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DEMARCAÇÃO HISTÓRICO-LEGAL

DO ESTUPRO VIRTUAL NO BRASIL


Renata Mendonça Morais Barbosa
William Timóteo
Yokanaã Ferreira Júnior

INTRODUÇÃO

O século XX fora marcado pelo evidente desenvolvimento tecno-


lógico, com destaque para a obstinada corrida espacial. Nesse ínterim,
o homem tornou-se o primeiro ser dotado do poder de autodestruir-
-se, isto é, o único capaz de causar a própria extinção.
Ademais, os meios de comunicação evoluíram de tal maneira que
transformaram o planeta em uma ilha; é a era da informação quem
toma o espaço. Nesse cenário, o uso da internet expande-se exponen-
cialmente, favorecendo o fenômeno da globalização e impactando, so-
bretudo, as relações sociais.
A incontroversa alteração das relações sociais, por sua vez, deman-
da uma constante adequação do arcabouço legal da sociedade ao avanço
tecnológico, fato para o qual os legisladores devem manter incessante
atenção, com vistas a se evitar imbróglios na interpretação da legislação
vigente e, por conseguinte, de se prolatar decisões teratológicas, garan-
tindo-se a segurança jurídica da nação.
Deste modo, o objetivo deste estudo é a adequação da lei à
constante evolução tecnológica. Em decorrência da vasta dimensão de
tal tema, delimita-se o objeto ao chamado crime de estupro virtual no
Brasil, tomando-se como base a decisão, publicada a 04/08/2017 no

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diário da justiça eletrônico, proferida pelo Juízo de Direito da Central


de Inquéritos da Comarca de Teresina, Estado do Piauí, cujo teor ge-
rou polêmica, além de um evidente divisor entre os juristas brasileiros
– de um lado, aqueles que concordam com a fundamentação legal da
decisão; de outro, os que discordam, defensores do corolário da estrita
legalidade.
Ora, há, no ordenamento jurídico brasileiro, previsão para o cri-
me de estupro virtual? A resposta consiste na conclusão deste trabalho.
Soluciona-se essa indagação com fundamento na análise da literatura
que versa acerca da formação e manifestação do direito, bem como
da hermenêutica jurídica. Além disso, anota-se a demarcação histórica
do crime de estupro no ordenamento brasileiro; em seguida, concei-
tuam-se os crimes virtuais e, alfim, discute-se a problemática alusiva
ao enquadramento do crime na legislação penal do Brasil, a partir da
análise do caso piauiense, considerado o primeiro caso brasileiro em
que fora decretada a prisão temporária de um acusado pelo crime de
estupro virtual.

1 GÊNESE DO DIREITO: FORMAÇÃO E


MANIFESTAÇÃO

Discorre-se aqui, muito brevemente, acerca do processo de for-


mação e de manifestação do direito, com o escopo de alicerçar o pro-
cedimento desenvolvido pela hermenêutica jurídica, que será discutido
adiante e constituem-se tão somente em afluentes que desembocarão
na conclusão deste trabalho.
Sabe-se que o fato, o valor e a norma, conjuntamente, são os ele-
mentos que constituem o direito. Ora, o direito exsurge do processo
de consagração dos valores, perpetrado na disposição dos fatos; o que é
senão a axiologia dos fatos a fonte primeva do direito? A esse respeito,
discorre Betioli (2008, p. 101):

[...] O positivismo jurídico simplifica o problema, ao afirmar


dogmaticamente que o Estado é a única fonte do direito, o qual
fica reduzido a uma série de ordens elaboradas ou aprovadas
pelos órgãos do Poder Público. Na realidade, a questão é bem

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mais complexa, devendo-se, do início, distinguir dois momen-


tos fundamentais na gênese do direito: o da sua “formação” e o
da sua “manifestação”.

