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INTRODUÇÃO

De início, a fim de que se possa ter uma noção precisa do que


é o ativismo judicial, quais suas repercussões na conformação do ordenamento
pátrio e, ainda, quais os limites a serem observados pelo hermeneuta
constitucional, faz-se oportuno analisar o atual contexto em que se insere a
prática jurídica e, assim, traçar um panorama da atuação do Poder Judiciário
no direito brasileiro.

Em tempos atuais, já não se pode ignorar a proeminência do


Poder Judiciário no enfrentamento de diversas questões controvertidas, o que
tem ensejado a discussão acerca de aspectos como a eficácia da Constituição,
a fluidez da fronteira entre o direito e a política, a teleologia do Estado
moderno, entre outros, que serão oportunamente abordados no decorrer do
presente estudo.

Veja-se, nesse ponto, que Luís Roberto Barroso, antes mesmo


de sua nomeação para o pretório excelso, já observava que a centralidade do
Supremo Tribunal Federal - e do Poder Judiciário como um todo –, ao proferir
decisões sobre grandes questões nacionais, tem gerado aplausos e críticas, e
exige uma reflexão cuidadosa1. É, em apertada síntese, esta a reflexão que se
propõe no primeiro capítulo.

Devidamente estabelecidos os pressupostos teóricos deste


estudo, com o que se delineará o panorama da interpretação do direito na
contemporaneidade e alguns aspectos essenciais à compreensão da eficácia
das normas constitucionais, passa-se, oportunamente, à análise do ativismo
judicial propriamente dito.

Para tal desiderato, cumpre esclarecer a origem do fenômeno e


tecer algumas considerações acerca de sua procedência histórica, sem o que
não se pode compreender a sua significação no atual paradigma do direito
brasileiro. Em seguida, partindo-se desse referencial histórico, serão abordadas
1
BARROSO, Luiz Roberto. Jucialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p.
01. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>
Acesso em: 02/04/2015
algumas das causas do ativismo judicial, causas estas que estão estreitamente
relacionadas com aquele contexto delineado no primeiro capítulo.

Superados tais aspectos preliminares, a discussão parte para


uma análise conceitual do ativismo judicial sob a perspectiva de diversos
autores, o que possibilitará uma ampla compreensão do fenômeno, sem
prejuízo da precisa delimitação do objeto de estudo deste trabalho. Ainda, a fim
de complementar essa análise conceitual, traz-se a lume o objetivo colimado
pelo ativismo judicial, de modo que se possa justificar a legitimidade da
proposta que ora se sustenta.

Sendo assim, de forma bastante objetiva, o segundo capítulo


consubstancia uma análise científica pertinente ao ativismo judicial, que
contempla a origem do fenômeno, suas causas, seu conceito e, por fim, o
objetivo que com ele se almeja.

Porém, para que se possa explorar toda a potencialidade


desse conceito, o presente estudo não estará adstrito à compreensão do
fenômeno tal como se apresenta, devendo abranger também uma perspectiva
crítica que possibilite o aprimoramento dos referenciais teóricos do ativismo
judicial. Em suma, pretende-se abordar não somente o que é o ativismo
judicial, mas também o que este pode ser.

Com efeito, verifica-se que, a despeito da vasta bibliografia


existente acerca do tema, poucos autores dedicaram-se em apresentar uma
proposta verdadeiramente situada na realidade contemporânea do direito
brasileiro e delimitada por parâmetros concretos, de modo a assegurar seu
pleno exercício sem prejuízo da coesão da ordem constitucional vigente.

Destarte, o terceiro capítulo deste trabalho apresenta uma


perspectiva crítica acerca do ativismo judicial, abarcando algumas das
objeções de grande pertinência ao tema que têm sido apontadas nos recentes
estudos da hermenêutica constitucional, suscitando, assim, uma discussão
acerca das repercussões do fenômeno sobre o direito e a política.

Por derradeiro, ainda no terceiro capítulo, convém questionar


quais são os limites que se impõem ao ativismo judicial, a fim de que essa
proposta não exceda sua própria condição legitimadora. Em última análise,
quer-se delimitar até que ponto o ativismo judicial se apresenta como solução
para a situação presente, sem que venha a se tornar um problema ainda maior.

Nessa vertente, obtém-se que a problemática do presente


estudo cinge-se à compreensão do ativismo judicial como uma proposta para a
mais ampla efetividade das normas constitucionais no direito brasileiro,
sobretudo no atual contexto, marcado pela volatilidade das demandas sociais
e, simultaneamente, pela crise das instâncias políticas do Estado,
questionando-se, nessas circunstâncias, em que medida o Poder Judiciário
pode contribuir para a superação de tal panorama e para o sucesso do projeto
democrático idealizado pela Constituição de 1988.

1. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

1.1. Contextualização social e política: a “Constituição Cidadã”, o


inativismo legislativo e o inativismo executivo

Atualmente, a sociedade tem evoluído sobremaneira,


principalmente em virtude dos recentes avanços tecnológicos, do grande fluxo
de informações que circula pelo globo terrestre, do intercâmbio cultural
existente entre as nações e da expressão de diversas demandas antes
reprimidas, de modo que a Constituição contemporânea se incumbe da árdua
tarefa de conduzir uma sociedade extremamente complexa e dinâmica2.

Nesse ponto, observa-se que a Constituição Federal de 1988


representa uma grande conquista do povo brasileiro em prol da
redemocratização do país, criando grandes expectativas em torno do pleno
exercício da cidadania e de uma mais ampla proteção aos direitos
fundamentais, pelo que lhe foi atribuído o título “Constituição Cidadã”.

2
PAGANELLI, Celso Jefferson Messias. Ativismo judicial no direito digital: responsabilidade
objetiva das redes sociais na internet. In: PAGANELLI, Celso Jefferson Messias; SIMÕES,
Alexandre Gazetta; IGNÁCIO JUNIOR, José Antonio Gomes. Ativismo judicial: paradigmas
atuais. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. pp. 17-18.
Sobreleva, nesse rumo, a denominada função diretiva que se
atribui à Constituição, consistente no propósito de efetivar os valores nela
positivados, assegurando que a atuação estatal seja norteada pelo bem-estar,
pela igualdade e pela justiça, como salienta a Ministra Cármen Lúcia no
acórdão a seguir transcrito:

“Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a


Constituição e que devem servir de orientação para a correta
interpretação e aplicação das normas constitucionais e
apreciação da subsunção, ou não, da Lei 8.899/1994 a elas.
Vale, assim, uma palavra, ainda que brevíssima, ao
Preâmbulo da Constituição, no qual se contém a explicitação
dos valores que dominam a obra constitucional de 1988 (...).
Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular
as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à
igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se
organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme
como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos
(...). E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da
Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva
que ‘O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar
o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’,
tem, no contexto, função de garantia dogmático-
constitucional; não, porém, de garantia dos valores
abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este
signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o
objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao
Estado uma ação em favor da efetiva realização dos ditos
valores em direção (função diretiva) de destinatários das
normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo
específico’ (...). (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia,
julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008)3

3
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=2> Acesso em:
04/04/2015.
Portanto, o que se quer dizer é que as políticas públicas do
Estado devem ser voltadas para a integral aplicação da Constituição,
atribuindo-se aos ditos “valores supremos” um significado concreto que
viabilize sua efetiva realização na vida social.

E, sobretudo em vista da relevância histórica e social de que se


reveste a Constituição de 1988, é desejável que as disposições nela contidas
se concretizem nas ações dos órgãos e autoridades que dirigem a atuação
estatal. É, como diria Dworkin, uma questão de “levar os direitos a sério”4.

De fato, a Constituição contemporânea almeja se tornar uma


realidade social, não se podendo admitir que este relevante documento político
seja reduzido a mera “folha de papel” 5, como adverte Lassale. Foi justamente
com esse propósito que a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na
história constitucional brasileira, traçou metas fundamentais a serem seguidas,
consubstanciadas nos objetivos da República Federativa do Brasil6.

Porém, ainda que o texto constitucional já represente por si só


uma grande conquista, é certo que nenhuma Constituição pode sair completa
da autoridade constituinte. É o que observa José Afonso da Silva com
irremediável acerto em seu estudo sobre a aplicabilidade das normas
constitucionais:

Muitas de suas normas precisam ser regulamentadas por uma


legislação integrativa ulterior que lhes dê execução e
aplicabilidade plena. Mas isso não significa que haja em seu
texto normas não-jurídicas, como a já mencionada corrente
doutrinária sustenta, especialmente em relação às
programáticas, nas quais vê simples indicação ao legislador
futuro, que pode segui-las ou não, ou pode até dispor de modo
divergente, negando-lhes, assim, a mínima eficácia jurídica7.

4
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, tradução e notas: Nelson Boeira. São
Paulo: Martins Fontes, 2002.
5
LASSALE, Ferdinand. O que é uma Constituição Política. Rio de Janeiro: Editora Global,
1987.
6
PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões, 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 41.
7
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais, 7ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2008. p. 47.
Com efeito, o supracitado autor delineou uma lógica segundo a
qual a aplicabilidade plena das normas constitucionais depende,
inevitavelmente, da atuação do legislador infraconstitucional, que possui a
função precípua de elaborar leis que atribuam um significado concreto à
Constituição. Como se verá mais adiante, esse raciocínio norteou a idealização
de uma classificação das normas constitucionais conforme sua aplicabilidade e
eficácia que viria a ser consagrada na doutrina brasileira (normas
constitucionais de eficácia plena, contida e limitada). Porém, em uma análise
prefacial, o que merece relevo é a constatação de que o Poder Legislativo deve
sempre atuar no sentido de conferir concretude à Constituição, o que lhe
reveste de relevante valor social.

É que a identidade que se constrói entre o povo e a


Constituição, hoje tida como norma fundamental e referência de todo
ordenamento jurídico, faz com que sejam exigidas do legislador
infraconstitucional providências que acompanhem as demandas que surgem no
seio da sociedade em consonância com os valores constitucionais, como
consequência da própria “função dirigente” inerente às Constituições
contemporâneas, no que se inclui a Carta de 1988.

Entretanto, há que se considerar que o texto constitucional foi


promulgado em 1988, tempo em que nem se cogitava de muitas das atuais
demandas sociais atualmente postas em discussão. E, para descontento da
população, muitas dessas demandas, embora respaldadas em direitos
constitucionais, não foram contempladas pela legislação infraconstitucional, o
que acaba por fragilizar aquela identidade existente entre o povo brasileiro e a
“Constituição Cidadã”.

Isso se deve ao fato de que a pluralidade e o dinamismo da


sociedade moderna fazem com que essas demandas se multipliquem e se
tornem extremamente voláteis, de modo que o processo legislativo tem se
revelado inapto a acompanhar tal realidade. Aliás, é o que observa Celso
Jefferson Messias Paganelli ao referir que “temos uma Constituição formada de
termos gerais e uma sociedade complexa, com muitos enigmas, da qual a
solução de problemas nem sempre passa pelo crivo dos legisladores”8.

Como se não bastasse isso, há ainda um fator de ordem


política que tem contribuído sobremaneira para a omissão do Poder Legislativo
no escopo de conferir eficácia à Constituição, que diz respeito à crise de
representatividade existente na política brasileira, identificada por Luís Roberto
Barroso em seu estudo sobre o ativismo judicial9.

Lamentavelmente, o que se constata é que a atividade dos


representantes populares no Brasil tem se norteado muito mais por motivos de
política partidária e pela busca do favorecimento pessoal do que pelos reais
interesses que emergem dos diversos segmentos da sociedade, de modo que
o cidadão se vê desamparado por aqueles que, por imperativo constitucional,
deveriam lhe representar na escolha dos rumos do Estado brasileiro.

Todavia, esses interesses escusos que, não raro, conduzem a


atuação legislativa não podem ser um óbice à concretização dos direitos
fundamentais, sob pena de se deixar a eficácia da Constituição à mercê de
pretensões ilegítimas.

E a crítica não se restringe à inatividade do Poder Legislativo.


Com efeito, Mauro Cappelletti observa um “crescente sentimento de desilusão
e desconfiança não apenas em face dos parlamentos, mas também em relação
ao poder executivo, à administração pública e suas inumeráveis agências”10.

É que o Poder Executivo também possui uma parcela de


contribuição significativa no processo de efetivação da Constituição, na medida
em que deve contemplar as disposições nela contidas quando da execução
das políticas públicas do programa de governo.

8
PAGANELLI, Celso Jefferson Messias. Ativismo judicial no direito digital: responsabilidade
objetiva das redes sociais na internet. In: PAGANELLI, Celso Jefferson Messias; SIMÕES,
Alexandre Gazetta; IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes. Ativismo judicial: paradigmas
atuais, 1ª ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. p. 17.
9
BARROSO, Luiz Roberto. Jucialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática, p.
09. Disponível em:
<http://www.oab.org.br/editora/revista/users/revista/1235066670174218181901.pdf>
Acesso em: 02/04/2015

10
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?, trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Porto
Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1993. p. 44.
Tanto é assim que Flávia Piovesan, ao introduzir o tema da
proteção judicial contra omissões legislativas, pontuou que a concretização da
ordem constitucional se apresenta como dever jurídico dos “Poderes
Públicos”11, expressão abrangente que envolve todas as instâncias políticas,
inclusive a atividade administrativa.

Porém, para o infortúnio do povo brasileiro, o Poder Executivo


também não vem exercendo sua função a contento, o que se evidencia
sobretudo a partir dos recentes escândalos de corrupção protagonizados por
agentes públicos, deflagrando a irresponsabilidade da gestão administrativa
neste país em detrimento de recursos públicos que seriam destinados ao
atendimento das finalidades essenciais do Estado.

Apenas para mensurar o prejuízo causado aos cofres públicos


por essa prática nefasta que tem se alastrado na política brasileira, um estudo
realizado pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec) da
Fiesp (Federação das Indústrias de São Paulo) estimou que a corrupção custa
ao país aproximadamente R$ 69 bilhões por ano12.

Vê-se, portanto, que o Poder Legislativo e o Poder Executivo


têm se omitido em seu escopo fundamental, isto é, conferir plena eficácia às
normas constitucionais. Para fins acadêmicos, estes fenômenos de omissão da
atividade legislativa e executiva serão doravante denominados,
respectivamente, inativismo legislativo e inativismo executivo.

Enfim, desses fenômenos de omissão institucional acima


nominados resulta uma crise de credibilidade da população em relação às
instâncias políticas do Estado, o que tem motivado a busca por novos
horizontes no anseio de tornar a “Constituição Cidadã” concreta.

É exatamente nesse contexto que emerge o protagonismo do


Poder Judiciário, que tem sido a última - ou talvez a única - instância da
população na luta contra a omissão institucional dos demais Poderes. Não por
opção, mas por necessidade.

11
PIOVESAN, Flavia, op. cit., p. 20.
12
O preço da corrupção no Brasil: valor chega a R$ 69 bilhões por ano. Disponível em:
<http://sindjufe-mt.jusbrasil.com.br/noticias/2925465/o-preco-da-corrupcao-no-brasil-valor-
chega-a-r-69-bilhoes-de-reais-por-ano> Acesso em: 09/04/2015
1.2. Protagonismo do Poder Judiciário

Como é notório, o Poder Judiciário tem, em tempos atuais, uma


atuação proeminente no cenário nacional. Aliás, o fenômeno não é
peculiaridade nossa, como assevera Luís Roberto Barroso, sendo certo que
cortes constitucionais e supremas cortes em diferentes partes do mundo e em
épocas diversas protagonizaram decisões de densa carga política e moral13.

É o que se evidencia, no caso brasileiro, em questões


recentemente suscitadas perante o Supremo Tribunal Federal no âmbito das
ações diretas, tais como a união estável de pessoas do mesmo sexo 14, a
pesquisa com células tronco embrionárias15, a fidelidade partidária16 e a
suspensão de dispositivos da Lei de Imprensa17. Há, ainda, inúmeras outras
questões suscitadas no âmbito das ações individuas, como a demarcação de
terras indígenas no caso Raposa/Serra do Sol, a quebra do sigilo judicial por
CPI e a atualização monetária de contas vinculadas do FGTS.

Frise-se, por oportuno, que em todos esses casos o Supremo


Tribunal Federal foi instado a se manifestar e o fez nos limites dos pedidos
formulados. Ora, o pretório excelso não poderia deixar de apreciar o mérito das
demandas que lhe foram submetidas, uma vez preenchidos os requisitos de
cabimento. Não há, portanto, qualquer pretensão por parte dos membros
daquele corte de criar um modelo juriscêntrico; há, pelo contrário, uma
realidade denominada judicialização, cuja existência não mais se pode
refutar18.

Essa tendência, embora mais facilmente delineada na atuação


do Supremo Tribunal Federal, se estende a todo o Poder Judiciário, que, como
dito, vem sendo instado a preencher as lacunas deixadas pelo inativismo
legislativo e pelo inativismo executivo. E, ao adotar essa postura, o Poder

13
BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 1.
14
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132.
15
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.150.
16
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. MS 26.602; MS 26.603 e MS 26.604.
17
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) 130.
18
BARROSO, Luís Roberto, op. cit., pp. 5-6.
Judiciário ingressa de forma supletiva no campo de atuação dos demais
Poderes, o que revela o caráter político e social da atividade jurisdicional.

Inegavelmente, esse fenômeno evidencia a fluidez da fronteira


entre o direito e a política. É que o Direito hoje se apresenta como um
instrumento voltado para o pleno desenvolvimento humano, sobretudo em
virtude dos valores positivados na atual ordem constitucional, de modo que
suas transformações se irradiam sobre as mais diversas esferas da vida
social19.

Consequentemente, a função jurisdicional assume contornos


políticos, na medida em que foi atribuído ao Poder Judiciário a função de
guarda da Constituição, não lhe sendo dado abster-se do encargo de
conformar as políticas públicas do Estado aos imperativos constitucionais,
como bem observa Alexandre Gazetta Simões20.

