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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Memória Jurisprudencial
MINISTRO VICTOR NUNES

FERNANDO DIAS MENEZES DE ALMEIDA


Brasília
2006
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Ministra ELLEN GRACIE Northfleet (14-12-2000), Presidente


Ministro GILMAR Ferreira MENDES (20-6-2002), Vice-Presidente
Ministro José Paulo SEPÚLVEDA PERTENCE (17-5-1989)
Ministro José CELSO DE MELLO Filho (17-8-1989)
Ministro MARCO AURÉLIO Mendes de Farias Mello (13-6-1990)
Ministro Antonio CEZAR PELUSO (25-6-2003)
Ministro CARLOS Augusto Ayres de Freitas BRITTO (25-6-2003)
Ministro JOAQUIM Benedito BARBOSA Gomes (25-6-2003)
Ministro EROS Roberto GRAU (30-6-2004)
Ministro Enrique RICARDO LEWANDOWSKI (9-3-2006)
Ministra CÁRMEN LÚCIA Antunes Rocha (21-6-2006)
Diretoria-Geral
Sérgio José Américo Pedreira
Secretaria de Documentação
Altair Maria Damiani Costa
Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência
Nayse Hillesheim

Seção de Preparo de Publicações


Neiva Maria de Moura Ludwig
Seção de Padronização e Revisão
Kelly Patrícia Varjão de Moraes
Seção de Distribuição de Edições
Margarida Caetano de Miranda

Diagramação: Manoel Vieira Santana


Capa: Jorge Luis Villar Peres
Edição: Supremo Tribunal Federal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Supremo Tribunal Federal – Biblioteca Ministro Victor Nunes Leal)

Almeida, Fernando Dias Menezes de.


Memória jurisprudencial: Ministro Victor Nunes / Fernando
Dias Menezes de Almeida. – Brasília: Supremo Tribunal
Federal, 2006. – (Série memória jurisprudencial)

1. Ministro do Supremo Tribunal Federal. 2. Brasil. Su-


premo Tribunal Federal (STF). 3. Nunes, Victor — Jurispru-
dência. I. Título. II. Série.

CDD-341.4191081
Ministro Victor Nunes
APRESENTAÇÃO

A Constituição de 1988 retomou o processo democrático interrompido pelo


período militar.
Na esteira desse novo ambiente institucional, a Constituição significou
uma renovada época.
Passamos para a busca de efetividade dos direitos no campo das presta-
ções de natureza pública, como pelo respeito desses direitos no âmbito da socie-
dade civil.
É na calmaria institucional que se destaca a função do Poder Judiciário.
É inegável sua importância como instrumento na concretização dos valores
expressos na Carta Política e como faceta do Poder Público, em que os horizontes
de defesa dos direitos individuais e coletivos se viabilizam.
O papel central na defesa dos direitos fundamentais não poderia ser alcan-
çado sem a atuação decisiva do Supremo Tribunal Federal na construção da
unidade e do prestígio de que goza hoje o Poder Judiciário.
A história do SUPREMO se confunde com a própria história de constru-
ção do sistema republicano-democrático que temos atualmente e com a consoli-
dação da função do próprio Poder Judiciário.
Esses quase 120 anos (desde a transformação do antigo Supremo Tribunal
de Justiça no Supremo Tribunal Federal, em 28-2-1891) não significaram sim-
plesmente uma seqüência de decisões de cunho protocolar.
Trata-se de uma importante seqüência político-jurídica da história nacional
em que atuação institucional, por vários momentos, se confundiu com defesa
intransigente de direitos e combate aos abusos do poder político.
Essa história foi escrita em períodos de tranqüilidade, mas houve também
delicados momentos de verdadeiros regimes de exceção e resguardo da indepen-
dência e da autonomia no exercício da função jurisdicional.
Conhecer a história do SUPREMO é conhecer uma das dimensões do
caminho político que trilhamos até aqui e que nos constituiu como cidadãos brasi-
leiros em um regime constitucional democrático.
Entretanto, ao contrário do que a comunidade jurídica muitas vezes tende a
enxergar, o SUPREMO não é — nem nunca foi — apenas um prédio, um plená-
rio, uma decisão coletada no repertório oficial, uma jurisprudência.
O SUPREMO é formado por homens que, ao longo dos anos, abraçaram
o munus público de se dedicarem ao resguardo dos direitos do cidadão e à
defesa das instituições democráticas.
Conhecer os vários “perfis” do SUPREMO.
Entender suas decisões e sua jurisprudência.
Analisar as circunstâncias políticas e sociais que envolveram determinado
julgamento.
Interpretar a história de fortalecimento da instituição.
Tudo isso passa por conhecer os seus membros, os valores em que acredi-
tavam, os princípios que seguiam, a formação profissional e acadêmica que tive-
ram, a carreira jurídica ou política que trilharam.
Os protagonistas dessa história sempre foram, de uma forma ou de outra,
colocados de lado em nome de uma imagem insensível e impessoal do Tribunal.
Vários desses homens públicos, muito embora tenham ajudado, de forma
decisiva, a firmar institutos e instituições de nosso direito por meio de seus votos
e manifestações, são desconhecidos do grande público e mesmo ignorados entre
os juristas.
A injustiça dessa realidade não vem sem preço.
O desconhecimento dessa história paralela também ajudou a formar uma
visão burocrática do Tribunal.
Uma visão muito pouco crítica ou científica, além de não prestar homena-
gem aos Ministros que, no passado, dedicaram suas vidas na edificação de um
regime democrático e na proteção de um Poder Judiciário forte e independente.
Por isso esta coleção, que ora se inicia, vem completar, finalmente, uma
inaceitável lacuna em nossos estudos de direito constitucional e da própria forma-
ção do pensamento político brasileiro.
Ao longo das edições desta coletânea, o aluno de direito, o estudioso do
direito, o professor, o advogado, enfim, o jurista poderá conhecer com mais pro-
fundidade a vida e a obra dos membros do Supremo Tribunal Federal de ontem e
consultar peças e julgados de suas carreiras como magistrados do Tribunal, que
constituem trabalhos inestimáveis e valorosas contribuições no campo da inter-
pretação constitucional.
As Constituições Brasileiras (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988)
consubstanciaram documentos orgânicos e vivos durante suas vigências.
Elas, ao mesmo tempo em que condicionaram os rumos político-institucio-
nais do país, também foram influenciadas pelos valores, práticas e circunstâncias
políticas e sociais de cada um desses períodos.
Nesse sentido, não há como segmentar essa história sem entender a dinâ-
mica própria dessas transformações.
Há que se compreender os contextos históricos em que estavam inseridas.
Há que se conhecer a mentalidade dos homens que moldaram também
essa realidade no âmbito do SUPREMO.
A Constituição, nesse sentido, é um dado cultural e histórico, datada no
tempo e localizada no espaço.
Exige, para ser compreendida, o conhecimento dos juristas e políticos que
tiveram papel determinante em cada um dos períodos constitucionais tanto no campo
da elaboração legislativa como no campo jurisdicional de sua interpretação.
A Constituição, por outro lado, não é um “pedaço de papel” na expressão
empregada por FERDINAND LASSALE.
O sentido da Constituição, em seus múltiplos significados, se renova e é
constantemente redescoberto em processo de diálogo entre o momento do intér-
prete e de sua pré-compreensão e o tempo do texto constitucional.
É a “espiral hermenêutica” de HANS GEORG GADAMER.
O papel exercido pelos Ministros do SUPREMO, como intérpretes oficiais
da Constituição, sempre teve caráter fundamental.
Se a interpretação é procedimento criativo e de natureza jurídico-política,
não é exagero dizer que o SUPREMO, ao longo de sua história, completou o traba-
lho dos poderes constituintes que se sucederam ao aditar conteúdo normativo aos
dispositivos da Constituição.
Isso se fez na medida em que o Tribunal fixava pautas interpretativas e
consolidava jurisprudências.
Não há dúvida, portanto, de que um estudo, de fato, aprofundado no campo
da política judiciária e no âmbito do direito constitucional requer, como fonte pri-
mária, a delimitação do pensamento das autoridades que participaram, em pri-
meiro plano, da montagem das linhas constitucionais fundamentais.
Nesse sentido, não há dúvida de que, por exemplo, o princípio federativo
ou o princípio da separação dos poderes, em larga medida, tiveram suas frontei-
ras de entendimento fixadas pelo SUPREMO e pela carga valorativa que seus
membros traziam de suas experiências profissionais.
Não é possível se compreender temas como “controle de constitucionali-
dade”, “intervenção federal”, “processo legislativo” e outros tantos sem se saber
quem foram as pessoas que examinaram esses problemas e que definiram as pau-
tas hermenêuticas que, em regra, seguimos até hoje no trabalho contínuo da Corte.
Por isso, esta coleção visa recuperar a memória institucional, política e
jurídica do SUPREMO.
A idéia e finalidade é trazer a vida, a obra e a contribuição dada por Minis-
tros como CASTRO NUNES, OROZIMBO NONATO, VICTOR NUNES
LEAL e ALIOMAR BALEEIRO, além de outros.
A redescoberta do pensamento desses juristas contribuirá para a melhor
compreensão de nossa história institucional.
Contribuirá para o aprofundamento dos estudos de teoria constitucional no
Brasil.
Contribuirá, principalmente, para o resgate do pensamento jurídico-político
brasileiro, que tantas vezes cedeu espaço para posições teóricas construídas
alhures.
E, mais, demonstrará ser falaciosa a afirmação de que o SUPREMO deve
ser um Tribunal da carreira da magistratura.
Nunca deverá ser capturado pelas corporações.

Brasília, março de 2006


Ministro Nelson A. Jobim
Presidente do Supremo Tribunal Federal
SUMÁRIO

DADOS BIOGRÁFICOS ............................................................................... 13


NOTA DO AUTOR ........................................................................................ 17
ÍNDICE COM PALAVRAS-CHAVE ............................................................ 21
1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL ........................................... 31
1.1 Função do Supremo Tribunal Federal .............................................. 31
1.2 Controle de constitucionalidade ....................................................... 50
1.3 Federalismo ..................................................................................... 76
1.4 Direitos fundamentais .................................................................... 141
1.5 Poder Legislativo ........................................................................... 163
1.6 Regime de 1964 ............................................................................. 180

2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO .......................................... 193


2.1 Autarquias ...................................................................................... 193
2.2 Atos administrativos ....................................................................... 213
2.3 Concessão ..................................................................................... 221
2.4 Desapropriação e bens públicos .................................................... 227
APÊNDICE ................................................................................................... 235
ÍNDICE NUMÉRICO .................................................................................. 539
DADOS BIOGRÁFICOS

VICTOR NUNES LEAL, filho de Nascimento Nunes Leal e de D. Ange-


lina de Oliveira Leal, nasceu em 11 de novembro de 1914, no Município de
Carangola, Estado de Minas Gerais.
Após os estudos secundários, realizados na terra natal, ingressou na Facul-
dade Nacional de Direito, onde se diplomou em 1936.
Durante o curso, militou na imprensa, como redator de O Jornal, Diário
da Noite, Diário de Notícias e Rádio Tupi e como correspondente, no Rio de
Janeiro, de O Diário, de Santos. Após diplomado, foi admitido na redação da
Revista Forense, onde trabalhavam, entre outros, Gonçalves de Oliveira, Aguiar
Dias, Lúcio Bittencourt, Miranda Lima, Antônio Pereira Pinto e Carlos Medeiros
Silva. Posteriormente, foi encarregado da seção jurídica do Observador Econô-
mico e Financeiro, participando da equipe fundadora da Revista de Direito
Administrativo e do Conselho Consultivo da Revista Brasileira de Estudos
Políticos, da Universidade de Minas Gerais.
Quando do início de seus estudos jurídicos, trabalhou no escritório do advo-
gado Pedro Batista Martins, a quem auxiliou, mais tarde, juntamente com Carlos
Medeiros Silva, no exame das sugestões ao anteprojeto do Código de Processo
Civil.
Chamado a servir no Gabinete do então Ministro da Educação, Gustavo Capa-
nema, em 1939, foi nomeado, no ano seguinte, Diretor do recém-criado Serviço de
Documentação.
Em 1943, foi investido, interinamente, na cadeira de Ciência Política da
Faculdade Nacional de Filosofia, na qual se efetivou mediante concurso. Em
desdobramento de suas atividades de Professor, regeu cursos e funcionou como
examinador do Dasp, lecionou na Escola de Estado-Maior do Exército e realizou
conferências na Escola Superior de Guerra, participando do corpo de professores
da Universidade de Brasília desde a sua fundação.
Integrou o Conselho Diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Adminis-
trativas e do Conselho do IBBEC, tendo sido o primeiro Presidente do Instituto de
Ciências Sociais da Universidade do Brasil (1959), além de membro fundador da
Academia Nacional de Cultura e da Associação Brasileira de Escritores,
sediadas em Brasília.
Desde a formatura, militou, ininterruptamente, na advocacia, até ser no-
meado Procurador-Geral da Justiça do antigo Distrito Federal, cargo em que
permaneceu de março a novembro de 1956, quando foi investido na Chefia da
Casa Civil da Presidência da República, que exerceu até agosto de 1959.
Desempenhou, ainda, os cargos de Advogado da antiga Prefeitura do Dis-
trito Federal, de Consultor-Geral da República (fevereiro a outubro de 1960) e de
Procurador do Tribunal de Contas do atual Distrito Federal (outubro a dezembro
de 1960), participando de dois Congressos Nacionais de Tribunais de Contas —
em Salvador e Porto Alegre.
Representou o Brasil na IV Reunião do Conselho de Jurisconsultos da
Organização dos Estados Americanos (Santiago, Chile, 1959), no Congresso de
Direito Administrativo (Itália, 1960) e nas missões de observadores estrangeiros
nas eleições presidenciais da República Dominicana (1962) e da Nicarágua
(1963).
Foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por decreto de 26 de
novembro de 1960, do Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, na vaga
decorrente da aposentadoria do Ministro Francisco de Paula Rocha Lagôa,
tendo tomado posse em 7 do mês seguinte. Eleito Vice-Presidente em 11 de
dezembro de 1968, foi empossado na data imediata.
Participou da composição do Tribunal Superior Eleitoral, como Juiz Substi-
tuto (1963) e Efetivo (1966). Exerceu a Vice-Presidência no período de 17 de
novembro de 1966 a 16 de janeiro de 1969.
Foi aposentado por decreto de 16 de janeiro de 1969, baseado no Ato
Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, não tendo sido preenchida a vaga
em face do Ato Institucional n. 6, de 1º de fevereiro de 1969, que reduziu de 16
para 11 o número de Ministros do Supremo Tribunal Federal, restabelecendo a
composição anterior ao Ato Institucional n. 2, de 27 de outubro de 1965.
Recebeu homenagem do Tribunal em sessão de 5 de fevereiro de 1969,
quando se manifestaram o Ministro Luiz Gallotti, Presidente em exercício, o Dr.
Décio Miranda, Procurador-Geral da República, e o Professor Francisco Manoel
Xavier de Albuquerque, pelos advogados.
Publicou estudos em revistas especializadas, notadamente na Revista Fo-
rense e na Revista de Direito Administrativo, alguns dos quais foram enfeixados
no volume Problemas de Direito Público (1960) e no opúsculo Três Ensaios de
Administração (1958). Também foram coligidos em volume seus pareceres emiti-
dos como Consultor-Geral da República (1966). Sua tese de concurso, O Muni-
cípio e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao Estudo do Co-
ronelismo (1948), teve circulação comercial sob o título Coronelismo, Enxada e
Voto. Duas conferências sobre o Supremo Tribunal Federal foram editadas em
separata da Revista de Informação Legislativa, do Senado Federal: Aspectos da
Reforma Judiciária (1965). Os cursos de Sociologia e Política (Escola de Estado-
Maior), Teoria do Estado (Dasp) e Direito Constitucional (Dasp) foram mimeo-
grafados.
Teve, ainda, destacada atuação na Comissão de Jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, com a implantação da Súmula da Jurisprudência Predominante
do Supremo Tribunal Federal e, ainda, com a regularização da publicação da
Revista Trimestral de Jurisprudência.
Em 1997, na série Arquivos do Ministério da Justiça, foi publicada a
obra Problemas de Direito Público e outros problemas, com apresentação do
Ministro Nelson Jobim, então titular da pasta da Justiça, e introdução do Ministro
Sepúlveda Pertence, que exercia a Presidência do Supremo Tribunal Federal.
Após a aposentadoria, voltou a desenvolver atividades advocatícias.
Faleceu em 17 de maio de 1985, no Rio de Janeiro, sendo reverenciada a
sua memória em sessão de 14 de agosto do mesmo ano, quando expressou o
sentimento da Corte o Ministro Aldir Passarinho, falando pelo Ministério Público
Federal o Dr. José Paulo Sepúlveda Pertence, Procurador-Geral da República, e
pelos advogados, o Dr. Hélio Sabóia.
Em sessão administrativa de 7 de março de 2001, o Supremo Tribunal
Federal deliberou homenageá-lo, atribuindo à biblioteca da Corte o nome de “Bi-
blioteca Ministro Victor Nunes Leal”.

Dados biográficos extraídos da obra Supremo Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal


Federal — Dados Biográficos (1828 – 2001), de Laurenio Lago. Este texto também pode
ser encontrado no sítio do Supremo Tribunal Federal na Internet.
NOTA DO AUTOR

Foi uma grande honra para mim ter sido convidado a desenvolver este
trabalho, tendo por objeto a produção jurisprudencial de Victor Nunes Leal,
nesta série que se propõe ao estudo e à divulgação da história do Supremo Tribu-
nal Federal por meio de sua jurisprudência mais relevante.
É também uma enorme satisfação poder aprofundar-me nos votos do ju-
rista e homem público cuja obra doutrinária é muito presente em meus estudos
acadêmicos e por quem sempre cultivei profunda admiração e respeito.
Com efeito, Victor Nunes Leal personifica tanto a dignidade do Supre-
mo Tribunal Federal, tendo desempenhado com absoluta integridade sua mis-
são constitucional em período tão delicado para a democracia brasileira1,
como a excelência da atuação do Tribunal, tendo proferido votos que aliam,
com profundidade, saber jurídico, sensibilidade política e conhecimento da
realidade socioeconômica brasileira2.
A proposta deste trabalho não é produzir uma biografia de Victor Nunes
Leal nem uma análise de sua obra doutrinária. O objetivo que procurei alcançar
foi trazer ao conhecimento do leitor alguns dos que me pareceram ser seus votos
mais relevantes como Ministro do STF.
Nesse sentido, tive em mente ser fiel ao pensamento de Victor Nunes
Leal, evitando contaminá-lo com idéias minhas, ainda que caiba bem frisar que,
na grande maioria dos casos, concordo com suas conclusões e admiro o rigor e a
clareza de seu pensar.
Por outro lado, foram de minha responsabilidade a escolha e a análise dos
julgados a seguir apresentados. Recebi da Secretaria de Documentação do STF,
em meio eletrônico, arquivos de imagens de todos os acórdãos nos quais Victor
Nunes Leal proferiu votos: desde votos como Relator, até simples manifestações
de sua concordância com a posição de outros Ministros. Isso totalizava aproxi-
madamente 10.000 acórdãos.
Adotei alguns critérios para a seleção do material que resultou nesta obra.
Em primeiro lugar, busquei acórdãos em que a manifestação de Victor
Nunes Leal se mostrasse relevante para a solução da questão. Assim, não traba-
lhei com votos muito sucintos ou de simples concordância, ainda que se referis-
sem a casos interessantes.

1 Victor Nunes Leal, que fora Chefe da Casa Civil do Governo Juscelino Kubitscheck,
foi Ministro do STF de dezembro de 1960 a janeiro de 1969.
2 Destaca-se, ainda, como fundamental contribuição do Ministro Victor Nunes Leal, a
iniciativa em propor a adoção, pelo Tribunal, do mecanismo da Súmula. Ver, nesse senti-
do, a análise do RE 54.190, que dá início a esta obra.
Em segundo lugar, procurei escolher acórdãos que comportassem discussão
relevante em termos de Direito, ou discussão que se referisse a situação de fato
de interesse histórico, ou ainda que expressassem o modo pelo qual Victor
Nunes Leal posicionava-se política ou institucionalmente. Não aproveitei
acórdãos, ainda que contendo votos mais extensos e trabalhados, que acentuada-
mente se referissem a questões de fato, ou que cuidassem de matéria jurídica
sem maior repercussão.
Mesmo com a aplicação desses dois critérios, selecionei um conjunto de
aproximadamente mil acórdãos — número excessivo para os propósitos da obra.
Adotei, então, um corte temático, considerando áreas do Direito que mais se
aproximassem da produção científica de Victor Nunes Leal, sendo, ao mesmo
tempo, minha área de especialização: Direito Constitucional (incluídas questões
institucionais relativas ao STF e ao Poder Judiciário em geral, e questões com
maior conteúdo político) e Direito Administrativo (excluídas questões relativas
a servidores públicos).
Aplicados esses critérios, resultaram os 104 acórdãos que compõem a obra.
A partir de sua análise, pareceu-me mais adequado comentar cada qual indivi-
dualmente, classificados por temas e, quando possível, identificando tendências
e evoluções jurisprudenciais.
Interessante recordar que o período de Victor Nunes Leal no STF trans-
correu em parte sob a vigência da Constituição de 1946 e em parte sob a de
1967, sofrendo ainda o impacto político e jurídico do Regime de 1964 e de seus
cinco primeiros Atos Institucionais.
Trata-se de período em que as competências do STF eram diversas das
atuais — por exemplo, incluindo o julgamento, via recurso extraordinário, de
questões que envolvessem violação de leis federais (Constituição de 1946, art.
101, III; Constituição de 1967, art. 114, III) — e sofreram importantes transfor-
mações, sobretudo com a criação da representação de inconstitucionalidade, no
modelo de controle abstrato de constitucionalidade das normas, introduzido
pela Emenda n. 16, de 19653.
Igualmente, a composição numérica do STF sofreu alterações: passou dos
originais onze membros para dezesseis, com a edição do AI 2, em outubro de
1965, retornando a onze apenas com o AI 6, em fevereiro de 1969, quando
Victor Nunes Leal já fora aposentado.
Ainda em sede desta apresentação, cabem algumas observações quanto à
forma.

3 Até então, o controle concentrado de constitucionalidade dava-se por meio da repre-


sentação interventiva.
Considerando que o trabalho foi sistematizado em duas partes, subdividi-
das em alguns grandes temas, entendi adequado, para melhor identificação do
objeto próprio de cada acórdão, acrescentar, no início da respectiva análise, al-
gumas palavras ou frases-chave. Não se trata das ementas oficiais dos acórdãos,
que por vezes não espelhariam os aspectos específicos analisados e enfatizados
dos votos de Victor Nunes Leal.
Alguns dos votos, que me pareceram de especial relevância, foram trans-
critos na íntegra, ao final. Por certo, trata-se de pequena amostra, compatível
com as possibilidades desta edição. Dadas a qualidade e a amplitude da produ-
ção jurisprudencial de Victor Nunes Leal, recomenda-se a busca a outros
acórdãos na íntegra, que podem ser localizados no sítio de internet do STF.
Para finalidade de simplificação de leitura, os nomes das classes proces-
suais foram apresentados abreviadamente, conforme as siglas utilizadas pelo STF.
E o nome de Victor Nunes Leal foi referido “Ministro Victor Nunes”, tal como
consta dos acórdãos.
Por fim, gostaria de registrar alguns agradecimentos: à Ministra Ellen
Gracie, Presidente do Supremo Tribunal Fedral, e aos Ministros Gilmar Mendes
e Nelson Jobim, pelo convite para elaborar esta obra, e a quem também cum-
primento pela Série Memória Jurisprudencial; à equipe da Secretaria de Docu-
mentação do STF, na pessoa de sua Secretária, Dra. Altair Maria Damiani Cos-
ta, pela atenção e pela gentileza dispensadas ao longo desses meses de trabalho
— aliás, importante registrar a extrema competência da equipe, desde a
localização e o fornecimento do material de pesquisa até a cuidadosa revisão
do texto final; menciono especialmente Nayse Hillesheim (Coordenadora de Di-
vulgação de Jurisprudência) e Kelly Patrícia Varjão de Moraes (Chefe da Se-
ção de Padronização e Revisão). Ainda pela ajuda com a seleção do material,
agradeço à minha amiga Natasha Schmitt Caccia. E à amiga Maria Aparecida
Correia de Souza, pela ajuda com várias transcrições.

Fernando Dias Menezes de Almeida


São Paulo, junho de 2006.
Ministro Victor Nunes

ÍNDICE COM PALAVRAS-CHAVE

1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL ..................................... 31


1.1 Função do Supremo Tribunal Federal ................................................. 31
Recurso Extraordinário 54.190 .................................................................. 31
Súmula: finalidade, aplicação e interpretação.
Recurso em Mandado de Segurança 16.912 ............................................ 37
Igualdade — Abuso e desvio de poder nos atos legislativos — Função do
STF e sua relação com os demais Poderes — Controle de constitucionalidade
em face de princípios constitucionais — Controle de constitucionalidade nos
EUA — Importância da jurisprudência.
Mandado de Segurança 9.137 ..................................................................... 42
Função do STF como intérprete último da Constituição — Aspectos de
função legislativa na atuação do STF.
Recurso Ordinário Eleitoral 366 ................................................................ 43
Função do STF como intérprete último da Constituição — Unidade na
interpretação da Constituição.
Recurso Ordinário Eleitoral 371 ................................................................ 46
Função do STF como intérprete último da Constituição — Alteração de
jurisprudência.
Mandado de Segurança 9.077 ..................................................................... 47
Limites à apreciação, pelo STF, de política de governo — Poder regula-
mentar.
Recurso Extraordinário 35.230 .................................................................. 48
Tecnicismo processual como obstáculo à realização da justiça — Proposta
de forma única para ações.
Mandado de Segurança 13.203 ................................................................... 49
Justificativa para competência do STF — Distinção entre União e
autarquias.
1.2 Controle de constitucionalidade .......................................................... 50
Mandado de Segurança 15.886 ................................................................... 50
Discussão sobre possibilidade de negativa de aplicação de lei, pelo Poder
Executivo, por alegação de inconstitucionalidade — Emenda Constitucio-
nal 16/65 — Presunção de constitucionalidade das leis — Retroatividade
da declaração de inconstitucionalidade — Crítica à disciplina por lei de
prerrogativa constitucional do STF.

21
Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 16.003 ................................................................... 54


Discussão sobre possibilidade de negativa de aplicação de lei, pelo Poder
Executivo, por alegação de inconstitucionalidade — Discussão sobre
cabimento de mandado de segurança para solucionar, em abstrato, essa
questão.
Mandado de Segurança 16.512 ................................................................... 56
Resolução do Senado Federal que suspende a execução de lei julgada
inconstitucional pelo STF — Discussão sobre possibilidade de revogação
da resolução por outra — Natureza da resolução do Senado Federal, para
efeito de controle via representação de inconstitucionalidade — Conceito
de “lei em tese” — Efeitos da resolução do Senado Federal — Sentido de
suspensão “no todo ou em parte” — Caráter discricionário ou vinculado
da resolução do Senado Federal.
Recurso em Mandado de Segurança 8.069 .............................................. 61
Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e posicionamento doutri-
nário — Defesa do federalismo — Sistema tributário como instrumento
de reforço do federalismo.
Recurso em Mandado de Segurança 8.533 .............................................. 63
Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e posicionamento doutri-
nário.
Recurso Extraordinário 23.937 .................................................................. 64
Aplicação da Súmula 400 — Não-cabimento de recurso extraordinário
em face de decisão que deu razoável interpretação a lei.
Recurso Extraordinário 32.921 .................................................................. 65
Interpretação conforme a Constituição.
Recurso em Mandado de Segurança 14.710 ............................................ 66
Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunal local, para que o Pleno
decida sobre questão de constitucionalidade — Discussão sobre trânsito
em julgado da decisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.
Recurso em Mandado de Segurança 15.212 ............................................ 69
Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunal local, para que o Pleno
decida sobre questão de constitucionalidade — Discussão sobre trânsito
em julgado da decisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.
Mandado de Segurança 17.484 ................................................................... 70
Mandado de segurança preventivo para evitar negativa de aplicação, pelo
Poder Executivo, de lei julgada constitucional pelo STF.

22
Ministro Victor Nunes

Casos “Testamento do Rio Grande do Norte” (Rp 512, RE 48.655,


RE 54.908, RE 61.513, RE 61.324, RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354,
RE 61.511, RE 61.524 e RE 61.554) ......................................................... 71
Suspensão de aplicação de lei por ato do Poder Executivo — Interpretação
dos princípios constitucionais sensíveis — Flexibilidade para cabimento de
recurso extraordinário em mandado de segurança — Discussão sobre
julgamento de constitucionalidade de lei como impedimento para a aprecia-
ção de argüição de sua inconstitucionalidade em casos concretos.
Representação 725 ....................................................................................... 76
Discussão sobre a ocorrência de inconstitucionalidade ou revogação de lei
anterior que conflita com nova Constituição — Conseqüências.
1.3 Federalismo ............................................................................................ 76
Recurso em Mandado de Segurança 11.687 ............................................ 76
Repartição constitucional de competências — Censura a exibição cine-
matográfica — Poder de polícia em face de direitos fundamentais —
Poderes implícitos da União — Competência concorrente e supremacia
da lei federal — Poder de polícia e eficácia da força material disponível.
Habeas Corpus 41.296 ................................................................................ 84
Julgamento histórico: caso da ameaça de impeachment do Governador
Mauro Borges Teixeira — Competência para julgamento — Autonomia dos
Estados — Respeito à instância política estadual.
Representação 748 ....................................................................................... 89
Vinculação de tributos — Previsão de reserva de percentual orçamentá-
rio para fundo ligado à educação e à cultura — Argumentos de natureza
política — Influência da experiência pessoal dos Ministros na interpreta-
ção da Constituição.
Representação 775 ....................................................................................... 92
Competência legislativa em matéria de edificações urbanas — Autonomia
municipal.
Representação 676 ....................................................................................... 93
Ingresso de professores de ensino primário na rede pública independen-
temente de concurso público — Ingresso a partir de curso específico de
formação — Competência legislativa em matéria de ensino primário.
Representação 760 ....................................................................................... 94
Ingresso de professores de ensino primário na rede pública independente-
mente de concurso público — Argumentos de natureza política e social —
Competência legislativa em matéria de ensino primário.

23
Memória Jurisprudencial

Representação 669 ....................................................................................... 97


Repartição constitucional de competências — Competência para legislar sobre
atos de diretores de sociedades de economia mista e autarquias.
Representação 467 ....................................................................................... 99
Repartição constitucional de competências — Teoria dos poderes implí-
citos — Observância de parâmetros do Distrito Federal pelos Estados —
Criação de Tribunal de Contas.
Representação 477 ..................................................................................... 101
Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tiago Dantas” — Possi-
bilidade de Constituição estadual alterar mandatos legislativos dos pró-
prios deputados constituintes — Observância de princípios da Constitui-
ção Federal por Constituição estadual — Poder constituinte originário e
derivado — Origem do poder na democracia.
Recurso em Mandado de Segurança 9.558 ............................................ 104
Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tiago Dantas” — Obser-
vância de princípios da Constituição Federal por Constituição estadual —
Princípio da intangibilidade do mandato político.
Representação 602 ..................................................................................... 106
Aplicação automática por Estado de norma sobre processo legislativo, cons-
tante em ato institucional — Questões políticas — “Forma republicana repre-
sentativa” — “Independência e harmonia dos Poderes” — Função do STF.
Recurso Extraordinário 58.505 ................................................................ 108
Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição estadual
e lei orgânica de Municípios — Eleição de prefeito em caso de vacância —
Posição do Município na Federação brasileira — Autonomia municipal.
Representação 718 ...................................................................................... 114
Repartição constitucional de competências — Competência para desa-
propriar para fim de reforma agrária — Distinção entre desapropriação
com pagamento em títulos da dívida pública e desapropriação com paga-
mento em dinheiro.
Representação 515 ...................................................................................... 116
Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição esta-
dual — Sucessão de vice-governador em caso de vacância — Ordem de
sucessão — Eleição indireta — “Forma republicana representativa”.
Representação 600 ...................................................................................... 118
Observância de princípios da Constituição Federal por Constituição esta-
dual — Sucessão de vice-governador em caso de vacância — Eleição
indireta.

24
Ministro Victor Nunes

Representação 561 ..................................................................................... 120


Regra sobre elegibilidade de governador contida em Constituição esta-
dual — Violação de princípio constitucional da “forma republicana re-
presentativa” — Interpretação dos princípios constitucionais sensíveis.
Representação 753 ..................................................................................... 121
Adaptação de Constituição estadual à Federal, por força de norma da
Constituição de 1967 — Recepção de normas de Constituição anterior
como normas com hierarquia de leis ordinárias.
Representação 494 ..................................................................................... 123
Autonomia municipal — Majoração de tributos — Controle dos Municípios
pelos Estados — Controle político pelo eleitorado.
Representação 505 ..................................................................................... 125
Autonomia municipal — Competência em matéria de majoração de tributos.
Representação 654 ..................................................................................... 126
Competência municipal em matéria de serviço de água e esgoto.
Representação 503 ..................................................................................... 127
Autonomia municipal — Disposição, por lei estadual, sobre critério de
partilha de arrecadação de imposto estadual com Municípios.
Recurso em Habeas Corpus 39.708 ........................................................ 128
Aplicação de norma de lei federal sobre crime de responsabilidade a pre-
feito — Função política e administrativa do prefeito.
Representação 423 ..................................................................................... 130
Criação de Município — Discussão sobre divisão distrital como critério
para oitiva da população do território a ser desmembrado — Hierarquia
de leis.
Representação 583 ..................................................................................... 133
Criação de Município — Autonomia municipal — Convalidação de vícios
no processo de criação ante concordância do Município do qual houve
desmembramento — Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de
criação de Município — Lei em sentido formal e lei em sentido material.
Representação 632 ..................................................................................... 135
Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de criação de Município.
Representação 657 ..................................................................................... 136
Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de criação de Município.
Representação 507 ..................................................................................... 136
Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-
cípio do qual houve desmembramento.

25
Memória Jurisprudencial

Representação 534 ................................................................................... 137


Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-
cípio do qual houve desmembramento.
Representação 586 ................................................................................... 138
Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-
cípio do qual houve desmembramento.
Representação 574 ................................................................................... 138
Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-
cípio do qual houve desmembramento — Decisão divergente das anteriores.
Representação 513 ................................................................................... 139
Criação de Município — Autonomia municipal — Concordância do Muni-
cípio do qual houve desmembramento — Critério para interpretação mais
ampla dos princípios constitucionais sensíveis.
Representação 617 ................................................................................... 140
Criação de Município — Autonomia municipal — Saneamento de falhas
formais ante aprovação de lei estadual.
1.4 Direitos fundamentais ........................................................................ 141
Extradição 232 — Segunda ...................................................................... 141
Extradição — Revolução Cubana — Ausência de garantias institucionais —
Distinção entre motivo ou fim político e crime político — Descaracterização,
como crime político, de atos de barbaria e vandalismo.
Extradição 274 ............................................................................................ 144
Julgamento histórico: Caso Stangl — Regime nazista — Extradição —
Reciprocidade — Competência e preferência ante multiplicidade de pedidos
de extradição — Comutação de pena — Genocídio — Julgamento regular —
Crime político e cumprimento de ordem superior.
Recurso em Mandado de Segurança 12.468 .......................................... 153
Intervenção do Estado no domínio econômico — Limites ao direito de
propriedade.
Recurso Extraordinário 41.710 ................................................................ 155
Liberdade de pensamento e liberdade de ensino — Curso livre — Poder
de polícia.
Recurso Extraordinário 37.142 ................................................................ 156
Direito de propriedade — Confisco de bens para indenização de guerra —
Caráter regulamentar como exigência para decreto ser objeto de recurso
extraordinário.
Mandado de Segurança 7.711 ................................................................... 158
Princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais.

26
Ministro Victor Nunes

Recurso em Mandado de Segurança 9.963 ............................................ 159


Igualdade — Concurso público — Distinção pelo critério de gênero.
Recurso Extraordinário 47.630 — Segundo .......................................... 161
Igualdade — Concurso público — Distinção pelo critério de gênero —
Papel da lei e do regulamento.
1.5 Poder Legislativo ................................................................................. 163
Recurso Extraordinário 62.731 ................................................................ 163
Decreto-lei — Limites — Discricionariedade do Executivo no reconheci-
mento da hipótese material de cabimento — Possibilidade de apreciação
judicial.
Representação 696 ..................................................................................... 167
Lei de caráter administrativo — Anistia a faltas de servidores públicos — Har-
monia dos Poderes.
Representação 465 ..................................................................................... 168
Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa do
Executivo.
Representação 468 ..................................................................................... 171
Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa do
Executivo — “Prática da Constituição” como integrante do Direito Cons-
titucional positivo.
Representação 687 ..................................................................................... 172
Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa do
Executivo — Introdução de matéria estranha ao projeto original.
Representação 700 ..................................................................................... 173
Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa do
Executivo — Introdução de matéria estranha ao projeto original — Aumento
de despesas.
Representação 741 ..................................................................................... 175
Limites à iniciativa do Legislativo quanto a projeto de lei.
Representação 762 ..................................................................................... 176
Limites ao poder de emenda do Legislativo em projetos de iniciativa do
Executivo.
Habeas Corpus 40.400 .............................................................................. 176
Caso do confronto entre os Senadores Arnon de Mello e Silvestre Péricles,
que resultou na morte do Senador Kairala — Competência do Senado
Federal para promover inquérito policial quanto a senador — Natureza
judicial dessa função do Senado Federal.

27
Memória Jurisprudencial

1.6 Regime de 1964 ................................................................................... 180


Inquérito Policial 2 ..................................................................................... 180
Julgamento histórico: Caso João Goulart — Competência para julgamento
de ex-Presidente da República — Acusação, em inquérito policial militar,
de prática de crimes comuns durante o exercício do cargo — Direitos
políticos suspensos pelo AI 2, com cessação de privilégio de foro por prer-
rogativa de função — Discussão sobre prevalência da Constituição de
1967 sobre o AI 2 — Natureza dos atos institucionais — Efeitos da apro-
vação, pela Constituição, dos atos governamentais praticados com base
em ato institucional.
Mandado de Segurança 17.957 ................................................................. 185
Decreto-lei — Configuração de lei em tese para efeito do não-cabimento
de mandado de segurança — Lei com efeitos concretos — Interpretação
da regra do afastamento da apreciação pelo Judiciário de atos praticados
no regime militar — Supremacia da Constituição.
Mandado de Segurança 14.746 ................................................................. 188
Interpretação da regra do afastamento da apreciação pelo Judiciário de atos
praticados no regime militar — Natureza dos atos institucionais.
Mandado de Segurança 15.050 ................................................................. 189
Perda de objeto da ação ante alteração no tratamento constitucional da
matéria versada.
Mandado de Segurança 18.973 ................................................................. 190
Limites à aprovação, pela Constituição de 1967, de atos praticados no
regime militar — Prevalência exclusiva da Constituição.
2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO .................................... 193
2.1 Autarquias ............................................................................................. 193
Mandado de Segurança 8.693 ................................................................... 193
Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia com
regulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administração indi-
reta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —
Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa — Limi-
tes à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo.
Mandado de Segurança 8.651 ................................................................... 203
Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia com
regulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administração
indireta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —
Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa —
Limites à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo —
Função política do STF — Relevância da estabilidade da jurisprudência.

28
Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 8.802 ................................................................... 205


Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Analogia com
regulatory agencies dos EUA — Autonomia de entes da administração indi-
reta no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —
Argumentos de ordem constitucional, legal, política e administrativa — Limi-
tes à apreciação judicial sobre opções políticas do Legislativo.
Mandado de Segurança 10.213 ................................................................. 208
Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Reitor —
Autonomia de entes da administração indireta no Brasil — Autonomia
universitária — Liberdade de cátedra — Limites ao poder de exonerar do
Chefe do Executivo.
Mandado de Segurança 11.109 ................................................................. 209
Investidura com prazo certo de dirigentes de autarquias — Autonomia de
entes da administração indireta no Brasil — Limites ao poder de exonerar
do Chefe do Executivo — Extinção dos cargos por lei.
Mandado de Segurança 10.272 ................................................................. 210
Caracterização de autarquia — Enquadramento de seu patrimônio como
bem público — Tutela e hierarquia.
Mandado de Segurança 10.882 .................................................................. 211
Autonomia universitária — Regime peculiar para servidores.
Mandado de Segurança 15.186 ................................................................. 212
Autarquias — Sentido histórico da autonomia — Criação de cargos.
2.2 Atos administrativos ............................................................................ 213
Recurso em Mandado de Segurança 8.147 ............................................ 213
Sujeição de ato administrativo individual e concreto ao ato regulamentar,
ainda que emanados da mesma autoridade — Ausência de direito à reno-
vação de licença, ante mudança de legislação.
Mandado de Segurança 12.800 ................................................................. 216
Poder regulamentar: margem de interpretação de lei — Limites à apre-
ciação judicial de atos discricionários.
Embargos no Agravo de Instrumento 26.603 ........................................ 217
Cassação de licença para construir — Proteção de imóvel tombado.
Mandado de Segurança 15.194 ................................................................. 218
Anulação de ato de exoneração — Teoria dos motivos determinantes.
Embargos no Recurso Extraordinário 45.110 ........................................ 220
Nulidade de ato administrativo por vício de forma — Código Civil.

29
Memória Jurisprudencial

2.3 Concessão ............................................................................................. 221


Mandado de Segurança 18.028 ................................................................. 221
Concessão de serviços públicos — Processo administrativo como garan-
tia do concessionário.
Mandado de Segurança 16.132 ................................................................. 223
Concessão de serviço de radiodifusão — Caducidade — Aplicação de
legislação em sentido contrário ao que a inspirara.
Recurso em Mandado de Segurança 14.230 .......................................... 226
Concessão — Exploração de minérios — Desrespeito a normas de pro-
cesso administrativo.
2.4 Desapropriação e bens públicos ........................................................ 227
Recurso Extraordinário 54.011 ................................................................ 227
Retrocessão — Distinção entre desapropriação amigável e compra e venda.
Recurso em Mandado de Segurança 9.549 ............................................ 229
Desapropriação de ações de companhia ferroviária — Abusividade —
Desapropriação do serviço ou das ações — Mandado de segurança como
a “ação direta” da Lei de Desapropriações.
Recurso Extraordinário 44.585 ................................................................ 231
Terras indígenas — Sentido de “posse” constitucionalmente protegida.
Mandado de Segurança 16.443 ................................................................. 232
Caracterização das terras indígenas e seus frutos como bens públicos —
Formalidades para alienação.

30
Ministro Victor Nunes

1. TEMAS DE DIREITO CONSTITUCIONAL


1.1 Função do Supremo Tribunal Federal

Recurso Extraordinário 54.190

Súmula: finalidade, aplicação e interpretação.

Parece muito adequado iniciar este trabalho com a análise de um acórdão


que permita abordar uma das maiores contribuições do Ministro Victor Nunes,
em sua passagem pelo Supremo Tribunal Federal: a criação da Súmula.
Trata-se de acórdão cujo interesse diz respeito não à questão de fundo
debatida, mas à invocação de determinada Súmula, o que, no caso, deu ensejo a
amplos debates sobre o modo de se aplicarem as Súmulas e, em especial, de se
as interpretar.
Ao longo desta obra, os comentários a vários julgados permitem explicitar o
apreço do Ministro Victor Nunes para com a jurisprudência do Supremo Tribunal1.
O Ministro Victor Nunes regularmente busca acrescentar aos seus votos —
que aliam, com profundidade, saber jurídico, sensibilidade política e conhecimento
da realidade socioeconômica brasileira — referências a casos já decididos ou
tendências já estabelecidas, sem prejuízo de, sempre que entenda pertinente,
apresentar posicionamento divergente2.
Aliado a esse aspecto do perfil de atuação do Ministro Victor Nunes, outro
que se destaca é sua dedicação ao aprimoramento de ritos e procedimentos do
Tribunal, sempre visando a dotar-lhe de instrumentos que permitam o melhor
desempenho de sua missão.

1 O Ministro Aliomar Baleeiro, ao votar no MS 15.886, referiu-se ao Ministro Victor


Nunes como “a própria jurisprudência viva do Supremo Tribunal andando pelas ruas”.
2 Ver, adiante, por exemplo, trecho do voto do Ministro Victor Nunes transcrito no
comentário ao ROE 366. Nesse sentido, ilustrativo é o trecho de palestra proferida pelo
Ministro Victor Nunes, com o título “Atualidade do Supremo Tribunal Federal” (publicada
na Revista dos Tribunais, v. 349, pp. 623/629): “firmar a jurisprudência de modo rígido
não seria um bem, nem mesmo viável. A vida não pára, nem cessa a criação legislativa
e doutrinária do direito. Mas vai uma enorme diferença entre a mudança, que é
freqüentemente necessária, e a anarquia jurisprudencial, que é descalabro e tormento.
Razoável e possível é o meio termo, para que o Supremo Tribunal Federal possa cum-
prir o seu mister de definir o direito federal, eliminando ou diminuindo os dissídios da
jurisprudência”. Com essas e outras idéias expressas no referido texto, defendia o insti-
tuto da Súmula.

31
Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, foi do Ministro Victor Nunes a iniciativa de propor a ado-


ção, pelo Supremo Tribunal Federal, do mecanismo da Súmula, instituída regi-
mentalmente em 1963 e que importou um marco na história do Tribunal 3.
Oportuno, a propósito, lembrar palavras de José Paulo Sepúlveda Pertence,
hoje Ministro do Supremo Tribunal e então Procurador-Geral da República, em
sua manifestação4 proferida na sessão ordinária daquele Tribunal, de 14 de agosto
de 1985, em homenagem ao Ministro Victor Nunes Leal, falecido no dia 17 de
maio do mesmo ano:
“Mais do que os de Relator, chamavam a atenção os seus vo-
tos como vogal: o improviso e o não-conhecimento direto dos autos
realçavam a atenção sem intervalos que dedicava aos debates e,
sendo o caso, o estudo prévio dos memoriais; a concatenação e o
vigor do raciocínio, em que a ênfase (que subia quando interrom-
pido pelo aparte adverso, sem perder, porém, a lhaneza de trato)
não obscurecia a clareza habitual. (Inesquecíveis algumas polê-
micas suas com o saudoso Luiz Gallotti, outra vocação incomum
para o debate oral.)
Pouco depois, o que viria a singularizá-lo, na recordação das
sessões da Corte: a informação imediata dos precedentes da juris-
prudência, documentada com a menção ao número do processo, à
data do julgamento, ao nome do Relator e — a princípio para des-
conforto dos menos atentos — ao voto de cada um dos Ministros. Só
o conhecimento do sistema de referências cruzadas entre os colecio-
nadores pretos e os cadernos de capa verde, sempre dispostos à sua
frente, na bancada, fazia diminuir o espanto do observador, embora
fizesse crescer a admiração pela disciplina de trabalho que o método
reclamava.
O importante é que os cadernos de Victor Nunes entrariam
para a história do Tribunal. Da sua eficiência, cotidianamente de-
monstrada nas sessões, nasceria a credibilidade do novo juiz para a

3 Integrando a Comissão de Jurisprudência do Tribunal, juntamente com os Ministros


Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves, o Ministro Victor Nunes apresentou a idéia e foi o
Relator da emenda regimental que criou a Súmula. Foi ainda, por ocasião da introdução da
Súmula, o Relator de seus primeiros 370 enunciados. Note-se que, na terminologia original
e ainda na terminologia regimental, a expressão “Súmula” se referia ao conjunto dos
“enunciados”, publicada e atualizada periodicamente; a prática posterior consagrou tam-
bém o uso de “Súmula” significando cada enunciado.
4 Rica fonte de informações sobre o Ministro Victor Nunes, sua história e seus valores,
e bela oração de homenagem àquele que considera “mestre”, “amigo”, “pai” e “irmão”
(ver Diário da Justiça, 26-8-1985, pp. 13905 e seguintes).

32
Ministro Victor Nunes

aceitação e a implantação das reformas nos métodos de trabalho da


Corte, que abalariam o misoneismo tradicional dos velhos juízes.
Da mais célebre das inovações, a Súmula, o próprio Victor con-
taria em conferência de 1981, em Santa Catarina, minimizando-lhe,
embora, as dificuldades da aceitação:
‘Por falta de técnicas mais sofisticadas, a Súmula nasceu —
e colateralmente adquiriu efeitos de natureza processual — da
dificuldade, para os Ministros, de identificar as matérias que já
não convinha discutir de novo, salvo se sobreviesse algum mo-
tivo relevante. O hábito, então, era reportar-se cada qual a sua
memória, testemunhando, para os colegas mais modernos, que
era tal ou qual a jurisprudência assente na Corte. Juiz calouro,
com o agravante da falta de memória, tive que tomar, nos pri-
meiros anos, numerosas notas e bem assim sistematizá-las, para
pronta consulta durante as sessões de julgamento.
Daí surgiu a idéia da Súmula, que os colegas mais expe-
rientes — em especial os companheiros da Comissão de Juris-
prudência, Ministros Gonçalves de Oliveira e Pedro Chaves —
tanto estimularam. E se logrou, rápido, o assentamento da Pre-
sidência e dos demais Ministros. Por isso, mais de uma vez, te-
nho mencionado que a Súmula é subproduto de minha falta de
memória, pois fui eu afinal o Relator não só da respectiva
emenda regimental como dos seus primeiros 370 enunciados.
Esse trabalho estendeu-se até as minúcias da apresentação
gráfica da edição oficial, sempre com o apoio dos colegas da
Comissão, já que nos reuníamos, facilmente, pelo telefone’.
A Súmula significou, ao mesmo tempo, melhoria qualitativa
(dadas a estabilização, sem petrificação, da jurisprudência e a con-
seqüente equanimização das decisões) e racionalização quantitativa
dos trabalhos da Corte (funcionando, ele o diria, como “princípio da
relevância às avessas”). Só ela bastaria para singularizar, na passa-
gem de Victor Nunes pelo Supremo Tribunal, essa combinação
incomum de um jurista de brilho intelectual invulgar com um
organizador extraordinário”.
A referência ao RE 54.190, a seguir analisado, justifica-se por permitir o
registro, indispensável nesta obra, do papel fundamental exercido pelo Ministro
Victor Nunes quanto à criação do instrumento da Súmula, e ainda por importar
ilustração da clareza de raciocínio do Ministro quanto ao modo adequado de se
utilizar tal instrumento.

33
Memória Jurisprudencial

Discutia-se, no caso, a incidência do então dito “imposto do selo” em um


contrato firmado com autarquia. Especificamente, uma determinada construtora
ajuizara mandado de segurança para não ter de “pagar selos” sobre contrato que
iria celebrar com o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem – DNER.
Concedida a segurança, recorre a União Federal, pela via extraordinária, ao Su-
premo Tribunal.
A matéria tributária apresentada, além de aspectos específicos que pare-
cem menos interessantes em face do direito vigente, envolve relevante questão
de princípio, a qual, todavia, ora não se aprofunda, dado o corte temático desta
obra5.
Todavia, permeava a discussão a existência da Súmula 303: “Não é devido
o imposto federal do selo em contrato firmado com autarquia anteriormente
à vigência da Emenda Constitucional 5, de 21-11-61”.
Como o caso concreto envolvia contrato firmado posteriormente a tal
Emenda, a maioria dos Ministros pretendia aplicar a Súmula, interpretando-a a
contrario sensu, ou seja, por se afirmar não ser devido o imposto em caso de
contrato firmado anteriormente à Emenda, haveria de se concluir ser devido o
imposto em caso de contrato firmado posteriormente.
Ao discordar desse entendimento, o Ministro Victor Nunes apresenta racio-
cínio de extrema lucidez e demonstra que a Súmula não pode ser aplicada como
se fora lei, não comportando interpretação a contrario sensu6.
Por outras palavras, se se tratasse de uma norma jurídica, contendo o
enunciado da vontade expressa na lei, seria cabível o raciocínio de que o legisla-
dor, tendo explicitado uma hipótese, possa ter pretendido excluir outra não
explicitada.
No entanto, sendo a Súmula mera descrição do fato de que o Tribunal tem
entendimento consolidado sobre certo aspecto de uma matéria, dela não pode
decorrer qualquer conclusão sobre qual seria o entendimento do Tribunal quanto
a outro aspecto do tema, não abordado na Súmula.

5 Discutia-se o princípio da imunidade recíproca dos entes tributantes. Sustentava o


Ministro Victor Nunes que “não será devido o selo nos casos em que se verificar o
fenômeno da repercussão contra entidade protegida pela imunidade”. (...) “Se houver
repercussão do imposto sobre o patrimônio de pessoa jurídica de direito público, pro-
tegida pela imunidade, o imposto é indevido; se não houver repercussão, o imposto é
devido”.
6 Com efeito, parece-me que a Súmula não configura, em essência, um comando
normativo, mas apenas descreve um fato: o fato de haver entendimento jurisprudencial do
Tribunal consolidado sobre determinada questão.

34
Ministro Victor Nunes

Assim, da afirmativa de não ser devido o imposto por contrato anterior a


certa data, nada se pode concluir quanto a ser ou não ser devido por contrato
posterior a essa data. Na verdade, tal afirmativa apenas significa que o Tribunal
entende não ser devido imposto em certa situação, não havendo ainda entendi-
mento consolidado sobre outra hipótese.
E não há nenhuma relação lógica, derivada dessa afirmativa, que permita
concluir que o eventual entendimento do Tribunal quanto a outra hipótese será no
mesmo ou em diverso sentido.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes inicia por frisar que, tratando-se de
contrato firmado posteriormente à referida Emenda Constitucional, o assunto em
debate não está regulado na Súmula 303. Em aparte, o Ministro Gonçalves de
Oliveira objeta que “está, a contrario sensu”. Segue-se, então, o debate:
“O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente por isso, eminente
Ministro Gonçalves de Oliveira, é que me parece não estar previsto.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Interpreto a Súmula,
posto tenha sido redigida por V. Exa., que está. O que diz a Súmula é
o seguinte: ‘Não é devido o imposto federal de selo em contrato fir-
mado com autarquia anteriormente à vigência da Emenda Constitucio-
nal 5, de 21-11-61’.
Por mais que V. Exa. queira interpretar esse dispositivo, evi-
dentemente ele estabeleceu que, depois da emenda, é devido. Do con-
trário, que sentido teria a referência à Emenda 5? Podemos fazer
uma revisão, evidentemente, em face dos argumentos que V. Exa.
apresentar, mas que está prevista a não-isenção, a meu ver, está, no
sentido de que é devido o selo nos contratos posteriores à Emenda
Constitucional 5.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Seria inócua a emenda, se não se
chegasse a essa conclusão.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando o fio de meu raciocínio,
contraditado, antecipadamente, pelos eminentes Ministros Gonçalves
de Oliveira e Pedro Chaves7, peço vênia para uma consideração pre-
liminar. Se tivermos de interpretar a Súmula com todos os recursos de

7 Curiosamente, os dois Ministros que, juntamente com o Ministro Victor Nunes, inte-
gravam a Comissão de Jurisprudência do Tribunal, por ocasião da introdução da Súmula.

35
Memória Jurisprudencial

hermenêutica, como interpretamos as leis, parece-me que a Súmula


perderá sua principal vantagem. Muitas vezes, será apenas uma nova
complicação sobre as complicações já existentes. A Súmula deve ser
entendida pelo que exprime claramente, e não a contrario sensu, com
entrelinhas, ampliações ou restrições. Ela pretende pôr termo a dúvi-
das de interpretação e não gerar outras dúvidas.
No ponto em debate, a Súmula declara que não é devido o selo
nos contratos celebrados anteriormente à Emenda Constitucional 5.
Mas não afirma que, celebrado o contrato posteriormente, o selo
seja devido.
(...)
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Súmula foi criada para pôr
termo a dúvidas. Se ela própria puder ser objeto de interpretação
laboriosa, de modo que tenhamos de interpretar, com novas dúvidas,
o sentido da Súmula, então ela perderá a sua razão de ser.
(...)
O Sr. Ministro Pedro Chaves: O que é lamentável é que V. Exa.
esteja destruindo a sua grande obra, que é a confecção da Súmula.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Faço um apelo aos eminentes cole-
gas, para não interpretarmos a Súmula de forma diferente do que
nela se exprime, intencional e claramente. Do contrário, ela falhará,
em grande parte, à sua finalidade. Quando a Súmula afirma que não
é devido o selo se o contrato for celebrado anteriormente à vigência
da Emenda Constitucional 5, sobre esta afirmação, e somente sobre
ela, é que já está tranqüila a orientação do Tribunal. Quanto a ser
devido o selo nos contratos posteriores, o Tribunal Pleno ainda não
definiu a sua jurisprudência”.
No caso, entretanto, o resultado do julgamento foi o provimento do recurso,
contra os votos dos Ministros Victor Nunes, Hermes Lima, Lafayette de
Andrada e do Relator Vilas Boas.8

8 Em que pese vencida nesse caso, a opinião do Ministro Victor Nunes sobre interpre-
tação de súmula é presente até hoje nos debates travados no Supremo Tribunal Federal.
Verifiquem-se, por exemplo, as ponderações do Ministro Sepúlveda Pertence no Habeas
Corpus 85.185, julgado pelo Plenário do Tribunal, em 10-8-2005.

36
Ministro Victor Nunes

Recurso em Mandado de Segurança 16.912

Igualdade — Abuso e desvio de poder nos atos


legislativos — Função do STF e sua relação com os
demais Poderes — Controle de constitucionalidade em
face de princípios constitucionais — Controle de consti-
tucionalidade nos EUA — Importância da jurisprudência.

A situação de fato envolvida neste caso é a criação do Cartório de Re-


gistro de Imóveis e Anexos, da Comarca de Suzano/SP, a partir de desmembra-
mento do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos, o qual, por sua vez,
fora desmembrado, cinco anos antes, do Cartório de Registro Civil das Pessoas
Naturais.
A lei estadual que promoveu o segundo desmembramento estabeleceu, a
título explícito de compensação pela “perda do anexo de tabelionato” — o que
ocorrera, como visto, anos antes —, “prioridade absoluta de opção” para o
novo Cartório de Imóveis ao “atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Natu-
rais” da Comarca. E esse oficial veio efetivamente a ser provido na nova
serventia.
Inconformado, o titular do Tabelionato de Notas impetrou mandado de se-
gurança contra esse provimento, alegando a inconstitucionalidade da norma que
previra a “prioridade absoluta”.
Em seu voto, o Ministro Relator, Djaci Falcão, demonstrando que já hou-
vera compensações ao Titular do Cartório de Registro Civil das Pessoas Natu-
rais quando do desmembramento do Cartório de Notas, acolhe a tese da in-
constitucionalidade da lei estadual — não a inconstitucionalidade do
desmembramento, pois “a vitaliciedade dos titulares de ofício de justiça
não constitui óbice à divisão dos ofícios”, mas da prioridade estabelecida
para o provimento.
Agindo desse modo, o legislador paulista teria editado, segundo o Relator,
“norma de caráter pessoal9, ao arrepio, pois, do princípio da igualdade de
todos perante a lei. Vê-se que a regra não guarda o caráter da generalidade,
eis que personaliza. Estabelecendo um critério de provimento em benefício
exclusivo de um serventuário da Justiça, afetou o direito dos demais
serventuários do Estado que se encontrem nas mesmas condições de disputar
o preenchimento do cargo criado”.

9 Note-se que a lei se referia à prioridade do “atual” titular.

37
Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes vota acompanhando o Relator, mas apresenta


importantes considerações sobre o desvio e o abuso de poder nos atos legislativos
e a possibilidade de controle desses abusos pelo Supremo Tribunal Federal.
O voto, que segue transcrito na íntegra ao final desta obra, merece ser
lido. Dele se extraem importantes elementos estruturantes do pensamento do
Ministro Victor Nunes, que aparecerão em inúmeros outros julgados aqui ana-
lisados.
Em particular, neste caso, são abordados temas como:
a) o alcance das atribuições do Supremo Tribunal Federal em sua relação
com os demais Poderes, demonstrando o Ministro Victor Nunes posição de gran-
de equilíbrio, com o reconhecimento dos aspectos políticos da atuação de cada
Poder e os limites que se lhe devem impor, particularmente ao Poder Judiciário,
em face das decisões políticas tomadas, em conformidade com o ordenamento
constitucional, dentro de um regime democrático, pelos demais Poderes10.
b) a importância da jurisprudência, tanto para formar posicionamentos coe-
rentes do Supremo Tribunal Federal, como para construir interpretações mais
definidas, a partir de noções pouco precisas empregadas por textos legais. Seu
apreço pela jurisprudência — que motivou, no MS 15.886, o Ministro Aliomar
Baleeiro a referir-se ao Ministro Victor Nunes como “a própria jurisprudência
viva do Supremo Tribunal andando pelas ruas” — levou-o a ser o idealizador
do instituto da Súmula11 no âmbito do Tribunal, mas também não o impede de
votar, quando entenda devido, em sentido diverso12, permitindo que a jurisprudên-
cia acompanhe a evolução dos tempos.
c) a definição das competências do Supremo Tribunal Federal, particular-
mente em matéria de controle de constitucionalidade. Sobre esse aspecto, as
ponderações do Ministro Victor Nunes sempre se mostram contextualizadas com
a evolução política do Brasil, sem prejuízo de buscar subsídios na experiência
estrangeira, em especial, da Suprema Corte norte-americana, da qual demonstra
ser grande conhecedor.
Quanto ao caso ora analisado, em que pese concorde com as conclusões
do Relator, produz importante digressão teórica, de grande aplicação concreta
para reforçar a solução apontada. Trata-se da noção de “abuso” como balizadora
da atuação do Poder Judiciário, controlando atos dos demais Poderes:

10 Esse tema volta a aparecer, nitidamente, em outros casos, tais como: MS 8.693, MS
8.651 e MS 8.802.
11 Cf. análise do RE 54.190.
12 Cf., para ilustrar, observações feitas no MS 8.651.

38
Ministro Victor Nunes

“Não estou inteiramente em desacordo com V. Exa., mas acho


que a noção de abuso é que permite ao Judiciário exercer uma fun-
ção moderadora no controle da ação de outros Poderes. Tanto a no-
ção de uso como a de abuso não têm definição muito precisa, mas a
jurisprudência as vai construindo, lentamente, com seus precedentes.
Aliás, é importante notar, é à base de noções não muito precisas, não
completamente definidas no texto legal, que a jurisprudência realiza
suas mais valiosas construções”.
Essa idéia está implícita no voto do Ministro Prado Kelly, que entende
inconstitucional todo o dispositivo questionado, inclusive no tocante ao
desmembramento do ofício, pois, mesmo nesse passo, o legislador teria agido
inspirado não pelo interesse público, mas por favorecimento pessoal13. A única
emenda parlamentar apresentada foi a criação dessa serventia, evidenciando-se,
pela regra de prioridade que a acompanhava, que fora idealizada como modo de
favorecimento pessoal.
Quanto a esse aspecto, o Ministro Victor Nunes não vislumbra desvio de
poder no referido desmembramento, sendo coisa corriqueira na organização judi-
ciária. Nesse mesmo sentido, o Ministro Aliomar Baleeiro alerta para que não se
pretenda investigar o “subconsciente do espírito legislativo. As intenções
pertencem a Deus”.
Segue-se, então, intenso debate entre os Ministros Victor Nunes e Alio-
mar Baleeiro, sobre abuso e desvio de poder da lei fora dos casos de inconsti-
tucionalidade; sobre a distinção entre abuso e desvio de poder, ensejando, em
determinadas hipóteses, controle de constitucionalidade; sobre a extensão dos
poderes do Supremo Tribunal Federal em comparação com a Suprema Corte
norte-americana; e sobre aspectos legislativos da função do Supremo Tribunal
Federal.
Dada a profundidade do pensamento e o modo preciso com que é apresen-
tado, impõe-se, como já recomendada, a leitura do voto na íntegra. Porém, em
breve síntese, eis as idéias expressas pelo Ministro Victor Nunes:
a) abuso e desvio de poder devem ser distintos, como ensina a doutrina
administrativista francesa. “O desvio de poder se configura não apenas
quando o ato deixa de atender a um fim de interesse público, mas também
quando, pressuposto pela norma jurídica determinado fim de interesse
público, o ato é praticado com outra finalidade, ainda que de interesse

13 Há nesse voto interessantes citações de Duguit e Rousseau sobre a “generalidade”


como aspecto essencial das leis.

39
Memória Jurisprudencial

público”, caso em que o desvio conduziria, indiretamente, ao vício de incom-


petência do agente. Já o abuso importa necessariamente desatendimento ao
interesse público, traduzindo violação a normas expressas ou mesmo a princípios
do ordenamento;
b) aplicando essas noções à questão debatida — possibilidade de controle,
pelo Tribunal, de atos legislativos —, o Ministro Victor Nunes entende que não se
pode exercer tal controle invocando “desvio de poder”, o que aliás, mesmo quanto
ao controle jurisdicional dos atos administrativos, aceita com ressalvas;
c) já quanto ao “abuso”, seria sim cabível estender os poderes de controle
jurisdicional do domínio do Direito Administrativo para o Constitucional, ou seja, do
controle judicial dos atos administrativos para o controle da constitucionalidade dos
atos legislativos. E isso — respondendo ao Ministro Aliomar Baleeiro — não
significa reconhecer possibilidade de controle do ato legislativo fora do campo da
argüição de inconstitucionalidade, “porque esta não se traduz somente na
violação de norma expressa; também se traduz em violação de princípio
constitucional. Havendo evidente abuso do Congresso, sempre é possível
enquadrar esse abuso na infração de algum princípio constitucional”. E
prossegue mais adiante: “A noção de abuso é controvertida, tanto no
Direito Civil, como no Processual, como no Administrativo, como também
no Direito Constitucional. Mas, controvertida ou não, ela vai fazendo o
seu caminho vitorioso na doutrina e na legislação.”;
d) a seu turno, o Ministro Aliomar Baleeiro registra temer que a aplicação
da noção de “abuso” ao controle jurisdicional possa levar ao fenômeno criticado
nos Estados Unidos, no início da década de 30, em que a atuação da Suprema
Corte era vista como expressão da “oligarquia judiciária”, ou “despotismo” do
Judiciário, ou ainda “governo”, ou “poder dos Juízes”. Nesse sentido, entende já
extraordinariamente amplos os poderes do Supremo Tribunal Federal ao contro-
lar a constitucionalidade de leis em tese14; e para tais poderes não haveria limites
se o Tribunal achasse que pode anular o que considere abuso de poder do Con-
gresso; a essas ponderações, o Ministro Victor Nunes responde que espera “ter
explicado por que não aceita um noção exagerada do controle judiciário.
Infelizmente, não podemos fazer, agora, um estudo monográfico do tema.
Temos que nos limitar ao enunciado de algumas idéias gerais”;
e) quanto à comparação com os poderes da Suprema Corte norte-ameri-
cana, o Ministro Victor Nunes reconhece que lá não se chega ao controle de

14 Este julgamento é posterior à Emenda Constitucional n. 16/65, que introduziu a repre-


sentação de inconstitucionalidade de lei em tese, ampliando significativamente o alcance
da representação, antes aplicada como pressuposto de intervenção federal.

40
Ministro Victor Nunes

constitucionalidade de lei em tese, mas aponta determinados mecanismos que


dão ao poder daquela Corte larga abrangência, como o test case — “que pode
ser até uma demanda simulada, ou construída, dando pretexto, ou motivo,
ao Tribunal para emitir julgamento de constitucionalidade” — ou o stare
decisis — que leva “a decisão da Corte Suprema que fulmine uma lei” a ser
“respeitada de imediato por todos os Poderes”. E prossegue: “Somos, talvez,
mais racionalistas que os anglo-saxões. Por isso, traduzimos esse efeito
numa norma de competência do Supremo Tribunal, pois nossa tradição era
em sentido oposto. Mesmo os juízes inferiores não devem obediência aos
nossos julgados senão nos limites estritos do caso concreto. Era, pois, ne-
cessário que houvesse uma norma para romper essa tradição”;
f) o Ministro Victor Nunes recorda que, “atualmente” (naquele então), a
Suprema Corte tem sido censurada por usurpar função legislativa. Mas isso re-
sulta, “talvez em maior parte, de ser a Constituição americana muito sinté-
tica, com algumas disposições muito genéricas, de ser uma Constituição
antiga, escrita em condições históricas específicas e que deve ser aplicada
em situações completamente diversas. Por isso, a Corte vai interpretando o
mesmo texto, que é genérico, de modo diferente, à medida que mudam as
condições sociais”. Já no caso brasileiro, questiona: “Por que não fazemos o
mesmo? Porque não podemos? Não. É porque temos tido Constituições mi-
nuciosas, praticamente regulamentares”, o que não impede que o Supremo
Tribunal proceda como a Corte Suprema “nos pontos em que nossas Constitui-
ções têm sido omissas, ou têm usado fórmulas amplas”;
g) e encerra a seqüência do debate, admitindo, com naturalidade, haver
parcela de atuação materialmente legislativa na função do Supremo Tribunal Fe-
deral: “Com base em noções doutrinárias, respeitáveis sem dúvida, e em cer-
tos princípios genéricos, o Tribunal, em substância, fazia obra legislativa.
Mas não procedia abusivamente. Fazia legítimo uso do seu poder de inter-
pretar a Constituição. Quando a Constituição se utiliza de uma fórmula
ampla, vaga, imprecisa, o Supremo Tribunal é que deve determinar o seu
sentido, dar-lhe conteúdo, estabelecer seus limites”.
Voltando as idéias ao caso concreto, o Ministro Victor Nunes pondera:
“No tocante à ação do Congresso, que é passível de se traduzir
em abuso, evidentemente, esse abuso só pode ser reconhecido e pro-
clamado pelo Supremo Tribunal Federal em razão de princípios
constitucionais e não pelo arbítrio dos juízes. Mas há princípios
constitucionais tão genéricos que ao próprio Tribunal incumbe defi-
ni-los. Este é o temperamento que estabeleço na questão que estamos
. aflorando. A intervenção da Corte dependerá, então, dos elementos

41
Memória Jurisprudencial

que vierem nos autos, da evidência com que deles possa emergir o
abuso, que é de si mesmo noção pouco precisa”.
E conclui não vislumbrar abuso no desmembramento do cartório, mas sim na
regra que estabeleceu a prioridade para o provimento, pois “o legislador, nas pró-
prias palavras com que enunciou seu pensamento, revestidas de vigor inusitado
em leis dessa natureza, deixou escapar o seu propósito de puro favoritismo”.
Acompanha, assim, o Relator e a maioria, pelo provimento parcial do
recurso, reconhecendo-se a inconstitucionalidade do dispositivo que criava a
prioridade para preenchimento da nova serventia. Há cinco votos15 pelo provi-
mento integral do recurso, entendendo igualmente inconstitucional o dispositivo
que promovia o desmembramento do ofício. Já o Ministro Gonçalves de Oli-
veira não vê direito líquido e certo do impetrante16 a legitimá-lo a impugnar o
provimento da serventia, tal como se deu, razão pela qual vota pela negativa do
recurso.

Mandado de Segurança 9.13717

Função do STF como intérprete último da Consti-


tuição — Aspectos de função legislativa na atuação do
STF.

A questão de fundo envolve direito de militar passar para a reserva sendo


promovido a marechal. A controvérsia decorre do fato de o Presidente Jânio
Quadros ter aprovado parecer do Consultor-Geral da República, Caio Mário da
Silva Pereira, fixando interpretação para a lei que regia a matéria de modo diver-
gente da prática estabelecida em governos anteriores e consagrada após deci-
sões do Supremo Tribunal Federal.
Sobre esse aspecto, manifesta-se o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira:
“Assim, Senhor Presidente, entendo, estou em que o Supremo
Tribunal Federal autorizou uma interpretação definitiva da lei, inter-
pretação da qual só poderemos, a meu ver, nos afastar em face de

15 Ministros Eloy da Rocha, Prado Kelly, Adalicio Nogueira, Hermes Lima e Candido
Motta. Houve, em alguns desses votos, também o argumento de que a vitaliciedade
impediria a criação de nova serventia, sem preferência para seu preenchimento pelo titular
da serventia cindida. Na época, eram necessários nove votos para o reconhecimento de
inconstitucionalidade.
16 “Esse remédio (mandado de segurança) não protege mera expectativa de direito que
tem todo cidadão de ver um cargo vago e poder ser o candidato a seu provimento.”
17 No mesmo sentido, ver MS 9.411.

42
Ministro Victor Nunes

pronunciamento, de manifestação de ordem legislativa. Somente se


houvesse agora uma definição do Congresso a respeito, vedando as
promoções a Marechal, é que poderíamos negá-las. Do contrário,
não. Tais promoções se fizeram com a responsabilidade do Supremo
Tribunal, desta Suprema Corte de Justiça. Surgiu a ocasião, o julga-
mento dos citados Mandados de Segurança 5.782 e 5.678, para esta
Corte dar a palavra definitiva sobre a controvérsia, resolvendo, de
vez, a questão.”
Em seu conciso voto, o Ministro Victor Nunes afirma entendimento
quanto ao papel do Supremo Tribunal Federal como último intérprete da lei, em
um raciocínio que já prenuncia sua proposta, posteriormente concretizada, do
mecanismo que veio a ser a Súmula18:
“Senhor Presidente, em nosso regime, a interpretação final das
leis cabe ao Supremo Tribunal Federal. No uso de tal prerrogativa,
esta Corte, em certos casos, procede mais ou menos como legislador,
porque, pela reiteração de seus julgados, cria normas onde a lei é
omissa, obscura ou confusa.
Muitas vezes, o entendimento do Supremo Tribunal gera conse-
qüências práticas de ampla repercussão, o que aconselha aos novos
juízes que encontram tais precedentes a prudência de a eles se sub-
meterem, para evitar que a variação dos julgados dê lugar a incon-
venientes maiores do que os derivados de decisões talvez menos cor-
retas quanto à interpretação da lei.
Com esta fundamentação, Sr. Presidente, concedo o mandado
de segurança, tendo em vista que a promoção a marechal, na inativi-
dade, já é um fato tão generalizado em nosso País, que passou a ser
um prêmio normal na carreira dos militares.”

Recurso Ordinário Eleitoral 36619

Função do STF como intérprete último da Consti-


tuição — Unidade na interpretação da Constituição.

Este recurso ordinário eleitoral foi interposto em face de decisão do Tribunal


Superior Eleitoral, que, aplicando a lei eleitoral, reconheceu inelegibilidade de
determinado cidadão.

18 Cf. supra comentário ao RE 54.190.


19 ROE 367 e 368 também tratam da mesma questão.

43
Memória Jurisprudencial

Houve unanimidade de votos quanto ao não-conhecimento do recurso, por


não estar caracterizada violação à Constituição. No entanto, interessante debate
registrou-se quanto à interpretação do art. 120 da Constituição de 1946 e quanto
ao papel do Supremo Tribunal Federal. Eis o dispositivo:
“Art. 120. São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior
Eleitoral, salvo as que declararem a invalidade da lei ou ato contrário
a esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado
de segurança, das quais caberá recurso para o Supremo Tribunal
Federal”.
A discussão que se travou em diversos apartes diz respeito à interpretação
do dispositivo citado, que, se literal, levaria à conclusão de que determinadas
decisões do TSE, ainda que importando interpretação constitucional, restariam
irrecorríveis — por exemplo, as que entendem que o ato impugnado na ação não
viola a Constituição, como ocorreu no caso em exame.
Discordando das manifestações dos Ministros Luiz Gallotti, Hahnemann
Guimarães e Ribeiro da Costa20, vários Ministros, entre eles destacadamente
Victor Nunes, sustentam que tal interpretação não pode prevalecer, sob pena de
subtrair-se ao Supremo Tribunal Federal seu papel essencial de dar a última pala-
vra em matéria de interpretação da Constituição.
O debate é longo, ainda que não altere o resultado do caso concreto, no
qual, todos concordam, não houve violação da Constituição a ensejar o recurso21.
Ainda assim, importante o debate para fixar a compreensão da função precípua
do Supremo Tribunal Federal.
Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes desenvolve argumento demonstrando
como, a subsistir a interpretação literal do art. 120, poderia haver duas decisões
conflitantes e definitivas sobre a constitucionalidade de uma mesma lei: uma profe-
rida pelo Supremo Tribunal Federal; outra, pelo Tribunal Superior Eleitoral.
Considere-se o exemplo no qual o TSE decida de modo fundamentado na
constitucionalidade de tal lei — sendo tal decisão, pela letra do art. 120,
irrecorrível —, suponha-se ainda que a mesma lei tenha sua validade questionada

20 O Ministro Ribeiro da Costa, por exemplo, interpreta restritivamente o citado art. 120,
entendendo-o exceção à regra constitucional quanto ao papel do Supremo Tribunal e
afirmando que a Constituição é superior ao próprio STF, de modo que este, em face do
texto constitucional, de clareza inequívoca, não poderia interpretá-lo de modo diverso.
21 Note-se que o entendimento do STF é de que, constatada a não-violação da Constitui-
ção, o resultado é o não-conhecimento do recurso, e não seu não-provimento. Nas pala-
vras do Ministro Relator Gonçalves de Oliveira, “se o recurso, embora fundado na Cons-
tituição, vem ao Supremo Tribunal, mas este verifica que não há violação da Constitui-
ção, então não se conhece do recurso.”

44
Ministro Victor Nunes

perante o STF a partir de mandado de segurança negado pelo TSE — caso em


que cabe recurso ao STF —, concluindo o STF pela inconstitucionalidade.
Tal situação de incongruência seria ainda agravada pelo fato de essa lei,
nesse último caso, poder ter sua vigência suspensa por decisão do Senado Federal,
de modo conflitante com a outra decisão pretensamente definitiva do TSE.
Como desdobramento, nos debates, o Ministro Luiz Gallotti chega a sugerir
que se recorra ao mandado de segurança em face da decisão do TSE, para que se
atinja o STF, no que é contraditado pelos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator)
e Victor Nunes, que apontam a impropriedade do uso do mandado de segurança
quando não coubesse recurso.
Em suma, o Ministro Victor Nunes, acompanhado por outros Ministros,
sustenta uma interpretação mais aberta do art. 120, que não leve à quebra da
“unidade de interpretação da Constituição”.
Nesse sentido, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, entende o referido
art. 120 “mal redigido”, propondo que se considere a expressão “salvo as que
declararem a invalidade de lei ou ato contrário a esta Constituição” como
compreendendo decisões do Tribunal Superior Eleitoral que “forem contrárias à
própria Constituição”.
Em seu voto, para fundamentar sua posição, o Ministro Victor Nunes
assim se manifesta quanto à função do Supremo Tribunal Federal em nosso
ordenamento jurídico:
“Os brilhantes votos já proferidos acentuaram que, no nosso
sistema, há um órgão incumbido de dizer a última palavra na inter-
pretação da Constituição. Esse órgão é o Supremo Tribunal Federal.
Teria a Constituição, no art. 120, quebrado essa unidade, criando
uma dualidade que poderia retirar do Supremo Tribunal a sua pró-
pria razão de ser? O Supremo Tribunal nasceu à imagem da Corte
Suprema dos Estados Unidos, cuja tarefa fundamental, nunca mais
posta em dúvida depois do caso Marbury v. Madison, é a de dar a
última palavra sobre a Constituição. O Ministro Felix Frankfurter,
quando professor de Direito Constitucional, usando uma vigorosa
imagem, costumava dizer aos seus alunos que a Corte Suprema é a
Constituição. [Seguem-se apartes. Ministro Luiz Galotti: “A Constitui-
ção é o que a Corte Suprema diz que é”. Ministro Hahnemann Guima-
rães: “A Constituição é o que a lei ordinária diz que ela é. A lei ordi-
nária é que regula o funcionamento da Corte Suprema.”]
Mas, quando se trata de interpretar a Constituição, a compe-
tência da Corte Suprema resulta da própria Constituição, com o sen-
tido que ela mesma lhe deu, e não da lei ordinária.

45
Memória Jurisprudencial

Retomando o meu raciocínio, teria a Constituição brasileira


quebrado o sistema, permitindo que dois órgãos judiciários pudessem
dizer a última palavra em torno de um texto da Constituição? Parece-me
que não. E suponho, falando com todo o respeito, que o entendimento
até aqui preponderante pode conduzir a esse resultado.”
Ao longo dos debates, o Ministro Luiz Gallotti, Presidente, observa que sua
posição espelha posicionamento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal em
muitos julgados desde a Constituição de 1934.
Sobre o tema, pondera o Ministro Victor Nunes:
“Senhor Presidente, V. Exa. e nossos eminentes colegas sabem
do alto apreço em que tenho a continuidade das decisões do Supremo
Tribunal. Entretanto, esse respeito pela nossa coerência, de que re-
sulta prestígio para o Supremo Tribunal, não exclui o debate
esclarecedor de questões já tranqüilizadas pelo Tribunal. Esse de-
bate pode, eventualmente, levar a maioria a outras conclusões. O
que me parece inconveniente são as alterações não precedidas de
ampla discussão, de pleno esclarecimento, porque lançam confusão
no espírito das partes e conduzem à insegurança jurídica.”

Recurso Ordinário Eleitoral 371

Função do STF como intérprete último da Consti-


tuição — Alteração de jurisprudência.

Discutia-se a possibilidade de lei federal (no caso, a Lei 3.528/59) prever


hipóteses de inelegibilidade não tratadas na Constituição.
No caso, o Prefeito de Santo André/SP perdera seu cargo em razão de
processo de impeachment, por decisão da Câmara Municipal, e teve sua poste-
rior inscrição como candidato a deputado estadual impugnada.
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo deferiu-lhe a inscrição, mas a
decisão foi reformada pelo Tribunal Superior Eleitoral, por maioria de apenas um
voto, entendendo-se que cabia à Lei federal em questão prever o caso de suspen-
são de direitos políticos como conseqüência do impeachment.
O TRE entendera que a Constituição de 1946, ao prever os casos de sus-
pensão e perda de direitos políticos (art. 135) e de inelegibilidades (art. 138), não
contemplava a hipótese do impeachment. Nesse sentido, não se equiparava a
decisão da Câmara Municipal no impeachment à “condenação criminal” prevista
no art. 135 da Constituição, condenação esta proferida por tribunais judiciais.
.
46
Ministro Victor Nunes

Recorreu-se, assim, ao Supremo Tribunal Federal, que, preliminarmente,


abordou a mesma questão objeto do ROE 366, acima comentado.
Naquele caso, no entanto, a questão apenas figurara nos debates, não in-
fluenciando a decisão unânime de não-conhecimento do recurso, que decorrera
de outra razão. O mesmo aconteceu nos ROE 367 e 368.
Mas, no presente caso, preliminarmente, o Supremo Tribunal Federal
conheceu o recurso, contra os votos dos Ministros Ribeiro da Costa (Presidente),
Vilas Boas e Hahnemann Guimarães.
E, uma vez conhecido, deu-se provimento ao recurso por votação unâ-
nime, ou seja, entendendo-se que não caberia à lei federal criar hipótese de inele-
gibilidade e suspensão de direitos políticos não prevista constitucionalmente.
Quanto à preliminar, verifica-se, portanto, a consolidação da tendência já
apontada no ROE 366 e mantida nos ROE 367 e 368, consoante entendimento
expresso, entre outros, pelos Ministros Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira e
Pedro Chaves.
Trata-se de alteração de posicionamento22 da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal, fundamentada na idéia principal de se reconhecer o Supremo
Tribunal como o intérprete último da Constituição.

Mandado de Segurança 9.077

Limites à apreciação, pelo STF, de política de governo —


Poder regulamentar.

A questão aqui debatida surgiu em período no qual a importação de trigo


por moinhos dava-se por quotas, autorizadas pelo Governo Federal. O caso envol-
via a mudança do regime estabelecido para as quotas de importação, fixado por
decreto.
A impetrante havia obtido uma quota de aquisição de trigo importado na
vigência de decreto anterior, editado pelo Presidente Juscelino Kubitschek. No
entanto, o Presidente Jânio Quadros editou outro decreto, revogando o anterior e
instaurando novo regime, segundo o qual a intenção da impetrante quanto à aqui-
sição da quota de trigo não poderia se consumar. Alegou, assim, a impetrante
direito adquirido à aquisição da tal quota.

22 No presente caso, ao justificar sua posição, alterando jurisprudência, o Ministro


Relator Gonçalves de Oliveira citou o Ministro Nelson Hungria, para quem “a jurispru-
dência há de ser como os navios, que não podem ser condenados a ficar ancorados,
perpetuamente, num mesmo porto”.

47
Memória Jurisprudencial

Não parece relevante, presentemente, o mérito da questão do trigo. Mas


vale ressaltar a discussão sobre direito adquirido. Nesse aspecto, o Ministro
Relator, Gonçalves de Oliveira, manifestou-se no sentido de que não se pode
reconhecer direito adquirido decorrente de decreto, sem base em lei. Nesse caso,
poderia o Poder Executivo alterar o regime, não se justificando a pretensão da
impetrante de, diferentemente dos demais moinhos, excluir-se do novo regime,
até mesmo para que se respeite o princípio constitucional da igualdade.
O Ministro Victor Nunes profere voto acompanhando o Relator e a maioria,
no qual, produzindo argumentos quanto à matéria de fundo, ressalta importante
ponto de vista quanto ao papel do Poder Judiciário em face das competências
próprias do Governo:
“Trata-se, realmente, de decretos normativos. Um deles estabe-
leceu condições, atendidas as quais se concedeu à firma impetrante
uma determinada prerrogativa. Logo, como titular do direito
(subsistente, ou não, é questão de mérito) resultante dessa conces-
são, tinha ela qualidade para vir a Juízo. O que ela não pode, entre-
tanto, é obter, judicialmente, a revogação do Decreto 50.318, de
18-3-61, porque, como bem o disse o eminente Ministro Gonçalves de
Oliveira, secundado pelo eminente Ministro Pedro Chaves, esse de-
creto exprime uma política do Governo em relação à importação, ao
comércio e à industrialização do trigo. Não cabe ao Supremo Tribu-
nal corrigir essa política, mesmo que ela possa parecer a um ou outro
injusta, não eqüitativa.”

Recurso Extraordinário 35.230


Tecnicismo processual como obstáculo à realiza-
ção da justiça — Proposta de forma única para ações.

Tratava-se de recurso extraordinário, a partir de ação de divisão e demar-


cação de quinhões, pelo qual se discutia a necessidade de propositura prévia de
ação demarcatória23.
O Ministro Victor Nunes24 produz, na motivação de seu voto, observações
quanto ao excesso de tecnicismo processual, que constitui obstáculo à realização
da justiça:

23 De toda a gleba, vez que o título de propriedade dos autores não continha os limites
do imóvel dividendo.
24 Observando que não há, no caso, questionamento por parte dos confrontantes da
gleba integral quanto aos seus limites e que o argumento da necessidade da prévia ação
demarcatória foi levantado apenas pelos réus co-proprietários — que não teriam real

48
Ministro Victor Nunes

“O código processual em vigor é, sabidamente, avesso ao


formalismo, que procurou reduzir ao mínimo essencial a garantia dos
direitos dos litigantes. O então Ministro da Justiça, Professor Fran-
cisco Campos, na respectiva exposição de motivos, ponderou que, no
sistema anterior, quanto à forma das ações, continuávamos ‘envolvi-
dos nos meandros, muitas vezes inacessíveis aos próprios técnicos,
do formalismo mais bisantino’. E citava, a propósito, estas palavras
de Willougbby: ‘Tornou-se geral modernamente a opinião de que a
feição fundamental de uma reforma do sistema do processo deveria
ser a forma única para as ações (...).’ De um só golpe, uma enorme
massa de tecnicismos legais seria relegada para os arquivos históri-
cos. A simplicidade substituiria a complexidade, e a justiça seria ob-
tida pela abolição de inúmeros casos em que ela tem falhado por
fracasso dos litigantes, pelos seus advogados, no achar o caminho
através da massa de tecnicismo que envolve o simples ato inicial do
processo”.

Mandado de Segurança 13.203

Justificativa para competência do STF — Distin-


ção entre União e autarquias.

Cuidava-se de mandado de segurança ajuizado pelo Instituto do Açúcar e


do Álcool, autarquia federal, contra ato praticado pelo Secretário da Fazenda do
Estado de São Paulo.
O debate e a decisão resumem-se à questão de competência do STF, com
fundamento no art. 101 da Constituição de 1946: “Art. 101. Ao Supremo Tribunal
Federal compete: I - processar e julgar originariamente: (...) e) as causas e
conflitos entre a União e os Estados ou entre estes;”.
O Ministro Relator, Vilas Boas, conhece o mandado de segurança, afirman-
do que o IAA seria a “própria União operando em um certo setor da econo-
mia nacional”. E vota vencido.
Todos os demais sete Ministros presentes votam pela incompetência origi-
nária do Supremo Tribunal no caso, interpretando o citado dispositivo constitucional

interesse em discutir a demarcação da gleba, senão a divisão e a demarcação dos qui-


nhões — como modo de obstaculizar, por um argumento processual, a pretensão dos
autores.

49
Memória Jurisprudencial

estritamente, de modo a não se considerarem incluídas no conceito de “União” as


autarquias federais, que têm personalidade jurídica própria.
Nesse sentido, manifesta-se o Ministro Victor Nunes:
“A Constituição, quando atribui competência originária ao Su-
premo Tribunal Federal para as causas entre a União e os Estados,
ou entre estes, tem em vista problemas de relevante interesse institucio-
nal. A interpretação desse texto, por isso, não deve ser ampliativa.
Não se pode prescindir de uma condição: que as pessoas jurídicas de
direito público, referidas no texto constitucional, estejam diretamente
em causa.
Ora, as autarquias têm personalidade jurídica diversa da
União. Quando uma autarquia está em Juízo, não é a União que está
em Juízo, embora, patrimonialmente, possa haver, para a União, re-
flexo indireto da decisão. Mas isso também pode ocorrer em outras
causas.”

1.2 Controle de constitucionalidade

Mandado de Segurança 15.886

Discussão sobre possibilidade de negativa de apli-


cação de lei, pelo Poder Executivo, por alegação de
inconstitucionalidade — Emenda Constitucional 16/65 —
Presunção de constitucionalidade das leis — Retroativi-
dade da declaração de inconstitucionalidade — Crítica
à disciplina por lei de prerrogativa constitucional do
STF.

Três servidores públicos de autarquias vinculadas ao então Ministério de


Viação e Obras Públicas impetraram mandado de segurança, objetivando fazer
cumprir a Lei federal 4.449/64, que tratou sobre questões funcionais aplicáveis
aos servidores das autarquias em questão.
Tal lei entrara em vigor após a derrubada, pelo Legislativo, de vetos presi-
denciais a alguns de seus dispositivos.
Ocorre que o Presidente da República, Marechal Castello Branco, nega-
va-se a aplicá-la, com base em parecer do então Consultor-Geral da República,
.
50
Ministro Victor Nunes

Adroaldo Mesquita da Costa, no sentido de existir prerrogativa presidencial para


negar execução a leis inconstitucionais25.
O argumento central dos impetrantes, por sua vez, consistia em afirmar
que, com a derrubada do veto, os tais dispositivos legais tornavam-se válidos,
impondo-se ao Executivo. Este teria ao seu alcance submeter a questão à apre-
ciação judicial26.
Tal conclusão seria ainda reforçada pela recente introdução, no sistema
constitucional, da representação de inconstitucionalidade de lei em tese, nos ter-
mos da Emenda Constitucional 16/65.
Em seu voto como Relator, o Ministro Victor Nunes registra que, anterior-
mente, esposava o mesmo ponto de vista manifestado no parecer do Consultor-
Geral da República, ou seja, a possibilidade de negativa de execução.
Todavia, com o advento da representação de inconstitucionalidade,
introduzida pela EC 16/65 — que reputa “inovação valiosíssima” —, passou o
Ministro a entender descabida tal possibilidade.
Lembra que, antes da referida Emenda, a jurisprudência do Supremo Tri-
bunal Federal admitia que o chefe do Executivo optasse por levar o litígio sobre a
constitucionalidade de lei ao Judiciário, ou então simplesmente por negar-lhe exe-
cução, transferindo ao interessado o ônus de ir buscar tutela judicial27.
Invoca ainda doutrina norte-americana, professada mesmo por Presiden-
tes da República, no sentido de possuírem, assim como os Tribunais, poderes de
interpretação da Constituição — ainda que tenha restado estabelecido, desde o
caso Marbury x Madison, como sendo do Poder Judiciário a última palavra
nessa questão.

25 A razão do veto fora a inconstitucionalidade consistente em a) aumento de despesa,


em projeto de lei, por iniciativa parlamentar; e b) efetivação de funcionários interinos sem
concurso público.
26 No mérito, argumentam que não ocorriam as inconstitucionalidades apontadas e que,
quanto ao aspecto da vedação ao aumento de despesas por iniciativa parlamentar em
projeto de lei de iniciativa reservada ao Executivo, isso não seria aplicável às autarquias.
Mas, por ora, interessa, em especial, aprofundar a análise do posicionamento do Supremo
Tribunal Federal em matéria da questão da negativa de execução a leis consideradas, pelo
Presidente da República, inconstitucionais.
27 Em apartes, são citadas opiniões de autores sobre esse posicionamento. Por exemplo,
Luiz Eulálio de Bueno Vidigal: se o ato legislativo é inconstitucional, “é nulo e não pode,
por si só, ferir direitos particulares”; e Francisco Campos: posto que o Judiciário só
controla a constitucionalidade das leis quando instado a julgar sua aplicação ao caso
concreto, não se pode subtrair aos Poderes Executivo e Legislativo a faculdade de inter-
pretar as leis em face da Constituição, aplicando-as, ou não, sob pena de “instalar nos
dois grandes motores da vida política do país ou do Estado o princípio da inércia e da

51
Memória Jurisprudencial

Mas segue argumentando que, ante a novidade trazida pela EC 16/65, não
pode prevalecer a jurisprudência anterior do Supremo Tribunal Federal, nem
mesmo aplicar-se o raciocínio norte-americano, posto não existir lá semelhante
instrumento de controle de constitucionalidade:
“Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidade
que o nosso Direito Constitucional agora abriga põe a questão sob
uma nova luz, que me leva a não insistir nos votos proferidos anterior-
mente. A interpretação advogada pelos impetrantes tem uma sólida
contextura lógica e contribui, notavelmente, para o aperfeiçoamento
jurídico do nosso regime de poderes limitados e divididos, sob a vigi-
lância do Judiciário, que é o fiel da Constituição.
Teremos, assim, um mecanismo coordenado e harmônico no que
respeita à inconstitucionalidade das leis. O Presidente da República
manifestará o seu entendimento por meio do veto e, se este for rejeitado,
poderá reiterá-lo por meio da representação de inconstitucionalidade,
a ser formulada pelo Procurador-Geral, titular de sua imediata
confiança. O Congresso, por sua vez, dará o seu pronunciamento,
primeiro, quando votar o projeto e, depois, quando tiver de apreciar
o veto. Finalmente, o Judiciário, guarda do equilíbrio dos Poderes,
solucionará a controvérsia, pela voz do Supremo Tribunal, ao julgar a
representação.
Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal,
o lógico é que essa decisão seja provocada antes de se descumprir a
lei. Anteriormente à EC 16/65, não podíamos chegar a essa conclu-
são por via interpretativa, porque não havia um meio processual sin-
gelo e rápido que ensejasse o julgamento prévio do Supremo Tribu-
nal. Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio processual foi
agora instituído no próprio texto da Constituição.”
Na seqüência, frisa que esse novo posicionamento “dá novo vigor à pre-
sunção da constitucionalidade das leis”, já reforçada, desde a Constituição de
1934, pela regra de que os Tribunais só podem declarar a inconstitucionalidade
pela maioria absoluta de votos dos seus juízes, e recorda ainda que o Supremo
Tribunal Federal herdara, da jurisprudência norte-americana, a regra do “other
clear ground, que manda evitar a declaração de inconstitucionalidade
quando a causa puder ser decidida por outros fundamentos.”

irresponsabilidade, paralisando o seu funcionamento por um sistema de frenação e


obstrução permanentes”.

52
Ministro Victor Nunes

“Com a nova interpretação, baseada na EC 16, a que estou aderindo


após madura reflexão, resulta que a lei, até ser declarada inconstitucional
pelo Judiciário, será obrigatória não só para os particulares como também
para os poderes do Estado, o que confere ao regime de legalidade uma
eficácia prática proporcionada à sua projeção teórica.”
Prossegue o Ministro Victor Nunes, para demonstrar que seu novo
posicionamento não conflita com o princípio da retroatividade da declaração de
inconstitucionalidade, já, naquele momento, reiterado em alguns julgados do Su-
premo Tribunal Federal.
Em primeiro lugar, ressalta que tal princípio não é decorrência natural do
sistema de controle de constitucionalidade, lembrando, como exemplos, a Consti-
tuição da Itália e a da Áustria, esta que permitiu a sua Alta Corte Constitucional
que prorrogue por até seis meses a vigência de lei declarada inconstitucional28.
Em segundo lugar, pondera que a execução da Lei — aplicada pelo Exe-
cutivo —, até a declaração judicial de inconstitucionalidade, pode ser considerada
condicional, restabelecendo-se, depois, o status quo ante.
Com essas ponderações, acolhe o primeiro fundamento (suficiente) do pedido,
deferindo a segurança para que o Presidente da República aplique a lei em questão.
Sendo assim, submete a matéria aos demais Ministros, posto que, com essa
decisão, não prosseguirá na análise da aplicação da lei ao caso dos impetrantes29.
Todavia, a maioria, contra os votos dos Ministros Victor Nunes, Carlos
Medeiros, Evandro Lins, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas, posiciona-se reco-
nhecendo a faculdade de o Presidente da República negar execução a lei que
entenda inconstitucional30.
Segue, portanto, o Ministro Relator, Victor Nunes, votando quanto ao mérito,
decidindo o direito de cada um dos três impetrados no caso concreto.
Um aspecto paralelo, surgido em aparte ao voto do Ministro Aliomar Bale-
eiro, que pode se mostrar relevante ainda em tempos atuais, é a crítica feita pelo

28 Vide, atualmente, o que dispõem, no Brasil, a Lei 9.868/99, art. 27, e a Lei 9.882/99, art. 11.
29 Acompanhando o voto, o Ministro Evandro Lins observa que, negando execução a
lei, o Presidente pode eventualmente incidir em crime de responsabilidade; e o Ministro
Vilas Boas proclama, em defesa da relevância da lei em nosso sistema, que “o símbolo da
ordem jurídica é a lei e não apenas a Constituição”. E, respondendo a questão de ordem
suscitada pelo Procurador-Geral da República, pondera o Ministro Victor Nunes que não
poderia, em sede do mandado de segurança — que não pode ter efeitos de representa-
ção —, apreciar a constitucionalidade, em tese, da lei controvertida.
30 Com fundamento na jurisprudência passada e em argumentos como: a nulidade abso-
luta das leis inconstitucionais; a supremacia da Constituição; o dever do Presidente da

53
Memória Jurisprudencial

Ministro Victor Nunes ao fato de ter havido disciplina legislativa da norma da


Constituição de 1946 que previa a representação interventiva:
“A meu ver — já sustentei isso no Tribunal —, a regulamen-
tação que o Congresso fez do art. 8º, parágrafo único, foi em
certo sentido, com permissão da palavra, uma exorbitância, por-
que a representação do art. 8º, parágrafo único, não é um pro-
cesso judiciário comum: é uma prerrogativa político-constitucio-
nal do Supremo Tribunal Federal vinculada à intervenção federal
nos Estados.
Assim como uma lei não poderia restringir, nessa matéria, as
prerrogativas do Executivo ou do Congresso, também não o poderia
quanto às prerrogativas do Supremo Tribunal. Aliás, o Supremo Tri-
bunal sempre aplicou o art. 8º, parágrafo único, mesmo antes de
haver lei que regulasse, porque não era necessária lei nenhuma
para que o Supremo Tribunal exercesse aquela sua prerrogativa. Ne-
nhum dispositivo de lei ordinária pode limitar nossas atribuições
constitucionais, porque será dispositivo exorbitante dos poderes do
Legislativo.”

Mandado de Segurança 16.003

Discussão sobre possibilidade de negativa de apli-


cação de lei, pelo Poder Executivo, por alegação de
inconstitucionalidade — Discussão sobre cabimento de
mandado de segurança para solucionar, em abstrato,
essa questão.

Neste julgado, abordou-se o mesmo tema do acórdão anteriormente co-


mentado. Servidores públicos de autarquias vinculadas ao então Ministério de
Viação e Obras Públicas impetraram mandado de segurança, também objetivando
o cumprimento da Lei federal 4.449/64.
Todavia, diferentemente do que se passou no MS 15.886, os impetrantes
não argumentaram com sua situação individual, concreta, a ensejar a aplicação
da referida Lei; em lugar disso, formularam pedido no sentido do reconhecimento
em tese, de modo genérico, de que o Presidente da República teria de aplicar-
lhes o disposto na Lei.

República de zelar pela Constituição; a não-existência da representação de inconstitucio-


nalidade quando o Presidente da República deixar, inicialmente, de aplicar a lei em debate.

54
Ministro Victor Nunes

Sendo assim, acompanhando o Ministro Relator, Prado Kelly, por unanimi-


dade o Supremo Tribunal Federal decide que falta idoneidade ao mandado de
segurança como meio processual para que se pleiteie o reconhecimento, em abs-
trato, do dever do Presidente da República de aplicar a Lei 4.449/64.
Argumenta o Relator que, apenas nas hipóteses da representação
interventiva e da representação de inconstitucionalidade, poderia o Supremo
Tribunal Federal produzir provimento declaratório de caráter abstrato, ou, como
diz em seu voto o Ministro Aliomar Baleeiro, “quer-se provocar um pronuncia-
mento do Supremo Tribunal Federal, em caráter consultivo, em uma ques-
tão abstrata. Nestes termos, o mandado de segurança não pode ser conhe-
cido” 31.
Ademais, sustenta o Relator ser lícito ao Presidente da República recusar-se
a aplicar lei que considere inconstitucional. Porém, nesse passo, ao longo dos
debates, admite uma evolução na sua posição: entende que o Presidente pode
fazê-lo se, ao mesmo tempo, levar a questão ao Supremo Tribunal Federal por
intermédio do Procurador-Geral da República, pela via da representação.
O Ministro Victor Nunes acompanha a conclusão do Relator; todavia, por
diverso fundamento.
Entende que a razão do indeferimento do pleito não seria o fato de que o
deferimento importasse dar ao mandado de segurança efeito de ação de controle
de constitucionalidade de lei em tese. Diferentemente, admite, por hipótese, que
até se possa decidir, preliminarmente, que o Presidente da República não pode
negar execução a lei que entenda inconstitucional — tese, aliás, sustentada pelo
Ministro Victor Nunes e vencida no MS 15.886.
Entretanto, nessa situação, haveria que se prosseguir no julgamento, per-
quirindo-se a situação concreta individual de cada impetrante, para que se con-
cluísse pela aplicação, ou não, da lei a cada caso.
De todo modo, no caso deste mandado de segurança, os impetrantes não
trazem elementos concretos, individualizados, suficientes para tal julgamento,
limitando-se a pleitear que o Supremo Tribunal Federal determine, em abstrato, o
cumprimento da Lei em questão.

31 Note-se, de todo modo, que os impetrantes não pediram declaração de inconstitucio-


nalidade de lei, mas apenas declaração de que o chefe do Poder Executivo não pode
negar-se a executar lei judicialmente não declarada inconstitucional.

55
Memória Jurisprudencial

A falta de elementos concretos que permitam o julgamento da situação de


cada impetrante é que configura o motivo pelo qual o Ministro Victor Nunes
indefere o pleito.
Interessante argumento surge no voto do Ministro convocado Oscar Saraiva,
no mesmo sentido do posicionamento do Ministro Victor Nunes, ou seja, negando
ao Presidente da República o poder de descumprir lei que subjetivamente entenda
inconstitucional: ao rebater o argumento do Ministro Relator, Prado Kelly, que
citara Francisco Campos quanto a ser um ato inexistente a lei inconstitucional,
pondera que
“toda essa douta opinião parte de um pressuposto: o da demons-
tração prévia de que a lei é inconstitucional. E quem declara que a
lei é inconstitucional? Se deixarmos a interpretação da inconstitucio-
nalidade da lei, já não digo só ao eminente Presidente da Repúbli-
ca, que encarna o Poder Executivo (...) mas, ao descermos na escala
do Poder Executivo, a todo membro integrante da Administração
Pública, desde o Presidente da República, passando pelos Ministros
de Estado e pelos funcionários, todos competentes para a interpre-
tação da lei, teríamos instituída a desordem legislativa, numa
hermenêutica semelhante ao liberalismo protestante, o da livre inter-
pretação da Bíblia crente. No caso, teríamos a livre interpretação da
Constituição pelo seu aplicador, in casu com a preterição manifesta do
Poder Judiciário, que é o único órgão constitucionalmente capaz de
dizer se a lei é ou não inconstitucional.”
No mesmo sentido votam os Ministros Gonçalves de Oliveira e Evandro
Lins, reiterando a tese que já sustentavam no MS 15.886. Mas, no caso, concluem
votando com o Relator pelos mesmos motivos expostos pelo Ministro Victor
Nunes, relativos à impossibilidade de apreciação do caso concreto dos impe-
trantes.

Mandado de Segurança 16.512

Resolução do Senado Federal que suspende a exe-


cução de lei julgada inconstitucional pelo STF — Dis-
cussão sobre possibilidade de revogação da resolução
por outra — Natureza da resolução do Senado Federal,
para efeito de controle via representação de inconstitu-
cionalidade — Conceito de “lei em tese” — Efeitos da
resolução do Senado Federal — Sentido de suspensão
“no todo ou em parte” — Caráter discricionário ou
vinculado da resolução do Senado Federal.
.
56
Ministro Victor Nunes

Esta questão, dita inédita no âmbito do Supremo Tribunal Federal pelo Mi-
nistro Pedro Chaves, deriva de situação de fato bastante incomum na prática
institucional.
O Supremo Tribunal Federal julgara inconstitucional, em outro processo, via
recurso extraordinário, dispositivo do Código de Impostos e Taxas do Estado de
São Paulo (Decreto 22.022/53) que estabelecia hipóteses de incidência do imposto
sobre transações.
A inconstitucionalidade então reconhecida decorria do disposto em uma
alínea que arrolava algumas atividades — “construção, reforma e pintura de
prédios e obras congêneres, por administração ou empreitada” — como
integrantes da hipótese de incidência.
Naquela ocasião, determinado arquiteto, contratado para fiscalizar obra exe-
cutada por conta do proprietário, sustentou não ser devido o imposto sobre seus
honorários. Com efeito, entendera, assim, o Supremo Tribunal Federal, decidindo
não ser fato gerador da cobrança a renda auferida em virtude de contrato de
locação de serviços — RE 38.538, com decisão prolatada em 19-8-60. Tal decisão
foi posteriormente (21-8-62) encaminhada ao Senado Federal, para fins de eventual
suspensão de execução e, em 25-3-65, o Senado efetivamente decidiu, por meio da
Resolução 32, suspender a execução da alínea objeto do citado RE.
Ocorre que o Governador do Estado de São Paulo, em face da decisão do
Senado Federal, em 15-9-65, apresentou representação àquela Casa Legislativa
com base em interpretação fixada pela Fazenda estadual, pretendendo que a
anterior decisão do Supremo Tribunal Federal apenas houvesse tido por efeito
considerarem-se inconstitucionais situações de fato idênticas à do arquiteto então
recorrente. Posta desse modo a questão, em tese seriam possíveis outras aplica-
ções constitucionais da mesma alínea.
Ante a Representação, o Senado Federal, em 14-10-65, editou nova Reso-
lução, de número 93, revogando a anterior Resolução 32, e suspendendo a execução
da norma estadual paulista apenas para a hipótese de locação de serviços profis-
sionais, nos termos da situação concreta submetida ao Supremo Tribunal Federal
no Recurso Extraordinário 38.538.
Contra essa nova Resolução do Senado Federal é que foi impetrado, origi-
nariamente, no Supremo Tribunal Federal, o mandado de segurança que ora se
comenta.
Dentre os argumentos apresentados pelos impetrantes (vinte e sete em-
presas construtoras), destacam-se:
.
57
Memória Jurisprudencial

a) ao editar a nova Resolução, o Senado teria usurpado função legislativa


estadual, restabelecendo norma então inexistente;
b) ademais, teria agido sem base em decisão judicial que o levasse a tanto;
c) nesse mesmo ato, o Senado teria se sobreposto em relação ao Supremo
Tribunal Federal, praticamente revogando decisão da Corte e atribuindo-lhe pen-
samento que não expressara.
Sustentando seu parecer, o Procurador-Geral da República, Alcino
Salazar, acrescenta uma questão: entende que a matéria discutida seria própria
de representação de inconstitucionalidade, mas admite que se conheça do man-
dado de segurança como reclamação.
Em seu voto, o Ministro Relator, Oswaldo Trigueiro, admite que a ementa
do acórdão no RE 38.538 fosse imprecisa, mas afirma não ter dúvida de que, na
ocasião, o Supremo Tribunal Federal reconhecera a inconstitucionalidade da
cobrança do imposto, nos termos do dispositivo impugnado, dando, assim, razão
aos impetrantes.
Em sua motivação, o Ministro Relator compreende o zelo da Fazenda es-
tadual, mas argumenta que ela poderia, caso entendesse imprecisa a decisão do
Supremo Tribunal Federal no RE 38.538, ter apresentado embargos de declara-
ção; ou, ainda, caso estivesse convicta da interpretação favorável à sua tese,
seguir cobrando o tributo. Mas não lhe caberia buscar — como fez — tutela do
Senado Federal, a quem não compete rever decisões do Supremo Tribunal Federal
nem suprir omissões da legislação estadual.
Pondera que, tivesse dúvida o Senado quanto ao alcance da decisão do
Supremo Tribunal Federal, poderia ter pedido esclarecimentos; porém, uma vez
editada a Resolução, estaria exaurida a função do Senado no caso.
Quanto ao cabimento do presente Mandado de Segurança, o Ministro
Relator, Oswaldo Trigueiro, entende ser incabível, posto equiparar a Resolução
do Senado a lei em tese.
Houvesse aplicação, pela Fazenda do Estado, da norma estadual revigorada
pela Resolução do Senado, aí sim haveria lesão ou ameaça de lesão a ensejar o
mandado de segurança; todavia, contra ato de autoridade estadual — na Justiça
local — e não contra ato do Senado Federal — originariamente no Supremo
Tribunal Federal. Por essa razão, não conhece do pedido.
Surge então discussão sobre a possibilidade de o mandado de segu-
rança ser conhecido como reclamação ou representação de inconstitucio-
nalidade.
.
58
Ministro Victor Nunes

Presente ao julgamento, o Procurador-Geral da República oralmente assu-


me a autoria da reclamação, que fora também apresentada pelas impetrantes, a
qual é, afinal, conhecida pelo Tribunal como representação32.
Nesse ponto, sustenta o Ministro Victor Nunes que, em face de haver
procedimento33 próprio para questionamento de constitucionalidade de ato
normativo em tese, em nada prejudicado, no caso, pelo fato de ter sido instaurado
oralmente pelo Procurador-Geral da República — detentor exclusivo da legitimi-
dade para tanto —, seria de todo conveniente que se conhecesse a representa-
ção, afastando-se qualquer obstáculo para que se apreciasse o mérito.
Assim decide o Tribunal. Mas vale registrar discussão que permeou o de-
bate da questão processual, quanto à natureza da Resolução do Senado Federal
que suspende a execução da lei julgada inconstitucional: se ato administrativo ou
legislativo, ou ainda se ato de natureza sui generis, o que influenciaria a análise
sobre o cabimento do mandado de segurança.
A propósito, pondera Victor Nunes quanto ao sentido de lei, no conceito de
“lei em tese” — contra a qual não cabe mandado de segurança —, que se trata de
lei em sentido amplo, como ato normativo: “o que se leva em conta é a natureza
do ato, não a sua hierarquia. Sendo o ato de substância legislativa, isto é,
normativa, não se configura ainda uma lesão de direito individual. E é a
lesão de direito individual, ainda que iminente, que o mandado de segurança
protege.”
Todavia, como já visto, a questão resta superada com o conhecimento da
representação.
Quanto ao mérito, a mesma questão retorna ao debate, em refinado argu-
mento oferecido pelo Ministro Victor Nunes:
a) sustenta, em primeiro lugar, que, sendo a lei ato normativo, a decisão do
Senado que lhe “suspende a execução”, revogando-a para todos os efeitos, só
pode ter a mesma natureza normativa: “Por outro lado, esse ato não deixa de
ser normativo. Se a lei é normativa, e o Senado, ao suspendê-la, retira a
eficácia da lei, ele acrescenta alguma coisa à decisão, e esse acréscimo tem
força tão normativa como a da lei que é posta fora de circulação. Se essa

32 De todo modo, os Ministros Pedro Chaves, Evandro Lins e Luiz Gallotti já adiantavam,
em interessante raciocínio que privilegiava a análise de mérito, com relativo desapego às
formalidades, que conheceriam qualquer meio de defesa de direito dos interessados:
mandado de segurança, reclamação ou representação.
33 A representação de inconstitucionalidade, recentemente introduzida no sistema
constitucional e ainda sofrendo construção jurisprudencial quanto ao seu procedimento,
posto que não disciplinada no plano legal.

59
Memória Jurisprudencial

eficácia normativa, que suspende a lei, não derivasse da resolução do Senado


Federal, mas do julgado do Supremo Tribunal, a intervenção do Senado
seria desnecessária: a decisão seria executada, desde logo, com efeito nor-
mativo. Mas não é este o nosso sistema. Daí a necessidade de se acrescentar
um plus à decisão judiciária, tornando-a obrigatória erga omnes, por ser ela,
por natureza, obrigatória somente para as partes.”;
b) essa natureza normativa do ato de revogação não é afetada pelo fato de
ser ato emanado de outro Poder (no caso, o Senado Federal —, Poder diverso da
Assembléia Legislativa ou do Congresso Nacional, aprovando leis ordinárias com
sanção do Presidente da República, ou do Presidente da República editando de-
cretos-lei), posto ter sido a própria Constituição a estabelecer modo excepcional
de revogação: resolução do Senado Federal;
c) por outro lado, não previu a Constituição poder ao Senado para, por
resolução, criar nova norma;
d) daí por que não pode o Senado revogar resolução sua, restabelecendo a
vigência de norma, o que só poderia ser feito por nova norma: “Por tudo isso,
parece-me que o ato suspensivo do Senado é de natureza normativa, porque
tem o efeito de revogar a lei. Por ser normativo, com esse efeito revocatório
da lei, parece-me de todo evidente que o Senado não pode voltar atrás, pois
a lei revogada só se restaura por outra lei. O Senado só poderia restaurar
a lei que ele, se suspender, revogou, se tivesse poder legislativo autônomo,
se tivesse o poder de fazer a lei originária. Mas esse poder ele não tem
sequer quanto às leis federais, muito menos quanto às estaduais, como é o
caso dos autos.”
Outra relevante questão de mérito diz com a interpretação da norma cons-
titucional que prevê a competência do Senado Federal para suspender a execução,
“no todo ou em parte”, de lei julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal
Federal.
Sobre o tema, o Ministro Victor Nunes expressou entendimento no sentido
de que, “no todo ou em parte”, deve guardar coerência com a decisão do Supremo
Tribunal Federal, ou seja, se a decisão aponta inconstitucionalidade “em parte” da
norma, a suspensão, pelo Senado, será “em parte”; se o Supremo Tribunal Federal
considera “o todo” inconstitucional, a suspensão, pelo Senado, será “no todo”.
Assim pensa o Ministro Victor Nunes:
“O Senado não pode, por iniciativa própria, suspender a vi-
gência de uma lei qualquer. Ele só pode suspender uma lei no pressu-
posto de haver o Supremo Tribunal decidido contra a sua validade.
Está, pois, na contingência de observar os limites do que o Tribunal
.
60
Ministro Victor Nunes

decidiu, porque o Senado não pode alterar a nossa decisão. Se o


Senado, ao suspender a vigência de uma lei, pudesse escolher ape-
nas parte do que decidimos e desprezar o restante, o resultado, em
tese, poderia ser contraproducente, especialmente quando as diver-
sas partes do julgado fossem indissociáveis.
A Constituição não deu ao Senado, no art. 64, o poder de vetar
parcialmente as decisões do Supremo Tribunal. Por isso, ele suspen-
derá no todo ou em parte a lei, consoante o Tribunal houver declarado
a lei inconstitucional no todo ou em parte.”
No entanto, reconhece o Ministro Victor Nunes que cabe politicamente ao
Senado Federal julgar a conveniência e a oportunidade de suspender ou não a
execução de norma julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal:
“Mas o Senado terá o seu próprio critério de conveniência e
oportunidade para praticar o ato de suspensão. Se uma questão foi
decidida por maioria escassa e novos Ministros são nomeados, como
há pouco aconteceu, é de todo razoável que o Senado aguarde novo
pronunciamento antes de suspender a lei. Mesmo porque não há san-
ção específica nem prazo certo para o Senado se manifestar.”
Após ricos debates, com forte lastro nos argumentos oferecidos pelo
Ministro Victor Nunes, decidiu-se dar provimento à representação, contra o
voto do Ministro Aliomar Baleeiro (no mérito) e do Ministro Hermes Lima, que
considerava descabida a discussão em tese da questão, senão via mandado de
segurança, ante a Justiça local, em caso concreto de violação do direito dos
impetrantes.

Recurso em Mandado de Segurança 8.069

Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e


posicionamento doutrinário — Defesa do federalismo —
Sistema tributário como instrumento de reforço do federa-
lismo.
Discute-se, neste caso, a constitucionalidade da taxa de recuperação eco-
nômica, instituída pelo Estado da Paraíba. Trata-se de acórdão rico em discus-
sões de Direito Tributário, envolvendo o conceito de taxa34.
Mas, dada a opção temática deste trabalho, parece adequado aqui
enfatizar outro aspecto relevante que transparece nos debates, a demonstrar o

34 Registre-se que, sob a vigência da Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federal


discutiu, em inúmeras ocasiões, matéria envolvendo o conceito de taxa. Verifiquem-se,

61
Memória Jurisprudencial

pensamento do Ministro Victor Nunes quanto ao controle de constitucionalidade


das leis.
O raciocínio que embasa o trecho do voto do Ministro Victor Nunes, a
seguir transcrito, prestigia a função da lei, importando lúcida auto-restrição ao
órgão incumbido do controle de constitucionalidade:
“Não quero discutir se esse conceito [de taxa] é o mais correto
do exclusivo ponto de vista da ciência das finanças. Mas, se a
própria doutrina diverge, por que não seria lícito ao legislador, no
uso de competência constitucional expressa, definir o conceito de
taxa num ou noutro sentido? Legem habemus, e contra essa regra de
direito positivo, para impugná-la, não me parece razoável aduzir
considerações de ordem doutrinária, muito menos para fulminar a lei
como incompatível com a Constituição, quando o texto constitucional
não enuncia qualquer conceito de taxa, nem amplo, nem restrito”.
Esse raciocínio é retomado mais adiante, acrescendo-se-lhe, em reforço,
argumento relativo à valorização do federalismo35, que estaria implícita em
optar-se, com base na lei, por reconhecer constitucional a taxa em questão,
instituída pelo Estado da Paraíba:
“Senhor Presidente, vivemos clamando contra a Constituição
de 1946, porque a sua discriminação tributária atingiu fundamente o
federalismo brasileiro. Mas qualquer que seja o impacto desta ano-
malia sobre os Estados-Membros, de uma coisa não podemos nos es-
quecer: a forma do Estado que a Constituição consagra é a federa-
ção, em obediência a cujos princípios informadores, inscritos no seu
texto, não podemos, nem devemos, interpretar com ânimo restritivo a
competência tributária dos Estados. Não se trata, neste caso, de cor-
rigir injustiça ou ilegalidade praticada contra este ou aquele contri-
buinte. O que estamos julgando, num plano muito mais alto, são os
limites da competência dos Estados (da Paraíba, como de qualquer
outro) para prover os recursos necessários aos seus crescentes en-
cargos. Não serviremos à Federação, antes a prejudicaremos, con-
trariando o sistema que a Constituição solenemente proclama, se in-
terpretarmos somiticamente, sovinamente, a competência tributária
estadual.
No caso presente, estão em jogo os recursos com que o Estado
da Paraíba contribuirá para um programa de planificação regional.

por exemplo, os votos do Ministro Victor Nunes em: RE 54.491, RMS 8.533, RMS 10.939,
RE 39.296, RE 40.206, RE 41.517, RMS 13.341e RMS 17.443.
35 Além de argumento inspirado por forte senso de questões sociais.

62
Ministro Victor Nunes

A planificação regional é o grande achado dos tempos contemporâ-


neos para compensar a má distribuição dos recursos naturais e cor-
rigir o desigual desenvolvimento das diferentes regiões, suprindo as
deficiências das menos favorecidas. Por que haveremos de compro-
meter uma experiência político-administrativa de tão grande alcance,
que congrega todas as correntes políticas, acima das divergências
partidárias? Por que haveremos de impossibilitar os Estados de obter
os meios com que atender à sua quota-parte de encargos nessa cora-
josa tentativa de enfrentar os graves problemas econômicos e sociais
das áreas menos desenvolvidas do País?
Se o caso fosse de inconstitucionalidade patente, visível a olho
nu, de gritante conflito com o texto expresso da Constituição, não nos
restaria outro caminho. Mas o que se apura, na espécie, é justamente
o contrário. Há texto de lei ordinária que consagra um conceito de
taxa bastante amplo para que nele se abrigue, comodamente, a lei
estadual impugnada. E a norma de direito positivo federal em ques-
tão, se não estiver com a melhor doutrina (o que não quero, por hora,
discutir), inegavelmente, não atrita com qualquer dispositivo consti-
tucional; antes se enquadra, ajustadamente, na competência da
União para legislar sobre normas de direito financeiro”.
Com esses argumentos, o Ministro Victor Nunes reconhecia a constitucio-
nalidade da taxa em questão, negando provimento ao recurso. Desse modo, resta
vencido, juntamente com os Ministros Vilas Boas (Relator), Gonçalves de Oliveira
e Sampaio Costa (substituindo o Ministro Nelson Hungria).

Recurso em Mandado de Segurança 8.533

Conceito de taxa — Conflito entre norma legal e


posicionamento doutrinário.

Este é outro acórdão em que está envolvido o conceito de taxa, no caso, a


partir da instituição da taxa de serviço contra fogo, pelo Estado de Minas Gerais.
Nesta oportunidade, o Ministro Victor Nunes reitera seu entendimento so-
bre os limites da ação do Supremo Tribunal ao exercer controle de constituciona-
lidade — em particular enfatizando a prevalência do expresso texto de lei, se em
confronto com a doutrina —, no mesmo sentido do julgado acima exposto:
“Sr. Presidente, tenho firmado, neste Tribunal, humildemente,
na corrente oposta àquela em que se colocaram os eminentes Minis-
tros Relator e Pedro Chaves.
.
63
Memória Jurisprudencial

O principal argumento que eu aceito — e essa discussão é ve-


lha no Tribunal e fora dele — é que a inconstitucionalidade de uma
lei se apura não em face da doutrina, mas em face da Constituição. E
nossa Constituição alude a taxas, mas não as define.
(...)
Por ora, quero acentuar que a Constituição não define o que
seja taxa, e a mesma Constituição confere à União Federal, no art.
15, inciso V, n. I, expedir normas gerais de direito financeiro. Um dos
textos do direito federal que contém princípios dessa natureza,
definindo o que seja taxa e imposto, é o DL n. 2.416 (...).”
Mas, também neste caso, o Ministro Victor Nunes resta vencido, ao
posicionar-se pela constitucionalidade da taxa, negando provimento ao recurso,
acompanhado pelos Ministros Vilas Boas e Henrique D’Ávila.

Recurso Extraordinário 23.937

Aplicação da Súmula 400 — Não-cabimento de


recurso extraordinário em face de decisão que deu razoá-
vel interpretação a lei.

Discutia-se, nesse recurso, regra de competência, a partir de interpretação


de dispositivos diversos do Código de Processo Civil. Menos relevante, para uma
análise feita nos dias de hoje, parece a discussão sobre a matéria de fundo neste
caso, posto tratar-se de questão pontual, a partir de regras específicas do CPC
vigente na década de 60.
Mas o que parece interessante é mostrar este acórdão, proferido em ses-
são de 4 de dezembro de 1964, como exemplo de aplicação da Súmula 400,
aprovada em Sessão Plenária de 3 de abril do mesmo ano. A Súmula 400 do
Supremo Tribunal Federal tem o seguinte teor: “decisão que deu razoável in-
terpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordi-
nário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”36.
Por sua vez, o citado art. 101, III, a, da Constituição de 1946, assim dispunha:
“Art. 101. Ao Supremo Tribunal Federal compete: (...)
III - julgar em recurso extraordinário as causas decididas em
única ou última instância por outros Tribunais ou Juízes: a) quando a

36 Poder-se-ia observar que essa tese se harmoniza com as idéias expostas no capítulo
“Interpretação”, na Teoria Pura do Direito, por Hans Kelsen.

64
Ministro Victor Nunes

decisão for contrária a dispositivo desta Constituição ou à letra de


tratado ou lei federal”.
Por meio de acórdão também relatado pelo Ministro Victor Nunes, que
configura precedente em relação à citada Súmula, proferido no Agravo de Instru-
mento 29.843, o Supremo Tribunal Federal negara-lhe provimento, entre outros
motivos, pelo fato de, nas palavras do Relator, a decisão recorrida haver se limi-
tado a “interpretar o texto legal”.
Recorde-se ainda outro precedente da Súmula 400, o Agravo de Instru-
mento 30.500, que teve como Relator o Ministro Pedro Chaves, de cujo voto vale
destacar a ponderação: “a decisão recorrida não ofendeu a lei, cujos textos
interpretou e aplicou como melhor lhe pareceu, nem contrariou jurispru-
dência específica. O recurso extraordinário não se destina à discussão de
teses acadêmicas”.
Relatando o caso ora comentado — RE 23.937 —, o Ministro Victor
Nunes registra que “o acórdão recorrido (...) entendeu que o princípio da
prevenção deveria ceder o passo a outros, também contemplados pelo Có-
digo de Processo Civil, ao determinar a competência”, e prossegue: “com
essa interpretação, não ofendeu a lei, mas apenas a interpretou de maneira
aceitável” (...) “prevaleceram, assim, na decisão recorrida, contra o único
critério da prevenção, em que se apóia a recorrente, três outros critérios,
também admitidos na lei”37.

Recurso Extraordinário 32.921

Interpretação conforme a Constituição.

Este recurso extraordinário foi interposto contra decisão do Tribunal Supe-


rior do Trabalho em dissídio coletivo.
Dentre vários fundamentos do acórdão que negou conhecimento ao re-
curso, interessa mais nitidamente, do ponto de vista do controle de constituciona-
lidade, a argumentação do Ministro Relator, Victor Nunes, quanto à alegação de
inconstitucionalidade do art. 1º da Lei 2.510/55, assim redigido: “É defeso à
Justiça do Trabalho, no julgamento dos dissídios coletivos, incluir, entre as
condições para que o empregado perceba aumento de salário, cláusula
referente à assiduidade ou freqüência no serviço”.

37 Igualmente quanto à aplicação da Súmula 400, ver, entre outros, o RE 28.797, relatado
pelo Ministro Victor Nunes.

65
Memória Jurisprudencial

O recorrente (sindicato), com base em parecer de Pontes de Miranda,


apontava inconstitucionalidade no dispositivo, por supostamente configurar limi-
tação ao exercício da função jurisdicional.
Após ponderar que o legislador, na redação do texto, foi infeliz, o Ministro
Victor Nunes argumenta que “seria perfeitamente legítima a lei, se houvesse
estabelecido, com o mesmo alcance, uma norma de direito substantivo”.
Desse modo, determina que se interprete o dispositivo em questão “como
enunciando regra de direito substantivo, no sentido de proibir a cláusula
de assiduidade como condição para aumento coletivo de salário”.
E prossegue: “a simples deficiência de linguagem do legislador não é
motivo para se declarar a inconstitucionalidade quando a lei puder ser
interpretada de modo a se tornar compatível com a Constituição”.
Verifica-se que fundamenta a posição do Ministro Victor Nunes o mesmo
princípio a ensejar o que mais contemporaneamente se diria “interpretação con-
forme a constituição”, qual seja, o princípio de prestigiar-se a validade de uma lei,
optando-se por considerá-la constitucional caso ao menos uma de suas possíveis
interpretações seja compatível com a Constituição.
Em verdade, na situação ora analisada, não ocorreria caso típico de inter-
pretação conforme — no estrito sentido dessa técnica hermenêutica consagrada
a partir da jurisprudência alemã —, posto não se apresentar propriamente mais
de uma interpretação da norma, como a conduzi-la a mais de uma hipótese de
incidência.
Com efeito, o sentido (“o alcance”, como dito pelo Ministro) da norma é
um só; apenas há que se entender seu enunciado, apesar das palavras postas,
como não importando fixar limite à função jurisdicional, o que seria inconsti-
tucional.

Recurso em Mandado de Segurança 14.710

Suspensão de julgamento em Câmara de Tribu-


nal local, para que o Pleno decida sobre questão de
constitucionalidade — Discussão sobre trânsito em
julgado da decisão do Pleno e do momento para se recor-
rer ao STF.

A questão de mérito discutida neste caso diz com o tema da possibilidade


de emenda parlamentar a projetos de lei de iniciativa do Executivo, prevalecendo
.
66
Ministro Victor Nunes

a tese de que é admissível emenda quando guarde identidade com a matéria do


projeto proposto38.
Tratava-se de projeto de lei que propunha a criação de um cargo público
para corrigir-se situação de fato — advogado exercendo função compatível,
mas ocupando cargo de médico —, e o Parlamento emendou-o para corrigir
mais outra situação — técnico exercendo, de fato, função no serviço de
documentação, mas ocupando cargo de técnico de laboratório — com cria-
ção de outro cargo. O Governador de São Paulo vetou, alegando que a
emenda importara, indiretamente, aumento de vencimentos; a Assembléia
derrubou o veto; o Governador descumpriu a lei; e o interessado impetrou
mandado de segurança.
Mas não é a questão de mérito que, neste julgamento, se mostra mais
interessante. Com efeito, os debates alongam-se quanto à questão processual do
cabimento do recurso, não no sentido de qual o recurso cabível, mas sim de se
caberia recurso da decisão do tribunal a quo.
Não se pretende neste trabalho, dado o seu corte temático, aprofundar
nuances técnicas de direito processual39 envolvidas na questão, senão destacar
pontos mais diretamente relacionados com o controle de constitucionalidade.
A discussão decorre do fato de, na instância estadual, ter havido suspen-
são do julgamento na Câmara, para que o Tribunal Pleno decidisse matéria cons-
titucional, dada a regra constitucional de maioria necessária para tanto. Com a
decisão de inconstitucionalidade, o processo retornou à Câmara, que julgou im-
procedente o pedido.
Desse último julgamento, a impetrante interpôs o presente recurso ordi-
nário. Todavia, os Ministros Adaucto Cardoso e Eloy da Rocha entendem que
deveria ter havido recurso, oportunamente, da decisão do Tribunal Pleno para o
Supremo Tribunal Federal, sob pena de transitar em julgado.
Argumenta o Ministro Adacuto Cardoso que o Tribunal Pleno teria julgado
a “única matéria controvertida nos autos — a inconstitucionalidade da lei
estadual em que se amparava a impetração”. E invoca inúmeros precedentes
do Supremo Tribunal, das décadas de 50 e 60. O Ministro Eloy da Rocha, a seu
turno, argumenta que a decisão do Pleno é definitiva: “na mesma instância, a
matéria de inconstitucionalidade não pode mais ser apreciada, para a rela-
ção em causa”.

38 Essa questão é mais profundamente debatida em acórdãos analisados mais adiante,


no item “Poder Legislativo”.
39 De que, aliás, esse julgado é rico.

67
Memória Jurisprudencial

Sustentando posição contrária40, a maioria dos Ministros entende que o


julgamento apenas se conclui com a decisão da lide, no caso, pela Câmara; daí
então cabendo recurso ao Supremo Tribunal. O Ministro Luiz Gallotti considera a
manifestação do Pleno “uma etapa do julgamento”, e o Ministro Thompson
Flores lembra que tal manifestação “não tem efeitos em relação às partes”, o
que ocorrerá com o julgamento da Câmara.
O Ministro Amaral Santos chega a afirmar que a manifestação do Pleno
não é propriamente decisão, mas “norma” que irá balizar a decisão da lide; ao
que o Ministro Eloy da Rocha responde ser “decisão sobre interpretação da
norma” e acrescenta ser decisão passível de trânsito em julgado, para as partes,
se não recorrida em tempo. Na argumentação do Ministro Amaral Santos, a
decisão do Plenário sobre constitucionalidade não transita em julgado se a lide
não foi decidida.
O Ministro Victor Nunes acolhe a tese da minoria, vindo em seu apoio com
mais argumentos.
Em primeiro lugar, observa ser possível que tribunais locais decidam
questões constitucionais como aspecto incidental de uma demanda; o que é
privativo do Supremo Tribunal Federal é o julgamento de inconstitucionalidade
em tese.
Daí não ser incongruente admitir-se que determinada decisão de instância
inferior sobre matéria constitucional — como incidente para a solução de caso
concreto — transite em julgado sem que tenha havido apreciação pelo Supremo
Tribunal Federal.
Na seqüência desse raciocínio, considera normal que haja dois ou mais
recursos ao Supremo Tribunal, a partir de uma mesma lide — rebatendo, assim,
argumentos que negavam essa hipótese, como situação anômala —, e lembra,
nesse sentido, outros exemplos de situações processuais.
Ademais, questiona: “por que a controvérsia constitucional, em caso
concreto, não pode ser considerada lide?”. E segue: “se é uma premissa,
como observou o eminente Ministro Amaral Santos, ela será, quando o pe-
dido se basear na argüição de inconstitucionalidade, a premissa funda-
mental. E o Código de Processo Civil41, em dispositivo que Liebman não
considerava muito feliz, dispõe que a decisão sobre premissa necessária
também transita em julgado”.

40 Não estão aqui expostos todos os argumentos processuais debatidos.


41 De 1939.

68
Ministro Victor Nunes

Por fim, argumentando com aspectos de política legislativa, o Ministro


Victor Nunes lembra haver interesse público em se acelerar o julgamento conclu-
sivo de matéria constitucional, não havendo que se aguardar decisão integral da
lide na instância inferior para que a decisão plenária sobre constitucionalidade
seja levada ao Supremo Tribunal. Esse interesse público é tão relevante que,
ainda na vigência da Constituição de 1946, expandiu-se o cabimento do processo
para apreciação de constitucionalidade em tese.
E mesmo o interesse das partes será mais “depressa atendido, porque
mais depressa as partes terão a última palavra, que é a do Supremo Tribu-
nal, sobre a questão mais importante do processo”.
No caso, restam vencidos, na matéria preliminar, os Ministros Victor
Nunes, Eloy da Rocha e Adaucto Cardoso, que não conheciam do recurso.

Recurso em Mandado de Segurança 15.212

Suspensão de julgamento em Câmara de Tribunal


local, para que o Pleno decida sobre questão de constitu-
cionalidade — Discussão sobre trânsito em julgado da
decisão do Pleno e do momento para se recorrer ao STF.

O Ministro Victor Nunes conclui seu voto no RMS 14.710 (cf. supra) ,“ren-
dendo tributo” à jurisprudência anterior ao RMS 15.212.
De fato, foi a partir desse precedente, envolvendo a mesma questão de mérito
discutida no RMS 14.710, que o Supremo Tribunal Federal alterou seu entendimento
quanto à necessidade de recurso — sob pena de trânsito em julgado —, antes da
decisão final do litígio, de decisão do Plenário de tribunais inferiores, em matéria
constitucional.
Naquela ocasião, além de apresentar argumentos em igual sentido dos já
acima expostos42, o Ministro Victor Nunes ponderara:
“A decisão que a maioria está tomando hoje não atende a essa
conveniência43, porque protela o julgamento da questão constitucio-
nal por esta Corte. Ela já estará decidida por outro Tribunal, em
Plenário, mas só virá ao Supremo depois que a Turma ou Câmara
daquele Tribunal proferir outra decisão, que de resto será absoluta-

42 Apesar da precedência temporal do RMS 15.212, optou-se pela análise dos argumen-
tos do Ministro Victor Nunes a partir do RMS 14.710, posto que neste caso foram apresen-
tados (ou reiterados) com maior detalhamento.
43 “A conveniência pública de serem as questões constitucionais dirimidas o quanto
antes.”.

69
Memória Jurisprudencial

mente inócua quanto à questão constitucional, porque as Turmas ou


Câmaras não têm competência para decidir essa matéria. O que con-
vém ao País é saber quanto antes a opinião do Supremo Tribunal
sobre tais questões”44.
E, assim como posteriormente se passou com o RMS 14.710, no RMS
15.212 os Ministros Victor Nunes, Eloy da Rocha e Adaucto Cardoso, acompa-
nhados neste caso pelo Ministro Evandro Lins, votaram vencidos pelo não-co-
nhecimento do recurso.

Mandado de Segurança 17.484

Mandado de segurança preventivo para evitar nega-


tiva de aplicação, pelo Poder Executivo, de lei julgada
constitucional pelo STF.

O acórdão proferido neste caso é bastante sucinto, mas revelador de ques-


tão relevante tanto sobre o cabimento do mandado de segurança como sobre
aplicação de lei cuja constitucionalidade já tenha sido objeto de apreciação em
tese (via representação) pelo Supremo Tribunal Federal.
O Supremo Tribunal Federal já julgara constitucional determinado artigo de
lei sobre aposentadoria de servidores públicos. No entanto, alguns anos depois, o
Presidente da República, com base em parecer do Consultor-Geral da República,
vinha reiteradamente negando, pelo fundamento de inconstitucionalidade, pedidos
de aposentadoria de servidores públicos formulados com base na referida lei.
Assim, o impetrante ajuizou mandado de segurança a fim de afastar a
negativa de sua aposentadoria pelo Presidente da República. Ocorre que o
impetrante ainda não havia requerido aposentadoria, a qual, portanto, não lhe
havia sido negada.
No entanto, o Ministro Relator, Victor Nunes, entende que atitude reiterada
do Chefe do Executivo cria no impetrante justo receio de que sua situação receba
o mesmo tratamento, justificando-se assim a concessão preventiva da segurança.
Sustentando voto em sentido contrário, o Ministro Prado Kelly pondera
não haver ato administrativo, no caso, a ensejar a impetração. Note-se que, ainda
que não tenha havido debates explícitos nesse sentido, a tese sustentada pelo

44 E, em resposta ao Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, que acusava seu posici-


onamento de trancar, “com a coisa julgada, o pronunciamento do Supremo Tribunal
Federal”, nega essa conseqüência, lembrando que “o mesmo aconteceria, se a parte
não recorresse afinal”.

70
Ministro Victor Nunes

Ministro Victor Nunes reconhece o caráter preventivo do mandado de segurança


em relação a ato coator ainda não praticado, mas provável em face da reiteração
da prática, em outros casos similares, de atos no sentido indesejado pelo
impetrante, enquanto que a tese acolhida pelo Ministro Prado Kelly supõe neces-
sária a prática do ato coator — caso em que o mandado seria preventivo quanto
aos efeitos do ato.
E surge ainda outra nuance do voto do Ministro Relator, Victor Nunes:
propõe ele a concessão da segurança como modo de vedar à Administração que
negue o futuro pedido de aposentadoria do impetrante alegando motivo de in-
constitucionalidade da lei que o embasa, a qual já fora reconhecida constitucional
pelo Supremo Tribunal Federal em representação.
Argumenta Victor Nunes que “a administração pode entender que,
embora afirmada pelo Tribunal a constitucionalidade da lei em tese, ela
seria livre de reargüir, perante o Supremo Tribunal, a inconstitucionalidade
em casos específicos”.
Neste caso, a maioria dos Ministros não conhece o mandado de segurança,
com os votos vencidos dos Ministros Victor Nunes, Evandro Lins e Lafayette de
Andrada.

Casos “Testamento do Rio Grande do Norte”

(Rp 512, RE 48.655, RE 54.908, RE 61.513,


RE 61.324, RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354, RE
61.511, RE 61.524 e RE 61.554)

Suspensão de aplicação de lei por ato do Poder


Executivo — Interpretação dos princípios constitucio-
nais sensíveis — Flexibilidade para cabimento de recurso
extraordinário em mandado de segurança — Discussão
sobre julgamento de constitucionalidade de lei como
impedimento para a apreciação de argüição de sua incons-
titucionalidade em casos concretos.
Por essa expressão, ficou conhecida uma série de casos julgados pelo
Supremo Tribunal Federal, a partir da anulação, de uma só vez, em fevereiro de
1961, de mais de 310 leis que criavam cargos e tratavam de situações funcionais,
o que se fez, como registrado pelo Ministro Victor Nunes, “em circunstâncias de
certo tumulto político no Estado”.
Um julgado que pode ser analisado como referência inicial da série é a Rp
512 e, a partir daí, inúmeros recursos extraordinários em mandados de segurança.
.
71
Memória Jurisprudencial

Como observa o Ministro Victor Nunes ao julgar o RE 61.324, a matéria,


desde o início, não foi objeto de entendimento pacífico e ainda sofreu alteração de
rumos a partir da aplicação do art. 177, § 2º, da Constituição de 196745.
A questão torna-se mais complexa porque, ao se decidir a Rp 512, não
foram abordados todos os aspectos constitucionais que poderiam ter sido suscita-
dos na série, e, aliás, nem seria de se supor que mais de 310 leis tivessem o
mesmo enquadramento jurídico-constitucional, “suscetível de ser posto num
formulário mimeografado”.
Inicie-se a análise pela Rp 512, que se voltava contra os Decretos 3.086 e
3.087, de 6 de fevereiro de 1961, e a Resolução 4 da Assembléia Legislativa, de
22 de fevereiro de 1961.
O primeiro dos Decretos suspendeu a execução de leis estaduais, anulou
atos administrativos, vedou posse a servidores nomeados; o segundo prorrogou
para 1961 o orçamento de 1960; e a Resolução declarou a perda de mandato de
quatro deputados.
A justificativa para ter o novo Governador, Aloísio Alves, assim agido seria
a inconstitucionalidade das mais de trezentas leis estaduais publicadas no período
de 14 de novembro de 1960 a 31 de janeiro de 1961 — “testamento político” do
anterior Governador Dinarte Mariz —, posto que, conforme comunicação que
lhe foi feita pela Assembléia Legislativa, a partir de 10 de novembro de 1960 não
mais estivera funcionando o parlamento estadual, até posterior reunião sob con-
vocação extraordinária.
Nos termos da Representação, a alegada inconstitucionalidade do primeiro
Decreto seria a violação, pelo Governador, de atribuição do Senado Federal
quanto à suspensão de execução de leis, bem como a violação do princípio da
independência e da harmonia dos Poderes. Esse último aspecto atingiria igual-
mente o segundo Decreto. Já a Resolução traria vícios de competência e de inob-
servância de regras de quorum, regimentalmente definidas.
A Rp 512, por ser anterior à Emenda Constitucional 16/65, segue a regra do
art. 8º da Constituição de 1946, ou seja, é a representação “interventiva”, pressu-
posto, em algumas hipóteses, da intervenção federal, e não a representação —
hoje substituída pela ação direta de inconstitucionalidade —, que importa a análise,
em tese, da constitucionalidade de ato normativo.

45 “Art. 177. Fica assegurada a vitaliciedade aos professores catedráticos e titulares


de ofício de justiça nomeados até a vigência desta Constituição, assim como a estabili-
dade de funcionários já amparados pela legislação anterior. (...) § 2º São estáveis os
atuais servidores da União, dos Estados e dos Municípios, da administração centrali-
zada ou autárquica, que, à data da promulgação desta Constituição, contem, pelo
menos, cinco anos de serviço público.”

72
Ministro Victor Nunes

Nesse sentido, a declaração de inconstitucionalidade na representação


interventiva tem o objetivo não de uma análise em tese, mas de fazer cessar a
violação de determinados princípios constitucionais no caso concreto, com espe-
cial atenção para a manutenção da harmonia entre os entes federativos.
Ao proferir seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, fundamentou a
negativa de provimento à representação quanto ao Decreto que suspendera exe-
cução às diversas leis, argumentando que zelar pela constitucionalidade das leis é
dever de todos os Poderes, não apenas do Judiciário.
Daí por que o Poder Executivo não está obrigado a aplicar leis inconstitu-
cionais, sendo-lhe lícito suspender-lhes a execução (não revogá-las), ainda que
antes de decisão do Senado Federal e do Supremo Tribunal Federal.
Não estaria o Governador a violar atribuição desses últimos, uma vez
que nada impedia que tais órgãos ainda viessem a exercer plenamente sua
competência.
Ademais, a decisão política do Governador, contida no Decreto em ques-
tão, veio a ser legitimada pela própria Assembléia Legislativa, por meio de lei
posterior — Lei 2.677, de 21 de fevereiro de 1961, ratificada pela Lei 2.800, de
21 de agosto de 1962.
Reconhecida a constitucionalidade do Decreto que suspendera a execução
de leis, entre elas, a orçamentária, natural foi reconhecer-se a constitucionalidade
do segundo Decreto, que prorrogara para o novo exercício o orçamento anterior.
No tocante à Resolução da Assembléia Legislativa, quanto a ela não foi
sequer conhecida a representação, por não estar configurada a hipótese de cabi-
mento.
O Ministro Victor Nunes acompanha o voto do Relator, apenas acrescen-
tando observação doutrinária quanto ao fato de os princípios explicitados na
Constituição Federal, cuja violação enseja a representação interventiva, poderem
comportar, em sua interpretação, consideração complementar de outros disposi-
tivos da própria Constituição Federal ou das Constituições estaduais.
Como destacado de início, esse caso teve desdobramentos em outras
ações, visando à discussão de inconstitucionalidade de leis específicas.
Tal se deu, por exemplo, no RE 48.655, em que se discutia suposto direito
adquirido de um servidor que teria sido demitido sumariamente durante seu está-
gio probatório, por força do efeito retroativo da Lei estadual 2.677/61 (aquela que
legitimara o Decreto do Governador, objeto da Representação 512).
.
73
Memória Jurisprudencial

No entanto, no julgamento desse recurso extraordinário, movido pelo Estado


do Rio Grande do Norte, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, dando-lhe provimento,
reconhece que não houve demissão, mas sim anulação de nomeação; e é acom-
panhado pela maioria. Dois votos vencidos — Ministros Hermes Lima e
Hahnemann Guimarães — não conheciam do recurso, por não vislumbrarem
ofensa a lei federal por parte da decisão recorrida.
Votando com a maioria, o Ministro Victor Nunes reforça os argumentos do
Relator, reconhecendo, sim, questão de lei federal, posto ser problema de Direito
federal o conflito de leis de épocas diversas e de atos de diferente valor hierárquico.
De todo modo, o Ministro Victor Nunes acrescenta interessante argumento
em matéria processual, quanto ao cabimento de recurso extraordinário em
mandado de segurança — como no presente caso —, sustentando que se deva
admiti-lo, com maior flexibilidade, quando interposto por ente público.
Isso porque, quando perde o mandado de segurança, o impetrante tem ao
seu alcance o acesso ao Supremo Tribunal Federal pela via mais larga do recurso
ordinário; já a parte pública teria apenas a via estreita do recurso extraordinário.
Nesse sentido, admitir, com maior largueza, o recurso extraordinário do
ente público seria prestigiar a presunção de legitimidade dos atos das autoridades
públicas e conferir tratamento que reduza ao mínimo a desigualdade processual
das partes no mandado de segurança em termos de recursos.
Vale também registrar a posição do Ministro Victor Nunes de que, tendo
sido reconhecida a constitucionalidade das normas impugnadas na Representa-
ção 512, não poderia agora o Tribunal considerar inconstitucional a anulação da
nomeação do servidor, ora recorrido, a qual se dera com base nas referidas
normas.
Lembra precedentes do Supremo Tribunal Federal no sentido de que lei
anulatória de outra que criara cargos tem o efeito de extinguir esses cargos. E, no
presente caso, nem há mais que discutir a eventual invalidade dessa lei anulatória,
já julgada constitucional na Representação 512.
Conclui citando jurisprudência firme do Tribunal quanto ao estágio probató-
rio não proteger o funcionário contra a extinção do cargo (cf. Súmula 22). Essa
mesma conclusão é apresentada pelo Ministro Victor Nunes em outro desdobra-
mento da série “Testamento do Rio Grande do Norte” — no RE 54.908, do qual é
Relator.
Todavia, ao votar no RE 61.513, o Ministro Victor Nunes protagoniza
longo debate com o Ministro Relator, Adaucto Cardoso, sustentando que a deci-
são no RE 48.655 não teria o efeito de prejulgamento em outros casos, posto que,

74
Ministro Victor Nunes

tanto na Rp 512 como naquele recurso extraordinário, não necessariamente to-


dos os aspectos de constitucionalidade da lei — a lei com efeitos anulatórios de
atos do anterior Governador, ratificando o Decreto original — teriam sido abor-
dados, havendo que considerar os fatos específicos de eventuais outros casos
concretos.
Registra, ainda, o Ministro Victor Nunes que houve alteração de entendi-
mento tanto por parte dele como por parte do Tribunal em relação ao original-
mente aplicado nos casos do Rio Grande do Norte — e em casos similares,
originários, por exemplo, do Ceará ou de Santa Catarina.
Inicialmente, entendia o Tribunal que “ainda que insubsistentes os motivos
de inconstitucionalidade pelos quais uma lei estadual tivesse anulado leis
anteriores, essa lei anulatória valeria, pelo menos, como supressora do
cargo”. Após algumas decisões, passou-se a admitir que, “se esses motivos fos-
sem insubsistentes, o Tribunal cassava a lei anulatória e restabelecia intei-
ramente a lei anterior. Portanto, restabelecia os cargos”.
Daí por diante, o Ministro Victor Nunes passa a examinar caso por caso da
série do Rio Grande do Norte, “para verificar se todas as 310 leis ali anula-
das seriam inconstitucionais e se, a respeito de cada funcionário, havia
uma ilegalidade reparada pelo Governador na sua atuação saneadora”.
Desse modo, enquanto o Ministro Relator, Adaucto Cardoso, vota susten-
tando que, por força da decisão na Rp 512, as centenas de leis estaduais teriam
sido corretamente anuladas, o Ministro Victor Nunes entende que, em cada caso,
há que verificar se cada lei anulada não deveria mesmo subsistir46.
Assim, do modo como foi trazido a julgamento o RE 61.513 — em conjunto
com outros, como o RE 61.324 —, o Ministro Victor Nunes entende não se
estar julgando cada caso e acrescenta: “portanto, na impossibilidade de veri-
ficar exatamente o que ocorreu em relação a cada um dos funcionários
envolvidos, prefiro não conhecer do recurso (interposto pelo Estado) e, ven-
cido na preliminar, negar-lhe provimento”.
Acompanharam o Ministro Victor Nunes, vencidos na preliminar e no
mérito, os Ministros Evandro Lins e Lafayette de Andrada.
Verifique-se ainda o posicionamento do Ministro Victor Nunes, como
Relator, nos RE 61.316, RE 61.340, RE 61.354, RE 61.511, RE 61.524 e
RE 61.554, julgando prejudicado o recurso do Estado, acrescentando-se aos
argumentos nova regra constitucional: Constituição de 1967, art. 177, § 2º (acima
citada).

46 Na Rp 512, julgou-se que os atos estaduais “anulatórios” não violavam prerrogativas


do Senado Federal nem ofendiam a independência dos Poderes, nada se discutindo sobre
a Constitucionalidade dos atos “anulados”.

75
Memória Jurisprudencial

Representação 725
Discussão sobre a ocorrência de inconstitucionali-
dade ou revogação de lei anterior que conflita com nova
Constituição — Conseqüências.
Registre-se ainda mais um caso, de interesse em matéria de controle de
constitucionalidade. Faz-se, todavia, apenas esta breve referência, porquanto re-
lativamente reduzida a participação do Ministro Victor Nunes nos debates.
A questão de fato consistia na discussão sobre a inconstitucionalidade de
ato do Governador do Estado do Rio Grande do Sul, que, ao nomear o Diretor-
Geral da Secretaria da Corte de Apelação da Justiça Militar daquele Estado,
havia ofendido o princípio da independência dos Poderes e violado garantias do
Poder Judiciário.
Deixando, por ora, de lado a questão de fundo e a solução do caso concreto,
vale transcrever, do sucinto voto do Ministro Victor Nunes, este trecho que bem situa
a tese jurídica discutida em questão preliminar, levantada pelo Ministro Eloy da Rocha:
“É, realmente, controvertido o problema de saber se é inconstitu-
cional, ou se está revogada, a lei anterior com a qual conflita a Cons-
tituição.
Em outra oportunidade, escrevi um comentário, optando pela
tese da revogação, o que teria conseqüências práticas de relevo.
Sendo o caso de revogação, e não de inconstitucionalidade, não
será, por exemplo, necessária a maioria qualificada para que os
Tribunais declarem a invalidade de uma lei, em tais condições.
Parece que a maioria do Tribunal se inclinou pela tese da
inconstitucionalidade. Por enquanto, fico com a opinião que já
enunciei anteriormente. Por isso, adoto a conclusão do Sr. Ministro
Eloy da Rocha, declarando prejudicada a representação no que
respeita à primeira nomeação, e procedente quanto à segunda.”
Com efeito, quanto a esse aspecto da representação, ao qual se aplicava a
discussão sobre a situação da lei anterior em conflito com a nova Constituição,
apenas os Ministros Victor Nunes e Eloy da Rocha julgaram-na prejudicada.

1.3 Federalismo
Recurso em Mandado de Segurança 11.687

Repartição constitucional de competências — Censura


a exibição cinematográfica — Poder de polícia em face
de direitos fundamentais — Poderes implícitos da União —
Competência concorrente e supremacia da lei federal —
Poder de polícia e eficácia da força material disponível.
.
76
Ministro Victor Nunes

O presente caso envolve a matéria da repartição constitucional de com-


petências, aplicada ao poder de polícia voltado à censura de exibição cinemato-
gráfica.
Neste processo, o Ministro Victor Nunes produz longo e riquíssimo voto.
Para garantir maior clareza a esta análise — que, de todo modo, não dispensa a
leitura na íntegra do texto do Ministro, transcrito ao final desta obra —, parece
conveniente segmentá-la com subitens.
Síntese dos fatos e da questão jurídica trazida à apreciação judicial:
Ainda sob a vigência da Constituição de 1946, porém já sob o Regime de
1964, o filme Os Cafajestes teve sua exibição vedada em Minas Gerais, por ato
do Governador, apesar de haver sido “liberado para todo o território nacional”
pelo órgão federal encarregado da censura — Departamento Federal de Segu-
rança Pública —, que o declarara “impróprio para menores de até dezoito anos e
para a televisão”.
Contra o ato do Governador, Produções Cinematográficas Herbert
Richers S.A. e Empresa Nacional de Cinemas e Diversões Ltda. impetraram
mandado de segurança, julgado improcedente pelo Tribunal local.
O que se discutia, no caso, era a competência para o exercício da censura
cinematográfica, incluída na censura dos “espetáculos e diversões públicas”
(Constituição de 1946, art. 141, § 5º).
A interdição do filme por ato estadual era defendida pela autoridade
coatora, com base em parecer de Caio Mário da Silva Pereira, que argumentava
ser de competência privativa dos Estados exercer o poder de polícia, no caso,
censurando a exibição do filme.
Sustentava-se a incompetência da União com base na cláusula constitucio-
nal de reserva de poderes: “Art. 18, § 1º Aos Estados se reservam todos os
poderes que, implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados por esta
Constituição”. Sendo, segundo argumentava a autoridade coatora, a censura
cinematográfica ato de poder de polícia, e este não tendo sido atribuído privativa-
mente à União, teria restado reservado aos Estados47.
Nos termos do citado parecer de Caio Mário da Silva Pereira, “o Governo
Federal tem suas vistas voltadas para problemas ligados com a segurança

47 O Ministro Victor Nunes, ao relatar esse argumento, já lhe aponta contradições, até
porque, na seqüência, vem a admitir a censura federal sob certos aspectos.

77
Memória Jurisprudencial

nacional, para a harmonia entre os Poderes”, exercendo a censura num plano


nacional. Já quanto a “suscetibilidades morais”, deve haver a primazia das
“sensibilidades locais”, de que é intérprete o Estado.
O Ministro Relator, Hahnemann Guimarães, concordando com a posição
da autoridade coatora, negou em seu voto a competência da União na matéria,
entendendo, por força do citado art. 18, § 1º, da Constituição, ter ficado reservado
aos Estados o poder de censura dos espetáculos e diversões públicas. A compe-
tência da União quanto à censura ficaria restrita ao Distrito Federal e aos Terri-
tórios Federais. Lembra o Relator que a Constituição de 1937 dava à União o
poder de legislar sobre o regime dos teatros e cinematógrafos, em norma que não
foi reproduzida pela Constituição de 1946, o que reforçaria o argumento de que,
sob o novo regime, a censura teria restado reservada, com exclusividade, aos
Estados.
A tese oposta, dos impetrantes, afirmava a competência exclusiva da
União para a matéria em questão.
Antecipando o teor de seu voto, o Ministro Victor Nunes apresenta a se-
guinte síntese:
“Sem me filiar a essas conclusões radicais, procurarei demons-
trar que a matéria recai na competência concorrente da União, dos
Estados e dos Municípios; e, desde que haja legislação sobre a maté-
ria, deverá prevalecer a censura federal sobre a estadual, e esta so-
bre a municipal”.
Outro trecho completa essa síntese de seu pensamento:
“A competência concorrente não elimina a hipótese de conflito.
Havendo o conflito, prepondera a competência federal. No caso, há
esse conflito. A censura federal autorizou, e a censura estadual proibiu.
Deve preponderar o ato da autoridade federal, que permitiu a
exibição; do contrário, teremos de afirmar que, sendo concorrente a
competência da União e do Estado, deverá preponderar, em caso de
conflito, a competência estadual, o que parece de todo contrário ao
sistema federativo. O ato estadual só prepondera sobre o federal,
quando deriva de competência estadual exclusiva, porque, em tal
caso, a União não tem poder. Na competência concorrente, a União
tem poder, e o poder federal não há de estar subordinado ao estadual,
sob pena de desfigurar o regime federativo”.
.
78
Ministro Victor Nunes

A seguir, a análise do voto do Ministro Victor Nunes:


Tratamento constitucional da censura:
Não está em discussão no caso, nem o Ministro Victor Nunes o contesta —
aliás, afirma que o assunto, “pelo consenso até agora geral, está fora de
controvérsia” —, que o regime constitucional brasileiro acolhe a possibilidade de
censura48:
“Art. 141, § 5º É livre a manifestação do pensamento, sem que
dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas,
respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar, pe-
los abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o
direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá
de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda
de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e
social, ou de preconceitos de raça ou de classe”.
Lembra o Ministro Victor Nunes que, mesmo nos Estados Unidos, onde a
doutrina entende que a liberdade de pensamento é incompatível com a censura
prévia, por força da Primeira Emenda, a Suprema Corte tem admitido censura
prévia a cinema, ainda que com votos vencidos.
Interpretação da repartição de competências, considerando-se o
envolvimento de direitos fundamentais:
De todo modo, o Ministro Victor Nunes naturalmente reconhece o cinema
como atividade merecedora da proteção especial inerente aos direitos fundamen-
tais: “cinema não é apenas diversão, mas cada vez mais um meio de expres-
são artística e do pensamento, e também instrumento de propaganda co-
mercial e política”.
A norma constitucional anteriormente citada nada dispõe sobre competên-
cia, senão sobre restrição a um direito fundamental. Mas o fato de estar em
questão um direito individual — matéria de “interesse nacional, e até univer-
sal” — deve ser levado em consideração no momento de se proceder à interpre-
tação das competências constitucionais em matéria de censura a espetáculos
cinematográficos.
Lastreando-se na doutrina norte-americana de Chafee, “valoroso adver-
sário da censura do cinema”, o Ministro Victor Nunes aponta ser preferível a
federalização da censura, caso tenha ela de existir, evitando-se a multiplicidade
de autoridades estaduais e municipais a acarretar risco potencialmente muito
maior de lesão ao direito individual.

48 Registre-se, no entanto, frase interessante do Ministro Hermes Lima: “É preciso partir


do princípio de que a censura é sempre pouco inteligente pelo fato mesmo de ser censura”.