Saliente-se, oportunamente, que os fatores sociais e de valores im-


plicam diretamente na formação de conteúdo das normas, porquanto
constituem os elementos que determinam a criação do direito, ao passo
em que delimitam as decisões no ato de edição das normas jurídicas.
Contudo, ainda não são o direito, e sim a sua precedência.
Nesse viés, Betioli (2008) assevera estarem os fatores sociais repre-
sentados diretamente pelo conjunto de fatores econômicos, religiosos,
políticos, morais e naturais. Contudo, tais fatores não consistem nos
únicos elementos que determinam o direito; os elementos axiológicos
o fazem no mesmo grau de influência.
Isso porque o direito é criado para realizar valores – e. g., valor
de justiça, valor da propriedade privada, valor da intimidade, valor do
casamento, valor da paz, valor da segurança etc. Cria-se o direito para
consagrar a justiça, protegendo a propriedade privada, a intimidade, o
casamento, a paz, a segurança. Desta feita, incontroverso queda-se o
poder dos valores na formação do conteúdo das normas jurídicas de
cada povo.
Após a sua formação, o direito manifesta-se na vida social por
meio dos costumes jurídicos, da legislação, dos negócios jurídicos, da
jurisprudência e suas fontes sacramentadas. Nesse sentido, entende-se
fontes do direito como sendo os meios de expressão do direito na vida
social (BETIOLI, 2008). Reale (1994), por sua vez, assevera ser tão
somente a fonte formal a vereda de onde exsurgem as normas jurídicas.
A fonte formal da legislação, que integra o direito penal, divide-se
em fonte formal imediata – lei penal decorrente do poder legislativo
– e fonte formal mediata – decorrente dos costumes e dos princípios
gerias de direito.
Betioli (2008) prossegue delimitando as quatro fontes do direito,
a saber: a) o processo legislativo, ou seja, aquele conjunto de fases esta-
belecidas na Constituição Federal e que dão origem a normas jurídicas
de ordem legal. É a expressão do Poder Legislativo; b) o costume ju-
rídico, isto é, a repetição habitual de um comportamento com a con-

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vicção da sua obrigatoriedade; c) a jurisdição, ou melhor, o exercício


pelos magistrados do seu poder legal de conhecer e julgar os litígios.
Corresponde ao Poder Judiciário; d) o negócio jurídico, ou seja, a ma-
nifestação da vontade que, instaurando uma relação entre dois ou mais
sujeitos, busca produzir determinado efeito jurídico protegido pelo di-
reito. É a expressão do poder negocial como uma das exteriorizações
da autonomia da vontade.
Portanto, o direito decorre de uma miríade de elementos sociais e
de valores, analisados pela sociologia e pela filosofia. Todavia, expres-
sa-se como ordenação por meio dos aludidos modos de expressão ou
fontes, de onde exsurgem as normas jurídicas – legal, consuetudinária,
jurisdicional e negocial –, os limites de interpretação do aplicador da lei.

2 A HERMENÊUTICA JURÍDICA COMO MECANISMO


DE EFETIVAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO VIRTUAL

Importante também se faz discorrer acerca da interpretação dada


à legislação que integra um determinado ordenamento jurídico, com
vistas a consolidar as fronteiras do artigo 213, insculpido no vigente
Código Penal brasileiro para, conseguintemente, verificar se, de fato, o
crime de estupro virtual integra a legislação do Brasil.
No campo jurídico, o termo hermenêutica é utilizado no sentido
de interpretação da norma. Alguns doutrinadores, entretanto, utili-
zam-no em sentido mais abrangente, circundando a interpretação, a
integração e a aplicação do direito; eis a razão de se definir a herme-
nêutica jurídica como sendo a teoria científica da arte de interpretar,
integrar e aplicar o direito. É assim que, se o direito existe, existe para
ser aplicado. Antes, entretanto, é preciso interpretá-lo; só aplica bem o
direito quem o interpreta bem (BETIOLI, 2008).
Por outro lado, como a lei pode apresentar lacunas, é necessário
preencher tais vazios, a fim de que se possa dar sempre uma resposta
jurídica, favorável ou contrária, a quem se encontra ao desamparo de lei
expressa. Esse processo de preenchimento das lacunas legais chama-se
integração do direito.
Assim sendo, para assegura a eficaz aplicação do direito, é preciso
compreender que: a) revelar o seu sentido não significa somente co-