No quanto interessa ao tema, o eminente juiz federal Nagibe de


Melo Jorge Neto pondera que:

Devemo-nos lembrar que a função exercida pelo Poder


Judiciário é também uma função essencialmente política e que,
em alguma medida e dentro de certos limites, o Poder
Judiciário está autorizado pela Constituição a pronunciar-se
sobre as questões políticas. Somente as questões ditas
meramente políticas não se submetem ao controle do Poder
Judiciário. Isso é decorrência da opção política fundamental do
Estado Democrático de Direito, que importa não só na
autolimitação do Estado pelo ordenamento jurídico, como
também na participação democrática, tanto mais ampla quanto
possível, de todos os cidadãos e setores da sociedade políticas
nas escolhas e fixação das políticas públicas pelo Estado,
inclusive mediante a utilização de mecanismos outros de

19
JORGE NETO, Nagibe de Melo Jorge. O controle jurisdicional das políticas públicas, 2ª
tir. Salvador: Juspodium, 2009. p. 19.
20
SIMOES, Alexandre Gazetta. Ponderações sobre o protagonismo judicial, o Estado
Social e a eficácia dos direitos fundamentais sociais. PAGANELLI, Celso Jefferson
Messias; SIMÕES, Alexandre Gazetta; IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes. Ativismo
judicial: paradigmas atuais, 1ª ed. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011. p. 112.
participação democrática dentro dos quais avulta o processo
judicial21.

Por sua vez, Sergio Alves Gomes ressalta a importância da


participação do juiz, enquanto membro que é do Poder Judiciário, na
consolidação da democracia, devendo esse pressuposto ser considerado como
norte da atividade interpretativa do texto constitucional22.

Sobretudo, deve-se ter em mente que o Poder Judiciário


assume, no atual contexto, a responsabilidade pela concretização do escopo
constitucional. E a Constituição Federal de 1988 logrou resumir todo seu
escopo em um único princípio basilar: a dignidade da pessoa humana.

Corroborando esse entendimento, Jorge Miranda afirma:

A Constituição confere uma unidade de sentido, de valor e de


concordância prática ao sistema dos direitos fundamentais. E
ela repousa na dignidade da pessoa humana, ou seja, na
concepção que faz a pessoa fundamento e fim da sociedade e
do Estado23.

Em última análise, o protagonismo judicial contribui para a


preservação da dignidade da pessoa humana na medida em que esse
fenômeno se propõe à efetivação dos direitos fundamentais positivados no
texto constitucional que são inerentes a essa condição.

Nesse rumo, a fim de que se possa ter uma compreensão mais


apurada das consequências advindas do protagonismo judicial, é oportuno
analisar o atual paradigma político do Estado sob a ótica da separação dos
poderes.

1.3. Princípio da Separação de Poderes

Partindo do pressuposto de que, no atual contexto, o Poder


Judiciário tem participado ativamente no processo de consolidação do direito e,

21
JORGE NETO, Nagibe de Melo Jorge, op. cit., p. 22.
22
GOMES, Sergio Alves. Hermenêutica jurídica e constituição no Estado de Direito
Democrático. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 71
23
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Coimbra: Editora Coimbra, 1988, vol. 4,
p. 166.
ao atender as demandas sociais, é instado a preencher as lacunas deixadas
pela inatividade das outras esferas da atuação estatal, abre-se espaço para
reflexão acerca dos efeitos dessa postura sobre a separação dos Poderes e do
escopo político da função jurisdicional.

De partida, veja-se que a ultrapassagem das linhas


demarcatórias da função jurisdicional tem sido a principal crítica dirigida contra
os fenômenos atinentes ao protagonismo do Poder Judiciário, como o ativismo
judicial e a judicialização da política, que serão abordados com a devida
profundidade mais adiante. Nessa linha argumentativa, Elival da Silva Ramos
expõe:

Ao se fazer menção ao ativismo judicial, o que se está a referir


é à ultrapassagem das linhas demarcatórias da função
jurisdicional, em detrimento principalmente da função
legislativa, mas, também, da função administrativa e, até
mesmo, da função de governo. Não se trata do exercício
desabrido da legiferação (ou de outra função não jurisdicional),
que, aliás, em circunstâncias bem delimitadas, pode vir a ser
deferido pela própria Constituição aos órgãos superiores do
aparelho judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo
essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros
Poderes24.

Porém, o que se pretende demonstrar é que não há incursão


insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a
outros Poderes; há, na verdade, uma necessidade premente de suprir
demandas constitucionais não atendidas pelos órgãos e autoridades
competentes, o que em nada prejudica o princípio da separação de Poderes,
mas somente reafirma seu valor, como se passa a expor.

A doutrina constitucional pontua que, muito embora Aristóteles


já identificasse a existência de três funções estatais fundamentais na
Antiguidade, foi a obra de Montesquieu, denominada O espírito das leis, que
idealizou o Estado liberal burguês, propondo a atribuição dessas três funções a
24
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva,
2010. pp. 117/117.
três órgãos distintos e possibilitando, assim, um maior controle do exercício do
poder, sobretudo em oposição ao modelo absolutista que vigia à época25.

Em apertada síntese, a doutrina da tripartição de poderes


estabelece que ao Poder Legislativo cabe a função legislativa, mediante a
edição de normas gerais e abstratas, ao Poder Executivo a função executiva ou
administrativa, que resulta da aplicação da lei ao caso concreto, e ao Poder
Judiciário a função jurisdicional, consistente em dirimir controvérsias na
aplicação das referidas normas gerais e abstratas ao caso concreto.

Como se sabe, a tripartição de poderes não exclui o exercício


de funções que, por sua natureza, seriam atribuídas aos outros Poderes
(“funções atípicas”), sendo certo que a organização dos três poderes admite
eventuais invasões ou interpenetrações, como observa Manoel Gonçalves
Ferreira Filho, o que é deferido pela própria Constituição em situações
excepcionais. Na esteira desse entendimento, tem-se que a tripartição de
poderes é uma especialização de funções meramente relativa, de sorte que o
que se verifica é apenas uma predominância de determinada “função típica”,
sem prejuízo do eventual exercício das demais26.

Para mais, cumpre observar que o paradigma político do


Estado moderno se baseia na ideia de um sistema de “freios e contrapesos”,
em que um Poder exerce suas competências e, simultaneamente, atua no
sentido de conter os excessos cometidos pelos demais, cooperando para o
pleno exercício das finalidades estatais. Nesse ponto, Luís Roberto Barroso
pondera que o Poder Judiciário, ao exercer a guarda da Constituição, atua em
benefício do sistema de freios e contrapesos concebido pelo constitucionalismo
moderno:

A supremacia da Constituição e a missão atribuída ao


Judiciário na sua defesa têm um papel de destaque no sistema
geral de freios e contrapesos concebido pelo
constitucionalismo moderno como forma de conter o poder. É
que, através da conjugação desses dois mecanismos, retira-se
25
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, 38ª Ed. São Paulo:
Saraiva, 2012; BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, 14ª Ed. São Paulo:
Saraiva, 1992, p. 149.
26
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit.
do jogo político do dia a dia e, pois, das eventuais maiorias
eleitorais, valores e direitos que ficam protegidos pela rigidez
constitucional e pelas limitações ao poder de reforma da
Consituição27.

No que tange ao papel desempenhado pelo princípio da


separação dos Poderes no ordenamento pátrio, o art. 2º da Constituição
Federal preceitua que “são Poderes da União, independentes e harmônicos
entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” 28, a partir do que se pode
compreender o valor essencial dessa cláusula pétrea constitucional.

Com efeito, infere-se do dispositivo constitucional em comento


que a atuação dos Poderes, embora isenta de qualquer vinculação, no que se
consubstancia sua independência, não deve estar dissociada das demais
esferas, o que realça a ideia de que as funções aí desempenhadas se inserem
em uma única teleologia estatal, inclusive porque o poder, um dos elementos
fundamentais da noção de Estado, é uno, do que decorre a necessidade de
uma atuação harmônica dessas três instituições políticas.

Em última análise, o princípio da separação dos poderes se


justifica tanto pelo seu valor histórico, que parte da noção de que o exercício do
poder político não pode ser concentrado nas mãos de um único indivíduo em
detrimento da coletividade, quanto pelo seu valor técnico, que deriva da
constatação de que a divisão de tarefas otimiza a atuação estatal,
possibilitando a efetivação dos direitos e princípios constitucionais.

Nessa vertente, a norma constitucional que estabelece a


separação de Poderes existe em favor do cidadão e somente pode ser
invocada em prol da efetivação do escopo constitucional; a contrario sensu, a
separação de Poderes jamais se prestará a legitimar ou a justificar a
ineficiência do Estado no atendimento das finalidades que lhe foram
constitucionalmente atribuídas.

Fixadas essas premissas, conclui-se que o Poder Judiciário


não incorre em afronta ao princípio da separação dos Poderes ao apreciar
27
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, 5ª Ed. São Paulo:
Saraiva, 2003. p. 167.
28
BRASIL. Constituição Federal.
pretensões decorrentes da inatividade dos demais Poderes no quanto
possibilita a efetivação de direitos constitucionais e, consequentemente, a
plena eficiência da atividade estatal.

Nesse ponto, impende considerar que o Estado moderno, ao


assumir para si o monopólio da função jurisdicional, atribui a si não só um
poder, mas também um dever para com os juridisdicionados. A propósito, o
eminente processualista Humberto Theodoro Júnior observa:

É assim que, na Justiça concebida pela moderna visão


democrática do Estado de Direito se deve desempenhar a
jurisdição, que não é apenas poder estatal, mas função (poder-
dever) dos órgãos jurisdicionais a ser exercida perante todos,
com o compromisso de propiciar, na medida do possível, ao
litigante vítima de lesão ou ameaça, tudo aquilo e exatamente
aquilo que seu direito lhe assegure29.

Neste diapasão, o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição


Federal estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito”30, no que se consubstancia, por um lado, o direito
constitucional subjetivo de ação e, por outro, o princípio da inafastabilidade da
jurisdição. Vale dizer, a supracitada norma constitucional assegura ao cidadão
o direito de invocar a atuação jurisdicional para socorrer lesão ou ameaça aos
seus interesses jurídicos e, simultaneamente, impõe ao Estado o dever de
solucionar os conflitos pertinentes à aplicação da norma ao caso concreto.

Portanto, se o indivíduo, amparado pelo direito constitucional


subjetivo de ação, pleitear tutela jurisdicional, não pode o Poder Judiciário se
furtar a apreciar a pretensão que lhe foi submetida. Obviamente, a tutela
jurisdicional somente será deferida se demonstrada a titularidade do direito
subjetivo postulado, como observa Humberto Theodoro Júnior 31. De qualquer
sorte, o que se quer demonstrar é que a jurisdição é uma função estatal

29
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil – Teoria geral do direito
processual civil e processo de conhecimento – vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 54
30
BRASIL. Constituição Federal (...)
31
THEODORO JÚNIOR, Humberto, op. cit., p. 54.
inafastável, vale dizer, uma atividade que não pode ser negada pelo Estado,
sob pena de infringência da garantia constitucional do acesso à justiça.

Ocorre que o ordenamento jurídico nem sempre apresenta uma


solução pronta para o caso concreto, pelos motivos já expostos.
Eventualmente, a pretensão trazida a juízo possui respaldo em normas
constitucionais ainda não regulamentadas no plano infraconstitucional ou que
foram disciplinadas pelo legislador ordinário, porém, de forma incompatível com
os ditames da Constituição (inativismo parlamentar). Há, ainda, aqueles casos
em que a pretensão se funda em normas constitucionais que não foram
efetivadas pela ausência de políticas públicas destinadas à sua implementação
(inativismo executivo).

Nessas circunstâncias, o Poder Judiciário encontra-se hoje


diante de um paradoxo: o imperativo de aplicar o direito ao caso concreto,
porém, em situações que sequer foram contempladas pela própria lei ou pela
política do Estado. E, entre se omitir para não imiscuir-se na esfera de atuação
dos outros Poderes ou agir para concretizar o escopo constitucional,
certamente o juiz deve optar pela segunda solução. É preferível que as
demandas constitucionais pleiteadas na via judicial sejam atendidas pelo Poder
Judiciário, ainda que em detrimento da atuação dos demais Poderes, do que
deixar o cidadão desamparado no atendimento dos direitos fundamentais
positivados na Constituição. É dizer, antes o Judiciário do que ninguém.

Como consequência, as recentes demandas que vêm sendo


levadas a apreciação do Poder Judiciário têm atribuído um relevante papel aos
juízes e tribunais brasileiros no processo de afirmação do direito, sobretudo dos
princípios e valores constitucionais, que se apresentam como referência
interpretativa de todo ordenamento jurídico.

Neste diapasão, Celso Lafer, ao prefaciar a obra de Elival da


Silva Ramos, observa que a hermenêutica jurídica tem adquirido novas
configurações por obra dos processos de transformação da sociedade e do
Estado32, o que se passa a analisar no tópico seguinte.

1.4. Pós-positivismo jurídico e neoconstitucionalismo


32
LAFER, Celso. In: RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 11,
Por oportuno, cumpre tecer algumas considerações acerca do
contexto do pós-positivismo jurídico e do neoconstitucionalismo, sem o que não
se pode compreender a normatividade da Constituição e os contornos da
atividade interpretativa na contemporaneidade.

Há basicamente duas correntes doutrinárias que, no decorrer


da história, propuseram-se a discutir os fundamentos do direito: o
jusnaturalismo e o positivismo jurídico. Mais recentemente, a partir dos
embates doutrinários entre essas duas correntes clássicas, verificou-se o
surgimento do denominado pós-positivismo jurídico, que, contudo, ainda não
aceito por parte da doutrina. Para melhor compreensão do tema, faz-se mister
uma breve digressão acerca desses conceitos.

De forma bastante objetiva, Norberto Bobbio define o


jusnaturalismo como uma corrente de pensamento jurídico “segundo a qual
uma lei para ser lei deve estar de acordo com a justiça”33. Nessa linha, a
validade do direito está condicionada a um ideal de justiça, no que se aproxima
tal corrente do direito natural.

Nesse particular, a crítica tecida pelo jusfilósofo italiano reside


na constatação de que o direito busca se aproximar de um ideal de justiça, o
que, contudo, nem sempre é uma realidade de fato, já que o direito injusto, na
prática, também vale como direito. Desse modo, conclui-se que a concepção
jusnaturalista não se presta a definir o direito como ele é, mas como queríamos
que fosse ou como deveria ser34.

Além disso, Bobbio observa que a justiça dos jusnaturalistas


não é uma verdade evidente, que possa ser demonstrada matematicamente,
de modo que nenhum homem pudesse ter dúvidas acerca do que é justo ou
injusto35. Assim, o jusnaturalismo peca pela falta de um padrão de fundamento
da justiça, subordinando esse ideal ao subjetivismo do indivíduo que venha a
elaborar ou aplicar a norma jurídica.

33
BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica, trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno
Sudatti, apres. Alaôr Caffé Alves. Bauru: Edipro, 2001. p. 55.
34
Ibidem, pp. 55/56.
35
Ibidem, p. 56.
Não obstante, cumpre observar que o jusnaturalismo, aliado ao
iluminismo, viabilizou grandes avanços sociais, tais como a revolução francesa
(1789) e a independência norte-americana (1776), como salienta José Antônio
Gomes Ignácio Júnior36.

Ainda, Luís Roberto Barroso pontua que o jusnaturalismo


racionalista, novamente ao lado do iluminismo, motivou o movimento de
codificação do Direito, no século XVIII, que teve seu apogeu no Código Civil
francês – o Código de Napoleão –, que entrou em vigor em 1804. Como
consequência, incorporou-se à tradição jurídica romano-germânica a
elaboração de códigos, promovendo, assim, uma identificação entre o Direito e
a lei. Simultaneamente, a Escola da Exegese passou a impor o apego ao texto
e à interpretação gramatical e histórica, limitando a atuação criativa do juiz,
com vistas a uma interpretação objetiva e neutra37.

Nesse contexto, viu-se que o jusnaturalismo, ao alcançar seu


ponto mais alto com a consolidação dos ideais constitucionais em textos
escritos e com o movimento de codificação, paradoxalmente, chegou à sua
superação histórica. Com a incorporação dos direitos naturais aos
ordenamentos positivos, não se tratava mais de uma questão de revolução,
mas sim de conservação do status estabelecido38.

Desenvolveu-se, então, o positivismo filosófico, fundado na


idealização do conhecimento científico. Acreditava-se na ciência como único
conhecimento válido, única moral e única religião. Nessa concepção, o
conhecimento científico, metódico e objetivo, deveria ser estendido a todos os
campos do conhecimento, inclusive às ciências sociais, do que se originou o
positivismo jurídico39.

No que tange ao positivismo jurídico, Bobbio define que essa


teoria, em oposição ao jusnaturalismo, reduz a justiça à validade. Isto é, se
para um jusnaturalista uma norma não é válida se não é justa, para um
positivista uma norma é justa somente se for válida. Veja-se que Hans Kelsen,

36
IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio, op. cit., p. 126.
37
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., p. 321.
38
Idem.
39
Ibidem, p. 322.
ao defender que aquilo que constitui o direito é a validade, não quer em
absoluto afirmar que o direito válido seja também justo; para Kelsen, a justiça é
um problema ético distinto do problema jurídico da validade 40. Portanto, os
positivistas simplesmente relegam a discussão da justiça para o plano ético,
refutando-lhe o caráter jurídico.

A partir desse ideário, os positivistas sustentavam a pretensão


de criar uma ciência jurídica, caracterizada, em síntese, pela aproximação
quase plena entre direito e norma, pela afirmação da estatalidade do direito,
pela completude do ordenamento jurídico e pelo formalismo. Ocorre que, após
seu apogeu nas primeiras décadas do século XX, o positivismo se sujeitou a
diversas críticas, até sofrer sua dramática derrota histórica.

Sob o prisma conceitual, criticou-se o reducionismo do direito a


uma postura meramente descritiva da realidade, impedindo a perspectiva
criativa do direito e a pretensão de prescrever um dever-ser que atue sobre a
realidade, conformando-a e transformando-a. Sob o prima prático, viu-se que o
feitiche da lei e o legalismo acrítico serviram de disfarce para autoritarismos de
matizes variados41.

Enfim, diante da superação histórica do jusnaturalismo e do


fracasso político do positivismo jurídico, abrem-se as portas para o surgimento
de uma teoria condizente com o atual estágio do processo civilizatório. Como
dito, os trágicos episódios vividos no século XX, como os regimes autoritários,
que promoveram atrocidades sob o pálio do direito revelaram que o positivismo
se mostrou apático para resguardar valores inerentes à condição humana,
podendo se tornar um mero instrumento do arbítrio, a ponto de “banalizar o
mal”, nas palavras Hannah Arendt42. Por outro lado, o discurso científico
impregnara o direito, de modo que não mais se desejava retorno puro e
simples retorno ao jusnaturalismo43.

