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Características do gênero lírico

• Eu lírico

Como uma das principais características do gênero lírico é a manifestação da subjetividade, ou


seja, a manifestação de aspectos ligados à interioridade de um sujeito, dá-se o nome de eu lírico à voz
que se expressa no poema. No entanto, há que se atentar para o fato de que o eu lírico não
necessariamente corresponde à voz do poeta, afinal, ele pode materializar em seu poema um eu lírico
distinto de seu eu biográfico.
O poeta português  Fernando Pessoa, por exemplo, tornou-se famoso pelos heterônimos que
criou, o que fez com que sua obra expressasse vozes poéticas distintas de sua personalidade. Assim, é
possível que um poeta com uma identidade masculina crie em seu poema um eu lírico com identidade
feminina, ou vice e versa, bem como um poeta adulto pode expressar a voz poética de uma criança ou a
de um ser inanimado. Além disso, há poemas em que o poeta tenta ao máximo apagar qualquer
marca subjetiva. Observe os exemplos:
O relógio

Ao redor da vida do homem


há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.

Se são jaulas não é certo;


mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.

Umas vezes, tais gaiolas


vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.

Mas onde esteja: a gaiola


será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;

e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade.

NETO, João Cabral de Melo. Obra completa. São Paulo: Ediouro, 2003.

Nesse poema de João Cabral de Melo Neto, observa-se uma tentativa de apagamento


do eu lírico, já que não se evidencia marcas de subjetividade ao longo de seus versos e de suas
estrofes. O predomínio da descrição do objeto relógio, comparado a jaulas e a gaiolas,
contribui para que ele seja o centro da expressão poética, não sobrando espaço que as
impressões subjetivas humanas sejam manifestadas.
Poema 2

Porquinho-da-índia

Quando eu tinha seis anos


Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!

Levava ele pra sala


Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas…

— O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.”

BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa. São Paulo: Nova Aguilar, 1977.

Nesse poema de Manuel Bandeira, observa-se o eu lírico como uma voz


masculina que rememora o amor que tinha por seu pequeno bicho de estimação: um
porquinho-da-índia. Os verbos na primeira pessoa do discurso e os pronomes “eu”,
“meu” e “minha” evidenciam um eu lírico bem marcado subjetivamente.
Poema 3

Diálogo de peixes

nara tem um aquário


redondo no centro da mesa
em vez de uma fruteira
ou um abajur
nara gosta de assistir
à conversa dos peixes.
outro dia reclamavam
do calor e nara
foi para o chuveiro
se refrescar de madrugada
é um péssimo hábito
o peixe vermelho disse
dormir de cabelos molhados

SANT’ANNA, Alice. Dobradura. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.

Nesse poema de Alice Sant’Anna, tem-se um eu lírico em terceira pessoa,


espécie de narrador, que vai descrevendo aspectos da rotina de uma mulher
chamada Nara. O inusitado acontece quando essa voz poética atribui o domínio
da fala ao peixe, o qual se manifesta subjetivamente ao tecer uma crítica ao fato de
sua dona dormir com o cabelo molhado. Esse estilo de poema em que o eu
lírico desprende-se de sua concepção tradicional tem-se tornado uma constante
nas produções poéticas contemporâneas.

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