79
Memória Jurisprudencial

Num argumento paralelo, lembrando, com as palavras de Caio Tácito, que


“os conflitos sociais, dia a dia mais agudos, (...) e os primeiros sintomas da
crise econômica, afinal desencadeada em 1929, vão fortalecendo o sentido
intervencionista do Estado, já então no plano federal”, o Ministro Victor
Nunes aponta uma tendência de federalização do poder de polícia.
Análise da repartição constitucional de competências: doutrina
dos poderes implícitos da União:
Afirmados esses pressupostos, o Ministro Victor Nunes passa a desenvolver
considerações sobre a doutrina dos poderes implícitos da União no sistema consti-
tucional de repartição de competências: “a doutrina dos poderes implícitos da
União, embora menos útil na nossa prática constitucional, porque quase sem-
pre desnecessária, tem assento constitucional expresso, já que o art. 18, § 1º,
nega aos Estados os poderes implicitamente confiados à União”.
Em primeiro lugar, rebatendo argumento sustentado pelo Relator, pondera
que a circunstância de a Constituição de 1946 não fazer referência específica à
competência para legislar sobre teatros e cinemas — suprimindo cláusula da
Constituição de 1937, que a atribuía exclusivamente à União — apenas permite
inferir que a matéria deixou de pertencer à competência exclusiva da União, não
podendo chegar-se à conclusão de que tenha sido passada, com exclusividade,
para os Estados.
“O que fez a Constituição vigente foi situá-la na competência concor-
rente, uma vez que esta não se esgota na enumeração do art. 6º da Consti-
tuição”. Esse artigo não excluiu do campo das competências concorrentes nem
os poderes federais implícitos, nem os poderes remanescentes dos Estados. A
falta de explicitação de ambos naturalmente é fonte de incertezas e controvérsias,
cabendo ao Supremo Tribunal Federal delimitá-los, sem excluir a hipótese de
concorrência.
E, em matéria de competências concorrentes, o poder da União há de
prevalecer, no caso de conflito, sobre o dos Estados49. Isso seria, de todo modo,
da essência do federalismo; nesse sentido, o Ministro Victor Nunes vale-se das
idéias de Madison, em O Federalista: a preponderarem leis estaduais sobre as
federais, “o mundo teria visto, pela primeira vez, um sistema de governo
fundado na inversão dos princípios fundamentais de qualquer governo (...)
teria visto um monstro com a cabeça sob a direção dos seus membros”; e,
“convicto desse axioma do federalismo”, completa com frase síntese de seu

49 Na Constituição de 1946, o sistema de competências legislativas concorrentes não


recebia o mesmo tratamento da atual Constituição, na qual um dispositivo específico
(art. 24) arrola matérias e prevê critérios pelos quais se exerce a concorrência (normas

80
Ministro Victor Nunes

pensamento, exposto em Problemas de Direito Público: “na competência con-


corrente (...), a supremacia da lei federal é indiscutível”. Nesse sentido, aliás,
há precedentes na jurisprudência do Tribunal: RMS 9.573, RMS 8.825, RE
48.198, RE 51.485, RE 51.575 e RE 52.103.
Passa, então, o Ministro Victor Nunes a apontar diversos dispositivos so-
bre competência legislativa da União nos quais estaria implícita a competência
para legislar sobre censura cinematográfica:
a) “o cinema é, modernamente, um dos principais veículos de comuni-
cação do pensamento, além de ser um instrumento de poderosa eficácia na
propaganda comercial e política, sobretudo com o recente desenvolvimento
da propaganda subliminal. Sob este aspecto, não pode escapar da com-
petência federal para legislar sobre o direito substantivo (direito político,
civil, comercial, penal — art. 5º, XV, a)”;
b) “é (...) inconstestável a sua (do cinema) influência, benéfica ou
maléfica, no plano das relações internacionais, na preparação de um ambi-
ente de paz ou de guerra”, matérias de competência da União (art. 5º, I e II);
c) “o cinema é de inestimável valia no terreno da educação” e compete
à União legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional (art. 5º, XV, d);
d) a indústria do cinema também se relaciona com “produção e consu-
mo” e com “comércio exterior e interestadual”, matérias de competência
legislativa da União (art. 5º, XV, c e k);
e) dados os possíveis efeitos perniciosos do cinema, há que lembrar da
competência federal para legislar sobre direito penal e defesa e proteção da saúde
(não apenas física, mas mental) (art. 5º, XV, b);
f) “no que respeita a filmes estrangeiros, (...) não podemos esquecer a
competência federal para ‘superintender’ (...) os serviços de polícia marítima,
aérea e de fronteiras (art. 5º, VII)”; e
g) por fim, é o cinema assunto de interesse nacional, sendo que o “princí-
pio geral da competência da União” é a “natureza nacional, e não apenas
regional, da matéria”.
Desse último aspecto, o Ministro Victor Nunes extrai ainda um argumento
contrário à alegação da necessidade de respeito a peculiaridades locais, a ensejar a

gerais federais, etc.). No sistema de 1946, além do disposto no art. 18, § 1º, acima já
transcrito, cuidava da matéria o art. 6º: “A competência federal para legislar sobre as
matérias do art. 5º, n. XV, letras b, e, d, f, h, j, o e r, não exclui a legislação estadual
supletiva ou complementar”.

81
Memória Jurisprudencial

prevalência da censura estadual: “havemos de confiar em que o legislador fede-


ral tenha o necessário discernimento para deixar certa margem de apreciação
das condições locais” aos Estados ou Municípios. Mas isso não é “um problema
de direito constitucional, e sim de política legislativa, cuja deliberação cabe
não ao Judiciário, mas ao Congresso e ao Presidente da República”.
Demonstra, ainda, o Ministro Victor Nunes, com exemplos hipotéticos, o
absurdo de se pretender, no âmbito das competências concorrentes, dar supre-
macia à legislação estadual: suponha-se um filme proibido nacionalmente (por
comprometer a segurança das instituições ou as relações internacionais) que
todos os Estados, individualmente, decidissem liberar em seu território — na prática,
restaria inócua a proibição federal; ou, então, suponha-se que filme oficial produ-
zido no âmbito federal pudesse ser censurado pelos Estados.
Análise da questão no plano legislativo:
Concluindo a seqüência de seus argumentos, o Ministro Victor Nunes passa
a tratar da questão no plano legislativo. Produz, então, minuciosa análise dos
diplomas legais e regulamentares que dispuseram sobre a censura a cinema, des-
de o regime do Estado Novo até o Governo Café Filho, passando pelas maiores
alterações, havidas no período de José Linhares.
Essa análise, que não parece ser de interesse atual, leva-o à conclusão de
vigorar a competência concorrente dos entes da Federação na matéria de censura.
Ainda é importante frisar que Minas Gerais não possuía lei estadual sobre
a censura. Desse modo, mesmo que se pretendesse admitir a prevalência da
legislação estadual quanto a censura, faltaria, no caso concreto, poder ao Gover-
nador para proceder à proibição do filme em questão.
Nesse sentido, refutando argumentos da autoridade coatora, o Ministro
Victor Nunes cita lições de Caio Tácito, “que é, hoje, um dos nossos melhores
especialistas em Direito Administrativo”, para sustentar que não há a possibili-
dade do exercício de poder de polícia que não seja fundado em lei. Diz Caio
Tácito: “é, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza dis-
cricionária, que o controle da legalidade do fim objetivado na ação admi-
nistrativa adquire relevo especial (...) O exercício do poder de polícia pres-
supõe, inicialmente, uma autorização legal explícita ou implícita atribuindo
a um determinado órgão ou agente administrativo a faculdade de agir”.
Poder de polícia e eficácia da força material disponível:
Votando depois do Ministro Victor Nunes, o Ministro Candido Motta intro-
duz novo argumento na discussão:
.
82
Ministro Victor Nunes

“A competência em matéria de censura teatral e cinematográfica


envolve sempre a capacidade que tem todo o poder de se fazer obede-
cido. As constituições e as leis, quer nos Estados unitários, quer nos
Estados federais inclinam-se, por meio de suas leis, a essa realidade.
(...) No Brasil republicano e descentralizado pela Federação, o pro-
blema do teatro e do filme se tornou difícil, porque ‘cada terra com
seu uso, cada roda com o seu fuso’.”
O Ministro Victor Nunes, na seqüência, produz “reiteração de voto”, em
que reafirma seu ponto de vista e rebate especialmente o ponto levantado pelo
Ministro Candido Motta:
“Permito-me ponderar, quanto ao princípio de que o poder de
polícia está ligado à eficácia da força material disponível, que esse
princípio é mais político do que jurídico. Mesmo no tocante à polícia
de segurança, quando é insuficiente a força da autoridade local,
pode ela socorrer-se das forças armadas federais, sem que isso im-
porte transferência de competência. Politicamente, é recomendável
que a competência e a força material para torná-la eficaz estejam
combinadas, mas, juridicamente, não é necessário que sempre se ve-
rifique essa conjugação. Do contrário, para citar um só exemplo, o
Supremo Tribunal não poderia ter feito prevalecer a polícia sanitária
da União no tocante à inspeção de produtos derivados da carne,
porque as autoridades locais é que, em cada Município, dispõem dos
meios materiais adequados ao exercício desse poder. Entretanto, o
Supremo Tribunal afirmou, em tais casos, a preponderância do poder
de polícia federal, fazendo prevalecer a inspeção da autoridade fe-
deral sobre a da autoridade municipal.”
Conclusão:
O Ministro Victor Nunes, para concluir, posiciona-se: “assim, data venia
do eminente Ministro Relator, a cuja preocupação pelas variações do senti-
mento de moralidade pública também me associo, com a convicção de quem
viveu muitos anos em cidade do interior, dou provimento ao recurso, para
fazer prevalecer a censura federal sobre a estadual. De futuro, os poderes
competentes encontrarão, para esse problema, a solução que lhes parecer
mais adequada, sob a inspiração do interesse público, sem prejuízo da
competência constitucional da União”.
Como resultado do julgamento, o Tribunal negou provimento ao recurso,
admitindo a prevalência do poder dos Estados de censura dos espetáculos e diver-
sões públicas, com fundamento no art. 18, § 1º, da Constituição. Restaram venci-
dos os Ministros Victor Nunes, Evandro Lins, Hermes Lima e Vilas Boas.
.
83
Memória Jurisprudencial

Habeas Corpus 41.296

Julgamento histórico: caso da ameaça de impeachment


do Governador Mauro Borges Teixeira — Compe-
tência para julgamento — Autonomia dos Estados —
Respeito à instância política estadual.

Trata-se de caso catalogado como histórico no sítio de internet do Supremo


Tribunal Federal.
Os advogados Heráclito Fontoura Sobral Pinto e José Crispim Borges
impetraram habeas corpus preventivo em favor de Mauro Borges Teixeira,
Governador de Goiás, ameaçado de impeachment e prisão, pela alegada prática
de crimes contra o Estado e a ordem política e social, cuja apuração se impunha
pelo Ato Institucional de 9 de abril de 1964.
A apuração dos crimes foi feita por meio de inquérito policial militar, sob a
direção do General Riograndino Kruel, Chefe do Departamento Federal de Segu-
rança Pública.
Alegaram os impetrantes que, desde que vitorioso o movimento de 1964,
os adversários políticos do Governador, eleito livremente pelo povo, vinham-se
empenhando para afastá-lo do Governo, valendo-se de expedientes escusos.
Nesse sentido, o citado inquérito teria forjado prova de supostos atos subversivos
praticados pelo Governador, no exercício do cargo.
Pediram, assim, habeas corpus preventivo para o fim de ser o paciente
processado e julgado no foro especial que lhe era assegurado pela Constituição
estadual — Assembléia Legislativa, nos casos de crimes de responsabilidade; e
Tribunal de Justiça, nos casos de crime comum, após declarada a procedência da
acusação pela Assembléia Legislativa — e não submetido à Justiça Militar, in-
competente para o processo:
“Nem o Presidente da República, nem o Ministro da Justiça,
nem o Chefe de Polícia do Departamento Federal de Segurança Pú-
blica podem tomar quaisquer medidas que impliquem cerceamento da
liberdade do paciente pelos atos, ainda que subversivos ou de
corrupção, por ele praticados no exercício do seu cargo de Governa-
dor de Goiás”.
O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, tendo deferido a medida liminar
requerida pelos impetrantes, vota posteriormente pela concessão da ordem.
Em seu voto, no qual acompanha o Relator, o Ministro Victor Nunes, sem-
pre prestigiando a jurisprudência do Tribunal, inicia observando que, “depois dos
.
84
Ministro Victor Nunes

doutíssimos votos” que acabara de ouvir, “não seria necessário trazer novas
considerações”. Mas, pela relevância do processo, pareceu-lhe “conveniente
comprovar que vários aspectos que ele oferece ao nosso exame já têm sido
apreciados por este Tribunal. Não estamos desbravando floresta virgem,
mas palmilhando caminho pavimentado pela jurisprudência”.
Em primeiro lugar, discutiu-se a competência originária do Supremo Tribu-
nal, porque o Presidente da República negara categoricamente qualquer partici-
pação pessoal nos acontecimentos de Goiás.
Porém, a competência do Tribunal para conhecer de habeas corpus em
casos urgentes, mesmo que a autoridade coatora não esteja sob sua jurisdição,
está sedimentada desde a Lei 221, de 1894, posteriormente assentando-se sobre
fundamento constitucional desde 1934; e dispunha, então, a Constituição de 1946,
em seu art. 101, I, h, in fine, sobre competência originária do Supremo Tribunal
Federal para processar e julgar:
“o habeas corpus, quando o coator ou paciente for Tribunal,
funcionário ou autoridade cujos atos estejam diretamente sujeitos à
jurisdição do Supremo Tribunal Federal; quando se tratar de crime
sujeito a essa mesma jurisdição em única instância; e quando hou-
ver perigo de se consumar a violência, antes que outro Juiz ou Tribu-
nal possa conhecer do pedido”.
Nesse sentido, cita célebres julgados, entre eles o Habeas Corpus 4.781,
julgado em 1919, assegurando a Rui Barbosa e seus correligionários a liberdade
de reunirem-se para promover atos de sua campanha presidencial.
Em segundo lugar, lembra inúmeros julgados do Tribunal, para afirmar que,
segundo a interpretação do disposto no art. 141, § 23, da Constituição de 194650,
sobre habeas corpus preventivo, não é necessário que se comprove a realidade
da violência iminente; “bastam fundados motivos ou razões fundadas para
recear a violência”. Ou seja, não é necessário que se prove a iminência da
coação, mas sim que se justifique o receio.
Um terceiro aspecto que menciona, com base na jurisprudência daquela
Corte, é ser de competência federal legislar sobre crimes de responsabilidade dos
titulares de elevadas funções públicas, entre eles os Governadores de Estado.
Já afirmara o Tribunal em algumas ocasiões, desde o início do Século XX —
HC 2.385, de 1906; HC 4.116, de 1917; Rp 97, de 1947; Rp 111, de 1948; RMS
4.928, de 1957 —, a competência federal para a matéria. Desse modo, seria

50 “Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de
poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus”.

85
Memória Jurisprudencial

constitucional a Lei federal 1.079/50, restando aos Estados dispor sobre aspectos
específicos, como o órgão jurisdicional competente para o julgamento.
Na seqüência, o quarto aspecto analisado, em decorrência da aplicação,
ao caso, da Lei 1.079/50, é a necessidade de antecedência do processo de
impeachment quanto a eventual processo perante a justiça comum, nos crimes
de responsabilidade dos titulares dos poderes políticos.
Para sustentar a tese da precedência do julgamento político nos crimes de
responsabilidade, remonta à doutrina de Pimenta Bueno e a expressos dispositivos
constitucionais, desde a Constituição de 189151, assim como à jurisprudência do
Tribunal (citando expressamente a aplicação da tese quanto aos Prefeitos, deci-
dida nos casos acima analisados — cf. RHC 39.708).
O quinto ponto desenvolvido dizia respeito ao enquadramento, no rol de
crimes de responsabilidade definido pela Lei 1.079/50, da “atividade subversiva”
de que era acusado, no caso, o Governador.
Essa mesma atividade, nos termos da Lei de Segurança Nacional, recairia
na competência da Justiça Militar.
Todavia, consoante a Lei 1.079/50, o julgamento dos crimes de responsabi-
lidade dos Governadores se desdobra em dois juízos: o de acusação ou pronúncia,
pela Assembléia Legislativa; e o de julgamento, pelo órgão indicado pela Consti-
tuição estadual, ou, em sua falta, pelo tribunal misto, regulado na Lei 1.079/50. No
caso, como visto, a Constituição goiana previa a competência, para julgamento, da
própria Assembléia Legislativa; ou, fosse crime comum, do Tribunal de Justiça.
Um penúltimo aspecto abordado referia-se ao argumento de que a Constitui-
ção do Estado, ao dar competência ao Tribunal de Justiça para julgar o Governador
“nos crimes comuns”, não incluiria os crimes militares; o mesmo raciocínio seria
aplicado à Lei 1.079/50, ao ressalvar a competência da justiça comum (art. 78).
Contudo, mostra o Ministro Victor Nunes que, em tais normas as expres-
sões “crime comum” e “justiça comum” estão empregadas em oposição a “crime
de responsabilidade” e “juízo político”. “A expressão justiça comum abrange,
portanto, todos os ramos da justiça, que não sejam de caráter político,
inclusive a Justiça Militar, e a expressão crimes comuns, todos os crimes
que não sejam de responsabilidade, sem excluir os militares”.

51 Assim previa a Constituição de 1946, art. 88: “O Presidente da República, depois que
a Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, declarar
procedente a acusação, será submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal
Federal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos de responsabilidade”.

86
Ministro Victor Nunes

Argumenta, ainda, ad absurdum para demonstrar que, a prevalecer a in-


terpretação diversa, o Presidente da República e todos os demais detentores de
foro constitucional especial de julgamento estariam submetidos à Justiça Militar
nos crimes militares — sendo que, por força de aplicação de lei que trata daquela
Justiça, os Ministros dos demais tribunais superiores, que não o Militar, acaba-
riam julgados pela Justiça Militar de primeira instância. Esse entendimento, aliás,
contraria decisão do Supremo Tribunal Federal no então recentemente julgado
HC 41.049.
“Haveremos, pois, de concluir que também a Justiça Militar,
quando o crime de responsabilidade for igualmente crime militar, não
pode atuar antes do processo de impeachment, ou antes da cessação
do exercício do acusado, se por alguma razão tiver competência”.
Por fim, conclui, com ponderações políticas de extrema profundidade e
lucidez, demonstrando como a atribuição de competência às Casas parlamenta-
res, no julgamento dos detentores de altas funções de Estado, é decorrência do
livre exercício dos poderes políticos, poderes esses emanados do povo. Esse sis-
tema estaria comprometido se tais autoridades políticas pudessem ser presas ou
ter seus poderes suspensos por decisão de qualquer juiz de primeira instância.
A extensão de tal conclusão ao caso dos Governadores de Estado, não
fosse por si evidente, pode ser sustentada como um aspecto da autonomia dos
Estados-Membros da Federação: o impeachment há de se passar no âmbito
estadual — perante autoridades indicadas pela respectiva Constituição —, ainda
que observadas leis federais.
A única exceção constitucional, pela qual autoridades estaduais podem ser
afastadas por decisão de autoridade federal, é o caso de intervenção federal, o
que não contempla a hipótese de prisão preventiva de Governador por despacho
de juízes de primeira instância.
Ainda que longo o trecho em que tais idéias são desenvolvidas, vale sua
transcrição na íntegra:
“A Constituição Federal, inspirando-se no regime norte-ameri-
cano, instituiu todo esse mecanismo para, de um lado, reprimir a falta
de exação no exercício das altas funções do Estado e, de outro, ga-
rantir eficazmente o livre exercício dos poderes políticos, porque
‘todo poder emana do povo’ (art. 1º). Para destituir os governantes,
dada a relevância da função política, o prévio julgamento dos seus
atos é realizado, pelo menos em uma das fases, por um órgão político,
que também deriva a sua legitimidade da mesma fonte, isto é, do
povo, através de eleições.
.
87
Memória Jurisprudencial

A contraprova dessa garantia está em que a Constituição define


como crimes de responsabilidade, mesmo para o Presidente da Repú-
blica, atentar contra o livre exercício dos poderes constitucionais,
seja da União, seja dos Estados (art. 89, II).
Outra evidência de que é o exercício do poder político que se
protege encontramos na circunstância de não ser necessário o prévio
julgamento político, quando o titular já estiver afastado do cargo,
como decidiu o Supremo Tribunal no Caso Epitácio Pessoa. Em tal
hipótese, o que subsiste é o foro especial, para proteção da pessoa do
ex-governante, se a acusação se funda em ato praticado no exercício
do cargo. Assim tem decidido o Supremo Tribunal, não só no Caso
Epitácio como em diversos outros, referidos nas Súmulas 394 e 306.
Todo esse mecanismo de salvaguarda do exercício dos poderes
políticos ruiria, se o Presidente da República ou os Governadores
dos Estados pudessem ser presos e, portanto, suspensos ou destituí-
dos por um simples despacho da Justiça Comum (incluindo nessa ex-
pressão a Militar), sobretudo de juízes de primeira instância. Se isso
fosse possível, os juízes, mesmo os inferiores, é que governariam o
país, em lugar dos titulares legitimados pelo voto popular, de onde
emana o poder.
Que esse sistema protetivo também ampara os poderes constitu-
cionais dos Estados não pode haver a menor dúvida. Em primeiro
lugar, como já sublinhado, porque atentar contra o exercício desses
poderes também constitui crime de responsabilidade, por expressa
disposição constitucional (artigo 89, II). Em segundo, porque esta
conclusão se impõe sob o ângulo da autonomia estadual.
A permanência dos Governadores em seus cargos é apenas um
aspecto da autonomia dos Estados, garantida pelo regime federativo
que adotamos há 75 anos. Quando, para afastá-los, é posto em movi-
mento o processo político do impeachment, tudo se passa no âmbito
do Estado. São observadas as leis da União, mas fica resguardada a
autonomia estadual.
Para que o afastamento possa resultar de ato de autoridade fe-
deral, a Constituição estabeleceu a válvula da intervenção, definindo
os casos em que será decretada. Mas não prevê outra forma de ampu-
tação da autonomia estadual, e o processo da intervenção está a cargo
do Presidente da República, do Congresso Nacional, do Supremo Tri-
bunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com suas atribuições
minuciosamente definidas na própria Constituição (arts. 7 a 14).
.
88
Ministro Victor Nunes

Nesse sistema fechado, não há base na Constituição para essa


forma indireta de intervenção federal, que consistiria na prisão preven-
tiva do Governador por despacho de juízes de primeira instância. Se
pudesse haver uma deposição tão sumária, que federação seria esta?”
O Ministro Victor Nunes, com essas considerações, vota com o Relator
pela concessão da ordem. E esta é a posição unânime do Tribunal:
“O Supremo Tribunal Federal não conheceu do pedido de
habeas corpus em relação à alegada coação do Presidente da Repú-
blica, mas, prevenindo a jurisdição, conhecendo do habeas corpus,
deferiu-o para que não possa a Justiça Comum ou Militar processar
o paciente sem o prévio pronunciamento da Assembléia Estadual, nos
termos do art. 40 da Constituição do Estado de Goiás”52.

Representação 748

Vinculação de tributos — Previsão de reserva de


percentual orçamentário para fundo ligado à educação
e à cultura — Argumentos de natureza política — Influ-
ência da experiência pessoal dos Ministros na interpre-
tação da Constituição.

Esta representação foi apresentada por solicitação do Governador do


Estado da Guanabara, questionando a constitucionalidade de três dispositivos da
Constituição estadual de 1967. Dois deles53 foram objeto de discussão, gerando
divergência no Tribunal.
O primeiro era o § 4º do art. 80: “o orçamento do Estado consignará ao
Fundo Estadual de Educação e Cultura nunca menos de 22 por cento da
despesa total aprovada no exercício orçamentário anterior”.

52 O Ministro Hahnemann Guimarães registrou considerar a Justiça Militar incompetente.


Pode ser interessante registrar ainda, a fim de ilustrar ocasião em que o momento político
permeia o pensamento de Ministro do Supremo Tribunal Federal, a consideração que
explicitamente o Ministro Pedro Chaves fez em seu voto: “Recebi a Revolução de 31 de
março como uma manifestação da providência divina em benefício da nossa Pátria.
Não me mantive antes em atitude contemplativa. Tive a coragem de alertar a Nação, em
discurso de 11 de agosto de 1962, para o desfiladeiro tenebroso a que estávamos sendo
conduzidos. Resta-me, ainda hoje, ânimo para conceder a ordem de habeas corpus que
nos foi impetrada, para salvar com ela a ordem jurídica, único caminho pelo qual o
eminente Sr. Presidente da República poderá conduzir a Nação Brasileira, como é de
seu desejo, aos seus gloriosos destinos”.
53 Quanto ao outro, atinente a competência para julgamento de determinadas autorida-
des por crime comum e de responsabilidade, houve rejeição unânime da argüição de
inconstitucionalidade.

89
Memória Jurisprudencial

Esse dispositivo foi tido por inconstitucional pelo Ministro Relator, Amaral
Santos, acompanhado pela maioria, por violação da norma constitucional federal
que vedava a vinculação de tributos a determinado órgão, fundo ou despesa (art.
65 da Constituição de 1967).
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, entendia que o dispositivo impugnado
não violava a Constituição Federal. Nesse sentido, lembra que o próprio art. 6554 já
relativizava o princípio da não-vinculação da arrecadação de tributos.
Mas o argumento definitivo é o de que a Constituição estadual não estaria
criando vinculação de tributo a despesa determinada — “o que nele [no disposi-
tivo da Constituição Federal] parece vedado é a vinculação da receita, no
momento em que é criada” —, e sim disciplinando o modo de se distribuir a
despesa, tomando por referência a despesa passada, do exercício anterior.
Ou seja, a Constituição estadual não estaria impondo que determinado tri-
buto tivesse a receita decorrente de sua arrecadação vinculada a determinada
despesa. Diferentemente disso, estaria, sim, determinando que, do montante ge-
ral de despesas, uma certa porcentagem deveria corresponder ao Fundo Estadual
de Educação e Cultura. E conclui com considerações de ordem política:
“A Constituição só proíbe que se vincule determinada receita,
ainda assim com várias exceções por ela previstas. Por isso, não me
parece que seja manifestamente inconstitucional o dispositivo impug-
nado. A Constituição adotou um critério político-administrativo. Pôs
ênfase nos serviços de educação, para impedir que o legislador ordi-
nário seja negligente a esse respeito.55
Fala-se muito em desenvolvimento. O professor Jacques Lambert,
que escreveu notável estudo sobre a sociedade dualista, incluindo nesse

54 Art. 65, § 3º. “Ressalvados os impostos únicos e as disposições desta Constituição, e de


leis complementares, nenhum tributo terá a sua arrecadação vinculada a determinado
órgão, fundo ou despesa. A lei poderá, todavia, instituir tributos cuja arrecadação cons-
titua receita do orçamento de capital, vedada sua aplicação no custeio de despesas
correntes”.
55 Presentemente, aliás, a vinculação de despesas, por exemplo, às áreas da educação e
da saúde é prática adotada pela Constituição Federal e por Constituições estaduais. E a
Constituição Federal também prevê a vedação da vinculação da receita de impostos —
aqui note-se diferença: não tributos, mas impostos — a órgão, fundo ou despesa (art. 167,
IV). Esse mesmo dispositivo, todavia, ressalva a destinação de recursos para a saúde e a
educação, sugerindo a interpretação de que seriam modalidades, excepcionalmente admi-
tidas, de vinculação de receitas e não de despesas. Ou seja, parece que o constituinte de
1988 perfilha o mesmo entendimento que prevaleceu neste julgamento, contra a posição
do Ministro Victor Nunes. Ou, ao menos, quis expressamente fazer a ressalva para afastar
eventual dúvida.

90
Ministro Victor Nunes

tipo a brasileira, demonstrou que não é possível um desenvolvimento


harmônico de tais sociedades sem maciço investimento na educação. A
Constituição da Guanabara atende a essa realidade. Pode ser discutí-
vel a orientação, mas não me parece que haja inconstitucionalidade,
muito menos inconstitucionalidade manifesta”.
No entanto, o Ministro Victor Nunes, compartilhando essa posição com o
Ministro Evandro Lins, vota vencido nesse ponto. E o § 4º do art. 80 da Constitui-
ção da Guanabara é declarado inconstitucional.
O outro dispositivo impugnado e objeto de divergência entre os Ministros
era o art. 92: “a lei assegurará a participação de um representante dos em-
pregados e da oposição parlamentar na gestão das sociedades de econo-
mia mista”.
O Ministro Relator, Amaral Santos, votou pela inconstitucionalidade da ex-
pressão “e da oposição parlamentar”, entendendo-a incompatível com o dispo-
sitivo da Constituição de 1967 (art. 36), que proibia parlamentares de exercerem
cargos em empresas de economia mista.
O Ministro Victor Nunes divergiu, acompanhando o Ministro Evandro
Lins, que, admitindo esse mesmo fundamento, entendia que bastava o reconheci-
mento da inconstitucionalidade da expressão “parlamentar”56, tendo sido intuito
do constituinte estadual reforçar a fiscalização das sociedades de economia mis-
ta por meio da participação, em sua gestão, de membro da oposição ao governo.
A propósito, o Ministro Victor Nunes travou interessante debate com o
Ministro Adaucto Cardoso, sobre influência da experiência pessoal dos Ministros
na interpretação da Constituição:
“O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: A minha experiência sobre
os desajustamentos entre a realidade partidária brasileira e aquilo
que o dispositivo constitucional visa...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Isso não seria proibição constitu-
cional, mas fruto da experiência pessoal de V. Exa.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: A interpretação da Constitui-
ção deve ser também fruto da experiência. V. Exa. nega que devamos
cercar nosso entendimento da Constituição de todas as cautelas que
a experiência nos dita?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Tenho dúvida se nossa experiência
pessoal deve prevalecer sobre a experiência dos constituintes.

56 Argumentou o Ministro Evandro Lins que, “evidentemente, o que teve em vista o


constituinte estadual da Guanabara foi que um representante da oposição participasse

91
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Amaral Santos (Relator): Também fico surpreen-


dido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Nossa experiência pode valer
como argumento, mas não como vedação constitucional. Aquilo que
cada um de nós acha nocivo ou benéfico não é razão de ordem
constitucional; é razão de convencimento pessoal.”
A posição dos Ministros Victor Nunes e Evandro Lins, acompanhados pe-
los Ministros Luiz Gallotti (Presidente) e Gonçalves de Oliveira, quanto a esse
aspecto da representação, resta vencida. Prevaleceu o reconhecimento da in-
constitucionalidade da expressão “e da oposição parlamentar”57.

Representação 775

Competência legislativa em matéria de edificações


urbanas — Autonomia municipal.

Este caso, tratado em acórdão bastante sucinto, traz, ainda que de passa-
gem, referência a tese relevante para a matéria de competências dos entes fede-
rativos.
Discute-se a inconstitucionalidade de norma da Constituição do Estado do
Espírito Santo que fixara, genericamente para todas as “cidades litorâneas” do
Estado, exceto a Capital, limitações quanto a localização e gabaritos de edifica-
ções nas proximidades do mar.
Sustentava-se na representação que tal norma violava a autonomia muni-
cipal, por invadir sua competência em matéria de disciplina das edificações. Esse
argumento foi acolhido pelo Ministro Relator, Lafayette de Andrada.
O Ministro Victor Nunes acompanha o Relator, por entender incabível tal in-
terferência de norma estadual, de modo amplo e genérico, na matéria em questão.
Todavia, na motivação de seu voto, faz ressalva no sentido de que poderia
haver hipóteses nas quais o exercício de competências constitucionais pelos Esta-
dos ou pela União acarretasse, legitimamente, restrição à competência municipal
em matéria de edificações urbanas.

da direção das sociedades de economia mista e quis exprimir, mas a língua não o
ajudou, que esse representante seria designado pela oposição parlamentar”, mas não
que fosse um parlamentar.
57 Já os Ministros Thompson Flores e Themistocles Cavalcanti consideravam o disposi-
tivo integralmente inconstitucional.

92
Ministro Victor Nunes

É o que se passa, por exemplo, com limitações a edificações em áreas


contíguas a sítios históricos, ou a aeroportos, ou ainda a fortes militares, limita-
ções essas decorrentes de normas federais.
No caso do Espírito Santo, em certas localidades onde há areias monazíti-
cas, o Ministro Victor Nunes, argumentando por hipótese, afirma não estar con-
vencido de que não possa existir razão pela qual o Estado exerça competência
própria, restringindo a competência municipal ora discutida.
No entanto essa hipótese não se verificava no caso. E a citada norma da
Constituição do Espírito Santo é julgada inconstitucional por votação unânime.

Representação 676

Ingresso de professores de ensino primário na rede


pública independentemente de concurso público — In-
gresso a partir de curso específico de formação —
Competência legislativa em matéria de ensino primário.

Discutia-se, nesta representação, a constitucionalidade de dispositivo da


Constituição do Estado da Guanabara, que permitia o ingresso de professores da
rede pública do ensino primário independentemente de concurso público.
Como esclarecido pelo Ministro Aliomar Baleeiro, bom conhecedor da si-
tuação de fato naquele Estado, “na Guanabara, para o recrutamento das pro-
fessoras primárias, não há o processo comum do concurso. Adotou-se pro-
cesso diferente, mas eficaz [e adianta que não lhe parece vedado pela Constitui-
ção Federal]. O Estado da Guanabara não abre concurso para provimento
das cadeiras de professora primária. O concurso é a admissão no órgão do
Estado, o Instituto Normal, para o curso ali a ser feito. O exame é
rigorosíssimo, verdadeiro concurso cada ano. Todas as candidatas que lo-
gram aprovação no concurso de habilitação para essa escola e que fazem
o curso ali, com aprovação mínima, têm direito a uma vaga de professora58.
Nessa escola, há um padrão de ensino e um rigor mais elevados do que nos
colégios particulares”.
Ocorre que o Ministro Relator, Candido Motta, entendia a regra inconstitu-
cional, por violar o princípio da igualdade (Constituição de 1946, art. 141, § 10), na
medida em que criava discriminação em favor de alunos que estudassem em
determinado estabelecimento público: apenas eles teriam acesso aos cargos.

58 E compara com procedimentos análogos, por exemplo, para ingresso na carreira diplo-
mática, via curso do Instituto Rio Branco, ou em carreiras militares, via as respectivas
escolas.

93
Memória Jurisprudencial

Além disso, argumenta que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-


cional (LDB — Lei 4.024/61) tinha regra expressa (arts. 19 e 58) vedando que
haja distinção de direitos de alunos que tenham realizado estudos em estabeleci-
mentos públicos e alunos oriundos de estabelecimentos particulares, para acesso
à carreira do magistério. Essa lei, sendo de competência privativa da União, não
poderia deixar de ser aplicada por força de norma estadual.
A matéria é objeto de intensos e ricos debates sobre aspectos do tratamento
constitucional da educação, do federalismo e de exemplos estrangeiros. Mas,
para sintetizar os principais argumentos em sentido contrário ao defendido pelo
Ministro Relator, pode-se referir a posição sustentada pelo Ministro Aliomar Ba-
leeiro, situando a matéria não no âmbito da LDB, e sim no âmbito da legislação
sobre ingresso em carreira pública.
A propósito, intervém o Ministro Victor Nunes para observar que a Cons-
tituição de 1946, no art. 168, VI, a contrario sensu, excepciona, para o provi-
mento do cargo de professor primário, a exigência de concurso público: “para o
provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial
ou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas”.
E, respondendo a argumento do Ministro Eloy da Rocha — que reitera a
prevalência da LDB —, o Ministro Victor Nunes situa o cerne dos debates como
sendo os limites à legislação federal em matéria de ensino primário, para prosse-
guir questionando que a competência da União para estabelecer diretrizes e ba-
ses da educação nacional importe em exclusividade para dispor sobre o ensino
primário; sendo diversa a situação do ensino superior, este de competência exclu-
siva da União, por disposição constitucional.
Nesse sentido, sugere que os Estados possam estabelecer exigências di-
versas e mais rigorosas em matéria de ensino primário. Desse modo, os invoca-
dos dispositivos da LDB não seriam inconstitucionais, mas não se aplicariam a
casos em que o Estado mantém ensino primário oficial.
Esta representação acaba julgada improcedente, posto não haver sido al-
cançado o quorum para declaração de inconstitucionalidade, ainda que a maioria
votasse pela procedência. Votaram pela constitucionalidade da norma da Consti-
tuição da Guanabara os Ministros Victor Nunes, Hermes Lima, Aliomar Baleeiro,
Evandro Lins e Adalício Nogueira.
Representação 760
Ingresso de professores de ensino primário na rede
pública independentemente de concurso público — Ar-
gumentos de natureza política e social — Competência
legislativa em matéria de ensino primário.

94
Ministro Victor Nunes

A argumentação apresentada pelo Ministro Victor Nunes na Rp 676 é


mais desenvolvida em caso que também se refere à questão do concurso público
para o magistério primário oficial.
Ocorre que, neste segundo caso, a norma de Constituição estadual —
agora, de Pernambuco — impugnada dizia respeito não diretamente a regra de
ingresso na carreira, mas sim a regra de efetivação de professores primários,
prevendo, para tanto, prazo mais curto que o estabelecido no art. 177, § 2º59, da
Constituição de 1967, então recentemente promulgada.
No entanto, surge, incidentalmente, debate entre o Ministro Relator,
Aliomar Baleeiro, e o Ministro Victor Nunes sobre a manutenção ou não, no
regime de 1967, da dispensa constitucional para concurso de provimento do cargo
público de professor primário.
Sustenta o Ministro Victor Nunes que o dispositivo da nova Constituição60
dava à matéria o mesmo tratamento do dispositivo equivalente na Constituição de
194661. Já o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, entende que a Constituição de
1967 estabeleceu como regra para o provimento de qualquer cargo público o
concurso; nesse sentido, o art. 168, § 3º, V, apenas trataria separadamente do
magistério no ensino médio e no superior em razão de ser exigido, para estes,
concurso de provas e títulos — e esse dispositivo não admitiria interpretação a
contrario sensu quanto ao ensino primário.
Nesses debates, o Ministro Victor Nunes reforça sua interpretação da
Constituição com relevantes argumentos extraídos da realidade brasileira:
“A prática da Constituição de 1946 foi no sentido de que os
Estados podiam exigir, ou não, o concurso.
O recrutamento para o magistério primário, sobretudo no inte-
rior, especialmente para as escolas rurais, é um problema tormentoso,
em todo o País. É muito difícil conseguir-se que o professor
diplomado, em condições de se submeter a concurso, aceite ensinar
em distrito rural. Há mesmo carência de professores, no país, com tais

59 “São estáveis os atuais servidores da União, dos Estados e dos Municípios, da admi-
nistração centralizada ou autárquica, que, à data da promulgação desta Constituição,
contem, pelo menos, cinco anos de serviço público.”
60 Art. 168, § 3º “A legislação do ensino adotará os seguintes princípios e normas: (...)
V - o provimento dos cargos iniciais e finais das carreiras do magistério de grau médio
e superior será feito, sempre, mediante prova de habilitação, consistindo em concurso
público de provas e títulos quando se tratar de ensino oficial”.
61 Art. 168. “A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: (...) VI - para o
provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior oficial ou livre,
exigir-se-á concurso de títulos e provas”.

95
Memória Jurisprudencial

requisitos. Atendendo a essa realidade, a Constituição de 1946 dis-


pôs, no art. 168, VI (como no mesmo sentido dispõe a atual, no art.
168, V):
‘VI - para o provimento das cátedras, no ensino secun-
dário oficial e no superior oficial ou livre, exigir-se-á concur-
so de títulos e provas. Aos professores, admitidos por concurso
de títulos e provas, será assegurada a vitaliciedade;’
A Constituição atual só foi mais rigorosa quanto ao princípio
geral do concurso para o provimento dos cargos públicos de carrei-
ra, ou isolados, passando a exigir que o concurso seja público,
constando de provas ou de títulos e provas (art. 95, § 1º).”
E ainda usa raciocínio lógico para, comparando os textos das Constituições
de 1946 e 1967, demonstrar que o espírito da nova norma foi manter a dispensa
de concurso público para o provimento de cargos de professor primário:
“O legislador constituinte podia fazer sua opção. Estou discu-
tindo o problema em face do texto constitucional e peço vênia para
interpretá-lo de modo diverso. O legislador constituinte conhecia o
texto da Constituição anterior, e o redator do projeto, nosso eminente
colega Carlos Medeiros Silva, não ignorava o debate travado no
Supremo Tribunal. Com esse conhecimento, não se limitou a reprodu-
zir o texto anterior. Introduziu-lhe modificações, evidenciando que o
assunto não lhe passou despercebido. Façamos, agora, um confronto
dos dois textos.
(...)
Portanto, a Constituição de 1967 agravou as exigências da
anterior, ao exigir, mesmo para o magistério particular, prova de ha-
bilitação. Se o legislador teve a preocupação de mudar o texto, para
exigir mais que a Constituição anterior quanto ao magistério particu-
lar, por que não teria estendido explicitamente aos cargos oficiais do
magistério primário a condição do concurso, se esta tivesse sido a
sua intenção?”
O Ministro Amaral Santos, a seu turno, ressalta outro argumento a apon-
tar a inconstitucionalidade da norma ora questionada da Constituição de Per-
nambuco. Sustenta que, no regime de 1967, seria a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB), e não leis estaduais, que poderia dispensar concurso
público para o magistério primário.
A propósito, o Ministro Victor Nunes admite adotar como fundamento de
seu voto esse argumento; porém ressalta não ser esse o fundamento sustentado

96
Ministro Victor Nunes

pela maioria dos Ministros, ao longo dos debates: “Perdoem os caros colegas
certa veemência do meu voto, que reflete minha preocupação com esse pro-
blema. A maioria está fechando a porta ao legislador federal, que poderia
dispensar o concurso no ensino primário em atenção às condições do país,
pois está dizendo que, por força da Constituição, qualquer cargo público
de ensino primário só pode ser preenchido mediante concurso”.
O Ministro Victor Nunes propõe então ao Tribunal que se conclua pela
inconstitucionalidade da norma, mas que se deixe margem para que posterior-
mente seja produzida “mais profunda reflexão” sobre o problema do concurso
no ensino primário.
Assim, além do argumento da competência do legislador federal para tra-
tar da matéria na LDB, o Ministro Victor Nunes ainda lembra outro fundamento
para a procedência da representação de inconstitucionalidade: a norma pernam-
bucana tem por efeito efetivar “candidatos reprovados em concurso que a lei
estadual ao tempo já exigia. Essa aprovação dos reprovados é que conflita
com o sistema constitucional dos concursos”.
E conclui: “Meu voto é este: acompanho a conclusão do eminente
Relator, mas pela razão que acabei de mencionar. Entendo, como o Sr. Mi-
nistro Evandro Lins, que a Constituição Federal não obriga os Estados a
realizarem concurso para o magistério primário. Este assunto ficou ao cri-
tério dos Estados, ressalvado o que dispuser a lei federal, que pode definir
as diretrizes e bases da educação nacional”.
A representação é, enfim, julgada procedente, contra apenas o voto do
Ministro Evandro Lins.

Representação 669

Repartição constitucional de competências — Com-


petência para legislar sobre atos de diretores de socie-
dades de economia mista e autarquias.

Examinava-se nesta representação, ensejada pelo Governo de São Paulo, a


constitucionalidade da Lei estadual paulista 8.427/64, no tocante a três aspectos:
a) fixação de competência da Assembléia Legislativa para aprovar os nomes
de diretores das sociedades de economia mista indicados pelo Governador do Estado;
b) imposição de que o Governo introduza, nos estatutos das sociedades de
economia mista de que seja acionista majoritário, limite (Cr$ 50.000.000,00) a
partir do qual devam realizar concorrência pública para a contratação de serviços
e obras;

97
Memória Jurisprudencial

c) previsão de nulidade e ineficácia dos atos dos diretores de sociedades


de economia mista ou dos administradores de autarquias cujos nomes não sejam
enviados, pelo Governador, à Assembléia Legislativa para aprovação, dentro do
prazo de trinta dias a contar da respectiva indicação ou nomeação.
A representação fora oferecida antes da vigência da Emenda Constitucio-
nal 16/65, que introduziu a representação de inconstitucionalidade de lei em tese.
Portanto, fundamentava-se em violações do disposto no art. 7º, VII, da Constitui-
ção de 1946, que fixava os princípios “sensíveis”, cuja violação era pressuposto
de intervenção federal mediante representação interventiva. Mas, quando
julgada, a representação pôde ser apreciada com maior amplitude quanto a qual-
quer preceito constitucional violado, nos termos do art. 114, I, l, da Constituição
de 1967.
No caso, argüia-se a colisão da lei estadual com a regra do art. 5º, XV, a,
da Constituição de 1967, que estabelecia competir à União legislar sobre Direito
Civil, Comercial, etc.
Votando como Relator, o Ministro Victor Nunes entende que o primeiro
aspecto está consoante o sentido da Constituição Federal, ao exigir que a indica-
ção de determinados servidores seja aprovada pelo Senado (art. 45, I), além de
harmonizar-se com precedente do Tribunal (Rp 96). E entende que o segundo
aspecto atende perfeitamente ao princípio da moralidade administrativa, não im-
portando violação da Constituição.
Esses dois aspectos inserem-se na competência dos Estados para legislar
sobre Direito Administrativo.
Já o terceiro aspecto — entende o Ministro Victor Nunes — viola a com-
petência federal: “embora, quanto às autarquias, haja matéria de nulidade
regulada na legislação administrativa do Estado, no tocante às sociedades
de economia mista, que operam como empresas privadas, a nulidade dos
seus atos está disciplinada, quase totalmente, no direito federal”.
Além disso, o sistema criado pela lei paulista criaria situação injusta perante
terceiros que acreditassem na aparência de regularidade dos atos praticados pelos
administradores dessas entidades, devidamente indicados ou nomeados, mas
cujos nomes não tenham sido ainda encaminhados para aprovação pela Assem-
bléia Legislativa.
Por essas razões, vota pela procedência em parte da representação, apenas
quanto a esse último aspecto, julgando-a improcedente quanto aos demais. É
acompanhado pelos demais Ministros, exceto, em parte, pelo Ministro Aliomar
Baleeiro que julgava a representação integralmente improcedente.

98
Ministro Victor Nunes

Representação 467
Repartição constitucional de competências — Teo-
ria dos poderes implícitos — Observância de parâmetros
do Distrito Federal pelos Estados — Criação de Tribunal
de Contas.

A questão debatida envolvia a criação do Tribunal de Contas do Estado do


Rio Grande do Norte pela Lei estadual 2.152, quando a Constituição do Estado não
era expressa a respeito62.
Em seu voto, após rejeitar preliminares, o Ministro Relator, Victor Nunes,
lembra precedente, ainda que não idêntico: no caso do Estado do Amazonas, o
Tribunal de Contas fora criado por lei, ante delegação da Constituição estadual
(“a fiscalização da administração financeira do Estado e de seus municípios
será processada de acordo com o definido em lei ordinária”); nessa situação
o Supremo Tribunal Federal, no RE 21.198, Relator Ministro Luiz Gallotti, enten-
deu constitucional a criação daquele órgão. No presente caso, porém, o texto da
Constituição potiguar era diverso, não explicitando delegação: “Art. 35. A admi-
nistração financeira e a execução dos orçamentos do Estado e do Municí-
pio serão fiscalizadas, respectivamente, pela Assembléia Legislativa e Câmaras
Municipais, com auxílio dos órgãos competentes.”
De todo modo, o Ministro Victor Nunes não entende vedada pelo constitu-
inte a criação do Tribunal de Contas, sendo órgão da tradição do Direito brasileiro
a exercer tal função no âmbito dos Estados (o que não se diga quanto a Municí-
pios — daí o precedente de se haver julgado inconstitucional a criação de Tribu-
nal de Contas pelo Município de São João de Meriti: RMS 4.343). Aplica-se aqui
a teoria dos poderes implícitos, assim sintetizada por Francisco Campos: “quando
a Constituição atribui a um dos poderes a competência de exercer uma fun-
ção, sem que, entretanto, disponha quanto aos meios indispensáveis ao seu
exercício, é implícita no poder legislativo a faculdade de prover, dentro das
devidas limitações constitucionais, os meios ou instrumentos necessários ao
exercício daquela função”.
Ao optar, dentre outras possíveis soluções, pela criação do Tribunal de
Contas, a lei estadual deve, de todo modo, adotar como paradigma os princípios
fundamentais constantes da Constituição Federal em matéria de organização do
Tribunal de Contas da União.

62 Curioso notar que o novo Procurador-Geral da República, em seu parecer, afirma en-
tender ser a representação infundada; todavia não apresenta desistência formal em home-
nagem a seu antecessor e ainda porque o Supremo Tribunal Federal poderia não concor-
dar com os fundamentos de sua opinião.

99
Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, três pontos complementares ainda devem ser discutidos. O


primeiro — a vitaliciedade atribuída, no caso, aos membros do Tribunal —, o
Ministro Victor Nunes entende constitucional, até por uma referência expressa
da Constituição estadual, que remete a casos análogos da Constituição Federal
em matéria de servidores públicos.
Os outros dois pontos da Lei estadual, no entanto, entende violadores da
Constituição Federal: o que se refere à investidura dos Ministros e o que trata do
prazo para o Governador apresentar suas contas.
Quanto à investidura, a Lei estadual não previu aprovação dos nomes pela
Assembléia Legislativa — diferentemente do que se passa no plano federal, com o
Senado —, o que o Ministro Victor Nunes, pela própria essência do órgão, entende
imprescindível, dado o fato de sua função exigir simultaneamente confiança do
Poder Executivo e do Legislativo. Tal regra poderia ter sido afastada pela Cons-
tituição do Estado (até aí, opção legítima do poder constituinte — foi o raciocí-
nio aplicado no caso do Amazonas); porém, na omissão desta, haveria o legisla-
dor infraconstitucional que observar o modelo federal. O Ministro Victor Nunes
recusa ainda o argumento de que os Estados não têm Senado: o que importa é
que um órgão legislativo participe da escolha.
Quanto ao prazo, a Lei estadual (art. 18) tem redação que daria a entender
que o Governador teria de apresentar suas contas de modo que o Tribunal tivesse
prazo de trinta dias para emitir parecer prévio. A leitura literal do dispositivo
levaria ao encurtamento do prazo que a Constituição estadual fixa para que o
Governador apresente contas à Assembléia. Sendo assim, ainda que sem usar a
expressão, o Ministro Victor Nunes emprega a técnica da “interpretação confor-
me”: “parece-me, pois, que a lei há de ser entendida, para não se declarar
a inconstitucionalidade do citado art. 18, no sentido de que a obrigação do
Governador continua a ser, como dispõe a Constituição, de remeter suas con-
tas diretamente à Assembléia, no prazo constitucionalmente marcado.”
A maioria, que acompanha o voto do Relator quanto à possibilidade da
criação do Tribunal de Contas por decisão do legislador ordinário, discorda quanto
à necessidade de a Assembléia Legislativa aprovar os nomes, seja por entender
que não se trata de elemento do modelo federal de observância obrigatória, seja
por entender que nem mesmo haveria analogia entre o Senado, como parte do
modelo federal, e a Assembléia — o que haveria se o modelo federal envolvesse
o Congresso Nacional.
Interessante observar que, na Rp 602 (cf. infra), o Ministro Victor Nunes
cita tanto o presente caso como a Rp 515 (cf. infra) para ilustrar a evolução de
seu entendimento. Em verdade, nem se trata de mudança na essência do entendi-
.
100
Ministro Victor Nunes

mento, mas de alteração na abrangência de sua aplicação. Lembra o Ministro


que, na representação ora comentada, entendeu, vencido, que os Estados deviam
seguir o modelo federal no que diz respeito à investidura dos Ministros de Tribu-
nais de Contas. E acrescenta:
“Aprendi a lição. Posteriormente, reportando-me a esse julgado
e ao Caso do Ceará (...), dizia eu: ‘Uma coisa é dizer que a Constitui-
ção do Estado não violou a Constituição Federal, porque lhe seguiu
o modelo; outra coisa é dizer que a Constituição estadual estava
obrigada a seguir o modelo federal. (...) onde está o preceito segundo
o qual, em todas as situações, o modelo federal tem de ser respeitado,
obrigatoriamente, na elaboração das Constituições estaduais? Não
existe esse preceito na Constituição.’ (Rp 515, 13-7-62).”

Representação 477

Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tiago


Dantas” — Possibilidade de Constituição estadual alterar
mandatos legislativos dos próprios deputados constituin-
tes — Observância de princípios da Constituição Federal
por Constituição estadual — Poder constituinte originário
e derivado — Origem do poder na democracia.

Cuidava este caso de situação havida quando da criação do Estado da


Guanabara. Na fase de transição, até a promulgação da Constituição do novo
Estado, regia a matéria de mandatos do Governador e dos Deputados a Lei federal
3.752, de 14 de abril de 1960, conhecida como “Lei San Tiago Dantas”.
A Constituição estadual, contudo, veio fixar termo diverso para o encerra-
mento dos mandatos parlamentares eleitos sob a regra da Lei federal, prorrogan-
do-os em pouco mais de dois anos, de modo a fazê-los coincidir com o mandato
do Governador.
Fundamentava-se esta representação na prevalência da Lei federal —
tida por complementar de artigo das disposições transitórias da Constituição
Federal — sobre a Constituição estadual, que, ademais, seria fruto, no que tange
a regra dos mandatos parlamentares, de legislação em causa própria.
Em seu voto, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, fixa o argumento de que a lei
federal (ainda que complementar) não é hierarquicamente superior à Constituição
do Estado nem pode limitar o poder constituinte estadual, por força do disposto no
art. 18 da Constituição de 1946: “Cada Estado se regerá pela Constituição e
.
101
Memória Jurisprudencial

pelas leis que adotar, respeitados os princípios estabelecidos nesta Consti-


tuição”. Isso vale ainda que se trate de lei complementar federal.
Entende o Relator que não se cogita de conflito hierárquico entre lei federal
e Constituição estadual, mas de verificação de qual delas, no caso, terá se afas-
tado das órbitas de competência traçadas na Constituição Federal. Lembra ainda
que o próprio Deputado San Tiago Dantas observava que a lei batizada com seu
nome tinha “valor programático”, trazendo uma proposta da qual poderia afas-
tar-se a Constituinte estadual. Vota, assim, pela improcedência da representação.
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, vota pela procedência da represen-
tação, entendendo que o mandato dos parlamentares eleitos não poderia exceder
ao termo fixado na lei convocatória — “Lei San Tiago Dantas”.
Em voto intensamente aparteado, o Ministro Victor Nunes de plano afasta
a questão do suposto conflito entre lei federal e constituição estadual, voltando-se
para o que entende ser o problema central: “saber se alguém pode dar mandato
a si mesmo”. E segue: “Deputados eleitos com mandato de duração certa
ampliaram essa investidura, mas não há preceito da Constituição Federal,
nem princípio constitucional algum que institua essa competência em seu
favor.”
Reforçando a legitimidade da lei federal para reger transitoriamente a
criação do Estado, o Ministro Victor Nunes invoca analogia com o caso de per-
turbação a impedir o funcionamento dos poderes estaduais; hipótese em que, nos
termos da Constituição, se transfere à União, pelo mecanismo da intervenção,
competência para normalizar a situação do Estado em crise. No caso em tela,
não se pode dizer que os poderes estaduais não funcionavam; mais do que isso,
nem existiam.
E, ao convocar a Assembléia Constituinte estadual, a Lei San Tiago
Dantas teria mesmo de fixar mandato aos deputados que seriam eleitos constitu-
intes, visto que não há hipótese de mandato ilimitado no regime constitucional
brasileiro, nem impossibilidade de o ato convocatório de uma constituinte estadual
condicioná-la.
Nesse passo, o Ministro Victor Nunes observa que a discussão da impossi-
bilidade de condicionamentos quanto à convocação de uma constituinte aplica-se
ao plano nacional; “sendo apenas autônomo, esse poder constituinte estadual
(...) é um poder constituinte de segundo grau, um poder derivado, um poder
constituído e condicionado pela Constituição Federal”.
Avança o Ministro Victor Nunes para demonstrar que a Assembléia Cons-
tituinte da Guanabara não apenas violou a Lei federal mas também a própria
Constituição Federal. “Não nasce do constituinte estadual o poder de repre-
.
102
Ministro Victor Nunes

sentação do eleitorado; preexiste, porque já se acha inscrito na Constitui-


ção Federal. E, pela Constituição Federal, não há mandato político sem
limite de prazo. A assembléia constituinte instalou-se em mandato de prazo
certo, porque não podia receber mandato de prazo indeterminado. Essa
determinação do termo final de seu mandato era uma imposição da própria
Constituição Federal”.
Invoca ainda a regra de que “todo poder emana do povo” para observar
que, ainda que o mandato desses deputados originalmente tenha emanado do
povo, além do prazo fixado pela Lei San Tiago Dantas, o mandato terá emanado
da Assembléia — poder derivado — e não do povo.
Eleita pelo povo, para um mandato prefixado, não poderia a Assembléia ter
prorrogado seu próprio mandato, de modo autocrático:
“A Constituinte estadual marcou esse prazo a posteriori. O re-
presentante é convocado, com certo prazo, antes da eleição; não é
depois da eleição que se lhe fixa o mandato. Depois da eleição, isso
importa em aumentar ou reduzir o mandato, conforme o caso, não em
fixá-lo. O princípio de que não há poder sem representação, sem
investidura expressa do povo, é tão fundamental em nosso regime
que, dentre as próprias emendas que a Constituição Federal admite
sejam feitas ao seu texto, foram excluídas as que importem supressão
do regime republicano (no sentido de regime representativo). Se,
amanhã, o Congresso Federal, pelo processo de reforma da Consti-
tuição, prorrogasse o próprio mandato, evidentemente, estaria ne-
gando o regime republicano; do contrário, não seria regime republi-
cano no sentido em que a Constituição usa esse qualificativo, mas
uma autocracia. Quando alguém se investe a si mesmo de poderes
políticos, o regime não é republicano, mas autocrático. O que a As-
sembléia da Guanabara teve foi um procedimento autocrático: dila-
tou, no tempo, os seus próprios poderes”.63
Como resultado, no entanto, o Tribunal, pelo voto de desempate do Presi-
dente, julgou improcedente a representação, fixando em quatro anos o mandato
dos membros da Assembléia Constituinte do Estado da Guanabara, a contar de
sua instalação.

63 O Ministro Victor Nunes, para rebater o argumento de autoridade do Relator, que citou
(cf. supra), em defesa de sua tese, pronunciamento do próprio San Tiago Dantas, trans-
creve outro trecho do mesmo discurso: “Todo ato que esta Assembléia praticar para
ampliar o seu mandato, quer quanto ao prazo, quer quanto ao conteúdo, constitui

103
Memória Jurisprudencial

Em face desse julgamento, foram interpostos embargos (ERp 477) pelo


Partido Social Trabalhista e pela Procuradoria-Geral da República, os quais
resultaram em reforma do julgamento anterior.
Houve longos debates, em matéria preliminar, sobre a possibilidade de
embargos no caso de representação que não tenha sido julgada por unanimidade,
cotejando-se o disposto na Lei 2.271, de 22 de julho de 1954, com a norma cons-
titucional e a norma regimental sobre a representação. Admitiram-se, afinal, os
embargos, como, aliás, registra o Ministro Victor Nunes, tem sido posicionamento
pacífico do Supremo Tribunal Federal.
No mérito, apenas reiterando seu voto vencido no julgamento anterior, o
Ministro Relator, Vilas Boas, votou pelo recebimento dos embargos, para julgar
procedente a Representação 477. E quase todos os Ministros apenas reiteraram
seus votos, não acrescentando argumentos.
Mas, nessa ocasião, a maioria formou-se no sentido da procedência da
representação, acabando por prevalecer a posição que, entre outros, era do
Ministro Victor Nunes — restando vencidos os Ministros Luiz Gallotti, Candido
Motta e Hahnemann Guimarães.

Recurso em Mandado de Segurança 9.558

Criação do Estado da Guanabara — “Lei San Tia-


go Dantas” — Observância de princípios da Constitui-
ção Federal por Constituição estadual — Princípio da
intangibilidade do mandato político.

Este recurso ordinário em mandado de segurança decorreu de fato havido


no mesmo contexto histórico da Rp 477, acima analisada. O recurso fora julgado
três dias antes da representação.
A “Lei San Tiago Dantas” — Lei federal 3.752, de 14 de abril de 1960 —, ao
disciplinar as regras de transição para a criação do Estado da Guanabara, quando
da transferência do Distrito Federal para o Planalto Central, convocara uma As-
sembléia Constituinte, a ser integrada por trinta Deputados a serem eleitos (em 3 de
outubro de 1960), prevendo que, após concluídos os trabalhos, tais Deputados res-
tariam como estaduais, até termo fixado — conforme analisado na Rp 477.

violação da lei federal, que condiciona limites à sua competência, e se resolve numa
usucapião de poderes”. De todo modo, para o Ministro Victor Nunes, reitere-se, a ques-
tão não é o conflito da Constituição estadual com a lei federal, mas com a Constituição
Federal.

104
Ministro Victor Nunes

A esses Deputados juntar-se-iam, para compor o Poder Legislativo —


ordinário, não a Assembléia Constituinte —, os cinqüenta Vereadores do antigo
Distrito Federal, eleitos em 3 de outubro de 1958 e empossados em 31 de janeiro
de 1959, para mandato de quatro anos.
Ocorre que a Assembléia Constituinte, afastando-se das normas postas
pela “Lei San Tiago Dantas”, deliberou que a futura Assembléia Legislativa viria
a ser composta exclusivamente pelos Deputados eleitos em 3 de outubro de 1960,
extinguindo a Câmara de Vereadores eleita em 3 de outubro de 1958.
Daí por que ajuizaram o presente mandado de segurança, conhecido pelo
Supremo Tribunal Federal em recurso ordinário, Vereadores que se julgaram le-
sados em seus direitos pela decisão da Assembléia.
Em seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, dá razão à Assembléia
Constituinte, entendendo que a autonomia de auto-constituição assegurada aos
Estados pelo art. 18 da Constituição de 1946 apenas se restringe em face dos
princípios estabelecidos na própria Constituição Federal, não se limitando, pois,
por lei federal, como é a “Lei San Tiago Dantas”.
Entende ainda que o artigo dessa Lei que determinou a incorporação dos
Vereadores antes eleitos ao novo órgão legislativo, com o objetivo de resguardar-
lhes o mandato, na verdade violou os princípios constitucionais da autonomia es-
tadual e do sistema republicano representativo. Tal mandato extinguir-se-ia com
a extinção da função ou órgão a que se ligava.
O Ministro Victor Nunes, por sua vez, manifesta opinião divergente, coe-
rente com posicionamento que já adotara, em 1959, como advogado do então
Distrito Federal.
De início, assim como fizera na Rp 477, afasta como questão controversa o
suposto conflito entre a Constituição da Guanabara e a Lei federal “San Tiago
Dantas”. Situa então o problema em torno da prevalência de princípios constitucio-
nais federais sobre a Constituição do Estado, por força do já mencionado art. 18 —
“princípios”, mais amplos, e não necessariamente textos explícitos da Constituição.
No caso, o princípio violado pela Constituição da Guanabara seria o da
“intangibilidade do mandato político”, resultante de vários preceitos constitucio-
nais: art. 1º (“todo poder emana do povo”), art. 7º, VII, a (“governo republicano
representativo”).
Assim, os Estados têm não apenas de se organizar com representação polí-
tica mas também respeitar a representação política. Lembra então dois casos con-
cretos em que a Constituição de 1946 assegurara tal princípio: nos arts. 3º, § 2º, e 11
das Disposições Transitórias, determinando que se elegessem Governadores antes
.
105
Memória Jurisprudencial

de elaboradas as Constituições dos Estados, as quais deveriam respeitar-lhes os


mandatos; e na então recente emenda constitucional que implantara o Parlamen-
tarismo, que impunha aos Estados, ao adaptarem suas Constituições, que respei-
tassem os mandatos em curso dos Governadores e os demais mandatos federais,
estaduais e municipais.
Também da Constituição Federal decorre o caráter legislativo da antiga Câ-
mara de Vereadores — de mesma natureza da futura Assembléia Legislativa —,
assim como a duração do mandato de seus membros (cf. art. 26, bem como a
Lei Orgânica do Distrito Federal, decorrente do art. 25). Nesse sentido, a
“Lei San Tiago Dantas” não determinara, por autoridade própria, que o mandato
dos Vereadores subsistisse, mas apenas declarara uma situação decorrente da
Constituição.
Outro aspecto a ser considerado era o de que o novo Estado não configura
entidade política totalmente nova, mas transformação do antigo Distrito Federal —
“uma mesma entidade política, sediada em determinado território e governa-
da por um acervo de leis e de atos administrativos de toda a natureza” (nesse
sentido, as opiniões de Francisco Campos e Themistocles Cavalcanti) —, a justifi-
car a continuidade do órgão representativo existente. A isso se acresce o fato de
que o Distrito Federal acumulava funções de Município e Estado.
Entretanto, o Ministro Victor Nunes, juntamente com os Ministros Vilas
Boas e Ary Franco, restou vencido. A maioria negou provimento ao recurso.

Representação 602

Aplicação automática por Estado de norma sobre


processo legislativo, constante em ato institucional —
Questões políticas — “Forma republicana representa-
tiva” — “Independência e harmonia dos Poderes” —
Função do STF.

Esta representação foi ensejada pela Assembléia Legislativa do Estado da


Guanabara, em face de ato do Governador. Eis os fatos: o Governador enviara
para a apreciação da Assembléia dois projetos de lei — um criando tributos,
outro dispondo sobre questões de pessoal. Decorridos mais de trinta dias de
tramitação perante o órgão legislativo, o Governador resolveu converter os projetos
em leis, publicando-as no Diário Oficial (Leis estaduais 577 e 578), invocando o
art. 4º do Ato Institucional de 9 de abril de 196464.

64 “Art. 4º O Presidente da República poderá enviar ao Congresso Nacional projetos


de lei sobre qualquer matéria, os quais deverão ser apreciados dentro de trinta (30)

106
Ministro Victor Nunes

Fundamenta-se, pois, a representação na hipótese de intervenção federal


nos Estados para assegurar a “forma republicana representativa” e a “indepen-
dência e harmonia dos poderes” (Constituição de 1946, art. 7º, VII, a e b).
Em seu voto, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, acolhe os argu-
mentos da representação, entendendo, com base em Rui Barbosa, que nosso
modelo republicano representativo impõe o respeito à atribuição de função
legislativa dos representantes eleitos e, com base em Carlos Maximiliano, que a
usurpação de poderes viola o princípio da independência e harmonia dos Poderes
constituídos.
Completando o raciocínio, interpreta o citado dispositivo do Ato Institucional
de modo a compreendê-lo aplicável apenas ao plano federal, seja por sua literali-
dade — quando quis expressamente referir-se a poderes de Governadores, o Ato
foi claro, cf. art. 7º —, seja porque a previsão do art. 4º se justifica por poderes
especiais, atribuídos ao Presidente da República, “para elaborar as reformas,
que a Revolução julga necessárias”, as quais “nada têm que ver com pro-
gramas estaduais”. Ou seja, invocando o dispositivo em questão, o Governador
teria usurpado competências do Poder Legislativo.
O Ministro Victor Nunes, ao votar, endossa o ponto de vista do Relator e
acrescenta, com base em Seabra Fagundes, que a regra do art. 4º do Ato
Institucional não constitui norma que os Estados necessariamente tenham de
aplicar: “e o Estado da Guanabara não reformou sua Constituição, para o
efeito de incorporar ao processo legislativo estadual as normas excepcio-
nais e provisórias que se contêm naquele dispositivo”. Note-se que esse
argumento admite, em tese, que os Estados pudessem vir a aplicar mecanismo
semelhante de aprovação de leis por decurso de prazo, desde que assim previs-
sem as respectivas Constituições.
Mas ainda interessantes são as ponderações que o Ministro Victor Nunes
faz sobre argumento que fora trazido ao processo, no sentido de que o Tribunal
não poderia dirimir conflito posto entre o Governador e a Assembléia, por se
tratar de questão exclusivamente política.
Assim, nega que se trate, no caso, de “questão exclusivamente política”,
posto que enquadrada na hipótese do art. 7º, VII, b, da Constituição de 1946, ou
seja, hipótese na qual cabe ao Supremo Tribunal Federal apreciar a questão no
âmbito de representação interventiva.

dias a contar do seu recebimento na Câmara dos Deputados e de igual prazo no Senado
Federal; caso contrário, serão tidos como aprovados.

107
Memória Jurisprudencial

Por fim, cita trecho de polêmico artigo, de autoria de Carlos Lacerda, pu-
blicado no calor dos debates e das movimentações políticas contrárias à posse do
então Presidente eleito, Juscelino Kubitschek. E o Ministro Victor Nunes65 o cita
elegante e ironicamente.66 É que Carlos Lacerda, ao tempo de 1955, cobrava o
Judiciário por supostas omissões no exercício de suas importantes atribuições
políticas; e agora era o Governador interessado em sustentar a impossibilidade de
o Judiciário apreciar a questão suscitada. Eis o texto de Lacerda:
“Não estamos sozinhos, quando afirmamos que o Poder Judi-
ciário foi omisso em todas as crises que envolveram o Brasil. Não.
Quem conosco pensa é o mesmo homem que lutou, na Constituinte de
91, para que se desse ao Poder Judiciário a função de terceiro poder,
nos moldes da constituição americana (...) O que há de grave na
crise brasileira (...) é que a legalidade vigente não encontra saída
para as dificuldades brasileiras. E não encontra não porque faltem
leis, ou porque as existentes sejam precárias. Absolutamente. O que
nos tem faltado sempre é compreensão, por parte do Poder Judiciário,
de que a ele compete a guarda e a interpretação da Constituição, se-
gundo determinação constitucional. O que falta ao Poder Judiciário,
como órgão, como instituição, para desempenhar o papel de terceiro
poder político, compondo os conflitos entre o Executivo e o Legislativo,
dentro do sistema de freios e contrapesos estabelecido na Constituição.
O defeito é do órgão que, despreparado, se descuida e despreza a
sua função política, limitando-se a decidir e compor conflitos entre
particulares. É o grande ausente nas crises brasileiras, vivendo como
que à margem da vida política brasileira, parecendo não perceber
que tem gravíssimas atribuições políticas a desempenhar como intér-
prete e guardião da Constituição”.
A representação foi julgada procedente, por unanimidade.
Recurso Extraordinário 58.50567
Observância de princípios da Constituição Federal por
Constituição estadual e lei orgânica de Municípios — Eleição
de prefeito em caso de vacância — Posição do Município na
Federação brasileira — Autonomia municipal.

65 Recorde-se que Victor Nunes fora o Ministro Chefe da Casa Civil do Governo Jusce-
lino Kubitscheck, enquanto Carlos Lacerda liderara os movimentos golpistas visando a
impedir a posse do Presidente, sendo destacado opositor daquele Governo.
66 “Certamente, Sr. Presidente, estas palavras não saíram da pena de um constitucio-
nalista, mas são agora muito adequadas, porque a sua autoria nominal pode ser encon-
trada na Tribuna da Imprensa de 19 de outubro de 1955”.
67 Julgado em conjunto com o RMS 15.207.

108
Ministro Victor Nunes

Por decreto presidencial fundamentado no Ato Institucional de 9 de abril


de 1964, deu-se a suspensão dos direitos políticos do Prefeito Sereno Chaise e do
Vice-Prefeito Ajadil de Lemos, de Porto Alegre.
Ante a vacância desses dois cargos, assumiu a Prefeitura, consoante ordem
de sucessão estabelecida pela Lei Orgânica do Município, o Presidente da Câmara
de Vereadores, Célio Marques Fernandes.
No entanto, por emenda à Lei Orgânica, alterou-se o dispositivo aplicável
à situação, determinando-se a convocação de eleições indiretas para o preenchi-
mento do cargo de Prefeito.
Contra tal medida, o Presidente da Câmara, no exercício do cargo de Pre-
feito, ajuizou mandado de segurança, objetivando permanecer no cargo até com-
pletar o mandato do Prefeito cassado. Ingressaram na lide, como litisconsortes,
os cidadãos que haviam, então, sido eleitos Prefeito e Vice pelo voto dos Verea-
dores.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proclamou a inconstitucionalidade
dos artigos 155, parágrafo único, da Constituição do Estado e do artigo 56, § 2º,
da Lei Orgânica do Município, que davam, ao exercício do cargo de Prefeito pelo
Presidente da Câmara, a extensão do mandato para que fora eleito o substituído,
independentemente de eleição, julgando também inconstitucional a emenda da
Lei Orgânica, na parte em que prescreveu a eleição indireta.
Dessa decisão, houve recursos ao Supremo Tribunal Federal por parte do
impetrante, Presidente da Câmara, exercendo o cargo de Prefeito, e por parte da
Câmara Municipal.
Em síntese, as questões constitucionais debatidas seriam:
a) a possibilidade de a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (art. 155,
parágrafo único) e a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre (art. 56, § 2º)
estabelecerem, diferentemente da regra prevista na Constituição Federal para a
sucessão do Presidente da República, que o Presidente da Câmara municipal,
no caso de vacância dos cargos de Prefeito e Vice, assumisse a Prefeitura até
o término do mandado dos substituídos; e
b) a possibilidade de a Lei Orgânica do Município de Porto Alegre estabe-
lecer a eleição indireta para Prefeito — tal como introduzido por Emenda —, na
hipótese em análise, ainda que a vacância tenha se dado na primeira metade do
mandato, o que tornaria a regra municipal diferente da regra constante da Cons-
tituição Federal para o Presidente da República.
.
109
Memória Jurisprudencial

O Ministro Relator, Pedro Chaves68, vota pela constitucionalidade do art.


155 da Constituição estadual e do art. 56 da Lei Orgânica, ou seja, admitindo a
hipótese de o Presidente da Câmara completar o mandato do Prefeito quando o
cargo for deixado vago pelo titular.
Nesse sentido, julga prejudicada a questão da constitucionalidade da regra
introduzida na Lei Orgânica por emenda, prevendo a eleição indireta. Isso por-
que, no caso concreto, com a assunção do cargo de Prefeito pelo Presidente da
Câmara, já não havia mais vacância a justificar as eleições.
Acompanham o Relator, em suas conclusões, os Ministros Ribeiro da Costa
(Presidente), Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas, Candido Motta, Luiz Gallotti e
Hahnemann Guimarães.
O Ministro Victor Nunes, juntamente com Evandro Lins e Hermes Lima,
vota vencido. O Ministro Victor Nunes, ao apresentar sua argumentação, reitera
posição que já assumira ao julgar as Representações 515 e 600.
O argumento central da tese diz com a compreensão de haver a Constitui-
ção de 1946, tal como vigorava ainda em 1964, adotado o princípio da
obrigatoriedade da eleição direta para investidura em órgãos de representação
popular — art. 134 c/c art. 7º, VII —, salvo a situação de vacância, na segunda
metade do mandato, do cargo de chefe, e respectivo vice, do Poder Executivo. E,
se houvesse vacância na segunda metade do mandato, caberia aos entes federa-
tivos decidirem se deveria ocorrer eleição direta, indireta, ou, ainda, não ocorrer
eleição, assumindo o cargo, até o final do mandato, o presidente do Poder
Legislativo.
Em verdade, seria uma regra expressamente prevista para o caso do Pre-
sidente da República, mas aplicável simetricamente aos chefes do Poder Execu-
tivo dos demais entes da Federação.
De início o Ministro Victor Nunes rebate o argumento — vencedor nesse
julgado — de que estaria em questão matéria atinente à organização dos Poderes,
tipicamente constitucional e, portanto, própria de ser decidida no âmbito da auto-

68 Interessante citar registro feito pelo Ministro Relator, Pedro Chaves, em “acréscimo ao
voto”: “Senhor Presidente, não quero encerrar o meu voto sem manifestar a emoção de
um velho juiz e sua admiração pelo que se encerra neste processo. Em última análise é
uma homenagem que o Rio Grande do Sul presta à ordem legal. Esse lendário Rio
Grande, onde as paixões políticas são conhecidas, notórias, vivas, e vão até as armas,
abandonou, neste caso, as lanças dos seus gaúchos e entregou o pleito à inteligência
dos seus advogados, à cultura de seus juízes, numa verdadeira manifestação de prestí-
gio à ordem jurídica, o único caminho, Senhor Presidente, pelo qual a Nação brasileira
há de recuperar os seus passos para o progresso e a glória, no futuro.”

110
Ministro Victor Nunes

nomia dos entes federativos, mais especificamente no âmbito da competência


dos Estados para organizar a si e aos seus Municípios69.
Pondera, então, o Ministro Victor Nunes que, sem dúvida, na matéria de
organização dos Poderes, há uma parcela de “pura organização”, como, por
exemplo, “dizer quais são os poderes e definir-lhes a competência”; porém, no
aspecto da investidura dos órgãos instituídos, “o que temos, em verdade, é um
problema misto — sendo também matéria de Direito Eleitoral, de competência
legislativa da União —, desde que se tenha adotado o princípio de representa-
ção popular, como fez a nossa Constituição, ao tornar obrigatória, para os
Estados, como para a União, no art. 7º, VII, a forma republicana representa-
tiva. E assim é, porque a representação popular só se realiza por meio de
eleição. A república representativa não conhece outra forma de representa-
ção que não seja a eleição, e a eleição pode ser direta ou indireta”.
Entretanto, como já visto, a Constituição fixara o princípio da obrigatorie-
dade da eleição direta para a investidura dos órgãos de representação popular,
salvo a exceção nela mesma prevista, de vacância da chefia do Poder Executivo
na segunda metade do mandato.
Passa, então, o Ministro Victor Nunes a enfrentar outro argumento trazido
pelo voto do Ministro Relator, Pedro Chaves, de não ter o Município “o poder de
auto-organização, por não ser entidade de natureza política, mas adminis-
trativa. Desse argumento, se extrai a conclusão de que o Estado pode dis-
por, a seu critério, da forma de investidura dos órgãos da administração
municipal”.
Discordando desse ponto de vista, o Ministro Victor Nunes aponta que a
“Constituição vigente garantiu, com maior amplitude do que as anteriores, a
autonomia municipal, e a definiu por alguns princípios, entre os quais a
eletividade do Prefeito e dos Vereadores, como dispõe o art. 28, I”. Esse prin-
cípio, como não poderia deixar de ser, é tratado pelo Código Eleitoral, norma elabo-
rada pelo Legislativo federal, mas, como sustentado, aplicável aos Municípios.
Na seqüência de seu voto, o Ministro Victor Nunes passa a discorrer sobre
sua visão acerca do tratamento constitucional da autonomia dos Municípios,
citando trechos de sua célebre tese de concurso para cátedra em ciência política,
intitulada “O Município e o Regime Representativo no Brasil — Contribuição ao

69 No regime de então, entendia-se predominantemente, em doutrina e jurisprudência,


que a lei orgânica dos Municípios seria lei estadual, inserida na competência legislativa
remanescente dos Estados. Mas a Constituição do Estado do Rio Grande do Sul admitia
que Municípios tivessem “Cartas Próprias” (cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes.
Competências na Constituição de 1988. São Paulo: Atlas, 2005. 3. ed. p. 113).

111
Memória Jurisprudencial

Estudo do Coronelismo”, editada comercialmente com o título Coronelismo,


Enxada e Voto.
O ponto central sustentado pelo Ministro Victor Nunes quanto à questão
em discussão, discordando da citada posição do Ministro Pedro Chaves, é o de
que, desde a Constituição de 1934, nosso Federalismo ganhara a peculiaridade de
comportar três níveis distintos de competências privativas, os três já delimitados
pela Constituição Federal: o federal, o estadual e, ainda que parcialmente, o mu-
nicipal.
Desse modo, não pode norma federal — infraconstitucional — ou esta-
dual alterar o constitucionalmente disposto em matéria de competências muni-
cipais.
Uma conseqüência dessa conclusão é afastar no caso em julgamento a
aplicabilidade da tese, sustentada em obra clássica de Castro Nunes quanto ao
regime constitucional de 1891, de ser o Estado-Membro da Federação um “Estado
unitário” em relação aos seus Municípios — tese essa que o Ministro Victor
Nunes já considera discutível mesmo em face da Constituição de 1891 —, porque
“ele não tem a liberdade de organizar os seus municípios ao livre critério do
legislador ordinário, sequer da Constituição estadual, mas será compelido à
observância dos princípios que a própria Constituição Federal tem por ine-
rentes à organização municipal, como expressivos de sua autonomia, por ela
definida. Um desses princípios é, precisamente, a eleição do Prefeito”.
Outro aspecto objeto da atenção do Ministro Victor Nunes decorre do argu-
mento de que a Constituição de 1946 teria eliminado norma que fora prevista na
Constituição de 1934, que explicitava a possibilidade de as constituições estaduais
decidirem entre eleições diretas ou indiretas para Prefeito dos Municípios. Teria
eliminado, mas não vedado expressamente a hipótese.
Esse argumento é refutado pelo Ministro Victor Nunes, ao observar que
essa supressão de regra expressa não pode ser destituída de conseqüências e
deve ser interpretada como vedação, prevalecendo, também para os Municípios,
o princípio geral da eleição direta — e lembra outro caso, em diversa matéria, no
qual o Supremo Tribunal Federal já interpretou a lacuna decorrente da supressão
de uma norma como possuidora do sentido de vedação da conduta antes expres-
samente permitida pela norma suprimida.
Mais um ponto abordado pelo Ministro Victor Nunes diz com a considera-
ção do Município como ente político — posição que defende e, neste julgamento,
já fora sustentada pelo Ministro Hermes Lima —, ou apenas administrativo —
posição sustentada pelo voto do Relator, Ministro Pedro Chaves, e antes
celebrizada em entendimento de Francisco Campos.
.
112
Ministro Victor Nunes

Novamente recorrendo a seu Coronelismo, Enxada e Voto, o Ministro


Victor Nunes defende a idéia, a partir da “cotidiana evidência dos fatos”, de
que, no Brasil, além de administradores, os Prefeitos têm sido, acima de tudo,
chefes políticos — e cita exemplos de episódios históricos em reforço da posição,
como a substituição de prefeitos, realizada pelo Governo José Linhares, com o
intuito de “resguardar a pureza das eleições federais”.
Aliás, a reforçar o caráter político da função de Prefeito, lembra, em rela-
ção ao próprio caso em julgamento, que, “sobre a investidura do Prefeito de
Porto Alegre, se forma, no País, um clima de tanta agitação política, des-
mentido contundente à asserção de que o Município seja exclusivamente
uma célula administrativa”. Lembra, enfim, que “o argumento do caráter
administrativo dos Municípios vem, a rigor, do Império, da Lei municipal de
1828, mas essa lei afirmava o caráter administrativo das Câmaras, não
para lhes negar importância política, mas para lhes recusar atribuições
judiciárias”, diferentemente do que se passava com as Câmaras Municipais do
período colonial.
Ainda outro argumento rebatido pelo Ministro Victor Nunes é o de que a
sucessão do Prefeito pelo Presidente da Câmara não fere o princípio da eleição
direta, posto que o Presidente é um Vereador que terá sido eleito pelo povo, ao
mesmo tempo, como titular potencial do cargo de Prefeito.
Demonstra o Ministro Victor Nunes que tal raciocínio importaria fraude à
regra constitucional das inelegibilidades, uma vez que, por hipótese, alguém, para
fugir às condições de inelegibilidade específicas dos Prefeitos, poderia eleger-se
Vereador, sendo alçado à Presidência da Câmara e, posteriormente, à Prefeitura.
Ademais, admitir tal argumento seria acolher como regular a eleição indireta para
Prefeito, o que contraria princípio constitucional.
Por fim, o Ministro Victor Nunes afasta o argumento político de que elei-
ções diretas na hipótese de vacância do cargo — de Prefeito, no caso — seriam
“potencialmente perturbadoras”; pondera que, se, no plano federal, a Consti-
tuição prevê eleição indireta para Presidente da República apenas no caso de
vacância na segunda metade do mandato, é porque considera “potencialmente
perturbadora” apenas eleição direta que se desse na metade final do mandato,
o que não se passa no caso em julgamento.
Concluindo, o Ministro Victor Nunes considera inconstitucional o art. 155,
parágrafo único, da Constituição estadual gaúcha, ao prever a sucessão do Pre-
feito pelo Presidente da Câmara na primeira metade do mandato.
Considera ainda inconstitucional o disposto na Lei Orgânica do Município
de Porto Alegre, após sua Emenda 7, que previu a eleição indireta de Prefeito na
hipótese em comento — a partir de permissivo contido na Constituição estadual
.
113
Memória Jurisprudencial

do Rio Grande do Sul (aliás, diferindo das Constituições dos outros Estados) para
que a Câmara Municipal regule essa matéria —, posto que o Município teria usado
sua competência de auto-organização com o mesmo vício de inconstitucionalidade,
estabelecendo eleição indireta para sucessão de Prefeito a partir de vacância na
primeira metade do mandato.
Ante a inconstitucionalidade da Constituição estadual e da Lei Orgânica
do Município, aponta o Ministro Victor Nunes que a matéria deve ser regida pela
norma federal — o Código Eleitoral, harmônico, de resto, com a Constituição
Federal —, promovendo-se eleição direta para Prefeito e Vice-Prefeito.
Tal fora a decisão, ora objeto de recurso, proferida pelo Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, que o Ministro Victor Nunes confirma. Porém, como visto,
essa posição não prevaleceu no Supremo Tribunal Federal.

Representação 718

Repartição constitucional de competências — Com-


petência para desapropriar para fim de reforma agrária —
Distinção entre desapropriação com pagamento em tí-
tulos da dívida pública e desapropriação com pagamento
em dinheiro.

O Governo do Estado do Rio Grande do Norte, por decreto, com base não
em lei estadual, mas na Lei federal 4.132/62, que dispõe sobre desapropriação
para reforma agrária, editou decreto expropriatório de terras (Decreto 4.527/65),
explicitando que as terras seriam desapropriadas para posterior doação, alienação
ou locação, com preferência garantida aos seus ocupantes.
O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, invocando jurisprudência da
Terceira Turma do Supremo Tribunal Federal, manifesta entendimento de que a
União tem competência exclusiva para desapropriar, por interesse social, para
fins de reforma agrária.
Esse ponto estaria implícito no regime de 1946, tendo sido posteriormente
explicitado pela Emenda Constitucional 10, e ainda expressamente previsto no
art. 157 da Constituição de 1967:
“Art. 157. A ordem econômica tem por fim realizar a justiça
social, com base nos seguintes princípios: (...) § 1º Para os fins pre-
vistos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da
propriedade territorial rural, mediante pagamento de prévia e justa
indenização em títulos especiais da divida pública, com cláusula de
exata correção monetária, resgatáveis no prazo máximo de vinte
.
114
Ministro Victor Nunes

anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a


qualquer tempo, como meio de pagamento de até cinqüenta por cento
do imposto territorial rural e como pagamento do preço de terras
públicas.”
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes dá margem a longos debates ao
propor interpretação diversa dos artigos em questão, das Constituições Federais
de 46 e de 67. Sustenta o Ministro Victor Nunes que a competência exclusiva da
União se refere à desapropriação por interesse social, para fins de reforma agrá-
ria, com pagamento em títulos da dívida pública, mas que, desapropriando ordina-
riamente, com pagamento em dinheiro, poderiam os Estados destinar terras à
reforma agrária.
O Ministro Victor Nunes reconhece que as duas leituras dos dispositivos
constitucionais são possíveis, mas entende mais consentânea com os objetivos da
Constituição aquela que permite aos Estados executar a reforma agrária com
recursos próprios, observadas as normas federais quanto à política de reforma
agrária.
Isso, ademais, reforçaria a Federação: “tenho dúvida, Sr. Presidente, se
os Estados, em nossa Federação já tão enfraquecida, ficaram de tal modo
destituídos de poderes, que não possam desapropriar terras para experiên-
cia de reforma agrária”.
Ante a lembrança da “baderna estadual” de desapropriações, havida no
Rio Grande do Sul, relatada pelos Ministros Eloy da Rocha e Gonçalves de Oli-
veira70, a qual teria levado o Governo de 64 a explicitar na Constituição, pela
Emenda 10, o que já estava implícito na Constituição de 46, reconhece o Ministro
Victor Nunes que, “quando se fala em reforma agrária, vem à mente o risco
da subversão, ou o temor dela. Mas há planos de colonização que são
verdadeiras experiências de reforma agrária com o nome de colonização.
Ficariam os Estados impedidos de fazer planos de colonização?”
Argumenta ainda que até particulares podem fazê-lo, com terras privadas.
Ao que responde o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, que a diferença, nesse
caso, seria o caráter compulsório da desapropriação. Entende o Relator que a posi-
ção do Ministro Victor Nunes, admitindo hipótese mais larga de desapropriação —

70 Em seu voto, acompanhando o Relator, o Ministro Aliomar Baleeiro descreve episódios,


pelos interiores do Brasil, de gente armada de metralhadora em defesa de sua terra; reitera
que, nesse momento, o Supremo Tribunal Federal tem de atentar para sua função política,
“mais importante do que todas as demais”. O Ministro Evandro Lins também profere
voto, acompanhando o Relator, com forte conteúdo político, criticando a carência de
estadistas no País que hajam resolvido a questão agrária e apontando que a “raiz da crise
brasileira está no campo”.

115
Memória Jurisprudencial

supostamente não prevista pela Constituição —, importaria, de modo reflexo, res-


trição indevida ao direito de propriedade. Comprar, poderia; desapropriar, não.
Em réplica, o Ministro Victor Nunes volta a afirmar que seu posiciona-
mento se fundamenta na interpretação de dispositivo constitucional; portanto,
sem violação de direitos individuais71.
De todo modo, o Ministro Victor Nunes admite, por outro fundamento, que
o decreto em discussão na representação seria inconstitucional, pois não poderia
prever, sem autorização legislativa, a alienação das terras que pretendia fossem
desapropriadas.
A representação é, assim, julgada procedente por unanimidade, apenas
divergindo na fundamentação o Ministro Victor Nunes, seguido pelo Ministro
Adaucto Cardoso72.

Representação 515

Observância de princípios da Constituição Federal


por Constituição estadual — Sucessão de vice-governador
em caso de vacância — Ordem de sucessão — Eleição
indireta — “Forma republicana representativa”.

Cuida-se de caso que gerou extenso debate e votação disputada, com o voto
de desempate do Presidente, no sentido do acolhimento da representação.
Questões processuais à parte, discutia-se a constitucionalidade de uma
emenda que a Assembléia Legislativa promovera na Constituição do Estado do
Rio de Janeiro, passando a vigorar a regra de que, na vacância dos cargos de
Governador e Vice-Governador, ou mesmo na vacância simplesmente do cargo
de Vice-Governador, por ter assumido o cargo de Governador ou por qualquer
motivo, a Assembléia elegeria, de modo indireto, portanto, um segundo Vice-
Governador.
No caso concreto, o então Governador, Roberto Silveira, falecera, e o
Vice, Celso Peçanha, assumira o cargo, vindo, no entanto, a renunciar, mas após
a introdução da nova regra pela Emenda.

71 Registre-se, nesse ponto, resposta espirituosa do Ministro Victor Nunes: o Ministro


Gonçalves de Oliveira ainda reforça: “só a União podia legislar sobre desapropriação,
tão sagrado é o direito de propriedade”; e responde o Ministro Victor Nunes: “mas é o
próprio Papa, hoje, quem preconiza a reforma agrária!”
72 Os Ministros Themistocles Cavalcanti e Adaucto Cardoso já haviam votado vencidos
na preliminar, entendendo que não deve ser conhecida representação em fase de decreto
expropriatório, sem caráter normativo.

116
Ministro Victor Nunes

O Ministro Relator, Ari Franco, inicia seu voto com interessante digressão
sobre a história política do Rio de Janeiro73 e sobre virtudes do parlamentaris-
mo74, ressaltando, no entanto, que os Estados permaneciam no regime presiden-
cial.
Situa a controvérsia constitucional a partir da regra de que os Estados
devem reger-se por suas constituições e leis, respeitados princípios estabelecidos
no art. 18 da Constituição Federal de 1946, princípios esses enumerados no art.
7º, dentre os quais a “forma republicana representativa” (inciso VII, a).
Entende o Ministro Relator que a eleição indireta do Vice-Governador, nos
termos da Emenda à Constituição do Estado, viola a forma republicana represen-
tativa. Haveria, assim, que se aplicar a regra anterior à emenda, segundo a qual,
vagando ambos os cargos, faz-se eleição direta, se na primeira metade do man-
dato; indireta, se na segunda — não havendo a figura da eleição indireta de Vice-
Governador caso o anteriormente eleito assuma o cargo de Governador.
A esse argumento, o Ministro Pedro Chaves acrescenta o de que a Cons-
tituição do Estado do Rio de Janeiro teria quebrado a ordem de sucessão fixada
na Constituição Federal, introduzindo entre o Vice-Governador e o Presidente da
Assembléia mais um Vice-Governador. “Pouco se nos dá, diante dos termos
da Constituição, que tenha havido ou não tenha havido pactos. Os pactos,
mesmo dos partidos, não prevalecem contra a Constituição.”
O Ministro Victor Nunes votou vencido, sendo o primeiro voto divergente
a ser declarado.
Inicia por frisar que a Emenda se dera antes da renúncia do Vice-Gover-
nador, portanto, sem violar qualquer direito do então Presidente da Assembléia,
posto não se haver ainda implementado a condição constitucional para que se
pudesse considerar Governador. Assim, entende legítimo o momento para altera-
ção da ordem sucessória. E lembra, por analogia, o que se passara nos Estados
Unidos, quando se alterara a ordem sucessória para Truman substituir Roosevelt,
em 1947.
Quanto ao argumento central, pondera que a Constituição Federal não
define o que seja “forma republicana representativa”, o que se interpreta a partir
de outros dispositivos constitucionais. E o modelo federal, assim considerado,
73 Criticando lapsos de imaturidade política demonstrada em casos de “dualidade de
Assembléias”.
74 “Todas as convulsões do Brasil resultaram sempre das eleições presidenciais” —
ainda que se mostre decepcionado com o parlamentarismo então praticado no Brasil, dito
“híbrido” pelo próprio Primeiro Ministro —, “deixando de lado tudo aquilo que esperá-
vamos constituísse tranqüilidade para a Nação”.

117
Memória Jurisprudencial

admite a eleição indireta desde que as vacâncias dos cargos de Presidente da


República e de seu Vice se dêem na segunda metade dos mandatos — tal como
se passa no caso fluminense em discussão.
Resta verificar se — superada a questão da violação do princípio da forma
republicana representativa — ainda haveria a Constituição estadual de copiar o
modelo federal, não admitindo a hipótese de eleição isolada de um Vice-Governador.
Nesse passo, o Ministro Victor Nunes interpreta o art. 18 da Constituição
de 1946, acima referido, de modo a não impor que a Constituição Federal seja
tomada “como modelo em tudo”. E, rebatendo a invocação de caso precedente,
envolvendo a Constituição do Ceará e julgado em 1947, pondera que a norma
cearense foi julgada constitucional porque seguia o modelo federal; mas daí não
decorre que fosse obrigada a segui-lo: ou seja, se segue, certamente é constitu-
cional; se não segue, ainda assim pode ser. E adota essa conclusão como regra.
E nem se diga que a Emenda em questão violaria atribuições da Assem-
bléia, comprometendo a independência do Poder Legislativo: seja com a regra da
Emenda, seja com a assunção do cargo pelo Presidente da Assembléia, será a
Assembléia a eleger aquele que assumirá o cargo de Governador.
Assim, o Ministro Victor Nunes conclui:
“Não sinto, no caso, qualquer emoção especial, porque supo-
nho que não está envolvida neste processo a salus populi. É uma briga
de políticos, em que a salvação pública não está em jogo. Mas não
encontro, data venia qualquer preceito, qualquer princípio da Consti-
tuição Federal que tenha sido violado, motivo por que julgo improce-
dente a representação.”

Representação 600

Observância de princípios da Constituição Federal


por Constituição estadual — Sucessão de vice-governa-
dor em caso de vacância — Eleição indireta.

Este é mais um julgado em que se discute a necessidade ou não de obser-


vância do modelo federal quanto a eleições para chefia do Poder Executivo
estadual.
No caso, questionava-se a constitucionalidade de ato da Assembléia
Legislativa do Estado da Guanabara, de 25 de abril de 1964, pelo qual se elegeu,
por via indireta, novo Vice-Governador (Rafael de Almeida Magalhães), ante a
cassação dos direitos políticos de Eloy Dutra.
.
118
Ministro Victor Nunes

A representação apontava violações: a) da regra da simultaneidade das elei-


ções para os cargos do Poder Executivo (art. 79, § 2º); b) da regra da eleição direta
(art. 134); c) da regra de inelegibilidade de Secretários de Estado (art. 139, II, c).
A Constituição do Estado não continha regra expressa sobre eleição ante
vacância do cargo de Vice-Governador. Previa, apenas, regra de sucessão do
Governador.
Em seu voto vencido, acompanhado pelo Presidente, Ministro Ribeiro da
Costa, o Ministro Relator, Luiz Gallotti, julga procedente a representação, enten-
dendo que, aplicado o modelo federal, não poderia um Estado eleger apenas novo
Vice, estando o Governador no seu cargo.
Depois reforça, em esclarecimento, que o ponto fundamental não é apenas
o da simultaneidade, mas ainda o fato de ter havido eleição indireta para Vice-
Governador, posto que a Constituição Federal a prevê excepcionalmente, para
quando tenha havido vacância dos cargos de Governador e Vice e, cumulativa-
mente, que tal vacância tenha se dado na segunda metade dos mandatos. E lem-
bra os casos da sucessão de Getúlio Vargas por Café Filho e de Jânio Quadros
por João Goulart, situações em que os cargos de Vice ficaram vagos e não foram
preenchidos, ainda que, no caso de Vargas, a vacância se tivesse dado na segunda
metade do mandato.
O Ministro Victor Nunes, ao votar vencedor, reproduz trechos de seu voto
na Rp 515, reiterando seu raciocínio de que, nessa matéria, seguir o modelo federal
assegura a constitucionalidade, porém não é obrigatório.
Nesse sentido, o modelo federal, adequadamente aplicado, importaria in-
constitucionalidade se a eleição para Vice-Governador ocorresse de modo indireto
na primeira metade do mandato, pois isso contraria a regra federal, decorrente do
princípio da eleição direta. Já na segunda metade, seria indiferente, em termos
constitucionais, realizar eleição direta ou indireta, ou mesmo não realizar eleição
nenhuma.
O raciocínio vale para o presente caso. E a regra da simultaneidade da
vacância, extraída do art. 79, § 2º, da Constituição Federal, não integraria o mo-
delo a ser observado obrigatoriamente pelos Estados — “a Constituição, neste
ponto, quis deixar liberdade aos Estados”.
A Representação restou julgada improcedente75.

75 Na Rp 604, envolvendo caso análogo ao da Rp 600, agora quanto ao Vice-Governador


Theodorico Bezerra, do Rio Grande do Norte, o Ministro Victor Nunes, Relator, anuncia
que votaria do mesmo modo, porém acaba por julgar prejudicada a representação, pela
superveniência de novas eleições, findo o mandato dos interessados.

119
Memória Jurisprudencial

Representação 561

Regra sobre elegibilidade de governador contida


em Constituição estadual — Violação de princípio cons-
titucional da “forma republicana representativa” — Inter-
pretação dos princípios constitucionais sensíveis.

Nesta representação, apreciava-se a alegada inconstitucionalidade da


Constituição do Estado da Guanabara, ao prever condição de elegibilidade do Go-
vernador — residência no Estado por ao menos cinco anos, no decênio anterior à
eleição — em desacordo com a Constituição Federal, arts. 138, 139 e 140.
O princípio constitucional violado, a ensejar a representação, seria o da
“forma republicana representativa” (art. 7º, VII, a).
O Ministro Relator, Evandro Lins, acolhe a tese da representação, para
reconhecer a inconstitucionalidade da Constituição da Guanabara, lembrando
ainda precedentes envolvendo a Constituição paulista — Representações 96 e
208.
Por sua vez, o Ministro Victor Nunes, entendendo que a definição das
inelegibilidades se insere “no cerne da investidura eletiva” e que a “origem
eletiva do poder é inerente à forma republicana representativa”, estende
suas considerações para ponderar que os princípios constitucionais “sensíveis”,
ensejadores da representação interventiva, devem ser interpretados de modo in-
tegrado com outros dispositivos Constitucionais:
“Já tive ocasião de manifestar, em outra oportunidade, que o
princípio ‘forma republicana representativa’, que se lê no art. 7º, VII,
letra a, da Constituição, não tem definição global em qualquer dos
dispositivos da Constituição. É um conceito, portanto, que se integra
com os demais dispositivos da Constituição que se referem aos princí-
pios fundamentais do regime, entre eles, a investidura representativa
do governo. Evidentemente os casos de inelegibilidade se inserem no
próprio cerne da investidura eletiva, porque podem reforçá-la ou
comprometê-la, e a origem eletiva do poder é inerente à forma repu-
blicana representativa. O problema da inelegibilidade é, pois, um dos
exemplos de integração necessária do art. 7º, VII, da Constituição
por outros dispositivos nela contidos. E o legislador ordinário não
tem o poder de criar, a seu arbítrio, casos de inelegibilidade, com o
risco de corromper a representação política, cerceando desmedida-
mente a escolha do eleitorado.”
.
120
Ministro Victor Nunes

Esse modo de interpretação mostra-se bastante caro ao Ministro Victor


Nunes, que o reitera em diversas ocasiões, como, por exemplo, nas Representa-
ções 423, 467, 512 e 513.
O resultado, nesse caso, foi o julgamento da procedência da representação.

Representação 753

Adaptação de Constituição estadual à Federal, por


força de norma da Constituição de 1967 — Recepção
de normas de Constituição anterior como normas com
hierarquia de leis ordinárias.

Ainda envolvendo o tema do Direito Constitucional estadual conflitando


com o federal, há alguns casos que decorrem da norma contida no art. 188 da
Constituição de 196776.
Para tanto, a norma federal facilitou o processo de emenda: votação em
sessenta dias, em duas sessões; antes, eram exigidas duas sessões ordinárias e
consecutivas, o que, na prática, poderia significar meses.
No presente caso, estava envolvida a Constituição de São Paulo. Não
parece interessante abordar a discussão específica de cada ponto concreto que
foi analisado no julgamento, como, por exemplo, competência de Tribunais de
Alçada, vencimentos dos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas,
concursos públicos e outras questões de servidores públicos.
No entanto, uma questão com maior relevância em termos doutrinários
destaca-se da manifestação do Ministro Victor Nunes. A posição predominante
entendia que o art. 188 da Constituição Federal de 1967 determinara a adaptação
das Constituições estaduais, em um processo que não se confundiria com o do
poder ordinário de emenda; assim, as regras objeto da reforma, a serem votadas
pelas Assembléias Legislativas, deveriam ser aquelas que, explícita ou implicita-
mente, houvessem deixado de ser compatíveis com o ordenamento federal.
O Ministro Victor Nunes entende não haver motivos para se impedir que o
Poder Constituinte estadual atue quanto a outros pontos, que não aqueles objeto
de alteração federal, valendo-se do benefício do procedimento mais simplificado.
Nesse sentido, usa o argumento lógico de bastar que o constituinte esta-
dual faça uma reforma em dois tempos:

76 “Art 188. Os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias, para
adaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição, as quais, findo esse prazo,
considerar-se-ão incorporadas automaticamente às cartas estaduais”.

121
Memória Jurisprudencial

a) num primeiro momento — promovendo aí estritamente adaptação a


uma alteração federal —, seria modificada a regra estadual que dispõe sobre o
procedimento de emenda, adotando-se o procedimento federal simplificado;
b) num segundo momento, poderiam ser alteradas outras regras, pelo novo
procedimento, sem o limitante de serem meras adaptações à Constituição Federal,
pois essa nova conduta já estaria definitivamente incorporada no Direito estadual,
para qualquer caso.
O Ministro Victor Nunes ainda pondera que o sentido de limite imposto
pelo art. 188 da Constituição Federal se referia ao prazo para a reforma esta-
dual, findo o qual as novas normas federais seriam incorporadas automatica-
mente.
Pondera que seria desnecessário esse art. 188, se se pretendesse que tam-
bém impusesse limite de matéria. Ora, fosse para impor reformas limitadas a
certas matérias — considerando-se que, findo o prazo, elas ocorreriam automa-
ticamente —, bastava que o art. 188 as determinasse diretamente.
De resto, a inovação desse art. 188 seria o procedimento simplificado, que
persistiria para quaisquer emendas, independentemente de estarem promovendo
adaptações às novas normas federais. Até porque, como bem complementa o
Ministro Adaucto Cardoso, “o poder constituinte estadual não ficou privado
dos poderes de que dispunha antes”. Essa posição, no entanto, restou vencida.
Outro ponto, dentre os vários específicos julgados nessa representação, mas
que contém mais densidade teórica, diz respeito ao art. 147 da Constituição paulista.
Tal artigo dispunha que as normas da Constituição estadual de 1947, com-
patíveis com o novo ordenamento constitucional, seriam recepcionadas como leis
ordinárias.
A posição majoritária entendia que tal norma, além de fugir dos limites mate-
riais da adaptação — consoante interpretação majoritária do art. 188 da Constitui-
ção Federal —, mostrava-se incompatível com o ordenamento brasileiro, por im-
portar criação de lei ordinária, sem possibilidade de sanção ou veto pelo Executivo.
Discordando, o Ministro Victor Nunes argumenta, sempre com lógica, que,
se o poder constituinte, reformando a Constituição estadual, poderia ter mantido
como normas constitucionais dispositivos até então vigentes — compatíveis com
o novo regime, por suposto —, por que não poderia tê-los mantido válidos, porém
como leis ordinárias? É o típico caso de se argumentar que, podendo o mais,
poderia o menos.
Todavia, esse art. 147 da Constituição paulista restou julgado inconstitucional
pela maioria, contra os votos dos Ministros Victor Nunes e Evandro Lins.
.
122
Ministro Victor Nunes

Ainda no contexto da adaptação das Constituições estaduais à nova Cons-


tituição Federal, podem ser mencionadas a Rp 751, relatada pelo Ministro Victor
Nunes, e a Rp 746, relatada pelo Ministro Gonçalves de Oliveira.
Porém, nesses casos, a discussão não envolve teses de maior dimensão
teórica, a matizar o pensamento do Ministro Victor Nunes, senão análises
dogmáticas, pontuais e específicas, da compatibilidade de uma série de dispositi-
vos da Constituição do Estado da Guanabara, sobre Poder Judiciário, com o dis-
posto sobre a matéria na Constituição Federal, como, por exemplo, a competên-
cia para o julgamento de Ministros de Tribunais de Contas, critérios para a nomea-
ção de desembargadores pelo “quinto constitucional”, competências do Conselho
da Magistratura e da Corregedoria de Justiça, competências do Júri. Fica, pois,
apenas esse registro.

Representação 494

Autonomia municipal — Majoração de tributos —


Controle dos Municípios pelos Estados — Controle polí-
tico pelo eleitorado.

Esta representação tem por alvo diversos dispositivos da Constituição do


Estado da Bahia, supostamente atentatórios à autonomia dos Municípios ao dis-
porem sobre várias matérias, entre elas: a) julgamento de responsabilidade de
prefeitos, pelo Tribunal de Contas, por suas contas; b) necessidade de autorização
da Assembléia Legislativa para que Municípios se associem em busca da solução
de problemas comuns77 e também para que façam concessão de serviços públi-
cos, além da necessidade da concordância da Assembléia Legislativa para que
Municípios possam perdoar dívida ativa, conceder privilégios e isenções, majorar
impostos em mais de 20%, alienar ou aforar bens e celebrar contratos sem con-
corrência pública.
O Ministro Relator, Ary Franco, originalmente, vota julgando improcedente
a representação, com base nos argumentos apresentados em parecer da Procurado-
ria-Geral da República.
Entende, assim, que a Constituição baiana, nos dispositivos impugnados,
prevê apenas providências supletivas, representando fiscalização “oportuna,
cautelosa e benéfica” por parte da Assembléia Legislativa. Nenhum dos dispo-
sitivos conflitaria com a Constituição Federal, não retirando dos Municípios a

77 Esse tema ganha hoje novos contornos com a Lei 11.107/2005, sobre consórcios
públicos.

123
Memória Jurisprudencial

eleição de seus prefeitos e vereadores, nem a administração própria, em especial


a tributária e financeira, bem como de seus serviços públicos.
Ao votar, o Ministro Victor Nunes promove reparo, entendendo a represen-
tação procedente quanto a um aspecto: o art. 104, IV, da Constituição estadual,
pelo qual os Municípios não poderão, sem prévia autorização da Assembléia
Legislativa, majorar impostos em mais de 20%. Nesse passo, lembra o Ministro
Victor Nunes que, consoante jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, a
Constituição estadual não pode limitar a majoração de impostos municipais, es-
tabelecendo-lhe teto (cf. RE 45.243, RE 29.285, RE 26.157, RMS 8.392,
RE 35.719, RE 35.326, RMS 9.518 e RMS 9.566).
Se a Constituição estadual não pode fazê-lo, mais restritivo ainda seria
subordinar a majoração à decisão do Legislativo estadual. Trata-se de medida
inconstitucional, por excluir competência do Município, sem, ademais, impedir
decisões discriminatórias por parte do Poder estadual.
O Ministro Victor Nunes ainda aborda dois outros pontos duvidosos, mas
que acaba por julgar constitucionais: os incisos II e III do mesmo art. 104, que
subordinam à aprovação da Assembléia Legislativa a concessão, por Municípios,
de privilégios e isenções, bem como a alienação ou o aforamento de imóveis.
Lembra aspecto salutar do controle das finanças municipais pelo Estado,
que tem a obrigação constitucional de socorrer o Município nas condições previs-
tas, para lhe restaurar as finanças, podendo mesmo se valer da intervenção.
Para chegar à sua decisão, o Ministro Victor Nunes cita trecho de estudo
incluído em seu livro Problemas de Direito Público, relativo à competência que
a Constituição Federal deu aos Estados para a fiscalização da administração
financeira dos Municípios. Entende que, para exercer tal competência, podem os
Estados criar órgãos, ou confiá-la a órgãos existentes, como a Assembléia
Legislativa, determinando a forma, o processo e os critérios a que deve subor-
dinar-se a fiscalização.
Tais controles sobre a administração financeira dos Municípios, segundo o
Ministro Victor Nunes, ainda deveriam, em respeito à autonomia municipal, observar
cinco limites, que assim enuncia: “1º, que se refiram à gestão financeira; 2º, que
tenham aplicação genérica, não discriminatória; 3º, que condicionem, acaute-
lem, mas não vedem a deliberação municipal; 4º, que se limitem a estabelecer
pressupostos de legalidade, sem transferir a qualquer órgão não municipal
controle da conveniência ou oportunidade; 5º, finalmente, (...) que se destinem
a suprir a impossibilidade de um eficiente controle por parte do eleitorado”.
Sobre esse quinto limite, o Ministro Victor Nunes observa que a Constitui-
ção de 1946 “depositou grande confiança no controle político do eleitorado”,
.
124
Ministro Victor Nunes

pois “esse tipo de controle é o único estritamente compatível com o regime de


autonomia concebido em termos amplos”.
Esse controle, porém, “só tem eficácia nos casos em que a nova admi-
nistração, porventura alçada ao poder pela manifestação das urnas, esteja
em condições, senão de reparar, pelo menos de fazer cessar para o futuro
os efeitos dos atos danosos da administração anterior”. É o que se passa
com leis que reduzam ou majorem impostos, que a todo tempo podem ser modifi-
cadas — daí por que julgar inconstitucional o citado inciso IV do art. 104 da
Constituição baiana.
Mas a eficácia do controle político do eleitorado não se passa com “as
isenções tributárias concedidas por longo prazo, com os empréstimos vul-
tosos, com a nomeação de funcionários estáveis ou o aumento de seus ven-
cimentos, com a venda de bens municipais, etc.” — daí a conclusão de serem
constitucionais os incisos II e III do mesmo art. 104, ao preverem controles esta-
duais sobre concessão de privilégios e isenções, bem como alienação ou
aforamento de imóveis pelos Municípios.
Ante a manifestação do Ministro Victor Nunes, o Ministro Relator altera seu
voto, para considerar a representação procedente quanto ao art. 104, IV, julgando-
a improcedente nos demais aspectos. Essa foi a posição unânime do Tribunal.

Representação 505

Autonomia municipal — Competência em matéria


de majoração de tributos.

Trata-se, aqui, da mesma questão envolvendo o inciso IV do art. 104 da


Constituição da Bahia, agora juntamente com os incisos I a V e o inciso IX do
art. 103.
Nesse caso, o Ministro Relator, Pedro Chaves, vota pela improcedência da
representação, inclusive quanto ao citado inciso IV, entendendo abrangido pelo
dever de fiscalizar a administração financeira dos Municípios, “cujo modus
faciendi o art. 22 da Constituição Federal atribuiu aos Estados, em conju-
gação com o princípio geral da justiça das imposições tributárias”.
A seu turno, o Ministro Victor Nunes lembra, inicialmente, que tal dispositi-
vo já fora unanimemente julgado inconstitucional na Rp 494, com o voto de mais
de seis Ministros, inclusive o do Ministro Pedro Chaves. Assim, propõe, com base
no Regimento, que se ponha a votos questão prejudicial quanto à reabertura do
debate sobre o tema no Tribunal.
.
125
Memória Jurisprudencial

Reabertos os debates, e reafirmados argumentos, o Tribunal novamente


julga inconstitucional o dispositivo em questão, contra os votos dos Ministros
Pedro Chaves e Hahnemann Guimarães.

Representação 654

Competência municipal em matéria de serviço de


água e esgoto.

Nesta representação, por instância do Município de Salvador, discutia-se


suposta violação da autonomia municipal, decorrente da prestação, pelo Estado
da Bahia, dos serviços de água e esgotos, organizados pela Lei estadual 1.549, de
16 de novembro de 1961.
Defendendo sua posição, o Estado sustentava que assim agia desde a dé-
cada de 20, por força de convênio celebrado em 1924, envolvendo não apenas o
Município de Salvador mas também os de Camaçari, Candeias e São Francisco
do Conde, convênio esse nunca denunciado e ainda contendo cláusula de indeni-
zação ao Estado pelos investimentos realizados, em caso de rescisão.
O Município de Salvador admitia não haver formalmente denunciado o
convênio, mas o considerava caduco.
Votando, o Ministro Relator, Vilas Boas, reconhece que, “naturalmente,
os serviços de água e esgotos são de peculiar interesse do município78. Se o
Estado da Bahia tivesse praticado uma usurpação, se ele tivesse assumido
esse serviço ex propria autoritate, seria o caso de se decretar a argüição de
inconstitucionalidade.” No caso concreto, porém, o convênio acarreta não haver
a inconstitucionalidade pretendida.
Reconheciam a inconstitucionalidade os Ministros Carlos Medeiros e
Pedro Chaves, pretendendo prestigiar a autonomia municipal, reforçando seu
caráter político e sugerindo que o Estado discutisse judicialmente, por vias ordiná-
rias, a indenização de que se julgasse credor.
O Ministro Victor Nunes, em seu voto, acompanha o Relator, entendendo
que teria havido violação da autonomia municipal se o Estado houvesse assumido
o serviço manu militari, ou ainda que, por meio de lei estadual, houvesse agido à

78 Essa questão, presentemente, vem sendo objeto de discussão; em São Paulo, por
exemplo, tendo a Prefeitura da Capital pretendido sustentar essa tese, acabou por preva-
lecer o entendimento de caber ao Estado a atividade. No caso, porém, estavam envolvidos
argumentos de maior complexidade, como o abastecimento de toda a região metropolita-
na, com mais de vinte milhões de habitantes e com mananciais situados fora do território
da Capital. A matéria encontra-se atualmente em discussão no STF, por força da ADI 2.077.

126
Ministro Victor Nunes

revelia da Prefeitura. O convênio, ainda que antigo, afasta a violação do princípio


constitucional invocado.
Caberia, então, ao Município discutir a validade do convênio, o que, toda-
via, não cabe na representação, que foi julgada improcedente, contra os dois
votos acima referidos79.

Representação 503

Autonomia municipal — Disposição, por lei esta-


dual, sobre critério de partilha de arrecadação de im-
posto estadual com Municípios.

Cuidava-se, neste caso, de questão de ordem tributária, igualmente envol-


vendo alegação de ofensa ao princípio constitucional da autonomia municipal
(Constituição Federal, art. 7º, VII, e, c/c art. 28, II, a), assim como à regra do art.
2080, sobre partilha de impostos estaduais com Municípios.
A Lei 4, de 11 de fevereiro de 1960, do Estado do Paraná alterara o critério
empregado para a partilha, com os Municípios, do Imposto de Vendas e Consig-
nações: por uma ficção, passou-se a considerar arrecadado o imposto no Municí-
pio de origem do produto, como se lá houvesse ocorrido a venda.
Reclamou contra tal lei, ensejando a representação, o Município de
Paranaguá, que se sentia prejudicado, por representar forte pólo de circulação de
mercadorias, em virtude do seu Porto.
O voto do Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, julgando procedente a
representação, registra entendimento de não poder o Estado, por uma ficção,
alterar o critério adotado pelo art. 20 da Constituição — o Ministro até admite
que pode não ser o melhor critério —, ao se referir ao Município em que tenha
havido a arrecadação. A lei estadual, desse modo, teria alterado a realidade, em
detrimento do Município em cujo território a arrecadação é feita.
Sustentando tese oposta, os Ministros Vilas Boas e Hermes Lima desta-
cam que o critério da lei valoriza o Município produtor da riqueza, o que é coerente
com o sistema constitucional — “a Constituição liga muito a imposição à
produção”, observa o Ministro Vilas Boas.

79 Nessa representação há interessante voto do Ministro Aliomar Baleeiro, discorrendo


sobre a história do Município de Salvador e sobre sua visão de autonomia municipal.
80 Constituição Federal, art. 20: “Quando a arrecadação estadual de impostos, salvo a
do imposto de exportação, exceder, em Município que não seja o da Capital, o total das
rendas locais de qualquer natureza, o Estado dar-lhe-á anualmente trinta por cento do
excesso arrecadado”.

127
Memória Jurisprudencial

Perfilhando a mesma tese desses dois Ministros, o Ministro Victor Nunes


traz um argumento em reforço: o art. 20, ao excluir as Capitais — locais de
grande circulação de mercadorias, mas não necessariamente de produção — do
critério de partilha, tê-lo-ia feito justamente por adotar o critério de prestigiar o
Município produtor de riqueza, que é o Município da origem do produto.
Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes lembra o precedente dos Embar-
gos em Recurso Extraordinário 30.675, envolvendo lei paulista de idêntico teor —
situação em que quem reclamara fora o Município de Santos —, no qual o Tribu-
nal, por votação unânime, julgara a lei constitucional. Em face desse fato, o Mi-
nistro Relator assume ter, agora, mudado sua posição, prendendo-se a uma inter-
pretação mais literal da Constituição.
E contra a leitura literal, o Ministro Victor Nunes argumenta que a Cons-
tituição teria a intenção de mencionar, em seu artigo 20, com a expressão “arre-
cadado”, não o ato de arrecadar (“fato insignificante”), mas o montante dos
impostos arrecadados no Estado em razão da riqueza produzida. Com essa leitura,
caberia ao legislador ordinário precisar o critério da partilha do excesso de arre-
cadação, conforme a realidade de cada Estado.
Restam vencidos, no entanto, os Ministros Victor Nunes, Vilas Boas e
Hermes Lima, sendo julgada procedente a representação.

Recurso em Habeas Corpus 39.708

Aplicação de norma de lei federal sobre crime de


responsabilidade a prefeito — Função política e admi-
nistrativa do prefeito.

A questão jurídica debatida neste caso dizia respeito à aplicação subsidiá-


ria da Lei federal 1.079/50, em matéria de crime de responsabilidade dos Prefei-
tos, por força da Lei 3.528/5981.
Dessa aplicação decorreria regra segundo a qual, pelo crime comum,
caracterizado a partir de ato também definido como crime de responsabilidade, o
Prefeito só poderia ser processado, na justiça comum, após seu afastamento do
cargo, por impeachment ou por outra causa.
No caso, buscava o Prefeito de Valparaíso/SP obstar o prosseguimento de
inquérito policial. A situação de fato envolvia a compra de dois caminhões pelo
Município, por determinação do Prefeito, sem audiência da Câmara Municipal,

81 Note-se que o julgamento é anterior ao Decreto-Lei 201/67.

128
Ministro Victor Nunes

caracterizando, potencialmente, crime de responsabilidade, sem exclusão de


eventual crime comum.
O Ministro Relator, Vilas Boas, vota dando razão ao Prefeito, para afastar
o inquérito policial, mas o Ministro Ari Franco levanta tese diversa, entendendo
que a abertura do inquérito policial não constituía constrangimento e que o inqué-
rito nada tinha a ver com a qualidade do Prefeito.
O Ministro Victor Nunes produz então voto mais longamente fundamentado,
invocando precedentes que se aplicavam a determinados aspectos da questão:
RHC 38.61982, mais recente e no sentido da tese do Prefeito, e RHC 38.238, em
sentido contrário.
Vota o Ministro Victor Nunes pelo provimento ao recurso do Prefeito, po-
rém em termos mais amplos do que os do voto do Relator — , que, afinal, acom-
panha o voto do Ministro Victor Nunes: “concedo a ordem (...) para cessar o
procedimento criminal até que o Prefeito deixe o cargo, por decisão da
Câmara Municipal, em processo de impeachment, ou por qualquer outro
motivo”. O provimento, no entanto, é parcial, pois pretendia o Prefeito o reco-
nhecimento de ser o impeachment sempre condição para o processamento cri-
minal.
Fundamentando seu entendimento, o Ministro Victor Nunes inicia por
afastar possível aplicação, aos Prefeitos, de regra própria do regime da Presidên-
cia da República. A doutrina mais autorizada — na época — sustenta que a
absolvição do Presidente da República no processo de impeachment — seja ao
não ser admitido o processo pela Câmara, seja ao ser decidida propriamente a
absolvição pelo Senado — isenta-o de qualquer outra responsabilização por tal
ilícito. Essa conseqüência não pode ser estendida aos Prefeitos, por decorrer de
interpretação de regra constitucional específica quanto ao Presidente da República. E
a Lei 1.079/50 deve ser aplicada aos Prefeitos apenas “no que couber”.
Isso, ademais, é coerente com o fato de os Prefeitos desempenharem fun-
ção substancialmente mais administrativa que o Presidente, “que exerce o po-
der político por excelência”.
Com essas considerações, manifesta posição sintetizada assim:

82 Nesse caso, a tese sustentada pelo Relator, Ministro Luiz Gallotti, acompanhada pela
unanimidade de votos do Tribunal Pleno, é a mesma que o Ministro Victor Nunes agora
defende no RHC 39.708. Todavia, naquela ocasião, ao acompanhar o Relator, o Ministro
Victor Nunes ressalva sua posição, que entende não ser então oportuno desenvolver, no
sentido de que determinadas regras do regime próprio do Presidente de República não se
aplicam aos Prefeitos. Isso a seguir será exposto.

129
Memória Jurisprudencial

“De primeiro lugar não absolve do processo criminal o Prefeito.


O processo criminal contra Prefeito em exercício fica apenas sujeito
a uma dilação, que corresponde à sua permanência no exercício do
cargo; apenas enquanto estiver no exercício do cargo é que não po-
derá ser processado. Se a Câmara Municipal decide contra ele o
processo de impeachment, acarretando-lhe a perda do cargo, fica o
Prefeito, desde logo, sujeito a procedimento penal, inclusive a inqué-
rito policial. O mesmo acontecerá se deixar o cargo por outro qual-
quer motivo.
Essa doutrina atende, de um lado, ao interesse da repressão da
criminalidade e também protege, por outro lado, o bom desempenho
da função pública. Um delegado de polícia atrabiliário, em cidade
de interior, onde o Prefeito esteja em oposição ao Governador, pode-
ria tornar impraticável a administração municipal, mediante inquéri-
tos sucessivos, com buscas e apreensões, intimações para depor, etc.
Dificilmente, o Juiz local poderia conceder habeas corpus para impe-
dir, por exemplo, uma busca e apreensão”.83
Note-se que dessa jurisprudência, iniciada com o referido RHC 38.619,
decorreu a Súmula 301 — atualmente cancelada: “Por crime de responsabili-
dade, o procedimento penal contra Prefeito Municipal fica condicionado
ao seu afastamento do cargo por impeachment, ou à cessação do exercício
por outro motivo”.
É, assim, dado provimento ao Recurso — quanto ao Prefeito84 —, nos
termos do voto do Ministro Victor Nunes, contra os votos dos Ministros Ary
Franco, Pedro Chaves e Hahnemann Guimarães.

Representação 423

Criação de Município — Discussão sobre divisão


distrital como critério para oitiva da população do terri-
tório a ser desmembrado — Hierarquia de leis.

É alvo desta representação a Lei estadual fluminense 3.765, de 25 de no-


vembro de 1958, que desmembrou, do Município de Vassouras, dois distritos —

83 Esse último aspecto, mais político, do voto é especificamente elogiado pelo Ministro
Gonçalves de Oliveira, que registra: “Morei muito tempo no interior e, quando o Prefeito
está em oposição ao Governo do Estado, destaca-se um Delegado para a cidade e
começa ele a abrir inquéritos absurdos, não permitindo mais que continue a adminis-
tração regular do Município”.
84 Note-se que há outro recorrente, também paciente no habeas corpus, quanto ao qual
é negado provimento ao recurso, por não lhe assistirem as prerrogativas de Prefeito.

130
Ministro Victor Nunes

Sacra Família do Tinguá e Paulo de Frontin —, que vieram a constituir o Municí-


pio Engenheiro Paulo de Frontin. A representação foi ensejada pelo Município de
Vassouras, que se julgava prejudicado com a medida.
A polêmica decorre do fato de que a população do distrito de Sacra Família
do Tinguá votara majoritariamente contra o desmembramento, pretendendo que
o distrito continuasse ligado ao Município de Vassouras, enquanto a população do
distrito de Paulo de Frontin, bem mais populoso, votara pela emancipação, levan-
do consigo o distrito de Sacra Família do Tinguá.
O Ministro Relator, Henrique D´Avila, com fundamento no texto da Cons-
tituição do Estado (“Para a criação de novo Município, serão ouvidos, em
escrutínio secreto, os eleitores do território que o deva constituir.”), julgava
improcedente a representação. Não via relevância na consideração da popula-
ção inserta em “distritos”, posto que o Município constitui um único território,
sendo a divisão em distritos mera comodidade administrativa.
Travou-se, então, debate com o Ministro Nelson Hungria, que vislumbrava,
na hipótese de um distrito de menor eleitorado ser “arrastado pelo outro, contra
a sua vontade”, algo “profundamente anti-republicano e antifederativo”.
A isso, respondia o Ministro Relator, Henrique D´Avila: “o que será pro-
fundamente anti-republicano e injusto é admitir que o minguado distrito de
Sacra Família, com sua escassíssima população, possa barrar definitiva-
mente o propósito manifestado nas urnas pelo pujante distrito de Paulo de
Frontin”.
Votando com o Relator, o Ministro Victor Nunes acrescenta argumento,
decorrente de interpretação lógica do texto constitucional, que se refere à vota-
ção dos eleitores do “território” do Município a ser criado. Tal “território” não
precisa ser coincidente com limites de distritos. Se, no caso, o território do novo
Município coincide com o de dois distritos que vão se fundir, isso pouco importa.
Será ouvida, como um todo, a população desse “território”.
Restam, todavia, vencidos os Ministros Victor Nunes e Henrique D´Avila,
acompanhados ainda dos Ministros Vilas Boas e Gonçalves de Oliveira. A repre-
sentação é, assim, julgada procedente.
Em face dessa decisão, foram apresentados embargos — ERp 423 —
pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e pelo Município Engenheiro Paulo
de Frontin — o segundo tendo sua petição indeferida, unanimemente.
Relator dos embargos, o Ministro Luiz Gallotti os rejeita, reafirmando a
tese vencedora na Rp 423, e confirma o critério não explícito na norma de regên-
cia — de que os votos dos distritos devem ser computados separadamente, e não
conjuntamente, como um só território —, acrescentando que o distrito que votara a
.
131
Memória Jurisprudencial

favor não tinha, por si só, o necessário requisito demográfico de dez mil habitan-
tes, a reforçar a invalidade da lei que consagrou a criação do novo Município.
O Ministro Victor Nunes, reiterando sua posição original, vota pelo acolhi-
mento dos embargos, para julgar improcedente a representação. Em sua mani-
festação, situa a controvérsia em torno de ter a lei impugnada, de criação do novo
Município, violado a autonomia municipal. Passa então a analisar essa autonomia
tal como tratada em três níveis: Constituição Federal, Constituição do Estado e
Lei Orgânica dos Municípios (lei estadual).
Quanto à Constituição Federal, inicialmente reitera argumento de que não
se aplica ao caso de desmembramento de Municípios a regra do art. 2º, que trata
da impossibilidade de se abolir a Federação, erigindo-se o Estado Federal como
unidade intangível.
Em segundo lugar, lembra que a autonomia municipal é definida no art. 28
da Constituição Federal, em função do peculiar interesse do Município. “E nunca
se sustentou, em boa doutrina, que a criação de novos municípios fosse
assunto do peculiar interesse deste ou daquele município”. Trata-se de inte-
resse, em princípio, de todo o Estado.
Como terceiro ponto, afasta a idéia de que um distrito “não poderá ser
privado de sua vinculação política a determinado município, sem seu con-
sentimento”, sendo vítima de espécie de “imperialismo” de distritos maiores.
Assim, observa que a criação de novo Município não resulta de ato de distrito,
mas de lei estadual, que fala pelo Estado, eliminando-se, pois, a idéia do “imperia-
lismo distrital”.
Quanto à Constituição do Estado, a criação do Município em discussão
também não conteria vícios. Fora ouvida a população do território do novo
Município, tal como exige o texto da Constituição estadual, sem descer ao
detalhe de se a consulta será feita em conjunto ou separadamente em cada
distrito.
Por fim, quanto à lei estadual que trata da matéria, afasta um primeiro
argumento que, analogicamente, invocava a regra de que dois Municípios têm
que ser ouvidos isoladamente no caso de sua fusão. Ora, no presente caso,
trata-se de um Município só — nem seriam, porventura, dois distritos situados em
Municípios diversos.
Nega também a aplicação, ao caso, da norma da Lei Orgânica dos Municí-
pios, lei estadual que trata da fusão de distritos, o que pressupõe que passem a
formar um distrito só. Ocorre que, no caso, os distritos não se fundiram; continuam
distritos distintos, porém integrando Município novo.
.
132
Ministro Victor Nunes

Por fim, argumenta que, ainda que tivesse havido contrariedade à Lei
Orgânica dos Municípios — o que nega —, esse problema estaria superado pelo
fato de a lei que aprovou a criação do novo Município ser igualmente lei estadual,
posterior àquela e de mesma hierarquia, ainda que trate individualmente de caso
especial.85
No entanto, mesmo com nova composição do Tribunal, a posição do Ministro
Victor Nunes resta vencida, agora acompanhada de mais quatro Ministros, tendo
sido os embargos rejeitados com o voto de desempate do Ministro Presidente.

Representação 583

Criação de Município — Autonomia municipal —


Convalidação de vícios no processo de criação ante
concordância do Município do qual houve desmembra-
mento — Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e
lei de criação de Município — Lei em sentido formal e
lei em sentido material.

Esta representação também se voltava contra lei estadual que aprovara a


criação de Município, tida por violadora do princípio constitucional da autonomia
municipal.
Era o caso da criação do Município de Olho D’Água Grande, Alagoas, em
que houvera desrespeito às normas aplicáveis, mas contava-se com a concor-
dância expressa do Município de São Braz — via deliberação de sua Câmara
Municipal —, do qual se origina o novo Município, que seria o potencialmente
prejudicado em sua autonomia.
Essa concordância — como há se de ver na análise de casos mais abaixo —
era tida pelo Supremo Tribunal Federal como argumento para negar a inconstitu-
cionalidade de leis estaduais por suposta afronta ao princípio da autonomia muni-
cipal (cf. infra Rp 507 e Rp 534; em sentido contrário, todavia, cf. infra Rp 574).
Esses precedentes são lembrados pelo Ministro Relator, Victor Nunes, em seu
voto.

85 Nesse passo, ao ser argüido pelo Ministro Relator, Luiz Gallotti, pronunciou-se, em
observação que merece registro, manifestando relevante opinião: “Então, cada vez que
se criar um município em desconformidade com a lei orgânica, esta ficará alterada (...)”
(Ministro Luiz Gallotti). “Não há, no Direito Constitucional brasileiro — a não ser
agora, com a lei institucional do regime parlamentarista, prevista no Ato Adicional, de
2-9-1961 —, qualquer distinção entre as leis ordinárias, no sentido de se colocar
qualquer delas acima das outras. E falo com a maior insuspeição, porque tenho defen-
dido a necessidade de haver, no Brasil, essa diferenciação. Escrevendo a respeito da

133
Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes, relatando o caso, já vê razão para


a improcedência da representação.
No entanto, observa que, neste caso, há ainda outro argumento, de maior
peso, para o julgamento de improcedência86: não houvera violação da Constitui-
ção estadual, mas sim da Lei Orgânica dos Municípios — à qual era constitucio-
nalmente delegado dispor sobre a criação de Municípios —, com natureza de lei
ordinária, a mesma de cada lei de criação de Municípios.
Configura-se, pois, a situação hipotética lançada pelo Ministro Victor
Nunes, como argumento nos Embargos à Representação 423, em que lei especial
de criação de Município contraria a Lei Orgânica. Retoma-se, assim, ao longo do
voto do Ministro Relator, Victor Nunes, a polêmica sobre a hierarquia da Lei
Orgânica (cf. supra análise da Rp 423) e sobre seu conflito com eventual lei
estadual de criação de Município.
O Ministro Luiz Gallotti, apoiado por outros Ministros, como Hahnemann
Guimarães, sustentando que a lei de criação de Município seria lei apenas em
sentido formal, argumenta que ela não pode se sobrepor à Lei Orgânica.
O Ministro Victor Nunes, por sua vez, observa que a lei especial e posterior
deve prevalecer no caso concreto, sem, no entanto, eliminar a norma geral. Essa
polêmica, com mais detalhes, resta nítida no seguinte trecho:
“O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): A lei orgânica obriga as
municipalidades, porque, pela Constituição, são elas organizadas nos termos
dessa lei.
O Sr. Ministro Luiz Galotti: Mas, se produzem, em lei, um sentido ma-
terial, condições para que o Poder Legislativo crie municípios, está-se limi-
tando a atuação do Legislativo na elaboração de leis meramente formais
que criam municípios.

criação de organismos regionais ou intermunicipais, para execução de determinados


serviços públicos, como aproveitamento de quedas d’água, transportes, açudagem, etc.,
sustentei, em trabalho doutrinário, que seria conveniente uma reforma constitucional
que desse às leis de criação de tais organismos uma categoria superior, de modo que
não pudessem ser modificadas pelo voto da simples maioria relativa das assembléias
legislativas; convinha que tivéssemos mais imaginação, para fugir à classificação
rígida que herdamos da tradição do nosso Direito Público. Mas o fato é que não existe,
até hoje, entre nós, distinção entre leis ordinárias, salvo o exemplo recente da lei
institucional do regime parlamentarista, que, pelo Ato Adicional, deve ser votada pela
maioria absoluta da Câmara e do Senado” (Ministro Victor Nunes).
86 Cita, em consonância com sua tese, o precedente consistente na Rp 578, julgada em 22
de março de 1965, Relator o Ministro Vilas Boas.

134
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O Poder Legislativo não se


obriga a si mesmo para o futuro, salvo por emenda constitucional ou por
um tipo especial de lei, cuja votação também especial lhe dê categoria mais
elevada na hierarquia das leis.

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não é possível que se crie um


município por lei especial que se afaste da lei orgânica.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Peço vênia para lembrar a
meu eminente Mestre Ministro Hahnemann Guimarães que todo o campo
de direito excepcional, que confere privilégios ou vantagens especiais,
como são as pensões individuais, repousa em leis que se têm denominado
formais. Mas essas leis, embora se refiram a casos concretos, revogam dis-
posições de lei geral. E não deixamos de aplicá-las, porque são da mesma
hierarquia das leis gerais, já que votadas pelo Congresso com as mesmas
formalidades. Dentre as leis votadas com as mesmas formalidades, nenhuma
delas é superior à outra.”
Neste caso, acaba por prevalecer a posição do Ministro Relator, Victor
Nunes, julgando-se improcedente a representação, contra os votos dos Ministros
Luiz Gallotti, Hanhemann Guimarães, Gonçalves de Oliveira e Prado Kelly.

Representação 632

Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de


criação de Município.

A questão da subordinação ou não da lei estadual de criação de Município


aos mandamentos da Lei Orgânica dos Municípios é mencionada nesta represen-
tação, a qual foi julgada procedente, por votação unânime.
Em seu sintético voto, o Ministro Victor Nunes acolhe a representação
pelo fato de a Assembléia Legislativa — no caso, da Paraíba — haver admitido
não terem sido provadas as condições exigidas no Direito estadual para a criação
do Município de Assunção.
No entanto, na motivação, reitera seu entendimento de não estar a Assem-
bléia Legislativa, ao aprovar a criação de novo município, subordinada às normas
da Lei Orgânica dos Municípios, em que pese reconheça a reiteração de julgados
do Supremo Tribunal Federal em sentido contrário. Essa tese, de qualquer modo,
não é relevante para a solução deste caso.
.
135
Memória Jurisprudencial

Representação 657

Conflito entre Lei Orgânica dos Municípios e lei de


criação de Município.

Igualmente na Representação 657 está em questão prevalência ou não da


Lei Orgânica dos Municípios em caso de criação de municípios. Tratava-se da
criação do Município de Lagoa Salgada, no Rio Grande do Norte, por Lei estadual
de 1962.
Ao votar, o Ministro Relator, Victor Nunes, ressalva o seu ponto de vista
pessoal em sentido contrário (cf. Rp 583) e segue o posicionamento firmado pelo
Tribunal (Rp 575 e Rp 664), no sentido de prevalecer o disposto na Lei Orgânica87.
Todavia, neste caso os votos são posteriormente retificados, para julgar-se
prejudicada a representação, posto ter sido, pela Constituição estadual de 1967,
ratificada a divisão administrativa do Estado então vigente.

Representação 507

Criação de Município — Autonomia municipal —


Concordância do Município do qual houve desmembra-
mento.

Esta representação refere-se ao caso da criação dos Municípios de Anita


Garibaldi e Campo Belo do Sul, ambos desmembrados do Município de Lages.
Argumentava-se que, nas áreas dos novos Municípios, não havia vinte mil habi-
tantes, tal como exigido pela Constituição do Estado de Santa Catarina e pela Lei
Orgânica dos Municípios. Tal fato era negado pela Assembléia Legislativa.
Relatando o caso, o Ministro Victor Nunes situa a hipótese de cabimento
da representação na alegação de violação do princípio da autonomia municipal
(art. 7º, VII, e, da Constituição Federal).
À parte a questão da controvérsia quanto à prova da população dos novos
Municípios, o Ministro Victor Nunes pondera que, no caso, não há nenhum Muni-
cípio cuja autonomia tenha sido violada, assim como nenhum Município reclamou
da criação desses dois novos — quem protestara perante a Procuradoria-Geral
da República, ensejando a representação, foram moradores de um dos distritos
envolvidos no desmembramento.

87 Há debates renovados no voto do Ministro Eloy da Rocha, que não alteram, contudo,
o entendimento majoritário.

136
Ministro Victor Nunes

Aliás, ambos foram criados a partir de desmembramento do território do


Município de Lages, e o foram mediante deliberação da própria Câmara Municipal
de Lages. Assim, houve prévia aquiescência do único ente com qualidade para
reclamar — o Município de Lages88. De tal qualidade não desfrutam distritos,
posto não terem autonomia federativa a ser preservada pela Constituição — no
caso, por meio da representação interventiva.
Desse modo, o Ministro Relator, Victor Nunes, votou pela improcedência
da representação, tendo sido acompanhado pela unanimidade do Tribunal.
Vale lembrar que, nessa época, o sistema concentrado de controle de
constitucionalidade consistia na representação dita interventiva, por configurar
pressuposto de intervenção federal em algum Estado, ante violação de determi-
nados princípios constitucionais.
Assim, não se trata de uma discussão em abstrato quanto à constituciona-
lidade da lei estadual de criação dos novos Municípios, mas sim de uma discussão
da constitucionalidade dessa lei no que diz respeito à eventual violação do princípio
constitucional invocado, no caso, o da autonomia municipal.

Representação 534

Criação de Município — Autonomia municipal —


Concordância do Município do qual houve desmembra-
mento.

Também nesta representação, relatada pelo Ministro Victor Nunes e


julgada improcedente pela unanimidade do Tribunal, prevaleceu a tese consagra-
da na Rp 507, acima relatada.
A ementa bem sintetiza a tese:
“Não se pode falar em ofensa à autonomia municipal, quando
o próprio município, que seria prejudicado pela criação de novos,
propôs o desmembramento, em forma regular, à Assembléia Legislativa
estadual. Improcedência da representação contra a criação dos Mu-
nicípios de Guabiruba e Botuverá, em Santa Catarina.”

88 Nesse sentido, os precedentes invocados pelo Procurador-Geral da República — Rp


275 e Rp 296, relativas ao reconhecimento da inconstitucionalidade da criação dos Muni-
cípios de Santo Amaro da Imperatriz e de Araguari, ambos em Santa Catarina, em razão da
insuficiência de população — não se aplicam, pois nesses casos não ocorrera concordân-
cia dos Municípios dos quais haveria o desmembramento, tendo sido esses mesmos
Municípios que demandaram a representação.

137
Memória Jurisprudencial

Representação 586

Criação de Município — Autonomia municipal —


Concordância do Município do qual houve desmembra-
mento.

Reafirmando o mesmo argumento, porém levando à conclusão da proce-


dência da representação, ou seja, da inconstitucionalidade da lei de criação de
Município, votou o Ministro Victor Nunes neste caso.
Trata-se da criação dos Municípios de Morros da Mariana e Bom Princípio
do Piauí, desmembrados do Município de Parnaíba.
Conforme alegações do Procurador-Geral da República na representação,
houve violação de normas da Constituição do Estado sobre a criação de Municí-
pios — limite temporal para alteração da divisão administrativa do Estado — e
violação do princípio da autonomia municipal — previsão de instalação dos novos
Municípios sob governo de Prefeitos nomeados pelo Governador, até realização
de eleições.
O Ministro Victor Nunes vota com o Relator, Ministro Luiz Gallotti, regis-
trando:
“Acompanho o voto do eminente Relator, pela procedência da
representação, tendo em vista que a argüição de inconstitucionalidade
foi formulada pelo próprio Município desfalcado (Parnaíba). Não
fora esta circunstância, eu julgaria improcedente a representação,
como votei em casos anteriores”.

Representação 574

Criação de Município — Autonomia municipal —


Concordância do Município do qual houve desmembra-
mento — Decisão divergente das anteriores.

Em mais este caso veio à tona o argumento segundo o qual o consentimento


do Município do qual se desmembra um novo afasta a procedência de represen-
tação contra a criação do novo Município, ainda que fundada a representação em
violações de outras normas que regem a matéria. Contudo, aqui o argumento não
prevaleceu.
Cuidava-se, neste caso, da criação do Município de Piau, por desmembra-
mento do Município de Goianinha, no Rio Grande do Norte.
.
138
Ministro Victor Nunes

O Ministro Relator, Evandro Lins, reconhece a inconstitucionalidade do


processo de criação do Município, por desrespeito à norma da Constituição esta-
dual que impunha requisitos de população, número de moradias, receita, dispo-
nibilidade de prédio para funcionamento da Prefeitura e existência de certos
serviços de utilidade pública.
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, invocando os precedentes da Rp 507
e da Rp 534, lembra que houve a aquiescência do Município desfalcado, tal como
admitido pela Assembléia Legislativa do Estado89, mesmo que a Assembléia en-
tenda, como manifestou no processo, ter sido inconstitucional a criação do Muni-
cípio — em que pese tenha, em época anterior, aprovado a lei de criação. Não
apenas teria havido a aquiescência do Município de Goianinha, como ainda, em
nenhum momento antes ou durante o processo, teria esse Município protestado
contra a criação do Município de Piau.
Lembra o Ministro Victor Nunes que “o princípio da Constituição Fe-
deral que está em jogo neste processo de representação é o da autonomia
municipal. Esse princípio é que se integra com os requisitos estabelecidos
pelo direito estadual para a criação de novos Municípios. Mas, se o Muni-
cípio que teria sido desfalcado, cuja autonomia teria sido ofendida, está de
acordo com esse desmembramento, poder-se-á falar em violação do direito
estadual, mas não do princípio constitucional da autonomia municipal”,
não procedendo, assim, a representação.
O Ministro Victor Nunes, todavia, votou vencido, juntamente com os Mi-
nistros Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas e Candido Motta, tendo, nesse caso, o
Tribunal julgado procedente a representação.

Representação 513

Criação de Município — Autonomia municipal —


Concordância do Município do qual houve desmembra-
mento — Critério para interpretação mais ampla dos
princípios constitucionais sensíveis.

Cuidava-se da criação do Município de Pontas de Pedras, em Pernambuco,


com alegada violação da Constituição estadual.

89 O que entende ser prova suficiente, não havendo, nos autos, o documento específico
com a deliberação da Câmara Municipal. Registre-se, ainda que não seja relevante deta-
lhar, para a compreensão da tese discutida nesse processo, o extenso debate entre os
Ministros Evandro Lins e Victor Nunes sobre ter ou não a Câmara Municipal de Goianinha
consentido com a criação do Município de Piau, havendo dúvida se o consentimento se
referia ao Município de Tibau do Sul.

139
Memória Jurisprudencial

Nessa representação, a questão de mérito não provocou maiores debates:


estava claro o desatendimento de normas da Constituição estadual. Vale apenas
ressaltar, do voto do Ministro Victor Nunes, a aplicação do entendimento que
explicitara na Rp 423, na Rp 512 e na Rp 467, acima analisadas, no sentido de que
“os enunciados do art. 7º, VII, da Constituição Federal — princípios que
ensejam a representação interventiva — são, por vezes, genéricos. Devem ser,
portanto, complementados, quando for o caso, com outros da própria Consti-
tuição Federal, ou das constituições estaduais. Está nesta situação o problema
da autonomia municipal, cuja noção, definida no art. 29 da Constituição
Federal, é complementada por dispositivos das constituições estaduais”.90

Representação 617

Criação de Município — Autonomia municipal —


Saneamento de falhas formais ante aprovação de lei
estadual.

Cuidava-se, nesta representação, do desmembramento de parte do territó-


rio do Município de Poá, para anexação ao Município de Suzano, no Estado de
São Paulo.
A discussão judicial originou-se do fato de ter havido recurso à Assembléia
Legislativa — medida prevista na Lei Orgânica dos Municípios — quanto ao
plebiscito realizado, mas ter a Assembléia, sem decidir o recurso, aprovado lei
sobre a anexação do território em questão.
O Ministro Relator, Hermes Lima, vislumbra inconstitucionalidade no fato,
por não terem sido observados todos os requisitos para a anexação, posto que
não se concluíra adequadamente o plebiscito, ainda pendente de recurso.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes argumenta para demonstrar que, no
caso, teria havido descumprimento do Regimento Interno da Assembléia, e não
da Lei Orgânica dos Municípios:

90 Nesse caso, há rápido mas interessante debate entre três Ministros, acerca da conve-
niência política da criação de novos Municípios: “Sr. Presidente, vou abrir uma exceção
para acompanhar o voto do eminente Sr. Ministro Relator, acolhendo a representação.
Sou muito a favor da divisão dos Municípios para que melhor defendam os benefícios
recebidos da União, os quais de maneira mais eficaz chegam a eles com essa
retalhação” (Ministro Vilas Boas). “Estamos com mais de três mil Municípios, a maior
parte dos quais não se pode manter” (Ministro Hahnemann Guimarães). “Um bom crité-
rio seria talvez não dar a quota do imposto de renda senão aos Municípios que tivessem
dez anos de existência” (Ministro Gonçalves de Oliveira). “Acolho a representação no
caso” (Ministro Vilas Boas ). Vale observar a extrema atualidade das ponderações do
Ministro em face dos 5.564 Municípios hoje existentes.

140
Ministro Victor Nunes

“A mesma maioria (de Deputados), que poderia rejeitar o re-


curso, implicitamente o rejeitou ao aprovar a lei. O que deixou de
haver, portanto, foi o julgamento explícito do recurso. Terá sido, as-
sim, uma infração ao Regimento da Assembléia, porque o julgamento
do recurso não foi explícito, mas implícito”.
Nesse caso, cinco Ministros, inclusive o Presidente, votaram pela proce-
dência da representação, e quatro pela improcedência — entre eles, Victor
Nunes. Assim, o resultado foi não ter havido quorum para a declaração da
inconstitucionalidade.

1.4 Direitos fundamentais

Extradição 232 — Segunda

Extradição — Revolução Cubana — Ausência de


garantias institucionais — Distinção entre motivo ou fim
político e crime político — Descaracterização, como
crime político, de atos de barbaria e vandalismo.

Cuida-se de caso em que se julgava pedido de extradição, formulado pelo


Governo de Cuba, sob o comando de Fidel Castro, recém-instalado no poder.
Esse caso mereceu do Ministro Victor Nunes, em seu voto como Relator,
considerações mais detalhadas, inclusive em termos do Direito internacional, sobre
o cabimento da extradição e, indiretamente, sobre o direito ao asilo.
Pleiteava o Governo cubano a extradição de nacional seu, asilado no Brasil,
primeiro sob asilo diplomático, em seguida convertido em asilo territorial. O Gover-
no brasileiro concedera o asilo por ser o indivíduo alvo de “perseguição política”,
conforme reconhecido pelo Ministério das Relações Exteriores brasileiro.
Esse cidadão cubano, Arsênio Pelayo Hernandez Bravo, na qualidade de
soldado, integrara patrulha sob comando de oficial (Capitão Mirabal), em defesa
do governo Fulgêncio Batista, contra as forças revolucionárias lideradas por Fidel
Castro.
Tal patrulha era acusada de haver detido três indivíduos que promoviam
ataque a certa posição governista — um motorista, um estudante ferido e um
médico que o socorria. O médico fora morto no ato, a coronhadas, pelo Capitão
Mirabal, e os demais, levados a um cemitério, onde foram metralhados pela
patrulha — inclusive o cadáver do médico.
Nessas circunstâncias, o cidadão cubano, sustentando seu direito a não ser
extraditado e permanecer asilado, fundamenta sua defesa em dois pontos: a) a
.
141
Memória Jurisprudencial

existência de pena de morte e a possibilidade de ser julgado por tribunal de exce-


ção em Cuba; e b) o caráter político do crime de que era acusado.
Tanto a situação institucional do país que pleiteia a extradição como a
natureza do crime podem ser motivos para o indeferimento do pedido.
Analisando o primeiro bloco de argumentos, o Ministro Victor Nunes lem-
bra, em primeiro lugar, que, conforme o Direito brasileiro (Decreto-Lei 394/3891),
a existência de pena de morte no país que demanda a extradição não é impeditivo
absoluto, podendo ser superado mediante compromisso de comutação da pena de
morte em pena de prisão.
Todavia, ao aplicar essa regra ao caso concreto, entende o Ministro Victor
Nunes que a “situação revolucionária existente em Cuba não oferece plena
garantia a essa ressalva, tanto mais que não há, entre os dois países, tratado
de extradição”. A reforçar seu temor, há o fato de que o citado Capitão Mirabal,
detido em Cuba pelo novo Governo, já viera a ser fuzilado.
Em segundo lugar, quanto à questão do tribunal de exceção — motivo
excludente de extradição nos termos da Lei brasileira —, a dúvida que se apre-
senta, no caso, seria o fato de não se pretender julgar o extraditando em tribunal de
exceção, mas sim na justiça regular, a qual, todavia, dada a situação revolucionária,
não se poderia supor garantidora de julgamento conforme o devido processo.
Sobre esse aspecto, pondera o Ministro Victor Nunes:
“Pela ratio legis, as duas situações se aproximam. A falta de ga-
rantias, que se presume no tribunal de exceção, é que fundamenta
aquela ressalva ao princípio geral da extradição. E a falta de garan-
tias, real, é que compromete os próprios tribunais comuns durante
uma situação revolucionária, em que o governo se reserva poderes
discricionários. No primeiro caso, a configuração do próprio órgão
judicante é que obsta a extradição; no segundo, é a ambiência polí-
tica, agitada pelo espírito da revolução, e marcada pela ilimitação
dos poderes do governo, que pode comprometer o funcionamento dos
próprios tribunais ordinários. Em uma ou em outra situação, está em
risco a liberdade, a segurança ou a vida do extraditando, e são esses
bens superiores que a lei quer proteger quando veda a entrega de
quem vai ser julgado por juízo de exceção”.
Na seqüência, reforçando seu pensamento com argumentos extraídos do
ponto de vista do direito ao asilo, outra face do problema da extradição, o Ministro
Victor Nunes invoca a lição dos internacionalistas Caicedo Castilla e Filadelfo

91 Atualmente, ver o Estatuto do Estrangeiro — Lei 6.815/80.

142
Ministro Victor Nunes

Azevedo sobre o “perigo” e a “urgência” como elementos justificadores do asilo.


No contexto da América, os períodos de anormalidade constitucional e instabili-
dade política e social devem ser considerados na análise do perigo que ameaça o
asilado e da urgência de que se reconheça tal direito.
No mesmo sentido, lembra o Ministro Victor Nunes as idéias desenvolvidas
no âmbito da IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, da
Organização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile, em
1949, da qual participou como representante do governo brasileiro.
As circunstâncias acima analisadas, quanto à pena de morte e ao julgamento
sem garantias, verificadas na situação revolucionária de Cuba e que, no caso pre-
sente, justificaram a concessão do asilo — conclui parcialmente o Ministro Victor
Nunes —, já são suficientes para negar-se a extradição pleiteada.
Entretanto, prossegue na análise do segundo ponto levantado como argu-
mento pela defesa, relativo ao caráter político do crime invocado como justifica-
tiva para a extradição.
Primeiramente, lembra que, por ocasião da concessão do asilo, o Ministério
das Relações Exteriores reconhecera ser o cidadão alvo de perseguição política, o
que não se confunde com ser acusado da prática de crime político.
O crime político, a obstar a extradição, é definido, nos termos do Decreto-
Lei 394/3892, pelo critério da prevalência, o qual é passível de críticas por ser
deficiente, na medida em que “é muito difícil verificar se o elemento político
está em situação inferior em relação ao comum, ou vice-versa”.
Observa o Ministro Victor Nunes que critério semelhante, valendo-se
da noção de prevalência, é proposto pelo Instituto de Direito Internacional:
excluir-se-iam da definição de crime político as infrações mistas ou conexas,
quando “se trate de crimes mais graves, sob o ponto de vista da moral e do
direito comum”, e ainda, no que diz respeito aos atos executados durante uma
guerra civil, são excluídos da definição de crime político quando “constituam
atos de barbaria e vandalismo proibidos pelas leis de guerra”.
Essa noção é criticada pela Comissão Jurídica Interamericana — órgão
técnico permanente do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, acima referi-
do —, pela dificuldade de aplicação do critério da prevalência, mas admite a
Comissão a adequação da idéia de que, embora com fim político, um delito

92 “Art. 2º, § 1º: A alegação do fim ou motivo político não impedirá a extradição,
quando o fato constituir, principalmente, uma infração comum da lei penal, ou quando
o crime comum, conexo dos referidos no inciso VII (infração puramente militar, contra
a religião, crime político ou de opinião), constituir o fato principal.”

143
Memória Jurisprudencial

“crudelíssimo ou bestial” não afeta o interesse “de determinada ordem polí-


tica, mas o da própria humanidade”. E é “o espírito humanitário dos povos
americanos” que “constitui a essência ética do asilo nos países latino-
americanos”.
O Ministro Victor Nunes ainda cita as conclusões de trabalho da Comis-
são Jurídica Interamericana — que qualifica de “magnífico” —, conclusões es-
sas que consubstanciam sugestões à XI Conferência Interamericana:
“1) São delitos políticos as infrações contra a organização e
funcionamento do Estado.
2) São delitos políticos as infrações conexas com os mesmos.
Existe conexidade quando a infração se verifica: (1) para executar
ou favorecer o atentado configurado no número 1; (2) para obter a
impunidade pelos delitos políticos.
3) Não são delitos políticos os crimes de barbaria e vandalismo,
e em geral todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataque
e da defesa.
4) Não é delito político o genocídio, de acordo com a Convenção
das Nações Unidas.”
Com base nessas idéias, aplicadas ao caso concreto, assim se posiciona o
Ministro Victor Nunes quanto ao aspecto do crime político:
“Recorrendo ao item 3 dessa conceituação e tendo em vista a
lei brasileira (art. 2º, § 1º, do DL 394, de 1938), não me parece que o
crime de homicídio, ainda que durante uma guerra civil, praticado
contra três prisioneiros — um estudante ferido, o médico chamado a
socorrê-lo e o motorista que os conduzia — deva ser tido por crime
político, para excluir pedido de extradição”.
No entanto, pelos motivos anteriormente expostos na primeira parte de seu voto,
indefere o pedido de extradição, sendo acompanhado pela unanimidade do Tribunal.
Extradição 27493
Julgamento histórico: Caso Stangl — Regime na-
zista — Extradição — Reciprocidade — Competência e
preferência ante multiplicidade de pedidos de extradição —
Comutação de pena — Genocídio — Julgamento regu-
lar — Crime político e cumprimento de ordem superior.

93 Julgada em conjunto com Ext 272, Ext 273 e HC 44.074.

144
Ministro Victor Nunes

Este caso reveste-se de extrema relevância tanto em termos históricos,


como pela profundidade do voto proferido, como Relator, pelo Ministro Victor
Nunes. Consta até mesmo como um julgamento histórico no rol apresentado pelo
sítio de internet do Supremo Tribunal Federal.
Trata-se dos pedidos de extradição formulados pela República Federal da
Áustria (Ext 272), pela República Popular da Polônia (Ext 273) e pela República
Federal da Alemanha (Ext 274), sendo extraditando Franz Paul Stangl, de nacio-
nalidade austríaca, acusado do crime de genocídio — ou, como será visto, em
dadas circunstâncias tipificado como homicídio qualificado — durante a Segunda
Guerra Mundial.
Stangl, oficial das Forças SS, foi diretor do instituto de extermínio de
Hartheim (Áustria) e comandante dos campos de extermínio de Sobibór e
Treblinka (Polônia), durante o período de ocupação nazista.
O Relatório apresentado pelo Ministro Victor Nunes em seu voto, descre-
vendo as ações praticadas pelo extraditando, assim como as atrocidades em ge-
ral, ocorridas naquelas localidades, é tão preciso e completo, que não se mostra
conveniente tentar aqui sintetizá-lo. Impõe-se sua leitura na íntegra, no anexo
desta obra94.
Considerando-se que os pedidos de extradição formulados pelos três países
referem-se à mesma pessoa e, em grande parte, aos mesmos fatos — assim
como o referido habeas corpus, que, adiante-se, restou julgado prejudicado em
face da decisão dos pedidos de extradição —, foram todos julgados de modo
conjunto, até porque uma das questões a ser apreciada diz respeito à preferência
entre os países no caso de procedência.
Passa então o Ministro Relator, Victor Nunes, com extrema clareza e
grande profundidade de idéias tanto em termos de doutrina jurídica como em
termos de compreensão da política internacional, a abordar os vários aspectos
levantados nas manifestações dos interessados, sistematizando seu voto em capí-
tulos, com o critério que será respeitado nesta análise.
Reciprocidade:
O primeiro aspecto abordado pelo Ministro Victor Nunes diz respeito à
declaração de reciprocidade — fonte reconhecida do direito de extradição, na
falta ou na deficiência de tratado95.

94 Recomendável também a leitura do parecer sustentado pelo Procurador-Geral da


República, Professor Haroldo Valladão.
95 Ver, no Direito vigente, quanto a esse e aos demais pontos sobre extradição, o Estatuto
do Estrangeiro — Lei 6.815/80.