Em razão disso, o constitucionalismo moderno resgatou os


valores éticos do direito, porém, não com base em critérios teológicos ou

40
BOBBIO, Norberto, op. cit., pp. 58-59.
41
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., pp. 323-325.
42
ARENDT, Hannah apud IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio, op. cit., p. 133.
43
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., pp. 325-326.
metafísicos, como outrora, mas sim em princípios abarcados de forma explícita
ou implícita pela Constituição. Inicia-se, então, a partir das últimas décadas do
século XX, o que se denominou “pós-positivismo”, momento em que “as novas
Constituições acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em
pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos
sistemas constitucionais”, como assinala Paulo Bonavides44.

Como mencionado anteriormente, parte da doutrina refuta a


existência do pós-positivismo jurídico, sob o argumento de que a Filosofia do
Direito comporta tão somente os dois posicionamentos clássicos do
jusnaturalismo e do positivismo jurídico, de modo que o mais, no dizer de
Benjamin de Oliveira Filho, “não passa de tentativas efêmeras de inovação,
logo apagadas no curso do tempo” 45. Porém, o que o eminente autor não
poderia supor àquela época é que o constitucionalismo moderno traria novos
rumos à Ciência do Direito, a ponto de não mais ser possível subsumir a atual
dogmática jurídica a um desses dois modelos tradicionais.

Por outro lado, o reconhecimento do pós-positivismo como uma


corrente jusfilosófica com características próprias não induz a conclusão de
que o positivismo jurídico esteja completamente superado, o que seria, por
certo, um retrocesso para a Ciência do Direito. Nesse sentido, veja-se a
perspectiva crítica sustentada por Elival da Silva Ramos:

Nesta última década, difundiu-se entre os constitucionalistas


brasileiros a retórica da superação do positivismo, enquanto
modelo de compreensão do fenômeno jurídico. (...) Destarte,
no lugar desse “superado” positivismo, propõe-se que a
Dogmática Constitucional se assente em um assim
denominado “pós-positivismo”, entendido como “a designação
provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem
a definição das relações entre valores, princípios e regras,
aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos
direitos fundamentais”46.
44
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
45
OLIVEIRA FILHO, Benjamin de. Introdução à Ciência do Direito, 4ª Ed. Rio de Janeiro:
Konfino Editor, 1967.
46
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 35.
Porém, a despeito do entendimento expressado pelo
supracitado autor, o pós-positivismo não contraria o positivismo jurídico e não
tem a pretensão de superá-lo; pelo contrário, o pós-positivismo se baseia na
lógica positivista e, em adição a isso, condiciona a validade do direito à sua
conformidade com os valores propugnados pelo texto constitucional.

Portanto, a teoria pós-positivista não refuta a constatação de


que o direito depende, enquanto ciência e fato social que é, da primazia da lei.
Tampouco se pretende antepor uma perspectiva subjetivista ao direito positivo.
Ao revés, o que se ressalta é o protagonismo normativo representado pela
Constituição, que não deixa de ser um postulado objetivo e que se reveste,
inegavelmente, de valores fundamentais prestigiados por ocasião pacto
político, valores estes consubstanciados nos princípios constitucionais.

É bem verdade que Hans Kelsen, um dos mais renomados


representantes da teoria positivista, já reconhecia a proeminência da
Constituição, situada no ápice de sua pirâmide hierárquica 47; porém, foi o
posterior reconhecimento do caráter normativo dos princípios que ampliou de
forma mais significativa o alcance das normas constitucionais, dado seu
elevado grau de generalidade e abstração, oferecendo respaldo para uma mais
ampla proteção do cidadão frente aos abusos cometidos pelos detentores do
poder.

Nesse mesmo sentido, Ana Paula Barcellos observa que a


denominação neoconstitucionalismo, estreitamente relacionada com o pós-
positivismo, revela que, de fato, está-se diante de um fenômeno novo, muito
embora se deva admitir que o constitucionalismo contemporâneo possui
influências marcantes de seus antecedentes históricos, consoante se extrai do
excerto a seguir transcrito:

A expressão “neoconstitucionalismo” tem sido utilizada por


parte da doutrina para designar o estado do constitucionalismo
contemporâneo. O prefixo neo parece transmitir a ideia de que
se está diante de um fenômeno novo, como se o
constitucionalismo atual fosse substancialmente diverso

47
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 214.
daquilo que o antecedeu. De fato, é possível visualizar
elementos particulares que justificam a sensação geral
compartilhada pela doutrina de que algo diverso se desenvolve
diante de nosso olhos e, nesse sentido, não seria incorreto
falar de um novo período ou momento no direito constitucional.
Nada obstante isso, fenômeno humano e histórico que é, o
constitucionalismo contemporâneo está ligado de forma
indissociável à sua própria história, como se verá adiante48.

Na sequência, ao definir o neoconstitucionalismo sob o ponto


de vista metodológico-formal, a supracitada autora aponta três premissas
fundamentais sobre as quais se fundam os sistemas jurídicos ocidentais
contemporâneos, quais sejam: (a) a normatividade da Constituição, que
consiste no reconhecimento de suas disposições como normas jurídicas,
dotadas, como as demais, de imperatividade; (b) a superioridade da
Constituição sobre o restante da ordem jurídica; e (c) a centralidade da
Constituição nos sistemas jurídicos, implicando que os demais ramos do direito
devem ser compreendidos e interpretados a partir do que dispõe essa norma
fundamental49.

No que diz respeito à relação entre os conceitos de


neoconstitucionalismo e pós-positivismo, embora alguns autores cheguem a
identificá-los como sinônimos, cumpre observar que aquele é um fenômeno
atinente ao Direito Constitucional, ao passo que este diz respeito à Filosofia do
Direito. De qualquer sorte, o que interessa a este trabalho é identificar o ponto
comum a esses dois fenômenos, que interfere diretamente na configuração da
chamada Nova Hermenêutica, a saber, o reconhecimento da normatividade
dos princípios constitucionais, com vistas à concretização dos direitos
fundamentais e à promoção da dignidade humana.

48
BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e controle
das políticas públicas, pp. 1-2. Disponível em:
<http://www.direitopublico.com.br/pdf_seguro/artigo_controle_pol_ticas_p_blicas_.pdf>
Acesso em: 16/04/2015
49
BARCELLOS, Ana Paula de, op. cit., pp. 2-3.
Porém, antes que se possa adentrar na seara da nova
hermenêutica constitucional, é oportuno esclarecer o significado dos princípios
na atual dogmática jurídica.

De acordo com Luís Roberto Barroso, a origem dos princípios


remonta aos tempos antigos, como se observa da filosofia de Aristóteles, que
originou o princípio da não-contradição, bem como dos princípios básicos do
direito romano, presentes no Digesto de Ulpiano, ou ainda pela tradição
judaico-cristã, que consagrou o princípio magno de respeito ao próximo. Enfim,
os princípios vêm de longe e representaram papéis diversos. Porém, na
dogmática jurídica atual os princípios possuem caráter normativo, como
mencionado anteriormente, e desempenham as seguintes funções: (a)
condensar valores; (b) dar unidade ao sistema; e (c) condicionar a atividade do
intérprete50.

Portanto, os princípios adquirem especial relevância para a


hermenêutica constitucional no quanto possuem caráter normativo e são
condicionantes da atividade interpretativa.

Ademais, insta observar que os princípios, por sua própria


natureza, possuem alto grau de indeterminação e, portanto, requerem
concretização pela via interpretativa, sem a qual não seriam suscetíveis de
aplicação a casos concretos51. Aliás, esse é o principal critério que se tem
adotado na doutrina para distinguir regras e princípios, vale dizer, o teor
preponderantemente específico ou abstrato que a norma venha a assumir em
um determinado ordenamento jurídico.

Em conclusão, nesse paradigma proposto pelo pós-positivismo


e pelo neoconstitucionalismo exsurge a importância dos princípios na
normatividade constitucional, cabendo ao hermeneuta a ponderação dos
valores aí contidos e, assim, a concretização da Constituição, inclusive
apontando direções para a realização de políticas públicas indispensáveis a
esse desiderato52.

1.5. A nova hermenêutica constitucional


50
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição, op. cit., pp. 327-328.
51
GUASTINI, Riccardo apud BONAVIDES, Paulo, op. cit., p. 257.
52
SIMÕES, Alexandre Gazetta, op. cit., p. 112.
Como visto no título anterior, houve um tempo em que a
hermenêutica jurídica se limitava a um processo de subsunção mecânica em
que, a pretexto de se manter a neutralidade do magistrado em relação às
opções políticas do legislador, a aplicação da lei aos casos concretos era
exercida de modo puramente técnico. Inclusive, Montesquieu referiu-se ao
Judiciário como um poder “invisível e nulo” e aos juízes como sendo “apenas a
boca que pronuncia as palavras da lei; seres inanimados que não lhe podem
moderar nem a força, nem o rigor”. Trata-se da Escola da Exegese, marcada
pelo predomínio do método gramatical, complementado pelo histórico, e
desenvolvida sob o argumento de que a lei, à época inteiramente contida no
Código, era o indicativo mais seguro da vontade do legislador53.

Nessa mesmo sentido, a tradição alemã também deixou um


legado de restrição ao poder do juiz, porém, não sob o fetichismo da lei escrita,
mas sim sob a observação de um produto espontâneo, gerado pelo costume e
aceito naturalmente pelo “espírito popular” (Volksgeist), no que se caracteriza a
Escola Histórica54.

Posteriormente, verificou-se, até mesmo no âmbito do


pensamento positivista, a decadência da interpretação exegética como simples
reprodução literal do texto normativo, passando-se a admitir o sopro criativo da
jurisprudência, o que se verifica, por exemplo, na crítica de Hans Kelsen à tese
da subsunção automática55. É o que se extrai do trecho a seguir transcrito:

Assim como da Constituição, através da interpretação, não


podemos extrair as únicas leis corretas, tampouco podemos, a
partir da lei, por interpretação, obter as únicas sentenças
corretas. De certo que existe uma diferença entre estes dois
casos, mas é uma diferença somente quantitativa, não
qualitativa, e consiste apenas em que a vinculação do
legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais
reduzida do que a vinculação do juiz, em que aquele é,
53
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 68-69.
54
MORAES, Maria Celina Bodin. Do juiz boca da lei à lei segundo a boca do juiz: notas
sobre a aplicação-interpretação do direito no início do século XXI. In: 10 anos de vigência do
Código Civil de 2002: estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Dabus Maluf, coord.
Christiano Cassettari, orientação Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 56.
55
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., pp. 71-72.
relativamente, muito mais livre na criação do Direito do que
este. Mas também este último é um criador do Direito e
também ele é, nesta função, relativamente livre56.

O fato é que no período subsequente, sobretudo no século XX,


que representa um momento de transição, fez-se notar, tanto em âmbito
externo, através das declarações de direitos humanos, quanto em âmbito
interno, nos textos constitucionais, a positivação de direitos fundamentais e da
proteção à dignidade da pessoa humana 57. Nesse contexto, surge o
questionamento acerca da forma de interpretação e aplicação do direito,
empreendendo-se uma busca por um modelo que assegurasse plena vigência
às garantias constitucionais, que, a partir de então, passariam a se projetar
sobre todos os ramos da ciência jurídica.

Simultaneamente, verifica-se que significativos foram os


avanços no campo da hermenêutica jurídica pela contribuição do filósofo Hans-
Georg Gadamer, que recupera a concepção circular de Heidegger no chamado
“círculo hermenêutico”, processo interpretativo que parte de pré-compreensões
do intérprete-aplicador, as quais são complementadas pelo texto normativo e
interferem diretamente na obtenção do significado final. Nessa vertente, a
concretização não é somente a revelação de um significado já contido no texto
legal, mas a construção da norma jurídica em um caso concreto a partir de uma
ótica e uma reflexão realistas58.

Diante do reconhecimento da participação do intérprete na


construção da norma, a hermenêutica jurídica passa a ser concebida como um
processo criativo que parte de elementos cognitivos do hermeneuta, o que até
então não fora reconhecido pelos positivistas e nem mesmo pela perspectiva
reformulada de Kelsen.

E, nesse ponto, vale observar que os princípios e as regras


constitucionais, normas jurídicas que são, não escapam à interpretação 59.
Portanto, essa tendência da nova hermenêutica jurídica, que realça a

56
KELSEN, Hans apud RAMOS, Elival da Silva, ibidem, p. 72.
57
MORAES, Maria Cecilia Bodin, op. cit., p. 57.
58
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., pp. 81-82.
59
GOMES, Sergio Alves, op. cit., p. 42.
participação criativa do intérprete, faz-se notar também na seara constitucional,
sobretudo no contexto do neoconstitucionalismo, marcado por Constituições
principiológicas. Elival da Silva Ramos corrobora esse entendimento:

Não resta a menor dúvida de que as Constituições


principiológicas trazidas pelo constitucionalismo social-
democrático e atuadas pelas Cortes Constitucionais, de um
lado, contribuíram para limitar, significativamente, a liberdade
de conformação do direito infraconstitucional pelo Poder
Legislativo, porém, de outro, acentuaram a criatividade no
exercício da jurisdição60.

Ademais, é fundamental que o intérprete constitucional


contemporâneo saiba conciliar os métodos tradicionais da hermenêutica
jurídica, dentre os quais o gramatical, o lógico, o sistemático, o histórico-
evolutivo e o teleológico61, e não se limite apenas a algum ou alguns destes,
como propuseram algumas das superadas Escolas Hermenêuticas, o que
reduzia significativamente a amplitude semântica da interpretação,
prejudicando-se a compreensão sistêmica do ordenamento jurídico.

Ainda, impende considerar que essa nova hermenêutica


também encontra respaldo em princípios de orientação constitucional, que são
elencados por diversos autores sob nomenclaturas distintas, porém, integrados
em uma mesma essência. Apenas a título exemplificativo, faz-se menção aos
princípios de interpretação constitucional contemplados na obra de Luís
Roberto Barroso, que são: o princípio da supremacia da Constituição; o
princípio da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do poder
público; o princípio da interpretação conforme a Constituição; o princípio da
unidade da Constituição; o princípio da razoabilidade; o princípio da
proporcionalidade; e o princípio da efetividade62.

Em apertada síntese, esses são alguns dos pilares da nova


hermenêutica constitucional. Em que pese não se tenha analisado
individualmente cada um dos citados métodos e princípios - o que demandaria

60
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 86.
61
GOMES, Sergio Alves, op. cit., pp. 44-45.
62
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., pp. 151-246.
uma extensa explanação, em detrimento da objetividade com que se almeja
abordar o tema deste trabalho -, ficou bem delineado que a hermenêutica
constitucional contemporânea preza pela participação ativa e criativa do
intérprete-aplicador, com vistas a ampliar os horizontes interpretativos da
Constituição e compreendê-la como um sistema uno e soberano de valores a
serem realizados.

1.6. Eficácia das normas constitucionais

Há, ainda, um derradeiro aspecto que deve ser abordado


previamente à discussão do tema principal deste trabalho, que diz respeito à
eficácia das normas constitucionais. Trata-se, na realidade, de uma
compreensão equivocada que tem se difundido na comunidade jurídica
brasileira acerca da classificação das normas constitucionais conforme sua
aplicabilidade, de autoria do renomado constitucionalista José Afonso da Silva.
E, por obra dessa impropriedade conceitual, a teoria em questão, que
compreende normas de eficácia plena, contida e limitada, tem servido de
pretexto para suspender de forma arbitrária a vigência de direitos
fundamentais.

Diante disso, convém elucidar o preciso significado da


classificação das normas constitucionais conforme sua aplicabilidade, partindo-
se da origem dessa teoria e percorrendo as evoluções que se seguiram até o
presente estágio alcançado pela doutrina constitucional brasileira.

Inicialmente, José Afonso da Silva observa que a classificação


das normas constitucionais, do ponto de vista de sua aplicabilidade, foi
concebida pela doutrina e pela jurisprudência norte-americanas. Naquela
concepção primitiva, as normas constitucionais classificavam-se como self-
executing provisions e not self-executing provisions, conforme fossem ou não
auto-executáveis, auto-aplicáveis ou, ainda, bastantes em si, como traduzem
os autores nacionais63.

Prossegue o eminente constitucionalista, reportando-se à


doutrina de Cooley:

63
SILVA, José Afonso, op. cit., p. 73.
Pode-se dizer que uma norma constitucional é auto-executável
quando nos fornece uma regra, mediante a qual se possa fruir
e resguardar o direito outorgado, ou executar o dever imposto;
e que não é auto-aplicável quando meramente indica
princípios, sem estabelecer normas por cujo meio se logre dar
a esses princípios vigor de lei64.

Veja-se, desde logo, que o autor norte-americano expressa


uma perspectiva superada pela atual dogmática jurídica no quanto estabelece
uma escala hierárquica em que os princípios são inferiores às regras, refutando
o caráter normativo da espécie, que, como visto nos tópicos anteriores, hoje é
pacificamente reconhecido.

De qualquer sorte, a classificação norte-americana, que teve


Cooley como um de seus precursores, foi difundida entre nós por Ruy Barbosa,
que conceituou as normas auto-executáveis como:

“as determinações, para executar as quais não se haja mister


de constituir ou designar um autoridade, nem criar ou indicar
um processo especial, e aquelas onde o direito instituído se
ache armado por si mesmo, pela sua própria natureza, dos
seus meios de execução e preservação”.

Por outro lado, Ruy Barbosa define as normas não auto-


executáveis como as que:

“não revestem dos meios de ação essenciais ao seu exercício


os direitos, que outorgam, ou os encargos, que impõem:
estabelecem competências, atribuições, poderes, cujo uso tem
de aguardar que a Legislatura, segundo o seu critério, os
habilite a se exercerem”65.

Posteriormente, em uma tese mais consentânea com o


constitucionalismo contemporâneo, José Afonso da Silva propôs que, em vez
de dividir as normas constitucionais quanto à eficácia e aplicabilidade em dois
grupos, fossem estas consideradas sob tríplice característica, discriminando-as
64
COOLEY, Thomas M. apud SILVA, José Afonso, ibidem, p. 74.
65
BARBOSA, Ruy apud SILVA, José Afonso, op. cit., p. 74.
em três categorias: (a) normas constitucionais de eficácia plena; (b) normas
constitucionais de eficácia contida; (c) normas constitucionais de eficácia
limitada ou reduzida66.

