesmo para Arderydd, terrível crise
Como tal herói, irão se preparar.

Myrddin:
VII. Hostes de aladas lanças; enrubesceu a planície.
Hostes de guerreiros vigorosos e ativos
Hostes, quando feridas, hostes em fuga.
Hostes, quando retornarem ao combate.

Taliesin:
VIII. Sete filhos de Eilfer, sete quando postos em prova
Não se esquivarão de sete lanças em suas sete brigadas.

Myrddin:
IX. Sete chamas ardentes, sete exércitos inimigos,
O sétimo Cynelyn em cada sítio à dianteira.

Taliesin:
X. Sete lanças, sete rios rubros de sangue
De sete chefes sucumbidos se encherão.

Myrddin:
XII. Sete hordas encaminharam-se às sombras.
Na Floresta da Caledônia encontraram seu destino.
Pois sou Myrddin, primeiro após Taliesin,
Que, como verdade, minhas palavras sejam ouvidas
- o texto original encontra-se em anexo)

85
Este é Myrddin que habitava como um louco, na companhia dos animais, a Floresta

da Caledônia7.

Da mesma maneira que ouvimos a proximidade da guerra de Homero, ouvimo-la

também nos versos do diálogo de Myrddin com Taliesin. Myrddin e Taliesin são como o

aedo, o grande guerreiro dotado com a palavra da musa; no entanto, abandonam suas

espadas e refugiam-se no seio de Dana, a floresta. Alguns dos poemas atribuídos a Myrddin

nos falam sobre este momento de recolhimento do bardo à natureza. Assim, Myrddin, o

bardo, buscará o conhecimento dos antigos druidas e, através de seus enigmáticos versos,

fundirá os dois saberes destas duas classes antes distintas.

O segundo Merlin, o Ambrosius, tem sua fonte mais antiga na História Régia

Britânica, também de Geoffrey de Monmouth. Nesta obra é relatado que durante o governo

de Vortigern, o usurpador, foi necessário construir uma torre em uma colina no norte de

Gales, para proteger o reino contra os invasores irlandeses. No entanto, toda vez que

começavam a construir esta torre, ela ruía.

A lenda conta que ao ver suas tentativas de construção da torre na colina frustradas,

Vortigern convoca diversos sábios para investigar a razão desta maravilha. Passa-se um

ano, e a única coisa que estes sábios descobrem é que deveria ser buscado um menino sem

pai, em algum lugar em Gales que de alguma forma possui a chave para a resolução deste

enigma, e o nome deste menino era Merlin Ambrosius.

7
A Caledônia é o nome pelo qual os romanos nomearam toda a região acima do Muro de Adriano, a Escócia
e a Nortumberlândia.

86
Merlin é levado ao encontro de Vortigern e revela que abaixo desta colina, e esta

era a razão pela qual a torre não poderia ser erguida, dormiam dois dragões, um branco, o

outro vermelho. O que Vortigern deveria fazer era mandar que escavassem aquela colina

até que encontrassem os dragões, desta forma eles despertariam e se confrontariam. Assim,

como Merlin havia previsto, ocorre; os dois dragões despertam, há um combate entre os

dois, e por fim o dragão vermelho vence o dragão branco. Posteriormente Merlin vai até

Vortigern e explica que o dragão branco simboliza o povo saxão, e o dragão vermelho (Y

Ddraig Goch) simboliza o povo bretão.

Nesta obra de Geoffrey, Merlin é um menino sem pai, pois é um cambion, um

meio-humano, filho de um íncubo com uma mulher. Quando Vortigern torna-se ciente

desta origem de Merlin, chama a sua presença Maugantius, um sábio:

Maugantius foi trazido e ouviu toda a história (contada pela mãe de


Merlin), ponto por ponto. “Nos livros escritos por nossos sábios”, disse ele a
Vortigern, “e em muitas narrativas históricas, descobri que certa quantidade de
homens nasceu desta maneira. Como Apuleius disserta em De deo Socratis,
entre a lua e a terra vivem espíritos que chamamos de demônios íncubos. Eles
tem em parte a natureza dos homens e em parte a dos anjos, e quando desejam,
assumem as formas dos mortais e têm relações com mulheres. É possível que um
destes íncubos tenha aparecido a esta mulher e fecundou-a deste rapaz”. (In:
Robert de Boron, Merlin)

Vemos neste trecho da História Régia que não há ainda um julgamento cristão deste

mito como podemos encontrar no Malleus Maleficarum8 que identifica tanto a entidade do

8
O Malleus Maleficarum é uma obra alemã editada pela primeira vez em 1485, constituindo-se como um
importante documento durante a histeria da caça às bruxas dos séculos seguintes. Este livro é um manual de
demonologia e de identificação, prevenção e extermínio do ato da bruxaria e das bruxas, entre outras
coisas.

87
íncubo quanto da súcubo como demônios, serviçais do anticristo. Já em Geoffrey estas

entidades teriam em si uma essência angelical e humana. Geoffrey escreveu sua obra em

latim e talvez por isso tenha traduzido alguma entidade mítica galesa pelo íncubo latino.

Na obra de Boron e na Vulgata o nascimento de Merlin não é fruto da relação de

uma mulher com uma entidade etérea, mas sim fruto de um plano dos demônios da

mitologia cristã, que, descontentes com a ascensão de Adão, Eva e outros, decidem criar

um avatar entre os homens. O Demônio engana, então, uma mulher crente em Deus e

fecunda assim seu filho Merlin e lhe confere o poder de enxergar o passado e o presente;

Deus, como forma de não perder a criança, confere-lhe o dom da divinação do futuro.

Merlin recebe assim, com a cristianização do mito, uma origem dupla, tanto divina quanto

profana.

Se a origem de Merlin Ambrosius está ligada ao íncubo ou ao Demônio, devemos

atentar não para o juízo que pode ser atribuído ao mito, mas para o fato de sua essência ser

ligada ao oculto. Conhecemos os sídhe irlandeses, que são muitas vezes traduzidos para o

inglês como faeries, que não são como as fadas, mas são na verdade os antigos Thuatha dé

Danann que com a chegada dos homens se exilaram para o submundo. Estes antigos deuses

poderiam em seu exílio andar pelo mundo dos homens, mas seriam sempre espíritos

etéreos, a menos quando assumissem a forma de animais ou de pessoas. Lugh fecunda a

mãe de Cuchulainn quando esta tomava um vinho e engole uma mosca que havia caído em

sua taça e que era na verdade Lugh metamorfoseado.

88
Esta espécie de fecundação é um evento recorrente na literatura mitológica celta

mas Geoffrey, em sua formação clássica, provavelmente tenha preferido conferir a um dos

heróis de sua obra uma origem que o aproximasse mais de seus clássicos. Assim, Merlin

Ambrosius tem garantida sua origem divina e misteriosa; e este personagem, como

veremos, estará sempre na proximidade do divino e do oculto.

Estes são os dois “Merlins” dos quais fala Geraldo de Gales: Merlin Silvestre e

Merlin Ambrosius, mas nenhum destes dois é aquele que acompanha Arthur em suas

histórias9. Há, assim, três “Merlins”, estes dois e mais um terceiro, o Merlin das fontes que

consolidaram o mito na modernidade, a Vulgata e o Le Morte d’Arthur, que, neste trabalho,

acreditamos distinguir-se daqueles outros dois personagens. Não nos preocuparemos em

provar o porquê desta distinção, mas como assim trilhamos todo o percurso destas páginas,

perguntaremos: quem é Merlin? E perguntaremos: onde estaria esta persona nas fontes mais

antigas?

Talvez a confusão decorrente da homonímia dos três personagens tenha feito os

modernos pesquisadores acreditarem que estes constituam uma mesma matéria. Mas em

Geraldo de Gales já percebemos que Ambrosius não é um contemporâneo de Arthur e que

apesar de Silvestre ser um contemporâneo de Arthur, em nenhum momento na matéria do

louco da Caledônia, o bardo e o grande rei bretão se cruzam em seus feitos. Há apenas um

elemento que ligaria os dois, e este é o pennbard, Taliesin.

89
Dentre as tríades compiladas ou forjadas por Iolo Morganwg10 encontramos no Y

Myvyrian Archaiology de 1807 a tríade de número 125 que diz:

Os três pennbards cristãos da Ilha da Bretanha:


Myrddin, bardo de Ambrosius; Taliesin, chefe dos bardos; e Myrddin,
filho de Madawg Morvryn. (Tradução do autor)

Taliesin está presente na longa relação dos guerreiros de Arthur do conto Culhwch e

Olwen. Mesmo que não tenhamos algum relato em que seja exibido o papel de Taliesin

dentro da antiga matéria arthuriana, é possível que o bardo galês tenha desempenhado o

papel que nas fontes mais recentes tenha sido incorporado por Merlin, le enchanteur11.

Merlin, tanto no grande épico arthuriano de Malory, Le Morte d’Arthur, quanto na

Vulgata Francesa, é visto como um feiticeiro, um sábio e além de tudo um profeta capaz de

enxergar o passado e o presente. Seu papel na corte se assemelha muito aos dos antigos

druidas dos épicos irlandeses, cujas palavras nunca poderiam deixar de ser ouvidas com

atenção pelos reis a quem eram destinadas.

9
O Merlin Ambrosius da História Régia Britânica se ausenta da narrativa antes do nascimento de Arthur.
Será a partir de Boron que a história de Merlin será inserida nos eventos diretamente relacionados aos feitos
Arthur e seus cavaleiros.
10
Iolo Morganwg, pseudônimo de Edward Williams (1747- 1826), foi um antiquário, colecionador e um
importante poeta para o romantismo galês e para os movimentos associados ao neo-druidismo. Entre suas
obras existem diversas compilações das tríades galesas, algumas são consideradas criações suas, para outras,
no entanto, é possível encontrar correspondentes nos antigos manuscritos galeses.
11
Não só as condições do nascimento de Merlin muito se assemelham com as de Taliesin como também o
famoso enchanteur nunca perdeu suas habilidades oniscientes típicas dos mais hábeis dos poetas. Talvez o
que tenha havido nas compilações francesas seja a substituição do nome de Taliesin pelo de Merlin, devido à
fama que o personagem de Geoffrey alcançou, fato este que pode ser comprovado pelo grande número de
manuscritos e traduções que sobreviveram do História Régia Britânica.

90
Talvez as três tradições de Merlin (o Ambrosius, o Silvestre e Taliesin) não sejam

distintas entre si, se Merlin, em sua sabedoria, conjugou o bárdico e o druídico.

Na obra de Malory e na Vulgata não encontramos o bardo Merlin, não ouvimos

entre suas palavras qualquer espécie de versos, nem encontramos qualquer indicação que o

caracterize como um bardo. Na verdade, nas fontes da tradição armórica há pouquíssimas

referências a um bardo, qualquer que seja, ou ao trabalho dos bardos. Há sim o personagem

de Dinadan, que por vezes encontra-se ao sabor da composição de sátiras e Bleoberes,

famosus fabulator, que teria composto a elucidação feita à Demanda do Santo Graal, de

Chrétien de Troyes.

O Merlin que acompanha Arthur, que o entretem com sua companhia, que o

adverte com seus conselhos e o instrui acerca do mundo feérico, pouco trouxe do bardo

galês, Myrddin; não trouxe seus versos, mas trouxe consigo o dom da profecia, o dom

absoluto do bardo, pois o bardo é aquele capaz de enxergar passado, presente e futuro. Mas

se atentarmos à obra de Robert de Boron em que o Merlin já não é apenas Ambrosius, mas

o Merlin enchanteur, veremos que de tempos em tempos, o mago se refugiará na Floresta

da Nortumberlândia e ditará os versos para que seu mestre, Blásius, os escreva em um livro

dos eventos, dos feitos e das aventuras do Reino de Logres. Merlin é o mítico bardo que

compôs toda a matéria arthuriana.