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nhecer o significado das palavras, mas sobretudo descobrir a finalidade


da norma; b) Fixar o seu alcance significa delimitar o seu campo de
incidência. É conhecer sobre que fatos sociais e em que circunstâncias
a norma jurídica tem aplicação; c) a norma jurídica é indicada como
gênero, uma vez que não são apenas as leis que precisam ser interpreta-
das, posto que há normas legais, jurisdicionais, costumeiras e negociais
(BETIOLI, 2008).
Há quem afirme prescindir de interpretação as normas jurídicas
“claras”. Em verdade, o intérprete não se debruça apenas sobre as nor-
mas obscuras, porquanto a interpretação se faz necessária sempre, quer
seja obscuro, quer seja claro o seu teor. Ora, a palavra “clareza” possui
um sentido sobremaneira relativo e subjetivo, de modo que o é claro
para alguns pode ser tido como obscuro para outros.
Quer seja maior, quer seja menor o esforço empregado, sempre
haverá interpretação da norma a ser aplicada, que pode ser (i) literal,
quando toma como ponto de partida o exame do significado e alcan-
ce de cada uma das palavras da norma jurídica; (ii) lógico-sistemática,
quando busca compreendê-la como parte integrante de um todo, em
conexão com as demais normas jurídicas que com ela se articulam lo-
gicamente; (iii) histórica, quando indaga das condições de meio e mo-
mento da elaboração da norma jurídica, bem como das causas pretéri-
tas da solução dada pelo legislador; ou (iv) teleológica, quando busca o
fim que a norma jurídica tenciona servir ou tutelar (BETIOLI, 2008).
Quanto aos efeitos, a interpretação das normas jurídicas pode ser
extensiva, restritiva, declarativa ou estrita. A extensiva ocorre quando
o teor literal da lei é demasiado estrito e, com fundamento na sua ima-
nente teleologia, alarga-se o seu campo de aplicação a casos literalmen-
te não abrangidos. A restritiva verifica-se quando o intérprete restringe
o sentido da norma ou limita sua incidência, concluindo que o legisla-
dor escreveu mais do que realmente pretendia dizer. A declarativa, por
sua vez, ocorre quando se limita a declarar ou especificar o pensamento
expresso na norma jurídica, sem ter necessidade de estendê-la a casos
não previstos ou restringi-la mediante a exclusão de casos inadmissí-
veis. A estrita, a seu turno, confunde-se com a declarativa. Nela, as
normas aplicam-se no sentido exato; não se dilatam, nem restringem
os seus termos (BETIOLI, 2008).

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Diante disso, inexistindo de forma expressa no texto legal qual-


quer previsão quanto à prática do crime de estupro em ambiente vir-
tual, tem-se que a hermenêutica jurídica desempenhou papal funda-
mental no processo de enquadramento no artigo 213 do Código Penal,
considerando que a conduta perpetrada pelo agente ativo se encaixaria
perfeitamente naquelas descritas no dispositivo.
Isso porque, embora não houvesse conjunção carnal, por meio
da internet e mediante grave constrangimento, a vítima foi obrigada
a satisfazer a lascívia de outrem, motivo pelo levou o aplicador da lei a
debruçar-se sobre uma interpretação lato sensu da lei, partindo de uma
análise fática-probatória capaz de classificar corretamente a conduta do
agente ativo ao respectivo tipo penal.
Vislumbra-se, desta feita, a relevância do trabalho do intérprete da
lei, o qual, com fundamento na origem, nos efeitos e na natureza da nor-
ma jurídica, aplica-lhes o direito. Com efeito, os aplicadores do direito
não podem se enclausurar na rígida ciência perceptiva, mas devem se
valer das demais ciências – Economia, Política, Sociologia, Psicologia –,
com vistas a consubstanciar, efetivamente, as decisões por estes exaradas.
Eis o imprescindível papel da hermenêutica jurídica – reverberar a evo-
lução das ideias sobre o homem e a sua função no mundo.