Nessa perspectiva, normas de eficácia plena são aquelas que


produzem todos os seus efeitos essenciais, pois o legislador constituinte criou,
desde logo, uma normatividade suficiente para isso, incidindo direta e
imediatamente sobre a matéria que constitui seu objeto. De outro lado, normas
constitucionais de eficácia contida são aquelas que produzem todos seus
efeitos, mas admitem restrições de efeitos, dadas certas circunstâncias. Por
fim, normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida são aquelas que
não produzem, com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos
essenciais, pois o legislador constituinte não estabeleceu uma normatividade
bastante para isso, deixando essa tarefa a cargo do legislador ordinário ou a
outro órgão do Estado67.

Há, ainda, uma divisão das normas de eficácia limitada em dois


grupos, conforme o conteúdo da norma. A doutrina, em um primeiro momento,
estabeleceu a seguinte distinção: (a) normas programáticas, que constituem
programas de ação social; e (b) normas de legislação, que se inserem na parte
organizativa da constituição. Porém, José Afonso, considerando que essa
nomenclatura não correspondia à realidade, ponderou que a diferença entre
um grupo e outro reside no fato de que um declara princípios regulativos ou
institutivos, ao passo que o outro compreende princípios programáticos, do que
deriva a terminologia adotada por esse autor: (a) normas declaratórias de
princípios institutivos ou organizativos e (b) normas declaratórias de princípio
programático68.

Registre-se, por oportuno, que a classificação em questão não


se presta a destituir as normas constitucionais de eficácia limitada de força
imperativa, de modo a torná-las absolutamente ineficazes. Aliás, o próprio Ruy
Barbosa, ao classificar determinadas normas constitucionais como não auto-

66
SILVA, José Afonso, ibidem., p. 82.
67
SILVA, José Afonso, op. cit., pp. 82-83.
68
SILVA, José Afonso, ibidem, pp. 84-86.
aplicáveis, reconheceu que “não há, numa Constituição, cláusulas a que se
deve atribuir meramente o valor moral de conselhos, avisos ou lições”69.

Por sua vez, José Afonso da Silva pontuou:

Nem as normas ditas auto-aplicáveis produzem por si mesmas


todos os efeitos possíveis, pois são sempre passíveis de novos
desenvolvimentos mediante legislação ordinária, nem as ditas
não auto-aplicáveis são de eficácia nula, pois produzem efeitos
jurídicos e têm eficácia, ainda que relativa e reduzida.

Cada norma constitucional é sempre executável por si mesma


até onde possa, até onde seja suscetível de execução. O
problema situa-se, justamente, na determinação desse limite,
na verificação de quais os efeitos parciais e possíveis de cada
uma70.

Com efeito, José Afonso se posiciona no sentido de que as


normas programáticas são dotadas de um mínimo de eficácia jurídica no
quanto:

(I) estabelecem um dever para o legislador ordinário, (II)


condicionam a legislação futura, com a consequência de serem
inconstitucionais as leis ou atos que a ferirem, (III) informam a
concepção do Estado e da sociedade, (IV) constituem sentido
teleológico para a interpretação, integração e aplicação das
normas jurídicas, (V) condicionam a atividade discricionária da
Administração e do Judiciário e (VI) criam situações jurídicas
subjetivas, de vantagem ou desvantagem71.

Portanto, as normas programáticas não apenas vinculam o


legislador ordinário, a fim de que não exerça seu poder em sentido contrário,
como também direcionam a atividade estatal no sentido de perseguir os fins
estabelecidos pela norma e, inclusive, geram uma situação jurídica de

69
BARBOSA, Ruy apud SILVA, José Afonso, ibidem, pp. 75-76.
70
SILVA, José Afonso, op. cit., p. 76.
71
SILVA, José Afonso, ibidem, p. 164.
vantagem ou desvantagem aos seus destinatários, possibilitando que venham
a exigir prestações e abstenções do Estado.

Ocorre que o Poder Legislativo, algumas vezes respaldado por


entendimentos doutrinários e jurisprudenciais questionáveis, tem agido de
modo a se esquivar dos ditames programáticos. Com efeito, tem-se notado que
o legislador infraconstitucional não vem regulamentando determinadas
matérias veiculadas através de normas programáticas, suspendendo
indefinidamente a eficácia de direitos fundamentais, o que se afigura
inadmissível.

É o que se verifica, por exemplo, no caso da Emenda


Constitucional nº 72/2013, que assegurou à categoria dos trabalhadores
domésticos alguns dos direitos constitucionais previstos no art. 7º da
Constituição Federal. A norma ficou pendente de regulamentação por
aproximadamente 2 (dois) anos, período em que a categoria permaneceu
submetida à legislação pretérita, a despeito da inovação constitucional
existente em benefício do trabalhador, que, desse modo, ficou impedido de fruir
de seus direitos.

É certo que nem sempre a demora na regulamentação das


normas programáticas se deve à desídia ou à má vontade dos representantes
políticos. Deve-se considerar o lapso temporal inerente aos trâmites do
processo legislativo, assim como os outros motivos alheios à vontade do
legislador que interferem na seara política.

Porém, o que se quer demonstrar é que o destinatário da


norma programática não pode arcar com os prejuízos da demora estatal e,
consequentemente, ser privado do acesso aos direitos fundamentais, como se
o Estado possuísse a prerrogativa de ignorar os ditames programáticos
enquanto não sobrevier legislação integrativa.

Ao revés, a eficácia que é inerente a toda norma constitucional,


reconhecida de forma taxativa por José Afonso da Silva, demanda a atuação
estatal no sentido de proteger os interesses da coletividade, no que estão
compreendidos todos os agentes públicos, inclusive o juiz, ao exercer a guarda
da Constituição. É que, se as atividades da Administração se desenvolverem
contrariamente aos fins e objetivos postos pelas normas constitucionais
programáticas, manifesta-se um comportamento inconstitucional e o ato que
daí deflui se sujeita ao controle de constitucionalidade72.

Em conclusão, é nesse sentido que deve se desenvolver a


atuação do Poder Judiciário para viabilizar a concretização dos direitos
fundamentais, inclusive dos denominados direitos sociais, veiculados
principalmente por normas constitucionais programáticas, não se podendo
ignorar os efeitos jurídicos advindos dessa classe, como exposto acima.

2. ATIVISMO JUDICIAL

2.1. Origem

Como mencionado alhures, a centralidade do Poder Judiciário


fez-se notar em diferentes partes do mundo e em época diversas. A propósito,
Luís Roberto Barroso menciona inúmeros exemplos dessa atuação, que
derivam do avanço da justiça constitucional, sobretudo desde o final da
Segunda Guerra Mundial, dentre os quais o caso em que a Suprema Corte do
Canadá foi instada a se manifestar sobre a constitucionalidade dos testes com
mísseis realizados pelos Estados Unidos em solo canadense, bem como a
situação em que a Suprema Corte de Israel decidiu ser compatível com a
Constituição e com atos internacionais a construção de um muro na fronteira
com o território palestino, ou ainda quando a Corte Constitucional da Coreia
restitui o mandato de um presidente que havia sido destituído por
impeachment73.

Por sua vez, José Antonio Gomes Ignácio Junior retrocede de


forma ainda mais profunda na história ao observar que essa tendência de

72
SILVA, José Afonso, op. cit., p. 175.
73
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., pp. 1-2.
alongamento da atuação do Judiciário já mostrava indícios em textos do início
do século passado, como a Constituição mexicana de 1917 e a Constituição de
Weimer de 191974.

Assim, a partir da observação da jurisprudência e dos fatos


históricos supracitados, a doutrina, que já identificava indícios de centralidade
do Poder Judiciário, passou a desenvolver conceitos mais sofisticados, tais
como o ativismo judicial e a judicialização da política, que foram evoluindo no
decorrer da história até chegar ao atual estágio que será apresentado nos
tópicos seguintes.

De acordo com a doutrina, a origem do conceito de ativismo


judicial, originário da expressão da língua inglesa “judicial activism”, remonta à
jurisprudência norte-americana. Em um primeiro momento, a atuação proativa
da Suprema Corte serviu de suporte para os setores mais reacionários na
segregação racial e para a invalidação das leis sociais em geral, o que
culminou no confronto entre o Presidente Roosevelt e a Corte, com a mudança
da orientação jurisprudencial contrária ao intervencionismo estatal.
Posteriormente, a partir da década de 50, quando a Suprema Corte, sob a
presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até
1973), produziu jurisprudência progressista em matéria de direitos
fundamentais, sobretudo envolvendo negros e mulheres75.

Face ao exposto, convém questionar se a circunstância de que


o ativismo judicial se origina do direito norte-americano influi significativamente
na análise desse fenômeno no direito brasileiro, tendo-se em conta que a
tradição de que derivam cada um desses ordenamentos jurídicos é diversa,
visto ser aquele advindo do tronco anlgo-saxão e esse do tronco romano-
germânico, como se verá mais adiante.

No quanto interessa ao tema, Elival da Silva Ramos sustenta


que a caracterização do ativismo judicial está condicionada ao modo de

74
IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes, op. cit., p. 132.
75
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 7.
exercício da jurisdição no ordenamento jurídico em que se insere o fenômeno e
ao lugar atribuído às decisões judiciais entre as fontes do direito76.

Por óbvio, a análise do ativismo judicial em países de cultura


jurídica diversa apontará características peculiares que são próprias à
realidade de cada um deles. É dizer, o ativismo brasileiro jamais será como o
ativismo estadunidense ou como qualquer outro ativismo que se verifique no
mundo. Contudo, o que se quer perquirir é se o fato de que a noção de
ativismo judicial foi importada do direito norte-americano é suficiente para
concluir que esse fenômeno é impróprio ao direito brasileiro, como pretendem
fazer crer alguns autores.

Como é cediço, o mundo ocidental compreende dois grandes


sistemas que influenciaram o surgimento e a conformação dos diversos
ordenamentos jurídicos nacionais. De um lado, tem-se o common law,
originário da tradição dos povos anglo-saxões, verificado em países como a
Inglaterra e os Estados Unidos da América e, do outro, o civil law, oriundo da
tradição romano-germânica, integrado por países como o Brasil e Portugal, por
exemplo.

Em apertada síntese, pode-se dizer que o sistema jurídico do


common law se caracteriza por revelar o Direito em usos e costumes
consolidados na jurisprudência, ao passo que o sistema jurídico do civil law se
caracteriza pelo primado do processo legislativo, atribuindo-se valor secundário
às demais fontes do direito77. De forma bastante objetiva, essa é a distinção
apontada pela maioria dos autores em relação aos dois sistemas.

Essa definição, contudo, é demasiadamente simplista para


ilustrar a peculiaridade de cada um dos sistemas e estabelecer suas
fundamentais diferenças.

Dessa forma, para maior aprofundamento do tema, faz-se


oportuno mencionar os critérios de diferenciação elencados por Mauro
Cappelletti, indicando em que medida os diferentes sistemas jurídicos
interferem na seara da criação jurisprudencial do direito, quais sejam:

76
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 104.
77
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 142.
a) do ponto de vista estrutural e organizacional, que se verifica
na estrutura unitária e compacta dos países do common law, ao passo que nos
países do civil law predomina uma estrutura desunida e diluída, o que resulta
no enfraquecimento dos tribunais, dos magistrados singulares que a integram e
de suas decisões;

b) a discricionariedade do judiciário para decidir ou recusar-se


a decidir os recursos que lhe são submetidos, que geralmente é diminuta em
países do civil law, resultando em uma atividade frenética por parte dos
tribunais superiores e das cortes constitucionais desse sistema, que se vêm
constrangidos a emitir um elevadíssimo número de decisões;

c) a sociologia judiciária, ou seja, a tipologia dos juízes,


derivada do modo de ingresso na carreira, que nos países do civil law se dá
mediante exames ou concursos prescritos com tal finalidade, favorecendo uma
postura preponderantemente técnica em detrimento da atuação valorativa ou
política, ao passo que nos países do common law a nomeação para o cargo de
juiz usualmente se dá mediante uma escolha política, o que favorece decisões
marcadas por uma criatividade mais acentuada;

d) a usual falta de vinculação aos precedentes jurisprudenciais


nos países do civil law, conspirando para que a autoridade dos tribunais seja
menor, menos visível e “dramática”, se comparada aos países do common law;
e

e) a tendência em identificar, nos países do civil law, o direito


com a lei, de modo que, mesmo em face da lacuna legislativa, pretenda-se
entender que o juiz não faz senão aplicar a lei, ao passo que nos países do
common law o direito legislativo é visto em certo sentido como fonte
excepcional78.

Ocorre que, a despeito dessa distinção, a aproximação entre


essas duas grandes famílias do direito ocidental tem sido claramente
observada pela doutrina do Teoria Geral do Direito e do Direito Comparado.
Veja-se, nesse particular, o destaque feito por Miguel Reale:

78
CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., pp. 116-122.
O confronto entre um e outro sistema tem sido extremamente
fecundo, inclusive por demonstrar que, nessa matéria, o que
prevalece, para explicar o primado desta ou daquela fonte de
direito, não são razões abstratas de ordem lógica, mas apenas
motivos de natureza social e histórica.

(...)

Na realidade, são expressões culturais diversas que, nos


últimos anos, têm sido objeto de influências recíprocas, pois
enquanto as normas legais ganham cada vez mais importância
no regime do common law, por sua vez, os precedentes
judiciais desempenham papel sempre mais relevante no Direito
de tradição romanística79.

A propósito, René David pontua que a tendência é que os


métodos e as soluções adotados nos dois sistemas se tornem cada vez mais
próximos, como se denota do excerto a seguir transcrito:

Países de direito romano germânico e países de common law


tiveram uns com os outros, no decorrer dos séculos,
numerosos contatos. Em ambos os casos, o direito sofreu a
influência da moral cristã e as doutrinas filosóficas em voga
puseram no primeiro plano, desde a época da Renascença, o
individualismo, o liberalismo e a noção de direitos subjetivos. A
common law conserva hoje a sua estrutura, muito diferente da
dos direitos romano-germânicos, mas o papel desempenhado
pela lei foi aí aumentando e os métodos usados nos dois
sistemas tendem a aproximar-se; sobretudo a regra de direito
tende, cada vez mais, a ser concebida nos países de common
law como o é nos países da família romano-germânica. Quanto
à substância, soluções muito próximas, inspiradas por uma
mesma ideia de justiça, são muitas vezes dadas às questões
de direito nas duas famílias de direito80.

79
REALE, Miguel, idem.
80
DAVID, René apud RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 107.
Como se vê, o fenômeno da globalização se estende ao
universo jurídico, ensejando a homogeneização de padrões culturais e a
adoção de posturas semelhantes no enfrentamento de questões comuns a
todos, conforme observa Lewandowsky81.

Vale dizer, se os sistemas jurídicos são expressão cultural de


um determinado povo, como sustenta Reale, é bastante natural que a
globalização provoque a aproximação das diversas fontes do direito existentes,
inclusive possibilitando a ascensão daquelas outrora tidas como “secundárias”
ou “subsidiárias”. De fato, o papel que os precedentes jurisprudenciais exercem
nos países de tradição romanística, ainda que não seja o mesmo da tradição
anglo-saxônica, não é de importância secundária82.

Portanto, a conclusão a que se chega é de que, mesmo nos


países de tradição do civil law, tem-se observado um fenômeno de aumento da
criatividade jurisprudencial similar àquele verificado nos países do common
law. A propósito, Mauro Cappelletti observa que “longe de ser insuscetível de
análise comparativa, este fenômeno em grande medida é análogo, senão
idêntico, nas duas grandes famílias jurídicas”83.

Nessa linha argumentativa, não pende qualquer dúvida de que


o ativismo judicial, fenômeno originário dessa tendência de aumento da
criatividade jurisprudencial, é perfeitamente passível de observação no âmbito
do direito brasileiro, inobstante sua origem romanística, caracterizada, em uma
concepção tradicional, pelo primado da lei. Enfim, já não se pode refutar a
relevância das decisões judiciais no processo de revelação e afirmação do
direito brasileiro.

2.2. Causas

Como visto, a tendência de incremento da criatividade


jurisprudencial, hoje também presente nos países de tradição romanística,
constitui fator determinante para a ascensão do ativismo judicial no direito

81
LEWANDOWSKY, Enrique Ricardo. Globalização, regionalização e soberania. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2004, p. 50
82
ASCARELLI, Tullio apud REALE, Miguel, op. cit., p. 169.
83
CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 128.
brasileiro. No entanto, não é esta a única causa que coopera para o
estabelecimento da presente situação.

O que se constata é que o desenvolvimento do ativismo judicial


está associado às atuais circunstâncias da política brasileira, sobretudo ao
desprestígio do Poder Legislativo e do Poder Executivo perante a população,
contexto em que o Judiciário se apresenta como uma alternativa para atender
às demandas da sociedade, suprindo as lacunas deixadas pela inatividade
estatal. Trata-se daquilo que anteriormente denominou-se inativismo legislativo
e inativismo executivo.

E, como consequência dessa omissão institucional, emerge


uma crise de identidade entre a sociedade civil e os representantes políticos,
que é observada em escala global por Mauro Cappelletti como um “crescente
sentimento de desilusão e desconfiança” diante de um quadro em que:

De um lado, os parlamentos demonstram o caráter fantasioso


de sua pretensão de se erigirem em instrumentos onipotentes
do progresso social. Demasiadas leis foram emanadas
demasiadamente tarde, ou bem cedo tornaram-se totalmente
obsoletas; muitas se revelaram ineficazes, quando não
contraprodutivas, em relação às finalidades sociais que
pretendiam atingir; e muitas, ainda, criaram confusão,
obscuridade e descrédito da lei.

(...)

De outro lado, causou problemas não menos sérios também a


emergência do estado administrativo. Desnecessário
mencionar o perigo de abusos por parte da burocracia, a
ameaça da situação de “tutela” paternalística, quando não de
opressão autoritária sobre os cidadãos por parte do
onipresente aparelho administrativo e, por isso, ao mesmo
tempo distante, inacessível e não orientado para o seu serviço,
o sentimento de impotência e abandono que termina por
invadir todos os cidadãos incapazes, ou sem vontade, de se
reunirem em grupos poderoso, com condições de obter acesso
às inumeráveis alavancas da máquina burocrática, exercitando
pressões sobre ela, a abulia e o anonimato, enfim, da grande
maioria dos que tiveram aquela capacidade ou vontade, por
meio da qual uniram-se à massa dos participantes de tais
grupos poderoso de pressão84.