...Brás [Blásius] tomou a palavra e disse:


- Merlin, agora vejo que queres me deixar. Dize-me o que devo fazer
nesta empreitada.
_ Eu lhe darei a razão verdadeira do que me pergunta. Nosso Senhor,
por direito e razão, deu-me tanto conhecimento e tal memória, que aquele que

91
imaginava ter-me criado para si, perdeu-me, enquanto Nosso Senhor escolheu-
me para realizar um trabalho seu, que não poderia ser feito, se não por mim,
porque ninguém sabe as coisas que sei. Por isso sei que me convém ir a terra
desses que vieram me buscar. E farei tantas coisas e falarei tanto que me tornarei
o ser mais ouvido nesta terra, depois de Deus. E o senhor partirá para levar a
cabo esta obra que começou, mas agora não virá comigo, antes irá procurar uma
terra que tem por nome Nortumberlândia, uma terra cheia de muitas e grandes
florestas e tão estranha às pessoas da própria região, que há partes onde ninguém
nunca esteve. E lá viverá. Eu irei algumas vezes encontrá-lo e lhe ensinarei o
que for necessário para fazer o que deve realizar. E terá muito trabalho, mas a
recompensa será boa. Sabe qual? Eu lhe direi: em vida o cumprimento dos
desejos, e depois da morte, a alegria perdurável. E enquanto o mundo durar, sua
obra será conhecida e ouvida com agrado. E sabe de onde lhe advirá tal graça?
Virá da mesma graça que Nosso Senhor deu a José, aquele José a quem foi
entregue ainda na cruz. E depois que tiver trabalhado bem por ele, por seus
antepassados e por seus sucessores, e tiver feito tantas boas obras que mereça
tornar-se seu companheiro, eu lhe ensinarei onde estão eles, e verá o glorioso
Jesus Cristo que lhe foi dado. Quero enfim que saiba, com mais segurança ainda,
que Deus me deu conhecimento e memória tais que farei, em todo o reino para
onde vou, com que os homens bons e as boas mulheres trabalhem para a vinda
daquele que deve nascer desta linhagem que Deus tanto ama. Mas quero saiba
ainda que esse trabalho não acontecerá senão no tempo do quarto rei, o rei
desses tempos de grandes sofrimentos e que se chamará Arthur. O Senhor irá lá
onde lhe disser. Eu irei frequentemente vê-lo e lhe contarei todas as coisas que
quero ver metidas no seu livro. E saiba que seu livro será amado e tido em
grande estima por muita gente, ainda por quem nunca o tenha visto. E depois
que o tiver terminado, o senhor o levará lá, onde vivem aqueles que receberam a
gloriosa recompensa de que lhe falei. Entre eles não haverá homem bom ou boa
mulher, cujo nome o senhor deixe de consignar, em seu livro, nem alguma ação
importante que tenham feito. Saiba igualmente que nunca a estória de uma vida
será ouvida com tanto agrado, como a de Arthur e a dos homens de seu tempo. E
quando tiver acabado o livro e contado a vida deles a todos, seu mérito será igual
ao daqueles que vivem na companhia do santo vaso que se chama Graal, e seu
livro, porque fala e falará deles e de mim, será para todo o sempre, depois de sua
morte, chamado o Livro do Graal, e as pessoas terão grande prazer em escuta-lo,
porque muito pouca coisa dele, de palavras ou ações contadas, deixará de ter
proveito ou será letra morta. ( BORON, Robert. Merlim. pág, 70 -72)

92
O DESTINO DE ARTHUR

Neste nosso percurso de investigação dos mitos galeses encontramo-nos com

diversos personagens que habitam as palavras da matéria arthuriana. Se não encontramos

respostas satisfatórias para as perguntas que foram feitas, justificamos, assim, a força, a

presença e a vigência destes mitos. Se encontramos origens primitivas e versões antigas

destes mitos, mais íntimos, então, nos tornamos de seu conhecimento.

Dentre os personagens aos quais foram dedicados capítulos nestas páginas, três

eram cavaleiros de Arthur: Kai, Ivan e Perceval. Os outros três foram, em sua maneira,

importantes forças na consolidação do reinado de Arthur: Morgana, Pelles e Merlin.

Não perguntaremos nestas páginas por quem seria o Rei Arthur, se realmente existiu

ou quem seria o Arthur histórico. Debrucemos sobre um mito, sobre uma matéria poética e

não sobre documentos históricos, daí o nome: O Destino de Arthur. Para esta proposta

voltemos aos capítulos anteriores e vejamos as três forças de essência divinas que agiam no

destino do rei bretão.

93
Morgana

Comecemos por Morgana, a fada. Como vimos, as fadas tinham seu próprio reino

nas lendas arthurianas, Ávalon. Este reino era habitado por uma ordem iniciática de

mulheres conhecidas como as Damas ou Donzelas do Lago ou simplesmente como fadas.

Nesta ordem uma série de conhecimentos secretos eram transmitidos às noviças, entre eles

os trabalhos manuais, a poesia, a astrologia, a medicina e a magia. E Morgana, a irmã de

Arthur, é a rainha deste belo reino de mulheres.

As fadas eram conhecidas por sua extrema riqueza, opulência e poder. Para um

cavaleiro seria de extrema honra casar-se com uma destas mulheres12, pois além do poder e

da riqueza que lhe adviria, uma honra ainda maior lhe caberia, pois, ao ter como

companheira uma fada, ele teria que ser constantemente provado em não irromper no

interdito proposto por sua mulher.

Encontramos assim diversos cavaleiros, dentre os mais valorosos, da corte de Arthur

que são casados com mulheres provenientes de Ávalon: Urien e seu filho Ivan, Gawain,

Culhwch, e dos lais: Lanval e Tyolet. E o próprio Arthur é casado com a fada Guenevere, já

que seu nome em galês, Gwenhyfar, pode significar “fada branca” ou “fantasma branco”13.

12
Vale ressaltar que nos romances arthurianos, até mesmo nos mais tardios, o casamento não implica
necessariamente no santo sacramento da comunhão cristã.
13
Segundo Rachel Bromwich, Gwenhwy-vawr significaria Gwenhwy, a grande, em contraste com sua irmã
que seria Gwenhwy-vach, ou seja, Gwenhwy, a pequena. No entanto como vimos o mecanismo do mito tem
pouco interesse neste tipo de filologia. Origens e significados novos, interessantes e de pouquíssimo rigor
científico são propostos nestas narrativas, vejamos como exemplo o caso de Malory que propõe o significado
de Excalibur, a espada de Arthur, como “corta aço”.

94
Poderíamos incluir também Tristão, já que Isolda pode ser identificada como uma

fada. Isolda é proveniente da Irlanda14, país que muitas vezes é identificado com o outro

mundo; Tristão é provado em seu valor, e teve, para conquistar a mão de Isolda, que matar

o dragão; e, por fim, não devemos deixar de assinalar os poderes de cura que Isolda retinha

e que por sua vez foram-lhe ensinados por sua mãe.

Fonte de riqueza, sabedoria, poder, luxúria e beleza, as fadas eram mulheres que

conferiam a seus senhores uma nobreza e fama sem par. Se, sabendo disso, atentarmos para

o poema Erec e Enide, veremos o que se diz naqueles belos versos do bardo bretão. Erec é

um dos cavaleiros da rainha, que desarmados, acompanham Guenevere em seus passeios. E

certa vez em um desses passeios uma donzela que passeava junto à rainha é gravemente

ofendida pelo anão de um outro cavaleiro, Yder. Como estava desarmado, Erec parte na

direção do cavaleiro para quando for possível, desafiá-lo, restaurando, com sua vitória, a

honra da rainha e de sua aia.

Nesta demanda ele conhece um vavassalo que o hospeda e lhe garante as armas com

as quais poderá desafiar Yder. Na casa deste vavassalo é que Erec conhece uma belíssima

donzela pela qual cai em louco amor e seu nome é Enide. A moça é de extrema beleza, no

entanto, o que chama a atenção é sua extrema pobreza, vestia-se com andrajos e nenhuma

jóia tinha para adornar seu belo corpo. Erec, realmente, não se importa com isto, e ao pedir

a mão da donzela a seu pai, este entrega sua filha sem ressalvas ao rapaz. No dia seguinte

ao armar-se pela justa, é a própria donzela que o veste, no entanto ela não conjura qualquer

14
Sigurd, herói da Volsunga Saga, também é um dos guerreiros que conquistam uma mulher proveniente de
outro mundo, a valquíria Brynhild. Em A Canção dos Nibelungos, versão alemã desta mesma saga, este outro

95
feitiço ou magia15. Mesmo com as armas pouco valiosas do vavassalo, Erec consegue

vencer a justa e restaurar, assim a honra da rainha, a de sua aia.

Retorna assim o jovem cavaleiro com sua noiva à corte do Rei Arthur. E a todo

instante é reiterada a pobreza da jovem moça, apesar, de, como havia dito seu tio, um

conde, ser a donzela bela e inteligente, além de ser de mui nobre casamento16. Ao chegar à

corte circulam vários comentários da situação de ordinariedade de Enide, que é quebrada

apenas pela extrema beleza que exibia em sua face e em seu corpo. No texto não é dito, mas

esse desconforto que causa Enide não é decorrente de sua pobreza, mas decorre

exclusivamente de a bela moça não ser uma fada, não possuir a riqueza, a sabedoria e o

poder que apenas estas mulheres possuíam17.

As fadas seriam, sobretudo, o meio de ligação dos homens entre este mundo e o

mundo além, seja ele Ávalon ou o Annwn, já que as fadas transitam livremente por estas

três instâncias da realidade. São as fadas que anunciam à corte de Arthur a ofensa feita por

Percival ao Rei de Annwn, Peles. São as fadas que concedem aos cavaleiros e a Arthur os

mais valiosos tesouros provenientes dos outros mundos, sejam objetos que em valor e em

beleza ultrapassam qualquer outro deste mundo, sejam objetos que retenham alguma

propriedade mágica ou que tenham suas habilidades muito mais acentuadas que seus

correspondentes. Temos como exemplo o escudo feito por Morgana e dado a Tristão que

denunciou o caso de Lancelot com Guenevere a Arthur, temos também o anel da

mundo será identificado com a Islândia e Brünhild será a rainha desta ilha.
15
Érec et Énide, Chrétien de Troyes v. 692-746.
16
Idem. V. 1244-1319.

96
invisibilidade dado por Lunet a Ivan; a espada, Excalibur, e sua bainha que foram confiados

a Arthur, dentre diversos outros mantos, chifres e presentes outros que foram cedidos aos

homens pelas damas feéricas.

As fadas são aquelas que acompanham Arthur em toda sua trajetória, ajudando-o,

punindo-o e, por vezes, solicitando algum dom do rei bretão, para, por fim, no momento de

sua morte ampará-lo e levá-lo para o seio da Deusa Dana, a Ilha de Ávalon, e curá-lo.

Pelles

Clamemos agora a nossa presença, Pelles, o rei do castelo do Graal. Dois mundos,

como vimos, cada um com sua vigência originária, que por vezes se confundem e se tornam

indistintas, o Annwn e Ávalon. Ávalon é a Ilha das Mulheres, reino de riquezas e ocultos

saberes. O Annwn é um reino de um maior mistério e de acesso mais cerrado que a ilha de

Morgana, seus tesouros não podem ser dados, assim como os tesouros de Ávalon, os

tesouros do Annwn podem ser apenas conquistados.

No Lai de Lanval vimos como uma donzela filha do rei de Logres concederá sua

mão apenas àquele cavaleiro que conquistar um dos tesouros do Annwn, a pata branca do

cervo. Quando ela chega à corte e anuncia seu desafio nenhum cavaleiro se apresenta para a

17
Atentemos também para o fato de não haver qualquer espécie de provação das capacidades de Erec para ele
ganhar a mão de Enide. Vejamos o fato da moça não colocar qualquer interdito a seu noivo que faria com que
o herói perdesse o direito de tê-la como amante.

97
aventura, como poderiam entrar no reino de Annwn? É assim, então, que a donzela mostra

à corte seu cão, um perdigueiro, que levará o cavaleiro que se dispuser a este reino oculto.