145
Memória Jurisprudencial

A defesa alegava a insuficiência das declarações constantes dos autos,


por não ter havido seu referendo pelo Congresso Nacional.
A questão se põe pelo fato de a Constituição de 1967 exigir, em seu art. 83,
VIII, o referendo parlamentar para atos internacionais.
Todavia, pondera o Ministro Victor Nunes que o melhor entendimento para
esse dispositivo constitucional é o de referir-se a atos de que resultem obrigações
para o Brasil.
Assim, quando muito caberia discutir a necessidade da aquiescência do
Congresso para compromissos de reciprocidade oferecidos pelo Brasil quando
pretender pedir extradição.
Mas a simples aceitação de promessa de reciprocidade, formulada por
Estado estrangeiro quando pleiteia extradição, não envolve obrigação para nós.
O processo de extradição envolve, como condição prévia, a decisão favo-
rável do Supremo Tribunal Federal. A partir daí, a obrigação do Executivo de
efetivar a extradição “só existe nos limites do direito convencional”. “Em
conseqüência, a simples aceitação da oferta de reciprocidade não cria
obrigação para o Brasil, não dependendo essa aceitação de referendum do
Congresso”.
Comutação da pena:
Sustentava a defesa que o compromisso assumido pelos Estados reque-
rentes, de comutar a pena de morte, que já havia sido abolida na Áustria e na
Alemanha, teria ainda de abranger a comutação da pena de prisão perpétua —
vedada pela Constituição brasileira — para pena de prisão temporária.
Quanto a essa alegação, sustenta o Ministro Victor Nunes, citando diver-
sos precedentes do Tribunal, ser correto o entendimento de o Direito brasileiro
não admitir extradição que sujeite o extraditando a penas inadmissíveis no Brasil.
O mesmo sentimento de humanidade que inspira o Direito extradicional é o que
leva o Direito Constitucional a renegar tais penalidades.
Assim, tem razão a defesa ao apontar a falta do compromisso de comu-
tação da pena de prisão perpétua. Trata-se, todavia, de falta suprível: “se o Tribu-
nal conceder a extadição, subordinada a esse compromisso, o governo bra-
sileiro o exigirá antes de efetuar a entrega do acusado”. A lei condiciona a
comutação à entrega do extraditando e não ao julgamento da admissibilidade do
pedido.
.
146
Ministro Victor Nunes

Competência:
Esse ponto fora levantado pela Alemanha, impugnando a competência da
Áustria para pleitear a extradição, mediante o princípio da nacionalidade ativa: ao
tempo dos crimes, Stangl era alemão, em virtude do regime do Anchluss, e a
reaquisição da nacionalidade austríaca só teria ocorrido por força de lei de 1945,
sem efeito retroativo.
Conclui, no entanto, o Ministro Victor Nunes que a competência da Áustria
não se vê abalada por esse argumento, por dois motivos.
Em primeiro lugar, o regime imposto com a anexação da Áustria acar-
retou uma nacionalização compulsória; uma vez restabelecida a soberania aus-
tríaca, deu-se a restauração da nacionalidade dos austríacos que já a tinham
antes do Anchluss. Admitir que os tribunais austríacos, em julgamentos que
envolvam nacionalidade, tivessem de discriminar três períodos, separando-os
em dois blocos — de um lado, o período da ocupação; de outro, o período
anterior e o posterior —, levaria, ao menos para efeitos penais, a conseqüências
extravagantes.
Nem se argumente com o princípio da irretroatividade da naturaliza-
ção, prestigiado pelo Direito brasileiro, no sentido de se evitar que a natura-
lização seja usada como fraude para beneficiar-se da regra da não-extradi-
ção de nacionais. Ora, no caso, a naturalização, no regime do Anchluss, fora
compulsória.
Em segundo lugar, a regra — sustentada em Direito extradicional — que
leva ao julgamento do acusado no país de que é nacional fundamenta-se na maior
garantia que provavelmente encontrará em sua própria Justiça. E essa regra só
faz sentido considerando-se a atual nacionalidade do réu, não eventual nacionali-
dade pretérita.
Sendo, pois, austríaco o extraditando, incontestável a competência da Áustria
para o pedido.
Por outro lado, esse fato não afasta a competência da Alemanha, incidindo
aqui outro princípio, posto que o extraditando teria praticado seus atos a serviço
do governo alemão, seja na qualidade de estrangeiro, seja, como pretendeu o
regime da época, na qualidade de alemão.
Esgotando o ponto, o Ministro Victor Nunes observa que “a extraterrito-
rialidade das leis da Alemanha e da Áustria, fundada no princípio da nacio-
nalidade ativa, não destoa do Direito brasileiro”.
.
147
Memória Jurisprudencial

E, ainda, nenhum desses países está disputando sua jurisdição com o Brasil.
A Justiça brasileira poderia, eventualmente, ser tida por competente em função
do princípio da universalidade, pretendidamente aplicável em casos de genocídio.
Porém, tal princípio nem foi adotado integralmente pela Lei brasileira, que remete
a matéria para convenções internacionais, nem constitui ele norma obrigatória de
Direito internacional.
Genocídio:
A questão suscitada neste ponto diz com a invocação do princípio da
irretroatividade das leis em matéria penal.
Isso porque, após a prática dos atos, os crimes imputados ao extraditando
vieram a ser qualificados como “genocídio”, em Convenção que foi ratificada,
entre outros países, pelo Brasil — Lei 2.889/56.
“A conceituação nova, na categoria de violação do Direito
Penal internacional, resulta da gravidade sem par desses crimes,
que ofendem a própria humanidade e são cometidos em massa,
freqüentemente por inspiração e com o auxílio da máquina governa-
mental”.
No entanto, “na tipificação do crime de genocídio estão compreendi-
das outras figuras delituosas — especialmente o homicídio, que já se en-
contrava nos códigos de todos os povos civilizados”.
A extradição de Stangl é pedida com fundamento no homicídio qualificado,
que sempre esteve previsto, tanto na legislação brasileira, como na dos Estados
requerentes.
Julgamento regular:
Lembra, a propósito, o Ministro Victor Nunes que “a isenção do Estado
requerente, para garantia de um julgamento regular, é sem dúvida impor-
tante no Direito extradicional”, tanto que o Supremo Tribunal Federal já negara
extradição por considerar que, de fato, a situação política e social do Estado
requerente não oferecia garantias suficientes — foi justamente o caso de Cuba,
acima analisado (Ext 232).
Porém, no presente caso, Alemanha, Áustria e Polônia “têm tribunais regu-
lares, funcionando normalmente”, levando à “presunção de julgamento regular”.
Pondera ainda o Ministro Victor Nunes que a “possibilidade de julga-
mento parcial ou irregular só é impedimento à extradição quando resulte
evidente”.
.
.
148
Ministro Victor Nunes

Não fosse assim, nunca haveria extradição, posto que qualquer dos princí-
pios envolvidos na definição do país legitimado a requerê-la, em alguma medida,
levaria à suposição de parcialidade: a) no caso do princípio da territorialidade,
poder-se-ia cogitar que o abalo social é maior nos próprios lugares em que se
cometeu o crime; b) no caso do princípio do Estado que sofreu os efeitos do
crime, poder-se-ia supor faltar imparcialidade; c) quanto ao princípio da naciona-
lidade, caberia indagar se não haveria julgamento favorecido ao nacional.
Por força dessas cogitações teóricas, há quem defenda a competência de
Estados neutros para julgar, o que, concretamente, não é admitido pelo Direito
brasileiro. Enfim, o Ministro Victor Nunes observa que pareceria a solução mais
adequada a jurisdição de tribunais internacionais, a qual, contudo, não fora ainda
instituída.
Levando ao extremo todos os argumentos cogitados, o Brasil teria de ne-
gar a extradição, chegando, no entanto, em face da falta de sua própria compe-
tência, à solução absurda de uma concessão de asilo político, deixando impunes
os crimes praticados pelo extraditando — que, de resto, não se enquadram na
categoria de crimes políticos, a ensejar asilo, como será visto a seguir.
Desse modo, conclui o Ministro Victor Nunes que o ponto do “julgamento
regular” não é, no caso, impeditivo da extradição.
Crime político:
Também não cabe, no caso, a exceção do crime político, admitida pelo
Direito brasileiro.
Em primeiro lugar, rebate um argumento da defesa no sentido de que a
Convenção sobre o Genocídio, que veda a caracterização de genocídio como
crime político, seria posterior aos atos praticados pelo extraditando, de modo a
não poder ser aplicada no caso, dado o princípio do nullum crimen, nula poena
sine lege.
Quanto a isso, observa o Ministro Victor Nunes que nem a extradição
pode ser considerada pena96, para fins de aplicação do tal princípio, nem é neces-
sário, como já visto, invocar a tipificação de genocídio para que se caracterizem
como crimes os atos do extraditando.
Ainda por outras razões, tais atos não podem ser considerados, no caso
concreto, crime político: a alegada motivação política do agente e o fato de ter

96 O Ministro Victor Nunes cita Hildebrando Accioly: “a extradição não é uma pena,
traduzindo, no mais das vezes, o reconhecimento, pelo Estado concedente, de sua falta
de competência para julgar a infração”.

149
Memória Jurisprudencial

agido em nome de governo não têm a conseqüência de caracterizar um crime


como político.
Ademais, o Ministro Victor Nunes lembra sólida doutrina e jurisprudência —
inclusive o caso de Cuba acima analisado — para afastar o caráter político de
crimes cometidos com crueldade, “barbaria” e “vandalismo”.
Ordem superior:
Quanto a esse argumento, o Ministro Victor Nunes de plano pondera:
“A justificativa do cumprimento de ordem superior igualmente
não levaria, só por si, à recusa dos pedidos sob julgamento. Sua
aplicação, em termos irrestritos, aos chamados crimes de Estado re-
sultaria em completa impunidade para criminosos cruéis”.
A Lei brasileira restringe o alcance da “ordem superior” como excusativa,
posto que não elimina a culpabilidade nos casos de cumprimento de ordem mani-
festamente ilegal. “E não se comprovou ainda que a ordem de matar prisio-
neiros, inocentes ou não, e enfermos hospitalizados, ou de exterminar ju-
deus em massa, mediante processos de horrenda eficiência, tivesse sido
autorizada por lei do Estado nazista”.
Nesse sentido, o voto segue relatando, com base em julgamentos já reali-
zados de criminosos nazistas, que as ordens de extermínio quando muito se com-
provavam em documentos políticos ou em manifestações individuais de autorida-
des, mas nunca em norma legal.
Conforme a doutrina penal, pode-se presumir o conhecimento da ilegalidade
pela condição pessoal do agente. “E Stangl era um graduado servidor da
polícia judiciária que, em razão do cargo, não deveria desconhecer a le-
gislação da Alemanha sobre o homicídio”.
Além disso, o conjunto de medidas tomadas nos campos de extermínio “para
manter as vítimas inscientes do seu destino e para eliminar vestígios materiais
da carnificina é presunção mais forte ainda de que os dirigentes e executores
dessa política não ignoravam a criminalidade do seu procedimento”.
Por fim, ainda que se argumente, em defesa do extraditando, que sofrera
“coação moral” de seus superiores, isso caracteriza “problema de prova cujo
exame compete ao juízo da ação penal e não ao da extradição”. De qual-
quer modo, pouco evidente ser esse o caso de Stangl, um comandante de campos
de extermínio, com rápida ascenção no partido nazista e altamente recomendado,
por seu superior, a ser promovido em virtude de ser “seu melhor chefe de campo
de concentração”.
.
150
Ministro Victor Nunes

Prescrição:
Na seqüência de seu voto, após percorrer e superar tópicos — Suficiên-
cia da acusação e Documentação — que diziam respeito a questões formais do
processo e parecem menos interessantes para esta análise, o Ministro Victor
Nunes passa a analisar, detalhadamente, a prescrição quanto ao pedido de cada
requerente.
A propósito, vale lembrar que sua análise é feita à luz do direito comum,
sem reflexo do tratamento convencional e legal do crime de genocídio, posterior
aos fatos. Fosse o caso de genocídio, surgiria a questão de o Brasil ter abolido a
prescrição — interpretação com a qual, de todo modo, o Ministro Victor Nunes
não concorda.
A análise quanto à prescrição envolve a consideração da regra vigente no
Direito brasileiro, buscando-se no Direito dos países requerentes os institutos
equivalentes aos que aqui interrompem a prescrição e investigando-se, no caso
concreto, o desenrolar de cada processo, relativo a cada grupo de crimes.
Dada a minúcia a que desce o voto, analisando o Direito brasileiro da
época e as regras do Direito alemão, polonês e austríaco, assim como os detalhes
dos processos contra o extraditando naqueles Estados, é o caso apenas de regis-
trar as conclusões: a) quanto ao pedido da Alemanha, que envolve os crimes
praticados em Treblinka, verificou-se não ter incidido a prescrição; b) no caso do
pedido da Polônia, reconheceu-se ter havido prescrição, julgando-se o pedido
improcedente; c) quanto ao pedido da Áustria, reconheceu-se a prescrição no
que diz respeito aos processos pelos crimes de Treblinka e Sobibór, restando
apenas não atingidos pela prescrição os crimes de Hartheim.
Preferência:
Resta, para concluir o voto, analisar, entre os requerentes Áustria e Ale-
manha — uma vez que já se verificara a improcedência do pedido da Polônia, por
prescrição —, quem teria a preferência para receber o extraditando.
Preliminarmente, o Ministro Victor Nunes define posição quanto a ser com-
petência do Supremo Tribunal Federal decidir sobre a preferência, discordando do
Procurador-Geral da República, que entendia ser competência do Executivo —
que, no caso, a teria transferido ao Tribunal, ao encaminhar os pedidos sem
defini-la. O Ministro Victor Nunes faz a interpretação do texto constitucional —
Constituição de 1967, art. 114, I, g —, que prevê a competência do Supremo
Tribunal Federal para “julgar” a extradição, como incluindo toda a matéria perti-
nente à legalidade, aí englobada a decisão sobre a preferência, conforme os cri-
térios legais.
.
151
Memória Jurisprudencial

E são dois os critérios apreciados, segundo a Lei brasileira, para que se


defina a preferência: territorialidade e gravidade da infração. Recorde-se que, a
essa altura do julgamento, estavam em questão apenas o pedido da Áustria quanto
aos crimes de Hartheim, no território austríaco, e o pedido da Alemanha quanto
aos crimes de Treblinka, no território polonês.
Quanto ao critério da territorialidade — território no qual a infração foi
cometida —, a Áustria teria preferência em relação aos crimes de Hartheim.
No tocante aos crimes de Treblinka, a Alemanha alegou tratar-se de ter-
ritório sob a “soberania do Reich Alemão, na qualidade de potência de
ocupação”, na época da prática dos atos. Além disso, invocou, em sua defesa, a
Convenção de Haia sobre leis e costumes da guerra terrestre.
Todavia, concordando com o Procurador-Geral da República, o Ministro
Victor Nunes não aceita o argumento da Alemanha. É certo que a Alemanha
assumira, de fato, a autoridade do poder legal em território polonês durante a
ocupação. Porém não ocorreu a efetiva anexação do território polonês, que não
deve ser, portanto, considerado território alemão.
Resta ainda o critério da gravidade da infração, que, mostra o Ministro
Victor Nunes, deve ser aferida segundo a Lei brasileira.
Um dos aspectos a ser assim considerado é a gravidade da pena, que
guarda correspondência com a do delito. Tratando-se, no caso, de delitos do mes-
mo tipo, nessa aferição há que considerar a gravidade in concreto.
Dessa forma, reconhece o Ministro Victor Nunes ser “indiscutível que as
infrações penais cometidas em Treblinka foram muito mais graves do que as
de Hartheim97, inclusive, como foi observado no memorial da Alemanha,
porque não se poderia, em relação a Treblinka, invocar a eutanásia para
uma possível, embora remota, qualificação de homicídio privilegiado.
Cabe, pois, à Alemanha a preferência para a extradição, já que recusamos
o julgamento pela Áustria quanto aos fatos de Treblinka”.
E acrescenta ainda que, definida a preferência, a Lei brasileira prevê que
pode ser estipulada condição de entrega ulterior do extraditando a outros reque-
rentes — no caso a Áustria — para julgá-lo pelos crimes de Hartheim.

97 Verifica-se, pelo Relatório, que Hartheim era estabelecimento médico “destinado à


eliminação coletiva e metódica de insanos mentais e de pessoas idosas, fracas ou inca-
pacitadas para o trabalho, bem como as consideradas politicamente perigosas”; as
mortes lá havidas são da escala de uma dezena de milhar de pessoas. Já Treblinka era
especificamente um campo de extermínio, no qual morreram mais de setecentas mil pessoas,
tendo sido registrado o maior índice de mortes no período da administração de Stangl.

152
Ministro Victor Nunes

Em conclusão, vota pela autorização da extradição à Alemanha, mediante


o compromisso de ser convertida a pena de prisão perpétua — caso ela venha a
ser aplicada — em pena de prisão temporária, entregando-se o extraditando,
ulteriormente, à Áustria, mediante o mesmo compromisso. O voto é acompanhado
pela unanimidade dos Ministros.

Recurso em Mandado de Segurança 12.468

Intervenção do Estado no domínio econômico —


Limites ao direito de propriedade.

Neste caso, discutiu-se essencialmente a possibilidade de intervenção do


Estado no domínio econômico, nos termos do art. 14698 da Constituição de 1946,
e seus limites em face do direito fundamental à propriedade.
Tratava-se de medida imposta pela Comissão de Abastecimento e Preços
do Estado – COAP a sociedade proprietária de moinho de trigo e de indústria de
rações balanceadas, a qual aproveitava resíduos de sua produção no moinho.
Na época, a atividade de moagem de trigo era objeto de intensa intervenção
do Estado: a instalação de moinhos estava sujeita à autorização estatal e a produção
submetida a controle estatal quanto à distribuição, por força da Lei 1.522/51.
Insurgia-se a impetrante contra limite que lhe fora imposto pela COAP em
termos de percentual de mistura dos resíduos da produção da moagem de trigo
nas rações balanceadas. Argumentava ser proprietária dos resíduos e que equi-
valeria à expropriação de sua produção ser compelida a vendê-los a seus concor-
rentes, sem com isso poder destiná-los à fabricação própria de rações.
O Ministro Relator, Hahnemann Guimarães, entende estar amparada no
Direito a medida estatal interventiva.
A seu turno, o Ministro Pedro Chaves produz voto contundente enxergando
abuso na medida estatal, a qual importaria afronta ao direito de propriedade99. É
acompanhado pelos Ministros Candido Motta e Ribeiro da Costa.

98 “Art. 146. A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e
monopolizar determinada indústria ou atividade. A intervenção terá por base o inte-
resse público e por limite os direitos fundamentais assegurados nesta Constituição.”
99 Em debates com o Ministro Victor Nunes, o Ministro Pedro Chaves observa: “de
concessão em concessão, vamos abolindo todos os direitos individuais garantidos pela
Constituição”, apontando que, como próximo passo, o governo passaria a “regular o
dinheiro que está depositado nos bancos e dá-lo-ia aos pobres ou emprestá-lo-ia a
juros módicos”.

153
Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes vota acompanhando o Relator e acrescenta aná-


lise assentada nos seguintes pontos:
a) a intervenção do Estado no domínio econômico está amparada pelo art.
146 da Constituição de 1946, sendo disciplinado pela Lei 1.522/51;
b) essa Lei, entre outras medidas, admite a fixação de preços e o controle
do abastecimento (art. 2º, b); esse controle, por sua vez, é um complexo de ope-
rações variadas, uma das quais consiste em regular a distribuição dos produtos
entregues ao consumo;
c) na regulação da distribuição, poderia o órgão competente tanto fazê-lo
diretamente (por exemplo: “os moinhos produtores de farelo e farelinho po-
dem usar tantos por cento desses produtos na sua industrialização própria;
o restante tem de ser colocado no mercado”) ou, como fez neste caso, deter-
minar que “os moinhos só podem preparar ração no limite de tantos por
cento da sua produção de farelo e farelinho”;
d) esse ato não se confunde com requisição ou desapropriação.
A essa análise jurídica, acrescenta fundamento econômico:
“(...) Que ocorreria nesse regime de oligopólio da moagem de
trigo, se a administração ficasse indiferente ao problema da distri-
buição do produto, especialmente dos resíduos? Se não fosse possí-
vel ao Estado regular a distribuição dos resíduos, somente os moi-
nhos, dentro de alguns anos, poderiam fabricar rações balanceadas,
porque só eles disporiam da matéria-prima. Qual seria a conseqüên-
cia? Teriam de fechar as portas os pequenos e médios fabricantes de
ração.
(...)
Não sei quantas fábricas de rações balanceadas há no Brasil,
mas, se os moinhos não forem, de algum modo, compelidos a vender
a matéria-prima (se assim se pode chamar ao farelo e ao farelinho),
essas fábricas terão de fechar as portas. Onde comprar farelo e fa-
relinho, senão nos moinhos, que beneficiam todo o trigo em casca
importado com autorização do Governo? Se cada moinho resolver
montar sua fábrica de rações balanceadas, nenhum deles, por iniciativa
própria, venderá matéria-prima às outras fábricas de ração.”
E, respondendo ao Ministro Pedro Chaves, que vislumbrava necessidade
de previsão específica em lei para que fosse fixada a medida imposta à recor-
rente no caso concreto, o Ministro Victor Nunes complementa o raciocínio ante-
rior e manifesta entendimento de que a Lei 1.522/51 já contemplava a hipótese
.
154
Ministro Victor Nunes

nas competências genéricas da COAP, aliás com certa margem de discriciona-


riedade:
“Para evitar que o oligopólio da moagem também se converta
no oligopólio da produção de rações balanceadas, o órgão adminis-
trativo competente estabeleceu um critério de distribuição, para ga-
rantir o funcionamento das outras fábricas de rações. Não me cabe,
como juiz, dizer se errou na percentagem, mas, apenas, dizer se o
órgão agiu dentro da faculdade que a lei lhe confere. Por outro lado,
presumo que agiu com vistas ao interesse público, salvo prova em
contrário.
Por essas razões, lamento divergir do caloroso e veemente voto
do eminente Ministro Pedro Chaves. Também sou muito respeitador
dos direitos consagrados na Constituição, mas não me parece, neste
caso, que tenha havido violência. É a própria Constituição que auto-
riza a lei a conferir a órgãos da administração pública poderes como
esses, cuja extensão estamos examinando”.
A maioria do Tribunal acabou por acompanhar o Relator, negando provi-
mento ao recurso, contra os votos dos Ministros Pedro Chaves, Ribeiro da Costa
e Candido Motta.

Recurso Extraordinário 41.710

Liberdade de pensamento e liberdade de ensino —


Curso livre — Poder de polícia.

Este caso traz um acórdão sucinto, em que declarou voto apenas o Relator,
Ministro Victor Nunes. De todo modo, comporta uma interessante aplicação da
liberdade de ensino e de pensamento.
Tratava-se de curso de enfermagem, teórico, por correspondência, que teve
seu funcionamento proibido pelo Serviço Nacional de Fiscalização da Medicina.
O ato baseou-se em parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Edu-
cação e Cultura, sustentando-se em dois principais fundamentos: a) o curso era
dirigido por um químico e um bacharel em Direito — portanto, em desacordo com
a formação profissional exigida pelo Decreto 27.426/49; b) o curso poderia ser
até perigoso, por ludibriar a boa-fé de terceiros.
É de se notar que o Serviço Nacional de Educação Sanitária não vira, em
parecer anteriormente expedido, inconveniente na realização do curso.

155
Memória Jurisprudencial

Levando a questão ao Judiciário, a entidade que ministrava os cursos logrou


êxito em primeira instância e no Tribunal Federal de Recursos. Reconheceu o
TFR que “a atividade do Instituto impetrante não contraria a lei em coisa
alguma. Se os seus diplomas não têm validade, isso não significa que o
curso não possa funcionar”.
Em seu voto, observa o Ministro Victor Nunes que as exigências, suposta-
mente violadas, do Decreto 27.426/49 referiam-se a “cursos autorizados ou
reconhecidos, não para cursos livres, de que não resultam garantias legais”.
Não pretendendo o impetrante — ora recorrido — expedir diploma ou certificado
de habilitação, não estaria violando as normas das leis de educação e formação
profissional invocadas.
Quanto ao exercício do poder de polícia sanitária, o órgão competente —
como acima visto — já afirmara não ver inconveniência no curso.
Desse modo, restaria apenas uma razão de ordem jurídica a eventualmen-
te indicar o fechamento do curso: evitar que possivelmente terceiros fossem ludi-
briados quanto ao alcance do curso.
Mas esse aspecto deve ser cotejado com outro:
“está envolvida, neste processo, a liberdade de pensamento,
como a liberdade de ensino. Esse direito não podia ser cerceado a
pretexto de nocividade tão duvidosa, que foi negada pelo próprio
Diretor do Departamento Nacional de Saúde”.
Com essas considerações, o Ministro Relator, Victor Nunes, vota pelo
não-conhecimento do recurso extraordinário, com base na Súmula 400100, sendo
acompanhado pela unanimidade dos Ministros da Turma.

Recurso Extraordinário 37.142

Direito de propriedade — Confisco de bens para


indenização de guerra — Caráter regulamentar como
exigência para decreto ser objeto de recurso extraordi-
nário.

100 “Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não
autoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”
(de 1946).

156
Ministro Victor Nunes

Neste recurso extraordinário estava envolvida a aplicação do Decreto-


Lei 4.166/42, que autorizou o confisco de bens e direitos dos súditos alemães,
japoneses e italianos, pessoas físicas ou jurídicas, para que respondessem pelos
prejuízos resultantes de atos de agressão dos países do Eixo durante a Segunda
Guerra Mundial. Essa responsabilidade seria subsidiária, caso os respectivos
governos não satisfizessem cabalmente as indenizações.
Em 1946, encerrada a Guerra, considerando-se que Alemanha, Japão e
Itália não haviam satisfeito até então — nem estavam em condições de fazê-lo —
as indenizações, criou-se, pelo Decreto-Lei 8.553, Comissão de Reparações de
Guerra, incumbida de propor, especificamente, confisco de bens dos súditos ale-
mães, japoneses e italianos.
No caso dos autos, foi baixado, em 1948, o Decreto 25.069, efetivando o
confisco do imóvel situado na Rua Barão de Jaguaribe, 413, adquirido por cidadão
alemão em nome de sua mulher — que figura como recorrida no processo. A
questão suscitada pela União Federal, após ter a recorrida logrado êxito perante
o Tribunal Federal de Recursos, dizia respeito à ofensa aos Decretos-Leis 4.166/42
e 8.553/46 e ao Decreto 25.069/48.
Votando como Relator, o Ministro Victor Nunes confirma a interpretação
dada na instância anterior aos referidos Decretos-Leis, no sentido de não possuí-
rem como efeito a concretização do confisco. O primeiro claramente autorizou,
mas não determinou, desde logo, o confisco. Isso é reforçado pela própria razão
de ser do segundo, que objetivava a identificação concreta de bens e direitos a
serem objeto da medida, visto que as indenizações ainda não haviam sido honra-
das pelos países em questão. Ainda assim, o segundo também não declarou de
imediato o confisco.
Foi justamente com o Decreto executivo de 1948 que se decidiu efetivar o
confisco do imóvel da recorrida. Todavia, na data em que foi baixado, “já estava em
vigor novo regime constitucional e suspenso desde muito tempo o estado de
guerra. Não era, pois, admissível, por simples ato administrativo, decretar-se a
perda de propriedade individual”.
Assim, o recurso não foi conhecido, pelo voto unânime da Turma, afasta-
dos os fundamentos apontados pela União: a) quanto à alegada violação dos
Decretos-Leis citados, por força da Súmula 400 — cf. nota de rodapé anterior;
b) e também quanto à suposta violação do Decreto 25.069/48, pois “não pode
ser apontado como texto de direito federal violado, para efeito de recurso
extraordinário. Falta-lhe a categoria de ato regulamentar, que é integrante
da própria lei”.
.
157
Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 7.711

Princípio da motivação obrigatória das decisões judiciais.

Neste mandado de segurança, impetrado em face de ato do Tribunal Supe-


rior Eleitoral, pretendia o impetrante101 fosse considerado sem nenhum efeito
acórdão daquele Tribunal, por faltar-lhe a fundamentação de fato e de direito,
devendo ser lavrado novo acórdão, com a conseqüente contagem de novo prazo
para que lhe pudessem ser opostos embargos.
O problema teria decorrido de contradição entre o que dispunha o acórdão,
ao enunciar a conclusão do julgado, e os votos então proferidos, como constam
das notas taquigráficas.
O Ministro Relator, Vilas Boas, após tecer considerações sobre a natureza
dos votos e do acórdão — como expressão da vontade de cada juiz e do tribunal —
e sobre a origem da força material da coisa julgada — “que está no parecer
fundamentado de cada juiz” e não necessariamente em texto de acórdão que
eventualmente não exprima a verdadeira decisão, podendo ser corrigido102 —,
vota pelo provimento ao mandado de segurança, determinando a substituição do
acórdão.
O debate que se travou no Plenário envolvia fundamentalmente aspectos
de Direito processual, quanto aos fatos havidos no caso e ao recurso cabível para
sanar o erro em questão, cuja não-interposição impediria o cabimento do mandado
de segurança.
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, traz ponto de vista mais abrangente,
invocando noção atualmente situada com clareza no plano constitucional dos direitos
fundamentais, a partir de desdobramentos do sentido de devido processo legal, con-
sistente no “princípio legal da motivação obrigatória das decisões judiciais”.
Lembra, primeiramente, que o Tribunal Federal de Recursos, já tendo en-
frentado situação semelhante, inseriu em seu Regimento norma segundo a qual,
“no caso de divergência entre o acórdão lavrado e o que informam as notas
taquigráficas, prevalecem estas”.
E prossegue:
“Há razões muito valiosas para que o Regimento do Tribunal
Federal de Recursos tenha disposto daquela maneira e o Senhor

101 Candidato a Deputado Estadual no Rio Grande do Sul, pelo Partido Republicano, o
qual, ante anulação de votos pela Justiça Eleitoral, teria restado sem direito a nenhuma
cadeira na Assembléia Legislativa.
102 “O mandado de segurança é, lato sensu, um recurso constitucional e pode ser
impetrado quando há direito líquido e certo a amparar”.

158
Ministro Victor Nunes

Ministro Relator concluído pela mesma forma. Segundo preceitua o


Código de Processo Civil, no art. 118, parágrafo único, ‘o juiz indi-
cará na sentença ou despacho os fatos e circunstâncias que motiva-
ram o seu convencimento’. Abriga tal preceito a regra de que toda
decisão judiciária deve ser motivada, e significa isso que tem de
haver coerência entre a conclusão e os seus motivos determinantes.
Com mais forte razão, como o acórdão resulta da apuração dos
votos, os quais exprimem e resumem, como ponderou o Senhor
Ministro Relator, é preciso que na apuração desses votos haja
coerência entre o que eles dispõem e o que dispõe o acórdão.
Assim, a meu ver, o mandado de segurança impetrado tem
apoio no princípio legal da motivação obrigatória das decisões judi-
ciárias. É tão imotivada uma sentença cuja conclusão seja contradi-
tória com as premissas, quanto um acórdão cuja conclusão seja con-
traditória com os votos tomados na assentada do julgamento.
Acompanho, pois, o voto do Senhor Ministro Vilas Boas.”
No entanto, o Ministro Victor Nunes e o Ministro Relator, Vilas Boas, votam
vencidos. Negam os demais Ministros a segurança, por serem cabíveis, no caso,
os embargos declaratórios.

Recurso em Mandado de Segurança 9.963

Igualdade — Concurso público — Distinção pelo


critério de gênero.

Os fatos tratados neste caso envolviam critérios para admissão em con-


curso público. Vale destacar, no entanto, não os aspectos discutidos quanto ao
regime jurídico de servidores públicos, mas sim a questão constitucional envolvi-
da: o direito de igualdade.
Esse recurso foi interposto por cidadão que iniciara o concurso para a
profissão de parteira e dele fora excluído sob o fundamento de que o concurso
seria apenas acessível a mulheres.
Votando, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, invoca o art. 141, § 14,
da Constituição de 1946, que garantia o livre “exercício de qualquer profissão,
observadas as condições de capacidade que a lei estabelecer”, e o art. 184,
que dispõe serem os cargos públicos “acessíveis a todos os brasileiros, obser-
vados os requisitos que a lei estabelecer”.
Segue observando que não há lei proibindo o acesso de homens ao cargo
de “parteira” — palavra usada no feminino pela prática — e, caso houvesse,
.
159
Memória Jurisprudencial

seria inconstitucional — arts. 141 e 144 —, “estabelecendo diferença entre


homens e mulheres na aquisição de direitos”.
Após rico debate sobre doutrina, história e tradições, relativas às dife-
renças, jurídicas e práticas, entre homens e mulheres, considerando-se ainda o
contraponto do caráter mais liberal da Constituição de 1946103, formou-se maioria
contra o pleito do impetrante.
O Ministro Victor Nunes vota com a maioria. Inicia seu raciocínio pelos
dispositivos já citados pelo Relator, quanto à igualdade para acesso a cargos pú-
blicos e à liberdade de exercício de profissões, para destacar a referência a con-
dições estabelecidas em lei.
Assim, estabelece premissa de que o legislador, respeitando, entre outros
aspectos, capacidades específicas e costumes vigentes, pode definir profissões
restritas a um dos sexos ou acessíveis a ambos: “o critério do legislador varia
com o tempo, porque mudam os nossos conceitos de convivência social”.
Exemplifica com a restrição, de todo razoável, no sentido de que apenas policiais
femininas exerçam a função de revistar mulheres.
Há, pois, que buscar na lei a solução para o caso. E o Decreto-Lei 8.778,
aplicado na situação concreta, regula os exames de habilitação104 para “os Auxi-
liares de Enfermagem” e “as Parteiras Práticas”.
Percebe-se, assim, o plural masculino quanto a auxiliares de enfermagem e
o plural feminino para as parteiras, o que se repete em diversos dispositivos, sendo
“sabido que, no português, o plural masculino inclui o feminino, mas o
plural feminino não inclui o masculino”.
Acresça-se a isso o fato de ser tradição, no Brasil, haver parteiras mulhe-
res, a reforçar a interpretação da lei nesse sentido. Pretendesse dar outro sentido,
deveria o legislador ter sido expresso.
E ainda que, por hipótese, a lei facultasse o acesso à profissão tanto a
homens como a mulheres, o fato é — prossegue o Ministro Victor Nunes — que
o concurso, no caso concreto, foi aberto apenas para mulheres. E isso é lícito,
devendo-se compreender “que o Estado, por alguma razão, desejava recru-
tar profissionais do sexo feminino e não do sexo masculino”.
Respondendo ao argumento do Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira —
quanto à hipotética situação de um renomado médico ginecologista pretender
submeter-se ao regime do Decreto-Lei 8.778, para receber certificação que o

103 Vale referência aos votos dos Ministros Cunha Mello, Candido Motta e Pedro Chaves.
104 Note-se que o Decreto-Lei não cuida do concurso, mas de elemento anterior: a
habilitação profissional, cuja comprovação, posteriormente, se exige no concurso.

160
Ministro Victor Nunes

habilitasse para exercer funções de “parteira prática” —, o Ministro Victor Nunes


faz duas ponderações: a) em primeiro lugar, tal hipótese nem caberia como argu-
mento, pois não condizente com a prática; b) em segundo lugar, um médico, por
força de seu diploma, já poderia exercer as atividades que cabem às parteiras
práticas. “O diploma de médico não tem a restrição; seu portador pode exer-
cer a função de parteiro, não por ser parteiro prático, mas por ser médico. A
lei não restringe o exercício da profissão de médico em relação ao sexo dos
pacientes. Mas restringe o exercício da profissão de parteira prática”.
Lembra, por fim, precedentes, quanto a restrições por sexo (cf. RMS
8.783105) ou por idade em concursos públicos (cf. RMS 8.784106), para fixar, como
regra, que o Tribunal há que, em cada caso, considerar se há lei proibitiva e se o
critério da Administração é razoável — inclusive em face de costumes e tradições.
Como resultado, o Tribunal, por maioria de votos, negou provimento ao re-
curso do Impetrante — mantendo a vedação à sua participação —, contra os votos
dos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator), Pedro Chaves e Henrique D’Ávila.

Recurso Extraordinário 47.630 — Segundo

Igualdade — Concurso público — Distinção pelo


critério de gênero — Papel da lei e do regulamento.

Cuidava-se de recurso no qual se argüia a inconstitucionalidade da exigên-


cia de sexo masculino em concurso para provimento de cargo de fiscal de rendas,
promovido pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (mesma questão já
discutida no RMS 8.783107).
105 Nesse caso, julgado em 1961, o Ministro Relator, Vilas Boas, votara considerando
constitucional a exclusão de mulheres em concurso para fiscal de rendas em São Paulo: “A
tendência hodierna é, inquestionavelmente, para a equiparação da mulher ao homem.
Há, porém, setores da atividade humana em que a exação só adquire plenitude — e
nisso é que está o interesse público — quando à pontualidade do servidor se conjuga a
energia física, e não simplesmente a força da persuasão. Ora, a Administração do
Estado resolveu não conferir às mulheres, por enquanto, os encargos da Fiscalização
de Rendas, sempre difíceis e ásperos, e o seu critério, que não é anticonstitucional, deve
ser acatado”. Esse posicionamento foi acompanhado pela unanimidade do Tribunal
Pleno, inclusive pelo Ministro Victor Nunes.
106 Nesse caso, relatado pelo Ministro Victor Nunes, porém sem acrescentar maiores
considerações pessoais ao acórdão recorrido, cuja fundamentação adota como razão de
decidir, é admitido pela unanimidade do Tribunal Pleno que lei estabeleça limite de idade
para concurso público, não restando ofendido o art. 184 da Constituição de 1946, que
apenas previa: “os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, observados os
requisitos que a lei estabelecer”, sem nada antecipar sobre critérios.
107 Nesse caso, julgado em 1961, o Ministro Relator, Vilas Boas, votara considerando
constitucional a exclusão de mulheres em concurso para fiscal de rendas em São Paulo: “A
tendência hodierna é, inquestionavelmente, para a equiparação da mulher ao homem.

161
Memória Jurisprudencial

O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, acompanhado pelo Ministro


Hahnemann Guimarães, entendia inconstitucional a exigência de sexo masculino,
posto só ser cabível se prevista em lei, por força do disposto no art. 184 da
Constituição de 1946: “os cargos públicos são acessíveis a todos os brasi-
leiros, observados os requisitos que a lei estabelecer”. No caso, a exigência
decorrera de regulamento, não sendo explícita a lei nesse sentido.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes inicia por esclarecer que não se
trata de discutir distinção entre sexos, mas sim de discutir aptidão de homens e
mulheres para determinado cargo. Não se trata, pois, de discriminação, como se
se considerassem abstratamente homens e mulheres. Lembra, nesse sentido, o
precedente julgamento do RMS 8.783, envolvendo o mesmo cargo ora em questão,
quando se entendera constitucional a exigência.
A tese sustentada, portanto, é a de que a distinção entre sexos, para efeitos
de admissão em concurso público, é constitucional se efetivamente fundamenta-
da em requisitos que demonstrem estarem os candidatos realmente aptos para o
cargo, incluindo fatores físicos e culturais.
Nesse sentido, observa o Ministro Victor Nunes, acompanhando idéia ex-
pressa em aparte do Ministro Hermes Lima:
“O Sr. Ministro Hermes Lima: V. Exa. me perdoe, mas há países
em que a mulher exerce efetivamente o serviço militar (Israel é um
deles). Isso depende unicamente do conjunto de costumes, valores e
padrões culturais reinantes em cada sociedade. Por isso é que é ne-
cessário haver flexibilidade.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O eminente Ministro Hermes Lima
acentuou bem: os padrões culturais variam, não só em razão do
lugar, mas igualmente em função do tempo. A mesma autoridade
pública de São Paulo, que hoje está vedando o ingresso de mulheres
na carreira de fiscal de rendas, tendo em vista, talvez, que ainda há,
em São Paulo, regiões onde seria inconveniente confiar-lhes esse en-
cargo, poderá, amanhã, quando todo o Estado tiver o alto nível de
civilização já alcançado por muitas de suas cidades, permitir o in-
gresso de mulheres nessa carreira.

Há, porém, setores da atividade humana em que a exação só adquire plenitude — e


nisso é que está o interesse público — quando à pontualidade do servidor se conjuga a
energia física, e não simplesmente a força da persuasão. Ora, a Administração do
Estado resolveu não conferir às mulheres, por enquanto, os encargos da Fiscalização
de Rendas, sempre difíceis e ásperos, e o seu critério, que não é anticonstitucional, deve
ser acatado”. Esse posicionamento foi acompanhado pela unanimidade do Tribunal
Pleno, inclusive pelo Ministro Victor Nunes.

162
Ministro Victor Nunes

Penso, Sr. Presidente, no interior de outros Estados, em algumas


regiões de Minas Gerais, do Nordeste...”.
Esse argumento da necessidade de consideração da realidade social é
usado em reforço pelo Ministro Victor Nunes para interpretar o citado art. 184 da
Constituição de 1946 como se referindo a “lei” em sentido amplo: “Estou inter-
pretando a Constituição atual, que fala em ‘lei’ no sentido mais amplo do
vocábulo. Há dificuldades que resultam da natureza das coisas. A lei, pela
impossibilidade de regular adequadamente o assunto de que trata, tem, ne-
cessariamente, que deixar claro para o regulamento, porque, do contrário,
a Constituição não admitiria o poder regulamentar.”
Entende, assim, que não seria juridicamente incorreto — nem mesmo seria
administrativamente inconveniente — que a autoridade do Executivo avaliasse,
de maneira concreta, ser o caso de admitir ou não, sempre com justificativa,
mulheres em determinada carreira108.
Como resultado de julgamento, decidiu-se pela constitucionalidade da nor-
ma paulista, contra os votos dos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator) e
Hahnemann Guimarães.

1.5 Poder Legislativo

Recurso Extraordinário 62.731

Decreto-lei — Limites — Discricionariedade do


Executivo no reconhecimento da hipótese material de
cabimento — Possibilidade de apreciação judicial.

Tratava-se de acórdão que envolvia, como questão de fundo, norma conti-


da no Decreto-Lei 322, sobre purgação de mora pelo locatário em locações co-
merciais — configurando um “assunto miúdo de direito privado”, conforme a
expressão do Relator, Ministro Aliomar Baleeiro.
No entanto, a matéria constitucional discutida mostrou-se extremamente
relevante e atual, permitindo comparação com o tratamento dado à medida provi-
sória pelo Direito vigente.

108 No caso em exame, nota-se que já havia mulheres na carreira de fiscal de rendas, o que
é invocado por alguns Ministros para ilustrar a arbitrariedade da autoridade administrativa
em convocar concurso que vedasse a entrada de mais mulheres, mas é usado por outros
Ministros para argumentar ser a experiência que tenha levado o administrador a mudar a
orientação de subseqüentes concursos de ingresso.

163
Memória Jurisprudencial

Com efeito, a matéria constitucional em questão dizia respeito à discricio-


nariedade do Poder Executivo para decidir sobre as hipóteses nas quais se mos-
trava cabível o decreto-lei, previsto na Constituição de 1967, no art. 58109:
“O Presidente da República, em casos de urgência ou de inte-
resse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa,
poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:
I - segurança nacional; II - finanças públicas. Parágrafo único -
Publicado, o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional
o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo
emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação o texto será tido
como aprovado”.
Este julgamento ocorreu em 23 de agosto de 1967, em um momento de
afirmação do posicionamento do STF quanto a esse importante aspecto típico do
regime constitucional de então. Vale lembrar que a Constituição de 1967 foi pro-
mulgada em 24 de janeiro e entrou em vigor em 15 de março do mesmo ano.
O Ministro Aliomar Baleeiro, Relator do processo, identifica, prelimi-
narmente, dois pontos a serem superados para que, eventualmente, se possa julgar
a questão de fundo.
Em primeiro lugar, cabe apreciar se o art. 5º do Decreto-Lei 322 teria
efeito retroativo. Caso positivo, em segundo lugar, haveria que analisar a
constitucionalidade desse dispositivo, considerando-se ser um decreto-lei a tra-
tar de questão relativa a regras do inquilinato.
A seqüência de apreciação desses pontos no julgamento decorre de “velha
regra” do Supremo Tribunal Federal, lembrada pelo Ministro Relator, Aliomar Ba-
leeiro, no sentido de que “não se pronuncia a inconstitucionalidade se não
for o estritamente necessário”. Ou seja, se se entendesse não retroativo o
dispositivo em análise — portanto não aplicável ao caso concreto —, não seria
necessário apreciar a constitucionalidade da norma enquanto objeto de decreto-lei.
No caso, adentrou-se efetivamente na apreciação dessa questão de
constitucionalidade, aspecto efetivamente mais interessante para este comentá-
rio. Nesse sentido, manifestou-se o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro:
“Não me parece duvidoso que a apreciação da ‘urgência’ ou
do ‘interesse público relevante’ assume caráter político: é urgente ou
relevante o que o Presidente entender como tal, ressalvado que o
Congresso pode chegar a julgamento de valor contrário, para rejeitar

109 Texto anterior à Emenda 1/69.

164
Ministro Victor Nunes

o decreto-lei. Destarte, não pode haver revisão judicial desses dois


aspectos ao discricionarismo do Executivo, que sofrerá apenas correção
pelo discricionarismo do Congresso.
Por aí não há inconstitucionalidade.
Mas o conceito de ‘segurança nacional’, a meu ver, não cons-
titui algo indefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não entre-
gue ao discricionarismo do Presidente e do Congresso. De direitos e
garantias individuais, o federalismo e outros alvos fundamentais da
Constituição ficarão abalados nos alicerces e ruirão se admitirmos
que representa ‘segurança nacional’ toda matéria que o Presidente
da República declarar que o é, sem oposição do Congresso.
(...)
Segurança Nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente e
o Congresso dizem que é, mas apenas o que se concilia com o que
está expresso e implícito nos arts. 89 e 91 da Constituição, sob a
epígrafe ‘Da Segurança Nacional’. E, por certo, purgação da mora
em locações não residenciais não se harmoniza com o conceito da
segurança nacional.
(...)
Se nisso se contém a matéria de segurança nacional, toda ela
de ordem pública e de Direito Público, repugna que ali se intrometa
assunto miúdo de Direito Civil, que apenas joga com os interesses
também miúdos e privados de particulares, como a purgação da mora
nas locações em que seja locatário o comerciante.”
Acompanhando o Ministro Relator, votaram pela inconstitucionalidade do
art. 5º do referido Decreto-Lei — dando provimento ao Recurso Extraordinário —
outros treze Ministros, sendo vencido apenas o Ministro Hermes Lima, que de-
fendia ser o conceito de segurança nacional “extremamente flexível e aberto”,
sendo, pois, passível da apreciação discricionária do Presidente da República,
sujeita a controle não pelos tribunais, mas pelo Congresso Nacional, “órgão po-
lítico por excelência”. Igualmente sustentara a constitucionalidade da medida o
Procurador-Geral da República, Prof. Haroldo Valadão.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes, acompanhando o Relator, acres-
centa relevantes argumentos ao debate.
Para contrapor-se ao ponto de vista do Ministro Hermes Lima — quanto
à limitação do controle dos decretos-leis ao Congresso Nacional —, observa que
não se pode negar que o Congresso Nacional e a previsão constitucional de ga-
rantias individuais sejam importantes “freios constitucionais para o Presidente
.
165
Memória Jurisprudencial

da República”; no entanto, não são os únicos, a eles se acrescentando a atuação


do Supremo Tribunal Federal:
“O art. 58 (da Constituição Federal) não suprimiu qualquer das
prerrogativas do Supremo Tribunal Federal, definidas nos arts. 114
e 115. O fato de poder o Congresso apreciar os decretos-leis do art.
58 não lhes confere categoria superior à das leis votadas pelo Con-
gresso, quer este aprove esses decretos-leis pelo silêncio ou em forma
expressa. Se o Supremo Tribunal pode julgar as leis, em face da
Constituição, também pode apreciar, em face da Constituição,
aqueles decretos-leis”.
Em seguida, aponta como problema fundamental, no caso em exame,
saber se o conceito de segurança nacional, referido no art. 58 da Constituição,
é matéria da competência discricionária do Executivo e do Congresso Nacio-
nal.
E manifesta-se negativamente. Lembra, nesse sentido, que o texto consti-
tucional distinguiu os conceitos de “interesse público relevante” e “segurança
nacional”.
O “interesse público relevante” juntamente com a “urgência” seriam de
apreciação discricionária do Presidente da República e do Congresso Nacional,
configurando uma primeira condição de cabimento dos decretos-leis.
A “segurança nacional” juntamente com as “finanças públicas” configura-
riam uma segunda condição de cabimento dos decretos-leis, limitando a matéria
sobre a qual podem versar, não sendo tais conceitos sujeitos a discricionariedade
do Poder Executivo ou do Legislativo, que devem interpretá-los, no tocante à
“segurança nacional”, atentando ao sentido que a Constituição lhe dá nos artigos
89 a 91, dispositivos esses que também configuram parâmetro para o controle de
constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal.
E acrescenta:
“a definição dessa matéria não é discricionária, pois o nosso
sistema constitucional seria ilusório, se um conceito tão básico, tão
importante, tão fundamental, seja para a segurança do Estado, seja
para a segurança dos indivíduos, dependesse tão-só do critério ilimi-
tado e exclusivo dos órgãos políticos.”
Desse modo, o Ministro Victor Nunes vota com o Relator, mas expressa-
mente incorporando à motivação de seu voto o fundamento da inconstitucionali-
dade do Decreto-Lei 322 como um todo, por não versar sobre matéria de segu-
rança nacional.
.
166
Ministro Victor Nunes

Note-se que surgiu nos debates motivação diversa para o provimento do


Recurso Extraordinário. O Ministro Prado Kelly, seguido pelo Ministro Adalicio
Nogueira, também votara pelo provimento, porém por entender o art. 5º do De-
creto-Lei 322 não aplicável ao caso em discussão (a vigência imediata do Decreto-
Lei não importaria que se aplicasse a casos já sub judice); desse modo, pela
regra considerada tradicional no Supremo Tribunal Federal de apenas discutir a
inconstitucionalidade de lei se indispensável ao julgamento do feito, não motiva
seu voto na inconstitucionalidade.
O Ministro Victor Nunes observa, ao motivar seu voto, que “os Tribunais
podem decidir — e freqüentemente o fazem — por mais de um fundamento”.
E não aplica a regra invocada pelo Ministro Prado Kelly por entender que a
questão da constitucionalidade é prejudicial à questão da aplicabilidade de novo
Decreto-Lei a casos pendentes de julgamento: “como poderia eu, sem contra-
dição, dizer que esse Decreto-Lei se aplica aos casos pendentes, se o consi-
dero inconstitucional?”.

Representação 696

Lei de caráter administrativo — Anistia a faltas de


servidores públicos — Harmonia dos Poderes.

A questão em discussão dizia respeito à possibilidade de o Poder


Legislativo — no caso, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo —
estabelecer “anistia110”, de modo genérico, a faltas disciplinares cometidas por
servidores públicos.
Acompanhando o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, o Ministro Victor
Nunes entende que a lei impugnada, ainda que de caráter administrativo, não
viola a harmonia dos Poderes.
Isso ocorreria caso se tratasse de lei afastando a penalidade aplicada em
um caso concreto específico; isso seria o equivalente a tornar o Poder Legislativo
uma instância recursal em que se questionasse decisão da Administração. E
prossegue:
“O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, quando, por lei geral, o
Congresso, na esfera da União, ou a Assembléia Legislativa, na es-
fera do Estado, perdoa certas faltas administrativas, cometidas em
determinadas circunstâncias de tempo ou lugar, levando em conta

110“Anistia” assume, aqui, acepção ampla, como esclarecido na ementa do acórdão, para
incluir também faltas disciplinares de servidores públicos.

167
Memória Jurisprudencial

razões de ordem social, ou mesmo funcional, com espírito de benevo-


lência ou intenção de estímulo...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Por que não dizer logo a
palavra política?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, razões de ordem política, no
sentido mais geral da palavra. Em tal hipótese, não vejo qualquer
impedimento na Constituição.”
Para concluir, o Ministro Victor Nunes aponta o fundamento constitucional
da competência do Poder Legislativo para tratar da matéria:
“Esse poder de perdoar faltas funcionais, em caráter geral,
deriva do poder de organizar o serviço público, que cabe ao legisla-
dor, em primeiro lugar, e, em segundo, subordinadamente, ao Poder
Executivo, pois os regulamentos estão subordinados às leis. No que
respeita à organização do serviço público — o que inclui o sistema de
penalidades administrativas —, o Executivo só não deve acatamento
ao Legislativo quanto às atribuições que a Constituição lhe confere
em caráter privativo. Fora daí, a lei tem primazia sobre a ação do
Executivo. Não vejo, pois, como negar validade a uma lei que perdoa
faltas funcionais em caráter genérico.”
A representação resta julgada improcedente, vencidos os Ministros Eloy
da Rocha, Oswaldo Trigueiro, Prado Kelly, Adalicio Nogueira e Luiz Gallotti, que
vislumbravam na lei paulista invasão da esfera própria da Administração.

Representação 465

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-


jetos de iniciativa do Executivo.

Esta representação, fundamentada em suposta violação do princípio da


“independência e harmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b),
voltava-se contra diversos dispositivos da Lei estadual 14, de 24 de outubro de
1960, do Estado da Guanabara.
Tratava-se do mesmo contexto de criação desse Estado, já verificado na
Rp 477 e no RMS 9.558.
Nesse período, nos termos da Lei federal 3.752, de 14 de abril de 1960
(conhecida como “Lei San Tiago Dantas”), que regia a fase de transição
institucional para a criação do Estado, a Guanabara possuía um Executivo, repre-
sentado por um Governador provisório — sucessor do Prefeito do antigo Distrito
.
168
Ministro Victor Nunes

Federal —, e um Legislativo, consistente na Câmara de Vereadores, a ser posterior-


mente substituída, após o processo constituinte, por uma Assembléia Legislativa.
Nos termos do disposto na Lei federal 217, aspecto mantido pela Lei fe-
deral 3.752, era de competência do Prefeito do Distrito Federal — e, portanto,
num primeiro momento da transição, do Governador Provisório — “a iniciati-
va de leis que ampliem, reduzam ou criem empregos em serviços existen-
tes, alterem as categorias do funcionalismo, ou seus vencimentos e o sis-
tema de remuneração”.
Toda a polêmica quanto à Lei estadual 14 dizia respeito a dúvida quanto a
sua iniciativa. Em síntese, ainda na época do Distrito Federal, o então Prefeito
Negrão de Lima enviara mensagem à Câmara, dispondo sobre matéria de fun-
cionalismo público. Já durante a gestão do Governador provisório, houve um
incidente extravagante, tendo sido enviada mensagem, para tratar dos mesmos
assuntos, porém não assinada pelo Chefe do Executivo (“uma mensagem am-
bígua que não se sabe se estava ou não assinada”, nas palavras do Minis-
tro Relator, Candido Motta; ou ainda, como observara o Ministro Ary Franco,
“aquilo não era mensagem, era um papel servido, um papel sujo que o
Governador mandou para a Assembléia”). Nessa situação, a Câmara
transformou em iniciativa própria a mensagem do Governador, sob a forma de
um substitutivo, apresentado por um Vereador, à mensagem que originalmente
fora enviada pelo Prefeito Negrão de Lima, mensagem essa que, até então, não
havia sido nem rejeitada, nem arquivada. O resultado dessa situação foi que o Go-
vernador vetou todos os artigos da lei aprovada pela Câmara — com exceção dos
dispositivos referentes ao funcionalismo do próprio Legislativo —, veto esse que
veio a ser derrubado, levando o Governador a ensejar a presente representação.
Sem que se adentre na minúcia da discussão acerca de cada situação
longamente debatida no acórdão de mais de uma centena de páginas — sobre
criação e reclassificação de cargos, alteração de vencimentos, etc; isso para diver-
sas categorias de servidores —, relevante se mostra a discussão sobre o poder de
emenda do Legislativo em projetos de iniciativa exclusiva do Executivo.111
O seguinte trecho do voto do Ministro Victor Nunes é bem ilustrativo da
questão e do seu pensamento:

111A Constituição de 1946 assim dispunha: “Art 67. A iniciativa das leis, ressalvados os
casos de competência exclusiva, cabe ao Presidente da República e a qualquer membro
ou Comissão da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. (...) § 2º Ressalvada a
competência da Câmara dos Deputados, do Senado e dos Tribunais Federais, no que
concerne aos respectivos serviços administrativos, compete exclusivamente ao Presi-
dente da República a iniciativa das leis que criem empregos em serviços existentes,
aumentem vencimentos ou modifiquem, no decurso de cada Legislatura, a lei de fixação

169
Memória Jurisprudencial

“O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou procurando mostrar que o


texto final da lei, resultante de iniciativa do Executivo, não há de ser,
por força, absolutamente idêntica ao da proposta governamental,
porque, então, não teria o Legislativo o poder de emendar.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Ela tem o poder de
emendar, desde que não invada área do Poder Executivo.
O Sr. Ministro Candido Motta Filho (Relator): Parece-me que,
no caso, não é evidente o aumento de vencimentos, e como, em matéria
constitucional, deve haver evidência, entendo que não se pode im-
pugnar a argüição de inconstitucionalidade.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É muito difícil uma lei de reclassi-
ficação não acarretar aumento de vencimentos. Esses planos de re-
classificação, de que nos temos utilizado, envolvem, sempre, aumento
de despesas, e o do antigo Distrito Federal não fugia à regra. É im-
possível, em tais casos, exigir-se do Poder Legislativo que se atenha
exclusivamente aos termos da iniciativa; ficaria ele reduzido àquele
Senado napoleônico, que poderia ser constituído de surdos-mudos,
porque bastaria baixar a cabeça, no sentido vertical ou no horizontal,
para aprovar ou rejeitar as medidas propostas, e nada mais. Não é
este o nosso sistema. Tratando-se, portanto, de reclassificação, é
mais amplo o âmbito do poder de emendar do Legislativo do que em
relação a projeto de simples criação de cargos. Sou, por isso, mais
rigoroso em relação às emendas que criam cargos do que em relação
às de reestruturação. No caso destes autos, o projeto do Executivo
em momento nenhum foi repudiado pela Câmara, mas apenas modi-
ficado pelo substitutivo a que se referiu o eminente Relator. Por isso
mesmo, votou-se um substitutivo e não um projeto novo. Com o emi-
nente Relator, rejeito a argüição de inconstitucionalidade.”
O resultado específico da representação, todavia, não parece merecer
análise rigorosa neste momento. São várias dezenas de dispositivos de lei, rece-
bendo uma votação caso a caso quanto à sua inconstitucionalidade — ou a in-
constitucionalidade da rejeição do respectivo veto —, com diversos resultados,
ora por votação unânime, ora por maiorias.
Numa possível síntese, pode-se apontar que prevaleceu a posição da cons-
titucionalidade dos dispositivos emendados pelo Legislativo, no que importassem
simples reorganização da matéria proposta pelo Executivo — com eventuais

das forças armadas”. Todavia, não havia, no regime de 1946, antes do primeiro Ato
Institucional, de 1964, regra expressa — como a atual previsão do art. 63, I, da CF — no
sentido de vedar ao Legislativo, por emenda, aumentar despesa em projeto de iniciativa
exclusiva do Executivo.

170
Ministro Victor Nunes

acréscimos diferenciais entre cargos das carreiras; do contrário, inconstitucionais


seriam os artigos que, resultantes de emendas parlamentares, criassem cargos e
aumento de vencimentos112. Restaram vencidos, quanto a diversos dispositivos,
por perfilharem interpretação mais flexível do poder de emenda parlamentar, os
Ministros Pedro Chaves, Vilas Boas e Ary Franco.
Observe-se que a decisão nessa representação foi objeto de embargos,
que levaram a nova discussão sobre diversos dispositivos e ainda sobre o aspecto
processual (embargos recebidos em parte “para julgar constitucionais todos
os dispositivos da Lei 14, de 24 de outubro de 1960, impugnados por vício
de inconstitucionalidade, que não tenham alcançado pelo menos 6 votos
pela inconstitucionalidade”).

Representação 468

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-


jetos de iniciativa do Executivo — “Prática da Constitui-
ção” como integrante do Direito Constitucional positivo.

A questão do poder de emenda da Assembléia Legislativa, em projeto de


iniciativa exclusiva do Chefe do Executivo, novamente apareceu nesta represen-
tação, fundamentada em violação do princípio constitucional da “independência e
harmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b).
Tratava-se de emenda havida na tramitação de projeto de lei, perante a
Assembléia Legislativa de São Paulo, que criou dois cargos públicos, no âmbito
da Universidade de São Paulo, além dos vinte originalmente constantes do projeto.
O Governador Carvalho Pinto, que não contemplara tais cargos em sua iniciativa,
vetou a lei nessa parte, sendo seu veto posteriormente derrubado.
O Ministro Hermes Lima, nos debates travados, liderou a sustentação de
que criação de cargos, ainda que sem aumento de despesas — cuidava-se da
transformação de funções gratificadas já existentes —, era matéria afeita à efici-
ência da Administração, própria do Executivo; seu tratamento pela Assembléia,
além de inconveniente, importaria usurpação de poder constitucional do Executivo.
Relatando o processo, o Ministro Victor Nunes entende que a emenda, no
caso, respeitou “a essência da proposta do Executivo, tendo em vista seus
objetivos”. Mais uma vez invoca a menção ao Senado napoleônico (cf. supra

112 Essa tese é acolhida pelo Ministro Relator, Candido Motta, em extenso voto, rico em
doutrina sobre possibilidade de emendas parlamentares e sobre as competências do
Poder Legislativo.

171
Memória Jurisprudencial

análise da Rp 465), para afastar a hipótese de um Congresso reduzido a dizer sim


ou não, sem em nada contribuir para o aprimoramento dos projetos.113
E acrescenta lúcida observação sobre a “prática da Constituição” a confi-
gurar o Direito Constitucional positivo:
“No ponto específico em debate, a prática da Constituição, pe-
los três Poderes, tem sido no sentido de uma relativa tolerância para
que o poder de emendar do Congresso não fique totalmente esvazia-
do do seu conteúdo. (...) Estou aludindo à prática da Constituição. V.
Exa., eminente Professor de Direito Público [o Ministro Hermes Lima],
bem sabe que a Constituição vale pela sua letra e pela sua prática,
pela sua execução. Nos Estados Unidos, país, como o nosso, de
Constituição rígida, algumas práticas não previstas na Constituição
integram o Direito Constitucional positivo. O mesmo ocorre em outros
países. E há práticas que se estabelecem contra a Constituição e aca-
bam valendo tanto como a própria Constituição. (...) Ao aludir a prá-
ticas que se firmam contra a Constituição, não estou incluindo o po-
der de emendar. A sua interpretação moderadamente ampliativa não
é desarrazoada”.
Como resultado, a representação foi julgada improcedente114, contra os
votos dos Ministros Hermes Lima e Candido Motta.

Representação 687

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-


jetos de iniciativa do Executivo — Introdução de matéria
estranha ao projeto original.

Aqui, mais um processo envolvendo o poder de emenda da Assembléia


Legislativa, em projeto de iniciativa do Chefe do Executivo, a ensejar representa-
ção, fundamentada em violação do princípio constitucional da “independência e
harmonia dos Poderes” (Constituição Federal, art. 7º, VII, b).

113 Interessante debate se segue a partir desse argumento: “Essas considerações, que
tive oportunidade de ouvir, no Congresso, uma vez, eu as classifico como a ‘teologia do
empreguismo’” (Ministro Hermes Lima). “É possível, Sr. Ministro Hermes Lima. Mas o
empreguismo do Congresso faz tanto mal quanto o do Executivo. Sabe V. Exa. que, nas
autarquias, os cargos são criados sem intervenção do Legislativo, e há muito empre-
guismo nas autarquias” (Ministro Victor Nunes Leal). “Sou contra o empreguismo do
Executivo e do Legislativo e, às vezes, também até do Judiciário” (Ministro Hermes
Lima) (...) “O mal é mais profundo. Está vinculado às nossas condições sociais” (Minis-
tro Victor Nunes Leal).
114 Ver a indicação de outros julgados no mesmo sentido na análise da Rp 700, infra.

172
Ministro Victor Nunes

A questão apresentada nesta representação situava-se em uma variante


do argumento desenvolvido nos casos acima analisados, sem enfatizar o aspecto
aumento de despesas: a Assembléia do Estado da Guanabara teria emendado
projeto de lei, que cuidava apenas de matéria tributária, para nele introduzir
aumento de vencimentos de servidores, assunto alegadamente estranho às finali-
dades da lei. Vetado o projeto, derrubou-se o veto do Governador.
Em seu voto, o Relator, Ministro Adalicio Nogueira, reconhece a jurispru-
dência do Supremo Tribunal Federal “no sentido de que o poder de emenda da
Assembléia só lhe é reconhecido quando existe correlação evidente e clara
entre as emendas e o projeto que elas visam modificar”. Portanto, julga pro-
cedente a representação.
Por sua vez, o Ministro Victor Nunes reafirma que, “quanto aos princípios
fundamentais que regem o poder de emenda das Assembléias Legislativas,
parece que existe acordo geral neste Tribunal”. De fato, ao longo de vários
julgados, alguns dos quais acima analisados, fixou-se a regra geral de entendimen-
to. Restava apenas, o que não era tão simples, aplicá-la a cada caso concreto.
Neste caso, por exemplo, partindo do mesmo princípio, o Ministro Victor
Nunes chega a outra conclusão, entendendo que havia, em alguns dispositivos da
lei, matéria atinente à previsão de despesas, compatível com as emendas que
teriam equiparado vencimentos de funcionários, cumprindo, ademais, dispositivo
da Constituição do Estado.
Nesse sentido, vota o Ministro Victor Nunes pela procedência apenas par-
cial — quanto a alguns artigos da Lei — da representação, enquanto os demais
Ministros julgam-na procedente integralmente.

Representação 700

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-


jetos de iniciativa do Executivo — Introdução de matéria
estranha ao projeto original — Aumento de despesas.

Esta representação também cuidava do poder de emenda do Legislativo,


porém novo fundamento se apresentava: o Ato Institucional 2, de 1965. O seu
art. 4º vedava, na votação de projetos do Governo, quaisquer emendas parlamenta-
res de que resultasse aumento de despesa.
No caso, tratava-se da Lei 9.271, de 16 de março de 1966, aprovada pela
Assembléia Legislativa de São Paulo, a partir de projeto de iniciativa exclusiva
do Executivo, que cuidava da carreira e vantagens funcionais dos delegados de
polícia. Houve emendas parlamentares. Todavia, ocorreram, em algumas hipóte-
.
173
Memória Jurisprudencial

ses, alterações substanciais e relevante aumento de despesas, por exemplo, esten-


dendo-se gratificações a inativos.
O Governador Adhemar de Barros, nessa situação, vetou integralmente o
projeto, inclusive quanto aos aspectos que correspondiam a sua iniciativa, e a
Assembléia derrubou o veto.
O Ministro Victor Nunes, Relator do caso, de início já afasta a representa-
ção quanto à matéria que constava originalmente do projeto do Executivo.
Quanto aos demais dispositivos, inicia por discutir a aplicabilidade do AI 2
ao caso. Lembra que, na Rp 610 e na Rp 670, decidiu-se que o citado art. 4º do
AI 2 não tinha efeito retroativo em relação aos Estados, até porque previa
período de vacatio legis de sessenta dias, para adaptação das Constituições
estaduais, após o que teria alguns de seus dispositivos aplicados automatica-
mente aos Estados.
Agora, o Ministro Relator, Victor Nunes, sustenta que o art. 4º do AI 2 não
alcance projetos que já tenham tido sua votação concluída, ainda que não envia-
dos à sanção do Executivo115 — e é o caso dos autos. Isso porque, se se quer
proibir a votação de emendas, a norma só pode ter valor para emendas ainda não
votadas.
O mesmo raciocínio não se aplica à fase do veto, até porque veto não pode
ter efeito de emenda. Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes lembra as críticas
doutrinárias ao abuso do veto parcial, se aplicado a palavras: por exemplo, vetando-
se um “não”, alterar-se-ia o sentido da norma, com efeito de emenda.
Daí por que já afasta o fundamento da representação quanto ao AI 2. E,
para apreciá-la quanto a outros aspectos, supera o entendimento de que não se
pode julgá-la além dos estritos termos em que é apresentada. Nesse sentido,
entende que não se pode incluir matéria nova na representação, o que não signi-
fica que não se possam apreciar novos fundamentos.
Passa então a julgar a lei paulista em face de dispositivos da Constituição do
Estado, que não proibia emendas para aumento de despesa, senão para aumento de
vencimentos.

115 Registre-se que essa tese o Ministro Victor Nunes já aventara ao votar na Rp 727.
Todavia, naquele caso, por outro fundamento, nem houvera oportunidade para um
pronunciamento final sobre esse ponto. Aquela representação, em que se discutia
igualmente limites ao poder de emenda do Legislativo, acabou julgada procedente em
parte, em face da violação de dispositivo específico da Constituição do Estado do Rio
Grande do Sul e do AI 2, tendo o Ministro Victor Nunes acompanhado o voto vencedor
do Relator, Ministro Prado Kelly.

174
Ministro Victor Nunes

Lembra precedentes no sentido de se interpretar o limite ao poder de


emendas parlamentares de modo a não suprimi-lo, mas, sim, conciliá-lo com o
espírito do projeto emendado (Rp 610, Rp 611, Rp 627, Rp 670116, RE 55.084, MS
12.342, RMS 15.015, RMS 15.110, RMS 14.405, RE 57.713 e RMS 147.970).
Nesse sentido, passa a examinar vários dispositivos da Lei em questão. Em
conclusão, rejeita a representação quanto aos artigos nos quais “há apenas a ex-
tensão do favor que se continha na proposição do Governo” e a acolhe quanto
a artigos que promovem reestruturação da carreira, com aumento de vencimentos.
Assim, seguindo-se o voto do Relator, julgou-se a representação parcial-
mente procedente, embora alguns Ministros a tivessem julgado procedente de
modo mais amplo.
Note-se que neste caso houve embargos, resultando em ampliação parcial
da procedência da representação.

Representação 741

Limites à iniciativa do Legislativo quanto a projeto de lei.

Em mais um caso, estava em questão o limite da iniciativa legislativa do


parlamento, aqui não mais apenas quanto a emendas. O fundamento da represen-
tação também era violação do princípio da separação e harmonia dos Poderes
(art. 10, VIII, d, agora da Constituição Federal de 1967).
Cuidava-se de lei estadual paulista (Lei 8.308, de 21 de setembro de 1964),
que criara e disciplinara o Fundo Estadual de Bolsas de Estudos, vinculado ao
Conselho Estadual de Educação; vetada totalmente a lei, fora o veto rejeitado.
Para o Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, não havia inconstitucionalidade
na lei, pois reconhecia ao Legislativo “atribuição ampla de regular todos os
serviços do Estado, sem outros limites senão aqueles levantados pela Cons-
tituição expressa ou implicitamente, mas de modo inequívoco”.
Observa ainda, na esteira da jurisprudência da Suprema Corte norte-ame-
ricana, que só se devem pronunciar inconstitucionalidades manifestas. No caso,
apenas “coibiu-se o arbítrio puro e simples do Governador e do Conselho
Estadual, indicando-lhes standards jurídicos flexíveis para que fosse aten-
dido fim nobre”.

116 Nesse caso, o Ministro Relator, Pedro Chaves, apresenta boa síntese da tese, que é
esposada pelo Ministro Victor Nunes: a emenda só é “admissível sem extravasamento do
assunto constante da proposição, sem quebra da unidade da proposta e sem violação
dos propósitos do projeto”.

175
Memória Jurisprudencial

Acompanhando o Relator, o Ministro Victor Nunes reforça a posição,


mostrando que não houve criação de cargos, nem de órgãos, o que se veda espe-
cialmente com preocupação de ordem financeira. No caso, a lei versava apenas
sobre a organização de um serviço.
Não foi esse, entretanto, o entendimento da maioria, que julgou procedente
a representação. Essa posição, todavia, não negava o princípio afirmado pelo
Ministro Victor Nunes, entre outros; apenas o aplicava com outra compreensão
do caso concreto: a de que a lei em questão havia criado, sim, um órgão.

Representação 762

Limites ao poder de emenda do Legislativo em pro-


jetos de iniciativa do Executivo.

Para concluir esta série sobre poder de iniciativa do Parlamento, cotejado


com o princípio da separação e harmonia dos Poderes, há mais esta representação,
cuidando da Lei federal 5.291, de 31 de maio de 1967, sobre assunto funcional de
servidores do Ministério da Fazenda, que fora emendada pelo Congresso, com
efeito de reclassificação de cargos e aumento de vencimentos.
Comenta-se mais este caso, não para adentrar o mérito da discussão espe-
cífica nele travada, mas para reforçar que, ainda que assentado o princípio sobre
os limites da iniciativa do Legislativo, em relação a projetos do Executivo, a apli-
cação de tal princípio, na prática, leva a divergências.
Neste caso, o Ministro Relator, Evandro Lins, e o Ministro Victor Nunes
restaram vencidos, julgando improcedente a representação, por entenderem que
as emendas apresentadas não acarretavam aumento de despesas.

Habeas Corpus 40.400

Caso do confronto entre os Senadores Arnon de


Mello e Silvestre Péricles, que resultou na morte do
Senador Kairala — Competência do Senado Federal
para promover inquérito policial quanto a senador —
Natureza judicial dessa função do Senado Federal.

Este habeas corpus refere-se ao caso, notório na história do Senado Federal,


em que o Senador Arnon Afonso de Farias Mello, disparando em Plenário tiros de
seu revólver contra seu desafeto, e também Senador por Alagoas, Silvestre
Péricles de Góes Monteiro, acabou por atingir e matar o Senador Kairala José
Kairala.
.
176
Ministro Victor Nunes

O presente processo referia-se a ato havido na seqüência, de autoria do Sena-


dor Silvestre Péricles, a caracterizar eventualmente tentativa de homicídio contra o
Senador Arnon de Mello, cuja narrativa é bem sintetizada neste trecho da denúncia:
“Os denunciados, chefes políticos do Estado de Alagoas, são
notórios e violentos inimigos pessoais. E aos insultos e alegadas amea-
ças do último, correspondia o primeiro com outros insultos e a signi-
ficativa advertência de que ‘a paciência tem limites’. Para falar na
sessão ordinária de 4 de dezembro p.p., inscreveu-se o denunciado
Arnon de Mello, revelando tencionar responder a acusações que lhe
fizera o outro em discurso recente. De fato, inicia seu discurso pedin-
do licença para, ao contrário do prescrito pelo regimento da Casa,
falar voltado para Silvestre Péricles, que, neste instante, ia se assen-
tando na cadeira que costumava ocupar no plenário. Este, ouvindo a
provocação, levanta-se e, braço direito erguido, dedo em riste, dirige-
se ao orador, chamando-o ‘crápula’. Foi quando o denunciado Arnon
de Melo sacou de seu revólver e, visando seu desafeto, fez dois dispa-
ros, que não conseguiram atingir o inimigo mortal, vindo um deles,
porém, a alcançar o senador Kairala José Kairala, produzindo-lhe as
lesões descritas no laudo de exame cadavérico de fls, determinando-lhe
a morte. Após cessada a agressão da parte de Arnon, já, então, seguro
e dominado, o denunciado Silvestre Péricles assesta contra o mesmo a
sua arma e dá ao gatilho, só não logrando disparar o projétil pela
súbita intervenção do senador João Agripino, colocando seu dedo de
forma a paralisar o mecanismo do revólver, já acionado”.
Tratava-se, pois, de habeas corpus tendo por paciente o Senador Silvestre
Péricles, cuja prisão em flagrante havia sido aprovada pelo Senado Federal, que igual-
mente conduzira o inquérito e autorizara abertura do competente processo penal.
O conteúdo do voto aqui proferido pelo Ministro Victor Nunes, como
Relator, consta — por remissão às notas taquigráficas — do HC 40.398, relatado
pelo Ministro Pedro Chaves e julgado em conjunto com este. Em verdade, já era
o terceiro habeas corpus impetrado em favor do Senador Silvestre Péricles117,
tratando de diversos aspectos da matéria processual penal.

117 Como se percebe da leitura da íntegra dos votos constantes do Apêndice desta obra,
não é no HC 40.400, mas no HC 40.398, que formalmente se encontra em toda sua extensão
o voto do Ministro Victor Nunes. Contudo, optou-se pela referência ao primeiro, por ser
caso em que o Ministro Victor Nunes atuou como Relator. Quanto ao HC 40.382, em que
igualmente o Ministro Victor Nunes foi Relator, nele discutia-se questão decorrente do
mesmo fato, porém abordada de modo mais restrito. Estando tal questão contida e reitera-
da no julgamento dos HCs 40.400 e 40.398, foi feita apenas breve referência ao HC 40.382,
que, todavia, tem seu voto também transcrito no apêndice.

177
Memória Jurisprudencial

Dado o enfoque desta obra, parece adequado ater-se aos pontos do HC


40.400 atinentes a matéria constitucional.
Em primeiro lugar, a competência de julgamento por prerrogativa de fun-
ção, aliás, questão já decidida no HC 40.382.
Sustentava-se na impetração a competência do Supremo Tribunal Federal
para julgar o Senador na sua condição de Ministro aposentado do Tribunal de
Contas da União (art. 101, I, c, da Constituição de 1946), uma vez que a compe-
tência para julgamento de Senador seria da justiça comum.
Sobre esse aspecto, manifesta o Ministro Victor Nunes entendimento,
amparado em sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de
que, tendo sido o ato praticado após a cessação do exercício da função, deixa de
incidir a prerrogativa quanto à competência de julgamento.
Em segundo lugar, a irregularidade do flagrante118 e do inquérito. Esse ponto
se desdobra em alguns aspectos.
Conforme argumento do impetrante, apenas a autoridade policial poderia
promover o inquérito, competência essa eventualmente atribuída à autoridade
administrativa — no caso, o Senado — desde que por força de lei. E, no caso,
não haveria tal previsão legal.
Entretanto, o Ministro Victor Nunes demonstra que
“o regimento interno das câmaras legislativas, no que toca à
sua própria polícia, tem força de lei, pois essa prerrogativa lhes foi
atribuída com caráter de exclusividade pelo art. 40 da Constituição”
(de 1946).
O impetrante apresentou ainda o argumento de que a polícia das Casas do
Congresso somente alcançava seus parlamentares por atos praticados no exercí-
cio da função legislativa.
Sobre esse aspecto, o Ministro Victor Nunes, lembrando inúmeros
precedentes da Suprema Corte norte-americana, sustenta o poder da Casa
legislativa, ora impugnado, com base no princípio da independência dos Po-
deres.

118 Quanto à regularidade do flagrante, aliás, nem muito enfatizada pelo impetrante, o
Ministro Victor Nunes lembra que qualquer autoridade, assim como qualquer do povo,
pode — ou deve, no caso da autoridade — prender em flagrante.

178
Ministro Victor Nunes

Mais um aspecto é abordado pela defesa do Senador Silvestre Péricles,


para apontar a ilegalidade do inquérito. Invocando-se o Código de Processo
Penal, sustentava-se que apenas a autoridade policial poderia conduzir o in-
quérito.
No entanto, mostra o Ministro Victor Nunes que a lei processual penal
admite a hipótese de, tendo sido o crime cometido perante a autoridade judiciária,
o próprio juiz presidir o inquérito.
Assim, resta perguntar se, na hipótese ora tratada, o Senado estaria no
desempenho de função judiciária, devendo, portanto, ser equiparado às autoridades
judiciárias, para efeito de poder a sua Mesa realizar o inquérito.
O Ministro Victor Nunes, lembrando que em matéria de impeachment o
Senado indubitavelmente exerce função judiciária119, pondera que a competência
do Senado para resolver sobre a prisão em flagrante de Senadores, prevista no
art. 45 da Constituição de 1946, é também tipicamente função judiciária120, tanto
que ordinariamente atribuída ao juiz (art. 141, § 22).
É justamente essa função que está envolvida no caso em análise: aprovada
a prisão e realizado o inquérito, o Senado encaminhou os autos à justiça comum.
Completa, ainda, o Ministro Victor Nunes:
“o Senado agiu autorizado pela própria Constituição, não ha-
vendo necessidade de invocar argumento de ordem legal para que
pudesse usar de uma prerrogativa envolvida no princípio da inde-
pendência dos Poderes”.
De resto, o Ministro Victor Nunes encerra seu voto tratando da questão
da justa causa, que entende presente. Para tanto, analisa detidamente as cir-
cunstâncias do caso concreto (que não parece ser o caso de aqui relatar), em
especial sobre ter ou não o Senador Silvestre Péricles acionado o gatilho do
revólver.
Vota, portanto, pela denegação da ordem. E esse foi o posicionamento da
maioria, vencidos os Ministros Hermes Lima, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas —
que não reconheciam justa causa.

119 Independentemente de se adotar entendimento de tratar-se de natureza penal ou


política, o fato é que se cuida de julgamento judiciário, posto que a absolvição, no regime
de então, impede a responsabilização pelo mesmo fato pela justiça comum.
120 Observe-se que, no voto do Ministro Victor Nunes, empregam-se as expressões “fun-
ção judiciária” e “função jurisdicional”, no caso, com o mesmo sentido.

179
Memória Jurisprudencial

1.6 Regime de 1964

Inquérito Policial 2

Julgamento histórico: Caso João Goulart — Compe-


tência para julgamento de ex-Presidente da Repú-
blica — Acusação, em inquérito policial militar, de
prática de crimes comuns durante o exercício do cargo —
Direitos políticos suspensos pelo AI 2, com cessação
de privilégio de foro por prerrogativa de função —
Discussão sobre prevalência da Constituição de 1967
sobre o AI 2 — Natureza dos atos institucionais —
Efeitos da aprovação, pela Constituição, dos atos gover-
namentais praticados com base em ato institucional.
Este é um julgamento catalogado como histórico no sítio de internet do
Supremo Tribunal Federal.
Conforme lá sintetizado, discutia-se “essencialmente qual o tribunal ou
juízo competente para julgar, em face da Constituição, o ex-Presidente da
República João Belchior Marques Goulart, acusado em inquérito policial
militar da prática de crimes comuns durante o exercício do cargo e que teve
seus direitos políticos suspensos por regra transitória, de direito excepcio-
nal — o AI 2”.
Em que pese a relevância histórica do julgamento, o Ministro Relator, Gonçal-
ves de Oliveira, assim resume com precisão e simplicidade a questão jurídica contro-
vertida: “devo dizer que estamos discutindo uma simples norma de competência.
Do ponto de vista de garantia de defesa, a causa não tem relevância. Vamos,
apenas, fixar uma norma processual constitucional.121”
O fundamento jurídico da questão deriva do art. 16 do Ato Institucional 2,
que determinava como conseqüência da suspensão de direitos políticos a “cessa-
ção de privilégio de foro por prerrogativa de função”. Tal seria, em princípio, o

121 E, mais adiante em seu voto, complementa: “A questão, como disse no início, não tem
relevância, porque ser julgado pelo Superior Tribunal Militar, no fundo, é a mesma
coisa. Todos são juízes dignos, para acertar ou errar, porque o erro é da própria contin-
gência humana. Mas a questão é processual, e parece que a Constituição atual não faz
distinção. Ela quis dar ênfase, maior garantia, maior certeza de decisão acertada e foi
por isso que cometeu ao mais Alto Tribunal do País a competência para julgar as altas
autoridades, entre as quais, o Presidente da República”. Por certo o Relator, nas entre-
linhas da aparente neutralidade das ponderações “técnico-jurídicas”, reconhecia a rele-
vância política do caso e a diversa conseqüência das possíveis soluções. Note-se que,
não prevalecendo a competência do Supremo Tribunal, por crimes contra a segurança
nacional, o julgamento seria pela Justiça Federal Militar; e, por outros crimes comuns, pela
Justiça Federal Comum.

180
Ministro Victor Nunes

caso do ex-Presidente João Goulart, que, portanto, deixaria de ter foro junto ao
Supremo Tribunal Federal para ser julgado pelos crimes de que era acusado.
Ocorre que tal processo se desenrolava após o início da vigência da Constitui-
ção de 1967, havendo o AI 2 cessado sua vigência em 15 de março daquele ano122.
No entanto, a Constituição de 1967, ao mesmo tempo que explicitara
(art. 114) a prerrogativa do foro para os Presidentes da República junto ao STF,
em julgamento por crimes comuns, aprovara e afastara da apreciação judicial
(art. 173) os atos praticados pelo “Comando Supremo da Revolução”, assim
como pelo Governo Federal, com base nos Atos Institucionais 2, 3 e 4.
A compor, ainda, o espectro do Direito aplicável à matéria, havia a Súmula
394 do STF: “Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a
competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou
a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”.
Considerando esses elementos, o Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira,
apresenta argumentos que o levam a concluir pela competência do STF para o
julgamento do ex-Presidente. Nesse sentido, fundamenta-se na nova norma
constitucional a estabelecer tal foro.
De outro lado, entende que a regra especial trazida pela Constituição, quan-
to à aprovação de determinados atos praticados pelo governo, não tem por conse-
qüência afastar a aplicação de regra de competência para julgamento: “ora, a
norma que estabelece o foro para o processo penal não pode ser erigida
como pena, é mandamento de ordem constitucional processual”.
E ainda argumenta que não haveria sentido em dar tratamento diverso, em
matéria de foro de julgamento, a ex-Presidentes processados após o término de
seus mandatos, discriminando a causa da cessação dos mandatos (por exemplo:
suspensão de direitos políticos, renúncia ou simples término do mandato em seu
termo regular). Essa distinção não encontraria acolhida do texto constitucional.123
Na seqüência dos votos, o Ministro Djaci Falcão124, divergindo do Relator,
reitera argumentos apresentados em caso que anteriormente relatara (Ação Pe-
nal 158).
Em suma, entende que a suspensão dos direitos políticos, por força do AI 2,
produz como efeito imediato a cessação da competência por prerrogativa de função.

122 Por expressa disposição de seu art. 33.


123 Em seu voto, o Relator observa ainda que, em julgamento recente e análogo (Ação
Penal 157), votara com o Relator, Ministro Victor Nunes, e a maioria pelo reconhecimento da
competência da justiça comum; agora, aprofundando a questão, altera seu pensamento.
Entretanto, o Ministro Victor Nunes, em aparte, esclarece que o problema constitucional ora
debatido não fora suscitado naquele caso, de modo que entende conservar “inteira liber-
dade para examiná-lo, porque é a primeira vez que se põe perante o Supremo Tribunal”.
124 Que acabará designado Relator para o acórdão.

181
Memória Jurisprudencial

Esse efeito não haveria de se considerar modificado pela vigência da nova


Constituição, salvo se o texto constitucional houvesse desfeito aquela sanção (a
suspensão dos direitos políticos); e, de fato, não apenas a sanção fora mantida,
como a Constituição de 1967 aprovara os atos praticados pelo Governo com base
no AI 2. E mais: aprovara o próprio AI 2, assim como outros atos de natureza
legislativa editados pelo Governo.
Daí concluir que os efeitos da suspensão dos direitos políticos, previstos no
AI 2, entre eles o relativo ao foro de julgamento, devessem se manter na vigência
do prazo dessa suspensão. Seria, assim, da Justiça Federal a competência para o
julgamento do ex-Presidente João Goulart.
Esse último argumento do Ministro Djaci Falcão é objetado pelo Ministro
Themistocles Cavalcanti, que, concordando com o Ministro Gonçalves de Olivei-
ra, invoca a lição de Pontes de Miranda para sustentar que a Constituição de
1967 (art. 173) não aprovara os Atos Institucionais em si, mas atos praticados
com base neles; de outro lado, não tendo sido tais Atos Institucionais revogados,
foram mantidos no novo regime constitucional, porém com natureza de lei, não
sendo admissível contrapô-los ao texto constitucional.
Desse modo, no caso concreto, haveria de prevalecer a regra quanto a
foro por prerrogativa de função fixada no art. 114 da Constituição, e não a regra
decorrente da aplicação do AI 2.125
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, em voto curto, mas tocando com
precisão os argumentos centrais em debate, manifesta sua concordância com a
posição sustentada pelo Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira.
São dois os pontos principais. Em primeiro lugar, não pode decorrer do art.
173 da Constituição de 1967 que tenham passado a coexistir duas regras consti-
tucionais: “no caso presente, o que se pretende [a prevalecer a posição oposta]
é fazer sobreviver, em face da Constituição em vigor, um ato normativo in-
compatível com ela, o qual, por seu caráter de exceção, tinha vigência por
prazo determinado” (o AI 2).
Em segundo lugar, não cabe invocar a aprovação, pela Constituição de
1967 (art. 173), de um ato pretérito, praticado com base no AI 2: “aqui não
estamos discutindo a validade do ato de suspensão de direitos políticos. O
que estamos discutindo é um problema de competência para julgar processo
que ainda está pendente”.

125 Os extensos debates que se seguem explicitam entendimentos divergentes, sendo


apresentados ricos argumentos. Contudo, dado o propósito deste trabalho, não parece
oportuno analisar aqui todas as posições, além dos argumentos centrais acima sinteti-
zados. A íntegra do acórdão é facilmente encontrada no sítio de internet do STF e está
publicada na Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 46.

182
Ministro Victor Nunes

E prossegue com considerações sobre atos consumados, em se tratando


de regra de competência:
“Em matéria de competência, só se pode falar em ato consuma-
do, quando a autoridade o tenha praticado no tempo em que tinha a
competência. Se o presente processo tivesse sido julgado pela Justiça
Militar antes da vigência da atual Constituição, teríamos uma situa-
ção consumada, porque a competência teria sido exercida legitima-
mente, ao tempo em que o Ato Institucional a conferia à Justiça Mili-
tar e não ao Supremo Tribunal. Mas ainda não julgado o processo,
que nem se iniciou por não ter havido denúncia, prevalece integral-
mente a competência originária do Supremo Tribunal, que a Consti-
tuição de 67 restabeleceu, sem distinguir entre acusados com direitos
políticos suspensos ou na plenitude dos seus direitos políticos”.
Colhidos todos os votos, inclusive o do Ministro Presidente, Luiz Gallotti,
houve empate de sete votos contra sete.
Nessa situação, o Ministro Presidente entende não ter sido alcançada a
maioria de nove votos para que se declarasse a inconstitucionalidade do art. 16
do AI 2, devendo prevalecer essa norma. Mas outros Ministros sustentam não se
tratar do julgamento de inconstitucionalidade de lei, não havendo que cogitar desse
quorum especial.
Lembra, então, o Ministro Presidente que, antes de votar, estando ele próprio
em dúvida quanto a se estar tratando de julgamento de constitucionalidade — caso
em que o presidente sempre tem voto —, questionara o Tribunal, havendo-se
concluído unanimemente ser o caso de votar. Surge então questão de ordem,
consistente em saber se o caso pode ser decidido por maioria simples ou se se
exige o quorum de nove votos.
Ao longo da votação, dois argumentos contrapostos se destacam: há Minis-
tros que entendem que se estava a decidir a validade de norma do AI 2 em face da
Constituição de 1967; outros sustentam que não se estava a declarar a inconstituci-
onalidade de nenhuma norma ou ato, mas apenas decidindo-se aplicação de regra
de competência a determinado caso, ou seja, interpretando-se a Constituição.
Mas, durante os debates, o primeiro desses argumentos ganha uma deriva-
ção. Discute-se se o AI 2 seria norma revogada ou norma que restara inconstitu-
cional em face da nova Constituição.
Isso porque, naquele tempo, havia majoritariamente no STF o entendimento
de que a lei anterior que se mostrasse incompatível com a nova Constituição
deveria ser considerada inconstitucional126.

126 O Ministro Victor Nunes sustentava posição minoritária no sentido de tal norma
dever ser considerada revogada (cf. supra comentários à Rp 725).

183
Memória Jurisprudencial

Mesmo em face do entendimento majoritário — que levaria à considera-


ção de ser inconstitucional a regra do AI 2 —, o Ministro Victor Nunes sustenta
que não se pode cogitar de inconstitucionalidade entre duas normas tidas como
de nível constitucional, como seriam o AI 2 e a Constituição de 1967.
Concluindo a votação da questão de ordem, majoritariamente o Tribunal
entendeu não ser necessário quorum especial, por não se estar tratando de declara-
ção de inconstitucionalidade de lei ou de ato do Poder Público, e sim cuidando-se
de interpretação constitucional.
No entanto, nova questão de ordem é apresentada. Isso porque, com esse
resultado, o Ministro Presidente pretende retirar seu voto de mérito — que era
favorável à prevalência da regra do AI 2 —, entendendo ser cabível votar apenas
em casos de declaração de inconstitucionalidade, nos quais é exigido quorum
especial. Mas o Ministro Eloy da Rocha diverge, sustentando que o Presidente
deve votar sempre que se trate de matéria constitucional.
A votação dessa segunda questão de ordem resulta em empate.
Ao longo dos debates — nos quais se destaca a extrema prudência e
senso de responsabilidade dos Ministros e do Presidente, ao decidirem matéria de
grande relevância jurídica, política e institucional —, antes que se resolvesse em
definitivo a questão do voto do Presidente, o Ministro Themistocles Cavalcanti
levanta mais uma questão de ordem, decorrente de ponto suscitado, de passa-
gem, em seu voto: teria sido o AI 2 recebido pela Constituição como norma cons-
titucional ou como norma legal?
Em face dessa questão, o Ministro Victor Nunes decide retificar seu voto na
questão de ordem referente à necessidade de quorum especial. Lembre-se que
seu argumento era, então, o de que não se poderia cogitar de inconstitucionalidade
entre duas normas de nível constitucional; daí por que dispensar-se o quorum
especial.
Com essa última questão levantada, assim se manifesta o Ministro Victor
Nunes:
“A ponderação, em que acaba de insistir o eminente Ministro
Themistocles Cavalcanti, me leva a reconsiderar meu voto. Os atos
institucionais têm sido considerados de categoria constitucional no
período de sua plena vigência. Aqui se discute se tais normas
sobrevivem na vigência de nova Constituição; e também, no caso de
sobreviverem, em que categoria deverão ser situadas.
Parece-me incontestável que elas não podem sobreviver como
normas constitucionais, como sustentei no caso das Docas da
Bahia, onde salientei a impossibilidade de coexistirem dois sistemas
.
184
Ministro Victor Nunes

constitucionais colidentes. Portanto, Sr. Presidente, a sobreviverem


essas normas pretéritas, constantes dos Atos Institucionais, terão
elas de ficar situadas em categoria inferior à da Constituição. Já
não teremos normas da mesma hierarquia, que era o pressuposto do
meu voto.
Reconsidero, pois, o meu pronunciamento, entendendo que é
necessário o voto de nove juízes para ser declarada a inconstitucio-
nalidade.”
Nesse passo, apenas para que se recorde: (a) está empatada a questão de
mérito; (b) estava decidida a questão de ordem quanto à desnecessidade de quo-
rum especial, mas a questão volta a ficar em aberto com a alteração de voto do
Ministro Victor Nunes; (c) está empatada a questão de ordem quanto ao cabimento
do voto do Presidente, mas essa questão será afetada caso se altere o resultado
da primeira questão de ordem; (d) está em aberto a questão de ordem levantada
pelo Ministro Themistocles Cavalcanti, quanto a se tratar o AI 2 no nível de
norma constitucional, depois do advento da Constituição de 1967.
Ao votar nessa última questão de ordem, o Ministro Gonçalves de Oliveira
sugere o adiamento do julgamento, para que dois Ministros ausentes — Aliomar
Baleeiro e Adalicio Nogueira — também votem no mérito. Essa proposta é aco-
lhida, contra o voto do Ministro Evandro Lins.
E esses dois Ministros votam no sentido de não admitir a competência do
Supremo Tribunal Federal, no caso.
Assim, o resultado do julgamento foi a decisão pela competência da Justi-
ça Federal, contra os votos dos Ministros Gonçalves de Oliveira (Relator),
Themistocles Cavalcanti, Adaucto Cardoso, Evandro Lins, Hermes Lima, Victor
Nunes e Lafayette de Andrada.

Mandado de Segurança 17.957

Decreto-lei — Configuração de lei em tese para


efeito do não-cabimento de mandado de segurança —
Lei com efeitos concretos — Interpretação da regra do
afastamento da apreciação pelo Judiciário de atos prati-
cados no regime militar — Supremacia da Constituição.

Neste caso, o Decreto-Lei 128, de 31-1-67, editado no período “revolucio-


nário”, antes porém da entrada em vigor da Constituição de 1967, alterara regra
aplicável aos contratos de concessão dos serviços portuários, criando vedação
antes não existente.
.
185
Memória Jurisprudencial

Tal vedação referia-se a determinadas operações que os concessionários


pudessem realizar com seus bens, atingindo, entre outras hipóteses, direitos sobre
terrenos de marinha e acrescidos127.
O mandado de segurança foi impetrado pela Companhia Docas da Bahia
contra o Decreto-Lei 128/67. Duas questões preliminares mais relevantes foram
objeto de debates, restando o mandado não conhecido, nos termos do voto do
Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, vencidos os Ministros Victor Nunes, Prado
Kelly, Evandro Lins e Hermes Lima.
A primeira questão dizia respeito a considerar tal Decreto-Lei como “lei
em tese”, fazendo incidir a Súmula 266. A segunda se referia à norma contida na
Constituição de 1967128, que exclui do controle jurisdicional os decretos-leis ex-
pedidos a partir do AI 4, de 1966, e antes de 15 de março de 1967 — data da
entrada em vigor da Constituição.
O Ministro Relator, Aliomar Baleeiro, quanto ao primeiro ponto, invocando
o conceito consolidado por Duguit de “ato-regra”, entende que o Decreto-Lei
128/67 assim se enquadra, configurando lei em sentido material por conter man-
damento de alcance geral e impessoal, impondo vedação a todos os concessioná-
rios de portos.
Desse modo, o Decreto-Lei 128/67 seria “lei em tese”, contra a qual não
cabia mandado de segurança, nos termos da Súmula STF 266.
E, quanto ao segundo ponto, também posiciona-se pela impossibilidade de
apreciação judicial do Decreto-Lei 128/67, ainda que o advogado da impetrante
haja esclarecido que não argüia sua inconstitucionalidade, mas apenas sustentava
a possibilidade de que o Supremo Tribunal Federal reconhecesse que, em dado
caso concreto, tal norma violasse direito líquido e certo.
O Ministro Relator, ressaltando ser a primeira ocasião em que o Supremo
Tribunal Federal julgava contestação a um dos 115 decretos-leis abrangidos pela
regra do art. 173 da Constituição, apenas reitera, invocando tal norma constitucio-
nal, a impossibilidade de se afastar a validade do Decreto-Lei 128/67, de resto
afirmando não ser relevante que esse Decreto-Lei tenha sido editado em 31 de
janeiro, após a “assinatura” do novo texto constitucional — 24 de janeiro —,
posto que de todo modo seria anterior à promulgação e início da vigência da
Constituição — 15 de março.

127 Não é pertinente, no entanto, aqui adentrar nessa análise do mérito, posto que esse
mandado de segurança restou não conhecido e o Ministro Victor Nunes não abordou tais
aspectos em seu voto.
128 “Art. 173. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados
pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - pelo
Governo Federal, com base nos Atos Institucionais n. 1, de 9 de abril de 1964; n. 2, de 27

186
Ministro Victor Nunes

Eis a parte da ementa do acórdão que dizia respeito a essas questões preli-
minares: “1 – Não é admissível mandado de segurança contra o Decreto-Lei
128, de 31-1-67, como lei em tese (Súmula 266). 2 – São válidas, constitucio-
nais e estão salvaguardadas pelas Disposições Transitórias da Constituição
de 1967 os 115 decretos-leis expedidos entre 24-1-67 e 15-3-67, data de
promulgação e início de vigência dessa Carta Política”.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes sustenta posição divergente quanto
a essas duas questões.
Quanto à primeira, admite, com o Relator, que esse Decreto-Lei deve, sim,
ser enquadrado no sentido de lei em tese, dada a generalidade de seu comando129.
No entanto, apresenta lúcida ponderação quanto a determinadas leis, ainda
que tomadas em tese, serem passíveis de impugnação via mandado de segurança.
Isso se dá com as leis proibitivas, cujo comando já produza efeitos diretos supos-
tamente violadores de direito líquido e certo, sem depender da edição de qualquer
ato administrativo (v.g. autorização, licença130) de execução da lei.
Nesses casos, entende o Ministro Victor Nunes cabível o mandado de segu-
rança contra a “lei”, afastando sua incidência de determinado caso concreto131.
Quanto ao segundo ponto, o Ministro Victor Nunes interpreta a norma do
art. 173 da Constituição de 1967 como não impeditiva da análise da compatibilidade
das normas a que se refere com o regime estabelecido pela própria Constituição.
“Não podemos extrair do texto constitucional a conclusão de
que o Poder Revolucionário imunizou todo o conteúdo da legislação
pré-constitucional, mesmo nas partes a que contrarie a própria
Constituição. Isso seria um contra-senso.

de outubro de 1965; n. 3, de 5 de fevereiro de 1966; e n. 4, de 6 de dezembro de 1966, e


nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assem-
bléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou
declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, funda-
dos nos referidos Atos Institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos com
base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I; IV - as correções que,
até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização da
moeda e elevação do custo de vida, sobre vencimentos, ajuda de custo e subsídios de
componentes de qualquer dos Poderes da República.”
129 Este o critério definidor: a generalidade do comando, o que não se confunde com
pluralidade: pode ser que uma norma individual atinja diversos indivíduos; nem por isso
será “lei em tese”.
130 Se depender desses atos, seriam estes, e não a lei, o alvo do mandado de segurança.
131 Com essa interpretação, admitir-se-ia o mandado de segurança para questionar a
aplicação de uma norma de comando genérico, não no sentido de discutir em abstrato sua
validade, mas no sentido de obstar sua aplicação em um caso concreto.

187
Memória Jurisprudencial

Não é possível haver, simultaneamente, dois regimes constitucio-


nais. Antes da constituição, havia, por exemplo, uma tramitação le-
gislativa estabelecida em ato institucional. A Constituição estabeleceu
outra. Pelo fato de ter a Constituição aprovado os atos institucionais,
podem subsistir os dois processos legislativos? Evidentemente não.
Vigora somente o da Constituição. E a razão disso é que os atos pra-
ticados pelo Governo Revolucionário, e que se projetavam para o
futuro, não foram aprovados em todo o seu conteúdo. Essas suas
conseqüências ulteriores estão sujeitas ao que a respeito dispõe a
Constituição. O país não foi constitucionalizado pela metade. A Cons-
tituição substituiu inteiramente a ordem pré-constitucional. Ao ressal-
var atos anteriores, referiu-se aos efeitos já produzidos, mas não
criou dois sistemas constitucionais, porque isso seria uma aberração.
Não pode haver, no regime constitucional, um outro sistema de nor-
mas que o Supremo Tribunal tenha de aplicar contra a letra e o espí-
rito da Constituição.”
Assim, o sentido da norma constitucional em análise seria afastar da apre-
ciação judicial, em primeiro lugar, atos praticados com base em normas editadas
no “período revolucionário” anteriormente a 15 de março de 1967; e, em segundo
lugar, a legitimidade da expedição das normas — no caso, a competência do Presi-
dente da República para expedir o Decreto-Lei 128/67.
Mas não seria razoável supor que a Constituição pretendesse ter criado a
situação na qual persistiria válido, produzindo efeitos futuros, ato normativo in-
compatível com o conteúdo da própria Constituição.
Tal posição, contudo, como já apontado, não prevaleceu, não tendo sido o
mandado de segurança conhecido pelo Tribunal, pelas duas preliminares.

Mandado de Segurança 14.746

Interpretação da regra do afastamento da aprecia-


ção pelo Judiciário de atos praticados no regime militar —
Natureza dos atos institucionais.

A referência a este caso, assim como aos MS 14.801, 14.821, 14.826,


14.833, 14.837, 14.839, 14.845, 14.865, 14.867, 14.885, 14.888, 14.889,
14.890, 14.903, 14.909, 14.920, 14.924, 14.950, 14.967 e 14.988, todos relata-
dos pelo Ministro Victor Nunes, concentradamente nos dias 9 de fevereiro e 22 de
junho de 1966 — além de possíveis outros exemplos no mesmo sentido, relatados por
outros Ministros —, justifica-se para registrar o reiterado posicionamento do Supremo
.
188
Ministro Victor Nunes

Tribunal Federal, em matéria da aplicação do disposto no art. 19, I, do Ato


Institucional 2, de 27 de outubro de 1965:
“Ficam excluídos da apreciação judicial os atos praticados
pelo Comando Supremo da Revolução e pelo Governo Federal, com
fundamento no Ato Institucional de 9 de abril de 1964, no presente
Ato Institucional e nos Atos Complementares deste”.
Verifica-se assim que o Tribunal aceitou que tais atos não fossem passíveis
de controle judicial. E aceitou pacificamente, tanto assim que todos esses exem-
plos foram decididos por unanimidade quanto ao não-conhecimento dos manda-
dos de segurança, tendo o voto do Relator nada mais que um parágrafo de moti-
vação, sem gerar debates.
Vale lembrar que tanto o primeiro Ato Institucional como o Ato Institucio-
nal 2, além dos outros que se seguiram, procuraram justificar-se juridicamente —
e, ademais, impuseram-se na prática — como exercício do Poder Constituinte
Originário. Nesse sentido, extrai-se do preâmbulo do primeiro: “Fica, assim, bem
claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este
é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Cons-
tituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. E do preâmbulo
do AI 2: “(...) o Poder Constituinte da Revolução lhe é intrínseco, não ape-
nas para institucionalizá-la, mas para assegurar a continuidade da obra a
que se propôs”.
O reconhecimento do caráter revolucionário — no sentido jurídico de
fundante de nova ordem — dos Atos Institucionais e, posteriormente, da Constitui-
ção de 1967, surge claro em outras manifestações, como, por exemplo, na Rp 753,
acima comentada por outros aspectos.

Mandado de Segurança 15.050


Perda de objeto da ação ante alteração no tratamento
constitucional da matéria versada.
Trata-se de caso relatado pelo Ministro Victor Nunes, resultando em
acórdão unânime do Tribunal Pleno. O voto é bastante sucinto, mas mostra-se
conveniente para registrar a aplicação pacífica da tese de que, ante mudança da
ordem constitucional, com o início da vigência da Constituição de 1967, acarre-
tando tratamento diverso para a matéria em questão — fiscalização financeira e
orçamentária pelo Tribunal de Contas —, resta prejudicado o pedido formulado
neste mandado de segurança.
Com efeito, a causa de pedir decorria do procedimento antes previsto, pelo
qual a recusa do Tribunal de Contas da União ao registro de um contrato adminis-
trativo suspenderá sua execução até que se pronuncie o Congresso Nacional.
.
189
Memória Jurisprudencial

A questão litigiosa dizia respeito a eventuais direitos do particular contratado


de defender a manutenção do contrato perante o Tribunal de Contas, quando a
Administração aceitasse o posicionamento de recusa de registro pelo Tribunal.
Com a mudança da Constituição, agora prevendo-se procedimento diverso —
o Tribunal de Contas, verificando a ilegalidade da despesa, solicita ao Congresso
Nacional a suspensão do contrato ou outra medida que julgar necessária ao resguardo
dos objetivos legais —, e não tendo havido novo pronunciamento pelo Tribunal, julgou-
se prejudicado o pedido.

Mandado de Segurança 18.973

Limites à aprovação, pela Constituição de 1967, de


atos praticados no regime militar — Prevalência exclu-
siva da Constituição.

Tratava-se de mandado de segurança, pelo qual os impetrantes, juízes


federais substitutos em São Paulo, pretendiam direito ao provimento do cargo
efetivo, por acesso.
Nesse sentido, argumentavam que os juízes federais recentemente
empossados foram nomeados livremente pelo Presidente da República — como
previam o Ato Institucional 2 e a Lei Federal 5.010/66 —, em desacordo com a
Constituição de 1967, que passou a exigir, para tanto, concurso de provas e títulos.
Estando, assim, vagos esses cargos, entenderam os impetrantes, juízes substitutos,
ter direito de ascender na carreira, preenchendo-os.
A Presidência da República, defendendo o ato impugnado, sustentava que
a previsão do AI 2, assim como da Lei Federal 5.010/66, referia-se às primeiras
nomeações dos juízes federais e juízes federais substitutos, ou seja, que as nomea-
ções para as primeiras vagas — todas elas — poderiam processar-se indepen-
dentemente de concurso. No caso de São Paulo, diferentemente do restante do
País, por alguma demora, tais vagas não haviam sido preenchidas antes da Cons-
tituição de 1967.
O Ministro Relator, Themistocles Cavalcanti, acolhendo a tese da Presi-
dência, posiciona-se no sentido de entender que as nomeações em São Paulo
configuravam
“continuidade da aplicação de um mesmo dispositivo legal sobre
uma série de fatos da mesma natureza: o primeiro provimento de Juízes
Federais. O advento da Constituição e a adoção de um sistema novo
.
190
Ministro Victor Nunes

não justificariam a interrupção da aplicação de um processo apoiado


em um texto legal que tem o seu fundamento no Ato Institucional,
aprovados esses Atos pela Constituição que os revigora”.
De todo modo, entende que não assistiria direito aos impetrantes, seja por-
que a Lei de Organização da Justiça Federal não previa o acesso direto de juízes
substitutos a juízes federais — senão por lista tríplice elaborada pelo Tribunal Fe-
deral de Recursos, em concorrência com outros bacharéis em Direito; e isso
também já não mais seria possível em face da Constituição de 1967 —, seja
porque o acesso ao cargo de juiz federal que vinha a vagar, na época da
impetração, já exigiria concurso público; e os impetrantes foram nomeados juízes
substitutos ainda pela forma do direito anterior, ou seja, livre provimento.
Por essa razão, indefere a segurança.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes, divergindo do Relator, apresenta
relevantes considerações sobre direito intertemporal, envolvendo o período ex-
cepcional do regime de 1964.
Inicia por frisar duas teses, aplicáveis ao caso, mas generalizáveis para
outras situações.
Em primeiro lugar, reiterando argumento do Ministro Evandro Lins, sus-
tenta que
“uma lei do período revolucionário, mas legitimamente ema-
nada do Congresso, não pode estar abrigada na exceção do art.
173 da Constituição de 1967132, porque a validade daquele ato legisla-
tivo de modo algum dependeria de ratificação constitucional poste-
rior”.
Era esse o caso da Lei 5.010/66.

132 “Art. 173. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados
pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - pelo
Governo Federal, com base nos Atos Institucionais n. 1, de 9 de abril de 1964; n. 2, de
27 de outubro de 1965; n. 3, de 5 de fevereiro de 1966; e n. 4, de 6 de dezembro de 1966,
e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assem-
bléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou
declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, funda-
dos nos referidos Atos Institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos com
base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I; IV - as correções que,
até 27 de outubro de 1965, hajam incidido, em decorrência da desvalorização da
moeda e elevação do custo de vida, sobre vencimentos, ajuda de custo e subsídios de
componentes de qualquer dos Poderes da República.”

191
Memória Jurisprudencial

Além da lucidez da ponderação, valorizando, no caso, o princípio constitu-


cional da inafastabilidade do controle jurisdicional, observe-se que, contrario
sensu, o Tribunal pacificamente admitia as exceções a esse princípio (cf. supra
comentários ao MS 14.746).
Em segundo lugar, defende a idéia de que não seria admissível conside-
rar aprovados em sua plenitude, pela Constituição de 1967, com efeitos para o
futuro, os atos normativos do período revolucionário. Entende ainda ser essa
ponderação especialmente apropriada para disposições que conferem compe-
tência.
Idéia contrária poderia levar à situação paradoxal de, eventualmente, a
Constituição projetar para o futuro normas anteriormente editadas, ainda que a
mesma Constituição tenha disposto de modo diverso sobre a matéria.
“O regime constitucional é um só e não pode admitir duas
competências simultâneas e conflitantes. A nova Constituição, ao
aprovar atos de um período anterior, tanto mais que se tratava de
período excepcional, o que aprovou, na verdade, foram os atos
praticados pelo governo revolucionário e os efeitos que resultaram
desses atos.
Não me parece que se possam considerar aprovadas normas,
para que produzam efeitos no futuro, contrariamente ao que dispõe a
própria Constituição, já em pleno vigor, principalmente, repito, em
matéria de competência.”
Exemplifica, para reforçar seu argumento, com o caso dos decretos-leis,
que, nos termos do Ato Institucional 2, em dadas circunstâncias (recesso parla-
mentar), poderiam abranger todas as matérias de competência da União. A
Constituição de 1967, por sua vez, impôs limites de matéria mais restritivos aos
decretos-leis. Conclui, naturalmente, que, após a vigência da Constituição, devem
ser respeitados os limites constitucionais, sendo certo, por outro lado, que os de-
cretos-leis editados anteriormente, ainda que abrangendo matéria mais extensa,
permanecerão válidos.
Aplicando o raciocínio ao caso concreto, observa que, após a Constituição
de 1967, que alterou o modo de provimento dos cargos de juiz federal, não pode
mais o Presidente da República “nomear livremente” juízes, “dentre brasileiros
de saber jurídico e reputação ilibada”, como previa o AI 2. O que não impede
que permaneçam válidas as nomeações anteriormente feitas, com fundamento
naquele Ato, não sendo esse o caso dos Juízes de São Paulo.
Todavia, quanto ao direito dos impetrantes, reconhece, no mesmo sentido
do voto do Ministro Evandro Lins — aliás, conforme também já se manifestara o
.
192
Ministro Victor Nunes

Relator, ainda que com outros argumentos —, que os juízes substitutos não teriam
direito, por acesso, a preencher, sem concurso ou sem observar o rito decorrente
da Constituição de 1967133, os cargos de juiz federal.
Teriam direito, no entanto, à substituição dos cargos de juiz federal — que
os Ministros Evandro Lins e Victor Nunes entendem estejam vagos —, até que,
regularmente, por concurso, sejam investidos novos juízes.
Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes acompanha o voto do Ministro
Evandro Lins, concedendo parcialmente a segurança, restando vencidos, junta-
mente com o Ministro Hermes Lima. A maioria decidiu pela denegação da segu-
rança.

2. TEMAS DE DIREITO ADMINISTRATIVO


2.1 Autarquias

Mandado de Segurança 8.693

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-


quias — Analogia com regulatory agencies dos EUA —
Autonomia de entes da administração indireta no Brasil —
Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —
Argumentos de ordem constitucional, legal, política e
administrativa — Limites à apreciação judicial sobre
opções políticas do Legislativo.

Trata-se de caso no qual o Ministro Victor Nunes produz longo voto, con-
tendo rica argumentação e fundamentação doutrinária e jurisprudencial. Neste
caso, o Ministro busca prestigiar precedentes do Supremo Tribunal Federal e, ao
mesmo tempo, firma entendimento que voltará a ser invocado em outros julga-
mentos.
A questão discutida mostra-se bastante atual, no contexto da discussão do
regime especial de determinadas autarquias, particularmente das ditas agências
reguladoras, no tocante à fixação de prazo para a investidura de seus dirigentes.
Este mandado de segurança foi impetrado por Murillo Gondim Coutinho,
ocupante de cargo no Conselho Administrativo do Instituto de Aposentadorias e

133 A Constituição distinguira os cargos de juiz federal — esses necessariamente provi-


dos por concurso de provas e títulos — e os cargos de juiz substituto — cujo provimento
deveria ser disciplinado por lei (art. 118, caput e § 2º).

193
Memória Jurisprudencial

Pensões dos Industriários, do qual fora exonerado por ato do Presidente da Re-
pública, Jânio Quadros, em que pese a previsão legal de investidura com o prazo
certo134 de quatro anos.
O Ministro Relator, Ribeiro da Costa, produz extenso voto, negando a
segurança.
O Ministro Victor Nunes sistematiza seu voto abordando, em três fases,
argumentos de ordem constitucional, legal e político-administrativa.
Inicia pelo plano constitucional. Aqui, quatro argumentos favoráveis à po-
sição da autoridade coatora são analisados e rebatidos.
O primeiro argumento a ser superado é o de que a Constituição de 1946,
ao prever que compete ao Presidente da República “prover, na forma da lei e
com as ressalvas estatuídas por esta Constituição, os cargos públicos fe-
derais”, teria deixado implícito, no poder de nomear, o de destituir.
De plano, o Ministro Victor Nunes observa que tal entendimento levaria à
conseqüência de que “a Constituição democrática de 1946 dá mais poderes
ao Presidente da República, em certos setores, do que a Constituição auto-
ritária de 1937”.
Pretendiam os defensores dessa tese que a expressão constitucional “na
forma da lei” importasse em que a lei apenas pudesse dispor sobre a “forma” do
exercício do poder em questão.
Já, por força da expressão “com as ressalvas estatuídas por esta
Constituição”, as restrições e condicionamentos possíveis ao poder de no-
mear — e, implicitamente, de destituir — seriam apenas os previstos constitu-
cionalmente.
O Ministro Victor Nunes demonstra que essa interpretação não é a mais
adequada. Em primeiro lugar, a expressão “na forma da lei”, freqüente na reda-
ção legislativa, nunca quis dizer “de acordo com as formalidades estabelecidas
na lei”, mas sempre foi entendida no sentido mais amplo de “na conformidade da
lei, consoante a lei, segundo a lei, segundo o que dispuser a lei”, tanto em
termos de forma, como em termos de conteúdo, respeitadas, por óbvio, as normas
constitucionais.
Já a referência constitucional a “ressalvas” diria respeito a outros casos de
provimentos de cargos, previstos na Constituição, porém fora do âmbito do Exe-
cutivo, ou seja, cargos no Congresso ou nos Tribunais.

134 O Ministro Victor Nunes, com precisa argumentação, critica o uso da expressão “man-
dato” nesses casos, como mais adiante se vai esclarecer. Os demais Ministros empregam,
sem maiores ressalvas, essa expressão, aliás corrente ainda hoje.

194
Ministro Victor Nunes

Em reforço ao seu argumento, lembra, citando Rui Barbosa e Carlos


Maximiliano que, sob a Constituição de 1891, na qual, em dispositivo equivalente,
nem se mencionava “lei”, admitiam-se as restrições legais. E, mesmo interpre-
tando a Constituição de 1946, nesse sentido posicionam-se Pontes de Miranda e
Themistocles Cavalcanti.
Por outro lado, deve-se notar que a Constituição, do dispositivo acima
transcrito, refere-se a “prover”, o que é mais amplo que “nomear”. A prevalecer
entendimento diverso, chegar-se-ia à conclusão de que a lei não poderia
condicionar outras formas de provimento — exemplo: promoção, transferência,
aproveitamento, etc. —, tornando assim inconstitucionais normas de todos os
estatutos de servidores públicos.
Observa, ainda, que a participação do Poder Legislativo, disciplinando a
matéria relativa ao provimento de cargos pelo Poder Executivo, é natural no
“regime adotado pela Constituição, que é o da divisão de poderes, cujo
pressuposto é a harmonia e não a guerra dos poderes”.
Outros dispositivos da Constituição vêm, sistematicamente, corroborar
esse entendimento da legitimidade de atuação do Legislativo na matéria: o art.
184 prevê que os cargos públicos sejam acessíveis a todos os brasileiros, “obser-
vados os requisitos que a lei estabelecer”; e o art. 188 trata de cargos que a “lei”
declare de livre nomeação e demissão135.
Feita a análise de Direito positivo, o Ministro Victor Nunes passa a argumentar
com o sentido finalístico da investidura do servidor público por prazo certo:
“eis uma providência que se integra, com toda a naturalidade,
no regime de autonomia administrativa atribuído, por lei, a certos
órgãos. Visa a investidura de prazo certo a garantir a continuidade
de orientação e a independência de ação de tais entidades autôno-
mas, de modo que os titulares, assim protegidos contra as injunções
do momento, possam dar plena execução à política adotada pelo
Poder Legislativo, ao instituir o órgão autônomo”.136
Continua o Ministro Victor Nunes, em seu raciocínio, produzindo profunda
análise da jurisprudência e da doutrina norte-americana sobre o assunto, para
mostrar que seu ponto de vista é aceito com naturalidade também nos Estados

135 “Demissão” é a palavra usada pela Constituição de 1946, querendo dizer não neces-
sariamente “demissão” no sentido técnico corrente de punição, mas, sim, o que tecnica-
mente se diz “exoneração”.
136 Aliás, a clara noção da distinção das funções dos três Poderes, no contexto de um
regime democrático, marca o pensamento do Ministro Victor Nunes neste e em tantos
outros casos. Mais adiante, neste voto, esse aspecto voltará a ser abordado.

195
Memória Jurisprudencial

Unidos. E a invocação desse paradigma é de todo justificável, dada a “identida-


de dos regimes políticos, em seus traços essenciais, como também pela cir-
cunstância de que os norte-americanos estão praticando o presidencialismo,
que inventaram, desde mais de cem anos antes de nós”137.
Nesse sentido, cita as normas de regência de mais de uma dezena de
independent regulatory agencies, ou comissions, que prevêem investidura
com prazo certo.
Passando a analisar a evolução da jurisprudência norte-americana sobre a
matéria, assim a sintetiza:
“O significado e o alcance jurídico da investidura do prazo
certo ficam a depender da natureza do cargo ou função. No tocante
aos que se situam, estritamente, na linha hierárquica do Poder Exe-
cutivo, isto é, dentro da estrutura a que chamamos, no Brasil, a admi-
nistração direta, entende-se que a investidura de prazo certo apenas
marca o seu termo final, mas não impede o Chefe de Governo de
exonerar o funcionário antes desse termo. Essa foi a doutrina de um
julgamento famoso, o Myers Case (272 U.S. 52), de 1926. Foi Relator
o Chief Justice William Taft, que por coincidência tinha sido Presi-
dente dos Estados Unidos. Ficaram vencidos McReynolds e os dois
luminares Holmes e Brandeis.
Entretanto, nas duas outras decisões, igualmente famosas, pos-
teriores àquela, uma de 27-5-1935, outra de 30-6-1958, ficou decidi-
do que a doutrina do Myers Case não se aplicava às nomeações de
prazo certo para órgãos dotados de autonomia administrativa, dos
quais, nos Estados Unidos, se diz que exercem funções quase-legisla-
tivas ou quase-judiciárias, entidades criadas por lei e que corres-
pondem, lato sensu, às nossas autarquias, dotadas, nos limites da lei,
de funções normativas e jurisdicionais, não obstante o seu caráter de
órgãos administrativos, integrantes da administração descentralizada.
Refiro-me ao Caso Humprey (295 U.S. 602, 1935) e ao Caso Wiener
(357 U.S. 349, 1958)”.

137 E, registrando estranhar a ironia com que alguns colegas de Tribunal trataram,
anteriormente, a invocação da experiência dos Estados Unidos, lembra, além desses
argumentos, que “grandes juristas brasileiros, entre eles Rui Barbosa, o maior dos
que já pleitearam perante o Supremo Tribunal, nunca se pejaram de recorrer às fontes
norte-americanas”.

196
Ministro Victor Nunes

E prossegue:
“o objetivo da nova doutrina, que a Corte Suprema anunciou
de maneira explícita, foi justamente garantir o exercício das funções
e atribuições dos mencionados órgãos autônomos com a necessária
independência, em face do Poder Executivo, para que pudessem
cumprir, a salvo de injunções, a política ou orientação traçada pelo
Poder Legislativo, ao instituir tais entidades autônomas”.138
Nesse ponto, o Ministro Relator, Ribeiro da Costa, objeta não guardar a
situação invocada pertinência com o Direito brasileiro, ao que o Ministro Victor
Nunes responde que, “nos Estados Unidos, o que se chamam funções quase-
judiciárias e quase-legislativas é, precisamente, o que nós chamamos, aqui,
funções normativas e jurisdicionais de órgãos administrativos”. No caso, os
conselhos pertinentes ao sistema previdenciário brasileiro cumprem funções
equivalentes às regulatory agencies norte-americanas, decidindo “sobre direitos
das partes interessadas” e expedindo “normas reguladoras da aplicação
das leis da previdência”.
Um segundo argumento — ainda de ordem constitucional — apresentado
pela tese favorável à autoridade impetrada é o de que, derivando do poder de
nomear, o poder de destituir lhe seria co-extensivo.
O Ministro Victor Nunes não concorda com a conclusão: ainda que derive
do poder de nomear, o poder de destituir pode ser mais amplo — por exemplo:
exoneração, diretamente pelo Presidente, de titulares de cargos cuja investidura
depende de aprovação pelo Senado — ou menos amplo que aquele — como a
aplicação da teoria dos motivos determinantes. O caso dos autos — cargos com
investidura por prazo certo — recairia no rol de situações em que o poder de
destituir é mais restrito do que o de nomear: “a Constituição não ampara a
interpretação napoleônica do Executivo no caso presente”.
O terceiro argumento que o Ministro Victor Nunes rebate em seu voto é o
de que a impossibilidade de destituição do impetrante criaria caso de estabilidade
temporária, não admitido pela Constituição.
Porém, tal argumento parte de pressuposto equivocado: a assimilação da
estabilidade com a garantia do exercício do cargo por prazo certo. Trata-se de
institutos com finalidades distintas: “a estabilidade visa, sobretudo, à proteção
da pessoa do servidor; a investidura de prazo certo, o que protege, através
da permanência do servidor no cargo, é o interesse mais alto, da continui-

138 Extrai-se do caso Humphrey: “Pois é inequivocamente evidente que quem exerce o
cargo somente enquanto agrada a outro, não pode, por isso mesmo, manter uma atitude
de independência ante a vontade desse outro”.

197
Memória Jurisprudencial

dade e independência da função por ele exercida num órgão dotado de


autonomia”.
Em quarto lugar, argumentava-se que, no caso dos autos, as funções en-
volvidas seriam de confiança, excluídas da estabilidade.
Quanto a isso, o Ministro Victor Nunes mostra que, além da improprieda-
de, já comentada, de se invocar a estabilidade, não se pode confundir a situação
dos cargos de confiança, declarados em lei de livre nomeação e demissão (Cons-
tituição de 1946, art. 188, parágrafo único), com cargos de investidura com prazo
certo, nos quais não está presente a demissibilidade ad nutum.
Os objetivos envolvidos nesses dois tipos de caso são “opostos” e
“antinômicos”: “o objetivo do legislador, com a investidura de prazo certo,
é justamente tornar o titular do cargo independente das injunções do Chefe
do Poder Executivo”.
Note-se que, como frisa o Ministro, tal objetivo é fixado pelo legislador, justa-
mente afastando a possibilidade de que o administrador, nesses casos, exerça a
discricionariedade típica das situações dos cargos de confiança. E prossegue:
“pode errar o legislador, ao adotar esse critério, em relação a
tal ou qual serviço a que concede autonomia, mas não cabe ao Judi-
ciário corrigir a política do Poder Legislativo. Se o que visa o
Legislativo é, justamente, tornar determinado funcionário indepen-
dente no exercício de suas atribuições, como podemos nós dizer, ao
contrário da lei, que esse funcionário exerce função de confiança,
que o tornaria inteiramente submetido ao Chefe do Governo?”
Encerrada a análise de argumentos no plano constitucional, passa o Minis-
tro Victor Nunes a argumentar no plano legal, para demonstrar que a improprie-
dade da linguagem corrente, ao se referir aos “cargos de investidura de prazo
certo” como “cargos com mandato”, leva a equívocos consistentes na aplicação
de regras próprias do mandato político-representativo ou do mandato do Direito
Civil.
Em primeiro lugar, o mandato político. Sobre esse ponto, a tese favorável à
autoridade impetrada, acolhida pelo Procurador-Geral da República, defendia a
revogabilidade do mandato ao arbítrio do mandante, lembrando o caso do
impeachment.
Quanto a isso, o Ministro Victor Nunes mostra, de início, que a invocação do
impeachment conceitualmente não seria pertinente, pois não envolve revogação, e
sim perda do mandato. Esse exemplo reforçaria, em verdade, a tese ora sustentada
pelo Ministro Victor Nunes: assim como, no plano político, o impeachment pressu-
põe a prática de crime de responsabilidade, no plano administrativo, a demissão
.
198
Ministro Victor Nunes

de servidor nomeado com prazo certo pressupõe a prática de falta grave, apura-
da em processo disciplinar. Num e noutro caso, portanto, não está em jogo a
simples discricionariedade do suposto mandante.
Por outro lado, a figura que conceitualmente deveria ser invocada pela
tese oposta seria a do recall, por meio da qual os próprios eleitores retiram o
mandato conferido ao seu representante. O recall, porém, não pode ser “admiti-
do como implícito na própria noção de mandato político”. Assim, a adoção
da revogabilidade do mandato político dependeria de previsão em norma constitu-
cional ou legal, o que não há no Brasil. O mesmo se diga, nessa analogia, do
regime de investidura e vacância dos cargos públicos.
Quanto ao mandato de Direito privado, a tese oposta à do Ministro Victor
Nunes invoca a assimilação ao mandato de Direito privado, para sustentar a
aplicação da regra de sua revogabilidade pelo mandante, no caso, o Presidente da
República.
O equívoco aqui, demonstra o Ministro Victor Nunes, também é concei-
tual. “O uso impróprio do vocábulo mandato não pode mudar o preto em
branco, para fazer surgir, em tais casos, a figura jurídica do mandato”.
Pela norma do Código Civil139, tem-se o mandato “quando alguém rece-
be de outrem poderes, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar
interesses”. Daí resulta que a atividade a ser exercida pelo mandatário pertence,
originalmente, ao mandante, sendo-lhe por este delegada.
Mas “nada disso acontece nas nomeações de prazo certo. No caso
dos autos, por exemplo, quem pode pretender que as atribuições exercidas
pelo nomeado fossem, originalmente, do Presidente da República, de modo
a constituir-se aquele em mandatário deste?”
Em verdade, no caso das nomeações por prazo certo, as atribuições de
funções decorrem da lei, sendo inerentes ao cargo e não à transferência feita por
ato de quem nomeia.
Nem se pretenda que a nomeação envolva delegação de poderes. Concei-
tualmente, não há. E, de todo modo, delegação exige estrutura hierarquizada; há
hierarquia entre o Presidente da República e integrantes da administração direta,
mas não em relação a integrantes de órgãos dotados de autonomia — como as
autarquias —, nos quais se justifica haver nomeações por prazo certo.
Ainda outro aspecto, no plano dos argumentos de legalidade, é abordado pelo
Ministro Victor Nunes, respondendo a intervenções dos Ministros Hahnemann
Guimarães e Ribeiro da Costa. A Lei da Previdência Social, ao dispor sobre o

139 Art. 1.208 do Código Civil de 1916.

199
Memória Jurisprudencial

Conselho que era integrado pelo impetrante, previa “representantes” da classe


dos empregados, “representantes” da classe patronal e “representantes” do
Governo.
Sobre isso, os citados Ministros argumentavam, alternativamente à idéia
acima exposta, tratar-se de uma relação de representação sem mandato.
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, mostra que se trata, igualmente, de
uso impróprio da expressão “representantes”. Não se cuida propriamente de re-
presentação, mas, sim, de indicação, escolha, nomeação. Lembra, nesse sentido,
que os “Juízes Classistas”, da Justiça do Trabalho, são nomeados pelo Presidente
da República como “representantes” da classe patronal ou de trabalhadores. E
“haverá quem sustente que esses Juízes possam ser destituídos?”
Por fim, o Ministro Victor Nunes aborda uma terceira ordem de argumentos,
de natureza administrativa e política.
Nesse plano, o argumento do Governo é o da impropriedade de o novo
Presidente ficar vinculado às nomeações do antecessor. Por esse raciocínio, não
seria aceitável que um “Presidente, prestes a sair, pudesse fazer nomeações,
cuja duração se prolongasse pelo seguinte período presidencial, numa es-
pécie de manobra política de ação retardada”.
O Ministro Victor Nunes demonstra que esse último argumento é de natu-
reza puramente circunstancial. Ainda que não se mude a essência do sistema de
prazo certo, a nomeação poderia acontecer logo no início do mandato de um
Presidente, vinculando praticamente apenas sua própria gestão. “Essa possibili-
dade tira, portanto, ao argumento, qualquer valor de ordem teórica”.
Na verdade, na lógica dos cargos de investidura por prazo certo, é indife-
rente a coincidência desse prazo com os períodos presidenciais, pois o que se
quer garantir é a “independência do exercício das funções dirigentes do
órgão autônomo, contra qualquer ocupante da Chefia do Poder Executivo,
mesmo contra o Presidente que tiver feito as nomeações”.
Outro argumento da tese contrária à do Ministro Victor Nunes seria a falta
de entrosamento com o novo governo, que poderia resultar da permanência de
nomeado por governo anterior.
Recuperando os citados casos Humphrey e Wiener, julgados pela Suprema
Corte dos Estados Unidos, o Ministro Victor Nunes observa que se decidiu, na-
quelas ocasiões, ser mais valiosa a independência do órgão legalmente dotado de
autonomia do que a alegada conveniência administrativa140.

140 No primeiro caso, Humphrey, respondendo a pedido do Presidente Roosevelt para


que deixasse o cargo (pois “os objetivos e propósitos da administração relativamente

200
Ministro Victor Nunes

Reconhece o Ministro Victor Nunes que o bom entendimento entre o Chefe


de Governo e os dirigentes e executores da política do Estado é, em tese, positivo
para a administração. Mas isso é uma consideração de conveniência administra-
tiva que não há de se sobrepor à lei.
Se, em cada caso, o legislador pondera vantagens e desvantagens e opta por
garantir a continuidade e independência na execução de tais tarefas confiadas a
órgão autônomo, não deve o Judiciário interpretar as normas de modo a chegar à
conclusão oposta141.
E, para evitar abusos por parte desses titulares de cargo com prazo certo
em órgãos autônomos, o Direito Administrativo conhece os mecanismos que a
doutrina chama genericamente de tutela.
“E o legislador, certamente, teve por menos pernicioso esse
eventual desvio do que o poder incontrastável do Chefe do Governo
sobre toda a administração descentralizada, pois isso desvirtuaria a
própria razão de ser da descentralização”.
A prevalecer, no caso, a tese do Governo, estariam sendo consagrados os
“extremos do sistema dos despojos”. A legislação que, em todos os países civi-
lizados — alerta o Ministro Victor Nunes —, “procura resguardar o serviço
público civil da influência ilimitada da política foi precisamente uma con-
quista, lenta e penosa, contra o spoil system”.
Igualmente, todos os órgãos autônomos perderiam sua autonomia. Reito-
res de universidades, representantes de congregações e conselhos universitários,
membros de conselhos de diversas autarquias,
“enfim, toda uma série de altos titulares, cujo desempenho ca-
rece de ser protegido, em face do Poder Executivo, toda essa gente,
que forma a cúpula da administração descentralizada, poderia ser
mudada de um momento para outro, ao simples critério, arbítrio ou
capricho do soberano eletivo, que seria, entre nós, o Presidente da
República”.

aos trabalhos da Comissão podem ser levados a efeito mais eficazmente com pessoal de
minha própria escolha”), assim se manifestou: “Sei que o senhor está consciente de que
o seu pensamento e o meu não se ajustam, nem sobre a política, nem sobre a administra-
ção da Comissão Federal do Comércio, e, falando com franqueza, acho que será melhor
para o povo deste país que haja plena confiança em mim”.
141 Nesse passo, lembra o Ministro Victor Nunes voto vencido do Juiz Brandeis no caso
Myers: “A doutrina da separação de poderes foi adotada pela Convenção de 1787, não
para promover a eficiência, mas para prevenir o exercício do poder arbitrário”.

201
Memória Jurisprudencial

E conclui:
“Estou, portanto, convencido de que, mesmo do ponto de vista
da conveniência administrativa e política, seria um mal, não um bem,
o retorno ao sistema dos despojos, que ainda prevalece, largamente,
em nosso país e que, neste processo, se pretende reimplantar nas áreas
reduzidas em que a lei procurou cerceá-lo”.
Numa observação final, pondera que suas observações, feitas a propósito
do regime presidencialista, têm maior adequação ao parlamentarismo, em que
recentemente se ingressara142, porque, neste, à posição preeminente que assume
o Congresso, diante do Executivo, há de corresponder maior prestígio da lei.
Vota, desse modo, o Ministro Victor Nunes pela concessão da segurança,
anulando o ato demissório e fazendo retornar o impetrante ao cargo que ocupava.
E vota vencido, juntamente com os Ministros Gonçalves de Oliveira143, Vilas
Boas e Luiz Gallotti. O Tribunal, por maioria, acompanha o Relator144, negando
a segurança.
A mesma questão debatida no MS 8.693 é objeto de outros casos, dos
quais vale destacar os dois seguintes145.

142 A Emenda Constitucional 4, que adotou o parlamentarismo, é de 2 de setembro de


1961. O julgamento em tela iniciara-se em sessão anterior a essa data, mas o voto do
Ministro Victor Nunes foi proferido em 25 de outubro de 1961.
143 O Ministro Gonçalves de Oliveira também produz longo voto, em que comenta prece-
dentes do Supremo Tribunal Federal favoráveis à tese ora vencida.
144 Dentre outros argumentos desenvolvidos pelo Ministro Relator, Ribeiro da Costa, em seu
voto e em sua posterior explicação de voto — cuja análise não parece aqui pertinente —, vale
observar que, além de discordar do Ministro Victor Nunes em conclusões de ordem polí-
tica e relativas à interpretação da Constituição, também discorda de que a entidade da
administração indireta em questão efetivamente tenha o status de autonomia alegado.
145 O presente MS, assim como os MS 8.651 e 8.802, que em seguida serão analisados,
constituem precedentes da Súmula 25 do Supremo Tribunal Federal, aprovada em Sessão
Plenária de 13-12-1963: “A nomeação a termo não impede a livre demissão pelo Presi-
dente da República de ocupante de cargo dirigente de autarquia.” A mesma matéria,
recentemente (julgamento em 18-11-1999, com publicação de acórdão em 25-11-2005), foi
apreciada pelo Tribunal, no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de
Inconstitucionalidade 1.949-0/RS, resultando em longo acórdão, com mais de 200 pági-
nas. Em seu voto, o Ministro Nelson Jobim analisa em detalhes o julgamento do MS 8.693,
explicitando em especial o posicionamento do Ministro Victor Nunes. Das manifestações
do Ministro Nelson Jobim nesse julgamento extraem-se considerações como: “A história
deu razão a Victor Nunes.” (...) “Ditas há quase mais de 40 anos, são atualíssimas as
observações de Victor Nunes. É admirável a sua percepção e antecipação.” (...) “Quero
deixar claro, e acho importante tendo em vista a natureza da decisão, que se deve muito
do que se procedeu aqui a Victor Nunes. Ou seja, viabilizou a divergência de quarenta
anos atrás para que pudéssemos, em cima de um caso concreto, criar uma situação nova
em termos de apreciação de inconstitucionalidade.” Também o Ministro Moreira Alves,
no julgamento da referida MC em ADI, manifestou-se quanto ao voto do Ministro Victor
Nunes no MS 8.693, observando que “esse voto parece que foi proferido para este caso”.
Resultou do julgamento, tal como consta de sua ementa, que o Tribunal deferiu, por

202
Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 8.651

Investidura com prazo certo de dirigentes de au-


tarquias — Analogia com regulatory agencies dos
EUA — Autonomia de entes da administração indireta
no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do
Executivo — Argumentos de ordem constitucional, le-
gal, política e administrativa — Limites à apreciação
judicial sobre opções políticas do Legislativo — Fun-
ção política do STF — Relevância da estabilidade da
jurisprudência.

Trata-se de caso julgado menos de um mês depois do mandado de segu-


rança acima analisado146.
Neste processo, discutiu-se a demissão, pelo Presidente Jânio Quadros,
“sem motivo ou justa causa”, de Armando Simone Pereira, que fora nomeado
em 12-11-1960 para o Conselho Administrativo da Caixa Econômica Federal,
para o “mandato147” de cinco anos.
O Ministro Relator, Luiz Gallotti, reproduz, neste caso, o voto que dera no
caso anterior, no sentido da concessão da ordem, ressaltando apenas que o fato de
o “mandato” ter sido fixado em Decreto que regulamentava a Caixa Econômica
Federal — Decreto 24.427, de 19 de junho de 1934 — não modifica sua conclu-
são, pois, nesse período, “o Chefe do Governo Provisório exercia cumulativa-
mente as funções dos Poderes Executivo e Legislativo” e, naquele tempo,
“não existia a distinção que surgiu após a Constituição de 1937 entre
decretos (executivos) e decretos-leis”.
Por sua vez, o Ministro Victor Nunes também reitera os argumentos que
apresentara no MS 8.693, exceto no que diz respeito à questão de ser ou não o
impetrante “representante” do Governo no cargo que ocupava. Rebater esse

maioria de votos (vencido o Ministro Marco Aurélio), medida liminar para suspender
eficácia de artigo de lei estadual gaúcha que previa a possibilidade de destituição de
membros de conselho de uma agência reguladora, no curso de seus mandatos, por deci-
são da Assembléia Legislativa, ressalvando o Tribunal, ao assim decidir, que tal suspen-
são de eficácia se dava “sem prejuízo de restrições à demissibilidade, pelo Governador
do Estado, sem justo motivo, conseqüentes da investidura a termo dos Conselheiros da
Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do
Sul – AGERGS”.
146 Ver nota n. 145.
147 Ver, nos comentários ao caso anterior, a crítica do Ministro Victor Nunes ao uso dessa
expressão. No entanto, o Ministro Relator a emprega, citando o Decreto de regência da
matéria.

203
Memória Jurisprudencial

argumento nem se faz necessário, posto que o Decreto 24.427/34 não se refere a
tal qualificação, senão ao “mandato” de cinco anos.
E, quanto à expressão “mandato”, o Ministro Victor Nunes demonstra,
como antes já o fizera, que não deve ser entendida em sentido próprio, senão no
sentido de “duração”.
A reforçar essa tese, no caso específico, há o fato de que o citado Decreto
distingue claramente duas situações: a do Presidente da Caixa, demissível ad
nutum, e a dos diretores, investidos por prazo certo. Essa distinção legislativa
naturalmente há de ser interpretada de modo a levar a situações diversas.
Após renovar debate, particularmente com o Ministro Hahnemann Guima-
rães, sobre o não-cabimento do conceito de mandato ao caso e sobre a questão
da eventual discordância política entre o Chefe do Executivo e o servidor nome-
ado com prazo certo, o Ministro Victor Nunes, considerando que fundamentava
sua conclusão na norma legal que disciplina o cargo em questão, afirma: “não
sou juiz do legislador. O Presidente da República não tem o monopólio da
política do País”.
E conclui seu voto com dois trechos de enorme densidade de idéias e
bastante ilustrativos de seu pensamento.
O primeiro, quanto à função política dos três ramos do Poder Público:
“Não é só política administrativa. A Constituição Federal in-
cumbe a definição da política do país aos três ramos do Poder públi-
co, aos três Poderes, ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário.
Incluo o Judiciário, porque o Supremo Tribunal Federal exerce fun-
ção política relevante, quando interpreta a Constituição e as leis e
quando, por exemplo, apreciando as conseqüências que resultam da
sua execução, altera a sua própria jurisprudência. Quanto à função
política do Congresso, nem há necessidade de acrescentar uma só
palavra. Como, pois, argumentar como se o Executivo tivesse o mo-
nopólio da política nacional?
Se a lei, ao instituir um órgão autônomo, quer proteger seus
dirigentes do arbítrio ou capricho de quem os nomeou, o que ela faz
é definir uma política que não podemos neutralizar em nome da polí-
tica do Executivo.
Negar validade às normas legais de nomeação a termo, Sr. Pre-
sidente, é golpear, nos alicerces, o princípio da autonomia adminis-
trativa. Realmente, esse problema só surge em função dos órgãos
autônomos; se negamos validade às nomeações a termo, por mais
que a lei queira dotá-los de autonomia, eles não o serão, porque seus
.
204
Ministro Victor Nunes

dirigentes estarão dependendo sempre ou do prudente critério, ou do


arbítrio desarrazoado do Presidente da República”.
O segundo, sobre seu respeito à estabilidade da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal — que sustenta neste caso, posto que, anteriormente ao MS
8.693, houvera inúmeros julgados garantindo o direito do servidor investido em
cargo por prazo certo —, ainda que defenda que, quando justificado, seja renovada:
“Pleiteio que se observe, sobre o assunto, a jurisprudência deste
Tribunal, e me advertem que jurisprudência não pode ser imutável.
Não sou contrário em tese, Sr. Presidente, a que o Tribunal mude de
jurisprudência. É certo que sou, em princípio, partidário de que tenha-
mos uma jurisprudência estável. É muito mais conveniente que a juris-
prudência do Tribunal se defina em tal ou qual sentido, embora não
seja sempre no mais acertado, do que seja uma hoje, outra amanhã,
implantando a incerteza e o ceticismo nos espíritos. Todavia, embora
favorável à estabilidade da jurisprudência, não poderia deixar de ser
partidário da sua renovação, sempre que necessária. Eu próprio me
tenho batido, com ardor, para que este Tribunal adote, em relação às
taxas, um conceito mais flexível do que aquele que aqui tem predomi-
nado, pois, em nome de um conceito doutrinário, e não de princípios
constitucionais, temos anulado taxas criadas pelos Estados dentro de
uma conceituação de taxa definida em decreto-lei federal. Se são pre-
mentes as necessidades financeiras dos Estados, se a Constituição não
define taxa, se há uma lei federal que lhe dá uma conceituação flexível
e compreensiva, por que havemos de fazer prevalecer, no silêncio da
Constituição, contra uma lei federal, indiferentes à notória escassez do
erário estadual, uma restritiva conceituação doutrinária de taxa, de
resto controvertida? Entretanto, meu apelo caloroso, infelizmente, não
tem sido atendido pela maioria do Tribunal”.
A decisão do Tribunal foi, no entanto, no mesmo sentido do MS 8.693,
vencidos novamente o Ministro Relator, Luiz Gallotti, e os Ministros Victor
Nunes, Gonçalves de Oliveira e Vilas Boas.

Mandado de Segurança 8.802


Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-
quias — Analogia com regulatory agencies dos EUA —
Autonomia de entes da administração indireta no Brasil —
Limites ao poder de exonerar do Chefe do Executivo —
Argumentos de ordem constitucional, legal, política e
administrativa — Limites à apreciação judicial sobre
opções políticas do Legislativo.

205
Memória Jurisprudencial

Este outro caso, julgado aproximadamente um ano depois dos dois anterio-
res, traz novamente à discussão os cargos com investidura de prazo certo148.
O cargo aqui em questão era de membro do Conselho de Administração
do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, cujo ocupante, José
Toqueville de Carvalho Filho, foi destituído pelo Presidente da República antes de
findo seu “mandato”149 de três anos.
Em seu voto, o Ministro Relator, Pedro Chaves, apresenta argumentos
para a negativa da segurança, lembrando ainda votos anteriormente proferidos
pelo Ministro Ribeiro da Costa (Relator do MS 8.693) e pelo Ministro Candido
Motta, este interpretando politicamente o sentido do prazo fixo como uma espécie
de limite, que impõe termo máximo (hipótese em que se há de cogitar renovação
ou não), mas que não impede sua interrupção, por falta de confiança, em especial
ante a mudança do Presidente da República.
O Ministro Victor Nunes, a seu turno, invoca seus argumentos expostos no
MS 8.693, aprofundando dois aspectos.
Em primeiro lugar, apresenta e discute caso da jurisprudência norte-ameri-
cana — Caso Morgan —, que fora citado pelo Ministro Candido Motta por oca-
sião daquele julgamento, como contrário e posterior ao Caso Humphrey. O Mi-
nistro Victor Nunes mostra, entretanto, que, no caso em que o Presidente
Roosevelt demitira Morgan do cargo de Presidente da Tenesse Valley Authority,
o fizera com justa causa, legalmente prevista para a demissão150.
Em segundo lugar, também respondendo à referência do Ministro Candido
Motta quanto a críticas que nos Estados Unidos se fazem à autonomia das agên-
cias reguladoras151, aponta “tendências recentes”, naquele país, “a respeito das
regulatory agencies”.
Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes passa a relatar experiência que
teve, em março de 1961, visitando os Estados Unidos e tendo contato com
projetos de governo do Presidente Kennedy, particularmente o “Plano Landis”,
sobre reforma das agências independentes.

.
148 Ver nota n. 145.
149 Lembrar as críticas apropriadas ao uso da expressão: cf. voto do Ministro Victor
Nunes no MS 8.693.
150 No caso, recusa de fornecer provas em relação à má conduta de membros da agência.
151 O Ministro Candido Motta citara artigo doutrinário em que se afirmava que o sistema
de autonomia das “comissões” (ou agências) do Poder Executivo estava tirando de tal
forma desse Poder sua competência que “os Estados Unidos se estavam transformando
num país sem cabeça, completamente sem diretivas, o que é uma crise do Executivo
americano”.

206
Ministro Victor Nunes

Tal plano, em essência, propõe a livre nomeação e demissão — ao mesmo


tempo que o aumento dos poderes — do Presidente da Interestate Commerce
Commission e da Federal Power Commission. Mas não propõe a livre demissão
dos demais diretores, entendendo que a permanência no cargo (tenure) é condição
para a independência e a oportunidade para planejamento a longo prazo.
Assim, o Presidente da República não teria poder de demitir os outros
diretores, mas apenas o “Presidente da instituição, se não tiver condições
pessoais de liderança para manter o respeito e a estima de seus colegas,
dos outros membros do colegiado, nomeados com prazo certo”.
Por fim, o Ministro Victor Nunes mais uma vez reitera, com coerência, seu
ponto de vista sobre o papel constitucional de cada um dos Poderes:
“Sr. Presidente, prosseguindo em minhas considerações, volto a
um argumento anteriormente desenvolvido, a saber, que a doutrina
firmada pelo Supremo Tribunal Federal, nos precedentes aqui invo-
cados, que são os casos Murilo Gondim e Armando Simone, é total-
mente contrária à própria idéia da criação de órgãos administrativos
autônomos. A criação desses órgãos visa, precisamente, a objetivos
diversos daqueles que presidiram às decisões deste Tribunal. Mas a
quem cabe traçar a alta política administrativa do País? Não é ao
Supremo Tribunal; é ao Poder Legislativo, dentro dos limites constitu-
cionais. E nada há, na Constituição, que corrobore, de maneira tão
categórica, as afirmativas que aqui se fizeram, no sentido de que,
havendo a lei instituído um órgão administrativo com autonomia am-
pla e garantido essa autonomia com a investidura de prazo certo dos
seus diretores, seja isso incompatível com a Constituição! Essa inter-
pretação, o Tribunal a está construindo contra os objetivos da lei,
isto é, atribuindo-se o papel de formulador da alta política adminis-
trativa do País, que compete ao Poder Legislativo”.
No caso em exame, esses argumentos ganham ainda mais relevância, posto
que na mensagem pela qual o Governo encaminhara ao Parlamento o projeto de
lei de criação do BNDE constava expressamente que a “investidura por prazo
certo visa a dar ao Conselho a necessária estabilidade, que lhe permita
resistir às injunções a que costumam estar sujeitos os organismos estatais”.
Isso se justifica porque, no BNDE, o Conselho tinha uma série de atribui-
ções de controle e fiscalização dos atos do Presidente do Banco, este, sim,
demissível ad nutum, posto que tipicamente agente do Presidente da República.
E “que espécie de controle pode ele [Conselho] exercer sobre o agente do

207
Memória Jurisprudencial

Presidente da República, se também for de livre demissão pelo Presidente


da República?”.
Esse caso acaba sem decisão de mérito, uma vez que o impetrante desiste
do mandado, sendo homologada a desistência. Dos votos até então proferidos,
todavia, verifica-se que os Ministros Victor Nunes, Luiz Gallotti e Gonçalves de
Oliveira concediam a segurança, enquanto os Ministros Pedro Chaves (Relator),
Ary Franco, Candido Motta e Hahnemann Guimarães a negavam.

Mandado de Segurança 10.213

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-


quias — Reitor — Autonomia de entes da administra-
ção indireta no Brasil — Autonomia universitária —
Liberdade de cátedra — Limites ao poder de exonerar
do Chefe do Executivo.

Aqui mais um caso em que se tratava de cargo com investidura por prazo
certo, tendo o Presidente da República pretendido destituir, antes do prazo, seu
ocupante.
Cuidava-se do Reitor da Universidade Rural de Pernambuco, exonera-
do por Decreto do Presidente João Goulart, no curso de seu mandato de três
anos.
No mandado de segurança, argumentou o Reitor que sua exoneração foi
ilegal por basear-se em norma do Estatuto dos Funcionários Públicos aplicável
aos ocupantes de cargos de confiança, mas não aos Reitores das Universidades.
A estas seriam aplicáveis as regras de seus Estatutos, em face da sua autonomia;
daí decorreria a competência do Conselho Universitário para destituí-lo, ou do Con-
selho Federal de Educação para suspendê-lo.
Em seu voto, o Ministro Relator, Victor Nunes, tratando genericamente
dos cargos com investidura de prazo certo, reitera seu posicionamento nos MS
8.693, 8.651 e 8.802 (acima examinados).
Mas, no caso concreto, acresce estar sendo violada regra própria das
universidades, dado seu regime de “autonomia didática, administrativa, fi-
nanceira e disciplinar”, fixada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-
cional.
Mais do que isso, é interessante notar que o Ministro Victor Nunes apresenta
fundamento constitucional, no regime de 1946, para a autonomia universitária: a
liberdade de cátedra, prevista no art. 168, VII: “Art. 168. A legislação do

208
Ministro Victor Nunes

ensino adotará os seguintes princípios: (...) VII - é garantida a liberdade


de cátedra”.152
Esse argumento afasta, no caso concreto, a competência do Presidente da
República para a exoneração, independentemente da discussão de poder-se ou não
destituir, antes do termo final, titulares de cargos de investidura por prazo certo.
Nesse caso, o Ministro Victor Nunes vota pela concessão da ordem, sendo
acompanhado pela unanimidade do Tribunal Pleno. Esse caso configura o prece-
dente que dá origem à Súmula 47 (Sessão Plenária de 13-12-1963): “Reitor de
Universidade não é livremente demissível pelo Presidente da República du-
rante o prazo de sua investidura.”

Mandado de Segurança 11.109

Investidura com prazo certo de dirigentes de autar-


quias — Autonomia de entes da administração indireta
no Brasil — Limites ao poder de exonerar do Chefe do
Executivo — Extinção dos cargos por lei.

Por fim, apresenta-se outro caso em que a mesma questão é discutida —


destituição de servidor em cargo de provimento por prazo certo —, porém com
situação peculiar a justificar a improcedência da impetração.
Neste caso, a Confederação Rural Brasileira, órgão nacional de represen-
tação de classe rural, voltou-se contra ato do Presidente da República que exone-
rou o Presidente e os membros do Conselho Nacional do Serviço Social Rural.
Ocorre que o Presidente da República assim agira em conseqüência da
Lei Delegada 11, que incorporou o Serviço Social Rural à Superintendência de
Política Agrária, extinguindo aquele órgão e interrompendo e extinguindo os
“mandatos” dos membros de seu Conselho.
O Ministro Relator, Ribeiro da Costa, que já tinha, em geral, posição
favorável à possibilidade de o Presidente da República exonerar titulares de
cargos com prazo fixo de investidura (cf. supra MS 8.693), neste caso
acresce o fundamento da extinção, por lei, do órgão e dos cargos. Nega, pois,
a segurança.

152 Note-se que em 1946 não havia regra explícita sobre a autonomia universitária, como
há na Constituição de 1988, art. 207: “As universidades gozam de autonomia didático-
científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princí-
pio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”.

209
Memória Jurisprudencial

O Ministro Victor Nunes, lembrando sua posição nos casos anteriormente


analisados, entende, contudo, tratar-se de situação diversa: a própria investidura
foi extinta por lei superveniente. Por essa razão, acompanha o Relator.
E a segurança foi denegada por votação unânime.

Mandado de Segurança 10.272

Caracterização de autarquia — Enquadramento de


seu patrimônio como bem público — Tutela e hierar-
quia.

Este mandado de segurança foi proposto pelo Presidente do Conselho


Federal de Medicina, pretendendo, em síntese, ver reconhecida a desnecessidade
de que tal órgão prestasse contas ao Tribunal de Contas da União.
Sem entrar em particularidades do regime do Conselho naquela época, a
tese em que se fundamentava a questão parece interessante: como caracterizar
uma autarquia153 e qual a natureza de seus bens, posto que a Constituição de
1946, art. 77, II, previa competência para o Tribunal de Contas “julgar as contas
dos responsáveis por dinheiros e outros bens públicos, e as dos administra-
dores das entidades autárquicas”.
E mostra o Ministro Victor Nunes, como Relator do caso, que o Conselho
Federal de Medicina é, indiscutivelmente, uma autarquia, por definição expressa
de sua lei de criação. “Embora, em doutrina, os traços definidores da autar-
quia sejam imprecisos, os autores são concordes em considerar autarquia a
entidade que a lei assim o declare”.
Em outro argumento, especificamente relacionado à prestação de contas
do Conselho, o impetrante alegou não ser o Conselho responsável por dinheiro
público, posto que seus fundos eram constituídos por contribuições dos membros
e não por receitas tributárias ou subvenções estatais.
Afastando esse argumento, o Ministro Victor Nunes afirma que
“o patrimônio das autarquias — já o temos decidido numerosas
vezes a propósito da imunidade tributária — é bem público, ainda
que formado de contribuições de natureza não tributária. Mesmo os
bens doados por particulares a pessoas jurídicas de direito público
passam a constituir patrimônio público”.

153 Lembrando-se que então ainda não vigorava o Decreto-Lei 200/67.

210
Ministro Victor Nunes

Aprofundando a questão quanto ao Conselho, mostra ainda que a


contrapartida de prerrogativas de ordem pública que a lei lhe confere, inclusive a
cobrança compulsória de contribuições, é o cumprimento de obrigações igual-
mente de ordem pública, tal como a prestação de contas.
Por fim, há que refutar um último argumento do impetrante, no sentido de
que o dever de prestação de contas seria derivado da subordinação hierárquica,
situação em que não estaria inserido o Conselho Federal de Medicina.
A propósito, o Ministro Victor Nunes, invocando “a melhor doutrina do
Direito Administrativo”, lembra que a “noção de dependência hierárquica é
incompatível com a noção de autarquia”, em cuja organização “é básica a
noção de autonomia”. Apesar disso, sobre as autarquias se exerce certo con-
trole, que os autores denominam “tutela”. “Varia a tutela na sua extensão e
quanto à matéria sobre que se exerce”, conforme preveja a lei; “pode consis-
tir na aprovação prévia ou posterior de seus atos; pode consistir, também,
na tomada de contas, etc”.
Assim, vota pelo indeferimento do pedido, sendo acompanhado pela unani-
midade do Tribunal Pleno.

Mandado de Segurança 10.882

Autonomia universitária — Regime peculiar para


servidores.

Trata-se de acórdão bastante sucinto, relatado pelo Ministro Gonçalves de


Oliveira, com declaração de voto do Ministro Victor Nunes. O interesse em refe-
ri-lo está no fato de ser um exemplo de caso em que se reconhece que a autono-
mia universitária afasta das universidades determinadas normas aplicáveis ao
serviço público em geral.
A situação de fato envolvida era a seguinte: professor interino da Faculdade
de Medicina da Paraíba pretendia sua efetivação no cargo de professor catedrá-
tico, por força de lei que previa efetivação de servidores interinos das autarquias
federais e de cargos isolados de carreira da União.
O Ministro Relator, Gonçalves de Oliveira, indefere o pedido, lembrando
regra específica da Constituição de 1946 (art. 168, VI) quanto ao provimento do
cargo de professor catedrático, incompatível com a efetivação de interinos:
“para o provimento das cátedras, no ensino secundário oficial e no superior
oficial ou livre, exigir-se-á concurso de títulos e provas”.
A questão nem mereceu debates no Tribunal, mas vale registrar que o
Ministro Victor Nunes, em seu voto, acrescenta o aspecto de estar envolvido, no
.
211
Memória Jurisprudencial

caso, o “princípio da autonomia universitária, que é objeto de leis especiais


e não da legislação comum do funcionalismo público”.
Ressalta ainda o Ministro Victor Nunes que a autonomia universitária, que
compreende a autonomia didática, está vinculada à liberdade de cátedra154, con-
sagrada em norma expressa da Constituição (art. 168, III).

Mandado de Segurança 15.186

Autarquias — Sentido histórico da autonomia —


Criação de cargos.

Trata-se de caso155 envolvendo discussão sobre o poder do Presidente da


República de criar e extinguir, por decreto, cargos em autarquias.
A referência, muito sucinta, a esses casos justifica-se apenas para registrar,
de passagem, algumas referências históricas sobre autarquias e sua autonomia.
O caso específico sub judice, ainda que tenha merecido amplos debates
dos Ministros, parece não ser de interesse atual, posto referir-se a questão cir-
cunstancial em torno de aplicação da Lei 4.345/64, que determinara revisão dos
quadros do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado. A
partir daí, discutia-se, com fundamento nessa Lei — e menos com fundamento
na competência constitucional do Presidente da República para expedir decretos
e regulamentos para a fiel execução das leis (Constituição de 1946, art. 87, I), a
possibilidade de o Presidente ter extinguido determinados cargos.
Quanto às referências históricas, o Ministro Victor Nunes156 lembra em
seu voto que
“as autarquias foram criadas com grande autonomia, atenden-
do-se às peculiaridades de cada uma, pela necessidade ou conveni-
ência de ser flexibilizado o serviço público. Por isso as autarquias
foram autorizadas a criar seus próprios cargos. Mas foram muitos os
abusos dessa descentralização. Surgiu então o primeiro controle, que
consistiu na criação desses cargos por decreto do Poder Executivo”.
Com efeito, a Lei 2.745, de 1956, previu a competência temporária, pelo
prazo de 30 dias, para o Presidente da República, por decreto, organizar o quadro
de pessoal das autarquias.

154 Sobre o tema, ver também o MS 10.213, abaixo analisado.


155 Idêntico, aliás, ao MS 14.631.
156 Em diálogo com o Ministro Gonçalves de Oliveira.

212
Ministro Victor Nunes

Mas a praxe administrativa, “por anos e anos”, seguiu sendo a criação,


por decreto, de cargos das autarquias com a tolerância dos Poderes Legislativo e
Judiciário, tornando-se “costume jurídico-administrativo”, nas palavras do Mi-
nistro Victor Nunes, que ainda observa: “se tivéssemos, agora, de declarar
ilegal a criação de tais cargos, faríamos desmoronar quase toda a estrutu-
ra das nossas autarquias”.

2.2 Atos administrativos

Recurso em Mandado de Segurança 8.147

Sujeição de ato administrativo individual e concreto


ao ato regulamentar, ainda que emanados da mesma
autoridade — Ausência de direito à renovação de licença,
ante mudança de legislação.