Veja-se que, no entendimento de Mauro Cappelletti, essa crise


política generalizada deriva de um inchaço nas atividades desses dois
Poderes, o que o autor define como “o gigantismo do Poder Legislativo, que é
chamado a interferir em esferas sempre maiores de assuntos e de atividade” e
“o consequente gigantismo do ramo administrativo, profunda e potencialmente
repressivo”85.

À primeira vista, parece contraditório supor que o inativismo


legislativo e o inativismo executivo, sendo fenômenos de omissão, resultem de
um gigantismo das atividades do Poder Legislativo e do Poder Executivo.
Porém, a despeito da aparente contradição, a afirmação de que o
“agigantamento” desses dois Poderes resulta em omissão institucional parece
bastante razoável sob a ótica da efetividade.

É que o legislador e o administrador, no anseio de conquistar a


adesão do povo, pois dependem disso para permanecer no poder, chamam
para si a responsabilidade de dirigir os rumos da atividade estatal, assumindo
causas sociais e compromissos de campanha diversos, sem, porém, mensurar
as consequências da responsabilidade de que se revestem perante a
sociedade.

Nesse contexto, essa sobrecarga de responsabilidade que


recai sobre o chamado Big Government, como consequência das incontáveis
promessas eleitorais e da política paternalista que se tem praticado, torna
praticamente impossível a realização dos objetivos a que o Estado se propõe,
de modo que aquelas demandas sociais são atendidas de forma bastante
precária ou, no mais das vezes, sequer são apreciadas.

84
CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., pp. 44/45.
85
Ibidem, p. 46.
Enfim, quem muito quer fazer, acaba nada fazendo. É
exatamente nessa lógica que aquele fenômeno de “agigantamento” do
Legislativo e do Executivo identificado por Mauro Cappelletti vai ao encontro
dos fenômenos omissivos do inativismo legislativo e do inativismo executivo.

E, diante desse quadro, Cappelletti entende que o


“agigantamento do terceiro poder”, referindo-se ao Poder Judiciário, nada mais
é do que um esforço da sociedade por encontrar a cura desses dois
desenvolvimentos potencialmente patológicos86. Tem-se, assim, um equilíbrio
de forças como instinto natural de preservação do sistema de contrapesos e
controles recíprocos87.

Nessa linha argumentativa, o autor conclui que o aumento da


criatividade judiciária na presente época tem como causa o surgimento de um
Judiciário que acompanha o crescimento sem precedentes dos outros dois
Poderes do Estado moderno, o que se estende até mesmo a países como a
França de Montesquieu, como se observa no ramo do direito administrativo,
assim como a Alemanha e a Itália, na seara da justiça constitucional88.

Corroborando esse entendimento, Carlos Eduardo Dieder


Reverbel vislumbra esse estado patológico da política como sendo a raiz do
ativismo judicial também no Brasil, como adiante se vê:

Mas certamente este ativismo judicial, ao menos no Brasil,


possui raízes mais profundas, como o desprestígio da lei, a
ineficiência do executivo, a desestruturação do sistema, a
irracionalidade das instituições, a ausência de uma boa
política, a falta de consenso sobre pontos fundamentais89.

No mesmo sentido, Luís Roberto Barroso aponta como causas


do ativismo judicial as “situações de retração do Poder Legislativo, de um certo

86
CAPPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 46.
87
Ibidem, p. 54.
88
Ibidem, p. 55/56.
89
REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. Ativismo judicial e Estado de Direito, p. 6.

Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/revistadireito/article/view/


7028/4246#.VT7i5SFViko>

Acesso em: 27/04/15.


descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as
demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva”90.

Por seu turno, Elival da Silva Ramos reconhece esse aspecto


político como causa do ativismo judicial, observando, contudo, que há também
um aspecto técnico que coopera para essa situação, qual seja, o controle de
constitucionalidade que é exercido pelo Poder Judiciário, como adiante se vê:

Observa-se da literatura dedicada à temática do ativismo


judicial em sentido amplo, vale dizer, à tensão entre os
Poderes provocada pelo desempenho da função jurisdicional,
que com grande frequência se associa o fenômeno ao controle
de constitucionalidade das leis e atos normativos, bem como
da omissão legislativa91.

No que tange ao controle de constitucionalidade, apenas a


título de mensurar sua importância ao Direito e, de forma ainda mais
abrangente, às ciências humanas, impende considerar que Dworking qualifica-
o como “a maior contribuição que a história do constitucionalismo norte-
americano deu à teoria política”92.

De acordo com Schiavon, em análise apurada sobre a


concepção habermasiana de democracia deliberativa, pode-se concluir que o
controle de constitucionalidade “é entendido e justificado como meio de
obtenção da legitimidade para leis positivas”93. Portanto, há uma clara
sinalização de que algumas leis, ainda que elaboradas pela autoridade
competente e com estrita observância dos aspectos procedimentais, podem ser
reputadas ilegítimas.

Na esteira desse entendimento, Schiavon observa que:

90
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 6.
91
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 22.
92
DWORKING apud SCHIAVON, SCHIAVON, Giovanne Henrique Bressan. Política
deliberativa de Habermas e controle de constitucionalidade, p. 2. Disponível em:
<https://www.academia.edu/10762712/Pol
%C3%ADtica_deliberativa_de_Habermas_e_controle_de_constitucionalidade> Acesso em:
03/06/15
93
SCHIAVON, Giovanne Henrique Bressan, op. cit., p. 10.
Em síntese, o controle de constitucionalidade deve manter os
canais abertos para a mudança política, garantir que os direitos
civis, os direitos de participação e que os direitos sociais sejam
respeitados, defender a qualidade constitucional e propriedade
das razões que justificam a ação governamental e assegurar
que os canais de influência da esfera pública da sociedade civil
independente reste desobstruído para a esfera pública forte e
não distorcido pelos poderes econômico ou administrativo94.

Portanto, pode-se concluir que o controle de


constitucionalidade possibilita o resguardo da ordem constitucional e,
consequentemente, da idoneidade das ações governamentais em face de
eventuais distorções oriundas dos poderes econômico ou administrativo.

De forma bastante simplista, pode-se dizer que o Poder


Judiciário, ao exercer o controle de constitucionalidade das leis que lhe
incumbe na ordem jurídica vigente, assume o dever de extirpar do
ordenamento os atos normativos que se reputem ilegítimos em face das
disposições da Constituição.

Como é cediço, o sistema de controle de constitucionalidade


brasileiro contempla basicamente duas vias, que são a via de defesa ou
exceção, compreendida como um instrumento de garantia dos direitos
subjetivos, pelo qual o requerente se subtrai aos efeitos de uma lei ou ato
inconstitucional, e a via de ação, que é primordialmente voltada para o bom
funcionamento da mecânica constitucional, tendo como objetivo expelir do
ordenamento a lei ou ato contrário à Constituição, bem como declarar a
omissão inconstitucional95.

Há, em razão desse sistema, a possibilidade de declaração de


inconstitucionalidade pela via do controle concentrado, isto é, por ação direta,
processada pelo Supremo Tribunal Federal, hipótese em que a decisão terá
efeito erga omnes, bem como pode a declaração ser arguida pela via do

94
Ibidem, p. 14.
95
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional, 14.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992,
pp. 324/327.
controle difuso, por qualquer juiz ou tribunal pátrio, tendo a decisão efeito
restrito às partes do processo.

Vê-se, portanto, que a incumbência de exercer a guarda da


Constituição se estende a todo o Poder Judiciário, o que amplia
significativamente a esfera de atuação dos juízes e tribunais no processo de
conformação das normas constitucionais e, consequentemente, a
responsabilidade que assumem perante os jurisdicionados pela efetividade
constitucional. Naturalmente, essa circunstância também constitui fator
determinante para a configuração do ativismo judicial.

2.3. Conceito

A essa altura, deve estar claro que o protagonismo judicial é


uma realidade inconteste, que deriva tanto da própria natureza das
Constituições na atual quadra histórica e, consequentemente, da relevância
que se atribui à atividade interpretativa do direito nesse contexto, quanto dos
rumos da política brasileira, que denotam uma aparente crise de eficiência e de
credibilidade em relação ao Legislativo e ao Executivo. A tendência, como se
vê, possui duas faces distintas.

Há, por um lado, um fator técnico, que parte da constatação de


que a Constituição se reveste de densa carga axiológica, o que interfere sobre
a natureza da linguagem constitucional. Nesse ponto, Luís Roberto Barroso
pontua que se trata de uma linguagem própria à veiculação de normas
principiológicas e esquemáticas, que apresentam maior abertura, maior grau de
abstração e, assim, menor densidade jurídica, o que acaba por conferir ao
intérprete um significativo espaço de discricionariedade96. Há que se
mencionar, ainda na seara técnica, o papel desempenhado pelo Judiciário no
controle de constitucionalidade das leis e atos normativos, que amplia a esfera
de atuação dos juízes e tribunais na prática jurídica.

E, por outro lado, há um fator político, que está associado aos


fenômenos neste estudo denominados inativismo legislativo e inativismo
executivo, resultantes de uma crise de representatividade que se apresenta na
política brasileira, atribuindo ao Poder Judiciário o dever de apreciar as
96
BARROSO, Luís Roberto, Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., p. 107.
demandas da população, frequentemente respaldadas em direitos
fundamentais, através do amplo acesso à Justiça que é assegurado pela
Constituição Federal de 1988.

Desde logo, é fundamental explicitar essas que são algumas


das principais características do protagonismo judicial, uma vez que o ativismo
judicial é um dos conceitos abarcados por essa tendência, assim como o é a
judicialização da política. Por oportuno, cumpre observar que ativismo judicial e
judicialização da política certamente caminham juntos, porém, não se
confundem, sendo certo que a doutrina predominante aponta-os como
parecidos, mas não iguais97.

Portanto, a fim de se estabeleça uma precisa distinção entre


esses dois fenômenos, bem como para que se viabilize o desejável
aprofundamento teórico do tema principal deste trabalho, passa-se à
conceituação daquilo que se tem denominado ativismo judicial.

De partida, faz-se mister recorrer às fontes elementares de


conceituação do direito norte-americano, sobretudo porque o vocábulo ativismo
judicial foi pioneiramente utilizado naquele contexto, como mencionado
anteriormente. Como é notório, o ativismo judicial, já de origem, não encontra
uma definição consensual.

De acordo com o Merriam-Webster's Dictionary of Law,


ativismo judicial é “a prática no Judiciário de proteção ou expansão dos direitos
individuais através de decisões que partem do precedente estabelecido, sendo
independentes ou opostas em relação à suposta intenção constitucional ou
legislativa”98.

Por outro lado, o Black's Law Dictionary define ativismo judicial


como “uma filosofia de tomada de decisões em que os juízes permitem que
seus pontos de vista pessoais sobre as políticas públicas, entre outros fatores,
orientem suas decisões, sugerindo que os adeptos dessa filosofia tendem a
encontrar violações constitucionais e estão dispostos a ignorar os
precedentes”99.
97
IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes, op. cit., p. 132.
98

99
Tavares, Vieira e Valle observam que na primeira referência a
ênfase recai sobre o elemento finalístico, que é o compromisso de expansão
dos direitos individuais, ao passo que a segunda referência acentua o elemento
comportamental, que consiste em dar-se espaço à prevalência das visões
pessoais de cada magistrado quanto à compreensão das normas
constitucionais100.

A dificuldade conceitual perdura até a atualidade e se estende


à doutrina brasileira, que ostenta caráter ambíguo na definição do ativismo
judicial, havendo aqueles que ressaltam seus aspectos negativos e aqueles
que enfatizam seus aspectos positivos.

Na perspectiva de Elival da Silva Ramos:

(...) por ativismo judicial deve-se entender o exercício da


função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio
ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder
Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas
(conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza
objetiva (conflitos normativos)101.

Como é notório, o supracitado autor ressalta o aspecto


negativo da prática ativista, sob o argumento de que há, na espécie, uma

subversão dos limites impostos à criatividade da jurisprudência


(...), afetando-se, inexoravelmente, as demais funções estatais,
máxime a legiferante, o que, por seu turno, configura
gravíssima agressão ao princípio da separação dos Poderes102.

A despeito disso, Elival da Silva Ramos reconhece que a


atrofiada teorização hermenêutica do positivismo liberal, reduzida à mera
constatação e aplicação mecânica dos enunciados normativos, remete a um
fenômeno de gravidade equiparável denominado “passivismo judiciário”103.

100
TAVARES, Rodrigo de Souza; VIEIRA, José Ribas; e VALLE, Vanice Regina Lírio. Ativismo
jurisdicional e o Supremo Tribunal Federal.
Disponível em: < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/brasilia/15_639.pdf>
Acesso em: 06/05/2015.
101
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 129.
102
Ibidem, p. 120.
103
Ibidem, p. 129.
Enfim, a partir de uma perspectiva que contempla os dois
extremos representados pelo positivismo jurídico clássico e pelo moralismo
jurídico, o autor conclui que se deve conciliar criatividade e obediência no plano
da jurisprudência, recorrendo às acertadas palavras de Miguel Reale que se
seguem:

Não nos atemoriza, em mais esta oportunidade, afirmar que a


verdade está no meio-termo, na conciliação dos extremos,
devendo o juiz ser considerado livre, não perante a lei e os
fatos, mas sim dentro da lei, em razão dos fatos e dos fins que
dão origem ao processo normativo, segundo a advertência de
Radbruch de que a interpretação jurídica, visando o sentido
objetivamente válido de um preceito, “não é e simplesmente
pensar de novo aquilo que já foi pensado, mas, pelo contrário,
um saber pensar até o fim aquilo que já começou a ser
pensado por outro”, observação que deve ser completado com
a de que a interpretação de uma norma envolve o sentido de
todo o ordenamento a que pertence104.

Registre-se, ainda, que, de acordo com Elival da Silva Ramos,


a prática do ativismo judicial em matéria constitucional não se restringe ao
controle de constitucionalidade, mas, pelo contrário, estende-se a toda e
qualquer situação pertinente à concretização de normas constitucionais, de
modo que a análise não deve ser reduzida às cortes constitucionais, mas a
todo e qualquer órgão que compõe as diversas instâncias do Poder Judiciário,
na medida em que sua atuação envolva a aplicação da Constituição105.

Por sua vez, Luís Roberto Barroso leciona que “o ativismo


judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de
interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance” 106, no que se
sobressai o aspecto positivo da prática ativista, ao se fazer à expansão
semântica da Constituição, ampliando-se, por conseguinte, a eficácia das
normas constitucionais.
104
REALE, Miguel apud RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 137.
105
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 140.
106
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 6.
Convém salientar que o renomado constitucionalista não ignora
o problema atinente à separação dos Poderes, apontado por Elival da Silva
Ramos, reconhecendo que “a ideia de ativismo judicial está associada a uma
participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e
fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros
dois Poderes”107.

No entanto, essa observação não obsta o reconhecimento dos


benefícios do ativismo judicial. Para o autor, “o fenômeno tem uma face
positiva: o Judiciário está atendendo a demandas da sociedade que não
puderam ser satisfeitas pelo parlamento, em temas como greve no serviço
público, eliminação do nepotismo ou regras eleitorais”108.

Ademais, Barroso sustenta que a interferência no espaço de


atuação dos outros dois Poderes não deve se tornar regra, advertindo que
“decisões ativistas devem ser eventuais, em momentos históricos
determinados”. De toda sorte, esse diálogo político entre o Judiciário e os
demais Poderes colabora para o êxito do projeto democrático, uma vez que
“não há democracia sólida sem atividade política intensa e saudável, nem
tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade”109.

Prosseguindo nesse conceito, Luís Roberto Barroso define


algumas das condutas que são próprias ao ativismo judicial, quais sejam:

i) a aplicação direta da Constituição a situações não


expressamente contempladas em seu texto e
independentemente de manifestação do legislador ordinário; ii)
a declaração de inconstitucionalidade de atos normativos
emanados do legislador, com base em critérios menos rígidos
que os de patente e ostensiva violação da Constituição; (iii) a
imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público,
notadamente em matéria de políticas públicas110.

107
Idem.
108
Ibidem, p. 9.
109
Ibidem, p. 10.
110
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 6.
Ainda, Luís Roberto Barroso observa que o oposto do ativismo
é a auto-contenção judicial, postura que prevalecia até o advento da
Constituição de 1988, pela qual o Judiciário procura minimizar a sua
interferência nas demais esferas do Poder. Ao diferenciar esses dois
fenômenos, o autor observa que “o ativismo judicial procura extrair o máximo
das potencialidades do texto constitucional, sem contudo invadir o campo da
criação livre do Direito”, e “a auto-contenção, por sua vez, restringe o espaço
de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas”111.

Vê-se, portanto, que o conceito de ativismo judicial ainda não é


unânime na doutrina brasileira. Porém, a despeito das divergências verificadas
quanto aos efeitos que possam advir dessa prática, é possível destacar alguns
dos principais elementos do conceito alinhavado na literatura do ativismo
judicial, a saber:

a) recai sobre a atuação do Poder Judiciário - mais


precisamente, sobre os órgãos e autoridades que exercem atividade
jurisdicional, visto que a estrutura do Judiciário compreende também órgãos
que não exercem a função típica de julgamento -, de modo que,
independentemente do termo que se utilize para designar o fenômeno, vale
dizer, uma prática, uma filosofia, um exercício ou uma atitude, o certo é que o
ativismo judicial se concretiza na atividade dos juízes e tribunais;

b) compreende a expansão do alcance da norma como uma


forma de concretizar os valores e finalidades da Constituição e,
consequentemente, efetivar os direitos individuais;

c) pressupõe uma participação mais intensa do Poder


Judiciário no espaço democrático, o que potencializa a interface entre o direito
e a política e a tensão na relação entre os Poderes;

d) propõe que o Poder Judiciário atenda demandas da


sociedade não satisfeitas pelas demais esferas do poder, o que traz à tona a
discussão acerca dos limites da atividade interpretativa.