O que escondia a entrada deste reino era uma ilusão, extremamente real e

assustadora de um rio intransponível. Muitos cavaleiros desistem desta demanda,

intimidados pela travessia deste rio violento e mortal. Apenas Lanval percebe a ilusão e

assim o atravessa, percebe-a talvez por sua coragem, por sua astúcia ou mais possivelmente

pelo seu conhecimento deste outro mundo - já que uma fada já o ensinara o assovio mágico,

poderia esta, que teria sido sua amante, ter-lhe ensinado muito mais.

São sete leões que guardam o cervo, e fazem isto com grande amor pelo animal.

Sabemos através das pesquisas de Eliade (In: Imagens e Símbolos) que o cervo é um

animal que carrega uma forte simbologia em diferentes culturas, isso se deve aos seus

chifres que caem em determinado período e crescem novamente, conferindo-se a este

animal animal uma simbologia de morte, renascimento e fertilidade, portanto da riqueza e

da beleza. Podemos acrescentar a isto, o fato de os cervos serem animais encontrados

próximos a fontes e rios. Os leões, por sua vez, são animais que estão intimamente

associados ao Annwn, e são frequentemente seus guardiões.

Encontramos mais uma vez nas fontes um símbolo associado ao cristianismo, mas

que nas fontes arthurianas remonta a um conhecimento mítico pagão. Desconhecemos que

significado exatamente tem o leão na mitologia bretã. Na mitologia medieval cristã, o leão

é um dos quatro animais associados a Jesus, os outros três são o galo, a fênix e o cordeiro.

Esta associação do leão com a Annwn possivelmente seja proveniente da subclasse do leão

98
europeu (Panthera leo europaea), encontrado por toda a Europa mediterrânea durante a

antiguidade, sendo que, devido a intensa caça, sua presença tornou-se limitada a algumas

regiões pouco habitadas deste continente, acredita-se que tenha sido extinto por volta do

ano 1 no oeste europeu. Como este animal era encontrado somente em áreas de difícil

acesso passou-se, assim, provavelmente devido a isto, a sua associação, que remonta a uma

memória dos primeiros séculos da era cristã, ao Annwn.

Tendo conhecimento da simbologia das águas e do cervo nas culturas antigas,

poderíamos encontrar uma série de significações nos versos de Tyolet. Quem seria o

cavaleiro que antes de atravessar o rio tinha as formas de um cervo. E qual seria o

significado do cervo da pata branca guardado pelos leões? Possivelmente seria uma

provação em busca de um item que assegurasse a fertilidade à noiva, assim como o símbolo

da pérola nas culturas antigas? Poderíamos encontrar uma série de conjecturas acerca dos

possíveis significados nestes misteriosos versos bretões. Mas seu sentido, isto não podemos

encontrar. Apenas os antigos sábios destas antigas culturas sabiam-no, e estes não

acreditavam na escrita, ou, em alguns casos, confiaram-no em escritas veladas, portanto,

para nós, resta-nos apenas o mito, a palavra.

Dobremo-nos, portanto, às palavras, este que é o mais valioso tesouro da

antiguidade que nos foi legado pelos antigos bardos. Tentemos novamente, portanto,

escutar estas palavras que foram cantadas em tempos de obscura memória.

Tyolet é assim o herói que provado diante de uma fada deve lançar-se na demanda

de um valioso e único tesouro que pode ser apenas encontrado no lugar do profano, no

99
outro mundo, no Inferno, em Niflheim18, em Hades ou como dizem os antigos galeses, o

Annwn. Esta é a provação maior de um guerreiro, a aventura máxima, com o maior dos

prêmios, o amor de uma fada.

Como todo grande herói, Arthur não será apenas lembrado por cumprir e conquistar

a maior das aventuras, o maior dos tesouros e a mais nobre das mulheres. Como vimos em

Preiddeu Annwn, o rei bretão conquista y Per Annwn, o Caldeirão de Annwn, que

posteriormente será chamado de Graal. Sabemos que o reino de Pelles, outrora rico e fértil,

devido a uma grave ofensa, se tornará na Terra Arrasada (the Waste Land), a terra

improdutiva, onde tudo fenece; e Arthur e seus cavaleiros serão aqueles que restaurarão a

fertilidade a Annwn. Arthur não somente conquista o maior tesouro do reino oculto, como

também o restaura em sua antiga vigência.

Com a conquista do Graal e a revitalização do Annwn, Arthur não só se coloca

como o maior rei dos dois mundos, como também como senhor de Pelles. Arthur, ao final

da Demanda, é o rei de Bretanha, da Armórica, da França, Imperador de Roma e senhor do

Annwn.

18
Niflheim é um dos nove mundos da mitologia escandinava, terra do gelo e do frio. Confunde-se com o
reino da deusa Hel – não sabendo exatamente se os dois nomeam o mesmo reino, ou se são dos reinos
distintos, ou se são territórios de um mesmo reino. No ciclo dos volsungs, seu maior herói, Sigurd conquista o
tesouro de Niflheim e subjuga seus habitantes, os anões. Isto pode ser verificado na Canção dos Nibelungos ,

100
Merlin

Merlin é, das personagens que compõem o ciclo arthuriano, a que mais dificuldade

impõe a este trabalho, pouca ou nenhuma pista deste temos nas fontes mais antigas – ao

menos sabemos que o enchanteur exerce o papel dos druidas dos épicos irlandeses e

sabemos também que é o mítico bardo que compôs todo o conjunto de histórias do ciclo.

Pensemos primeiramente Merlin, não como o druida de Arthur, mas sim como o

Ambrosius, o profeta e feiticeiro de Uther Pendragon, pai de Arthur.

Uther seria o legítimo rei da Bretanha, cujo trono fora usurpado por Vortigern. Em

sua infância Merlin profetizara sobre a derrota de Vortigern e a vinda dos legítimos reis da

ilha. E assim como fora profetizado acontece e Uther, que fora levado ainda criança para o

continente juntamente com seu irmão19, retorna para reivindicar o trono. O título que

carrega junto a seu nome, Pendragon, pode dizer em galês tanto “cabeça de dragão” ou

“chefe dos dragões”. E é exatamente este animal que é visto no campo da batalha contra os

invasores da Bretanha, assinalando assim a vitória dos dois irmãos:

Como visse os saxões no meio do campo, com as batalhas ordenadas


como se fosse para combater Uter, o rei (Pendragão, irmão de Uter) mandou
ordenarem-se as suas batalhas, e logo foi feito, porque cada um sabia muito bem

onde Sigfried (o Sigurd germânico ) é conhecido como o rei dos Nibelungos e detentor de seu valioso e
cobiçado tesouro.
19
Em Robert de Boron, Pendragon é o irmão de Uther. Com a morte do primeiro, Uther carregará o nome de
seu irmão junto ao seu próprio.

101
com quem se alinhar. Então aproximaram-se um dos outros. E quando os saxões
viram-se encalacrados, perceberam que não podiam voltar sem combater. Então
apareceu no ar o monstro de que falou Merlin, um dragão vermelho a correr no
ar lançando fogo pelas ventas e pela boca; era o aviso para todos que o vissem.
Quando os saxões o viram, ficaram assustados e tiveram grande pavor. E Uter e
Pendragão, ao vê-lo, disseram aos seus: “Corramos sobre eles, porque estão
confundidos e já vimos a insígnia de que Merlin falou.” Os que estavam na
frente de Pendragão correram sobre eles coma avidez que os cavalos puderam.
Quando Uter viu que o pessoal do rei estava no meio do adversário, também
correu contra eles e atacou talvez com mais violência ainda. Assim começou a
grande batalha de Salaber. (BORON, p. 117-118)

Vemos que em dois momentos Uther é associado a y Draig Goch20 (em galês, “o

Dragão Vermelho”), no episódio da construção da torre em Snowdown por Vortigern e

neste episódio na guerra contra os saxões, além, é claro, de trazê-lo em seu nome. Este

símbolo que carrega Uther será abandonado por seu filho, já que, curiosamente, em

momento algum, em nenhuma fonte, Arthur estará associado ao Dragão.

Além de seu caráter relacionado a esta força da natureza que é o Dragão, Uther, nas

antigas fontes galesas, era imbuído das artes da magia, como verificamos na seguinte tríade

presente no Livro Vermelho:

Três Grandes Encantamentos da Ilha da Bretanha:

O Encantamento de Math, filho de Mathonwy, que ele ensinou a


Gwydion, filho de Don, e o Encantamento de Uthyr Pendragon, que ele ensinou
a Menw, filho de Teirgwaedd, e o Encantamento de Rudlwm, o anão, que ele
ensinou a Coll, filho de Collfrewy, seu sobrinho. (Tradução do autor)

20
O dragão vermelho é uma criatura recorrente na mitologia bretã. Sua figura é de tal importância que está
presente, representado sobre um fundo verde e branco, na bandeira do País de Gales.

102
Nesta tríade Uther é colocado ao lado de Math, rei de Gwynedd21, personagem este

presente no ramo mitológico do Mabinogion. Math é descrito como um poderoso feiticeiro

que tinha a habilidade de ouvir tudo que os ventos trouxessem aos seus ouvidos.

Menw, que teria aprendido a arte da magia com Uther, é um dos seis cavaleiros a

compor o grupo que sai em demanda pelos Tesouros da Ilha da Bretanha em Culhwch e

Olwen:

E Arthur chamou Menw, filho de Teirgwaedd, que, quando chegava a


terras pagãs, sabia como lançar sobre essas terras um encantamento de tal sorte
que ninguém os podia ver, enquanto eles viam todo mundo.
(In: O Mabinogion, p. 168)

Não podemos ter dúvidas então acerca das capacidades de manipulação mágica de

Uther Pendragon nos primitivos mitos bretões. Isto conseguimos depreender facilmente no

contato com estas antigas fontes. No entanto, o que mais podemos reconstituir destes

antigos mitos a partir desta informação?

É bem provável que o próprio Uther tenha usado de seus artifícios para assumir a

forma do Duque da Cornualha e deitar-se com sua esposa Igrane, a mãe de Arthur. Uther

era um feiticeiro, e, portanto, poderia dispensar os préstimos de Merlin. Será que assim

como o enchanteur, Pendragon possuía o dom da profecia? Vejamos, para tanto, a Elegia

de Uther Pendragon (Marwnat Uthyr Pen), poema este presente no Livro de Taliesin:

21
Gwynedd era um dos seis reinos medievais de Gales. Localiza-se no norte do país, circundando a área de
Snowdown e compreendendo também a Ilha de Mon (Anglesey).

103
Elegia de Uther Pendragon22

Não estou entre o estrondo das hostes?


Eu não recuaria, entre as duas hostes, sem sangue.
Não sou aquele chamado de Gorlassar?
Meu cinturão era um arco-íris a meus inimigos
Não sou um príncipe em crepúsculo,
mas eis que tomam minha aparência de chefe.
Não sou, como Cawyl, o lavrador
Eu não recuaria sem sangue entre as duas hostes
Não serei eu aquele que defenderá meu santuário?
Na perda de meus furiosos companheiros
Não sou em meio à fúria apto ao sangue?
Ousando um golpe de espada entre os filhos de Cawrnur?
Não dividi meu abrigo?
A nona parte do valor de Arthur
Não destruí cem castelos?
Não matei cem senescais?
Não concedi cem mantos?
Não cortei cem cabeças?
Não concedi ao antigo chefe
para sua proteção magníficas espadas?
Não preparei as purificações
quando Hayarndor subiu a montanha?
Em perda, em dor, fortes foram meus tendões
O mundo não seria, se não apenas à minha prole
Sou um bardo a ser honrado; os inábeis poetas,
que lançados sejam aos corvos, às águias e às furiosas aves!
Avagddu encontrou-se com seu igual
Quando os bandos de quatro homens alimentaram-se entre as duas planícies
Habitando está o paraíso, como ele pôde desejar,
Contra a águia, contra o medo do inapto
Sou um bardo, e um harpista
Sou um flautista, e um .
De sete músicos, o grande feiticeiro
Tinha da ornada honra o privilégio
Hu, das asas expandidas,
Teu filho, da bárdica proclamação
Teu senescal, de talentoso pai
Se de minha língua a recitação de minha elegia
Diante do muro de pedra defronte ao mundo [se encontrar]
Que o semblante de Prydein24 ilumine meu caminho
Soberano dos céus, que minha mensagem seja ouvida.
(Tradução do autor - o texto original encontra-se em anexo)

22
Elegia vem de elegós... : luto, recuperação, pranto, reparação, lamento, mas tudo isso não apenas, nem
sobretudo, no sentido melancólico de desânimo e astenia, isto é, de uma perda somente negativa por destruir e
aniquilar; mas, no sentido reparador de uma recuperação das forças construtivas de mudança e transição.
(Carneiro Leão, Aprendendo a Pensar vol. II, p. 50)
23
A rigor, é um termo que diria em português: “ homem da multidão”.
24
Bretanha

104
Pendragon é um bardo neste poema, e, como sabemos, o bardo nas antigas culturas

era dotado do dom de enxergar o passado, o presente e o futuro. Uther era um personagem

que assim como Merlin retinha consigo os saberes do bardo, do druida e, além disto,

carrega consigo o dragão (possivelmente esta era uma de suas metamorfoses druídicas).