A questão debatida neste recurso de mandado de segurança resta bem


sintetizada no despacho do Prefeito do Distrito Federal157, impugnado pelo
impetrante:
“casso a licença que, inicialmente concedida em 1944 e sucessi-
vas vezes prorrogada, somente agora se pretende utilizar. O decreto
8.613, de 6 de setembro de 1946, não permite a construção de dez
pavimentos no local. Se a obra não foi iniciada na vigência da legisla-
ção que a autorizava nas condições então apresentadas, não o pode
ser agora, infringente das novas disposições que ora disciplinam a
hipótese. A revalidação não podia ser dada contra a lei em vigor”.
Negada razão ao impetrante pelo Tribunal estadual, apresentou-se o pre-
sente recurso.
Apreciando-o como Relator, o Ministro Victor Nunes inicia seu voto pela
questão de haver ou não direito à renovação de uma licença de construir, ante
superveniência de legislação que modifica as condições de licenciamento, quan-
do ainda não iniciadas as obras.
Lembra situação semelhante, na qual opinara como advogado da Prefeitura
do Distrito Federal, mas com a diferença de tratar-se de obra iniciada e concluída
na vigência de licença; antes, porém, de concedido o “habite-se”, surgira dúvida
sobre a validade da renovação da licença, ante novas exigências legais. Hesitava

157 Já transformado em Estado da Guanabara, por ocasião do julgamento.

213
Memória Jurisprudencial

então a Prefeitura entre anular a renovação — o que acarretaria a demolição do


prédio — e convalidá-la.
Na ocasião, Victor Nunes, citando Seabra Fagundes158, sustentara que
“nem sempre convém à Administração declarar a nulidade do ato adminis-
trativo, porque (...) ‘em face das razões concretamente consideradas, se tem
como melhor atendido o interesse público pela sua parcial validez’”. E reco-
mendara que a Prefeitura levasse a questão a juízo, o que não acarretaria prejuízo
à parte, pois a lei dava efeito de autorização provisória à demora em decidir o
pedido de “habite-se”, além de certo prazo159.
No caso sub judice, porém, a situação era diversa. A obra nem se iniciara.
E, por força da nova disciplina da matéria de construções, não mais havia a
possibilidade de renovação da licença, posto que a obra deixara de atender às
novas exigências.
Sobre esse aspecto, argumentara o recorrente que a norma que criara
novas exigências para a construção fora prevista em decreto; e, tendo o Prefeito
o poder de até mesmo revogar o decreto, teria o poder de fazer o “menos”,
simplesmente não o aplicando a determinado caso concreto, ou seja, renovando a
licença dada sob a vigência de norma anterior.
Por outras palavras, argumentava-se que o ato administrativo individual e
concreto (renovação da licença) poderia vir a contrariar ato administrativo geral e
abstrato (decreto), posto que ambos emanados da mesma autoridade (prefeito).
A esse propósito, o Ministro Victor Nunes apresenta relevantes considera-
ções que merecem ser transcritas na íntegra:
“Essa tese não encontra guarida no regime de legalidade em
que vivemos. No regime de 1937, como houvesse alguma tendência a
não diferenciar a competência legislativa da competência regula-
mentar do Chefe do Governo, tive oportunidade de examinar o as-
sunto, com certa extensão, na Revista de Direito Administrativo (‘Lei
e Regulamento’, reprod. em Problemas de Direito Público, 1960, pp.
57 e ss.). Acentuava eu, nesse trabalho, que, ‘mesmo no sistema da
Constituição de 1937, e principalmente tendo em vista o exercício
total da função legislativa conferida transitoriamente ao Presidente
da República pelo seu art. 180, não desapareceu a distinção formal
entre regulamento e lei, como atos de categoria diferente e valor di-
verso, subordinadas que estão as normas regulamentares aos preceitos

158 O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário.


159 Mas, no caso, a Prefeitura acabou decidindo convalidar a obra e conceder o “habite-se”.

214
Ministro Victor Nunes

legais. A identidade do órgão que expede umas e outras não basta


para desfazer a diferenciação, porque não é a natureza do órgão,
mas a competência ou qualidade em que age que deve prevalecer’.
Observava eu, em outra passagem, extraindo as conseqüências ad
absurdum do entendimento contrário: ‘(...) como o Presidente ficou
acumulando a função constituinte, podendo emendar a Constituição,
também não haveria a possibilidade de ser qualquer ato seu declarado
inconstitucional pelo Poder Judiciário, o que aberra do disposto no
art. 96 da Carta de 10 de novembro (...). E também seria letra morta a
disposição do art. 85, que define os crimes de responsabilidade do
Chefe de Estado, pois os seus atos seriam sempre legítimos, mesmo
ofendendo as leis ou a Constituição. Pelo simples fato de acumular o
Presidente funções legislativas, estaria, ao agir como poder executivo
e não como poder legislativo, absolvido das leis; e por acumular
transitoriamente o poder constituinte, estaria igualmente absolvido
da Constituição. E chegaríamos a concluir ainda que os atos prati-
cados pelo Chefe de Estado, como simples cidadão, também seriam
intangíveis, pois a pessoa do cidadão e a do Presidente é uma só’ (ob.
cit., pp. 71/72).
O que procurei pôr de manifesto, nesse estudo, é que, dispondo
qualquer autoridade de mais de uma competência legal ou constituci-
onal, não é a origem do ato que assinala a sua categoria no ordena-
mento jurídico positivo, mas a competência em virtude da qual o ato
foi praticado. O regulamento é expedido no uso da competência regu-
lamentar, enquanto que o ato administrativo deriva da competência
ordinária para gerir a coisa pública. Esta competência administrati-
va rotineira está evidentemente subordinada à competência para ex-
pedir regulamentos. É através desse escalonamento dos atos do Esta-
do, dentro de uma ordem hierárquica definida, que o poder público
se autolimita, princípio esse fundamental para garantia dos direitos
individuais e boa ordem da administração.
No caso, os atos administrativos dos dois Prefeitos, que acolhe-
ram a pretensão do ora recorrente, teriam de subordinar-se às nor-
mas regulamentares de categoria superior. A Justiça cotidianamente
aplica esse critério que, por ser evidente, ninguém se dá mais ao tra-
balho de demonstrar”.
Por essa razão, nega provimento ao recurso, sendo acompanhado pela
unanimidade do Tribunal Pleno.
.
215
Memória Jurisprudencial

Mandado de Segurança 12.800

Poder regulamentar: margem de interpretação de


lei — Limites à apreciação judicial de atos discricionários.

Discutiam-se, nesse julgado, os requisitos para reconhecimento de entidade


como de utilidade pública.
O Ministro Relator, Evandro Lins, afasta a pretensão da impetrante, enten-
dendo válidos dispositivos de decreto, com a seguinte observação:
“Se os dispositivos não devem contradizer os preceitos legais,
também não devem, curialmente, copiar-lhes servilmente as expres-
sões. Pois, de outras formas, seriam perfeitamente inúteis. A função
específica do regulamento é justamente a de desenvolver ou explici-
tar o pensamento legal, a fim de facilitar-lhe a execução. E nesta
tarefa, é óbvio que o Poder regulamentar deve gozar de uma razoável
margem de interpretação.”
Seguiu-se intenso debate sobre a questão de fundo, com interpretações
diversas quanto ao sentido das exigências contidas no decreto.
O Ministro Victor Nunes, em um primeiro momento, em aparte ao Ministro
Hermes Lima — que vota vencido —, produz interpretação no sentido de que a
norma regulamentar estabeleceria poder discricionário ao Presidente da República
para que, uma vez atendidos os requisitos, reconhecesse ou não uma entidade
como de utilidade pública (“A Lei deixou essa declaração ao prudente critério
do Executivo. É ato que recai na esfera de suas atribuições discricionárias,
isto é, de oportunidade e conveniência. Não podemos compelir o Executivo
a declarar a utilidade pública desta ou daquela sociedade.”), ao que respon-
de o Ministro Hermes Lima apontando que tal interpretação daria ao Executivo
margem para decidir de modo discriminatório.
Posteriormente, em seu voto, o Ministro Victor Nunes reconhece falha no
ato coator: o motivo alegado pelo Presidente da República não subsistiria. Ainda
assim, o Ministro Victor Nunes manifesta-se — mais interessante frisar este
aspecto que a solução da questão de fundo — no sentido de que, tratando-se de
ato discricionário, não pode o Supremo Tribunal Federal substituir-se ao Poder
Executivo, ainda que se possa entender que a entidade impetrante pareça mere-
cedora da obtenção do título pleiteado.
A solução, assim, seria devolver a matéria ao Presidente da República,
para que decidisse por outro fundamento, deferindo, parcialmente, a segurança.
.
216
Ministro Victor Nunes

Por fim, ante aparte do Ministro Relator, Evandro Lins, apontando outros
fundamentos já declarados para que o Presidente da República houvesse negado o
título à impetrante, o Ministro Victor Nunes retifica seu voto e nega a segurança.

Embargos no Agravo de Instrumento 26.603

Cassação de licença para construir — Proteção de


imóvel tombado.

Trata-se de embargos infringentes em agravo, levados a julgamento pelo


Tribunal Pleno, contra decisão da Primeira Turma. O caso resolveu-se pelo não-
conhecimento dos embargos, com fundamento na lei que então regia seu cabi-
mento em hipóteses de divergência jurisprudencial.
Não parece, para os fins desta análise, relevante a discussão processual
relativa a esse aspecto. Todavia, do voto do Ministro Victor Nunes — que conhe-
cia dos embargos, por vislumbrar divergência de julgados —, ressaltam-se alguns
elementos interessantes a respeito da possibilidade de cassação de licença para
construir, no caso invocando-se normas de proteção de bem tombado.
No caso concreto, houvera licença da Prefeitura do Município de Petrópo-
lis para a construção de edifício nas proximidades do Palácio Imperial.
Com a obra quase concluída, o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional160 determinou que a Prefeitura embargasse a obra, alegando que preju-
dicava a visibilidade do Palácio, imóvel tombado.
Discutia-se, a partir daí, se, de fato, havia vizinhança a justificar a interdição;
se havia direito da construtora a prosseguir na obra, ou se poderia a Prefeitura
cassar licença que concedera; se a Prefeitura poderia embargar administrativa-
mente obra que licenciara, ou se União e Município deveriam buscar tutela judi-
cial por meio de ação cominatória.
O Ministro Victor Nunes, em primeiro lugar, registra que a legislação e as
posturas municipais não podem ignorar definições e regras estabelecidas em leis
federais, em se tratando de matérias de competência da União: “a Prefeitura de
Petrópolis tinha de considerar implícita, em suas posturas, a observância
da lei federal”.
Tal se aplica quanto ao conceito de vizinhança, trazido pelo Código Civil e
aplicado pelo Decreto-Lei 25/37, que disciplina o tombamento, e igualmente no
tocante à consulta prévia ao SPHAN quanto à possibilidade de construções das
vizinhanças de bens tombados.

160 SPHAN, hoje com o nome alterado para IPHAN, substituindo-se “Serviço” por “Ins-
tituto”.

217
Memória Jurisprudencial

Tratando-se de matéria da competência da lei federal, “as posturas mu-


nicipais não poderiam desconhecer ou dispensar o que a lei federal exi-
ge”. Assim, não poderia a Prefeitura, alegando falta de determinação expressa
em norma municipal, deferir a licença para construção nas vizinhanças de imó-
vel tombado pela autoridade federal, sem antes ouvir o órgão federal compe-
tente 161.
Em segundo lugar, quanto à hipótese de a Prefeitura cassar, por ato admi-
nistrativo, licença que previamente concedera, alguns Ministros162 entendiam não
ser possível, reconhecendo-se o direito da construtora, uma vez licenciada a obra,
configurando a licença um ato administrativo já completo.
Contra esse argumento, observa o Ministro Victor Nunes que, sendo
irregular o ato da licença (porque não ouvido o SPHAN), não poderia ser con-
siderado completo: “a licença concedida foi um ato administrativo imperfeito,
incorreto, do qual não poderia resultar direito a ser protegido por mandado
de segurança”. Daí a possibilidade de a Prefeitura cassar a licença por decisão
administrativa.
Porém, como de início registrado, o resultado do julgamento foi pelo não-
conhecimento dos embargos, contra os votos dos Ministros Victor Nunes e
Hermes Lima.

Mandado de Segurança 15.194

Anulação do ato de exoneração — Teoria dos mo-


tivos determinantes.

Trata este caso de direito de servidor público. Não é, no entanto, a peculi-


aridade da questão funcional que parece relevante para ser analisada, senão a
referência à aplicação da teoria dos motivos determinantes.
Consoante síntese oferecida pelo Ministro Relator, Candido Motta,
“a requerente, por ato regular do Executivo, era funcionária
do Ministério da Fazenda. Por ato também do Executivo foi nomeada

161 Essa falta de consulta ao SPHAN é também lembrada pelo Ministro Victor Nunes para
afastar o argumento de que fora tardia a intervenção daquele órgão federal. O Ministro
questiona de que forma a intervenção poderia ser tardia, se o órgão não fora previamente
consultado quanto à construção, não sendo razoável supor que pudesse ter ciência, por
iniciativa própria, de todos os fatos ocorridos no território nacional, nas proximidades de
bens tombados.
162 Explicitaram esse entendimento Hahnemann Guimarães e Gonçalves de Oliveira.

218
Ministro Victor Nunes

Tesoureira Auxiliar do Instituto de Previdência e Assistência dos Ser-


vidores do Estado. Surpreendeu-se com a extinção deste cargo e per-
deu o anterior. Não foi demitida. Não cometeu imprudência, mas tão-só
confiou na autoridade pública, no caso, o Presidente da República”.
No caso, com a perspectiva de ser nomeada para o segundo cargo, a
impetrante pediu exoneração do cargo anterior. Mas viu, em seguida, ser tornado
sem efeito o Decreto que criara o novo cargo.
O Ministro Relator entende que, com a extinção do novo cargo, deve a
impetrante retornar ao primeiro, em posição na qual tinha situação jurídica defini-
da, não tendo contribuído para perdê-la. Ou, caso esteja o primeiro cargo já pre-
enchido, deve permanecer em disponibilidade remunerada.
O Ministro Prado Kelly, ao seu turno, concordando com o Relator, vislum-
bra, no caso, a aplicação da teoria dos motivos determinantes: a impetrante, de
boa-fé, exonerara-se do cargo que antes ocupava para poder ocupar cargo re-
centemente criado no Ipase.
“Tal o motivo determinante do pedido de exoneração. (...) Ora,
se perdeu eficácia o decreto que criara o cargo ao qual aspirava a
funcionária, a ponto de solicitar exoneração de outro para poder
ocupá-lo, perdeu também o motivo do pedido de exoneração. E en-
contro, já aí, uma razão que vai além da eqüidade, para acompanhar
o voto do eminente Relator”.
Em seu voto, o Ministro Victor Nunes acompanha o Ministro Prado Kelly,
concordando com a aplicação da teoria dos motivos determinantes do ato admi-
nistrativo.
É curioso notar, no entanto, ainda que esse aspecto não tenha sido
explicitado no acórdão, que o Ministro Prado Kelly discutira os motivos
determinantes não propriamente de um ato administrativo, mas de um ato pessoal
do servidor — pedido de exoneração — que acarreta o ato administrativo propria-
mente dito: a exoneração. E, de todo modo, entendeu-se que, revelando-se
insubsistentes os motivos do pedido, seria o caso de anular a exoneração.
Completando seu voto, o Ministro Victor Nunes lembra outros casos em
que o Tribunal já aplicara a teoria dos motivos determinantes (“que Francisco
Campos perfilhou, em conhecido parecer, firmado nas lições de Jèze”),
por exemplo, anulando exoneração de servidor ocupante de cargo em comis-
são, por não se haver comprovado o motivo que a Administração alegara para
exonerá-lo.
O Tribunal, por maioria, vota com o Relator, concedendo a segurança para
que a impetrante retorne ao seu cargo anterior. Cinco Ministros votaram vencidos,
deferindo in totum o pedido, para reintegração ao cargo que fora extinto.
.
219
Memória Jurisprudencial

Embargos no Recurso Extraordinário 45.110

Nulidade de ato administrativo por vício de forma —


Código Civil.

Este caso resolveu-se, originalmente, por questão processual: não-cabi-


mento de recurso extraordinário, por tratar-se de violação de lei estadual — no
julgamento do recurso, a Turma, por esse motivo, dele não conhecera.
Interessa, no entanto, um detalhe do argumento do recorrente e embargante,
que diz respeito ao fundamento da invalidade dos atos administrativos.
Em que pese se discutisse, no caso, nulidade de ato administrativo por
violação de forma prescrita em lei estadual, invocava o recorrente violação, pelo
Tribunal a quo, de lei federal: o Código Civil163, ao prever como nulidade do ato
jurídico o desrespeito à forma legalmente estabelecida.
Apresentados embargos, o Ministro Victor Nunes, reconhecendo ter con-
siderado interessante o argumento apresentado pelo advogado do embargante —
Seabra Fagundes —, acaba por afastá-lo, mostrando que,
“quando se trata de nulidade de ato administrativo, a matéria
tanto cabe na legislação federal como na legislação estadual e não é
preciso arrimo do Código Civil para sustentar-se a nulidade de um
ato administrativo estadual em desacordo com a forma prescrita na
lei do Estado. A nulidade resulta, aí, da própria doutrina do Direito
Administrativo, sem necessidade de recorrer do campo da lei local
para o âmbito da lei federal. A discussão, de qualquer modo, ficará
encerrada no plano da lei local.”
Pondera ainda que, a prevalecer a tese do recorrente, seria considerada,
para efeito de conhecimento do recurso extraordinário, mais importante uma lei
estadual que disponha sobre forma do ato — cujo cumprimento fosse eventual-
mente negado por julgamento da instância anterior, ensejando assim o recurso,
por automaticamente estar implicada violação do Código Civil — do que outra
que disponha sobre a substância da relação jurídica controvertida.
Nesse sentido, acompanha o voto do Ministro Relator, Ribeiro da Costa,
não conhecendo dos embargos164. A votação foi unânime no Tribunal Pleno.

163 De 1916, arts. 82 e 145, III.


164 Havia outra questão processual, esta a ensejar o não-conhecimento dos embargos. O
embargante mudara o fundamento do recurso extraordinário nos embargos. Recorrera
com fundamento no art. 101, III, a, e embargara com fundamento na alínea c desse dispo-
sitivo.

220
Ministro Victor Nunes

2.3 Concessão

Mandado de Segurança 18.028

Concessão de serviços públicos — Processo admi-


nistrativo como garantia do concessionário.

Tratava-se de caso em que o Governo Federal decidiu extinguir a conces-


são para a exploração dos serviços do Porto de Ilhéus. Tal extinção deu-se por
decreto do Presidente da República, de 1967, sob a modalidade de rescisão.
O contrato de concessão para a Cia. Industrial de Ilhéus S.A. fora cele-
brado em 1923, com prazo de sessenta anos, admitindo duas formas de extinção:
encampação — a qualquer tempo, passado um terço do prazo — e rescisão —
por inadimplemento da concessionária, após a aplicação de duas ou mais multas
ou por falta de caução.
No caso concreto, estando o serviço já sob intervenção da União165, ini-
ciou-se processo de encampação, o qual, todavia, foi transformado em rescisão,
que veio a ser sumariamente decretada, sem que a concessionária houvesse in-
corrido na penalidade de multa ou deixado de apresentar caução.
A concessionária alegava que a rescisão não respeitou, pois, as formalida-
des previstas no próprio contrato. Além disso, apontava grave desequilíbrio eco-
nômico-financeiro do contrato, imputando ao concedente prejuízos que sofria.
O Ministro Relator, Evandro Lins, negando a segurança, resume assim seu
pensamento:
“o mandado de segurança não é meio idôneo para impedir ao
poder concedente o exercício da faculdade, que está implícita em todas
as concessões, ou seja, a rescisão unilateral do contrato, tendo em
vista o interesse público”.
E isso não impede que o concessionário busque indenização por seus prejuízos,
pelas vias ordinárias.

165 Por não se ter conseguido arcar com aumentos salariais definidos em acordo coletivo.
O Ministro Aliomar Baleeiro, conhecedor da realidade da Bahia, faz fortes críticas a pro-
blemas históricos do Porto de Ilhéus.
.

221
Memória Jurisprudencial

A denegação da ordem é seguida pelos demais Ministros, inclusive pelo


Ministro Victor Nunes, que, todavia, ressalva fazê-lo pela existência de matéria
de prova a demandar maior exame.
De todo modo, o Ministro Victor Nunes traz em seu voto pensamento
crítico, de natureza política, sobre distorções que o exagero da posição defendida
pela maioria dos Ministros pode causar no instituto da concessão:
“Vivemos num regime declaradamente capitalista, em que a
Constituição exprime seu apoio, não digo irrestrito, mas vigoroso, à
iniciativa privada, opondo mais óbices que a de 1946 à atividade
econômica do Estado. Não compreendo, neste regime, que a adminis-
tração sustente, sobre a concessão de serviço público, uma doutrina
que deixa o capital completamente desamparado. Num empreendi-
mento em que o concessionário, presumidamente, aplica vultosos re-
cursos, deve ele ficar privado desse patrimônio, até ninguém sabe
quando, à espera da indenização a que tiver direito, sem que se lhe
reconheça, pelo menos, a garantia de um processo administrativo?”
Em que pese a Constituição de 1967, em seu art. 160, preveja, em matéria
de concessão de serviços públicos, “tarifas que permitam a justa remuneração
do capital, o melhoramento e a expansão dos serviços e assegurem o equi-
líbrio econômico financeiro do contrato”, o Ministro Victor Nunes observa
que o Governo tem feito dessa regra letra morta.
No caso concreto, o Ministro Victor Nunes reforça seu ponto de vista com
o fato de a concessão já estar sob intervenção e de os problemas persistirem
desde longa data. Tudo isso retira justificativa da precipitação em se promover a
rescisão, sendo perfeitamente cabível levar mais vinte ou trinta dias, oferecendo-
se à concessionária a oportunidade de se defender.
Neste voto, o Ministro Victor Nunes lembra outro mandado de segurança,
que teve ampla repercussão na época, em que também votou pela denegação,
mas fez observações semelhantes a essas. Trata-se do caso da Panair, no qual
havia uma situação anômala, estando os serviços claramente comprometidos, “e
o governo, inopinadamente, sem processo administrativo regular, fez cessar
suas atividades, para transferi-las a outras companhias. Não foi uma inter-
venção para garantir a continuidade do serviço, mas para liqüidá-lo”.

222
Ministro Victor Nunes

Mandado de Segurança 16.132

Concessão de serviço de radiodifusão — Caduci-


dade — Aplicação de legislação em sentido contrário
ao que a inspirara.

Tratava-se de julgamento que ensejou divergência e relevantes debates


sobre caducidade ou cassação166 de concessão outorgada à Rádio Sociedade
Mayrink Veiga.
A tese vitoriosa no julgamento, dando razão ao Presidente da República,
autoridade impetrada, está bem sintetizada na ementa do acórdão, relatado pelo
Ministro Vilas Boas:
“Consumada uma concessão em razão do tempo, não é possível
ao Poder Judiciário revigorá-la, porque a recondução é da exclusiva
competência do Executivo. No caso, haveria motivo até para rescisão
(...) e assim não existe direito líquido e certo a amparar”.
À sociedade impetrante foi imputado ato violador das normas sobre con-
cessão de telecomunicações, consistente em alienar seu controle acionário sem
concordância do Poder Público. Ainda lhe foram atribuídos, em período mais
recente, atos atentatórios à segurança nacional.
A questão, todavia, mostrou-se bastante complexa, envolvendo atos prati-
cados antes e depois da vigência do Código Brasileiro de Telecomunicações —
Lei 4.117, de 21 de agosto de 1962.
Em seu voto divergente, o Ministro Victor Nunes cita trecho de parecer,
elaborado no âmbito do Ministério da Justiça, que bem ilustra as dúvidas
ensejadas a partir dos fatos praticados pela impetrante:
“Examinando o assunto, os Srs. Membros do Conselho Nacio-
nal de Telecomunicações dividiram-se em três grupos, sustentando
cada um opinião própria, a saber:
a) a caducidade da concessão pela violação de dispositivos
legais vigentes à época do contrato e de cláusulas contratuais. Se-
gundo esse ponto de vista, os direitos e obrigações das concessioná-
rias se regem pela lei vigente, na data da celebração de contrato, não
se aplicando, à hipótese, os preceitos do Código brasileiro de Comu-
nicações;

166 Essa distinção é reconhecida, discutindo-se, no caso, qual a figura a ser aplicada.

223
Memória Jurisprudencial

b) a cassação da concessão, porque, tendo praticado delitos


contra a segurança nacional, os dirigentes da entidade não têm
idoneidade moral para continuar respondendo pela execução de um
serviço público como a radiodifusão, arrimando-se esse grupo no
art. 74, c, do Código Brasileiro de Telecomunicações. Essa penalida-
de seria, ainda, cumulada com a multa, nos termos dos arts. 62 e 63
do mesmo diploma legal.
c) a insubsistência de transferência das ações, de modo que a
sociedade voltaria ao controle do antigo grupo punindo-se a entida-
de com a pena de suspensão por 30 dias.
Predominou, porém, o primeiro grupo. (...)”
E ainda do voto do Ministro Victor Nunes extrai-se síntese esclarecedora
do raciocínio do Governo no caso:
“Aqui está mais ou menos explicado o raciocínio que levou o
Governo a essa solução. O Governo entende que, tendo expirado o
prazo de concessão da Rádio Mayrink Veiga antes da vigência do
Código Brasileiro de Telecomunicações, embora não declarada antes
a caducidade, o Governo poderia deixar de lado o Código de Teleco-
municações, para aplicar a pena de caducidade da lei anterior. Não
importava que as infrações atribuídas à empresa tivessem caráter
continuado, tendo começado antes da lei nova, com a transferência
não autorizada de ações, prosseguindo, depois dela, com outras in-
frações que poderiam, eventualmente, recair no âmbito da Lei de Se-
gurança Nacional. Segundo esse entendimento, seriam aplicáveis
dois tipos de sanções, umas pela lei nova, outras pela lei antiga”.
Antes de entrar na discussão das questões jurídicas específicas do caso, o
Ministro Victor Nunes ainda produz análise política de postura que tem marcado
as atitudes do Governo após 1964:
“Sr. Presidente, o que me parece ter havido, neste caso, é uma
confusão que já temos encontrado em outros. Houve uma revolução e
nem todo o sistema jurídico que essa revolução encontrou foi ainda
mudado. Apesar disso, algumas autoridades querem aplicar leis do
sistema anterior, contrariamente à sua letra e ao seu espírito, como se
elas fossem inspiradas pelos objetivos do novo regime. Às vezes, o
que há nestes casos é uma incompatibilidade total, como mostrou o
eminente Ministro Evandro Lins.
O Código de Telecomunicações, como todos sabemos, foi feito
contra o Governo, contra o Executivo. Sendo uma lei restritiva do
.
224
Ministro Victor Nunes

Poder Executivo, não pode agora ser invocada para alargar os po-
deres do Presidente da República. Ela foi promulgada precisamente
para limitar esses poderes, pois se argumentava, no Congresso, que a
legislação anterior era de cunho ditatorial”.
Daí afirmar, em relação ao caso concreto, que poderia o Governo facil-
mente, pelos poderes que tem, alterar o Código de Telecomunicações, mas nunca
aplicá-lo contra o particular — justamente quem o Código quis proteger —, invo-
cando poderes que o Código não lhe dá.
O Código revogou todo o sistema de penalidades da legislação anterior,
Decreto de 1932, na qual se encontrava, para a transferência não autorizada de
ações, a pena de caducidade da concessão. Pelo Código, essa mesma infração é
punida com pena de suspensão.
Em aparte, lembra o Ministro Relator, Vilas Boas, ser, nos termos do Código,
vinculada a validade da transferência de ações à autorização do Governo. Ao que
responde o Ministro Evandro Lins que a validade ou não da operação não tem
relação com a penalidade imposta. E daí conclui o Ministro Victor Nunes:
“a conseqüência, portanto, é a seguinte: inválida que seja a
transferência de ações, delas continuam a ser titulares, por esta lei,
os alienantes. Restaura-se o status quo anterior. Se os alienantes não
têm capacidade econômica, ou técnica, ou legal, para continuarem o
serviço, então, sim, o Governo, verificada essa situação, aplicará a
pena de cassação”.
Lembra ainda o Ministro Victor Nunes — respondendo novamente ao
Relator, que observou que o ato do Governo, ora impugnado, fora de declaração
de caducidade e não de cassação — que o Código mantivera, pelo prazo de dez
anos, as concessões dos serviços em funcionamento, não havendo que falar, pois,
em caducidade.
Em mais um aparte, o Relator observa o fato de que, em que pese a previ-
são legal da invalidade da transferência de ações, a Rádio está operando em
outras mãos, violando o intuitu personae do contrato. A isso responde o Ministro
Victor Nunes que “a lei não considerou os contratos existentes intuitu
personae, porque prorrogou a concessão de todos os serviços que estives-
sem em funcionamento”.
Mostra, por fim, o Ministro Victor Nunes que a hipótese, ventilada nos
autos, de que a Rádio impetrante estaria praticando atividades subversivas pode-
ria levar a penalidades — por exemplo: dissolução de sociedade, suspensão de
atividades —, por força de normas de defesa da segurança nacional, mas não do
Código de Telecomunicações.
.
225
Memória Jurisprudencial

Por essas razões, vota, acompanhando o Ministro Evandro Lins, pela con-
cessão da segurança, visando à anulação do decreto que declarou a caducidade
da concessão outorgada à impetrante. Restam vencidos os dois Ministros, tendo
os demais votado com o Relator, pela denegação da ordem.

Recurso em Mandado de Segurança 14.230167

Concessão — Exploração de minérios — Desres-


peito a normas de processo administrativo.

Este processo derivou de situação de ampla repercussão na época, restando


conhecido como Caso Hanna. O Presidente Jânio Quadros determinou que se
procedesse a investigação a respeito da regularidade de certas concessões ou au-
torizações para a exploração de minérios168.
Ocorre que, instaurados procedimentos investigatórios no âmbito do Mi-
nistério de Minas e Energia, independentemente da oitiva das empresas investi-
gadas ou de decisão final do Presidente da República, o Ministro proferiu despacho
cancelando determinadas averbações169 de minas e jazidas e ordenando a cessação
imediata das explorações concedidas em virtude de tais averbações.
Nessa situação, a Companhia de Mineração Novalimense e a Icominas
S.A. Empresa de Mineração, sucessoras da St. John del Rey Co., impetraram
mandado de segurança contra o ato do Ministro e agora apresentaram recurso de
mandado de segurança ao Supremo Tribunal Federal. Quanto ao recurso extra-
ordinário e ao agravo de instrumento, julgados em conjunto nesse caso, inverte-
ram-se as posições, sendo recorrente a União Federal.
Esse caso mereceu longos votos por parte de vários Ministros, com ampla
discussão da situação de fato e de regras próprias do Código de Minas, de 1934.
Sem adentrar-se em pormenores desses âmbitos, parece interessante res-
saltar que, em essência, a solução da questão decorreu de normas do Código de
Minas, relativas a caducidade ou anulação de concessões de lavra ou autoriza-
ções de pesquisa, normas essas que instituíam procedimentos “processualiza-
dos170”, com previsão de contraditório e defesa das partes interessadas, além de
apontar o Presidente da República como autoridade para proferir a decisão final,
após despacho do Ministro.

167 Julgado conjuntamente com o RE 56.880 e o AI 32.869.


168 Havia subjacente ampla discussão política e ideológica sobre possibilidade de capi-
tais estrangeiros atuarem no setor. E apontava-se perseguição discriminatória contra as
recorrentes, por parte da União.
169 Procedimento do Direito minerário, que não parece ser o caso de aqui aprofundar.
170 Empregando-se a expressão atual.

226
Ministro Victor Nunes

No caso, nem as partes haviam sido ouvidas, e o Ministro proferira despa-


cho com caráter terminativo do procedimento.
O Ministro Victor Nunes votou, acompanhando o Ministro Relator, Gon-
çalves de Oliveira, nos seguintes termos: “pondero que já há um processo
administrativo instaurado por ordem do Presidente da República. Este pro-
cesso, corrigido nas suas irregularidades — que são a falta de defesa e o
caráter executório que se pretende dar ao despacho ministerial —, é que
deve subir à deliberação presidencial”.
O processo administrativo ainda não estava, portanto, terminado, por falta
de decisão do Presidente da República. Assim, entende o Ministro Victor Nunes
que qualquer decisão do Tribunal que vá além de determinar o saneamento dos
vícios e o encaminhamento do processo ao Chefe do Poder Executivo importaria
prejulgamento do mérito do processo administrativo.
Essa posição — importando provimento parcial do recurso de mandado de
segurança — prevaleceu com o voto de desempate do Presidente.
Restaram vencidos sete Ministros que davam integral provimento, anulando
o despacho do Ministro de Minas e Energia e devolvendo o processo ao Ministé-
rio, para que lhe fosse dado adequado andamento. E os recursos da União foram
julgados prejudicados.

2.4 Desapropriação e bens públicos

Recurso Extraordinário 54.011

Retrocessão — Distinção entre desapropriação


amigável e compra e venda.

Discutia-se neste caso a retrocessão. Tratava-se de desapropriação,


promovida pelo Estado do Rio Grande do Norte, quanto ao domínio útil de
imóvel de que os recorrentes eram titulares, como enfiteutas. Concluída a de-
sapropriação, a finalidade171 para a qual se desapropriara não se consumou, e
o imóvel foi cedido a terceiros. Nessa situação, pleitearam os recorrentes
retrocessão.
A decisão a quo ora recorrida, do Tribunal Federal de Recursos, apontou
dois fundamentos para negar o direito dos recorrentes à retorcessão: a) (decisão
do primeiro julgamento no TFR) o art. 35 da Lei de Desapropriações — Decreto-

171 Transformação da área em campo de manobras da guarnição federal.

227
Memória Jurisprudencial

Lei 3.365/41 — teria afastado a incidência do art. 1.150 do Código Civil de


1916172, tornando irremediavelmente incorporadas ao patrimônio do expropriante
as coisas desapropriadas, ou seja, eliminando o instituto da retrocessão; a questão
teria de se resolver não pela devolução do bem, mas por indenização; b) (decisão
de embargos no TFR) apenas o proprietário poderia valer-se do disposto no art.
1.150 do Código Civil e não os recorrentes, que são titulares apenas do domínio
útil, como foreiros.
O interesse em comentar esse acórdão se encontra no registro de um mo-
mento em que a jurisprudência ainda se consolidava sobre a aplicação do instituto
da retrocessão, em face do previsto no art. 35 da Lei de Desapropriações.
O Ministro Victor Nunes, em seu voto, lembra precedente do Supremo
Tribunal Federal — RE 47.259 —, que levou à formação da Súmula 111173 e
aborda indiretamente a questão da retrocessão. Essa Súmula trata do pagamento
do imposto de transmissão inter vivos, quando o bem desapropriado retorna ao
dono anterior, por não ter sido utilizado nos fins a que se destinava.
A maioria, no citado RE 47.259, entende devido o imposto, por considerar
que a desapropriação se esgota com a passagem do bem ao expropriante. O
retorno do bem ao expropriado seria uma segunda alienação, a título do direito de
preferência, previsto no Código Civil (art. 1.150); uma vez não aplicada a prefe-
rência, a situação resolver-se-ia em indenização. O Ministro Victor Nunes vota
vencido, entendendo indevido o imposto, uma vez que o retorno do bem ao expro-
priado seria decorrente de tornar-se sem efeito a desapropriação, não caracteri-
zando nova alienação.
Todavia, no presente caso, o Ministro Victor Nunes não chega a se pronun-
ciar sobre o mérito da retrocessão. Isso porque sua decisão parou no ponto em que
afastou argumento do Tribunal a quo, que acolhera preliminar de ilegitimidade dos
recorrentes, como foreiros, para pleitearem o direito previsto no art. 1.150 do
Código Civil.

172 Decreto-Lei 3.365/41, art. 35: “Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda
Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do
processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em per-
das e danos.”; Código Civil (1916), art. 1.150: “A União, o Estado, ou o Município ofere-
cerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não
tenha destino, para que se desapropriou.” Hoje o Código Civil (2002) assim trata da
matéria no art. 519: “Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade
pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não
for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferên-
cia, pelo preço atual da coisa.”
173 Súmula 111: É legítima a incidência do imposto de transmissão inter vivos sobre a
restituição, ao antigo proprietário, de imóvel que deixou de servir à finalidade da sua
desapropriação.
.

228
Ministro Victor Nunes

Sobre esse ponto, o Ministro Victor Nunes considera que o texto do art.
1.150 do Código Civil, que se referia a “ex-proprietário”, tem que ser entendido
como se referindo a “sujeito passivo da desapropriação”, o que inclui os titulares
de domínio útil — caso dos recorrentes —, até porque o domínio útil pode ser
isoladamente objeto de desapropriação, sem que se afete o domínio pleno ou a
nua propriedade.
Vota, assim, pelo provimento do recurso, para que se devolva o processo
ao TFR, a fim de que julgue o mérito: direito do expropriado de reaver a propri-
edade ou apenas direito de pedir indenização.
Assim vota a maioria, vencido o Relator, Ministro Vilas Boas, que negava
provimento ao recurso.
Vale ainda um comentário a partir de questão levantada pelo Ministro
Victor Nunes. A desapropriação foi amigável, o que pode fazê-la assemelhada a
uma compra e venda. Nesse sentido, o Ministro Victor Nunes atenta para detalhes
da escritura — que foi de simples composição de preço e não de acordo quanto
à vontade de vender —, concluindo que a transferência de domínio se originou na
vontade unilateral expressa no decreto expropriatório e não no acordo das partes.
Ficasse caracterizada compra e venda, não haveria que cogitar de retrocessão
com base nos dispositivos legais invocados.

Recurso em Mandado de Segurança 9.549

Desapropriação de ações de companhia ferroviária —


Abusividade — Desapropriação do serviço ou das ações —
Mandado de segurança como a “ação direta” da Lei de
Desapropriações.

Cuida-se, neste caso, da desapropriação, pelo Governo do Estado de São


Paulo, das ações da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que, uma vez
estatizada, configurou-se como a Fepasa.
Como destacado pelo Ministro Relator, Ribeiro da Costa, a recorrente,
Cia. Paulista, impetrara mandado de segurança contra diversos aspectos dos
atos praticados pelo expropriante no processo de desapropriação, questionando
desde a abusividade da expropriação em si até ilegalidades em sua execução
(v.g. ausência de determinada deliberação da Assembléia Legislativa; o preço
ofertado; não-cabimento, no caso, de imissão provisória na posse).
No entanto, não foram discutidas as questões de fundo levantadas. O jul-
gamento centrou-se na análise do cabimento do mandado de segurança, para a
finalidade almejada pela recorrente.

229
Memória Jurisprudencial

Prevaleceu a tese sustentada pelo Relator no sentido de que o mandado de


segurança174 não pode ser utilizado como a “ação direta” a que se refere o art.
20175 do Decreto-Lei 3.365/41 (Lei de Desapropriações).
Votaram vencidos os Ministros Luiz Gallotti, Pedro Chaves e Gonçalves
de Oliveira, entendendo cabível apreciar determinadas questões trazidas via
mandado de segurança.
O Ministro Victor Nunes acompanha a conclusão do Relator, porém não
concorda com a tese de que a expressão “ação direta”, da Lei de Desapropria-
ções, seja excludente do mandado de segurança:
“O art. 20 da Lei de Desapropriações, quando veda o exame
de certas controvérsias no processo expropriatório, remetendo a par-
te para a ação direta, a meu ver, não remete a parte para a ação
ordinária, mas para o procedimento cabível. O procedimento será o
do mandado de segurança, se nele couber o pedido — estranho ao
processo expropriatório —, nos termos da Lei n. 1.533; em outras
palavras, se o pedido envolver questões de direito, baseadas em ma-
téria de fato incontroversa”.
Ocorre que, no caso concreto, dadas as questões específicas trazidas a
julgamento, o Ministro Victor Nunes conclui pelo não-cabimento do mandado de
segurança.
Para chegar a tal conclusão, centra-se, como argumento suficiente, na
alegação dos autores176 de que a desapropriação seria abusiva porque o Governo
do Estado de São Paulo, tendo por finalidade desapropriar o serviço ferroviário
executado pela expropriada, optou por desapropriar as ações da sociedade, o que
teria implicado a desapropriação de patrimônio não vinculado à exploração do
serviço177.
Quanto a esse argumento, o Ministro Victor Nunes conclui que sua análise
dependeria de prova — que não se apresentava pré-constituída nos autos —
quanto à existência desse patrimônio não vinculado, incompatível com a via pro-
cessual escolhida.

174 Consta da ementa do acórdão: “O mandado de segurança não deve ser manejado
como a clava nas mãos dos bárbaros possuídos de todas as iras. É remédio jurídico cuja
força drástica tem limitações postas pelo legislador bem avisado” .
175 “Art. 20. A contestação só poderá versar sobre vício do processo judicial ou
impugnação do preço; qualquer outra questão deverá ser decidida por ação direta.”
176 Que o Ministro Victor Nunes considera a questão fundamental do caso.
177 Sustentava a expropriada que o Governo deveria ter desapropriado a ferrovia e os
serviços a ela conexos.

230
Ministro Victor Nunes

Recurso Extraordinário 44.585


Terras indígenas — Sentido de “posse” constitucio-
nalmente protegida.

Discutia-se, neste caso, a aplicação do art. 216 da Constituição de 1946:


“será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanen-
temente localizados, com a condição de não a transferirem”.
No caso, por disposição de lei estadual de Mato Grosso que aprovara
demarcação das terras dos índios Caidinéos, “se, dentro de dez anos, a Inspe-
toria não houver cumprido as condições estabelecidas, e, em especial, se
não houver providenciado o aumento dos habitantes nessa região, fica o
Estado no direito de restringir a área concedida”. Passado o período, nova lei
estadual restringiu a área da reserva indígena, mantendo-a, de todo modo, em
cem mil hectares. E é essa lei que tem sua constitucionalidade questionada neste
processo: o tribunal local a considerara inconstitucional e agora recorre dessa
decisão a Assembléia Legislativa.
Em seu voto, o Ministro Relator, Ribeiro da Costa, dá razão à recorrente,
entendendo que a lei em questão não violara a Constituição ao reduzir a área
reservada aos indígenas, “pois conservou intacto o respeito à posse das ter-
ras pelos silvícolas onde os mesmos se acham permanentemente localiza-
dos”. Entendeu, assim, que a essa posse é que se referia o citado dispositivo
constitucional.
A seu turno, o Ministro Victor Nunes discorda do Relator. Entende que a
Constituição não se referiu a “posse”, nesse caso, no sentido civilista da expres-
são. E nem mesmo se trata de propriedade. O que se reservou foi o “território”
dos índios, com o objetivo de que “ali permaneçam os traços culturais dos
antigos habitantes, não só para sobrevivência dessa tribo, como para estu-
do dos etnólogos e para outros efeitos de natureza cultural ou intelectual”.
A palavra “posse”, no dispositivo da Constituição, deveria ser entendida
como utilização da área como “ambiente ecológico”, território em que se vive
com as características culturais primitivas.
E continua:
“Se os índios, na data da Constituição Federal, ocupavam deter-
minado território, porque desse território tiravam seus recursos ali-
mentícios, embora sem terem construções ou obras permanentes que
testemunhassem posse de acordo com o nosso conceito, essa área, na
qual e da qual viviam, era necessária à sua subsistência. Essa área,
existente na data da Constituição Federal, é que se mandou respeitar.
.
231
Memória Jurisprudencial

Se ela foi reduzida por lei posterior; se o Estado a diminuiu em dez mil
hectares, amanhã a reduziria em outros dez, depois, mais dez, e poderia
acabar confinando os índios a um pequeno trato, até ao território da
aldeia, porque ali é que a ‘posse’ estaria materializada nas malocas.
Não foi isso que a Constituição quis”.
Nesse sentido, nega provimento ao recurso, declarando inconstitucional a
referida lei estadual que restringiu o parque indígena. E foi acompanhado pela
maioria, vencidos os Ministros Ribeiro da Costa e Pedro Chaves.

Mandado de Segurança 16.443

Caracterização das terras indígenas e seus frutos


como bens públicos — Formalidades para alienação.

O caso concreto subjacente a esse processo é uma concorrência que fora


aberta para a venda de “50.000 pinheiros do Patrimônio Indígena”, situados
em reserva do Estado do Paraná.
Concluída a licitação e paga parte do preço pela ora impetrante, outra
concorrente pleiteou a nulidade do certame, por desrespeito a certas formalidades
da lei de regência das concorrências públicas. Em conseqüência, o Presidente da
República anulou a concorrência em ato que é objeto deste mandado de segurança.
Deixando de lado as questões atinentes às formalidades então exigidas em
uma concorrência, discutia-se, no caso, a necessidade de se proceder a uma
concorrência pública propriamente dita, com todos os rigores, para que se ven-
desse patrimônio indígena.
Segundo a impetrante, o patrimônio indígena não estaria no mesmo nível
do patrimônio público, “não se encontrando os silvícolas proscritos da ordem
jurídica”. Desse modo, não seria necessária a aplicação das normas legais so-
bre alienação dos bens públicos.
O Relator, Ministro Barros Monteiro, no entanto, nega razão à impetrante,
lembrando que “hoje em dia (...) não há mais que se questionar a respeito,
em face do preceito do art. 4º da vigente Constituição178, que, entre os bens
da União, incluiu, em seu inciso IV, as terras ocupadas pelos silvícolas”. E,
no art. 186, previu ainda o usufruto exclusivo dos índios quanto aos recursos
naturais existentes nessas terras.

178 A de 1967. Já a Constituição de 1946 não trazia tal previsão, apenas se referindo ao
respeito à “posse” dos índios, como visto no caso anteriormente analisado.

232
Ministro Victor Nunes

Há, pois, que se aplicar à alienação dos pinheiros em questão as normas


atinentes à alienação de bens públicos.
Concordando com as conclusões do Relator, o Ministro Victor Nunes faz,
todavia, uma ressalva, para firmar o entendimento de não se poder afirmar que é
sempre aplicável às terras ocupadas pelos índios e aos seus frutos a mesma
disciplina jurídica dos demais bens públicos.
Lembrando o julgamento do RE 44.585, em que se invocou o art. 216 da
Constituição de 1946 — segundo o qual não apenas a posse das terras habitadas
pelos índios seria respeitada como também não poderia ser transferida, nem pelos
próprios silvícolas —, acrescenta que a Constituição de 1967 (art. 186) foi além,
reconhecendo aos índios direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de
todas as utilidades existentes nas terras por eles ocupadas.
Em seu modo de pensar, o regime traçado pela Constituição de 1967 leva
à conclusão de que outras condições, além das normalmente previstas para a
alienação de bens públicos, podem ser impostas para a alienação de frutos das
terras indígenas:
“pela Constituição, mesmo a alienação de certos frutos dessas
áreas pode ficar dependendo de condições que não sejam normal-
mente exigidas para a alienação dos bens públicos em geral. No
caso, trata-se da venda de pinheiros. Não posso saber em que medida
a permanência dos pinheirais, como árvores vivas, deva ser conside-
rada elemento essencial ao habitat dos silvícolas”.
E, ainda que não esteja em questão nesse caso, observa, quanto a alienação
das próprias terras ocupadas pelos índios,
“que o simples fato de pertencerem à União (...) não as sujeita
integralmente ao regime legal dos bens públicos, dado o seu caráter
de inalienabilidade. Não está envolvida, no caso, uma simples ques-
tão de direito patrimonial, mas também um problema de ordem cultu-
ral, no sentido antropológico, porque essas terras são o habitat dos
remanescentes das populações indígenas do País. A permanência
dessas terras em sua posse é condição de vida e de sobrevivência
desses grupos, já tão dizimados pelo tratamento recebido dos civili-
zados e pelo abandono em que ficaram”.

233
APÊNDICE
Ministro Victor Nunes

INQUÉRITO POLICIAL 2 — GB
(Tribunal Pleno — Matéria Constitucional)
Por força do art. 16, I, do AI 2, de 27-10-65, com efeito
retro-operante, a suspensão dos direitos políticos acarreta,
simultaneamente, a cessação da competência por prerroga-
tiva de função. A cessação da competência ratione personae
constitui efeito imediato da suspensão dos direitos políticos.
Os efeitos da suspensão dos direitos políticos, taxativamente
enumerados no art. 16 do AI 2, aprovados pelo art. 173 da CF,
que os procurou resguardar, hão de viger no decurso do prazo
da suspensão. Inaplicabilidade do art. 144 da CF de 1967.
A norma ínsita no art. 114, I, a, da Carta Política de 1967,
não se aplica àqueles que tiveram suspensos seus direitos
políticos.
Competência da Justiça Federal do Estado da Guanabara
para processar e julgar o ex-Presidente João Goulart.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Já esclareci, em aparte, que, ao ser julgado o
pedido de remessa da AP 157 à Justiça Militar, em 13-3-67, a questão, que ora se
discute, não tinha sido focalizada.
Certa vez, o eminente Ministro Lafayette de Andrada observou em tom
amistoso: O Ministro Victor Nunes, em vez de julgar o processo, fica suscitando
problemas!
Na AP 157, procurei não incidir nessa censura. Como de outras vezes o
Tribunal havia atendido a requerimento idêntico do Procurador, deixei para apre-
ciar a matéria, ora em debate, quando ela fosse discutida nos autos.
Se a questão tivesse sido posta naquela oportunidade, eu teria votado
como agora se pronunciou o Senhor Ministro Gonçalves de Oliveira. Lembro a
respeito as considerações que fiz, incidentemente, na sessão de 6-12-67, ao
julgarmos o MS 17.957, impetrado a este Tribunal pelo ilustre advogado Dr.
Sabóia de Medeiros.
Argumentei, então, que a Constituição havia aprovado os atos do Governo
revolucionário e, portanto, teria aprovado o ato contra cujos efeitos a impetrante
se insurgira, ponderando que esses efeitos se chocavam com o princípio constitu-
cional do direito adquirido. Disse eu naquela oportunidade:
“Não desejo prolongar mais... (lê voto escrito) ...não é possível
haver, simultaneamente, duas regras constitucionais”.

237
Memória Jurisprudencial

Essa mesma observação foi feita, há pouco, pelo Sr. Ministro Themistocles
Cavalcanti. Prossigo na leitura daquele meu voto:
“(...) não é possível haver, simultaneamente, duas regras
constitucionais... (lê voto escrito) ...espírito da Constituição”.
No caso presente, o que se pretende é fazer sobreviver, em face da Cons-
tituição em vigor, um ato normativo incompatível com ela, o qual, por seu caráter
de exceção, tinha vigência por prazo predeterminado.
Dir-se-á que a suspensão de direitos, ora em discussão, resultou de um ato
pretérito, que se deve ter por aprovado, mesmo em face das considerações que
fiz na sessão de 6 de dezembro.
A objeção não procederia, porque aqui não estamos discutindo a validade do
ato de suspensão de direitos políticos. O que estamos discutindo é um problema
de competência para julgar processo que ainda está pendente.
Em matéria de competência, só se pode falar em ato consumado quando a
autoridade o tenha praticado no tempo em que tinha tal competência. Se o pre-
sente processo tivesse sido julgado pela Justiça Militar antes da vigência da atual
Constituição, teríamos uma situação consumada, porque a competência teria sido
exercida legitimamente, ao tempo em que o ato institucional a conferia à Justiça
Militar e não ao Supremo Tribunal. Mas, ainda não julgado o processo, que nem
se iniciou por não ter havido denúncia, prevalece integralmente a competência
originária do Supremo Tribunal, que a Constituição de 67 restabeleceu, sem dis-
tinguir entre acusados com direitos políticos suspensos ou na plenitude dos seus
direitos políticos.
Acompanho, Sr. Presidente, o voto do eminente Ministro Relator, enrique-
cido pelas brilhantes considerações dos Srs. Ministros Themistocles Cavalcanti,
Adaucto Cardoso, Evandro Lins e Hermes Lima.
VOTO
(Questão de ordem)
O Sr. Ministro Victor Nunes: De começo, eu me inclinava pela necessida-
de da maioria especial, mas fui alertado pelo Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira
para o fato de estar sendo confrontada com a Constituição outra norma — de ato
institucional —, a que geralmente se tem atribuído a categoria de norma constitu-
cional. Não há problema de inconstitucionalidade no confronto de duas normas
de categoria constitucional. A inconstitucionalidade pressupõe o exame de uma
norma subordinada em face da Constituição.
Acompanho os Srs. Ministros Gonçalves de Oliveira e Thompson Flores.

238
Ministro Victor Nunes

VOTO
(Questão de ordem levantada pelo Senhor Ministro Themistocles Cavalcanti
sobre inconstitucionalidade).
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O eminente Ministro Themistocles Cavalcanti está agora dando relevo a
um ponto que, realmente, constava da fundamentação do seu voto, mas que ficou
um pouco obscurecido pela discussão em torno de haver ou não argüição de
inconstitucionalidade que só pudesse ser acolhida por nove votos.
Ao votar pela dispensa da maioria qualificada, observei que estavam em
confronto duas normas da mesma categoria, já que os atos institucionais, no entendi-
mento corrente, estão no plano das normas constitucionais.
Mas a ponderação, em que acaba de insistir o eminente Ministro
Themistocles Cavalcanti, me leva a reconsiderar meu voto. Os atos institucionais
têm sido considerados de categoria constitucional no período de sua plena vigên-
cia. Aqui se discute se tais normas sobrevivem na vigência da nova Constituição;
e também, no caso de sobreviverem, em que categoria deverão ser situadas.
Parece-me incontestável que elas não podem sobreviver como normas
constitucionais, como sustentei no caso das Docas da Bahia, onde salientei a
impossibilidade de coexistirem dois sistemas constitucionais colidentes. Portan-
to, Sr. Presidente, ao sobreviverem essas normas pretéritas, constantes dos
atos institucionais, terão elas de ficar situadas em categoria inferior à da Cons-
tituição. Já não teremos normas de mesma hierarquia, que era o pressuposto do
meu voto.
Reconsidero, pois, o meu pronunciamento, entendendo que é necessário o
voto de nove juízes para ser declarada a inconstitucionalidade.

EXTRADIÇÃO 232 — CUBA


Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes
Requerente: Governo de Cuba — Extraditando: Arsênio Pelayo Hernandez
Bravo
A situação revolucionária de Cuba não oferece garantia
para um julgamento imparcial do extraditando, nem para que
se conceda a extradição com ressalva de não se aplicar a pena
de morte. 2. Tradição liberal da América Latina na concessão

239
Memória Jurisprudencial

de asilo por motivos políticos. 3. Falta de garantias conside-


rada não somente pela formal supressão ou suspensão mas
também por efeito de fatores circunstanciais. 4. A concessão
do asilo diplomático ou territorial não impede, só por si, a
extradição, cuja procedência é apreciada pelo Supremo Tribu-
nal, e não pelo Governo. 5. Conceituação de crime político
proposta pela Comissão Jurídica Interamericana, do Rio de
Janeiro, por incumbência da IV Reunião do Conselho Interamericano
de Jurisconsultos (Santiago do Chile, 1949), excluindo “atos
de barbaria ou vandalismo proibidos pelas leis de guerra”,
ainda que “executados durante uma guerra civil, por uma ou
outra das partes”.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos acima identificados, acordam os
Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da
ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, negar a
extradição.
Brasília, 9 de outubro de 1961 — Ribeiro da Costa, Presidente — Victor
Nunes, Relator.

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Governo de Cuba solicitou ao do Brasil a
extradição do cidadão cubano Arsenio Pelayo Hernandez Bravo, nos termos da
seguinte carta rogatória do Juiz de Instrução de Sancti-Spiritus (fl. 34):
“Em cumprimento ao disposto no Processo número 1993, de 1959,
por delito de assassinato, tenho a honra de passar-lhe a presente
Rogatória para que, se a acolher, se digne dar-lhe o curso correspondente,
para os fins de se solicitar, pelo Governo Revolucionário da República de
Cuba ao da República do Brasil a extradição do processado no referido
processo, Arsenio Pelayo Hernández Bravo, para o que se faz constar o
seguinte:
Primeiro: que o delito imputado ao acusado, cuja extradição se
pretende e pelo que foi processado no dito Processo, por auto de data de
19 de março 1960, com exclusão de toda fiança para gozar de liberdade
provisória, é o de assassinato, previsto no artigo 431-A-2-3-4-5-8-9 do
Código de Defesa Social, que diz: É réu de assassinato quem matar a
outrem concorrendo alguma das seguintes circunstâncias: 2) Ter cometido
o delito em virtude de ordem arbitrária da autoridade ou de seus agentes.
3) Ter usado de perfídia. 4) Ter empregado assanhamento. 5) Ter agido
com premeditação patente. 8) Ter agido por impulsos sádicos ou de

240
Ministro Victor Nunes

perversidade brutal. 9) Ter precedido o homicídio, o rapto, o seqüestro ou


seqüestro para obter resgate, do morto, ou a detenção arbitrária ou ilegal
do mesmo.
Segundo: que as generalidades e sinais particulares do processado,
cuja extradição se interessa, são os seguintes: Arsenio Pelayo
Hernández Bravo, natural de Consolación del Sur, província de Pinar del
Río, de trinta e sete anos de idade, de Estado civil solteiro, filho de Pedro
Antonio y Bruna, ex-guarda rural do Governo da ditadura presidida por
Fulgencio Batista y Zaldívar, de cabelos castanhos, olhos pardos, pele
branca e uma estatura de seis pés e três polegadas.
Terceiro: que o delito imputado ao processado foi cometido na
jurisdição da República de Cuba, no distrito judicial de Sancti-Spiritus,
província de Las Villas, presumindo-se que o dito processado tenha
procurado refúgio na República do Brasil, para cujo país saiu com salvo-
conduto no dia 27 de março de 1960, para não responder às acusações
que pesam contra o mesmo ante os tribunais cubanos.
Quarto: à presente Rogatória, acompanham as seguintes certidões:
A) Auto de processo e as provas que foram levadas em conta como
indícios racionais de responsabilidade criminal para ditar o auto
mencionado. B) De que na data em que se cometeu o delito, 24 de outubro
de 1957, se encontrava em vigor o Código de Defesa Social, (Código
Penal de Cuba), em cujo artigo 431-A-2-3-4-5-8-9 se encontra definido o
delito pelo qual se processou o acusado Arsenio Pelayo Hernandez Bravo,
assim como o tempo da sanção imputável e o preceito que assinala o
mesmo. C) Do mandado de prisão e a informação do funcionário
encarregado de cumpri-lo, explicando os motivos de não tê-lo podido
cumprir. D) De que o secretário que visa as autuações se acha no
exercício do cargo.
Todos os documentos anexos são em duplicata, para fins de serem
traduzidos para o idioma do país a que se insta a extradição pelos
tradutores do Ministério do Estado.
Quinto: que a extradição interessada se verifica com amparo no
preceituado nos artigos 351, 352 e 354 do Código de Bustamante, em
virtude de não ter o Governo de Cuba celebrado tratado de extradição
com a República do Brasil, cujos dois governos assinaram e ratificaram o
dito tratado, fazendo-se ao Governo da República do Brasil a promessa de
reciprocidade em casos análogos. De V. Sa. com a maior consideração e
respeito (as) Dr. José A. Montesino, Juiz de Instrução.”

241
Memória Jurisprudencial

Contra o extraditando, citado por edital (fl. 41v), fora expedida, em 19-3-
1960, a seguinte ordem judicial de prisão preventiva (fl. 48):
“Auto do Juiz, Senhora Doutora Lydia M. Yiock Gutierrez. Sti-
Spiritus, 19 de março de 1960. Dada conta: Resultando: Que do autuado
até agora no presente sumário, número 1993 de 1959, pelo delito de
homicídio, aparece que no dia 24 de outubro de 1957, quando o Dr. Jorge
Ruiz Ramírez, vizinho que era do povoado de Taguasco, neste Distrito,
vinha em direção a esta cidade procedente do referido povoado, no
automóvel de Agapito Moya Soriano, com o propósito de internar numa
clínica o jovem Pedro Rodríguez Palmero, que se achava ferido, foram
interceptados antes de chegar a esta cidade por membros do Exército da
derrocada Tirania, sob o comando do acusado, então Tenente do dito
corpo Armando Campos León, cujas generalidades constam, os quais já
tinham notícias do transporte do ferido por um aviso telefônico feito de
Taguasco pelo também acusado Isidro D. Figueroa, sendo conduzidos ao
quartel desta cidade, onde foi assassinado o Dr. Ruiz Ramírez e levado
seu cadáver posteriormente e junto com o motorista e o jovem ferido até
um lugar próximo de Jiquima de Pelaez, onde foram metralhados os dois
últimos, juntamente com o cadáver do primeiro, deixando-os abandonados
no referido lugar, participando ademais desses eventos os também
acusados José González e Arsenio Hernández Bravo. Resultando: que
instruído de acusações, o acusado Armando Campos León negou-as e
declarou o que achou conveniente, não assim os demais acusados por não
ser havidos. Considerando: que os fatos anteriormente relatados
revestem os caracteres de um delito de homicídio, previsto e sancionado
segundo o artigo 431-2-3-4-5-8 e 9 do Código de Defesa Social e que do
autuado até agora existem indícios racionais de criminalidade contra os
acusados Armando Campos León, José González González, Arsenio
Hernandez Bravo e Isidro D. Figueros, pelo que se está no caso de dirigir
contra os mesmos este processo, consoante o disposto no art. 384 da Lei
de Processo Criminal. Considerando: que em atenção à natureza do
delito e sanção que em definitivo se possa impor aos acusados, o que
resolve estima necessária sua prisão preventiva com exclusão de toda
fiança. Considerando: que toda responsabilidade criminal origina outra
civil. Vistos os artigos 1, 15, 17, 25, 27, 51 e demais concordantes do
Código de Defesa Social, os 502, 503, 529 e 589 da Lei de Processo
Criminal e a Ordem 109 de 1899. Declara-se público o presente
sumário, e processados pelo delito de homicídio os acusados Armando
Campos Leon, branco, filho de Rogelio e de Mariana, natural de
Cabaiguán, de 56 anos de idade, casado, ex-tenente do Exército, com

242
Ministro Victor Nunes

instrução e recluso no Reclusório Nacional para homens da Ilha de Pinos;


José Gonzalez Gonzalez, ex-soldado do Exército e cujas demais
generalidades se ignora; Arsenio Hernandez Bravo, ex-soldado do
Exército e cujos dados e domicílio também são ignorados e Isidro
Figueroa, branco, de 52 anos de idade, casado, com instrução, ex-
soldado, filho de Juan e de Sotera, e cujo domicílio se ignora; e se decreta
sua prisão preventiva com exclusão de toda fiança, instruindo-se-lhes
dos direitos e recursos que lhes concede a Lei”.
O processo fora iniciado perante Tribunal Revolucionário, passando para
a jurisdição ordinária, em virtude de uma lei de 1959, conforme consta do traslado
(fl. 38v):
“Resultando: que o presente juízo se instrui pelo fato da
competência deste Tribunal Revolucionário, de conformidade com o
estatuído no Regulamento n. 1 do Exército Rebelde, promulgado em
Sierra Maestra aos 21 de fevereiro de 1958. Considerando: que o art. 14
da Lei n. 425 de 1959, publicada na Gazeta Oficial de data de 9 de julho
último, se declarou cessada a competência dos Tribunais Revolucionários
para conhecer dos delitos cometidos por militares e civis ao serviço da
Tirania, previsto e sancionado no Regulamento n. 1 do Exército Rebelde,
promulgado em Sierra Maestra, e que, no sucessivo, a jurisdição ordinária
será a única competente para conhecer dos referidos delitos, pelo que é
procedente deduzir traslado dos lugares pertinentes e remetê-lo à
jurisdição ordinária na forma que se dirá”.
Transcreve-se, no traslado, o dispositivo legal aplicável, art. 431 A, 2, 3, 4,
5, 8, 9 do Código de Defesa Social, nestes termos (fl. 51v):
“Artigo 431. A) É réu de homicídio quem matar a outrem
concorrendo alguma das seguintes circunstâncias: 2) Ter cometido o
delito em virtude de ordem arbitrária da autoridade ou seus agentes. 3)
Ter usado de perfídia. 4) Ter empregado de assanhamento. 5) Ter agido
com premeditação patente. 8) Ter agido por impulsos sádicos ou de
perversidade brutal. 9) Ter precedido o homicídio, o rapto, o seqüestro ou
seqüestro para obter resgate, do morto, ou a detenção arbitrária ou ilegal
do mesmo”.
Veio, igualmente, este esclarecimento quanto à pena aplicável e quanto à
vigência da lei (fl. 56v):
“Eu, Doutor Jose A. Montesino y Rodriguez, Juiz de Instrução
de Sancti-Spiritus e sua Divisão Judicial, certifico que o delito de homicídio
pelo qual se radicou por este Juizado a Causa número 1993 de 1959, está

243
Memória Jurisprudencial

previsto e cominado no artigo 431-2-3-4-5-8 e 9 do Código de Defesa


Social, que se encontra vigente nesta República de Cuba desde o dia 9
outubro de 1938. Aparecendo no inciso B) do retro mencionado artigo como
pena para este delito a de vinte anos de privação de liberdade à de morte.
Que o Código de Defesa Social e seu Artigo 431 se encontravam
em vigor no dia 24 de outubro de 1957, data esta em que sucederam os
fatos que são atribuídos ao processado Arsenio Pelayo Hernández Bravo,
e ainda está em vigor nesta República de Cuba”.
Ao ser interrogado (fl. 62), negou o extraditando sua participação no delito,
e, como não houvesse constituído advogado, nomeei-lhe o Dr. Claudio Penna
Lacombe, que ofereceu a defesa de fl. 67.
Foi-lhe concedida, dias depois, liberdade vigiada, por decisão do Supremo
Tribunal (fls. 93 e segs.).
A requerimento do advogado, solicitei informações ao Sr. Ministro das
Relações Exteriores (fl. 66), que as prestou nos seguintes termos (fl. 104):
“Em resposta, cumpre-me informar Vossa Excelência de que a
Embaixada do Brasil em Havana procedeu de acordo com as normas
internacionais que regem a matéria, concedendo asilo diplomático ao
cidadão cubano em apreço, ao verificar que o mesmo se encontrava em
perigo de ser privado de sua liberdade por motivos de perseguição política.
Tratava-se de caso de urgência e o asilo foi concedido pelo tempo
necessário para que o Senhor Arsenio Pelayo Hernandez y Bravo
deixasse o país com as garantias do Governo de Cuba.
No que concerne ao asilo territorial, a sua concessão decorreu do
asilo diplomático, tendo o asilado em questão partido para o Brasil em 27
de março de 1960, conforme comunicação feita pelo Departamento
Político e Cultural do Ministério ao Departamento do Interior e Justiça do
Ministério da Justiça, pelo aviso verbal n. DPo/180/922.31 (24h) (42), de 6
de abril daquele ano”.
Na defesa do Dr. Claudio Lacombe, assinalo os lances que contêm sua
argumentação principal:
“Não há dúvida de que os objetivos a que se propusera o Sr. Fidel
Castro na histórica defesa, A história me absolverá (History will
Absolve Me, New York, Liberal Press 1959), foram realizados
parcialmente. A lei da reforma agrária foi promulgada, os aluguéis foram
drasticamente reduzidos, as cidades-escola estão em construção. Não
tiveram, porém, os novos dirigentes de Cuba, a serenidade ou habilidade
necessárias para superar as suas dúvidas e contradições internas (...).

244
Ministro Victor Nunes

Estimulados pela ausência inicial de reação, foram intensificando


providências, cuja violência e caráter ditatorial se acentuavam à medida
que a dinâmica interna da própria posição assumida forçava o governo
revolucionário a cobrir erros ou a esmagar resistências. E a mesma
platéia que acompanhava vibrante e comovida a jornada gloriosa da
revolução, assiste, com surpresa e decepção, ao espetáculo terrível dos
brutais atentados cometidos contra a vida, a liberdade e a propriedade dos
cidadãos cubanos. (...) À luz dessa situação de fato criada pelo novo
Governo do Estado requerente, que é do conhecimento de todos, deve ser
apreciado o presente pedido de extradição. Dispõe o art. 2º do Decreto-
Lei n. 394, de 28 de abril de 1938:
‘Não será, também, concedida a extradição, nos seguintes
casos:
VI - quando o extraditando tiver que responder, no país
requerente, perante juízo ou tribunal de exceção.’
O princípio estava inscrito no art. 2º, IV, da Lei n. 2.416, de 28-6-
1911, e é da tradição do direito extradicional. (...) No caso submetido à
apreciação do E. Tribunal, o Estado requerente informa que o
extraditando está sendo processado pela justiça comum, havendo,
segundo se afirma, cessado a competência dos tribunais revolucionários.
Ora, é público e notório, porém, que a justiça cubana se acha
integralmente submetida ao governo revolucionário. Em 21-12-60 foi
realizada uma reforma judiciária (doc. n.1) por decreto do Executivo,
que autoriza o Presidente da República e o gabinete a demitirem e
nomearem livremente os magistrados. E no mesmo decreto, aboliu-se o
Tribunal de Garantias Constitucionais e Sociais, criado no art. 182 da
Constituição de Cuba, de 1940, que o Governo revolucionário afirma
haver restabelecido. A demonstração mais eloqüente da absoluta
ausência de garantias à uma distribuição de justiça imparcial e serena é o
recente episódio da fuga do Presidente da Corte Suprema (doc. n. 2),
conduzido a este gesto extremo, por haver protestado contra a prisão e o
espancamento do Dr. Elio Alvarez, também Juiz do Supremo Tribunal.
(...) O que se verifica, portanto, com base no testemunho dos
observadores mais insuspeitos e no noticiário da imprensa mundial, é que
Cuba não oferece, no momento atual, as condições indispensáveis a uma
aplicação de justiça isenta, a garantia jurídica que decorre da
independência do Poder Judiciário. E como tribunal de exceção deve
entender-se não apenas o constituído post factum para as necessidades
da causa, mas todo aquele que não ofereça garantias de independência e
estabilidade (...). Que garantia de isenção pode oferecer o atual regime

245
Memória Jurisprudencial

cubano para o julgamento de um ex-soldado do antigo governo, acusado


de, em plena revolução, haver concorrido para o fuzilamento de um
estudante revolucionário, ferido quando fugia, após o assalto malogrado
de uma guarnição militar, fiel ao Sr. Fulgencio Batista? (...) Que valor teria
o compromisso a ser exigido do atual Governo cubano de aplicar o art. 378
do Código Bustamante, em que se baseia o pedido de extradição, quando
se sabe que o chefe da patrulha, que se afirma haver cometido o
assassinato, já foi fuzilado, conforme se verifica pelo documento de fl. 11?
(...) A defesa confia em que este argumento, por si só, prevalecerá como
razão suficiente para o indeferimento do pedido de extradição. Repugna à
consciência jurídica do Brasil a entrega de um homem, antecipadamente
condenado à morte, por um simulacro de julgamento, em que as garantias
da defesa são suprimidas ou reduzidas ao mínimo. (...) Dispõe o art. 141,
§ 33, da Constituição Federal, em termos incisivos:
‘Não será concedida a extradição de estrangeiro por crime
político ou de opinião e, em caso nenhum, a de brasileiro.’
(...) A defesa se propõe a demonstrar que o delito de que é acusado
o extraditando — cuja autoria se nega peremptoriamente — é um
crime político e, como tal, exclui a possibilidade da extradição, de acordo
com o preceito constitucional. Como delito político se entende ‘o que
atente diretamente contra a personalidade do Estado, lesando ou
ameaçando de lesão a independência nacional, a integridade do território,
as relações do Estado com os demais Estados, o regime político ou a
forma de governo, a formação e atividade dos poderes públicos’ (Nelson
Hungria, Comentários, v. I, tomo I, p. 187). (...) Cumpre assinalar: a) o
delito teria sido cometido em plena revolução; b) aceita como verdadeira
a denúncia, o extraditando seria soldado do exército de Batista e, no
momento da infração, participava de uma patrulha comandada pelo
capitão Mirabal y Mirabal; c) o fuzilamento teria sido assistido e apoiado
pelo comandante do destacamento de Sancti-Spiritus, Tenente Portela; d)
as vítimas passavam pelo povoado, fugindo à perseguição que lhes era
movida pelas tropas do governo, depois de haverem assaltado o posto da
guarda rural de Taguaco, onde haviam ‘dado muerte al Teniente y a un
soldado del puesto’ (fl. 20).
O delito, portanto, teria sido cometido durante a guerra civil,
deflagrada contra o regime político em vigor. E o extraditando era soldado,
devendo obediência aos seus superiores hierárquicos, empenhados na
defesa desse mesmo regime, cuja legitimidade não lhe competia julgar. A
apreciação do caráter político do delito deve ser feita, no caso, por um
critério ainda mais favorável. Não se trataria de um crime cometido por

246
Ministro Victor Nunes

um guerrilheiro rebelde, mas por um soldado a serviço do regime


constituído (...). Objeta-se, no entanto, que em se tratando de assassinato,
infração penal capitulada na lei comum, esta caracterização absorveria o
conteúdo político do delito. O sistema da prevalência admite a extradição
quando o delito comum prevalece sobre o político. O da causalidade exclui
a extradição ‘quando os crimes políticos relativos ocorram por ocasião ou
no curso de uma insurreição ou guerra civil’ (Nelson Hungria, ob. e loc.
cit. p. 182). À primeira vista poderia parecer que a nossa lei sobre
extradição adota o sistema de prevalência, sem restrições. Diz, com
efeito, o art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei n. 394:
‘A alegação do fim ou motivo político não impedirá a
extradição, quando o fato constituir, principalmente, uma infração
comum da lei penal, ou quando o crime comum, conexo dos
referidos no inciso VII, constituir o fato principal.’
(...) Parece-nos que o preceito se dirige às infrações de caráter
individual em que o elemento psíquico é predominante, no sentido de que a
finalidade política é deliberada, pensada, pelo agente. A disposição legal se
dirigiria aos atentados cometidos por um indivíduo, em tempo de paz, contra
personalidades políticas em evidência. Os exemplos são abundantes na
história. (...) Não pode ser aplicado o artigo acima reproduzido ao caso dos
autos. Não se pode falar aqui de um fim ou motivo para o ato de que se
acusa o extraditando. Admitindo-se como verdadeira a acusação, a ação da
patrulha a que pertencia o extraditando, na condição de comandado, não foi
mais que uma medida de represália imediata a um ataque de um grupo de
revolucionários a um posto militar, no auge de uma guerra civil. (...) Ao se
interpretar o dispositivo de outra forma, teríamos que negar a natureza
política de todo e qualquer crime em que se empregasse a violência
física, em qualquer circunstância, pois prevaleceria sempre a fisionomia
de infração comum. (...) Ao caso, é de direito e de justiça aplicar-se o art.
355 do Código Bustamante, verbis:
‘Estão excluídos da extradição os delitos políticos e os com
eles relacionados, segundo a definição do Estado requerido.’
É o sistema da causalidade reconhecido pelo próprio Estado reque-
rente, que fundamentou o pedido nas disposições desse diploma de direito
internacional. (...) O extraditando foi, portanto, reconhecido oficialmente
pelo Governo brasileiro como criminoso político, recebendo das autorida-
des competentes o tratamento dispensado aos refugiados por crime dessa
natureza e, não só, obteve o asilo diplomático, como o territorial, o que
importa no reconhecimento implícito, por parte do Estado requerente, da
natureza política das infrações que porventura houvesse praticado. Dessa

247
Memória Jurisprudencial

circunstância decorrem conseqüências importantíssimas. O eminente Mi-


nistro Nelson Hungria assinala com precisão (...) que, uma vez concedido o
asilo àquele que o pede, cria-se para o asilado uma condição ou entrega
a outro país. Essa conclusão decorre inequivocamente da análise do texto
da Convenção de Havana de 1928, ratificada por Cuba e pelo Brasil. (...) O
Governo brasileiro está, portanto, oficialmente vinculado, por seu represen-
tante (e trata-se de um dos nossos mais ilustres diplomatas), à tese de que o
extraditando era perseguido por razões de ordem política, não podendo
mais, a essa altura, recuar dessa atitude. (...) A defesa (...) confia na sere-
nidade, na isenção, na sabedoria e no espírito de humanidade dos eminentes
julgadores e está certa de que a Suprema Corte do Brasil não concederá a
medida que importaria em condenar o extraditando à morte”.
A douta Procuradoria-Geral da República assim se manifestou (fl. 106):
“Pela não concessão do pedido. O extraditando recebeu asilo em
nossa própria Embaixada, em Havana, reconhecendo:
‘que o mesmo se encontrava em perigo de ser privado de sua
liberdade por motivos políticos (doc. fl. 104)’
e foi a nossa embaixada que promoveu a sua vinda para o Brasil
(doc. fl. 105).
Como, pois, conceder a extradição do mesmo preso político, que a
nossa Embaixada reconheceu estar perseguido tão só por crime político?
Acresce mais que o atendimento da extradição poderia importar na execução
do extraditando, e a nossa lei não permite atender pedido de extradição que
fosse resultar no julgamento do criminoso, político ou comum”.
É o relatório.

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Nego a extradição. Cumpro, inicial-
mente, o dever de louvar o ilustre Dr. Claudio Lacombe pela notável defesa que
produziu; este reconhecimento público é a única retribuição que recebe, em tais
casos, o advogado ad hoc.
Não posso, todavia, perfilhar integralmente a sua argumentação, o que me
obriga a motivar mais explicitamente este voto.

—I—
O crime imputado ao extraditando é punido, segundo a lei cubana, com
vinte anos de prisão, no mínimo, e, no máximo, com a morte (fl. 56v), constando
dos autos que o chefe da patrulha responsabilizada pelo assassinato das três
vítimas já foi fuzilado (fls. 41 e 42v).

248
Ministro Victor Nunes

Embora a lei brasileira admita, em tais casos, a extradição, mediante


compromisso do Estado requerente de comutar na de prisão a pena de morte
(Decreto-Lei 394, de 28-4-38, art. 12, d), a situação revolucionária existente em
Cuba não oferece plena garantia a essa ressalva, tanto mais que não há, entre os
dois países, tratado de extradição. Esta mesma situação revolucionária, a julgar
por fatos de conhecimento notório, exclui a convicção de que seja regular e cer-
cado de plenas garantias o julgamento a que seria submetido o extraditando.
Reporto-me, a esse respeito, às considerações desenvolvidas pela defesa.
É certo que nossa lei não prevê, especificamente, esse motivo excludente
da extradição, porque o art. 2º, VI, se refere ao julgamento do extraditando por
“tribunal ou juízo de exceção”, que não é a mesma coisa.
Mas pelo ratio legis, as duas situações se aproximam. A falta de garantias,
que se presume no tribunal de exceção, é que fundamenta aquela ressalva ao
princípio geral da extradição. E a falta de garantias reais é que compromete os
próprios tribunais comuns durante uma situação revolucionária, em que o Gover-
no se reserva poderes discricionários. No primeiro caso, a configuração do pró-
prio órgão judicante é que obsta a extradição; no segundo, é a ambiência política,
agitada pelo espírito da revolução e marcada pela ilimitação dos poderes do go-
verno, que pode comprometer o funcionamento dos próprios tribunais ordinários.
Numa ou noutra situação, está em risco a liberdade, a segurança ou a vida do
extraditando, e são esses bens superiores que a lei quer proteger, quando veda a
entrega de quem vai ser julgado por juízo de exceção.
A assimilação das duas situações já se acha mais bem elaborada na doutri-
na do asilo político, de onde podemos extrair subsídios para o instituto da extradi-
ção. Quando se reclama a extradição de um asilado, o que se pede, afinal, é a
cessação do asilo, sendo, pois, de toda pertinência recorrer, em tal caso, à doutri-
na do asilo.
A esse respeito, como é sabido, as nações latinas da América possuem
uma tradição jurídica bastante liberal, seja nas suas convenções e atas internacio-
nais, seja, principalmente, nos usos da sua diplomacia.
O jurisconsulto colombiano José Joaquim Caicedo Castilla, representante
de seu país na Comissão Jurídica Interamericana, autoridade internacionalmente
reconhecida no assunto, criticou, com justeza, em nome da tradição americana, a
orientação restritiva de um famoso julgado da Corte de Justiça Internacional de
Haia, de 20 de novembro de 1950. Conceituando o requisito da urgência, susten-
tou a Corte que o asilo não protege “contra a aplicação regular das leis e a
jurisdição dos tribunais legalmente constituídos”. O juiz colombiano votou vencido,
nessa oportunidade, sustentando que, “com semelhante interpretação, nenhum
dos centenares de casos de asilo ocorridos na América nos últimos anos poderia
justificar-se”.

249
Memória Jurisprudencial

Caicedo Castilla, que relembra o episódio, comenta: “O que sucede é que


a instituição do asilo oferece modalidades especiais na América Latina em razão
de condições históricas, políticas, geográficas e jurídicas peculiares a essa região
do mundo. Portanto, essas questões do asilo na América devem estudar-se tendo
em conta o meio social respectivo e as normas do direito internacional america-
no” (El Derecho de Asilo, Madrid, 1957, p. 454).
Cita o ilustre internacionalista uma notável página do saudoso Filadelfo
Azevedo sobre as características do asilo na América, da qual retiro essa passa-
gem, apropriada ao caso presente: “Os períodos de anormalidade constitucional
são um dos elementos essenciais para apreciar o perigo que ameaça o asilado;
quando as regras jurídicas estão suspensas ou praticamente não existem, as preo-
cupações que causa a salvaguarda da Justiça são necessariamente muito graves,
pelo fato da ação direta ou indireta que um poder ilimitado pode exercer sobre os
tribunais ordinários ou de exceção”.
Nessa mesma linha se inscreve um dos documentos mais recentes sobre o
asilo diplomático nas Américas. Refiro-me ao projeto do Protocolo Adicional às
Convenções de Havana (1928), Montevidéu (1933) e Caracas (1954), aprovado
pela IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos, da Organização
dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile, em 1949, e da qual tive
a honra de participar como representante do Governo brasileiro. Esse projeto, ao
tratar do requisito da urgência, dispõe no art. 3º: “São casos de urgência, entre
outros, aqueles em que existir instabilidade política ou social; ou quando o indiví-
duo for perseguido por pessoas ou multidões que tenham escapado ao controle
das autoridades; ou quando se encontrar em perigo de ser privado da vida ou da
liberdade por motivos de perseguição política e não possa fazer uso de todos os
meios legais que lhe garantam um processo normal; ou quando se encontrem
suspensas, total ou parcialmente, as garantias constitucionais”.
Estão previstos, nesse dispositivo, não somente os casos de suspensão
formal das garantias individuais (como o Estado de sítio) mas também aqueles
em que a ausência ou deficiência de garantias resultam de fatores circunstanci-
ais, como a instabilidade política ou social, as ameaças multitudinárias, a perse-
guição política que impeça o pleno uso dos meios legais de defesa ou afete a
normalidade do processo judicial.
Esse é, aliás, o quadro habitual das situações revolucionárias, como a que
existe atualmente em Cuba. Tais circunstâncias, que justificariam, como justifica-
ram, no caso presente, o asilo do acusado, também nos devem conduzir a negar a
sua extradição.
Devemos interpretar, portanto, em conjunto, os dois dispositivos da lei
brasileira que impedem a extradição para aplicação da pena de morte ou para

250
Ministro Victor Nunes

julgamento por tribunal de exceção. Tendo em vista a razão de ser de tais motivos
excludentes, parece que nossa lei veda a extradição por crime relacionado com
atividades políticas e punido com a morte, quando a situação revolucionária do
país interessado faz temer pelas garantias de correto julgamento perante os pró-
prios tribunais ordinários e abalam a confiança no compromisso que o Governo
requerente assumisse de comutar a pena de morte a ser eventualmente aplicada.
No caso em exame, o Governo brasileiro concedeu ao extraditando asilo
diplomático, a seguir transformado em asilo territorial, porque o mesmo, na pala-
vra do Sr. Ministro das Relações Exteriores (fl. 104), “se encontrava em perigo
de ser privado de sua liberdade por motivos de perseguição política”. Esse depo-
imento do Governo brasileiro, que resulta das informações de seu representante
diplomático em Havana, é da maior importância na fundamentação do meu voto.
Não compartilho, porém, da opinião da defesa no sentido de que a concessão do
asilo acarreta um compromisso irrevogável para o nosso País. Em primeiro lugar,
podendo o asilo ser dado não apenas a quem comete crime político mas também
aos perseguidos políticos, não envolve necessariamente um pronunciamento do
agente diplomático sobre a natureza política do delito porventura atribuído ao
asilado. Em segundo lugar, a lei reserva ao Supremo Tribunal dizer a última pala-
vra sobre a qualificação política do delito (Decreto-Lei 394, art. 2º, § 3º, e art. 10)
para efeito de caracterizar a excludente de extradição, prevista no art. 141, § 33,
da Constituição. Aliás, se a lei dissesse o contrário, subordinando o julgamento do
Supremo Tribunal ao prévio pronunciamento do Executivo, seria manifestamente
ofensiva dos arts. 101, I, g, e 141, § 4º, da própria Constituição.
As considerações precedentes são bastantes, a meu juízo, para se negar a
extradição, na conformidade, aliás, do parecer da douta Procuradoria-Geral da
República (fl. 106).

— II —
Baseou-se a defesa, igualmente, em que se trata de crime político, o que
também exclui a extradição, nos termos do art. 141, § 33, da Constituição Federal,
e do art. 2º, VII, c, do Decreto-Lei 394. Esse argumento foi acolhido pela douta
Procuradoria-Geral da República, quando pondera (fl. 106): “Como (...) conce-
der a extradição do mesmo preso político que a nossa Embaixada reconheceu
estar perseguido tão só por crime político?”
Embora não seja indispensável discutir esse aspecto do problema para
fundamentar a conclusão do meu voto, sinto-me no dever de analisá-lo não só
pela relevância do assunto como também porque a excludente do crime político
poderá ser, eventualmente, aceita pela maioria do Tribunal ou por alguns dos
eminentes colegas.

251
Memória Jurisprudencial

Parece-me, entretanto, que, no caso, não se acha configurado, com nitidez,


o crime político.
Em primeiro lugar, não houve, da parte do Itamaraty ou do nosso represen-
tante diplomático em Havana, classificação, como político, do delito atribuído
ao extraditando. Nem isso era necessário, bastando que se considerasse o asi-
lando como perseguido político. Como dizia Philadelpho Azevedo, no estudo
citado por Caicedo Castilla (p. 454), na América Latina, o asilo “se estende não
só aos delinqüentes políticos, como também aos perseguidos políticos”. Por
esse motivo é que a Convenção de Montevidéu (1939) não menciona como
protegíveis pelo asilo somente os criminosos políticos, mas, numa fórmula am-
pla, os “perseguidos por motivos ou delitos políticos” (art. 2º). Do mesmo modo,
o Projeto de Protocolo Adicional, aprovado em Santiago, em 1959, dispõe que
“cabe ao Estado asilante qualificar a natureza do delito ou dos motivos da per-
seguição”.
No caso sob julgamento, o Ministério das Relações Exteriores mencionou
apenas a “perseguição política”, na justificação do asilo, sem se referir à natureza
do delito de que se acusava o asilado.
Por essas mesmas razões, não procede o argumento da defesa no sentido
de que o próprio Estado requerente concordou com qualificação política do delito,
por haver outorgado salvo-conduto ao asilado. A concessão do salvo-conduto não
tem essa conseqüência jurídica, ante o princípio da qualificação unilateral dos
motivos da perseguição, que compete ao Estado asilante, e não ao territorial,
como resulta do art. 2º da Convenção de Montevidéu (1933). Esse dispositivo, diz
Caicedo Castilla (p. 457), “consagra (...) expressamente o sistema da qualifica-
ção unilateral, pelo asilante (...), que é o único que garante a plena eficácia da
instituição do asilo”. É também o princípio adotado, como há pouco tivemos oca-
sião de mencionar, pelo Projeto de Protocolo Adicional do Conselho Interame-
ricano de Jurisconsultos. Eis aí, aliás, outro aspecto em que o direito internacional
americano discrepa da doutrina sustentada pela Corte de Haia na decisão de 20-
11-1950.
Vejamos, entretanto, se o crime a que se refere o processo, examinado em
si mesmo, deve ser considerado político. O extraditando, em sua qualidade de
soldado, era membro de uma patrulha comandada pelo Capitão Mirabal, que luta-
va pelo Governo do Sr. Fulgêncio Batista. Durante a revolução do Sr. Fidel Cas-
tro, segundo consta do despacho de prisão preventiva e da denúncia, essa patru-
lha, alertada por um aviso telefônico, aprisionou três pessoas que fugiam: o moto-
rista do veículo, um estudante, ferido no ataque a certa posição governista, e o
médico chamado a socorrê-lo. O médico teria sido morto, depois de preso, pelo
próprio Capitão Mirabal, a coronhadas de fuzil, que lhe arrebentaram o crânio.

252
Ministro Victor Nunes

Seu cadáver, o estudante ferido e o motorista foram, então, conduzidos a certo


lugar, nas proximidades de um cemitério, onde a patrulha os metralhou, incluindo
o cadáver. Lavrou-se, depois, um registro da ocorrência, onde se dizia que três
ladrões de cavalos haviam sido abatidos em luta (fl. 44v).
Resta saber se o crime assim descrito é de natureza política, em face da
doutrina e do art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei 394, verbis: “A alegação do fim ou
motivo político não impedirá a extradição, quando o fato constituir, principalmente,
uma infração comum da lei penal, ou quando o crime comum, conexo aos re-
feridos no inciso VII (infração puramente militar, contra a religião, crime político
ou de opinião), constituir o fato principal”.
A caracterização dos delitos políticos é ainda, como se sabe, um tema
controvertido, especialmente nos casos de conexidade. Veja-se a respeito o ex-
celente estudo de Nelson Hungria. Nossa lei, adotando o critério da prevalência,
está longe de haver solvido o problema, ante as deficiências geralmente atribuí-
das ao mesmo.
A IV Reunião do Conselho Interamericano de Jurisconsultos (Santiago,
1959) incumbiu a Comissão Jurídica Interamericana, que é o seu órgão técnico
permanente, com sede no Rio de Janeiro, de preparar um estudo ou um projeto de
convenção sobre delitos políticos, para ser submetido, oportunamente, à XI Con-
ferência Interamericana, com o objetivo de complementar as convenções sobre
asilo.
Quanto à conveniência, a Comissão considerou desaconselhável, por mo-
tivos de ordem prática, um projeto de convenção com a discordância, neste
particular, do ilustre jurista e diplomata Hugo Gobbi, representante da Argentina.
De qualquer maneira, estudou o problema em profundidade, porque a decisão de
conveniência caberia afinal a outro órgão (veja-se Comissão Jurídica Interameri-
cana, Estudo sobre Delitos Políticos, 1960). Esse trabalho é firmado pelos Srs.
Raul Fernandes, Luiz D. Cruz Ocampo, José Joaquim Caicedo Castilla, Antonio
Gómez Robledo, Hugo Gobbi e C. Echecopar H.
Entre outras considerações, referiu-se a Comissão Jurídica Interameri-
cana à definição de crime político, do Instituto de Direito Internacional, que
exclui as infrações mistas ou conexas, quando “se trate dos crimes mais graves,
sob o ponto de vista da moral e do direito comum, como o assassinato, o homi-
cídio doloso, o envenenamento, as mutilações, os ferimentos graves voluntários
e premeditados, as tentativas de crimes desse gênero e os ataques à proprieda-
de por meio de incêndio, explosão, inundação, assim como os roubos graves, e
especialmente os que se cometem a mão armada e com violência”. Acrescenta
o Instituto, “no que diz respeito aos atos executados durante uma guerra civil,

253
Memória Jurisprudencial

por uma ou outra das partes”, que também são excluídas do conceito de crime
político, quando “constituam atos de barbaria e vandalismo proibidos pelas leis
de guerra”.
Sobre essa conceituação, a Comissão Jurídica Interamericana emitiu o
seguinte comentário (p. 22):
“Esta definição tem duas grandes desvantagens: exagerado
casuísmo e critério excessivamente restritivo.
Se fosse aceita totalmente, conduziria ao fim do asilo. No entanto,
proporciona alguns elementos que foram recolhidos pela jurisprudência
americana.
Parece comumente aceito o princípio de que a teoria da predo-
minância do delito não é tecnicamente perfeita nem praticamente
aceitável.
É muito difícil verificar se o elemento político está em situação
inferior em relação ao comum, ou vice-versa.
Entretanto, é necessário reconhecer que quando o delito, embora
tenha fim político, é crudelíssimo ou bestial, constitui um caso dúbio em
que o interesse afetado não é o de determinada ordem política, mas o da
própria humanidade.
Os atos de barbaria ou vandalismo, a que faz referência o último
parágrafo da mencionada definição, afetam o espírito humanitário dos
povos americanos, espírito que constitui a essência ética do asilo nos
países latino-americanos.
É evidente que não se pode premiar com a impunidade, que
representa o benefício de uma instituição criada para salvar o homem nos
momentos de inclemência, os que menosprezam desapiedadamente a
dignidade humana.
Em outras palavras, o delinqüente que o asilo busca proteger é o
indivíduo cuja atitude implica numa violação da ordem legal, destinada a
produzir sua alteração.
Muito distante desta orientação está o que comete barbaria, pois a
mesma indica uma das formas mais abjetas da criminalidade comum.”
Conclui a Comissão o seu magnífico trabalho, sugerindo à XI Conferência
Interamericana “os seguintes elementos de apreciação”:
“1) São delitos políticos as infrações contra a organização e
funcionamento do Estado.

254
Ministro Victor Nunes

2) São delitos políticos as infrações conexas com os mesmos.


Existe conexidade quando a infração se verifica: 1) para executar ou
favorecer o atentado configurado no número (1); (2) para obter a
impunidade pelos delitos políticos.
3) Não são delitos políticos os crimes de barbaria e vandalismo e,
em geral, todas as infrações que excedam os limites lícitos do ataque e da
defesa.
4) Não é delito político o genocídio, de acordo com a Convenção
das Nações Unidas”.
Recorrendo ao item 3 dessa conceituação e tendo em vista a lei brasileira
(art. 2º, § 1º, do Decreto-Lei 394, de 1938), não me parece que o crime de homicídio,
ainda que durante uma guerra civil, praticado contra três prisioneiros — um estu-
dante ferido, o médico chamado a socorrê-lo e o motorista que os conduzia —, deva
ser tido por crime político, para excluir pedido de extradição.
As razões de defesa, que porventura alegue o extraditando — não ter
participado do crime ou para ele haver concorrido no cumprimento de ordem
militar superior — são considerações de mérito, que não influem na conceituação
do delito.
Entretanto, pelos motivos indicados na primeira parte deste voto, indefiro o
pedido de extradição.

VOTO
O Sr. Ministro Afrânio Costa: Sr. Presidente, estou de acordo com o emi-
nente Ministro Relator e também indefiro a extradição, principalmente porque o
regime caótico atualmente existente em Cuba, conforme é ciência comum, a
meu ver, não permite um julgamento imparcial e sereno, dentro dos princípios de
Justiça a que o Brasil está acostumado; não oferecendo, outrossim, o Governo
cubano garantias para o cumprimento de nossa decisão, caso fosse deferida a
extradição.

VOTO
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Presidente, sem me vincular a todas as
considerações, de grande profundidade, do voto do eminente Relator, adiro à
conclusão de S. Exa. e também nego a extradição, pedindo licença, Sr. Presidente,
para acrescentar uma consideração de ordem pessoal.
Repugnaria à minha consciência de juiz conceder uma extradição para
um país debaixo de um regime antidemocrático, onde não existe um corpo

255
Memória Jurisprudencial

judicante livre. Os juízes de Cuba, Sr. Presidente, eu os conheci em São Paulo,


representados por um eminente membro da sua Suprema Corte e por um juiz
da mais alta Corte de Justiça de Havana. Eles andavam em tournée pela
América do Sul, suplicando solidariedade e deitando um pouco de luz sobre o
que aconteceu naquele país. Da Suprema Corte, só resta um de todos os seus
membros; não declino o nome dele em homenagem à memória de seu pai, que
foi um dos maiores internacionalistas e um dos maiores jurisconsultos sul-ame-
ricanos.
Nessas condições, Sr. Presidente, a mim repugna, como juiz e como ho-
mem, entregar um cidadão à sanha dessa justiça de sangue, que está predomi-
nando em Cuba.

VOTO
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Senhor Presidente, pelo que verifico
do relatório do eminente Ministro Victor Nunes, houve um asilo dado pelo Gover-
no brasileiro ao extraditando. O Brasil não tem tratado de extradição com Cuba,
de sorte que o encaminhamento do pedido de extradição ficou entregue ao crité-
rio do Itamarati, e é lamentável que o Itamarati, que tinha propugnado pelo asilo
do extraditando, haja encaminhado esse pedido do Governo cubano.
Eu me inspiro nos votos dos eminentes Ministros Relator, Afrânio Costa e
Pedro Chaves. Também estou em que o Governo cubano não oferece garantias
de ordem democrática bastantes para lhe entregar um homem a quem o Governo
brasileiro entendeu de dar asilo diplomático.
O Sr. Ministro Ary Franco: Há um equívoco por parte do Ministro Gonçalves
de Oliveira: o Itamarati não merece essa censura. A extradição foi fundada no
Código Bustamante, de sorte que tinha de encaminhá-la. Procedeu com toda a
dignidade, não pode fugir à convenção que assinou, faltaria à sua palavra.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se reconheceu que o extraditando é
um perseguido político e se, pela Constituição brasileira, não se dá extradição em
caso de crime político, não devia encaminhar o pedido.
O Sr. Ministro Ary Franco: Quem dá a última palavra no crime em extra-
dição é o Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Reafirmo o meu ponto de vista: o
Itamaraty não fica obrigado a encaminhar todos os pedidos de extradição, porque
o princípio internacional é o da reciprocidade. Não havendo tratado, não havendo
reciprocidade de ordem contratual, o Itamarati não é obrigado a encaminhar o
pedido. No caso concreto, o processo devia ter ficado mornando nos arquivos do
Itamarati. Pela lei de 1911, o Governo brasileiro somente encaminhava os pedidos

256
Ministro Victor Nunes

dos governos estrangeiros, quando havia tratado de extradição entre os dois


países. Pela lei atual, não se exige tratado, mas o Itamarati tem que se ater ao
aspecto político e pode não encaminhar os pedidos, como esclarece Anor
Maciel, especialista na matéria. É como deveria proceder, no caso concreto, em
que se concedeu asilo político ao extraditando. Assim, nem poderia mandar
prendê-lo, nem encaminhar o pedido do Governo cubano ao Supremo Tribunal,
que não considera aspectos políticos do pedido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, o Decreto-Lei n. 394, de
28-4-38, no art. 6º, § 3º, ao tratar dos critérios de preferência, quando a extradi-
ção é requerida por mais de um país, assim dispõe:
“Havendo tratado com algum dos Estados solicitantes, as suas
estipulações prevalecerão no que diz respeito à preferência de que trata
este artigo.”
Portanto, está previsto que o pedido pode ser feito na ausência de tratado
de extradição. No caso concreto, existe o Código de Bustamante, e o Governo de
Cuba, ao solicitar a extradição, ofereceu reciprocidade.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Itamarati, repito, não é obrigado a
encaminhar. Nos países estrangeiros, não se encaminharia. Estou em que a lei
última, o Decreto-Lei n. 394, não exige o tratado que exigia a lei de 1911, mas fica
ao critério do Itamarati encaminhar ou não. No caso concreto, a meu ver, não
deveria ter encaminhado, pois que considerou o asilo, no caso, um perseguido
político. O Itamarati errou ao encaminhar o pedido. Como podia solicitar ao Mi-
nistério da Justiça a prisão de um perseguido político a quem concedera asilo?
Como podia promover, perante o Supremo Tribunal, a extradição solicitada pelo
Governo cubano, quando considerava digno de asilo o extraditando? Imagine se a
Argentina não concedesse, por motivo qualquer, as extradições pedidas pelo Go-
verno brasileiro, nem sequer as encaminhassem ao Judiciário, como é ali reco-
nhecido, em princípio, ao Executivo, como testemunha Sebastian Soler. O Gover-
no brasileiro ficaria, acaso, obrigado a encaminhar ao Supremo Tribunal todos os
pedidos do Governo argentino?
O Sr. Ministro Ary Franco: A doutrina de V. Exa. é perigosa.

DECISÃO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: negaram a extradição,
unanimemente.
Presidência do Exmo. Sr. Ministro Ribeiro da Costa, na ausência justificada
do Exmo. Sr. Presidente Barros Barreto.
Relator, o Exmo. Sr. Ministro Victor Nunes.

257
Memória Jurisprudencial

Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros Afrânio Costa


(substituindo o Exmo. Sr. Ministro Luiz Gallotti, que se acha licenciado), Pedro
Chaves, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas, Candido Motta,
Ary Franco, Hahnemann Guimarães e Lafayette de Andrada.

EXTRADIÇÃO 272 — ÁUSTRIA


EXTRADIÇÃO 273 — POLÔNIA
EXTRADIÇÃO 274 — ALEMANHA
HABEAS CORPUS 44.074 — DF
Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes
Requerentes: República Fed15.20eral da Áustria, República Popular da
Polônia e República Federal da Alemanha — Extraditando: Franz Paul Stangl
1) Extradição. a) O deferimento ou recusa da extradição é
direito inerente à soberania. b) A efetivação, pelo governo, da
entrega do extraditando, autorizada pelo Supremo Tribunal,
depende do direito internacional convencional.
2) Reciprocidade. a) É fonte reconhecida do direito extradicional.
Ext 232 (1961), Ext 288 (1962), Ext 251 (1963). b) A Consti-
tuição de 1967, art. 83, VIII, não exige referendum do Con-
gresso para aceitação da oferta do Estado requerente. c) A lei
brasileira autoriza o Governo a oferecer reciprocidade.
3) Comutação de pena. a) A extradição está condicionada à
vedação constitucional de certas penas, como a prisão perpétua,
embora haja controvérsia a respeito, especialmente quanto às
vedações da lei penal ordinária. Ext 165 (1953), Ext 230 (1961),
Ext 241 (1962), Ext 234 (1965). b) O compromisso de comutação
da pena deve constar do pedido, mas pode ser prestado pelo
Estado requerente antes da entrega do extraditando. Ext 241
(1962). Voto do Min. Luiz Gallotti na Ext 218 (1950).
4) Instrução. A documentação suplementar foi oferecida
em tempo oportuno pelos Estados requerentes, sem prejuízo
da defesa exercitada, com eficiência e brilhantismo.
5) Territorialidade. a) Jurisdição da Áustria (crimes de
Hartheim) e da Polônia (crimes de Sobibór e Treblinka). b)
Falta de jurisdição da Alemanha (Sobibór e Treblinka), porque
a ocupação militar não transformou essas localidades em terri-

258
Ministro Victor Nunes

tório alemão, nem ali permanecem suas tropas, nem o extradi-


tando continua no seu serviço.
6) Nacionalidade ativa. a) Jurisdição da Áustria (Sobibór
e Treblinka) por ser Stangl austríaco. b) Jurisdição da Alema-
nha (Sobibór e Treblinka), não porque Stangl tivesse, ao tem-
po, a nacionalidade alemã, mas porque estava a serviço do
Governo germânico.
7) Narrativa. Foi minuciosa, e até excessiva, a descrição
dos fatos delituosos, dependendo a apuração da culpabilidade,
ou o grau desta, do juízo da ação penal.
8) Genocídio. A ulterior tipificação do genocídio, em con-
venção internacional e na lei brasileira, ou de outro Estado,
não exclui a criminalidade dos atos descritos, pois a extradi-
ção é pedida com fundamento em homicídio qualificado.
9) Crime político. A exceção do crime político não cabe no
caso, mesmo sem a aplicação imediata da Convenção sobre o
Genocídio ou da Lei 2.889/56, porque essa excusativa não
ampara os crimes cometidos com especial perversidade ou
crueldade (Ext 232, 1961). O presumido altruísmo dos delin-
qüentes políticos não se ajusta à fria premeditação do exter-
mínio em massa.
10) Ordem superior. a) Não se demonstrou que o exter-
mínio em massa da vida humana fosse autorizado por lei do
Estado nazista. b) Instruções secretas (caso Bohno) ou
deliberações disfarçadas, como a “solução final” da confe-
rência de Wannsee, não tinham eficácia de lei. c) Graduado
funcionário da polícia judiciária não podia ignorar a crimina-
lidade do morticínio, cujos vestígios as autoridades procura-
ram metodicamente apagar. d) A regra respondeat superior
está vinculada à coação moral, não presumida para quem fez
carreira bem sucedida na administração de estabelecimentos
de extermínio. e) De resto, o exame dessa prova depende do
juízo da ação penal.
11) Julgamento regular. A parcialidade da Justiça dos
Estados requerentes não se presume, nem poderia o extradi-
tando ser julgado pela Justiça brasileira, ou responder perante
jurisdição internacional, que não é obrigatória.
12) Prescrição. a) Ficou afastado o problema da retroatividade;
examinou-se a matéria pelo direito comum anterior e porque o
Brasil, que observa o princípio da lei mais favorável, não subs-

259
Memória Jurisprudencial

creveu convenção, nem editou lei especial sobre prescrição em


caso de genocídio. b) No que respeita à Polônia, a prescrição
não foi interrompida, segundo os critérios da nossa lei; também
não o foi quanto à Áustria, em relação aos crimes de Sobibór e
Treblinka, porque nenhum dos atos praticados pelo Tribunal de
Viena equivale ao recebimento da denúncia do direito brasilei-
ro. c) A abertura da instrução criminal nos Tribunais de Linz e
Düsseldorf, tendo efeito equivalente ao recebimento da denún-
cia, do direito brasileiro, interrompeu a prescrição relativamen-
te aos pedidos da Áustria, pelos crimes de Hartheim, e da
Alemanha, pelos crimes de Sobibór e Treblinka.
13) Preferência. a) A determinação da preferência entre
os Estados requerentes cabe ao Supremo Tribunal, e não ao
Governo, porque o caso se enquadra em um dos critérios da
lei, cuja interpretação final compete ao Judiciário. b) Afastou-
se a preferência pela territorialidade, pleiteada pela Alemanha,
pelas razões já indicadas quanto à jurisdição. c) Pelo critério da
gravidade da infração, o exame do Tribunal não se limita ao
tipo do crime, mas pode recair sobre o crime in concreto
(combinação do art. 42 do Código Penal com o art. 78, II, b, do
Código de Processo Penal). d) Em conseqüência, foi reconhe-
cida a preferência da Alemanha (Sobibór e Treblinka), e não da
Áustria (Hartheim), consideradas não somente as conseqüên-
cias do crime como também as finalidades daqueles estabele-
cimentos e a função que o extraditando neles exercia.
14) Entrega. Entrega do extraditando à Alemanha, sob as
condições da lei, especialmente as do art. 12, e com o compro-
misso de comutação de pena e da entrega ulterior à Áustria.
15) Habeas corpus. Ficou prejudicado o habeas corpus,
requerido, aliás, à revelia do extraditando.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das
notas taquigráficas, por unanimidade de votos, indeferir o pedido da Polônia; autori-
zar a entrega do extraditando, em primeiro lugar, à Alemanha, com o compromisso
de conversão da pena de prisão perpétua em prisão temporária, e, bem assim, o da
ulterior entrega do extraditando à Justiça da Áustria, observadas as demais condi-
ções da lei, especialmente as do art. 12, julgar prejudicado o habeas corpus.
Brasília, 7 de junho de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente — Victor Nunes,
Relator.

260
Ministro Victor Nunes

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: São submetidos ao exame do Supremo
Tribunal Federal três pedidos de extradição: da República Federal da Áustria
(Ext 272), da República Federal da Alemanha (Ext 274) e da República Popular
da Polônia (Ext 273), e bem assim o HC 44.074, que fora requerido sem o conhe-
cimento do extraditando (Ext 272, v. 3, fl. 793).
Embora processados separadamente, o Relator sugere seu julgamento
conjunto, porque se referem à mesma pessoa, Franz Paul Stangl, de nacionalida-
de austríaca; tratam em grande parte dos mesmos fatos e poderão suscitar o
problema da preferência, se o Tribunal julgar que os pedidos de mais de um país
são atendíveis, como sustenta o Dr. Procurador-Geral.

I - Os Fatos
Pesa sobre o extraditando a acusação de co-autoria em crimes de homicí-
dio, praticados em massa, no instituto de extermínio de Hartheim, instalado na
Áustria, em 1940; no campo de extermínio de Sobibór, construído em 1942, no
mês de abril (Ext 272, v. 1, fl. 18), ou a partir de março (Ext 273, fl. 80v), na
Comarca de Chalm, Distrito de Lublin, na Polônia, e destruído em novembro de
1943, após o levante de prisioneiros de meados de outubro (Ext 274, fl. 80v);
finalmente, no campo de extermínio de Treblinka, construído a partir de 1-6-42
(Ext 273, fl. 73), nas proximidades da aldeia desse nome, cerca de 80 km a
nordeste de Varsóvia, o qual foi parcialmente incendiado na revolta de prisionei-
ros de 2-8-43 e totalmente destruído em novembro daquele ano (Ext 272, v. 1, fl.
21; Ext 273, fl. 73v, 79). Passamos a sumariar a atividade criminosa atribuída ao
extraditando, consoante os diversos pedidos.
Hartheim aparentava ser um instituto médico. Na verdade, esse estabele-
cimento integrava a rede da chamada Ação Brak, iniciada na Alemanha em
1939 e estendida à Áustria em 1940. Destinava-se à eliminação coletiva e metó-
dica de insanos mentais e de pessoas idosas, fracas ou incapacitadas para o
trabalho, bem como das consideradas politicamente perigosas (Ext 272, v. 1, pp.
46 ss).
Variava o método de extermínio: veneno, injeções mortíferas, inalação de
gás. Em Harthein, foi instalada um câmara de gás, e se incineravam os corpos
em forno apropriado, depois de despojados dos dentes de ouro.
Não foi possível determinar exatamente o grande número de vítimas de
Hartheim. Às vezes, se amontoavam os cadáveres, a ponto de “apodrecerem” os
de baixo antes da incineração. Um índice comparativo é tomado do sanatório
congênere de Niedernhart, onde, segundo o depoimento do Dr. Bohm, o número

261
Memória Jurisprudencial

de internados baixara de 1.128, em 1938, para 303, em 1943, no final da Ação


Brak. O próprio extraditando, em depoimento prestado na Áustria, em 1947,
calculava terem sido mortas de 12 a 13.000 pessoas, desde o início do ano de
1943 (Ext 272, v. 1, fl. 99).
Precauções especiais foram tomadas para ocultar essas atividades, inclu-
sive o juramento de sigilo e a falsificação do lugar e da causa mortis na comuni-
cação do óbito aos parentes.
O extraditando é acusado de haver participado da direção do estabeleci-
mento, juntamente com o Dr. Rudolf Lonauer, já falecido, e o Dr. Georg Reno.
Os dois últimos dirigiam a parte médica; pelos demais serviços responderam, em
períodos diversos, Christian Wirth, Franz Reichleitner e Franz Paul Stangl, que foi
de começo diretor substituto do escritório e depois diretor efetivo. Segundo cons-
ta da ordem de prisão contra ele expedida pela Justiça de Linz, era uma das
“cabeças dirigentes” de Hartheim, embora não participasse, pessoalmente, da
execução final dos assassinatos.
Sobibór era, caracteristicamente, um campo de extermínio. Em suas cinco
câmaras de gás, disfarçadas em casas de banho, calcula-se que foram mortos,
desde abril de 1942 (ou maio (Ext 273, fl. 80v)) até outubro de 1943, cerca de
250.000 judeus, provenientes de vários países da Europa. Em média, eram elimi-
nados 200 por semana.
A inalação mortal do gás de escape de um motor de explosão, canalizado
para as câmaras, durava de 20 a 30 minutos. Os cadáveres eram cremados em
covas de 15 metros de comprimento por outros tantos de largura e 3 de profundi-
dade (Ext 272, v. 1, fl. 20). De ordinário, os adultos que fossem doentes ou fracos,
bem como as crianças, eram mortos no próprio fosso, a tiros. Os prisioneiros
mais fortes, escolhidos para o trabalho, eram maltratados brutalmente; quando se
incapacitavam pela idade, pela fraqueza ou por doença, eram igualmente assassi-
nados. As vítimas, antes da morte, a pretexto de terem de banhar-se, eram tos-
quiadas e despojadas de suas roupas e haveres. Serviam em Sobibór por volta de
100 alemães das tropas SS, e cerca de 200 voluntários da Ucrânia (Ext 272, v. 1,
fl. 20).
O extraditando comandou, em certo período, o campo de Sobibór. Respon-
dia, nessa qualidade, perante o já falecido Coronel SS Odil Grobocnic, incumbido —
com sede em Lublin — da instalação e supervisão dos campos de extermínio do
Leste europeu. O pedido da Áustria situa o comando de Stangl entre a primavera
e o fim do verão ou do outono de 1942 (Ext 272, v. 1, fl. 24); o da Polônia é mais
preciso: de março a agosto daquele ano (Ext 273, fl. 19v).
Dentre suas atribuições no comando de Sobibór, incluía-se a de determinar
as funções dos grupos encarregados das diversas tarefas do campo. Todo o

262
Ministro Victor Nunes

pessoal servia sob sua dependência, cabendo-lhe, inclusive, a chefia das equipes
de vigilância, tanto da alemã como da ucraniana (Ext 272 v. 1, fl. 24). Acrescenta
a acusação que ele, certa vez, em Sobibór, ordenou pessoalmente o fuzilamento
de uma judia, que fora visitar o marido no campo de serviço; de outra feita, deixou
enforcar um prisioneiro, para servir de exemplo (Ext 273, fl. 24).
Treblinka também era, especificamente, um campo de extermínio. O assas-
sinato em massa teve início, ali, segundo a Áustria e a Polônia, em 23-7-42, com
um transporte de 5.000 pessoas chegadas de Varsóvia (Ext 272, v. 1, fl. 21; Ext 273,
fl. 73); pelo pedido da Alemanha, teria começado na véspera (Ext 274, fl. 36).
O mais alto índice de mortes corresponde ao período de agosto a novem-
bro de 1942 (dentro da administração de Stangl). Decresceu de dezembro desse
ano até fevereiro de 1943, e subiu de novo nos meses subseqüentes, até 2 de
agosto de 1943, data em que se verificou o levante de prisioneiros. Como essa
revolta houvesse destruído parcialmente o campo, os transportes posteriores, até
outubro, tinham menores proporções, e as novas vítimas também foram assassi-
nadas, pois as câmaras de gás haviam ficado incólumes.
Através de testemunhos e de documentos da estrada de ferro, que levava
ao campo, as autoridades polonesas estimaram em cerca de 700.000 o número
de pessoas assassinadas em Treblinka (Ext 272, v. 1, fl. 22). Para sermos mais
exatos, a estimativa da Comissão Central de Investigação dos Crimes Alemães
na Polônia foi de “pelo menos 731.600 pessoas”, tomando por base a quantidade
de vagões utilizados e a média de 100 pessoas por vagão (Ext 273, fl. 78). A
Alemanha calcula o número de mortos, só no período do comando de Stangl, “em
pelo menos 300.000”(Ext 274, fl. 35). A Áustria, referindo-se em sua correspon-
dência diplomática com o Brasil à responsabilidade de Stangl, nos três estabeleci-
mentos de extermínio, ora fala em “mais de cem mil pessoas”, ora em “várias
centenas de milhares” (Ext 272, v. 1, fl. 3; v. 3, fl. 840).
O transporte em comboios ferroviários fechados, bem como o saque siste-
mático e o extermínio pelo gás de escape, com o disfarce do banho, reproduziam
o método utilizado em Sobibór. As próprias cavidades do corpo eram investigadas
à procura de objetos valiosos. Em Treblinka, entretanto, foram construídas câma-
ras de gás em maior número, ao todo 13 (Ext 273, fl. 374), sendo as da segunda
etapa planejadas de modo a terem maior produtividade.
Os cadáveres, até à primavera de 1942, eram sepultados coletivamente,
em covas amplas (Ext 274, fl. 38), mas foram depois exumados e cremados —
como as vítimas posteriores — em uma grande grelha de 25 a 30 metros de com-
primento, construída com trilhos de ferrovia e bases de concreto (Ext. 274, fl. 36).
A queima dos cadáveres em massa começou, segundo a Comissão polonesa de
investigação, após a visita de Himler a Treblinka, em fevereiro ou março de 1943
(Ext 273, fl. 373v).

263
Memória Jurisprudencial

Cerca de 40 alemães das tropas SS e aproximadamente 120 voluntários da


Ucrânia integravam o pessoal responsável pelo campo (Ext 272, v. 1, fl. 23); mas
a maior parte do serviço, inclusive no crematório e nas câmaras de gás, era reali-
zada pelos próprios prisioneiros, quase todos judeus, posteriormente assassinados.
Nos três pedidos há coincidência quanto à duração do comando de Stangl
em Treblinka: Áustria — do outono de 1942 até agosto de 1943 (Ext 272, v. 1, fl.
24); Alemanha — de agosto de 1942 até agosto de 1943 (Ext 274, fl. 35, 38);
Polônia — de agosto de 1942 até o outono de 1943 (Ext 273, fl. 18). Suas atribui-
ções de chefia eram da mesma natureza das exercidas em Sobibór. Diz a acusa-
ção da Alemanha que ele substituiu no comando o Dr. Eberl, porque este “mos-
trou não ser capaz”. Assumindo o cargo, “mandou construir a nova e maior
instalação de homicídio” (diversas câmaras de gás, mais amplas, e a grelha de
cremação), e organizou de modo mais eficiente o processo de exterminação em
massa.
Além da responsabilidade pela matança coletiva, que lhe é atribuída por
sua qualidade de comandante, Stangl é acusado pessoalmente, perante a Justiça
alemã, pela morte, em Treblinka, de 15 pessoas, em data não determinada, duran-
te sua gestão, e de 8, no dia 8-8-43 (Ext 274, fl. 35).
Observam os três pedidos de extradição que as vítimas eram enganadas
por vários modos, para não suspeitarem do seu destino. Também sublinham as
providências eficazes, tomadas pelos dirigentes, para fazerem desaparecer os
vestígios: queima de cadáveres, falsificação de registros e comunicações, des-
truição de documentos e, finalmente, a liquidação material das instalações, em
cujo lugar foram plantadas lavouras ou florestas. Não obstante, além do testemu-
nho abundante, inclusive de sobreviventes, e dos documentos encontrados, uns e
outros trazidos em grande parte para os autos, escavações e exames periciais
foram realizados in loco, relevando numerosas provas materiais do morticínio de
Sobibór e Treblinka. As conclusões dessas perícias foram resumidas no Boletim
da Comissão investigadora polonesa (Sobibór: Ext 273, fls. 79 ss; Treblinka: fls.
72 ss).
A Alemanha juntou ao processo uma fotografia de Stangl, fardado, em
companhia de Kurt Franz, à frente de um barracão, que seria de Treblinka (Ext
274, fl. 34), e a Polônia apresentou fotografia de uma reconstituição em
maquete daquele campo (Ext 273, fl. 100). Também juntou a Polônia correspon-
dência oficial referente à promoção de Stangl ao posto de Capitão. A esse respei-
to, o Coronel Grobocnic, insistindo pelas promoções já assentadas com a chefia,
mas ainda não expedidas, escrevia ao Coronel von Herff, Diretor do Pessoal da
SS, em 13-4-43: “(...) o melhor Chefe do Campo de Concentração, o que teve
a maior participação na operação inteira, o 1º Tenente da Polícia Franz
Stangl (...) seria promovido a Capitão da SS” (Ext 274, fl. 134v).

264
Ministro Victor Nunes

Mais tarde, Grobocnic dava conta de sua tarefa, em carta a Himler: “Ter-
minei em 19-10-43 a Ação Reinhard, que executei no Governo Geral, tendo
dissolvido todos os campos” (Ext 273, fl. 31).
Nos interrogatórios a que procedi (Ext 272, v. 3, fl. 792; 273, fl. 167; 274, fl.
130), declarou o extraditando: que nasceu na Áustria, em 26-3-1908, residindo por
último em São Paulo, onde trabalhava como técnico-mecânico da Volkswagen; que
tinha conhecimento do processo instaurado em Linz (Áustria) pelos fatos de
Hartheim e no qual se lhe atribuíam “responsabilidades que não tinha”; que não
eram verdadeiras as acusações, explicando-as pelo possível desejo dos acusado-
res de lançar responsabilidades alheias sobre um foragido que supunham não
seria encontrado; que ignorava qualquer outro processo instaurado contra ele,
seja na Áustria, na Alemanha ou na Polônia, bem como qualquer ordem de prisão
oriunda da Justiça alemã; que serviu no campo de Sobibór em 1942, sem poder
precisar os meses, e no de Treblinka, pelo período aproximado de um ano, que
terminou em agosto de 1943; que em Sobibór fora responsável pela construção
do campo, tendo Wirth assumido o comando em seguida, a título provisório; que
ali ainda permaneceu algum tempo, depois de sua substituição, para prestar con-
tas; que ignorava ter sido seu nome incluído na lista de criminosos de guerra das
Nações Unidas; que, desde 1930 até agosto de 1943, incluindo todo o período de
seu serviço em Sobibór e Treblinka, exerceu exclusivamente funções policiais,
nunca tendo dado ordens para assassinar qualquer pessoa; que preferia ser de-
fendido por advogado designado pelo Tribunal.
Constam dos autos as folhas de anotações da Polícia Federal de Linz, de
7-5-47, e de Wels, de 10-5-47, sem antecedentes criminais (Ext 272, v. 1, fls. 80,
86). A última faz referência a antigas declarações por ele prestadas, em 3-10-38,
e ao relato autobiográfico firmado na mesma data. Ambas essas peças estão
transcritas (fls. 74, 87). Foram igualmente trasladados os interrogatórios a que o
submeteu o Juiz de instrução de Linz, sobre os fatos de Hartheim, em 21-7-47 e
nos dias 12 e 15-9-47 (fls. 74-79).
Constam ainda dos autos (Ext 272, v. 3, fls. 771, 779, 783) os depoimentos
prestados por Stangl na Polícia de São Paulo, em 1-3-67, e na Polícia Federal, em
Brasília, nos dias 2 e 4-3-67. Lê-se nesses depoimentos que ele entrou no País
em 8-8-51 e obteve a carteira de identidade de estrangeiros de n. 348.587 — RG
1.536.069, expedida com o nome de Paul Stangl. Este documento também está
anexado ao processo (fl. 778).

II - Atividade persecutória dos três Estados


a) Áustria
Franz Paul Stangl declarou ter sido preso na Áustria, pelas autoridades
americanas de ocupação, em 2-6-45 (Ext 272, v. 1, fl. 100). Em 21-5-47, o

265
Memória Jurisprudencial

Ministério do Interior solicitou que ele continuasse detido à disposição da Justiça


austríaca (fl. 111). Em 21-7-47, foi transferido do campo de Glasembach para a
prisão do Tribunal de Linz (fl. 91).
Nesse mesmo dia e nos dias 12 e 15-9-47, foi interrrogado pelo Juiz
Mittermayr, do Tribunal de Linz, sobre os fatos de Hartheim. Declarou ele ter ali
trabalhado de novembro de 1940 até agosto de 1941; descreveu a natureza do
seu serviço, que não envolvia participação nos assassinatos, e também as ativida-
des do estabelecimento (fl. 99).
No mesmo dia 21-7-47, foi intimado para ciência da instrução do processo
e da sua prisão preventiva (fl. 45). Em 25-3-48, o Ministério Público formulou
acusação contra Stangl e outros pelos fatos de Hartheim (fl. 46). Dela o extradi-
tando teve ciência pessoal em 19-5-48 (Ext 272, v. 1, fl. 53).
Stangl fugiu em 30-5-48 (fls. 53, 115), e foi expedida a ordem de captura
pelo Tribunal de Linz, em 2-6-48 (fl. 53).
Em 3-7-48, foi pedida a suspensão do processo, por motivo da fuga (fl. 151).
A decisão, quanto aos co-réus, foi proferida no dia 3-7-48, com a condenação de
Karl Harrer e Leopold Lang, respectivamente, a 5 anos e meio e 3 anos de “cár-
cere pesado” (fl. 164), e a absolvição de Franz Myrhuber (fl. 164). Em 27-7-48 (fl.
137), o Ministério Público apresentou acusação contra Stangl nesse processo.
Nova ordem de prisão foi expedida contra Stangl, em 21-10-61, pelo Tribunal
de Linz, com relação aos crimes de Harthein (fl. 191).
Quanto aos fatos de Sobibór e Treblinka (Ext 272, v. 1, fl. 25), o Tribunal
Estadual Criminal de Viena expediu, em 21-3-62, contra Stangl, um mandado,
cuja natureza e alcance jurídico são controvertidos nestes autos, como se verá
oportunamente. Esse mandado fundou-se nos §§ 134 e 135, n. 3, da lei penal,
destinando-se — de acordo com a defeituosa tradução oficial — à “averiguação
(determinação) da residência (corrida trás alguém)”.
O Tribunal de Viena, nos anos subseqüentes (1963 e 1965), dirigiu-se a di-
versos tribunais estrangeiros (Polônia, Israel e Rep. Fed. da Alemanha) para (diz a
tradução) “aclarar enquanto o Franz Stangl é responsável para os homicídios feitos
em massa em totalidade nos campos de exterminação de Sobibór e de Treblinka”.
Pelo mesmo Tribunal foi expedida ordem de prisão em 16-3-66. No dia 19-
1-67, foi ordenada a apreensão de sua correspondência com uma antiga vizinha.
Em 15-2-67, foi iniciada a instrução prévia por homicídio, com fundamento nos
§§ 134, 135, n. 3, e 136 da lei penal. No dia seguinte (16-2-67), o Tribunal de
Viena expediu nova ordem de prisão (fls. 17, 29).
Veio, afinal, o pedido de extradição, cujo andamento será resumido mais
adiante.

266
Ministro Victor Nunes

b) Alemanha
Com referência aos crimes de Treblinka, o Promotor-Geral junto ao Tribu-
nal Regional de Düsseldorf requereu, em 3-5-60, que a instrução criminal em
curso fosse estendida, entre outros, a Franz Stangl, cujo paradeiro era desconhe-
cido. Também solicitou, no mesmo ato, se expedisse ordem de prisão contra ele e
contra Kuettner, “considerando o vulto de sua participação nos atos puníveis”
(Ext 274, fl. 277).
O Juiz Schwedersky, no dia seguinte (4-5-60), estendeu a instrução, como
fora requerido. Afirmou, em seu despacho (Ext 274, fl. 279), que “os acusados
supraditos estão suficientemente sob suspeitas de em vários atos independentes
um do outro terem matado seres humanos com intenção de matar (animus
necandi) ou por outros motivos torpes, nos anos de 1941 até 1944, nos campos
de Treblinka I, respectivamente, de Treblinka II e na região de Treblinka, com
emprego de meios insidiosos e cruéis, agindo singularmente ou em concurso de
delinqüentes” (§§ 211, 47 e 74 do Código Penal alemão).
No dia imediato (5-5-60), o mesmo Juiz expediu a ordem de prisão (fl. 21).
Nova ordem de prisão, para fins de extradição, foi assinada por aquele Juiz no dia
17-3-67 (fls. 35-43). Veio, afinal, o pedido de extradição.
c) Polônia
Informa a Embaixada da Polônia que, já em 1945, seu Governo havia soli-
citado a entrega de Franz Stangl às autoridades daquele país pela prática de
genocídio (Sobibór e Treblinka), tendo sido ele, em conseqüência, colocado na
lista internacional dos criminosos de guerra (Ext 273, fls. 5-6). Em 30-3-46
(reproduzimos a tradução oficial), “o delegado dos assuntos criminais de
guerra junto à Missão Militar Polonesa, funcionando junto ao Conselho
da Aliança de Controle na Alemanha, enviou (...) uma internacional carta
rogatória atrás de Stangl” (fl. 20).
Em 17-3-67, o Procurador-Geral determinou, fundamentadamente, a pri-
são provisória de Stangl. A medida seria revogada — diz a tradução — “se no
prazo de 3 meses, a contar do dia da entrega de Franz Stangl à disposição
das autoridades polonesas, não entrar a apresentação de uma acusação
ou de prolongamento da prisão” (fl. 21).
Foi encaminhado, finalmente, pedido de extradição ao Governo brasileiro.

III - Processamento da extradição


O primeiro processo de extradição, o da Áustria, refere-se a Hartheim,
Sobibór e Treblinka. O pedido de prisão provisória, datada de 27-2-67, deu entrada
no Itamarati em 1º-3-67 (Ext 272, v. 1, fl. 3) e foi encaminhado pelo Ministério da

267
Memória Jurisprudencial

Justiça ao Supremo Tribunal com ofício de 7 de abril, protocolado no dia 11 (fl. 1).
O pedido formal de extradição, datado de 3 de abril, deu entrada no Itamarati no
dia 5 (v. 3, fl. 840) e foi encaminhado pelo Ministério da Justiça ao Supremo
Tribunal com ofício de 4 de maio, protocolado no dia 5 (v. 3, fl. 839). Com este
segundo expediente, veio nova tradução oficial dos textos pertinentes do direito
austríaco (v. 3, fl. 842).
O extraditando foi interrrogado em 13-4-67 (v. 3, fl. 792). No dia 18 (fl.
802), apresentou sua defesa o Prof. F. M. Xavier de Albuquerque, defensor
dativo, que falou sobre os novos documentos, no dia 9 de maio (fl. 850v).
O advogado do Governo da Áustria, Dr. George F. Tavares, admitido em
28-4-67 (fl. 833), ofereceu memorial em 9 de maio (fls. 879, 880).
O segundo processo, da Alemanha, refere-se aos fatos de Treblinka. Ao
pedido de prisão, datado de 7-3-67 e reiterado em 22 e 29 do mesmo mês (Ext
274, fls. 4, 5), seguiu-se o pedido formal de extradição, de 12 de abril, que deu
entrada no Itamarati no dia 14 (fls. 11, 17), tendo sido tais documentos enviados
ao Supremo Tribunal pelo Ministro da Justiça, com ofício de 18 de abril,
protocolado no dia 20 (fl. 1). Novos documentos, pelos quais houvera protesto,
foram remetidos ao Tribunal, mediante ofício do Ministro da Justiça, de 4 de maio,
protocolado no dia 5 (fl. 161). A Embaixada alemã anunciou, então (fl. 23), que
enviaria, “dentro em breve, outro requerimento de extradição”, pelos fatos de
Sobibór. Este outro pedido veio mais tarde (Ext 275), mas ainda não está em
condições de ser julgado.
O extraditando foi interrogado no dia 27 de abril (fl. 130) e o defensor
dativo apresentou a defesa em 8 de maio (fl. 138), tendo falado sobre os novos
documentos no dia 12 (fl. 302).
O advogado do Governo da Alemanha, Dr. Antônio Evaristo de Morais
Filho, admitido em 28 de abril (fl. 135), distribuiu memorial (5-6-67), instruído com
parecer do Ministro Nelson Hungria e com um extrato do julgamento dos co-réus
de Stangl em Düsseldorf.
O terceiro processo, da Polônia, diz respeito a Sobibór e Treblinka. A co-
municação prévia, de 27-3-67 (Ext 273, fl. 5), deu entrada no Itamarati no dia 3
de abril (fl. 3 ), juntamente com o pedido formal de extradição, firmado em 17 do
mesmo mês pelo Procurador-Geral daquele país (fls. 3, 7, 18). Essa documenta-
ção foi enviada ao Supremo Tribunal com o já citado ofício de 18 de abril, do
Ministro da Justiça, protocolado no dia 20 (fl. 1). Novos documentos, pelos quais
a Polônia tinha protestado, foram remetidos ao Tribunal com o ofício de 4 de
maio, também já citado, do Ministro da Justiça (fl. 216).
O extraditando foi interrogado no dia 27 de abril (fl. 167), e o defensor dativo
ofereceu defesa em 8 de maio (fl. 180), tendo falado sobre os novos documentos
no dia seguinte (fl. 223v).

268
Ministro Victor Nunes

As três defesas do Prof. Xavier de Albuquerque foram sistematizadas e


aditadas em memorial distribuído aos Srs. Ministros. O advogado Dr. Sobral Pinto
enviou cartas ao Relator, em defesa de Stangl, as quais são do conhecimento do
defensor dativo.
O advogado da Polônia, Dr. Alfredo Tranjan, foi admitido em 2-5-67 (Ext
273, fl. 172).
O advogado Dr. Izaac Nuzman, com representação de três sobreviventes
de Sobibór e Treblinka, pediu sua intervenção no processo. Mandei juntar seu
memorial, por linha, para exame do Tribunal.
Os três processos foram devolvidos pelo Procurador-Geral da República,
Prof. Haroldo Teixeira Valadão, com os seus pareceres, no dia 24 de maio (Ext
272, v. 3, fls. 852, 878; Ext 274, fls. 318, 334; Ext 273, fls. 225, 317).
O pedido de habeas corpus, referido no começo deste relatório, não foi
trazido antes a julgamento, porque foi requerido sem conhecimento do extraditan-
do e o defensor dativo não o ratificou.

IV - Questões jurídicas suscitadas


a) Matéria constitucional
1. Reciprocidade. Os três Estados requerentes fizeram declaração de
reciprocidade (Ext 272, v. 1, fl. 3; Ext 274, fl. 17; Ext 273, fl. 219). Sustenta,
porém, a defesa que seria, agora, insuficiente esse compromisso, porque ele en-
volve um ato internacional não referendado pelo Congresso. As Constituições
anteriores só impunham essa aprovação para tratados e convenções, mas a de
1967 (art. 83, VIII) a exige para “tratados, convenções e atos internacionais”.
A oferta de reciprocidade, envolvendo a tácita aceitação do Brasil, dependeria do
referendo legislativo.
2. Comutação de pena. Embora a nossa lei de extradição (DL 394, de
28-4-38) não exija expressamente o compromisso de comutação da pena de
prisão perpétua (art. 12, d), sustenta a defesa que ele é indispensável, em face da
vedação da “prisão perpétua” pelo art. 150, § 11, da Constituição vigente. Entre-
tanto, nem a Áustria, nem a Alemanha, onde essa pena seria aplicável, nem a
Polônia, onde se aplicaria a pena de morte, assumiram qualquer compromisso
quanto à prisão perpétua (Ext 272, v. 3, fl. 840; Ext 274, fl. 23; Ext 273, fl. 217).
O memorial da Alemanha bem como os pareceres do Procurador-Geral e
do Ministro Nelson Hungria sustentam que a comutação de pena, como exigên-
cia do direito extradicional, não está vinculada às vedações constitucionais. É
norma autônoma, inspirada em outras razões, tanto que a Constituição de 1937
admitia a pena de morte em certos casos, e a nossa lei de extradição, decretada
na sua vigência, determinou a comutação.

269
Memória Jurisprudencial

Para Nelson Hungria, poder-se-ia, em última análise, condicionar a ex-


tradição a esse compromisso suplementar. O Procurador-Geral, replicando à
defesa, entende que tal exigência surpreenderia os Estados com os quais man-
temos relações.
3. Retroatividade. Sustenta a defesa que, mesmo quanto ao genocídio,
somente poderíamos discutir a retroatividade da ampliação do prazo
prescricional, se tivéssemos lei ou tratado que determinasse essa ampliação.
b) Formalidades
4. Especificação dos fatos. Argúi a defesa que os pedidos são
inatendíveis, porque não especificam os fatos com o rigor que impõe a lei brasilei-
ra (art. 7º), pois nenhum deles “identifica, pelo nome, uma só das vítimas, nem
determina, ao menos pela data exata, um só desses mesmos fatos” (Mem., p.
47). Em se tratando de co-autoria, essa especificação era mais necessária.
O memorial da Alemanha e bem assim os pareceres do Ministro Nelson
Hungria e do Procurador-Geral (Ext 272, v. 3, p. 858; 274, p. 319; 273, 302-303)
sustentam que a descrição apresentada é perfeitamente satisfatória. As circuns-
tâncias de lugar e de tempo, os meios utilizados e a participação do extraditando,
tudo está minuciosamente descrito. E os autos fornecem numerosos testemunhos e
elementos materiais constitutivos do corpo de delito indireto. Quanto à identidade,
nota Nelson Hungria que a lei pune “a ocisão de um homem, e não a de Pedro,
Sancho ou Martinho”; e o Prof. Haroldo Valadão observa que é irrelevante cuidar
da identidade das vítimas, quando se trata de morticínio em massa.
5. Legalidade da prisão. A defesa argumenta que, pelo nosso direito, a
prisão hábil para ensejar a extradição é somente a que emana de autoridade
judiciária competente (art. 5º). O pedido da Polônia e inadmissível, porque a
prisão preventiva de Stangl foi ali determinada pelo Procurador-Geral.
O Prof. Haroldo Valadão não aceita o argumento, pois a competência para
decretar a prisão é regulada pelo direito do Estado requerente.
6. Documentação. O pedido formal de extradição da Áustria só veio aos
atos posteriormente. Do mesmo modo, a tradução da peça acusatória, cuja acei-
tação pelo juiz interromperia a prescrição, consoante o pedido da Alemanha.
Igualmente, o compromisso de reciprocidade da Polônia. O mesmo ocorreu com
outras traduções, que não foram oferecidas de início.
A defesa sustenta que tais documentos eram imprescindíveis à articulação
de suas razões, cujo âmbito a lei restringe, quase exclusivamente, aos defeitos de
forma (art. 10). Não se trata, pois, daqueles documentos cuja apresentação ulte-
rior a lei faculta ao Tribunal determinar (art. 10, § 2º ). Importando tal deficiência
em sacrifício da defesa, os pedidos não poderiam ser acolhidos.

270
Ministro Victor Nunes

O Procurador-Geral, tendo em vista o art. 10, § 2º, do DL 394/38, responde


que os documentos, de começo omitidos e pelos quais protestaram os Estados
requerentes, foram trazidos em tempo oportuno. Quanto ao pedido formal de
extradição da Áustria, poderia haver dúvida, se tivesse vindo além dos sessenta
dias da prisão provisória. Mas ele deu entrada no Itamarati em prazo útil; pela
demora da sua remessa ao Supremo Tribunal não poderia responder o Estado
requerente.
c) Competência
7. Princípio territorial. Esse princípio, no que toca a jurisdição do Esta-
do requerente (DL 394/38, art. 3º), é sustentado pela Áustria, quanto a Hartheim;
pela Polônia, quanto a Sobibór e Treblinka; pela Alemanha, quanto a Treblinka,
porque, ao tempo dos crimes, aquela parte do território polonês estava sob ocupa-
ção alemã. Cita a respeito a Convenção de Haia, de 1907 (Ext 274, fl. 19).
O Procurador-Geral concorda com a Áustria e com a Polônia, mas con-
testa a Alemanha, porque o art. 43 da citada Convenção não a favorece, nem foi
ela ratificada pela Polônia.
8. Princípio da nacionalidade ativa. É invocado pela Áustria, quanto aos
crimes do Sobibór e Treblinka, porque o acusado tem a nacionalidade austríaca
(Código Penal da Áustria, § 36). O Prof. Haroldo Valadão manifesta-se de acor-
do, esclarecendo que esse princípio data do Código austríaco de 1803, § 30, e foi
mantido no de 1852, §§ 36 e 235, sendo igualmente admitido no Código Penal
brasileiro, art. 5º, II.
No mesmo princípio funda-se o pedido da Alemanha, quanto a Treblinka.
Nos autos, citou o § 4, inciso 3, item 1, do Código Penal alemão, que se refere às
“infrações cometidas no estrangeiro por um estrangeiro (...) na qualidade
de titular de uma função pública alemã (...)”. Está de acordo o Procurador-
Geral. Mas, no memorial da Alemanha e no parecer do Ministro Nelson Hungria,
o mesmo princípio da personalidade ativa é lembrado também sob outro aspecto:
ao tempo dos crimes, Stangl era alemão, em virtude do Anchluss (Decreto de 3-
7-1938), e a reaquisição da nacionalidade austríaca, só efetuada por lei de 10-7-
45, não tem efeito retroativo.
d) Prescrição
9. Hartheim. Em face da exigência da nossa lei de extradição, de não
estar prescrita a ação penal, seja pelo direito do Estado requerente, seja pelo
direito brasileiro (art. 2º, V), sustenta a Áustria que a instrução criminal instaura-
da em Linz interrompeu a prescrição quanto aos crimes de Hartheim. Stangl
serviu em Hartheim até agosto de 1941 e foi interrogado, pela primeira vez, na-
quele processo, em 21-7-47, ficando logo ciente da ordem de sua prisão preventiva;

271
Memória Jurisprudencial

em 19-5-48, também tomou ciência pessoal da acusação do Ministério Público.


Tendo fugido no dia 30, por mais este motivo ficou interrompida a prescrição,
segundo a lei austríaca.
A defesa argumenta, em contrário, pela forma seguinte:
a) A falta de especificação dos fatos não permite precisar o termo inicial
da prescrição, mas pode-se admitir que seja o último dia de agosto de 1941.
b) A prescrição, no caso, pelo direito austríaco (§ 228, b, in fine), seria de 5
anos, e não de 20, porque Stangl fora inicialmente acusado pelo § 5º do Código
Penal austríaco, ou seja, por simples cumplicidade em homicídio (pena máxima de
dez anos, § 137 StG); estava, pois, consumada, em 30-8-46, antes do mencionado
interrogatório de 21-7-47.
c) Também há prescrição intercorrente, pois o último ato daquele processo
foi a requisitória de 7-7-48; a contar desse ato, mesmo o prazo de 16 anos da lei
brasileira (pena abstrata de 10 anos, do direito austríaco) escoou-se em 6-7-64.
d) A acusação do MP alterou a classificação inicial do Juiz de instrução,
para atribuir co-autoria — e não cumplicidade — a Stangl, o que eleva o prazo
prescricional para 20 anos; mas essa alteração foi feita em 25-3-48, quando já
prescrita a ação penal pela classificação anterior de cumplicidade.
e) Essa alteração in pejus era, de resto, inadmissível, porque o próprio MP,
ao descrever os fatos, excluiu a participação pessoal de Stangl “na última execução
dos homicídios”; sua posição, portanto, só podia ser de cúmplice, e não de co-autor.
f) Outros co-réus naquele processo, com atuação mais comprometedora
que a de Stangl, foram classificados como cúmplices na sentença proferida pelo
Tribunal de Linz, e sofreram penas, respectivamente, de 3 anos e de 5 anos e
meio.
Também argumentou a defesa, com o caráter meramente ordinatório do ato
judicial de abertura da instrução, inábil, portanto, para interromper a prescrição.
Este assunto será mencionado mais adiante, em relação ao pedido da Alemanha.
O Procurador-Geral, Prof. Haroldo Valadão, impugna a interpretação da
defesa, porque o § 5º do Código Penal da Áustria, referido na primeira ordem de
prisão preventiva e do qual resultaria a pretendida classificação de mera cumpli-
cidade, não exclui a participação a título de co-autoria, caso em que é aplicável a
mesma pena cominada para a autoria. Além disso, a peça que se leva em conta,
para a prescrição in abstracto, é a denúncia; e a classificação na denúncia foi de
co-autoria.
De outro lado, a defesa teria confundido homicídio simples com homicídio
qualificado. O caso dos autos é realmente de homicídio qualificado, tanto pelo

272
Ministro Victor Nunes

Código austríaco, § 135, inciso 3, como pelo Código brasileiro, art. 121, § 2º. A
prescrição, portanto, nos dois países, é de 20 anos (pena in abstracto), e foi
regularmente interrompida em 1948, consoante os critérios legais da Áustria e do
Brasil.
Argumentação semelhante desenvolve o memorial do advogado da Áustria.
Sustenta ele, ademais, que somente o direito do Estado requerente deve regular
os casos de interrupção de prescrição.
Quanto aos efeitos da abertura da instrução criminal, na Áustria, estende-
se o Procurador-Geral, em seu parecer, na demonstração de que ela equivale ao
nosso recebimento da denúncia, que interrompe a prescrição. Mais abaixo volta-
remos a esse tema.
10. Sobibór e Treblinka (Pedido da Polônia). Sustenta a Polônia que,
pelo seu direito (inclusive pelo Decreto de 22-4-64, sobre os crimes hitleristas da
Segunda Grande Guerra), não ocorreu a prescrição.
Argumenta, porém, a defesa que o Brasil não editou lei especial sobre a
prescrição nos crimes de guerra ou de genocídio, nem dispôs a respeito em trata-
do, sendo, pois, aplicável o direito comum. Assim é, em face da própria Conven-
ção sobre Genocídio, que ratificamos. Uma vez que não se praticou, na Polônia,
qualquer ato ao qual, pela lei brasileira, se possa atribuir efeito interruptivo da
prescrição, esta se consumou, inequivocamente.
O Procurador-Geral manifestou-se de acordo com a defesa, quanto a essa
prescrição, em face da lei brasileira (20 anos). Ainda — diz ele — que se atribu-
ísse efeito interruptivo a depoimentos prestados contra Stangl, perante o Juiz de
instrução do Tribunal polonês de Sielce, em 9-10-45 e em 3-12-45, o prazo
prescricional ter-se-ia completado em 3-12-65.
11. Treblinka (Pedido da Alemanha). O memorial da Alemanha e o pare-
cer do Ministro Nelson Hungria argumentam longamente no sentido de que a
acusação do Ministério Público, apresentada em 3-5-60, e a sua aceitação, no dia
seguinte, pelo Juiz de instrução de Düsseldorf, equivale, no nosso direito, ao ofe-
recimento e recebimento da denúncia, com efeito interruptivo da prescrição. Pelo
Código alemão, por outro lado, é indiscutível esse efeito, pois ele se contenta (§ 68)
com “qualquer ato do juiz dirigido contra o acusado em razão do crime cometido”.
O Ministério Público assim se expressara: “Acuso os acima citados de
terem eliminado seres humanos (...)”, etc. A esse ato — diz o Ministro Nelson
Hungria — o art.170 do Código processual alemão chama Antrag. Ele
corresponde à denúncia (ou aditamento à denúncia), por ser um pedido de aber-
tura da instrução criminal, que é indeclinável nos processos do júri, em cuja com-
petência se inclui o homicídio. Ao ato de acusação posterior (a Anklageschrift),

273
Memória Jurisprudencial

previsto ali para tais processos, o que se assemelha em nosso direito não é a
denúncia, mas o libelo acusatório.
Na mesma linha, acentua o memorial da Alemanha que o ato de iniciativa
da ação penal, equiparável à denúncia do direito brasileiro, assume, na Alemanha,
ou a forma de “requerimento de instrução” do processo, ou a forma de “acusa-
ção” apresentada ao Tribunal. A primeira forma — o requerimento da instrução
prévia — é obrigatória em se tratando de homicídio, que é da competência do júri
(Lei de Organização Judiciária, § 80; Código Processual, §§ 170 e 178). Foi o
que se verificou no caso de Stangl.
Em sentido coincidente desenvolve-se o parecer do Professor Haroldo
Valadão, estabelecendo paralelo entre o nosso processo do júri, que tem denún-
cia e libelo, e o processo por homicídio perante o júri alemão, que tem,
correspondentemente, o Antrag (ou a Anzeige) e a Anklageschrift (Ext 274, fls.
224 ss). Essa mesma argumentação foi por ele deduzida, no pedido da Áustria,
em relação aos crimes de Hartheim (Ext 272, v. 3, fls. 874 ss).
A defesa também discute esse problema extensamente. Observa que, no di-
reito brasileiro, o despacho de recebimento da denúncia — que interrompe a prescri-
ção — é “ato rigorosamente decisório, ou de verdadeira jurisdição”. Entretan-
to, o ato praticado pelo Juiz de Düsseldorf, estendendo a instrução criminal a
Stangl, a pedido do MP, tem caráter simplesmente ordinatório. Se fosse
decisório, teria sido intitulado Urteil, mas foi oficialmente denominado Beschluss
(decreto). Esse vocábulo, do mesmo modo que Verfügung (ordem), não traduz o
exercício de verdadeira jurisdição.
Socorre-se a defesa, neste passo, do comentário de Fernand Daguin (Code
de Proc. Pén. Allem., 1884, p. 25, nota 1). Segundo seu ensinamento, o vocábulo
alemão designativo das decisões em sentido genérico é Entscheidung. Para a
decisão que encerra os debates em primeira instância, ou que é proferida em
grau de recurso ou revisão, usa-se Urteil. As decisões que determinam medidas
de instrução, ou regulam a marcha do processo, ou deixam de receber um recur-
so, têm o nome de decreto (Beschluss), ou ordem (Verfügung), sendo tomadas
geralmente por juiz singular (Mem., pp. 40-41).
O Professor Haroldo Valadão observa, entretanto, que a palavra decisão,
na citada passagem de Daguin, compreende aquelas três formas de atos judiciais,
identificando-os a todos como atos de jurisdição. E contrapõe à defesa outro
excerto do mesmo autor (ob. cit., p. 103), segundo o qual, através de uma ordem,
ou ordennance (portanto, Beschluss ou Verfügung), é que o juiz, considerando
admissíveis as conclusões apresentadas pelo Ministério Público, determina a
abertura da instrução. Equivale, pois, esse ato, indiscutivelmente, ao nosso rece-
bimento da denúncia, com efeito interruptivo da prescrição.

274
Ministro Victor Nunes

Discute, finalmente, a Alemanha, em seu memorial, o problema do obstáculo


à ação da Justiça, ao qual atribui efeito interruptivo da prescrição. Pelas circunstân-
cias do domínio nazista e da guerra, finda a qual se instalaram tribunais internacio-
nais na Europa, os tribunais alemães, somente quando os aliados reconheceram a
Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, em 8-5-1949, é que adquiri-
ram, além de sua liberdade, jurisdição plena para julgar crimes cometidos contra
vítimas estrangeiras, como é o caso de Stangl. Por mais esse motivo, não estaria
prescrita a ação penal contra ele instaurada na Alemanha em maio de 1960.
12. Sobibór e Treblinka (Pedido da Áustria). O que se discute, nos au-
tos, quanto ao pedido da Áustria, é se a ordem emanada do Tribunal de Viena, em
21-3-62, interrompeu a prescrição, consoante o critério do direito brasileiro; em
outras palavras, se aquele ato é comparável, para tal efeito, ao início da instrução
criminal, isto é, ao nosso despacho de recebimento da denúncia.
O Procurador-Geral responde afirmativamente, pois é indispensável adap-
tar, por via de interpretação, as peculiaridades processuais do Estado requerente
e do Estado requerido. A questionada decisão judicial fora expedida com funda-
mento nos §§ 134 e 135, inciso 3, do Código austríaco. Era, pois, uma “ordem de
perseguição” (Nacheile), com a qual se averiguaria o paradeiro do acusado, para
a devida persecutio criminis. Era um ato básico da instrução criminal, e o direito
brasileiro, para ter a prescrição como interrompida, se satisfaz com o início da
instrução criminal (Ext 272, v. 3, fl. 876).
O memorial da Áustria chega à mesma conclusão, mas por outro caminho.
Sustenta que as causas de interrupção da prescrição devem regular-se, tão-somente,
pelo direito do país em que elas se verifiquem. Sob esse aspecto, a lei austríaca
tem eficácia no Brasil.
Pela referida ordem do Tribunal de Viena, Stangl foi citado por edital, e
isso bastava para interromper a prescrição, consoante o § 227 do Código Penal
da Áustria: ele menciona, expressamente, “a perseguição do indiciado ou a sua
procura através de editais”. Em 16-3-66, verificou-se nova interrupção do prazo
prescricional, com a ordem judicial de prisão.
A defesa, entretanto, sustenta a nenhuma eficácia, quanto à interrupção da
prescrição, daquela ordem de 1962, do Tribunal de Viena, baixada com funda-
mento no § 413 do Código processual da Áustria, que se refere ao procedimento
contra desconhecidos, ausentes ou fugitivos.
Visava aquela ordem exclusivamente à determinação preliminar da mora-
da do indiciado. Não pode, pois, ser equiparada ao nosso recebimento da denún-
cia, nem é ato de abertura da instrução. Não é por outra razão — diz a defesa —
que se lhe seguiram, de 1963 a 1965, simples requisitórios informativos aos tribu-

275
Memória Jurisprudencial

nais de outros países. Somente em 16-3-66 é que o Tribunal de Viena emitiu


ordem de prisão contra Stangl, e a abertura propriamente da instrução preparató-
ria só foi determinada mais tarde, em 15-2-67. Consumou-se, pois, a prescrição,
pelos critérios do direito brasileiro, no que toca ao procedimento penal da Áustria
pelos crimes de Sobibór e Treblinka.
O memorial da Alemanha, ao discutir o problema da preferência, também
chega a essa conclusão, pois a ordem do Tribunal de Viena — simples “mandado
de convocação de Franz Stangl, para determinação preliminar de sua morada” —
não tem, pelo direito brasileiro, o efeito interruptivo da prescrição que lhe atribui
a lei austríaca.
e) Concurso de preferência
O Procurador-Geral, como consta do sumário anterior, opinou pela impro-
cedência do pedido da Polônia, com fundamento em prescrição, e pela legalidade
e procedência dos pedidos da Alemanha (Treblinka) e da Áutria (Hartheim,
Sobibór e Treblinka). Deixou de se manifestar sobre a preferência (o que faria
em sessão, oralmente), pois a matéria poderia ficar prejudicada pela decisão do
Tribunal (Ext 272, v. 3, fl. 852).
O memorial da Alemanha, entretanto, cuida do problema, confrontando o
seu pedido com o da Áustria, sem examinar o da Polônia. Tendo em vista os
critérios da lei (art. 6º), a saber, territorialidade, gravidade da infração, precedên-
cia do pedido, nacionalidade, domicílio, argumenta que a preferência cabe à Ale-
manha, pelo critério da gravidade da infração e pelo da territorialidade.
1. Pela gravidade da infração (art. 6º, § 1º, a). A posição de Stangl,
quanto a Hartheim, seria de mera cumplicidade; em Treblinka, era co-autor, em
posição dirigente e atuante. A pretendida motivação em Hartheim (eutanásia)
poderia conduzir ao homicídio privilegiado, o que não ocorre em Treblinka (“ex-
termínio de um povo, por razões torpes”). O número de vítimas, que o nosso
Código de Processo Penal leva em conta (art. 78, II, b), foi incomparavelmente
mais alto em Treblinka. A maior gravidade dos crimes de Treblinka já resulta do
confronto entre os julgamentos proferidos em Linz (Hartheim), com penas leves,
e em Düsseldorf (Treblinka e Sobibór), com penas pesadas (extrato anexo ao
memorial).
Nesse confronto, como se vê, a Alemanha exclui o pedido da Áustria quanto
a Sobibór e Treblinka: a) porque a Áustria não transcreveu o texto legal em que
funda sua competência; b) porque o princípio da nacionalidade ativa operaria em
favor da Alemanha, e não da Áustria, já que Stangl era alemão ao tempo dos
crimes; c) porque não se interrompeu a prescrição na Áustria, já que, em face do
direito brasileiro, é ineficaz o ato que ali teria esse efeito, ao passo que a interrup-
ção perante a Justiça alemã é indiscutível.

276
Ministro Victor Nunes

2. Pelo princípio da territorialidade (art. 6º, caput). O território em que


se cometeram os crimes, na Polônia, estava, ao tempo, sujeito à soberania alemã.
Além disso, a infração foi planejada e parcialmente executada em território ale-
mão, de onde partiam as diretivas, o pessoal, etc., e onde atuavam pessoas em
concurso com os executores dos crimes.
f) Prisão provisória
O Ministro da Justiça, em ofício de 6-3-67, comunicou ao Tribunal haver
ordenado a prisão provisória do extraditando, a pedido da Áustria (HC 44.074, fl.
13). Ao encaminhar, mais tarde, os pedidos da Alemanha e da Polônia (Of. de 18-
3-67), observou que deixara de providenciar a prisão, em tais casos, porque o
extraditando já se encontrava detido, à disposição do Tribunal (Ext 273, fl. 2).
Entretanto, S. Exa., em ofício de 28 de abril, considerando que naquela data
terminaria o prazo de 60 dias, além do qual a prisão não poderia subsistir conso-
ante nossa jurisprudência, comunicou que determinara continuasse o extraditan-
do detido, à disposição do Tribunal (Ext 272, v. 3, fl. 836).
É o relatório, que deixou de ser lido em sessão por ter sido distribuído,
antecipadamente, aos Srs. Ministros, Procurador-Geral e advogados.

SUSTENTAÇÃO DE PARECER
O Sr. Procurador-Geral da República (Professor Haroldo Valladão):
Exmo. Sr. Presidente e Srs. Ministros do Egrégio Supremo Tribunal Federal, são
três os pedidos de extradição: um, da Áustria, onde a pena não é de prisão perpé-
tua (era de morte, passou para prisão perpétua e atualmente, conforme consta
dos autos, por uma lei recente é no máximo de 20 anos; está nos autos o texto
legal); o segundo é o da Polônia, onde a pena é de morte; e o terceiro é o da
Alemanha, onde a pena é de prisão perpétua com trabalhos forçados.
Antes de examinar, rapidamente, um por um, qual fiz no meu parecer escrito,
desejo responder a algumas objeções que acabam de ser aqui apresentadas.
Primeiramente, quanto ao pedido de extradição da Polônia, porque quanto
ao da Áustria houve plena concordância do seu ilustre advogado com a opinião
da Procuradoria-Geral.
Na argumentação do ilustre advogado da Polônia, S. Exa. disse, após citar
a Declaração de Chaputelpeck, que a Convenção de Genocídio das Nações Uni-
das, ratificada pelo Brasil e pela Polônia, não se referira à extradição. No meu
parecer, citei-a, cláusula VII. A Declaração de Chaputelpeck não é Tratado nem
Convenção. A Convenção que está em vigor entre o Brasil e a Polônia é a antes
referida Convenção de Genocídio e diz o seguinte, no caput da cláusula 7ª: “O
genocídio e os outros atos enumerados no art. 3º não serão considerados crimes

277
Memória Jurisprudencial

políticos para efeito de extradição”, aditando na alínea: “As partes contratantes


se comprometem a conceder a extradição de acordo com sua legislação e com
os tratados em vigor”. Assim remete, expressamente, à legislação brasileira
sobre extradição. E, segundo nossa lei, está prescrito o pedido da Polônia, qual
demonstramos em nosso parecer. Foi, data venia, equívoco do ilustre colega.
Mostrei, no meu parecer escrito, que na Polônia não se abriu a instrução
criminal contra Stangl. Mesmo que se quisesse considerar dois depoimentos
prestados em 1945, na Polônia, em que não há mesmo referência a Stangl, mas
sim a outros, como atos de instrução criminal, a prescrição do ponto de vista da lei
brasileira ter-se-ia dado em 1965, pois, nos termos do art. 117, § 2º, do Código
Penal, a prescrição, interrompida, recomeça a correr pelo mesmo prazo. Deixei
isso bem claro em meu parecer, e, como não foi contestado, vou passar aos
argumentos da defesa.
O eminente advogado da defesa começou por uma questão constitucional.
É a primeira vez que tal questão se levanta nesta Corte, embora ela já tivesse
concedido numerosas extradições à Alemanha e a outros países que têm prisão
perpétua. Disse S. Exa. que o problema da prisão perpétua se levanta quanto à
Áustria e quanto à Alemanha. Quanto à Áustria, não! Está aqui a lei austríaca
que suprimiu a prisão perpétua e deu a pena de 20 anos. Portanto, o problema da
prisão perpétua seria apenas quanto ao pedido da Alemanha.
O eminente advogado de defesa procurou condicionar a exigência da Lei
de Extradição, art. 12, letra c, quanto à comutação da pena, aos textos constitu-
cionais, que proíbem certas penas. Eu procurei mostrar, usando a palavra da
moda, a desvinculação entre o texto da Lei de Extradição, que impõe a comuta-
ção de determinadas penas, e o texto da Constituição, que veda certas penas.
Mostrei que, no tempo do Império, não se proibia a pena de morte. No entanto, o
Brasil pactuou a comutação da pena de morte em todos os Tratados então con-
cluídos. Veio a Constituição de 1891 e aboliu as penas de morte, galés e
banimento judicial. E a lei de extradição, então promulgada, 2.416 de 1911, só
impôs a comutação da pena de morte e, indo adiante, também a impôs para a
pena corporal, chibatada, etc. Se houve um ou outro acórdão em que se conside-
rava que, na pena de degredo, haveria pena corporal, a jurisprudência afinal a
excluiu.
Aquela desvinculação caracterizou-se, para o caso, desde a Constituição
de 1934. O eminente advogado não atentou para isso. A Constituição de 1934
declarou o seguinte, art. 113, n. 29: “Não haverá pena de morte, banimento, con-
fisco ou de caráter perpétuo.” Portanto, desde 1934 não há pena de caráter
perpétuo.
E jamais se alegou — como S. Exa. fez por escrito e, agora, na tribuna —
que era preciso pôr o artigo 12, c, da Lei de Extradição de acordo com a

278
Ministro Victor Nunes

Constituição. Ora, a proibição da pena perpétua desde 1934 nunca determinou na


doutrina e na jurisprudência deste Tribunal, quer na vigência da Lei 2.416, quer na
vigência do atual Decreto-Lei 394, dúvidas na matéria. O Decreto-Lei n. 394, o
que fez? Obrigou à comutação apenas da pena de morte. Não se refere à prisão
perpétua. Portanto, vamos dizer, de 1934 até hoje, há 33 anos, o Supremo Tribunal
aplica quer a Lei 2.416, quer o Decreto-Lei 394, sem incluir aí, como pretende,
agora, o eminente colega, nesse novo texto, a prisão perpétua. E deveria, então,
incluir também essas outras penas que salientei.
A afirmação ad majorem que fiz em meu parecer está ligada a outra
frase. Eu disse o seguinte: os Estados juntaram declarações, pelas quais se obri-
gavam, a Polônia a comutar a pena de morte na pena inferior e a Alemanha:
“estamos prontos a comutar, mas informamos que não temos nem pena de morte
nem penas corporais” e a Áustria a mesma coisa. Ora, se esses Estados apre-
sentaram essas declarações, baseados na nossa lei, e nós, na hora do julgamento,
vamos mudar a lei e a jurisprudência, incluindo outro caso de comutação, seria
surpresa para os Estados que tinham apresentado os seus compromissos.
Alega-se também — e, como a defesa não insistiu, por este ponto passo de
leve — que esses compromissos deveriam ser contemporâneos ao pedido. Não é
exato. No art. 12 do Decreto-Lei 394, regulando o processo, após o julgamento
da extradição, está dito que “a entrega não será efetuada sem que o Estado
requerente assuma os compromissos seguintes: (...) d) comutar-se na prisão a
pena de morte ou corporal com que seja punida a infração”.
Nesse sentido há um voto magnífico do eminente Ministro Luiz Gallotti,
mostrando que isso não seria dever do Tribunal ao julgar, mas, sim, do Governo,
ao entregar o extraditando.
Entremos, agora, nos fatos. Aí o eminente advogado de defesa escreveu 4
ou 5, ou 6 ou 8, ou 10 folhas para dizer que não havia indicação precisa, como diz
a lei, dos fatos, da data e do local, e cita até aquela célebre frase que o grande João
Mendes Júnior vulgarizou: Quis? Quid? Ubi? Cur? Quemodo? Quando?, in-
terrogações que me dei ao trabalho de responder, uma por uma, após citar as
folhas dos autos. Não há a menor dúvida. É completa a discriminação do crime:
natureza, autoria, local, data, minuciosamente. Crimes de Treblinka, por exemplo,
de agosto de 1942 a agosto de 1943. Onde? Em Treblinka. Como? Chegada dos
condenados à morte, a preparação para o banho, a entrada na câmara de gás, a
retirada dos cadáveres. Tudo descrito.
Diz S. Exa. que está em estilo jornalístico. Não posso admitir. São deci-
sões fundamentadas de três Tribunais, e os eminentes Senhores Ministros podem
ler — e eu não vou ler agora — que está tudo precisado: a data, o local, a autoria,
a co-autoria, com todo o rigor técnico-jurídico.