111
Ibidem, p. 7.
Fixadas essas premissas, passa-se à análise do conceito de
judicialização da política, a fim de que se possa compreender quais são as
diferenças e semelhanças entre esses dois conceitos que integram a ideia de
protagonismo judicial.
De plano, verifica-se se que a definição de Luís Roberto
Barroso denota a semelhança entre esses dois fenômenos, sobretudo no que
tange à participação do Judiciário no cenário político, ao referir que
“judicialização significa que algumas questões de larga repercussão política ou
social são decididas pelo Poder Judiciário, e não pelas instâncias tradicionais:
o Congresso Nacional e o Poder Executivo”112.

Por sua vez, Marcos Faro Castro é ainda mais enfático ao


demonstrar a aproximação entre direito e política inerente ao conceito de
judicialização, como se observa em sua obra “O Supremo Tribunal Federal e a
judicialização da política”, cujo trecho segue:

A judicialização da política ocorre porque os tribunais são


chamados a se pronunciar onde o funcionamento do
Legislativo e do Executivo mostra-se falhos, insuficientes ou
insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre certa aproximação
entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se mais difícil
distinguir entre um ‘direito’ e um ‘interesse político’, sendo
possível se caracterizar o desenvolvimento de uma ‘política de
direitos’113.

Portanto, a judicialização da política, assim como o ativismo


judicial, atua no espaço político de omissão dos demais Poderes, de modo que
repercute no papel institucional desempenhado pelo Poder Judiciário e,
consequentemente, na dinâmica da separação de Poderes.

Por outro lado, Luís Roberto Barroso não deixa de precisar a


diferença existente entre esses dois fenômenos:

112
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 3.
113
CASTRO, Marcos Faro. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da
política. Revista de Ciências Sociais, São Paulo, n. 34, v. 12, 1997. p. 27.
A judicialização, no contexto brasileiro, é um fato, uma
circunstância que decorre do modelo constitucional que se
adotou, e não um exercício deliberado de vontade política. (...)
Já o ativismo judicial é uma atitude, uma escolha de um modo
específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo
seu sentido e alcance114.

No mesmo sentido, de forma bastante pragmática, José


Antonio Gomes Ignácio Júnior pontua que a judicialização da política deriva da
vontade do legislador constituinte em macrocondições jurídicas, ao passo que
o ativismo tem origem na vontade do intérprete proativo115.

Em outras palavras, quer-se dizer que a própria Constituição


de 1988 favoreceu o desenvolvimento da judicialização da política, na medida
em que o legislador constituinte atribuiu ao Poder Judiciário um espaço de
atuação mais amplo do que até então se tinha, possibilitando uma atuação
mais contundente aos juízes e tribunais pátrios.

Aliás, as causas da judicialização da política elencadas por


Luís Roberto Barroso não deixam dúvidas quanto à constatação de que a
Constituição de 1988, sobretudo pelo contexto em que foi promulgada, foi fator
determinante para que se estabelecesse o fenômeno de ampliação da atuação
do Judiciário, como se passa a expor.

Primeiramente, o autor menciona a redemocratização do país,


que se consubstancia exatamente na promulgação da Constituição de 1988,
seguindo-se ao período ditatorial. Foi nesse ponto que o Poder Judiciário
adquiriu a feição de verdadeiro poder político dotado de independência para se
opor ao Legislativo e o ao Executivo, recuperando as garantias da magistratura
e dispondo de amplos meios de atuação na concretização dos direitos
fundamentais116.

Na sequência, Barroso destaca a importância da


constitucionalização abrangente, fenômeno pelo qual diversas matérias antes
114
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 6.
115
IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes, op. cit., p. 133.
116
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 3.
disciplinadas pela legislação infraconstitucional foram abarcadas pelo texto
constitucional, pelo que a Constituição brasileira é classificada como analítica
ou, ainda, “desconfiada”. E, na medida em que se transformaram em normas
constitucionais, os direitos individuais, as prestações estatais e as finalidades
públicas tornaram-se, ao menos potencialmente, pretensões jurídicas que
podem ser formuladas em juízo por seu titular, o que amplia a atuação do
Judiciário no processo de conformação dessas garantias117.

Por derradeiro, o eminente doutrinador consigna a contribuição


do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade, denominado híbrido ou
eclético, o que possibilita tanto o controle incidental, pela via difusa, por
qualquer juiz ou tribunal, quanto o controle pela ação direta, perante o Supremo
Tribunal Federal, com amplo direito de propositura a diversos órgãos e
entidades118.

Em conclusão, esses três aspectos revelam um contexto em


que o Judiciário teve sua atuação significativamente ampliada em virtude das
atribuições conferidas pela Constituição de 1988. Como se vê, a judicialização
deriva do próprio escopo que foi deferido pelo legislador constituinte ao Poder
Judiciário.

No entanto, o que se tem notado é que, mesmo diante desse


quadro de judicialização da política que é próprio ao momento de centralidade
vivenciado pelo Poder Judiciário no Brasil, ainda há muito que se realizar em
prol da efetividade da Constituição. Nesse ponto, Luís Roberto Barroso pontua
que:

O malogro do constitucionalismo, no Brasil e alhures, vem


associado à falta de efetividade da Constituição, e sua
incapacidade de moldar e submeter a realidade social.
Naturalmente, a Constituição jurídica de um Estado é
condicionada historicamente palas circunstâncias concretas de
cada época. Mas não se reduz ela à mera expressão das
situações de fato existentes. A Constituição tem uma existência
própria, autônoma, embora relativa, que advém de sua força
117
Ibidem, pp. 3/4.
118
Ibidem, p. 4.
normativa, pela qual ordena e conforma o contexto social e
político. Existe, assim, entre a norma e a realidade uma tensão
permanente. É nesse espaço que se definem as possibilidades
e limites do direito constitucional119.

Analisando o atual panorama histórico do direito brasileiro,


verifica-se que os avanços do constitucionalismo foram significativos,
sobretudo a partir do movimento iniciado pela Constituição de 1988, mas, por
outro lado, deve-se reconhecer que a promulgação da “Constituição Cidadã”,
por si só, não foi suficiente para superar o problema da efetividade na seara
constitucional. É que não basta a previsão genérica e abstrata de meios que
viabilizem a concretização das normas constitucionais se a vontade do
hermeneuta não é voltada para a consolidação do ideal do Estado Democrático
de Direito.

Portanto, é primordial que os juízes e tribunais pátrios


assumam a incumbência de concretizar o projeto constitucional de cidadania e
dignidade almejado pela sociedade democrática, opondo-se ao discurso de
conformismo que alguns ainda insistem em sustentar. Mas, a despeito do que
sustentam os doutrinadores mais temerosos em relação ao ativismo judicial, a
solução para o problema da efetividade da Constituição somente surgirá pelo
esforço daqueles que verdadeiramente se empenham pelo sucesso do ideal
democrático. É o que se espera dos representantes políticos eleitos pelo povo
e, como não poderia ser diferente, dos juízes e tribunais pátrios.

Nesse sentido, Sergio Alves Gomes pontua que o sucesso da


hermenêutica constitucional depende, essencialmente, de juízes imbuídos de
uma visão constitucionalista e instrumental da jurisdição. Por oportuno, veja-se
a observação feita pelo eminente autor quanto à postura que se espera do
hermeneuta constitucional, valendo-se da distinção entre as três figuras de juiz
(juiz ditador, juiz espectador e juiz diretor) de autoria de Niceto Alcalá-Zamora
Y Castillo, segundo afirmação de Sentis Melendo:

(...) a hermenêutica constitucional reforça a figura do juiz


diretor do processo e não do juiz ditador – típico do

119
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição, op. cit., p. 249.
absolutismo – e nem do juiz espectador – o do Estado liberal -.
Sabe-se que o absolutismo, ao concentrar o poder nas mãos
do rei, mutilou a independência do juiz. O liberalismo produziu
o juiz passivo, autômato, espectador. O Estado Democrático,
de cunho social, contrário ao neoliberalismo, quer engendrar o
juiz dinâmico e participativo. É neste sentido que orienta a
hermenêutica constitucional120.

Assim, o ativismo judicial se apresenta como um compromisso


do hermeneuta para com a devida aplicação das disposições constitucionais,
visando a que estas alcancem a efetividade que delas se espera. A jurisdição é
um instrumento de justiça que deve ser manipulado de forma responsável para
que as normas jurídicas atinjam a finalidade a que se destinam. E é justamente
a partir dessa finalidade primordial que permeia toda a normatividade do
Estado Democrático de Direito que se justifica o ativismo judicial, como se verá
a seguir.

2.4. Objetivo

Partindo-se da perspectiva que qualifica o ativismo judicial


como uma proposta de solução para o problema da efetividade da
Constituição, obtém-se que o objetivo visado não é outro senão a
concretização das disposições constitucionais e, em última análise, do Estado
Democrático de Direito.

Nessa mesma linha, Celso Jefferson Messias Paganelli, ao


conceituar o ativismo judicial, observa que “o principal objetivo almejado é a
concretização efetiva do Estado Democrático de Direito, determinado e imposto
pelas Constituições”121.

Aliás, essa posição se coaduna com o entendimento


expressado por Häberle, de que as Constituições modernas e contemporâneas
se encontram a serviço do ser humano, o que, segundo Guilherme Amorim
Campos da Silva, norteia o constitucionalismo para a realização dos direitos

120
GOMES, Sérgio Alves, op. cit., p. 62.
121
PAGANELLI, Celso Jefferson Messias, op. cit., p. 21.
humanos e sociais como condição legitimadora da ordem jurídica estabelecida,
qual seja, o Estado Democrático de Direito, como segue:

No âmbito do constitucionalismo contemporâneo, a realização


dos direitos humanos e dos direitos sociais constitui-se em
condição legitimadora de qualquer ordem jurídica estabelecida.
(...) A função dos sistemas de direito, na realidade
contemporânea, deve ser orientada instrumentalmente para a
tradução de princípios e previsões normativas em ações
públicas e judiciais vertidas para sua realização.
Caracterizando uma concepção antropocêntrica das
Constituições modernas e contemporâneas, Häberle identifica
nova estrutura de funções e competências estatais, que se
encontram a serviço do ser humano122.

Portanto, o Poder Judiciário, ao valer-se de práticas ativistas


voltadas para a plena realização dos direitos fundamentais, busca aproximar-se
de um ideal de justiça, estando ciente de que a sua atuação repercute sobre a
sociedade como um todo e, consequentemente, define em que medida se
estará realizando o Estado Democrático de Direito.

Trata-se, portanto, de uma resposta à sociedade que revela a


dimensão do compromisso do Judiciário para com a concretização da
Constituição. A propósito, João Carlos Navarro Prado adverte que “o juiz tem
responsabilidade social, bem como o Judiciário em seu conjunto, sob a forma
de uma ‘prestação de contas’ perante o público em geral”123.

Com efeito, o ativismo judicial reveste o juiz de inegável


responsabilidade social no quanto amplia o acesso da população ao Poder
Judiciário no anseio de concretizar pretensões respaldadas em normas
constitucionais. Consequentemente, esse fenômeno amplia o poder político
das minorias, como observa Dworkin:

122
SILVA, Guilherme Amorim Campos da. Direito ao desenvolvimento. São Paulo: Editora
Método, 2004. p. 31.
123
PRADO, João Carlos Navarro de Almeida. A responsabilidade do poder judiciário frente
ao ativismo judicial. In: AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Estado de direito e Ativismo
judicial. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
Se os tribunais tomam a proteção de direitos individuais como
sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em
poder político, na medida em que o acesso aos tribunais é
efetivamente possível e na medida em que as decisões dos
tribunais sobre seus direitos são efetivamente
fundamentadas124.

Por seu turno, Celso Jefferson Messias Paganelli também


reconhece a responsabilidade do Poder Judiciário para com as repercussões
sociais e políticas de suas decisões, inclusive porque o objetivo do ativismo
judicial consiste em proteger valores relevantes para a sociedade, como o são
os princípios e direitos fundamentais125.

Nesse ponto, vale observar que a problemática da efetividade


da Constituição adquire especial relevância na seara dos direitos fundamentais,
sendo este o núcleo essencial garantidor de uma condição humana digna em
face da opressão estatal.

Tamanha foi a importância dada pelo legislador constituinte à


efetividade dessas normas constitucionais que o artigo 5º, §1º, da Constituição
Federal estabeleceu um mandado de otimização, isto é, uma imposição aos
Poderes Públicos que assegura aplicabilidade máxima e imediata aos direitos
fundamentais disciplinados naquele dispositivo constitucional, como observa
Ingo Wolfgang Sarlet126. Trata-se, aqui, da categoria dos denominados direitos
fundamentais de primeira dimensão.

Por outro lado, no que diz respeito àqueles direitos


disciplinados no artigo 6º da Constituição Federal, denominados direitos
fundamentais de segunda geração ou direitos sociais, “não existe consenso na
doutrina acerca de sua aplicabilidade e efetividade imediatas e, tampouco, em
relação ao caráter de direito subjetivo que porventura possam expressar”,
observa Alexandre Gazetta Simões127.

124
DWORKING, Ronald. Uma questão de princípio, trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. p. 32.
125
PAGANELLI, Celso Jefferson Messias Paganelli, op. cit., pp. 22/23.
126
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, 6ª ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2006. pp. 388/389.
127
SIMÕES, Alexandre Gazetta, op. cit., p. 102.
Porém, justamente pelo caráter de complementaridade
existente entre os direitos fundamentais de primeira dimensão e os direitos
fundamentais de segunda dimensão, faz-se mister que os direitos sociais
tenham a maior eficácia possível, sob pena de se inviabilizar a aplicabilidade
dos direitos individuais e, consequentemente, de todo o sistema de direitos
fundamentais128.

Na esteira desse entendimento, a doutrina tem assentado que


a plena realização da dignidade da pessoa humana depende do
reconhecimento e da efetivação dessas duas vertentes de direitos
fundamentais, que não se substituem, mas, pelo contrário, se somam.

Oportunamente, convém transcrever o apontamento de Marisa


Ferreira dos Santos:

Ficou reconhecido que a dignidade da pessoa humana só


existe se o homem tiver garantida não só sua liberdade
individual, como também se lhe propiciado o direito à
educação, à cultura, à seguridade social e ao trabalho129.

Também nesse sentido, Celso Lafer leciona:

A primeira geração de direitos viu-se igualmente


complementada historicamente pelo legado do socialismo, vale
dizer, pelas reivindicações dos desprivilegiados a um direito de
participar do ‘bem-estar social’, entendido como os bens que
os homens, através de um processo coletivo, vão acumulando
no tempo. É por essa razão que os assim chamados direitos de
segunda geração, previstos pelo welfare state, são direitos de
crédito do indivíduo em relação à coletividade. Tais direitos –
como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – tem como
sujeito passivo o Estado porque, na interação entre
governantes e governados, foi a coletividade que assumiu a
responsabilidade de atendê-los. O titular desse direito, no
entanto, continua sendo, como nos direitos de primeira
128
Idem.
129
SANTOS, Marisa Ferreira dos. O princípio da seletividade das prestações de seguridade
social. São Paulo: Editora LTr, 2004. p.32.
geração, o homem na sua individualidade. Daí a
complementaridade, na perspectiva ex parte Populi, entre os
direitos de primeira e de segunda geração, pois estes últimos
buscam assegurar as condições para o pleno exercício dos
primeiros, eliminando ou atenuando os impedimentos ao pleno
uso das capacidades humanas. Por isso, os direitos de crédito,
denominados econômico-sociais e culturais, podem ser
encarados como direitos que tornam reais direitos formais:
procuram garantir a todos o acesso aos meios de vida e de
trabalho num sentido amplo, impedindo, desta maneira, a
invasão do todo em relação ao indivíduo, que também resulta
da escassez dos meios de vida e de trabalho130.

Enfim, o que se quer demonstrar é que esses direitos


fundamentais consubstanciam um “conjunto de prestações materiais mínimas
sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de
indignidade”131, denominado “mínimo existencial”, que deve nortear a atuação
estatal em todas as suas instâncias, inclusive na atuação judicial.

É que a concepção ideal de Estado que hodiernamente se tem


adota como vetor onipresente a dignidade da pessoa humana132, sendo o
Estado apenas um meio para a realização da felicidade social, da paz e da
prosperidade, o que significa dizer que “o Estado tem fins, não é um fim”133.

Com efeito, é somente pela busca dos direitos fundamentais


que asseguram essa condição de dignidade que o homem abdica de sua
liberdade em prol da instituição do Estado de Direito, que se voltará, por esse
motivo, para a plena realização da pessoa, como observa Carlos Eduardo
Dieder Reverbel:

Mas é dessa natural sociabilidade do humano que devemos


extrair os princípios que darão fundamento e regramento às
130
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos. São Paulo: Companhia das Letras,
2006. p. 127/128
131
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais – O princípio
da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002.
132
SIMÕES, Alexandre Gazetta, op. cit., p. 69.
133
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado, 2ª ed, 1ª reimp. São Paulo: Editora Globo,
2011.
atividades jurídicas que dizem respeito à Pessoa Humana e a
sociedade como um todo. Neste sentido, o Estado é meio – e
não fim – à realização da Pessoa. A Pessoa Humana é,
portanto, anterior e ulterior ao Estado. O Estado de Direito,
assim, serve à pessoa e à sociedade. Todos – e cada um –
abdicam parte de sua individualidade em prol de uma
mediação técnico-jurídica, instrumentada e concretada em
realidades distintas, que modernamente vem ganhando o
nomem iuris de Estado de Direito134.

Ou seja, o Estado se coloca a serviço do ser humano, devendo


se nortear pela concretização dos direitos humanos e sociais
constitucionalmente assegurados. Em última análise, as garantias
constitucionais existem em favor do cidadão, de modo que as políticas
públicas, a atividade legiferante e os atos judiciais devem assegurar tanto
quanto seja possível a eficácia dos direitos fundamentais e da dignidade
humana, como condição legitimadora da ordem jurídica estabelecida.

Portanto, o ativismo judicial, ao assumir como objetivo a


concretização dos direitos fundamentais dispostos na Constituição, encontra
respaldo no princípio da dignidade da pessoa humana, que, por sua vez,
constitui o alicerce do Estado de Direito moderno, cuja teleologia é voltada para
o pleno desenvolvimento do homem.

134
REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder, op. cit., pp. 01/02.
3. PERSPECTIVA CRÍTICA

3.1. Crítica

Como se sabe, o ativismo judicial e a recente atuação do Poder


Judiciário como um todo têm sido objeto de crítica, tanto no meio acadêmico,
pelos renomados autores que mais adiante serão citados, quanto nas
discussões políticas cotidianas, pelos cidadãos brasileiros de maneira geral.