Disto podemos tirar ao menos duas conclusões: Primeiro: Uther seria aquele que

desempenhava o papel de Merlin e Menw seria o seu discípulo. Por estar sempre

aproximado a Arthur25, aconselhando-o e instruindo-o, passou com o tempo, nas fontes

posteriores, a desempenhar a figura do pai do rei bretão. Segundo, e talvez a mais valiosa:

Uther poderia ser ou não o pai de Arthur, mas o que estaria em jogo, em verdade, seria a

proximidade que estes personagens têm com a magia e, assim, com o divino.

Escutemos novamente, então, este poema que traz o eco de tempos antigos e

tentemos, assim, ouvir estes antigos ecos. Já pelo final de seus versos Uther invoca um

misterioso personagem: Hu. Na compilação de contos populares de Jenkyn Thomas há um

conto conferido ao herói bretão chamado Hu Gadarn - Hu, o Poderoso. Em verdade este

conto é retirado das tríades de Iolo Morganwg. Sabemos que muitas das tríades do poeta

galês são consideradas apócrifas, sendo boa parte delas criações suas, no entanto, podemos

dizer que mesmo sem seus correspondentes na antiga literatura galesa, estas criações não

foram criadas sem fundamento.

25
Cabe notar que tanto no poema Pa Gwr, quanto no Marwnat Uthyr Pen, não é citado qualquer grau de
parentesco entre este dois personagens.

105
Quem seria então este Hu, a que Uther se dirige como um filho. Ele foi o primeiro

rei da Bretanha, tendo levado consigo os cymry (galeses) do País do Verão, que também

era chamado Defrobani, a Terra do Verão ou Atlântia; e eles vieram através do nebuloso

mar até a Ilha de Prydein, onde se fixaram. Hu é também lembrado como um dos três

benfeitores de Prydein, tendo ensinado os cymry as habilidades do arado, e, sobretudo, foi

quem primeiro usou a canção para fortalecer a memória e seu registro. Hu é, portanto, o

primeiro bardo dos bretões26.

Mesmo se não tomarmos a obra de Iolo Morganwg como verdadeira, ainda é

possível enxergar na invocação de Hu, o apelo a um antigo bardo. Uther é assim

descendente desta remota tradição de bardos detentores dos segredos ocultos das artes da

magia. Uther, o pai de Arthur, foi um grande feiticeiro e um grande bardo, renomado pelo

dom da palavra e da divinação dos tempos.

Merlin é aquele que nas fontes tardias do mito arthuriano se recolhe de tempos em

tempos ao interior da floresta, o templo divino. É no local do divino que o enchanteur se

recolhe, para, no regaço dos deuses e através de seus artifícios ocultos, restabelecer a antiga

ligação que o homem tinha com os deuses, perdida há eras, pois o homem ao se afastar do

selvagem, afastou-se assim do tempo divino. O Arthur de Malory é o herói que necessita

26
Estas foram respectivamente as tríades 4, 56 e 94 das tríades de Iolo Morganwg. Outros mais ainda citam
este personagem.

106
deste avatar para, com suas idas ao templo divino, guarnecer-se com suas palavras de

sabedoria27.

No entanto, nem sempre fôra desta forma. Quando os reis eram bardos, magos e

profetas, seus heróis eram companheiros de deuses; seus súditos, servos destes mesmos

deuses, pois estes antigos deuses, que em um outro mundo se refugiaram, andavam, nestes

tempos, com os homens.

E assim percebemos muito do que fôra perdido. As incursões ao Annwn, hoje tão

difíceis, não o eram nos tempos antigos, pois eis que os antigos heróis transitavam quase

livremente entre os dois mundos28! E este contato foi se perdendo, tiveram então os heróis

que confiar esta viagem do conhecimento do sagrado apenas às castas que ainda, de alguma

forma, conservavam este vínculo: as fadas e os magos.

Percebemos assim o símbolo máximo que são os tesouros roubados ou conquistados

do Annwn. A tentativa última da recuperação deste vínculo com o divino; e o Graal, que é

o caldeirão, recupera todas as características do divino que certa vez poderiam ter

pertencido ao homem: a eternidade dos seres e a fecundidade da terra.

E sentimos por fim, enfim, porque Arthur é o rei do que foi, e o rei que há de ser.

Ele é aquele que restaurou, com a ajuda de seus guerreiros, o antigo templo dos deuses no

27
Entretanto: Theôn oudeìs philosopheî oud’ epithymeî sophòs genesthai ésti gár (nenhum deus filosofa nem
aspira a tornar-se sábio, visto que já o é plenamente) PLATÃO, O Banquete 204 a.
28
No ramo mitológico do Mabinogion, vemos os heróis vagarem pelos dois mundos, de tal forma que não
percebemos a diferença entre eles.

107
tempo dos homens; e será aquele que, quando Prydein mais precisar, retornará para restituir

mais uma vez este tempo, que nós, homens perdidos no véu da modernidade, sabemos

apenas pelas antigas histórias dos antigos bardos de priscas eras.

Que melhor maneira então para encerrarmos do que ouvirmos um conto, um conto

de fadas, dizem uns, mas que chamaremos apenas de conto. Pois como diz Eliade,

referindo-se a isto que chamam conto de fadas:

Ele (o conto de fadas) só constitui um divertimento ou uma evasão para


a consciência banalizada e nomeadamente para a consciência do homem
moderno; na psique profunda, os cenários iniciáticos conservam a sua seriedade
e continuam a transmitir a sua mensagem e a operar mutações. Sem dar por isso,
e imaginando divertir-se ou evadir-se, o homem das sociedades modernas
beneficia ainda desta iniciação imaginária fornecida pelos contos.

Ouçamos o conto e deixemos que vija pelo menos no templo da palavra o tempo

mítico de outrora29:

Certa vez um galês andava pela Ponte de Londres, admirando o tráfego,


e imaginado por que havia tantas pipas flutuando no céu. Ele chegou em
Londres após muitas aventuras com ladrões e viajantes, que não precisam ser
contadas agora, em troca de um rebanho de vacas pretas galesas. Ele o vendeu
com muito lucro, e com o tilintante ouro em sua bolsa ele estava por ver as lojas
da cidade.

Ele carregava um cajado de aveleira em suas mãos, pois você deve saber
que um bom cajado é tão necessário a um vaqueiro quanto são os dentes de um
cão. Ele estava parando a olhar alguns itens em uma loja ( pois naquele tempo na
Ponte de Londres havia lojas do começo até seu fim), quando notou que um
homem olhava para seu cajado em um longo e fixo e olhar. O homem após certo
tempo veio até ele e perguntou de onde vinha. “Eu venho de meu país”, disse o

29
Este “fairy-tale” , traduzido pelo autor, está presente na compilação de Jenkyn Thomas e chama-se, em
inglês, Arthur in the Cave.

108
galês, com bastante grosseria, pois não poderia ver que assunto poderia ter
aquele homem com tal pergunta.

“Não leve isto impropriamente”, disse o estranho: “se você apenas


responder minhas perguntas e seguir meus conselhos, isto será de grande
benefício a você, mais do que imagina. Lembra-se por acaso de onde cortou este
cajado?”.

O galês estava ainda muito desconfiado e disse: “o que importa onde o


cortei?”

“Isto é importante”, disse o homem, “pois há um tesouro escondido


perto do local de onde você cortou este cajado. Se lembrar deste local e puder
me conduzir até ele, eu lhe colocarei diante de grandes riquezas.”

O galês agora entendia que estava lidando com um feiticeiro, e estava


com grande perplexidade sobre o que devia fazer. Pó um lado, estava tentado
pela possibilidade de enriquecer; por outro lado, sabia que o feiticeiro tinha
conseguido seu conhecimento de demônios, e temia em ter qualquer coisa com
os poderes da escuridão. O habilidoso estranho esforçava-se em persuadi-lo, e
por fim o fez prometer que mostraria onde havia cortado seu cajado de aveleira.

O galês e o mago viajaram juntos para Gales. Eles foram até Craig y
Dinas, a Rocha da Fortaleza, na cabeceira do Vale do rio Neath, perto da vila de
Pont Nedd Fechan30, e o galês, apontado para as raízes de uma antiga aveleira,
disse: “Foi daqui que cortei meu cajado”.

“Vamos cavar”, disse o feiticeiro. Eles cavaram até que alcançaram uma
pedra larga e achatada. Levantando-a, encontraram alguns degraus que desciam.
Eles desceram os degraus e continuaram por uma estreita passagem até
chegarem a uma porta. “Você é corajoso?” perguntou o feiticeiro, “você virá
comigo?”

“Irei”, disse o galês, tendo a curiosidade maior que seu medo.

Eles abriram aporta, e uma grande caverna se abriu diante deles. Havia
uma fraca luz vermelha na caverna, e podiam ver tudo. A primeira coisa que
encontraram foi um sino. “Não toque aquele sino” disse o feiticeiro, “ou tudo
estará acabado para nós dois!”

Enquanto adentravam, o galês viu que o lugar não estava vazio. Havia
soldados deitados dormindo, centenas deles, tantos quantos poderiam os olhos
enxergar. Cada um deles estava vestido em brilhantes armaduras, o elmo de aço
em suas cabeças, o brilhante escudo em seus braços, a espada próxima de suas
mãos, cada um deles tinha perto de si sua lança estacadas no solo, cada um e
todos estavam dormindo. No meio da caverna havia uma grande mesa redonda,
na qual se sentavam guerreiros, cujas nobres feições e ricas armaduras diziam
que eles não estavam na companhia de homens comuns.

30
Esta é uma região situada no sul do País de Gales

109
Cada um destes estava, também, com a cabeça baixada em sono. Em um
trono dourado no outro lado da mesa redonda estava um rei de gigante estatura e
augusta presença. Em sua mão, segurada abaixo do gume, uma poderosa espada
com bainha e um cabo com pregos de ouro e lustrosas gemas; em sua cabeça
havia uma coroa cravada de preciosas pedras que brilhavam e luziam como
muitos pontos de fogo. O sono havia pôsto seu lacre em seus olhos também.

“Estão eles todos dormindo?” perguntou o galês, dificilmente


acreditando em seus olhos.

“Sim, cada um e todos eles,” respondeu o feiticeiro, “mas se você tocar


aquele sino, todos irão acordar.”

“Por quanto tempo estão dormindo?”

“Por uns mil anos!”

“Quem são eles?”

“Os guerreiros de Arthur, esperando pelo tempo que virá quando eles
deverão destruir todos os inimigos dos cymry e retomar a Ilha de Prydein,
estabelendo seu verdadeiro reinado, uma vez mais em Caer Leon.”

“Quem são aqueles sentados na Távola Redonda?”

“Estes são os cavaleiros de Arthur, Owain, filho de Urien; Cai, filho de


Cynyr; Gwalchmai, filho de Gwyar; Peredur, filho de Efrawc; Geraint, filho de
Erbin; Trystan, filho de March; Bedwyr, filho de Bedrawd; Cilhuch, filho de
Celyddon; Edeyrn, filho de Nud; Cynon, filho de Cydno” – “E no trono
dourado?” interrompeu o galês –“é Arthur, com sua espada Caliburn em sua
mão”, respondeu o feiticeiro.