279
Memória Jurisprudencial

Evidentemente, se diz que o crime é em massa, e nós vivemos a época da


massa. Nessa técnica do crime em massa, não é possível perguntar, como o fez
o eminente advogado de defesa: a que horas, dia da semana e do mês, exatamen-
te, e qual o nome da vítima, Pedro ou João? E isso porque a morte foi às cente-
nas, aos milhares, nas câmaras de gás.
Aquela referência ad majorem, que fiz, de que esses fatos de Treblinka já
são hoje objeto de livros, de revistas, de artigos de publicação no mundo inteiro, só
veio, assim para corroborar, o exame detido que fiz em cada um dos pedidos que
examinei, citando as folhas em que estavam descritos a data, e local e a natureza
dos fatos.
Compreendo o calor, muitas vezes mesmo excessivo, do eminente advogado
de defesa.
A Procuradoria-Geral, entrando por dever de ofício num campo que é do
eminente advogado, no processo criminal, apresentou uma construção jurídica
que, a seguir, o Ministro Nelson Hungria apoiou precisamente no seu parecer e
que encontra toda a base no Direito brasileiro.
É a propósito da prescrição em face da lei brasileira.
O nosso Código Penal, art. 117, I, declara que interrompe a prescrição o
recebimento da denúncia ou da queixa e, pois, o ato pelo qual o juiz recebe a
denúncia ou a queixa.
Ora, os processos criminais austríaco, alemão e polonês são processos
semelhantes ao nosso antigo processo criminal ordinário do tempo do Império e
que vigorou na Justiça Federal até 1937 e em diversos Estados durante a Repú-
blica até os seus Códigos. Eu fui Procurador Criminal da República em 1933. O
eminente Ministro Luiz Gallotti lembra-se desse regime processual. E vigorou no
Distrito Federal até 1923 para os Crimes de Varas, em que havia sempre a pro-
núncia e a impronúncia. Só nos crimes secundários, no tempo do Império, nos
crimes policiais, se declarava que não havia sumário de culpa, que não havia
pronúncia ou impronúncia, chegando, depois, ao julgamento.
Ainda há dias, o Ministro Nelson Hungria dizia-me: “Eu, como promotor
em Minas, 1913/1914, fiz muitos libelos contra ladrões de cavalos, porque tal crime,
de processo ordinário, tinha pronúncia e impronúncia”. Depois é que os novos Có-
digos tiraram do processo comum certos crimes e deixaram no processo clássico
apenas o de júri.
De forma que, na Alemanha e na Áustria (e estão aqui os seus códigos de
instrução criminal) separam-se, categoricamente, a instrução criminal prévia e o
julgamento.

280
Ministro Victor Nunes

Mas no Brasil é a mesma coisa. Desculpe-me entrar em sua área, mas é


um dever do ofício. Veja V. Exa. o Código de Processo Penal: “Livro II — Dos
Processos em Espécie — Título I: Do Processo Comum”. É o processo comum
que nós estamos estudando, não é o processo de falência ou o de contravenções
ou outro especial que V. Exa. veio, agora, referir. Os processos que estão correndo
na Áustria são típicos do processo comum. Mas, continuando a leitura do nosso
Código de Processo Penal:
“Do processo comum: Capítulo I — Da instrução criminal”. Como se
abre a instrução criminal? Eis o primeiro artigo desse Capítulo, o de n. 394: “O
juiz, ao receber a queixa, ou denúncia, designará dia e hora para o interrogatório,
ordenando a citação do réu e a notificação do Ministério Público, e, se for caso,
do querelante ou do assistente”. Eis aí: o recebimento da denúncia é, em nosso
direito, a abertura da instrução criminal? Se não é abertura da instrução crimi-
nal, não sei o que é!
Agora, nos outros capítulos do mesmo título, Do Processo Comum, nos
Capítulos II e III, é que vem o julgamento. Aí é outra coisa. “II. Do processo
dos crimes da competência do júri”, e, depois, “III. Do processo e do julgamento
dos crimes da competência do juiz singular”.
Portanto, nós, no Brasil, temos também a instrução criminal, que se abre
com a denúncia.
E veja o eminente colega qual a diferença?
É que, no processo do tempo do Império (é a dimensão histórica), na maioria
dos crimes, a denúncia era mais simples, mas era uma denúncia; o promotor dava
a denúncia e se referia ao fato, à autoria, etc. Eu fiz isso muitas vezes como
Procurador Criminal, no Rio, 1933/34. Pedia com a denúncia a abertura do sumá-
rio da culpa.
Fazia-se o sumário e, no fim do sumário, o Juiz procedia o interrogatório do
réu, que podia juntar documentos em três dias. E a jurisprudência entendeu que,
com essa juntada de documentos, era possível a apresentação de defesa prévia e,
a seguir, o Juiz pronunciava ou não. Depois, então, é que vinha o julgamento, que
começava pelo libelo-acusatório. Aí surgia o contraditório, com a contestação do
réu.
Ora, este processo é o seguido na Alemanha e na Áustria.
Posso, rapidamente, mostrar, aqui, por exemplo, o Código de Instrução
Criminal da Áustria.

281
Memória Jurisprudencial

“Capítulo X. Da Instrução dos crimes e delitos, em geral.


Art. 91. La mise en accusation (ch. XVI) doit être précédée d’une
instruction lorsqu’il s’agit d’un crime dont la cour d’assises doit connaítre,
ou lorsque la poursuite est dirigée contre un absent. Dans tous les autres
cas, le ministère public ou, lorsqu’il y a lieu, l’accusateur privé, apprécie s’il
y a lieu ou non de requérir une instruction. L’instruction a pour but de
soumettre à un examen préslable l’inculpation dont une personne est
l’objet et de recueillir les éclaireissements nécessaires pour permettre
motiver soit la suspension de la procédure, soit la mise en accusation et le
renvoi devant le juge du fond.
Art. 92. Le juge d’instruction ne doit commencer une instruction
qu’à raison d’un acte punissable, et seulement contre les personnes à l’
égard desquelles il a été requis d’instruire par un accusateur autorisé.
Lorsque le ministère public requiert qu’une instruction soit commencée, il
transmet au juge d’instruction la dénonciation, les moyens de preuve qu’il a
recueillis et les constatations auxquelles il a été procédé. Si le juge
d’instruction éprouve des doutes sur le point de savoir a’sil y a lieu de faire
droit à la réquisition d’ instruire, il provoque sur ce point une décision de la
chambre du conseil. Il prend part à la délibération, mais non à la décision.
Le ministère public doit être averti à l’avance du délibéré afin qu’il puisse
exposer son opinion oralement ou par écrit.”
Essa denúncia simples é a Anseig na Áustria e a Antrag na Alemanha.
Com essa denúncia do Promotor, o Juiz defere a abertura da instrução e a
dirige, segundo se vê dos artigos seguintes.
No fim dessa instrução criminal prévia é que aparece a diferença de nosso
processo clássico: se o Promotor acha que não tem base para continuar, ele pede
ao Juiz a suspensão do processo, o que, em verdade, equivale, se o magistrado
aceita, a uma impronúncia. Se o Promotor acha que tem base, então apresenta a
denúncia articulada, a Anklageschrift, o ato de acusação, o libelo acusatório
com que se passa à fase do julgamento com os debates (Hauptverhandlung).
Está aí o processo, na Áustria e na Alemanha.
Já demonstramos, com base em nosso Código de Processo Penal, que, se
o que interrompe a prescrição é o recebimento da denúncia, a conclusão inegável
será de que a abertura da instrução criminal interrompe a prescrição.
O que o Direito brasileiro exige é que se tenha aberto a instrução criminal,
como está nos arts. 91 e 92 do citado Código da Áustria, e nos correspondentes
arts. 176, 177 e seguintes.
Aberta assim, como foi, com a denúncia do Promotor, a instrução criminal,
ficou interrompida a prescrição na Áustria e na Alemanha.

282
Ministro Victor Nunes

Dir-se-á, e também disse o ilustre advogado: mas quanto ao ausente?


Quanto ao ausente é outro caso, pode estar sujeito à instrução criminal
mas não pode ser julgado qual se vê dos arts. 412 e 421 do Código da Áustria e
319 e 327 do Código da Alemanha.
E o que se diz no Brasil? Diz o nosso Código de Processo Penal que o
processo não prosseguirá até que o réu seja intimado da sentença, art. 413. Não
é possível colocar no Júri um boneco na cadeira do réu.
Na Áustria e na Alemanha, como no Código Criminal do Império, do Bra-
sil, como hoje, no nosso Código de Processo Penal, para os crimes de Júri, há
uma denúncia e um libelo.
O que interrompe a prescrição?
Diz S. Exa., pelo que entendi, que seria o libelo e não a denúncia.
Para mim, sempre a denúncia interrompeu a prescrição. No Brasil, mesmo
no regime do Código Criminal do Império, nunca uma denúncia, porque seria uma
simples denúncia e não um libelo articulado, deixou de interromper a prescrição.
E se interrompe aqui, como não irá interromper na Alemanha e na Áustria?
Portanto, essa construção que fizemos, com base sólida dos textos, data
venia do eminente advogado e processualista, esclarece, definitivamente, a inter-
rupção da prescrição.
Tomei, no assunto, as dimensões histórica e comparativa. Com tais dimensões
muitas coisas se iluminam e dúvidas se espairecem.
Há, ainda, um ponto: S. Exa. diz que teria citado o art. 135, item III, do
Código Penal austríaco, que não consta do processo.
A menção a esse texto consta do relatório feito pelo eminente Ministro
Victor Nunes Leal e, ainda, das folhas 12 do processo em alemão, Nacheile, §§
134, 135, III, do Código Penal, e, a seguir, na tradução portuguesa à fl. 25, nos
mesmos termos: Resolução do Tribunal de Viena, de 21 de março de 1962, por
causa de crime de homicídio conforme os arts. 134, 135, III, da Lei Penal.
O eminente colega equivocou-se, talvez, apaixonado, porque critiquei, com
o maior respeito e com toda a consideração que merece, a desclassificação do
direito que S. Exa. quis fazer para efeito da prescrição.
Repito que está também no relatório do eminente Ministro Relator a cita-
ção desse art. 135, III, na decisão de 21 de março de 1962, do Tribunal de
Viena.
E, no meu parecer escrito, citei tais folhas onde há referência àquele texto
legal, ao art. 135, n. 3.

283
Memória Jurisprudencial

O Sr. Xavier de Albuquerque (Advogado de Defesa): São fatos de


Treblinka, eminente Sr. Procurador. Eu me referi a Hartheim.
O Sr. Procurador-Geral da República (Professor Haroldo Valladão): Essa
restrição, agora, não altera o fato de constar dos autos a referência ao art. 135, 3,
do Código Penal.
No julgamento de Hartheim, quando foi na hora do julgamento, o Tribunal
deixou de julgar Franz Stangl, porque tinha fugido. Mandou, então, que se expe-
disse uma Nacheile, semelhante, de acordo com o art. 416, do Código Penal.
O ilustre colega negou referência ao art. 135, n. 3, porque S. Exa. quis
desclassificar o crime, para descobrir uma prescrição especial para Hartheim.
Mas S. Exa. não podia impedir argumentasse eu aí, também, com aquele
texto, referido e transcrito na íntegra nos autos, fls. 18/16 e 26/28 e 40/44 e 55/58,
§§ 134, 135, n. 3, e 136.
O Código Penal alemão tem o art. 134, sobre o homicídio em geral.
Depois, no art. 135, n. 1 a 3, tem o homicídio qualificado, no n. 4, o homicídio
ordinário, no art. 136, as penas do homicídio consumado, e, no art. 137,
certas penas do homicídio ordinário, quando a ação do co-autor, § 5, não foi
ativa, foi afastada.
S. Exa. achou que a denúncia, tendo sido feita pelo art. 136, que comporta o
art. 135, III, e não comporta o art. 137, por aí, ela estava errada; que se devia
aplicar o art. 137, porque se falava, antes, em §§ 5º e 134.
Mostramos que o § 134 é gênero que comporta o § 135, o 136 e o 137,
articulando o Promotor pelo § 136, que comportava o 135, § 3º. E, mais, que o §
5º do Código Penal alemão é co-autoria, no sentido clássico, de pena igual. Os
próprios comentadores, que S. Exa. conhece, dizem que a pena é igual.
O pleiteado art. 137 diz que, se essa co-autoria não foi ativa, se correspondeu
a atos afastados, nesse caso, tratando-se de homicídio ordinário, gemeinmurder, a
pena é menor. Daí partiu a defesa para a prescrição menor, de dez anos. Mas,
evidentemente, tal desclassificação era incabível, e, segundo disse, para a prescrição
da ação penal, a pena é em abstrato.
Aliás, do ponto de vista da Áustria, o assunto está resolvido, porque a
Áustria disse que não cabe prescrição contra réu fugitivo. Quanto à Áustria, do
ponto de vista da lei austríaca, ela é radical neste sentido, em texto, aliás, citado
no trabalho do Professor Herzog, art. 229, c.
Eis o texto:
“Toutefois, le bénéfice de la prescription ne sera acquis qu’à celui:
a) qui ne tire plus profit du crime;

284
Ministro Victor Nunes

b) qui, dans la mesure où la mature du crime le permet, a fourni


réparation dans la limite de de ses possibilités;
c) qui, ne s’est pas enfui hors du territoire;
d) qui n’a plus commis de crime dans le délai fixé pour la
prescription.”
Portanto, não havia mais questão, do ponto de vista da lei austríaca. Agora,
do ponto de vista da lei brasileira, procurei mostrar, e vou demonstrar daqui a
pouco, que houve a abertura de instrução criminal.
Já respondi às afirmativas do meu ilustre colega e, agora, reexaminarei,
rapidamente, os pedidos da Áustria e da Alemanha.
A prescrição, do ponto de vista da lei austríaca, já mostrei que não há. A
prescrição, na Áustria, é de vinte anos. E quanto a Hartheim, o processo iniciou-
se em 1946 e 1947; houve interrogatório, houve vários atos da instrução criminal
e chegou a haver o libelo. Só não houve o julgamento, porque ele fugiu. O libelo é
de 1948. Ele fugiu na véspera do julgamento.
Quanto a Treblinka, o que há é uma decisão do Tribunal de Viena.
Essa decisão o que faz?
É uma nacheile. Isso é em alemão. É uma tradução difícil em processo
brasileiro, mas, a boa tradução deve ser “persecução judicial”. O Tribunal, saben-
do que um réu cometeu um crime e fugiu, expede um ato de persecução criminal,
baseado no qual qualquer autoridade judicial ou policial pode capturar o réu e
trazê-lo ao Tribunal para o interrogatório e o sumário.
Sustentei que esse ato interrompeu a prescrição, quanto a Treblinka.
Por quê?
Porque esse ato, a nacheile, é um ato de instrução criminal.
E querem ver como é?
O ato está previsto no art. 416 do Código de Processo Criminal da Áustria.
Em primeiro lugar, o ato é de quem?
É do Tribunal de Viena, assinado pelo respectivo Juiz de Instrução. Não é
um ato de uma autoridade policial. É um ato do Tribunal. Esse ato se baseia no
art. 146 e o cita.
Para Hartheim, quando se interrompeu o julgamento, mandou-se expedir
carta semelhante, com base no art. 416.
O que diz o art. 416 do Código de Processo Criminal austríaco?

285
Memória Jurisprudencial

“Art. 416. Des lettres patentes d’arrestation ne seront délivrées


que contre les individus absents ou en fuite dont la résidence sera
inconnue et qui serent soupçonnés gravement d’un crime. En règle
générale, la délivrance de ces lettres sera faite par la chambre du conseil;
dans les cas urgents, par le juge d’instruction.
Il y aura lieu aussi à la délivrance de lettres patentes d’arrestation
(Steck – briefe), quand un individu emprisonné à raison d’un crime
s’échappera de sa prison, étant en état de prévention ou condamné (...)”
Em regra geral, a expedição dessa carta é feita pela Câmara do Conselho.
Nos casos urgentes, qual se viu, pelo Juiz de instrução.
Como o advogado sabe, melhor do que eu, o Tribunal criminal é coletivo, e
há as diversas competências, inclusive da Câmara do Conselho do Tribunal. Quan-
do o caso é mais grave e urgente, o próprio Juiz de instrução expede a carta.
Portanto, esse documento, a meu ver, interrompeu a prescrição. Dir-se-á:
mas não se juntou a denúncia do Promotor, pedindo a abertura da instrução. Mas
também não foi feito isso ao processo de Hartheim.
A instrução estava aberta. Se não estivesse, como o Juiz de instrução
poderia expedir a carta? É um ato do Juiz de instrução.
Como o réu fugiu em 1948, e o ato é de 1962, qual a conclusão a que
cheguei? É que a instrução foi aberta antes de 1962, porque é contra o fugitivo.
Se foi antes de 1962, está interrompida a prescrição, pois é de vinte anos.
É ou não ato de instrução criminal? Não se pode dizer que seria prisão
preventiva decretada em inquérito policial, pois, na Áustria inexiste inquérito po-
licial, e a prisão é sempre durante a instrução.
O que temos em vista é um ato do Juiz de instrução: é a abertura da
instrução criminal e foi o que houve, e a interrupção se deu em 1962.
Antes de sair do pedido da Áustria, devo dizer que a nossa lei de extradição
declara que, para ser concedida a extradição, é preciso que o crime se tenha passa-
do no território do Estado que a pede ou seja punível de acordo com suas leis.
O crime de Hartheim passou-se na Áustria. Portanto, quanto a Hartheim,
não há dúvida alguma.
Quanto ao de Treblinka, não se passou na Áustria, passou-se na Polônia.
Mas o Código Penal da Áustria diz, no § 36, o que está no art. 5º, II, a, do nosso
Código Penal. Ele diz que a Áustria não dá a extradição de austríaco, mas pro-
cessa, julga e pune qualquer austríaco que pratique um crime no estrangeiro. Foi
baseada neste artigo que a Áustria pediu a extradição. Portanto, é o princípio da
personalidade ativa, pois o extraditando é austríaco, ao lado do outro, da
territorialidade.

286
Ministro Victor Nunes

Quanto ao pedido da Alemanha, o processo está muito bem organizado, e o


Governo alemão diz o seguinte (vou argumentar com a nota verbal do Governo
alemão, não vou argumentar com o memorial do ilustre advogado): “Presumida-
mente austríaco”. Não diz que ele é alemão. Está aqui, na nota verbal do Governo
alemão.
Outra coisa: o Juiz alemão pediu a extradição, baseado na personalidade
ativa do art. 4º, § 3º, n. 1, do Código alemão.
O que diz o art. 4º, § 3º, n. 1, do Código Penal alemão?
“§ 3º Indépendamment du droit en vigueur au lieu de l’infraction, le
droit pénal allemand s’applique également aux infractions commises à
l’étranger par un étranger, ènumérées ci-aprés:
1. celles commises par l’étranger en sa qualité de titulaire
d’une fonction publique allemande, ou celles dirigées contre un
titulaire d’une telle fonction dans l’exercice de cette fonction”. Les
Codes Pénaux Européens, vol. I, p. 6 (Centre Français de Droit
Comparé, Paris).
Aí é que se baseou o Tribunal alemão.
O Tribunal alemão pede a extradição, alegando que Franz Paul Stangl é
estrangeiro — não é alemão — que cometeu um crime no estrangeiro, em
Treblinka, mas é um funcionário ou um soldado alemão.
A Embaixada Alemã, na nota verbal, alega, não com muita ênfase, que o
crime, sendo cometido em Treblinka, e sendo Treblinka território ocupado pelos
alemães durante a guerra, de acordo com a Convenção da Haia sobre a guerra
terrestre, o crime teria sido cometido na Alemanha.
Data venia, na verdade, não tem o menor fundamento jurídico essa afir-
mação. Constestei-a em meu parecer, e vou repetir, porque foi realegada pelo
ilustre advogado.
Distingue-se, no Direito Internacional, a invasão, a ocupação e a anexação.
Mesmo no caso da anexação, se ela não perdura quando acaba a força, e
o país ou território anexado volta ao seu antigo proprietário, nunca mais este outro
vai aplicar aos fatos cometidos anteriormente uma lei estrangeira. Jamais.
Veja-se o absurdo da alegação: então, tudo o que se passou em Treblinka
durante a ocupação alemã, os nascimentos, os óbitos, os casamentos, os crimes,
tudo é da competência da Alemanha?
Isso nem o Juiz alemão pediu, nem é possível sustentar, em Direito Inter-
nacional. Nem vou citar autores, tão corrente a matéria.

287
Memória Jurisprudencial

O próprio artigo da Convenção da Haia, que a Polônia não ratificou, diz


que o exército de ocupação manterá as leis, salvo impedimento absoluto, sendo
expressa quanto à lei penal.
Tenho, a respeito, uma referência de alta relevância.
Encontrei caso interessantíssimo, fazendo um estudo em profundidade,
através do clássico Ortolan, no seu Elements de Droit Penal, 2ª ed., Paris, 1859,
n. 942. Ele cita este caso: um francês cometeu, em Barcelona, em 1811, um
crime, quando Barcelona era território ocupado pelas forças francesas. Fugiu
para a França e lá foi processado em 1817. No Tribunal francês (o Procurador-
Geral não era eu), o Procurador-Geral alegou que o crime fora cometido em
território francês, porque Barcelona ocupada era território francês. Mas a Corte
de Cassação da França desprezou, dizendo que território ocupado pela França
não era território francês.
Nessa parte, temos vários autores: Paul Bernard, no livro fundamental,
Traté Théorique et Pratique de l’Extradition, e os internacionalistas em geral,
Sereni, Quadri, Accioly, Fiore. Cessada a ocupação, retornado o governo do Es-
tado ocupado, nenhuma dúvida se admitirá quanto à competência para os crimes
ali cometidos durante a ocupação.
Então, a Alemanha só tem um título, o que acabei de dar, de punir, no
estrangeiro, um estrangeiro: porque esse estrangeiro era funcionário público, era
soldado alemão.
Quanto à interrupção da prescrição na Alemanha, não há dúvida alguma: a
denúncia está transcrita, creio, até no relatório do eminente Ministro Relator e
está junta aos autos, denúncia completa, e também o despacho do Juiz, receben-
do e mandando expedir o mandado, para se iniciar a instrução, tudo em maio de
1960, estando citados os artigos de lei, os fatos criminosos e da co-autoria, com
precisão.
Mas esta denúncia alemã foi para a abertura da instrução; futuramente,
quando acabar a instrução, quando for para o julgamento, virá o libelo, a
Anklageschrift.
Aqui, no Brasil, seria a mesma coisa para o crime de morte. Haveria a
denúncia e depois o libelo.
As dúvidas que o ilustre advogado apresenta, vou refutá-las uma a uma.
A primeira: diz S. Exa. que o recebimento da denúncia, na Alemanha, é uma
beschluss, decisão ordinatória, e não uma urteil, que é a sentença definitiva, final,
no processo alemão, e cita o autor que comenta esse Código de Processo Penal
alemão: Daguin.

288
Ministro Victor Nunes

Mostramos, no parecer escrito com o mesmo Daguin, o contrário. Posso


ler, mas não quero tomar o tempo do Tribunal, pois ele esclarece que a beschluss
é uma decisão, é um despacho igual aos nossos despachos judiciais. É uma deci-
são do Tribunal. E a verfugung é do Juiz: são despachos de recebimento da
denúncia do nosso Direito, e cabe recurso de tais despachos. Isto é muito impor-
tante: cabe ali até recurso do recebimento da denúncia.
O Código de Processo Penal da Alemanha prevê expressamente recurso
contra a verfugung, o despacho que manda abrir a instrução, art. 179, decidido
pelo próprio Tribunal, superior ao Juiz de instrução. Portanto, é até um despacho
recorrível.
Não sou mestre de Direito Processual, e creio que, no Brasil, do recebi-
mento da denúncia não cabe recurso. Só o habeas corpus, que é o remédio
sagrado, extraordinário. Mas, lá, cabe o recurso ordinário.
Diz S. Exa., ainda, que não há na Alemanha processo contra réu ausente.
Aqui, há uma grave confusão, data venia.
No Direito Penal Internacional há um prévio trabalho de indagação e de
adaptação. Não podemos aplicar uma lei estrangeira sem adaptá-la, porque não
podemos conjugar um verbo estrangeiro com o paradigma de um verbo brasileiro.
Quando chegamos lá, temos que estar dentro daquela mesma técnica. É o proble-
ma da adaptação do Direito Internacional Privado. É o direito de adaptação.
Diz S. Exa. que não há processo contra réu ausente na Alemanha. Mas
consta, claramente, do Código de Processo Penal alemão o contrário.
Houve, data venia, uma confusão entre instrução e julgamento. Não há
julgamento, mas há instrução. Está claríssimo.
Vamos aos textos.
Eis o primeiro:
“Art. 319. Les débats ne pourront être ouverts contre un absent
qu’autant que le fait qui formera l’objet de l’instruction ne devra entrainer
que la peine de l’amende ou de la confiscation, queces peines puissent
être prononcées séparément ou conjointement”. Code de Procédure
Pénale Allemand, trad. Fernand Daguin, ed. MDCCCLXXXIV, p. 169
(Imprimerie Nationale, Paris).
A palavra débats, em alemão hauptverhandlung, previstos nos §§ 225 e
seguintes, corresponde ao nosso julgamento.
Ali no processo comum, qual no Brasil nos de júri, não há julgamento se
o réu está ausente, salvo em pequenos delitos, com pena de multa ou confisco.

289
Memória Jurisprudencial

Não há, pois, debates, julgamento. Mas há a instrução. É o que diz outro
texto:
Art. 327. Dans les cas autres que ceux prévus par l’article 319,
les débats ne seront point ouverts contre un absent(2). La procédure
introduite contre l’absent aura uniquement pour but de conserver
intactes les preuves, pour le cas où il comparaîtrait ultérieurement.” Op.
cit., p. 172.
Portanto, quanto ao ausente, nos casos graves, de prisão, pode haver e há
instrução, não, porém, debates, julgamento.
De modo que houve uma confusão manifesta entre instrução e julgamento.
Nesse sentido foi claro Daguin em nota àquele texto:
“(2)Cette disposition n’est que la consácration du principe général
posé par le législateur allemand, principe en vertu duquel il ne peut être
procédé au jugement de l’accusé, lorsque celui-ci ne comparaîft pas.”
Igualmente no Brasil para o julgamento, no direito imperial, e hoje, para o
julgamento do Júri, é indispensável a presença do réu, Código de Processo Penal,
art. 413.
Não sei se há mais algum assunto que ficou em branco, mas, antes de
passar à prioridade, diremos, em síntese, que, na Áustria, não está prescrito, nem
para Hartheim, onde o processo foi até o libelo e ele fugiu em 1948, nem para
Treblinka e Sobibor, porque, tendo havido ato do Juiz de instrução, em 21 de
março de 1962, determinando a prisão do réu, evidentemente, esse ato decorreu
de abertura de instrução criminal feita com denúncia antes, e após a fuga, em
1948.
Na Alemanha, não está prescrita. A denúncia é de maio de 1960, imediata-
mente recebida.
A Áustria é competente porque é o lugar da infração, e competente porque
está punindo seu nacional que cometeu crime no estrangeiro.
A Alemanha só é competente porque está punindo, pelas suas leis, um
estrangeiro que cometeu, no estrangeiro, um crime na qualidade de funcionário
da Alemanha.
Quanto à questão da falta de reciprocidade, o advogado de defesa fez,
data venia, confusão no seu memorial e sobretudo na introdução ao memorial.
O assunto é simplíssimo.
No Direito brasileiro, no tempo do Império, a Extradição era ato adminis-
trativo, quer dizer, o Judiciário não intervinha. O Governo prendia e entregava.

290
Ministro Victor Nunes

Regia-se por quê?


Regia-se pela Circular do Barão de Cairu, de 1847, falando em promessa
de reciprocidade, e pelos Tratados.
Veio a República, e que fez o eminente Pires e Albuquerque, Juiz da 2ª
Vara do Rio de Janeiro?
Vieram pedidos de extradição sem Tratado, e ele disse: “Sem tratado, não
se dá, porque não há lei.”
Já estávamos num regime em que o Judiciário controla tudo. Logo, o Judi-
ciário também controla a extradição.
Disse mais Pires e Albuquerque: “A promessa de reciprocidade não vale,
pois é, de fato, um tratado, que depende de aprovação pelo Congresso”.
Acompanhando o Supremo Tribunal a Pires e Albuquerque, denegando
efeito às promessas de reciprocidade, só reconhecendo a extradição mediante
tratados, foi preciso fazer uma lei de extradição.
Essa lei, 2.416, de 1911, não falou em reciprocidade, e passamos, assim, a
dar extradição independente das referidas promessas de reciprocidade. Só se a
exigiu num caso, art. 1º, para a extradição de brasileiro.
O projeto daquela lei, segundo esclareceu Mendes Pimentel, visou: “dotar
o país de uma lei reguladora da extradição, consoante a qual celebre o governo
brasileiro tratados de remissio deliquentium e atenda a solicitações de países não
ligados ao nosso por convenças internacionais”. (Rev. Forense, IV/77).
Assim a extradição passaria a decorrer do tratado e da lei, superadas as
promessas de reciprocidade.
E assim o entenderam todos os autores brasileiros que apreciaram, em
obras especializadas, a Lei 2.416 de 1911. E os leio, Arthur Briggs, 1919, p. 12;
Coelho Rodrigues, I, 1927, 132; Bento de Faria, 1930, p. 28. E, ainda o Supremo
Tribunal Federal no acórdão leader do saudoso e eminente Juiz e especialista,
Rodrigo Octavio: “A falta de tratado não é, entretanto, obstáculo ao presente
pedido de extradição, em face dos princípios liberais da nossa lei, que autoriza a
extradição independentemente de reciprocidade só exigida quanto à extradição
de nacionais (art. 1º – Rev. de Direito 92/75, e H. Valladão, Estudos de DIP, p.
669, Bolet. Socied. Bras. Dir. Internac. 7/107 e Pareceres de Cons. Geral
República, I/331)”.
Na mesma trilha, a lei atual, o Decreto-Lei n. 394 de 1938, não condicionou
a extradição à existência obrigatória de tratado ou de promessa de reciprocidade.
Só previu e exigiu esta para caso especial, da prisão preventiva antes do pedido
formal, art. 9º.

291
Memória Jurisprudencial

Nesse sentido, também José Frederico Marques, Curso de Direito Penal,


1º vol., p. 294 fine e 295 fine.
Agora o ilustre advogado chega a uma conclusão, data venia, tardia. Diz
S. Exa.: Hoje, com a nova Constituição, as ofertas de reciprocidade não valem
nada, porque a Constituição diz que dependem de aprovação do Congresso trata-
dos, convenções e outros atos internacionais. Já Pires e Albuquerque mostrara
que todos os atos internacionais dependiam de aprovação do Congresso, pois a
palavra tratado compreendia também oferta de reciprocidade.
E a exigência da reciprocidade está superada.
Se a lei não fala em oferta de reciprocidade, como vai o Supremo exigi-la?
Acho que tratei todos os problemas dos três casos.
Agora resta o da prioridade. A quem cabe?
Quem é que deve ter a extradição? A Áustria ou a Alemanha? O art. 6º do
Decreto-Lei 394 diz o seguinte:
“Art. 6º Quando vários Estados requererem a extradição da mesma
pessoa pelo mesmo fato, terá preferência o pedido daquele em cujo
Território a infração foi cometida.
§ 1º Tratando-se de fatos diversos:
a) o que versar sobre a infração mais grave, segundo a lei brasileira;
b) o do Estado que em primeiro lugar tiver solicitado a entrega, no
caso de igual gravidade; se os pedidos forem simultâneos, o Estado de
origem ou, na sua falta, o do domicílio.
Nos demais casos, a preferência fica ao arbítrio do Governo brasileiro.
§ 2º Na hipótese do §1º, poderá ser estipulada a condição de entrega
ulterior aos outros requerentes.
§ 3º Havendo tratado com algum dos Estados solicitantes, as suas
estipulações prevalecerão no que diz respeito à preferência de que trata
este artigo.”
Há assim, desde logo, uma preferência pelo território, uma preferência
inicial que se vai alterar e completar nos outros parágrafos. Os crimes de
Hartheim foram cometidos no território da Áustria, os crimes de Treblinka não
foram cometidos nem no território da Alemanha nem no território da Áustria, e a
extradição pelos crimes de Sobibor até agora só foi pedida pela Áustria. A Ale-
manha tem um pedido a respeito, que está em andamento.
No caso, os crimes de Hartheim, de Treblinka e de Sobibor são crimes de
homicídio qualificado, pelo nosso Direito Penal. Evidentemente, a prescrição é de

292
Ministro Victor Nunes

vinte anos, pouco importa que sejam dez, vinte ou trinta homicídios. Nosso Código
Penal não manda prescrever pela soma de tempo da prisão. Portanto, o número de
fatos criminosos não altera a gravidade da pena.
Nem há aplicar disposições outras, do nosso Código de Processo Penal,
por exemplo, art. 78, que dá preferência, sempre ao lugar da infração, e, no
caso, não se trata de preferência entre lugares dos crimes.
Assim, em face da lei brasileira, há igualdade de pena. Ora, diz a letra b do
parágrafo 2º:
“b) e do Estado em que primeiro lugar tiver solicitado a entrega, no
caso de igual gravidade; se os pedidos forem simultâneos, o Estado de
origem ou, na sua falta, o do domicílio.”
A Áustria solicitou a prisão preventiva em 27 de fevereiro, mas deu entrada
ao pedido formal de extradição no dia 5 de abril, e a Alemanha no dia 14 de abril.
Não há a menor dúvida, está no processo a nota da Áustria.
De forma que, nestas condições, entendendo como entendo que há igual-
dade de pena, eu daria preferência à Áustria, porque o pedido da Áustria entrou
no dia 5 de abril, e estou argumentando com o protocolo do Itamarati, com o
documento constante dos autos. O pedido da Alemanha entrou no dia 14 de abril,
não há a menor dúvida, está aqui a nota da Alemanha. Há também uma pequena
nota prévia em que ela diz que entraria oportunamente com o pedido formal.
A Alemanha fez questão de dizer que desvinculava o seu pedido de extra-
dição do pedido de extradição da Áustria; declarou-o positivamente na sua nota.
A afirmativa do ilustre advogado da Alemanha de que o extraditando é alemão
não tem a cobertura da própria Alemanha, que o declara presumidamente
austríaco e pediu extradição por ser ele estrangeiro a serviço da Alemanha.
Se, entretanto, o Tribunal denegar o pedido da Áustria para Treblinka e
Sobibor, a preferência caberá à Alemanha, pois a Áustria não reextradita os
seus nacionais.
Nesta conformidade, Sr. Presidente, termino pedindo desculpas ao Egrégio
Tribunal por ter falado longamente, pois tive de debater com vários e ilustres
advogados. Estou pronto a dar qualquer informação aos Srs. Ministros, porque
estudei com muito carinho os autos.
Minha conclusão, portanto, é que são legais os pedidos da Áustria e da
Alemanha. Aliás, em tese, acho que quem deve resolver sobre a preferência é o
Governo. Mas, como o Governo mandou os vários pedidos a este Tribunal, quem
deve resolvê-los é o Tribunal.

293
Memória Jurisprudencial

Estudei os processos com aquela imparcialidade que não vê gregos nem


troianos. É meu dever, a Procuradoria-Geral não é parte neste processo.
O Procurador-Geral da República oficia e diz do direito nos processos de
extradição.
Tive por divisa, em vez de Nietsche, que o eminente advogado citou, a cons-
tante do brasão de um dos maiores governantes da Europa, que foi a Duquesa
Isabel D’Este.
O seu lema era: “Nec spe, nec metu”, nem por esperança nem por medo,
nem com o intuito de recompensa, nem por terror de violência.

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sr. Presidente, começarei pelas
questões que interessam a mais de um dos pedidos de extradição submetidos ao
nosso julgamento. A seguir, examinarei as que se referem especificamente a um
ou outro.

I - Reciprocidade
A declaração de reciprocidade, na falta ou deficiência de tratado, é fonte
reconhecida do direito de extradição (André Mercier, “L’Extradiction”, Récueil
des Cours, 1930, III, p. 185). Esse princípio já fora adotado em nosso país, no
Império, pela circular de 4-2-1847, do Ministério dos Negócios Estrangeiros;
também foi mencionado, quanto à extradição de nacionais, na Lei 2.416, de 28-6-
1911 (art. 1º, § 1º), e a lei atual o consagra (DL 394, 28-4-38, art. 6º, § 3º, c/c art.
9º), segundo o entendimento do Supremo Tribunal (Ext 232, 9-10-61, DJ de 4-4-
63, p. 70; Ext 288, 7-12-62, RF 205/288, voto do Sr. Ministro Gonçalves de
Oliveira; Ext 251, 30-9-63, DJ de 5-12-63, p. 1238, voto do Sr. Ministro Evandro
Lins). Não ficou derrogada a nossa lei nessa matéria, pois não tem esse alcance
a circunstância de ser hoje necessário o referendum parlamentar para “atos in-
ternacionais” (Constituição de 1967, art. 83, VIII), diferentemente da Constitui-
ção anterior, que só o exigia para tratados e convenções.
O melhor entendimento da Constituição é que ela se refere aos atos inter-
nacionais de que resultem obrigações para o nosso País. Quando muito, portanto,
caberia discutir a exigência da aprovação parlamentar para o compromisso de
reciprocidade que fosse apresentado pelo Governo brasileiro em seus pedidos de
extradição. Mas a simples aceitação da promessa de Estado estrangeiro não
envolve obrigação para nós.
Nenhum outro Estado, à falta de norma convencional, ou de promessa
feita pelo Brasil (que não é o caso), poderia pretender um direito à extradição,

294
Ministro Victor Nunes

exigível do nosso País, pois não há normas de direito internacional sobre extradi-
ção obrigatórias para todos os Estados (Mercier, ob. cit., p. 182). Dar ou recusar
a extradição é direito inerente à soberania do Estado requerido (Coelho
Rodrigues, A Extradição, v. 1, 1930, p. 42). Ele não tem obrigação internacional
de a conceder senão no limite dos seus compromissos (Mercier, ob. cit., p. 180).
Nem a Convenção sobre o genocídio teria criado tal obrigação em face dos Esta-
dos não signatários (L. C. Green. “Political Offences, War Crimes and
Extradiction”. The International and Comparative Law Quarterly, abril,
1962, p. 329).
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aí é para que o Executivo proponha
o pedido ao Poder Judiciário, ao Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Dizia eu que, não havendo tratado,
não há obrigação, para o Estado requerido, de conceder extradição. Aceitar pro-
posta de reciprocidade não pode criar para ele essa obrigação.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Digo o seguinte: o Governo brasileiro
não se pode comprometer a dar extradição, porque a competência é do Supremo
Tribunal. O que ele pode é submeter ou não ao Supremo Tribunal Federal o pedido
do Estado estrangeiro.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Não me referia ao Governo no
sentido estrito de Poder Executivo, mas ao Estado brasileiro, envolvendo todos os
órgãos que interferem no procedimento da extradição. A decisão favorável do
Supremo Tribunal é, sem dúvida, condição prévia, sem a qual não se pode dar a
extradição. Mas o Supremo Tribunal também aprecia cada caso em face dos
compromissos internacionais porventura assumidos pelo Brasil.
Mesmo que o Tribunal consinta na extradição — por ser regular e legal o
pedido —, surge outro problema, que interessa particularmente ao Executivo:
saber se ele estará obrigado a efetivá-la. Parece-me que essa obrigação só existe
nos limites do direto convencional, porque não há, como diz Mercier, “um direito
internacional geral de extradição”.
Em conseqüência, a simples aceitação da oferta de reciprocidade não cria
obrigação para o Brasil, não dependendo essa aceitação de referendum do Con-
gresso. Da promessa de reciprocidade resulta obrigação para o Estado requeren-
te, não para o Estado requerido.
Vou mais longe ainda: mesmo nos casos em que o Brasil seja o ofertante,
uma vez que a reciprocidade já está prevista em lei e no costume internacional,
que a nossa lei manda observar (DL 394/38, art. 9º, c/c o art. 20, in fine; Código
Penal, art. 4º), não se compreenderia fosse necessária nova chancela do Con-
gresso para tal fim.

295
Memória Jurisprudencial

II - Comutação de Pena
Parece-nos procedente a argumentação da defesa quando sustenta que o
compromisso assumido pelos Estados requerentes, de comutar a pena de morte
(já abolida na Áustria e na Alemanha), teria de incluir o compromisso de reduzir
para prisão temporária a pena de prisão perpétua, em razão de ser esta última
igualmente vedada pela Constituição do Brasil (art. 159, § 11).
Há valiosas opiniões em contrário, baseadas em que o compromisso de
comutação — freqüente no direito extradicional — seria de todo independente do
direito substantivo, mesmo o de assento constitucional (Haroldo Valadão, parecer,
Ext 273, fl. 313; Nelson Hungria, parecer anexo ao memorial da Alemanha).
Não podemos, data venia, aceitar esse ponto de vista sem reserva. É certo
que o direito extradicional, ao dispor de tal modo, inspira-se no sentimento de
humanidade, mas também não é por outro motivo que o direito constitucional rene-
ga tais ou quais penalidades: “As penas perpétuas (...) vão-se limitando aos chama-
dos incorrigíveis, como supostos refratários a todo tratamento”, observa Roberto
Lyra, citando a seguir esta conclusão do Congresso Penitenciário de Washington:
“Nenhum indivíduo, quaisquer que sejam sua idade e antecedentes, deve ser consi-
derado incapaz de emenda” (Comentários ao Código Penal, v. 2, p. 59).
Acresce que o condicionamento da extradição a normas de direito penal
interno já foi admitido por uma decisão do Supremo Tribunal (Ext 241,18-5-62,
RTJ 24/247). A extradição só foi concedida com a condição de ser comutada a
pena de trabalhos forçados, repudiada pelo direito brasileiro.
Em outro caso, onde a pena era de degredo, a extradição foi concedida,
mas fiquei vencido, em companhia dos Srs. Ministros Ary Franco e Hahnemann
Guimarães (Ext 230, 8-9-61, RF 201/253). Mestre Hahnemann já havia votado
de igual modo, com Orosimbo Nonato, Nelson Hungria e Rocha Lagoa, na Ext
165 (26-1-53), RF 153/382. A minoria, em que formávamos, concedia a extradição,
mas subordinada à não-aplicação da pena de degredo.
Essa decisão, entretanto, não prejudica a tese mais geral, que estamos
sustentando, de se condicionar a extradição, pelo menos, à vedação constitucio-
nal de certas penas, pois a maioria se baseara no fundamento de não ser a pena
de degredo vedada pela Constituição. A contrario sensu, tal premissa admitia a
vinculação do direito extradicional nos termos acima indicados.
Em outro caso (Ext 234, 15-3-65), que se referia especificamente à prisão
perpétua, o Supremo Tribunal nada determinou, porque a extradição já tinha sido
concedida em julgamento anterior, proferido mais de quatro anos antes (2-10-61).
Apesar dessas ponderações, reconheço que o compromisso apresentado
nestes autos, sem cláusula de se converter em temporária a prisão perpétua, não

296
Ministro Victor Nunes

invalida o pedido, porque os Estados requerentes observaram literalmente o que


dispõe o art. 12, d, da nossa lei de extradição, que não menciona a prisão perpé-
tua. A falta, portanto, é perfeitamente suprível, como sustenta o Ministro Nelson
Hungria em seu parecer. Se o Tribunal conceder a extradição, subordinada a
esse compromisso, o governo brasileiro o exigirá antes de efetuar a entrega do
acusado. Essa exigência, após o nosso pronunciamento, é legítima, pois o que o
art. 12 da lei condiciona, ao impor a comutação, é a “entrega” do extraditando, e
não o julgamento da admissibilidade do pedido, como bem observou o Sr. Ministro
Luiz Gallotti, na Ext 218 (30-9-50). Esse seu ponto de vista não prevaleceu, então,
tendo sido a extradição negada, mas em caso posterior o Tribunal prestigiou o seu
entendimento (Ext 241, cit. acima).
Nada impede essa divisão de tarefas entre Executivo e Judiciário, porque
a extradição não é, por natureza, ato jurisdicional, nem administrativo, prevale-
cendo o que dispuser a esse respeito o direito interno, ou as convenções interna-
cionais (Mercier, ob. cit., p. 173; Coelho Rodrigues, ob. cit., p. 27).

III - Competência
Não foi contestada pela defesa, nem pela Procuradoria-Geral da República,
a competência dos Estados requerentes. Um deles — a Alemanha — é que
impugnou a da Áustria, mas reconhece que, embora omisso o pedido quanto à
norma legal de competência, o § 36 do Código Penal da Áustria consagra o
princípio da nacionalidade ativa, o qual já vinha — notou o prof. Haroldo
Valadão — do Código de 1803. A objeção da Alemanha consiste em que o
extraditando era alemão, e não austríaco, na época dos crimes, pois a Áustria se
achava sob o regime do Anchluss.
Esse argumento é, em parte, contraditório, porque um dos fundamentos
alegados, pela Alemanha, para firmar a própria jurisdição, tinha sido o § 4º, art. 3º,
n. 1, do seu Código Penal, que se refere a crime praticado no estrangeiro, por
estrangeiro, no exercício de função do governo germânico. A ordem de prisão
expedida pela Justiça alemã (Ext 274, fl. 21) funda-se, quanto à competência,
naquele mesmo dispositivo legal, como observou o Procurador-Geral da República,
e o pedido de extradição diz que Stangl era “presumidamente austríaco” (Ext
274, doc. de fl. 23).
Essa contradição não prejudica o pedido da Alemanha, porque ela tem,
igualmente, jurisdição sobre crime praticado por súdito alemão no estrangeiro
(Código Penal, § 3º). Portanto, seja Stangl considerado alemão ou austríaco, a
jurisdição da Justiça alemã será, de qualquer modo, inatacável.
É, pois, desnecessário discutir, agora, se estava sob a soberania alemã
aquela parte do território polonês, que a Alemanha ocupava na época dos crimes.

297
Memória Jurisprudencial

Esse problema será focalizado mais adiante, ao discutirmos a preferência para a


extradição.
De qualquer modo não procede, em contraposição à Áustria, esse novo
argumento da nacionalidade de Stangl, suscitado pela Alemanha. Em primeiro
lugar, não é aplicável ao caso o princípio da irretroatividade da naturalização, que
foi enunciado no art. 1º, § 1º, da nossa lei, em correspondência com a regra da
não-extradição dos nacionais (art. 1º, caput). Nossa lei é de 1938. As naturaliza-
ções tácitas, da Constituição de 1891, dependiam, pelo menos, do silêncio
aquiescente do estrangeiro, e, a partir da Constituição de 1934, passamos a admi-
tir somente naturalizações expressas, respeitados os direitos adquiridos na vigên-
cia da anterior.
O dispositivo da lei brasileira, a que se apega a Alemanha, visa, sobretudo,
impedir que seja beneficiado pela regra da não-extradição dos nacionais quem se
naturaliza (ou se deixa naturalizar) de má-fé. Não há, pois, qualquer semelhança
com o caso dos autos, em que não houve naturalização, mas perda compulsória
da nacionalidade austríaca, em favor da alemã, por efeito da invasão da Áustria,
ratificada por um plebiscito de constitucionalidade duvidosa (Hans Klinghoffer,
Ofensiva Branca, São Paulo, 1942). Logo após a guerra, a Áustria expediu a Lei
de 10-7-45, dispondo que eram de nacionalidade austríaca as pessoas que já a
tivessem no dia 13-3-38 (antes do Anchluss) (Ilmar Penna Marinho, Tratado
sobre a Nacionalidade, v. 2, 1957, p. 73). Essa reaquisição da nacionalidade
austríaca também não se pode equiparar à naturalização.
A soberania da Áustria, recuperada após a 2ª Guerra Mundial e consolida-
da pelo Tratado de 15-5-55, que a impede de se anexar novamente à Alemanha,
restaurou a nacionalidade dos austríacos, que já o eram antes do Anchluss, com
as conseqüências que daí defluem. Seria inadmissível que os tribunais austríacos,
em todos os problemas jurídicos ligados à nacionalidade, tivessem que discriminar
os três períodos da nacionalidade dos litigantes: o contemporâneo da ocupação,
de um lado, e os períodos anterior e posterior, de outro. Pelo menos para efeitos
penais, isso levaria a conseqüências extravagantes.
Em segundo lugar, um dos fundamentos do julgamento do acusado no país
de que é nacional é a maior garantia que provavelmente encontrará em sua pró-
pria Justiça. Envolve, portanto, o dever, que tem cada Estado, de proteger seus
nacionais, ainda que essa proteção consista somente em lhes garantir um proces-
so regular. Também é essa a principal razão da regra, adotada pela maioria dos
países, da não-extradição dos nacionais (S. Cybichowski, “La Competence des
Tribunnaux à Raison d’Infractions Commises Hors du Territoire”, Récueil des
Cours, 1926, II, 295-6). E os que combatem essa regra apresentam, entre outros,
o argumento de que não deveria ser recusada a extradição de nacionais entre
Estados “cuja legislação e cujas instituições judiciárias oferecem garantias análo-

298
Ministro Victor Nunes

gas” (Mercier, ob. cit., p. 229). Vê-se, pois, que a idéia da proteção do nacional
está presente no problema que estamos discutindo. E essa proteção pressupõe
que seja atual a nacionalidade do réu, pois não seria razoável que estivesse vin-
culada a uma nacionalidade pretérita.
A própria Alemanha não estaria muito segura do seu argumento, pois não
o apresentou no pedido de extradição, mas tão-somente no memorial de seu ilus-
tre advogado, distribuído há três dias. E essa nova colocação do problema da
nacionalidade não objetiva um reforço da jurisdição da Alemanha, já bastante
sólida, mas a conquista de mais um ponto no concurso de preferência com a
Áustria.
É incontestável, portanto, a jurisdição da Áustria, por ser o extraditando de
nacionalidade austríaca. Também é incontestável a jurisdição da Alemanha, pelo
outro motivo mencionado: o extraditando, ao tempo dos crimes de Treblinka, es-
tava a serviço do governo alemão e os teria praticado nessa qualidade.
Não só a exterritorialidade das leis da Alemanha e da Áustria, fundada no
princípio da nacionalidade ativa, não destoa do direito brasileiro (Código Penal,
art. 5º, II, b), como também nenhum desses países está disputando sua jurisdição
com o Brasil. Pelos fatos de que se trata, nossa justiça só seria competente para
julgar Stangl em razão do princípio da universalidade, que foi sustentado, sem
êxito, nas discussões promovidas pela ONU sobre a repressão do genocídio
(Jean Graven, “Les Crimes contre 1’Humanité”, Récueil des Cours, 1950, I, p.
516 ss). Mas nem a lei brasileira adota esse princípio em termos irrestritos, pois
remete a matéria para as convenções internacionais (Código Penal, art. 5º, II, a),
nem constitui ele norma obrigatória de direito internacional (Cybichowski, ob. cit.,
p. 283; B.V.A. Roling., “The Law of War and the National Jurisdiction Since
1945”, Récueil des Cours, 1960, II, p. 360).

IV - Genocídio
Os crimes imputados ao extraditando estão hoje qualificados como
genocídio, em Convenção que foi ratificada, entre outros, pelo Brasil e pela
Polônia, e ambos esses países promulgaram leis a respeito (Dec. polonês de
13-8-44; Lei brasileira n. 2.889, de 1-10-56). Esta circunstância, entretanto, não
permite contrapor-se o princípio da irretroatividade ao exame dos presentes pedi-
dos de extradição, pois na tipificação do crime de genocídio estão compreendidas
outras figuras delituosas — especialmente o homicídio — que já se encontravam
nos códigos de todos os povos civilizados.
A conceituação nova, na categoria de violação do direito penal internacio-
nal, resulta da gravidade sem par desses crimes, que ofendem a própria humani-

299
Memória Jurisprudencial

dade, e são cometidos em massa, freqüentemente por inspiração e com o auxílio da


máquina governamental, já tendo sido por isso denominados “crimes de Estado”
(Pieter N. Drost, The Crime of State, 2 vols. Leyden, 1959). Além de suas alar-
mantes conseqüências, a gravidade do genocídio é acentuada pela especial inten-
ção com que é cometido: a intenção de eliminar, “no todo ou em parte, um grupo
nacional, étnico, racial ou religioso como tal” (Convenção sobre o Genocídio, art.
II; Stefan Glazer, “Culpabilité en Droit International Pénal”, Récueil des Cours,
1960, I, p. 504).
Mas, se essa maior gravidade do novo tipo delituoso pode ser lembrada
para se não aplicarem retroativamente a Convenção de 1948 e as leis que dis-
põem no mesmo sentido, de modo nenhum esse argumento serviria para excluir a
criminalidade dos atos que, integrantes do genocídio, já estavam capitulados na lei
do tempo em que foram praticados.
A extradição de Stangl é pedida com fundamento em homicídio qualifi-
cado, que sempre esteve definido na nossa como na legislação dos Estados
requerentes. A Polônia socorre-se do conceito de genocídio, adotado em lei
posterior daquele país (Dec. de 13-8-44), mas assim procede para cobrar do
Brasil o compromisso de dar a extradição, que resultaria da Convenção de 1948,
assinada pelas dois Estados, bem como para se beneficiar da nova legislação polo-
nesa sobre a prescrição de tais crimes.
Essa alegação, entretanto, não prejudica o exame do pedido da Polônia,
sob os demais aspectos, muito menos o exame dos pedidos da Áustria e da Ale-
manha, pois não temos de cogitar da aplicação retroativa de norma sobre prescri-
ção, já que o Brasil não promulgou lei, nem firmou convenção, que estabelecesse
essa retroatividade. Ratificamos a Convenção de 1948 (Decreto 30.822, de 6-5-
52), mas ela nada dispõe sobre matéria prescricional. Os signatários assumiram o
compromisso de “conceder a extradição de acordo com sua legislação e com os
tratados em vigor” (art. VII).
Seria ousado sustentar-se que, em razão desse compromisso de extradição,
que remete ao direito vigente, teríamos abolido a prescrição para o crime de
genocídio (Jacques-Bernard Herzog, “L’ Extradiction des Criminels de Guerre”,
Le Monde, 27-3-67, artigo escrito sobre o caso Stangl). No Brasil, portanto, o
problema da prescrição continua regulado no direito comum.
O ilustre advogado da Polônia procurou demonstrar, em sua sustentação
oral, que aquele País não pediu propriamente a extradição, mas somente a “en-
trega” de Stangl. Com isso, estaria reclamando o cumprimento da Convenção
sobre o Genocídio, firmada pelo Brasil e pela Polônia. O compromisso ali assumi-
do operaria automaticamente, sem dependência de maiores formalidades, dis-
pensando mesmo o pronunciamento do Supremo Tribunal sobre a legalidade do

300
Ministro Victor Nunes

pedido e a ocorrência, ou não, da prescrição. Mas não procede essa colocação


do problema, por parte da Polônia, tanto em vista das considerações anteriores,
como também porque esse país, ao enviar o seu compromisso de reciprocidade,
mencionou, expressamente, que o fazia em processo de extradição. Seu pedi-
do, portanto, tinha que ser apreciado consoante o nosso direito extradicional,
como está ressalvado na Convenção sobre o Genocídio.
Em conseqüência, à luz do direito comum é que, mais adiante, examinare-
mos o problema da prescrição, sem que sobre ele se reflita a conceituação con-
vencional e legal do genocídio, adotada posteriormente aos crimes de que se
trata. Não teremos, assim, motivo para discutir se as normas sobre prescrição
penal são de fundo, ou somente de forma, para efeito de sua aplicação imediata
(Jacques Bernard Herzog, “Étude des Lois Concernant la Prescription des Cri-
mes contre 1’Humanité”, Revue de Science Criminelle et de Droit Pénal
Comparé, 1965, n. 2, p. 36). Quer sejam os crimes de Sobibór, Treblinka e
Hartheim conceituados como genocídio, ou simplesmente como homicídio quali-
ficado, os pedidos de extradição de Stangl poderão ser julgados pelo Tribunal
sem qualquer desvio do princípio nullum crimen sine lege.

V - Julgamento Regular
Também não prejudica os pedidos em exame a possível falta de isenção dos
tribunais dos Estados requerentes, que sofreram mais intensamente os efeitos dos
crimes de que é acusado o extraditando. A isenção do Estado requerente, para
garantia de um julgamento regular, é, sem dúvida, importante no direito
extradicional. Recusamos, em 1963, uma extradição pedida pelo Governo de
Cuba, onde faltava essa garantia (Ext 232 cit.), e nossa lei não permite que o
extraditando seja submetido a “tribunal ou juízo de exceção” (art. 2º, VI). Mas,
no que toca aos Estados ora requerentes, que têm tribunais regulares, funcionan-
do normalmente, havemos de admitir a presunção de julgamento regular.
A possibilidade de julgamento parcial ou irregular só é impedimento à extradi-
ção quando resulte evidente. Em caso contrário, o princípio da territorialidade não
teria primazia, como tem, no direito extradicional da maioria dos países, pois o abalo
social é maior nos próprios lugares em que se cometeu o crime. De igual modo, o
princípio da competência do Estado que sofreu os efeitos do crime praticado em outro
também não poderia ser aceito, por ser, presumivelmente, o menos imparcial dos dois.
Entretanto, essa regra é adotada em muitas legislações (Cybichowski, ob. cit., p.
284), inclusive na do Brasil, nos casos por ela previstos (Código Penal, art. 5º, I).
Ao revés, o princípio da nacionalidade ativa faz presumir que o julgamento
seja mais favorável ao réu em seu próprio país, o que também seria um afasta-
mento do critério da completa isenção.

301
Memória Jurisprudencial

Nessa linha de raciocínio, a preferência da doutrina e do direito positivo


teria de ser pela competência dos Estados totalmente estranhos ao fato delituoso.
Mas não há tal regra no direito brasileiro, e nossa jurisprudência opõe reservas ao
próprio desaforamento de processos penais, por motivo de parcialidade, na ordem
judiciária interna (HC 41.119, 1964, RTJ 33/371; HC 42.026, 1965, RTJ 36/178; HC
42.325, 1965, RTJ 34/588; HC 43.161, 1966, RTJ 37/267; HC 43.196, 1966, RTJ
40/202).
A solução mais adequada, em crimes como o destes autos, seria a jurisdição
de tribunais internacionais, não obstante as impugnações conhecidas (cf.J.
Graven, ob cit,. p. 516, 585, etc.; P.N. Drost, ob. cit., esp. v. 1, p. 36, 352, v. 2, p.
201, 205). A Convenção sobre o Genocídio prevê essa competência para os
Estados que a reconhecerem, dando prevalência, na situação presente, ao princí-
pio da territorialidade (art. VI). Mas não foi instituído tribunal internacional para
tais crimes após a dissolução dos que funcionaram em circunstâncias excepcio-
nais no imediato após-guerra. Portanto, o acolhimento, neste caso, dos princípios
da territorialidade ou da nacionalidade ativa representa, da parte deste Tribunal,
estrita obediência às normas jurídicas em vigor.
Se viéssemos a negar a extradição, pela possível falta de isenção dos Esta-
dos requerentes, teríamos a obrigação moral de julgar o acusado, por não haver
tribunal internacional competente. Mas não o poderíamos fazer, por falta de com-
petência. E nossa recusa, longe de exprimir um gesto de solidariedade internacio-
nal no combate ao crime, que é fundamento da extradição, teria o alcance de um
asilo político, mas concedido a quem não está na condição de perseguido político,
nem é acusado, como adiante veremos, da prática de crime político.
A cautela da isenção, levada ao extremo, também teria impedido o Papa
Pio XII de proferir estas palavras, dirigidas em 1953 aos membros do Congresso
Internacional de Direito Penal: “(...) é preciso que os culpados (...), sem conside-
ração de pessoas, sejam obrigados a prestar contas, que sofram a pena, e que
nada os possa subtrair ao castigo de seus atos, nem o êxito, nem mesmo a ‘ordem
de cima’, que eles receberam (...). A certeza, confirmada pelos tratados, de que
é preciso prestar contas — mesmo quando o ato delituoso foi bem sucedido,
mesmo quando foi cometido no estrangeiro, mesmo quando alguém escapou para
o estrangeiro depois de o ter cometido —, esta certeza é uma garantia que não se
pode subestimar” (Excertos de Antoine Sottile, Révue de Droit International
Pénal, outubro de 1953, p. 376).

VI - Crime Político
Também não cabe, no caso, a exceção do crime político, prevista em nossa
lei (art. 2º, VII, c) e no Código Bustamante, que é o documento internacional mais
abrangente a que nessa matéria está vinculado o Brasil (art. 356). A Convenção

302
Ministro Victor Nunes

sobre o Genocídio (art. VII) e a lei brasileira baixada em conseqüência dela (Lei
2.889, de 1-10-56, art. 6º) são explícitas no dizer que o genocídio não se considera
crime político para efeito de extradição.
A aplicação imediata de tais normas a pedidos de extradição fundados em
crimes anteriores não viola o princípio nullum crimen sine lege. É bem verdade
que o Código Penal Internacional, adotado em Convenção de 1940, firmada pelo
Brasil em Montevidéu, estabelece regra de vigência somente para o futuro, mes-
mo quanto às suas normas de direito extradicional (art. 52), mas não chegamos a
ratificar esse tratado (Hildebrando Accioly, Tratado de Direito Internacional
Público, v. 1, 2ª ed., p. 423). Além disso, nas palavras de Mercier, “a extradição
não é uma pena”, traduzindo, no mais das vezes, o reconhecimento, pelo Estado
concedente, da sua falta de competência para julgar a infração. Também “não é
a aplicação de uma pena”, encargo e responsabilidade que “incumbem ao Estado
requerente” (ob. cit., p. 177).
Ainda que a Convenção sobre o Genocídio, ou a Lei 2.889, de 1956, não
fossem aplicáveis, no ponto que estamos discutindo, a solução seria a mesma. A
doutrina mais autorizada, embora o tema seja controvertido, repele a conceituação
de crime político fundada exclusivamente na motivação política do agente. De
igual modo, a alegação de ter sido o crime cometido contra particulares por instru-
ções de um governo não tem bastado para beneficiar o autor com a excusa do
crime político (Green, ob. cit., p. 330). O genocídio — afirma Drost — “é tanto
crime do Estado como crime comum” (ob. cit., v. 2, p. 201).
Além de outros elementos de configuração, com os quais a doutrina mais
moderna procura combinar as teorias subjetiva e objetiva, leis e convenções in-
ternacionais, especialmente no campo do direito extradicional, têm recusado a
conceituação de político ao crime cometido com especial perversidade ou cruel-
dade, ou àquele em que predominam os elementos do crime comum. Nossa lei,
que assim dispõe (art. 2º, § 1º), menciona, entre outros, o terrorismo (art. cit., §
2º). E o Comitê Jurídico Interamericano, em seu estudo de 1959, não considera
políticos “os crimes de barbaria e vandalismo” e, em geral, as infrações “que
excedam os limites lícitos do ataque e da defesa” (Isidoro Zanotti, La
Extradición, p. 238).
Do mesmo modo, a Corte Suprema da Argentina, em decisão de 1966,
concedeu à Alemanha a extradição de Gerhard J. B. Bohne, acusado do extermí-
nio em massa de doentes mentais, negando caráter político, segundo seus prece-
dentes, a “fatos particularmente graves e odiosos por sua natureza bárbara” (La
Ley, 1-11-66, p. 1).
Também pelo caráter cruel do crime — assassinato de prisioneiros indefe-
sos, inclusive o médico chamado a socorrer um deles, que estava ferido — nega-

303
Memória Jurisprudencial

mos-lhe caráter político, e recusamos a extradição por outro motivo: falta de


garantias para um julgamento regular em Cuba (Ext 232, cit.).
Realmente, o presumido altruísmo dos delinqüentes políticos nada tem a
ver com a fria premeditação do extermínio em massa. O Juiz Jackson, da Corte
Suprema dos Estados Unidos, acusador em Nuremberg, fez ali esta advertência,
com receio da incredulidade futura: “We must stablish incredible events by
credible evidence” (apud Roling, ob. cit., p. 390).

VII - Ordem Superior


A justificativa do cumprimento de ordem superior igualmente não levaria,
só por si, à recusa dos pedidos sob julgamento. Sua aplicação, em termos
irrestritos, aos chamados crimes de Estado, resultaria em completa impunidade
para criminosos cruéis.
Nosso Código Penal, como de regra os outros códigos, restringe o alcance
dessa excusativa, porque não elimina a culpabilidade nos casos de cumprimento
de ordem “manifestamente” ilegal (art. 18). E não se comprovou ainda que a
ordem de matar prisioneiros, inocentes ou não, e enfermos hospitalizados, ou de
exterminar judeus em massa, mediante processos de horrenda eficiência, tivesse
sido autorizada por lei do Estado nazista.
Na extradição de Bohne, julgada pela Suprema Corte argentina, foram
mencionadas instruções secretas de Hitler, de 1-9-39, quanto aos enfermos men-
tais (La Ley, cit.). Quanto ao extermínio em massa de judeus, o ato mais qualifi-
cado, que se indicou no caso Eichmann, julgado em Israel, foi uma reunião de
líderes nazista, realizada em Gross Wannsee, subúrbio de Berlim, em 20-1-42
(Comer Clarke, Eihmann, Rio, 1961, p. 132; Lord Russell of Liverpool, The Trial
of Adolf Eichmann, Londres, 1963, pp. 52-54, 201-203). Dela, entretanto, não
resultou um texto jurídico normativo, tendo-se usado o eufemismo “solução final”
do problema judeu, para ocultar a premeditação criminosa. O próprio Eichmann
procurou explicar essa fórmula como sendo a procura de um lar para os judeus
em Madagascar, como se lê no resumo do D. Lasak (“The Eichmann Trial”, The
International and Comporative Law Quarterly, 1926, v. II, p. 362). Observou
esse comentarista: “(...) a despeito da legislação nazista (...), que efetivamente
negava personalidade jurídica aos judeus e a outros, parece não ter havido nor-
mas de direito positivo (positive enactment) autorizando as exterminações (...)
Qualquer que fosse a posição da lei nos dias de Hitler, as atividades nazistas
neste campo nada mais eram do que atos arbitrários e ilegais (nothing but
arbitrary, illegal acts), tolerados pela Justiça alemã (...)” (ob. cit., p. 362).
Admitindo-se, com a melhor doutrina, que o conhecimento da ilegalidade
do ato, ou a possibilidade desse conhecimento, é essencial para a integração do

304
Ministro Victor Nunes

elemento subjetivo do crime, ele deve ser presumido em certos casos (Glaser, ob.
cit., p. 492, 519 ss). E Stangl era um graduado servidor da polícia judiciária, que,
em razão do cargo, não deveria desconhecer a legislação da Alemanha sobre
homicídio. Por outro lado, as providências tomadas pelos alemães, para manter
as vítimas inscientes do seu destino e para eliminar os vestígios materiais da
carnificina, é presunção mais forte ainda de que os dirigentes e executores dessa
política não ignoravam a criminalidade do seu procedimento.
O problema, portanto, desliza da justificativa respondeat superior para a
coação moral, cujo teste jurídico é a possibilidade de escolha, aplicado também
pelos tribunais internacionais do após-guerra. Discute-se, na doutrina e na juris-
prudência, quanto ao ônus da prova em tais casos. De qualquer modo, caiba a
prova do erro de direito ou da coação moral à defesa, ou caiba à acusação a
prova contrária, o que se tem é um problema de prova, cujo exame compete ao
juízo da ação penal e não ao da extradição (DL 394/38, art. 10, caput, in fine).
Se tivéssemos, porém, de levantar um pouco o véu da prova, a conclusão
seria desfavorável ao extraditando. Ele ingressou no Partido Nazista antes da
guerra, antes mesmo de ser admitido no quadro policial, como consta do seu
depoimento de 1938 (Ext 272, v. 1, fl. 74, 87). E fez uma rápida carreira. De
diretor-substituto passou a diretor da Secretaria do Hartheim (1941), e daí ao
comando de Sobibór e Treblinka (1942). Que faz o comandante de um campo de
extermínio de vidas humanas? Pelo menos, mantém o funcionamento dessa
máquina de matar. E o Coronel Globocnik, ao insistir pela promoção de Stangl,
recomendava-o como seu melhor chefe de campo de concentração (Ext 273, fl.
134v).
Tais circunstâncias nos impedem de acolher, muito menos de ofício, a justi-
ficativa do cumprimento de ordem superior, em termos de coação moral, que só o
juízo da ação penal poderá apreciar devidamente, pelo conjunto das provas que
lhe forem apresentadas.

VIII - Suficiência da Acusação


Não nos parece procedente a defesa, quando alega ser imprestável, em
face do art. 7º do DL 396/38, a descrição dos crimes em que se fundam os
pedidos de extradição. Demonstrou o Procurador-Geral que as circunstâncias de
lugar e tempo, bem como os meios utilizados, foram expostos de modo suficiente,
e poderíamos aduzir: com excesso de pormenores.
Ficou cabalmente configurada a materialidade dos crimes, e os indícios da
participação do extraditando foram apontados com abundância, inclusive pela
natureza de suas atribuições em Hartheim (depoimento de 1947, Ext 272, v. 1, fls.
74, 79), e por sua posição de chefia, por alguns meses, em Sobibór, e durante

305
Memória Jurisprudencial

cerca de um ano, em Treblinka, o que foi confirmado nos interrogatórios a que


procedemos.
Se essa participação foi de mera cumplicidade ou de co-autoria, distinção
que em nosso Código Penal já não afeta o quantitativo legal da pena (art. 25),
mas tão-somente a sua individualização (art. 42), isso é problema que cabe ao
juízo da ação penal elucidar, por meio das provas.

IX - Documentação
Também não acolho a alegação do defensor dativo contra a juntada ulterior
de documentos, por parte dos Estados requerentes. Esses elementos — incluindo o
pedido formal de extradição da Áustria e algumas peças essenciais dos pedidos da
Alemanha e da Polônia — deram entrada em tempo oportuno, pois o Tribunal
poderia, a requerimento do Procurador-Geral, suspender este julgamento e conce-
der prazo de até 45 dias aos Estados requerentes para suplementação dos seus
documentos (DL 394/38, art. 10, § 2º; Ext 270, 19-4-67; vd. art. 6º do Projeto do
Comitê Jurídico Interamericano e comentário de Renato Ozores, La Extradición
en el Derecho Interamericano, 1958, p. 25).
Sobre a nova documentação foi aberta vista ao ilustre defensor, que sobre
ela se manifestou. Pode, portanto, ter havido sacrifício pessoal para S. Exa.,
que se desincumbiu do seu munus, com grande brilho, cumprindo exemplar-
mente o encargo que lhe confiou o Relator, sem pedir uma única prorrogação
de prazo. Somente um profissional de sua categoria, festejado professor de
Processo Penal, teria dado ao extraditando a eficiente assistência que ele teve.
Se houve sacrifício do defensor, repito, não houve sacrifício da defesa, do ponto
de vista legal. Não há, pois, nulidade ou inépcia dos pedidos de extradição a ser
declarada.

X - Prescrição
O relatório esclarece bem, conquanto resumidamente, os termos da con-
trovérsia posta nestes autos, na matéria que agora passamos a examinar, com
mais desenvolvimento.

a) Polônia
O Procurador-Geral e o defensor dativo demonstraram a inadmissibilidade
do pedido da Polônia, por se ter verificado a prescrição da ação penal daquele
país, de acordo com a lei brasileira. Assim se manifestou, em seu parecer, o Prof.
Haroldo Valadão (DJ de 26-5-67, p. 1541):

306
Ministro Victor Nunes

“(...) Para a interrupção da prescrição exige a lei brasileira, Código


Penal, art. 117, I, a existência de despacho de recebimento da denúncia ou
da queixa, isto é, do requerimento do Ministério Público e de decisão
judicial iniciando processo, ou segundo admitimos, pelo menos a instrução
criminal contra o acusado.
Interrompida a prescrição por tal ato, recomeçará a correr,
novamente, do dia da interrupção, art. 117, § 2º.
Na espécie não demonstra o Estado requerente a existência de
qualquer ato de abertura judicial do processo de extradição que tivesse
podido interromper a prescrição.
O doc. de fl. 60, assinado de Wiesbaden, na Alemanha, pelo major
auditor da Comissão Central de Pesquisas dos Crimes Alemães na
Polônia, dá ciência de que foi enviada, em 30 de março de 1946, Carta
Precatória contra Stangl, fls. 60 e 88, não conferindo com o nome inicial
da relação de docs. que fala em Franz Stangl, fls. 59 e 86. Aliás, a fl. 64,
há referência a Stengel, como outra pessoa.
E os de fls. 60-63v,. e 64-65, contém depoimentos prestados
perante o Juiz de Investigações (Instrução) da Região do Tribunal Distrital
de Sielce, a 9 de outubro e 3 de dezembro de 1945 contra o acusado.
Não constituem, por certo, o ato de recebimento da denúncia, o
despacho de abertura da instrução, da lei brasileira.
Mas ainda que, por ampla interpretação, significassem os últimos o
reconhecimento de uma abertura de instrução, anterior, a interrupção não
se teria verificado, pois, seriam de dezembro de 1945, tendo, assim,
começado nova prescrição a partir de 3 de dezembro de 1945,
completando-se a 3 de dezembro de 1965, sem qualquer nova interrupção.
Pela ocorrência, assim, da prescrição segundo a lei brasileira,
opinamos pela ilegalidade e improcedência do presente pedido”.
Não é, pois, necessário discutir a questão — posta pela defesa — de que
a ordem de prisão, expedida na Polônia pelo Procurador-Geral, não satisfaz à
condição da lei brasileira, que menciona prisão ordenada por juiz ou tribunal
competente (arts. 5º e 7º).

b) Alemanha
Quanto aos crimes de Treblinka, demonstrou igualmente o Procurador-
Geral, Prof. Haroldo Valadão, que a prescrição foi interrompida na Alemanha,
por ato do Juiz de instrução do Tribunal de Düsseldorf, de 4-5-60 (Ext 274, fl. 279).

307
Memória Jurisprudencial

Esse ato foi praticado, antes de decorridos 20 anos — que é prazo prescricional
do Código alemão (§ 67, art. 1, n. 1) e do brasileiro (art. 109, I), a contar da época
em que o extraditando deixou o comando de Treblinka (agosto de 1943 — Ext
274, fls. 35, 38), pois os crimes ali praticados têm indiscutível caráter de continui-
dade (Código Penal brasileiro, art. 111, c).
O ato do magistrado alemão, de 4-5-60, que acolheu promoção acusatória
do Ministério Público, ajuizada na véspera (Ext 274, fl. 227), e ao qual se seguiu,
no dia imediato, a ordem de prisão expedida pelo mesmo Juiz (Ext 274, fl. 2), tem
no processo penal alemão a finalidade e o efeito de abrir a instrução criminal, que
é de natureza judiciária.
A ação penal por homicídio doloso é, na Alemanha, da competência do júri
(Código de Organização Judiciária, § 80), como no Brasil, e começa, obrigatoria-
mente, pela promoção em que o Ministério Público, formulando a acusação com
as indicações necessárias, solicita a abertura da instrução criminal (Código de
Processo Penal, §§ 170 e 178). Esse ato equivale, em nosso País, à denúncia
(Código Penal brasileiro, art. 102, § 1º; Código de Processo Penal, arts. 24 e 41),
que o Promotor apresenta ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri.
Há, na Alemanha, outra acusação, mais formalizada, que o Ministério
Público apresenta posteriormente, depois de colhida a prova perante o Juiz de
instrução. Esse novo ato acusatório corresponde, mais propriamente, ao libelo
acusatório (Código de Processo Penal, arts. 416 e 417) do nosso processo do júri,
com a diferença de preceder ao nosso libelo a sentença de pronúncia (Código de
Processo Penal, art. 408).
Essa diferença, para o fim que temos em vista, não se reveste de maior
significação, pois o que importa acentuar é que aquele segundo ato de acusação
do Ministério Público germânico não corresponde ao primeiro ato de acusação do
processo criminal brasileiro — a denúncia —, mas ao segundo, que é o libelo. O
correspondente da nossa denúncia é, na Alemanha, o primeiro ato de acusação,
onde o Ministério Público solicita a abertura da instrução criminal nos processos
da competência do júri.
Em conseqüência, o ato judicial que, na Alemanha, acolhe o pedido de
abertura — ou de extensão — da instrução criminal tem exata correspondência
com o nosso despacho de recebimento da denúncia (Código de Processo Penal,
art. 394), que também abre a instrução judicial e produz, pelo nosso Código, o
efeito de interromper a prescrição (Código Penal, art. 117, I ).
A demonstração que a esse respeito fez o Prof. Haroldo Valadão foi cor-
roborada pelo parecer do Ministro Nelson Hungria, prestigiando as alegações do
advogado da Alemanha.

308
Ministro Victor Nunes

Transcrevo, do primeiro, esta passagem (Ext 274, fl. 327):


“Leia-se tal denúncia (...) e ver-se-á que contém até os requisitos
da denúncia do processo criminal brasileiro, do art. 41 do novo Código de
Processo Penal, com a identificação do acusado, a exposição dos fatos e
a capitulação dos crimes (...), segundo os §§ 211, 47 e 74 do Código Penal
alemão”.
Do parecer do Ministro Nelson Hungria seleciono este tópico:
“A denúncia do processo brasileiro (...) assemelha-se ao Antrag do
processo alemão, do mesmo modo que o libelo acusatório (...) se identifica
com a Anklageschrift (...), que é também indeclinável nos processos
relativos a crimes que incidem na competência do Tribunal de Jurados. Isso
posto, é incontestável que o despacho do Juiz de Instrução, deferindo a
petição (Antrag) do Procurador-Geral (órgão do Ministério Público),
coincide plenamente com o que entre nós se diz ‘recebimento da denúncia’,
isto é, o ato judicial que (...) interrompe o curso da prescrição (...)”.
Não importa discutir, a fundo, se aquele ato judicial do processo alemão é
de natureza ordinatória ou jurisdicional, como não importa fazer tal indagação a
respeito do despacho de recebimento da denúncia em nosso processo. E não
importa, porque há controvérsia a esse respeito, mesmo neste Tribunal (HC
38.833, 1961, DJ de 22-8-63, p. 745; HC 43.369, 1966, RTJ 39/639), e essa con-
trovérsia não neutraliza o efeito interruptivo da prescrição, que nossa lei expres-
samente atribui àquele ato.
Portanto, mais que o nomen iuris, o que cumpre analisar e comparar, no
direito do Estado requerente e no do Estado requerido, sempre que o direito
extradicional exija uma condição a ser cumprida nos dois países, são os efeitos
processuais do fato, ou ato, pois é em razão desses efeitos que a lei o faz influir no
curso da prescrição. Se o efeito principal do recebimento da denúncia, em nosso
País, é formalizar a ação persecutória do Estado, com a abertura da instrução
judicial, interrompendo em conseqüência a prescrição, não podemos recusar ao
correspondente ato judicial do processo alemão, qualquer que seja o seu nome ou
forma, o efeito de interromper a prescrição, se dele também resulta que a instrução
criminal foi aberta perante o Juiz competente.
Deixamos de discutir a questão nova, suscitada pela Alemanha em seu
memorial, quanto a estar interrompida a prescrição pelo impedimento da Justiça
alemã durante o regime nazista e nos primeiros anos do após-guerra, porque já
ficou demonstrado que, por outra causa, a prescrição foi validamente interrompi-
da naquele país.
Concluímos, pois, de acordo com a Procuradoria-Geral, que não prescre-
veu a ação penal em que se funda o pedido da extradição da Alemanha.

309
Memória Jurisprudencial

c) Áustria
1. Hartheim. Pelas mesmas razões anteriormente aduzidas, também não
prescreveu a ação penal em que se funda o pedido de extradição da Áustria,
com relação aos crimes de Harheim. A instrução criminal já estava instaurada
em Linz (Ext 272, v. 1, fls. 45, 46), e dela tivera ciência pessoal o acusado, em
19-5-48 (Ext 272, v. 1, fl. 53), como antes já tinha sido cientificado da instrução
do processo e da sua prisão preventiva (21-7-47 — Ext 272, v. 1, fl. 45). Dias
depois de intimado da acusação, conseguiu evadir-se para lugar incerto e não
sabido (30-5-48 — Ext 272 v. 1, fls. 53, 115). Por motivo da fuga, e de acordo
com a lei, foi suspenso o processo (vol. cit., fl. 151). Só se poderia suspender o
que já estivesse iniciado. Não me parece, pois, que essa questão suscite maior
controvérsia.
Alega, porém, a defesa que o prazo da prescrição seria de quinze anos, e
não de vinte. Argumenta que a prisão comunicada ao extraditando, em 21-7-47,
fundava-se no § 5 do Código Penal austríaco, que se refere exclusivamente à
cumplicidade. À pena prevista para a cumplicidade, sendo somente de 5 a 10
anos de prisão (§137), correspondia o prazo prescricional de 5 anos (§ 228, b, in
fine). Esse prazo já estaria consumado ao iniciar-se a instrução, em 21-7-47, pois
o extraditando deixara o serviço de Hartheim em agosto de 1941.
Seria ilegítima, prossegue a defesa, a alteração que, em 19-5-48, fez o
Ministério Público naquela classificação inicial, procurando inculpar o réu, não
como cúmplice, mas como co-autor de homicídio, sujeito então à prescrição de 20
anos. Essa modificação seria legalmente inadmissível, em primeiro lugar, por ser
tardia, pois, àquela data, já estava prescrita a ação penal, pela classificação ante-
rior; em segundo lugar, porque a própria narrativa dos fatos, que então fez o
Ministério Público, só poderia conduzir à acusação de cumplicidade e não de co-
autoria.
O Procurador-Geral respondeu satisfatoriamente a essa argumentação. A
acusação ou denúncia do Ministério Público — e não a ordem de prisão anterior —
é que classifica o crime, de onde se deduz a pena correspondente, para efeito do
cálculo da prescrição. A ordem de prisão anterior à denúncia continha uma
classificação provisória, que o Ministério Público poderia manter, ou não, na
denúncia.
Entre nós, pela Constituição (art. 150, § 12), a detenção ou prisão de qual-
quer pessoa deve ser imediatamente comunicada ao juiz competente, que a rela-
xará, se não for legal. Mas não é a classificação provisória contida nesse ato, ou
na decisão que o juiz sobre ele vier a proferir, que servirá de base ao cálculo da
prescrição. Esta se regula pela classificação posterior da denúncia (salvo os
casos de abuso), ou então, nas condições previstas em lei, pela pena imposta na
sentença.

310
Ministro Victor Nunes

Além disso, como demonstrou o Prof. Haroldo Valadão, e este argumento


por si só seria decisivo, o § 5º do Código Penal austríaco, citado na primeira
ordem de prisão do extraditando, não se refere exclusivamente à participação
criminosa de menor relevo (cumplicidade propriamente dita): compreende tanto a
mera cumplicidade como a co-autoria, conforme o grau real da participação do
indiciado. Basta ver, por exemplo, que aquele dispositivo se refere também ao
mandante do crime, que é indiscutivelmente co-autor.
Quanto à descrição da atividade criminosa do extraditando, observa o Pro-
curador-Geral que o homicídio (no caso, homicídio qualificado, tanto pelo códi-
go brasileiro como pelo austríaco) era a atividade específica de camuflado “sana-
tório” de Hartheim. Stangl, embora não participando da execução material dos
assassinatos, exercia função diretora na parte administrativa. Não há, pois, con-
tradição da denúncia, quando lhe atribui a posição de co-autor.
Essa argumentação parece de inteira procedência. Em primeiro lugar, não
é evidente o abuso da classificação do Ministério Público. Em segundo, nossa
doutrina sobre a prescrição pela pena concretizada (Súmula do Supremo
Tribunal, n. 146) pressupõe sentença condenatória, que fixe a pena abaixo do
máximo legal. Isso não se verificou no caso de Hartheim, onde mais tarde veio a
ser proferida sentença condenatória, mas somente para os co-réus, e não para o
extraditando. A prescrição teria de ser apreciada, portanto, em função da pena
máxima (in abstrato), e não pela pena que em relação a dois dos co-réus veio a
ver concretizada na sentença. O prazo prescricional é, portanto, de 20 anos e foi
interrompido, validamente, segundo o direito da Áustria e do Brasil. Pelo mesmo
raciocínio, também não se consumou a prescrição intercorrente.
2) Sobibór e Treblinka. Quanto ao outro processo, perante o Tribunal de
Viena, referente aos crimes de Sobibór e Treblinka, parece-nos de todo proce-
dente a defesa, data venia do parecer do Procurador-Geral. O ato praticado em
relação àqueles crimes e ao qual se pretende atribuir efeito interruptivo da pres-
crição, não nos parece que seja equiparável ao nosso recebimento da denúncia.
Embora interrompesse a prescrição, consoante o direito austríaco, não a inter-
rompeu pelo direito brasileiro.
O indiciado, àquele tempo, estava foragido. Foi expedido um ato do Juiz de
instrução, em 21-3-62 (Ext 272, v. 1, fl. 25), para descobrir o seu paradeiro, para
determinar a sua residência ou morada, como consta da tradução oficial. A notí-
cia resumida do ato menciona os §§ 134 e 135 do art. 3º do Código Penal, que
tratam do homicídio qualificado, sem indicação de qualquer texto sobre prescrição.
Também não consta do processo se precedeu a esse ato do juiz uma acusação do
Ministério Público; ainda que tenha havido, como o seu texto não veio aos autos,
não se pode verificar se ela continha os elementos que a pudessem assemelhar à
denúncia do Processo Penal brasileiro.

311
Memória Jurisprudencial

O memorial da Áustria, entretanto, qualifica o referido ato de citação por


edital (p. 22) e menciona o § 227 do Código Penal austríaco, que inclui entre os
atos interruptivos da prescrição “o mandado de citação do indicado” e “a perse-
guição do indicado ou a sua procura através de editais” (tradução do memorial).
Diz a tradução italiana, de Bertolini (2º ed., 1857): “se contro il reo cume
imputato fu emezsa una citazione (...) ovvero se come imputato fu già (...)
inseguito con messi o con circolari di arresto”.
No processo penal brasileiro, a citação não precede, mas sucede, ao rece-
bimento da denúncia (Código de Processo Penal, art. 394). Pressupõe, portanto,
a ação penal já promovida pelo Ministério Público (não está em causa a ação
penal privada) e a instrução judicial aberta pelo despacho de recebimento da
denúncia, pois a citação, ordenada na mesma oportunidade desse recebimento
(art. 394), é para o réu comparecer e ser interrogado pelo juiz. Na Áustria, entre-
tanto, a julgar pelo memorial de seu advogado, a citação do indiciado, que se
encontre em lugar incerto ou desconhecido, pode anteceder à denúncia, isto é, à
promoção em que o Ministério Público, indicando os elementos indispensáveis à
acusação, pede a abertura da instrução criminal.
O Dr. Procurador-Geral, sustentando que aquele ato tinha caráter
persecutório, creio que mencionou o § 416 do Código de Processo Penal da
Áustria. Entretanto, o dispositivo que se refere à captura parece ser o § 414.
Essas ordens expedidas pelo Juiz, quando alguém é suspeito de ter cometido o
crime, se referem, provavelmente, a uma fase preliminare, quando ainda não há
formal acusação do Ministério Público. Por isso, ainda que tenha caráter
persecutório o ato ora questionado, parece indiscutível que precedeu à denúncia.
Do contrário, essa denúncia teria sido enviada com a documentação da Áustria,
e não foi.
Nessas condições, o ato que no processo penal brasileiro mais
corresponderia àquele mandado judicial não seria o recebimento da denúncia
(ainda não oferecida), mas a prisão preventiva, quando ordenada pelo Juiz na
fase do inquérito policial, a requerimento do delegado de polícia, ou do Ministério
Público, ou com a audiência deste. Entretanto, a essa prisão, que também é ato
persecutório, visando garantir a regular aplicação da lei penal, mas não é ato de
abertura da instância judicial, o nosso direito não atribui efeito interruptivo da
prescrição.
O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Eminente
Ministro, eu me baseei no art. 416, porque na Áustria não há inquérito policial; na
Áustria, há instrução criminal.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Exato!

312
Ministro Victor Nunes

O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Ora, se o


ato é do juiz de instrução, é porque houve abertura de instrução prévia. O meu
raciocínio foi apenas a título de esclarecimento a V. Exa.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O eminente Mestre está presumin-
do que houve ato formal de acusação por parte do Ministério Público. Mas ele
não está nos autos.
O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Eu disse
que não estava, e se há só instrução criminal (aliás, vê-se, no Código, que esses
atos de persecução judicial são atos de instrução, vêm depois da instrução), e se
expediu o ato, é porque houve abertura da instrução.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Eu presumo, ao contrário, que não
houve acusação formal do Ministério Público, pois o ônus da prova de tais atos
incumbe ao Estado requerente. Se houvesse tal acusação, ela estaria no proces-
so, pois outros atos de menor importância recheiam estes volumes . Por que não
veio essa presumida denúncia, que teria tanta significação no problema da pres-
crição? Concluo, pois, que a questionada ordem do Juiz de instrução precedeu à
denúncia, equivalendo grosso modo à nossa prisão preventiva, decretada antes
da denúncia, isto é, na fase do inquérito policial. Ato, ao qual, repita-se, o nosso
direito não atribui efeito interruptivo da prescrição.
Figuremos uma situação inversa à destes autos. O juiz brasileiro teria
ordenado a prisão preventiva, na fase do inquérito policial, a requerimento do
Ministério Público, ou com o seu parecer favorável. Com base nesse mandado
de prisão, o Governo brasileiro teria pedido a extradição do indiciado, foragido em
outro país. Se, a contar do fato criminoso, houvesse transcorrido o prazo legal da
prescrição e, no Estado requerido, também houvesse a regra da lei mais favorá-
vel nessa matéria, a extradição teria de ser negada, por não ter sido a prescrição
interrompida por aquele mandado de prisão, de acordo com o direito brasileiro.
Como, pois, haveremos de ter por interrompida, na Áustria, uma prescrição que,
em situação comparável, não estaria interrompida no Brasil?
Por essas razões, o meu voto é pelo indeferimento do pedido da Áustria,
em relação aos crimes de Treblinka e Sobibór, como sustentou, em sua defesa, o
Prof. Xavier de Albuquerque.

XI - Preferência

a) Competência
Tendo concluído pela legalidade e procedência do pedido da Alemanha, e
bem assim de um dos pedidos da Áustria, passamos agora ao exame da prefe-
rência, pois a decisão dessa matéria parece-me caber ao Supremo Tribunal, e
não ao Poder Executivo.

313
Memória Jurisprudencial

Na falta de tratado (art. 6º, § 3º), nossa lei estabelece diversos critérios de
preferência (art. cit., caput e § 1º), estipulando afinal que, “nos demais casos, a
preferência fica ao arbítrio do Governo” (art. cit., § 1º, b, in fine). Parece que, na
opinião do ilustre Procurador-Geral, o exame da preferência caberia ao Governo
em qualquer caso.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Procurador-Geral, aqui no Plená-
rio, disse que cabe ao Supremo Tribunal Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Para S. Exa. parece que, em qual-
quer caso, o exame da preferência caberia ao Governo. Entretanto, como o Go-
verno não exerceu essa prerrogativa, mandando os três pedidos ao Supremo
Tribunal, o exame da preferência teria sido, então, transferido para nós.
O Sr. Procurador-Geral da República (Prof. Haroldo Valadão): Achei que
cabia ao Governo, mas que, se o Governo mandou os três pedidos para cá, já não
cabe mais. Acho, aliás, que a atitude do Governo foi muito nobre, porque poderia
o Supremo denegar um e não os três.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): V. Exa. corrobora a minha impressão.
Prossigo na leitura do meu voto.
À primeira vista, não seria desarrazoado interpretar-se que, em qualquer
caso, a deliberação caberia ao governo, e não ao Tribunal; bastaria, para isso, pôr
ênfase no vocábulo “arbítrio”, que se lê no citado dispositivo. Desse modo, nos
casos previstos na lei, o Governo resolveria o assunto, mas sem arbítrio, isto é,
consoante os critérios legais; “nos demais casos”, a deliberação do Governo ficaria
ao seu arbítrio, isto é, sem vinculação a qualquer critério legal.
Entretanto, não nos parece que essa seja a melhor interpretação. Em pri-
meiro lugar, porque a Constituição (art. 114, I, g) incumbe ao Supremo Tribunal
“processar e julgar originariamente (...) a extradição requisitada por Estado es-
trangeiro”. Nessa atribuição de julgar, que pressupõe a apreciação de quaisquer
aspectos de legalidade, está incluída a competência para decidir, havendo mais de
um Estado requerente, qual deles, pelos critérios que a lei define, tem prioridade
para receber o extraditando.
Em segundo lugar, em face da própria lei, cuja interpretação em termos
conclusivos cabe ao Supremo Tribunal, chegar-se-ia à mesma conclusão. Um
dos critérios de preferência, que a lei estabelece, é a gravidade da infração (art.
6º, § 1º); o caráter da infração influi na sua gravidade, e pelo art. 2º, § 3º, da Lei,
compete “exclusivamente” ao Tribunal “a apreciação do caráter da infração”.
Esse dispositivo está incluído na parte da lei que se refere aos crimes cujo
“caráter” pode constituir obstáculo à extradição. Mas o mesmo preceito vem repeti-
do no art. 10, quando veda ao Governo atender a qualquer pedido de extradição

314
Ministro Victor Nunes

“sem prévio pronunciamento” do Tribunal sobre sua “legalidade e procedência (...),


bem como sobre o caráter da infração, na forma do art. 2º, § 3º ”.
Se o legislador quisesse referir-se apenas aos crimes pelas quais a lei veda
a extradição, bastaria mencionar, no art. 10, o pronunciamento do Tribunal sobre
a legalidade e procedência do pedido. A insistência no seu pronunciamento
“sobre o caráter da infração” evidencia que o caráter da infração também deve
ser apreciado sob o aspecto da sua gravidade, para se determinar a preferência,
quando houver mais de um pedido de extradição.

b) Territorialidade
Pela nossa lei, na ausência de tratado, cabe a prioridade ao Estado “em
cujo território a infração foi cometida” (art. 6º, caput). Esse critério favorece a
Áustria, quanto aos fatos de Hartheim, mas está afastado, quanto aos crimes de
Treblinka (território polonês), já que, em relação a eles, apenas consideramos
procedente o pedido da Alemanha.
Entretanto, a Alemanha, como já foi assinalado, procurou socorrer-se do
princípio da territorialidade. Alegou, citando a Convenção de Haia sobre leis e
costumes da guerra terrestre (18-10-1907), que, ao tempo em que foram come-
tidos os crimes de Treblinka, estava aquele território sob a “soberania de Reich
alemão, na qualidade de potência de ocupação” (Ext 274, fl. 19).
Observou o Procurador-Geral que o único dispositivo citado na Convenção,
em que se poderia fundar a pretensão da Alemanha, é o seu art. 43, que permite
à potência ocupante, a cujas mãos se transferiu de fato a autoridade do poder
legal, tomar todas as providências que visem a garantir, tanto quanto possível, a
ordem e a vida pública no território ocupado. Mas, diz ele, não se pode inferir
desse dispositivo, nem de qualquer outra norma de direito internacional, que o
território da Polônia, ocupado durante a guerra, tivesse sido anexado à Alema-
nha, e muito menos que se devesse considerar território alemão para todos os
feitos.
Parece-nos de inteira procedência a objeção do Procurador-Geral. Em primei-
ro lugar, não se trata de ocupação consentida (Leo Strisower, “L’Exterritorialité et
ses Principales Applications”, Récueil des Cours, 1925, p. 272). Em segundo, a
exterritorialidade das forças invasoras só se pode fundar, juridicamente, na au-
sência das autoridades locais. Nessa contingência, alguma outra autoridade teria
de fazer suas vezes. Afora esse fundamento jurídico, a potência ocupante atua
como poder de fato (Strisower, ob. e loc. cit.; Despagnet, cit. por Francesco
Capotorti, L’ Occupazione nel Diritto di Guerra, 1949, p. 45), entendendo al-
guns autores que coexistem dois ordenamentos estatais válidos durante a ocupa-
ção (Capotorti, ob. cit., p. 57).

315
Memória Jurisprudencial

É de se concluir, portanto, que essa exterritorialidade corresponde somente


ao período da ocupação, e bem assim que não alcança as pessoas que já tenham
deixado o serviço das forças armadas ocupantes (Strisower, ob. cit., p. 271).
Aplicando essas noções ao caso dos autos, é de se recordar, que nem
Stangl pertencia às forças armadas alemãs, quando serviu em Treblinka, nem
pertence mais ao serviço policial alemão, nem subsiste a ocupação do território
de Treblinka pelos alemães.
O amplo conceito de exterritorialidade sustentado aqui pela Alemanha
levá-la-ia, com mais forte razão, a exercer o seu direito — que seria também um
dever — de disputar à Áustria, com base no princípio territorial, o julgamento de
todos os crimes ali cometidos durante os diversos anos do Anchluss, reclamando
o desaforamento, para a Justiça alemã, de todos os processos pendentes nos
tribunais austríacos.
Esse argumento ad absurdum — de que já se valera o Procurador-Geral
em relação a numerosos fatos jurídicos que tiveram lugar no território polonês
durante a guerra — contribui para afastar o princípio da territorialidade para
efeito da preferência pleiteada pela Alemanha.

c) Gravidade da Infração
Segue-se o critério do art. 6º, § 1º, letra a, ou seja, a preferência do Estado,
cujo pedido “versar sobre a infração mais grave, segundo a lei brasileira”.
Na legislação brasileira, como de regra nas outras legislações, há corres-
pondência entre a gravidade da infração e a gravidade da pena, e a pena, em
nosso direito, não é rigidamente tabelada. Para dosá-la, o Juiz levará em conta
(Código Penal, art. 42) os antecedentes e a personalidade do agente, a intensida-
de do dolo, o grau da culpa, os motivos, as circunstâncias e conseqüências do
crime. O Código de Processo Penal, por sua vez (art. 78, II, letra b), adota, entre
outros critérios, o “do lugar em que houver ocorrido maior número de infrações”,
para determinar a competência, no caso de mais de um juízo serem competentes.
A conjugação desses dois dispositivos mostra que o conceito de gravidade
da infração, a que se refere o nosso direito extradicional, para se determinar a
preferência entre os Estados requerentes, não se refere apenas ao tipo do delito
cometido mas também, se o confronto for entre delitos do mesmo tipo, à gravida-
de in concreto. No caso dos autos, verifica-se essa última hipótese.
Tendo-se em vista os elementos previstos em nossa lei para a dosagem da
pena, que em grande parte está em correspondência com a gravidade do delito
cometido, é indiscutível que as infrações penais cometidas em Treblinka foram
muito mais graves que as de Hartheim, inclusive, como foi observado no

316
Ministro Victor Nunes

memorial da Alemanha, porque não se poderia, em relação a Treblinka, invocar


a eutanásia para uma possível, embora remota, qualificação de homicídio privile-
giado. Cabe, pois, à Alemanha a preferência para a extradição, já que recusamos
o julgamento pela Áustria quanto aos fatos de Treblinka.
Prevê também a nossa lei (art. 6º, § 2º) que, reconhecida a preferência de
um dos Estados requerentes, pode ser estipulada a condição da entrega ulterior
do extraditando aos outros requerentes. Ficaria, pois, a Alemanha com a obriga-
ção de reextraditar o acusado, a fim de ser julgado, na Áustria, pelos fatos de
Hartheim.

XIII - Conclusão
Concluo o meu voto, Sr. Presidente, autorizando a entrega do extraditando à
Alemanha, mediante o compromisso de ser convertida a pena de prisão perpétua —
se essa lhe for aplicada — em pena de prisão temporária, e de ser o extraditando
entregue, ulteriormente, à Justiça da Áustria, observandas as demais condições
do Decreto-Lei 394/38, especialmente as do art. 12. Em conseqüência, julgo pre-
judicado o HC 44.074.

VOTO
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Sr Presidente, são realmente admirá-
veis os trabalhos do eminente Sr. Ministro Relator e do Dr. Procurador-Geral
da República, e a minha difícil situação de primeiro vogal tem que ser justificada,
porque, acompanhando, como acompanhei, o voto do eminente Sr. Ministro
Victor Nunes, e dando a ele quase que integral solidariedade, tenho que justificar-
me de discrepar de S. Exa., rogando-lhe que para isso me dê a vênia necessária
quanto à prescrição e à preferência.
Eu entendo, Sr. Presidente, que, depois que o homicídio passa a se chamar
“morticínio”, não se poderá distinguir entre o mais grave e o menos grave. O
morticínio tem sempre...
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Genocídio.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Eu fujo ao neologismo: genocídio, para
me referir, apenas, àquilo que já era da nossa lei penal, antes da Lei 1.088.
Morticínio, houve em Hartheim ou em Treblinka; dificilmente se poderá dizer qual
deles terá sido o mais grave.
Por outro lado, em tenho dificuldade em deixar de concordar com o Dr.
Procurador-Geral da República, no seu admirável trabalho, no sentido de que o
extraditando estava sob prisão preventiva, como reconhece o próprio eminente
Sr. Ministro Relator. Fugiu durante a instrução criminal.

317
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Quanto a Hartheim. Não quanto a


Sobibór e Treblinka. Esse é outro processo.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. talvez não me tenha ouvido. Não
posso distinguir entre dois morticínios o mais grave.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Na Áustria, fizeram-se dois pro-
cessos: um, em Linz, quanto a Hartheim; outro, em Viena, quanto a Sobibór. Na
acusação de Linz, não se dizia uma palavra sobre Treblinka.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Exatamente. Mas, o que acontece é que
há prioridade, que se deve conceder à República Federal da Áustria, em razão do
processo de Hartheim, que envolve e supera a prioridade que se pudesse conce-
der à República Federal da Alemanha.
É por isso que, concordando inteiramente com o voto de V. Exa., eu apenas
discrepo na matéria da prioridade, entendendo que se deve atender, prioritariamente,
ao pedido da Áustria, pois que a instrução estava aberta enquanto fugiu o extraditan-
do e não se pode compreender ocorrência de prescrição com a instrução criminal
iniciada.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Mas isso quanto a Hartheim. Tam-
bém não dei pela prescrição, quanto a Hartheim.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Mas concluiu que Hartheim não tinha
prioridade.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Se V. Exa. mandar, primeiro, o
extraditando para a Áustria, para que depois o entregue à Alemanha, esse com-
promisso não se cumprirá, porque a lei austríaca proíbe a extradição dos seus
nacionais.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. acha que, nos casos de priorida-
de processual, não deve competir ao Supremo Tribunal do Brasil decidir? Deve-
mos reconhecer a prioridade que nos parece, em primeiro plano, como a mais
natural e aquela que observe os fatos.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Mas atente V. Exa. para o art. 42
do Código Penal. As conseqüências do delito são levadas em conta para se deter-
minar sua gravidade, pois esta influi na fixação da pena. Não podemos dizer que
matar 12 ou 13.000 pessoas em Hartheim seja a mesma coisa que matar 300.000
em Treblinka.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa., que tem sido meu mestre em
tantas oportunidades, poderia me esclarecer se a primeira afirmativa que fazia,
ao dar meu voto, sofre de sua parte qualquer contestação, isto é, se a palavra
“morticínio”, a prática de homicídio em massa, depois de ultrapassar certa cifra,

318
Ministro Victor Nunes

não é mais passível de confronto ou de comparação em termos de maior ou


menor gravidade? Entre matar 20.000 ou matar 200.000, V. Exa. acha que não
há possibilidade, do ponto de vista de conseqüências penais, estabelecer-se algu-
ma gradação?
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sim, uma gradação vinculada à
extensão das conseqüências, pois o art. 42 do Código Penal também manda levar
em conta a intensidade do dolo, para determinar a gravidade do delito e, portanto,
a fixação da pena. É claro que uma vida humana é tão valiosa como centenas ou
milhares. Mas o crime de genocídio foi instituído como crime de direito internacio-
nal em razão, entre outros elementos, da quantidade das vítimas. Se tivessem
assassinado dois ou três judeus, não haveria a vasta literatura que temos sobre o
genocídio.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Em Hartheim também foi genocídio.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Não sei se foi, porque não está com-
pletamente esclarecido se a intenção, ali, era de exterminar uma raça. Fala-se em
doentes mentais, em pessoas fracas ou envelhecidas, em adversários políticos...
O art. 42 manda, expressamente, considerar a “intensidade do dolo ou
grau de culpa”. Pode-se dizer que a situação de Stangl, comandando um campo
de extermínio, Treblinka, é a mesma de quando dirigia o escritório administrativo
de outro estabelecimento de extermínio, Hartheim, onde dois médicos eram os
principais responsáveis pela parte, propriamente, das execuções?
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Não desejo, Sr.Ministro Relator, contra-
por o meu conhecimento, quase que perfunctório dos fatos, àquele conhecimento
admirável que V. Exa. demonstrou em seu relatório. Mas, além das alegações ou
dos fundamentos que já apresentei, no sentido de não atender a essa prioridade
para a República Federal da Alemanha, ainda ocorre o caso da existência da
prisão perpétua, no caso da República Federal da Alemanha.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas o eminente Sr. Ministro
Relator exige que seja estipulada a comutação da pena de prisão perpétua em
prisão temporária.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: No caso, meu caro mestre Hahnemann
Guimarães, eu adoto aquela desconsolada e cética afirmativa do eminente Sr.
Ministro Gonçalves de Oliveira sobre a validade dos compromissos impostos pelo
Judiciário ou pelo Executivo ao Judiciário de um outro País: não sabemos até que
ponto esse compromisso de comutação poderá ser atendido.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas o eminente Sr. Ministro
Relator citou jurisprudência deste Tribunal em que se estabeleceu a comutação e
não houve notícia de que não houvesse sido atendido o compromisso.

319
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Os doutrinadores ressalvam os


casos de extradição pedida de má-fé. Mas, neste Tribunal, ninguém supõe que a
Alemanha, a Áustria ou a Polônia estejam pedindo de má-fé a extradição.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Entre o compromisso de comutação e a
solução do problema por meio de uma modificação da escala de prioridades,
entendo, Sr. Presidente, que a concessão dessa prioridade ao pedido da Áustria
nos traz mais garantias e nos convém mais, do ponto de vista político-judiciário de
assistência internacional à repressão ao crime.
É por isso que, divergindo do eminente Sr. Ministro Relator, apenas quanto
à prioridade, que eu concedo ao pedido da Áustria, acolho e dou inteiro apoio ao
voto de S. Exa.

VOTO
O Sr. Ministro Djaci Falcão: Sr. Presidente, Srs. Ministros. Da leitura do
minucioso relatório distribuído pelo eminente Sr. Ministro Victor Nunes, do
exaustivo e erudito parecer do eminente Professor Haroldo Valadão, do confron-
to dos brilhantes trabalhos oferecidos pelos ilustres advogados e, já agora, após a
análise percuciente feita pelo eminente Sr. Ministro Relator, guardo a tranqüila
convicção da presença dos pressupostos materiais e formais que legitimam o
deferimento da extradição solicitada pela Alemanha e pela Áustria.
Dúvida não padece de que ao extraditando é imputada a prática de homi-
cídio qualificado, nos campos de extermínio de seres humanos, da Áustria, da
Polônia e da Alemanha.
Nos pedidos, são descritos crimes, com indicação de lugar, de mês e de
ano, nos quais a marcante participação do extraditando Stangl, como diretor e
colaborador, surge a cada passo dos processos.
Em relação aos crimes praticados em Hartheim, na Áustria, desde que
houve abertura da instrução criminal, como se infere dos atos processuais deter-
minados pelo Tribunal de Linz, ou sejam, prisão preventiva, ato de acusação ou
libelo, verificados em julho de 1948 — tem-se interrompido, assim, o curso do
prazo prescricional, que é de 20 anos, inclusive em face da legislação penal bra-
sileira — art. 109, inc. I, do nosso Código Penal. Isso, sem a necessidade de se
aludir à convocação, por decisão do Tribunal de Viena, ocorrida a 21 de março de
1962, na persecutio criminis da ação penal. Ademais, ali, nos dias que correm, a
pena é tão-só privativa da liberdade.
No que tange ao pedido formulado pela Polônia, em razão de crimes co-
metidos em Sobibór e Treblinka, não está positivada, na verdade, a existência de
qualquer ato de abertura judicial de processo, de modo a caracterizar a interrup-

320
Ministro Victor Nunes

ção do prazo prescricional, que começou a fluir nos idos de 1943 e de que já
resultou a extinção da ação penal, pelo decurso de prazo superior a vinte anos.
Ademais, a figura da entrega, argüida pelo ilustre Advogado da Polônia,
foge, evidentemente, ao alcance do instituto da extradição.
E, no que diz respeito à Alemanha, inatacável é a jurisdição da Justiça
alemã, por se tratar de estrangeiro a serviço da própria Nação, da Alemanha.
Por outro lado, a provocação do Ministério Público, através de requeri-
mento de instrução do processo, firmado a 3 de maio de 1960, a toda evidência,
interrompeu o prazo de prescrição dos crimes de Treblinka, tanto em face da lei
alemã (§ 68 do Código Penal) como à vista do Código Penal brasileiro (art. 117,
inc. I), eis que os delitos ocorreram nos anos de 1942 e 1943.
Finalmente, não há cogitar de crime de natureza política, consoante ressal-
vou, com invejável acerto conceitual, o eminente Sr. Ministro Relator.
Acolho, também, o voto de S. Exa., quanto ao entendimento de prioridade
da Justiça alemã.
Com essas singelas considerações, concluo, pois, com o eminente Sr. Ministro
Relator, pela entrega do extraditando à Alemanha e à Áustria, sucessivamente, des-
de que não há Tribunal internacional para julgar os crimes que lhe são imputados.

VOTO
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, estou de acordo, na quase
totalidade, com a fundamentação do brilhante voto do eminente Ministro Relator e
não vou senão fazer, ainda, uma ou outra ponderação, sobre alguns dos pontos princi-
pais, e, por último, manifestar minha divergência, no tocante à preferência do pedido.
A primeira questão, posta no voto, como nos debates, é constitucional, a
saber, a falta de declaração ou promessa de reciprocidade, que, para a defesa,
deveria existir, na forma do art. 83, inc. VIII, da Constituição de 1967. Não aco-
lho a alegação, já pelos fundamentos expostos pelo eminente Relator. Tenho
como certo que essa declaração de reciprocidade, no caso, não se compreende
no preceito constitucional que confere ao Presidente da República, privativamen-
te, competência para celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad
referendum do Congresso Nacional. Não se cuida, aqui, de celebrar ato internacio-
nal. Cuida-se, somente, de receber declaração — manifestada de conformidade
com a lei do Estado requerente —, no processo de extradição, cujo julgamento,
pela Constituição, cabe ao Supremo Tribunal Federal. A Constituição, no art. 114,
inciso I, letra g, ao dispor que ao Supremo Tribunal Federal compete processar e
julgar a extradição dá-lhe o poder de apreciar o pedido na totalidade.

321
Memória Jurisprudencial

A segunda questão, por igual, foi bem decidida: a da compatibilidade da


pena aplicável ao extraditando, com o sistema constitucional brasileiro — art.
150, § 11, da Constituição. A solução está no compromisso previsto no art. 12 do
Decreto-Lei 394, de 28-4-1938.
O ponto maior de controvérsia, afora o da preferência, reside na prescri-
ção. A regra, com referência à prescrição, é a da lei brasileira, se esta for favo-
rável ao extraditando. Nessa hipótese, incidirá a lei brasileira, inclusive quanto à
regulação dos atos que possam interromper ou suspender o curso do prazo
prescricional. Não observará o Tribunal, no julgamento de extradição, outra regra
sobre prescrição, que não a da lei brasileira, se esta for favorável.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não seria melhor ambas: a da lei
estrangeira e a da lei brasileira, se esta for favorável.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Se houver coincidência, não haverá proble-
ma. Se houver conflito, prevalecerá a lei brasileira, sendo propícia ao extraditando.
Por isso, dispõe o Decreto-Lei 394 que não será concedida a extradição, quando se
tiver verificado a prescrição, segundo a lei do Estado requerente, ou a brasileira. No
conflito, no tocante ao prazo de prescrição, ou à causa interruptiva, qualquer que
seja a diversidade, deve ser aplicada a lei brasileira. Assim, não se admitiria a
imprescritibilidade, para certo crime, contrariamente ao que acontece entre nós.
Respeitada aquela condição, as normas do Estado requerente serão aplicá-
veis, também, relativamente à questão, de direito material, de suspensão ou inter-
rupção do curso da prescrição. Mas daí não se segue que, no exame dessa ques-
tão, se pudesse cogitar da aplicação, por inteiro, do processo de Estado estrangei-
ro. Mencionou-se, no debate, com acerto, que não é possível que se busque iden-
tidade total nos processos dos diferentes Estados. O eminente Procurador-Geral
da República, no parecer escrito e no oral, que são lições magistrais, mostrou,
com propriedade, que é necessário examinar, com adaptação, a respeito da causa
interruptiva, o processo do Estado requerente, para ver se há, no fundo, coinci-
dência; se se realiza o mesmo fim que o legislador brasileiro teve em vista, ao
instituir a causa interruptiva da prescrição. Quando a nossa lei penal especifica
como causa de interrupção o recebimento da denúncia ou da queixa — art. 117,
inciso I, do Código Penal —, assim declara porque este ato, no nosso sistema
penal, significa o início da ação penal. É o ato de acusação formal, estabelecido
na lei, que constitui o começo da ação penal. É evidente, entretanto, que se a
peça acusatória não é recebida, mas rejeitada, não se pode falar em ação penal
iniciada. A partir do momento em que a denúncia é recebida pelo Juiz, interrom-
pe-se o prazo da prescrição. Dentro deste sistema legal, que se impõe, é preciso
apurar se, na espécie, ocorreu, ou não, a prescrição.
O caso da Polônia é fora de dúvida. Está sendo julgado, pacificamente,
que não houve nenhum ato que servisse de interrupção da prescrição, entre os

322
Ministro Victor Nunes

fatos atribuídos ao extraditando e o início da ação penal. O da Alemanha também


não enseja discussão. Dá-se como recebida a acusação em 4 de maio de 1960.
Interrompeu-se, então, para o processo na Alemanha, o prazo de prescrição da
lei brasileira, de vinte anos.
Mas, como se viu, do voto do eminente Relator e dos que se lhe seguiram,
quanto à Áustria, há lugar para controvérsia. As imputações referem-se a três
grupos de fatos e a três lugares. Em relação aos fatos de Hartheim, não há
dúvida, porque, em março de 1948, foi oferecida a acusação. A defesa alega que
essa acusação importou mudança na qualificação do delito, que não se poderia
considerar para efeito da prescrição. O termo inicial não seria março de 1948,
porém agosto de 1941. Não me parece, data venia, que tenha valia o argumento,
porque, retificada ou aditada a denúncia, para o efeito de nova qualificação do
crime, da última se há de contar o prazo. Assim, com referência a Hartheim, não
ocorreu a prescrição. A discussão, a meu ver, poderá existir quanto aos fatos
praticados em Sobibór e em Treblinka. Mas, no que concerne a estes, igualmente,
estou de acordo com o eminente Relator.
Resta a questão, que se me afigura mais difícil, de saber qual o Estado que
deve ter preferência na entrega. O eminente Relator analisou minuciosamente o
texto legal sobre a preferência, que é o art. 6 do Decreto-Lei 394. A primeira
regra sobre a preferência é a do § 3º: a estipulada em tratado. Não havendo
tratado, incide a lei, que faz distinção: se se trata do mesmo fato ou de diversos.
Não se trata, aqui, do mesmo fato, senão de diversos. Portanto, é aplicável a
regra do § 1º. Quando não for o caso de observância dessas regras, a preferência
ficará ao arbítrio do Governo brasileiro. Dispõe o § 1º, letra a:
“Tratando-se de fatos diversos:
a) o que versar sobre a infração mais grave, segundo a lei
brasileira”;
Peço vênia ao eminente Relator para dissentir de seu entendimento so-
bre a expressão legal: “infração mais grave, segundo a lei brasileira”. A classi-
ficação do crime é que definirá a infração mais grave, segundo a lei brasileira.
Conforme inferi da exposição feita, como pude ler nos memoriais e no relató-
rio, a qualificação legal dos crimes, em todos os pedidos, é a mesma. Desse
modo, a meu ver, não se resolve a preferência, na espécie, com a regra do § 1º
letra a do art. 6º.
Com o voto do eminente Relator, em face dos três pedidos, avulta essa
questão da preferência. Consideração relevante é a de que é deferido o pedido
da Áustria para julgamento, somente, dos fatos de Hartheim. A requisição da
Alemanha não se estende a esses fatos; reduz-se aos de outro grupo, os de
Treblinka. A Alemanha, com fundamento na lei que lhe permite punir agente,

323
Memória Jurisprudencial

mesmo estrangeiro, que, no exercício de função pública alemã, em qualquer parte,


tenha cometido crime, pede extradição, unicamente, em relação a Treblinka, e
não a Sobibór e a Hartheim, onde o extraditando também procedeu na qualidade
de agente alemão. Vê-se que o fundamento de seu pedido é, ainda, o da
territorialidade — inadimissível, no caso —, porque Treblinka, na Polônia, fora
ocupada pela Alemanha.
Parece-me que a preferência se determinará nos termos do art. 6º, § 1º,
letra b, isto é, terá prioridade o Estado que, em primeiro lugar, houver solicitado a
entrega. Portanto, a Áustria. Há uma objeção, que ouvi dos eminentes colegas,
para a declaração de prioridade da Áustria, com a condição, que o eminente
Relator já mencionou, de assumir o Estado a que for assegurada a preferência, o
compromisso de fazer, depois, a entrega ao outro requerente: a lei austríaca não
permite a extradição de nacional por crime cometido no estrangeiro; ele será
julgado conforme a lei austríaca. Cabe, pela lei brasileira, a prioridade à Áustria.
A mesma lei, que dá essa prioridade, preceitua que poderá ser imposta a condição
de entrega ulterior a outros requerentes. Essa condição será declarada na decisão
do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a legalidade do pedido.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Permita, V. Exa.: aí haveria um embaraço
de ordem legal na Áustria. É que ela, como o Brasil, não concede a extradição do
nacional. Então se vedaria completamente a possibilidade de esse extraditando
ser entregue mais tarde a julgamento na Alemanha. A solução que propôs o emi-
nente Relator asseguraria os dois objetivos.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: É exatamente o que me faz ponderar. Pela
lei brasileira, a meu ver, cabe a preferência à Áustria, com a condição do art. 6º,
§ 2º. Ao cumprimento da decisão do Tribunal, poder-se-á opor, na Áustria, a
regra local de ordem pública: o austríaco não será extraditado por crime cometido
no estrangeiro; ele será julgado segundo a lei austríaca. Ora, este Tribunal poderá
impor aquela condição? Explica-se a minha afirmação, feita há um instante, de
que, para mim, a maior dificuldade é resolver sobre a preferência do pedido. A
solução deverá resultar de adaptação, de conciliação dos princípios. Por isso,
concordo, agora, diante do debate, em acompanhar o voto do eminente Relator,
também nessa parte, embora, em princípio, me parecesse acertado reconhecer a
preferência da Áustria.

VOTO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, acredito que o eminente
Ministro Edgar Costa, quando tiver de completar sua preciosa obra sobre os casos
célebres do Supremo Tribunal Federal, por certo incluirá o julgamento desta tarde.

324
Ministro Victor Nunes

Pelas horas que consumi esta noite, até madrugada, e toda a manhã, só em
ler os memoriais — e não consegui devorá-los todos —, posso avaliar a corvéia
terrível, que desempenhou com todo o brilho e êxito o eminente Relator. Aliás,
todos os que participaram do julgamento, os ilustres advogados, o Dr. Procurador-
Geral da República, todos cumpriram admiravelmente seu dever. Quero fazer
referência especial ao advogado dativo que o eminente Relator nomeou ao extra-
ditando. Raras vezes, na história do foro brasileiro, terá um advogado cumprido o
seu dever com tanto zelo, tanta abnegação, numa causa tão dura e tão ingrata.
Isso deve honrar o foro de Brasília, e servirá de exemplo a todos os jovens que
aqui tão dignamente exercem sua missão.
Acredito que este desempenho do Professor Xavier de Albuquerque se
poderá comparar àqueles casos famosos, a que se referiu Rui Barbosa nos dis-
cursos que proferiu na Ordem dos Advogados, em 1911 e em 1914.
Mas, Sr. Presidente, já o assunto foi completamente analisado, dissecado,
retalhado, e acredito que este acórdão servirá de uma espécie de consolidação
de várias teses, que em outros processos de extradição já foram aflorados.
No final das minhas leituras desta manhã, calculei como iria votar, e me
felicito de ver que meu voto coincidiu com o do eminente Relator. Tive dúvidas a
respeito de Hartheim. Pareceu-me que os crimes ali cometidos estavam prescri-
tos. Mas creio que houve algo como um libelo, algo como uma etapa para o
julgamento imediato, quando o extraditando fugiu, em 1948. Nesse caso não se
completaram os vinte anos.
Quanto à questão da reciprocidade, também fiquei profundamente vaci-
lante, não que fosse insensível aos argumentos do eminente Procurador-Geral
da República, que analisa os problemas da preferência, da reciprocidade e até
mesmo sobre certos aspectos de ordem prática. Parece-me que o mais líquido
dos casos, sobre interrupção de prescrição, é aquele da Justiça de Düsseldorf,
em 4-5-62.
Acompanho em toda linha o voto do eminente Relator, com as mesmas
cautelas, condições e limites, inclusive, no que se refere à reciprocidade. Parece-me
que isso está no pensamento de S. Exa, embora na conclusão não houvesse
referência ao compromisso da reciprocidade.

VOTO
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, eu não ousaria, nesta
altura da discussão que se travou, em torno deste processo, aditar quaisquer
considerações de ordem jurídica ao brilhante voto do eminente Relator, com
quem declaro estar, em todos os aspectos da questão ventilada.

325
Memória Jurisprudencial

É oportuno, neste momento, manifestar a repulsa da minha consciência


jurídica a esse genocídio monstruoso, a esse crime inominável que, relembrando
os versos do imortal poeta português:
“é um crime que profana todas as grandes leis da consciência
humana, todas as grandes leis da vida universal.”
É esse um crime que, ao menos no plano moral, é irresgatável e
imprescritível, porque transcende, de muito, a órbita do direito comum, para ferir,
fundamente, não só o direito humano, mas, por assim dizê-lo, o próprio direito
divino e o direito natural. Isso significa que ele refoge às prescrições da legisla-
ção ordinária, para alcançar uma repressão, que a estreiteza dos Códigos não
comporta, em face dos traços hediondos que o entenebrecem e horrorizam.
É esse um delito estranho, que atenta, brutalmente, contra todos os senti-
mentos de fraternidade e de solidariedade humana; que vulnera o que há de mais
nobre, de mais alto e de mais sagrado na alma do homem, degradando-o à bes-
tialidade, à grosseria e à estupidez da mais baixa animalidade. Nem a inconsciência
da era da caverna o aviltou tanto.
Faço essas declarações que soam como um desabafo, para significar que
um crime de tal porte não pode ser julgado à luz do rigor da técnica, tão exaltada
pela brilhante inteligência do douto Advogado do extraditando, mas à vista de
critérios morais impostergáveis, que, em fato de tamanha relevância, devem
proeminar e primar sobre a frieza das apreciações jurídicas.

VOTO
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Quero pôr em destaque, como antigo
advogado que fui, na especialidade criminal, durante muitos anos, a atuação dos
advogados nesta causa, mas quero dar um relevo especial ao trabalho do Prof.
Xavier de Albuquerque, impecável na forma e magistral na técnica. Ressalto
a dignidade, a altitude, a elevação com que enfrentou uma causa ingrata e
impopular...
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Peço licença a V. Exa. para declarar
que sou solidário às suas palavras, nesse ponto.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: ... elevando-se à altura dos grandes
exemplos de advogados que, em todos os tempos, têm sabido pôr além do seu
talento, também, a sua bravura e a sua capacidade de sacrifício na defesa dativa,
desinteressada, de um acusado de crimes repugnantes.
Acho que a ata dos nossos trabalhos deve registrar esse esforço, esse
trabalho prestado, de ofício, à Justiça, com o estudo e a preocupação de

326
Ministro Victor Nunes

desincumbir-se da sua tarefa, para que, amanhã, não se diga, num julgamento
desta importância, num caso de repercussão universal, que a Justiça brasileira
não deu ao extraditando um advogado à altura da sua defesa, sabidamente difícil
e arriscada.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Muito bem!
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: É claro que não preciso elogiar o Dr.
Procurador-Geral da República pela sua atuação no processo.
Mas ao que quero dar ênfase, nesta hora, é ao trabalho do advogado de
defesa, embora divergindo da sua argumentação num ponto: é quando S. Exa.
diz que, na lei brasileira, a interrupção da prescrição só se dá através de atos
decisórios. O art. 117 do Código Penal também faz interromper a prescrição
“pelo início ou continuação do cumprimento da pena” e “pela reincidência”.
Nenhuma dessas hipóteses é ato decisório. Parece-me que, neste ponto, o
entusiasmo do Advogado levou-o a fazer uma afirmação contrária ao que se
contém em nossa legislação positiva. A reincidência, que não é ato decisório, e,
sim, um novo crime praticado pelo próprio réu, interrompe a prescrição. Assim
também acontece com o início do cumprimento da pena. Vê-se, pois, que a
prescrição pode interromper-se com a existência de um fato que não importa
em decisão do juiz.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O ilustre advogado queria referir-se
à ação penal antes do julgamento.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Os atos de interrupção, previstos no art.
117 do Código Penal, são esses. E quanto ao ato de recebimento da denúncia — o
próprio advogado sabe, tão bem quanto nós, e o eminente Relator pôs isso em desta-
que —, há controvérsia sobre se é um ato decisório, ou se meramente ordenatório.
Com relação à preferência, acho que há um argumento decisivo em apoio
à conclusão do eminente Relator. O crime não foi cometido apenas no território
polonês, ou apenas no território alemão. A preferência decorre de que, entre
vários atos, talvez o principal — a deliberação para a execução do crime —
ocorreu na Alemanha, na cidade de Berlim. Foi lá que um grupo se reuniu para
deliberar a “solução final”, eufemismo para o extermínio e liquidação da raça
judaica. O crime foi cometido, principalmente, na Alemanha, quer dizer, o seu
planejamento partiu todo de Berlim. A sua execução material é que se deu em
Treblinka, Sobibór e Hartheim, e em outros lugares. Os co-réus no processo
estavam na Alemanha e já foram, vários deles, julgados pela Justiça desse País.
A preferência, de acordo com a nossa lei, está em que o crime foi cometido
também em território alemão. Além disso, o extraditando era funcionário do Go-
verno alemão, na época do crime, e agia nessa qualidade. A maior gravidade,
com a devida vênia do eminente Ministro Adaucto Cardoso, me parece que é,

327
Memória Jurisprudencial

indiscutivelmente, a dos crimes cometidos em Treblinka. Se nós nos enchemos de


horror com o morticínio de treze mil pessoas no laboratório de Hartheim, esse
horror é elevado ao cubo quando sabemos que foram setecentos mil os mortos
dos campos de Treblinka.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Em Hartheim, pode-se dizer que houve,
talvez, eutanásia, ou coisa assim. Há países que aplicam a castração em certos
criminosos, embora exijam a concordância.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Além da maior gravidade, os crimes
de Treblinka se deram durante maior espaço de tempo, ou seja, durante um ano,
enquanto em Hartheim a sua atuação foi de alguns meses. Portanto, maior inten-
sidade da ação criminosa em Treblinka.
Maior gravidade, também, porque o extraditando tem, no processo de
Treblinka, uma posição muito mais destacada do que no processo de Hartheim.
A brilhantíssima defesa do Prof. Xavier de Albuquerque ainda levantou a
questão da não-interrupção da prescrição nas contravenções. Realmente, não há
interrupção, porque o processo se inicia por meio de portaria, ou por meio de
prisão em flagrante. Não se dá a prescrição, porque a menor importância, a
menor gravidade da infração fez com que o legislador não necessitasse cogitar
de causa interruptiva. No crime houve uma precaução do legislador pela neces-
sidade de impedir que as delongas do inquérito policial, ou o congestionamento da
Justiça, retardando o julgamento do processo, pudessem facilitar a prescrição de
infrações graves, com desastrosas conseqüências para a defesa social. É certo —
como disse o ilustre advogado — que o extraordinário Carrara coraria, se vivesse,
ao ler uma disposição penal que interrompesse a prescrição com o recebimento
da denúncia. Mas, legem habemus.
Sr. Presidente, estou de inteiro acordo com o eminente Relator.

VOTO
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr Presidente, também estou de
acordo com o douto, brilhante e substancioso voto do eminente Ministro Relator.
Estou, também, de acordo com S. Exa. quando exige do Estado requerente que
não imponha ao extraditando uma pena perpétua. Esta cautela, de resto, a meu
ver, resulta da interpretação do art. 12, letra a, na nossa Lei de Extradição, De-
creto-Lei 394, quando diz:
“A entrega não será efetuada sem que o Estado requerente assuma
os compromissos seguintes:
a) não ser detido o extraditado em prisão, nem julgado, por infração
diferente da que haja motivado a extradição e cometida antes desta, salvo

328
Ministro Victor Nunes

se livre expressamente consentir em ser julgado ou se permanecer em


liberdade, no território desse Estado, um mês depois de julgado e absolvido
por aquela infração, ou de cumprida a pena de privação de liberdade
que lhe tenha sido imposta”.
Quer dizer: essa restrição é no pressuposto de que será dada ao extradi-
tando, no máximo, a pena privativa de liberdade, que é prevista pela lei, em vinte
anos, atualmente.
Então, Sr. Presidente, como assinalou o douto advogado do extraditando,
tenho posto restrições a que a Administração do país requerente possa assumir o
compromisso pelo Poder Judiciário, mas é verdade que a nossa lei prevê esse
compromisso, no art. 12. E como a extradição já está consentida, já está conce-
dida por este Tribunal, fico de acordo com o eminente Relator, em impor ao
Estado requerente esse compromisso expresso.
Com essas considerações, acompanho e voto do eminente Relator.

VOTO
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Estou de acordo como o voto do emi-
nente Relator em todos os seus termos, acrescentando, ainda, as palavras do
eminente Ministro Evandro Lins, a propósito do ilustre advogado dativo, a quem
rendo minha homenagens.

VOTO (Retificação)
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Sr. Presidente, mais importante do que as
minhas convicções é a unanimidade do Tribunal. Prestei ao admirável trabalho do
eminente Procurador-Geral da República a homenagem do meu voto, com o re-
conhecimento de prioridade para o pedido da República Federal da Áustria. Ago-
ra, presto homenagem a este Tribunal, rogando que V. Exa. proclame a decisão
como unânime, já que, para isso, acompanho a conclusão do eminente Relator.

EXTRATO DA ATA
Ext 272/Áustria — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Governo
da Áustria (Advogado: George Tavares). Extraditando: Franz Paul Stangl (Advo-
gado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).
Ext 273/Polônia — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Repúbli-
ca Popular da Polônia (Advogado: Alfredo Tranjan). Extraditando: Franz Paul
Stangl (Advogado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).
Ext 274/Alemanha — Relator: Ministro Victor Nunes. Requerente: Repú-
blica Federal da Alemanha (Advogado: Antonio Evaristo de Moraes Filho). Extra-
ditando: Franz Paul Stangl (Advogado: Francisco Manuel Xavier de Albuquerque).

329
Memória Jurisprudencial

HC 44.074/DF — Relator: Ministro Victor Nunes. Impetrantes: José


Octávio Teixeira Pinto e Sklinner Lopes. Paciente: Franz Paul Stangl .
Decisão: Indeferido o pedido da Polônia; autorizada a entrega do extraditan-
do, em primeiro lugar, à Alemanha, com o compromisso de conversão da pena de
prisão perpétua em prisão temporária, e bem assim, o da ulterior entrega do extra-
ditando à Justiça da Áustria, observadas as demais condições da lei, especialmente
as do art. 12; julgado prejudicado o habeas corpus. Decisões unânimes.
Presentes os Ministros Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha,
Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro, Adalicio Nogueira, Evandro Lins, Hermes
Lima, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta, Hahnemann Guimarães
e Lafayette de Andrada. Licenciados, os Ministros Pedro Chaves e Prado Kelly.
Plenário, 7 de junho de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos, Vice-
Diretor-Geral.

RECURSO ORDINÁRIO ELEITORAL 366 — PR

Recurso eleitoral. Matéria constitucional. O Supremo


aprecia os recursos quando a decisão do Tribunal Superior
Eleitoral houver denegado habeas corpus e mandado de
segurança, quando se alegar invalidade de lei ou ato contrá-
rio à Constituição e, por força de compreensão, quando se
alegar a violação da própria Constituição. No caso, decidiu-
se ser inelegível o genro do Governador, não tendo, assim,
havido violação da Lei Fundamental, razão pela qual não se
conheceu do recurso.
VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, V. Exa. e nossos eminentes
colegas sabem do alto apreço em que tenho a continuidade das decisões do Su-
premo Tribunal. Entretanto, esse respeito pela nossa coerência, de que resulta
prestígio para o Supremo Tribunal, não exclui o debate esclarecedor de questões
já tranqüilizadas pelo Tribunal. Esse debate pode, eventualmente, levar a maioria
a outras conclusões. O que me parece inconveniente são as alterações não prece-
didas de ampla discussão, de pleno esclarecimento, porque lançam confusão no
espírito das partes e conduzem à insegurança jurídica.
Os brilhantes votos já proferidos acentuaram que, no nosso sistema, há um
órgão incumbido de dizer a última palavra na interpretação da Constituição. Esse
órgão é o Supremo Tribunal Federal. Teria a Constituição, no art. 120, quebrado

330
Ministro Victor Nunes

essa unidade, criando uma dualidade que poderia retirar ao Supremo Tribunal a
sua própria razão de ser? O Supremo Tribunal nasceu à imagem da Corte Suprema
dos Estados Unidos, cuja tarefa fundamental, nunca mais posta em dúvida depois
do caso Marbury v. Madison, é a de dar a última palavra sobre a Constituição. O
Ministro Felix Frankfuster, quando professor de Direito Constitucional, usando
uma vigorosa imagem, costumava dizer aos seus alunos que a Corte Suprema é a
Constituição.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A Constituição é o que a Corte Suprema diz
que é.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A Constituição é o que a lei ordiná-
ria diz que ela é. A lei ordinária é que regula o funcionamento da Corte Suprema.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, quando se trata de interpretar a Cons-
tituição, a competência da Corte Suprema resulta da própria Constituição, com o
sentido que ela mesma lhe deu, e não da lei ordinária.
Retomando o meu raciocínio, teria a Constituição brasileira quebrado o
sistema, permitindo que dois órgãos judiciários pudessem dizer a última palavra
em torno de um texto da Constituição? Parece-me que não. E suponho, falando
com todo o respeito, que o entendimento até aqui preponderante pode conduzir a
esse resultado.
Veja V. Exa., Senhor Presidente. A mesma questão de direito pode ser
enquadrada em recurso eleitoral, stricto sensu, e em mandado de segurança.
Suponhamos que, no recurso eleitoral, o Tribunal Superior Eleitoral tenha proferi-
do decisão no sentido da validade de uma lei, considerando-a compatível com a
Constituição. Suponhamos que essa mesma questão jurídica, posta em mandado
de segurança, negado pelo Tribunal Superior Eleitoral, venha ao Supremo Tribu-
nal, e aqui afirmemos que aquela mesmíssima lei, declarada constitucional pelo
Tribunal Superior Eleitoral, é inconstitucional. Que benefício haverá para o regi-
me o fato de dois Tribunais dizerem a última palavra sobre a constitucionalidade
da mesma lei no exame da mesma questão jurídica? Se há essa aparente
duplicidade na Constituição, em face do seu art. 120, temos de recorrer a outros
dispositivos constitucionais para sabermos a quem cabe a prioridade, porque não
deve, nem poder haver, em nosso sistema, dois Tribunais que interpretem o Direito
Constitucional de modo final ou conclusivo.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas, enquanto no mandado de segurança a
Constituição dá recurso ordinário da decisão denegatória, nos outros casos ela
condiciona a que se trate de invalidade de lei ou ato contrário à Constituição,
estabelecendo como regra a irrecorribilidade (art. 120).

331
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa., Senhor Presidente, tem sustentado,


com o brilhantismo de sempre, que a interpretação literal é a mais pobre das
interpretações. V. Exa. demonstrou, com o apoio do Tribunal, que lhe cabe co-
nhecer do mandado de segurança contra atos do Plenário da Câmara dos Depu-
tados, ou do Senado Federal, interpretando construtivamente o art. 101, inciso I,
letra i, da Constituição. V. Exa. decidiu da mesma maneira em relação aos atos
do Tribunal de Contas da União. Em nenhum desses casos, o Tribunal deu
prevalência à expressão literal do texto, mas à sua interpretação sistemática.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Para suprir uma lacuna.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Naqueles casos, era para suprir lacunas; aqui
estaremos corrigindo o que me parece uma contradição do texto constitucional.
Tomado o art. 120 ao pé da letra, haverá dois Tribunais com competência para
dar a última palavra sobre a constitucionalidade da mesma lei. Isso me parece
totalmente incompatível com o nosso sistema. Então, devemos resolver esse con-
flito, que é aparente, com o amparo de outros dispositivos da Constituição.
Lembro dois. Um — o art. 8º — trata da intervenção federal nos Estados,
assunto da máxima importância para o regime. A última palavra cabe ao Supre-
mo Tribunal, nos casos que a Constituição prevê. Quis a Constituição marcar,
assim, a preeminência do Supremo Tribunal. Outro, Senhor Presidente, o art. 64,
mais relevante ainda, na linha do meu raciocínio, só permite ao Senado Federal
suspender a vigência da lei ou decreto, por inconstitucionalidade, diante de uma
decisão do Supremo Tribunal.
Voltemos, agora, ao exemplo há pouco figurado. O Tribunal Superior Elei-
toral, por hipótese, terá declarado que a lei é constitucional; o Supremo Tribunal,
que ela é inconstitucional; e o Senado, com base na nossa decisão, suspende a
vigência da lei. Daí se conclui que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral não
era conclusiva, não era a última palavra. Se fosse, o Senado não poderia suspen-
der a vigência de lei declarada inconstitucional por nós, mas que o Tribunal Supe-
rior Eleitoral entendesse que seria constitucional.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Nesse caso, caberia recurso. O que não admi-
timos é o cabimento do recurso quando se questiona sobre a validade da própria
decisão judicial em face da Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: No exemplo figurado, o Tribunal Superior
Eleitoral teria declarado a validade da lei; logo, não caberia recurso, interpretan-
do-se literalmente o art. 120. Meu argumento pode ser errado, mas não é ilógico,
não é contraditório. Figurei um exemplo em que se pode dar um conflito entre
decisões do Supremo Tribunal e do Tribunal Eleitoral quanto à interpretação da
Constituição.

332
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Este conflito seria entre uma deci-
são do Supremo Tribunal e outra do Tribunal Superior Eleitoral, nos termos da
Constituição, em matéria eleitoral.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Note-se que a Constituição, no art. 120,
estabelece como regra a irrecorribilidade das decisões do Tribunal Superior
Eleitoral.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou discutindo o problema no plano da
interpretação das leis ordinárias, porque não me parece necessário acrescentar
coisa alguma às considerações do eminente Ministro Gonçalves de Oliveira. Estou
discutindo no plano da interpretação da Constituição. Figurei o exemplo de haver
uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral que seja contrária à Constituição,
embora tenha declarado a validade de uma lei. Ao validar a lei, teria violado, ele
próprio, a Constituição, como já a teria violado o Poder Legislativo, ao votar a lei.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Realmente, neste caso, não seria possível o
recurso, porque a Constituição, no art. 120, fala em declaração de invalidade da
lei ou ato.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, os apartes com que fui
honrado quebraram um pouco o fio do meu raciocínio. Para concluir meu voto,
lembro que figurei um exemplo. Nesse exemplo, haveria um conflito entre deci-
sões do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal. Aquele teria declarado
a lei válida, em face da Constituição; o Supremo teria declarado a lei inválida.
Interviria, depois, o Senado Federal, dando prevalência à nossa interpretação,
jungido aos termos do art. 64.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É um pouco difícil que uma lei eleitoral viesse
ao Supremo, num pleito comum. O art. 120, entretanto, permitiria a solução em
recurso de mandado de segurança.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O art. 120 o permite: recurso de decisão
denegatória de mandado de segurança. Estou figurando esse exemplo.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Aí estou de acordo e solucionaria o caso pelo
mandado de segurança. Para não violar o art. 120, e como a Constituição diz que
caberá o mandado de segurança, seja qual for a autoridade responsável pela ilega-
lidade ou abuso de poder (art. 141, § 24), eu resolveria o caso com esse remédio.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas pode haver conflito de decisões.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: É muito mais fácil, então, o Supremo
Tribunal tomar conhecimento em recurso ordinário. Se admitirmos mandado de
segurança nas decisões terminativas do Tribunal Superior Eleitoral, vamos

333
Memória Jurisprudencial

admitir aqui mandado de segurança quando julgarmos embargos infringentes.


E, no entanto, já decidimos no sentido contrário. O Supremo Tribunal entende
que não cabe mandado de segurança de decisão definitiva proferida em embargos
pelo Supremo Tribunal. Não pode caber, se não seria um nunca mais acabar.
E seria fraude à lei: esta não admite nenhum recurso e a parte vem com a
segurança.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O que entendo é que o mandado de segurança
não pode substituir a rescisória, para corrigir a decisão que transitou em julgado.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, no exemplo que figurei,
pode dar-se o caso de conflito entre duas decisões sobre matéria constitucional,
uma do Tribunal Superior Eleitoral, outra do Supremo Tribunal, intervindo o Senado,
na forma da Constituição, para suspender a lei que o Supremo tiver declarado
inconstitucional. Isso significa, para mim, que a Constituição não quis quebrar a
unidade da interpretação da Constituição, não quis criar dois órgãos capazes de
decidir conclusivamente da constitucionalidade das leis. Manteve essa prerrogativa
no Supremo Tribunal, porque somente quando o Supremo declara a lei inconstitu-
cional é que o Senado pode suspender a sua vigência. E, quando o Supremo Tribu-
nal houver decidido assim, pouco importa que o Tribunal Superior Eleitoral tenha
julgado diferentemente, porque o Senado pode suspender a vigência da lei, deixando
de lado a decisão do Tribunal Superior Eleitoral e acatando a do Supremo Tribunal.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Depois do procedimento do Senado Federal,
nenhum tribunal mais pode aplicar a lei. Aí a decisão de Supremo Tribunal produz
efeito erga omnes.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou figurando a hipótese de serem proferi-
das decisões antes da deliberação do Senado Federal. Depois de suspensa a
vigência da lei pelo Senado, nem o Supremo Tribunal, nem o Superior Tribunal
Eleitoral poderiam cogitar de sua aplicação. Na hipótese figurada, embora o Tri-
bunal Eleitoral tenha decidido, antes, que a lei era constitucional, terá prevalecido
afinal o nosso entendimento, porque nele é que se baseia o Senado para suspen-
der a vigência da lei.
A prerrogativa de dizer a última palavra é do Supremo Tribunal. Devemos,
por isso, interpretar o art. 120 tendo em vista essa prerrogativa, que é nossa, e da
qual não devemos abrir mão, porque é inerente ao sistema, como observou o
eminente Ministro Pedro Chaves.
Estou de acordo, pois, com o eminente Ministro Relator, também não
conheço do recurso, porque não houve ofensa à Constituição.

334
Ministro Victor Nunes

REPRESENTAÇÃO 477 — GB

Deputados estaduais da Guanabara.


Constitucionalidade da fixação dos seus mandatos em qua-
tro anos, a contar da instalação da Assembléia.
O Poder Constituinte estadual não pode sofrer limitações
impostas por lei ordinária federal e sim apenas as contidas na
Constituição Federal, conforme preceitua o seu art. 18.
No choque entre uma lei federal e uma Constituição esta-
dual, há que apurar, para dar solução ao conflito, qual delas se
afastou das órbitas de competência traçadas na Constituição
Federal. E se foi a lei federal que nessa falta incidiu, como no
caso ocorre, claro que contra ela prevalecerá a Carta estadual.
Não será a esta que se estará então obedecendo, mas à
própria Constituição Federal, ou seja, à distribuição de poderes
que ela consagra.
Representação julgada procedente, em parte.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, começo meu voto esmagado
pela autoridade dos eminentes colegas que se pronunciaram antes de mim; por
isso, impõe-me a consciência o dever de dizer, mais longamente, as razões por
que concluo de maneira contrária, julgando inadmissível a questionada extensão
de mandato (pois é disso, realmente, que se trata). Não se cuida de sobrepor lei
federal à Constituição estadual. O problema é saber se alguém pode dar mandato a
si mesmo. Deputados eleitos com mandato de duração certa ampliaram essa
investidura, mas não há preceito da Constituição Federal nem princípio constitu-
cional algum que institua essa competência em seu favor.
A Lei Santiago Dantas veio cobrir uma lacuna em nosso ordenamento
constitucional, que determinou a transformação do antigo Distrito Federal em
Estado, sem regular a etapa transitória dessa transformação. Punha-se, então, o
problema: quem pode dispor sobre esse período transitório? O Estado? Não, por-
que o Estado só pode atuar por intermédio dos órgãos que falam em seu nome. E
não havia ainda órgãos estaduais constituídos. O Estado não possuía órgãos
constitucionais de expressão.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Se é um Estado que surge, e não tem ainda,
nem podia ter, Constituição, se a eleição tem de proceder à elaboração da Cons-
tituição, onde esse mandato poderia estar fixado? Tinha que ser fixado na Cons-
tituição, com efeito imediato. E assim tem sido sempre.

335
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O eleitorado do Estado da Guanabara foi


convocado para uma eleição cujo mandato terminava peremptoriamente em 1963.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Desejava que o eminente Sr. Ministro Victor
Nunes me dissesse como é possível, no Estado que surge, fixar o mandato sem
ser pela Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. deseja concluir meu voto antes de
mim... Pretendo desenvolvê-lo, se me permitem, dentro de uma linha de argu-
mentação preestabelecida.
Dizia eu que a Constituição não regulou o período transitório de transfor-
mação do Distrito Federal em Estado. A situação assemelhava-se (era até mais
grave) àquela prevista na Constituição, isto é, que, no Estado, haja algum Poder
impedido ou obstado no seu exercício. Tratava-se, mais do que isso, de Estado
que não tinha ainda seus Poderes estruturados. Normalmente, portanto, seguir-
se-ia a intervenção (art. 7º, IV); e o interventor, investido de poderes por ato do
Executivo, submetida a intervenção ao Congresso, teria, então, autoridade cons-
titucional para convocar a Assembléia Constituinte e promover a organização do
Estado nascente.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: E de fixar, também, o período dos mandatos?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Chegarei a esse ponto.
A Constituição, prevendo a hipótese de perturbação no funcionamento dos
Poderes estaduais, restituiu à União — pelo mecanismo da intervenção federal —
competência para normalizar a situação do Estado em crise. Tratando-se de Es-
tado nascente, como era o da Guanabara, ainda não organizado, e no silêncio da
Constituição, é evidente que nenhum outro Poder se sobrelevaria ao Poder
Legislativo federal para organizar esse período de transição. Acresce que, pelo
artigo 26 da Constituição, à União cabia legislar sobre a organização do Distrito
Federal, e não é senão desdobramento ou conseqüência desse poder o de regular
a passagem do status distrital para o status estadual.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A 21 de abril de 1960, o Distrito Federal passou
a ser aqui, em Brasília.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas quem legislava sobre a organização do
Distrito Federal, quando sediado no Rio de Janeiro, era o legislador federal, e, não
havendo a Constituição regulado o período de passagem ou de transformação, o
único Poder que, pela Constituição, tinha competência ligada a esse problema era
o Legislativo federal (sem falar na intervenção, que caberia ao Executivo federal,
com aprovação do Congresso Nacional).

336
Ministro Victor Nunes

Por isso, a Lei Santiago Dantas foi promulgada no exercício de legítima


competência do Congresso Nacional. E aquele ilustre jurista, em manifestações
na Comissão de Justiça da Câmara, na época, defendeu esse ponto de vista com
muito brilhantismo. Onde a Constituição não instituiu competência para quem
quer que seja, estando excluída a estadual por não haver ainda Estado organiza-
do, é evidente que os Poderes federais tinham competência imanente para dispor
a respeito da transformação do antigo Distrito Federal em Estado.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Do ponto que se questiona aqui, ele cuidou no
discurso que citei.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Esse discurso foi proferido muito depois de
promulgada a lei, mas esta, durante sua elaboração, foi amplamente justificada
pelo então Deputado Santiago Dantas, que foi o Relator. Ele discutiu o assunto,
longamente, na Comissão de Justiça, terçando armas com o ilustre Deputado
Pedro Aleixo. O ilustre Deputado Aliomar Baleeiro, que acaba de abrilhantar a
Tribuna, poderia depor a respeito.
A Lei Santiago Dantas — prossigo — dispôs sobre a matéria no legítimo
uso da competência federal imanente para regular a transformação do antigo
Distrito Federal em Estado.
No discurso que o Deputado Santiago Dantas proferiu ulteriormente, as-
sim se referiu ele ao debate anterior:
“Ao mesmo tempo, Sr. Presidente, tínhamos diante de nós o proble-
ma de instalação do Poder Público, uma nova unidade da Federação. A
autonomia de uma parcela do povo e do território não se estabelece sem
que medidas sejam tomadas para a criação de órgãos do Governo, através
de pronunciamentos da vontade popular. Era necessário traçar normas
para que uma Assembléia Constituinte fosse eleita dentro dos elementos
de competência consentâneos com o regime federativo. Era necessário
fixar época para a realização dessas eleições e para a escolha do Gover-
nador do Estado. E tudo isto não encontrava na Constituição norma que
pudesse servir de guia ao legislador ordinário.”
A Lei Santiago Dantas convocou a Assembléia Constituinte, como lhe
cumpria. Ao convocar a Assembléia Constituinte, poderia ter declarado de prazo
indeterminado o mandato dos deputados, que também vieram com poderes
legislativos, e não apenas constituintes? Parece-me que não.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: De prazo indeterminado não, porque a Consti-
tuição Federal limita ao máximo de quatro anos.

337
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição Federal não admite mandato


ilimitado, e é neste sentido que retiro argumento do art. 7º, VII, c, da Constituição
Federal.
Penso que o Congresso Nacional, na Lei Santiago Dantas, estava constitu-
cionalmente obrigado a determinar a duração do mandato dos deputados que ela
convocava, com poderes constituintes e legislativos, para organizar o Estado da
Guanabara; e assim o fez, determinando que esse mandato terminaria em 31 de
janeiro de 1963.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: A Lei Santiago Dantas é inconstitucional, em
parte, naquilo em que contraria a Constituição Federal, criando ao Poder Consti-
tuinte Estadual limites que dela não constam. Em outros pontos, não.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A fixação por tempo indeterminado
é certa, por tempo certo. Pela argumentação do eminente Ministro Luiz Gallotti,
ele estaria implicitamente pela inconstitucionalidade da Lei Santiago Dantas.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Em parte, sim, como disse. No meu voto não
há a palavra “indeterminado”.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Quer dizer, S. Exa. entendeu que o
mandato dos deputados constituintes era por tempo indeterminado, no máximo
quatro anos. Mas a limitação da Lei Santiago Dantas não prevaleceu.
V. Exa., Sr. Ministro Gallotti, não pode deixar de ouvir o argumento do
eminente Sr. Ministro Victor Nunes. O argumento de S. Exa. é este: é que o
mandato foi por prazo certo, ou, então, houve prorrogação do mandato — uma
das duas coisas, evidentemente. É um dilema.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não houve prorrogação e sim primeira fixação
pela Assembléia Constituinte, que era o Poder competente.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos prestados pe-
los eminentes colegas.
Evidentemente, a Lei Santiago Dantas fixou, como era dever constitucional
do Congresso, a duração dos mandatos dos deputados então eleitos. Podia fazê-lo,
de maneira compulsória, para a Assembléia Constituinte estadual? Agora, enfrente
o problema central do debate.
Sr. Presidente, esta questão de ser, ou não, possível estabelecer limitações
ao poder constituinte só é admissível em face do poder constituinte federal, por-
que somente ele é soberano, e somente a propósito dele se pode indagar da
legitimidade das limitações estabelecidas pelo poder convocante. Toda a contro-
vérsia que há na doutrina, quanto a este ponto, a respeito do poder constituinte,
refere-se ao poder constituinte nacional. A propósito dele é que se discute se o

338
Ministro Victor Nunes

poder que convoca a Assembléia Constituinte pode, ou não, limitar o seu campo
de ação. Essa discussão não tem o mesmo alcance quanto ao chamado poder
constituinte estadual. Não há — diga-se de passagem — impropriedade na ex-
pressão, porque a Assembléia Constituinte estadual, se vai organizar ou constituir
o Estado, pode receber o qualificativo de Constituinte.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Apenas, não é soberana.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não sendo soberano, sendo apenas autônomo,
esse poder constituinte estadual, como ponderou o eminente Ministro Candido
Motta, citando os doutores, é um poder constituinte de segundo grau, um poder
derivado, um poder constituído e condicionado pela Constituição Federal.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É só limitado por ela.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Espero poder mostrar que a Assembléia
Constituinte estadual violou a Constituição Federal, não apenas a Lei Santiago
Dantas. Como essa Assembléia é constituinte apenas de segundo grau, não
podia instituir o poder de representação ab ovo. Não nasce do constituinte
estadual o poder de representação do eleitorado; preexiste, porque já se acha
inscrito na Constituição Federal. E pela Constituição Federal, não há mandato
político sem limite de prazo. A Assembléia Constituinte instalou-se em mandato
de prazo certo porque não podia receber mandato de prazo indeterminado.
Essa determinação do termo final do seu mandato era uma imposição da pró-
pria Constituição Federal.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: Mas onde a Constituição Federal diz que
não podia ser alterado o prazo? Não há limitação para isso.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição diz, da maneira mais clara e
peremptória, o que estou afirmando.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: V. Exa. diz que houve ofensa à Consti-
tuição. Não há, na Constituição, dispositivo que proíba aquilo que foi feito.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Permita-me V. Exa. afirmar o contrário. A
Constituição o diz da maneira mais enfática, porque o faz logo no art. 1º, naquele
em que define o regime político vigente: “Os Estados Unidos do Brasil mantêm,
sob o regime representativo, a Federação e a República. Todo poder emana do
povo e em seu nome será exercido”.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Emanou do povo, no caso. Os depu-
tados constituintes foram eleitos pelo povo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não emanou.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se o mandato fosse por tempo
indeterminado, não teria emanado certamente.

339
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: A Constituinte é expressão da vontade


do povo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Emanou do povo, isto sim, um mandato de
prazo fixo, a terminar a 31 de janeiro de 1963. Além desse prazo, o mandato não
terá emanado do povo, mas da própria Assembléia.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Então, quem fez a Lei Santiago
Dantas não foi o povo.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Mas não houve eleição no caso da
elaboração da Lei Santiago Dantas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Congresso, ao votar a Lei Santiago
Dantas, não elegeu deputados; fez uma lei, o que era de sua competência.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Se a Constituinte estadual não pode
fazer uma Constituição apenas observados os limites que a Constituição Federal
estabelece, então, menos ainda uma lei ordinária federal poderia exceder a trans-
por aqueles limites.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Ela podia fazer tudo em matéria de organi-
zação do Estado, observados os princípios constitucionais da União. Por isso,
uma coisa que não podia fazer era dar mandato político a quem não o terá após
31-1-1963. Sobretudo, quando os beneficiários eram os próprios componentes da
Assembléia.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Nem o legislador federal podia indi-
car os deputados à Assembléia, nem os deputados podiam prorrogar os seus
mandatos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Meu argumento é o seguinte: a Lei Santiago
Dantas não podia convocar uma assembléia constituinte e legislativa com man-
dato de prazo indeterminado porque a Constituição o vedava.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A Assembléia estatuiu uma coisa
que lhe era vedada.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Portanto, eleita somente até 31-1-1963, não
recebeu a Assembléia, nas urnas, poderes de representação do povo além desse
prazo, não tendo, pois, autoridade, para ampliar, ela mesma, o referido prazo.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Havia lei anterior que dava à Câmara
dos Vereadores poderes constituintes.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Desculpe-me a repetição. A Lei Santiago
Dantas não podia convocar uma Assembléia de prazo indeterminado. Tendo con-
vocado deputados com prazo certo, a sua investidura terminará na data marcada,

340
Ministro Victor Nunes

qualquer que seja a amplitude dos seus poderes em relação à matéria da organi-
zação do Estado. Mas, em relação aos seus próprios poderes, o mandato da
Assembléia terminará em 31 de janeiro de 1963. Desse dia em diante, a Assem-
bléia torna-se-á incompetente ratione temporis, porque, daí por diante, os depu-
tados são incompetentes, não na razão da matéria, mas do tempo, porque ter-se-
á esgotado o período dentro do qual o eleitorado lhe permitiu exercer o mandato.
Os exemplos do Direito norte-americano, citados da Tribuna, sobre a orga-
nização dos estados, corroboram, a meu ver, data venia, a tese do meu voto. A
Constituinte estadual organiza, autonomamente, o Estado, significando isso que
tem de respeitar os princípios constitucionais da organização nacional, e o mais
fundamental desses princípios, o que define o próprio regime representativo, é
que não há mandato sem manifestação expressa do eleitor. Se esta manifestação
foi para determinado prazo, além dele não há mandato.
O exemplo do Vice-Governador do Ceará não destrói a tese, porque a
Constituinte do Ceará — e o exemplo não recomenda — teria desrespeitado
apenas a forma da eleição, permitindo que se fizesse uma eleição indireta: a
Assembléia cearense, que tinha recebido poderes constituintes do eleitorado, ele-
geu o Vice-Governador.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): A Assembléia recebeu poderes para
fazer uma Constituição com os limites estabelecidos pela Constituição Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou aplaudindo o exemplo do Ceará,
embora houvesse, na época, o precedente do constituinte federal, que assim pro-
cedera, elegendo, indiretamente, o Vice-Presidente da República. A Assembléia
cearense elegeu outro titular; não foi o Vice-Governador que se elegeu a si
mesmo. Se esse fosse o caso, o Supremo Tribunal Federal talvez lhe tivesse
cassado o mandato...
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Aqui, a Constituinte fixou, como lhe
cumpria e sempre se fez, o mandato, que antes não fora validamente fixado,
porquanto era um novo Estado que surgia, com o poder de organizar-se, só
estando sujeito aos limites estatuídos na Constituição Federal, conforme o manda-
mento expresso desta.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu disse, de começo, que o problema de se
poder limitar o poder constituinte...
O Sr. Ministro Ary Franco: O eminente Sr. Ministro Relator acha que a
Constituinte federal fez bem?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sim, porque era constituinte.
O Sr. Ministro Victor Nunes: ...se tem colocado, legitimamente, na doutrina,
no tocante ao poder constituinte federal.

341
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Que é soberano.


O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente. O constituinte federal é soberano,
mas não estamos discutindo o caso da Constituinte Federal de 1934, e sim de uma
Constituinte estadual, que é somente autônoma, e não soberana.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): V. Exa. falou em problema de ordem
moral. Do ponto de vista moral, a situação seria a mesma, quer se tratando de
Constituinte federal, quer de estadual.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não toquei no aspecto moral. Afirmei que só
há eleição quando alguém escolhe outrem, não quando alguém elege a si próprio.
O argumento é jurídico e político; não o enunciei como argumento de ordem
moral.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Mas V. Exa. sublinhou esse ponto.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sublinhei, para dar um argumento jurídico.
Não quis trazer argumentos de ordem moral.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sempre se procedeu assim e só
agora se está estranhando.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Ainda que o problema comporte considera-
ções de ordem moral, não enunciei um argumento de ordem moral, mas de ordem
estritamente jurídica. A representação pressupõe duas pessoas ou duas entida-
des. Não é possível a ninguém eleger-se a si mesmo. Este é um argumento de
ordem jurídica. O povo carioca não elegeu deputados para além de 31 de janeiro
de 1963, e esses deputados não poderiam eleger-se a si mesmos para depois
daquela data.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): O povo elegeu para o prazo que a
Constituição estadual fixasse, como está expresso na Constituição Federal, que,
no caso, apenas obrigava a Constituinte estadual a respeitar o prazo máximo de
quatro anos. O povo não pode ignorar a Constituição. Embora seja isso uma
ficção de direito, é o que este dispõe.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Tanto a letra da Constituição não dá resposta
tão clara, como quer V. Exa., que nós a estamos discutindo, e de maneira acalo-
rada. O eleitorado teria maior capacidade interpretativa?
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não se elabora uma Constituição a
prazo certo.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: O povo elegeu a Constituinte sem tomar
conhecimento de questões menores, de prazo, etc. Se essa Constituinte pode
prorrogar o seu mandato, se isso é moral ou imoral, o povo disso não tomou

342
Ministro Victor Nunes

conhecimento. O que o constituinte fez foi por motivos de ordem política.