Apenas a título de mensurar a amplitude desse debate, veja-se


que, no ano de 2008, o então Presidente do Senado e do Congresso Nacional,
Senador Garibaldi Alves Filho, em manifestação veiculada pelo jornal Folha de
São Paulo, expressou o desconforto institucional do Poder Legislativo brasileiro
diante de práticas adotadas pelos outros Poderes que ameaçavam a primazia
no desempenho de uma de suas funções primordiais: a de legislar135.

Daí em diante, o fenômeno do protagonismo judicial foi


conquistando uma posição de maior destaque no cenário nacional, sobretudo
em virtude da atuação do Supremo Tribunal Federal em julgamentos de grande
repercussão política e social, o que trouxe a atenção do país para esse “novo
Poder Judiciário” em ascensão. Também sob o impulso da dinamicidade do
fluxo de comunicação na atualidade, os julgamentos da Corte Constitucional
passaram a ser acompanhados por diversos veículos de mídia, tais como a
televisão, o rádio e a internet, ensejando opiniões e comentários diversos sobre
a atuação dos magistrados em cada caso.

135
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 21.
De fato, há muito que se ponderar quanto à postura ativista do
Supremo Tribunal Federal e do Poder Judiciário como um todo. A despeito do
posicionamento favorável que ora se sustenta em relação ao ativismo judicial, é
certo que esse fenômeno deve ser analisado de forma minuciosa, inclusive sob
perspectiva crítica, a fim de que se possa delinear qual é o ativismo que deve
ser praticado, ou seja, em que circunstâncias, em que medida e de que forma o
juiz deve assim proceder.

Nessa perspectiva, o primeiro aspecto que se apresenta, o qual


inclusive já vem sendo debatido nos tópicos anteriores, diz respeito à
separação dos poderes, que é o principal alvo de crítica daqueles que se
opõem às práticas ativistas.

No quanto interessa ao tema, faz-se referência à posição


sustentada por Vicente Paulo de Almeida:

Por vezes, o STF não se limita a declarar a omissão legislativa,


indo além do que a dogmática legalista tradicional
convencionou ser o papel do Judiciário, qual seja, a subsunção
do fato à norma, e ante a imposição de obrigações aos outros
poderes e aos administrados em geral, a doutrina diz que há
intromissão indevida do Judiciário nos demais Poderes da
República, ferindo os princípios da separação dos poderes, a
democracia e o estado democrático de direito136.

Nesse mesmo sentido, Carlos Eduardo Dieder Reverbel


vislumbra afronta à separação de poderes e, por via oblíqua, ao Estado de
Direito, como se denota do seguinte excerto:

O ativismo, assim, na busca de uma solução mágica, na


extração de um princípio que fundamente a decisão (razoável
ou não), acaba por afrontar à separação de poderes, faz do juiz
um verdadeiro legislador e inclusive ex post facto, contrariando
o Estado de Direito, em que impera a lei, como decorrência
justiça137.
136
ALMEIDA, Vicente de Paulo. Ativismo Judicial.
Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/19512/ativismo-judicial> Acesso em: 13/05/2015.
137
REVERBEL Carlos Eduardo Dieder, op. cit., p. 09.
Outrossim, há que se fazer menção à crítica de Elival da Silva
Ramos, autor amplamente referenciado neste trabalho, no sentido de que a
prática do ativismo judicial configura desnaturação da atividade típica do Poder
Judiciário em detrimento dos demais Poderes, sobretudo do Legislativo, como
segue:

Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no


tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação
da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos
demais Poderes. Não se pode deixar de registrar mais uma
vez. Contudo, que o fenômeno golpeia mais fortemente o
Poder Legislativo, o qual tanto pode ter o produto da
legiferação irregularmente invalidado por decisão ativista (em
sede de controle de constitucionalidade), quanto o seu espaço
de conformação normativa invadido por decisões
excessivamente criativas138.

Em síntese, o que sustentam os supracitados autores é que o


ativismo excede a função típica do Judiciário, prejudicando o espaço de
atuação dos demais Poderes, sobretudo do Legislativo, visto que o juiz, nessa
concepção, estaria se portando como um verdadeiro legislador ex post facto, o
que constitui afronta ao princípio da separação dos Poderes e, assim, ao
Estado de Direito.

Contudo, essa crítica pode ser facilmente repelida pelos


argumentos já exposto no decorrer deste trabalho.

Primeiro, porque a atividade interpretativa exercida pelos juízes


ativistas não se confunde com a atividade legiferante, esta sim exercida com
predominância pelo Poder Legislativo e somente em casos excepcionais,
expressamente previstos em lei, pelos demais Poderes; ainda que se
reconheça em certa medida o caráter criativo da jurisprudência, não se está
diante da livre criação do direito através de prescrições genéricas e abstratas,
mas sim de um processo de revelação do significado das leis e da Constituição
que se opera no caso concreto com a observância de certos limites.

138
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 129.
Segundo, porque a separação de Poderes somente encontra
real e legítimo sentido se cooperar para a eficiência estatal no atendimento das
finalidades humanas a que se destina, como exposto no tópico anterior, em
que o próprio Carlos Eduardo Dieder Reverbel reconhece que o Estado é meio
à realização da pessoa.

Terceiro, porque o diálogo entre os Poderes é fundamental


para a preservação de uma democracia saudável, sobretudo em virtude da
função de guarda da Constituição que é exercida pelo Judiciário em face dos
demais Poderes, que adquire especial relevância no sistema de freios e contra
pesos concebido pelo constitucionalismo contemporâneo como forma de conter
o abuso de poder, nos termos do posicionamento anteriormente citado de Luís
Roberto Barroso.

É evidente que, mesmo diante desses contrapontos, o princípio


da separação de Poderes tem pertinência para a discussão abarcada pelo
ativismo judicial, sobretudo no que se refere à fixação de limites para as
práticas ativistas, como se verá mais adiante. Porém, o que se quer demonstrar
é que esse argumento não invalida ou deslegitima o ativismo judicial nos
moldes em que ora se propugna.

Superada essa discussão, há que se fazer menção às três


objeções ao ativismo judicial apontadas por Luís Roberto Barroso, as quais,
apesar de não infirmarem a importância de tal atuação, merecem séria
consideração139.

A primeira delas diz respeito aos riscos para a legitimidade


democrática, partindo do argumento de que juízes, desembargadores e
ministros não são agente públicos eleitos, sendo, portanto, questionável uma
postura pela qual se admite que estes venham a invalidar decisões daqueles
que possuem mandato popular. Trata-se da denominada dificuldade
contramajoritária.

Nesse ponto, há que se considerar que a Constituição Federal


expressamente atribui uma parcela de poder político ao Judiciário, a fim de que

139
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., pp. 10/17.
seja exercido por agentes públicos cuja atuação é predominantemente técnica
e imparcial, ou seja, por magistrados que não possuem vontade política
própria. Esse é o fundamento normativo que justifica a legitimidade
democrática do Poder Judiciário.

Há, por outro lado, um fundamento filosófico, que se


desenvolve na perspectiva de que a democracia não se resume ao princípio
majoritário. É que o ideal democrático, embora respaldado essencialmente na
vontade popular, supõe que os princípios constitucionais prevaleçam até
mesmo em confronto com a vontade circunstancial de quem tem mais votos,
quando esta for movida por escolhas políticas que atentem contra a ordem
jurídica vigente.

A exemplo disso, pode-se mencionar o processo de


impeachment, em que o Presidente da República, ainda que eleito pela maioria
dos votos, pode ser destituído do cargo caso cometa alguma das infrações
administrativas dispostas no artigo 85 da Constituição Federal. Aliás, esse
exemplo demonstra que a atuação contramajoritária não é exclusividade do
Poder Judiciário, visto que o processo de impeachment se dá perante o
Senado Federal.

Portanto, o poder exercido pelos juízes é representativo, ainda


que estes não sejam eleitos democraticamente, como consequência da dicção
constitucional de que “todo poder emana do povo e em nome dele deve ser
exercido”, ressalvando-se, contudo, que isso não significa julgar sempre a favor
da maioria. Deve-se, sim, julgar a favor da Constituição, pois é nessa norma
fundamental que se consubstancia o poder do povo.

Nessa linha argumentativa, Barroso adverte que:

(...) juízes não devem ser populistas e, em certos casos, terão


de atuar de modo contramajoritário. A conservação e a
promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade
das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do
constitucionalismo democrático. Logo, a intervenção do
Judiciário, nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou
invalidando uma lei inconstitucional, dá-se a favor e não contra
a democracia140.

A segunda objeção suscitada por Luís Roberto Barroso diz


respeito ao risco de politização da justiça, no que repousa uma das acusações
mais desqualificantes que se pode dirigir ao ativismo judicial: de que suas
decisões são políticas e não jurídicas.

Essa perspectiva crítica bem se traduz na obra de Carlos


Eduardo Dieder Reverbel:

O ativismo judicial centra-se neste ponto. O juiz transpassa o


campo do direito e ingressa na seara da política. Assim
“resolve” problemas políticos por critérios jurídicos. Isto se dá
dentre outras razões, pelo desprestígio da lei, ineficiência da
política, dificuldade da própria administração, malversação dos
recursos públicos...

(...)

Quando se confunde o campo jurídico com o campo político, a


conseqüência é fatal: o julgador acaba fazendo uma má
política, por meios jurídicos141.

Como dito anteriormente, o fenômeno do protagonismo judicial


revela a fluidez da fronteira entre a política e o direito. Porém, a constatação de
que as decisões ativistas geram repercussões políticas não induz à conclusão
de que o direito seja uma mera instância de poder ou dominação, como
apregoava a teoria crítica do direito. Pelo contrário, o pós-positivismo
reaproxima o Direito da ética, de modo que a justiça não deve ficar à mercê da
vontade de quem detém o poder.

Nessa linha, a atividade jurisdicional, a despeito de se revestir


de um poder político consubstanciado nas atribuições constitucionalmente
atribuídas, não deve se pautar pelas convicções pessoais do julgador ou por

140
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 15.
141
REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder, op. cit., pp. 08/09.
motivos de conveniência política, mas sim pelos valores e finalidades
positivados no texto constitucional.

É inegável que a própria Constituição reflete uma vontade


política, porquanto emerge de uma vontade majoritária, o que se estende
também à legislação infraconstitucional. Não se ignora, também, que a
aplicação do direito repercute no meio social, gerando sentimentos e
expectativas nos jurisdicionados. Sabe-se, ainda, que os juízes não são
operadores do direito dissociados do próprio inconsciente e de qualquer
ideologia, de modo que sua subjetividade inevitavelmente interfere com os
juízos de valor que formula. Nesse ponto, de fato, o universo jurídico e o
político se aproximam.

Todavia, isso não quer dizer que o intérprete possui plena


liberdade de escolha dentre as possibilidades ofertadas pelo amplo universo
hermenêutico do intelecto humano, o que equivaleria a submeter a justiça ao
puro subjetivismo dos magistrados, conferindo-lhe legitimidade para atuar de
forma tendenciosa, partidarizada. Com isso, pondera-se que o direito, apesar
da estreita relação exposta acima, não se adstringe à política.

Portanto, o desafio que se apresenta na seara do ativismo


judicial é encontrar um ponto de equilíbrio na atividade interpretativa que
permita a ampliação dos horizontes hermenêuticos, porém, sem transcender os
limites explícitos e tácitos da Constituição.

Nesse ponto, a questão primordial que se apresenta consiste


em estabelecer um critério concreto para definir se, ao proferir uma decisão
ativista, o magistrado está em conformidade com a Constituição ou, pelo
contrário, está fazendo política. Tal critério não é outro senão a fundamentação
das decisões judiciais.

Com efeito, à luz do constitucionalismo, emerge a importância


da lógica de persuasão racional no direito, pela qual se impõe ao magistrado o
dever de fundamentação das decisões judiciais, o que possibilita a verificação
da motivação daquele juízo de valor. Em outras palavras, será essa
argumentação que evidenciará em que grau o intérprete foi influenciado por
suas convicções pessoais e se aquela opção interpretativa está em
conformidade ou desconformidade com os valores da Constituição.

Aliás, tamanha foi a importância dada pelo constituinte a esse


postulado que a necessidade de fundamentação das decisões judiciais foi
consubstanciada no artigo 93, inciso IX, da Constituição de 1988 142, inserido no
capítulo que delimita a estrutura fundamental do Poder Judiciário, mais
precisamente dentre os princípios norteadores do Estatuto da Magistratura, o
que ressalta sua essencialidade à função judicante.

Ainda, no quanto interessa ao tema, Maria Celina Bodin de


Moraes pontua que o dever de fundamentação das decisões judiciais “facilita o
questionamento da sentença pelas partes e sua revisão pelo juízo de segunda
instância, bem como desempenha função garantista, viabilizando o controle
externo sobre as razões que fundam a decisão”143.

Finalmente, a terceira objeção feita por Luís Roberto Barroso


refere-se à capacidade institucional do Judiciário e seus limites, sendo certo
que as práticas ativistas, sem essa ponderação, podem gerar efeitos
sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis.

Nesse ponto, observa o autor que a capacidade institucional é


um conceito explorado pela doutrina constitucional contemporânea que
“envolve a determinação de qual Poder está habilitado a produzir a melhor
decisão em determinada matéria”144. Assim, deve-se levar em conta que o juiz
nem sempre dispõe de meios para avaliar os impactos de suas decisões sobre
a realidade de um segmento econômico e a prestação de um serviço público,

142
BRASIL. Constituição (1988). Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal
Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: (...) IX -
todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas
as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às
próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação
do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>
Acesso em: 19/05/15
143
MORAES, Maria Celina Bodin de. Do juiz boca da lei à lei segundo a boca do juiz: notas
sobre a aplicação-interpretação do direito no início do século XXI. In: 10 anos de vigência do
Código Civil de 2002: estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Dabus Maluf, coord.
Christiano Cassettari, orientação Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Saraiva, 2013.
144
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 16.
por exemplo. Há que se considerar, ainda, que o Poder Judiciário “tampouco é
passível de responsabilização política por escolhas desastradas”145.

Assim, certo é que o Judiciário deve atuar de forma cautelosa,


cedendo espaço aos outros Poderes quando estes tiverem condições de
produzir uma melhor decisão, e, na hipótese em que couber intervir, que o faça
minimizando efeitos sistêmicos prejudiciais à política do Estado.

Como bem observa Barroso, “o Judiciário quase sempre pode,


mas nem sempre deve interferir”146. Vale dizer, mesmo detendo a palavra final
na interpretação das normas constitucionais ou legais, os juízes e tribunais não
devem, nem por isso, presumir-se portadores da cura para todos os males da
política brasileira, tampouco devem supor que a ineficiência das instituições
políticas lhes dá o legítimo direito de criar uma jurisprudência ditada por suas
convicções pessoais, como que em um “sofismo judicial”, em que toda
interpretação é possível por obra de um discurso intelectual bem articulado.

Portanto, o ativismo judicial, nos moldes em que ora se propõe,


nada tem a ver com a arrogância judicial. A arrogância de qualquer agente
investido de poder político constitui ameaça à ideia elementar da democracia,
de que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Ora, a
ditadura do Poder Judiciário não é mais benéfica do que qualquer outro regime
autocrático.

A propósito, Mauro Cappelletti sustenta que o agigantamento


do Poder Judiciário, ainda que a pretexto de “controlar o legislador mastodonte
e o leviatanesco administrador”, está sujeita a alguns riscos, como se denota
do trecho a seguir transcrito:

Certamente, o surgimento de um dinâmico terceiro gigante,


como guardião e controlador dos poderes políticos do novo
estado leviatã, constitui por si mesmo um acontecimento não
imune aos riscos de perversão e abuso. Existe, antes, certa
semelhança entre esses riscos e os decorrentes de outras
manifestações do gigantismo estatal, de natureza legislativa ou
145
Idem.
146
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 17.
administrativa: riscos de autoritarismo, lentidão e gravosidade,
de inacessibilidade, de irresponsabilidade, de inquisitoriedade
policialesca147.

Portanto, o desafio que se apresenta é a efetivação do


“governo das leis” em oposição ao “governo dos homens”, sendo a supremacia
da lei um verdadeiro emblema do triunfo da democracia ao longo da história, o
que sob justificativa alguma deve ser desprezado, como observa Norberto
Bobbio148. E, nessa perspectiva, a ditadura do Poder Judiciário evidentemente
milita em desfavor do regime democrático.

De outro norte, há que se fazer menção à crítica desenvolvida


por Oscar Vilhena Vieira, que, ao descrever o singular arranjo institucional
brasileiro, faz menção a um fenômeno denominado “Supremocracia”, que pode
ser compreendido sob duas perspectivas: a autoridade exercida pelo Supremo
Tribunal Federal ao governar jurisprudencialmente o Poder Judiciário no Brasil,
o que se faz notar mediante a adoção de práticas centralizadoras, tais como a
edição de súmulas vinculantes; e a expansão da autoridade do Supremo
Tribunal Federal em face dos demais Poderes, colocando-se a corte no centro
de nosso sistema político, o que se deu sobretudo com o advento da
Constituição de 1988149.

No que se refere ao segundo aspecto mencionado, que mais


interessa ao presente trabalho, o autor observa que:

A ampliação dos instrumentos ofertados para a jurisdição


constitucional tem levado o Supremo não apenas a exercer
uma espécie de poder moderador, mas também de
responsável por emitir a última palavra sobre inúmeras
questões de natureza substantiva, ora validando e legitimando
uma decisão dos órgãos representativos, outras vezes
substituindo as escolhas majoritárias150.

147
CAPELLETTI, Mauro, op. cit., p. 49.
148
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo, trad. Marco
Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. pp 311-312
149
VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira. Supremocracia, p. 05.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rdgv/v4n2/a05v4n2.pdf> Acesso em: 19/05/15
150
Idem.
De acordo com Oscar Vilhena Vieira, essa proeminente
atuação do Supremo Tribunal Federal se deve a razões de ordem institucional,
no que destaca (a) a ambição da Constituição 1988 que, desconfiada do
legislador infraconstitucional, regulamentou um extenso campo de relações
sociais econômicas e públicas, criando, assim, uma enorme esfera de atuação
constitucional, bem como (b) as competências superlativas que foram
atribuídas àquela corte, acumulando funções que, na maioria das democracias
contemporâneas, estão divididas em pelo menos três instituições, quais sejam,
tribunais constitucionais, foros judiciais especializados e tribunais de recursos
de última instância151.