3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CRIME DE ESTUPRO


NA LEGISLAÇÃO PENAL BRASILEIRA

Aborda-se a evolução histórica do crime de estupro na legislação


penal brasileira, com o escopo de entender a adequação da tipificação
penal ocorrida no transcurso do tempo, decorrente, sobretudo, da al-
teração ocorrida nas relações sociais.
O teor insculpido na Constituição Brasileira de 1824 ordenava a
elaboração de uma novel legislação penal, com vistas a superar as nor-
mas de caráter medieval. Em decorrência disso, a 1830, fora sancionado
o Código Criminal do Império do Brasil, de viés liberal, cujas normas
fixavam a individualização da pena, previam agravantes e atenuantes,
estabeleciam julgamento especial voltado aos cidadãos menores de 14
(quatorze) anos e ordenavam a pena de morte aos escravos que come-
tessem crimes, a ser executada por meio da forca.

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O Código previa ainda o crime de estupro cometido contra mu-


lher honesta, aplicando ao agente ativo a pena de prisão somada ao
pagamento de um dote à vítima. Em sendo a vítima uma prostituta, a
pena de prisão, que era de 03 (três) a 12 (doze) anos, reduzia-se de 01
(um) mês a 02 (dois) anos. Nesses casos, ao infrator que se casasse com
a vítima, não se aplicava a pena.
Em verdade, o crime de estupro fora denominado tão somente no
Código Penal de 1890, que o tipificou como sendo o ato pelo qual o
homem abusa com violência de uma mulher honesta, quer fosse vir-
gem, quer não. A pena cominada variava de 01 (um) a 06 (seis) anos de
prisão. Por outro lado, se o crime fosse praticado contra mulher pública
ou prostituta, a pena variava de 06 (seis) meses a 02 (dois) anos.
Com o advento do Código Penal Brasileiro de 1940, o crime de
estupro passou a ser tipificado como sendo o ato praticado por homem
contra mulher, no sentido de constrangê-la à conjunção carnal, me-
diante violência ou grave ameaça. Nesse caso, a pena cominada contra
o infrator variava de 03 (três) a 08 (oito) anos de reclusão. Com isso, a
legislação penal excluiu da tipificação do crime do estupro o fato de a
mulher ser honesta, como previa o código anterior.
Por fim, a partir da sanção da Lei nº 12.015, de 07 de agosto de
2009, os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor foram uni-
ficados, abrangendo homens e mulheres como possíveis sujeitos ativos
e sujeitos passivos do delito. Delmanto (2016, p. 1120-1121) discorre
acerca da aludida unificação, nos seguintes termos:

[...] Optou o legislador por revogar expressamente o art. 214,


que punia o atentado violento ao pudor, colocando neste novo
art. 213, sob a rubrica estupro, as duas figuras: a conjunção
carnal e o ato libidinoso diverso dela. [...] O estupro, em suas
formas simples e qualificadas (art. 213, caput e §§ 1º e 2º), con-
tinua a ser crime hediondo [...]. Objeto jurídico: A liberda-
de sexual do ser humano (homem ou mulher). Sujeito ativo:
Tanto o homem quanto a mulher. Saliente-se, no que tange à
conjunção carnal, que a mulher pode ser coautora ou partícipe
de um homem. Sujeito passivo: Igualmente o homem ou a mu-
lher, pois a lei fala em constranger alguém.