Estamos fazendo muito cabedal do voto do povo. O povo elegeu porque foi con-
vocado, mas, na sua maioria, nem sabia da Lei Santiago Dantas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A norma da limitação do prazo do mandato
não é de ordem psicológica, soubessem, ou não, que estavam votando para uma
Constituinte que deveria funcionar até tal dia. Mas eles votaram por força de
uma convocação que marcava prazo para o mandato. O eleitor votou para uma
Constituinte de segundo grau, estadual, não federal.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa: A Constituinte estadual é tão autônoma
quanto a federal. De outro modo, não seria constituinte.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Diante da Constituinte federal, o debate se
desenvolveria sob outro ângulo; mas, em face da Constituinte estadual, não, por-
que, sendo esta de segundo grau, exercendo poderes derivados, e não originários,
ela já encontra limites previamente marcados na Constituição Federal. Um des-
tes é que não pode haver deputados com poderes constituintes e legislativos de
prazo indeterminado; a Constituição Federal o proíbe ao exigir a temporariedade
dos mandatos.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Por isso, a Constituição estadual
marcou prazo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituinte estadual marcou esse prazo a
posteriori. O representante é convocado com certo prazo antes da eleição; não
é depois da eleição que se lhe fixa o mandato. Depois da eleição, isso importa em
aumentar ou reduzir o mandato, conforme o caso, não em fixá-lo. O princípio de
que não há poder sem representação, sem investidura expressa do povo, é tão
fundamental em nosso regime que, dentre as próprias emendas que a Constitui-
ção Federal admite sejam feitas ao seu texto, foram excluídas as que importem
supressão do regime republicano (no sentido de regime representativo). Se, ama-
nhã, o Congresso Federal, pelo processo de reforma da Constituição, prorrogasse
o próprio mandato, evidentemente, estaria negando o regime republicano; do con-
trário, não seria regime republicano, no sentido em que a Constituição usa esse
qualificativo, mas uma autocracia. Quando alguém se investe a si mesmo de
poderes políticos, o regime não é republicano, mas autocrático. O que a Assem-
bléia da Guanabara teve foi um procedimento autocrático: dilatou, no tempo, os
seus próprios poderes.
O Sr. Ministro Ary Franco: E se não viesse a representação?
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Não podemos julgar de ofício...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Discutiu-se sobre a natureza das leis comple-
mentares e se declarou que a Lei Santiago Dantas não poderia ser invocada

343
Memória Jurisprudencial

contra a Constituição do Estado. Procurei explicar que o problema não é este. A


Lei Santiago Dantas dispôs dentro do campo de competência do legislador federal,
fixando o mandato da Assembléia, conforme a Constituição impõe. Assim, não se
trata de opor a Lei Santiago Dantas à Constituição do Estado; o nosso problema
é confrontar a Constituição do Estado, na parte em que a própria Assembléia
confere mandato a si mesma, além de 23-1-1963, com a Constituição Federal,
nos artigos em que estatui que todo o poder emana exclusivamente do povo e que
os mandatos são temporários. Invocou-se também a autoridade do Deputado e
Professor Santiago Dantas, no sentido de que eram apenas programáticas as
disposições questionadas da lei que traz o seu nome. Contudo, no trecho do seu
citado discurso, de onde se extrai esse argumento, o eminente Professor, cuja
autoridade é por todos nós reconhecida, não se referiu ao ponto ora em debate,
mas, exclusivamente, ao problema da incorporação dos antigos vereadores à
Câmara dos Deputados.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Nos dois casos, o problema jurídico é
o mesmo: é saber se uma lei federal ordinária pode limitar o poder constituinte
estadual.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Tentarei mostrar que V. Exa., data venia,
incide em equívoco. O argumento que focalizo foi trazido ao debate com base na
autoridade do Professor Santiago Dantas. Temos, portanto, de o discutir nesse
mesmo plano; e trago, aqui, a palavra dele próprio, no sentido de que só fez
aquela observação no tocante à incorporação das duas Câmaras. Assim é que,
no mesmo discurso, mais adiante acrescentou:
“Todo ato que esta Assembléia praticar para ampliar o seu mandato,
quer quanto ao prazo, quer quanto ao conteúdo, constitui violação da lei
federal, que condiciona limites à sua competência, e se resolve numa
usucapião de poderes”.
No plano da argumentação de autoridade, essa observação específica —
da mesma autoridade — vale mais do que a outra.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Na primeira parte, a lei ordinária
federal não pode limitar o poder constituinte estadual; na segunda parte, pode.
Há, data venia, contradição no que diz o Professor Santiago Dantas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A lei federal não fez mais do que cumprir o
que lhe era prescrito; não podia estabelecer mandato de prazo indeterminado.
Marcou prazo ao mandato da Assembléia porque estava a isso obrigada. Não
podia o legislador agir de outro modo.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: A fixação do mandato cabe no
poder constituinte.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Sempre coube.

344
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Foi lembrado aqui também o exemplo da


Inglaterra. O ilustre Professor Aliomar Baleeiro, da Tribuna, lembrou que, na
última guerra (não só na última, como na anterior), o Parlamento britânico prorro-
gou o mandato dos deputados. Mas o exemplo inglês, como se verá, serve para
comprovar, exatamente, o contrário do que se afirmou. Até 1911, o Parlamento
britânico desempenhava suas funções legislativas (com restrições quanto às leis
financeiras) pelo voto concordante das duas Câmaras, a dos Comuns e a dos
Lordes. Toda lei, portanto, que importasse prorrogação do mandato da Câmara
dos Comuns dependia da aprovação da Câmara dos Lordes. Isso tirava ao ato,
de certo modo, o seu caráter autocrático, porque o mandato dos commoners não
seria prorrogado por deliberação exclusivamente sua, dependendo da aprovação da
outra Casa do Parlamento, cuja investidura é de natureza completamente dife-
rente. Veio, depois, o Parliament Act, de 1911, que reduziu os poderes dos
Lordes: encurtou a votação das leis financeiras pela Câmara dos Lordes e deu-lhe,
quanto às demais leis de ordem pública, somente a possibilidade de sugerir emen-
das e discutir o projeto durante dois autos, findos os quais, depois das necessárias
discussões na Câmara dos Comuns, o projeto iria à sanção, independente da
aprovação da Câmara dos Lordes. Pois bem, essa lei de 1911 fez duas exceções
a essa tramitação: uma para as leis de interesse privado (private bills); outra,
para as leis que prorrogassem o mandato da Câmara dos Comuns. Durante
a guerra, embora a Câmara dos Comuns tivesse amplos poderes de legislação,
sem distinção hierárquica entre lei e Constituição, não os tinha, como não os tem,
para prorrogar o próprio mandato; para isso, depende do voto concordante da
Câmara dos Lordes. Se assim não fosse, a Câmara dos Comuns poderia
eternizar-se no poder, repetindo a proeza do Longo Parlamento, com a prorroga-
ção indefinida do próprio mandato. Mas é da essência do regime representativo
que o representante não possa prolongar sua investidura no tempo, porque isso é
a negação do próprio princípio da representação política. E foi isso que o Supremo
Tribunal proclamou, no caso de Goiás, embora os dois brilhantes votos já profe-
ridos tenham procurado reduzir muito o alcance doutrinário desse notabilíssimo
precedente. Na Inglaterra, como vimos, quando a contingência de uma conflagra-
ção mundial impõe um desvio, há, pelo menos, o controle da Câmara dos Lordes,
que não é beneficiária da prorrogação.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Relator): Aqui se acentuou a diferença entre
um Estado que surge e um Estado que já existe há muito tempo. No segundo, já
havia mandatos fixados na respectiva Constituição; no primeiro, não havia nem
podia haver.
O Sr. Ministro Villas Boas: Não entendo essa diferença.

345
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não havia, na Constituição de Goiás, disposi-


ção específica a respeito do problema que estamos discutindo, porque isso é
matéria da Constituição Federal. Quando a Assembléia Legislativa de Goiás en-
trou a deliberar segundo o processo de reforma constitucional, passou a exercer,
normalmente, poderes constituintes; não há, pois, que se distinguir, neste ponto,
aquela situação da ora em exame, na qual uma assembléia também se reúne com
poderes constituintes.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: No caso de Goiás, o que houve foi
uma emenda à Constituição do Estado para estabelecer um mandato de dois anos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Ao exercer o poder constitucional de
emenda, a Assembléia Legislativa ordinária, legitimamente, se transformou em
constituinte. Não havia abuso nisso. O abuso estava em prorrogar os próprios
mandatos, a pretexto de emendar a Constituição estadual.
Sr. Presidente, com essas considerações, julgo procedente a representação,
para declarar que o mandato da Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara
não pode exceder o termo fixado na lei convocatória, isto é, 3 de janeiro de 1963,
com a devida vênia dos eminentes Ministros Luiz Gallotti e Candido Motta Filho.

REPRESENTAÇÃO 753 — SP

I - O art. 188 da Carta Política de 1967 determina a


adaptação das Constituições estaduais ao ordenamento cons-
titucional maior. Trata-se de processo que não se confunde
com o do poder ordinário de emenda. As regras objeto da
reforma, votada pelas Assembléias Legislativas, devem ser
aquelas que, explícita ou implicitamente, sofreram altera-
ções ou já não são compatíveis com o sistema federal (art.
1º do Decreto-Lei n. 216, de 27-2-1967).
II - O inc. V do art. 55 da Constituição de São Paulo, ao
subtrair a iniciativa exclusiva do Tribunal de Alçada para a
criação de cargos da sua secretaria, transferindo-a ao Tribu-
nal de Justiça, afeta a prerrogativa assegurada pelo art. 110,
II, da Carta Federal, extensiva aos tribunais dos Estados,
por força do disposto no seu art. 136, caput.

346
Ministro Victor Nunes

III - O inc. V do art. 58 da Carta Paulista, que vincula os


vencimentos do Ministério Público aos vencimentos da ma-
gistratura, não se contrapõe às cláusulas inscritas nos arts.
96 e 106 da Constituição Federal, eis que se compadece com
o preceituado no parágrafo único do art. 139 da Lei Mater.
IV - O § 1º do art. 89 da Constituição de São Paulo,
ao estabelecer a equiparação dos vencimentos dos Ministros
do Tribunal de Contas do Estado aos vencimentos dos
desembargadores, inspirou-se na equiparação prevista no art.
73, § 3º, da Carta Federal; não importando, conseqüentemen-
te, em afronta à diretriz dos arts. 96 e 106, do citado diploma.
V - O art. 92, II, a e b, da Constituição de São Paulo,
que estabeleceu a obrigatoriedade da nomeação dos candi-
datos aprovados em concurso, entendida como meio de
evitar a procrastinação do preenchimento de cargo vago,
sem retirar do Governador a faculdade de examinar a con-
veniência do provimento, não infringe a competência priva-
tiva estatuída no art. 83, VI, da Magna Carta.
VI - O parágrafo único do art. 106 da Carta estadual,
quando atribui ao Prefeito a nomeação dos membros do
Tribunal de Contas, após aprovação da Câmara Municipal,
não afronta o § 1º do art. 95 da Constituição Federal, onde
se contém a exigência do concurso público, porquanto se-
guiu o critério especial de provimento do cargo de Ministro
do Tribunal de Contas da União (§ 3º do art. 73), seguido
também pelos Tribunais de Contas estaduais, ante a posição
do órgão no sistema jurídico-constitucional.
VII - O art. 147 da Carta Política paulista, ao estabele-
cer que se consideram vigentes, com o caráter de lei ordi-
nária, as regras da Constituição estadual de 1947 e que não
contrariem o novo diploma, além de fugir às lindes da adap-
tação, mostra-se incompatível com o sistema da Lei Magna.
VIII - O inc. II do art. 4º do Ato das Disposições
Transitórias da Constituição paulista, ao fixar o prazo de um
ano para a oficialização de Cartórios e Serventias da Justi-
ça, contrariou não só os limites da adaptação (art. 188), mas
também o § 5º do art. 136 e, por último, o poder de iniciativa
do Chefe do Poder Executivo (art. 60, II, da Carta Federal).

347
Memória Jurisprudencial

IX - O art. 10 do Ato das Disposições Transitórias,


assecuratório da readmissão de extranumerários, fere fron-
talmente os arts. 95, § 1º, e 99, § 1º, da Carta Federal.
X - O art. 11 do Ato das Disposições Transitórias,
assecuratório da reintegração de servidores públicos, bem
assim de empregados de sociedades sob o controle acionário
do Estado, além de fugir ao exato alcance da adaptação (art.
188 da Constituição Federal), infringe a competência legislativa
da União (art. 8º, XVII, b).
XI - O art. 12 do Ato das Disposições Transitórias, ao
estabelecer revisão dos atos punitivos contra servidores
públicos, com base em sindicância sumária, assegurando-
lhes reintegração, foge, por um lado, à adaptação ordenada
no art. 188 da Lei Magna e, por outro, contrapõe-se à
aprovação das sanções revolucionárias, pelo seu art. 173.
XII - O art. 17 do Ato das Disposições Transitórias, ao
conceder o cancelamento de débitos tributários, destoa do
alcance da adaptação da Carta Política local ao modelo básico,
além de versar matéria da iniciativa do Poder Executivo
(art. 60, I, da Constituição Federal).
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, acompanho o eminente
Relator, mas desejo fazer uma breve observação sobre o art. 188 da Constituição
Federal de 1967. Estou de acordo, neste ponto, com as considerações do eminente
Relator e dos eminentes colegas que já votaram, mas vou um pouco além na
interpretação desse texto.
O art. 188, a meu ver, não obrigou os Estados a uma reforma limitada em
suas Constituições. O que fez, tendo em vista a conveniência de serem
introduzidas nas Constituições estaduais as inovações da Constituição Federal,
foi abreviar o período em que essa reforma deveria ser feita. Ainda que, pela
Constituição estadual, de acordo com o modelo federal anterior, fosse necessária
a aprovação em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas, a nova
reforma poderia ser feita sem essa exigência, no prazo de sessenta dias. Esta, a
meu ver, é a novidade do texto.
Para a simples observância dos novos preceitos da Constituição Federal,
não haveria, a rigor, necessidade de serem adaptadas as Constituições estaduais.
Bastaria dispor que as novas normas da Constituição Federal se aplicariam igual-
mente aos Estados. E tanto assim era que o próprio art. 188 dispôs: nos Estados
em que se exceder o prazo de sessenta dias, aquelas inovações serão incorpora-
das automaticamente à Constituição estadual.

348
Ministro Victor Nunes

Por que a Constituição Federal quis repetir o óbvio?


O Sr. Ministro Hermes Lima: Para respeitar a autonomia dos Estados. Foi
o princípio da autonomia dos Estados que se quis respeitar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas não simplesmente para fazer aquela
adaptação, porque os Estados não ficaram com a liberdade de conservar o status
quo. Se não aceitassem as inovações da esfera federal, elas se aplicariam auto-
mática e necessariamente.
O Sr. Ministro Hermes Lima: O Decreto-Lei 216 deixou muito claro.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas esse decreto-lei não é Constituição. Ele
interpretou o art. 188 da Constituição e, a meu ver, interpretou bem, já que não
poderia atribuir aos Estados poderes que eles não tivessem pela anterior ou pela
atual Constituição.
Parece-me, pois, que os Estados, com o art. 188, longe de terem sido limi-
tados em sua capacidade de reformar suas Constituições, tiveram a franquia de
fazê-lo com menos formalidades e condições do que as que resultavam do regi-
me constitucional anterior.
Independentemente do art. 188, poderiam os Estados proceder desse
modo, tendo em vista o disposto no art. 51 da parte permanente da Constituição
Federal, que é modelo para as Constituições estaduais:
“Art. 51. Em qualquer dos casos do art. 50, itens I, II e III, a
proposta será discutida e votada em reunião do Congresso Nacional,
dentro de sessenta dias a contar do seu recebimento ou apresentação, em
duas sessões e considerada aprovada quando obtiver em ambas as
votações a maioria absoluta dos votos dos membros das duas Casas do
Congresso.”
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Estabeleceu um critério distinto. V.
Exa. deve atentar para isso.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estabeleceu o prazo de sessenta dias, em
duas sessões, mas não em duas sessões ordinárias e consecutivas, como exigia a
Constituição anterior, no art. 217, § 2º:
“Dar-se-á por aceita a emenda que for aprovada em duas
discussões pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do Senado
Federal, em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas.”
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Ordinárias e consecutivas. Era esse o
grande embaraço.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim. Foi reduzido o prazo. Para duas sessões
ordinárias e consecutivas, poderiam ser necessários vários meses.

349
Memória Jurisprudencial

Em última análise, o art. 188 apenas reproduziu o que já estava na parte


permanente, no art. 51. Como a simples adaptação das Constituições estaduais se
poderia considerar automaticamente feita, em conseqüência da nova Constituição
Federal, o que resulta, a mais, do art. 188 é ter ficado explícito que os Estados,
naquele prazo, poderiam fazer uma reforma mais ampla de suas constituições.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Adaptar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A simples adaptação resultaria da própria
Constituição Federal.
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Mas é processo especial adaptativo.
O art. 51 se refere ao processo de emenda à Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Vamos figurar que a Assembléia Constituinte
estadual fizesse a reforma em dois tempos. Como dispunha de sessenta dias,
poderia, na primeira etapa, mudar apenas a norma que regulava a reforma da
Constituição do Estado. Adotaria, então, a que está expressa no art. 51 da Cons-
tituição Federal. Estaria impedida de fazê-lo? Não, porque estaria adaptando a
Constituição estadual à federal. Aceita que fosse a norma do art. 51 no primeiro
tempo, poderia fazer, no segundo tempo, de modo simplificado, as emendas que
bem entendesse, pois dispunha de sessenta dias para isso. Como entender, por-
tanto, que o art. 188 limitou, em vez de ampliar, a faculdade de reforma das
Constituições estaduais?
O Sr. Ministro Hermes Lima: O que acho do voto de V. Exa. é interpre-
tação demasiadamente larga do poder constituinte delegado pela Constituição às
Assembléias estaduais.
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Não se trata do poder constituinte
ordinário, mas de um poder constituinte especial previsto na Constituição de 67,
para adaptação à estrutura da nova Carta Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: As Assembléias Legislativas continuaram a
ter, como sempre tiveram, o poder de emendar as Constituições estaduais. Mas,
por uma exigência, que se traduzia em prazo, para maior reflexão, não poderiam
fazê-lo numa só sessão legislativa.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Na Constituição Federal de 1946, como em
várias Constituições estaduais, somente era possível a aprovação de emenda em
uma sessão legislativa, se obtido o voto de dois terços.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A maioria de dois terços seria para fazer a
reforma numa única sessão legislativa. Para fazê-la em duas, bastaria a maioria
absoluta. É exatamente este problema que estou examinando.
A Constituição Federal de 1967 mudou esse sistema no plano federal,
como já o tinha feito o Ato Institucional n. 1, e deu aos Estados, no art. 188, o
prazo de sessenta dias para adaptar suas Constituições.

350
Ministro Victor Nunes

Estou figurando a hipótese em que a Assembléia Legislativa, no primeiro


tempo, dispusesse: fica emendado o artigo tal da Constituição do Estado, que se
refere ao processo de reforma da Constituição, para que a Constituição possa ser
emendada numa só sessão legislativa, por maioria absoluta de votos. No segundo
tempo, com base nessa primeira emenda, poderia reformar toda a Constituição
do Estado.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Não era possível.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Como não, se poderia começar pela refor-
ma do processo de emenda da Constituição do Estado? Onde estaria o impedi-
mento?
O Sr. Ministro Hermes Lima: Digo: o impedimento em que o poder consti-
tuinte delegado estava limitado à adaptação da Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Limitado quanto ao prazo. A Constituição
marcou esse prazo (veja-se que a tônica está no final do dispositivo) para dizer:
se, findo o prazo, os Estados não adaptarem suas Constituições, essa adaptação
se considera feita automaticamente. O prazo teve esse sentido: o de obrigar a
fazer, pelo menos, as emendas de adaptação; mas não impedia que se fizessem
outras.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Não tirou o poder constituinte do Estado,
senão no limite do padrão federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Veja V. Exa. que o Decreto-Lei n. 216, de
27-2-67, interpretou o cit. art. 188 em sentido ampliativo.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Mas, com Decreto-Lei ou sem ele, a
realidade é que o constituinte estadual não ficou privado dos poderes de que
dispunha antes.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Termina assim o art. 188, depois de aludir à
adaptação, em sessenta dias, das Constituições estaduais às novas normas da
Constituição Federal:
“(...) as quais, findo esse prazo, considerar-se-ão incorporadas
automaticamente às Cartas estaduais.”
O que é isto senão um ultimatum? A Constituição Federal fez um
ultimatum: ou os Estados adaptam suas Constituições em sessenta dias ou esta-
rão elas, ao fim de sessenta dias, automaticamente adaptadas.
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Quero ler para V. Exa. e o Tribunal
exatamente o que havia lido: o art. 1º do Decreto-Lei n. 216:

351
Memória Jurisprudencial

“A reforma das Constituições dos Estados, (...) para atender ao


disposto no artigo 188 da Constituição do Brasil, promulgada a 24 de
janeiro de 1967, consiste primordialmente na modificação do respectivo
texto, no que, implícita ou explicitamente, tiver sido alterado ou for
incompatível com as disposições constitucionais federais.
Parágrafo único. As normas da Constituição Federal que, sendo
aplicáveis, não forem observadas na reforma da Constituição do Estado,
consideram-se a ela automaticamente incorporadas, nos termos do art.
188 da Constituição Federal.”
Em razão, exatamente, da modificação dos preceitos da própria sistemática
da Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. aceita a interpretação contida no
Decreto-Lei 216. Aí está o advérbio “primordialmente”, para dizer que a reforma
estadual não seria mera adaptação. Minha interpretação vai um pouco mais longe,
porque se qualquer Estado poderia proceder à sua reforma em dois tempos,
como já figurei, resulta do art. 188 que foram ampliados e não reduzidos os seus
poderes de emenda.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas não poderia em dois tempos. Estava
declarado que era em sessenta dias. Ou fazia em sessenta dias ou, então, seria
incorporada automaticamente.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Em dois tempos, dentro do prazo. Mas a
conseqüência seria a mesma se não fosse observado, para ambos, aquele prazo.
Imagine V. Exa. que o Estado fizesse apenas a emenda do processo da reforma
constitucional. Escoados os sessenta dias, as outras adaptações à Constituição
Federal se incorporariam, automaticamente, à Constituição do Estado. E o Estado
ficaria em condições de emendar o mais que entendesse, com o novo processo de
reforma, seguindo o modelo federal, que é o art. 51 da Constituição.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Perguntaria o seguinte: o art. 188
diz que “os Estados reformarão suas Constituições dentro em sessenta dias para
adaptá-las, no que couber, às normas desta Constituição, as quais, findo esse
prazo, considerar-se-ão incorporadas automaticamente às Cartas estaduais”, V.
Exa. entende que, entre as adaptações que têm de ser feitas (porque aí se diz “no
que couber”), sob pena de serem as normas incorporadas automaticamente, está
o artigo que regula a reforma da Constituição?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Parece-me evidente.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Mas como poderia essa norma
ser incorporada, se fala em Senado e Câmara?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mutatis mutandis.

352
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): É no que couber. Então, ficaram


os Estados obrigados a adotar o mesmo sistema de reforma da Constituição?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não ficaram obrigados. Poderiam criar con-
dições mais onerosas, mas os Estados também poderiam seguir estritamente o
modelo federal. Também poderiam fazer sua reforma em dois tempos. No pri-
meiro, reformariam o processo de emenda à Constituição; depois, fariam as ou-
tras emendas que entendessem, além da adaptação à Constituição Federal a que
estavam obrigados.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas isso não ocorreu.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, não houve. Houve um ato só. Mas meu
raciocínio sobre a possibilidade de terem procedido de outro modo ajuda a inter-
pretar o art. 188. A meu ver, ele não significa uma limitação ao poder de emenda
constitucional dos Estados, mas uma imposição para que adaptassem suas Cons-
tituições ao modelo federal: ou reformariam suas Constituições no prazo marca-
do ou elas se considerariam automaticamente reformadas. O dispositivo não quis
impedir, mas forçar os Estados a reformarem suas Constituições. Não pode ser
interpretado, portanto, de modo a reduzir os poderes de reforma constitucional
dos Estados. Se algum deles fez outras emendas, além de simplesmente adaptar
a Constituição estadual à Federal, isso me parece perfeitamente legítimo.
O Sr. Ministro Thompson Flores: Não entende V. Exa. que deve haver dois
processos de alteração da Constituição dos Estados: um para adaptação e outro
para sua reforma?
O Sr. Ministro Victor Nunes: O processo de emenda constitucional foi
alterado no plano federal. Também o poderia ser no plano estadual.
O Sr. Ministro Thompson Flores: Tenho como certo que os processos são
diferentes. As emendas às Cartas locais obedeciam a normas expressas que
dispunham sobre o quorum e a forma de votação. As Assembléias, para executar
o trabalho de adaptação, aprovaram regimento próprio diverso daquele. E se
assim não o fizessem, nem alcançariam seu objetivo no prazo do art. 188 da
Constituição Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O raciocínio que estou desenvolvendo não é
para a apreciação de um caso estadual específico. Estou procurando interpretar
o art. 188 da Constituição Federal, no sentido de que ele não teve o objetivo de
limitar o poder de emenda constitucional de qualquer Estado. Por isso, não pode-
mos condenar as reformas mais amplas que um ou outro tenha feito.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não podia fazer, porque a Constituição do
Estado de São Paulo exigia, no processo comum de reforma, a aprovação em
dois anos consecutivos.

353
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se fizesse a reforma em dois tempos, poderia.


É o que procurei demonstrar, como elemento interpretativo.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas não procedeu à reforma em dois
tempos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O que estou interpretando é o art. 188, não
esta ou aquela reforma estadual específica. Se esse artigo permitiria, por outro
caminho, que houvesse uma reforma total, desde que não contrariasse a Consti-
tuição Federal, não devemos interpretar restritivamente o art. 188.
O Sr. Ministro Thompson Flores: Sem o art. 188, a Constituição poderia ser
totalmente refundida na forma comum. Adotada que fosse, a reforma tornava-se
limitada e guardava rito próprio, mais simples e mais breve.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, como um dos dispositivos passíveis de
alteração poderia ser o do processo de reforma constitucional dos Estados, estava
implícito que os Estados poderiam fazer reforma mais ampla que a simples adap-
tação às normas federais, esta sim imposta aos Estados em prazo certo.

MANDADO DE SEGURANÇA 8.651 — DF


Diretor da Caixa Econômica Federal — Mandato —
Tempestividade
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, no caso do Dr. Murilo Gondim
Coutinho, anteriormente julgado (MS 8.693, de 17 do corrente), tive ocasião de
externar-me, longamente, sobre a constitucionalidade das leis que estabeleçam
investidura com prazo certo e sobre a ilegalidade do ato do Sr. Presidente da
República que, sem justa causa, faça terminar a investidura antes do termo.
Naquele caso, a defesa do ato governamental, feita pelo ilustre Dr. Procura-
dor-Geral da República, assim como a fundamentação dos votos vencedores se
basearam em duas ordens de argumentos. Argumentos de ordem legal, em pri-
meiro lugar, entendendo-se que a Lei Orgânica da Previdência Social dava aos
titulares nomeados pelo Presidente da República a condição de representantes
do Governo. Essa representação seria, por sua própria natureza, revogável. Tam-
bém se argumentou, não na defesa do Governo, que expressamente excluía a
alegação de constitucionalidade, mas na fundamentação dos votos vencedores,
que, se o prazo dessa investidura tivesse de ser entendido como insusceptível de
ser encurtado ao livre critério do Governo, estaria infringida a Constituição.

354
Ministro Victor Nunes

Procurei, naquele meu voto, examinar as duas ordens de argumentos,


mas, no caso presente, vejo que subsistem somente as razões de ordem consti-
tucional, porque o Decreto n. 24.427, de 9 de junho de 1934, não dá aos diretores
das Caixas Econômicas, nem mesmo impropriamente, a condição de represen-
tante do Governo.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mas fala em mandato, no art. 8º.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mandato para exprimir duração.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Para exprimir que não é cargo, que
não é de cargo que se trata.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Para exprimir duração, porque a própria lei
distingue entre a investidura do presidente da Caixa Econômica e a dos diretores.
Não podia a lei querer estabelecer o mesmo regime, para uma e outra, quando,
expressamente, as distinguiu, marcando termo para os diretores e declarando o
presidente demissível ad nutum. Ou então o legislador do Decreto 24.427 seria o
mais inepto redator da língua portuguesa.
O argumento da constitucionalidade, compreendo que possa ser formulado
em face desta lei, porque se argüi de ofensivo da Constituição o dispositivo refe-
rente aos diretores.
Não me parece, porém, Sr. Presidente, conforme sustentei longamente no
caso anterior, que haja qualquer inconstitucionalidade nessa disposição legal, por-
que seria forçar a não incluir todas as técnicas de garantia do servidor público
contra demissão arbitrária ou imotivada na chave única da estabilidade. A estabi-
lidade é uma das técnicas utilizadas pela Constituição e pelas leis para proteger o
servidor público garantido contra as demissões arbitrárias ou sem motivo, mas
esta não exclui outras, como o estágio probatório, como a teoria dos motivos
determinantes, como, enfim, as investiduras de prazo certo.
Estas últimas, aliás, não são exclusivas do Direito Administrativo, mas
também se encontram no próprio Direito do Trabalho, onde os empregados inves-
tidos de representação sindical não podem ser demitidos sem falta grave, en-
quanto durar o seu mandato. E por quê? Porque a natureza da função exige que
a exerça com independência. Também esta é a razão pela qual os dirigentes dos
órgãos que a lei quis dotar de autonomia recebessem, por lei, uma investidura de
prazo certo, para que exerçam a sua função com independência; independência
diante do próprio poder nomeante, do mesmo Presidente que lhes tiver dado a
investidura, e não apenas dos Presidentes que lhe sucederam.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Mandato não se exerce contra a
vontade do mandante.

355
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Mandato, na minha interpretação, eminente


mestre Ministro Hahnemann Guimarães, é uma denominação imprópria para de-
signar a investidura de prazo certo.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Absolutamente própria.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Procurarei demonstrar que é imprópria.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Não se pode separar a noção de
mandato que aqui vigora da noção geral que o mandato tem no Direito.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A noção de mandato, aqui, é aproximada da
noção de mandato de direito público e não de direito privado; tem-se, pois, de
concluir pela sua irrevogabilidade, porque o Direito Constitucional brasileiro não
conhece o mandato político revogável. Em outros países tem sido admitido, mas
por lei expressa.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Aqui se trata de mandato pelo qual
a administração dá uma parcela do seu poder a uma pessoa determinada; outra
coisa é o mandato de natureza política.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O mandato pressupõe a transferência de
atribuições que pertencem ao mandante; sem essa transferência não há mandato.
O mandato político é assim chamado porque, segundo a teoria da soberania nacio-
nal, quem tem o poder de governar o povo é o próprio povo, ou, para efeitos
práticos, o corpo eleitoral, que o sistema político confunde com o próprio povo. O
soberano é, assim, o corpo eleitoral, segundo a tradição democrática, imposta
pela realidade do governo; e, através do mandato político, o corpo de eleitores
confere atribuições, que são suas, aos seus mandatários, isto é, aos titulares das
funções eletivas.
Considerando o caso sob exame, para haver mandato do Presidente da
República a qualquer servidor, seria preciso que a lei, que define as atribuições
respectivas, as tivesse atribuído ao Presidente da República e este, então, em
virtude de mandato, as houvesse transferido. Mas, no caso, tais atribuições são
confiadas, pela lei, ao próprio nomeado; elas pertencem, por lei, não ao Presidente
da República, mas ao titular do cargo. Não há, pois, transferência de atribuições;
não havendo transferência de atribuições, não se trata de mandato. O titular —
no caso, o diretor da Caixa Econômica — exerce suas atribuições ex lege, e não
em virtude de as ter recebido do Presidente da República, porque este não as
possuía antes, e, não as tendo, não as podia transferir.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Esse mandatário pode vir a fazer
uma política totalmente oposta à da administração que o nomeou, que lhe deu o
mandato.

356
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não sou juiz do legislador. O Presidente da


República não tem o monopólio da política do País.
O Sr. Ministro Candido Motta: Da política administrativa não tem?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é só política administrativa. A Constitui-
ção Federal incumbe a definição da política do País aos três ramos do poder
público, aos três Poderes, ao Legislativo, ao Executivo e ao Judiciário. Incluo o
Judiciário, porque o Supremo Tribunal Federal exerce função política relevante
quando interpreta a Constituição e as leis e quando, por exemplo, apreciando as
conseqüências que resultam da sua execução, altera a sua própria jurisprudência.
Quanto à função política do Congresso, nem há necessidade de acrescentar uma
só palavra. Como, pois, argumentar como se o Executivo tivesse o monopólio da
política nacional?
Se a lei, ao instituir um órgão autônomo, quer proteger seus dirigentes do
arbítrio ou capricho de quem os nomeou, o que ela faz é definir uma política, que
não podemos neutralizar em nome da política do Executivo.
Negar validade às normas legais de nomeação a termo, Sr. Presidente, é
golpear, nos alicerces, o princípio da autonomia administrativa. Realmente, esse
problema só surge em função dos órgãos autônomos; se negamos validade às
nomeações a termo, por mais que a lei queira dotá-los de autonomia, eles não o
serão, porque seus dirigentes estarão dependendo sempre ou do prudente critério
ou do arbítrio desarrazoado do Presidente da República.
Pleiteio que se observe, sobre o assunto, a jurisprudência deste Tribunal, e
me advertem que jurisprudência não pode ser imutável. Não sou contrário, em
tese, Sr. Presidente, a que o Tribunal mude de jurisprudência. É certo que sou, em
princípio, partidário de que tenhamos uma jurisprudência estável. É muito mais
conveniente que a jurisprudência do Tribunal se defina em tal ou qual sentido,
embora não seja sempre no mais acertado, do que seja uma hoje, outra amanhã,
implantando a incerteza e o ceticismo nos espíritos. Todavia, embora favorável à
estabilidade da jurisprudência, não poderia deixar de ser partidário da sua renova-
ção, sempre que necessária. Eu próprio me tenho batido, com ardor, para que
este Tribunal adote, em relação às taxas, um conceito mais flexível do que aquele
que aqui tem predominado, pois, em nome de um conceito doutrinário, e não de
princípios constituionais, temos anulado taxas criadas pelos Estados dentro de
uma conceituação de taxa definida em decreto-lei federal. Se são prementes as
necessidades financeiras dos Estados, se a Constituição não define taxa, se há
uma lei federal que lhe dá uma conceituação flexível e compreensiva, por que
havemos de fazer prevalecer, no silêncio da Constituição, contra uma lei federal,

357
Memória Jurisprudencial

indiferentes à notória escassez do erário estadual, uma restritiva conceituação


doutrinária de taxa, de resto controvertida? Entretanto, meu apelo caloroso, infe-
lizmente, não tem sido atendido pela maioria do Tribunal.
O Sr. Ministro Ary Franco: Clama ne ceses...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Continuarei a clamar. Peço vênia, Sr. Presi-
dente, para acompanhar o voto do eminente Ministro Luiz Gallotti, concedendo a
segurança, de acordo com notáveis e reiterados precedentes deste Tribunal, que
nenhuma necessidade coletiva aconselha a modificar.

MANDADO DE SEGURANÇA 8.693 — DF

Institutos autárquicos. Nomeação e exoneração de membros


de suas diretorias, presidentes e conselheiros — Constitui-
ção Federal vigente, art. 87, n. V; dispositivos equivalentes
da Carta de 1937 e da Constituição de 1934. Inteligência.
Poder de exonerar implícito no de nomear. Mandato por
tempo certo. Inocorrência. Cargos em comissão ou de con-
fiança. Demissibilidade ad nutum. Programa político, social
e econômico do governo. Execução e controle do Poder
Executivo. Denegação de mandado de segurança.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: No mandado de segurança n. 8.693, de cujos
autos pedi vista, discute-se a importante questão da investidura administrativa de
prazo certo, impropriamente denominada mandato.
O tratamento do tema foi aprofundado e ilustrado pelo voto do eminente
Ministro Ribeiro da Costa, pelo parecer o douto Professor Caio Mário da Silva
Pereira, ao tempo Consultor-Geral da República, pelo debate travado entre o
ilustre advogado José Joaquim Moreira Rabelo e o eminente Procurador-Geral
de então, professor Joaquim Canuto Mendes de Almeida, pelos memoriais de
ilustres advogados que pleiteiam casos análogos, entre os quais se distinguem os
dos Drs. Sobral Pinto e Gabriel Costa Carvalho, Claudio Pena Lacombe,
Leopoldo Braga e por pareceres de consagrados jurisconsultos, incluindo o emi-
nente Orosimbo Nonato.
Com toda a reverência, ouso dissentir do eminente Relator para conceder
a segurança impetrada, a fim de que o Dr. Murilo Gondin Coutinho reassuma o

358
Ministro Victor Nunes

cargo de que foi ilegalmente afastado, no Conselho Administrativo do Instituto de


Aposentadoria e Pensões dos Industriários. Espero contar, como de outras vezes,
com a paciente indulgência dos eminentes colegas para expor as razões do meu
convencimento. Creio que a relevância do tema justifica um estudo mais apro-
fundado.
Em sentido contrário à impetração, foram aduzidos motivos de ordem
constitucional, de ordem legal e de ordem administrativa e política. Procurarei
examiná-los nesta seqüência.

II
Argüi-se, em primeiro plano, que, implícito no poder de nomear, a Consti-
tuição de 1946 confere ao Presidente da República o poder de demitir, com am-
plitude muito maior do que o haviam feito as Constituições republicanas anterio-
res, inclusive a outorgada, de 1937.
O art. 87, V, da atual atribui, privativamente, ao Presidente da República
“prover, na forma da lei e com as ressalvas estatuídas por esta Constituição, os
cargos públicos federais”. Esta norma, segundo a argumentação de que, data
venia, divirjo, só admitiria, quanto ao poder de nomear do Presidente da República,
as condições e restrições que constam, expressamente, da própria Constituição. Ao
legislador ordinário, porém, não seria facultado condicionar ou regular o exercício
desse poder, mas apenas estabelecer a forma pela qual há de ser exercitado.
A prerrogativa do Presidente da República não seria tão ampla nas Cons-
tituições de 34 e 37, porque estas definiam a competência para prover os cargos
federais, ressalvando “as exceções previstas na Constituição e nas leis” (respec-
tivamente, art. 56, n. 14, e art. 74, letra l). Em outras palavras, as Constituições
de 34 e 37 teriam facultado à lei, isto é, ao legislador ordinário, restringir o poder
de nomear do Presidente da República; a de 1946 só lhe permitiria estabelecer a
forma do exercício desse poder.
Funda-se o argumento em que a vigente Constituição emprega o vocá-
bulo restrições em correspondência com ela própria, fazendo supor que so-
mente as restrições constantes do texto Constitucional seriam legítimas. O ar-
gumento, venia concessa, não atenta para uma circunstância: o art. 87, n. V,
da Constituição, o que define é a competência do Presidente para prover car-
gos públicos. Em conseqüência, as limitações ali contidas são endereçadas ao
Poder Executivo, e não ao Legislativo; em outros termos, a alusão, ali feita, às
restrições estabelecidas na Constituição compreende os casos em que a com-
petência para prover cargos públicos federais não pertence ao Presidente, mas
a outros poderes, isto é, ao Congresso e aos Tribunais, no que se refere às
respectivas secretarias.

359
Memória Jurisprudencial

Esta observação desloca o debate para a locução na forma da lei, que se


lê na mesma norma constitucional: prover os cargos federais, na forma da lei.
Pretende-se que esta expressão apenas significa: de acordo com as formalida-
des estabelecidas na lei. O argumento, data venia, não procede, porque a
expressão na forma da lei, segundo o entendimento correto e correntio, quer
dizer: na conformidade da lei, consoante a lei, segundo a lei, segundo o que
dispuser a lei (...)
É claro que a lei não pode dispor tudo, porque está, por sua vez, sujeita às
limitações constitucionais, mas não é o art. 87, n. V, o dispositivo que regula tais
limitações, e sim, todo o conjunto das normas constitucionais que estruturam nos-
so regime político-jurídico. O que transluz, portanto, do art. 87, n. V, é que o poder
que tem o Presidente da República de prover os cargos públicos federais se
exercerá de conformidade com a lei. Pode, assim, o Legislativo condicionar o
exercício desse poder, em termos compatíveis com os demais dispositivos da
Constituição. A sua competência não é apenas para estabelecer as formalidades
aplicáveis mas também os pressupostos do provimento dos cargos públicos.
A fórmula da Constituição atual é mais explícita, a esse respeito, que a de
1891, a qual, no art. 48, atribuía, privativamente, ao Presidente da República,
“prover os cargos civis e militares de caráter federal, salvo as restrições expres-
sas na Constituição”. O texto de 91 não continha a cláusula na forma da lei;
entretanto, os seus mais autorizados comentadores sempre entenderam legítima
a competência do legislador para disciplinar, condicionar, regular o exercício do
poder de nomeação do Presidente da República. Leiam-se as lições de Barbalho
(2ª ed., p. 253: “o provimento deles (empregos), na conformidade das leis, é fun-
ção executiva”); Carlos Maximiliano (3ª ed., p. 550: O Congresso “estabelece as
condições de investidura e a duração do exercício. O presidente escolhe, de
conformidade com a lei...”) Rui Barbosa (vol. III, p. 225: “Não é verdade (...)
que (...) a demissibilidade seja ilimitada (...); não são poucas as leis pátrias,
que restringem o arbítrio do Governo...”).
É, aliás, idêntico o ensinamento, em relação à Constituição atual, de Pontes
de Miranda (2ª ed., vol. II, p. 396) e Themistocles Cavalcanti (Tratado, vol. IV,
pp. 187 e 182).
Por outro lado, o texto constitucional não diz nomear, mas prover os
cargos, o que compreende outras modalidades de provimento além da nomeação,
como sejam a transferência, a promoção, o aproveitamento, etc. (Estatuto, art.
11). Assim, a tese de que o legislador ordinário não pode condicionar o exercício
do poder previsto no art. 87, V, da Constituição, se aceita pelo Supremo Tribunal,
poria por terra grande parte do Estatuto dos Funcionários e de todas as leis que
regulam as diversas modalidades de provimento de cargos federais. Toda a disci-
plina legal das promoções, das transferências, das readmissões, etc., não poderia

360
Ministro Victor Nunes

mais prevalecer diante do arbítrio do Presidente da República, que se exerceria


incontrolavelmente, promovendo, transferindo, readaptando quem quer que fosse
do seu agrado ou incidisse na sua antipatia. Estaria, pois, restabelecido, em favor
do Presidente da República, um poderio incomensurável, de que há muito já está-
vamos desacostumados, com a evolução doutrinária, em todo mundo, em favor
do sistema do mérito e das garantias funcionais no serviço público civil. A tais
conseqüências catastróficas levaria a premissa constitucional que, data venia,
estão combatendo.
A melhor doutrina sempre entendeu, porém, de modo contrário, isto é, que
o Congresso não invade as atribuições do Executivo quando disciplina as nomea-
ções, as demissões, as promoções, as transferências de servidores públicos. Esta
sua competência resulta, em primeiro lugar, do regime adotado pela Constituição,
que é o da divisão de poderes, cujo pressuposto é a harmonia e não a guerra dos
poderes (art. 36). Em segundo lugar, deriva essa competência de outra mais
ampla, que a Constituição confere ao Poder Legislativo para organizar os servi-
ços públicos. “Os cargos públicos — diz o art. 184 — são acessíveis a todos os
brasileiros, observados os requisitos que a lei estabelecer”. O acesso ao
cargo público se dá pelo provimento, se este depende dos requisitos que a lei
estabelecer, parece intuitivo que o poder de prover os cargos públicos, atribuído
ao Presidente da República, não pode deixar de estar condicionado ao que dispu-
ser a lei.
Idêntico argumento se pode extrair do art. 188, parágrafo único, da Consti-
tuição, que declara não aplicável a estabilidade aos cargos “que a lei declare de
livre nomeação e demissão”. Se a lei, ao definir cargos de livre nomeação e demis-
são, não pode contrariar a Constituição, porque seria inválida, nem simplesmente
reproduzí-la, porque seria inócua, claro está que pode inovar na matéria, autoriza-
da pela própria Constituição, o que significa regular o poder de nomear e de demitir
do Presidente da República. Aliás, que irrisória competência para organização do
serviço público teria o Legislativo, se não pudesse disciplinar a investidura dos ser-
vidores, o seu acesso na carreira, a transferência de um cargo para outro, a
readmissão, enfim, se todas essas matérias tivessem de ser deixadas à discrição do
Chefe do Poder Executivo: o poder de organizar o serviço público pertenceria, em
tal hipótese, ao executivo e não ao legislador.
Cuidando-se, em especial, da investidura de servidor público por prazo
certo, eis uma providência que se integra, com toda a naturalidade, no regime de
autonomia administrativa atribuído, por lei, a certos órgãos. Visa a investidura de
prazo certo a garantir a continuidade de orientação e a independência de
ação de tais entidades autônomas, de modo que os titulares, assim protegidos
contra as injunções do momento, possam dar plena execução à política adotada
pelo Poder Legislativo, ao instituir o órgão autônomo, e definir-lhe as atribuições.

361
Memória Jurisprudencial

No sistema político vigente em nosso país é, realmente, ao Legislativo que cabe


traçar a orientação geral da política econômica e administrativa do país, pois dele
depende a votação do orçamento, a concessão de créditos especiais, a aprovação
de tratados com nações estrangeiras e o poder de votar leis em toda a extensa área
da competência legislativa da União.
Não é, aliás, a investidura de prazo certo uma invenção brasileira. Ela tem
uso freqüente em outras nações, e freqüentíssimo nos Estados Unidos, cujo regi-
me copiamos. Numerosos são os cargos, especialmente nas independent
regulatory comissions, cuja investidura se faz a prazo certo. Citarei algumas:
Junta de Aeronáutica Civil (Civil Aeronautics Board), cinco membros nomea-
dos com prazo de seis anos, sendo que não mais de três do mesmo partido;
Serviço de Reaproveitamento da Terra do Distrito de Columbia (District of
Columbia Redevelopment Land Agency), cinco membros, nomeados por cinco
anos; Organização Federal de Depósito e Seguro (Federal Deposit Insurance
Corporation), um membro nato e dois nomeados por seis anos; Junta Federal de
Bancos de Financiamento de Casas (Federal Home Loan Bank Board), três
membros nomeados por quatro anos, sendo dois, no máximo, do mesmo partido;
Comissão Federal do Comércio (Federal Trade Commission), cinco membros
nomeados por sete anos, não mais de três do mesmo partido; Comissão de Títulos
e Câmbio (Securities and Exchange Commission), cinco membros nomeados
por cinco anos, sendo três, no máximo, do mesmo partido; Junta de Controle de
Atividade Subversivas (Subversive Activities Control Board), cinco membros
nomeados por cinco anos, não podendo mais de três pertencerem ao mesmo
partido; Comissão de Serviço Civil dos Estados Unidos (United States Civil
Service Commission), três membros nomeados por seis anos, não podendo mais
de dois pertencer ao mesmo partido; Comissão de Tarifas dos Estados Unidos
(United States Tariff Commision), seis membros nomeados por seis anos, não
mais de três do mesmo partido (Apud United States Government Organization
Manual, 1960-1961).
Na sessão em que se iniciou o julgamento deste caso, foi ironizada a invo-
cação da experiência legislativa, administrativa e judiciária dos Estados Unidos.
A estranheza, entretanto, não procede. Não só essa consulta era aconselhada
pela identidade dos regimes políticos, em seus traços essenciais, como também
pela circunstância de que os norte-americanos estão praticando o presidencialis-
mo, que inventaram, desde mais de cem anos antes de nós. Grandes juristas
brasileiros, entre eles Rui Barbosa, o maior do que já pleitearam perante o Supre-
mo Tribunal, nunca se pejaram de recorrer às fontes norte-americanas.
Pois bem; ali, depois de muito estudado e debatido o assunto, pelos três
Poderes, chegou a Corte Suprema a uma fórmula bastante apropriada e de fér-
teis conseqüências. O significado e o alcance jurídico da investidura de prazo

362
Ministro Victor Nunes

certo ficou a depender da natureza do cargo ou função. No tocante aos que


se situam, estritamente, na linha hierárquica do Poder Executivo, isto é, dentro da
estrutura a que chamamos, no Brasil, a administração direta, entende-se que a
investidura de prazo certo apenas marca o seu termo final, mas não impede o
Chefe do Governo de exonerar o funcionário antes desse termo. Esta foi a dou-
trina de um julgamento famoso, o Myers Case (272 U.S. 52), de 1926. Foi relator
o Chief Justice Willian Taft, que por coincidência tinha sido Presidente dos Estados
Unidos. Ficaram vencidos McReynolds e os dois luminares Holmes e Brandeis.
Entretanto, em duas outras decisões, igualmente famosas, posteriores
àquela, uma de 27-5-1935, outra, de 30-6-1958, ficou decidido que a doutrina do
Myers Case não se aplicava às nomeações de prazo certo para órgãos dotados
de autonomia administrativa, dos quais, nos Estados Unidos, se diz que exer-
cem funções quase-legislativas ou quase-judiciárias, entidades criadas por lei e
que correspondem, lato sensu, às nossas autarquias, dotadas, nos limites da lei,
de funções normativas e jurisdicionais, não obstante o seu caráter de órgãos
administrativos, integrantes da administração descentralizada. Refiro-me ao
Caso Humphrey (295 U.S. 602, 1935) e ao Caso Wiener (357 U.S. 349, 1958).
A doutrina que nos mesmos foi afirmada pela Corte Suprema, a propósito,
respectivamente, da Comissão Federal de Comércio e da Comissão de Reclama-
ções de Guerra, destinou-se, consciente e deliberadamente, a restringir, precisar
e circunscrever a doutrina do Myers Case, a qual, entendida ao pé da letra,
ampliaria desarrazoadamente os poderes do Presidente da República, no tocante
a demissão dos servidores públicos. O objetivo da nova doutrina, que a Corte
Suprema enunciou de maneira explícita, foi justamente garantir o exercício das
funções e atribuições dos mencionados órgãos autônomos com a necessária in-
dependência, em face do Poder Executivo, para que pudessem cumprir, a salvo
de injunções, a política ou orientação traçada pelo Poder Legislativo, ao instituir
tais entidades autônomas.
Note-se, aliás, que a Chefia do Poder Executivo, configurada no Presidente
da República e considerada de maneira impessoal, isto é, independentemente da
pessoa que a exerça, também participa do processo legislativo, através da inicia-
tiva, da sanção ou do veto das leis que organizam esses órgãos independentes.
Peço vênia aos eminentes colegas para ler alguns trechos das duas citadas
decisões da Corte Suprema, a fim de documentar o que acabo de indicar resumida-
mente.
Consta da ementa do caso Humphrey’s Executor versus United States,
segundo a publicação da Lawver’s Edition (55 S. Ct. 869):

363
Memória Jurisprudencial

“O Congresso tem competência para determinar que agências


quase-legislativas ou quase-judiciárias desempenhem suas funções
independentemente de controle do Executivo, bem como estabelecer
prazo para o exercício dos cargos respectivos e proibir a demissão dos
respectivos membros, pelo Presidente da República, durante o prazo da
investidura (during their therm of office), salvo ocorrendo motivo legal.
(...) A questão de saber se o Presidente pode demitir servidor público, a
despeito da limitação estabelecida pelo Congresso ao seu poder de
demissão, depende da natureza do cargo, e da circunstância de exercer o
servidor funções quase-legislativa ou quase-judiciárias. (...) A lei que
permite ao Presidente demitir membros da Comissão Federal do Comércio
por ineficiência, negligência no cumprimento do dever ou má conduta no
exercício da função, interpretada no sentido de limitar o poder de demitir
do Presidente à ocorrência dos motivos mencionados, estabeleceu legítima
restrição à competência do Executivo. (...) O poder do Presidente de
demitir os membros da Comissão Federal do Comércio é limitado à
demissão pelos motivos específicos enumerados na lei (...)”.
Lê-se, ainda, no corpo da decisão:
“(...) A letra da lei, os anais legislativos e as finalidades gerais dessa
legislação, tais como refletidas nos debates, tudo concorre para
demonstrar a intenção do Congresso de criar entidade de pessoas
especializadas, que adquirissem experiência através do prolongamento do
exercício; um órgão coletivo, que fosse independente da autoridade
executiva, exceto na sua seleção, e livre para emitir o seu julgamento
independentemente de permissão ou embaraço por parte de qualquer
outro funcionário ou qualquer departamento do governo. É evidente que o
Congresso foi de opinião que a extensa da investidura e a certeza de nela
permanecer contribuiriam de maneira vital para a consecução desses
objetivos. A afirmativa de que, não obstante isso, os membros da Comissão
continuam na função pela simples vontade do Presidente poderia frustrar,
em larga medida, os próprios fins que o Congresso procurou alcançar pela
fixação do prazo de duração do exercício. Concluímos que o intuito da lei é
limitar o poder de demitir do Executivo às causas enumeradas, nenhuma
das quais é invocada neste caso (...).”
Note-se que na lei não havia expressa proibição de demitir, pois que se
limitava a permitir a demissão pelos motivos enumerados; e a Corte Suprema
interpretou a lei, a contrario sensu, como proibitiva de demissão por outros
motivos, ou não motivada.

364
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Embora não me agrade pertur-


bar a elaboração de V. Exa., eu me permito fazer uma observação: é que V. Exa.
está argumentando com um caso ocorrido nos Estados Unidos que não tem
pertinência com a espécie que vamos apreciar. V. Exa. se refere ao exercício de
funções quase-legislativas e quase-judiciárias. Ora, é evidente que o ato do Pre-
sidente que demitisse um desses investidos atentaria contra dispositivo de ordem
constitucional. No caso que vamos julgar, trata-se de servidor administrativo, re-
presentante do governo, mandatário do governo. É coisa diferente.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não do Governo, embora a lei o diga, impro-
priamente. A Constituição refere-se à União, quando se refere à previdência.
Chegarei lá. O que pretende demonstrar, por ora, é que, nos Estados Unidos, o
que se chamam funções quase-judiciárias e quase-legislativas é, precisamente, o
que nós chamamos, aqui, funções normativas e jurisdicionais de órgãos adminis-
trativos. O sistema previdenciário brasileiro baseia-se em uma série de conse-
lhos, com recursos diversos, conselhos que decidem sobre direitos das partes
interessadas e expedem normas reguladoras da aplicação das leis de previdên-
cia. É precisamente, é exatíssimamente o que fazem, cada qual no seu campo de
ação, as regulatory commissions, no Direito Administrativo norte-americano.
No caso Myron Wiener v. United States, de 30-6-1958, relatado pelo eminetís-
simo Felix Frankfurter, fez-se um elucidativo confronto entre os casos Myers e
Humphrey, que muito contribui para dar maior precisão à doutrina da Suprema
Corte. Lê-se na ementa da Lawyer´s Edition (78 S. Ct. 1275):
“O Presidente pode demitir funcionários que fazem parte da admi-
nistração direta (executive establishment), mas o poder presidencial de
demitir os membros de um corpo deliberativo criado para exercer seu
julgamento sem obstáculo por parte de qualquer outro funcionário só
existe, se o Congresso lho conferir. (...) Tendo a Lei de Reclamações de
Guerra de 1948 instituído uma Comissão com competência para julgar as
reclamações de guerra de acordo com a lei, e sem recurso, e não con-
tendo essa lei qualquer disposição relativa à demissão dos conselheiros,
não tem o Presidente autoridade para demitir um conselheiro somente
para ter, na Comissão, pessoal de sua própria escolha”.
E no contexto da decisão lemos o seguinte:
Afirmou-se “que o caso Myers reconheceu o inerente poder consti-
tucional do Presidente de demitir servidores públicos, qualquer que seja a
sua relação com o Executivo para o desempenho de suas atribuições, e
não obstante as restrições que o Congresso possa ter estabelecido com
respeito a duração da investidura. A versatilidade das circunstâncias mui-
tas vezes desilude a natural aspiração do definitivo. Menos de dez anos

365
Memória Jurisprudencial

depois, uma Corte unânime, em Humphrey’s Executor v. United States


(...) delimitou restritamente o alcance da decisão Myers para incluir
somente “os servidores simplesmente executivos” (all purely executive
officers) (...)”.
O que os americanos chamam executive department ou executive
establishment é o que nós denominamos administração direta, conceito que
exclui a administração descentralizada, através das autarquias. São diferentes as
palavras, mas os conceitos se correspondem, aqui e nos Estados Unidos. E o que
se discute, no momento, é se o Presidente tem ilimitado poder de demitir os mem-
bros de um corpo deliberativo autônomo, integrante da administração descentra-
lizada.
Continuo a ler a Wiener opinion: “A Corte, explicitamente, desaprovou
as expressões, contidas no julgado Myers, que sustentavam o inerente poder
constitucional do Presidente de demitir membros dos corpos quase-judiciários.
(...) O caso Humphrey foi cause célèbre, e não menos nos recintos do Congres-
so. Qual a essência da decisão do caso Humphrey? Ele estabeleceu uma nítida
linha divisória entre funcionários que fazem parte da administração direta
(executive establishment) e que eram, portanto, demissíveis por força dos po-
deres constitucionais do Presidente, e aqueles que são membros de uma entida-
de criada ‘para exercer seu julgamento sem dependência de permissão ou em-
baraço de qualquer outro funcionário ou de qualquer departamento do Gover-
no’ (...), e em relação aos quais o poder de exonerar só existe na medida em
que o Congresso haja por bem conferí-lo. Essa nítida distinção deriva da dife-
rença funcional entre os que fazem parte da administração direta e os que
pertencem a órgãos cujas atribuições exigem absoluta independência em face
do Executivo. “Pois é inequivocamente evidente — para de novo citar o caso
Humphrey — que quem exerce o cargo somente enquanto agrada a outro, não
pode, por isso mesmo, manter uma atitude de independência ante a vontade
desse outro”.
Essas duas memoráveis decisões lançam muita luz sobre o tema ora em
debate.
O Sr. Ministro Candido Motta: É que, nesses casos, não é uniforme a
jurisprudência americana. Há acórdãos a favor e acórdãos contra.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Posso afirmar que não, depois de 1935; depois
do caso Humphrey, não.
O Sr. Ministro Candido Motta: Eu posso citar um livro a respeito da Presi-
dência nos Estados Unidos, onde se aponta um caso de 1937.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Suponho que há equívoco.

366
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Nos casos em que o funcionário


podia ser demitido, não se falava em representante do Governo. Na espécie, há
um representante do Governo num órgão colegiado.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Procurarei tratar deste argumento mais adi-
ante. E peço permissão para lembrar que, no caso Wiener, membro da Comissão
de Reclamações de Guerra, nem sequer havia disposição que definisse os casos
de demissibilidade; nem havia mesmo prazo explícito para a investidura. A lei
criou uma comissão para funcionar por prazo determinado. Entretanto, com lei
tão omissa, a unanimidade da Corte Suprema, se afirmou no mesmo sentido da
decisão Humphrey.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: No caso Humphrey, nenhum fun-
cionário representava um órgão colegiado.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A razão pela qual dois Presidentes, Roosevelt
e Eisenhower, demitiram os referidos funcionários foi que o Governo precisava
estar representado naqueles órgãos por pessoa de sua confiança. Entretanto,
afirmou, na outra sessão, o eminente Procurador-Geral que elas se referiam a
funcionários dos poderes legislativos e judiciários. É possível mesmo que eu tenha
ouvido mal as palavras de S. Exa., porque os dois precedentes da Corte Suprema
cuidam, explicitamente, de membros de órgãos de funções quase-judiciárias ou
quase-legislativas, o que, de modo nenhum, os situa nos quadros do Congresso ou
dos Tribunais. Pertencem eles ao que chamamos administração descentralizada.
Como observa Claudius O. Johnson, “o tipo de órgão administrativo situado fora
da administração direta (executive department) que tem recebido maior soma
de atenção é a chamada comissão independente” (Government in the United
States, 1956, p. 534).
Tais entidades são os equivalentes das nossas autarquias econômicas e
administrativas, cuja criação depende de lei. E a lei que lhes dá autonomia, nos
limites que o legislador considere convenientes, tem por objetivo, não só facilitar
a administração dos serviços respectivos, pela adoção de normas diferentes das
que vigoram para a administração direta, mas também tornar os seus dirigentes,
nos termos da lei, independentes da miúda e cotidiana interferência do Chefe da
administração federal. A doutrina dos casos Humphrey e Wiener tem, como se
vê, inteira aplicação ao processo em exame, quer pela semelhança do regime (ao
tempo da impetração), quer por se tratar de entidades administrativas de atribui-
ções congêneres, do ponto de vista do direito, e cuja continuidade e independên-
cia de ação o legislador quis proteger com a investidura de prazo certo de alguns
ou de quase todos os seus dirigentes.
Encerrada esta longa referência à jurisprudência norte-americana, voltemos
às razões contrárias à impetração. Também se argüiu que o poder de demitir
deriva do de nomear, e concluiu-se que são ambos co-extensivos; devendo pre-
valecer, para o poder de nomeação, apenas as restrições expressas na Constitui-
ção Federal, o mesmo se deveria entender com relação ao poder de demitir.

367
Memória Jurisprudencial

É realmente aceito, pelos especialistas, que o poder de demitir resulta do


de nomear. Não há, porém, concordância na tese de que o poder de demitir é co-
extensivo do de nomear, isto é, que os dois poderes tenham as mesmas dimen-
sões ou se desenvolvam dentro da mesma superfície.
O poder de demitir, em alguns casos, tem extensão maior que o de nomear,
quando se dispensa, por exemplo, a concordância do Senado para o afastamento
de titulares cuja investidura depende da sua aprovação. A recíproca também é
verdadeira, segundo a nossa reiterada prática legislativa, judiciária e administrati-
va, coincidente com a de outros países, no sentido da legitimidade das restrições
legais ao poder de demitir. Umas das questões, cujo exame se tem repetido ulti-
mamente neste Tribunal, envolvendo o problema em debate, é a do estágio
probatório. Já decidimos, com o apoio do eminente Relator do presente processo,
que não há identidade entre o instituto do estágio probatório e o da estabilidade.
Ambos têm de comum serem garantias contra a demissão arbitrária ou imotivada
de servidores públicos. Entretanto, uma diferença fundamental, que separa os dois
institutos, consiste em estar o servidor estável protegido contra a própria supres-
são do cargo, ficando, em tal caso, em disponibilidade, até ser aproveitado em
outro equivalente. Dessa garantia não dispõe o estagiário, mas ele está resguar-
dado de demissão arbitrária ou imotivada, porque, para seu afastamento, o Esta-
tuto dos Funcionários exige processo administrativo.
A prevalecer a doutrina, que a administração sustenta no caso presente,
desaparecerá da nossa legislação, por inconstitucional, o instituto do estágio
probatório. Na verdade, porém, assim como o legislador pode condicionar o exer-
cício da competência do Chefe do Governo para prover cargos, também pode
condicionar, sob a inspiração do interesse público, o exercício do poder de demitir.
Outros exemplos, além do estágio probatório, poderiam ser lembrados. Ocorre-
me a doutrina dos motivos determinantes, desenvolvida, na França, por Gaston
Jèze, e aceita, entre nós, em parecer de Francisco Campos. Essa doutrina foi,
recentemente, prestigiada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (e digo
prestigiada, porque não participei do julgamento), no caso Vasco Pezzi, pela pala-
vra magisterial do eminente Ministro Hahnemann Guimarães (Ag 24.715, de
10-10-61).
Estou, pois, firmemente convencido de que o Governo extraiu da regra,
segundo a qual o poder de demitir deriva do de nomear, conseqüências que a lei,
a doutrina e a jurisprudência têm repelido, com fundadas razões. A Constituição
não ampara a interpretação napoleônica do Executivo no caso presente.
Ponderou-se, por outro lado, que a pretensão do impetrante, de não ver
reduzido, sem justa causa, o prazo de sua investidura, equivale a criar um caso de
estabilidade temporária, que a Constituição não admite. O argumento, data

368
Ministro Victor Nunes

venia, não focaliza adequadamente o problema em debate. A garantia do exercí-


cio do cargo, por certo prazo, de modo algum pode ser equiparada à estabilidade.
Cabem, aqui, as mesmas razões já desenvolvidas quanto à distinção entre o está-
gio probatório e a estabilidade.
A investidura de prazo certo é apenas uma, dentre várias técnicas
admissíveis, para proteger o servidor público das demissões arbitrárias, ou
imotivadas, e visa a um objetivo que transcende dessa conseqüência imediata, o
de garantir a continuidade de orientação e a independência dos órgãos adminis-
trativos que o legislador dotou com autonomia. Esta é que é, repita-se, a finalida-
de de ordem geral, a razão de serviço público que inspira a investidura de prazo
certo. Por isso mesmo, a doutrina firmada pela Corte Suprema dos Estados Uni-
dos só lhe atribui a conseqüência de vedar a demissão antes do termo, sem motivo
legal, quando se trate de funcionário de entidades autônomas, cuja independência
de critério tenha de ser preservada, e não de servidores integrados na hierarquia
ordinária da administração direta.
Não há, pois, que invocar a disciplina constitucional da estabilidade para se
negar validade à investidura de prazo certo, porque são noções diferentes.
Existe, aliás, uma situação bem parecida com à investidura de prazo certo
nas relações de trabalho de natureza privada. Refiro-me à impropriamente cha-
mada estabilidade temporária ou provisória dos dirigentes sindicais. Eles não po-
dem ser afastados do emprego, sem falta grave, enquanto durar o exercício da
representação sindical. Essa garantia foi estabelecida, pelo legislador, não em
benefício do trabalhador, individualmente considerado, mas no superior interesse
da função que, por sua natureza, há de ser desempenhada com independência.
Também se disse, no caso dos autos, que as funções dirigentes, como esta
de que cuidamos, são de confiança; estariam, pois, pela própria Constituição,
excluídas da proteção da estabilidade.
Respondo a esse argumento, data venia, em primeiro lugar, com as mes-
mas considerações já aduzidas a respeito da estabilidade. A estabilidade é uma
coisa, e a investidura de prazo certo, outra, bem diferente, cada qual com os seus
pressupostos e objetivos. A estabilidade visa, sobretudo, à proteção da pessoa do
servidor; a investidura de prazo certo, o que protege, através da permanência do
servidor no cargo, é o interesse mais alto, da continuidade e independência da
função por ele exercida num órgão dotado de autonomia.
Em segundo lugar, menciona a Constituição (art. 188, parágrafo único) os
cargos de confiança, mas não os define. Essa atribuição ficou, portanto, delegada
ao legislador ordinário (art. 184). Quando a lei cria um cargo com investidura de
prazo certo, evidentemente o exclui da categoria dos de confiança, que pressu-
põem, por definição, a demissibilidade ad nutum.

369
Memória Jurisprudencial

Além disso, são numerosos os exemplos de normas legais que protegem,


indiretamente, os titulares de cargos de confiança. Assim, a Lei 1.741, de 22-11-
52, garante os vencimentos da comissão ao funcionário dela afastado depois de
dez anos de exercício. Do mesmo modo, o Estatuto dos Funcionários (art. 180)
garante os vencimentos da comissão, ou da função gratificada, ao servidor que se
aposentar depois de certo tempo de serviço público e de exercício daquelas posi-
ções de confiança.
O cargo que a lei dotou com a investidura de prazo certo não pode ser tido
como função de confiança, porque é justamente o oposto dela, sendo antinômicos
os propósitos do legislador num e noutro caso. Permitam-me repetir um trecho da
decisão da Corte Suprema, no Caso Humphrey, repetida no Caso Wiener:
“quem exerce o cargo somente enquanto agrada a outro, não pode, por isso mesmo,
manter uma atitude de independência ante a vontade desse outro”.
O objetivo do legislador, com a investidura de prazo certo, é justamente
tornar o titular do cargo independente das injunções do Chefe do Poder Executivo.
Pode errar o legislador, ao adotar esse critério, em relação a tal ou qual serviço a
que concede autonomia, mas não cabe ao Judiciário corrigir a política do Poder
Legislativo. Se o que visa o Legislativo é, justamente, tornar determinado funcio-
nário independente, no exercício de suas atribuições, como podemos nós dizer, ao
contrário da lei, que esse funcionário exerce função de confiança, que o tornaria
inteiramente submetido ao Chefe do Governo?

III
Concluída a discussão no plano constitucional, passemos aos argumentos
de natureza legal. Já aludimos à impropriedade da denominação mandato, que se
tem dado à investidura administrativa de prazo certo. Entretanto, essa errônea
extensão do vocábulo resultou da aproximação de tais situações, não com o man-
dato de direito comum, porém com o mandato de direito político, isto é, com o
mandato político-representativo. E o ponto de afinidade consiste, justamente, em
que um e outro são de prazo irredutível.
Afirmou, na primeira assentada deste julgamento, o eminente Procurador-
Geral que o mandato político é revogável, ao arbítrio do mandante, pois a tanto
equivale o processo de impeachment. Com a devida vênia, não é o impeachment o
instituto de direito político em que se traduz a noção de revogabilidade do mandato
representativo; é o recall, através do qual os próprios eleitores retiram o mandato
conferido ao seu representante. Mas nunca se afirmou, ao que eu saiba, pudesse
o recall ser admitido como implícito na própria noção de mandato político, isto é,
que se pudesse adotar, sem norma constitucional ou legal, o princípio da
revogabilidade do mandato político.

370
Ministro Victor Nunes

Nem quis o eminente Procurador-Geral, no que parece, extrair essa


conseqüência das suas próprias palavras, porque apelou para o impeachment. Mas
esse procedimento, de gravidade excepcional, não acarreta a revogação, e sim, a
perda do mandato. É uma sanção de natureza-político criminal, que pressupõe a
prática de crime de responsabilidade. A invocação do impeachment, portanto, longe
de favorecer a tese do governo, no sentido da livre demissibilidade dos servidores
nomeados com prazo certo, levaria antes à conclusão contrária. Assim como, no
plano político, se exige crime de responsabilidade para o impeachment, no plano
administrativo, para a demissão de servidor nomeado com prazo certo, se teria de
exigir falta grave, a ser apurada em processo administrativo.
Encerrada essa digressão, vemos que a errônea denominação de mandato,
aplicada a esses casos, deu lugar ao argumento de lhe serem aplicáveis as regras
do direito privado relativas ao mandato. Nestas condições — prossegue o argu-
mento —, se pode o mandante, salvo casos especiais, previstos em lei, revogar o
mandato, poderia também o Presidente da República demitir o servidor nomeado
com prazo certo.
Data venia, o uso impróprio do vocábulo mandato não pode mudar o
preto em branco, para fazer surgir, em tais casos, a figura jurídica do mandato.
Pelo art. 1.208 do Código Civil, tem-se o mandato “quando alguém recebe de
outrem poderes, para, em seu nome, praticar atos, ou administrar interesses”.
Daí resulta, portanto, que a atividade exercida pertence, originariamente, ao
mandante e é por ele delegada ao mandatário, ou por comodidade, ou por falta de
habilitação legal.
Nada disso acontece nas nomeações de prazo certo. No caso dos autos,
por exemplo, quem pode pretender que as atribuições exercidas pelo nomeado
fossem, originariamente, do Presidente da República, de modo a constituir-se
aquele em mandatário deste?
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): V. Exa. pode transferir este
raciocínio para o plano político e verá, então, que, realmente, esse servidor inves-
tido pela vontade do Presidente da República não é senão um mandatário do
Presidente da República, que personifica o governo. Se quiser V. Exa. transpor o
sentido jurídico do instituto do mandato para o caso em apreço, verá que o Presi-
dente da República personifica o Governo e tem nesses órgãos, sem dúvida, um
seu mandatário, o qual vai executar, no órgão para onde é nomeado, a sua vonta-
de, o seu programa assistencial, o seu programa político, o seu programa de am-
paro ao trabalhador. Não podemos perder esta noção, que é real para o caso que
estamos apreciando.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se me permite V. Exa. quando as leis institu-
em essas investiduras de prazo certo, o objetivo é precisamente o de retirar do

371
Memória Jurisprudencial

Presidente da República o poder que V. Exa. lhe reconhece. E, quando o legisla-


dor quer manter esse poder, assim dispõe expressamente. Por exemplo, no Banco
de Desenvolvimento Econômico, o presidente é de livre nomeação e demissão,
enquanto que os demais diretores têm prazo certo de investidura. É o próprio
legislador quem destingue as duas situações; se marca prazo para a investidura
de alguns, é porque não quer permitir a livre demissão.
O Sr. Ministro Ribeiro da Costa (Relator): Cabe à Corte Suprema dar essa
definição para ajudar a obra governamental, para ajudar o programa que o Presi-
dente da República tem de executar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou procurando dar a minha modesta con-
tribuição para que o Tribunal chegue a interpretação que julgue mais acertada.
Tais funções são criadas em lei, e esta as institui, desde logo, como atribuições do
próprio servidor nomeado para exercê-las. Não se pode receber, por transferên-
cia de outrem, aquilo que a lei já conferiu diretamente. Não existe, pois, aqui, a
figura do mandato de direito comum, nem se pode ter o ato de nomeação como
equivalente à procuração, que, pelo citado art. 1.288 do Código Civil, “é o instru-
mento do mandato”.
Também não se pode ver na nomeação um ato de delegação de poderes,
usual na esfera administrativa, porém na linha da hierarquia. As nomeações de
prazo certo, de que estamos cogitando, são para cargos integrantes de órgãos
dotados de autonomia, isto é, com atribuições derivadas diretamente da lei.
Basta recordar que a delegação de poderes se confere a um funcionário,
que continua no exercício do cargo próprio, mesmo depois de cessar a delegação,
pois esta cessação só se refere, obviamente, ao poderes delegados. Entretanto,
na investidura de prazo certo, as atribuições são, por força de lei, do próprio
cargo; por isso não podem ser retiradas do funcionário a não ser com a sua
demissão. Mas nunca se sustentou, no Direito Administrativo, que demissão de
funcionário seja ato equivalente ou equiparável a retirada de delegação de poderes.
Nunca vi isso em livro nenhum: que seja a mesma coisa retirar a delegação de
poderes, ou demitir o funcionário, para que não exerça as atribuições que lhe
confere a lei. Retira-se a delegação quando a autoridade superior, que a conferiu,
não quer mais que o delegado a exerça.
Não há que cogitar, portanto, da aplicação, ao caso presente, das regras
de Direito Civil sobre revogação de mandato, porque aqui não se cuida de nada
parecido com mandato de direito comum. Se houvesse afinidade, seria com o
mandato político, e este, em nosso direito, é irrevogável.
Abro agora um parêntese para considerar, mais detidamente, um argu-
mento dos eminentes Ministros Hahnemann Guimarães e Ribeiro da Costa, que
me honraram com seus apartes.

372
Ministro Victor Nunes

O fato de dispor a Lei de Previdência Social que o Conselho se compõe de


representantes da classe dos empregados, da classe patronal e de represen-
tantes do Governo, não quer dizer, de modo nenhum, que se trata de mandato.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Trata-se do poder de “representa-
ção”; há representação sem mandato; a representação é uma situação inerente a
várias situações jurídicas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Quero concluir o meu raciocínio, eminente
Mestre. Não há representação do Governo em sentido próprio. A Previdência
Social está estruturada essencialmente, na própria Constituição; baseia-se em
contribuição tríplice: dos empregadores, dos empregados e da União. Diz a Cons-
tituição Federal (art. 157, n. XVI): “previdência, mediante contribuição da
União, do empregador e do empregado”. Porque a União, isto é, o Estado
Federal contribui com um terço da receita que mantém a previdência social,
estes órgãos se estruturam com pessoas, não só indicadas pela classe dos tra-
balhadores e pela classe patronal, mas também por pessoas nomeadas pelo
Governo Federal.
Se os eminentes Ministros Hahnemann Guimarães e Ribeiro da Costa estão
dando tanta a atenção à palavra “representantes”, empregada noutro sentido, e
não no sentido de “mandatários”, na Lei Orgânica da Previdência, lembrarei que
também na lei de organização das Juntas de Conciliação e Julgamento e dos
Tribunais do Trabalho de instância superior há juízes representantes das
classes — empregadores e empregados —, nomeados pelo Presidente. Have-
rá quem sustente que esses juízes possam ser destituídos?
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: As causas da desitituição da fun-
ção judiciária são determinadas e não há, na lei, causas de demissão fixadas
quanto aos representantes do Governo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Também não há, na lei, causas específicas de
demissão para os juízes temporários da Justiça do Trabalho.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Sem dúvida há perda da função
judiciária, em casos determinados.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas está isto expresso na lei? Ninguém, no
Brasil, já sustentou que esses juízes, chamados representantes das classes,
pudessem ter o seu mandato interrompido antes do plano legal. São represen-
tantes, em sentido impróprio; neste mesmo sentido impróprio é que aparece o
vocábulo na lei de previdência.
Igualmente, não há que se cogitar de reparação pecuniária pela revogação
do mandato antes do termo. Tudo isto é matéria estranha ao tema em debate. A
reparação de ordem econômica, pela cessação do mandato de direito privado, é

373
Memória Jurisprudencial

instituída no benefício pessoal do mandatário, tem caráter compensatório. Mas o


prazo da investidura, em casos como o dos autos, não é instituído em razão da
pessoa do servidor, mas ratione rei publicae. Assim, a reparação do afasta-
mento do funcionário antes do termo — afastamento ilegal — não pode ser de
ordem privada, traduzível em dinheiro, mas há de ser também de ordem pública,
com a volta do servidor ao cargo de que foi dispensado contra lei.

IV
Findo o exame do assunto sob o aspecto legal, vejamos os argumentos de
natureza administrativa e política. Ponderou-se que não seria justo ficar o novo
Presidente vinculado às nomeações do antecessor; seria mesmo estranhável que
o Presidente, prestes a sair, pudesse fazer nomeações, cuja duração se prolon-
gasse pelo seguinte período presidencial, numa espécie de manobra política de
ação retardada.
O argumento, data venia, é de natureza puramente circunstancial. Coin-
cidiu que as nomeações impugnadas foram feitas nos últimos tempos do Governo
anterior. Sendo, porém, o prazo em causa de quatro anos, bem poderia ocorrer
que a investidura começasse e terminasse na gestão do mesmo Presidente. Esta
possibilidade tira, portanto, ao argumento, qualquer validez de ordem teórica.
O que há, porém, a observar, a esse respeito (sem falar no reverso da
medalha, que seriam as nomeações do novo Presidente, no fim do seu mandato,
alcançando, assim, o período do sucessor), é que a cautela tomada pelo legislador,
ao instituir a investidura de prazo certo, não se dirige, especificamente, contra
este ou aquele governante, particularmente considerado. É uma garantia de inde-
pendência do exercício das funções dirigentes do órgão autônomo contra qual-
quer ocupante da chefia do Poder Executivo, mesmo contra o Presidente que
tiver feito as nomeações.
Também se objeta que permanência desses titulares nomeados pelo Gover-
no anterior pode acarretar falta de entrosamento com o novo governo, prejudi-
cando a sua ação administrativa. Este foi, aliás, o argumento usado pelo Presi-
dente Roosevelt para demitir Humphrey, da Comissão Federal do Comércio, e
pelo Presidente Eisenhower, para afastar Wiener, da Comissão de Reclamações
de Guerra. Eis como o Justice Sutherland relata o primeiro episódio:
“Em 25 de julho de 1933, o Presidente Roosevelt endereçou uma
carta ao conselheiro (comissioner), pedindo sua resignação, com funda-
mento em que “os objetivos e propósitos da administração relativamente
aos trabalhos da Comissão podem ser levados a efeito mais eficazmente

374
Ministro Victor Nunes

com pessoal de minha própria escolha”, solução que, todavia, “não signifi-
cava qualquer restrição à pessoa do conselheiro, nem aos seus serviços”.
O conselheiro respondeu, solicitando tempo para consultar os amigos.
Depois de alguma correspondência ulterior sobre o assunto, o Presidente,
em 31 de agosto de 1933, escreveu ao conselheiro, expressando o desejo
de que a resignação fosse apresentada a seguir, e disse: “Sei que o Senhor
está consciente de que o seu pensamento e o meu não se ajustam, nem
sobre a política, nem sobre a administração da Comissão Federal do Co-
mércio, e, falando com franqueza, acho que será melhor para o povo deste
país que haja plena confiança em mim”. O conselheiro não resignou, e, em
7 de outubro de 1933, o Presidente lhe escreveu: “A partir desta data, o
Senhor está demitido do cargo de Conselheiro da Comissão Federal do
Comércio”.
Do mesmo modo, o Presidente Eisenhower, para afastar Wiener, assim se
expressou: “Considero de interesse nacional completar a administração da Lei de
Reclamação de Guerra de 1948 (...) com pessoal de minha própria escolha”.
Entretanto, a Corte Suprema teve por mais valioso do que essa alegada
conveniência administrativa o princípio da independência do órgão dotado, por lei,
de autonomia.
Sem dúvida, o bom entendimento entre o Chefe do Governo e os dirigentes
e executores da política do Estado é, em tese, um bem para a administração
pública. Mas isso é falar não a linguagem da lei, mas a da conveniência adminis-
trativa. O legislador há de ter ponderado a desvantagem do eventual desencontro
de pontos de vista, com o benefício, por ele considerado mais relevante, de garantir
continuidade e independência na execução das tarefas confiadas ao órgão autô-
nomo. Quem há de pesar as vantagens e inconvenientes de cada uma das duas
soluções não é o Judiciário, que não faz lei, mas o Legislativo. E este manifestou
a sua opção nitidamente, quando insistiu a investidura de prazo certo.
O argumento, que ora examinamos, por mais valioso que seja no plano da
ciência da administração, constitui, do ponto de vista jurídico, uma razão exata-
mente contrária a que terá inspirado o legislador. Para bem interpretar a lei, são
as razões do legislador, e não as que a elas se opuserem, que o aplicador deve
levar em conta. São muito adequadas as palavras de Brandeis, votando vencido
no Caso Myers: “A doutrina da separação de poderes — disse ele — foi adotada
pela Convenção de 1787, não para promover a eficiência, mas para prevenir o
exercício do poder arbitrário”.
Objeta-se, com razão, que poderão tais titulares, garantidos contra sua
demissão antes do termo, abusar das funções. Essa possibilidades também há de
ter sido pesada pelo legislador; por isso, a lei institui, ao lado da investidura de

375
Memória Jurisprudencial

prazo certo, os mecanismos que a doutrina denomina, genericamente, de tutela


(Marcelo Caetano, Manual, 4ª ed., § 93).
E o legislador, certamente, teve por menos pernicioso esse eventual desvio
do que o poder incontrastável do Chefe do Governo sobre toda a administração
descentralizada, pois isso desvirtuaria a própria razão de ser da descentralização.
A tese do Governo, no caso presente, data venia, consagraria, em termos
de decisão judiciária e com a categoria de princípio constitucional, os extremos do
sistema dos despojos. Mas a atual legislação, que, em todos os países civilizados,
procura resguardar o serviço público civil da influência ilimitada da política, foi
precisamente uma conquista, lenta e penosa, contra o spoil system. A prevalecer
a opinião do Governo, todos os órgãos autônomos, ora existentes em nosso país,
criados em épocas diversas, perderiam, de imediato, a sua autonomia. Reitores
de universidades, diretores de escolas superiores, representantes das congrega-
ções nos conselhos universitários, juízes trabalhistas representativos das classes
operárias e patronal, membros dos Conselhos de Contribuintes e do Conselho de
Tarifas, enfim, toda uma série de altos titulares, cujo desempenho carece de ser
protegido, em face do Poder Executivo, toda essa gente, que forma na cúpula da
administração descentralizada, poderia ser mudada de um momento para outro,
ao simples critério, arbítrio ou capricho do soberano eletivo, que seria, entre nós,
o Presidente da República.
Estou, portanto, convencido de que, mesmo do ponto de vista da conveni-
ência administrativa e política, seria um mal, não um bem, o retorno ao sistema
dos despojos, que ainda prevalece, largamente, em nosso país, e que, neste
processo, se pretende reimplantar nas áreas reduzidas em que a lei procurou
cerceá-lo.
Estas considerações são feitas a propósito do regime presidencialista.
Teriam elas, porém, maior adequação no parlamentarista, em que ora ingressa-
mos, porque, neste, à posição preeminente que assume o Congresso, diante do
Executivo, há de corresponder maior prestígio da lei.
Nestas condições, data venia do eminente Relator e das suas nobilíssimas
intenções, creio que me sinto na linha dos notáveis precedentes do Supremo Tri-
bunal, sobre o assunto em debate, concedendo a segurança, para anular o ato
demissório e fazer voltar o impetrante ao cargo que ocupava no Conselho Admi-
nistrativo do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários.

376
Ministro Victor Nunes

MANDADO DE SEGURANÇA 8.802 — GB

A pedido do impetrante homologaram a desistência.


VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, espero contar com a paciên-
cia do Tribunal para ouvir algumas considerações, uma vez que, data venia, me
coloco nesta matéria em ponto de vista oposto ao do eminente Ministro Pedro
Chaves.
Este caso apresenta aspectos comuns aos outros já decididos, e também,
como acentuou o ilustre advogado do impetrante, particularidades que não podem
ser obscurecidas.
No tocante aos aspectos comuns, peço vênia para voltar a dois pontos
discutidos anteriormente e que não tiveram suficiente explanação de minha parte,
porque me faltavam no momento os elementos necessários.
Eu me havia referido à jurisprudência da Corte Suprema dos Estados Uni-
dos, que se firmou de maneira clara e nítida sobre o assunto em debate em dois
notáveis julgados: o Humphrey Case, de 1935, e o Wiener Case, de 1958.
O eminente Ministro Candido Motta Filho afirmou, entretanto, que tinha
havido, depois do Humphrey Case, por volta de 1938, um julgamento em senti-
do contrário. Como o eminente colega havia feito referência a um conhecido
livro sobre a presidência dos Estados Unidos, que só podia ser o de Corwin, reli
o capítulo dessa notável obra sobre o assunto e lá encontrei o caso da demissão
de Morgan, presidente da Tennessee Valley Authority, pelo Presidente
Roosevelt.
O Sr. Ministro Candido Motta: Eu me referi, especialmente, aos dois pri-
meiros casos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A demissão teve lugar em 1938, e o caso foi
julgado por um juiz federal em 1939. Morgan recusara-se a fornecer as provas
que o Governo reclamava, em relação à má conduta de seus colegas de diretoria.
E a sua demissão foi julgada regular. Não se tratava, portanto, de demissão
imotivada, mas fundada em justo motivo, porque aquele ilustre administrador se
rebelara contra o Poder Executivo que tinha o direito de produzir provas, cons-
tantes dos arquivos da instituição, contra os outros diretores.
O segundo aspecto que peço permissão para focalizar é o das tendências
recentes, nos Estados Unidos, a respeito das regulatory agencies. O eminente
Ministro Candido Motta aludiu à severa crítica feita, naquele país, à atuação
desses órgãos autônomos.
O Sr. Ministro Candido Motta: Documentei-me em minhas afirmativas.

377
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Por ocasião de minha visita aos Estados
Unidos, em março de 1961, tive conhecimento da intenção do Presidente
Kennedy de propor ao Congresso alterações na legislação a respeito das comis-
sões independentes; como as notícias faziam referência ao Plano de Prática e
Processo Administrativo, da Comissão Judiciária do Senado, para verificar em
que consistiam as modificações sugeridas e se essas modificações chegavam a
eliminar o critério de investidura por prazo certo dos dirigentes dessas comissões.
O Sr. Ministro Candido Motta: V. Exa. há de se recordar que na própria
Revista Administrativa há um longo artigo de autor americano que se refere a
essa matéria da competência das comissões do Poder Executivo e, em que ele
afirma justamente o que eu disse: que isso estava tirando, de tal forma, do Poder
Executivo sua competência, que os Estados Unidos estavam se transformando
num país sem cabeça, completamente sem diretivas, o que é — acentuo — uma
crise do Executivo americano.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. citou bem, citou corretamente. Mas
o documento que aqui trago — e que passarei às mãos de V. Exa., se o nobre
colega estiver interessado — é o último documento oficial sobre o assunto, que
exprime o pensamento da Presidência dos Estados Unidos, porque Landis prepa-
rou esse relatório para o então Senador Kennedy, que veio a ser eleito Presidente.
A Comissão Judiciária do Senado mandou publicá-lo como documento oficial,
como subsídio aos trabalhos do Senado. Esse plano encerra, a bem dizer, as
últimas aspirações ou reivindicações do chefe do Poder Executivo dos Estados
Unidos em matéria de reforma dessas comissões independentes.
O que se vê, porém, neste Plano, em matéria de nomeações, é que ele
propõe a livre nomeação e demissão do Presidente da Insterstate Commerce
Commission e da Federal Power Commission (do presidente, nota-se, e não
dos demais diretores), e aumenta os poderes do presidente, justificando a pro-
posta com a necessidade de imprimir maior vigor à sua atuação, à frente de tais
órgãos.
Mas o autor do relatório, referindo-se ao pessoal do nível superior e à
necessidade de atrair homens de valor para o serviço de tais instituições, observa
que a permanência no cargo (tenure) é uma consideração de maior importância
que o próprio salário, porque dessa permanência dependem a independência e a
oportunidade para planejamento a longo termo. Estes são precisamente os dois
objetivos básicos que justificam a nomeação a termo, a qual garante continuidade
administrativa e independência no exercício da função.
Mas há mais no Plano Landis. Justificando a livre demissibilidade do presi-
dente da Interstate Commerce Commission, diz o relatório, a certa altura: “Pode
ser objetado que tal proposta destruiria a independência do órgão” (observe-se

378
Ministro Victor Nunes

que, além da livre demissibilidade dos presidentes, propõe-se o aumento de seus


poderes). E prossegue o relatório de Landis, que é homem da mais alta categoria,
nada menos que supervisor das comissões independentes na Administração
Kennedy, além de antigo new dealer e ex-diretor da Harvard Law School: “Isso,
entretanto, não ocorrerá, porque o insucesso do presidente em manter a confian-
ça e o respeito de seus colegas criaria uma situação que levaria o Presidente dos
Estados Unidos a substituí-lo por outro membro em condições de assumir aquelas
responsabilidades”. O que Landis propõe, como se vê na sua reforma, não é que
o Presidente da República tenha o poder de demitir os outros diretores, mas que
demita o presidente da instituição, se não tiver condições pessoais de liderança
para manter o respeito e a estima de seus colegas, dos outros membros do
colegiado nomeados com prazo certo.
O Sr. Ministro Candido Motta: Acentuei que a crise do Poder Executivo
nos Estados Unidos tem provocado várias obras, que V. Exa., que é um erudito,
conhece. Apenas afirmei que a preocupação existia não só na própria administra-
ção, com os que propõem a reforma da organização dos Estados Unidos, como
também em meio dos juristas e dos advogados. Foi esta a minha afirmativa, para
corroborar o que afirmara antes. Minha tese era apenas esta.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou contestando, de modo algum, a
afirmativa de V. Exa; apenas estou procurando situá-la nos seus devidos termos.
Pretendi esclarecer que, nos Estados Unidos, cuja prática administrativa e judiciária
invoquei, as aspirações à reforma desses órgãos autônomos não vão tão longe
como aqui se decidiu.
O Sr. Ministro Candido Motta: O que acentuei em meu voto, de referência
a todas às decisões e ao pensamento dos juristas e sociólogos americanos, foi o
seguinte: a organização brasileira é uma, e a americana é outra; a tradição brasi-
leira é uma, enquanto a americana é outra; o presidencialismo brasileiro é um, e
outro o americano. Rui Barbosa, desde o começo, já afirmava isto: começamos
através da Argentina; depois, nos desviamos para a Constituição de Weimar, e
temos nos agarrado mais ao Direito europeu que ao americano.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, prosseguindo em minhas con-
siderações, volto a um argumento anteriormente desenvolvido, a saber, que a
doutrina firmada pelo Supremo Tribunal Federal, nos precedentes aqui invocados,
que são os casos Murilo Gondim e Armando Simone, é totalmente contrária à
própria idéia da criação de órgãos administrativos autônomos. A criação desses
órgãos visa, precisamente, a objetivos diversos daqueles que presidiram às deci-
sões deste Tribunal. Mas a quem cabe traçar a alta política administrativa do
País? Não é ao Supremo Tribunal; é ao Poder Legislativo, dentro dos limites
constitucionais. E nada há na Constituição que corrobore, de maneira tão categó-
rica, as afirmativas que aqui se fizeram no sentido de que, havendo a lei instituído

379
Memória Jurisprudencial

um órgão administrativo com autonomia ampla e garantido essa autonomia com a


investidura de prazo certo dos seus diretores, seja isso incompatível com a Cons-
tituição! Essa interpretação o Tribunal a está construindo contra os objetivos da
lei, isto é, atribuindo-se o papel de formulador da alta política administrativa do
país, que compete ao Poder Legislativo.
No caso em exame, Sr. Presidente, esta minha observação tem mais razão
de ser do que nos anteriores — e aqui encontramos a primeira particularidade
que distingue este processo dos outros —, porque a Mensagem com que o Go-
verno encaminhou o projeto à Câmara, não só definia o Conselho de Administra-
ção do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico como órgão de direção
superior e de controle, como declarava que a investidura de prazo certo visa dar
ao Conselho a necessária estabilidade, que lhe permita resistir às injunções a que
costumam estar sujeitos os organismos estatais. São palavras textuais da Mensa-
gem do governo. A lei quis isso, mas nós decidimos que a lei não pode dispor que
o administrador fique imune às injunções a que, normalmente, estão sujeitos os
dirigentes dos organismos estatais!
Além desta particularidade, Sr. Presidente, existe outra que me parece da
máxima importância e à qual, data venia, é possível que o eminente Ministro
Pedro Chaves não tenha atribuído sua verdadeira significação: é que o Conselho,
além de ter atribuições de definição da política econômica do Banco, que é um
órgão importantíssimo na administração do país, tem ainda a função essencial de
fiscalizar a diretoria. Aqui está o ponto capital. O banco tem sua direção confiada
a uma diretoria composta de presidente, demissível ad nutum, e de diretores,
com investidura de prazo certo, mas, além destes diretores e do presidente, há o
Conselho, que é fiscal da diretoria.
A lei que instituiu o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico atri-
buiu a esse Conselho, entre outras funções, a de organizar e modificar o regimento
do Banco, a ser aprovado pelo Ministro da Fazenda; a de examinar e julgar os
seus balancetes financeiros e patrimoniais; a de examinar e dar parecer sobre a
prestação anual de contas dos diretores; a de apreciar e julgar os vetos do Presi-
dente às deliberações da Diretoria, etc.
O presidente, como se sabe, é de livre nomeação, o que marca sua posição
de representante do governo. E para firmar sua preeminência, a lei lhe conferiu o
poder de vetar as decisões da diretoria; mas quando isso ocorre, é o Conselho
que julga os vetos do presidente.
Vê-se, portanto, que no Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico,
o órgão que tem a função de fiscalizar o próprio agente de confiança do Presi-
dente da República é o Conselho. Pois esse Conselho há de ser, também,
demissível ad nutum? Que espécie de controle pode ele exercer sobre o agente
do Presidente da República se também for livremente demissível pelo Presidente
da República?

380
Ministro Victor Nunes

Esta particularidade parece-me da maior importância. Se retirarmos desse


órgão, que é fiscal do Governo no Banco, a garantia de sua independência, des-
truímos a própria finalidade da instituição. E em nome de quê? De algum princípio
explícito da Constituição? Não. Em nome de um poder de demitir, derivado do
poder de nomear, que a própria Constituição condiciona às disposições da lei,
quando diz que o Presidente da República pode prover os cargos públicos na
forma da lei. Então, extraímos do poder de prover cargos públicos, na forma da
lei, que é poder condicionado, uma conseqüência sem limite: para demitir não há
qualquer restrição!
São estas as considerações pelas quais, reportando-me aos votos que pro-
feri nos Mandados de Segurança 8.693, de 25 de outubro, e 8.651, de 26 de
novembro de 1961, e tendo em vista, sobretudo, as particularidades do caso pre-
sente, concedo a segurança, data venia do eminente Relator.

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 9.558 — GB

Poder constituinte dos Estados. Sujeição apenas aos


princípios da Constituição Federal. Transformação do anti-
go Distrito Federal no Estado da Guanabara. Segurança
denegada. Recurso não provido.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Presidente, começo meu voto muito
acabrunhado, porque tenho que divergir, e o faço com todo o apreço e estima, do
eminente Ministro Pedro Chaves, que acabou de produzir um voto notável por
sua estrutura lógica. Seu voto é uma peça inteiriça, que temos de aceitar ou
rejeitar por inteiro. Daí vem o meu constrangimento, porque, fiel à opinião que
emiti desde fins de 1959, eu me coloco em posição que me obriga a rejeitar,
embora com todo o apreço, a própria estrutura do voto de S. Exa.
O Sr. Ministro Pedro Chaves (Relator): As opiniões de V. Exa., além da
sua estrutura moral, são sempre abalizadíssimas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Muito obrigado a V. Exa.
Senhor Presidente, o debate travado nesta assentada quase dispensaria
fundamentação mais longa. Entretanto, cada juiz tem o dever de motivar, o mais
completamente possível, sua convicção, inclusive para demonstrar a seus pares
que não se trata de conclusão apressada, porém meditada, refletida.

381
Memória Jurisprudencial

Em 1959, desempenhava eu a função de advogado do então Distrito


Federal, quando surgiu um problema de conseqüências práticas muito sérias. A
Câmara de Vereadores teria de votar uma lei orçamentária para vigorar, durante
certo período, sob o regímen estadual da Guanabara, e não mais sob o anterior
estatuto distrital, que terminaria em 21 de abril de 1960. O assunto foi levado à
Procuradoria-Geral, em consulta, e distribuído a mim. Procedi então a um estudo
mais extenso do que seria necessário, porque se destinava o parecer a ser
apresentado aos vereadores, muitos deles não versados na especialidade.
Concluí o parecer (deixando de lado pormenores que aqui não interessam), do
seguinte modo:
“(...) parece perfeitamente admissível que o legislador federal,
mediante emenda aditiva à Lei Orgânica do Distrito Federal (Constituição,
art. 25), estabeleça normas transitórias pertinentes à transformação do
Distrito Federal em Estado, inclusive no que respeita à execução
orçamentária. A Lei Orgânica está para o Distrito Federal como a
Constituição para os Estados. Nada mais natural, portanto, que, na
ausência de normas constitucionais específicas, nela se incluam as
disposições transitórias necessárias à mais perfeita execução do preceito
imperativo que determina a transformação do Distrito Federal em
Estado.”
O parecer é de 11 de novembro de 1959 e foi algum tempo depois publicado
na Revista Forense. Naquele tempo, ainda não havia o agudo problema político
que se desdobra perante nós, não se definira ainda a luta política que se desenca-
deou no Distrito Federal no ano seguinte. A questão tinha, porém, de ser exami-
nada, porque já naquela altura se desenhava no Congresso o impasse que tornou
impossível a emenda constitucional destinada a regular a transformação do Dis-
trito Federal em Estado. Peço, Senhores Ministros, que me relevem a reminis-
cência, porque ela é que me incita a cumprir meu dever de coerência.
Ouvi com a mais cordial atenção os argumentos do eminente Ministro Pedro
Chaves. Se S. Exa. me tivesse abalado a convicção, com a maior lealdade eu
repudiaria as conclusões daquele parecer e me renderia ao raciocínio de S. Exa.
A meu ver, data venia, o eminente Procurador-Geral da República,
desenvolvendo oralmente seus argumentos, colocou a questão nos seus devidos
termos. Não se trata aqui, penso eu, de um problema de prevalência da lei federal
sobre a Constituição estadual. O problema que temos de enfrentar é o da preva-
lência de princípios da Constituição Federal sobre a Constituição do Estado. Que
princípios serão esses? Aqui está o ponto essencial da argumentação.

382
Ministro Victor Nunes

Invoca-se, em sentido contrário, o art. 18 da Constituição Federal: “Cada


Estado se regerá pela Constituição e pelas leis que adotar, observados os princí-
pios estabelecidos nesta Constituição”. E o eminente professor Alcino Salazar
indagou da tribuna: “Quais os textos da Constituição que foram violados?”.
Pondero, em primeiro lugar, que a Constituição, no art. 18, não alude a texto,
alude a princípios, conceito mais amplo. E no § 1º esclarece: “Aos Estados se
reservam todos os poderes que, implícita ou explicitamente, não lhes sejam vedados
por esta Constituição”. De tudo se conclui que não são textos que estão em jogo,
mas princípios, e também princípios implícitos, não somente os expressos.
Vejamos qual o princípio básico do direito constitucional federal que foi
violado pela Assembléia Legislativa, funcionando como Poder Constituinte do
Estado da Guanabara, ao interromper, em pleno curso, mandatos políticos que
haviam sido conferidos regularmente. Esse princípio pode ser enunciado como o
da intangibilidade do mandato político e resulta não apenas de um, mas de vários
preceitos da Constituição Federal. Resulta, em primeiro lugar, do art. 1º, segunda
parte, mencionado na impetração e acentuado pelo eminente Procurador-Geral.
Segundo esse princípio, “todo poder emana do povo”, e dele resulta que o poder
emanado do povo é intangível, há de ser respeitado, não pode ser violado.
Essa conclusão não poderia ser acoimada de arbitrária. Ela está no art. 7º,
VII, a, da Constituição, que constrange os Estados a se organizarem na forma de
Governo republicano representativo. Se a Constituição tivesse dito apenas Go-
verno republicano, já teria dito tudo. Mas, tendo em vista debates travados aqui
e alhures, não quis o constituinte deixar a respeito a mínima dúvida e escreveu:
“Governo republicano representativo”.
Vê-se, pois, que o princípio cardeal a ser observado pelos Estados é o da
representação política, isto é, não se podem organizar sem representação política
e não se podem organizar desrespeitando a representação política.
Nosso regímen, a respeito deste ponto, é mais completo do que a matriz.
Perdoem-me se vou fazer referência ao direito norte-americano. Faço-o por ter
aprendido na escola que copiamos, no fundamental, a Constituição norte-ameri-
cana, que tem mais de 170 anos de experiência vivida, e é natural que nos possa
fornecer alguma inspiração.
Na Constituição americana, onde existe também o dever dos Estados de
se conformarem com a forma republicana de governo, a Corte Suprema não
entra na apreciação da conformidade das Constituições estaduais com esse prin-
cípio. Considera essa matéria exclusivamente política, da alçada dos poderes
políticos, isto é, do Presidente e do Congresso dos Estados Unidos.

383
Memória Jurisprudencial

Nossa Constituição, que já resultou de elaboração doutrinária mais desen-


volvida, confiou ao Supremo Tribunal a tarefa de verificar, em cada caso, a obe-
diência das Constituições estaduais aos princípios cardeais de regime. Mas se ela
fosse tão omissa como a norte-americana, qual seria a conseqüência? É que o
árbitro desta conformidade seria a lei federal.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: É que os sistemas são diferentes, como V.
Exa. mesmo declara.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Minha argumentação vai mais além. Se V.
Exa. me fizer a honra de acompanhar meu raciocínio, verá que não fico por aqui.
Estou apenas ponderando que, se nossa Constituição fosse mais omissa e tivés-
semos de remontar às origens do regímen, veríamos que o árbitro da conformidade
das Constituições estaduais com a forma republicana de Governo seria o
Congresso Nacional.
Já temos, portanto, Senhores Ministros, dois dispositivos da Constituição,
dos quais resulta a intangibilidade dos mandatos: aquele segundo o qual todo o
poder emana do povo e esse outro que compele os Estados a se organizarem com
observância do regímen representativo, em cuja base está o mandato político.
Além disso, em duas oportunidades concretas, a Constituição previu o pro-
blema da transformação política de unidades da Federação e, em ambas, mandou
respeitar integralmente os mandatos existentes à época da transformação.
A primeira está nos arts. 3º, § 2º, e 11 das Disposições Transitórias, que
mandaram eleger governadores estaduais antes de elaboradas as Constituições
estaduais, acrescentando que o mandato desses governadores terminaria na data
em que findasse o do Presidente da República. Portanto, subtraiu às Constituin-
tes estaduais o poder de limitar o mandato do governador eleito antes da Consti-
tuinte. Primeira aplicação concreta do princípio a que inicialmente aludimos.
A segunda aplicação, esta recentíssima, vem na emenda constitucional
que implantou no país o parlamentarismo, fundamental mudança para um regime
em cuja base está a possibilidade da dissolução da Câmara, para um regime que
admite esta exceção importantíssima ao princípio da intangibilidade dos mandatos.
E o que fez essa emenda constitucional? Foi expressa no art. 24:
“As Constituições dos Estados adaptar-se-ão ao sistema parlamentar
de Governo, no prazo que a lei fixar, e que não poderá ser anterior ao término
do mandato dos atuais governadores. Ficam respeitados, igualmente, até o
seu término, os demais mandatos federais, estaduais e municipais”.
Portanto, no próprio momento em que instituía um regime, que não tem
pela inviolabilidade do mandato político a mesma veneração do regime
presidencialista, essa emenda constitucional mandou respeito ao princípio da so-
berania popular, princípio básico do regime representativo.

384
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Ary Franco: Que o mandato é intocável, isso foi defendido
em artigo, que guardo, daquele que mais se pode apavorar com a incorporação da
Câmara dos Vereadores à Assembléia Legislativa, o Senhor Carlos Lacerda.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Meu caro mestre, se não mencionei aquele
artigo foi por estar tratando apenas do aspecto jurídico do problema e o autor não
é constitucionalista. O subsídio é realmente muito valioso, desde que se desloque
o debate do plano jurídico para o político.
O Sr. Ministro Ary Franco: É um condutor da opinião pública. Perdoe-me
pelo aparte.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. trouxe esclarecimento da maior sig-
nificação, suprindo omissão do meu voto.
O art. 26 da Constituição Federal — veja-se que ainda não toquei na Lei
San Thiago Dantas, permanecendo exclusivamente no plano da Constituição
Federal — dispôs que o Distrito Federal teria Câmara eleita pelo povo com fun-
ções legislativas.
Portanto, a Câmara que existia no antigo Distrito Federal, no momento em
que a Constituição estadual foi promulgada, não era uma Câmara subalterna,
uma Câmara cujo poder se tivesse originado de lei ordinária. Era uma Câmara
que a própria Constituição Federal definia como Assembléia Legislativa, Câmara
a que a Constituição diretamente atribuiu poderes legislativos.
A Lei de Organização do Distrito Federal, prevista no art. 25 da Constitui-
ção, marcou para essa Câmara a investidura de quatro anos, e nesta conformidade
é que foi eleita. A investidura de quatro anos coincidia com a marcada na Emenda
Constitucional n. 2, que dava autonomia política ao antigo Distrito Federal.
Resulta, portanto, dos dispositivos analisados que o mandato de quatro
anos da Câmara do Distrito Federal filiava-se direta e necessariamente à própria
Constituição Federal, seja porque o art. 26 lhe deu atribuições legislativas, com o
prazo de quatro anos, na forma da lei prevista no art. 25, seja porque a Emenda
Constitucional n. 2 reproduziu o mesmo prazo de quatro anos.
Era esta a situação quando sobreveio a Lei San Thiago Dantas. Essa lei
regulou a transformação do Distrito Federal em Estado, tendo em vista a compe-
tência que ao legislador federal atribuiu o citado art. 25. Se ao legislador federal
competia organizar o Distrito Federal, na ausência de qualquer disposição consti-
tucional em contrário, era ele o único competente para regular a transição do
Distrito Federal para outra forma política.
Mas o legislador encontrou um fato real intransponível, que era a existência
de mandatos legítimos em curso. Então, o que fez a lei? Determinou, por autori-
dade própria, que esses mandatos subsistissem? Não. Limitou-se a reconhecer e
proclamar que eles subsistiam (aqui está minha pequena divergência, quanto ao
enunciado, com o eminente Procurador-Geral).

385
Memória Jurisprudencial

A Lei San Thiago Dantas nada inovou a respeito, é uma lei puramente
declaratória de uma situação preexistente. Ela explicitou o que resultaria da pura
interpretação da Constituição: havia mandatos em curso, e a lei dispôs que esses
mandatos seriam respeitados. Não podem ser cassados.
A lei disse aquilo que um jurista podia dizer em um parecer, e o parecer seria
tão válido quanto a lei, porque um e outra interpretam a Constituição Federal.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. entende que haveria coincidência de
atribuições entre o mandato de vereador e o de deputado estadual?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Ministro Luiz Gallotti, vou considerar
esse ponto ao tratar de parte da Lei San Thiago Dantas, que deixava à Constituição
estadual regular as funções da Câmara dos Vereadores.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Também entendo que o mandato é intocável e
vou sustentar isso no meu voto. Mas não é possível que, a pretexto da
intocabilidade do mandato, se transforme, por lei ordinária, o titular de um manda-
to em titular de outro, diverso. Não é possível que uma lei possa eleger quem não
foi eleito.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhor Ministro Luiz Gallotti, se do desenvol-
vimento de meu voto resulta que a Lei San Thiago Dantas nada determinou, no
ponto em debate, sendo apenas declaratória de uma situação preexistente, já está
em parte respondida a objeção de V. Exa. Refiro-me à intocabilidade do mandato,
com funções legislativas, que tinham esses representantes. O que dispôs a Lei
San Thiago Dantas? Passo a ler:
“Os membros da Assembléia Constituinte e os atuais vereadores
integrarão, a partir da promulgação da Constituição e na forma que esta
estabelecer, a Assembléia Legislativa do Estado da Guanabara, respeita-
da a situação dos respectivos mandatos.”
O respeito a esse mandato só não seria uma conseqüência necessária da
Constituição Federal na hipótese a que aludiu o eminente Procurador-Geral, se
eles tivessem terminado antes, como havia sustentado tempos atrás o Tribunal
Regional Eleitoral.
Argumentou-se, porém, e com muita razão, que a decisão do Tribunal Re-
gional Eleitoral, proferida em consulta, não era definitiva, nem vinculativa. Todos
conhecemos o célebre precedente do Dr. Ademar de Barros, que depois de se
candidatar a senador pelo então Distrito Federal, baseado em consulta ao Tribunal
Regional, teve sua inscrição cancelada por deliberação posterior.
O Sr. Ministro Ary Franco: Do Tribunal Regional Eleitoral, mantida pelo
Tribunal Superior Eleitoral.

386
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Nas últimas quarenta e oito horas, foi inscrito
pelo partido outro candidato para concorrer às eleições.
Voltando ao meu raciocínio, momentaneamente abandonado: desde que o
mandato anterior era de quatro anos, tinha de ser respeitado, a menos, como
disse eu, que houvesse terminado.
Alegou-se da tribuna, e foi agora lembrado pelo eminente Ministro Luiz
Gallotti, que o mandato teria terminado pela transformação do Distrito Federal
em Estado. Não teria terminado ratione temporis, mas ratione materiae, porque
teria deixado de existir o órgão legislativo distrital.
A esse respeito, quero relembrar pareceres de alguns eminentes juristas,
que por volta de 1959 apreciaram esse mesmo problema e sustentaram que a
transformação do Distrito Federal em Estado não criava uma entidade política
totalmente nova.
O Sr. Ministro Ary Franco: Entre eles, Temistocles Cavalcanti.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Entre eles, Temistocles Cavalcanti, ilustre
deputado à Assembléia Constituinte.
O Sr. Ministro Ary Franco: Tenho em mãos a coleção desses pareceres.
O Sr. Ministro Victor Nunes: E quem mais aprofundou esses estudos, sob o
aspecto que ora considero, foi o professor Francisco Campos. O que ocorreu —
disse ele — foi simples transformação de uma mesma entidade política, sediada
em determinado território e governada por um acervo de leis e de atos adminis-
trativos de toda a natureza. Essa entidade se transformou, perdeu o estatuto
distrital e adquiriu o estatuto estadual, mas não se extinguiu uma unidade política
para dar lugar a outra. Por isso subsiste, em perfeita continuidade, o único poder
representativo que lá existia e que era a então Câmara de Vereadores, na realidade
Assembléia Legislativa, pelos poderes de que se achava investida.
Num regime como o nosso, que erigiu o mandato político em seu dogma
fundamental, quando uma unidade política se transforma, passando do estatuto
distrital para o estadual, não é possível deixar de respeitar o único órgão repre-
sentativo que nela funcione.
O Sr. Ministro Ary Franco: Câmara que legislava em caráter estadual.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Em matéria de organização administrativa e
judiciária, quem legislava era o Congresso Nacional. As atribuições da Câmara
de Vereadores eram mais as da órbita municipal. A situação do Distrito Federal
era sui generis. Em alguns pontos, ele se equiparava aos Estados. Por exemplo,
tinha um Tribunal de Justiça, rigorosamente estadual, e uma Câmara de Verea-
dores, mais municipal do que estadual. Essa a situação. Se essa Câmara fosse
estadual, legislaria sobre a organização administrativa e judiciária. Temos de ver
a realidade.

387
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Senhores Ministros, o argumento que acaba


de ser desenvolvido, em aparte, pelo eminente Ministro Luiz Gallotti, é um argu-
mento bifronte (não vai nisto qualquer sentido pejorativo, porque uso a palavra no
exato sentido de argumento de dois gumes). Quando estava reunida a Assem-
bléia Constituinte estadual, era muito discutível que se pudesse abolir os municípios
no novo Estado, tanto assim que a própria Constituição estadual previu a sua
possível criação, admitindo duas possibilidades: haver ou não haver municípios.
Pois bem, os mandatos em curso, que correspondiam ao estatuto jurídico
do Distrito Federal, eram mandatos de natureza ao mesmo tempo estadual e
municipal, haja vista que os tributos estaduais e municipais eram todos da compe-
tência do então Distrito Federal.
Se, no momento em que a Constituição foi elaborada, era muito discutível
que se pudesse suprimir os municípios (e a meu ver não podia), sob esse aspecto
era pelo menos muito discutível que se pudesse extinguir o mandato de uma
assembléia que também tinha funções edilícias.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: V. Exa. conclui que poderia ser mantida essa
Câmara, como Câmara Municipal, na hipótese de serem criados municípios. Até
aí talvez pudéssemos concordar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É uma das possibilidades que admito, apoiado
na autoridade do professor San Thiago Dantas, que vou citar dentro em pouco.
Veio, depois, a Emenda Constitucional n. 3, que regulou diversos assuntos
relacionados com a mudança da capital. Essa emenda constitucional é que pôs
termo à polêmica, permitindo a existência do Estado da Guanabara sem municí-
pio. Mas essa emenda constitucional é posterior à Constituição do Estado da
Guanabara.
Portanto, no momento em que a Constituição foi promulgada, a Assem-
bléia não poderia, legitimamente, cassar mandatos dos componentes de uma Câ-
mara que tinha poderes edilícios, porque naquele momento não seria possível
suprimir os municípios do Estado da Guanabara, o que só foi permitido por lei
constitucional federal posterior.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Contra preceito constitucional federal, não há
como invocar direito adquirido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não resta dúvida. Estou inteiramente de
acordo nesse ponto, mas estamos examinando se a Lei San Thiago Dantas
exorbitou da Constituição Federal. Entendo que não podia ter exorbitado, em
confronto com emenda constitucional que, ao tempo, nem sequer tinha sido pro-
posta, a Emenda Constitucional n. 3. E a Lei San Thiago Dantas remeteu à Cons-
tituição estadual a forma pela qual seria regulada a continuidade dos mandatos

388
Ministro Victor Nunes

dos vereadores. Eis aí a grande sabedoria da Lei San Thiago Dantas, porque se
limitou, volto a insistir, a explicitar, a declarar uma situação preexistente. Essa lei
nada criou, no ponto que nos interessa, apenas respeitou mandatos em curso e
disse: a Assembléia Constituinte, no uso de seus legítimos poderes, determinará
de que forma esses mandatos vão subsistir.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mandava incorporar os vereadores à Assembléia
Legislativa? V. Exa. considera razoável serem incorporados à Assembléia estadual
vereadores que tinham sobretudo atribuições próprias da órbita municipal?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Existe aí uma questão de forma. A Lei San
Thiago Dantas não poderia antecipar-se ao Constituinte estadual nesse ponto.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não é isso o que os impetrantes pedem. Eles
não pretendem ser tidos como integrantes de uma Câmara Municipal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou desenvolvendo o assunto dentro da
lógica do meu voto, examinando a Lei San Thiago Dantas no conjunto das institui-
ções existentes. A Lei San Thiago Dantas, no ponto que nos interessa, repito,
nada criou, limitou-se a declarar uma situação preexistente. Apenas disse isso:
aqui estão mandatos conferidos legitimamente, mandatos em curso, que não po-
dem ser cassados, que têm de ser respeitados, para exercer que espécie de fun-
ções? Responde a segunda parte do mesmo dispositivo legal: aquelas funções
que forem definidas pela Constituição estadual. E a lei procedeu, a meu ver,
muito corretamente.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas não disse assim, admitiu que os mandatos
dos Vereadores continuassem na forma que a Assembléia entendesse, constituindo
um todo; não disse nas funções que ela entendesse.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas V. Exa. não deve ser tão rigoroso na
apreciação de uma só palavra da Lei San Thiago Dantas. V. Exa está dando
valor decisivo à palavra “incorporar”, deixando de lado a parte fundamental, que
é a própria Constituição; parte substancial, porque essa é que continha as
virtualidades correspondentes às diversas interpretações que viessem a predominar
na Assembléia Constituinte, ao regular o assunto.
Mas o que fez a Assembléia Constituinte? Por motivos de ordem política, e
não jurídica, nada dispôs a respeito. Pensando a maioria da Assembléia que com
a sua omissão cassava os mandatos, nada dispôs a respeito. Mas os mandatos
não podiam ser cassados, como não podem. Por isso, a incorporação, agora, tem
de se fazer pura e simplesmente. E por quê? Por culpa da própria Assembléia
Constituinte que não definiu quais seriam as novas atribuições daqueles mandatá-
rios, e essas atribuições eram indiscutivelmente legislativas, dizendo respeito a
toda área política e territorial, que é hoje o Estado da Guanabara. Não há a menor

389
Memória Jurisprudencial

incongruência em que aquelas funções legislativas correspondam precisamente


às funções legislativas do Estado da Guanabara, tanto mais que a Assembléia
Constituinte, podendo regular o assunto, nada dispôs em contrário.
Se a Constituinte houvesse dito que os mandatos ficariam limitados a tais
ou quais funções (é uma das hipóteses previstas pelo professor San Thiago
Dantas, em discurso publicado no Diário do Congresso, do dia 9 de março de
1961, e transcrito no memorial que nos foi distribuído pelo ilustre advogado Dr.
Mozart Lago), se a Constituinte houvesse procedido desse modo, eu o considera-
ria perfeitamente legítimo, porque teria respeitado os mandatos, regulando o seu
exercício no uso de legítimas atribuições de Assembléia Constituinte. Aqueles
mandatos teriam o conteúdo que a Constituição lhes quisesse atribuir na organi-
zação do nosso Estado. Mas a Assembléia, o que não podia era suprimir, como
disse o eminente Ministro Vilas Boas, o essencial dos mandatos, que era a
investidura política, emanada do povo, investidura garantida pela Constituição
Federal.
Pedindo desculpa aos eminentes colegas pela extensão do meu voto, quero
apenas figurar uma hipótese. Sei que não é de bom tom, nas discussões sobre
interpretação de lei, figurar hipóteses que não se verificaram. Os autores formu-
lam freqüentemente essa advertência, e um dos eminentes colegas já me chamou
a atenção para isso. Mas às vezes, a figuração de hipótese que não ocorreu ajuda
a clarear o pensamento de quem a exprime. É nesse sentido que desejo formular
uma hipótese.
Suponhamos que a Emenda Constitucional n. 2 tivesse realmente funcio-
nado e se tivesse eleito, à época, o prefeito do Distrito Federal por 4 anos, em
regime de autonomia, teria que ser respeitado, da mesma maneira que a Consti-
tuição Federal mandou respeitar, o mandato dos governadores eleitos antes de
18-9-1945. O símile parece-me perfeito para justificar a interpretação analógica;
não prevista expressamente a sobrevivência do mandato do prefeito, aplicar-se-ia o
art. 3º, § 2º, das Disposições Transitórias, que mandou respeitar o mandato dos
governadores.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Esse Prefeito teria sido eleito Prefeito ou
Governador?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se a questão tivesse sido prevista especifica-
mente, não a estaríamos discutindo. Porque não foi prevista é que a estou figu-
rando: se o Prefeito fosse eleito, em regime de autonomia, e o Distrito Federal se
transformasse em Estado, essa transformação, no momento em que fosse feita,
já encontraria um Governador.

390
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Ele teria de esperar que se criasse um Muni-
cípio para poder continuar Prefeito.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Distrito Federal é mais do que Município,
é Estado e Município ao mesmo tempo. O antigo Distrito Federal, sob alguns
aspectos, era menos que os Estados, porque sua autonomia não era tão extensa
como a estadual. Sob outros aspectos, o Distrito Federal era mais que os Estados,
porque tinha competência tributária e legislativa em toda a esfera dos Municípios.
Essa competência de decretar impostos privativos dos Municípios e de expedir
leis de caráter edilício não a possuem os Estados.
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Essa competência é exatamente por-
que é menos do que o Estado.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Dois pontos existem em que, indubitavelmente,
o Distrito Federal era menos que um Estado: ter prefeito e não governador, ter
Câmara de Vereadores e não de Deputados.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Distrito Federal tinha menos autonomia.
Em outras palavras, o Distrito Federal tinha autonomia limitada, e o Estado tem
autonomia extensa. Mas se entrasse em vigor a Emenda n. 2, o Distrito Federal
teria autonomia quase tão extensa quanto a dos Estados.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Mas não passaria a Estado.
O Sr. Ministro Victor Nunes: E duvido que alguém sustentasse, de alma
tranqüila, que o prefeito que houvesse sido eleito para um período de 4 anos para
governar o Distrito Federal autônomo, não tivesse direito de continuar como
governador do Estado da Guanabara, também autônomo.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Alma tranqüila para sustentar que um prefeito
se transmuda em governador sem ter sido eleito governador?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Seria um prefeito do Distrito Federal em
regime de autonomia, não um prefeito qualquer; seria um prefeito que acumularia
as funções próprias dos governadores e também as dos prefeitos. Só se chamaria
prefeito por amor à tradição brasileira, mas poderia ter outro nome qualquer,
poderia ser chamado governador.
Peço muitas desculpas aos prezados colegas e, particularmente, peço
vênia ao eminente Ministro Pedro Chaves para divergir de seu magnífico voto,
dando provimento ao recurso.

391
Memória Jurisprudencial

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 11.687 — MG

Pelo art. 18, § 1º, da Constituição, os Estados têm o poder


de censura dos espetáculos e diversões públicas.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, o filme Os Cafajestes teve
sua exibição vedada em Minas Gerais, por ordem do Sr. Governador, apesar de
haver sido “liberado para todo o território nacional” pelo Departamento Federal
de Segurança Pública, que o declarou “impróprio para menores até dezoito anos
e para a televisão”.
As Câmaras Civis Reunidas do Tribunal de Justiça do Estado (fl. 65), com
quatro votos vencidos, negaram a segurança impetrada por Produções Cinema-
tográficas Herbert Richers S.A. e pela Empresa Nacional de Cinemas e Diver-
sões Ltda., e o eminente Ministro Hahnemann Guimarães, na primeira assentada
deste julgamento, votou pelo não-provimento do recurso (lê o voto).
O que se discute é a competência para o exercício da censura cinemato-
gráfica, que se inclui na censura dos “espetáculos e diversões públicas”, faculta-
da pelo art. 141, § 5º, da Constituição Federal. O tema desdobra-se em dois
aspectos, o constitucional e o legal. Quanto ao primeiro, cuida-se de saber se a
União tem competência exclusiva ou concorrente para legislar sobre a censura
cinematográfica; quanto ao segundo, se a legislação vigente outorgou ao Depar-
tamento Federal de Segurança Pública, e em que extensão, o exercício da cen-
sura federal e, ainda, se existe legislação do Estado de Minas conferindo tais
poderes à Administração.
A interdição do filme é defendida, neste processo, em um parecer do Pro-
fessor Caio Mário da Silva Pereira (Estado de Minas, 23-8-62) (fl.10) e nas
informações do Sr. Governador (fl. 30). Essa argumentação, data venia, não é
de todo coerente: ora sustenta que o poder de polícia, incluindo a censura cinema-
tográfica, é privativo do Estado; ora admite que possa ser exercido pela União
quanto a certos problemas nacionais envolvidos; ora submete a censura federal à
revisão das autoridades estaduais, tendo em vista as “suscetibilidades morais” de
cada região.
O eminente Ministro Relator, apoiando o acórdão do Tribunal de Justiça,
tomou a posição mais radical, negando a competência da União. Disse S. Exa.,
em seu douto voto, que, “pelo art. 18, § 1º, da Constituição, ficou reservado aos
Estados o poder de censura dos espetáculos e diversões públicas”. Em resposta
a um aparte, esclareceu que a censura da polícia federal fica circunscrita ao
Distrito Federal e aos Territórios Federais.

392
Ministro Victor Nunes

Em pólo oposto, afirmando a competência federal exclusiva, colocaram-se


o Ministério Público estadual, pela palavra do Dr. Geraldo Spyer Prates (fl. 44), e
a Procuradoria-Geral da República, pela voz do Dr. Cândido de Oliveira Neto (fl.
110). De igual modo decidiu, recentemente, o Tribunal Federal de Recursos, por
quem falou o Sr. Ministro Oscar Saraiva, mantendo sentença do Dr. Hely Lopes
Meirelles (AgMS 31.719, 2-9-64).
Sem me filiar a essas conclusões radicais, procurarei demonstrar que a
matéria recai na competência concorrente da União, dos Estados e dos Muni-
cípios: desde que haja legislação sobre a matéria, deverá prevalecer a censura
federal sobre a estadual, e esta sobre a municipal.
O cinema não é apenas diversão, mas cada vez mais um meio de expressão
artística e do pensamento, e também instrumento de propaganda comercial e
política. Por envolver a liberdade de pensamento, discute-se, nos Estados Unidos,
a constitucionalidade da censura prévia dos filmes (Zechariah Chafee Jr., Free
Speech in the United States, 1954, p. 540). Afirma Douglas, com a autoridade
da sua cátedra na Corte Suprema: “Não há lugar para a censura de qualquer
meio de expressão em nossa sociedade. A censura é hostil à Primeira Emenda”
(The Right of the People, 2ª ed., Pyramid, 1958, p. 46). Entretanto, a Corte
Suprema admitiu a legitimidade da censura prévia do cinema, embora com ex-
pressivos votos vencidos (Times Film Corp. v. City of Chicago, 365 U.S. 43).
Entre nós, esse aspecto do problema, pelo consenso até agora geral, está
fora de controvérsia, em face do que dispõe a Constituição no art. 141, § 5º, sobre
a censura a espetáculos e diversões públicas.
Reconheço, como alegou o Estado de Minas Gerais, que esse dispositivo
da Constituição não tem por finalidade específica estabelecer uma regra de
competência, de onde emanasse a exclusividade da competência federal. O
dispositivo, incluído no capítulo dos direitos e garantias, opõe uma restrição a
esses direitos, remetendo o problema da competência para as regras pertinentes
da Constituição. Mas não deixa de pôr em relevo, pela sua repercussão sobre os
direitos individuais, o interesse nacional — e até universal — da matéria, o que há
de influir na interpretação das cláusulas sobre competência.
Procuraremos demonstrar, por isso, em primeiro lugar, que não está excluída
a competência federal. Somos advertidos, desde logo, nesse sentido, por uma longa
prática constitucional, o que é muito valioso na interpretação da Carta Política,
segundo o ensinamento de Carlos Maximiliano (Comentários, 1948, 1/129). Ele
mesmo pondera, entretanto, que a prática constitucional não é decisiva, e quanto
ao cinema, além de ser criação moderna, a sua poderosa influência social e polí-
tica é um aperfeiçoamento dos nossos dias.

393
Memória Jurisprudencial

Por tais circunstâncias, a censura cinematográfica federal poderia ser, no


Brasil, como se afirmou nos autos, um episódio de centralismo autoritário do
regime de 1937, contra o qual reagiu a Constituição de 1946, restaurando a tradi-
ção de 1934. Veremos, porém, no desenvolvimento deste voto, que assim não é.
O Governo judiciarista do Ministro José Linhares, que, com a deposição de Getúlio
Vargas, desmontou os mais sólidos pilares do Estado Novo, não hesitou em man-
ter a censura cinematográfica federal. E nos Estados Unidos, cuja tradição de-
mocrática e estadualista não pode ser posta em dúvida, um valoroso adversário
da censura do cinema, como é Chafee, prefere a sua federalização, se essa
restrição aos direitos individuais tiver de ser mantida: “Se alguma forma de
censura legal for necessária, uma repartição centralizada federal (a centralized
federal board) evitaria a multiplicidade atual de autoridades estaduais e mu-
nicipais” (ob. cit., p. 541).
Sustenta-se, nestes autos, a incompetência da União, com base na cláusula
da reserva de poderes (art. 18, § 1º): a censura cinematográfica emana do poder
de polícia, e este, não tendo sido confiado privativamente à União, ficou reservado
aos Estados (art. 18, § 1º). Mas o próprio Estado de Minas, que insiste no argu-
mento, receia levá-lo às últimas conseqüências e admite, um tanto contraditoria-
mente, a legitimidade da censura federal, sob certos aspectos.
Disse o Professor Caio Mário: “Se a União nada tivesse disposto, caso
seria de se considerar o Estado com o poder de ditar normas e baixar provimen-
tos, sem competição. Mas, havendo o Governo Federal voltado suas vistas para o
assunto, sem esgotar a competência de censurar, porque, não sendo de sua
atribuição privativa, prevalece a reserva para o Estado, essa atribuição lhe tem
forçosamente de ser reconhecida. Este sistema é bom. O Governo Federal tem
as suas vistas voltadas para problemas ligados com a segurança nacional, para a
harmonia entre os poderes, para a tranqüilidade entre as unidades federadas. E,
então, levando em consideração esses fatores e esses reclamos, exerce a cen-
sura num plano nacional”.
Prossegue ele, sustentando que, quanto às “suscetibilidades morais”, devem
ter primazia as “sensibilidades locais”, de que é intérprete o Estado. Seu parecer,
aliás, não deixou de ter uma nota política, porque, admitindo que, “por desvio de
perspectiva”, viesse a ser impetrado e obtido mandado de segurança, o Governa-
dor ficaria “prestigiado (...) pela sua atitude de intransigente defensor da
moralidade pública”. Mas não estamos discutindo aqui a moralidade ou imorali-
dade do filme, e sim um problema de competência constitucional, de que resultam
conseqüências de muita relevância para toda a vida da federação.
As informações do Sr. Governador, por sua vez, não deixam de admitir
uma competência federal limitada (fl. 38): “Nunca é demais repetir, como

394
Ministro Victor Nunes

dedução lógica da regra doutrinária, que, se a película e a peça afetam o interes-


se nacional (segurança pública, paz política, etc.), a censura é federal; se diz
respeito à moralidade, aos bons costumes, etc., a censura é feita pelos órgãos
estaduais”. O redator das informações foi levado a essa concessão ao Governo
Federal porque, recorrendo a autores estrangeiros, neles não encontrou a afirma-
ção de que o poder de polícia pertença, exclusivamente, aos Estados. Assim,
Gosnell and Holland (State and Local Government, p. 71) atestam que “o governo
federal compartilha do poder de polícia, embora o poder de polícia federal não
seja tão amplo como o dos Estados”; não sendo exclusivamente nacional, “pode
ser classificado como (poder) concorrente, a ser exercido pelos Estados em grau
limitado (to a limited degree). Para Bielsa (Derecho Administrativo 4/820), “se
o espetáculo puder afetar as relações internacionais, o Governo nacional tem
atribuição (dever) para impedi-lo”. Essas citações, repito, eu as recolho, tais
quais, das próprias informações do Sr. Governador.
Se recorremos ao velho, mas autorizado Ernst Freund (Police Power,
1904), ali encontraremos a communis opinio de que, nem nos Estados Unidos (a
federação que, dentre todas, mais extensa competência reconhece aos Estados)
o poder de polícia se considera poder exclusivamente estadual: “Na distribuição
dos poderes governamentais pela Constituição Federal, a maior parte (bulk) do
poder de polícia permanece com os Estados” (p. 62). E a União, continua Freund,
exerce a sua competência, no campo da polícia (entendida, amplamente, como
restrição da liberdade e da propriedade no interesse do bem-estar público), através
de “legislação positiva”, que “se apóia nos poderes enumerados do Congresso”, ou
com medidas “preventivas”, “desde que as leis federais afastem as leis estaduais
com elas conflitantes” (loc. cit.).
Haja vista, acrescentamos nós, que uma drástica espécie de censura nos
Estados Unidos, não só quanto à segurança do país e das instituições e ao incita-
mento ao crime, como também para impedir a circulação de publicações obscenas,
é exercida pelo Governo Federal através do Departamento dos Correios, faculdade
renovada, em termos amplos, por uma lei de 1950 (Douglas, ob.cit., p. 47; Chafee,
ob. cit., pp. 299-301, 304-305).
Note-se, além disso, que o poder de polícia, no sentido mais antigo e euro-
peu da expressão, está intimamente vinculado ao direito penal. Nos Estados Uni-
dos, com exceções limitadas, o direito penal se inclui na competência legislativa
dos Estados, ao passo que no Brasil, desde a Constituição de 91, para só falar do
período federativo, tem pertencido, invariavelmente, à União. Castro Nunes ob-
serva que, entre nós, o poder de polícia, incluído entre os poderes remanescentes
dos Estados, tem “extensão mais reduzida (...) do que em outros países de orga-
nização federativa, onde a atribuição de legislar sobre direito substantivo não
tenha sido reservada à União” (As Constituições Estaduais, 1922, p. 17).

395
Memória Jurisprudencial

Pela razão indicada, a outras fontes de competência, como, por exemplo, a


de legislar sobre os correios, é que o direito constitucional norte-americano vai
filiar o poder federal de impedir a circulação de publicações obscenas em todo o
país. Recorre, assim, à doutrina dos poderes inerentes e implícitos da União.
Como observa Cáio Tácito, já em outro plano de considerações, “os conflitos
sociais, dia a dia mais agudos, (...) e os primeiros sintomas da crise econômica,
afinal desencadeada em 1929, vão fortalecendo o sentido intervencionista do
Estado, já então no plano federal. Firma-se um novo federal police power que
serve de vanguarda à futura reforma do New Deal (...)” (O Poder de Polícia e
seus Limites, na RDA 27/1, 7).
A doutrina dos poderes implícitos da União, embora menos útil na nossa
prática constitucional, porque quase sempre desnecessária, tem assento constitu-
cional expresso, já que o artigo 18, § 1º, nega aos Estados os poderes implicita-
mente confiados à União.
Alega-se (e o Sr. Ministro Hahnemann Guimarães prestigiou o argumento
com sua imensa autoridade) que a Constituição de 1937 dava à União, privativa-
mente, o poder de legislar sobre “o regime dos teatros e cinematógrafos” (art. 16,
XVIII), o que trazia para a esfera federal a censura do teatro e do cinema,
autorizada no artigo 122, 15, a. Como a primeira cláusula não foi reproduzida na
Constituição de 1946, concluem que a censura ficou reservada, com exclusividade,
aos Estados.
Data venia, da circunstância de não fazer a Constituição vigente referên-
cia específica a legislação sobre teatros e cinemas, só se pode inferir que a ma-
téria deixou de pertencer à competência exclusiva da União; não se pode con-
cluir que tenha sido passada, com exclusividade, aos Estados. O que fez a Cons-
tituição vigente foi situá-la na competência concorrente, uma vez que essa não se
esgota na enumeração do art. 6º da Constituição. O art. 6º deu competência
suplementar aos Estados em determinadas matérias que foram incluídas na com-
petência expressa da União, mas não excluiu, em termos absolutos, a competên-
cia concorrente no terreno dos poderes federais implícitos e dos poderes rema-
nescentes dos Estados. Já que uns e outros, pela própria natureza, não estão
definidos enumerativamente, há, entre eles, uma faixa de incerteza e controvérsia,
cabendo ao Supremo Tribunal, em última análise, a delimitação desses poderes,
sem excluir, portanto, a hipótese de concorrência.
Mas competência concorrente não pode significar, como quer o Estado de
Minas, que aos Estados seja permitido sobrepor a sua autoridade à da União.
Significa, ao contrário, que o poder da União prevalece, em caso de conflito,
sobre o dos Estados. Como diz a Constituição norte-americana, em cláusula que
Marshall desenvolveu com visão de estadista, as leis federais, promulgadas em
conformidade com a Constituição, formam the supreme law of the land. E

396
Ministro Victor Nunes

Madison já observava, em O Federalista (n. 44), que, se essa cláusula fosse


escrita às avessas, fazendo preponderar as leis estaduais sobre as federais, “o
mundo teria visto, pela primeira vez, um sistema de governo fundado na inversão
dos princípios fundamentais de qualquer governo (...), teria visto um monstro com
a cabeça sob a direção dos seus membros.”
Em caso recente (1963), a Corte Suprema dos Estados Unidos, citando
precedente, decidiu, por votação unânime, que a lei estadual e o poder de polícia,
a que recorrera o Governador do Estado de Missouri para impedir a greve dos
empregados de uma empresa concessionária de serviço público, não podiam pre-
valecer sobre o que dispunha a lei federal, o National Laber Relations Act (Bus
Employees v. Missouri, 374 US 74; Bus Employees v. Wiconsin Board, 340 US
383). Note-se que, nos Estados Unidos, o Poder, que tem a União, de legislar
sobre direito do trabalho não resulta de cláusula específica, mas de sua compe-
tência em outras matérias, especialmente o comércio interestadual. É um dos
muitos casos, portanto, em que a Corte se defronta com o problema de discernir
entre os poderes implícitos da União e os remanescentes dos Estados.
Entre nós, para citar um escritor de uso correntio, recordemos estas pala-
vras de Araujo Castro: “no exercício dos poderes concorrentes (...), os Estados
podem legislar livremente, devendo prevalecer, todavia, em caso de conflito, a
legislação federal” (A Nova Constituição Brasileira, 1935, p. 95).
Convencido, de há muito, desse axioma do federalismo, não hesitei, ante-
riormente, em escrever que, “na competência concorrente (...), a supremacia
da lei federal é indiscutível” (Problemas de Direito Público, pp. 127, 326). E
isso foi reafirmado, em casos recentes, pelo Supremo Tribunal, quando decidiu
que a fiscalização sanitária federal dos derivados da carne se impunha às auto-
ridades locais, obstando nova fiscalização: entre outros, RMS 9.573, 17-10-62,
DJ de 13-12-62, p. 828; RMS 8.825, 29-10-62, DJ de 20-12-62, p. 853; RE
48.198, 26-3-63, DJ de 14-6-63, p. 394; RE 51.485, 23-4-63; RE 51.575, 16-8-
63, DJ de 31-10-63, p. 1092; RE 52.103, 30-8-63, DJ de 28-11-63, p. 1224. Em
tais casos, também se cuidava do poder de polícia, não de segurança ou dos
bons costumes, mas da polícia sanitária, que também se inclui no poder de
polícia.
Quanto ao poder expresso de legislar sobre o cinema e ao poder implícito
de legislar sobre a censura cinematográfica, não se pode negar que eles se
acham incluídos em vários itens da competência federal.
O cinema é, modernamente, um dos principais veículos de comunicação
do pensamento, além de ser um instrumento de poderosa eficácia na propaganda
comercial e política, sobretudo com o recente desenvolvimento da chamada pro-
paganda subliminal. Sob esse aspecto, não pode escapar da competência federal
para legislar sobre o direito substantivo (direito político, civil, comercial, penal —
art. 5º, XV, a).

397
Memória Jurisprudencial

É, além disso, incontestável a sua influência, benéfica ou perniciosa, no


plano das relações internacionais, na preparação de um ambiente de paz ou de
guerra, e tudo isso é matéria que recai na competência da União (art. 5º, I e II).
Por outro lado, sendo o cinema de inestimável valia no terreno da educa-
ção, pode também produzir efeitos deseducativos, e à União cabe legislar sobre
as bases e diretrizes da educação nacional (art. 5º, XV, d).
Tornou-se, ademais, em toda parte, uma grande indústria, que os governos
nacionais protegem de alguma forma, recaindo o cinema, nesse aspecto, sob a
competência federal para legislar sobre a produção e o consumo (art. 5º, XV, c).
Como grande indústria, o cinema não se destina ao consumo local, mas ao co-
mércio interestadual e exterior, matérias que também pertencem à competência
legislativa federal (art. 5º, XV, k).
No que toca mais de perto aos efeitos perniciosos, que é o campo próprio
da censura, lembramos, especialmente, além da competência federal para edi-
tar o direito penal, a de legislar sobre normas gerais de defesa e proteção da
saúde (art. 5º, XV, b). Saúde, aqui, não é apenas a física, mas igualmente a
saúde mental, em correspondência com a competência para legislar sobre edu-
cação.
No que respeita a filmes estrangeiros, além das implicações de política
internacional, não podemos esquecer a competência federal para “superintender,
em todo o território nacional, os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras”
(art. 5º, VII).
Nessa extensa lista de atribuições legislativas federais, que vão desde a paz
e a guerra até à educação e à proteção da saúde mental, não é possível deixar de
incluir, implicitamente, a censura cinematográfica, que com tais problemas se acha
intimamente relacionada. Se considerarmos que o princípio geral da competência
da União é a natureza nacional, e não apenas regional, da matéria, estará completa
a nossa demonstração, porque, nos dias de hoje, ninguém poderá negar que o
cinema é assunto, essencialmente, de interesse nacional.
É, sem dúvida, relevante o argumento das peculiaridades locais no que
respeita à moralidade pública e aos bons costumes. Mas, para preservar essas
particularidades, não é necessário negar a competência legislativa federal, o
que traria mais dano que benefício. Havemos de confiar em que o legislador
federal tenha o necessário discernimento para deixar uma certa margem da
apreciação das condições locais à discricionariedade dos Estados, ou mesmo
dos Municípios. Mas este não é um problema de direito constitucional, e sim de
polícia legislativa, cuja deliberação não cabe ao Judiciário, mas ao Congresso e
ao Presidente da República. Parece-me de graves conseqüências para o futuro

398
Ministro Victor Nunes

negarmos competência legislativa à União em matéria de interesse tão contun-


dentemente nacional, como é a censura cinematográfica. Na palavra de Castro
Nunes, “onde quer que se levante um interesse comum a mais de um Estado, aí
aparece a União, sobrepondo a sua autoridade aos interesses em conflito” (ob.
cit., p. 12).
O artigo 209, parágrafo único, I, da Constituição permite ao Presidente da
República, em caso de Estado de sítio, “determinar (...) a censura de correspon-
dência ou de publicidade, inclusive a de radiodifusão, cinema e teatro.” Argumen-
ta um especialista (J. Pereira, Censura, 1960) com esse artigo, para concluir que
somente no Estado de sítio a União Federal tem competência para a censura de
filmes cinematográficos. De um lado, a observação não me parece apropriada,
porque esse dispositivo não regula a competência da União em face dos Estados,
mas a competência do Presidente da República em face do Congresso. De outro,
o argumento prova demais, porque dele se teria de concluir que a Constituição
não permite, salvo em Estado de sítio, a censura prévia dos filmes cinematográfi-
cos. Colocada em pé de igualdade com a censura à imprensa, a do cinema estaria
vedada não apenas à União, mas também aos Estados e Municípios. Essa con-
clusão mais radical não seria totalmente destituída de lógica, mas não está em
causa, neste processo, a vedação constitucional da censura do cinema, nem essa
tese tem sido sustentada pelos comentadores da nossa Constituição.
Também observa, alhures, o autor citado que o Executivo e o Congresso já
reconheceram a inconstitucionalidade da censura federal ao cinema, porque foi
aprovado o veto presidencial ao Projeto 1.497/1956, que transferia aquela atribui-
ção da Polícia para o Ministério da Educação. O argumento não é de valor deci-
sivo por várias razões, entre as quais a de ter sido o veto fundado, igualmente, em
motivos de conveniência, e não apenas de inconstitucionalidade (Diário do Con-
gresso de 6-11-58). O projeto, aliás, passava a censura de um órgão federal para
outro, e o veto, que lhe foi oposto, não poderia ter o efeito de revogar a legislação
anterior, que confia a censura à Polícia. Posteriormente ao veto, numerosos de-
cretos federais, a que se refere o já mencionado voto do Sr. Ministro Oscar
Saraiva, dispuseram sobre a censura cinematográfica, como se verá mais adiante.
Esta circunstância revela, pelo menos, variação do entendimento, por parte do
Executivo, quanto ao problema constitucional.
Existe, ainda, Sr. Presidente, um aspecto da maior relevância. Estamos
vendo, neste processo, apenas um lado da questão, que é o filme liberado pela
censura federal e interditado pela estadual. Mas o mesmo problema constitucio-
nal surgiria na situação inversa, de uma película vedada pela censura federal.
Suponhamos um filme banido pela censura federal por comprometer gravemente
a ordem pública, a segurança das instituições ou as nossas relações internacio-
nais, a ser exibido, por deliberação dos Estados, em todo o território nacional, com

399
Memória Jurisprudencial

exceção apenas do Distrito Federal e dos Territórios. É tão merecedora de consi-


deração essa hipótese que o Estado de Minas, neste processo, não se animou a
negar, em tal caso, a competência federal. Mas a ressalva que fez só pode ser
constitucionalmente admitida, se entendermos que a censura cinematográfica é
matéria da competência da União, pelo menos concorrentemente, e não da com-
petência exclusiva dos Estados. E no terreno da competência concorrente, não
podemos deixar, em caso de conflito, de dar supremacia à lei federal sobre a
estadual.
Araujo Castro, além da citada opinião sobre exercício, em geral, dos poderes
concorrentes, tratou, especificamente, do poder de polícia (ob. cit., p. 96):
“Entre os poderes que competem à União e aos Estados deve ser
incluído o poder de polícia (police power), em virtude do qual se estabe-
lecem restrições aos direitos individuais em benefício da manutenção da
ordem, da moralidade, da saúde pública, da segurança, da propriedade e
bem-estar dos indivíduos.”
E mais adiante:
“Nem sempre é fácil determinar precisamente as raias da compe-
tência da União e dos Estados no tocante ao poder de polícia.
Joaquin Gonzalez limita-se a dizer que esse direito é inerente aos
governos que a Constituição Argentina estabelece (da Nação e das
Províncias) como uma conseqüência da missão de proteger a vida, a
propriedade, a segurança, a moralidade e a saúde dos habitantes.
Nos Estados Unidos, o poder de polícia é exercitado ordinariamente
pelos Estados, mas a União não está inibida de tomar medidas de caráter
geral em prol da integridade nacional.
O que é indispensável, porém, é que essas limitações tenham, tanto
quando possível, um caráter de generalidade, pois o poder de polícia só se
justifica quando as restrições aos direitos privados são praticamente
necessárias ao bem-estar de todos.
Entre nós, os Estados sofrem, quanto ao poder de polícia, a natural
restrição que dimana de sua incapacidade de legislar sobre direito civil,
comercial e criminal e da amplitude dos poderes conferidos privativamente à
União”.
Lembrou-se, nos autos, um precedente do Supremo Tribunal, da lavra do
eminente Ministro Candido Motta Filho (RMS 10.210, de 29-8-62, DJ de 18-11-62,
p. 653). Mas, nesse acórdão, não há uma única palavra que indique ter sido
focalizado o problema da prevalência da censura estadual sobre a federal. O que

400
Ministro Victor Nunes

se discutiu, pelo relatório e voto que mereceram a nossa aprovação unânime, foi
que a autoridade competente podia revogar a licença de exibição do filme ante-
riormente concedida. Peço vênia para transcrever essa passagem do voto do emi-
nente Relator: “Trata-se de uma autorização revista, porque, conforme se verifica
das informações, ela não estava conforme a lei e às exigências do poder de
polícia. Incensurável o acórdão impugnado, pelo que nego provimento ao recurso”.
Se estava em causa um problema de competência estadual, que nem sequer
foi referido na decisão, parece satisfatória a explicação dada no caso presente pelo
parecer da Procuradoria-Geral da República. Com a mudança da Capital para
Brasília, o Governo Federal delegou aos Estados, enquanto aqui não se organizas-
sem devidamente os seus serviços, o exercício da censura cinematográfica. Mas
essa delegação foi, mais tarde, revogada, conforme comunicação do Ministro da
Justiça aos governos estaduais, em dezembro de 1961 (publicação de fl. 18).
O citado precedente, portanto, não aproveita ao Estado de Minas, e em
sentido contrário pode ser rememorada a decisão do RMS 5.630, de 20-8-58,
Relator o eminente Ministro Lafayette de Andrada, onde se negou às autoridades
locais o poder de impedir anúncios comerciais nas telas de cinema, embora pu-
dessem exercer outras atribuições quanto à manutenção da ordem nas salas de
projeção. O que resulta desse acórdão é precisamente a tese da competência
concorrente para a censura dos espetáculos e diversões públicas.
Quero lembrar que o regulamento atualmente em vigor (Decreto 37.008/55,
art. 267) isenta de prévia censura “os filmes produzidos pelos órgãos oficiais”.
Algumas das repartições federais produzem filmes por força de lei. Tal é o caso
do Instituto Nacional de Cinema Educativo e da Agência Nacional.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): V. Exa. deve lembrar-se
que toda essa legislação se baseou na Constituição de 1937, onde se reservavam
à União poderes de censura. Estaria de acordo com V. Exa. se essa legislação
estivesse escoimada de vícios.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O poder de censura deixou de ser atribuído,
com exclusividade, à União. Aqui está a nossa divergência, falando com todo o
respeito. É só isso — a supressão da exclusividade — que resulta da Constituição
de 1946.
Como vinha dizendo, os filmes oficiais, produzidos pelo Governo da União,
por nenhuma lógica federativa poderiam ficar sujeitos à censura dos Estados. E
só poderão ficar isentos de censura estadual, se pertencer à União, pelo menos
concorrentemente, o poder de censurar os filmes cinematográficos.
Vejamos, agora, no pressuposto da competência concorrente, se há lei
federal instituindo a censura cinematográfica federal e em que extensão foi esse
poder conferido às autoridades federais. Em primeiro lugar, havemos de examinar
as leis, em seguida, os regulamentos.

401
Memória Jurisprudencial

Ao tempo do Estado Novo, não havia dúvida alguma, porque o Decreto-


Lei 1.949, de 30-12-39, atribuía ao Departamento de Imprensa e Propaganda a
censura federal, obrigatória para todo o território nacional. Transformando o
antigo DIP em Departamento Nacional de Informações (Decreto-Lei 7.582,
25-5-45), o Governo José Linhares passou, mais tarde, a censura cinematográfica
para o Departamento Federal de Segurança Pública, pelo Decreto-Lei 8.462, de
26-12-45, que alterou a organização desse departamento, estruturada no Decreto-
Lei 7.887, de 21-8-45. A Lei Linhares criou, na Polícia, o Serviço de Censura de
Diversões Públicas, “subordinado ao Chefe de Polícia” (art. 1º), que era o nosso
eminente colega, então Desembargador Ribeiro da Costa. Para esse serviço,
transferiu “as atribuições da Divisão de Cinema e Teatro do Departamento Nacio-
nal de Informações” (art. 2º), excetuando somente as alíneas a e b do art. 3º do
Decreto-Lei 5.077, de 29-12-39. Houve, nessa remissão, um evidente erro mate-
rial do redator da lei, porque a referência era, inequivocamente, ao art. 8º (não 3º)
do Decreto (não decreto-lei) 5.077, que tem a data mencionada. O decreto-lei
do mesmo número é de outra data e cuida de matéria diferente.
As atribuições, que não passaram para a Polícia, diziam respeito à produ-
ção de um jornal cinematográfico e ao incentivo da indústria cinematográfica
nacional. Entre as que passaram para o Serviço de Censura da Polícia, incluíam-
se as das letras c e d: “censurar os filmes, fornecendo certificado de aprovação”
e “proibir a exibição em público de filmes sem certificado de aprovação”. A
mesma Lei Linhares autorizou, no art. 7º, a expedição do Regulamento do Serviço
de Censura, mandando observar, até então, as instruções que fossem baixadas
pelo Chefe de Polícia.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Nossa legislação foi toda
elaborada sob o regime da Constituição de 1937.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, a meu ver, com a vênia de V. Exa., essa
legislação não foi revogada pela Constituição atual, porque ela não suprimiu a
competência concorrente da União.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): A Constituição não dá
mais competência exclusiva para legislar sobre diversões públicas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas dá competência concorrente.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Não dá nem a concorrente.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: No art. 5º não está essa competência,
que não era desconhecida do legislador constituinte.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas a competência concorrente não é só a
que resulta de poderes expressos, também resulta dos poderes implícitos.

402
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Temos que examinar em cada hipó-


tese. No caso concreto, essa matéria era expressamente prevista. Não era uma
matéria omissa. Era expressamente prevista na Constituição de 1937. O legislador
constituinte, rastreando a Constituição de 1937, não quis outorgar à União com-
petência nem exclusiva nem concorrente, porque, no art. 5º, enumera a competência
exclusiva e também enumera, no art. 6º, a competência concorrente. E aí foi omissa
completamente, deixando transparecer que era o intuito da Constituição deixar
essa matéria precipuamente aos Estados.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Essa interpretação, data venia, é prejudicial
aos interesses da União e contrária à índole do regime federativo. Não se pode
conceber que um filme inequivocamente atentatório à segurança nacional e que
fosse proibido para o país inteiro, pudesse ser exibido em vinte Estados, valendo
a interdição somente para a Capital Federal e os Territórios. O problema consti-
tucional é um só. Se o Estado pode proibir o que foi permitido, também pode
permitir o que foi proibido.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. nega aos Estados o poder de
polícia?
Quando o Estado de Minas Gerais não permitiu a exibição destes filmes,
foi usando do poder de polícia.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. me permite, o poder de polícia é
concorrente, e poder concorrente do Estado nunca foi, em federação nenhuma do
mundo, poder estadual oposto ao da União, ou poder estadual superior ao da União.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: É evidente a supremacia da União.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É conseqüência lógica da competência con-
corrente. Em nenhuma federação do mundo, em caso de competência concor-
rente, o conflito se resolve em favor dos Estados contra a União. Acontece justa-
mente o contrário: o conflito se resolve em favor da União contra os Estados.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos discutir em cada hipótese.
Aqui se tratava de matéria em que a Constituição anterior dava competência
expressa à União.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Então, V. Exa. negará, totalmente, a compe-
tência da União.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. mesmo disse que o poder de
polícia é atribuição dos Estados, mas também a União pode usar de poderes de
polícia.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se a União pode concorrentemente, isso
significa que pode com superioridade sobre os Estados. O que não é possível é
que haja competência concorrente e os poderes da União não sejam superiores
aos dos Estados em caso de conflito.

403
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos discutir a hipótese concreta. V.


Exa. veja bem meu argumento. A Constituição de 1937, expressamente, consigna-
va a competência exclusiva da União para legislar a respeito. O legislador constitu-
inte conheceu esse modelo da Constituição de 1937. O constituinte, na Constituição
de 1946, enumerou as matérias de competência exclusiva da União. Enumerou,
também, as matérias da competência concorrente da União e dos Estados e fez
omissão dessa matéria. Não podemos, assim, negar o poder de polícia estadual.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Respeito a autoridade de V. Exa. Mas, se me
permite, há uma divergência entre nós, e há talvez um equívoco. A divergência é
que, a meu ver, a Constituição de 1946, ao suprimir a cláusula que se continha na
de 1937, dando exclusividade de competência à União, apenas aboliu a exclusivi-
dade. Não desapareceu a competência federal, desapareceu a exclusividade
dessa competência.
Agora, quanto ao possível equívoco, quero ponderar que não é o art. 6º da
Constituição que dá competência concorrente à União. O art. 6º, o que faz é dar
competência concorrente aos Estados em matérias incluídas na competência
expressa da União. Não podemos inverter os termos do problema.
Fora do art. 6º, a União tem a competência concorrente que puder resultar,
implicitamente, de todos os seus poderes expressos.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Eu admito que a União tenha poder,
também, nessas matérias, mas sem anular o dos Estados. A União tem compe-
tência para cortar o trânsito dos filmes.
No exemplo citado por V. Exa., a União pode proibir a exibição de filmes.
Mas o que não pode é tirar dos Estados, também, esse poder de censura.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Na lógica do respeitável voto de V. Exa., a
União não terá poder algum, porque, se tiver competência concorrente, os seus
poderes, em caso de conflito, hão de preponderar sobre os dos Estados. O que
não se pode fazer é subordinar a União aos Estados, seria contrário à teoria da
federação.
Agradecendo, Sr. Presidente, esse vivo debate, que muito me honra, pros-
seguirei na leitura do meu voto.
O Regulamento, baixado ainda no Governo Linhares, com o referendo do
Ministro Sampaio Dória (Decreto 20.493, de 24-1-46), dispunha no art. 5º: “O
certificado de aprovação autoriza a exibição do filme em todo o território nacional,
isentando-o de qualquer outra censura ou pagamento de novas taxas durante
o período de sua validade”.

404
Ministro Victor Nunes

Veio, depois, novo Regulamento (Decreto 37.008, de 8-3-55), que dispôs


no art. 271, § 1º: “O certificado de aprovação (...) deverá corresponder a cada
cópia de filme (...), autorizando a sua exibição em todo ou em parte do território
nacional”.
Alega-se que o novo regulamento, deixando de repetir a cláusula que isen-
tava os filmes autorizados “de qualquer outra censura”, teria permitido que, contra
e acima da censura federal, se pudesse exercer a censura estadual. Essa interpre-
tação é incompatível com o contexto geral do novo Regulamento que, em nenhum
de seus dispositivos, faz presumir que o Governo Federal reconheceu supremacia à
competência conflitante dos Estados. Basta notar que o art. 272, ao prever a
superveniência de “motivo grave”, que tornasse a projeção “atentatória à
moralidade”, foi ao próprio Chefe de Polícia do DFSP que deu competência para
“cassar ou restringir a aprovação anteriormente concedida”. E o art. 276 permite
ao Fiscal de Censura, que é a autoridade propriamente executora, apenas a facul-
dade de suspender a exibição “nos casos de infração grave, submetendo o seu ato
ao Chefe do Serviço de Censura” (federal). Finalmente, a apreensão do filme, a ser
ordenada pelo Chefe da Censura federal, só é autorizada, pelo art. 279, nos casos
de exibição sem prévia censura ou em desacordo com os termos da aprovação.
Em nenhuma parte do Regulamento está sequer insinuada a idéia de que a
autoridade estadual possa sobrepor-se à censura federal. Essa possibilidade ficou,
evidentemente, excluída pela validade da censura federal para todo o território
nacional (ou em parte dele, se assim o determinar a própria censura federal).
É, pois, de todo irrelevante, para o fim pretendido, a divergência de reda-
ção entre o regulamento de 1945, do Governo Linhares, e o de 1955, do Governo
Café Filho. Novas manifestações do poder regulamentar federal, em matéria de
cinema, incluindo a censura cinematográfica, encontramos nos seguintes decretos:
Decreto 24.911, de 6-5-46; Decreto 22.014, de 4-11-46; Decreto 26.966, de
27-7-49; Decreto 30.179, de 19-11-51; Decreto 47.466, de 22-12-59; Decreto
50.450, de 12-4-61; Decreto 51.106, de 1º-8-61; Decreto 544, de 31-1-62; De-
creto 697, de 15-3-62; Decreto 1.023, de 17-5-62; Decreto 1.134, de 4-6-62;
Decreto 1.243, de 25-6-62; Decreto 2.131, de 22-1-63.
Essa é, pois, a legislação federal em vigor, cuja legitimidade não pode ser
contestada, em vista da competência concorrente da União, que prepondera, em
caso de conflito, sobre a competência estadual. Será, talvez, inconveniente, por
não ter ressalvado as peculiaridades locais. Suponho que o seja, mas essa crítica
deve ser dirigida ao Poder Legislativo ou do Poder Executivo, aos quais cumpre
dar o remédio, e não a nós que, por amor do pormenor, correríamos o risco de
trincar o edifício da competência constitucional da União.

405
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Com a devida venia, parece injusta


esta crítica ao Poder Legislativo, porque, quando se fez a Constituição atual não
outorgou o poder exclusivo do legislador ordinário federal. Não há legislação
após a Constituição de 1946.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. situa o seu aparte no plano da
nossa divergência de há pouco, logicamente não poderemos estar de acor-
do. Não poderei chegar à conclusão de V. Exa., desde que parto de outra
premissa.
Há, ainda, outro argumento, Sr. Presidente: o acórdão do Tribunal de Minas
Gerais reconhece que não há lei estadual de Minas Gerais atribuindo a censura
cinematográfica ao Governo do Estado. E argumenta que o exercício do poder de
polícia prescinde de lei.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Essa declaração é muito grave.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Disse o acórdão:
“E nem se diga possa inexistir, no caso, ordenamento jurídico que
viesse condicionar o uso desse poder, pois que, segundo Themistocles
Cavalcanti:
‘Revestidas do caráter discricionário (...)’
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Isso é inerente ao Estado.
O Sr. Ministro Victor Nunes:
“(...) as medidas de polícia não precisam estar predeterminadas
pela lei.”
— Tratado de Direito Administrativo, v. III, p. 10.”
Caio Tácito, que é hoje um dos nossos melhores especialistas em Direito
Administrativo, observa, no estudo já citado, que nenhum poder do Estado está
imune ao princípio da legalidade: “Essa faculdade administrativa não violenta o
princípio da legalidade, porque é da própria essência constitucional das garantias
do indivíduo a supremacia dos interesses da coletividade. (...) É, sobretudo, em
relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da
legalidade do fim objetivado na ação administrativa adquire relevo especial (...).
O exercício do poder de polícia pressupõe, inicialmente, uma autorização legal
explícita ou implícita, atribuindo a um determinado órgão ou agente administrativo
a faculdade de agir” (ob. cit., pp. 8, 9).
E Aureliano Leal, cujo trabalho, embora antigo, ainda é das melhores coi-
sas que já se escreveram sobre o poder de polícia no Brasil (Polícia e Poder de

406
Ministro Victor Nunes

Polícia, 1918), também sustenta, em mais de uma passagem, a vinculação do


poder de polícia ao que prescreve a lei, que deixa, entretanto, larga margem de
ação discricionária às autoridades administrativas.
O que tem acontecido, Sr. Presidente, é que, imemorialmente, têm havido
leis e regulamentos dando amplos poderes a autoridades policiais para intervir em
tais ou quais circunstâncias. Como a nossa memória até se perde na busca dessas
autorizações legislativas, pode-se ter a ilusão de que o poder de polícia é
imanente, nasce de si mesmo, independentemente da lei; mas, na verdade, sempre
houve leis e regulamentos que deram esses poderes às autoridades policiais, em
maior ou menor extensão.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aqui, no caso concreto, decorria até
do art. 18 da Constituição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O argumento, que estou agora desenvolvendo,
é que não há lei específica dando ao Governo estadual de Minas Gerais o poder
de censura cinematográfica.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não precisava, porque decorreria do
poder constituinte, ao fazer a partilha de poderes. E está no art. 18 da Carta
Política Federal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Ainda pela razão aduzida, seria excessivo
permitir que o Governador, mesmo sem lei, pudesse contrariar a censura
exercida por órgão federal com base em lei.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): Baseado em lei elabora-
da no regime da Constituição de 1937.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O último regulamento, do Presidente Café
Filho, já foi expedido na vigência da Constituição atual.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães (Relator): É o Decreto n. 37.008,
de 1955. Está preso, ainda, à Constituição de 1937.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me permitirá uma repetição. A meu
ver, a Constituição atual não exclui a competência federal para a censura cine-
matográfica. Na lógica do meu voto, tenho de considerar que a lei, em que se
baseou o Regulamento Café Filho, mesmo do regime anterior, continuou válida
sob a nova Constituição...
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não contesto que V. Exa. esteja
sendo lógico.
O Sr. Ministro Victor Nunes: ... porque só as leis incompatíveis com o novo
regime é que ficaram revogadas.

407
Memória Jurisprudencial

Assim, data venia do eminente Ministro Relator, a cuja preocupação


pelas variações do sentimento de moralidade pública também me associo, com a
convicção de quem viveu muitos anos em cidade do interior, dou provimento ao
recurso, para fazer prevalecer a censura federal sobre a estadual. De futuro, os
poderes competentes encontrarão, para esse problema, a solução que lhes pare-
cer mais adequada, sob a inspiração do interesse público, sem prejuízo da compe-
tência constitucional da União.