Impaciente com as perguntas do galês, o feiticeiro dirigiu-se a uma pilha


de ouro sobre o chão da caverna. Ele pegou tanto quanto poderia carregar, e
pediu a seu companheiro que fizesse o mesmo. “Já está em hora de irmos”, disse
ele então, e foi pelo caminho até a porta pela qual entraram. Mas o galês estava
fascinado pela visão dos inumeráveis soldados em suas brilhantes armaduras.
“Como gostaria eu de ver todos eles acordados!” disse a si mesmo. “Tocarei o
sino – Tenho de vê-los levantando de seu sono”.

Quando chegou ao sino, ele o soou até ecoar por todo lugar. Tão logo
soou, veja! As centenas de guerreiros levantaram sobre seus pés e o solo abaixo
deles tremeu com o som das armas de aço. E uma poderosa voz ecoou do
interior, “Quem soou o sino? Está chegado o dia?”.

O feiticeiro estava tão amedrontado que sacudiu como uma folha de


carvalho. Ele gritou em resposta, “Não, o dia não chegou, durmam.”

A poderosa hoste estava em movimento, e os olhos do galês estavam


deslumbrados enquanto olhava para o aço reluzente das armaduras que
iluminavam a caverna com a luz da miríade de chamas de fogo.

110
“Arthur”,disse a voz novamente, “ acorde, o sino soou, o dia está
raiando. Levante-se, Arthur, o Grande.”

“Não”, gritou o feiticeiro, “é noite ainda; durma, Arthur, o Grande.”

Um som veio do trono. Arthur estava de pé, e as jóias em sua coroa


luziam como as brilhantes estrelas acima da incontável multidão. Sua voz era
forte e doce como o som de muitas águas, e ele disse, “Meu guerreiros, ainda
não é chegado o dia quando a águia Negra e a Águia Dourada irão à guerra.
Durmam, meus soldados, a manhã de Gales ainda não amanheceu.”

Um pacífico som como a visão distante do mar ecoou na caverna, e logo


os guerreiros estavam todos novamente no sono. O feiticeiro apressou-se em
retirar o galês da caverna, moveu a rocha de volta a seu lugar, e desapareceu.

Muitas vezes tentou o galês encontrar o caminho para a caverna, mas,


apesar de cavar cada polegada da colina, ele nunca encontrou a entrada.

111
CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O TEMPO DEVORADOR DE MUNDOS

Hélios ouch hiperbésetai métra


O Sol não transgredirá seus limites
(Heráclito, frag 94, Diels)

Falamos de como Arthur e seus cavaleiros restabelecem o tempo divino no tempo

dos homens, reunificando assim, os mundos antes separados. No entanto este feito não é

próprio somente a Arthur, mas a todo grande herói.

Cúchulainn, Héracles, Sigurd, Beowulf, Gilgamesh não podem ser lembrados

simplesmente como antigos reis que foram mitificados, eles são o próprio mito em sua

própria vigência. Quando eles lutam contra o dragão, contra os hunos ou os saxões eles não

lutam ora com seres míticos ora com personagens históricos, eles lutam em seu próprio

mito e a luta destes heróis será sempre contra o tempo, não o tempo divino, mas o

devorador de mundos.

Todo herói sabe que perecerá, este é seu destino, o destino que é a força maior que

os próprios deuses, que habitam o espaço dos céus e das profundezas. Os deuses também

sabem que perecerão com o tempo devorador, e assim deuses e humanos lutam contra o

devorador de mundos. A luta dos homens é por demais efêmera já que a morte os fulmina

antes mesmo do tempo os consumir por completo. Já os heróis não compartilham com os

homens o medo da morte, pois eles sabem que apenas o tempo devorador os fulminará.

112
Ódin em sua busca pelo conhecimento tentou de diversas maneiras evitar o advento

do Ragnarök, o Crepúsculo dos Deuses, mesmo sabendo que remediaria o irremediável.

Seria, por fim, devorado pelo Fenrir. A luta termina sempre por ser infrutífera, pois o

devorador de mundos paira acima de tudo em todos os mundos.

Arthur retira a Espada na Pedra e demonstra assim aos homens que ele será aquele

que firmará mais uma vez no mundo dos homens o tempo da aproximação com os deuses.

Os homens acreditam que se aproximando do divino escaparão assim da irredutibilidade do

devorador de mundos; enganam-se, pois o tempo devora a deuses e homens!

Arthur por diversas vezes expulsa de Prydain a iminência do extermínio, estas são

suas vitórias. Prydain, enquanto seu grande rei viver, estará a salvo. Por todas as vezes que

vier o tempo devorador, seja na forma dos saxões, dos romanos ou de qualquer outro

exército, criatura ou monstro, Arthur e seus cavaleiros estarão de prontidão a impedir o

tempo devorador. Quando, enfim, o grande rei perece pela traição de seu filho – e os heróis

perecem apenas quando traídos – o reino estará a mercê do devorador que devastará a terra

e humilhará os homens.

Assim percebemos os ciclos em que se fundamenta a existência humana, os ciclos

do perecer e do nascer dos diversos mundos que compõem a realidade. O caos primordial

imposto pelo tempo devorador; o fecundar e o nascer que é próprio do divino; e a

degradação e o afastamento do tempo divino de fecundidade proporcionado pela ignorância

113
dos homens – que eles procurarão restaurar, para, enfim, o tempo devorador restabelecer o

caos primordial e para, novamente, renascerem novos deuses. Este é o ciclo dos ciclos, o

tempo dos tempos.

E a luta dos grandes heróis é, evitando a aniquilação e restabelecendo o contato com

o divino e com os mundos, fazer vigir novamente um tempo em que os homens

compartilhavam com os deuses uma mesma essência, imortal e fecunda. E o canto dos

bardos é o canto desta era a nós homens que vivemos na iminência do tempo devorador,

para que vivamos, pelo menos nas palavras, o tempo mítico, o tempo dos deuses.

114
APÊNDICE I:
Y GYMRAEG

O Galês é uma língua de origem indo-européia pertencente ao ramo lingüístico

grego-ítalo-céltico. Existem dois os principais grupos de línguas célticas. Do primeiro

fazem parte o gaélico irlandês e o gaélico escocês e o manx, falado na Ilha de Man. Do

segundo grupo compreende o Galês (Cymraeg, ou com lenição: y Gymraeg) e o bretão

armoricano.

Outras mais eram as línguas célticas, no entanto, encontram-se extintas tais como o

córnico, o gaulês e o bretão.

O Galês sobrevive, sendo falado principalmente no norte do País de Gales e assim

como as demais línguas célticas apropriou-se do alfabeto latino para sua escrita. Para os

falantes de língua portuguesa a leitura dos nomes galeses não apresentará maiores

dificuldades já que a pronúncia segue basicamente as regras do latim, com algumas

variações a dizer:

Consoantes:

C: terá sempre o som de c em casa, nunca como em cervo.

G: terá sempre o som de g em galo, nunca como em gelo.

S: terá sempre o som de s em selo, nunca como em asilo.

F: terá sempre o som de v como em vaso.

115
Dígrafos:

Ch: tem a mesma pronúncia do alemão Bach.

Ph: tem a mesma pronúncia de f ,como em filosofia.

Th: tem a mesma pronúncia do th fraco do inglês, como em thin (magro), bath

(banho).

FF: tem a mesma pronúncia do f, como em fado.

Dd: tem a mesma pronúncia do th forte do inglês, como em other (outro).

Rh: tem a mesma pronúncia do r forte do árabe, transcrito por sua vez Kh, como no

nome Khalil.

Vogais:

E: sempre aberto como em época.

I e U: têm sempre o som do i do português.

W: tem o som do u do português.

Y: tem o som de i quando em monossílabos ou na última sílaba das demais palavras.

Tem o som similar ao er de father (pai) do inglês britânico quando nas demais posições.

No galês, as palavras em sua grande maioria são paroxítonas.

116
APÊNDICE II:
CRONOLOGIA DAS PRINCIPAIS FONTES

Para facilitar o entendimento da intrincada história das fontes do ciclo arthuriano,

oferecemos ao leitor a seguinte tabela, no entanto, duas observações devem ser feitas: 1)

Escolhemos organizar a cronologia pelas datas das compilações, não pela possível data de

composição das obras. Sabemos que muitas matérias já cristianizadas e bem tardias

conservam arcaísmos do mito que não são encontrados nas fontes mais antigas. 2)

Excluímos desta tabela as obras históricas tais como o livro de Nennius ou os Annales

Cambriae, pois como foi visto, ou será visto neste trabalho, o que tratamos foi do mito

arthuriano, nunca, em momento algum, foi levantada a questão do Arthur histórico.

Cronologia das Principais Fontes Arthurianas Medievais

Data da Obra Autor Língua da Particularidades


compilação compilação

1470 Le Morte d’Arthur Thomas Inglês Diversos eventos do ciclo são


Malory integrados e compõe um único
sistema

1400 Arthur e Kaledvwlch Anônimo Galês Narrativa galesa que relata os


primeiros anos de Arthur.

1350-1400 Sir Gawain e o Cavaleiro Anônimo Inglês Aventura que retoma as


Verde características primeiras de
Gawain.

117
1300-1325 Dos Livros Branco e Anônimo Galês Contos que, apesar de compilados
Vermelho (Mabinogion): na mesma época, transparecem
uma matéria e uma linguagem de
1- Culhwch e Olwen diferentes séculos.
2-O Sonho de Rhonabwy
3-A dama da fonte
4-Peredur, filho de
Efrawg
5-Gereint filho de Erbin
6-As Tríades Galesas

1275 Livro de Taliesin Pseudo Taliesin Galês Coletânea de poemas do mítico


bardo de Arthur.

1250 Pós-Vulgata Pseudo Boron Francês Esta obra é considerada por muitos
3 livros em verso: apenas um resumo do Ciclo da
1-O Livro de José de Vulgata, o que não verdade. A
Arimatéia famosa Demanda Portuguesa é
2-Merlin uma tradução do terceiro livro
3-A Demanda do Santo deste ciclo.
Graal

1235 O ciclo da Vulgata 5 Pseudo Gautier Francês Primeira tentativa de unificação e


livros em prosa: Map compilação das diversas histórias
1-A História do Santo que compõe a matéria arthuriana.
Graal
2-A História de Merlin
3-O Livro de Lancelote
do Lago (3 vol)
4-A Demanda do Santo
Graal
5-A Morte do Rei Artur
1215 Perlesvaus, li hauz livres Anônimo Francês Arcaísmos do mito, junto com os
du Graal. novos elementos da mitologia
judaico-cristã.

1200 Trilogia em verso: Robert de Francês Fonte mais antiga a assimilar


1- José de Arimatéia Boron elementos da mitologia judaico-
(Romance da História do cristã aos mitos galeses.
Graal)
2- Merlin
3-Perceval

118
1170-1182 5 poemas: Chrétien de Francês Estas são as obras do ciclo
1-Erec e Enide (1170) Troyes arthuriano do mais famoso poeta
2-Cliges ou A que se medieval francês, que muito
fingiu de morta (1176) ajudou na divulgação do mito por
3-Lancelote ou O toda a Europa.
Cavaleiro da Charrete
(1177)
4-Ivan ou O Cavaleiro de
Leão (1177)
5-Perceval ou O Conto
do Graal (1182)
1160-1178 Dois Lais Bretões: Maria de Francês São canções que relatam histórias,
1- Tyolet França de muitas delas restaram apenas
2- Lanval traduções em outras línguas. Sua
música foi perdida, restando-nos
apenas o poema.

1160 Poemas do Livro Negro: Anônimo Galês Em uma coletânea de antigos


1-Ymddiddan Myrtin a poemas galeses, encontramos
Talyessin alguns que tratam do ciclo
2- Gereint, filho de Erbin arthuriano.
3-Pa Gwr

1150 A Vida de Merlin Geoffrey de Latim Descrição em versos da vida de


Monmouth Merlin, o louco.