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Da análise da alteração da tipologia do crime no ordenamento


penal brasileiro, depreende-se a constante abrangência da redação da
norma jurídica – hodiernamente, homens e mulheres podem ser tanto
sujeitos passivos como sujeitos ativos, o que não ocorria, por exemplo,
no período do Brasil colonial, quando tão somente mulheres honestas
poderiam ser vítimas.
Deveras, o direito deve, continuamente, acompanhar a evolução
das relações sociais, a fim de evitar tornar-se obsoleto, fato para o qual
os legisladores devem manter incessante atenção.

4 CRIMES DIGITAIS - CONCEITO

A internet constitui um eficaz meio de transmissão de dados e


de comunicação. Tanto é que a Organização das Nações Unidas a
considerou um direito humano básico, porquanto é por meio dela
que se tem acesso ao conhecimento e a pessoas de diversas partes do
planeta, além de ser um efetivo instrumento de trabalho nos ambien-
tes corporativos.
Em verdade, o avanço da informática revolucionou o convívio
em sociedade, em conjunto com as mudanças econômicas e sociais.
Contudo, tipos novos de criminalidade também exsurgiram dessa
revolução:

A expressão “crimes digitais”, perante a doutrina, é comumen-


te associada a “crimes virtuais”, “da era da informação”, “de
internet”, “tecnológicos”, “informáticos”, “e-crimes”, “ciber-
crimes”, entre outros, sendo todos sinônimos para crimes nos
quais um ou mais computadores são utilizados como ferramen-
ta, base de ataque ou meio de cometer um delito. Os primeiros
casos de crimes informáticos datam da década de 1960, quando
os infratores utilizavam-se de computadores e sistemas de ter-
ceiros para manipular, sabotar, espionar ou exercer uso abusivo
destes aparelhos. (SANTOS, 2014, p. 10).

Para fins didáticos, os crimes informáticos classificam-se em vir-


tuais puros – ilícito praticado contra hardware e/ou software de um com-

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putador –, mistos – perpetrados por meio da internet – e comuns –


perpetrado por meio da internet, com tipo penal que se enquadra em
norma insculpida no vigente Código Penal brasileiro.
Damásio (2003), a seu turno, classifica os crimes digitais em puros
ou próprios e impuros ou impróprios. Segundo ele, crimes eletrônicos
puros ou próprios são aqueles que sejam praticados por computador
e se realizem ou se consumem também em meio eletrônico. Neles,
a informática (segurança dos sistemas, titularidade das informações e
integridade dos dados, da máquina e periféricos) é o objeto jurídico
tutelado. Já os crimes eletrônicos impuros ou impróprios são aqueles
em que o agente se vale do computador como meio para produzir re-
sultado naturalístico, que ofenda o mundo físico ou o espaço “real”,
ameaçando ou lesando outros bens, não-computacionais ou diversas
da informática.
Rosa (2007) conceitua crime de informática como sendo a
conduta típica, ilícita e culpável, praticada sempre com a utilização
de dispositivos de sistemas de processamento ou comunicação de
dados, da qual poderá ou não suceder a obtenção de uma vantagem
indevida e ilícita. Para Roque (2007, p. 25), por sua vez, é “toda
conduta, definida em lei como crime, em que o computador tiver
sido utilizado como instrumento de sua perpetração ou consistir em
seu objeto material”.
Consigne-se, por oportuno, a manifesta inexistência de contato
físico entre o infrator e a vítima dos crimes digitais, o que possibilita
o anonimato. O ambiente onde esse tipo de crime se perpetra é ima-
terial, sem território, sem governo, tampouco povo. Logo, inexistem
padrões para o cometimento dos crimes eletrônicos, os quais podem
ser perpetrados por qualquer pessoa imputável contra qualquer outra,
imputável ou não. De qualquer modo, o sujeito passivo dos ‘crimes de
informática’ pode ser qualquer pessoa, física ou jurídica, de natureza
pública ou privada (ROSA, 2007).
Portanto, até mesmo o crime de estupro é passível de cometimento
no ambiente virtual, malgrado inexistir, na legislação penal brasileira,
previsão expressa de tal delito. Tal enquadramento tornou-se possível a
partir da vigência da Lei nº 12.015, de 07 de agosto de 2009, cujo teor
ampliou a abrangência do aludido delito.