MANDADO DE SEGURANÇA 15.186 — DF

Tesoureiro auxiliar. Cargo legalmente criado por de-


creto do Presidente da República. A Lei 4.345, de 26-6-64,
alterou a Lei n. 3.780, de 12-7-60, que excluía os tesourei-
ros auxiliares do plano de classificação de cargos. A revisão
dos quadros das autarquias não autorizou a extinção de
cargos (art. 19, da Lei 4.345). Mandado de segurança con-
cedido.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estão em julgamento dois casos idênticos.
Tendo pedido vista do MS 15.186, redigi voto muito breve, limitando-me quase a
apoiar o do Sr. Ministro Evandro Lins, que deferia a segurança.
“S. Exa. — dizia eu — demonstrou que a supressão de cargos, que
veio a alcançar o ocupado pelo impetrante, dependia de regulamentação,
bem como da aprovação de um programa, nos expressos termos do art.
22, § 1º, da Lei 4.345, de 26-6-64. E não houve essa regulamentação. O
art. 19, em que se fundou o decreto impugnado, não cuidara de supressão
de cargos”.
Entretanto, o eminente Ministro Prado Kelly, que pedira vista do outro
processo (MS 14.631), trouxe ao nosso exame, com o brilho de sempre, duas
ponderações novas.
A primeira é que teria sido ilegal a criação desses cargos através de decreto
do Governo anterior. Sua supressão posterior, pelo atual governo, estaria apenas
reparando a ilegalidade.
Parece-me, porém, que a criação de tais cargos por ato do Executivo foi
perfeitamente legal, como se procedia na época, sem contestação, por se tratar
de autarquia. O próprio tribunal tem aplicado numerosos decretos de criação de

408
Ministro Victor Nunes

cargos em autarquias, e nunca se impugnou, aqui, essa competência do Executivo.


Politicamente, em especial no Congresso, é que o assunto suscitava controvérsia,
porque se reconhecia ao Presidente da República o poder de ampliar sua influência
na área do empreguismo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Consinta V. Exa. uma retificação em ponto
de fato.
Referi-me ao argumento, porque o eminente Ministro Relator entendia que
o Presidente da República podia criar cargos em virtude de autorização contida
no art. 16, da Lei 2.745, de 1956. Então, dizia eu:
“(...) esse artigo estabelecia apenas uma faculdade temporária,
qual a de, no prazo de 30 dias, a contar da publicação da mesma lei, ser
organizado o quadro do pessoal das autarquias, com observância dos
padrões adotados para os servidores civis da União e dos Territórios e,
então, aprovado por decreto executivo”.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É possível, Sr. Ministro Prado Kelly. Não
tenho anotada, nem poderia conservar na memória, toda a legislação sobre
autarquias subseqüente à lei citada por V. Exa. Mas se essa competência fora
dada, originariamente, ao Presidente da República por tempo determinado, como
diz V. Exa., a verdade é que a praxe administrativa, sancionada pelos demais
Poderes...
O Sr. Ministro Prado Kelly: Era o exercício do poder regulamentar, talvez
abusivo, mas que não vale só para criar cargos, senão também para suprimi-los.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A supressão dos cargos é outro aspecto do
problema. Pretendo examiná-lo dentro em pouco.
Ainda — dizia eu — que, originariamente, aquela competência tivesse sido
instituída em caráter temporário, o certo é que, durante anos e anos, essa praxe
da criação de cargos em autarquias por ato do Executivo, tolerada e aprovada
pelo Legislativo e não contrariada pelos tribunais, tornou-se costume jurídico-
administrativo.
Se tivéssemos, agora, de declarar ilegal a criação de tais cargos, faríamos
desmoronar quase toda a estrutura das nossas autarquias.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Peço licença a V. Exa. para inter-
romper seu brilhante voto a fim de dar um esclarecimento, do ponto de vista
burocrático, a este respeito.
Essa competência do Presidente da República surgiu para frear as
autarquias, na criação de cargos. Se não houvesse, por parte do governo, esta

409
Memória Jurisprudencial

medida, até exigindo publicação no Diário Oficial para que os atos ficassem
solenes e conhecidos, as autarquias criariam inúmeros cargos, até mesmo desne-
cessários.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Como, de começo, fizeram.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Aí é que surgiu um controle do Pre-
sidente da República no sentido de que esses cargos só fossem criados por de-
creto ou com a aprovação presidencial.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O esclarecimento do eminente Ministro Gon-
çalves de Oliveira é oportuno, porque relembra a evolução da nossa administra-
ção descentralizada. As autarquias foram criadas com grande autonomia, aten-
dendo-se às peculiaridades de cada uma, pela necessidade ou conveniência de
ser flexibilizado o serviço público. Por isso, as autarquias foram autorizadas a
criar seus próprios cargos. Mas foram muitos os abusos dessa descentralização.
Surgiu, então, o primeiro controle, que consistiu na criação desses cargos por
decreto do Poder Executivo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Com fundamento no exercício de poder tem-
porário.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas em virtude de lei.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Por lei de efeitos transitórios e com limite
certo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não podemos garantir que a única lei a tratar
do assunto tenha sido essa a que V. Exa. se refere.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Esta foi a alegada pelo eminente Relator e, por
isso, detive-me no assunto.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. mencionou uma Lei de 1956.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Quem mencionou foi o eminente Ministro
Relator.
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: Foi a Lei 2.745, de 1956.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas bem antes dessa época, já o Sr. Presi-
dente da República criava cargos nas autarquias, como continuou a fazer. O
assunto foi várias vezes discutido no Congresso por suas implicações políticas.
Não ponho minha mão no fogo, como V. Exa.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não fui eu que o declarei, foi o eminente
Relator. Meu fundamento é outro. Considero que o suporte do ato é o poder
regulamentar atribuído ao Sr. Presidente da República pelo Congresso. Esta a
tese de meu voto.

410
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. sustenta que o suporte único do


ato é o poder regulamentar, estou autorizado a concluir que o primeiro fundamen-
to do seu brilhante voto foi desenvolvido apenas por amor ao debate, pois V. Exa.
não considera que fosse ilegal a criação dos cargos por ato do Executivo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: V. Exa. me perdoe, mas farei uso de uma frase
já usada por V. Exa.: só o prolator do voto pode e deve interpretá-lo.
É ocasião de seguir esse bom aviso.
Limitei-me a considerar um argumento do Ministro Relator, que dava
como base legal do ato da criação daqueles cargos o art. 16, da Lei 2.745, e
ponderei: não é possível seja tal a base, porque, se o fosse, já estaria esgotado o
prazo dentro do qual essa competência poderia ser exercida.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço o esclarecimento de V. Exa. Tinha-me
parecido, ao ouvir seu lúcido voto, que V. Exa. adotava dois fundamentos: o primeiro
é que, sendo ilegal a criação dos cargos, o Sr. Presidente da República poderia
extingui-los no uso da prerrogativa que tem a administração de corrigir seus pró-
prios atos ilegais.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Este argumento foi, na verdade, invocado pelo
Sr. Consultor-Geral da República; aludi a ele de passagem, não fiz dele razão
essencial de meu voto.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Passemos, então, ao segundo ponto. O ato
em discussão é o Decreto 54.045, de 23-7-64. Invocou-se, no preâmbulo desse
decreto, como de praxe, o art. 87, I, da Constituição, que dá competência ao
Executivo para expedir decretos e regulamentos. Mas também se invocou, e
especificamente, o art. 19 da Lei 4.345/64.
Disse, por isso, o Sr. Ministro Evandro Lins que o fundamento do Decreto
54.045 é, a rigor, o art. 19 citado, pois o art. 87, I, da Constituição ali aparece
rotineiramente, como fonte geral do poder regulamentar. Já o Sr. Ministro Prado
Kelly sustenta que somente se fundam no art. 19 da Lei 4.345 as normas do
Decreto 54.045 que dispõem sobre revisão de quadros. O mais fundar-se-ia no
poder regulamentar.
Este argumento poderia desdobrar-se em dois aspectos. De um lado, com
base no poder regulamentar, o Presidente poderia extinguir os cargos, já que
teriam sido criados ilegalmente. Mas este aspecto, parece, ficou afastado com os
esclarecimentos há pouco ministrados pelo Sr. Ministro Prado Kelly.
Restaria o segundo aspecto: o Presidente poderia suprimir os cargos no
uso do seu poder geral de organizar o serviço das autarquias.

411
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas o fundamento do Executivo, como vem


no parecer, é que ele considerava irregular a criação dos cargos que não atendi-
am a finalidades do bem público, e, mesmo, não havia arrimo legal para eles.
Exercitava-se o poder regulamentar e, como por meio de regulamento foi criado
o cargo, por meio do regulamento seria extinto.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Este último aspecto do problema não envolve o
da ilegalidade da criação dos cargos. O Presidente, no uso do poder regulamentar,
que lhe faculta organizar as autarquias, poderia extinguir ou deixar de extinguir os
cargos. Teria, então, optado pela extinção.
Vejamos, entretanto, se foi isso o que ocorreu com o questionado Decreto
54.045, de 1964. Dispõe esse decreto:
“Fica aprovada a revisão da classificação dos Quadros de Pessoal do
Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, na forma
determinada pelo artigo 19 da Lei n. 4.345, de 26 de junho de 1964, elabo-
rada com observância das normas contidas no Decreto n. 54.004, de 3 de
julho de 1964, continuando em vigor os Decretos n. 51.340, de 28 de outubro
de 1961, 51.628 e 51.631, de 19 de dezembro de 1962, 51.669, de 17 de
janeiro de 1963, 53.717, de 17 de março de 1964, bem como as Resoluções
Especiais n. 217, de 24 de fevereiro de 1964, 221, de 20 de março de 1964 e
230 de 19 de junho de 1964, da Comissão de Classificação de Cargos.”
Dispõe, em seguida, o parágrafo único do mesmo artigo: “Ficam declarados
sem efeito os Decretos” tais e quais, entre eles, o decreto criador dos cargos, que
são objeto do processo.
Constam, porém, do artigo acima transcrito — o qual, como o parágrafo,
contém uma longa lista de decretos — essas cláusulas expressas: “(...) continuan-
do em vigor os Decretos” tais e tais, e, afinal, “Ficam declarados sem efeito os
Decretos” tais e tais.
Que resulta, então, do Decreto 54.045? Ele, ao mesmo tempo, confirma ou
ratifica alguns decretos e revoga outros. Mas essas duas medidas — a confirma-
ção de alguns decretos e a revogação de outros — estão vinculadas à revisão dos
quadros. O que, portanto, fez o governo, seja ratificando, seja revogando decretos,
foi a revisão dos quadros.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Estão entrelaçados. Mas só fiz essa pondera-
ção para demonstrar que a interpretação dada pelo eminente Sr. Ministro Relator
ao art. 19, no sentido de que o poder de revisão não continha o poder de extinguir
cargos inúteis (o que, a meu ver, não seria boa interpretação do art. 19), não teria
préstimo, data venia, para a solução do caso, porque aí estaria o governo,
como declarou no preâmbulo, usando do poder regulamentar, que é inerente ao
Executivo.

412
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou concluir meu raciocínio, Sr. Presidente.
Parece-me demonstrado que as duas medidas — a manutenção de alguns decretos
e a revogação de outros — estão vinculadas à mesma razão de ser do Decreto
54.045, que foi proceder à revisão dos quadros da autarquia, nos termos do art.
19 da Lei 4.345. Portanto, essas duas matérias estão completamente vinculadas
à invocação específica do art. 19 da Lei. 4.345, que consta do preâmbulo do
Decreto 54.045.
Mas a Lei 4.345 mudou a sistemática da organização desses serviços
autárquicos: de um lado, vedou ao Presidente da República criar cargos por de-
creto; de outro, manteve a situação pré-existente e autorizou o Presidente, mas
sob certas condições, a rever os quadros e suprimir cargos. As condições a que
tais medidas ficaram sujeitas foram estabelecidas na própria lei.
Pela sistemática da Lei 4.345, a extinção de cargos foi regulada não no art.
19, mas no art. 22, § 1º, que a fez depender de uma regulamentação, bem como
da prévia aprovação de um programa. De acordo com esse programa é que o
Presidente da República poderia extinguir até 50.000 cargos, com o que se alcan-
çaria uma revisão geral dos serviços das autarquias referidas na lei.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Pelo sistema da lei, essa extinção se enquadra-
va na finalidade ampla do mesmo diploma, qual era a revisão dos cargos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Então, o art. 22 seria inútil.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não é inútil, porque é limitativo quanto ao
número: 50.000.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Veja V. Exa.: se o Presidente da República
pudesse extinguir quaisquer cargos, seria inútil dizer a lei que ele poderia extinguir
até 50.000.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O número limita a faculdade que assistia ao
Governo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas, se a mesma lei não pudesse estabelecer
outras condições, também não poderia fixar limite quanto ao número dos cargos
a serem extintos. Se esta condição do número é válida, também o são as outras.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Aliás, argumentar com redundâncias da lei, em
face da legislação brasileira, não me parece que seja razão decisiva...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas a mesma lei que pode limitar a ação do
Executivo quanto ao número dos cargos a extinguir, como V. Exa. reconhece,
também a poderia limitar quanto à forma. E foi o que fez.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Essa segunda conclusão é V. Exa. que a ado-
ta; eu não poderia aceitá-la.

413
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou chegando a ela a partir da premissa de


V. Exa. Se o art. 22 é válido no limitar a faculdade de extinguir cargos, quanto ao
número destes, também é válido no limitar essa faculdade quanto à forma e aos
pré-requisitos.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas o art. 22 tem um fim pressuposto, o de
limitar o número de cargos passíveis de extinção.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, o debate foi muito amplo e
todos os pormenores ficaram esclarecidos.
Peço vênia para acompanhar o voto do eminente Ministro Relator, nos dois
processos.

MANDADO DE SEGURANÇA 15.886 — DF

Reestruturação de quadros de autarquias do Ministério


da Viação. Matéria Constitucional.
1. Inconstitucionalidade de lei. Presunção de constitucio-
nalidade. Recusa de aplicação de lei considerada inconstitu-
cional pelo Executivo. Conseqüências, a esse respeito, da
EC 16/65. Ato, no caso, anterior a essa emenda.
2. Efeito, no tempo, da declaração judicial de inconstitu-
cionalidade.
3. Iniciativa do Procurador-Geral quanto à representa-
ção de inconstitucionalidade.
4. Procurador de autarquia. Efetivação mediante con-
curso de títulos (Lei 2.123/53). Sua admissibilidade pela
jurisprudência do STF. Subsistência da citada lei, apesar de
mantido o veto a dispositivo de projeto que dispunha no
mesmo sentido.
5. Nenhum aumento de despesa resultante da eventual
efetivação de procurador de autarquia, que já se encontrava
no exercício interino do cargo, cuja supressão nem chegou
a ser proposta. Procedência da segurança.
6. Improcedência do pedido relativamente aos cargos
de consultor jurídico, que foram suprimidos, porque, a juízo
da maioria, havia matéria de fato controvertida quanto ao
alegado aumento de despesa.

414
Ministro Victor Nunes

7. Considerações da minoria sobre o direito dos seus


antigos ocupantes de serem considerados em disponibilida-
de, com vencimentos integrais, o que impediria a sua classi-
ficação em cargos de menores vencimentos.
8. Questão de ordem (no voto do Relator) sobre a
proclamação do resultado, em face da presunção de consti-
tucionalidade, favorecendo o Governo em uma das ques-
tões, mas não na outra.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): São apenas três os impetrantes
deste mandado de segurança, mas a sua fundamentação foi deduzida em termos
amplos, envolvendo toda a reorganização das quatro autarquias do Ministério da
Viação mencionadas no relatório.
Como a segurança é garantia de direito individual (CF art. 141, § 24),
devemos examinar, de preferência, a situação pessoal dos impetrantes, em face
das leis e da Constituição. Mas, neste caso, há um fundamento geral que trans-
cende desses limites e tem perfeita adequação: o de saber se o Executivo pode
negar aplicação a uma lei por motivo de inconstitucionalidade, transferindo aos
prejudicados o ônus de provocar o veredicto judiciário, ou se deve o Executivo
cumprir a lei, digamos, sob protesto, promovendo ele próprio a manifestação do
Judiciário sobre a sua constitucionalidade.
Os outros dois fundamentos genéricos do pedido (aumento de despesa e
efetivação de funcionários interinos) podem ser examinados em função das situa-
ções individuais dos impetrantes. Mas o primeiro, por seu caráter prejudicial, tem
de ser considerado nos termos amplos em que foi proposto.
Sua relevância teórica e prática é indiscutível, e foi ele suscitado, no caso
que ora nos ocupa, pelo próprio Consultor-Geral da República, o eminente Dr.
Adroaldo Mesquita da Costa. E S. Exa., para concluir em prol da prerrogativa
presidencial de negar aplicação às leis que tem por inconstitucionais, retificou o
ponto de vista contrário que havia desenvolvido em dois outros pareceres (021-H,
DO de 22-6-64; 166-H, DO (...) 26-4-65).
Sempre sustentei a opinião agora abonada por S. Exa., mas o tema vem,
neste caso, ao Tribunal, sob um novo e importante aspecto, à vista da EC n. 16, de
1965, promulgada posteriormente ao seu parecer. Pelo seu art. 2º, o art. 101, I, k,
da Constituição passou a ter a redação seguinte: “Ao Supremo Tribunal Federal
compete: I – processar e julgar originariamente:.. k) a representação contra
inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual,
encaminhada pelo Procurador-Geral da República”.

415
Memória Jurisprudencial

Esse texto, que ampliou o que constava do anteprojeto do Supremo Tribunal


(Reforma Judiciária, I.N., 1965), introduziu em nosso direito positivo a inovação
valiosíssima da representação de inconstitucionalidade de lei federal em tese, de
iniciativa do Procurador-Geral. A medida constante do art. 8º, parágrafo único,
que era restrita ao direito estadual e aos princípios fundamentais do art. 7º, VII,
da Constituição, foi alargada para abranger quaisquer casos de inconstitucionali-
dade de lei ou ato normativo, federal ou estadual.
Argumentam os impetrantes que, tendo sido aberta essa via direta para
uma pronta decisão do Supremo Tribunal sobre uma lei que o Executivo tenha por
inconstitucional, já não se lhe pode reconhecer a prerrogativa de negar cumpri-
mento a essa lei, por autoridade própria, carregando ao prejudicado o incômodo e
o dispêndio de suscitar a manifestação do Poder Judiciário.
Os Presidentes norte-americanos muito têm contribuído, com suas iniciativas,
para firmar certas interpretações da Constituição, como se ensina nos compêndios
universitários. Veja-se, por exemplo, o que dizem Ferguson e McHenry, The
American System of Government, 7ª ed., 1963, p. 65: “Os tribunais e o Congres-
so não têm o monopólio do direito de interpretar a Constituição. Há muito tempo,
os Presidentes têm insistido em que a Carta Magna deve ser interpretada pelo que
realmente traduz o seu texto, e suas opiniões frequentemente têm prevalecido.”
A prática norte-americana, portanto, não é favorável a subordinar o Chefe
do Executivo a um prévio pronunciamento do Judiciário em matéria de inconsti-
tucionalidade de lei, embora, após a polêmica entre Jefferson e Marshall, tenha
ficado consolidada a doutrina de que ao Judiciário cabe a palavra conclusiva ou
derradeira.
Nossa jurisprudência também tem sido hostil à tese dos impetrantes, reco-
nhecendo ao Executivo a opção entre provocar a manifestação do Judiciário, ou
não cumprir a lei que repute inconstitucional, e ao Legislativo, a de anular leis
ofensivas à Constituição. Vejam-se estes pronunciamentos do Supremo Tribunal,
ou de alguns de seus Ministros, quase todos mencionados no parecer do Consultor-
Geral e nas informações do governo: Rp 322 (1957), RTJ 3/760; RMS 4.211
(1957), RTJ 2/386; RMS 5.860 (1958); MS 7.234 (1960), RDA 59/338; Rp 512
(1962), DJ de 26-9-63, p. 910; RE 55.718 (1964), RTJ 32/134; RMS 14.557
(1965), RTJ 33/336.
Em contrário se pode argumentar, de um lado, que estes precedentes são
anteriores à modificação que a EC 16 introduziu no art. 101, I, k, da Constituição, e,
de outro lado, que nos Estados Unidos não existe dispositivo equivalente.
Realmente, a ampla representação de inconstitucionalidade, que o nosso
direito constitucional agora abriga, põe a questão sob uma nova luz, que me leva
a não insistir nos votos proferidos anteriormente. A interpretação advogada pelos

416
Ministro Victor Nunes

impetrantes tem uma sólida contextura lógica e contribui, notavelmente, para o


aperfeiçoamento jurídico do nosso regime de poderes limitados e divididos, sob a
vigilância do Judiciário, que é o fiel da Constituição.
Teremos, assim, um mecanismo coordenado e harmônico no que respeita à
inconstitucionalidade das leis. O Presidente da República manifestará o seu enten-
dimento através do veto e, se este for rejeitado, poderá reiterá-lo através da repre-
sentação de inconstitucionalidade, a ser formulada pelo Procurador-Geral, titular de
sua imediata confiança. O Congresso, por sua vez, dará o seu pronunciamento,
primeiro, quando votar o projeto e, depois, quando tiver de apreciar o veto. Final-
mente, o Judiciário, guarda do equilíbrio dos poderes, solucionará a controvérsia,
pela voz do Supremo Tribunal, ao julgar a representação.
Se é conclusiva, nessa matéria, a decisão do Supremo Tribunal, o lógico é
que essa decisão seja provocada antes de se descumprir a lei. Anteriormente à
EC 16/65, não podíamos chegar a essa conclusão por via interpretativa, porque
não havia um meio processual singelo e rápido que ensejasse o julgamento prévio
do Supremo Tribunal. Mas esse obstáculo está arredado, porque o meio proces-
sual foi agora instituído no próprio texto da Constituição.
Essa interpretação, aliás, dá novo vigor à presunção de constitucionalidade
das leis, que já fora reforçada pelo art. 200 da Constituição, que remonta à Cons-
tituição de 1934, e pelo qual os Tribunais só podem declarar a inconstitucionalidade
pelo voto da maioria absoluta dos seus juízes. Recorde-se ainda que já tínhamos
herdado da jurisprudência norte-americana um outro suporte para essa presunção:
a regra do other clear ground, que manda evitar a declaração de inconstituciona-
lidade, quando a causa puder ser decidida por outros fundamentos.
Com a nova interpretação, baseada na EC 16, a que estou aderindo após
madura reflexão, resulta que a lei, até ser declarada inconstitucional pelo Judiciário,
será obrigatória não só para os particulares, como também para os poderes do
Estado, o que confere ao regime de legalidade uma eficácia prática proporciona-
da à sua projeção teórica.
Assim já tem votado o eminente Sr. Ministro Vilas Boas (RE 55.718, 26-
11-64) e parece que o eminente Ministro Carlos Medeiros Silva votou de igual
modo, recentemente, na 3ª Turma.
O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Se V. Exa. permite, darei esclarecimento
a respeito desse voto.
Realmente, como Relator do RMS 13.844, de São Paulo, a questão foi
suscitada, e o Tribunal de São Paulo havia reconhecido ao Sr. Governador a
faculdade de repudiar cumprimento de certa lei por julgá-la inconstitucional.

417
Memória Jurisprudencial

Proferi desde logo o meu voto, na Turma, não aceitando essa tese, mas,
dada a relevância da matéria, os eminentes colegas, então presentes, propuseram
que a matéria fosse submetida ao Pleno, e não houve, até este momento, oportu-
nidade desse pronunciamento. Mas o meu voto já foi exarado e eu peço para ler
a sua parte principal:
Diz o acórdão de São Paulo, em sua fundamentação:
“Não se discute a inconstitucionalidade da Lei 7.851, de 11-3-1963,
mas sim, do ato do Exmo. Sr. Governador do Estado, que negou cumpri-
mento ao art. 5º, III, da referida lei.
Ou, como salientou o impetrante, expressamente: ‘O thema
decidendum não é a inconstitucionalidade da lei que o Executivo se nega
a aplicar, e sim, a inconstitucionalidade dessa atitude negativa. Se o
Judiciário entender inconstitucional o ato do Governador, a segurança
deve ser concedida, pois houve violação a direito subjetivo, assegurado em
lei, através de ato inconstitucional. Objeto da atuação jurisdicional não é,
no caso, a lei que o Executivo entendeu inconstitucional, e sim, o ato
constitucionalmente ilícito que o Governador praticou, deixando de aplicar
a lei e avocando, para si, função que é da exclusiva competência da
Assembléia, após pronunciamento do Judiciário’ (fls. 11/12).
E, sob o prisma acima, pode o Executivo deixar de cumprir a lei, sob
alegação de ser a mesma inconstitucional?
A questão não é nova.
Luiz Eulálio de Bueno Vidigal teve oportunidade de escrever: ‘Se o
ato legislativo não contraria a Constituição, ele não pode ser considerado
ilegal, porque revoga qualquer lei anterior que se lhe contraponha. Se, ao
contrário, ele é inconstitucional, é nulo e não pode, por si só, ferir direitos
particulares.
Neste último caso, nada impede que a autoridade administrativa,
reconhecendo-lhe a inconstitucionalidade, deixe de aplicá-lo’ (Do Mandado
de Segurança, p. 124, § 69, ed. 1953).
Francisco Campos (Direito Constitucional, 1/442-443, ed. 1956)
mostra que os tribunais só opinam sobre a inconstitucionalidade das leis
por ocasião de aplicá-las aos casos concretos; cada Poder, assim, tem a
contar consigo mesmo para dirimir as questões relativas à sua competência;
recusar, por conseguinte, ao Poder Executivo ou Legislativo a faculdade de
interpretar a Constituição e, em virtude de sua interpretação, tomar
decisões, seria instalar nos dois grandes motores da vida política do país

418
Ministro Victor Nunes

ou do Estado o princípio da inércia e da irresponsabilidade, paralisando o


seu funcionamento por um sistema de frenação e obstrução permanentes
(apud, ac. E. Supremo Tribunal Federal, RDA 59/351).
Se o Poder Judiciário não é super-poder, mas se encontra no mesmo
nível dos demais Poderes, nada impede que o Executivo e o Legislativo, no
campo de sua competência, apreciem a norma legal, deixando de aplicá-la
quando a julguem inconstitucional.
Isto porque a lei inconstitucional ‘é absolutamente nula; não sim-
plesmente anulável. A eiva de inconstitucionalidade a atinge no berço,
fere-a ab initio. Ela não chegou a viver. Nasceu morta. Não teve,
pois, nenhum único momento de validade’ (Buzaid, Da Ação Direta de
Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro, p. 128, §
58, ed. 1958).
Perante os Tribunais, a questão tem sido focalizada com certa
freqüência, reconhecendo-se o direito do Executivo de deixar de aplicar a
lei, sob alegação de sua inconstitucionalidade.
Recentemente, a Egrégia Sexta Câmara Civil julgou: ‘Não compete
exclusivamente ao Judiciário, embora sujeito ao seu controle final, o
exame da constitucionalidade das leis, mas sim a todos os Poderes da
República’ (RT 323/341).
E o Supremo Tribunal Federal tem confirmado esse entendimento
(RDA 42/230; 59/339; RTJ 2/386).
A Folha de São Paulo, de 6-10-1963, noticiou o julgamento da
Rep. 512, do Estado do Rio Grande do Norte, na qual o E. Supremo
Tribunal Federal, em V. julgado relatado pelo Ministro Pedro Chaves,
decidiu: ‘é legítimo ao Executivo recusar-se a cumprir lei que considere
inconstitucional’.”
E, então, o Tribunal de São Paulo aceitou a tese de que o Sr. Governador
podia deixar de cumprir a lei, por entendê-la inconstitucional.
Eu sempre pensei em contrário. Em 1951, quando tive a honra de exercer
o cargo de Consultor-Geral da República, portanto Consultor do Exmo. Sr. Presi-
dente da República e dos Ministros de Estado, fui consultado sobre o assunto,
porque o Presidente da República de então, em fevereiro daquele ano, manifestara
ao Sr. Ministro da Justiça o propósito de não cumprir determinadas leis do Governo
anterior. S. Exa. não se julgava comprometido com a sanção oposta a estes textos
pelo seu antecessor.

419
Memória Jurisprudencial

Tive, então, oportunidade de emitir parecer, sustentando a tese de que o


Presidente da República devia cumprir as leis, ainda que sancionadas pelo Governo
anterior, ainda que S. Exa. entendesse que essas leis estavam maculadas da eiva
de inconstitucionalidade.
Esta tese, tive oportunidade, agora, de repetir, em ligeiro voto proferido na
assentada de julgamento da Terceira Turma, que peço licença para reler, pois não
é longo:
“A doutrina de que o Poder Executivo pode negar cumprimento a
lei, por julgá-la inconstitucional, não me parece bem fundada, data venia
dos eminentes jurisconsultos que sustentam aquela faculdade, ou direito,
como opinam outros.
Toda lei, posta em vigor mediante sanção ou promulgação, goza da
presunção de constitucionalidade, porque tanto o Legislativo como o
Executivo, quando de sua elaboração, têm oportunidade de se opor ou
repudiar os projetos eivados do vício de inconstitucionalidade — se não
o fizerem, devem observá-la, e o Presidente da República presta o
compromisso, no ato de sua posse, ‘de manter, defender e cumprir a
Constituição da República e observar as suas leis’ (art. 83, parágrafo
único da Constituição).
O Supremo Tribunal Federal tem admitido o repúdio de leis
inconstitucionais pelo Legislativo, especialmente na esfera estadual,
porque o ato emana do próprio poder que elaborou o texto e tem a
prerrogativa de lhe dar vigência pela promulgação, rejeitando o veto do
Executivo.
Ao Judiciário, no nosso sistema constitucional, do tipo norte-
americano, é essa a sua mais alta prerrogativa.
Mas ao Executivo, que não pode revogar a lei elaborada pelo
Legislativo, o que deve fazer, segundo o compromisso constitucional, é
observá-la e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução.
Não pode desvincular-se, por ato unilateral, desse compromisso
constitucional, mesmo que tenha argüido, por ocasião do veto, a
inconstitucionalidade do projeto, desde que ele se transformou em lei, as
reservas ficam no plano subjetivo, das opiniões pessoais, que não podem
arredar o compromisso constitucional de observar as leis.
Negando cumprimento ao texto legal, o que o Executivo faz é
negar-lhe vigência, quando ele está em vigor por determinação do órgão
constitucional competente, mediante sanção ou promulgação — é opor-lhe
novo veto fora do tempo e, agora, ao texto legal.

420
Ministro Victor Nunes

A doutrina do repúdio à observância da lei pode se tornar subversiva


da ordem jurídica quando houver sucessão de chefe do Executivo,
inconformado com atos de sanção de seu antecessor, por motivos mera-
mente políticos e de caráter subjetivo.
O remédio para situações anômalas ou prejudiciais ao interesse
está na promoção do Legislativo, mediante mensagem do Executivo,
solicitando a revogação do texto malsinado e demonstrando as razões do
repúdio.
E isto não oferece mais perplexidade ou o risco de delongas ante o
processo legislativo vigente, de prazos fixos e fatais, tanto para a votação
de Emendas Constitucionais como de textos de leis ordinárias.
E tanto era insegura a posição do Executivo, que a Emenda
Constitucional foi promulgada para remediar situações críticas e tomou o
n. 16, de 26-11-65. De fato, no art. 2º desse novo diploma constitucional, ao
dar nova redação ao art. 101, I, h, se incluiu na competência desse Egrégio
Tribunal o julgamento de representação do Procurador-Geral da República
contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa
federal ou estadual.
A solução, agora, se afina com o sistema constitucional — ao
Executivo inconformado caberá tomar a iniciativa diretamente junto ao
Judiciário, para repudiar as leis inconstitucionais, por intermédio de seu
representante qualificado.
O que o chefe do Executivo do Estado recorrente deveria ter feito,
no meu entender, era provocar representação perante o Supremo Tribunal
Federal (art. 7, VII, b, da Constituição; Lei n. 4.337, de 1-7-64), como
tantas vezes tem ocorrido em casos semelhantes.
Ante o exposto e a relevância da matéria, voto no sentido de
submeter o exame do caso ao Tribunal Pleno”.
Queria fazer um aditamento às judiciosas e brilhantes conside-
rações do eminente Relator. S. Exa. invocou autores americanos no sentido
de se legitimar a interpretação da Constituição por parte do Executivo.
Mas uma coisa é interpretar a Constituição e outra, é declarar a lei
inconstitucional. Parece-me que aí há uma gradação. Repudiar a lei, eu,
pelo menos, nas minhas leituras de direito constitucional americano, nunca
encontrei uma afirmação positiva em que o Governo pudesse repudiar
uma lei por inconstitucional.

421
Memória Jurisprudencial

Parece-me, data venia, que a invocação é um tanto genérica e im-


precisa. No poder de interpretar a Constituição, não se deve entender, ne-
cessariamente ou implicitamente, o de repudiar lei por inconstitucionalidade.
É o esclarecimento que desejava dar.”
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Agradeço muito o esclarecimento
do eminente Ministro Carlos Medeiros. S. Exa. já sustentou esse ponto de vista
com brilho e proficiência na 3ª Turma. Apenas, tendo em vista uma observação
lateral de S. Exa., quero explicar que a citação que fiz do direito americano foi
para mostrar que não se encontra nos autores americanos, como doutrina assen-
te, senão como opiniões isoladas, que o Presidente deva previamente exigir o
pronunciamento do Judiciário, antes de negar aplicação à lei que considere
inconstitucional.
O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Então, não compreendi bem a observação
de V. Exa.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): O sentido era esse, e o entendimento
geral é que aos três Poderes cabe interpretar a Constituição. É claro que a pala-
vra final compete ao Judiciário, mas o Presidente, para agir, não depende do
prévio pronunciamento do Judiciário.
O Sr. Ministro Carlos Medeiros: Há alguns trechos constitucionais que são
auto-executáveis.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Por outro lado, no direito americano
não existe texto equivalente ao da redação que a Emenda Constitucional 16 deu à
nossa Constituição. É, pois, o caso de dizermos, dentro da lógica do meu raciocínio:
legem habemus.
Prossigo na leitura do meu voto, Sr. Presidente.
Sob outro aspecto, a interpretação a que estou aderindo não é obstada pelo
princípio da retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. Em primeiro
lugar, esse princípio já tem suscitado dúvidas e abrandamentos na própria doutri-
na norte-americana que, nesta matéria, nos serve de inspiração. Em segundo, há
constituições que só dão eficácia ex nunc, e não retroativa, à declaração de
inconstitucionalidade. Haja vista a da Itália (art. 136) e a da Áustria (art. 140, n. 3).
Esta última chega a permitir que a Alta Corte Constitucional prolongue, por prazo
de até seis meses, a eficácia da lei declarada inconstitucional (texto em Mirkine-
Guétzévitch, Les Constitutions Européennes, 2/526, 1/310; v. também Cleveland
Maciel, A Obrigatoriedade da Lei e a Ordem Jurídica, 1961, fls. 19-20).
O Supremo Tribunal já tem afirmado a regra da retroatividade (cf. RMS
14.691, 20-5-65), mas isso não é obstáculo, como dizíamos, à interpretação ora

422
Ministro Victor Nunes

preconizada, porque a execução da lei, até o momento da declaração judicial de


sua inconstitucionalidade, seria condicional, restabelecendo-se depois o status
quo ante.
Uma objeção poderia ser levantada, sob outro ângulo, no que respeita à
posição dos Governadores dos Estados, porque a representação de inconstitucio-
nalidade é privativa do Procurador-Geral da República, que não é titular da sua
confiança. Mas essa questão não oferece dificuldade maior, porque a praxe inva-
riável dos Procuradores-Gerais, a propósito do art. 8º, parágrafo único, da Cons-
tituição, tem sido trazer ao julgamento do Tribunal, ainda que com parecer contrá-
rio, todas as representações de inconstitucionalidade apresentadas pelos Gover-
nadores. Nenhuma razão haveria para que mudassem de critério no que respeita
à EC 16. Teríamos, assim, um rápido pronunciamento do Supremo Tribunal, tanto
nas questões suscitadas pelo Presidente da República, como nas de iniciativa dos
Governadores.
Pelas razões expostas, acolho o primeiro fundamento da inicial, para deferir
a segurança. Se a maioria entender de outro modo, prosseguirei no exame dos
demais fundamentos.

MANDADO DE SEGURANÇA 16.512 — DF

Resolução do Senado Federal suspensiva de execução


de norma legal, cuja inconstitucionalidade foi declarada pelo
Supremo Tribunal Federal. Inconstitucionalidade de segunda
resolução daquele órgão legislatório para interpretar a deci-
são judicial, modificando-lhe o sentido ou lhe restringindo os
efeitos. Pedido de segurança conhecido como representação,
que se julga procedente.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: A questão que ora se discute é muito impor-
tante. O debate se alongou, abrangendo vários aspectos constitucionais e, como
dizia há pouco o Sr. Ministro Oswaldo Trigueiro, é muito difícil responder com
“sim” ou “não”.
Em primeiro lugar, Sr. Presidente, apóio, em parte, as considerações do Sr.
Ministro Aliomar Baleeiro, porque o Senado não é um autômato na aplicação do
art. 64 da Constituição.

423
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Sr. Ministro, no meu voto cheguei a dizer
que o Senado não era um mero registrador de decisões do Supremo Tribunal
Federal. Ninguém atribuiu ao Senado Federal a função secundária e deprimente
de dizer amém para aquilo que o Supremo Tribunal diz.
V. Exa. sustentou a opinião do eminente Sr. Ministro Aliomar Baleeiro,
ponto de vista contra o qual nada tenho a impugnar, mas quero salientar que não
fiz essa injúria de dizer que o Senado não é nada, que o Senado é um batedor de
carimbos de borracha das decisões deste Tribunal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu apenas dizia que entendo como o Sr.
Ministro Baleeiro, que o Senado não é um autômato na aplicação do art. 64. O
Senado pode, a meu ver, julgar da oportunidade de suspender ou não a execução
de lei que tenhamos declarado inconstitucional. E há de levar em conta, em tais
circunstâncias, a possível oscilação da jurisprudência do Tribunal, como foi
observado.
Não me refiro, nesse passo, à cláusula constitucional que permite ao Senado
suspender no todo ou em parte a lei declarada inconstitucional, porque me
parece evidente, como disse o Sr. Ministro Adalicio Nogueira, que essa referência
da Constituição está vinculada à extensão do julgado do Supremo Tribunal.
O Senado não pode, por iniciativa própria, suspender a vigência de uma lei
qualquer. Ele só pode suspender uma lei no pressuposto de haver o Supremo
Tribunal decidido contra a sua validade. Está, pois, na contingência de observar
os limites do que o Tribunal decidiu, porque o Senado não pode alterar a nossa
decisão. Se o Senado, ao suspender a vigência de uma lei, pudesse acolher
apenas parte do que decidimos e desprezar o restante, o resultado, em tese,
poderia ser contraproducente, especialmente quando as diversas partes do julgado
fossem indissociáveis.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Por exceção, a Constituição brasileira
concede esse direito.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição não deu ao Senado, no art 64,
o poder de vetar parcialmente as decisões do Supremo Tribunal. Por isso, ele
suspenderá no todo ou em parte a lei, consoante o Tribunal houver declarado a lei
inconstitucional no todo ou em parte.
Mas o Senado terá o seu próprio critério de conveniência e oportunidade
para praticar o ato de suspensão. Se uma questão foi aqui decidida por maioria
escassa e novos Ministros são nomeados, como há pouco aconteceu, é de todo
razoável que o Senado aguarde novo pronunciamento antes de suspender a lei.
Mesmo porque não há sanção específica nem prazo certo para o Senado se
manifestar.

424
Ministro Victor Nunes

Vem, agora, o problema da natureza do ato que o Senado pratica quando


suspende a execução de uma lei, em obediência à decisão do Supremo Tribunal.
Esse ato, por um lado, é evidentemente executório ou secundário ou complemen-
tar, como disse o Sr. Ministro Pedro Chaves, porque ele não poderia ser praticado
se não preexistisse a decisão do Supremo Tribunal. Sendo um ato vinculado à
decisão, é secundário, complementar ou executório em relação a ela.
Por outro lado, esse ato não deixa de ser normativo. Se a lei é normativa e
o Senado, ao suspendê-la, retira a eficácia da lei, ele acrescenta alguma coisa à
decisão, e esse acréscimo tem força tão normativa quanto a da lei que é posta
fora de circulação. Se essa eficácia normativa, que suspende a lei, não derivasse
da resolução do Senado Federal, mas do julgado do Supremo Tribunal, a interven-
ção do Senado seria desnecessária: a decisão seria executada, desde logo, com
efeito normativo. Mas não é esse o nosso sistema. Daí a necessidade de se
acrescentar um plus à decisão judiciária, tornando-a obrigatória erga omnes, por
ser ela, por natureza, obrigatória somente para as partes.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Funciona como extensão, como esclareceu
o eminente Ministro Prado Kelly, porque a decisão judicial é proferida no caso e,
pela complementação do Senado Federal, fica extensível a todos, fica suspensa a
execução.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Perfeitamente, mas eu diria que é um pouco
mais que extensão, porque depois que o Senado aprova resolução suspendendo a
lei, os tribunais não mais a podem aplicar. Para todos os efeitos, a lei, em tal caso,
se considera revogada.
Não importa que a lei tenha emanado de outro Poder (decreto-lei) ou das
duas Câmaras, com a colaboração do Presidente. A Constituição é que regula
como se fazem as leis e como se revogam. Se a Constituição previu, na hipótese
que estamos discutindo, um modo especial de revogação de lei, não podemos
negar-lhe obediência, a Constituição há de prevalecer.
Por tudo isso, parece-me que o ato suspensivo do Senado é de natureza
normativa, porque tem o efeito de revogar a lei. Por ser normativo, com esse efeito
revocatório da lei, parece-me de todo evidente que o Senado não pode voltar atrás,
pois a lei revogada só se restaura por outra lei. O Senado só poderia restaurar a lei
que ele, ao suspender, revogou, se tivesse poder legislativo autônomo, se tivesse o
poder de fazer a lei originária. Mas esse poder ele não tem, sequer quanto às leis
federais, muito menos quanto às estaduais, como é o caso dos autos.
Acolho, portanto, a representação.

425
Memória Jurisprudencial

RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 16.912 — SP


Relator: O Sr. Ministro Djaci Falcão
Recorrente: Nardy Ferreira — Recorrido: Estado de São Paulo
O parágrafo único do art. 126 da Lei estadual n. 8.101, de
16-4-1964, estabelecendo critério de provimento de serventia
vitalícia em benefício exclusivo de certo serventuário da Jus-
tiça, afeta o direito de outros serventuários que guardam
identidade de situação.
Regra legal que personaliza afronta ao princípio editado
no § 1º do art. 141 da Constituição Federal de 1946.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por maioria de votos, dar provimento em parte, para
julgar inconstitucional o parágrafo único do art. 126 da Lei paulista 8.101, de 16
de abril de 1964.
Brasília, 31 de agosto de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente — Djaci Falcão,
Relator.

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Djaci Falcão: Em mandado de segurança impetrado por
Nardy Ferreira contra ato administrativo do Exmo. Sr. Governador do Estado de
São Paulo, assim decidiu o egrégio Tribunal de Justiça:
“Acordam, em Quinta Câmara Civil do Tribunal de Justiça, pelo
voto de desempate do Sr. Desembargador Presidente da Sessão, rejeitar a
argüição de inconstitucionalidade do art. 126 e seu parágrafo único da Lei
n. 8.101, de 16 de abril de 1964, e denegar a segurança, no mérito, contra
os votos dos Desembargadores Relator e Pereira Lima; e, por votação
unânime, declarar irrelevante preliminar suscitada pelo impetrado.
l. Havendo a Lei n. 8.101, em seu art. 126, criado, como serventia
autônoma, o Cartório do Registro de Imóveis e Anexos na comarca de
Suzano, e determinado, em seu parágrafo único, a prioridade absoluta de
opção ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do distrito da
sede, para compensá-lo da perda do anexo de tabelionato, impetrou Nardy
Ferreira esta segurança, contra ato do Sr. Governador do Estado, que,

426
Ministro Victor Nunes

apesar de ter vetado o dispositivo em exame “por conter providências de


caráter estritamente privado”, não vacilou em prover na aludida serventia
o beneficiário, José Maria de Souza Coutinho.
A impetração deste writ se baseia na inconstitucionalidade do art.
126 e de seu parágrafo único, cujo reconhecimento resultará na ineficácia
do ato de provimento.
Para o impetrante, a opção está viciada por uma falsa causa, pois a
compensação representa um bis in idem, visto que o beneficiado já havia
recebido compensação, consistente, nos termos do art. 23, parágrafo
único, da própria Lei n. 5.285, de 1959, que criou a comarca de Suzano,
com a atribuição dos anexos de distribuidor, contador e partidor, e não
optara, naquela emergência, para ofícios de notas da mesma classe de
outras comarcas. A opção conferida pelo art. 126 e seu parágrafo violou,
frontalmente, o princípio da igualdade de todos perante a lei, criando a lei
uma serventia com dono certo.
2. Não obstante o veto, não titubeou o ilustre Chefe do Executivo
estadual em prover o Oficial do Registro das Pessoas Naturais na nova
serventia, pois não considerou a opção inconstitucional, mas somente
imoral. Argumenta-se, primeiramente, que a lei é concebida como uma
regra geral, não devendo um indivíduo apenas, ou um grupo de pessoas.
Mas, como assinala Giorgio Del Vecchio, essa característica não é
absoluta ou essencial, pois casos há em que a lei possa cogitar de uma
certa relação individual.
Daí, e com toda razão, haver declarado o ilustre impetrado que
nenhuma inconstitucionalidade se poderia vislumbrar na espécie dos autos,
devendo-se enxergar, quando muito, um caso de imoralidade.
3. Por outro lado, não parece reger o princípio da isonomia o
provimento das serventias, a não ser quando se impeça, por motivos
pessoais e inaceitáveis, concorra a ele determinada pessoa. Tem-se
observado como regra, nos primeiros provimentos de serventias, a livre
escolha feita pelo Executivo e, no caso, essa prerrogativa foi exercida pelo
Legislativo, com a disfarçada anuência do Executivo.
4. Acresce que sequer, a pretexto de se dar ao beneficiado uma
compensação, pode constituir injustiça, por ter havido anterior compensa-
ção, em parte não aproveitada pelo beneficiado. Isto mesmo reconheceu o
douto Advogado Chefe da Consultoria Jurídica da Secretaria da Justiça,
em parecer que consta dos autos.

427
Memória Jurisprudencial

Como observa o interveniente, por seu douto patrono, o impetrado,


não obstante o veto, sem base em inconstitucionalidade, nomeou o indicado,
apesar de seu então ilustre Secretário da Justiça, Prof. Miguel Reale, líder
indiscutível da corrente que sustenta caber ao Poder Executivo negar
cumprimento à lei sempre que considerá-la inconstitucional. É que o
dispositivo impugnado procurou corrigir injustiça feita por lei anterior,
hipótese em que não pode assumir caráter de generalidade, “porque nela se
contém, como substância, corrigir o erro “em relação a determinado ou
determinados serventuários” (fl. 71).
5. A prova de que não se vem observando o regime cartorário
estabelecido pela Lei n. 5.285, de 1958, se encontra na mensagem
encaminhada pelo Presidente do Poder Judiciário à Assembléia
Legislativa, propondo a alteração da Lei n. 8.101, a fim de se restabelecer
esse regime, sem que, entretanto, houvesse sugerido mesmo a
modificação ou revogação do art. 126 e de seu parágrafo único. Como
ficou anotado, essa mensagem indicou razões de conveniência, e não de
legalidade.
6. A divisão e a organização judiciárias sofreram alterações por
proposta do Tribunal de Justiça, e o Legislativo lhe apresentou algumas
emendas, que vingaram. Entre elas, a da criação da serventia a que alude
o art. 126 da Lei n. 8.101. Não houve, conseqüentemente, qualquer
violação da regra do art. 124, inciso I, da Constituição Federal.
7. Há que notar ainda que o impetrante, por meio de mandado de
segurança, já se beneficiou com o seu provimento no Primeiro Ofício de
Notas e Anexos daquela comarca.
8. O dispositivo em foco poderá ser havido como imoral, mas não
apresenta o vício de inconstitucionalidade, que lhe querem atribuir. Não se
invalidando por esse defeito, subsiste a nomeação feita pelo Executivo,
pelo que também fica denegada a segurança.
São Paulo, 9 de outubro de 1964.” (Fls. 118-120).
O Exmo. Sr. Desembargador Batalha de Camargo, acolhendo em parte a
argumentação do impetrante, reconheceu a inconstitucionalidade do parágrafo
único do art. 126 da Lei n. 8.101, de 16-4-1964, por afrontar o art. 141, § 1º, da
Constituição Federal de 1946, e o art. 93, letra g, da Constituição estadual. Tam-
bém ficou vencido o Exmo. Sr. Desembargador Pereira Lima, que entendeu
positivado o vício da inconstitucionalidade do art. 126 e do seu parágrafo único
(fls. 121-132, e 135 usque 141).

428
Ministro Victor Nunes

Pelo requerente do writ, foi manifestado, em tempo útil, recurso ordinário


com base no art. 101, inciso II, letra a, da Constituição Federal de 1946 (fls. 142-
157). Após o oferecimento das contra-razões do interveniente (fls. 174-179), subi-
ram os autos a esta instância, onde oficiou a douta Procuradoria-Geral da Repú-
blica pelo provimento do recurso (fls. 187-188).

VOTO
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): O impetrante do mandado de segu-
rança é titular do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos (inclusive o
Registro de Imóveis) da comarca de Suzano. Desmembrando a serventia, assim
dispôs a Lei estadual n. 8.101, de 16-4-1964, no seu art. 126:
“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro de
Imóveis e Anexos na Comarca de Suzano.”
E, no parágrafo único, estatuiu:
“Ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do distrito
da sede da referida Comarca, fica assegurada prioridade absoluta de
opção para esse cartório, como compensação pela perda do anexo de
tabelionato decorrente da criação da Comarca, devendo requerer no prazo
de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta lei, ao Secretário da Justiça e
Negócios do Interior”.
Na serventia criada foi provido José Maria de Souza Coutinho, oficial do
Registro Civil das Pessoas Naturais da sede da Comarca de Suzano, nos termos
do citado parágrafo único. Daí resultou o presente mandado de segurança,
impetrado por Nardy Ferreira, titular do cartório do 1º Ofício de Notas e Anexos
(inclusive o Registro de Imóveis, então desmembrado), que objetiva o reconheci-
mento da inconstitucionalidade do art. 126, e seu parágrafo único, da Lei n. 8.101,
por ofensivos ao art. 141, § 1º, da Constituição Federal de 1946, e do art. 93, letra
g, da Constituição estadual; e seja tornado sem efeito o ato do provimento de
José Maria de Souza Coutinho.
Não padece dúvida de que a vitaliciedade dos titulares de ofício de justiça
(art. 187 da Constituição de 1946) não constitui óbice à divisão dos ofícios. Por
isso, não vejo como acoimar de inconstitucional o art. 126, caput, da Lei n. 8.101.
Porém, no que tange à disposição inserida no seu parágrafo único, a mim se
afigura ilegítima ante o princípio consubstanciado no § 1º do art. 141 da Carta
Política de 1946. Ao conferir a chamada “prioridade absoluta” de opção ao “atual
Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais”, para efeito do provimento da
nova serventia, desanexada do Cartório do Primeiro Ofício de Notas e Anexos,
de que é titular o impetrante da segurança, e não o beneficiário, titular que é do
Registro Civil das Pessoas Naturais, o legislador editou norma de caráter pessoal,

429
Memória Jurisprudencial

ao arrepio, pois, do princípio da igualdade de todos perante a lei. Vê-se que a


regra não guarda o caráter da generalidade, eis que personaliza. Estabelecendo
um critério de provimento em benefício exclusivo de um serventuário da Justiça,
afetou o direito dos demais serventuários do Estado que se encontrem nas mes-
mas condições de disputar o preenchimento do cargo criado.
Segundo está expresso no dispositivo questionado, tem por finalidade com-
pensar o oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais, da sede da Comarca de
Suzano, pela perda do anexo de tabelionato decorrente da criação da Comarca.
Ocorre, no entanto, que essa perda se operou em face da Lei n. 5.285, de 18-2-
1959, criadora de várias comarcas, dentre elas a de Suzano. Ademais, o parágrafo
único do art. 23 desta lei atribuiu ao titular do Cartório do Registro Civil das
Pessoas Naturais, desfalcado do anexo de tabelionato, os anexos de distribuidor,
contador, partidor e depositário, consoante reconhece o próprio interveniente,
apesar de sustentar incorrer aí uma compensação (fl. 44).
É inadmissível a compensação ditada pela Lei n. 8.101, de 16-4-1964, cinco
anos após a perda do anexo de tabelionato através da Lei n. 5.285, de 18-2-1959,
que já havia estabelecido a verdadeira compensação. Há, desse modo, uma falsa
causa na nova compensação.
A restrição do parágrafo único do art. 126 da Lei n. 8.101, ao critério
normal de provimento das serventias de justiça, previsto na Lei estadual n. 819,
de 1950, teve em mira beneficiar determinada pessoa em detrimento de outras,
afetando, assim, o princípio da isonomia, cogente também para quem legisla.
Destarte, o ato de nomeação do interveniente assentou em regra inconsti-
tucional, afetando direito subjetivo do impetrante, bem como de outros ser-
ventuários que podem disputar a nomeação para o cargo. Assim, dou provimento
ao recurso para, concedendo, em parte, o mandado de segurança, reconhecer a
nulidade do ato de nomeação de José Maria de Souza Coutinho para a serventia
do Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Suzano.

VOTO
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: De acordo com o eminente Relator, dando
ênfase ao fato de que a inconstitucionalidade, para mim, decorre da violação do
princípio constitucional que atribui ao Chefe do Executivo a competência exclusiva
para prover os cargos públicos.

VOTO
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, dou provimento ao recurso,
na totalidade.

430
Ministro Victor Nunes

Estou com o eminente Relator em que a lei pode determinar o desmembra-


mento de serventias, no interesse do serviço. Mas não poderia fazê-lo sem que
ficasse assegurado, concomitantemente, ao serventuário, que é vitalício, o seu
direito pela opção por uma das serventias resultantes da nova organização.
Ora, o que estabeleceu a lei? Retirou do serventuário uma parcela do
ofício de justiça e a atribuiu a outro. Não vale a lei, tanto na parte em que deu
opção a outrem, como na em que não resguardou o direito do titular do Cartório.
Para restaurar o direito do impetrante, a solução única, no caso, será decla-
rar a inconstitucionalidade total do dispositivo. É claro que nova lei ainda poderá
dividir o Cartório, dispondo, por forma adequada, sobre o direito do serventuário.
Mas o art. 126 e seu parágrafo da Lei 8.101, com o vício apontado, não podem
prevalecer.
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: V. Exa. pode me prestar um esclare-
cimento? É sobre a legitimidade do mandado de segurança. O que não vejo é o
direito líquido e certo de quem pede a segurança.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Afirmou-se que o impetrante não teria legí-
timo interesse. O seu direito, líquido e certo, violado, decorre...
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Qual é?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: ... da condição de titular, vitalício, do Cartório
que sofreu o desmembramento.
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Poderia haver uma expectativa de
direito, mas não um direito líquido e certo.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não me parece que haja pura expectativa
de direito. Se era possível ou necessário desmembrar o ofício de justiça, não se
podia situar o serventuário, compulsoriamente, numa determinada parcela,
resultante da divisão. Não se poderia tirar ao serventuário vitalício uma parte
do Cartório, sem lhe assegurar, por qualquer forma, o direito. O dispositivo legal
feriu o direito do impetrante, porque, longe de lhe conferir a opção, a instituiu em
favor de outro.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Já existe, no direito estadual, uma norma
legal, genérica, facultando a opção em caso de desmembramento?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O impetrante era vitalício, o que significa
que não podia perder, a não ser em virtude de sentença judiciária, a posição de
titular do ofício de justiça. Lícito, em benefício do serviço, o desdobramento, era
preciso que ele tivesse o direito de optar por uma das serventias. A nada se há de
reduzir a garantia, se se puder desmembrar a serventia sem atenção a direito de
seu titular. A opção é, no caso, modalidade de realização desse direito. A lei é de 16-
4-1965, ao tempo em que se achava restabelecida a garantia constitucional, que
fora suspensa por seis meses, pelo Ato Institucional de 9-4-1964.

431
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Minha pergunta não era bem nesse sentido.
Eu procurava compreender o alcance do voto do eminente Relator, porque se já
existe norma no direito estadual garantindo a opção em casos como este, abolido
o parágrafo, funcionaria a regra da opção.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O eminente Relator, ao dar provimento, em
parte, ao recurso, declarou inconstitucional somente o parágrafo, e não o caput,
que, pelo desmembramento, criou o Cartório.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas supondo que haja, no direito estadual,
uma regra genérica de opção para tais casos, uma vez abolido o parágrafo, ob-
servar-se-ia essa regra da opção em favor do impetrante.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Entendi, do voto do eminente Relator, que S.
Exa. admite que se há de prover o novo cargo pela forma comum, seja concurso,
seja outra forma, mas não pela investidura do antigo titular.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Mas suponhamos que haja uma norma geral
de opção (problema a ser esclarecido). Se já existe essa regra, por que o desmembra-
mento da serventia seria inconstitucional?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não julgo inconstitucional o desmembra-
mento da serventia, só por si.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, V. Exa. julga inconstitucional o caput e
o parágrafo, portanto, anula o desmembramento da serventia. Mas já existe — é
minha pergunta — uma regra geral de opção no direito estadual?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Esse ponto, da existência no direito estadual
de regra geral sobre opção, em tal hipótese, não foi esclarecido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Talvez o ilustre advogado pudesse esclarecer.
O Sr. Theotonio Negrão (Advogado do recorrente): Realmente, não existe
um texto geral sobre opção: existe uma sistemática, uma tradição apoiada por
quatro leis diferentes, mas essas leis são qüinqüenais. Não existe texto geral.
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Não há menção deste princípio.
O Sr. Rubens Catelli (Advogado do recorrido): Pediria licença para lem-
brar que já a Lei 5.285 dava opção preferencial ao recorrente para valer-se do
direito de ficar serventuário.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O ilustre advogado do recorrente informa
sobre regra especial, contida em outras leis. No Rio Grande do Sul, procede-se,
de ordinário, por esta forma: normas especiais, cada vez que se desmembram
serventias, asseguram aos titulares a opção. Mas asseguram por quê?

432
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Entendi. Não há um princípio genérico, mas


regra específica em cada desmembramento.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Mas o fazem por quê? Na ausência de
regra geral, impõe-se regra especial sobre a opção, para respeitar o direito do
antigo titular.
Influenciado, naturalmente, por essa observação, julgo que não se pode
manter o caput do art. 126, que é contrário ao sistema constitucional, por não
assegurado, por forma adequada, o direito do titular do primitivo ofício de justiça.

VOTO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sr. Presidente, quero declarar apenas a
inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 126 da Lei 8.101 pelos funda-
mentos do eminente Relator.

PEDIDO DE VISTA
O Sr. Ministro Prado Kelly: Sr. Presidente, peço vista dos autos.

DECISÃO
RMS 16.912 — SP. Matéria Constitucional. Relator, o Sr. Ministro Djaci
Falcão. Recorrente: Nardy Ferreira (Advogado: Theotonio Negrão). Recorrido:
Estado de São Paulo (Advogado: Rubens Catelli). Pediu vista o Ministro Prado
Kelly após os votos dos Ministros Relator, Adaucto Cardoso e Aliomar Baleeiro,
dando provimento em parte ao recurso, e do Ministro Eloy da Rocha, dando
provimento in totum. Impedido, o Ministro Raphael de Barros Monteiro.
Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Licenciados, os Ministros Hahnemann
Guimarães e Oswaldo Trigueiro.
Tribunal Pleno, 23 de agosto de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos,
Vice-Diretor Geral.

VOTO
O Sr. Ministro Prado Kelly: Documentam os autos que, ao tramitar o Pro-
jeto de Lei n. 2/62, sobre organização judiciária, se encartou no substitutivo da
Comissão permanente o art. 143, com o teor seguinte:
“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro de
Imóveis e Anexos, na comarca de Suzano.
Parágrafo único. Ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas
Naturais do distrito da sede da referida comarca fica assegurada prioridade

433
Memória Jurisprudencial

absoluta de opção para esse cartório, como compensação pela perda do


anexo de tabelionato decorrente da criação da comarca, devendo requerer
no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta Lei, ao Secretário da
Justiça e Negócios do Interior”. (Fl. 2)
Formalmente, a Assembléia podia, à época, exercitar a faculdade de
emenda, em razão de pertinência do respectivo texto ao objeto da proposição
originária. Assim decidimos em outros processos e não vem a pêlo insistir no
tema.
Também sob o aspecto formal, é incontestável que lei especial ou decreto
legislativo podem reger situações individuais ou particulares, dependentes de pro-
nunciamento da legislatura. Em tal caso se equiparam, materialmente, a atos
administrativos ou jurisdicionais.
Mas, para que subsista nexo entre o projeto e a emenda, é de rigor que a
última corresponda, como o primeiro, aos fins de interesse público pressupostos
na iniciativa, ou seja, na hipótese, o exclusivo interesse do servidor judiciário.
Desse ângulo, o recorrente invocou violação à “igualdade jurídica”, por
se lhe retirar o direito de opção que as leis estaduais têm reconhecido ao
serventuário prejudicado com o desmembramento de sua serventia (cf. fl. 9).
E, a propósito, confirma a argüição o voto vencido do ilustre Desembargador
Arlindo Pereira Lima:
“(...) uma vez instituída a carreira do Serventuário da Justiça,
através da Lei n. 819, de 31 de outubro de 1950, jamais poderia o legislador
ordinário estabelecer ‘um regime diverso e de exceção’, como bem
adverte a inicial, tanto mais que ‘retirou do impetrante o direito de opção
que todas as leis reconhecem ao serventuário que sofre desmembramento
de sua serventia’ (cf. item 4 a fls. 7 e também a fls. 9).” (Fls. 136-137)
Devo acrescentar que, no princípio da igualdade “perante a lei”, está ínsito
outro princípio — o da “legalidade”, tanto vale dizer, o da “supremacia da lei”,
freio e contenção da potestade governativa, qual o exprimiram o § 2º do art. 141
da Constituição de 1946 e o § 2º do art. 150 do atual Estatuto. Demonstrou
Duguit que “a generalidade é a razão mesma da lei”, tanto por seu fundamento
racional quanto por seu fundamento histórico. Do prisma do primeiro, porque
tal caráter é “a conseqüência lógica da idéia que se forma universalmente da lei”,
por via da qual se exprime a “regra de direito”, disciplina social fundada na
interdependência dos homens. Do prisma do segundo, porquanto só com aquele
caráter se constituiu historicamente a função legislativa, a última das funções
jurídicas do Estado, e só por aquele meio significou a lei escrita a proteção mais
eficaz do indivíduo contra o arbítrio do poder político.
A argumentação do decano bordelense tem em seu prol um velho escólio de
Rousseau: “O que ordena o próprio soberano em matéria particular não é lei, e sim

434
Ministro Victor Nunes

decreto, não é ato de soberania, e sim ato de magistratura”. Tem ainda em seu
abono a definição, em sentido material, inserta na Constituição francesa de 1793:
“A lei só pode ordenar o que é justo e útil à sociedade; só pode vedar o que lhe é
nocivo”. Conta, por último, com a chancela de Esmein (Droit Constitutionnel, 7.
ed., vol. I, p. 22 e vol. II, p. 399), de Planiol (Droit Civil, vol. I, § 136), de Hauriou
(Droit Administratif, 10. ed., pp. 56 e ss.). E sobreexcele os pontos de vista, menos
convincentes, de Jellinek, Laban e Carré de Malberg.
Tenho por demonstrado que a emenda não obedeceu ao presumido escopo
do interesse público, e sim a uma inspiração que nem por ser equânime ou
reparadora (como pareceu ao interveniente) deixa de ser particularista ou de
favorecimento pessoal.
Tanto o admite o eminente Relator, que fulminou de inconstitucional o pa-
rágrafo único da Lei n. 8.101, de 1964. Mas este parágrafo jamais existiria sem o
caput do artigo. Nem o artigo teria razão de ser se lhe faltasse o parágrafo. Um
e outro são siameses, indissoluvelmente ligados entre si tanto pelo que afirmam —
o benefício especial concedido —, quanto pelo que negam — a conveniência
geral do serviço, inconfundível com privilégio ou vantagem individuais.
Concessa venia, acompanho o voto do eminente Ministro Eloy José da
Rocha.

VOTO
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, também eu, data venia
dos eminentes Ministros que já votaram anteriormente, estou de acordo com o
pronunciamento do eminente Ministro Eloy da Rocha, agora prestigiado pelo voto
do eminente Ministro Prado Kelly.
Entendo que, realmente, não é possível destacar o parágrafo do caput do
artigo. O artigo, na sua expressão inicial, foi, justamente, elaborado com o objetivo
de servir, também, ao parágrafo. Não se pode, em verdade, dissociar um do
outro. Ambos se interpenetram. O artigo foi feito para que o parágrafo servisse
de objetivo à sua finalidade.
De maneira que estou com os que pensam que o dispositivo é inconstitu-
cional. Mas o é no seu todo. Em realidade, a lei tem caráter privatístico, tem
destinação particular, visa ao interesse exclusivo do seu beneficiário. Além do
mais, a nomeação em apreço, que devia decorrer de um ato do Poder Público,
isto é, do Poder Executivo, foi feita pelo próprio Poder Legislativo, marcando,
assim, a intenção inequívoca de servir ao interesse do funcionário que foi por ela
beneficiado.
Assim sendo, dou provimento, in totum, ao recurso, nos termos dos votos
dos eminentes Ministros Eloy da Rocha e Prado Kelly.

435
Memória Jurisprudencial

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, não fixei bem a hipótese. O
caput do artigo desmembrou o cartório, e o parágrafo mandou aproveitar deter-
minado servidor?
O Sr. Ministro Prado Kelly: Tratava-se da reforma judiciária, e a emenda
representou um desvio de poder da própria legislatura, vindo afinal a ter a seguinte
redação — no art. 126 da Lei 8.101:
“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro de
Imóveis e Anexos, na comarca de Suzano.
Parágrafo único. Ao atual Oficial do Registro Civil das Pessoas
Naturais do distrito da sede da referida comarca fica assegurada
prioridade absoluta de opção para esse cartório, como compensação pela
perda do anexo de tabelionato decorrente da criação da comarca, devendo
requerer no prazo de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta Lei, ao
Secretário da Justiça e Negócios do Interior”. (Fl. 2)
Sr. Ministro Relator, permiti-me prestar o esclarecimento, porque os autos
estavam em meu poder.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos. Peço vênia a V.
Exa. para acompanhar o voto do eminente Relator, que anulou apenas o parágrafo.
Ouvi, com a maior atenção e agrado, a doutrina sustentada, seja pelo emi-
nente Relator, seja pelo ilustre Ministro Prado Kelly, que lhe deu mais desenvolvi-
mento, no sentido de que podemos exercer controle sobre os desvios de poder da
própria legislatura. Não é uma doutrina aceita — digamos assim — com geral
aprovação.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas note V. Exa. que se tratava de examinar
o “poder de emenda” no Legislativo. Só se legitima tal poder, nos casos de que se
cuida de acordo com os precedentes, quando haja conexão com o projeto principal;
e deixa de haver conexão se, a pretexto de prover em assunto de interesse público,
se toma deliberação tendente a proteger direto pessoal.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não estou inteiramente em desacordo com
V. Exa., mas acho que a noção de abuso é que permite ao Judiciário exercer uma
função moderadora no controle da ação de outros Poderes. Tanto a noção de
uso como a de abuso não têm definição muito precisa, mas a jurisprudência as
vai construindo, lentamente, com os seus precedentes. Aliás, é importante notar,
é à base de noções não muito precisas, não completamente definidas no texto
legal, que a jurisprudência realiza suas mais valiosas construções.
Não sou de todo infenso à doutrina, que folgo ver sustentada por V. Exa.,
com sua alta autoridade. Mas não me parece que o caput do dispositivo

436
Ministro Victor Nunes

questionado esteja contaminado, de maneira tão visível, tão ostensiva, de um


desvio de poder que devamos corrigir, porque o caput desmembrou uma
serventia. Isso é coisa usual e corriqueira na organização judiciária. Onde o fa-
voritismo realmente aparece com evidência é no parágrafo. Eliminado o parágra-
fo, alguma disposição nova será baixada pelo legislador de São Paulo ou se
aplicarão as leis vigentes para que o provimento da serventia criada se faça
com critério de justiça.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Consinta V. Exa.? A única emenda apresentada
(criando serventia) era apenas um meio para assegurar proteção ao interveniente.
Em matéria de formação de lei, valem como subsídios úteis os documentos
parlamentares. Há que atentar na tramitação, nos motivos do veto, na intenção
realmente identificada, na benemerência da legislatura em relação a determinado
servidor.
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Por paradoxal que pareça, o caput existe
em razão do parágrafo, e não o contrário.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Estamos entrando no subconsciente do
espírito legislativo. As intenções pertencem a Deus. O legislador legisla por mil
motivos. Um pode legislar pelo bem da Pátria, outro pelo bem da região, outro no
interesse social. Podemos adivinhar quais as intenções do legislador se elas não
estão expressas nesses motivos? Ela quis dar uma compensação pela falta do
cartório.
Outra coisa que eu queria que o eminente Ministro Victor Nunes esclare-
cesse — e nessa parte S. Exa. deu apoio ao ilustre Ministro Prado Kelly — é se
admite um desvio de poder do Poder Legislativo fora do caso de inconstituciona-
lidade.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Admito.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Então, por via de conseqüência, V. Exa.
admite a responsabilidade do Poder Legislativo pela elaboração das leis, como já
houve quem defendesse.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não o admito além dos casos de inconstitucio-
nalidade.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Sempre admito que uma interpretação
traz outras conseqüências.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Por isso, procurei ser exato nos termos que usei.
O que estava em causa era o velado desrespeito ao princípio da legalidade.
Esse princípio, associado ao da igualdade jurídica, pressupõe que a lei tem efeitos
gerais. É um resguardo da própria autoridade do Legislativo e é uma garantia

437
Memória Jurisprudencial

para os cidadãos. Admito o exercício da faculdade de emenda atribuída ao legis-


lador, mas verifico que, no caso concreto, ele usou daquela faculdade com desvio
do fim pressuposto na Constituição e nas normas que regem a disciplina do órgão.
Por quê? Porque, em vez de prover em relação ao bem público, atendeu a um
interesse pessoal menos legítimo. É esse o ponto, e só com essa limitação eu
admitiria a pesquisa da intenção do legislador, a fim de dar por comprovado o
detournement de pouvoir.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Meu eminente mestre e amigo, me per-
doe a interrupção, mas me parece que a nós não é dado penetrar nas intenções
do legislador, se ele não as expressa, para ver quais foram os fins da política
legislativa por ele adotada.
Suponhamos que esse homem foi despojado de uma parte do cartório e,
com a criação da comarca, perdeu o tabelionato. O Poder Legislativo quis que
lhe ficasse assegurada a pensão de cem mil cruzeiros como compensação. Pode-
ria fazer por um outro caminho, mas deu preferência para um determinado cartó-
rio a um servidor que já era titular do ofício.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O primeiro ponto de V. Exa. diz respeito ao
exame dos fins que teve em vista o legislador ao elaborar a lei. Tal exame está
presentemente acantonado no campo da administração pública. Mas em que
consiste a apuração ou a análise dos fatos? Consiste em verificar se
comprovadamente a intenção da autoridade executiva está em harmonia com os
fins pressupostos na lei ou se, ao contrário, atende a outros interesses.
No caso, os documentos parlamentares demonstram que se teve em vista
não medida de interesse geral, porém medida particularista em benefício de certo
serventuário.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Porque ele foi despojado.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Este é outro ponto. Queriam compensá-lo por
perda sofrida com uma outra reforma. O benefício, portanto, seria estritamente
pessoal. O eminente Ministro Aliomar Baleeiro o equipara a pensão, mas, desse
prisma, o projeto...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Para compensar determinado cidadão
pela perda material que havia sofrido.
O Sr. Ministro Prado Kelly: ... concederia indenização arbitrária, sem que
lhe precedesse ação judicial.
A admitir a argumentação de S. Exa., chegaríamos a esta conclusão: a lei,
na qual se converte projeto que confira pensão, só o é formalmente.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Pergunto ao meu eminente mestre e amigo:
é destituída de constitucionalidade uma lei que não tem substância de lei, não tem

438
Ministro Victor Nunes

carne, nem sangue, nem ossos de lei? Ela o é apenas em sentido formal, como
todos os Congressos e Parlamentos do mundo elaboram, contanto que não ofenda
a Constituição.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Ora, é atribuição do Congresso conceder pensão
por meio de leis especiais.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O Congresso vota freqüentes leis que
concedem pensão à viúva de um grande nome nacional, como Rui Barbosa, à
viúva de um ex-presidente da República, à viúva de um guarda que foi assassina-
do por ladrão, etc.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Nesses casos se exercita atribuição legítima
do Poder Legislativo, a qual procede da Carta de 1824. Mas não é disso que se
cuida. O que se cuida aqui é de uma lei que a Constituição sujeita ao crivo do
Tribunal de Justiça, Lei de Reforma Judiciária, em que todo pressuposto das
medidas propostas há de ser o do interesse público, e nela se encontra, anomala-
mente, uma disposição bipartida (caput do artigo e parágrafo), com um só escopo,
o de beneficiar determinado servidor.
Se essa norma, apesar de decomposta, não ofende a disciplina que rege a
formação das leis, e indiretamente o princípio da legalidade, no qual assenta todo
o nosso sistema político, não sei por que nos cingirmos exclusivamente a um vício
de origem no ato de nomeação, sustentando que o provimento do cargo incumbi-
ria ao Governador do Estado. Este é, em ultima ratio, o motivo que invalida o
parágrafo. Quaisquer outros afetariam, ao mesmo tempo, ao parágrafo e ao
caput do artigo.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas, eminente Ministro, não se trataria aí de
uma norma de direito singular?
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não o é. Deparava-se um projeto de ordem
geral: tratava-se de organização da Justiça do Estado. Passou por todas as
exigências que duas Constituições estabelecem, escoimaram-se disposições de
favor pessoal. O legislador não mirou a um simples desmembramento da
serventia. Mirou ao interesse pessoal do beneficiado. Nesse ponto, o Tribunal
expurga o vício da lei. Mas em nome de que interesse público se sacrifica o
direito individual do recorrente, o qual dele se viu despojado por um processo que,
aos nossos olhos, nem jurídica, nem eticamente, se legitima?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, sinto-me recompensado de
ter, talvez inadvertidamente, de qualquer modo não intencionalmente, provocado
essa polêmica tão esclarecedora sobre um tema que é da máxima relevância.
Para concluir meu voto, ante a extensão que tomou o debate, deverei dar
alguns esclarecimentos sobre as palavras proferidas anteriormente. Antes, porém,
queria perguntar ao eminente Relator como se comportou o Tribunal de Justiça
em relação ao desmembramento do cartório.

439
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Com relação ao artigo, o Tribunal


considerou-o constitucional.
O Sr. Ministro Victor Nunes: E antes da elaboração? O projeto resultou de
iniciativa do Judiciário?
O Sr. Ministro Djaci Falcão (Relator): Sim, na sua inteireza resultou do
Judiciário. Quero acrescentar, data venia do voto do eminente Ministro Prado
Kelly, que eu não cheguei a concluir pela inconstitucionalidade in totum, porque
não existem nos autos elementos bastantes, a meu ver, para positivar que tanto a
criação quanto o modo de provimento objetivassem amparar, de modo ilegítimo, o
funcionário que foi provido no cargo. Tendo em vista, por outro lado, que a vitali-
ciedade do titular do ofício desmembrado, por si, não constitui óbice ao
desmembramento da serventia. Poderá ter ocorrido no caso motivo de interesse
público para a criação do Cartório do Registro Imobiliário, por isso é que considero
apenas ilegítimo o modo de provimento.
Também acolho, consoante ouvi da excelente exposição do Ministro Prado
Kelly, a figura do avviamento di potere dos italianos, détournement de pouvoir
dos franceses, que entre nós também já não constitui figura estranha, tanto assim
que temos em nossa literatura monografia sobre o assunto (Do Desvio de Poder,
de José Cretella Júnior). Mas, data venia do entendimento esposado por S. Exa.,
eu, diante dessas considerações, não me senti animado a concluir pela
inconstitucionalidade, na sua inteireza, do artigo e do parágrafo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando meu voto, Sr. Presidente, passo
ao esclarecimento que desejava dar. Quando o Sr. Ministro Aliomar Baleeiro
perguntou se eu admitia um controle da ação do Legislativo fora da típica argüi-
ção de inconstitucionalidade, respondi que admitia. Mas antes que pudesse dizer
em que termos o admitia, o debate se espraiou.
Em primeiro lugar, prefiro usar, a esse respeito, a noção de abuso, e não a
de desvio de poder. Pela doutrina francesa, que mais longamente elaborou o
conceito, o desvio de poder se configura não apenas quando o ato deixa de aten-
der a um fim de interesse público, mas também quando, pressuposto pela norma
jurídica determinado fim de interesse público, o ato é praticado com outra finali-
dade, ainda que de interesse público. O desvio de poder, nessa segunda modalidade,
conduziria, por via indireta, à incompetência da autoridade, porque ela só seria
competente para praticar o ato em razão do fim de interesse público que fora
pressuposto pelo legislador para o uso daquela competência.
Eu não aceitaria, com tal extensão, esse conceito de desvio de poder, no
controle sequer da ação administrativa. Tenho reservas, e a respeito já escrevi

440
Ministro Victor Nunes

um comentário, que, malgrado meu, abriu um começo de polêmica com o emi-


nente jurista Seabra Fagundes, a propósito de decisão proferida pelo Tribunal do
Rio Grande do Norte. Se ponho esse temperamento no controle judiciário da
ação administrativa, quanto à ação do Legislativo...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Perdoe-me: V. Exa. admite essa doutrina
que expôs fora do direito administrativo e no campo do direito constitucional, em
relação ao Legislativo?
O Sr. Ministro Victor Nunes: É o que estou procurando explicar. Admito-a
em caso de ostensivo afastamento dos princípios que regem a conduta do Con-
gresso, isto é, em caso de abuso, desde que seja abuso manifesto.
Quando digo isso, é claro que não me coloco inteiramente fora do campo
da argüição de inconstitucionalidade, porque essa não se traduz somente na
violação de norma expressa. Também se traduz em violação de princípio cons-
titucional. Havendo abuso evidente do Congresso, sempre é possível enquadrar
esse abuso na infração de algum princípio constitucional, como agora está fa-
zendo o eminente Relator, que viu no parágrafo questionado uma restrição ao
poder que tem o Executivo, e não o Congresso, de fazer nomeações para os
cargos públicos criados em lei.
Mas a noção do abuso, a meu ver, é que concorre para configurar a violação
de certos princípios constitucionais, pois por meio da noção de abuso é que o Poder
Judiciário, que julga em caso concreto, pode ter o pleno discernimento de certas
questões.
A noção de abuso é controvertida, tanto no direito civil como no processual,
como no administrativo, como também no direito constitucional. Mas, controvertida
ou não, ela vai fazendo o seu caminho vitorioso na doutrina e na legislação. Antes,
nossa lei quase a desconhecia. Agora a proclama em diversos textos. Como Juiz,
estou nessa linha.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Acredito, com todo o respeito a V. Exa.,
que acaba V. Exa. colocando o problema, dentro do Supremo Tribunal Federal,
nos termos em que foi posto na Corte Suprema dos Estados Unidos no período
anterior a 37, da oligarquia judiciária, do despotismo, Governo e o poder dos juízes.
Aí nós já estaríamos muito além do que a Constituição nos dá, e ela já deu ao STF
o que nenhuma Constituição do mundo deu ao Poder Judiciário. Nem a dos Estados
Unidos. O poder de o Supremo Tribunal Federal declarar inconstitucional, em tese,
uma lei de Estado, e agora também uma lei da União, é coisa inédita na Terra. Se
nós agora tomássemos nas mãos essa atribuição, como os juízes americanos toma-
ram desde o período inicial do século XIX até 37, achando que podemos também
anular aquilo que nós reputamos abuso de poder do Congresso, não há limite. Não
admito que tenhamos mais sabedoria do que os demais brasileiros, investidos de

441
Memória Jurisprudencial

paralelas responsabilidades, apesar do que diz a Constituição: “notável saber jurí-


dico”. O Congresso também tem homens cultos, que são escolhidos pelo povo.
Repito o que disse outro dia ao eminente Ministro Adaucto Cardoso: vão às urnas,
nas eleições, corrijam, castiguem esses deputados. A nossa palmatória, porém, não
pode ser tão grande e alcançar tão longe.
O Sr. Ministro Prado Kelly: A nossa intervenção só se legitima em defesa
da Constituição, quando ela estiver em causa. No apreciar o modo pelo qual se
configura a constitucionalidade, reconhece-se o “excesso de poder” do
Legislativo no exercício de suas atribuições. Ninguém pode supor excesso mais
gritante do que a ofensa feita à Constituição.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: O que me parece é que toda vez que o
Poder Judiciário exorbitar de um dos seus poderes, haverá uma reação, que poderá
ser nefasta ao próprio prestígio da Justiça.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, espero ter explicado por que
não aceito uma noção exagerada do controle judiciário. Infelizmente, não pode-
mos fazer agora um estudo monográfico do tema. Temos que nos limitar ao enun-
ciado de algumas idéias gerais.
Mas eu ponderaria ao eminente Ministro Aliomar Baleeiro que a diferença
entre o Supremo Tribunal do Brasil e a Corte Suprema dos Estados Unidos não
me parece tão grande como a S. Exa.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Mas não afirmei, com licença de V. Exa.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É certo que a Corte Suprema não tem o
poder que agora temos, por norma expressa, de examinar a inconstitucionalidade
de uma lei, em tese. Mas, de outro lado, é comum nos Estados Unidos o uso do
test case, praxe que o Sr. Ministro Aliomar Baleeiro, em voto aqui proferido,
considerou salutar.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não é muito má.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O test case pode ser até uma demanda simu-
lada, ou construída, dando pretexto, ou motivo, ao Tribunal para emitir julgamento
de constitucionalidade.
Em segundo lugar, pelo princípio de stare decisis, a decisão da Corte Su-
prema que fulmine uma lei é respeitada de imediato por todos os Poderes. Nenhum
deles, nos Estados Unidos, deixou de acatar, em termos genéricos, tais decisões.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Durante algum tempo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O que faz o Congresso, e o tem feito várias
vezes, é expedir outra lei ou aprovar uma emenda constitucional que, contrastando
com a decisão, mantenha o seu ponto de vista. Isso é legítimo. Cada Poder, no

442
Ministro Victor Nunes

uso de suas atribuições. Mas em relação à lei específica fulminada pela Corte
Suprema, a decisão é acatada. Portanto, independentemente de qualquer poder
normativo da Corte, uma decisão sua em matéria constitucional tem, por tradição,
efeito normativo. Está de acordo com os costumes, com os precedentes, com a
doutrina americana que ela produza, na prática, esse efeito.
Somos, talvez, mais racionalistas que os anglo-saxões. Por isso, traduzi-
mos esse efeito numa norma de competência do Supremo Tribunal, pois nossa
tradição era em sentido oposto. Mesmo os juízes inferiores não devem obediên-
cia aos nossos julgados, senão nos limites estritos do caso concreto. Era, pois,
necessário que houvesse uma norma para romper essa tradição. Assim mesmo a
Constituição a rompeu com cautela, porque subordinou a eficácia genérica das
nossas decisões de inconstitucionalidade, ainda que proferidas em tese, a um
pronunciamento ulterior do Senado.
Por isso, não me parece maior essa nossa competência que a da Corte
Suprema. Mas nós exercemos a nossa de modo diferente.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Perdoe V. Exa. Devo lembrar que o
Supremo Tribunal construiu a doutrina. Primeiro, que o Senado era obrigado,
embora não tivesse sanção, a suspender. Segundo, que o Senado teria de sus-
pender in totum. Terceiro, que o Senado não podia voltar atrás no seu ato de
suspensão. Sobre esses três pontos de vista, votei anteriormente. Acho que o
Senado não suspende. Se quiser, suspende uma parte e não toda. Se quiser,
volta atrás e revoga a suspensão. Para mim, no caso, o Senado tem função
puramente política. Não há sanção nenhuma.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Na Itália, é o próprio Presidente da Corte
quem faz a declaração de inconstitucionalidade, para efeito erga omnes.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Como propôs a Comissão da Reforma Judi-
ciária, de que V. Exa. foi membro ilustre.
Portanto, Sr. Presidente, há temperamentos na nossa atuação em matéria
constitucional. Talvez até tenhamos menos poderes que a Corte Suprema, salvo
agora, sob outro aspecto, para regular o processo nos casos da nossa competência.
Mas também à Corte Suprema, freqüentemente, se faz a acusação de
estar invadindo a esfera legislativa. Presentemente, a “Corte Warren” tem sido
censurada, precisamente, por estar usurpando função do Legislativo, na opinião
dos críticos. Mas isso resulta, em grande parte, talvez em maior parte, de ser a
Constituição americana muito sintética, com algumas disposições muito genéricas,
de ser uma Constituição antiga, escrita em condições históricas específicas e que
deve ser aplicada em situações completamente diversas. Por isso, a Corte vai

443
Memória Jurisprudencial

interpretando o mesmo texto, que é genérico, de modo diferente à medida que


mudam as condições sociais.
Por que não fazemos o mesmo? Porque não podemos? Não. É porque
temos tido Constituições minuciosas, praticamente regulamentares. Nos pontos
em que nossas Constituições têm sido omissas, ou têm usado fórmulas amplas, o
Supremo Tribunal Federal procedeu como a Corte Suprema. Veja-se, por exem-
plo, o conceito de taxa. A Constituição de 1964 não o definia. Por exclusão, tendo
em vista a discriminação tributária e alguns princípios constitucionais, é que se
podia deduzir um conceito de taxa da Constituição. Embora não houvesse na
Constituição um conceito definido, o Supremo Tribunal nunca deixou de anular, e
o fez numerosas vezes, taxas federais, estaduais e municipais.
Com base em noções doutrinárias, respeitáveis sem dúvida, e em certos
princípios genéricos, o Tribunal, em substância, fazia obra legislativa. Mas não
procedia abusivamente. Fazia legítimo uso do seu poder de interpretar a Consti-
tuição. Quando a Constituição se utiliza de uma fórmula ampla, vaga, imprecisa,
o Supremo Tribunal é que deve determinar o seu sentido, dar-lhe conteúdo, esta-
belecer os seus limites.
No tocante à ação do Congresso, que é passível de se traduzir em abuso,
evidentemente, esse abuso só pode ser reconhecido e proclamado pelo Supremo
Tribunal Federal em razão de princípios constitucionais...
O Sr. Ministro Prado Kelly: Exatamente.
O Sr. Ministro Victor Nunes: ... e não pelo arbítrio dos juízes. Mas há princí-
pios constitucionais tão genéricos que ao próprio Tribunal incumbe defini-los.
Este é o temperamento que estabeleço na questão que estamos aflorando.
A intervenção da Corte dependerá, então, dos elementos que vierem nos autos,
da evidência com que deles possa emergir o abuso, que é de si mesmo noção
pouco precisa.
No caso, não me parece que exista essa evidência quanto ao caput do
artigo questionado, porque ele se limitou a desmembrar um cartório, que é fato
habitual. Quanto ao parágrafo, sim, porque o legislador, nas próprias palavras
com que enunciou seu pensamento, revestidas de vigor inusitado em leis dessa
natureza, deixou escapar o seu propósito de puro favoritismo.
Por tais razões é que acompanho o Sr. Ministro Relator, data venia dos
eminentes Juízes que discordam. Declaro inconstitucional apenas o parágrafo,
porque ele, eivado de abuso de poder, envolve, em última análise, restrição ao
poder de nomear, que pertence ao Governador.

444
Ministro Victor Nunes

VOTO
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, é um recurso de man-
dado de segurança que foi requerido pelo titular do Cartório, Nardy Ferreira. O que
pretendeu, como está expresso não só no item I como no final, foi o seguinte:
“O presente mandado de segurança é impetrado para que, reconhe-
cida a inconstitucionalidade do art. 126 e seu parágrafo único da Lei 8.101,
de 16-4-1964, seja tornado sem efeito o ato de provimento do Sr. José
Maria de Souza Coutinho”.
Porque titular do Cartório, o impetrante não tem interesse apenas em des-
fazer a nomeação de José Maria de Souza Coutinho; seu interesse primordial é
impedir a divisão do seu Cartório.
Se, na hipótese, estivéssemos apreciando uma representação do Procura-
dor-Geral da República a propósito da inconstitucionalidade do parágrafo único, eu
estaria de acordo com o eminente Relator, julgando inconstitucional, porque, real-
mente, o Legislativo atribuiu-se o poder de nomear, que lhe é defeso, é uma
prerrogativa, uma atribuição do Executivo. No caso concreto, teria havido inva-
são dos poderes do Executivo pelo Legislativo. O ato seria inconstitucional.
Mas ocorre que o Poder Executivo não se incomodou e nomeou José Maria
de Souza Coutinho para o cargo. De maneira que desfazer essa nomeação, nesse
mandado de segurança, Sr. Presidente, não me parece possível, porque isso nem
aproveita ao impetrante. Falta-lhe interesse, pelo que o meu voto só pode ser pela
denegação da segurança.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: V. Exa. permite? O meu voto foi proferido
na sessão passada e, por isso, peço licença para insistir em alguns aspectos da
questão.
Declarei que o parágrafo único do art. 126 era inconstitucional, como o
julgou também o eminente Relator. Não tive nenhuma dúvida de que a lei pudesse
desmembrar o Cartório. A lei dividiu o Cartório em dois, dele separando uma
parcela para constituir unidade autônoma. Podia fazê-lo, mas não sem restrição,
não sem condições. Simultaneamente, a lei, no art. 126, parágrafo único, concedeu
preferência, para o provimento no novo Cartório, a outro serventuário de justiça.
Certamente, o parágrafo é inconstitucional. Já se pronunciaram nesse sen-
tido, em maioria, os votos do Tribunal, a começar pelo eminente Relator, porque,
por esse parágrafo, a lei, na realidade, efetuou o provimento do novo Cartório.
Mas o vício que se encontra no parágrafo contamina o caput do artigo —
demonstrou o eminente Ministro Prado Kelly que o parágrafo e o caput do
artigo são siameses, indissoluvelmente ligados entre si —, porque, na verdade, a
norma é uma só. A lei desmembrou o Cartório enquanto atribuiu o novo a oficial
de outra serventia.

445
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não há momentos distintos.


O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não importa que a norma se tenha expres-
sado no caput do artigo e, ainda, no parágrafo. Descobre-se o desvio de poder
quando se afirma o propósito do legislador de investir terceiro na nova serventia.
Revela-se, no parágrafo único, a ilegalidade, que contamina o caput do artigo.
Indiquei outra razão de inconstitucionalidade. Não é lícito o desmembra-
mento do Cartório sem limitações e sem condições que atendam ao direito do
titular do ofício de justiça. É por isso que, em leis estaduais, como na legislação
do Estado do Rio Grande do Sul, que apliquei durante muito tempo, na divisão
de serventias, se tem assegurado, mediante regra especial, ao titular vitalício a
opção.
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Parece que as leis paulistas também.
O Sr. Ministro Prado Kelly: As leis paulistas também o estabelecem, e
consta dos autos longa enumeração.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Se o interesse do serviço público recomenda
a divisão, o direito do serventuário vitalício há de ser considerado. A norma, regra
geral ou especial, sobre a opção apenas observa a garantia constitucional.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. considera o direito de opção implícito
na vitaliciedade.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Apesar da vitaliciedade do serventuário, é
permitido, no interesse do serviço, desmembrar o ofício de justiça, mas não deixar
o titular vitalício numa área arbitrária, que pode ser a menor. Efetuada a divisão,
em benefício do serviço, o serventuário terá opção para se situar na parcela que
se tornou autônoma. O impugnado art. 126 é inconstitucional por dois motivos:
primeiro, porque importou em nomeação do serventuário do novo ofício; segundo,
porque, desmembrando o Cartório, não assegurou ao primitivo titular a opção que
lhe cabia.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Inconstitucionalidade por omissão?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A inconstitucionalidade é da norma inscrita
no art. 126, caput, que somente poderia ser estabelecida com o acréscimo de
regra sobre opção do antigo titular. Somente se poderia desmembrar o Cartório,
se assegurado ao titular o seu direito, o que era factível por via de opção. Sem
essa opção, é inconstitucional.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: E se a opção vier assegurada em outra
lei, na lei estadual?
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Fiz essa ponderação em meu voto. O
advogado do recorrente informou a propósito.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Disse que não há norma geral.

446
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não há norma geral, mas há norma específica
em grande quantidade de leis anteriores.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: V. Exa. me perdoe, eminente Ministro
Gonçalves de Oliveira, ...
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Honrado, recebo o aparte de V. Exa.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: ... haver interrompido seu brilhante voto.
Mas quis acentuar que o parágrafo único contamina o caput do art. 126. Ainda
que isso não acontecesse, o dispositivo é inconstitucional, porque determina o
desmembramento, sem assegurar, ao mesmo passo, ao antigo titular do Cartório
direito inerente à vitaliciedade.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, o art. 126 da Lei
estadual 8.101, Lei de Organização Judiciária, dispõe assim:
“Fica criado, como serventia autônoma, o Cartório do Registro de
Imóveis e Anexos na Comarca de Suzano”.
O parágrafo único diz assim:
“Ao atual oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais do Distrito
da sede da referida Comarca fica assegurada prioridade absoluta de
opção para esse Cartório, como compensação pela perda do anexo de
tabelionato decorrente da criação da Comarca, devendo requerer no prazo
de 30 (trinta) dias, a contar da vigência desta lei, ao Secretário da Justiça e
Negócios do Interior”.
Como tive ensejo de dizer, estou julgando um mandado de segurança do
titular desses serviços de Registros de Imóveis. Se estivesse julgando uma repre-
sentação do Governador do Estado contra esse parágrafo, não teria dúvida em
acolher a sua inconstitucionalidade, porque haveria o abuso do Poder Legislativo
em atribuir-se uma competência que, pela Constituição, é do Governador do
Estado, qual seja, a de prover os cargos públicos, prover desembaraçadamente, e
não ficar limitado a nomear aquela pessoa indicada na lei pelo Poder Legislativo.
Por esse motivo, o dispositivo foi até vetado pelo Governador do Estado.
Então, o remédio seria o recurso pelo Governador ao Supremo Tribunal,
baseado no princípio da harmonia dos Poderes, hoje com mais amplitude na
Constituição de 24 de janeiro de 1967, para que o Supremo Tribunal nulificasse o
parágrafo.
Mas estamos apreciando um mandado de segurança do titular desses
serviços de Registros de Imóveis, não interessando ao impetrante apenas o
desfazimento do parágrafo, porque, se prevalecer, como está prevalecendo, o
voto do eminente Relator no sentido de ficar o caput do artigo como intocável,
haveria prejuízo total para o impetrante.

447
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Adauto Cardoso: O impetrante pede que lhe seja assegurado
o direito de opção?
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não, seria apenas uma expectativa
de direito.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: O impetrante alega que o seu direito foi
violado pela impugnada norma.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Alega violação do direito de exercer...
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Pede que, reconhecida a inconstitucionalidade
do art. 126 e parágrafo único da Lei 8.101, lhe seja assegurado o seu direito.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Ele pede apenas que se desfaça o ato.
Entendo, como o eminente Relator, que o caput do artigo não é inconstitu-
cional, porque poderia ser desmembrado esse Cartório. E como o parágrafo não
interessa ao impetrante, que não tem direito de se prover no cargo, o meu voto é
pela denegação da segurança, que esse remédio não protege mera expectativa
de direito que tem todo cidadão de ver um cargo vago e poder ser o candidato ao
seu provimento.
É o meu voto, Sr. Presidente.

VOTO
O Sr. Presidente Luiz Gallotti: Como vê o Tribunal, a corrente que votou
pela inconstitucionalidade, em termos mais amplos, não poderia prevalecer,
porque não alcançou nove votos. Mas a outra corrente prevalece, a ela se
somando os votos daquela, porque o mais compreende o menos. Assim,
logicamente, os que dão pela inconstitucionalidade total também dão pela incons-
titucionalidade em parte.
Voto com o eminente Relator.

DECISÃO
RMS 16.912/SP — Relator: Ministro Djaci Falcão. Matéria Constitucional.
Recorrente: Nardy Ferreira (Advogado: Theotonio Negrão). Recorrido: Estado
de São Paulo (Advogado: Rubens Catelli). Deu-se provimento, em parte, para
julgar inconstitucional o parágrafo único do art. 126 da Lei paulista 8.101, de 16
de abril de 1964. Assim votaram os Ministros Relator, Adaucto Cardoso, Aliomar
Baleeiro, Victor Nunes, Lafayette de Andrada e o Presidente, Luiz Gallotti, sendo
que os Ministros Eloy da Rocha, Prado Kelly, Adalicio Nogueira, Hermes Lima e
Candido Motta davam provimento in totum, porque julgavam inconstitucional,
além do parágrafo único, o art. 126 (caput), não sendo alcançada, quanto a esta

448
Ministro Victor Nunes

parte, a maioria necessária à declaração da inconstitucionalidade. O Ministro


Gonçalves de Oliveira negava provimento ao recurso. Impedido, o Ministro
Raphael de Barros Monteiro.
Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes os Ministros Adaucto
Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da Rocha, Aliomar Baleeiro, Prado Kelly, Adalicio
Nogueira, Hermes Lima, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta
Filho, Lafayette de Andrada e Luiz Gallotti (Presidente). Licenciados, os Ministros
Oswaldo Trigueiro e Hahnemann Guimarães. Ausente, justificadamente, o Mi-
nistro Evandro Lins.
Plenário, em 31 de agosto de 1967 — Dr. Álvaro Ferreira dos Santos,
Vice-Diretor Geral.

MANDADO DE SEGURANÇA 17.957 — DF

Terrenos de marinha e acrescidos.


1. Não é admissível mandado de segurança contra o De-
creto-Lei 128, de 31-1-67, como lei em tese (Súmula 266).
2. São válidos, constitucionais e estão salvaguardados
pelas Disposições Transitórias da Constituição de 1967 os 115
decretos-leis expedidos entre 24-1-67 e 15-3-67, data da
promulgação e do início da vigência dessa Carta Política.
3. Os terrenos desapropriados e acrescidos de mari-
nha, oriundos do aterro para construção do porto de Salva-
dor, pertencem ao domínio da União, segundo legislação
vetusta, sempre reafirmada por novos e sucessivos diplo-
mas sobre o assunto.
4. Na concessão de serviço público, como ato complexo,
meio-regulamentar, meio-contratual, o concedente pode modificar,
por lei, o funcionamento do serviço, alterando o regime dos
bens públicos envolvidos e até impondo novos ônus ao
cessionário, desde que a este assegure o equilíbrio finan-
ceiro para remuneração e amortização do capital efetivamente
investido (Constituição de 1946, art. 151 e parágrafo; Cons-
tituição de 1967, art. 160).
5. Efeitos da cláusula 38 do contrato para exploração
do porto da Bahia, aprovado pelo Decreto 14.417/20.

449
Memória Jurisprudencial

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço licença ao Tribunal para
fazer algumas distinções quanto às preliminares suscitadas.
A primeira é sobre o problema do cabimento de mandado de segurança
contra lei em tese. Não tenho dúvidas de que está em causa, neste processo, uma
lei em tese, como sustentou, brilhantemente, o Dr. Procurador-Geral. O que te-
mos entendido como lei em tese para cabimento de mandado de segurança é a
norma genérica. Desde que o ato atacado seja genérico, seja uma norma não
individualizada, não temos admitido mandado de segurança, como lembrou o Sr.
Ministro Presidente a respeito de decretos normativos e de atos normativos de
categoria inferior à dos decretos.
De acordo com essa orientação, o que caracteriza a lei em tese é a
generalidade do comando; não basta a pluralidade do comando, no sentido de
alcançar várias pessoas ou situações, consideradas na sua individuação específica.
No caso presente, a lei atacada não se refere, especificamente, a um con-
cessionário, mas a todos e quaisquer concessionários que se encontrem nas con-
dições previstas na lei.
Esse debate, entretanto, suscita um problema da maior importância prática:
o decreto-lei impugnado contém um comando proibitivo, e essa proibição legal
determina, por si mesma, o efeito danoso que, em outras circunstâncias, dependeria
do ato administrativo conseqüente.
Ouvimos, há pouco, que a lei proibitiva, embora lei em tese, autoriza o
mandado de segurança. Desejo fazer, a esse respeito, uma distinção. Há atos de
particulares que dependem de autorização ou aprovação, que dependem, em
suma, de manifestação da autoridade pública. Em tal hipótese, sobrevindo lei
proibitiva, seus efeitos não se produzem automaticamente. O particular, de qual-
quer modo, não tinha a possibilidade de agir por si, pois dependia de um pronun-
ciamento da autoridade. Ante a lei proibitiva, terá, então, de solicitar o pronunci-
amento favorável, podendo ajuizar a segurança após a recusa da Administração
que configure a coação específica. De outro modo, sempre que uma lei proibitiva
fosse passível da argüição de inconstitucionalidade, estaríamos instituindo uma
ação geral de inconstitucionalidade, facultada a qualquer pessoa que se conside-
rasse atingida pela proibição, quando, pela Constituição, a argüição de inconstitu-
cionalidade em tese é privativa do Procurador-Geral.
Haverá casos, porém, como o presente, em que a proibição legal atinge
diretamente o particular, porque ele, antes da proibição, não dependia de qualquer
ato da autoridade para proceder de uma ou de outra maneira. Quando a atividade
do particular, antes da vedação, não dependia de autorização, licença, concessão
ou ato público equivalente, a vedação operava automaticamente, produzindo o
efeito danoso por si mesma. Nessa hipótese, parece-me cabível o mandado de

450
Ministro Victor Nunes

segurança, não apenas porque seja proibitiva a norma, mas porque ela é imediata
e automaticamente proibitiva, incidindo sobre atos que, até então, dependiam ex-
clusivamente do critério do particular.
Resta o outro aspecto da preliminar de não-conhecimento, que é a veda-
ção ao Judiciário de apreciar os atos emanados do Governo Revolucionário.
Não me parece fundamental, data venia, a consideração surgida no debate,
de ser o decreto-lei impugnado posterior à votação da Constituição. A Consti-
tuição de 1967 é uma ordem normativa que só se tornou eficaz em 15 de março.
Quando ela se refere a atos pretéritos, sem outra especificação, essa anteriori-
dade não pode ser aferida em razão da assinatura ou da promulgação do texto
constitucional, mas em razão do momento em que a norma constitucional se tor-
nou eficaz.
Mas resta saber o que é que, tendo sido aprovado pela Constituição, foi
subtraído ao exame do Judiciário. Em primeiro lugar, é óbvio, só foram subtraídos
a esse exame atos pretéritos. Em segundo lugar, é preciso atender à natureza do
ato para se verificar o alcance da vedação. Quando se tratar de lei, norma gené-
rica, capaz de incidir no futuro, o que a Constituição tornou imune à revisão do
Judiciário foi a legitimidade do ato de expedição da lei. Por isso, não se pode
controverter sobre a competência do Presidente da República para expedir o
decreto-lei impugnado neste mandado de segurança.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. me permita: temos exemplos
no Código de Minas e no Código de Águas, votados por ocasião da Constituição
de 34. Foram publicados após essa Constituição. Os Tribunais deram validade a
esse códigos, e o Supremo Tribunal assim decidiu.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Exato. Mas estou conduzindo o meu raciocí-
nio em rumo um pouco diferente.
A primeira conclusão que estou tirando é que, tendo sido aprovada a prática
do ato, não poderemos discutir a competência do Presidente da República para
baixar o decreto-lei, nem o douto Advogado, ora impetrante, impugnou essa com-
petência. Ele não impugna a constitucionalidade do decreto-lei em razão da in-
competência legislativa do Presidente. Mas argúi a sua inconstitucionalidade (e
aqui divirjo do eminente Ministro Evandro Lins) sob outro aspecto, porque o de-
creto-lei terá violado um direto individual. Sob esse aspecto, ele argúi (e o disse
claramente) a inconstitucionalidade do decreto-lei.
O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. ouviu o aparte dado pelo eminente
Advogado, que declarou publicamente não argüir a inconstitucionalidade do
Decreto 128.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Fui eu quem provocou esse aparte.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Por entender ferido um direito subjetivo da
empresa que representa, mas não a inconstitucionalidade, em si, da norma.

451
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Em tese.


O Sr. Ministro Evandro Lins: Mas o prejuízo decorrente para a empresa da
expedição do decreto...
O Sr. Ministro Victor Nunes: O impetrante alega que o decreto é inconsti-
tucional porque modifica um contrato intocável. Ele sustenta a subsistência do
contrato, o qual estaria a cavaleiro de uma norma inconstitucional que o atingiu.
Portanto, o pedido se funda na inconstitucionalidade do decreto-lei.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Invoca a proteção de uma disposição consti-
tucional para não se alterar uma cláusula da concessão. Assim, julga-se protegido
e amparado por essa disposição constitucional, sem que isso importe na declara-
ção de inconstitucionalidade do próprio decreto-lei, da própria norma invocada
pelo Poder Público em seu favor, o que me parece diferente.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim, não resta dúvida quanto ao aspecto da
competência ou quanto ao sentido genérico do decreto-lei. Mas o fundamento do
pedido é a inconstitucionalidade da incidência da norma nova sobre o contrato,
que seria inatingível.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Na realidade, é o prejuízo decorrente da
incidência da norma.
O Sr. Gonçalves de Oliveira: O que o douto Advogado sustenta é que o
legislador constituinte não poderia aprovar um decreto-lei que não conhecia.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Esse é outro aspecto.
O Sr. Ministro Hermes Lima: O que ele alega sobre a inconstitucionalidade
é que o decreto ofendeu um direito adquirido, feriu a Constituição, mas não alega
a inconstitucionalidade como motivo de pedir.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me desculpe. Ele não alega a incons-
titucionalidade, em tese, da lei; não diz que a lei seja inaplicável em qualquer caso.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Ela pode ter ferido um direito individual do
requerente. Não está em causa o problema da inconstitucionalidade. Foi essa a
razão pela qual neguei o mandado de segurança.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. argumentou que o direito pretendido
é apenas patrimonial, que independe de ser ou não atacado o decreto-lei. Mas o
impetrante sustentou a não-incidência do decreto-lei sobre o contrato, o qual, a
seu ver, não podia ser modificado por iniciativa unilateral do Poder Público. Essa
modificação unilateral violou a Constituição. Portanto, o pedido se funda na in-
constitucionalidade do decreto-lei no que respeita ao contrato da Companhia
Docas da Bahia.
O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. me perdoe, mas não é isso que está
alegado, nem tampouco o que consta dos memoriais.

452
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu li todos.


O Sr. Ministro Evandro Lins: O que foi expressamente declarado pelo
Advogado, o que ele diz, é que há eiva de inconstitucionalidade, estaria eivado de
inconstitucionalidade.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estar eivado de inconstitucionalidade é ser
inconstitucional.
O Sr. Ministro Evandro Lins: A proteção que ele invoca é uma proteção
constitucional, a proteção para o seu direito individual.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não desejo prolongar mais esse aspecto do
debate.
O que pretendia acentuar, e me desviei do rumo, pode ser resumido em
poucas palavras. A Constituição, ao aprovar determinados atos do Governo Re-
volucionário, o que evidentemente teve em vista foram atos específicos por ele
praticados. No caso de uma lei, por exemplo, o ato de baixar uma lei, sob o
aspecto da competência e no mais que ele implica, tudo isso é válido, não pode
ser revisto pelo Judiciário. Mas não podemos extrair do texto constitucional a
conclusão de que o Poder Revolucionário imunizou todo o conteúdo da legislação
pré-constitucional, mesmo nas partes em que contrarie a própria Constituição.
Isso seria um contra-senso.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Nisso, estou de acordo com V. Exa.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é possível haver, simultaneamente, dois
regimes constitucionais. Antes da Constituição, havia, por exemplo, uma
tramitação legislativa estabelecida em ato institucional. A Constituição estabele-
ceu outra. Pelo fato de ter a Constituição aprovado os atos institucionais, podem
subsistir os dois processos legislativos? Evidentemente não. Vigora somente o da
Constituição. E a razão disso é que os atos praticados pelo Governo Revolucioná-
rio e que se projetavam para o futuro não foram aprovados em todo o seu conteúdo.
Essas suas conseqüências ulteriores estão sujeitas ao que a respeito dispõe a
Constituição. O País não foi constitucionalizado pela metade. A Constituição
substituiu inteiramente a ordem pré-constitucional. Ao ressalvar atos anteriores,
referiu-se aos efeitos já produzidos, mas não criou dois sistemas constitucionais,
porque isso seria uma aberração. Não pode haver, no regime constitucional, um
outro sistema de normas que o Supremo Tribunal tenha de aplicar contra a letra e
o espírito da Constituição.
Com essas considerações, também rejeito a preliminar de não-conheci-
mento, data venia da maioria.

453
Memória Jurisprudencial

MANDADO DE SEGURANÇA 18.973 — DF

Juízes federais. Primeira nomeação sem concurso por


força do Ato Institucional n. 2 e da Lei n. 5.010, de 1966, aprova-
dos pelo artigo 173, III, da Constituição de 1967. Juízes
substitutos não integram carreira da Justiça Federal, sendo a
forma do seu provimento determinada pelo art. 118 da Cons-
tituição. Esgotou-se o processo de livre nomeação com o
preenchimento dos cargos em São Paulo. Denegação do man-
dado de segurança.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, também peço vênia à douta
maioria para acompanhar o voto do Sr. Ministro Evandro Lins, embora, a essa
altura, meu pronunciamento tenha sentido puramente teórico.
É conhecido meu acatamento à jurisprudência do Tribunal, mas há questões
que me parecem tão fundamentais que não posso evitar aos eminentes colegas o
incômodo da reiteração de certos argumentos.
Um deles foi mencionado pelo Ministro Evandro Lins: uma lei do período
revolucionário, mas legitimamente emanada do Congresso, não pode estar
abrigada na exceção do art. 173 da Constituição de 1967, porque a validade
daquele ato legislativo de modo nenhum dependeria de ratificação constitucional
posterior.
Mas vou além, como sustentei em caso anterior. Parece-me totalmente
inadmissível que se considerem aprovados, pela nova Constituição, em sua pleni-
tude, inclusive em suas projeções para o futuro, os atos normativos do período
revolucionário.
Essa ponderação parece-me especialmente apropriada às disposições que
conferem competências. O regime constitucional é um só e não pode admitir
duas competências simultâneas e conflitantes. A nova Constituição, ao aprovar
atos de um período anterior, tanto mais que se tratava de período excepcional, o
que aprovou, na verdade, foram os atos praticados pelo Governo revolucionário e
os efeitos que resultaram desses atos.
Não me parece que se possam considerar aprovadas normas, para que
produzam efeitos no futuro, contrariamente ao que dispõe a própria Constituição,
já em pleno vigor, principalmente, repito, em matéria de competência.
Vou figurar um exemplo para mostrar que, do julgamento que o Tribunal
está hoje proferindo, poderão ser deduzidas conseqüências, a meu ver, ruinosas
para o regime. O art. 31 do Ato Institucional n. 2, no seu parágrafo único, dispõe:

454
Ministro Victor Nunes

“Decretado o recesso parlamentar, o Poder Executivo correspondente fica auto-


rizado a legislar, mediante decretos-leis, em todas as matérias previstas na Cons-
tituição e na lei orgânica”. Dava esse dispositivo ao Presidente da República, no
recesso do Congresso, poder legislativo amplo. Seria possível subsistir essa norma
na vigência da Constituição atual? Poderia o Presidente, na vigência da atual
Constituição, cujo art. 173 teria aprovado o Ato Institucional n. 2, baixar decre-
tos-leis, no recesso do Congresso, sobre toda e qualquer matéria da competên-
cia da União? Ouso concluir que nenhum dos eminentes Ministros responderia
afirmativamente.
Dir-se-á que o exemplo é inverificável, porque o art. 31, parágrafo único,
do Ato Institucional n. 2 só se referia ao recesso parlamentar decretado pelo
Presidente, e não ao recesso normal, não tendo a Constituição atual previsto o
encerramento do Congresso pelo Presidente.
Eu aceitaria esse argumento. Mas, na verdade, o Presidente Castelo
Branco baixou inúmeros decretos-leis no período de janeiro e fevereiro de 1967,
quando o recesso do Congresso já resultava de suas férias regulares e não do ato
de fechamento praticado pelo Executivo. Não obstante, foi com base no art. 31
do Ato Institucional n. 2 que S. Exa. baixou três centenas de decretos-leis, que
estão sendo aplicados, inclusive, por este Tribunal. Essa prática do citado art. 31
autoriza a figurar aquele exemplo. E pergunto de novo: seria admissível, na vigên-
cia da atual Constituição, essa competência do Presidente da República para,
durante as férias parlamentares, expedir decretos-leis sobre qualquer matéria da
competência da União? É evidente que não, porque não é possível que uma norma
desse tipo, explicável no período revolucionário, embora conferindo competência
legislativa conflitante com a que resultava da Constituição anterior, possa vigorar
na vigência da atual Constituição, que prevê expressamente a expedição de de-
cretos-leis, mas em termos muito mais limitados. E como estes últimos dependem
da aprovação posterior do Congresso, a Constituição não conhece poderes
legislativos conflitantes.
Em relação aos Juízes Federais, o que determinou o Ato Institucional n. 2?
Dispôs o seu art. 20: “O provimento inicial dos cargos da Justiça Federal far-se-á
pelo Presidente da República, dentre brasileiros de saber jurídico e reputação
ilibada.” Esse dispositivo foi reproduzido, mais ou menos nos mesmos termos,
pela Lei 5.010. Quais foram, então, os atos aprovados pelo art. 173 da Constitui-
ção atual? O que ela aprovou foram as nomeações anteriores e os efeitos decor-
rentes daquelas nomeações. Mas a competência para nomear livremente os
juízes federais, que não chegou a ser exercida durante o tempo em que vigorou,
essa competência se extinguiu, porque a nova Constituição já não a admite nos
mesmos termos.

455
Memória Jurisprudencial

Nem se diga que tais nomeações constituíam atos complexos, de que uma
das etapas, a indicação dos nomes pelo Presidente da República, se cumpriu
antes da Constituição atual, faltando apenas a aprovação do Senado e a expedi-
ção final do ato de nomeação. As coisas, na verdade, se passaram de outro modo,
porque as mensagens enviadas pelo Presidente Castelo Branco, ao tempo em
que tinha competência para tanto, foram retiradas pelo novo Presidente e substi-
tuídas por outras, quando S. Exa. já havia perdido essa competência.
Com essas considerações, Sr. Presidente, peço vênia aos eminentes Mi-
nistros para divergir da maioria e conceder em parte a segurança, nos termos em
que o fez o Sr. Ministro Evandro Lins.

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.382 — DF


Relator: O Sr. Ministro Victor Nunes
Impetrante: Inezil Penna Marinho — Paciente: Silvestre Péricles de Góes
Monteiro
1. O Supremo Tribunal Federal não é competente para
processar e julgar, originariamente, deputado ou senador
acusado de crime. 2. Acusação de crime que teria sido come-
tido após a cessação do exercício funcional não acarreta a
competência especial por prerrogativa de função.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo
Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e
das notas taquigráficas, por maioria de votos, não conhecer do pedido.
Brasília, 11 de dezembro de 1963 — Luiz Gallotti, Presidente — Victor
Nunes Leal, Relator.

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Dr. Inezil Penna Marinho impetra ordem
de habeas corpus, ao Supremo Tribunal, contra a prisão em flagrante do Sena-
dor Silvestre Péricles de Góes Monteiro, determinada pelo Presidente do Senado,
Senador Auro Moura Andrade.
Junta, entre outros documentos, o auto do flagrante, lavrado pela Presidên-
cia do Senado, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos na sessão do dia
4 do corrente, dos quais resultou a morte do Senador José Kairala.

456
Ministro Victor Nunes

As testemunhas cujos depoimentos constam dessa peça, os Senadores


João Agripino e Eurico Rezende, descrevem a cena que então se desenrolou.
Deixando de lado pormenores que depois serão referidos, narram esses depoen-
tes, cada qual descrevendo o que presenciou mais de perto, que o Senador Arnon
de Melo, ao iniciar o seu discurso, em resposta a outro que há meses fizera o
Senador Silvestre Péricles, pediu licença ao Presidente para falar voltado para o
seu adversário, e não para a Mesa, porque ele ameaçara matá-lo naquela oportu-
nidade. O Senador Silvestre Péricles levantou-se, encaminhou-se para o orador
de dedo em riste e proferiu um insulto: “Crápula!” O Senador Arnon de Melo,
imediatamente, sacou da arma e a disparou por mais de uma vez. O Senador
Silvestre Péricles protegeu-se entre as cadeiras, deslizou para um local mais fa-
vorável e apontou seu revólver na direção do Senador Arnon de Melo. Foi então
desarmado pelo Senador João Agripino, que teve o dedo ferido pelo percursor do
revólver, quando procurava arrebatá-lo.
Seguiu-se a prisão dos dois senadores. Cada um deles foi recolhido a uma
unidade militar, e lavrou-se o auto do flagrante.
Os depoimentos dos indiciados confirmam, no fundamental, essa narrativa,
mas cada qual apresenta a sua versão. O Senador Arnon de Melo declara que
não teve a intenção de matar o seu desafeto, mas apenas amedrontá-lo, e exprime
a sua convicção de que não partiu de seu revólver o tiro que abateu o Senador
José Kairala. O Senador Silvestre Péricles declara que não alvejou o Senador
Arnon de Melo porque não quis, receando ferir algum dos circunstantes, e que
entregou sua arma, sem resistência, ao Senador João Agripino, quando se con-
venceu de que já não corria risco.
No auto de flagrante, ambos foram indiciados, apontando-se o Senador
Silvestre Péricles como incurso nos arts. 121, II, e 129 do Código Penal (tentativa
de homicício contra o Senador Arnon de Melo e ferimento leve na pessoa do
Senador João Agripino).
O presente habeas corpus é impetrado por nulidade do auto de flagrante
(e, portanto, da prisão do Senador Silvestre Péricles), e por falta de justa causa.
A nulidade resultaria de não estar configurada a situação prevista no art.
302 do Código de Processo Penal, que define a flagrância, e por faltar competên-
cia à Mesa do Senado para lavrar o respectivo auto. Argumenta, quanto à competên-
cia, com os arts. 301 e 304 do Código de Processo Penal e com os arts. 44 e 45
da Constituição.
A falta de justa causa estaria demonstrada pela circunstância de ser o
paciente vítima e não agressor, pois não fez uso de sua arma, e ainda por ser
afiançável o outro crime, de que é acusado (lesão corporal leve). Também estaria
violada a imunidade parlamentar do paciente, nos termos do art. 44 da Constituição.

457
Memória Jurisprudencial

O impetrante, com a inicial e em petição posterior, juntou instantâneos


tomados por um fotógrafo profissional momentos antes e depois dos disparos,
para provar que o paciente não tomou a iniciativa de puxar o revólver e para
corroborar a sua versão dos acontecimentos.
Lerei o inteiro teor dos depoimentos acima referidos, se vier a ser neces-
sário no decorrer deste julgamento.
Solicitei informações no mesmo dia em que foi apresentado e distribuído o
pedido (6-12-63), e as recebi ontem à tarde (10-12-63). Nessas informações, o
Senador Auro Moura Andrade, Presidente do Senado Federal, começa por
historiar os antecedentes do lutuoso acontecimento. Menciona os ataques do Se-
nador Silvestre Péricles, eleito em 3-10-58, contra o Senador Arnon de Melo,
eleito em 7-10-62, e a ameaça que lhe fizera de não permitir a sua posse,
marcada para o dia 31-1-63. Esses ataques e ameaças foram feitos, ou da tribuna
do Senado, ou pela imprensa, conforme documentação oferecida (Diário do
Congresso de 12-12-62; O Globo de 25-1-63; Jornal do Comércio de 30-1-63;
Diário Carioca de 30-1-63).
O Senador Arnon de Melo, que replicara ao primeiro ataque, em carta ao
Presidente do Senado (Diário do Congresso de 25-1-63), respondeu às acusa-
ções ulteriores com veemência, afirmando que tomaria posse “até com risco de
vida” (Jornal do Brasil de 30-1-63; Gazeta de Notícias de 30-1-63).
Realizou-se a posse no dia marcado, em virtude das medidas preventivas
então tomadas. Permanente e especial vigilância foi adotada pela direção da
Casa, daí por diante, para evitar um encontro violento entre os dois. O Senador
Arnon de Melo permaneceu fora do País alguns meses, em viagem relacionada
com suas atividades parlamentares, tendo reassumido sua cadeira no dia 4 do
corrente, quando se deu o desenlace da antiga rivalidade.
Durante sua ausência do Senado, o Senador Silvestre Péricles proferiu
contra ele três discursos, cuja publicação a Mesa impediu, por conter expressões
anti-regimentais. Essa resolução motivou protesto do Senador Silvestre Péricles,
o que levou a Presidência a consultar a Comissão de Justiça sobre a constitucio-
nalidade da censura permitida pelo art. 20 do Regimento do Senado. A Comissão
não chegou a se pronunciar sobre o parecer favorável do relator devido à atitude
agressiva do Senador Silvestre Péricles.
Feito esse resumo dos antecedentes, passo a ler as informações na parte
em que descrevem os acontecimentos do dia 4:
9. “Foi nomeado Relator, naquela Comissão, o Senador Edmundo
Levi, que elaborou parecer sustentando a validade da disposição regimental
constante do art. 20 e seu § 2º. (Doc. 15)

458
Ministro Victor Nunes

Reunida a Comissão de Constituição e Justiça e lido o Parecer, o


Senador Silvestre Péricles, que a ela pertence, investiu com pesados insultos
e ameaças ao Relator, em sua atitude envolvendo a própria Comissão, a tal
ponto que esta precisou encerrar os trabalhos sem deliberar a respeito,
solicitando informações complementares ao Presidente do Senado, que
foram prestadas pelo ofício de 7 de novembro. (Doc. 15A, e Doc. 15 cit.).
Deixou a Comissão de Constituição e Justiça, daí por diante, de
colocar o Parecer em pauta de suas reuniões, com isto pretendendo obter
um espaço de tempo razoável a que a serenidade voltasse ao Senador
Silvestre Péricles. Não voltou, como se viu, e a Comissão de Constituição
e Justiça não teve oportunidade de julgar a matéria.

Medidas de segurança
10. O Senador Arnon de Melo, regressando da Europa, e sabendo
dos discursos do Senador Silvestre Péricles, inscreveu-se para a sessão
ordinária do dia 4 de dezembro.
O Presidente do Senado convocou, por isso, uma reunião da Comis-
são Diretora para a manhã do dia 4, que se realizou às 10 horas, a fim de
serem tomadas providências de segurança interna no Senado.
Diante da impossibilidade legal de revistar e desarmar os senadores,
designou o Presidente os Senadores Rui Palmeira, 1º Secretário e Gilberto
Marinho, 2º Secretário, além do Diretor-Geral, Doutor Evandro Mendes
Vianna, para procederem a todas as medidas de segurança que se fizes-
sem necessárias.
11. A designação dos referidos senadores teve também razões de
ordem específica: o Senador Gilberto Marinho pela sua condição de Oficial
General do Exército e portanto conhecedor dos assuntos ligados a dispo-
sitivos de segurança; e o Senador Rui Palmeira, pela sua condição de repre-
sentante do Estado de Alagoas e profundo conhecedor do temperamento
de ambos os desafetos.
Por força da referida reunião da Comissão Diretora e da já
mencionada designação dos Senadores Gilberto Marinho e Rui Palmeira,
os dispositivos montados foram, realmente, os mais adequados às
circunstâncias, tendo sido designados para vigiar os Senadores Silvestre
Péricles e Arnon de Melo, dez guardas de segurança, sendo cinco para
cada um, além da mobilização de toda a Guarda de Segurança do Senado
e elementos auxiliares, com instruções preventivas.

459
Memória Jurisprudencial

Além disso, foi determinada rigorosa revista e desarmamento de


quantos entrassem no Senado Federal, inclusive membros das famílias
dos senadores. Assim é que o genro do Senador Silvestre Péricles, capitão
do Exército, ingressou no Senado desarmado e o filho do Senador Arnon
de Melo foi desarmado à entrada do Senado.
Estando já o Senador Silvestre Péricles no Plenário, a Presidência
manteve o Senador Arnon de Melo numa das ante-salas, pedindo-lhe que
somente ingressasse depois que a sessão estivesse aberta.

A sessão do dia quatro do corrente


12. A hora regimental de abertura da sessão do Senado Federal é
14:30, mas o Presidente apenas abriu a sessão às 15 horas, depois de
certificar-se de que todas as medidas tinham sido adotadas.
No momento em que o Presidente ia dar a palavra ao primeiro
orador inscrito, que era o Senador Arnon de Melo, o Senador Lino de
Mattos aproximou-se da Presidência e segredou-lhe que o Senador
Silvestre Péricles dissera que encheria a boca do Senador Arnon de
Melo de balas quando este começasse a falar. Embora não pudesse
acreditar que um tal fato acontecesse, pelo absurdo que ele encerrava, o
Presidente achou por bem, ao dar a palavra ao Senador Arnon de Melo,
fazer uma severa advertência pública. (Docs. 16: Gravação em disco
da entrevista do Senador Lino de Mattos à TV 4 de São Paulo; Doc.
17: Entrevista do mesmo Senador ao jornal O Estado de São Paulo;
Doc. 18: Entrevista do mesmo Senador ao Jornal do Brasil).
O Senador Arnon de Melo iniciou o seu discurso da seguinte
maneira: “Senhor Presidente, permita Vossa Excelência que eu faça o
meu discurso olhando na direção do senhor Senador Silvestre Péricles de
Góes Monteiro, que me ameaçou de matar, hoje, ao começar o meu
discurso”. (Doc. 19)
13. Ao proferir estas palavras, o Senador Silvestre Péricles levan-
tou-se com extrema agitação, gritando para o Senador Arnon de Melo a
expressão “crápula” e avançando com um passo na direção daquele Sena-
dor. Ato contínuo, e num só impulso, o Senador Arnon de Melo sacou o
revólver e disparou dois tiros, tão rápidos, que a gravação faz parecer um
só com vibração de eco. A cronometragem desse episódio, na gravação
inclusa, a partir da palavra “crápula”, até a deflagração dos dois tiros,
revela o vertiginoso decurso de apenas três segundos exatos. (Doc. 20:
Gravação em disco dos arquivos do Serviço de Rádio-Difusão do
Senado da sessão de 4 do corrente).

460
Ministro Victor Nunes

Imediatamente foi o Senador Arnon de Melo dominado, com os


guardas lutando pela posse da arma, que, nove segundos depois, deflagrou
pela terceira vez, agora para o teto do Plenário. (Doc. 20 cit.)
14. Enquanto isso ocorria em relação ao Senador Arnon de Melo, o
Senador Silvestre Péricles atirou-se ao chão, deslisou entre as bancadas
da direita e da esquerda, protegeu-se na penúltima bancada do centro e
apontou em tiro ao alvo o seu revólver em direção ao Senador Arnon de
Melo (Doc. 21).
O Senador João Agripino, que atentamente acompanhou esses
movimentos, atirou-se sobre o Senador Silvestre Péricles e segurou o
revólver do mesmo, cujo gatilho, porém, foi acionado, enterrando o
percursor, que detona a cápsula, no dedo do Senador João Agripino, que
ficou preso ao revólver. (Doc. 21 cit.)
No auto de prisão em flagrante o Senador João Agripino depõe que,
assim protegido na penúltima bancada, o Senador Silvestre Péricles
“punha-se em posição de tiro ao alvo de joelhos, erguia a sua arma e
procurava fazer pontaria na direção do Senador Arnon de Melo, o qual,
nesse exato momento estava sendo contido por elementos policiais da
Casa; que, diante do gesto do Senador Silvestre Péricles o depoente
saltou de sua cadeira e, com rapidez, avançou sobre o Senador Silvestre
Péricles.” (Doc. 21 cit.)
Desarmado o senhor Silvestre Péricles, como já o havia sido o
senhor Arnon de Melo, ambas as armas foram entregues ao Presidente do
Senado e feita a devida apreensão.”
A seguir, o Senador Auro Moura Andrade sustenta a regularidade da pri-
são em flagrante e do respectivo auto. Argumenta com o art. 307 do Código de
Processo Penal, que prevê a hipótese de crime cometido em presença de autori-
dade, ou contra esta, no exercício de suas funções. O art. 307 não alude apenas
à autoridade policial, a que se refere o art. 301, mas também às autoridades
administrativas e judiciárias. Cita o informante, em tal sentido, a opinião de José
Frederico Marques (Elementos de Direito Processual Penal, II/138) e Basileu
Garcia (Comentários ao Código de Processo Penal, III/122), e o art. 26, III, do
Regimento Interno do Supremo Tribunal. Da distinção apontada, resulta a compe-
tência da Mesa do Senado, quando o delito é cometido no seu edifício, para efe-
tuar a prisão, lavrar o auto de flagrante e realizar o inquérito. Assim determina,
expressamente, o art. 400 do seu Regimento.
Por outro lado, pelo art. 45 da Constituição, que prevê a hipótese de delito
cometido fora das dependências do Congresso, o auto do flagrante é apresentado

461
Memória Jurisprudencial

à Câmara a que pertencer o parlamentar preso, para decidir sobre a prisão e a


formação da culpa. Portanto, “quem tem o poder de resolver sobre a prisão de-
cretada por autoridade policial e conceder licença para processar o parlamentar
tem, com mais razão, poder para mandar prendê-lo, no momento em que comete
o crime”, nas dependências do Congresso.
Sobre a alegada falta de justa causa, dizem as informações que é matéria
para ser apreciada pelo juiz competente para o processo penal. Acrescentam,
porém, que, pela prova colhida, “a Presidência (do Senado) se convenceu que o
Senador Arnon de Melo feriu mortalmente o Senador José Kairala; e o Senador
Silvestre Péricles tentou contra a vida do Senador Arnon de Melo, só não levando
a cabo o seu intento, porque foi impedido pelo Senador João Agripino” (fl. 60).
Sustenta ele “que agiu em legítima defesa; não negou, porém, que empunhava o
revólver. A instrução criminal no processo, já autorizado pelo Senado, dirá se ele
teve ou não a intenção de matar o Senador Arnon de Melo” (fl. 64).
Consta, aliás, das informações que 48 horas após a prisão (prazo do art.
45, § 2º, da Constituição), a Comissão Diretora apresentou ao Senado o Projeto
de Resolução n. 47, aprovando a prisão em flagrante, autorizando a formação da
culpa e determinando a remessa do inquérito à autoridade judiciária competente.
Essa resolução foi aprovada em sessão extraordinária do dia 7, por 44 votos
contra 4 e uma abstenção. Nela se diz que o auto de flagrante delito foi “oportu-
namente lavrado” e o inquérito “regularmente feito” (fl. 59).
Esclarecem mais as informações, que o auto do flagrante foi enviado ao
Juiz competente da Vara Criminal e ao Chefe de Polícia (fl. 58). Por essa razão,
pondera o Presidente do Senado que a questão de ser ou não afiançável o delito
“não pode constituir já agora objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal
em sua competência originária”; está “prejudicada” pela remessa dos autos ao
juiz competente, a quem cabe verificar “se é caso de conceder ou não fiança”
(CPP, art. 323). Com as informações, além de documentos, vieram duas grava-
ções em disco: uma, da sessão do Senado em que se verificou o lutuoso aconte-
cimento; outra, de uma entrevista do Senador Lino de Mattos, que a tudo assistiu
e que havia comunicado à Presidência a ameaça ouvida do Senador Silvestre
Péricles. Poderemos ouvir essas gravações, se o Tribunal julgar conveniente.
Para concluir, informo que o impetrante solicitou a presença do paciente a
esta sessão, o que deixei de determinar à vista do disposto no art. 125 do nosso
Regimento. Se o Tribunal julgar a diligência necessária, poderemos suspender o
julgamento para esse efeito.
É o relatório.

462
Ministro Victor Nunes

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Pelo art. 125, § 1º, do nosso Regi-
mento, a apresentação do preso, em caso de habeas corpus, só é examinada
pelo Tribunal depois de verificada a sua competência para julgar o pedido. Trata-
rei, portanto, preliminarmente do problema da competência.
Dispõe a Constituição, no art. 141, § 22, que “a prisão ou detenção de
qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao juiz competente que a rela-
xará, se não for legal, e nos casos previstos em lei, promoverá a responsabilidade
da autoridade coatora”.
Tratando-se de parlamentar, a essa decisão do juiz deve preceder delibera-
ção da Câmara respectiva, que tem competência para resolver sobre a prisão e
autorizar a formação da culpa, nos termos do art. 45, § 1º, da Constituição.
Essa disposição é corolário da imunidade processual dos congressistas,
que “não poderão ser (...) processados criminalmente, sem prévia licença de sua
câmara” (art. 45, caput).
Confere, pois, a Constituição, no art. 45, § 1º, uma dupla atribuição às
Câmaras do Congresso Nacional. E são diferentes os efeitos jurídicos de uma e
de outra.
Quando autoriza, ou não, a formação da culpa, a Câmara pratica um ato
definitivo, que não é revisível pelo Poder Judiciário, e muito menos pelo Executivo,
por ser a mais alta emanação da independência do Congresso, como poder polí-
tico do Estado. Tão relevante é esta prerrogativa, no sistema que adotamos, que,
em princípio, “as imunidades dos membros do Congresso Nacional subsistirão
durante o Estado de sítio”; somente “poderão ser suspensas, mediante o voto de
dois terços dos membros da Câmara ou do Senado, as de determinados deputa-
dos ou senadores cuja liberdade se torne manifestamente incompatível com a
defesa da Nação ou com a segurança das instituições políticas ou sociais”, como
dispõe o art. 213.
Quer isso dizer que nem a lei que decretar o Estado de sítio pode incluir,
antecipadamente, as imunidades dos congressistas federais entre as garantias
constitucionais que, nessa emergência, ficarão suspensas (art. 207). É necessá-
ria deliberação específica sobre tais ou quais parlamentares, a ser tomada por
maioria qualificada de votos, não pelo Congresso, mas pela Câmara respectiva, e
essa deliberação é ainda condicionada à manifesta periculosidade do parlamentar
quanto à defesa nacional ou à segurança das instituições.
Esse dispositivo, obviamente, não interfere com o poder de autorizar, ou
não, a formação da culpa em caso de crime ocorrido, o qual continua, mesmo
durante o sítio, a ser regulado pelo art. 45, mas corrobora a conclusão de que a

463
Memória Jurisprudencial

negativa ou a concessão da licença para o processo é ato definitivo da Câmara,


irrevisível por qualquer dos outros Poderes.
O mesmo não acontece com a deliberação da Câmara respectiva sobre a
prisão de congressista em flagrante delito. Embora seja esta uma etapa da pró-
pria autorização para o processo, uma vez concedida esta, a legalidade da prisão
em flagrante é problema que continua em aberto para o juiz criminal competente.
Não é por outra razão que o Regimento do Senado manda remeter o inquérito “à
autoridade judiciária competente” (art. 400, § 3º). Disposição semelhante contém
o Regimento da Câmara (art. 203, § 3º).
Nem se compreende que o juiz credenciado para julgar o processo ficasse
impedido de julgar um dos seus incidentes, como é a prisão provisória do acusado.
Essa conclusão resultaria da natureza da função jurisdicional, mesmo que fosse
omissa a Constituição; mas esta não é omissa, porque prevê a hipótese na regra
geral do art. 141, § 22, pela qual o juiz competente, a quem for comunicada a
prisão de “qualquer pessoa”, deverá relaxar a prisão, “se não for legal”. A Cons-
tituição diz “relaxará”, o que exprime não apenas uma faculdade, mas um dever
do juiz. Se faltar a ele, deixando de relaxar a prisão ilegal, o remédio está previsto
na própria Constituição: é o habeas corpus (art. 141, § 23).
Segue-se, portanto, que, tendo sido comunicada a prisão ao juiz competente,
a ele pertence, em primeira mão, a competência para apreciar a sua legalidade.
Passa, pois, para segundo plano a autoridade que efetuou a prisão, ou que lavrou
o auto de flagrante, se este for o caso. Uma vez comunicada a prisão ao juiz, só
ele fica responsável pela coação, quer convalide a prisão ilegal, quer retarde
injustificadamente o seu pronunciamento.
Essa é, portanto, a situação dos autos, porque a prisão do paciente, em
cumprimento da deliberação do Senado de 7 do corrente, já foi comunicada ao
Juiz da 1ª Vara Criminal desta Capital, cujo cartório forneceu ao impetrante a
certidão do auto de flagrante, que se encontra à fl. 10.
Admitindo, apenas para argumentar, que o juiz esteja retardando o seu
pronunciamento, competente será o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e não
o Supremo Tribunal, para conhecer do habeas corpus originariamente. A nossa
incompetência está mencionada nas informações do Presidente do Senado, para
a apreciação da falta de justa causa quanto à natureza culposa ou dolosa de um
dos delitos atribuídos ao paciente; mas, como procurei demonstrar, a nossa in-
competência se estende a toda a matéria do habeas corpus, porque a legalidade
do auto de prisão em flagrante não pode ser por nós apreciada em primeira mão,
uma vez que já foi remetido ao juiz de primeira instância, em cumprimento ao
disposto no art. 141, § 22, da Constituição.

464
Ministro Victor Nunes

É explicável que o ilustre impetrante haja batido às portas do Supremo


Tribunal, embora no dia da impetração o auto de flagrante já se encontrasse em
poder do juiz. Naquele dia, 6 do corrente mês, o Senado ainda não havia autorizado
a formação da culpa, o que somente se verificou no dia 7. Era, pois, admissível a
dúvida sobre quem fosse a autoridade coatora. Se fosse a Mesa do Senado,
como sustentou o impetrante, poder-se-ia defender, com mais fundamento, a
competência originária do Supremo Tribunal (CF, art. 101, I, letra h, combinada
com a letra i), embora, como disse o Dr. Procurador-Geral, seja mais correto
entender-se que o art. 101, I, letra h, da Constituição se refere à coação proveni-
ente de autoridade sujeita à nossa jurisdição criminal, que não é o caso da Mesa
do Senado.
De qualquer modo, a dúvida inicial, justificável, desapareceu com a autori-
zação para a formação da culpa, que nos foi oficialmente comunicada nas infor-
mações.
A despeito disso, deveríamos conhecer do habeas corpus, se fôssemos o
juízo competente para processar e julgar, originariamente, a ação penal, por ser o
paciente, notoriamente, Ministro aposentado do Tribunal de Contas da União (CF,
art. 101, I, c). Em tal hipótese, a prisão deveria ser comunicada a nós, e não ao
juiz de primeira instância, para que apreciássemos a legalidade da prisão, origina-
riamente, sem dependência de pedido de habeas corpus, no uso da atribuição
prevista no art. 141, § 22, da Constituição.
Essa questão, entretanto, não foi suscitada no pedido que estamos julgando.
Isso, de resto, não seria obstáculo, porque poderíamos conceder o habeas
corpus por outro fundamento. Reporto-me, porém, ao voto que proferi no caso
do Ministro Mário Pinotti (Rcl 473, 31-1-62). Naquela oportunidade, citando pre-
cedentes do Supremo Tribunal (HC 33.440, 26-1-55; HC 38.409, 31-5-61; RE
39.682, 15-7-58; RTJ 6/408; HC 35.501, 21-10-57, RTJ 4/63) e do Tribunal de
São Paulo (ac. de 16-4-47, RDA 12/65), onde tivera ocasião de se manifestar o
eminente Ministro Pedro Chaves, então desembargador, o pressuposto da nossa
decisão foi tratar-se de atos praticados pelo ex-Ministro da Saúde ainda no exer-
cício do cargo. Em um dos precedentes então citados, ficou esclarecido que o
crime comum praticado pelo juiz já aposentado não abre a competência privile-
giada por prerrogativa de função (caso do Juiz Aníbal Morais Quintão, RDA 4/63,
6/408).
Por tais motivos, não conheço do pedido por falta de competência originá-
ria do Supremo Tribunal. Se os eminentes colegas entenderem de modo contrá-
rio, examinarei a matéria restante, isto é, a conveniência, ou não, de ser requisitado
o paciente e as alegações de nulidade do auto de prisão em flagrante e de falta de
justa causa.

465
Memória Jurisprudencial

VOTO
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Estou de acordo com o eminente
Relator. Toda a sua argumentação em torno da Constituição é corroborada pelo
Código de Processo Penal. Se dúvida pudesse pairar sobre a competência do
Senado para lavrar o auto de prisão em flagrante, encontraríamos o subsídio do
Código de Processo Penal, que não permitiria que se declarasse a nulidade do
flagrante desde logo. Por que não permitiria? Porque há um fato delituoso, incon-
testável, a ser apurado, sem que isso importe no prévio reconhecimento da culpa-
bilidade do paciente ou do co-réu. E as nulidades ocorrerão, segundo o artigo 564
do Código de Processo Penal:
I - por incompetência, suspeição ou suborno do juiz;
II - por ilegitimidade de parte;
III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes:
a) a denúncia ou a queixa e a representação e, nos processos de
contravenções penais, a portaria ou auto de prisão em flagrante;
(...)
Não se tratando de contravenção, mas de crime, desde que seja lavrado o
flagrante, só o juiz competente para o seu julgamento é que poderá verificar
falhas que porventura tenham ocorrido nesse flagrante e determinar a liberdade
do acusado. No caso de legítima defesa, não se permite que o réu permaneça na
prisão, de acordo com o artigo 314 do Código de Processo Penal. Evidentemente,
no caso, não há, ainda, sequer uma ação penal aforada. Como decretar, pois,
desde já uma nulidade?
O Sr. Ministro Vilas Boas: O fato é que há, desde já, uma prisão.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Mas uma prisão submetida ao juiz, para
o exame e a verificação de sua legalidade, ou não. Se ela for ilegal, o juiz a relaxará.
A própria Constituição assim o determina. De maneira que seria prematuro decre-
tar essa nulidade agora, por meio de um habeas corpus contra o ato da Mesa do
Senado, que, se mal tivesse interpretado a Constituição, teria constatado um fato
em flagrante delito, teria lavrado o auto de prisão na ardência do crime, logo após o
seu cometimento. Então, a atitude do Supremo Tribunal seria a de decretar a ile-
galidade de um ato que qualquer pessoa do povo pode praticar, que é a prisão em
flagrante de quem comete um crime, de quem acaba de cometê-lo.
A verificação do problema da responsabilidade, da culpabilidade, é posterior.
A Mesa do Senado autuou em flagrante, de acordo com o seu Regimento Interno.
Poderia fazê-lo? Indiscutivelmente! O artigo 307 do Código de Processo Penal
prevê a hipótese da autuação em flagrante por quem não seja autoridade policial.

466
Ministro Victor Nunes

Nós todos, que conhecemos o foro e nele vivemos há tantos anos, sabemos qual
é a praxe que se segue nos tribunais, quando algum crime é cometido no seu
recinto. Dada voz de prisão a quem infringiu uma norma penal, o juiz pode autuar
em flagrante. É o que diz o artigo 307: “Quando o fato for praticado em presença
da autoridade ou contra esta, no exercício de suas funções, constarão do auto a
narração desse fato, a voz de prisão, as declarações que fizer o preso e os depo-
imentos das testemunhas, sendo tudo assinado pela autoridade, pelo preso e pelas
testemunhas e remetido imediatamente ao juiz a quem couber tomar conheci-
mento do fato delituoso, se não for a autoridaade que houver presidido o auto”.
Admite-se que o juiz exerça essa função de polícia judiciária. Por quê? Porque o
fato é cometido no recinto de um tribunal.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Até quando o juiz seja vítima de um desacato.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Nesse caso, ele pode presidir ao auto.
Se o Poder Judiciário pode lavrar o flagrante, se a autoridade judicial pode pren-
der o criminoso, é evidente que também a autoridade do Poder Legislativo pode
presidir. O julgamento do crime imputado ao paciente não é da competência do
Supremo Tribunal e sim da do juiz de primeira instância.
Com esse adminículo de ordem processual, uma vez que a matéria de
ordem constitucional foi plenamente examinada pelo eminente Relator, também
concluo não conhecendo do pedido.

VOTO
O Sr. Ministro Vilas Boas: Eu estaria de pleno acordo com o eminente
Relator, se não fosse o tempo. Este Tribunal entrará em recesso no próximo dia
13, assim como todos os tribunais da Capital. É, pois, um caso de urgência. Nos
casos de urgência, o Supremo Tribunal tem sempre conhecido do habeas
corpus. Essa regra da competência não é rígida. Estou aqui há pouco tempo,
mas tenho assistido a muitos julgamentos em que...
O Sr. Ministro Hahnemann Guimarães: V. Exa. está no Tribunal há seis
anos.
O Sr. Ministro Vilas Boas: Estamos confiando demais no juiz, que poderá
apreciar, ou não, o auto de prisão em flagrante, o qual pode ser nulo em nosso
critério. De sorte que eu estaria de acordo com o eminente Relator — respeitaria o
princípio constitucional, que a meu ver não é rígido — se não fosse o tempo, se o
tempo não conspirasse contra nós. Mas as portas dos tribunais vão ser fechadas no
próximo dia 13. O paciente, um Senador da República e Ministro aposentado do
Tribunal de Contas, está preso. Essa prisão pode ser ilegal. Quem vai dizê-lo é o

467
Memória Jurisprudencial

juiz, em primeira mão. O Supremo, porém, num caso de urgência, também pode se
manifestar a respeito. De sorte que peço vênia ao eminente Relator para declarar
minha disposição de julgar este caso, dada a sua urgência. No mais, estou de pleno
acordo com S. Exa. Devemos seguir a ordem. O auto de prisão vai para o juiz, que
homologará, ou não, esse auto, podendo relaxar a prisão. Trata-se, porém, de caso
de urgência. Li os autos e tenho minhas dúvidas. Trata-se de um homem que está
preso, cuja sorte estará nas mãos do juiz singular, quando o Supremo Tribunal pode-
ria, seguindo a sua praxe, dar a palavra de liberdade.

VOTO
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Entendo, como fez ver o eminente
Procurador-Geral da República, que o problema fundamental, data venia, é o da
competência, no seu alto significado político. Apreciando essa competência, vejo
que a Mesa do Senado agiu de acordo com as determinações constitucionais,
remetendo os autos à autoridade competente. De modo que não há mais razão
para o Supremo apreciar a matéria. Estou, assim, de acordo com o voto do emi-
nente Relator.

DECISÃO
HC 40.382/DF — Relator: Ministro Victos Nunes. Impetrante: Inezil
Penna Marinho. Paciente: Silvestre Péricles de Góes Monteiro.
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: Não se conheceu do pedido,
por não ser caso de competência originária do Tribunal, contra o voto do
Ministro Vilas Boas.
Presidência do Exmo. Ministro Luiz Gallotti, na ausência do Exmo. Ministro
Ribeiro da Costa.
Relator: o Exmo. Ministro Victor Nunes.
Tomaram parte no julgamento os Exmos. Ministros Evandro Lins, Hermes
Lima, Pedro Chaves, Victor Nunes Leal, Gonçalves de Oliveira, Vilas Boas,
Candido Motta Filho e Hahnemann Guimarães.
Impedido: o Exmo. Ministro Lafayette de Andrada.
Brasília, 11 de dezembro de 1963 — Hugo Mósca, Vice-Diretor-Geral.

468
Ministro Victor Nunes

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.398 — DF

Foro de prerrogativa de função. Prisão em flagrante.


Argüição de nulidade. Falta de justa causa. Artigos 45, 101,
I, letra c, e 141, § 26, da Constituição Federal, 41, 301, 304
e 307 do Código de Processo Penal.
Habeas corpus indeferido.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Acompanho o eminente Ministro Pedro Cha-
ves. Peço vênia para seguir as notas que tomei para outro habeas corpus que
está sendo julgado conjuntamente com este.
Começando pelo problema da competência, recordo que, no Habeas
Corpus n. 40.382 (11-12-63), requerido pelo Dr. Inezil Penna Marinho, em favor
do mesmo paciente, assim me pronunciei:
“Essa questão, entretanto, não foi suscitada no pedido que estamos
julgando. Isso, de resto, não seria obstáculo, porque poderíamos conceder
o habeas corpus por outro fundamento. Reporto-me, porém, ao voto que
proferi no caso do Ministro Mário Pinotti (Rcl 473, 31-1-62). Naquela
oportunidade, citando precedentes do Supremo Tribunal (HC 33.440, 26-1-
55; RE 39.682, 15-7-58; RTJ 6/408; HC 35.501, 21-10-57, RTJ 4/63) e do
Tribunal de São Paulo (ac. de 16-4-47, RDA 12/65), onde tivera ocasião
de se manifestar o eminente Ministro Pedro Chaves, então desembarga-
dor, o pressuposto da nossa decisão foi tratar-se de atos praticados pelo
ex-Ministro da Saúde ainda no exercício do cargo. Em um dos preceden-
tes então citados, ficou esclarecido que o crime comum, praticado pelo juiz
já aposentado, não abre a competência privilegiada, por prerrogativa de
função (caso do Juiz Aníbal Morais Quintão, RDA 4/63, 6/408). Por tais
motivos, não conheço do pedido”.
Se fôssemos competentes, para julgar a ação penal, originariamente, as
alegadas irregularidades da prisão e do inquérito teriam de ser examinadas, por
nós, naquela oportunidade. Segue-se que a questão da competência, a rigor, foi
resolvida, no caso anterior, à base dos precedentes indicados, como premissa
necessária do não-conhecimento do pedido de habeas corpus. O tema da com-
petência por prerrogativa de função é bem conhecido do Tribunal, e o eminente
Ministro Pedro Chaves acaba de trazer uma notável contribuição em reforço da
nossa jurisprudência.

469
Memória Jurisprudencial

O ilustre impetrante do primeiro dos dois pedidos que estamos julgando,


citou em seu favor o Habeas Corpus n. 32.097, de Mato Grosso, julgado em 20-
8-52, como se verifica nas notas taquigráficas que acabo de solicitar à Secreta-
ria. O caso, entretanto, não é idêntico. Tratava-se, ali, de desembargador em
exercício no Tribunal Eleitoral e o ponto em debate era saber se a competência
para julgá-lo por crime eleitoral continuava a ser do Supremo Tribunal Federal,
por sua condição de desembargador, ou se havia passado para a Justiça Eleitoral,
pela natureza do delito (CF, art. 119, VII). Esta Corte decidiu que o exercício da
função eleitoral não retirava ao paciente a sua condição de desembargador.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Era até uma conseqüência dessa condição.
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Portanto subsistia a Competência
do Supremo Tribunal Federal. Também se decidiu que não importava a sua con-
dição de aposentado, porque a aposentadoria fora posterior à prática do crime.
Por isso, constou expressamente da ementa: “Não se modificam as regras da
competência (...) pela aposentadoria, que sobrevenha, do magistrado”.
A hipótese não é igual à que ora julgamos. O crime fora cometido ainda
durante o exercício da judicatura e a ele estava vinculado. No caso dos autos, o
crime imputado ao paciente ocorreu depois da sua aposentadoria no Tribunal de
Contas, como está comprovado, nos autos, por certidão, circunstância que o ilus-
tre advogado mencionou da tribuna. S. Exa. sustenta que essa distinção não tem
cabimento, mas o Sr. Ministro Pedro Chaves demonstrou, cabalmente, que ela
procede inteiramente e que a nossa jurisprudência em tal sentido deve ser, agora,
reiterada.
No tocante à regularidade do flagrante e do inquérito realizado pela Mesa do
Senado, não foi este assunto discutido com amplitude no caso anterior, embora o Sr.
Ministro Evandro Lins houvesse desenvolvido consideração a respeito. Entretanto,
para a hipótese de que fosse necessário o exame da matéria, tomei, na ocasião,
algumas notas a que recorrerei, agora, na fundamentação do meu voto.
O que então alegou o impetrante, como hoje repetiu, foi que, ordinariamente,
só a autoridade policial pode fazer o inquérito, segundo o art. 304, combinado com
o art. 4º do Código de Processo Penal. A autoridade administrativa só terá essa
faculdade quando deferida por lei, como dispõe o citado art. 4º, paragráfo único.
Entretanto, o regimento interno das câmaras legislativas, no que toca à sua
própria polícia, tem força de lei, pois essa prerrogativa lhes foi atribuída com
caráter de exclusividade pelo art. 40 da Constituição. Do mesmo modo, as reso-
luções das câmaras sobre o regime do seu funcionalismo tem força de lei, e
contra elas não se pode opor uma lei geral, por ser inatingível, pelo legislador

470
Ministro Victor Nunes

ordinário, a prerrogativa que a Constituição concedeu a cada uma das Câmaras


isoladamente. Por igual razão, no tocante ao policiamento interno das Casas do
Congresso, o regimento tem força de lei formal, porque assim o quis o próprio
legislador constituinte, zeloso da independência dos Poderes.
O ilustre impetrante sustentou, no processo anterior, que o poder de polícia
das Casas do Congresso somente alcança os parlamentares no que respeita ao
desempenho de suas funções legislativas.
Esse é um problema, Sr. Presidente, que foi posto, há muitos anos, perante
a Corte Suprema dos Estados Unidos, que teve ocasião de construir um famoso
precedente no remoto ano de 1821 — Anderson v. Dunn (6 Wheaton 204). Pes-
soa estranha ao Congresso tentou subornar um de seus membros e foi preso e
processado pela direção da Câmara atingida. A Corte decidiu que as Casas do
Congresso tinham esse poder.
É importante esse precedente, Sr. Presidente, porque somente mais tarde
foi promulgada uma lei autorizando as Câmaras a prender e processar por
contempt of Congress. A decisão do caso Anderson v. Dunn é, portanto, anterior
a essa lei e se baseou, exclusivamente, no princípio da independência dos Pode-
res. Em virtude dele, o Congresso e qualquer de suas Casas não podia deixar de
ter aquela faculdade que se lhes impugnava.
O poder de polícia e o poder de inventigação do Congresso norte-americano
têm sido objeto de numerosas decisões da Corte Suprema. Além do caso citado,
recolhi em alguns autores estes outros, nos quais vários aspectos do problema
são examinados, por vezes, condenando-se as exorbitâncias do Congresso:
Kilbourn v. Thompson, 103 US 168.
(1881), McGrain v. Daugherty, 273 US 135 (1927), Interstate
Commerce Commission v. Brimson, 154 US 447 (1894), Harriman v.
Interstate Commerce Commission, 211 US 407 (1908), Smith v. Interstate
Commerce Commission, 245 US 135 (1927), in re Chapman, 166 US 661
(1897), Sinclair v. United States, 279 US 263 (1929), Barry v. United
States ex rel. Cunningham, 279 US 597 (1929), Marshall v. Gordon, 243
US 521 (1917), Jurney v. Mac-Cracken, 294 US 125 (1935), United States
v. Bryan, 339 US 323 (1950), United States v. Fleischman, 339 US 349
(1950), Christoffel v. United States 338 US 84 (1949), Uphaus v. Wyman,
360 US 72, 364 US 388, Barenblat v. United States, 360 US 109, Wilkinson
v. United States, 365 US 399, Braden v. United States, 365 US 431, United
States v. Rumely, 345 US 41, Quinn v. United States, 349 US 155 (1955),
Bart v. United States, 349 US 219 (1955), Ullman v. United States, 350 US

471
Memória Jurisprudencial

422 (1956), Watkins v. United States, 354 US 178 (1957), Sweezy v. New
Hampshire, 354 US 234 (1957), Tenney v. Brandhove, 341 US 367 (1951),
Eisler v. United States 338 US 189 (1949). Vejam-se a respeito, Edward S.
Corwin, The Constitution of the United States of America (1953),
Alpheus T. Mason and William M. Beaney, The Supreme Court in a Free
Society (1959), Bernard Sewartz, The Supreme Court (1957), Justice
William O. Douglas, The Right of the People, 2ª ed. (1962).
Corwin, referindo-se à autoridade do Congresso sobre as testemunhas
convocadas por ele, assim nos informa (p. 85): “O explícito reconhecimento judi-
cial do direito de cada Casa do Congresso mandar prender, por contempt, uma
testemunha que ignora a sua intimação, ou se recusa a responder às perguntas,
data do caso McGrain v. Daugherty,” que é de 1927, “mas o princípio ali aplicado
tinha suas raízes numa decisão antiga, Anderson v. Dunn, que afirmou, em ter-
mos amplos, o direito, que tem cada ramo do legislativo, de prender e punir pes-
soa estranha por desrespeito à sua autoridade” (a person other than a member
for contempt of its authority).
Não podia, realmente, o poder de polícia das Casas do Congresso ficar
adstrito ao exercício, propriamente, da função parlamentar. Esta é uma prerroga-
tiva que resguarda o Poder Legislativo de qualquer atentado, em nome de sua
independência, garantida pela Constituição Federal. Segundo essa tradição, o
Regimento Interno do Senado e o da Câmara dos Deputados, em nosso País,
disciplina o modo de proceder da Mesa em tais circunstâncias.
Além disso, há que distinguir, na argumentação, os problemas da prisão em
flagrante e do inquérito. No caso dos autos, sustenta-se a nulidade de ambos, mas
o arrazoado do ilustre impetrante se refere particulamente ao inquérito.
Admitamos, por amor do debate, que a Câmara não tivesse competência
para fazer o inquérito (competência que admito, pelas razões já enunciadas).
Mas uma coisa é a nulidade da prisão em flagrante, outra coisa, a nulidade do
inquérito. Qualquer autoridade, mesmo não autorizada a fazer o inquérito, pode
prender em flagrante, como qualquer pessoa do povo. A autoridade, não apenas
pode, mas deve. É o que dispõe, expressamente, o art. 304 do Código de Processo
Penal. E tanto está admitida a prisão por outra autoridade que não a competente
para fazer o inquérito, que esse mesmo dispositivo manda remeter o preso à que
for competente para as investigações.
Vejamos, agora, o problema do inquérito não mais à luz do princípio cons-
titucional da independência dos Poderes, mas em face da própria lei processual
comum. O art. 307 do Código de Processo Penal, citado pelo Sr. Ministro Pedro

472
Ministro Victor Nunes

Chaves, prevê a hipótese de crime cometido em presença da autoridade. O Código


diz apenas “em presença da autoridade, ou contra esta, no exercício de suas
funções”, daí haver concluído o impetrante que o vocábulo autoridade só com-
preende, nesse dispositivo, a autoridade policial, que é, de ordinário, a competente
para o inquérito. Mas a parte final desse dispositivo prevê, expressamente, a
hipótese de ser o crime cometido perante autoridade judiciária, determinando que
o próprio juiz presidirá ao inquérito. De igual modo dispõe o nosso Regimento
quanto à polícia da Casa, no seu art. 26, § 3º, citando, embora, a antiga lei da
Justiça Federal (D. 848, de 1890, art. 367).
Diante do art. 307, in fine, do Código de Processo Penal, ocorre pergun-
tar: na hipótese que estamos examinando, o Senado estaria no desempenho de
função judiciária, devendo, portanto, ser equiparado às autoridades judiciárias
para o efeito de poder a sua Mesa realizar o inquérito?
Parece que sim, Sr. Presidente. É lugar comum, no direito público, que as
Câmaras exercem função judiciária, quando, por exemplo, se trata de
impeachment, porque este processo especial envolve um julgamento. Discute-se
quanto à sua natureza — se penal ou política —, mas é inquestionável que esse
julgamento envolve o exercício de função judiciária, porque, absolvido o acusado,
não o pode punir a Justiça comum pelo mesmo crime de responsabilidade. Aqui
não se cogita de impeachment, mas, nos termos do art. 45, § 1º, da Constituição,
cabia ao Senado “resolver sobre a prisão”. De que natureza é esse ato de “resol-
ver sobre a prisão”? O art. 141, § 22, da Constituição, atribui, como regra, essa
deliberação ao juiz competente para o processo, porque manda lhe seja
comunicada imediatamente a prisão ou a detenção de qualquer pessoa, para que
aprecie a sua legalidade. Tratando-se, porém, de parlamentar, a Constituição
confere, em primeira mão, à Câmara respectiva, a atribuição de resolver sobre a
prisão em flagrante por crime inafiançável. Trata-se, pois, de um ato substancial-
mente da mesma natureza do que incumbe ao juiz criminal, pelo art. 142, § 22,
embora a Câmara possa usar de critério mais amplo, não restrito às questões de
legalidade. Também o júri julga de consciência, mas de qualquer modo profere
um julgamento. Conclui-se, portanto, que a deliberação das Câmaras, prevista no
art. 145, § 1º, da Constituição, é também de natureza jurisdicional, conquanto de
efeito provisório, já que, sendo negativo, não vai além do tempo de exercício do
parlamentar envolvido e, sendo positivo, transfere-se ao juiz competente o julga-
mento do processo. Trata-se, pois, de ato jurisdicional, e as Câmaras, em tal
hipótese, devem ser equiparadas à autoridade judiciária, para proceder ao inqué-
rito, nos termos do art. 307, in fine, do Código de Processo Penal. Essa equipa-
ração deriva da própria Constituição.