1135 História dos Reis da Geoffrey de Latim Relato pseudo-histórico da história


Bretanha Monmouth dos reis da Bretanha, onde é
destinado o maior capítulo às
aventuras e à vida de Arthur.

119
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JARDIM, Antonio. Música. Vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006.

KERÉNY, Carl. Dioniso. Ordep Serra, trad. Odysseus, trad. São Paulo: 2002.

126
NIETZSCHE, Friedrich. Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Pedro

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OTTO, Walter Friedrich. Os deuses da Grécia: A imagem do divino na visão do

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TERRA, João Evangelista Martins. O Deus dos indo-europeus. São Paulo: Edições

Loyola:1999.

127
ANEXOS: TEXTOS ORIGINAIS

LE MORT D’ARTHUR - BOOK IV CHAPTER I

How Merlin was assotted and doted on one of the ladies of the lake, and how he

was shut in a rock under a stone and there died.

So after these quests of Sir Gawaine, Sir Tor, and King Pellinore, it fell so that

Merlin fell in a dotage on the damosel that King Pellinore brought to court, and she was one

of the damosels of the lake, that hight Nimue. But Merlin would let her have no rest, but

always he would be with her. And ever she made Merlin good cheer till she had learned of

him all manner thing that she desired; and he was assotted upon her, that he might not be

from her. So on a time he told King Arthur that he should not dure long, but for all his

crafts he should be put in the earth quick. And so he told the king many things that should

befall, but always he warned the king to keep well his sword and the scabbard, for he told

him how the sword and the scabbard should be stolen by a woman from him that he most

trusted. Also he told King Arthur that he should miss him,--Yet had ye liefer than all your

lands to have me again. Ah, said the king, since ye know of your adventure, purvey for it,

and put away by your crafts that misadventure. Nay, said Merlin, it will not be; so he

departed from the king. And within a while the Damosel of the Lake departed, and Merlin

went with her evermore wheresomever she went. And oftimes Merlin would have had her

privily away by his subtle crafts; then she made him to swear that he should never do none

enchantment upon her if he would have his will. And so he swear; so she and Merlin went

128
over the sea unto the land of Benwick, whereas King Ban was king that had great war

against King Claudas, and there Merlin spake with King Ban'
s wife, a fair lady and a good,

and her name was Elaine, and there he saw young Launcelot. There the queen made great

sorrow for the mortal war that King Claudas made on her lord and on her lands. Take none

heaviness, said Merlin, for this same child within this twenty year shall revenge you on

King Claudas, that all Christendom shall speak of it; and this same child shall be the most

man of worship of the world, and his first name is Galahad, that know I well, said Merlin,

and since ye have confirmed him Launcelot. That is truth, said the queen, his first name

was Galahad. O Merlin, said the queen, shall I live to see my son such a man of prowess?

Yea, lady, on my peril ye shall see it, and live many winters after.

And so, soon after, the lady and Merlin departed, and by the way Merlin showed

her many wonders, and came into Cornwall. And always Merlin lay about the lady to have

her maidenhood, and she was ever passing weary of him, and fain would have been

delivered of him, for she was afeard of him because he was a devil'
s son, and she could not

beskift him by no mean. And so on a time it happed that Merlin showed to her in a rock

whereas was a great wonder, and wrought by enchantment, that went under a great stone.

So by her subtle working she made Merlin to go under that stone to let her wit of the

marvels there; but she wrought so there for him that he came never out for all the craft he

could do. And so she departed and left Merlin.

129
PREIDDEU ANNWN

Golychaf wledic pendeuic gwlat ri.


py ledas y pennaeth dros traeth mundi.
bu kyweir karchar gweir yg kaer sidi.
trwy ebostol pwyll a phryderi.
Neb kyn noc ef nyt aeth idi.
yr gadwyn trom las kywirwas ae ketwi.
A rac preidu annwfyn tost yt geni.
Ac yt urawt parahawt yn bardwedi.
Tri lloneit prytwen yd aetham ni idi.
nam seith ny dyrreith o gaer sidi.

Neut wyf glot geinmyn cerd ochlywir.


yg kaer pedryuan pedyr ychwelyt.
yg kynneir or peir pan leferit.
O anadyl naw morwyn gochyneuit.
Neu peir pen annwfyn pwy y vynut.
gwrym am y oror a mererit.
ny beirw bwyt llwfyr ny ry tyghit.
cledyf lluch lleawc idaw rydyrchit.
Ac yn llaw leminawc yd edewit.
A rac drws porth vffern llugyrn lloscit.
A phan aetham ni gan arthur trafferth lethrit.
nam seith ny dyrreith o gaer vedwit.

Neut wyf glot geinmyn kerd glywanawr.


yg kaer pedryfan ynys pybyrdor
echwyd a muchyd kymyscetor
gwin gloyw eu gwirawt rac eu gorgord.
Tri lloneit prytwen yd aetham ni ar vor.
nam seith ny dyrreith o gaer rigor.

Ny obrynafi lawyr llen llywyadur


tra chaer wydyr ny welsynt wrhyt arthur.
Tri vgeint canhwr a seui ar y mur.
oed anhawd ymadrawd ae gwylyadur.
tri lloneit prytwen yd aeth gan arthur.
nam seith ny dyrreith o gaer golud.

Ny obrynaf y lawyr llaes eu kylchwy


ny wdant wy py·dyd peridyd pwy.
py awr ymeindyd y ganet cwy.
Pwy gwnaeth ar nyt aeth doleu defwy.
ny wdant wy yr ych brych bras y penrwy.
seith vgein kygwng yny aerwy.

130
A phan aetham ni gan arthur auyrdwl gofwy.
nam seith ny dyrreith o gaer vandwy.

Ny obrynafy lawyr llaes eu gohen.


ny wdant py dyd peridyd pen.
Py awr ymeindyd y ganet perchen.
Py vil a gatwant aryant y pen.
Pan aetham ni gan arthur afyrdwl gynhen.
nam seith ny dyrreith o gaer ochren.

Myneich dychnut val cunin cor.


gyfranc udyd ae gwidanhor.
Ae vn hynt gwynt ae vn dwfyr mor.
Ae vn vfel tan twrwf diachor.
Myneych dychnut val bleidawr.
o gyfranc udyd ae gwidyanhawr
ny wdant pan yscar deweint a gwawr.
neu wynt pwy hynt pwy y rynnawd.
py va diua py tir a plawd.
bet sant yn·diuant a bet allawr.
Golychaf y wledic penefic mawr.
na bwyf trist crist am gwadawl.

131
LE LAI DE TYOLET

C’est le Lai de Tyolet

Jadis, au tens qu’Artur regna,


Que il Bretaingne governa
Qui Engleterre ert apelee,
Dont n’estoit mie si puplee
Comme ele or est, ce m’est a vis.
Mes Artur, qui ert de grant pris,
Avoit o lui tex chevaliers
Qui molt erent hardiz et fiers.
Encor en i a il assez
Qui molt sont preuz et alosez,
Mes ne sont pas de la maniere
Qu’il estoient du tens ariere,
Que li chevalier plus poissant,
Li miedre, li plus despendant,
Soloient molt par nuit errer,
Aventures querre et trover.
Et par jor ensement erroient,
Que il escuier nen avoient,
Si erroient si toute jor,
Ne trouvassent meson ne tor,
Ou .II. ou .III. par aventure,
Et ensement par nuit oscure
Aventures beles trovoient
Qu’il disoient et racontoient.
A la cort erent racontees,
Si comme elles erent trovees.
Li preude clerc qui donc estoient
Totes escrire les fesoient.
Mises estoient en latin
Et en escrit em parchemin,
Por ce qu’encor tel tens seroit
Que l’en volentiers les orroit.
Or sont dites et racontees,
De latin en romanz trovees;
Bretons en firent lais plusors,
Si con dïent nos ancessors.
.I. en firent que vos dirai,
Selonc le conte que je sai
Du vallet bel et engingnos,
Hardi et fier et coragos;
Tyolet estoit apelez.

132
De bestes prendre sot assez
Que par son sisflé les prenoit,
Totes les bestes qu’il voloit.
Une fee ce li ora
Et a sifler li enseigna;
Dex onc nule beste ne fist
Qu’il a son siflé ne preïst.
Une dame sa mere estoit
Qui en .I. bois adés manoit;
.I. chevalier ot a seignor
Qui mest ilec et nuit et jor.
Tot seul en la forest manoit;
De dis liues meson n’avoit.
Mort est bien ot passé .XV. anz
Et Tyolet fu biaus et granz,
Mes onques chevalier armé
N’ot veü en tot son aé,
Ne autres genz gueres sovent
N’ot il pas veü ensement.
El bois o sa mere manoit,
Onques jor fors issu n’avoit;
En la forez ot sejorné,
Car sa mere l’ot molt amé.
Dont i ala quant li plesoit,
Nul autre mestier ne faisoit.
Quant les bestes sifler l’ooient,
Tot erramment a li venoient;
De ceus qu[e] il voloit tuoit
Et a sa mere les portoit.
De ce vivoit lui et sa mere
Et il n’avoit ne suer ne frere;
La dame molt vaillanz estoit
Et leaument se contenoit.
A son filz .I. jor demanda
Bonement, car forment l’ama,
El bois alast, .I. cerf preïst,
Et il son commandement fist.
El bois hastivement ala,
Si con sa mere commanda.
Desqu’a tierce a el bois alé,
Beste ne cerf n’i a trouvé.
A soi molt corrouciez estoit
De ce que beste ne trouvoit.
Droit vers meson s’en volt aler,
Quant soz .I. arbre vit ester
.I. cerf qui ert [et] grant et gras,
88 Et il sifla eneslepas.

133
Li cers l’oï, si regarda;
Ne l’atendi, ainz s’en ala;
Le petit pas du bois issi
Et Tyolet tant le sevi
Qu’a une eve l’a droit mené;
Le cerf s’en est outre passé.
L’eve estoit grant et ravineuse
Et lee et longue et perilleuse.
Li cers outre l’eve passa
Et Tyolet se regarda
Triés soi, si vit venir errant
.I. chevrel cras et lonc et grant.
Arestut soi et si sifla,
Et li chevreus vers lui ala;
Sa main tendi, illec l’ocist,
Son costel tret, el cors li mist.
Endementres qu’il l’escorcha
Et li cers se tranfigura
Qui outre l’eve s’estoit mis.
[La forme d’homme a tantost pris]
Et .I. chevalier resembloit;
Tot armé sor l’eve s’estoit,
Sor .I. cheval detriés comé,
S’estoit com chevalier armé.
Le vallet l’a aparceü;
Onques mes tel n’avoit veü.
A merveilles l’a esgardé
Et longuement l’a avisé.
De tel chose se merveilloit,
Car onques mes veü n’avoit;
Ententivement l’avisa.
Le chevalier l’aresonna,
A lui parla premierement,
Molt bel et amiablement.
Demande li qui il estoit,
Qu’aloit querant, quel non avoit.
Et Tyolet li respondi,
Qui molt estoit preuz et hardi,
Filz a la veve dame estoit
Qui en la grant forez manoit:
‘Et Tyolet m’apele l’on,
Cil qui nomer veulent mon non.
Or me dites, se vos savez,
Qui vos estes, quel non avez.’
Et cil li respondi errant,
Qui seur la rive fu estant,
Que chevalier ert apelé.