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5 A CELEUMA DA TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE


ESTUPRO VIRTUAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA -
UMA ANÁLISE SOBRE O CASO PIAUIENSE

A vigência da Lei nº 12.015/2009, cujo teor alterou a redação do


artigo 213 do Código Penal, ampliou sobremaneira a extensão e a apli-
cação do crime de estupro, além de unificar os delitos de estupro e
de atentado violento ao pudor, que passou a vigorar com a seguinte
redação:

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave


ameaça a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que
com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou


se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze)
anos:

Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§ 2º Se da conduta resulta morte:

Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

Desta feita, a partir da supressão da liberdade de escolha da vítima,


o infrator a obriga a ter conjunção carnal e/ou a praticar ou permitir
que com o infrator se pratique outro tipo de ato libidinoso. Com isso, a
partir da nova redação dada ao artigo 213 do Código Penal, tornou-se
desnecessário o contato físico entre o agente ativo e a vítima.
Ora, o que a referida norma penal tutela é o direito à liberdade
sexual da pessoa de dispor do próprio corpo nas relações sexuais. Tal
interpretação não se esbarra no princípio da taxatividade, pois o tipo
penal engloba todo tipo de ato libidinoso direcionado à vontade sexual
do infrator.
De acordo com o princípio da taxatividade, a lei penal deve con-
ter, obrigatoriamente, em seus tipos, termos delimitados, precisos e
claros, a fim de se evitar interpretação extensiva e incertezas quanto à

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sua abrangência e aplicação. Desse modo, a lei que delimita um crime


deve taxar, com exatidão, a conduta que será punida, pois não há crime
nem pena sem lei certa. Em razão disso, são inaceitáveis leis vagas ou
imprecisas, cujo teor não delimite o comportamento que se pretende
incriminar (DELMANTO, 2016).
Com fundamento na vigente redação do artigo 213, o Juízo
Piauiense concordou com a representação do delegado competente
para decretar a prisão temporária de um acusado pela perpetração do
crime de estupro virtual. Tal decisão126 constitui o primeiro precedente
no Brasil.
No caso supracitado, havia 05 (cinco) anos que a vítima termi-
nara o relacionamento com o autor. Contudo, segundo consta dos
fatos, este não teria superado o término do namoro. Por isso, o acu-
sado criou uma conta na rede social facebook, com um perfil falso e
anônimo, para contatá-la, por meio da qual a ameaçou a divulgar
fotos antigas, nas quais o corpo da vítima aparecia nu. Além de exigir
novas fotos de nudez da vítima, o autor obrigou-a a enviar-lhe fotos
em que esta se masturbava e inseria os dedos e alguns objetos na có-
pula vaginal. O agravamento da situação motivou a vítima a procurar
as autoridades policiais.
Em razão de inexistir, expressamente, previsão legal para o crime
de estupro virtual na legislação do Brasil, a mencionada decisão cau-
sou celeuma dentre os juristas brasileiros – de um lado, os defensores
do corolário da legalidade ressaltaram o suposto erro de interpretação
cometido pelo aplicador do direito, afirmando inexistir previsão legal
para tanto; doutro lado, os defensores da dignidade sexual corrobora-

126 [...] Embora no caso não haja contato físico entre ela e o(s) agente, a vítima foi
constrangida a praticar o ato libidinoso em si mesma [...]. Nessa situação, a doutrina
classifica como autoria mediata ou indireta, pois a ofendida, mediante coação moral ir-
resistível, é obrigada a realizar o ato executório com longa manus do agente. [...] Quanto
a materialidade do crime, está devidamente comprovada nos autos através dos prints
das conversas colacionadas, onde a vítima se submetendo as ameaças, enviou diversas
fotografias ao acusado [...]. Nesse caso, tem-se a investigação de um crime de estupro,
praticado pela internet, havendo a necessidade de se buscar e apreender equipamen-
tos eletrônicos, tais como notebook, CPU, HD’s externos e similares, câmeras digitais,
aparelhos celulares, bem como CD’s, DVD’s, fotos para assim melhor instruir o procedi-
mento criminal. (BRASIL, 2017).