473
Memória Jurisprudencial

No caso dos autos, foi o que ocorreu. Efetuada a prisão, realizado o inquérito,
o Senado deliberou, aprovando o flagrante e determinando a remessa dos autos à
justiça comum. O Senado agiu autorizado pela própria Constituição, não havendo
necessidade de invocar argumento de ordem legal para que pudesse usar de uma
prerrogativa envolvida no princípio da independência dos Poderes.
Resta, Sr. Presidente, o problema da falta de justa causa. Quero lembrar
aos eminentes colegas que, no Habeas Corpus anterior, transcrevi informações
do Presidente do Senado, em que constava esta passagem:
“O Senador João Agripino, que atentamente acompanhou esses
movimentos, atirou-se sobre o Senador Silvestre Péricles e segurou o
revólver do mesmo, cujo gatilho, porém, foi acionado, enterrando o
percursor, que detona a cápsula, no dedo do Senador João Agripino, que
ficou preso ao revólver”.
Daí o indiciamento do paciente por tentativa de homicídio.
Agora, no depoimento prestado em juízo pelo ilustre Senador João
Agripino (que consta dos autos por certidão), aquela cena foi descrita da seguinte
forma:
“(...) que nessa altura o revólver do Senador Silvestre Péricles já
estava seguro pelo depoente e pelos guardas que vieram em sua ajuda;
que o depoente não sabe se o percursor do revólver do Senador Silvestre
Péricles se armou ou quando o depoente colocou seu dedo polegar sobre
o local onde deveria ser a testa do percursor ou se quando procurava
arrancar dito revólver da mão do Senador Silvestre Péricles; que com os
movimentos daí resultantes o percursor se armou, vindo atingir o dedo
polegar direito do depoente (...)”.
Desse depoimento, prestado em juízo, não resulta firme convicção de que
o Senador Silvestre Péricles tivesse acionado o gatilho.
O ilustre impetrante do segundo habeas corpus, que ora estamos julgando,
exibiu da tribuna dois desenhos, para demonstrar a casualidade do ferimento na
mão do Senador João Agripino. Contudo, não dou muito valor a esses desenhos,
porque ostentam um erro palmar. O Senador Silvestre Péricles neles aparece, empu-
nhando a coronha do revólver com os quatro dedos da mão direita contrapostos
ao polegar. Nenhum atirador faz isso. A coronha é sempre empunhada com três
dedos mais o polegar, porque o dedo indicador há de ficar livre para acionar o
gatilho. O paciente, atirador experimentado, não poderia estar segurando o revólver
pelo modo como aparece nesses desenhos.
De qualquer modo, do depoimento do Senador João Agripino não resulta a
firme convicção de que o paciente houvesse engatilhado a arma e acionado o gatilho.

474
Ministro Victor Nunes

Mas, como acentuou o eminente Ministro Pedro Chaves, a esta altura, o sumário
já deve estar encerrado. Consta dos autos uma certidão de que o ilustre Promotor
Dr. José Paulo Pertence já pediu a pronúncia, o que pressupõe a conclusão do
sumário. O ilustre impetrante declarou, porém, da tribuna, que tal ainda não
aconteceu. Se houve alguma diligência posterior, a formação da culpa deve estar
praticamente concluída, para ser apreciada pelo juiz da pronúncia. Não me
parece adequado que nos antecipemos a ele.
Além disso, não posso garantir ao Tribunal, porque não há elementos nes-
tes autos, que a única prova em que se baseou a denúncia, formalmente perfeita,
para atribuir ao paciente o início de execução do crime, seja o depoimento do
Senador João Agripino. É possível que sim, mas não posso transmitir ao Tribunal
qualquer certeza a esse respeito. Se constasse dos autos que somente o depoi-
mento do Senador João Agripino serviu de apoio à denúncia, eu concederia o
habeas corpus, porque aquele depoimento não é, de modo algum, conclusivo
sobre esse pormenor de magna importância, isto é, se o Senador Silvestre
Péricles acionou, ou não, o gatilho do revólver.
Por essas razões, Sr. Presidente, acompanho o eminente Ministro Pedro
Chaves, negando a ordem.

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 40.400 — DF

1) O poder de polícia da Câmara dos Deputados e do


Senado Federal, em caso de crime cometido nas suas depen-
dências, compreende, consoante o regimento, a prisão em
flagrante do acusado e a realização do inquérito. 2) Acusa-
ção de crime que teria sido cometido após a cessação do
exercício funcional não acarreta a competência especial por
prerrogativa da função. 3) Habeas corpus negado para não
se antecipar o Supremo Tribunal, no exame dos fatos, à
apreciação do juízo da ação penal. 4) Votos vencidos: con-
cessão da ordem por falta de justa causa.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes (Relator): Sr. Presidente, também indefiro o
pedido, nos termos do julgamento há pouco proferido no Habeas Corpus 40.398,
devendo a Secretaria anexar a estes autos uma cópia autenticada das notas
taquigráficas.

475
Memória Jurisprudencial

PETIÇÃO DE HABEAS CORPUS 41.296 — DF

Impeachment — Caso do Governador Mauro Borges, de


Goiás. Deferimento de liminar em habeas corpus preventivo
por despacho do Ministro Relator, dada a urgência da
medida. Os Governadores dos Estados, nos crimes de res-
ponsabilidade, ficam sujeitos ao processo de impeachment,
nos termos da Constituição do Estado, respeitado o modelo
da Constituição Federal. Os Governadores respondem cri-
minalmente perante o Tribunal de Justiça, depois de julgada
procedente a acusação pela Assembléia Legislativa. Nos
crimes comuns, a que se refere a Constituição, incluem-se
todos e quaisquer delitos da jurisdição penal ordinária ou da
jurisdição militar. Os crimes militares, pelos quais os civis
respondem na Justiça Militar, são os previstos no art. 108
da Constituição Federal. Os crimes de responsabilidade são
os previstos no art. 89 da Constituição Federal e definidos
pela Lei n. 1.079, de 1950. Concessão da ordem para que o
Governador somente seja processado após julgada proce-
dente a acusação pela Assembléia Legislativa.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Depois dos doutíssimos votos que acabamos
de ouvir, não seria necessário trazer novas considerações. Mas, pela relevância
do processo, pareceu-me conveniente comprovar que vários aspectos que ele
oferece ao nosso exame já têm sido apreciados por este Tribunal. Não estamos
desbravando floresta virgem, mas palmilhando caminho pavimentado pela juris-
prudência.
I - Discute-se a competência originária do Supremo Tribunal, porque S.
Exa., o Sr. Presidente da República, negou, categoricamente, qualquer participação
pessoal nos acontecimentos de Goiás. Mas nossa competência originária para co-
nhecer do habeas corpus em casos urgentes, ainda que a autoridade coatora não
esteja diretamente sob a jurisdição do Tribunal, data, como já foi lembrado, da Lei
221, de 20-11-1894, art. 23, e foi utilizada diversas vezes, como atesta Mendonça
de Azevedo, citando acórdãos de 1897,1899, 1903, 1916 e 1919 (A Constituição
Federal Interpretada pelo STF, n. 1.301; Pedro Lessa, do Poder Judiciário, p.
267; Castro Nunes, Teoria e Prática do Poder Judiciário, p. 248).
Em um dos julgados (20-5-1903), ponderou-se que essa prerrogativa devia
ser usada com extrema prudência, porque fora conferida por lei ordinária, e não
pela Constituição (ob. cit., n. 1.322). Mas essa mesma ressalva perdeu muito de

476
Ministro Victor Nunes

sua significação, porque as Constituições de 1934 (art. 76, h), de 1937 (art. 101,
I, g) e de 1946 (art. 101, I, h) previram, expressamente, aquela competência
excepcional desta Corte. Tão longa continuidade é que permite ao nosso Regi-
mento dispor sobre o assunto, nos mesmos termos (art. 22, i), como já o fazia o
Regimento de 1909 (art. 16, § 2º, inciso 1º).
Que o caso presente era de urgência, nos termos da Constituição, não se
pode contestar, não só pela notoriedade como pela suspensão cautelar concedida
pelo eminente Relator e, ainda, pelos votos aqui proferidos.
Um dos casos julgados outrora pelo Supremo Tribunal foi o habeas
corpus impetrado por Rui Barbosa e correligionários, contra autoridades esta-
duais da Bahia, para que pudessem livremente fazer, ali, a propaganda de sua
candidatura presidencial (HC 4.781, 5-4-1919, DO de 17-7-20, p. 12070).
O Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem, e o Relator, Edmundo
Lins, assim se expressou: “Ora, segundo tal dispositivo (art. 23 da Lei 221), este
Tribunal é competente para conceder, originariamente, a ordem de habeas
corpus no caso de iminente perigo de consumar-se a violência, antes de outro
tribunal ou juiz poder tomar conhecimento da espécie em primeira instância.
É o que, na hipótese vertente, fatalmente se daria se, ao Juízo Federal da
secção da Bahia, fosse impetrado este habeas corpus e ele o denegasse, pois o
recurso de sua decisão só poderia ser decidido por este Tribunal no prazo mínimo
de quinze a vinte dias, ao passo que faltam apenas oito para a eleição de Presi-
dente da República: claríssimo, pois, que se consumaria, plenamente, a violência
de que se arreceia o impetrante”.
Muito expressivo também foi o habeas corpus concedido, em 15-10-
1910, ao Coronel Antonio Bittencourt, Governador do Amazonas, coagido a sair
do Palácio e a deixar Manaus por forças federais que agiram à revelia da Pre-
sidência da República. Disse Pedro Lessa, falando pelo Tribunal: “Na espécie
dos autos, a coação ilegal que sofreu (e ainda não cessou) o paciente tem sido de
tal modo noticiada pela imprensa diária, tem sido tão discutida nas duas Casas do
Congresso Nacional, suscitando providências do Poder Executivo federal, que,
tratando-se de habeas corpus, bem se pode considerar a prova do fato perfeita-
mente suficiente, sendo assim desnecessário o pedido de informações”. Dizia,
em seguida, “que a asserção de ter sido o Governador do Estado do Amazonas
destituído do seu cargo pelo Poder Legislativo do Estado não justifica de modo
algum a coação que sofreu, e ainda não cessou, o dito Governador, porquanto,
sem apreciar a legalidade da destituição, matéria estranha ao habeas corpus,
em caso nenhum podem forças federais, destacadas em um Estado, sem ordem
do Presidente da República e com violação dos preceitos constitucionais que
garantem a autonomia dos Estados, coagir um governador, ou presidente, a reti-
rar-se da sede do Governo.”

477
Memória Jurisprudencial

II - Pelas razões já expostas, não se pode pôr em dúvida o pressuposto


da iminência ou da ameaça de coação, a que aludem a Constituição Federal, no
art. 141, § 23, e o Código de Processo Penal, no art. 647. Desde os tempos da
Primeira República, vem decidindo o Supremo Tribunal que, para o habeas
corpus preventivo, não é necessário comprovar a realidade da violência imi-
nente, bastam fundados motivos (19-6-1918), ou razões fundadas para re-
cear a violência (13-8-1913, 17-5-1916, 14-9-1918, 4-12-1912, 6-5-1914, 5-1-
1910, 2-8-1913, 23-5-1914, 19-12-1914, 9-1-1915, 15-7-1916), ou fundado re-
ceio (12-6-1922), ou indícios da iminência do constrangimento ilegal (23-1-
1915, 9-6-1906), pois o essencial não é provar a iminência da coação, mas
justificar o receio, como se decidiu em acórdão de 2-8-1916 (Cf. Mend. Aze-
vedo, ob. cit., n. 1.377, 1.448 B, 1.499). Em alguns julgados daquela fase,
acrescentou o Tribunal que, se for infundado o receio, “nenhum mal pode
advir” da concessão do habeas corpus preventivo; “ao contrário, servirá para
prevenir”, ao passo que “sua denegação permitirá que se consume a violência
planejada” (ob. cit., n. 1.333; Octavio Kelly, Jurisprudência Federal, n. 1.025,
1º Supl., n. 718). E quem pode duvidar, pela evidência pública, do justificado
receio do Governador de Goiás de ser afastado do cargo e preso preventiva-
mente por um despacho judicial de primeira instância?
III - Por outro lado, baseia-se a impetração, em grande parte, na Lei n.
1.079, de 10-4-1950, que regula os crimes de responsabilidade dos titulares das
mais elevadas funções públicas, inclusive Governadores de Estado, e nas disposi-
ções constitucionais que essa lei desenvolveu.
O primeiro problema suscitado a esse respeito, senão nas informações
oficiais, pelo menos no debate extrajudicial, é a alegada inconstitucionalidade
dessa lei, por falta de competência do legislador federal. Mas essa questão já foi
resolvida no sentido da constitucionalidade, pelo Supremo Tribunal, no Caso de
Alagoas (RMS 4.928, de 20-11-57, Cfr. Edgard Costa, Grandes Julgamentos,
4/53). O pensamento vitorioso nesta Corte pode ser sintetizado nas palavras que
então proferiu o eminente Ministro Hahnemann Guimarães (p. 122): “(...) na
Representação n. 97, do Piauí, julgada em 12 de novembro de 1947, e na Repre-
sentação n. 111, de Alagoas, julgada em 23 de setembro de 1948, sustentei a tese,
que mantenho, de que compete exclusivamente à União Federal, nos termos do
art. 5º, XV, a, da Constituição, legislar sobre Direito Penal e o processo. Não
pode, pois, o legislador estadual definir sujeitos de responsabilidade, crimes, ór-
gãos jurisdicionais e processo que não estejam previstos na lei federal. O
impeachment é, por sua tradição anglo-americana, essencialmente, um pro-
cesso judiciário-parlamentar. É um processo penal-político, e não exclusiva-
mente político, como sustenta, com tanto brilho, o eminente Sr. Ministro Nelson
Hungria.

478
Ministro Victor Nunes

Atendendo ao disposto na Constituição Federal, em seu art. 5º, n. XV, letra


a, a Lei n. 1.079, de 10 de abril de 1950, sujeitou a processo de crime de respon-
sabilidade os Governadores e Secretários de Estado. Fê-lo como lei principal, não
como lei supletiva do direito estadual. A lei citada é o elemento principal no sistema
desse processo penal e parlamentar, desse processo judiciário e parlamentar. A
Lei n. 1.079 adotou normas essencias, deixando que os Estados tenham o órgão
jurisdicional que queiram, mas se reservou, como lei principal que é, a faculdade
de suprir as omissões da legislação estadual”.
No Caso do Piauí, a que se refere o eminente Mestre, disse S. Exa.: “(...)
a respeito dos artigos 67, 68 e 69 da Constituição estadual, que regulam a respon-
sabilidade do Governador, eu me manifesto pela inteira inconstitucionalidade de
todas as disposições, pois, segundo os pareceres dos Professores Noé de Azevedo
e Joaquim Canuto Mendes de Almeida, entendo que a Constituição estadual não
pode restringir a garantia devida aos Governadores, que somente podem ser
responsabilizados por fatos e segundo processo definidos em lei federal. Esta
minha convicção, que se baseou nas razões aduzidas por aqueles eminentes juris-
tas, impõe o reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 67, 68 e 69”.
(Rp 97, 12-11-47, E. Costa, ob. cit. 2/341, 378).
O mesmo entendimento já expressava Epitácio Pessoa no regime de 91,
ao discutir, como Relator, o Caso Aurelino Leal (HC 2.385, 18-8-1906): “Pode
o Estado votar uma lei de responsabilidade para os seus funcionários? Não. Uma
lei que define crimes e lhes comina penas é uma lei substantiva e, como tal,
excede à esfera de ação dos Estados — Constituição, art. 34, n. 23. Dir-se-á que
esta pena é uma simples medida política e, como tal, pode ser criada pelo Estado.
Mas não deixa de ser uma pena, e, como não há pena sem crime, o Estado terá
de definir os crimes a que é ela aplicável (...), o que escapa à sua competência.
Demais é uma medida cuja aplicação retarda e pode até burlar (...) a execução
da Constituição e do Código Penal. Nem se invoque o direito que o Estado tem de
prescrever as condições de demissibilidade dos seus funcionários, pois este direito
só pode ir ao ponto em que não ofenda a ação das leis federais”. (Epitácio Pessoa,
Acórdãos e Votos, 1955, p. 190.)
É certo que o Tribunal, na ocasião, não apreciou aquele aspecto da causa,
porque deixou de conhecer do HC que fora requerido contra o paciente por um
adversário político, tal como viria a acontecer cinqüenta anos depois, em caso
que me coube relatar (HC 39.811, 3-4-63, DJ de 14-6-63, p. 391). Mas, em outro
processo, de 8-11-1917, o Supremo Tribunal afirmou a competência do legislador
federal para definir os crimes de responsabilidade, excluída a competência dos
Estados (Mend. de Azevedo, ob. cit., n. 330; Rev. For. 31/364, HC 4.116).

479
Memória Jurisprudencial

Portanto, estudar e decidir o caso presente em face do que dispõe uma lei
federal (Lei 1.079, de 1950) é orientação que remonta à mais antiga tradição do
Supremo Tribunal.
IV - Por essa lei e pelos dispositivos constitucionais a que se filia, não
podemos deixar de concluir pela necessária antecedência do processo de
impeachment quanto ao processo perante a Justiça comum (em qualquer dos
seus ramos, ordinários ou especiais), nos crimes de responsabilidade dos titulares
dos poderes políticos.
Esse princípio está na doutrina dos melhores escritores, bastando que me
reporte aos subsídios vulgarizados pelos que mais desenvolvidamente estudaram
o assunto entre nós: Cfr. RF 16/72, 25/124, 26/367, 26/453, 27/103, 125/93, 125/
108, 125/604.
Já no Império, não era diverso o nosso Direito Constitucional, consoante a
lição de Pimenta Bueno (Direito Público Brasileiro, ed. de 1958, p. 113): “(...) a
Constituição brasileira, com toda a sabedoria, não só firmou a responsabilidade
ministerial em seus arts. 132 e 133 (...), mas declarou privativa da Câmara dos
Deputados a atribuição de decretar a acusação, assim desses agentes do Poder
Executivo, como dos Conselheiros de Estado (...) Ainda quando o Senado não
houvesse de ser o tribunal de julgamento (...), é manifesto que a atribuição de
que nos ocupamos não deveria ser encarregada senão aos deputados da
Nação, guardas avançados de suas instituições e liberdades”.
A precedência do julgamento pelo crime de responsabilidade, que é ex-
pressa nas nossas Constituições em relação ao Presidente da República (1891,
art. 53; 1934, art. 58; 1937, art. 86; 1946, art. 88), foi adotada, em fórmula ampla,
pelo art. 12, § 8º, da Lei 221, de 1894: “O crime comum ou de responsabilidade
conexo com o crime político será processado e julgado pelas autoridades judiciá-
rias competentes para conhecer do crime político, sem prejuízo das atribuições
de outro Poder constituído para previamente julgar da capacidade política do
responsável para exercer o mesmo ou qualquer outro cargo público”.
A cláusula, que nesse texto se contém, sobre o julgamento prévio da “ca-
pacidade política” para o exercício do cargo corresponde, precisamente, à etapa
do impeachment, quando o acusado é titular de um poder político. Basta ver que,
julgando um caso em que se reclamava revisão criminal para um julgamento de
impeachment, o Supremo Tribunal, ao negar a pretensão, usou de expressões
muito semelhantes às do art. 12, § 8º, da Lei 221: “O julgamento político não tem
outro objetivo senão averiguar se o empregado possui ou não as condições
requeridas para continuar no desempenho de suas funções (...)” (ac. de 22-7-
1890, Mend. de Azevedo, ob. cit., n. 1.835).

480
Ministro Victor Nunes

Vê-se, pois, que a Lei 1.079, de 1950, ao estabelecer a precedência do


julgamento político nos crimes de responsabilidade, também remonta à nossa
mais antiga tradição republicana. E essa tradição continua viva, como se vê na
Súmula 301 do Supremo Tribunal, sobre o julgamento dos crimes de responsabi-
lidade dos prefeitos municipais. No primeiro dos precedentes citados na Súmula,
o eminente Ministro Luiz Gallotti demonstrou, com apoio na Lei 1.079, que o
impeachment deve preceder ao indictment (RHC 38.619, 22-11-61).
V - Os atos criminosos atribuídos ao Governador Mauro Borges referem-se,
como evidenciou o eminente Relator, ao exercício do cargo de Governador do
Estado.
Pelo art. 74 da Lei 1.079, são crimes de responsabilidade dos Governadores
todos os definidos na mesma lei, inclusive, portanto, de acordo com o art. 89 da
Constituição, os mesmos atos que seriam crime de responsabilidade, se fossem
praticados pelo Presidente da República. Entre outros:
a) os que atentarem contra a existência da União (art. 4º, I), definidos no
art. 5º, abrangendo vinculações com potência estrangeira, em detrimento do nosso
País;
b) os que atentarem contra o exercício dos direitos políticos, individuais e
sociais (art. 4º, III), capitulados no art. 7º, que compreendem diversas formas de
atividade subversiva, bem como a tolerância para com crimes ou abusos de auto-
ridades diretamente subordinadas;
c) os que atentarem contra a segurança interna do País (art. 4º, IV), ca-
racterizados no art. 8º, englobando também atos de subversão e de tolerância
para com transgressões às leis;
d) os que atentarem contra a probidade na administração (art. 4º, V), enu-
merados no art. 9º, incluindo o procedimento incompatível com a dignidade, a
honra e o decoro do cargo;
e) os que atentarem contra o cumprimento das decisões judiciárias (art. 4º,
VIII), especificados no art. 12.
Nesse amplo elenco de crimes de responsabilidade, não é possível deixar
de incluir a atividade subversiva que, pela Lei de Segurança, pudesse recair na
competência da Justiça Militar. E o encarregado-geral dos inquéritos, ao encami-
nhar os autos à Auditoria Militar da IV Região, assim despachou: “(...) os fatos
apurados constituem crime contra o Estado e a ordem política e social previstos
na Lei n. 1.802, de 5-1-53 (...)”.
O art. 78 da Lei 1.079 estabelece alguns princípios a serem observados no
processo de impeachment pelo Direito Constitucional estadual, limita os efeitos

481
Memória Jurisprudencial

do julgamento político e dispõe sobre omissões da Constituição do Estado a res-


peito. Nesse e em outros artigos da lei ficou expresso, em correspondência com
o disposto na Constituição Federal para o Presidente da República, que o julga-
mento político dos crimes de responsabilidade dos Governadores se desdobra em
dois juízos: o de acusação, ou pronúncia, pela Assembléia Legislativa; o de julga-
mento, pelo órgão indicado na Constituição estadual, ou, na sua falta, por um
tribunal misto regulado na própria Lei 1.079.
VI - Ao restringir os efeitos da condenação política à perda do cargo e à
inabilitação para o exercício de função pública (art. 78), ressalva a Lei 1.079:
“sem prejuízo da ação da justiça comum”.
Dir-se-á que a expressão Justiça comum não abrangeria a Justiça Militar,
do mesmo modo que a Constituição de Goiás, ao dar competência ao Tribunal de
Justiça para julgar o Governador do Estado “nos crimes comuns” (art. 57, VII,
a), também não incluiria os crimes militares.
Mas, em leis que definem crimes de responsabilidade e dispõem sobre o tribu-
nal que há de julgar esses crimes, as expressões Justiça comum e crime comum
estão empregadas em oposição a juízo político e a crime de responsabilidade. A ex-
pressão Justiça comum abrange, portanto, todos os ramos da justiça, que não sejam
de caráter político, inclusive a Justiça Militar, e a expressão crimes comuns, todos os
crimes que não sejam de responsabilidade, sem excluir os militares.
Se assim não fosse, o argumento que estamos considerando provaria
demais. Provaria que também o Presidente da República, os Ministros de Estado e
todos os outros titulares que têm foro privilegiado, como os próprios juízes dos
tribunais federais superiores, poderiam ser julgados, nos crimes militares, pela
Justiça Militar, já que a Constituição, quando lhes dá foro especial para os crimes
comuns, também não alude aos crimes militares (art. 101, I, a, b e c). Note-se,
a esse respeito, essa grave subversão hierárquica: enquanto os Ministros do
Supremo Tribunal Federal seriam por ele julgados, todos os demais juízes dos
tribunais federais superiores seriam julgados pela Justiça Militar de 1ª instância
(Cfr. Decreto-Lei 925, de 2-12-38, art. 91, a, e 94, a).
Bastam essas considerações ad absurdum para mostrar que os pregoeiros
da hegemonia da Justiça Militar deixaram de lado a lógica jurídica. Contrariam,
além disso, recente decisão do Supremo Tribunal, no Caso Plínio Coelho (HC
41.049, 4-11-64).
Haveremos, pois, de concluir que também a Justiça Militar, quando o crime
de responsabilidade for igualmente crime militar, não pode atuar antes do processo
de impeachment, ou antes da cessação do exercício do acusado, se por alguma
razão tiver competência.

482
Ministro Victor Nunes

VII - A Constituição Federal, inspirando-se no regime norte-americano,


instituiu todo esse mecanismo para, de um lado, reprimir a falta de exação no
exercício das altas funções do Estado e, de outro, garantir eficazmente o livre
exercício dos poderes políticos, porque “todo poder emana do povo” (art. 1º).
Para destituir os governantes, dada a relevância da função política, o prévio julga-
mento dos seus atos é realizado, pelo menos em uma das fases, por um órgão
político, que também deriva a sua legitimidade da mesma fonte, isto é, do povo,
por meio de eleições.
A contra-prova dessa garantia está em que a Constituição define como
crime de responsabilidade, mesmo para o Presidente da República, atentar con-
tra o livre exercício dos poderes constitucionais, seja da União, seja dos Esta-
dos (art. 89, II).
Outra evidência de que é o exercício do poder político que se protege
encontramos na circunstância de não ser necessário o prévio julgamento político
quando o titular já estiver afastado do cargo, como decidiu o Supremo Tribunal no
Caso Epitácio Pessoa. Em tal hipótese, o que subsiste é o foro especial para
proteção da pessoa do ex-governante, se a acusação se funda em ato praticado
no exercício do cargo. Assim tem decidido o Supremo Tribunal, não só no Caso
Epitácio como em diversos outros, referidos nas Súmulas n. 394 e 396.
Todo esse mecanismo de salvaguarda do exercício dos poderes políticos
ruiria se o Presidente da República ou os Governadores de Estados pudessem
ser presos e, portanto, suspensos ou destituídos, por um simples despacho da
Justiça comum (incluindo nessa expressão a Militar), sobretudo de juízes de
primeira instância. Se isso fosse possível, os juízes, mesmo os inferiores, é que
governariam o País, em lugar dos titulares legitimados pelo voto popular, de onde
emana o poder.
Que esse sistema protetivo também ampara os poderes constitucionais dos
Estados não pode haver a menor dúvida. Em primeiro lugar, como já sublinhado,
porque atentar contra o exercício desses poderes também constitui crime de res-
ponsabilidade, por expressa disposição constitucional (art. 89, II). Em segundo, por-
que essa conclusão se impõe sob o ângulo da autonomia estadual.
A permanência dos Governadores em seus cargos é apenas um aspecto
da autonomia dos Estados, garantida pelo regime federativo que adotamos há 75
anos. Quando, para afastá-los, é posto em movimento o processo político do
impeachment, tudo se passa no âmbito do Estado. São observadas as leis da
União, mas fica resguardada a autonomia estadual.
Para que o afastamento possa resultar de ato de autoridade federal, a
Constituição estabeleceu a válvula da intervenção, definindo os casos em que
será decretada. Mas não prevê outra forma de amputação da autonomia estadual,

483
Memória Jurisprudencial

e o processo da intervenção está a cargo do Presidente da República, do Congresso


Nacional, do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, com suas
atribuições minuciosamente definidas na própria Constituição (arts. 7º a 14).
Nesse sistema fechado, não há base na Constituição para essa forma indi-
reta de intervenção federal, que consistiria na prisão preventiva do Governador
por despacho de juízes de primeira instância. Se pudesse haver uma deposição
tão sumária, que federação seria esta?
Sr. Presidente, concedo a ordem, nos termos do voto do eminente Relator.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 54.190 — CE

Imposto do selo — É devido em contrato com autarquia


firmado após a Emenda Constitucional n. 5, de 21-11-61.
Recurso extraordinário da União conhecido e provido.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, quero pedir a tolerância dos
eminentes colegas para uma exposição mais longa, a fim de bem situar meu
pensamento na matéria em debate, que tem várias implicações.
Em primeiro lugar, direi que o assunto não está ainda regulado na
Súmula 303.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Está, a contrario sensu.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente por isso, eminente Ministro
Gonçalves de Oliveira, é que me parece não estar previsto.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Interpreto a Súmula, posto tenha
sido redigida por V. Exa., que está. O que diz a Súmula é o seguinte:
“Não é devido o imposto federal de selo em contrato firmado com
autarquia anteriormente à vigência da Emenda Constitucional n. 5, de
21-11-61”.
Por mais que V. Exa. queira interpretar esse dispositivo, evidentemente
que estabeleceu que, depois da emenda, é devido. Do contrário, que sentido teria
a referência à Emenda n. 5? Podemos fazer uma revisão, evidentemente, em
face dos argumentos que V. Exa. apresentar, mas que está prevista a não-isen-
ção, a meu ver, está prevista no sentido de que é devido o selo nos contratos
posteriores à Emenda Constitucional n. 5.

484
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Pedro Chaves: Seria inócua a emenda se não se chegasse a


essa conclusão.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Retomando o fio do meu raciocínio, contradi-
tado antecipadamente pelos eminentes Ministros Gonçalves de Oliveira e Pedro
Chaves, peço vênia para uma consideração preliminar. Se tivermos de interpretar
a Súmula com todos os recursos da hermenêutica, como interpretamos as leis,
parece-me que a Súmula perderá sua principal vantagem. Muitas vezes será
apenas uma nova complicação sobre as complicações já existentes. A Súmula
deve ser entendida pelo que ela exprime claramente e não, a contrário sensu,
com entrelinhas, ampliações ou restrições. Ela pretende pôr termo a dúvidas de
interpretação e não gerar outras dúvidas.
No ponto em debate, a Súmula declara que é devido o selo nos contratos
celebrados anteriormente à Emenda Constitucional n. 5. Mas não afirma que,
celebrado o contrato posteriormente, o selo seja devido.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Mas não era preciso dizer. Que
sentido terá o termo assinalado, “anteriormente à Emenda n. 5”? Não era preciso
dizer que depois da emenda o selo é devido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Parece-me que era. Assim procedemos em
outros casos. Exemplificarei com as Súmulas 66 e 67.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não podemos interpretar a Súmula
com outra Súmula, porque, então, teríamos de dizer: “posteriormente à Emenda, o
imposto não é devido também”.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Súmula foi criada para pôr termo a dúvi-
das. Se ela própria puder ser objeto de interpretação laboriosa, de modo que
tenhamos de interpretar com novas dúvidas o sentido da Súmula, então ela per-
derá a sua razão de ser.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: Há referência, nessa Súmula, a casos julgados.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Nenhum caso de contrato posterior à Emenda
Constitucional foi julgado ainda em Plenário.
Pediria a V. Exa. a fineza de acompanhar o meu raciocínio. Vejamos o
caso do aumento de imposto antes ou depois da vigência do orçamento. Para
isso, a Súmula adotou duas regras. No n. 66, dispõe que “é legítima a cobrança
do tributo que houver sido aumentado após o orçamento, mas antes do início do
respectivo exercício financeiro”. No n. 67, diz que “é inconstitucional a cobrança
do tributo que houver sido criado ou aumentado no mesmo exercício financeiro”.
Há vários outros exemplos de igual teor na Súmula, que me dispenso de
citar para não ser mais cansativo.

485
Memória Jurisprudencial

Haverá redundância, talvez, mas a Súmula se destina a pôr termo a dúvi-


das e não a gerar novas dúvidas.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Não precisava a segunda, porque
ela decorria da primeira.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não precisaria, se a Súmula devesse ser
interpretada como um texto de lei, mas não me parece que assim deva ser.
O Sr. Ministro Pedro Chaves: O que é lamentável é que V. Exa. esteja
destruindo a sua grande obra, que é a confecção da Súmula.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Faço um apelo aos eminentes colegas para
não interpretarmos a Súmula de forma diferente do que nela se exprime inten-
cional e claramente. Do contrário, a Súmula falhará, em grande parte, à sua
finalidade. Quando a Súmula afirma que não é devido o selo se o contrato for
celebrado anteriormente à vigência da Emenda Constitucional n. 5, sobre essa
afirmação, e somente sobre ela, é que já está tranqüila a orientação do Tribunal.
Quanto a ser devido o selo nos contratos posteriores, o Tribunal Pleno ainda
não definiu a sua jurisprudência.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Era melhor não ter posto nada, por-
que, na Primeira Turma, julgamos pacificamente neste sentido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sim. A primeira Turma sempre tem julgado,
pacificamente, em tal sentido. Mas em Plenário é a primeira vez que se discute o
problema. Em todos os casos indicados na Súmula 303, o contrato era anterior à
Emenda.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Eu mesmo fui Relator de mandado
de segurança no Pleno.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É a primeira vez que tenho a honra de discutir
o assunto no Plenário. De outras vezes em que os eminentes colegas avançaram
seu ponto de vista quanto à incidência do selo nos contratos posteriores à Emenda,
sempre observei que deixava de apreciar essa questão, porque o caso concreto
se referia a contrato anterior à Emenda.
Esta questão, Sr. Presidente, envolve, como dizia, vários problemas. Há
um primeiro problema, que é o da imunidade tributária recíproca das entidades
tributantes. Essa imunidade, como é sabido, foi considerada implícita na Consti-
tuição dos Estados Unidos. O princípio foi firmado por Marshall, no famoso caso
McCulloch vs. Maryland (1819), ao negar a esse Estado o poder de lançar im-
posto sobre o Banco dos Estados Unidos, criado pela União.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: V. Exa. se refere ao problema de
tributações.

486
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou, apenas, escalonando o meu raciocínio


para ser mais claro no seu desenvolvimento.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Com a devida vênia, a questão não é
bem essa. É a questão da tributação da União pela própria União.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou dando o primeiro passo para chegar
até lá. Nos Estados Unidos, não se entendeu que fosse necessário um texto
expresso para estabelecer a imunidade recíproca das entidades tributantes. As
nossas Constituições, já baseadas nessa tradição do direito norte-americano, e
para evitar controvérsia, incluíram o princípio da imunidade recíproca no seu texto.
É, atualmente, o que dispõe o art. 31, V, a.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: E também os comentadores, como
Aurelino Leal e Ruy Barbosa, diziam que era desnecessário.
O Sr. Ministro Victor Nunes: A Constituição, portanto, não se preocupou
em dispor que a União tem imunidade em face de si mesma, porque essa conclu-
são resultava com tal evidência, que, só pelo gosto de ser pleonástico, o legislador
constituinte o diria de modo expresso. E os eminentes Ministros Pedro Chaves e
Gonçalves de Oliveira, ainda há pouco, afirmaram que a imunidade da União
quanto aos seus próprios tributos é coisa que está a salvo de qualquer discussão.
O texto primitivo do art. 15, § 5º, da Constituição vedava a cobrança do selo
federal sobre os atos jurídicos, ou os seus instrumentos, quando fossem partes a
União, os Estados ou os Municípios. Não teria razão de ser a referência à União,
aos Estados e aos Municípios quando se tratasse de interesse dessas entidades.
O que a Constituição consagrou nesse dispositivo não foi, portanto, o princípio da
imunidade recíproca, nem uma aplicação dele, porque já expresso com amplitude
no art. 31, V, a.
Por outro lado, proibia o dispositivo, como ainda se lê na redação atual, a
cobrança do selo federal quando o ato, ou o seu instrumento, estivesse incluído na
competência tributária dos Estados e dos Municípios. Ainda aqui não se explica-
ria ele em função da imunidade recíproca. Mas se explica como cautela expressa
para evitar bitributação. Se tal ou qual ato recai na competência tributária dos
Estados ou dos Municípios, sobre ele não deverá incidir o selo federal. Aliás, a
vedação da bitributação já tem formulação mais ampla quanto a impostos novos,
no art. 21.
Conclui-se destas observações que, quando o art. 15, § 5º (redação ante-
rior), se referiu expressamente aos atos e instrumentos em que fosse parte a
União, o que realmente quis o constituinte, como disse o Sr. Ministro Gonçalves de
Oliveira, foi isentar o ato do selo federal, quaisquer que fossem os demais partici-
pantes dele, inclusive particulares. Eis porque a nossa jurisprudência, em tais
casos, também estendia a isenção ao particular, porque, estando isento o ato,
como o seu instrumento, nenhum dos participantes ficaria sujeito ao selo, única
interpretação que poderia ter a mencionada cláusula constitucional.

487
Memória Jurisprudencial

Veio a Emenda Constitucional n. 5 e, transformando o antigo § 5º do art. 15 em


§ 7º, dele suprimiu justamente a cláusula “quando forem partes a União, os Estados
ou os Municípios”, relativamente aos atos jurídicos ou aos seus instrumentos.
Dessa exclusão, resulta um primeiro problema que não oferece dificuldade
maior: se do ato participa um Estado ou um Município, desapareceu, em relação
a eles, a imunidade.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se o Estado ou o Município for o
responsável pelo pagamento do selo, não paga, porque, pelo art. 31, não se pode
cobrar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Exatamente. A imunidade dos Estados e
Municípios em face da União não resultava do art. 15, § 5º, mas do art. 31, V, a.
Portanto, em nenhuma hipótese, pelo fato de se ter suprimido a citada cláusula do
art. 15, § 5º, poderá o selo federal incidir sobre os Estados e os Municípios. Em
outras palavras, a supressão daquela cláusula não teve o efeito, nem o propósito,
de abolir ou reduzir a imunidade dos Municípios, nem a dos Estados, nem a da
União, nem a das autarquias.
Qual o sentido, então, de se terem eliminado aquelas palavras do art. 15, §
5º? Que foi que essa exclusão permitiu à União tributar com o selo? Permitiu,
justamente, que se tribute o particular que eventualmente seja parte em ato jurídi-
co firmado com a União, os Estados, os Municípios, ou suas autarquias. Tendo-se
em vista a jurisprudência dos tribunais, sobretudo a do Supremo Tribunal, permi-
tiu a Emenda que a União, na Lei do Selo, estabeleça para o particular, embora
contratando com entidade de direito público, a obrigação de pagar o selo federal.
Por tais razões, Sr. Presidente, não posso aceitar o primeiro argumento, de
ordem legal, do ilustre advogado da recorrente, de que sobreviveu a questionada
isenção, pela própria Lei do Selo, que ainda não foi expressamente alterada no
texto correspondente ao antigo § 5º do art. 15 da Constituição. Como a lei fez
referência expressa ao texto constitucional, proibitivo, uma vez eliminada a
proibição constitucional, ficou plenamente válida a Lei do Selo na parte em que
manda o particular pagar o selo. Ficou plenamente válido o § 3º do seu art. 2º, que
assim dispõe:
“Havendo mais de um signatário, se algum deles gozar de isenção, o
ônus do imposto recairá sobre os demais.”
Por força desse dispositivo, que não está mais em choque com a Constitui-
ção, é que se cobra do particular o selo federal nos casos que estamos apreciando.
É evidente, pelas considerações anteriormente deduzidas, que a intenção do Con-
gresso, ao emendar a Constituição, foi permitir essa tributação ao legislador federal
ordinário.

488
Ministro Victor Nunes

Resta, porém, o problema da repercussão do imposto, argumento de or-


dem constitucional, também desenvolvido pelo ilustre advogado no escalonamento
do seu raciocínio. Se o selo, embora pago aparentemente pelo particular, se trans-
fere, na realidade, para a União, o Estado ou o Município, pelo fenômeno da
repercussão, será devido o imposto?
O problema da repercussão não é destituído de importância jurídica, pois
temos negado a repetição do indébito fiscal quando se trata de impostos indiretos,
pelo argumento de que o ônus recaiu em outrem que não o solvens. O solvens
perde o direito de repetir, porque, na realidade, não sofreu o ônus fiscal. É o que
dispõe a Súmula 71.
Figuremos, então, a situação inversa, em que uma entidade protegida pela
imunidade tributária suporta, realmente, pela repercussão, o ônus do imposto.
Deve prevalecer o imposto?
Nesta parte, Sr. Presidente, data venia dos eminentes Ministros que en-
tendem de modo contrário, acompanho o raciocínio do advogado, apoiado pelos
Srs. Ministros Vilas Boas e Hermes Lima. Sempre que de um contrato resultar,
de modo inequívoco, que o ônus tributário está sendo suportado pela União, pelos
Estados, pelos Municípios, ou por suas autarquias, o selo não é devido, porque
não teria sentido que a União tributasse a si mesma, ainda que indiretamente. E
se quisesse, ainda que indiretamente, tributar os Estados ou os Municípios, não o
poderia fazer, porque vedado pela Constituição. Não podemos reconhecer os
efeitos jurídicos da repercussão tributária apenas para negar direito aos particula-
res que pedem repetição de impostos indiretos, e negar esses efeitos quando os
particulares, defendendo-se, também defendem o patrimônio público das conse-
qüências da repercussão tributária.
No caso dos autos, Sr. Presidente, tudo indica que o ônus do imposto re-
percutiu sobre a União, ou melhor, sobre autarquia federal, o Departamento Na-
cional de Estradas de Rodagem.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Então, V. Exa. interpreta, portanto,
como impossível a cobrança do tributo, mesmo nos contratos agora realizados e
até mesmo naqueles em que há uma vedação ao legislador ordinário, pela Emen-
da Constitucional n. 5. V. Exa., com isso, restabelece aquilo que o legislador consti-
tuinte quis evitar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Se V. Exa. atentar melhor para o meu racio-
cínio, verá que não, porque em muitos casos o imposto não repercute.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Vamos ficar no caso do Departa-
mento Nacional de Estradas de Rodagem. V. Exa. vai verificar o seguinte: em
todos os contratos celebrados com o Departamento Nacional de Estradas de
Rodagem, em qualquer época, mesmo que haja lei expressa neste sentido, decorre
da Constituição, pelo voto de V. Exa., que não se paga o selo. V. Exa., portanto,
revoga a Emenda Constitucional n. 5.

489
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Não. Se o Departamento Nacional de Estra-


das de Rodagem fizer um contrato de locação em que seja locador, será devido o
selo, porque não haverá repercussão. O que sustento é que não será devido o
selo nos casos em que se verificar o fenômeno da repercussão contra
entidade protegida pela imunidade.
Se um particular pede empréstimo à Caixa Econômica, o ato, que antes da
Emenda Constitucional não era tributável, passou a ser, recaindo o imposto sobre
o mutuário.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: A conseqüência do voto de V. Exa.
é que nem o legislador ordinário pode estabelecer imposto de selo nos contratos
de empreitada celebrados com o DNER.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Poderá, se quem executa o serviço é o
DNER, porque, então, o imposto repercutirá sobre o patrimônio do particular que,
por hipótese, é o outro contratante. Meu pensamento é bem claro, Sr. Presidente.
Se houver repercussão do imposto sobre o patrimônio de pessoa jurídica
de direito público, protegida pela imunidade, o imposto é indevido; se
não houver repercussão, o imposto é devido. Como se vê, meu raciocínio
não revoga a Emenda Constitucional n. 5, apenas a interpreta em função de
princípios jurídicos consagrados.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Isso ocorreria sempre.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Nem sempre. Acabei de mencionar casos, como
os dos financiamentos por autarquia, em que o imposto é devido. Estamos discutindo
um problema constitucional e devemos atentar para todas as suas implicações.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Já havia isenção, na vigência da Emenda
Constitucional n. 5, para a prestação de serviços que V. Exa. traz como exemplo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Há pouco se pediu ao Sr. Ministro Vilas Boas
que discutisse o problema no plano constitucional. Agora me arrastam do problema
constitucional para o plano legal.
Lamento muito que os apartes dos eminentes colegas me obriguem a me
afastar do ponto fundamental em debate. Peço vênia para repetir o meu pensa-
mento. Antes da Emenda Constitucional n. 5, o ato em que interviesse a União,
um Estado, um Município, ou qualquer de suas autarquias, estava isento de selo,
qualquer que fosse a pessoa sobre cujo patrimônio recaísse, na realidade, o ônus
do imposto. Depois da Emenda, sempre que o ônus do imposto recair, na realidade,
sobre o particular, sem que haja repercussão contra a entidade de direito público,
o imposto passou a ser devido. Mas se houver a repercussão de modo que, em
última análise, o ônus fiscal recaia sobre a União, um Estado, um Município ou
uma autarquia, então o imposto não será devido.

490
Ministro Victor Nunes

Portanto, está claro o meu pensamento. Faço essa distinção no plano


constitucional, interpretando a Emenda Constitucional n. 5 em face do princípio
da imunidade.
No caso concreto, como se trata de empreitada em que o Departamento
Nacional de Estradas de Rodagem é o empreitador, e não o empreiteiro, as des-
pesas da obra, inclusive as fiscais, terão de ser carregadas ao Departamento,
porque o empreiteiro não trabalha de graça nem contrata para tomar prejuízo.
Em última análise, a autarquia federal, pelo fenômeno da repercussão, é que terá
de pagar o tributo. Mas ela está protegida pela imunidade, não pelo art. 15, mas
pelo art. 31, V, a, da Constituição.
Assim, conheço do recurso, mas para lhe negar provimento.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 56.880 — DF


AGRAVO DE INSTRUMENTO 32.869 — DF
RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 14.230 — DF

Caso Hanna. Cancelamento de averbações de minas e


jazidas. Ao Presidente da República, que, em nosso regime
político constitucional, é o responsável pela administração
pública do País, tendo em vista os altos interesses públicos e
da própria segurança nacional, deverá ser presente o pro-
cesso administrativo instaurado no Ministério de Minas e
Energia, por determinação governamental, para uma solução
que consulte os reais interesses da Nação. Provido, em parte,
o recurso ordinário, prejudicados os recursos da União.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço vênia aos eminentes
colegas para uma ponderação preliminar, e a faço com o máximo respeito. A não
ser no voto do Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, parece-me que os demais, num
e noutro sentido, prejulgaram um processo administrativo que, de acordo com a
lei, ainda não chegou ao seu termo.
Que houve neste caso? O Presidente Jânio Quadros mandou proceder a
uma investigação a respeito da regularidade de certas concessões ou autoriza-
ções para exploração de minérios.
Para não ser infiel, quero fazer este relato com as palavras do memorial da
própria recorrente, cujo primeiro subscritor é o eminente Professor Vicente Ráo:

491
Memória Jurisprudencial

“Duas ou três comissões foram criadas com esse objetivo. As


primeiras parecem não ter conseguido construir bases técnicas ou legais
para uma ação contra essas explorações, e uma outra foi designada pela
Portaria MME-100, publicada no Diário Oficial de 26-6-1961. Também
essa encontrou dificuldade em reunir a unanimidade dos seus membros, e
somente depois da alteração das conclusões finais inicialmente propostas
foi possível chegar a um relatório conclusivo, assinado com data de 31 de
julho de 1961.
A Comissão selecionou algumas minas do quadrilátero ferrífero
para ser objeto de sua análise, e as agrupou em 40 itens. Desses 40 itens,
nove se referiam a minas da Novalimense. As minas analisadas eram do
interesse de 17 empresas diversas, inclusive três sociedades de economia
mista.”
Mais adiante:
“Examinando a situação jurídica dessas minas, afirmou a comissão
(sem qualquer fundamentação da sua tese) que várias delas (inclusive
as da Novalimense) estavam em situação irregular porque:
a) no caso de minas que haviam sido objeto de manifesto (em
1935/6) por empresas estrangeiras, e cujos direitos de exploração haviam
sido posteriormente transferidos para empresas organizadas no Brasil,
essa transferência (feita 23 anos antes) tinha sido ilegal pois:
I - a empresa estrangeira não podia transferir os seus direitos; e
II - as empresas com acionistas ao portador ou estrangeiros
não podiam ser cessionárias desses direitos.
b) as retificações de manifesto de jazida para minas eram ilegais.”
Continua o memorial:
“Dezessete dias depois (a 17-8-61) o Ministro das Minas e Energia
submetia o relatório da Comissão, acompanhado dos 21 pareceres jurídicos,
à aprovação do Presidente da República, propondo:
‘a) aprovar as conclusões e recomendações constantes de
folhas 69 a 73, com a instauração do processo administrativo para a
declaração de nulidade das autorizações feitas irregularmente e
caducidade das que vêm sendo feitas infringindo o Código de Minas,
na sua exploração’.”
Tomamos, então, o processo no ponto em que o Presidente da República
determinou que se fizesse o necessário expediente administrativo para (textual-
mente) “declaração da nulidade das autorizações feitas irregularmente, e da ca-
ducidade das que vêm infringindo o Código de Minas, na sua exploração”.

492
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro de Minas e Energia proferiu, a seguir, o despacho já lido


pelo eminente Ministro Relator, que é objeto da impetração.
Os Srs. Ministros que concedem a segurança argumentam que foi violado
o disposto nos arts. 26 e 38 do Código de Minas quanto às formalidades e quanto
à competência.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Consente V. Exa.? Não foi esse o meu argu-
mento. Foi tão-só o da falta de competência do Ministro para cancelar a
averbação antes feita. Falta de competência constitucional foi o meu único argu-
mento, tanto que, em seguida, declarei que, se qualquer das hipóteses figuradas
se verificasse, estariam abertos os caminhos ao Governo Federal para promover
a anulação dos atos viciosos, apurar responsabilidades, pleitear a reparação do
dano sofrido. E, ao deferir a segurança, o fiz sem prejuízo de ulterior procedimento
da União em defesa dos seus direitos ou, se for o caso, do exercício das faculdades
que lhe outorga o citado art. 21, in fine, do Ato das Disposições Transitórias.
V. Exa. está dando ao despacho do Presidente Jânio Quadros uma extensão
que não comporta. É uma recomendação feita às autoridades para procederem na
forma das leis e regulamentos administrativos.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não concluí ainda o meu raciocínio, mas não se
trata de recomendação. Trata-se de determinação após uma investigação concreta.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Sim, mas em geral.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Específica, para o caso.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Para todos os casos; em todas as hipóteses em
que houvesse fatos denunciáveis, haveria instauração de processo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Peço perdão pela insistência, mas não podemos
divergir quanto aos fatos. O despacho referia-se a todas as irregularidades, mas que
foram apuradas na investigação prévia que tinha sido realizada e que era objeto do
relatório. S. Exa., o Sr. Presidente da República, aprovou um relatório; portanto,
uma investigação específica.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Mas era abrangente de todas as hipóteses
análogas; S. Exa. determinava às autoridades que procedessem em defesa do
interesse da União, iniciando os processos em cada caso.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Permite o eminente Ministro Victor Nunes
um minuto de interferência?
O Sr. Ministro Victor Nunes: Pois não.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Fui quem recordou aqui, em primeiro
lugar, a aplicação analógica dos arts. 26 e 38 do Código de Minas atual. Se essa

493
Memória Jurisprudencial

lei estabelece um processo contraditório com defesa da parte, prazos para defesa,
etc., para os casos de caducidade e anulação, temos de admitir que isso é aplicável
também a essa hipótese.
O Decreto 24.642 autorizou a lavra, o funcionamento por parte dessa com-
panhia impetrante. O efeito é interromper esse despacho do saudoso Ministro
Gabriel Passos.
Se, no caso de uma simples concessão, deve-se ouvir a parte, muito mais
quando a firma estava de posse de uma situação de direito, em que se lhe atribuíam
minas exploradas anteriormente à Constituição de 34.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço os esclarecimentos, mas eles não
perturbam o desenvolvimento do meu raciocínio. Se o eminente Ministro Prado
Kelly não indicou expressamente os arts. 26 e 38, mencionou o vício de incom-
petência do Ministro, e é este aspecto que desejo examinar quando aludo aos
artigos citados pelo eminente Ministro Aliomar Baleeiro, pois eles traduziram, em
termos de legislação minerária, o problema de competência focalizado nos votos
que dão provimento ao recurso.
Vejamos o que dizem esses dispositivos e os que lhes estão vinculados. O
art. 24 refere-se particularmente ao processo de autorização de pesquisa; o art.
38, ao de lavra.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Se, pelo menos, se dá essa cautela, com
maior razão se dará pelo máximo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. verá que o meu raciocínio está sendo
conduzido por outro caminho. O art. 24 diz em que condições caduca a autoriza-
ção de pesquisa. O art. 25 prevê a anulação da autorização de pesquisa. E o art.
26, compreendendo as duas hipóteses (caducidade e anulação), dispõe:
“Antes de decretada a caducidade ou a anulação, os seus motivos
serão aduzidos e processados administrativamente, sendo intimada a parte
a, dentro de sessenta dias, apresentar contestação. Se a parte não fizer
oposição, ou se os motivos por ela oferecidos e postos em prova não
ilidirem a imputação e as provas já produzidas, o Ministro da Agricultura
pronunciará a caducidade, em despacho motivado”.
Mas tanto o art. 24, no parágrafo único, como art. 25 (o primeiro tratando
da caducidade e o segundo da anulação) dizem que esses atos se formalizam em
decreto do Presidente da República.
Há, pois, aparentemente, uma contradição na própria lei, entre os arts. 24 e
25, de um lado, e o art. 26, de outro. Os dois primeiros falam em decreto do Presi-
dente, o último em despacho do Ministro.

494
Ministro Victor Nunes

Mas não existe tal contradição. É que a lei não deu a esse despacho do
Ministro, embora pronunciando a caducidade, o efeito de despacho terminativo
do processo. Prevê que o processo ainda tenha de subir ao Presidente da Repú-
blica, para lhe dar a solução final em forma de decreto.
Isso, no que toca à pesquisa. Mas vem o art. 38, referente à lavra, e diz a
mesma coisa quando faz remissão ao art. 26:
“A nulidade das autorizações de lavra feita com infração do disposto
neste Código poderá ser declarada, mediante processo administrativo, por
decreto do Presidente da República, observados o prazo e formalidades do
art. 26, ou por sentença judicial (...)”.
Portanto, tudo quanto está no art. 26, sobre a pesquisa, também está no
art. 38, que se refere à lavra. Ambos prevêem um despacho ministerial, declarando
a caducidade, mandando, apesar disso, que o processo suba ao Presidente da
República para decisão final. Conclui-se, pois, que, pela própria lei, aquele despa-
cho ministerial não é terminativo do processo, como observou o eminente Ministro
Gonçalves de Oliveira em seu douto voto.
Assentada essa conclusão preliminar, que é que estamos discutindo neste
pedido de segurança, nos termos em que foi posto o debate?
Os que a negam afirmam que era ilegal o ato anterior que admitira retifica-
ção do manifesto dos depósitos minerais da impetrante (quero evitar, por ora, o
emprego da palavra mina). Esses votos, portanto, data venia, prejulgam o pro-
cesso administrativo num sentido. Do mesmo modo procedem, mas em sentido
inverso, os que dão provimento ao recurso, quando afirmam que foi ilegal e
abusivo o ato ministerial, porque a exploração da mina já vinha de muito tempo,
desde antes da Constituição de 34, sendo, pois, incontestável o direito à sua ex-
ploração, na condição de lavra. É possível que o Sr. Ministro Prado Kelly não
tenha ido tão longe, afirmando o direito da recorrente à efetiva exploração.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Já que V. Exa. me faz a honra de citar-me a
respeito, há de consentir que, nesse caso, corrobore o meu pensamento. O des-
pacho cancelador das averbações diz o seguinte:
“Aprovo o parecer de fls. 103/104, do Sr. Consultor Jurídico. Em
conseqüência, cancelem-se as averbações irregularmente processadas.
Determine o DNPM a cessação imediata das explorações concedidas
pelos cancelamentos e acompanhe a execução das medidas de desapro-
priação das terras necessárias à exploração das referidas jazidas que fi-
cam com o seu aproveitamento destinado a Sociedade em que a União
figure com maioria de capital. Em 14 de junho de 1962. Gabriel de
Rezende Passos”.

495
Memória Jurisprudencial

Era despacho terminativo do feito e, logo, executório. Se se tratasse de


uma exposição de motivos ao Presidente da República para que ele baixasse um
decreto reformatório do decreto no qual se ampara a impetrante, então, não
haveria vício a nulificá-la, não haveria incompetência — esta à falta de qualidade
do Ministro de Estado.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Neste ponto está a nossa divergência: sobre
a natureza do despacho ministerial.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Só o Presidente do tempo poderia alterar a sua
própria deliberação.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Daí a conclusão do meu
voto, no sentido de que o processo fosse à conclusão do Sr. Presidente da Repú-
blica.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O despacho é executório e terminativo, e não
tinha competência o saudoso Ministro de Minas e Energia para reformar, com
elementos de convicção própria, um decreto baixado pelo Presidente da República.
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: O mandado de segurança é contra o ato
do Presidente da República.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Na hierarquia das leis...
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Sr. Presidente, peço ao
eminente Ministro Victor Nunes permissão para interromper seu douto voto, a
fim de dar um pronunciamento, como Relator.
Este é um processo de grande relevância nacional. Uma companhia es-
trangeira, quiçá irregularmente, obteve alteração de autorizações para concessão
de pesquisas de minérios. O eminente Ministro Hermes Lima mostrou, em seu
voto — aliás, repetindo a minha argumentação —, que a companhia sabia, perfei-
tamente, a legislação quando requereu, em 1934, o manifesto de suas proprie-
dades. E fez, distintamente: “minas de ouro e prata” (eram minas) e “jazidas de
ferro”. Depois, em vez de sair das dificuldades de pedir uma concessão, porque
o capital da Nova Limense era estrangeiro, em vez de apresentar-se perante as
autoridades, veio com uma alteração de averbação de transferência: “em vez de
jazidas, são minas”. Então, eu entendi que o Sr. Presidente da República mandou
que o Ministro de Minas e Energia providenciasse a respeito, e o Ministro Gabriel
Passos deu decisão definitiva ao processo. Os eminentes Ministros que votaram
pelo deferimento da segurança, parece que dão força irrestrita à propriedade da
mina pela companhia recorrente. Este é um grave problema nacional.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Isso não está em causa.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): ...problema de segurança
nacional. Esse processo não deve ser paralisado ele deve, a meu ver, ser levado
ao Presidente da República, para pedir o pronunciamento do Ministério de Minas
e Energia.

496
Ministro Victor Nunes

Vamos, então, conceder uma segurança e fica tudo como era antes, para
que as autoridades façam, ou não, o processo administrativo?
O Sr. Ministro Prado Kelly: Elas é que têm de velar pelo interesse nacional.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): O Presidente da República
é que deve decidir. O Supremo Tribunal não pode trancar o andamento desse
processo administrativo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O Supremo Tribunal não o está trancando. O
Tribunal está examinando tão-só o despacho.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Com a devida vênia, tranca.
O Governo será árbitro da conveniência de averbar, ou não, de julgar, em defini-
tivo, o processo administrativo. Entendo que o processo está aberto e entendo
que ele deve ser decidido pelo Governo Federal.
O Sr. Ministro Prado Kelly: De inteiro acordo com V. Exa. neste ponto: o
processo continua aberto e será decidido pelo Governo Federal. O que não se
convalida é o vício de competência, é o ato terminativo, como V. Exa. considera,
do Sr. Ministro de Minas e Energia.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): O que eu entendo é que,
assim, o processo ficará trancado, o que não deve prevalecer.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O mandado de segurança é só contra o ato do
Ministro, contra o vício de competência.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Nós não podemos ordenar o processo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Nem é de nossas atribuições.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, apreciei muito o debate que se
travou à margem do meu voto. Peço vênia para voltar ao esclarecimento dado
pelo eminente Ministro Prado Kelly a respeito do despacho do Sr. Ministro
Gabriel Passos. S. Exa. disse que aquele despacho era executório e, portanto,
terminativo do feito. Conforme essa argumentação, o Ministro não tinha compe-
tência para terminar o processo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Muito bem!
O Sr. Ministro Victor Nunes: Concordo. Mas o que sustento é que tinha
competência para pronunciar a caducidade, porque a lei lhe dava essa compe-
tência, em texto expresso.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Ante certas formalidades legais. Acho que não
houve...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou chegar a esse ponto. Apenas não desejo
alterar a linha do meu raciocínio.

497
Memória Jurisprudencial

Então, onde há excesso no despacho impugnado? O excesso está na pre-


sunção de que ficou encerrado o processo administrativo com o despacho minis-
terial, já que o Ministro não o podia fazer.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O excesso está em cancelar uma averbação
objeto de decreto do Presidente da República.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Sr. Presidente da República não praticou
qualquer ato sobre essa averbação. Não há qualquer ato do Presidente da Repú-
blica aprovando essa averbação. Nem o Código de Minas regula expressamente
esse tipo de averbação. O Código de Minas trata da autorização de pesquisa e da
concessão de lavra. Estamos todos argumentando, analogicamente, com a lavra.
Por quê? Porque, feita aquela averbação, as partes interessadas, de um lado, e o
Ministério da Agricultura, de outro, interpretaram aquele ato como reconheci-
mento do direito de lavra, pois, quanto à averbação, especificamente, nada há no
Código. Estamos aplicando àquela averbação, analogicamente, o que o Código
dispõe sobre a lavra.
Por isso é que eu, citando o art. 38, que remete ao art. 26, procurei mostrar
que a lei manda que o Ministro pronuncie a caducidade em despacho motivado.
Concluí, assim, que não tinha havido excesso nesse ponto. O excesso resultaria
de um equívoco, porque, agora, tanto as partes, de um lado, ao impetrarem o
mandado de segurança, como a administração, de outro, ao defender-se, inter-
pretam aquele despacho ministerial como conclusivo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Declarou-o o eminente Relator, dando-lhe
essa inteligência.
O Sr. Ministro Victor Nunes: O Sr. Ministro Relator não o considerou
terminativo do processo administrativo; por isso, vou acompanhar o voto de S.
Exa. Realmente, aquele despacho não é terminativo. Ele foi proferido porque o
art. 26 manda que seja proferido despacho pronunciando a caducidade. E o que
se segue, pelo Código, é o encaminhamento do processo ao Sr. Presidente da
República, para que o decida em definitivo na instância administrativa.
Dir-se-á que foi outro Presidente quem mandou fazer o processo, não o
atual. Para mim, isso não tem maior importância, porque foi a Presidência da
República que mandou fazer o processo. Pelo princípio da continuidade adminis-
trativa, a Presidência da República deve julgar o processo, pouco importando que
ele tenha começado sob um Presidente e termine sob outro, ou que nesse
interregno vários Ministros se tenham sucedido na pasta de Minas e Energia.
O que há é um processo administrativo, mandado instaurar pelo Presidente
da República, impessoalmente considerado, e que ainda não chegou às suas
mãos para receber a decisão definitiva. Se o despacho ministerial teve o intento
(como parece resultar de sua letra) de interromper esse processamento, dou

498
Ministro Victor Nunes

provimento, em parte, ao recurso, para que o processamento não se interrompa e


os autos administrativos subam até o Sr. Presidente da República, para lhe dar a
decisão que for de direito.
Não profiro voto mais amplo, num sentido ou noutro, porque não posso
prejulgar o mérito do processo administrativo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Nenhum de nós está prejulgando. Pelo contrário,
fizemos ressalvas expressas.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não julgo o mérito, em primeiro lugar, porque o
assunto, a meu ver, está pendente de decisão presidencial, que devemos aguardar.
Em segundo, porque há matéria de prova, sobre a qual se controverte, como, por
exemplo, a questão da antigüidade, ou não, da exploração da mina. Outro problema
de prova, com implicações jurídicas, é o da suspensão dessa exploração: saber se
essa suspensão foi longa demais ou se foi de duração razoável, que não chegasse a
comprometer o direito da parte.
Como o eminente Ministro Hermes Lima discutiu este último problema,
lembro que o Decreto-Lei 5.201, de 18-1-43, dele tratou no art. 1º: “As minas
manifestadas como em lavra transitoriamente suspensa, de acordo com o art. 10
do Decreto n. 24.642, de 10 de julho de 1934, terão sua lavra suspensa definitiva-
mente, se não for reiniciada dentro do prazo de um ano, a partir da publicação
deste decreto-lei, salvo os casos de força maior reconhecidos pelo Governo”. A
ementa desse decreto-lei era esta: “Define a transitoriedade da suspensão da
lavra das minas, prevista no § 4º do art. 143 da Constituição”.
Portanto, há também esse problema de prova — nem sei se há elementos
suficientes nos autos: saber se, no prazo de um ano, a partir de 18-1-43, foi ou não
reiniciada a exploração dos depósitos minerais a que se refere o processo, ou se,
não o tendo sido, a parte comprovou, perante a administração, impedimento de
força maior.
Por conseguinte, não só não devo prejulgar o processo administrativo,
como não o posso fazer, seja por falta de elementos, seja porque há matéria de
fato controvertida.
O Sr. Ministro Prado Kelly: É exatamente a nossa posição.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. me perdoe, mas nosso raciocínio não
é exatamente coincidente.
O Sr. Ministro Prado Kelly: É pelo menos a minha, com as ressalvas que
fiz, e que coincidem com as que V. Exa. fez.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Espero que me releve a insistência, lembrando
em que termos se define a divergência. Enquanto V. Exa. anula o ato do Ministro
de Minas e Energia, eu não o anulo; só anularia as conseqüências executórias, mas
nesta parte o Tribunal Federal de Recursos já concedeu a segurança.

499
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Prado Kelly: V. Exa. não anula o ato, mas o modifica em
seus efeitos; V. Exa. revê o ato para dar-lhe uma interpretação que não é a
resultante do seu contexto. Só por isso é que tive que impugnar a validade do ato
como razão de meu voto.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Na ausência de qualquer texto do Código de
Minas sobre a averbação de que ora se cogita, estou aplicando, analogicamente,
como todos estamos fazendo, os arts. 26 e 38, que tratam da lavra. O art. 26
manda que o Ministério da Agricultura (hoje, o de Minas e Energia) pronuncie a
caducidade da lavra em despacho motivado. Qual é o equivalente da caducidade
da lavra, em se tratando da averbação ora questionada e que não está prevista na
lei? É o cancelamento da averbação. O despacho ficou, portanto, nos limites da
lei. A sua execução imediata é que iria além da lei.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O art. 26 refere-se a processo administrativo,
que, no caso, não houve, nem foi iniciado. O Presidente Jânio Quadros mandou
promover o processo. Que houve depois? Iniciou-se o processo? O Ministro das
Minas e Energia chamou o Consultor Jurídico e lhe disse que queria um parecer,
que foi dado. Mas isso não é processo administrativo.
O Sr. Ministro Victor Nunes: É processo administrativo, com um único
defeito: a parte não foi ouvida, como disse o eminente Ministro Gonçalves de
Oliveira. Foi proferido o despacho, antecipadamente, sem audiência da parte.
Mas, como esse despacho, em face da lei, não é executório, e como o Tribunal
Federal de Recursos já deu, em parte, a segurança para que as providências
complementares não se executem sem a audiência da parte, também posso man-
dar, regularizando o processamento, que, antes da subida do processo à Presidên-
cia da República para decisão final, a parte seja ouvida na forma da lei. Ficará,
então, suprida a falta, abrindo-se oportunidade à defesa.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: O eminente Ministro Gonçalves de Oliveira e
V. Exa. mandam que a parte seja ouvida antes que o processo suba ao Presidente
da República. O próprio art. 26, entretanto, ordena que, feito o processo adminis-
trativo, o Ministro se pronuncie.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): E mande o processo ao
Presidente da República.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Então, essas duas coisas não se conciliam.
Uma coisa é fazer processo administrativo, pronunciar-se o Ministro sobre ele e
subir o processo ao Presidente da República para que decida; e outra coisa é
mandar a parte falar, subindo os autos, em seguida, ao Presidente da República,
sem que tenha havido o processo administrativo, conforme prevê a lei e ordenou
o Presidente Jânio Quadros.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não há exaustão admi-
nistrativa. O Ministro de Minas e Energia pode mudar seu ponto de vista.

500
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Então já não é o que foi dito no voto de V. Exa.:
ouvir-se a parte e remeterem-se, em seguida, os autos ao Presidente da República.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não. Na esfera administra-
tiva, não há esse rigor de exaustão da competência. O Ministro, ao encaminhar o
processo, pode, sem dúvida, opinar e até modificar o pronunciamento anterior.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Não podemos fazer uma espécie de des-
pacho saneador neste processo.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Não quero que fique sem
solução o processo administrativo, que não fique sem andamento esse caso. É
nesse sentido o meu voto.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Andamento deverá ter. O Ministério de Minas
e Energia deve dar andamento, ou melhor dizendo, deve dar início ao processo
administrativo.
O Sr. Ministro Prado Kelly: No momento, reservam-se ao Poder Executi-
vo todos os caminhos para o exercício das suas funções constitucionais e admi-
nistrativas. O Governo disporá de todos os elementos para a defesa do interesse
nacional, se acaso esse interesse estiver comprometido.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Não é a mesma coisa.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não estou dizendo que seja.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Folgo muito em registrar o
aparte de V. Exa., porque o meu cuidado neste processo é que ele não fique
encerrado, que continue em andamento até ser decidido pelo Presidente da Re-
pública, que determinou a sua instauração.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Nós estávamos muito perto. As nossas inten-
ções coincidiam, como coincide o nosso zelo, de uma e de outra parte, em relação
à defesa dos interesses econômicos do Brasil.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira (Relator): Agradeço e folgo muito
em registrar o aparte de V. Exa., porque esse processo administrativo não pode
ficar paralisado; deve ficar na esfera administrativa até a decisão do Presidente
da República.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Foi o que o Presidente da República mandou
fazer, e não se fez. Fez-se coisa diferente. Penso que o Ministério de Minas e
Energia tem o dever de cumprir o despacho do Presidente enquanto não for
revogado. Qual o despacho do Presidente Jânio Quadros? Mandou promover o
processo administrativo.
Mas, isso não foi feito.

501
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Victor Nunes: Vou concluir meu voto, Sr. Presidente. Não é
a mesma coisa dar a segurança em parte, para que o processo suba à deliberação
presidencial, depois de ouvido o interessado, com amplos meios de defesa, ou
dizer que o Presidente da República tem, em tese, todos os poderes que a Cons-
tituição lhe confere para tratar, ou não, desse assunto.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti: Não digo só isso. Digo que o processo admi-
nistrativo deve ser iniciado e ter andamento.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu não me referia, particularmente, à obser-
vação de V. Exa.
Prosseguindo em meu raciocínio, pondero que já há um processo adminis-
trativo instaurado por ordem do Presidente da República. Esse processo, corrigido
nas suas irregularidades — que são a falta de defesa e o caráter executório que
se pretende dar ao despacho ministerial —, é que deve subir à deliberação presi-
dencial. Há, pois, uma diferença prática importante.
A conclusão do meu voto, portanto, Sr. Presidente, é concedendo a segu-
rança em parte, para o fim indicado. Faço ressalva pessoal quanto às considera-
ções finais do voto do Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira, que se referem a fatos
futuros, que eu só apreciaria em outra oportunidade, quando, porventura, ocor-
ressem e fôssemos chamados a decidir.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 58.505 — RS


RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA 15.207 — RS
Prefeitura municipal. Vacância anômala e simultânea dos
cargos de Prefeito e Vice-Prefeito. Cassação de mandatos
por força do Ato Institucional. Sucessão ou substituição
pelo Presidente da Câmara Municipal. Eleição direta ou
indireta. Interpretação da Constituição Federal, artigos 5º,
XV, a, 7º, VII, 28, 79, § 2º, e 134, caput; do artigo 155 da
Constituição do Estado do Rio Grande do Sul; e da Lei
Orgânica do Município de Porto Alegre.
VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, peço vênia ao eminente
Ministro Pedro Chaves, cujas lições tanto aprecio neste Tribunal, para observar o
meu dever de coerência diante de trabalhos escritos em 1948, 1949 e 1952, e de
votos aqui proferidos, na Representação n. 515, em 1962, e na Representação n.
600, no corrente ano.
O que se discute, neste processo, é se ofende a Constituição Federal o art.
155, parágrafo único, da Constituição do Rio Grande do Sul, na parte em que

502
Ministro Victor Nunes

permite ao Presidente da Câmara Municipal, em caso de vaga dos lugares de


Prefeito e Vice-Prefeito, suceder-lhes no cargo até o término do mandato.
No caso de Porto Alegre, como já foi observado, a vacância simultânea da
Prefeitura e da Vice-Prefeitura ocorreu na primeira metade do período da admi-
nistração municipal, que começou em 1º de janeiro de 1964 para uma duração de
quatro anos.
Ao julgar a Representação n. 600, da Guanabara, sobre a eleição indireta
do Vice-Governador, reportei-me ao voto proferido na Representação n. 515, de
1962. Disse eu, então:
“Se a eleição indireta lá (isto é, no caso do Estado do Rio) tivesse
sido no primeiro período, eu entenderia que era inconstitucional, porque,
havendo o princípio federal da obrigatoriedade da eleição direta no art. 134
e não tendo a Constituição, no art. 79, § 2º, admitido que pudesse haver
eleição indireta no primeiro período, então, vigorava a regra geral da
eleição direta. Se tivesse de haver eleição no primeiro período, a eleição
deveria ser direta, porque não havia, na Constituição, nenhuma exceção a
esse respeito.
Mas, tratando-se de eleição no segundo período, acrescendo o fato
de que a Constituição não prevê a figura do Vice-Governador, deixando
que o Estado a crie ou deixe de criar, pareceu-me que o Estado tinha
liberdade de fazer, no segundo período, a eleição direta ou a indireta, ou não
fazer eleição nenhuma: deixar, simplesmente, que o Presidente da Assem-
bléia assumisse o lugar (...)”.
Portanto, Sr. Presidente, o meu voto, hoje, neste caso de Porto Alegre, está
rigorosamente predeterminado pelos que emiti nas citadas representações, onde
focalizei, expressamente, a alternativa de que votaria pela inconstitucionalidade,
se a eleição indireta houvesse ocorrido na primeira metade do período de governo.
Argumenta-se, agora, com a autoridade dos eminentes colegas que pen-
sam de modo contrário, que a organização dos poderes pertence ao Direito Cons-
titucional, e não ao Direito Eleitoral, e, portanto, não estaria implicado, neste pro-
cesso, problema da forma de eleição, mas apenas a competência do Estado para
se organizar e aos seus Municípios.
Permito-me ponderar que, na organização dos poderes, há um problema
que é de pura organização: dizer, por exemplo, quais são os poderes e lhes definir
a competência. Mas, no que respeita à investidura dos órgãos instituídos, o que
temos, em verdade, é um problema misto, desde que se tenha adotado o princípio
da representação popular, como fez a nossa Constituição, ao tornar obrigatória,
tanto para os Estados como para a União, no art. 7º, VII, a forma republicana

503
Memória Jurisprudencial

representativa. E assim é porque a representação popular só se realiza por meio


de eleição. A República representativa não conhece outra forma de representa-
ção que não seja a eleição, e a eleição pode ser direta ou indireta.
Segue-se que a investidura do órgão não é um puro problema de organiza-
ção do poder. É um problema misto, envolvendo matéria eleitoral, cuja legislação
pertence, no regime brasileiro, à União. À Constituição Federal, em primeiro
lugar, e à lei federal, a seguir, é que cabe dispor a respeito, e as Constituições
estaduais somente nos limites traçados pela Constituição Federal e pela lei federal
é que podem regular a forma de investidura dos órgãos políticos do Estado e dos
Municípios. E aqui está em discussão precisamente isso: a forma de investidura
de quem deva suceder no cargo de Prefeito.
Como a Constituição Federal, no art. 134, combinado com o art. 7º, VII,
enuncia o princípio geral e obrigatório da eleição direta para investidura dos ór-
gãos de representação popular, este princípio só comporta as exceções que a
própria Constituição estabelece, não sendo admissíveis outras exceções, no âm-
bito dos Estados e dos Municípios, além daquelas que forem estabelecidas à
semelhança das que se contêm na Constituição Federal.
Alega-se — e o eminente Ministro Pedro Chaves prestigiou o argumento
com sua autoridade — que o Município não tem o poder de auto-organização, por
não ser entidade de natureza política, mas administrativa. Desse argumento se
extrai a conclusão de que o Estado pode dispor, a seu critério, da forma de
investidura dos órgãos da administração municipal.
O Sr. Ministro Pedro Chaves (Relator): Aliás, na espécie adotada pelo
próprio Município.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Pretendo chegar a esse ponto. Por ora, estou
abordando o problema de ter, ou não, o Estado inteira liberdade para estabelecer
a forma de investidura dos órgãos municipais.
Minha conclusão, data venia, é em outro sentido, porque a Constituição
vigente garantiu, com maior amplitude do que as anteriores, a autonomia municipal
e a definiu por alguns princípios, entre os quais o da eletividade do Prefeito e dos
Vereadores, como dispõe o art. 28, I.
É, portanto, a própria Constituição Federal que estabelece o modo de
investidura do Prefeito. Como optou pela eletividade, à União é que cabe regular,
de acordo com a Constituição Federal, a respectiva forma eleitoral, e a forma
adotada foi a eleição direta, como resulta do art. 134 da Constituição, que o
Código Eleitoral respeitou, inclusive para os Municípios.
Peço vênia para ler, para ficar documentado em meu voto, embora possa
parecer impertinente aos eminentes colegas...
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: O Tribunal ouve, com a maior sa-
tisfação e prazer, o voto de V. Exa.

504
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Victor Nunes: Agradeço a generosidade de V. Exa.


Em trabalho escrito em 1949, dizia eu, sobre este problema da competência
municipal:
“A partir de 1934, entretanto, nosso ordenamento político-jurídico
mudou de rumo e passou a delimitar, no próprio texto da Constituição
Federal, uma esfera de competência privativa dos Municípios. Nos limites
que lhe foram traçados pela Constituição Federal, a competência
municipal não é, pois, suscetível de mutilação, nem por obra da lei federal,
nem da estadual.
Adotamos, assim, em nossa federação, a partir de 16 de julho de
1934, uma peculiaridade digna de nota, porque desconhecida dos demais
regimes federais. Em vez de uma divisão dual de competências, como era
a regra, passamos a ter uma discriminação tríplice: o próprio estatuto
político da Nação definiu a competência federal, a estadual e, pelo menos
parcialmente, a municipal.
Essa particularidade não pode ser deixada em silêncio, porque dela
derivam conseqüências jurídicas importantes.”
Uma dessas conseqüências, Sr. Presidente, é não se poder considerar o
Estado-Membro, em nossa Federação, como Estado unitário, o que sustentava
Castro Nunes no regime de 91, lição que foi agora reproduzida no brilhante
memorial do recorrente. Se essa tese já era discutível no regime de 91, sob a
Constituição atual de modo nenhum se pode sustentar que o Estado-Membro é
unitário, porque ele não tem a liberdade de organizar os seus municípios ao livre
critério do legislador ordinário, sequer da Constituição estadual, mas está compe-
lido à observância dos princípios que a própria Constituição Federal tem por ine-
rente à organização municipal, como expressivos de sua autonomia, por ela defi-
nida. Um desses princípios é, precisamente, a eleição do Prefeito.
Recordo, nesta oportunidade, Sr. Presidente, a diferença de redação que
se verifica entre a Constituição de 1934 e a de 1946.
A de 1934 era expressa ao permitir, na definição da autonomia municipal,
que o Prefeito fosse eleito por forma indireta, pela Câmara Municipal, ficando a
opção ao critério do constituinte estadual (art. 13, I). A Constituição de 1946
eliminou essa alternativa (art. 28, I).
Dir-se-á que não a previu, mas não a proibiu. Mas não poderemos aceitar esse
raciocínio. Se o texto constitucional anterior era tão claro e o texto atual o modificou,
essa alteração não é destituída de conseqüências. Assim argumentamos, neste Tribu-
nal, quando declaramos a inconstitucionalidade do art. 6º do Código de Minas
(RMS 11.189, 1963). A inconstitucionalidade resultava, precipuamente, da dife-
rença de redação entre a Constituição de 1937 e a de 1946. Como a Constituição
de 1937 vedava a estrangeiros fazerem parte de sociedades mineradoras nacio-
nais (art. 143, §1º) e a Constituição de 1946 não reproduziu essa proibição (art.

505
Memória Jurisprudencial

153, § 1º), daí concluímos que o Código de Minas não podia subsistir, no art. 6º,
na parte que continha proibição igual à da Constituição de 1937.
Do mesmo modo, se a Constituição de 1946, podendo manter a cláusula da
de 1934, que permitia a eleição indireta dos Prefeitos, optou pela sua supressão,
assim procedeu para vedar a eleição indireta dos Prefeitos, em consonância com
o disposto no seu art. 134.
Também se argumenta, neste caso, Sr. Presidente, que tais precauções,
quanto à forma de investidura, são de secundária importância, porque o Municí-
pio não é uma célula política da Nação, mas apenas um órgão administrativo.
O eminente Ministro Hermes Lima já aduziu, em seu brilhante voto, razões
muito ponderáveis para sustentar o contrário. Mais uma vez peço vênia, Sr. Pre-
sidente, para ler trecho de minha tese de concurso, escrita em 1948, que tratava
dos problemas da organização municipal. Quando se discutiu, sob o regime de 91,
e mais tarde, na Constituinte de 34, e ainda, com menos ardor na Constituinte de
46, se os Prefeitos deveriam ser eleitos ou não, os adversários da eletividade sem-
pre argumentaram com o caráter puramente administrativo dos Municípios. Esse
argumento, considerado de relevo, foi amplamente desenvolvido por Francisco
Campos, em conhecido trabalho a respeito de organização municipal.
Procurando mostrar a irrealidade dessa objeção, assim escrevi em minha
tese de concurso (Coronelismo, p. 93):
“Dar relevo ao caráter administrativo e técnico do executivo muni-
cipal no Brasil, por mais nobres que sejam as intenções de quem assim
proceda, contrasta violentamente com a cotidiana evidência dos fatos.
Muito menos que administrador, o Prefeito tem sido, entre nós, acima de
tudo, chefe político. A prefeitura é, tradicionalmente, ao lado da vereança e
da promotoria pública, um dos primeiros degraus da carreira política em
nossa terra.
Por sua qualidade de chefe político, tudo ou quase tudo no Município
gira em torno do Prefeito. Nos períodos de Governo representativo é ele
quem orienta a maioria da Câmara Municipal e nas fases do Governo
discricionário exerce uma ditadura limitada no espaço, mas efetiva e
multiforme. Este fenômeno não é do passado, mas de nossos dias. Neste
atormentado período de reconstitucionalização do país, quando o Governo
José Linhares procurou resguardar a pureza das eleições federais, uma
importante medida a que recorreu foi a substituição de Prefeitos. E depois
do pleito estadual, de 19 de janeiro de 1947, conforme foi amplamente
noticiado nos jornais, o problema do provimento das prefeituras ocasionou
acerbas disputas políticas, não só no cenário estadual, senão também no
federal.”

506
Ministro Victor Nunes

Ainda agora, Sr. Presidente, como alegar que não tem importância política
a forma de investidura dos Prefeitos municipais quando, precisamente sobre a
investidura do Prefeito de Porto Alegre, se forma, no País, um clima de tanta
agitação política, desmentido contundente à asserção de que o Município seja
exclusivamente uma célula administrativa?
Recorde-se, aliás, que o argumento do caráter administrativo dos Municí-
pios vem, a rigor, do Império, da Lei Municipal de 1828, mas essa lei afirmava o
caráter administrativo das Câmaras, não para lhes negar importância política,
mas para lhes recusar atribuições judiciárias. Eram entidades administrativas, no
sentido de que não seriam judiciárias, para contrastar com as Câmaras Munici-
pais do período colonial, que, ao lado das atribuições administrativas, também
exerciam funções de caráter jurisdicional.
Atendendo ao movimento municipalista, que se avolumou no País, no cor-
rer dos tempos, as Constituições de 1934 e de 1946 instituíram, como essencial à
autonomia municipal, a eletividade dos Prefeitos.
O memorial do recorrente, que — repita-se — é notável na argumentação,
sustenta que a sucessão do Prefeito pelo Presidente da Câmara, que é um verea-
dor, não faz nosso aquele princípio, porque o eleitorado, ao eleger os vereadores,
está escolhendo, ao mesmo tempo, um titular potencial ao cargo de Prefeito
(Memorial, p. 23).
Se assim fosse, Sr. Presidente, poder-se-ia violar (por indisfarçável ato
indireto, que a doutrina define como ato fraudulento) uma outra proibição termi-
nante da Constituição Federal. A Constituição, no art. 139, que regula as inelegi-
bilidades, não as estende ao cargo de Vereador, mas cuidou especialmente do
Prefeito, nestes termos:
“Art.139. São também inelegíveis: (...)
III - para prefeito, o que houver exercido o cargo por qualquer
tempo, no período imediatamente anterior, e bem assim o que lhe tenha
sucedido, ou, dentro dos seis meses anteriores ao pleito, o haja substituído;
e, igualmente, pelo mesmo prazo, as autoridades policiais com jurisdição no
Município”.
Como essas autoridades não são inelegíveis para Vereador, dentro da lógica
do memorial do recorrente, qualquer delas, numa combinação política, poderia
eleger-se Vereador e, a seguir, Presidente da Câmara, e, nessa qualidade, com a
renúncia do Prefeito, poderia suceder-lhe no cargo, com violação do art. 139 da
Constituição. Argumentando com essa possibilidade, para bem interpretarmos os
textos, havemos de concluir que não é exato que o eleitor, ao eleger os Vereadores,
está elegendo também um Prefeito em potencial, porque a Constituição não
permite que se elejam Prefeitos senão as pessoas não atingidas pelas inelegibili-
dades específicas, e estas não prevalecem para os Vereadores. Por outro lado, só
é legitima a eleição pela forma prescrita na Constituição Federal. Se ela veda a

507
Memória Jurisprudencial

eleição indireta do Prefeito, é claro que eleger Vereadores não é a mesma coisa
que eleger Prefeitos em potencial, porque isso importaria institucionalizar a eleição
indireta, que a Constituição fulmina.
Também se argumenta que é muitas vezes perturbadora e inconveniente
uma eleição no curso do mandato da administração. Sim, a eleição é algumas
vezes perturbadora, Sr. Presidente, mas, para remover esse obstáculo, a Consti-
tuição Federal abriu uma válvula quando permitiu que o Presidente e o Vice-
Presidente da República sejam eleitos indiretamente, se as vagas se derem na
segunda metade do mandato. Com essa providência, a Constituição também per-
mitiu que os Estados e os Municípios se livrem de eleições perturbadoras, pela
investidura indireta, mas com a condição de se fazer a escolha indireta na segunda
metade do mandato. Para a Constituição, que todos devemos acatar, só é poten-
cialmente perturbadora a eleição direta na segunda metade do mandato.
Concluindo minhas considerações, Sr. Presidente, tenho como inconstitu-
cional o art. 155, parágrafo único, da Constituição do Estado do Rio Grande do
Sul, na parte em que permite a sucessão do Prefeito pelo Presidente da Câmara
Municipal na primeira metade do mandato.
Indaga-se, por outro lado, se a Câmara Municipal teria poderes para regular
essa matéria. A Constituição do Rio Grande do Sul lhe dá, expressamente, esse
poder, fazendo exceção ao regime comum dos outros Estados. Mas a Câmara de
Porto Alegre usou esse poder na Emenda n. 7, de 1964, à sua Lei Orgânica, com
o mesmo vício de inconstitucionalidade que já se continha parcialmente no art.
155, parágrafo único, da Constituição do Estado, porque apenas eliminou a suces-
são do Prefeito pelo Presidente da Câmara, para fazê-lo suceder, mesmo na
primeira metade do mandato, por quem viesse a ser eleito, indiretamente, por ela.
O uso que a Câmara fez do seu poder de auto-organização ficou maculado pela
mesma pecha de inconstitucionalidade.
Resulta, então, por força da inconstitucionalidade, que não há um texto de
direito estadual regulando a hipótese. Qual a conseqüência de não haver esse texto,
já que são inconstitucionais os existentes? Não há solução mais simples. Basta
aplicar-se o Código Eleitoral, que é o texto legal competente para dizer como se
fazem as eleições neste País. E o seu art. 46, especialmente o § 2º, mandam,
expressamente, eleger pelo voto direto os Prefeitos e os Vice-Prefeitos.
E foi assim que decidiu a 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, cujo acórdão, portanto, eu confirmo, negando provimento aos
recursos, data venia do eminente Ministro Relator, que proferiu, como sempre,
um brilhante voto.

508
Ministro Victor Nunes

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 62.731 — GB


Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro
Recorrente: José do Couto Moreira — Recorrido: Manoel Gonçalves de
Carvalho
Decreto-Lei no regime da Constituição de 1967.
1. A apreciação dos casos de “urgência” ou de “interesse
público relevante”, a que se refere o artigo 58 da Constituição
de 1967, assume caráter político e está entregue à discricionariedade
dos juízos de oportunidade ou de valor do Presidente da
República, ressalvada apreciação contrária e também discricionária
do Congresso.
2. Mas o conceito de “segurança nacional” não é indefinido
e vago, nem aberto àquela discricionariedade do Presidente ou
do Congresso. “Segurança Nacional” envolve toda a matéria
pertinente à defesa da integridade do território, independência,
sobrevivência e paz do País, suas instituições e seus valo-
res materiais ou morais contra ameaças externas e internas,
sejam elas atuais e imediatas ou ainda em Estado potencial
próximo ou remoto.
3. Repugna à Constituição que, nesse conceito de “segu-
rança nacional”, seja incluído assunto miúdo de Direito Privado,
que apenas joga com interesses também miúdos e privados de
particulares, como a purgação da mora nas locações contratadas
com negociantes como locatários.
4. O Decreto-Lei n. 322, de 7-4-1967, afasta-se da Consti-
tuição quando, sob color de “segurança nacional”, regula maté-
ria estranha ao conceito desta.
5. As situações jurídicas definitivamente constituídas e
acabadas não podem ser destruídas pela lei posterior, que,
todavia, goza de eficácia imediata quanto aos efeitos futuros
que se vierem a produzir.
ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos de Recurso Extraordinário n. 62.731, do Estado
da Guanabara, em que é recorrente José do Couto Moreira e recorrido Manoel
Gonçalves de Carvalho, decide o Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plena,
conhecer e prover, por maioria de votos, de acordo com as notas juntas.
Distrito Federal, 23 de agosto de 1967 — Luiz Gallotti, Presidente —
Aliomar Baleeiro, Relator.

509
Memória Jurisprudencial

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. O Recorrente moveu contra o recorrido
“ação ordinária de rescisão de contrato” de locação comercial de aluguéis, por
falta de pagamento. A r. sentença de fls. 27-28 deferiu a emenda da mora e
julgou extinta a ação. Esse decisório foi confirmado em grau de apelação, pelo v.
acórdão de fl. 44v. O Recorrido foi citado a 11-7-64 e só depositou os aluguéis em
débito a 22-9-64, como diz o acórdão.
2. O contrato de fl. 3 estabelece pagamento até o 5º dia do mês subse-
qüente ao vencido, portable na residência do locador (cláusula 2ª), com a san-
ção de rescisão plena e imediata na falta de cumprimento de qualquer das
cláusulas (8ª).
3. Às fls. 46-48, vem o locador com recurso extraordinário, invocando a
Súmula 123 e diversos julgados do STF, que juntou por fotocópia: ERE 56.696,
Rel. Em. Ministro Candido Motta Filho, in RTJ 33/885, RE 58.115, Rel. Em.
Ministro Pedro Chaves, in RTJ 36/152, e RE 51.405, Rel. Em. Ministro Candido
Motta Filho, publicado na Revista de Jurisprudência.
4. O recurso foi admitido pelo r. despacho de fl. 56 e devidamente pro-
cessado.
É o relatório.

VOTO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O caso é igual ao do RE n.
62.739, que esta 2ª Turma já resolveu submeter ao Pleno, em face das dúvidas
sobre a constitucionalidade do Decreto-Lei 322, de abril p.p.
Proponho que também este recurso seja levado ao Pleno, para ser julgado
conjuntamente com aquele.

DECISÃO
Como consta da ata, a decisão foi a seguinte: a Turma, unânime, remeteu
os autos ao Tribunal Pleno.
Presidência do Exmo. Sr. Ministro Hahnemann Guimarães.
Relator, o Exmo. Sr. Ministro Aliomar Baleeiro.
Tomaram parte no julgamento os Exmos. Srs. Ministros Aliomar Baleeiro,
Adalicio Nogueira, Evandro Lins e Hahnemann Guimarães.
Licenciado, o Exmo. Sr. Ministro Pedro Chaves.
Em 30 de maio de 1967 — Guy Milton Lang, Secretário.

510
Ministro Victor Nunes

RELATÓRIO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: 1. Em locação da Lei de Luvas, a firma
locatária, confessadamente em mora, em abril de 1965, pediu emenda desta no
prazo de 30 dias, fixando o juiz prazo excedente do da contestação da lide. Im-
pugnado esse despacho, reformou-o o magistrado (fl. 42, em 19-6-65). Mas o
depósito foi extemporâneo.
2. Os v. acórdãos da apelação (fl. 106) e embargos (fl. 134), por maioria
de votos, entenderam que a emenda deveria ser cumprida até a contestação, mas
que o engano do juiz, dando dilação maior, constituía obstáculo judicial (3-11-
1966).
3. Recorre a locadora, à fl. 139, pela letra d, alegando divergência e ofensa
à Súmula 123.
É o relatório.

SUSTENTAÇÃO DE PARECER
O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Sr. Presidente, a Procurado-
ria-Geral da República não teve ocasião de se pronunciar sobre a questão
constitucional levantada por S. Exa., o eminente Relator.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. recebeu uma cópia.
O Sr. Procurar-Geral da República: Sim, recebi uma cópia, mas não sabia
que o julgamento seria hoje.
A questão levantada seria, ao que me recordo, a seguinte: o Sr. Presidente
da República baixou um decreto-lei sobre locações, baseado na faculdade cons-
titucional de expedir decretos-leis em matéria de segurança nacional.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Trata-se do art. 58, I, da Constituição de
1967.
O Sr. Dr. Procurador-Geral da República: Diz este artigo:
“O Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse
público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa, poderá
expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas.”
O Presidente da República expediu esse decreto em causa sobre locações
de imóveis — matéria de inquilinato — e, no decreto, estabeleceu certas medidas.
Agora, o eminente Ministro Relator, no julgamento de processos pertinentes, le-
vanta, ex officio, a questão constitucional. Sim, porque essa questão não foi
levantada pela parte.

511
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: No Agravo n. 40.960, a questão foi levan-


tada pela parte. Nos dois Recursos Extraordinários, n. 62.731 e 62.739, não,
porque foram anteriores.
O Sr. Procurador-Geral da República: Nos recursos extraordinários have-
ria uma questão preliminar, que é a seguinte: de regra, na instância do recurso
extraordinário, não se conhece de lei nova. Pediria ao eminente Relator que lesse
o texto do decreto-lei.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Com prazer. Está nestes termos:
“Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao
locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições
previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto
neste artigo aos casos sub judice.”
O Sr. Procurador-Geral da República: Então o problema constitucional levan-
tado por S. Exa., o eminente Relator, data venia, é sobre a vigência do decreto
para situações anteriores.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Dois problemas eu pretendo discutir no
meu voto: primeiro, a possibilidade de o Presidente da República regular a purga-
ção da mora nas locações comerciais, por via de um decreto-lei expedido nestas
condições; segundo, a força retroativa desse decreto-lei, abrangendo situações
definidas, constituídas, tranqüilas, anteriores à expedição desse diploma.
O Sr. Procurador-Geral da República: A questão preliminar é da possibili-
dade de, na instância do recurso extraordinário ou do agravo de instrumento em
matéria de recurso extraordinário, aplicar-se uma lei nova.
Mas, passando ao mérito, quanto à constitucionalidade, a primeira dúvida
do eminente Ministro Relator seria se o Presidente da República poderia, com
base nesse art. 58 da Constituição vigente, expedir um decreto-lei em matéria de
locação comercial. Diz o parágrafo único do texto:
“Publicado o texto, que terá vigência imediata, o Congresso Nacional
o aprovará ou rejeitará, dentro de sessenta dias, não podendo emendá-lo; se,
nesse prazo, não houver deliberação, o texto será tido como aprovado.”
Nem o Senado, nem a Câmara deliberaram a respeito, de forma que esse
decreto-lei, como outro em igualdade de condições, está deste ponto de vista
aprovado pelo Poder Legislativo. O Senado e a Câmara deixaram esse prazo
terminar antes das férias de julho.
Tornou-se, assim, por força de expresso texto constitucional, um ato
legislativo. Confira-se com o que dispõe o art. 49, V, da Constituição. A questão,
se o decreto preenche ou não preenche os demais requisitos referidos, parece-me
que é atribuição privativa da Câmara e do Senado. Podem dizer: não aprovamos
o decreto porque não há a urgência, não é matéria de segurança nacional, não é
matéria de finanças públicas.

512
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro: Ou podem dizer: não convém porque não
adotamos a mesma política legislativa do Presidente da República.
O Sr. Procurador-Geral da República: Perfeito. É matéria do âmbito do
Congresso e está superada.
Entretanto, do ponto de vista da urgência, peço vênia ao Supremo Tribunal
Federal para ponderar o seguinte: esta matéria de locação assumiu, na vida pública
brasileira, uma natureza social de maior urgência. Esses problemas de locação
prendem a atenção desta Suprema Corte, posso dizer, há quarenta e cinco anos,
desde a primeira lei do inquilinato, em 1922, e tive ocasião de requerer, baseado
nessa lei, e o Supremo Tribunal sempre entendeu que a matéria da lei do inquilinato
é matéria de urgência, é matéria excepcional, é matéria do mais alto interesse
público, que justifica mesmo a aplicação imediata da lei, até a processos em
curso. Quando se promulgou a primeira lei do inquilinato, em 1922, discutiu-se,
neste Tribunal — e naquele tempo a nossa Constituição era uma Constituição
ultra-individualista, a de 1891 —, da constitucionalidade — naquela época a pala-
vra era outra, era o tabelamento dos aluguéis pelo Comissariado de Alimentação
Pública —, se era possível, se era constitucional o tabelamento de aluguéis. O
Supremo Tribunal, para seu gáudio, já naquele tempo, deu ao assunto uma interpre-
tação lata, no sentido de que a propriedade tinha suas funções sociais, e que, por-
tanto, em casos de alta necessidade pública, de urgência, de interesse público, o
Governo poderia tabelar os aluguéis. Em 1921 e 1922, houve uma grande crise de
habitação no Rio de Janeiro, daí a primeira lei de inquilinato, depois a segunda,
todas as duas julgadas constitucionais. E até hoje, ao que me consta, nunca o
Supremo Tribunal julgou inconstitucional uma lei de tabelamento, de fixação de
aluguéis, embora a Constituição se refira àqueles conceitos individualistas,
clássicos, ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido. Não conheço acórdão
nenhum do Supremo Tribunal impugnando a legislação do inquilinato, quer a de
após a primeira guerra, quer a legislação do inquilinato que vem desde 1942 até
hoje, com sucessivas prorrogações. O Supremo Tribunal Federal tem entendido
que esta matéria está dentro da nova concepção da propriedade como função
social.
Portanto, Srs. Ministros, este decreto-lei foi expedido nesse sentido social
que vivemos hoje. Daí a sua urgência, daí o seu interesse público, daí aquele texto
que o eminente Ministro Relator leu, que se aplica aos processos em curso. Toda
a legislação do inquilinato que se tem feito se aplica aos processos em curso e às
locações em curso. É um texto que encontramos em 1942 e nas legislações que
se vêm sucedendo.
São essas, Srs. Ministros, as observações que a Procuradoria-Geral da
República pede desculpas de tão prolixamente ter desenvolvido. Mas é assunto —
os Srs. Ministros compreendem — da mais alta relevância social e econômica
para o País.

513
Memória Jurisprudencial

Esse decreto não foi impugnado no Congresso. Não houve um deputado


ou senador que se levantasse para impugnar esse decreto, nem da oposição, nem
do Governo, tão justo e razoável pareceu aos membros do Poder Legislativo.
Portanto, em síntese, é um decreto-lei baseado no art. 58 da Constituição
de 1967, de alto interesse social na tradição de toda nossa legislação sobre
inquilinato, e que está aprovado, expressamente, nos termos do parágrafo único,
pelo Senado e pela Câmara. Se a Câmara e o Senado aprovaram-no, nos preci-
sos termos do parágrafo único do art. 58, tornando-o ato legislativo, não é possí-
vel a qualquer outro Poder, mesmo o Judiciário, dizer que tal lei é inválida pela sua
origem.
Se o Senado e a Câmara podem legislar sobre inquilinato — ninguém o
contesta —, podem também fazê-lo indiretamente, aprovando um decreto-lei que
o fez sob o título de urgência, segurança nacional, etc.
São essas considerações que a Procuradoria-Geral da República, por meu
intermédio, faz em defesa da constitucionalidade deste decreto-lei.

VOTO
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sr. Presidente, não perdi uma
sequer das palavras do eminente Procurador-Geral da República, porém,
estamos falando, por infelicidade minha, línguas diferentes.
Não contesto qualquer das teses ou dos fatos que S. Exa. trouxe como
informação ao Supremo Tribunal. Sei que a Câmara e o Senado silenciaram
sobre esse decreto-lei. A interpretação desse silêncio tem sido diversa e oposta.
Uns, como S. Exa., acham que isso foi uma concordância com a justiça desse
diploma, outros acham que isso, pelo contrário, foi uma desaprovação à maneira
pela qual esse diploma foi criado.
Não me cabe, Sr. Presidente, psicanalisar os eminente representantes da
Nação. Por outro lado, não contesto que esta lei ou quaisquer outras, válidas
constitucionalmente, têm eficácia imediata. O normal é que toda lei tem eficácia
imediata, naquele minuto e para o futuro. O que contesto é que, num sistema
como o nosso direito brasileiro, em que se nega a força retroativa da lei, salvo os
casos que ela própria ressalva, como nas leis criminais mais favoráveis ao réu —
o que contesto é que possa prejudicar o ato jurídico perfeito, a coisa julgada e as
situações definitivamente constituídas. É essa a minha tese. Sobre ela o nobre e
eminente Procurador-Geral da República não falou.
Não entro, Sr. Presidente, na apreciação da justiça da lei. Desde que aceitei
um posto neste Supremo Tribunal Federal, com muita honra para mim, lembrei-me
de que, na minha mocidade, me tinham ensinado aquela regra sovadíssima, de
D’Argentré: não julgo a lei, julgo segundo a lei.

514
Ministro Victor Nunes

Quando estes autos me vieram conclusos, já estava publicado o Decreto-


Lei n. 322, de 7-4-1967, que, invocando o art. 58, I, da Constituição, estatui no
“Art. 5º Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao
locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições
previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto
neste artigo aos casos sub judice”.
Realmente, como ponderou o nobre Procurador-Geral da República nos
recursos extraordinários, as partes que haviam interposto tal remédio antes da
publicação desse decreto-lei, evidentemente, não o podiam invocar. Mas, dado
que o legislador disse que se aplica nos casos sub judice, a ele estou obrigado,
como juiz, se constitucional.
Esse dispositivo poria, desde logo, ponto final ao recurso, se graves pro-
blemas em torno das inovações da Constituição de 1967 não nos obrigassem a
meditar sobre a compatibilidade do Decreto-Lei n. 322 com a mesma Carta
Magna, cujo art. 58, citado, reza o seguinte:
“Art. 58. O Presidente da República, em casos de urgência ou de
interesse público relevante, e desde que não resulte aumento de despesa,
poderá expedir decretos com força de lei sobre as seguintes matérias:
I - segurança nacional;
II - finanças públicas.
Parágrafo único. Publicado o texto, que terá vigência imediata, o
Congresso Nacional o aprovará ou rejeitará, dentro de 60 dias, não
podendo emendá-lo; se, nesse prazo, não houver deliberação, o texto será
tido como aprovado”.
Não me parece duvidoso que a apreciação da “urgência” ou do “interesse
público relevante” assume caráter político: é urgente ou relevante o que o
Presidente entender como tal, ressalvado que o Congresso pode chegar a julga-
mento de valor contrário, para rejeitar o decreto-lei. Destarte, não pode haver
revisão judicial desses dois aspectos entregues à discricionariedade do Executivo,
que sofrerá apenas correção pela discricionariedade do Congresso.
Por aí não há inconstitucionalidade.
Mas o conceito de “segurança nacional”, a meu ver, não constitui algo
indefinido, vago e plástico, algo que pode ser ou não ser entregue à discricionarie-
dade do Presidente e do Congresso. Os direitos e garantias individuais, o federa-
lismo e outros alvos fundamentais da Constituição ficarão abalados nos alicerces
e ruirão se admitirmos que representa “segurança nacional” toda matéria que o
Presidente da República declarar que o é, sem oposição do Congresso.
Quero crer que “segurança nacional” envolve toda matéria pertinente à de-
fesa da integridade do território, independência, paz e sobrevivência do País, suas

515
Memória Jurisprudencial

instituições e seus valores materiais ou morais, contra ameaças externas e internas.


Em duas palavras, contra a guerra externa ou intestina, esteja ela travada e efetiva
ou fermente ainda em Estado potencial próximo ou remoto. Daí admitir eu que o
conceito de “segurança nacional” abranja medidas preventivas contra os lêvedos
da ação armada ou da desordem, nesta época em que tanto se falou e se fala em
“5ª coluna”, “guerra fria”, “guerra revolucionária”, “guerra psicológica”, etc.
Não emito uma opinião pessoal: infiro do que está nos arts. 89 a 91 da
Constituição, encimado pela “Seção V do Cap. I do Tít. — Da Segurança
Nacional”. Nesses três dispositivos, está dito que as medidas permanentes de
estudo e organização se referem à mobilização nacional e às operações militares,
concessões de terras de fronteiras e lugares estratégicos, transportes e comuni-
cações, pontes e indústrias direta ou indiretamente vinculados à defesa.
Instrumento principal de execução da política de segurança são as Forças
Armadas, destinadas à defesa da Pátria e à garantia dos Poderes, da lei e da ordem
(art. 92, § 1º).
Se nisso se contém a matéria de segurança nacional, toda ela de ordem
pública e de Direito Público, repugna que ali se intrometa assunto miúdo de Direito
Civil, que apenas joga com os interesses também miúdos e privados de particulares,
como a purgação da mora nas locações em que seja locatário o comerciante.
Nem mesmo pelo guarda-chuva amplo da inflação seria imaginável, por-
que o comerciante, que se deve declarar falido quando não paga no dia, não é
vítima, mas beneficiário da espiral de preços. Cada dia, ele reajusta seus preços
e não há possibilidade prática de impedi-lo nessa natural defesa de seus interes-
ses, pela simples razão de que poderá abster-se de suprir o mercado.
Parece-me, pois, que, em matéria objetivamente definida na Constituição
(arts. 89 a 91), não é constitucional interpretar a cláusula “segurança nacional”
do art. 58, I, como algo que o Presidente da República faz e o Congresso desfaz,
ou que ambos podem fazer discricionariamente.
Já se disse que o Parlamento britânico pode tudo, menos transformar um
homem em mulher ou uma mulher em homem. Mas, num país de Constituição
escrita e rígida, não há o mesmo arbítrio. A lei, no Brasil, não pode transformar o
quadrado no redondo sempre que o redondo e o quadrado tenham sido designa-
dos como tais na Constituição, expressa ou implicitamente.
Segurança Nacional, a meus olhos, não é o que o Presidente e o Congresso
dizem que é, mas apenas o que se concilia com o que está expresso e implícito
nos arts. 89 e 91 da Constituição, sob a epígrafe “Da Segurança Nacional”. E,
por certo, purgação da mora em locações não residenciais não se harmoniza com
o conceito da segurança nacional.

516
Ministro Victor Nunes

Outra dificuldade brota do caso dos autos. As decisões atacadas foram


proferidas depois da Lei n. 4.864, de 29-11-65, e do Decreto-Lei n. 4, de 7-2-66,
que cortaram a controvérsia sobre a emenda da mora na locação da Lei de
Luvas.
No caso dos autos, pelo contrato de f., o locatário obrigou-se a pagar até o
5º dia do mês seguinte ao vencido, na residência do locador ou onde for determi-
nado. Dívida portable. Mora confessada.
Parece-me que o Recorrente, por isso, estava numa situação jurídica defi-
nitivamente constituída e acabada, como titular de direito adquirido garantido pelo
art. 150, § 3º, da Constituição de 1967.
Se constitucional, por amor ao debate, à luz do art. 58, I, o Decreto-Lei n.
322 terá aplicação imediata aos efeitos futuros das situações anteriores, mas não
poderá projetar sombra sobre o passado, a fim de atingir os efeitos já produzidos
por essas situações anteriores e definitivas. Como, então, aplicá-lo aos processos
sub judice?
Por princípio, o Tribunal aprecia a inconstitucionalidade nos termos em que
lhe é proposta. Mas, no caso concreto, o legislador do Decreto-Lei n. 322 ende-
reçou a regra também ao juiz, que, nesta altura do processo, já não pode ouvir
mais as partes.
Forçosamente, há que se discutir o problema constitucional.
Por essas razões, dou provimento ao recurso, porque, em resumo:
a) não se pode aplicar ao caso o art. 5º do Decreto-Lei n. 322/67,
porque viola a Constituição, já por dispor sobre matéria estranha à
segurança nacional (art. 58, I, de referência aos arts. 89 a 91), já porque
retroage para atingir direito adquirido oriundo de situação jurídica anterior
e definitivamente constituída (art. 150, § 3º);
b) a inconstitucionalidade não pode ser convalidada pelo Congresso
(art. 58, parágrafo único), porque a matéria de segurança nacional não
envolve conceito que o legislador possa discricionária e politicamente
definir — ela está definida nos arts. 89 a 91 da Constituição. Nem o
Congresso pode sanar a eiva contra o art. 150, § 3º;
c) o recurso merece provimento nos termos do art. 28 da Lei n.
4.864, de 29-11-65, e do Decreto-Lei n. 4, de 7-2-1966, como, aliás, já foi
julgado, noutros casos análogos, pela 2ª Turma.
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Há uma questão relevante, também
suscitada pelo eminente Procurador-Geral da República: se, no recurso extraor-
dinário, pode-se considerar uma lei nova. Porque, a rigor, o Supremo Tribunal
Federal, preliminarmente, no julgamento do recurso extraordinário, aprecia se a
decisão recorrida negou vigência à lei federal, ou se a decisão recorrida interpre-
tou diversamente uma lei federal. Transposta esta preliminar, a questão surge no

517
Memória Jurisprudencial

mérito do julgamento do recurso extraordinário. Com esta preliminar, nós julga-


mos do acerto da decisão recorrida.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Considerando o argumento do
eminente Procurador-Geral da República que V. Exa. agora restaura, queria pon-
derar o seguinte: prevalecendo o ponto de vista que V. Exa. com toda propriedade
invoca, é de se dar provimento, porque as decisões da justiça local foram contra as
decisões que o Supremo Tribunal Federal deu. Mas o problema, que citei no meu
voto escrito, é que estou diante de um texto que me obriga a considerar o Decreto-
Lei 322 para os casos sub judice.
Se esse decreto-lei for constitucional, somos obrigados, nesta instância
superior, a considerar o caso.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: São dois temas diversos, que devem ser
abordados cada um de per si.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Partindo da velha regra, que é
da Corte Suprema — a de que não se pronuncia a inconstitucionalidade se não
for estritamente necessário —, e só na parte necessária à solução do caso con-
creto, nós podemos inverter o julgamento: em vez de considerar a validade de
todo o Decreto-Lei 322, nós partimos do ponto mais vulnerável e mais restrito —
o art. 5º e sua aplicação retrooperante.
Se dissermos que ele não se aplica retroativamente, resolve-se o caso
concreto e fica para outra etapa o problema do Decreto-Lei 322 em seu todo e
por sua origem.
O Sr. Ministro Evandro Lins: V. Exa. podia informar se, em todos os casos
julgados, esse decreto-lei ainda não estava em vigor?
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Ainda não estava em vigor.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Temos de enfrentar o problema do agravo.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): De pronto não posso me lem-
brar se invocou, porque a publicação se deu no momento em que estavam tirando
as peças na instância inferior. Mas houve invocação posterior ao traslado.
Depois de formado o instrumento, os agravados, por sua advogada, dizem:
“Acresce ainda que o recente Decreto 322, de 7-4-1967, estabelece, em seu art.
5º, que: ‘Nas locações para fins não residenciais será assegurado ao locatário o
direito à purgação da mora, nos mesmo casos e condições previstos na lei para as
locações residenciais, aplicando-se o disposto neste artigo aos casos sub
judice’”. Isso foi no dia 2 de maio.
Proponho, Sr. Presidente, que V. Exa., metodizando os trabalhos, ponha
em votação, primeiro, se pode ter aplicação retroativa aos casos sub judice
anteriores a 7 de abril, data da publicação do Decreto-Lei 322, o art. 5º desse
diploma.

518
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Prado Kelly: Se pode ter aplicação nesta instância, por meio
de recurso extraordinário ou em agravo de instrumento, que pressupõe a denegação
do recurso.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Aí vamos ter outra tarde perdida
com esse decreto-lei.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Aí a incompatibilidade do art. 5º será com o
artigo que define o recurso extraordinário, com o artigo que era, antes, o 101.
Esse é o ponto. Seria a incompatibilidade do art. 5º em relação ao art. 114 da atual
Constituição, que delineia o campo do recurso extraordinário. Se a preliminar for
vitoriosa, não há razão de entrar nos outros assuntos, a não ser na parte do mérito.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio que a sugestão do emi-
nente Ministro Prado Kelly teria a virtude de restringir ao estritamente indispen-
sável a votação. Sou dos que acham que as leis, aliás na velha regra, só quando
absolutamente inconstitucionais devem ser declaradas como tais. Acho que os
membros do Congresso, responsáveis pela política legislativa do País, podem exi-
gir que apliquemos cegamente todas as leis que forem constitucionais, boas ou
ruins. Quem se queixar da justiça da lei, que vá às eleições e substitua os deputa-
dos e senadores. Nosso papel não é fazer leis, mas justiça segundo as leis cons-
titucionais.
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: V. Exa. emitiu seu voto a respeito da
constitucionalidade do decreto-lei.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu emiti meu voto sobre a
constitucionalidade...
O Sr. Ministro Victor Nunes: Brilhante voto.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): ...quer pelo ponto de vista de
que ele não se contém no conceito de segurança nacional, quer porque o art. 5º...
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Neste caso, a questão está posta por V. Exa.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu proponho, data venia do
eminente Ministro Prado Kelly, que se entre na constitucionalidade do art. 5º, sem
discutir o problema da segurança nacional. Estou satisfeito com a solução para o
caso concreto. Quem tiver interesse, suscite a outra questão.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Pode-se discutir o art. 5º de ângulos diversos:
a aplicação dele na instância inferior e no Supremo Tribunal e a sua aplicação
aos feitos pendentes. Não está em causa a segunda parte.
O Sr. Presidente Luiz Gallotti: V. Exa. propõe que se ponha a votos a incons-
titucionalidade do art. 5º?
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Sim, o que manda seja aplicado
retroativamente o Decreto- Lei 322 aos casos sub judice.

519
Memória Jurisprudencial

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, tenho a impressão que as
duas questões estão entrelaçadas.
Mas se V. Exa. as separou para votação, estou de acordo com o eminente
Relator. A meu ver, é inconstitucional o preceito e não pode ser aplicado retroati-
vamente.
O Sr. Presidente Luiz Gallotti: O eminente Procurador-Geral da República
preferiria que se votasse primeiro a preliminar do cabimento do recurso, mas o
eminente Relator julga que a aplicação do Decreto-Lei é inconstitucional.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Pelo voto do eminente Relator e do eminente
Ministro Barros Monteiro, julga-se ao mesmo tempo a constitucionalidade, decla-
rando-se inconstitucional o art. 5º, na parte em que manda aplicar aos casos
pendentes.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Creio, data venia, que a solu-
ção alvitrada pelo eminente Procurador-Geral criaria um impasse. Continuaria a
luta entre as partes, uma dizendo que teve ganho de causa no Supremo Tribunal,
e a outra que, aplicando-se o Decreto-Lei 322, poderia voltar para resolver o
mesmo problema. Temos de enfrentar a dificuldade, e Deus que nos ilumine.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Eu pediria licença aos eminentes colegas para
uma ponderação. A meu ver, o eminente Relator colocou bem o problema, porque
todas essas questões estão entrelaçadas. Veja-se a minha dificuldade pessoal. Se
se tratasse de lei emanada do Congresso, que ampliasse a faculdade de purgar a
mora, inclusive para os processos pendentes, eu a aplicaria. De modo geral, temos
aplicado a legislação sobre o inquilinato aos processos pendentes. Quando...
O Sr. Ministro Evandro Lins: A todos eles.
O Sr. Ministro Victor Nunes: ...o Tribunal fala em vigência imediata de tais
leis, não o diz no sentido em que o eminente Relator empregou a expressão, isso é,
de observância da lei a partir do momento de sua vigência. Temos empregado essa
expressão, numerosas vezes, no sentido de fazer a lei nova alcançar os processos
em curso.
No caso em exame, ao votar essa preliminar, tenho primeiro de analisar a
validade do decreto-lei, porque o tenho por inconstitucional. Como poderia eu,
sem contradição, dizer que esse decreto-lei se aplica aos casos pendentes, se o
considero inconstitucional.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Ele não se aplica aos processo pendentes. A
questão da inconstitucionalidade é prejudicial de todas as outras questões.
O Sr. Ministro Prado Kelly: A preliminar é de ser formulada nestes ter-
mos: “Aplica-se aos casos em julgamento o art. 5º do Decreto-Lei 322?” A mo-
tivação é que pode variar. Uns não aplicarão o preceito, por considerar o decreto-
lei inconstitucional...

520
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não aplico pelos dois motivos.
O Sr. Ministro Prado Kelly: ...outros, por uma razão de técnica processual,
em face do art. 114 da Constituição. Serão razões de decidir. Mas a preliminar
submetida ao julgamento...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Todas convergem.
O Sr. Ministro Prado Kelly: ...seria nos termos que acabei de enunciar.
O Sr. Ministro Victor Nunes: V. Exa. põe bem a questão.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Cada um proferiria seu voto.
O Sr. Ministro Barros Monteiro: Sr. Presidente, já adiantei o meu voto.
Estou de acordo com o eminente Relator na primeira parte e também na segunda,
por entender que a matéria do art. 5º do Decreto-Lei 322 escapa ao conceito de
segurança nacional.

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Adaucto Cardoso: Estou de acordo com o voto total enun-
ciado pelo eminente Relator, porque, na realidade, o conceito de segurança nacio-
nal não é de interpretação exclusiva dos Poderes Executivo e Legislativo. É de-
ver desta Corte Suprema dizê-lo e tirar daí a conseqüência necessária, que é a
declaração da inconstitucionalidade do Decreto-Lei 322, que, a todas as luzes,
não trata de assunto pertinente à segurança nacional. De forma que adoto o voto
do eminente Relator, tal como foi proferido no primeiro impulso, sem o lançamen-
to de preliminares, mas globalmente considerado.

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Djaci Falcão: Acolho também ambos os fundamentos ado-
tados pelo eminente Relator, à vista do conceito de segurança nacional emitido com
brilhantismo por S. Exa. e no qual não se pode situar matéria relativa a locação de
imóvel para fim comercial, disciplinada pelo direito privado — muito embora não
desconheça eu, como todos nós, a tendência de publicização de certos princípios
de direito privado.
Por outro lado, no que tange à aplicação da regra do art. 5º do Decreto
322, de modo retrooperante, ela destoa inclusive do art. 6º da Lei de Introdução
ao Código Civil.

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Sr. Presidente, sigo, no meu voto, a ordem
indicada pelo debate: em primeiro lugar, a aplicação do art. 5º do Decreto-Lei
322, de 7-4-1967, aos casos sub judice. O eminente Procurador-Geral da Repú-
blica trouxe, em abono de seu ponto de vista, o exemplo da legislação do

521
Memória Jurisprudencial

inquilinato, desde a primeira, que sempre teve aplicação a todos os casos penden-
tes, em face da natureza dessas leis. O eminente Relator ponderou que elas
atingem os processos pendentes, mas com a ressalva do art. 150, § 3º, da Cons-
tituição: “A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada”. Poderá existir, na ocorrência da mora, o ato jurídico perfeito. Se o deve-
dor não podia ser admitido a requerer o pagamento da dívida, com os encargos
legais, no prazo da contestação, a mora produziu o seu efeito, na conformidade da
lei. Houve o ato jurídico perfeito, que não se pode atingir por lei posterior. O art.
5º do Decreto-Lei 322, ao dispor que a nova regra se aplica aos processos sub
judice, fere o art. 150, § 3º, da Constituição.
O segundo ponto é o da competência do Presidente da República para expe-
dir decreto, com força de lei, sobre a segurança nacional. O voto do eminente
Relator é exaustivo, convincente, brilhante. Estou de acordo com S. Exa. Segu-
rança nacional, certamente, não compreende relação de direito privado.
Conceitua-se a segurança nacional, na Constituição, não só na Seção que, dentro
do Capítulo “Do Poder Executivo”, trata “Da Segurança Nacional” — arts. 89 a
91 —, mas, ainda, no começo da Constituição, quando, no Capítulo sobre a
“Competência da União”, a ela se refere o art. 8º, inc. IV. Com esse conceito
genérico, contrasta o art. 5º do Decreto-Lei 322. Poder-se-á discutir sobre a
extensão do conceito, mas, no caso, é evidente o excesso. Não me parece de
valia a invocação do parágrafo único do art. 58: a omissão do Congresso Nacio-
nal importará em aprovação. É certo que a Constituição dispõe que será tido
como aprovado o decreto-lei que, no prazo de sessenta dias, não for votado pelo
Congresso Nacional. Se o Congresso tivesse aprovado expressamente, ainda
seria contestável, pela matéria do decreto-lei, a sua constitucionalidade. Mas, se
o Congresso Nacional não se pronunciou, não praticou ato de aprovação ou de
rejeição, não foi sanado, com a omissão, o vício do decreto-lei, que transcendeu
da competência do Poder Executivo.
Resta decidir o último ponto. Declarada a inconstitucionalidade do art. 5º
do Decreto-Lei 322, cumpre julgar o recurso, à vista da legislação anterior a este
decreto-lei. A parte sustentou que a purgação da mora era permitida, em face de
leis posteriores às referidas na Súmula 123. Inconstitucional o art. 5º do Decre-
to-Lei 322, ainda será preciso examinar se a lei anterior a esse dispositivo autori-
zava a purgação da mora, que o juiz admitiu. Sem esse exame, não ficará com-
pleto o julgamento do recurso.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Afirmada a inconstitucionalidade do art. 5º do
Decreto-Lei 322, teremos de apreciar o caso em face da lei anterior.
O Sr. Ministro Prado Kelly: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro já considerou
isso no voto.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Continuo a aplicar a Súmula 123. Entendo
que as leis posteriores às referidas na Súmula não modificaram o princípio nela
enunciado.

522
Ministro Victor Nunes

O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O Decreto-Lei n. 4 e a Lei


4.864, se não me falha a memória, abonam a tese de V. Exa. Também aplico.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Ainda depois desses diplomas legais, segui a
jurisprudência consagrada na Súmula 123. Não assiste à parte recorrida direito
à purgação da mora, que o juiz concedeu.

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Prado Kelly: Sr. Presidente, o eminente Relator, no seu
brilhante voto, que eu admiraria de diferentes ângulos, lembrou ao Tribunal a
tradição por ele adotada, em atenção a precedentes da Corte americana, de só
discutir a inconstitucionalidade de lei quando essa declaração for indispensável
ao julgamento do feito. Colocada a preliminar nestes termos, com o assentimento
dos eminentes Colegas, e indagando-se da Corte se se aplica ao feito o art. 5º do
Decreto-Lei 322, a questão me parece muito simplificada.
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Queria, apenas, que V. Exa., com a
sua sabedoria, pudesse esclarecer: é que o art. 5º do Decreto-Lei 322 tem as
mesmas razões de ser do decreto! Ele se fundamenta na segurança nacional!
O Sr. Ministro Prado Kelly: Perfeito! Mas note, V. Exa.: se entendo, por
motivos outros, que esse artigo não tem aplicação à espécie ora examinada, não
preciso deter-me nos defeitos que viciam o diploma legal. De outra forma, não
seria fiel ao critério que preconizo.
Como dizia, a matéria ficou altamente simplificada. O art. 5º diz:
“Nas locações para fins não residenciais, será assegurado ao
locatário o direito à purgação da mora, nos mesmos casos e condições
previstas na Lei para as locações residenciais, aplicando-se o disposto
neste artigo aos casos sub judice”.
Alterou-se, nesse caso, a legislação anterior não só para locações ad
futurum como para locações já contratadas. E, no dizer “aplicando-se o disposto
neste artigo aos casos sub judice”, se dá efeito retrooperante da norma aos
processos pendentes. É esse o seu alcance. Mas pode aquela norma aplicar-se
em terceira instância, ou seja, no Supremo Tribunal Federal, por via do recurso
extraordinário? Creio que não, Sr. Presidente, porque a observância de tal preceito
feriria conceituação constitucional do apelo extremo, qual seja a condição de
“prequestionamento”.
Por esses motivos, Sr. Presidente, e reservando-me para outras considera-
ções em melhor ensejo, considero inaplicável ao feito o art. 5º do Decreto-Lei 322 .
O Sr. Ministro Hermes Lima: Quer dizer, eminente Ministro, que V. Exa.
não toma conhecimento.

523
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Prado Kelly: Não. Considero inaplicável o novo preceito à


espécie e, em conseqüência, acompanho o eminente Relator.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Porque não houve prequestionamento? Por
essa razão?
O Sr. Ministro Prado Kelly: Porque não houve prequestionamento.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Quem invoca o dispositivo não é
o recorrente; é o recorrido.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Quem invoca, de oficio, é o eminente Relator,
e isso lhe faz honra; S. Exa. não quis ser omisso em ato de ofício, quando a lei
assim ordena. Submeteu a questão ao Tribunal. Mas os efeitos do artigo em
causa não incidem no recurso extraordinário, quando o Tribunal tem restrita a sua
tarefa: a de só decidir em face das questões consideradas na justiça de origem.
Conheço do recurso e lhe dou provimento.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Assim, V. Exa. conhece e dá
provimento ao recurso extraordinário porque a decisão recorrida contraria a ju-
risprudência do Tribunal no tocante às leis que foram apreciadas nas instâncias
ordinárias.
O Sr. Ministro Prado Kelly: No tocante às leis que deviam ser aplicadas ao
tempo do litígio.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: Não é preliminar essa questão?
O Sr. Ministro Prado Kelly: Quanto à preliminar levantada, considero
inaplicável o art. 5º.
O Sr. Ministro Eloy da Rocha: A questão contida no voto de V. Exa. precede
à de inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Foi o que pensei quando, mediante aquiescên-
cia dos eminentes Ministros Victor Nunes e Evandro Lins e tácita concordância
do Tribunal, sugeri, com a aprovação do eminente Relator, que a questão se colo-
casse singelamente em torno da aplicação ao feito do art. 5º do Decreto-Lei 322.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Isso significa que V. Exa. não entra no mérito.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Não preciso cogitar de mais nada, porque mais
nada se nos depara. Considero inaplicável à espécie, na presente fase processual, o
art. 5º do Decreto-Lei 322.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): E como a lei aplicada o foi em
desacordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, por isso V. Exa.
acompanha o Relator e também dá provimento.
O Sr. Ministro Prado Kelly: Estou de acordo com a conclusão do eminente
Relator.

524
Ministro Victor Nunes

VOTO
O Sr. Ministro Adalicio Nogueira: Sr. Presidente, entendo, como o eminente
Ministro Relator, que o conceito de segurança nacional, realmente, está definido
na Constituição, expressa ou implicitamente, não nos sendo possível ampliar ou
restringir esse conceito, ao sabor de uma interpretação plástica. Em tese, estou
perfeitamente de acordo com o voto de S. Exa.
Quanto, porém, ao caso vertente, adoto o ponto de vista sustentado pelo
eminente Ministro Prado Kelly. Acho inaplicável, no momento, o dispositivo citado
do art. 5º, em face, mesmo, do sistema de julgamento adotado pelo egrégio Su-
premo Tribunal Federal, reservando-me, então, para, na oportunidade própria,
apreciar, em cada caso concreto, a solução.
É o meu ponto de vista.

VOTO (Preliminar)
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Sr. Presidente, já tive oportunidade de
pronunciar-me, em caso anterior, de pleno acordo com o voto do eminente
Relator. Naquela oportunidade, discutiu-se a inconstitucionalidade do Decreto-
Lei n. 2, de 14-1-1966, que deslocava para a competência da Justiça Militar os
crimes contra a economia popular.
Sustentei, então, que, de acordo com o Ato Institucional n. 2, não podia o
Presidente da República, baseado na regra que lhe permitia expedir decretos-leis
em matéria que envolvesse a segurança nacional, ampliar conceitos, de modo a
absorver a competência do Poder Legislativo.
A meu ver, o eminente Relator situou perfeitamente o problema. O conceito
de segurança nacional é o gênero, que envolve duas espécies: a segurança externa
e a segurança interna.
De segurança externa evidentemente não se cuida, porque ela compreende
problemas de guerra externa, de defesa do território nacional, o que não está em
causa. A segurança interna compreende a defesa das instituições políticas do
País, de um modo geral, isso é, o sistema de governo, os Poderes da República, a
Federação e tudo o mais que forma a estrutura do regime sob o qual vivemos.
A Constituição só autoriza o Presidente da República a expedir decretos-
leis quando se trata de segurança nacional ou de finanças públicas.
Por ocasião daquele voto, mostrei que a ampliação do conceito poderia
credenciar o Executivo a legislar sobre problemas de locação, a pretexto de que
a segurança nacional estava em jogo. Poder-se-ia dizer que tal matéria afeta a
segurança nacional, porque pode, eventualmente, perturbar a paz pública. Toda a

525
Memória Jurisprudencial

matéria de legislação seria deslocada, por força de uma interpretação ampliativa,


para a competência do Poder Executivo.
Continuo a entender que o art. 58 da Constituição, como toda a matéria de
ordem constitucional, deve ser interpretado, em última análise, pelo Supremo Tri-
bunal Federal, a quem compete, por isso, definir o conceito de segurança nacio-
nal, nos termos da própria Constituição.
Também ao encargo do Supremo Tribunal Federal fica a interpretação final
sobre o que é finança pública, matéria sobre a qual o Presidente da República tem,
hoje, o poder de editar decretos-leis.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): E sobre a qual existe um código.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: De forma que, Sr. Presidente, estou
de inteiro acordo com o eminente Relator.
Como já disse, confirmou-se a previsão de que, em dado momento, pode-
ríamos ter a surpresa de ver a Presidência da República editando decreto-lei
sobre matéria de inquilinato.
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): V. Exa. refere-se ao voto no caso
dos crimes contra a economia popular, os quais foram declarados, por um decreto-
lei, crimes contra a segurança nacional.
O Sr. Ministro Evandro Lins e Silva: Infelizmente, minha previsão se realizou.
De acordo com o voto do eminente Relator, também declaro a inconstitu-
cionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322.

VOTO
O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, no meu entender, o art. 5º do
Decreto-Lei n. 322, de 7 de abril de 1967, que assegura aos locatários purgação
da mora em locações comerciais e editado em nome da segurança nacional, não
é inconstitucional, e as minhas razões são as seguintes: o art. 58 dá ao Presidente
da República, em casos de urgência ou de interesse público relevante e desde
que não resulte em aumento de despesa, o poder de expedir decretos com força
de lei, sobre as seguintes matérias: segurança nacional e finanças.
Evidentemente, o conceito de segurança nacional é extremamente flexível
e aberto. Tanto é flexível e aberto, que o parágrafo único desse art. 58 entendeu
que, publicado o texto, que teria vigência imediata, de algum decreto fundado na
segurança nacional, o Congresso Nacional, que é órgão político por excelência e,
portanto, o mais apto para apreciar os problemas da segurança nacional, o apro-
vará ou rejeitará. Não é ao Tribunal que caberá dizer o que é segurança nacional
ou o que não é segurança nacional. Isso está deferido na Constituição, art. 58,
parágrafo único, ao Congresso Nacional.

526
Ministro Victor Nunes

Essa tarefa cabe ao Congresso Nacional. Não cabe a este Tribunal, a meu
ver, dizer o que é segurança nacional ou o que não é segurança nacional.
O eminente Relator, no seu brilhantíssimo voto — e que, mais uma vez,
revela a sua capacidade intelectual e jurídica...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Muito obrigado a V. Exa.
O Sr. Ministro Hermes Lima: ...disse que os problemas de segurança
nacional estão compendiados nos arts. 89 a 91.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): O conceito emana de todas as
ações que possam pôr em perigo a perenidade, a independência, a segurança, a
paz, a ordem interna do País, suas instituições, seus valores morais e intelectuais,
quer por agressores externos, quer por agressores internos, em maior ou menor
escala, em suas formas aparentes, extrínsecas, ou mesmo com as formas
insidiosas, veladas, dissimuladas, que todos conhecemos.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, o art. 90 dá competência ao Conselho
de Segurança Nacional...
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. olhe a rubrica da seção
“Da Segurança Nacional”.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Ao Conselho de Segurança Nacional, para
todas as medidas que estão expressas no art. 91.
Essa é a função de Conselho de Segurança Nacional. Mas isso não quer
dizer que o Conselho esgote essa matéria, nem que só o que aí está signifique
segurança nacional.
É preciso, a meu ver, conciliar o art. 91, em que existe discriminação de
competência de um órgão político, como é o Conselho de Segurança Nacional,
com o art. 58, que alarga o conceito de segurança nacional, porque, no art. 91, o
Conselho informará o Presidente da República, assessorará o Presidente da Re-
pública, nessas matérias que estão aí discriminadas.
Esse é o papel do Conselho.
Mas o art. 58 alarga mais o conceito de segurança nacional, porque diz que
“o Presidente da República, em casos de urgência ou de interesse público rele-
vante (...)”. Quer dizer, a segurança nacional abrange, como casos de urgência
ou de interesse público relevante, mais alguma coisa do que aquilo que está
compendiado no art. 91 da Constituição.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Permite o eminente colega um
esclarecimento?
Nós ambos já fomos partícipes em elaboração de Constituições, e naquelas
houve um cuidado imenso da Comissão Redatora do Projeto de, seguindo a velha

527
Memória Jurisprudencial

regra da arte de elaborar leis, não empregar palavras ou cláusulas ou locuções


diferentes para uma idéia só.
Quando se fala, na Constituição, no “Senado”, só pode ser no “Senado
Federal”. Não podem ser usadas as expressões “órgão” ou “Câmara”, é sempre
a mesma palavra, usada do princípio ao fim, ainda com o perigo de se quebrar a
elegância literária do texto pela repetição.
Essa matéria, antes mesmo da Constituição de 1934 e das anteriores, foi
discutida por um constitucionalista nosso conterrâneo, Aurelino Leal, embora ele
estivesse mais preocupado com a técnica legislativa em matéria de Direito Civil e
não de Direito Constitucional.
Hoje, todas as livrarias vendem as traduções de obras americanas sobre a
maneira de redigir-se projeto de lei, a drafting.
A Constituição emprega a locução “segurança nacional”, mas abre subtí-
tulo “Da Segurança Nacional”, e em outro capítulo a ela se refere. Tem-se que
buscar o conceito aí. É a velha arte de interpretar-se a lei analogicamente, siste-
maticamente. Uma disposição completa a outra, uma lei completa a outra. Não
se pode tomar uma disposição isolada se há uma autorização ao Presidente da
República.
No art. 58, há um conceito do que é “segurança nacional” e de todas
aquelas matérias que constituem a “segurança nacional”. E o próprio bom senso
está dizendo que só podem ser a paz, a segurança, o bem estar, enfim, a preser-
vação da incolumidade da Nação, quer quanto às ameaças externas, quer quanto
às internas.
Mas purgar mora de comerciante, tenha paciência!
Por exclusão, podemos dizer o que é “segurança nacional”. Vejamos o que
não é segurança nacional: bola de futebol não é segurança nacional; batom de
moça não é segurança nacional; cigarro de maconha não é segurança nacional.
Não se pode fazer um decreto-lei regulando a produção da maconha, por
exemplo, porque é da alta segurança para o soldado, que poderá tirar seus com-
plexos de medo do soldado inimigo, de angústia, etc.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Compreendo, perfeitamente, o ponto de vista
de V. Exa., mas não aceito, exatamente, que tudo quanto está no conceito de
segurança nacional sejam as funções deferidas ao Conselho de Segurança Nacio-
nal. O Conselho de Segurança Nacional tem funções específicas, que estão
discriminadas, e no conceito que V. Exa. fez de segurança nacional não caberiam,
certamente, outras medidas.

528
Ministro Victor Nunes

Se interpretássemos, literalmente, que a segurança nacional só está ex-


pressa no art. 91, em seus incisos e letras, não caberia o conceito que V. Exa.
ainda agora acaba de repetir sobre segurança nacional. Esse conceito autoriza
medidas que não estão ali previstas.
Por isso é necessário não limitar o conceito de segurança nacional ao que
está expresso no art. 91, mas juntar a esse art. 91 o art. 58, que vem antes dele e
que diz: “O Presidente da República, em caso de urgência ou de interesse público
relevante...”
Ora, se lermos o que está escrito no art. 91, veremos que muitos casos de
urgência ou de interesse público relevante não se acham nele incluídos.
Evidentemente, se um país tivesse governantes que, em nome do conceito
de segurança nacional, proibissem que moças usassem batom ou que indivíduos
fumassem maconha ou que se embriagassem, então, esse país seria um país de
opereta, não teria respeito internacional, não seria sério, seria um circo.
De modo que o argumento de V. Exa. peca pelo absurdo.
Além disso, não há também, a meu ver, perigo de que o conceito de segu-
rança nacional possa ser usado pelo Presidente da República para limitar as ga-
rantias e os direitos do art. 150, porque esses direitos estão expressos na Consti-
tuição. O Presidente da República não poderá, em nome da segurança nacional,
negar a liberdade de pensamento, negar a liberdade de palavra, ou, então, restrin-
gir ou eliminar quaisquer dos direitos e quaisquer das garantias que estão assegu-
radas no art. 150.
O conceito de segurança nacional tem, portanto, a meu ver, a primeira de
suas limitações no art. 150 da Constituição. A primeira, a mais fundamental das
limitações do conceito de segurança nacional está no art. 150 da Constituição.
O Sr. Ministro Evandro Lins: Está no próprio art. 58, porque a urgência ou
o interesse público relevante, ao invés de ampliarem o poder do Presidente da
República, aí funcionam como condição restritiva: só nos casos de urgência ou de
interesse público relevante é que ele poderá expedir decretos-leis sobre matéria
de segurança nacional e finanças públicas.
V. Exa. está interpretando esse dispositivo como sendo ampliativo dos
poderes do Presidente da República, quando essas condições são restritivas.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Não, perdão. Estou interpretando como sendo
ampliativo ou como contendo outros requisitos além dos que estão enumerados no
art. 91. Essa é minha posição.
O Sr. Ministro Evandro Lins: A enumeração do art. 91 não subordina o
Presidente da República a essas condições de interesse público ou de urgência
para que possa expedir os decretos-leis, porque o normal é que ele se dirija ao
Legislativo em todas as matérias que não envolvam problemas de segurança
nacional ou de finanças públicas.

529
Memória Jurisprudencial

O Sr. Ministro Hermes Lima: Ora, Sr. Presidente, os casos de urgência ou


de interesse público relevante do art. 58 são casos políticos, de relevância política,
em que uma razão de ordem política ou, o que vale dizer, uma razão de ordem
pública está incluída. Porque é um caso de ordem pública e de ordem política é
que o parágrafo único do art. 58 deferiu ao Congresso Nacional a apreciação do
decreto. Então, é essa a função política por excelência do Congresso Nacional.
Não podemos criar duas instâncias para tomar conhecimento dos decretos do
Presidente da República, expedidos em nome da segurança nacional.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Mas apreciamos as próprias leis do
Congresso!
O Sr. Ministro Hermes Lima: Esses decretos só têm uma instância. Qual é
a instância? O Congresso Nacional.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Então esse decreto-lei valeria mais que
a lei. Se o Supremo Tribunal examina qualquer lei em face da Constituição, não
pode examinar tais decretos-leis?
O Sr. Ministro Hermes Lima: Não é isso: é que não podemos substituir o
Congresso na apreciação dessa matéria que está a ele deferida.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E se o Congresso tivesse aprovado expres-
samente o decreto-lei?
O Sr. Ministro Hermes Lima: Estava aprovado.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Seria uma lei. E não poderíamos apreciar
essa lei?
O Sr. Ministro Hermes Lima: No caso, trata-se de lei, apesar de não apro-
vada expressamente pelo Congresso, mas trata-se de lei. Se o Congresso tivesse
aprovado, seria lei; o Congresso não aprovando, é também lei. Só não seria se o
Congresso tivesse recusado. É o que está no parágrafo único do art. 58.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: E por que o Supremo Tribunal não teria
o poder de examinar somente esse tipo de lei, quando pode julgar todas as outras
em face da Constituição?
Sr. Ministro Hermes Lima: O Poder Judiciário tem o poder de examinar
todas as leis, mas não tem o poder de se substituir ao corpo político no exame de
leis cuja matéria é peculiarmente política. Os nossos pontos de vista são diferen-
tes porque V. Exa. parte da premissa de que a lei é inconstitucional. Eu não: parto
da premissa de que a lei é constitucional.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eminente Ministro, parece que
a nossa divergência se circunscreve a um problema que procurei deixar claro no
meu voto. O conceito de segurança está nos artigos 89 a 91, e neste caso o

530
Ministro Victor Nunes

Presidente da República não pode hipertrofiá-lo, com a aprovação do Congresso


ou sem ela. O Congresso não pode convalidar ato do Presidente da República
nesse sentido, nem por lei. V. Exa. parte de outro princípio, porque acha que esse
conceito não está definido na Constituição, não é evidente por si mesmo e será
aquilo que a discricionariedade do Congresso determinar, aprovando ou rejeitado
um ato do Executivo.
O Sr. Ministro Victor Nunes Leal: Esse é o problema: será matéria discri-
cionária do Executivo e do Congresso?
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Se for discricionária, meu nobre
Colega, só o céu é o limite. Amanhã o Código Penal poderá criar pena de 100
anos; poderá até dizer que a segurança nacional exclui a proibição constitucional
da pena de morte, ou considera a paz, ou inexistência de guerra estrangeira,
como guerra estrangeira, e então poderá ser aplicada essa pena de morte. Coisas
incríveis poderão ocorrer neste País. É bom imaginar todas as conseqüências
próximas e remotas de uma interpretação como essa numa Casa como a em que
estamos servindo. E olhe que eu sou partidário do governo forte, o governo que
manda, e por isso mesmo defendo o parlamentarismo, porque, a meu ver, é o
governo mais forte do mundo. O detentor de poderes mais discricionários do
mundo é o Primeiro Ministro da Inglaterra, enquanto apoiado pelo Parlamento.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Mas eu não digo que seja arbitrário, digo que
seja discricionário, porque os limites, como eu já disse, do conceito de segurança
nacional, não estão no art. 91 — estão no art. 150 da Constituição.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Lá está, no art. 150, o conceito
de propriedade.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Essa é questão que o Supremo Tribunal
poderia discutir. Poderia partir do princípio de que não há nada no conceito de
propriedade que possa ser anti-social. Seria um belo ponto de partida.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): V. Exa. se esqueceu de que
estivemos ombro a ombro discutindo o conceito de propriedade como função
social, e até algumas emendas que puseram de cabelo em pé alguns respeitáveis
companheiros da Constituinte de 46. Estou ainda vendo na eternidade o Deputado
Eduardo Duvivier alarmado com V. Exa.; o Professor Mário Mazagão queria até
renunciar com medo de nossas idéias ali.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Sr. Presidente, já tomei muito tempo, mas a
matéria é importante e estou dando um voto que, penso, vai discrepar dos demais.
Precisava, portanto, justificar-me.
Então, o freio para os decretos do Presidente em matéria de segurança
nacional está no Congresso. O Congresso que exerça as suas funções, o Con-

531
Memória Jurisprudencial

gresso que tome realmente a posição de um fiscal desses decretos do Presidente


da República. Portanto, buscando agora a conclusão do caso, julgo o decreto
constitucional.
Em segundo lugar, penso que o art. 5º também não é inconstitucional, que pode
se aplicar, segundo a tradição de todas as leis do inquilinato, aos casos pendentes.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Eu não contesto. Eu contesto é
que se possa negar efeitos já produzidos, decorrentes de situação definitivamente
constituída. Suponhamos que neste momento a lei marque o teto de 6% à usura.
Far-se-á uma lei ou um decreto-lei baseados na segurança nacional, e dirão: o
empréstimo no Brasil não poderá mais cobrar juros, porque os Concílios da Igreja
já consideram que o juro é pecado. Tendo exemplos como o de D. Felipe II, Rei
da Espanha e de Portugal, que suspendeu juros da dívida pública para pôr a
perder a alma dos credores dele. Assim, com tais fundamentos morais, ficavam
proibidos os juros. Tendo validade essa lei, daqui para o futuro ninguém mais
pagaria juros, mas quem recebeu juros até hoje não é obrigado a devolvê-los.
Ninguém pode pedir de volta o juro que pagou; ninguém deixa de ser credor do
juro que estava vencido até ontem. É uma situação definitiva. O credor não pode
ser prejudicado.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Também julgo, Sr. Presidente, que a matéria
do Decreto-Lei 322 é da mais alta importância social, pois assim sempre foram
consideradas as leis sobre o problema de locação, do inquilinato. Se o Congresso
Nacional, ao apreciar essa lei, ficou um pouco alarmado pelo fato de o Presidente
da República tê-la editado em nome da segurança nacional, ninguém contra ela
se pronunciou. Não houve um deputado, um senador, que articulasse uma palavra
contra o mérito da lei.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não foi por medo do Presidente
da República, porque tem havido críticas severas e irreverentes a S. Exa. em
outros assuntos. Mas os deputados tiveram medo de perder a eleição, a maior
parte da população é de inquilinos.
O Sr. Ministro Hermes Lima: Concluindo meu voto, quero deixar bem
claro meu pensamento: o conceito de segurança nacional não está adstrito aos
itens do art. 91. Esse conceito se aplicou pelo art. 58, que dá ao Presidente da
República, em casos de urgência ou de interesse público relevante, o poder de
editar decretos. O juiz desses decretos é o Congresso Nacional. Os limites do
conceito de segurança nacional estão no art. 150 da Constituição. Esse conceito
não está na Constituição como um cheque em branco. Os limites do conceito, a
meu ver, se acham no art. 150. Se essa não é a melhor maneira de estruturar a
organização política do País, a culpa não cabe ao Supremo Tribunal Federal. O

532
Ministro Victor Nunes

Supremo Tribunal Federal não tem o poder de organizar politicamente o País ou


de corrigir a Constituição, segundo ditames de justiça que ele ditaria ou segundo
valores éticos que ele considera mais altos e adequados. A Constituição é o que
os constituintes fizeram. Sr. Presidente, a Constituição não é obra da razão, é
obra dos corpos políticos. Portanto, a política da Constituição não pode ser
corrigida pelo Supremo Tribunal Federal. A política da Constituição tem que ser
corrigida pelos poderes políticos da Constituição.
É o meu voto.

VOTO
O Sr. Ministro Victor Nunes: Sr. Presidente, os apartes esclareceram devi-
damente a questão que estamos examinando. Evidentemente, não se pode negar
que o Congresso Nacional seja um freio constitucional para o Presidente da Re-
pública, no uso das atribuições do art. 58. Também não se pode negar que outra
contenção encontramos no art. 150, que define as garantias individuais, e talvez
mais importante, muito mais importante. O que me impede de concordar com o
brilhantíssimo voto do eminente Ministro Hermes Lima é que não são esses os
únicos elementos de contraste no sistema de freios e contrapesos que a Consti-
tuição adotou.
O art. 58 não suprimiu qualquer das prerrogativas do Supremo Tribunal,
definidas nos arts. 114 e 115. O fato de poder o Congresso apreciar os decretos-
leis do art. 58 não lhes confere categoria superior à das leis votadas pelo Con-
gresso, quer este aprove esses decretos-leis pelo silêncio ou em forma expressa.
Se o Supremo Tribunal pode julgar as leis em face da Constituição, também pode
apreciar, em face da Constituição, aqueles decretos-leis.
O problema fundamental, no exame a que estamos procedendo, é saber se
o conceito de segurança nacional, a que se refere o art. 58, é matéria da compe-
tência discricionária do Executivo e do Congresso Nacional. Ainda há pouco, o
Sr. Ministro Aliomar Baleeiro pôs bem esse problema. E essa é a questão nuclear
que temos a decidir. O Executivo e o Congresso podem dar ao conceito de segu-
rança nacional, do art. 58, a amplitude que entenderem?
O Sr. Ministro Hermes Lima: A meu ver, sim. Não é arbitrário.
O Sr. Ministro Victor Nunes: Estou empregando o vocábulo “discricionário”,
que tem rigor técnico. Competência arbitrária, na Constituição, nenhum de nós
admitiria.
A meu ver, Sr. Presidente, como já foi sustentado por eminentes colegas
que me precederam, a conceituação de segurança nacional não foi deixada à
discricionariedade dos outros dois Poderes.

533
Memória Jurisprudencial

Em primeiro lugar, o texto constitucional, particularmente o art. 58, não


confundiu, nem assemelhou, os conceitos de segurança nacional e de interesse
público relevante. O Sr. Ministro Evandro Lins, há pouco, observou isso.
Diz o texto que o Presidente da República pode, em caso de urgência ou
de interesse público relevante, expedir certos decretos-leis. Quais? O próprio
texto responde: os que se refiram a matéria de segurança nacional e a matéria de
finanças públicas.
Portanto, a dois tipos de condicionamento está subordinada a ação do Pre-
sidente da República. O primeiro é que se trate de certa matéria: segurança
nacional, que ora nos interessa, ou finanças públicas. O segundo é que o caso
seja de urgência e de interesse público relevante.
O que é discricionário, nesse dispositivo, é a condição da urgência e do
interesse público relevante. Sobre isso falam soberanamente, em primeiro lugar,
o Executivo, em segundo, o Congresso. Mas a matéria do decreto-lei, essa é
outra condição sem a qual o Presidente da República não pode expedir decretos-
leis, pois não basta que a matéria seja urgente e de interesse público relevante,
mas é preciso também que se refira à segurança nacional ou às finanças públi-
cas. A definição dessa matéria não é discricionária, pois o nosso sistema constitu-
cional seria ilusório, se um conceito tão básico, tão importante, tão fundamental,
seja para a segurança do Estado, seja para a segurança dos indivíduos, dependesse
tão-só do critério ilimitado e exclusivo dos órgãos políticos.
A Constituição contém outros dispositivos que tratam da segurança nacio-
nal. Se o art. 58, que também se refere à “segurança nacional”, não define essa
matéria, será naqueles outros textos que o Supremo Tribunal encontrará subsídio
para a conceituação jurídica da segurança nacional, exercendo sua competência
de apreciar quaisquer leis em face da Constituição, inclusive os decretos-leis do
art. 58.
Com esses fundamentos, Sr. Presidente, e com os apartes que tive ocasião
de externar, poderia limitar meu voto à não-aplicação do art. 5º do Decreto-Lei
322 ao caso dos autos, na linha das brilhantes considerações do Sr. Ministro
Prado Kelly. Mas, como os tribunais podem decidir — e freqüentemente o
fazem — por mais de um fundamento, acrescento este outro, de ser inconstitu-
cional o Decreto-Lei 322, em sua integridade, por não cuidar de matéria de
segurança nacional.

VOTO
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Sr. Presidente, pelo adiantado da
hora, vou resumir o meu voto. A questão, em verdade, deve ser posta nestes
termos: a validade do decreto-lei expedido pelo Presidente da República, com

534
Ministro Victor Nunes

fundamento no art. 58 da Constituição, tem sua apreciação sujeita apenas às


atribuições conferidas ao Congresso Nacional, ou o Supremo Tribunal também a
pode julgar?
O eminente Ministro Hermes Lima diz que a questão é puramente de na-
tureza política e fica, conseqüentemente, ao critério exclusivo do Congresso Na-
cional. Neste particular, peço licença ao egrégio mestre para divergir da sua
douta conclusão e acompanhar o brilhante e substancioso voto do eminente
Relator.
A questão é de grande relevância. Para chegar à conclusão de que a ques-
tão seria apenas do arbítrio, do critério do Congresso Nacional, nós não poderíamos
ler que o Presidente da República baixará decretos-leis com força de lei sobre
segurança nacional ou finanças públicas. Seria sobre qualquer matéria. Diz o
parágrafo único do art. 58: (lê)
Se o Presidente não ficar adstrito a baixar decreto com força de lei apenas
sobre segurança nacional e finanças públicas, poderá fazê-lo sobre qualquer
matéria.
O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro (Relator): Não há palavras inúteis na lei.
Então, por que o subtítulo “Segurança Nacional” numas das Seções da Constitui-
ção?
O Sr. Ministro Gonçalves de Oliveira: Se a matéria, evidentemente, pelo
seu conteúdo, não diz respeito a segurança nacional nem a finanças públicas, mas
há aprovação implícita do Congresso Nacional, que não se manifestou no prazo
de 60 dias sobre esse ato legislativo, fica o projeto convalidado? Então, não é
apenas sobre segurança nacional e finanças públicas que pode legislar o Presi-
dente da República. É sobre qualquer matéria. E isso é que o legislador constituinte
não quis, deixando ao crivo do Judiciário, do Supremo Tribunal, apreciar o conteúdo
dessa lei.
Bastam essas considerações para me pôr de acordo como o eminente
Relator. O Presidente da República legislou sobre Direito Civil, matéria que a
Constituição reserva à lei, conforme o art. 8º, XVII, da Constituição.
Essa matéria de locação de imóveis é de Direito Civil e não de segurança
nacional. Por essas razões é que adoto o lúcido e brilhante voto do eminente
Relator como razão de decidir.

VOTO
O Sr. Ministro Candido Motta Filho: Sr. Presidente, também poderia decla-
rar inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322, mas acho que é dever de minha
consciência de jurista e de Ministro desta Casa dizer, de acordo com o eminente

535
Memória Jurisprudencial

Relator, que o Decreto-Lei é inconstitucional porque se baseia no conceito de


segurança nacional, que tem um sentido estrito dentro da nossa Constituição, lei
de garantia, de distribuição de direitos e competências, que, portanto, firma um
sistema de freios e contrapesos.
Se considerarmos a segurança nacional no seu sentido mais amplo, dentro
dessa discricionariedade de que aqui se falou, não haverá mais garantia nem para
os direitos individuais, nem para os direitos sociais, nem para os direitos políticos.
Acho mesmo que a Constituição distingue, nos seus termos, o que é ordem pública,
o que é questão política, o que é ordem social, o que é ordem econômica, o que é
direito individual. E, quando ela se refere à segurança nacional, está se referindo
à manutenção da integridade política do povo, como Estado, e é por isso que ela
ouve o Conselho de Segurança Nacional, como base às suas decisões a respeito,
bem como as Forças Armadas.
Ora, o problema que se está discutindo não é um problema dessa ordem. É
um problema de ordem constitucional que se refere às garantias de ordem civil,
que não são, portanto, abrangidas pelo conceito de segurança nacional.
Tive oportunidade, há mais de dez anos, de fazer uma conferência na
Associação Comercial de São Paulo sobre o conceito de segurança nacional, em
que mostrava justamente o perigo do conceito que se alastrava nos Estados
Unidos, onde se dizia que o conceito de segurança nacional se dilatava até ao
Vietnam. Eu chamava a atenção dos ouvintes e propugnava para que a Constitui-
ção, num sistema da limitação de poderes, definisse o que fosse segurança nacio-
nal, e que os tribunais, como órgãos da Justiça e intérpretes da Constituição,
assegurassem as liberdades públicas em frente a todos os princípios, impedindo
que se transformasse a discricionariedade dos poderes públicos em ditadura, por-
que a ditadura é o poder de ditar leis!
Concluindo, Sr. Presidente, declaro inaplicável o art. 5º do Decreto-Lei 322.

VOTO
O Sr. Ministro Lafaytte de Andrada: Sr. Presidente, acompanho o douto e
brilhante voto do eminente Ministro Relator, conhecendo do recurso e lhe dando
provimento.
Dou pela inconstitucionalidade do art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7-4-67.
Como muito bem expôs o eminente Ministro Aliomar Baleeiro e bem explanou o
eminente Ministro Victor Nunes no correr do debate, ao Supremo Tribunal cabe,
dentro da sua competência de apreciar as leis em face da Constituição, declarar
a inconstitucionalidade de tais leis ou de decretos-leis. E, se o art. 58 citado não
define o que seja matéria de segurança nacional, não poderemos concluir que o
conceito tão grave e relevante dessa matéria possa ficar ao arbítrio exclusivo dos
órgãos políticos.
É esse o meu voto, de acordo com o eminente Ministro Relator.

536
Ministro Victor Nunes

VOTO
O Sr. Ministro Luiz Gallotti (Presidente): Vou recordar o julgamento que
houve aqui, em que os eminentes Ministros Evandro Lins, Gonçalves de Oliveira,
Ribeiro da Costa e eu fomos votos vencidos. O eminente Ministro Victor Nunes
achava-se na Inglaterra.
Entendemos que não podia um decreto-lei dispor sobre crimes contra a
economia popular, porque não nos parecia que fossem delitos contra a segurança
nacional. Tratava-se de infração a tabelamento de preços, e eu não via como se
pudesse considerar tais crimes como cometidos contra a segurança nacional.
Ouvi com a maior atenção e com o respeito de sempre o voto do eminente
Ministro Hermes Lima, mas, data venia de S. Exa., desta vez não me convenci.
Entendo que, quando a Constituição usa a expressão “segurança nacional”, refe-
re-se a um conceito fixado, estabelecido na doutrina. É o que acontece também
com “imposto”, “taxa”, “crime político”, “anistia”, etc., como já tenho argumen-
tado em outros casos. Se ao legislador ordinário fosse livre subverter esses con-
ceitos que a Constituição teve em mira, ruiria todo o sistema constitucional. O
Congresso, em lei ordinária, não pode alterar o conceito de segurança nacional.
Se pudesse, estaria modificando a própria Constituição, que dispôs levando em
conta tal conceito, e, obviamente, para ser respeitado.
Entendido amplamente, isto é, que o Congresso, sem limites, pode alargar
o conceito de segurança nacional, então, poderia haver decretos-leis sobre tudo,
porque, remotamente, toda a ordem jurídica interessa à segurança nacional, e a
limitação constitucional da competência do Executivo para baixar decretos-leis
praticamente desapareceria.
A Constituição permite que se legisle por decretos-leis com aprovação a
posteriori pelo Congresso, tácita ou expressa, apenas em se tratando das duas
matérias que ela, taxativamente, indica no art. 58: segurança nacional e finanças
públicas. Se a matéria não for uma dessas duas, a Constituição não quer que se
legisle por essa forma, e o Congresso não pode dizer o contrário, nem por lei e,
menos ainda, pelo silêncio.
Esse é, em síntese, o meu pensamento. Também considero inconstitucional o
art. 5º do Decreto-Lei 322.

DECISÃO
RE 62.731/GB. Matéria Constitucional. Art. 24, inc. III, do Regimento
Interno. Relator: O Sr. Ministro Aliomar Baleeiro. Recorrente: José do Couto
Moreira (Advogado: Celso Augusto Fontenelle). Recorrido: Manoel Gonçalves
de Carvalho (Advogado: Nelson França da Silva). Foi julgado inconstitucional o

537
Memória Jurisprudencial

art. 5º do Decreto-Lei 322, de 7 de abril de 1967, pelos votos dos Ministros:


Relator, Raphael de Barros Monteiro, Adaucto Cardoso, Djaci Falcão, Eloy da
Rocha, Evandro Lins, Victor Nunes, Gonçalves de Oliveira, Candido Motta,
Lafayette de Andrada e o Presidente, Luiz Gallotti. Votou pela constitucionali-
dade o Ministro Hermes Lima. Contra o voto deste Ministro, foi o recurso conhe-
cido e provido, votando também pelo conhecimento e pelo provimento os Ministros
Prado Kelly e Adalicio Nogueira, que não se pronunciaram sobre a matéria consti-
tucional por entenderem desnecessário. Falou o Procurador-Geral da República,
Professor Haroldo Valadão.
Presidência do Ministro Luiz Gallotti. Presentes os Ministros Lafayette de
Andrada, Candido Motta, Gonçalves de Oliveira, Victor Nunes, Hermes Lima,
Evandro Lins, Adalicio Nogueira, Prado Kelly, Aliomar Baleeiro, Eloy da Rocha,
Djaci Falcão, Adaucto Cardoso e Raphael de Barros Monteiro. Procurador-Geral
da República, Professor Haroldo Valadão. Licenciados, os Ministros Hahnemann
Guimarães e Oswaldo Trigueiro.
Tribunal Pleno, 23 de agosto de 1967 — Álvaro Ferreira do Santos, Vice-
Diretor-Geral.

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Ministro Victor Nunes

ÍNDICE NUMÉRICO
IP 2 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Djaci Falcão ................................ 237
Ext 232 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 239
Ext 272 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258
Ext 273 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258
Ext 274 Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258
ROE 366 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 330
Rp 477 (voto) Rel.: Min. Luiz Gallotti .............................................. 335
Rp 753 (voto) Rel.: Min. Djaci Falcão ............................................. 346
MS 8.651 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Ary Franco .................................. 354
MS 8.693 (voto) Rel.: Min. Ribeiro da Costa ...................................... 358
MS 8.802 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 377
RMS 9.558 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 381
RMS 11.687 (voto) Rel.: Min. Hahnemann Guimarães .......................... 392
RMS 14.230 Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491
MS 15.186 (voto) Rel.: Min. Evandro Lins ............................................ 408
RMS 15.207 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 502
MS 15.886 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 414
MS 16.512 (voto) Rel.: Min. Oswaldo Trigueiro .................................... 423
RMS 16.912 (voto) Rel.: Min. Djaci Falcão ............................................. 426
MS 17.957 (voto) Rel.: Min. Aliomar Baleeiro ...................................... 449
MS 18.973 (voto) Rel.: Min. Themistocles Cavalcanti .......................... 454
AI 32.869 Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491
HC 40.382 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 456
HC 40.398 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 469
HC 40.400 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 475
HC 41.296 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 476
HC 44.074 (voto) Rel.: Min. Victor Nunes ............................................ 258
RE 54.190 (voto) Rel. p/ o ac.: Min. Evandro Lins ............................... 484
RE 56.880 (voto) Rel.: Min. Gonçalves de Oliveira .............................. 491
RE 58.505 (voto) Rel.: Min. Pedro Chaves .......................................... 502
RE 62.731 (voto) Rel.: Min. Aliomar Baleeiro.....................................509

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