134
Et Tyolet a demandé
Quel beste chevalier estoit,
Ou conversoit et dont venoit.
‘Par foi’, fet il, ‘jel te dirai,
Que ja mot ne t’en mentirai.
C’est une beste molt cremue;
Autres bestes prent et menjue,
El bois converse molt souvent
Et a plainne terre ensement.’
‘Par foi’, fet il, ‘merveilles oi.
Car onques puis que aler soi
Et que par bois pris a aler,
Ainz tel beste ne poi trover.
Si connois je ors et lions
Et totes autres venoisons;
N’a beste el bois que ne connoisse
Et que ne preigne sanz angoisse,
Ne mes vos que ne connois mie.
Molt resemblez beste hardie.
Or me dites, chevalier beste,
Que est ice sor vostre teste,
Et qu’est ice qu’au col vos pent?
Roge est et si reluist forment.’
‘Par foi’, fet il, ‘jel te dirai,
Que ja de mot n’en mentirai.
C’est une coiffe, hiaume a non,
Si est d’acier tout environ.
Et cest mantel qu’ai afublé,
C’est .I. escu a or bendé.’
‘Et qu’est ice qu’avez vestuz,
Qui si est pertuisiez menuz?’
‘Une coste est, de fer ovree;
Hauberc est par non apelee.’
‘Et qu’est ice qu’avez chaucié?
Dites le moi par amistié.’
‘Chauces de fer sont apelees;
Bien sont fetes et bien ovrees.’
‘Et ce que est que ceint avez?
Dites le moi se vos volez.’
‘Espee a non, molt par est bele,
Trenchant et dure la lemele.’
‘Ice lonc fust que vos portez?
Dites le moi, ne me celez.’
‘Veus le savoir?’ ‘Oïl, par foi.’
‘Une lance que port o moi.
Or t’en ai dit la verité
De qanque tu m’as demandé.’

135
‘Sire’, fet il, ‘vostre merci.
Car pleüst Dieu qui ne menti
Que j’eüsse tiex garnemenz
Con vos avez, si biaus, si genz,
Tel cote eüsse, et tel mantel
Con vos avez, et tel chapel.
Or me dites, chevalier beste,
Por Deu, et por la seue feste,
Se il est auques de tiex bestes
Ne de si beles con vos estes.’
‘Oïl’, fet il, ‘veraiement;
Ja t’en mosterré plus de cent.’
Ne demora que un petit,
Si comme li contes nos dit,
Que .II. cenz chevaliers armez
Erroient tres par mi uns prez,
Qui de la cort au roi venoient.
200 Son commandement fet avoient;
Une fort meson orent prise
Et en feu et en charbon mise,
Si s’en repairent tuit armé,
En .III. eschieles bien serré.
Chevalier beste dont parla
A Tyolet et conmanda
C’un seul petit avant alast,
Outre la riviere gardast.
Cil a fet son commandement;
Outre regarde isnelement,
Si voit errer les chevaliers
Trestoz armez sor les destriers.
‘Par foi’, fet il, ‘or voi les bestes
Qui totes ont coiffes es testes.
Onques mes tex bestes ne vi,
Ne tiex coiffes con je voi ci.
Car pleüst or Dieu a sa feste
Que je fusse chevalier beste.’
Cil ra donques a lui parlé
Qui sor la rive estoit armé:
‘Seroies tu preuz et hardi?’
‘Oïl, par foi, le vos afi.’
Si li a dit: ‘Or t’en iras,
Et quant ta mere reverras
Et ele parlera a toi,
Ele dira: “Biaus filz, di moi
De quoi tu penses et que as”.
Et tu li diz eneslepas
Que tu as assez a penser,

136
Que tu vorroies resembler
Chevalier beste que veïs,
Et por ce eres tu pensis.
Et ele te dira briement
Que ce li poise molt forment
Que tu as tel beste veüe,
Que autre engingne et autre tue.
Et tu li dis que par ta foi
Que male joie avra de toi
Si tu ne puez estre tel beste
Et tel coiffe avoir en ta teste.
Et des ce qu’ele ce orra,
Isnelement t’aportera
Toute autretele vesteüre,
Cote et mantel, coiffe et ceinture,
Et chauces et lonc fust plané,
Tex con tu as ci esgardé.’
Atant Tyolet s’en depart,
Qu’en meson soit molt li est tart.
Puis a a sa mere donné
Le chevrel qu’il ot aporté
Et s’aventure li conta
Tot ainsi comme il la trova.
Sa mere li respont briement
Que ce li poise molt forment,
‘Que tu as tel beste veüe
Qui mainte autre prent et manjue’.
‘Par foi’, fet il, ‘or est ainsi;
Se je tel beste con je vi
Ne puis estre, bien sai et voi
Que male joie avrez de moi.’
Mes sa mere, quant ce oï,
Isnelement li respondi:
Totes les armes qu’ele a
264 Isnelement li aporta,
Qui son seignor orent esté.
Molt en a bien son f[i]lz armé.
Et quant el cheval fu monté(z)
Chevalier beste a bien semblé.
‘Sez or, biauz filz, que tu feras?
Tot droit au roi Artur iras
Et de ce te dirai la somme:
Ne t’acompaingnes a nul homme,
Ne a fame ne donoier
Qui commune soit de mestier.’
Atant s’en est de li torné
Et l’a baisié et acolé.

137
Tant a erré par ses jornees,
Que monz que terres que valees,
Qu’a la cort le roi est venu,
Qui cortois rois et vaillanz [fu].
Li rois a son mengier seoit,
Servir richement se fesoit,
Et Tyolet est enz entrez
Si comme il vint, trestot arme[z].
A cheval vint devant le dois.
La ou seoit Artur le roi[s].
Onques .I. mot ne li sonna,
Ne noient ne l’aresonna.
‘Amis’, fet li rois, ‘descendez,
Et avec nos mengier venez,
Si me dites que vos querez,
Qui vos estes, quel non avez.’
‘Par foi’, fet il, ‘jel vos dirai,
Que ja ançois ne mengerai.
Rois, j’ai a non chevalier beste;
A mainte en ai trenchié la teste
Et Tyolet m’apele l’on.
Molt sai bien prendre venoison.
Filz sui, biau sire, s’il vos plest,
A la veve de la forest;
A vos m’envoie certement
Tot por aprendre afe[te]ment.
Sens voil aprendre et cortoisie,
Savoir voil de chevalerie,
A tornoier et a joster,
A despendre et a donner.
Car ainz ne fu ja cort de roi,
Ne jamés n’iert si con je croi,
Ou tant ait bien n’afetement,
Cortoisie n’ensaingnement.
Or vos ai dit ce que j’ai quis,
Rois, or me dites vostre avis.’
Li rois li dit: ‘Dan chevalier,
Je vos retien, venez mengier.’
‘Sire’, fet il, ‘vostre merci.’
Tyolet donques descendi,
De ses armes s’est desarmé,
Si s’est vestu et afublé
De cote et de mantel legier;
Ses mains leve, si va mengier.
Atant es vos une pucele,
Une orgueilleuse damoisele;
De sa biauté ne voil parler,

138
[Qu’on ne pot plus bele trover.]
Onques Dido, ce m’est a vis,
Ne Elainne n’ot si cler vis.
Fille au roi de Logres estoit,
Sor .I. blanc palefroi seoit;
.I. blanc brachet triés soi portoit.
Une sonnete d’or avoit
Pendue au col du [blanc] brachet;
Molt ot le poil deugié et net.
Tot a cheval en est venue
Devant le roi, si le salue:
‘Rois Artur, sire, Dex te saut,
Le tot poissant qui maint en haut’.
‘Bele amie, celui vos gart
Qui les bons retient a sa part.’
‘Sire, je sui une meschine,
Fille de roi et de roïne,
Et de Logres est rois mon pere;
N’ont plus enfanz, li ne ma mere,
Et si vos mandent par amor,
Comme a roi de grant valor,
S’il i a de vos chevaliers
Nul qui tant soit hardiz ne fiers
Qui le blanc pié du cerf tranchast,
Biau sire, celui me donnast,
Icelui a seignor prendroie,
De nul autre cure n’avroie.
Ja nus hon n’avra m’amistié,
S’il ne me donne le blanc pié
Du cerf qui est et bel et grant
Et qui tant a le poil luisant
Por poi qu’il ne semble doré;
De .VII. lïons est bien gardé.’
‘Par foi’, fet li rois, ‘vos creant
Que iltel soit le covenant:
Que cil a fame vos avra
Qui le pié du cerf vos donra.’
‘Et je, dan rois, si le creant
Que iltel soit le covenant.’
Tel covenant ont afermé
Et entr’eus .II. bien devisé.
En la sale n’ot chevalier
Qui de rien feïst a prisier,
Qui ne deïst que il iroit
Quere le cerf, s’il le savoit.
‘Cest brachet’, dist el, ‘vos menra
La ou le cerf converse et va.’

139
Lodoër molt le covoita;
Le cerf querre premiers ala.
Au roi Artu l’a demandé
Et il ne li a pas veé.
Le brachet prent, si est montez,
Le pié du cerf est querre alez.
Le brachet qui o lui ala
Droit a une eve le mena,
Qui molt estoit et grant et lee
Et noire et hisdeuse et enflee;
Quatre .C. toises ot de lé
Et bien .C. de parfondee.
Et le brachet en l’eve entra;
Selonc son sens tres bien cuida
Que Lodoër enz se meïst,
Mes de tot ce noient ne fist.
Il dit que il n’i enterra,
Car de morir nul talent n’a.
A soi redit a chief de pose:
‘Qui soi nen a n’a nule chose;
Bon chastel garde, ce m’est vis,
Qui garde qu’il ne soit maumis’.
Dont s’en est li brachez issuz;
A Lodoër est revenuz,
Et Lodoër si s’en ala
Et le brachet triés soi porta.
Droit a la cort en vint errant,
Ou li barnages estoit grant;
Le brachet rent a la pucele,
Qui molt estoit cortoise et bele.
Dont li a li rois demandé
S’il avoit le pié aporté,
Et Lodoër li respondi
Qu’encor en ert autre escharni.
Dont l’ont par la sale gabé
Et il lor a le chief crollé,
Si lor a dit que il alassent
Quere le pié, si l’aportassent.
Quere le cerf molt i alerent
Et la pucele demanderent.
N’en i ot nul qui la alast
Q’autretel chançon ne chantast
Con Lodïer chanté avoit,
Qui vaillanz chevaliers estoit,
Fors seulement .I. chevalier
Qui molt estoit preuz et legier;
Chevalier beste ert apelé

140
Et Tyolet estoit nommé.
Cil s’en est droit au roi alé;
420 Hastivement a demandé
Que cele gardee li soit,
Que le pié blanc querre iroit.
Jamés, ce dit, ne revendra
Devant ice que ill avra
Le pié blanc destre au cerf trenchié.
Li rois li a donné congié
Et Tyolet s’est adoubé
Et de ses armes bien armé.
A la pucele donc ala;
Son blanc brachet requis li a.
El li a bonement baillié
Et il a pris de li congié.
Tant ont chevauchié et erré
Que andui sont venu au gué,
A la grant eve ravineuse
Qui molt ert parfonde et hisdeuse.
Le brachet s’est en l’eve mis,
Outre s’en vet, noant tot dis.
Aprés lui se met Tyolet;
Tant a suï le blanc brachet
Sor son destrier sor coi il sist
Que a la terre fors s’en ist.
Dont l’a le brachet tant mené
Que il li a le cerf moustré.
.VII. granz lïons le cerf gardoient
Et de molt grant amor l’amoient.
Et Tyolet garde, sel voit
Enmi .I. pré ou il paissoit;
N’i avoit nul des .VII. lïons.
Tyolet fiert des esperons;
Devant le cerf le fet aler.
Tyolet prent lors a sifler
Et li cers molt beninement
Vers Tyolet vient erramment.
Et Tyolet .VII. foiz sifla;
Li cerf du tot donc s’aresta.
S’espee tret isnelement,
Du cerf le blanc pié destre prent,
Par mi la jointe li trencha,
Dedenz sa huese le bouta.
Le cerf cria molt hautement
Et li lïon tout erroment
Grant aleüre i sont venu;
Tyolet ont aparceü.