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ram a fundamentação do magistrado, preconizando o enquadramento


do crime de estupro virtual no artigo 213 do vigente Código Penal, já
que a conduta do agente ativo se encaixaria no conceito de ato libidi-
noso, praticado com grave ameaça.
Segundo o princípio da legalidade, não há crime, tampouco pena,
sem lei anterior que os defina. Com base nisso, os defensores da le-
galidade pontificam a errônea abertura do tipo penal estupro, a par-
tir da interpretação da expressão “outro ato libidinoso”. Para eles, a
ausência de definição de “outro ato libidinoso” permite a aplicação
desproporcional da pena privativa de liberdade em ações distintas entre
si – um sujeito que comete um estupro com violenta conjunção car-
nal, mediante constrangimento, não deveria receber pena semelhante
a do agente ativo que, por meio da internet, sem contato físico com a
vítima, constrange outrem a se masturbar, satisfazendo a própria las-
cívia. Por esta vereda adentra o entendimento de Delmanto (2016),
cuja doutrina critica a inexistência de separação das modalidades de ato
libidinoso na redação do artigo 213.
Em verdade, o aplicador da lei deve se debruçar sobre a tarefa da
interpretação da lei, a partir da análise detida do acervo fático-proba-
tório acostado aos autos do processo, com vistas a classificar correta-
mente a conduta do agente ativo ao respectivo tipo penal, mormente
nos casos em que a autoria do crime esteja relacionada a atos libidino-
sos, considerando que o crime de estupro é considerado hediondo, do
modo como prevê o teor insculpido no artigo 1º, inciso V, da Lei nº
8.072, de 25 de julho de 1.990, o que o torna inafiançável, portanto.
Eis a relevância da hermenêutica jurídica.
No caso piauiense, que ora se discute, a atividade de interpretação
da lei fora desenvolvida, com eficácia, pelo magistrado que decretou a
prisão temporária do acusado, muito embora inexistisse, no ordena-
mento jurídico pátrio, previsão legal para o crime de estupro virtual.
Ao analisar os autos, vislumbra-se que o intuito do acusado era
satisfazer a própria lascívia. Ressalta-se que, para obter as novas fotos,
ele ameaçava expor, na internet, fotos antigas nas quais a vítima exibia
partes íntimas do corpo. Logo, depreende-se que o autor utilizou o
ambiente virtual para praticar a conduta tipificada na legislação penal,
o que caracteriza o cometimento do crime de estupro.

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No julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº


70.976-MS127, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) corroborou a pos-
sibilidade de se cometer o crime de estupro sem que haja contato físico
entre o autor e a vítima.
Desta feita, ainda que parte dos juristas brasileiros entenda ser tera-
tológica a decisão exarada pelo magistrado piauiense, a partir da análise
do acervo fático-probatório acostado aos autos do respectivo processo,
assevera-se estar em consonância com a base legal utilizada e com o en-
tendimento jurisprudencial consolidado pelo STJ, muito embora ine-
xistisse, no ordenamento jurídico pátrio, previsão legal expressa para o
tipo penal de crime de estupro virtual.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do desenvolvimento do presente trabalho, vislumbra-se


a incontroversa relevância das fontes do direito para o intérprete e apli-
cador da lei – a legislação, a jurisprudência, os negócios jurídicos e os
costumes jurídicos. Em verdade, são as fontes do direito que demarcam
os limites de atuação e de interpretação do aplicador da lei.
Das fontes do direito emergiu a primeira decisão judicial que reco-
nheceu o cometimento do crime de estupro virtual no Brasil. Por meio
dela, o competente magistrado decretou a prisão temporária de um acu-
sado pelo crime de estupro, com fundamento no artigo 213 do Código
Penal Brasileiro, sem que houvesse contato físico com a vítima no pro-
cesso de execução do delito. Tal decisão repercutiu em todo território
brasileiro, causando celeuma e controvérsias no ambiente jurídico.

127 DIREITO PENAL. DESNECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DE AÇÃO


PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL. A conduta de contemplar lascivamente,
sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode per-
mitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. A
maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva
configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do CP, sendo irrele-
vante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido.
[...] Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A
maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões
físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima,
constitui matéria afeta à dosimetria da pena (BRASIL, 2016).

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D I R E I TO : PA S S A D O, P R E S E N T E E F U T U R O ( V O L . 1 )

Segundo os defensores do princípio da legalidade, além de inexistir


previsão legal para o crime de estupro virtual, o delito de estupro somen-
te é passível de ser cometido por meio de contato físico do autor com a
vítima. Ademais, críticas extensivas foram disparadas contra a decisão,
baseadas na desproporcionalidade de aplicação da pena decorrente da
unificação do crime de estupro com o antigo crime de atentado violento
ao pudor, o que fora efetivado a partir da vigência da Lei nº 12.015. A
fim de se evitar tal desproporcionalidade, o aplicador do direito deverá
valer-se dos ensinamentos da hermenêutica jurídica, pautado no acervo
fático-probatório carreado nos autos do respectivo processo.
Com efeito, a unificação do crime de estupro ao antigo crime de
atentado violento ao pudor fora uma medida legislativa equivocada,
pois o crime de estupro é considerado hediondo e, por isso, inafiançá-
vel; outrossim, a nova redação dada ao atual artigo 213 não especifica
as modalidades de atos libidinosos circundados pelo tipo penal estupro,
o que torna o texto de lei abrangente e, por conseguinte, dificulta o
trabalho a ser desenvolvido pelos magistrados.
Malgrado a inexistência de previsão para o crime de estupro vir-
tual, a decisão proferida piauiense fora correta, considerando que, com
a finalidade de satisfazer a própria lascívia, o acusado obrigava a vítima
a enviar-lhe fotos. Para tanto, a vítima era ameaçada de ter imagens
expostas nas redes sociais.
Vê-se, claramente, que a liberdade e a dignidade sexual da vítima
fora tolhida, mediante constrangimento, com o fim último de satisfazer
a lascívia do acusado, o que impõe enquadrar a conduta ilícita no artigo
213 do Código Penal Brasileiro, do modo como acertadamente o fez.
Para corroborar a desnecessidade de contato físico entre agressor e
vítima, na consecução do crime de estupro, o Juízo piauiense funda-
mentou a decisão num precedente jurisprudencial pontificado pelo Su-
perior Tribunal de Justiça, fortificando, desta feita, os pilares da decisão.
Desta feita, conclui-se a presente pesquisa ressaltando a possibili-
dade de se cometer crimes de estupro por meio de ambientes virtuais,
no território brasileiro. Neste caso, deve enquadrar-se o crime no ar-
tigo 213, como sendo um crime de estupro executado em ambiente
virtual, já que inexiste, legalmente, previsão mais específica no orde-
namento jurídico pátrio.

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D A N I E L L E F E R R E I R A M E D E I R O D A S I LVA D E A R A Ú J O, S A N D R A V I D A L N O G U E I R A ,
S A M A R A TA I A N A D E L I M A S I LVA E WA L K Y R I A C H A G A S D A S I LVA S A N TO S ( O R G S . )

REFERÊNCIAS

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