141
Uns des lïons a si navré
Le cheval ou il sist armé
Que la destre espaule devant
Et cuir et char en va portant.
Quant Tyolet a ce veü,
.I. des lïons a si feru
De l’espee que il porta
Que les ners du piz li trencha;
De ce lïon n’ot il plus guerre.
Son cheval chiet soz lui a terre,
Donques Tyolet le guerpi
Et li lïon l’ont assailli.
De totes parz assailli l’ont,
Son bon hauberc rompu li ont;
La char des braz et des costez
En plusors leus est si navrez
A poi que il nel devoroient.
Tote la char li desciroient,
Mes il les a trestoz tuez;
A poi ne s’en est delivrez.
Dejoste les lïons chaï
Qui malement l’orent bailli
Et de son cors si domagié;
Ja par li n’ert mes redrecié.
Es vos errant .I. chevalier
Et sist sor .I. ferrant destrier.
Arestut soi, si resgarda;
Molt par le plaint et regreta.
Et Tyolet les eulz ouvri,
Qui du travail ert endormi;
S’aventure li a contee
Et de chief en chief racontee.
De sa huese le pié sacha
Et au chevalier le bailla.
Et cil l’en a molt mercié,
Car le pié a forment amé;
De lui prent congié, si s’en va.
En la voie se porpensa
Que, se le chevalier vivoit
Qui le pié donné li avoit,
Se il ne s’en voloit fuir,
Que mal l’em porroit avenir.
Ariere torne maintenant.
En pensé a et en talent
Que le chevalier ocirra;
Jamés ne li chalangera.
Par mi le cors bien l’asena

142
– De cele plaie bien garra –
Bien le cuida avoir ocis;
Atant s’est a la voie mis.
Tant a son droit chemin tenu
Qu’a la cort le roi est venu.
La pucele au roi demanda,
Le blanc pié du cerf li mostra.
Mes il n’ot pas le blanc brachet
Qui au cerf conduit Tyolet;
Bien le garda et main et soir,
Mes de ce ne puet il chaloir.
Cil qui le pié ot aporté,
Qui que l’eüst au cerf coupé,
Par covenant velt la pucele,
Qui tant par est et noble et bele.
Mes li rois, qui tant sages fu,
Por Tyolet qui n’ert venu,
Respit d’uit jors li demanda;
Adonc sa cort assemblera.
N’i avoit or fors sa mesniee
Qui molt ert franche et ensaingniee.
Dont a cil le respit donné
Et en la cort tant sejorné.
Mes Gauvains, qui tant fu cortois
Et bien apris en toutes lois,
Est alé querre Tyolet,
Car repairié fu le brachet
Et il l’a avec lui mené.
Tost le brachet l’[a] amené
Qu’il l’a trové en pasmoisons,
1 El pré dejoste les lïons.
Quant Gauvains le chevalier voit
Et l’ocise que fet avoit,
Molt plaint le vaillant chevalier.
Sempres descent de son destrier,
Molt doucement l’aresonna.
Tyolet foiblement parla
Et, neporquant, de s’aventure
Li a conté toute la pure.
Atant es vos une pucele
Sor une mule gente et bele.
Gauvain gentement salua
Et Gauvains bien rendu li a,
Et puis l’a a soi apelee,
Estroitement l’a acolee,
Si li prie molt doucement
Et molt tres amiablement

143
Qu’ele portast cel chevalier,
Qui molt par fesoit a proisier,
A la noire montaingne au miere.
Et cele a fete sa proiere;
Le chevalier en a porté
Et au mire l’a conmandé.
De par Gauvain li commanda;
Cil volentiers receü l’a.
De ses armes l’a despoillié,
Sor une table l’a couchié
Et ses plaies li a lavees,
Qui molt erent ensanglentees.
Quant il l’a par trestout curé,
Le sanc fegié d’entor osté,
Bien a veü que il garroit;
Au chief d’un mois tot sain seroit.
Entretant fu Gauvains venu
Et en la sale descendu.
Le chevalier i a trouvé
Qui le blanc pié ot aporté.
Tant s’est en la cort demorez
Que les (v)uit jors sont trespassez.
Dont vint au roi, su salua,
Son covenant li demanda
Que la pucele ot devisé
Et il endroit soi creanté:
Qui que le blanc pié li donroit
Que ele a seignor le prendroit.
Li rois dist: ‘Ce est verité’.
Quant Gauvains ot tot escouté,
Eneslepas avant sailli,
Et dist au roi: ‘N’est pas ainsi.
Se por ce non que je ne doi
Ci, devant vos qui estes roi,
Desmentir onques chevalier,
Serjant, garçon ne escuier,
Je deïsse qu’il mespreïst;
N’onques du cerf le pié ne prist
En la maniere que il conte.
Molt fet au chevalier grant honte
Qui d’autrui fet se velt loer
Et autrui mantel afuler
Et d’autrui bouzon velt bien trere
Et loer soi d’autrui afere
Et par autrui main velt joster
Et hors du buisson velt trainer
Le serpent qui tant est cremu.

144
Or, si n’i sera ja veü,
Ce que vos dites rien ne vaut.
Aillors ferez vostre assaut,
Aillors porchacier vos irez;
La pucele n’emporterez.’
‘Par foi’, fet il, ‘Sire Gauvain,
Or me tenez vos por vilain
Qui me dites que n’os porter
Ma lance en estor por joster,
Bien sai trere d’autrui bouzon
Et par autrui main du buisson
Le serpent trere qu’avez dit.
N’est nul, si con je croi et cuit,
Se vers moi le voloit prover
Qu’en champ ne m’en peüst trover.’
En ce qu’en cel estrif estoient,
Par la sale gardent, si voient
Tyolet qui estoit venu
Et hors au perron descendu.
Li rois contre lui s’est levez.
Ses braz li a au col getez,
Puis le baise par grant amor;
Cil l’encline comme a seignor.
Gauvains le baise et Uriain,
Keu et Evain, le filz Morgain,
Et Lodoier l’ala besier
Et tuit li autre chevalier.
Li chevaliers, quant il ce voit,
Qui la pucele avoir voloit
Par le pié qu’il ot aporté
Que Tyolet li ot donné,
Au roi Artur dont reparla
Et sa requeste demanda.
Mes Tyolet, quant il ce sot
Que la pucele demandot,
A lui parla molt doucement
Et li demanda benement:
‘Dan chevaliers, dites le moi,
Tant comme estes devant le roi,
Par quel reson volez avoir
La pucele, je voil savoir.’
‘Par foi’, fet il, ‘je vos dirai:
Por ce que aporté li ai
Le blanc pié du cerf sejorné;
Li rois et li l’ont creanté.’
‘Trenchastes vos au cerf le pié?
Se ce est voir, ne soit noié.’

145
‘Ouïl’, fet il, ‘je li trenchai
Et ici o moi l’aportai.’
‘Et les .VII. lïons qui ocist?’
Cil l’esgarda, nul mot ne dit,
Ainz rogi molt et eschaufa,
Et Tyolet dont reparla:
‘Dan chevalier, et cil, qui fu,
Qui de l’espee fu feru,
Et qui fu cil qui l’en feri?
Dites le moi, vostre merci.
Ce m’est a vis, ce fustes vos.’
Cil s’embroncha, molt fu hontos.
‘Mes ce fu de bien fet col fret
Quant vos feïstes tel forfet.
Bonement donné vos avoie
Le pié [qu’]au cerf trenchié avoie,
Et vos tel loier en sousistes,
Por .I. pou que ne m’oceïstes.
Mort en dui estre voirement.
Je vos donnai, or m’en repent;
Vostre espee que vos portastes
Tres par mi le cors me boutastes;
Tres bien me cuidastes ocirre.
Se vos ce volez escondire
De prover voiant cest barnage,
Au roi Artur en tent mon gage.’
Cil entent qu’il dit verité,
Du coup li a merci crié;
Plus doute la mort que la honte,
De rien ne contredit son conte.
Devant le roi a lui se rent
A fere son commandement,
Et Tyolet li pardonna
Au conseil que il puis en a
Du roi et de toz ses barons;
Et cil l’en vait a genoillons;
Dont l’en eüst le pié besié,
Quant Tyolet l’a redrecié,
Si l’en bese par grant amor;
N’en oï puis parler nul jor.
Li chevaliers le pié li rent
Et Tyolet donques le prent,
Si l’a donné a la pucele.
Fleur de lis [ou] rose novele,
Quant primes nest el tans d’esté,
Trespassoit ele de biauté.
Tyolet l’a donc demandee;

146
Li rois Artur li a donnee,
Et la pucele l’otroia.
En son païs donc le mena;
Rois fu et ele fu roïne.
De Tyolet le lai ci fine.

147
YMDDIDDAN MYRTIN A TALYESSIN

Mor truan genhyf mor truan.


Aderyv. am keduyv a chaduan.
Oed llachar kyulawr kyulauan.
Oed yscuid o tryuruyd o tryuan.

Talyessin.
Oed maelgun a uelun inimnan
Y teulu rac toryuulu ny thauant.

Myrtin.
Rac deuur ineutur ytirran.
Rac errith. a gurrith y ar welugan.
Mein winev in diheu a dygan.
Moch guelher y niuer gan elgan.
Och oe leith maur a teith y deuthan.

Taliessin.
Rys undant oet rychvant y tarian.
Hid attad y daeht rad kyulaun.
Llas kyndur tra messur y kuynan.
Llas helon o dinon tra uuan.
Tryuir. nod maur eu clod. gan. elgan.

Myrtin.
Truy athrui. ruy. a ruy. y doethan.
Trav athrau imdoeth bran amelgan.
Llat dinel oe dinet. kyulauan
Ab erbin ae uerin a wnaethan.

Taliessin.
Llu maelgun bu yscun y doethan.
Aer wir kad trybelidiad. guaedlan.
Neu gueith arywderit pan
Vit y deunit. o hid y wuchit y darperan.

Myrtin.
Llyavs peleidrad guaedlad guadlan.
Llyaus aerwir bryv breuaul vidan.
Llyaus ban brivher. llyaus ban foher.
Llyaus ev hymchuel in eu hymvan.

Taliessin.
Seith meib eliffer. Seith guir ban brouher.
Seith guaew ny ochel in eu seithran.

148
Myrtin.
Seith tan. vuelin. Seith kad kyuerbin.
Seithued kinvelin y pop kinhuan.

Taliessin.
Seith guaew gowanon. Seith loneid awon.
O guaed kinreinon y dylanuan.

Myrtin.
Sieth ugein haelon. a aethan ygwllon.
Yg coed keliton. y. daruuan.
Can ys mi myrtin guydi taliessin.
Bithaud. kyffredin vy darogan.

149
MARWNAT VTHYR PEN

Neu vi luossawc yntrydar.


Ny pheidwn rwg deulu heb wyar.
Neu vi a elwir gorlassar.
Vygwreys bu enuys ym hescar.
Neu vi tywyssawc yn tywyll
Am rithwy am dwy pen kawell.
Neu vi eil kawyl yn ardu.
Ny pheidwn heb wyar rwg deulu.
Neu via amuc vy achlessur.
Yn difant a charant casnur.
Neur ordyfneis i waet am wythur.
Cledyfal hydyr rac meibon cawrnur.
Neu vi araunwys vy echlessur.
Nawuetran yg gwrhyt arthur.
Neu vi a torreis cant kaer.
Neu vi aledeis cant maer.
Neu vi arodeis cant llen.
Neu vi aledeis cant pen.
Neu vi arodeis i henpen.
Cledyfawr goruawr gyghallen.
Neu vi oreu terenhyd
Nayarndor edeithor penmynyd.
Ym gweduit ym gofit. hydyr oed gyhir.
Nyt oed vyt ny bei fy eissillyd.
Midwyf bard moladwy yghywreint.
Poet y gan vrein ac eryr ac wytheint.
Auacdu ae deubu y gymeint.
Pan ymbyrth petrywyr rwg dwy geint.
Drigyaw y nefoed ef vychwant.
rac eryr rac ofyn amheirant.
Wyf bard ac wyf telynawr.
Wyf pibyd ac wyf crythawr.
Seith vgein kerdawr dygoruawr
Gyghallen. bu kalch vri vriniat.
Hu escyll edeinat.
Dy vab dy veirdnat
Dy veir dewndat.
Vyn tauawnt y traethu vy marwnat.
Handit o meinat gwrth glodyat
Byt pryt prydein hyscein ymhwyllat.
Gwledic nef ygkennadeu nam doat.

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