Como se vê, o autor não atribui a presente situação de


sobrecarga do Supremo Tribunal Federal à atuação mais ou menos ativista
daquele tribunal, já que o mérito das decisões proferidas pela corte sequer foi
objeto daquele estudo, mas sim ao próprio modelo adotado pela Constituição
de 1988 e à estrutura centralizadora do Poder Judiciário no paradigma atual.

Em razão desse acúmulo de funções, o Supremo Tribunal


Federal tem recebido um crescente número de demandas, de modo que, para
arcar com essa ampla esfera de competências, a corte tem lançado mão de
instrumentos como as decisões monocráticas, que colocam os Ministros em
posição bastante vulnerável152. Isso porque os Ministros se vêm forçados a
atuar de modo contramajoritário, o que fragmenta a autoridade do tribunal e
prejudica a qualidade do processo deliberativo, visto que a decisão emanada
de um único julgador está mais suscetível ao erro do que a decisão colegiada
que resulta de um intenso processo de discussão e deliberação entre os onze
membros da corte.

Portanto, Oscar Vilhena Vieira propõe uma reorganização


institucional do Poder Judiciário, a fim de otimizar a sua atuação e reduzir as
tensões inerentes ao exercício da jurisdição constitucional, apresentando, para
tanto, duas propostas.

A primeira proposta consiste na redistribuição das


competências do Supremo Tribunal Federal, utilizando-se do sistema difuso
151
VIEIRA, Oscar Vilhena Vieira, op. cit., pp. 06/10.
152
Ibidem, p. 17.
como instrumento voltado para construção da integridade do Poder Judiciário e
promoção do interesse público. Assim, a desconcentração da autoridade do
Supremo Tribunal Federal passa pelo fortalecimento das instâncias inferiores,
que exerceriam a função que lhes incumbe no arranjo institucional de controle
de constitucionalidade brasileiro, sendo limitadas por instrumentos como a
arguição de repercussão geral, o efeito vinculante e a súmula vinculante153.

A segunda proposta diz respeito à qualificação do processo


deliberativo, que se traduz na divisão da decisão em três etapas. Em um
primeiro momento, seria estabelecida uma agenda em que seriam
selecionados os casos da jurisdição difusa a serem julgados no ano judiciário,
ao passo que os casos de jurisdição concentrada dariam entrada pela ordem
de chegada. Em um segundo momento, seriam feitas as audiências públicas e
as sustentações orais, com presença obrigatória dos Ministros. Em seguida,
seriam realizadas as sessões de discussão e julgamento. Finalmente, aquele
Ministro que liderou a maioria deveria ser incumbido de redigir o acórdão154.

Analisando-se a crítica feita por Oscar Vilhena Vieira à


“Supremocracia”, é claramente observado que o autor não tem o propósito de
afastar o Judiciário das pretensões que lhe são submetidas, mas sim de
desenvolver um processo deliberativo célere e eficiente, correspondendo,
assim, às expectativas legítimas dos jurisdicionados.

Nessa linha, entende-se que o autor não desqualifica a recente


atuação do Supremo Tribunal Federal em prol da efetivação dos direitos
fundamentais. Pelo contrário, Oscar Vilhena Vieira sinaliza que o Supremo
Tribunal Federal deve ser acompanhado pelas instâncias inferiores no escopo
de guarda da Constituição, o que vai ao encontro do posicionamento
anteriormente exposto de que o ativismo judicial deve ser praticado em todos
os graus de jurisdição e não somente pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário.

Por derradeiro, faz-se menção à crítica amplamente difundida


por Lenio Luiz Streck ao denominado “pan-principiologismo” (ou
“pamprincipiologismo”), que seria um dos fatores que implicam na atual
situação crítica do problema concernente à interpretação e aplicação do Direito.
153
Ibidem, p. 18.
154
VIEIRA, Oscar Vilhena, op. cit., p. 19.
Para melhor elucidação, traz-se a colação o seguinte excerto
de autoria de Lenio Streck:

Na esteira da construção dessa busca pela determinação do


conceito de princípio, deparei-me, mormente nos anos mais
recentes, com situações inusitadas. Certamente, a mais
pitoresca de todas é aquela que nomeei (em diversos textos e,
especialmente, em: Verdade e Consenso, 2011b) de
pamprincipiologismo, uma espécie de patologia especialmente
ligada às práticas jurídicas brasileiras e que leva a um uso
desmedido de standards argumentativos que, no mais das
vezes, são articulados para driblar aquilo que ficou regrado
pela produção democrática do direito, no âmbito da legislação
(constitucionalmente adequada). É como se ocorresse uma
espécie de “hiperestesia” nos juristas que os levasse a
descobrir, por meio da sensibilidade (o senso de justiça, no
mais das vezes, sempre é um álibi teórico da realização dos
“valores” que subjazem o “Direito”), a melhor solução para os
casos jurisdicionalizados155.

Portanto, o autor denuncia uma prática patológica que se tem


notado na prática jurídica, consistente no desvirtuamento dos textos legais para
a obtenção de supostos “princípios”, que seriam, na realidade, valores
individuais derivados da sensibilidade dos juristas, investidos do pretexto de se
encontrar uma solução mais justa para os casos concretos.

Ao que sustenta Streck, a prática do “pan-principiologismo”, ao


contrário do que pode parecer, acaba por enfraquecer o caráter concretizador
dos princípios, na medida em que criam uma gama incontrolável de standards
retóricos-persuasivos, possibilitando uma maior discricionariedade na atuação
judicial156.

155
STRECK, Lenio Luiz. Do pamprincipiologismo à concepção hipossuficiente de princípio,
pp. 08/09. Disponível em:
<http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496574/000952675.pdf?sequence=1>
Acesso em: 20/05/15
156
Ibidem, p. 20.
Entretanto, o autor adverte que a solução para o “pan-
principiologismo” não se encontra no outro extremo, isto é, no uso
hipossuficiente dos princípios, sendo certo que são estes que preservam a
autonomia do Direito e a concretização da força normativa da Constituição157.

Assim, Streck conclui que a “a principal preocupação da Teoria


do Direito deve ser o controle da interpretação” 158. Certamente, o cerne da
questão consiste em definir quais seriam os limites que se impõem aos juízes e
tribunais ativistas, a fim de que se mantenha a integridade da principiologia da
Constituição.

3.2. Limites

Com efeito, a falta de parâmetros concretos limitadores da


atividade interpretativa dos juízes e tribunais tem ensejado severas críticas ao
ativismo judicial e à hermenêutica jurídica contemporânea, que, de maneira
geral, tem admitido uma esfera mais ampla de discricionariedade ao intérprete
do Direito. Sendo assim, passa-se a discutir quais são esses fatores que
devem balizar a atuação dos magistrados ativistas, a fim de que não se incorra
naqueles equívocos apontados no tópico anterior.

De fato, não é qualquer ativismo judicial que se reputa


benéfico, mas sim aquele que se desenvolve dentro de limites razoáveis. E,
como não poderia ser diferente, se o ativismo é defendido como um
mecanismo de efetivação das normas constitucionais, é evidente que o
primeiro limite a ser observado pelo intérprete ativista será aquele imposto pela
própria Constituição.

Nessa linha argumentativa, merece relevo o posicionamento


sustentado por Elival da Silva Ramos, ao destacar que mesmo o Supremo
Tribunal Federal, que ocupa lugar de destaque na reestruturação dos Poderes
estatais, deve observância aos marcos estabelecidos pela Constituição, como
segue:

Ora, se é certo, por um lado, que o Supremo Tribunal Federal


há de ocupar lugar de destaque em qualquer reestruturação
157
Idem.
158
Idem.
dos Poderes estatais que se pretenda promover, haja vista a
centralidade da função de guardião da Constituição que lhe
compete exercer no modelo de Estado Constitucional de
Direito, de outra parte, não há como torná-lo imune a críticas
deslegitimadoras da parte dos Poderes por ele fiscalizados se
não forem claramente estabelecidos os marcos dentro dos
quais sua atuação é constitucionalmente autorizada159.

Seguindo esse mesmo entendimento, porém, de forma ainda


mais contundente, Dworkin critica aquele “ativismo tosco”, que despreza o texto
da Constituição ao impor decisões fundadas unicamente no senso de justiça do
juiz, em prejuízo de outras virtudes políticas relevantes, o que bem se extrai do
trecho a seguir transcrito:

O ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um


juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua
promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que
buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa
cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a
outros poderes do Estado o seu próprio ponto de vista sobre o
que a justiça exige. O direito como integridade condena o
ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe
esteja próxima. Insiste em que os juízes por meio da
interpretação, e não por fiat, querendo com isso dizer que suas
decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não
ignorá-la. Um julgamento interpretativo envolve a moral
política, e o faz da maneira complexa que estudamos em
vários capítulos. Mas põe em prática não apenas a justiça, mas
uma variedade de virtudes políticas que às vezes entram em
conflito e questionam umas às outras. Uma delas é a equidade:
o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura
política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção
de equidade que convém a uma Constituição. A alternativa ao
passivismo não é um ativismo tosco, atrelado apenas ao senso

159
RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 26.
de justiça de um juiz, mas um julgamento mais apurado e
discriminatório, caso por caso, que dá lugar a muitas virtudes
políticas mas, ao contrário tanto do ativismo quanto do
passivismo, não cede espaço algum à tirania160.

Feitas essas observações, o que se quer demonstrar é que o


ativismo judicial que exaustivamente se tem defendido não é aquele
denunciado por Dworkin, que dá lugar à visão particularizada do intérprete
sobre a justiça e a política em detrimento da própria Constituição. Conforme
mencionado no tópico anterior, o ativismo judicial não deve ser compreendido
como uma justificativa para que os magistrados passem a julgar conforme suas
convicções pessoais, de forma partidarizada ou tendenciosa, mas sim para que
assumam uma postura ativa na defesa das normas constitucionais em face da
omissão dos demais Poderes, devendo a motivação das decisões judiciais
assegurar a conformidade da interpretação à Constituição, bem como
possibilitar que eventuais excessos sejam identificados e devidamente contidos
em grau recursal.

Portanto, o ativismo judicial ideal que ora se sustenta impõe


que o intérprete seja capaz de extrair o significado das normas jurídicas que
mais se compatibilize com o sistema normativo da Constituição. Isto é, o
exegeta não deve manipular as normas jurídicas valendo-se de um ou outro
princípio constitucional que, se compreendido isoladamente, pode acarretar em
uma decisão favorável ao seu interesse pessoal e contrária à própria
normatividade da Constituição, compreendida como um todo uno e coeso.

Para melhor compreensão, pode-se mencionar o exemplo da


decisão proferida pelo juiz Frederico Ernesto Cardoso Maciel, do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal, que, em outubro de 2013, absolveu um homem
flagrado com 52 (cinquenta e duas) trouxas de maconha, sob o fundamento de
ser inconstitucional a proibição dessa droga. De acordo com o magistrado, a
Portaria nº 344/1998, do Ministério da Saúde, que proíbe o uso de “substâncias
recreativas”, tais como o tetraidrocanabinol (THC), princípio ativo responsável
pela ação psicotrópica da maconha, é “fruto de uma cultura atrasada e de
política equivocada”. Ao sustentar tal posição, Maciel invocou violação ao
160
DWORKIN, Ronald apud RAMOS, Elival da Silva, op. cit., p. 137.
princípio da igualdade, sob o argumento de que a proibição restringe o direito
de uma grande parte da população de utilizar tais substâncias, ao passo que
permite o uso de outras substâncias entorpecentes, tais como o álcool e o
tabaco161.

Vê-se, claramente, que o magistrado partiu de uma concepção


pessoal para justificar a declaração de inconstitucionalidade de um ato
administrativo, qual seja, a Portaria nº 344/1998/MS, suscitando, para tanto,
suposto malferimento aos princípios constitucionais da igualdade, da liberdade
e da dignidade humana.

Contudo, em uma análise mais apurada, obtém-se que a


própria Constituição estabelece ser a saúde dever do Estado, a teor de seu
artigo 196, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, acerca da
regulamentação, fiscalização e controle das ações e serviços da saúde,
conforme preceitua o artigo 197. Essa regulamentação se deu através da Lei nº
8.080/1990, pela qual se atribuiu a direção de tais ações no âmbito da União ao
Ministério da Saúde. E, no quanto interessa ao tema, cumpre observar o que
dispõe a Lei nº 11.343/2006, em seu artigo 1º, parágrafo único:

Art. 1º. (...)

Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se como


drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar
dependência, assim especificados em lei ou relacionados em
listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da
União162.

Portanto, diante da ausência de uma definição taxativa de tais


substâncias em lei, prevalece a definição do Ministério da Saúde, através da
Portaria nº 344/1998, já que, por expressa disposição legal do artigo 9º, inciso
I, Lei nº 8.080/1990, incumbe a esse órgão exercer a direção das ações de
saúde na esfera federal, o que também se coaduna com o disposto no artigo
197 da Constituição Federal.
161
Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-juiz-trata-proibicao-maconha.pdf> Acesso
em: 29/05/15
162
BRASIL. Lei nº 11.343/2006 (...)
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>
Acesso em: 26/05/15
Nessa linha, a interpretação conferida pelo magistrado, com a
devida vênia, não encontra respaldo na Constituição, pois contraria uma
matéria que foi devidamente disciplinada pelas instâncias políticas, no caso, o
Poder Executivo, através do Ministério da Saúde, o que se deu nos exatos
termos do que dispõe o texto constitucional, não havendo qualquer
inconstitucionalidade a ser rechaçada. E, em sendo assim, reputa-se
inoportuna a interferência do Judiciário sobre a opção política do legislador e
do administrador, uma vez que inexiste afronta à Constituição, mas tão
somente uma política reputada equivocada, o que não legitima a atuação em
sentido contrário por parte do magistrado.

É exatamente nesse sentido que se deve compreender a


Constituição como um limite ao ativismo judicial: se a finalidade precípua da
postura ativista é a concretização das normas constitucionais, nas hipóteses
em que o Poder Legislativo e/ou do Executivo agirem em conformidade com a
Constituição, não se justifica a interferência do Judiciário; deve o juiz, nessa
hipótese, ser deferente às opções políticas.

Corroborando esse entendimento, vale citar o seguinte excerto


de Luís Roberto Barroso:

Em suma: o Judiciário é o guardião da Constituição e deve


fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores
e procedimentos democráticos, inclusive em face dos outros
Poderes. Eventual atuação contramajoritária, nessas
hipóteses, se dará a favor, e não contra a democracia. Nas
demais situações, o Judiciário e, notadamente, o Supremo
Tribunal Federal deverão acatar escolhas legítimas feitas pelo
legislador, ser deferentes para com o exercício razoável de
discricionariedade técnica pelo administrador, bem como
disseminar uma cultura de respeito aos precedentes, o que
contribui para a integridade, segurança jurídica, isonomia e
eficiência do sistema. Por fim, suas decisões deverão respeitar
sempre as fronteiras procedimentais e substantivas do Direito:
racionaliade, motivação, correção e justiça163.

Seguindo esse mesmo raciocínio, há um outro limite a ser


observado, que parte da constatação de que o ativismo judicial não deve
desfigurar a organização do Estado moderno, fundada no princípio da
separação de Poderes, consubstanciado no art. 2º da Constituição Federal de
1988.

Como se tem dito, o princípio da tripartição de poderes não


impede a configuração do ativismo judicial, haja vista que se trata de uma
garantia constitucional que não pode ser interpretada em desfavor do cidadão,
a pretexto de justificar a ineficiência do Estado no atendimento de suas funções
precípuas. Pelo contrário, o modelo tripartido consagrado pela teoria política
moderna e adotado pela Constituição 1988 se presta a evitar a concentração
de poder nas mãos de um único soberano, bem como possibilita a
especialização e a otimização das funções estatais e, assim, ampliar a eficácia
da Constituição.

Assim, se o ativismo judicial coopera para a efetivação das


normas constitucionais, o princípio da tripartição de Poderes não pode
constituir óbice a essa atuação. Na realidade, o ativismo judicial deve ser
praticado de modo a reafirmar o valor da tripartição de poderes, como se passa
a expor.

À medida que o Judiciário passa a receber demandas da


população que não foram apreciadas pelas instâncias políticas do Estado, as
decisões ativistas começam a surgir e, inevitavelmente, passe-se a notar aquilo
que Mauro Cappelletti denominou “agigantamento do terceiro poder”. Essa
ampliação da atuação do Poder Judiciário é, portanto, percebida pelos demais
Poderes. E, justamente por ser percebida, a atuação ativista exerce um caráter
de admoestação, isto é, uma advertência feita pelo Judiciário ao Legislativo e
ao Executivo de que se as autoridades políticas competentes não exercerem
as suas atribuições, os juízes e tribunais serão instados a agir.

163
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 19.
Desse modo, a atuação ativista exerce, positivamente, uma
pressão sobre o Legislativo e o Executivo para que estes assumam a posição
que lhes incumbe na dinâmica da tripartição de Poderes. O ativismo judicial
que aqui se propõe não deve ter a pretensão de substituir os demais Poderes,
suprimindo a atuação a política, mas tão somente de amparar o cidadão
naquilo que compete ao Estado enquanto as autoridades competentes não
agiram. E, obviamente, uma vez que o Legislativo e o Executivo atuarem, o
Judiciário deve ceder.

Nesse sentido, Luís Roberto Barroso observa:

A importância da Constituição – e do Judiciário como seu


intérprete maior – não pode suprimir, por evidente, a política, o
governo da maioria, nem o papel do Legislativo. A Constituição
não pode ser ubíqua. Observados os valores e fins
constitucionais, cabe à lei, votada pelo parlamento e
sancionada pelo Presidente, fazer as escolhas entre as
diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades
pluralistas. Por essa razão, o STF deve ser deferente para com
as deliberações do Congresso. Com exceção do que seja
essencial para preservar a democracia e os direitos
fundamentais, em relação a tudo mais os protagonistas da vida
política devem ser os que têm votos. Juízes e tribunais não
podem presumir demais de si próprios – como ninguém deve,
aliás, nessa vida – impondo suas escolhas, suas preferências,
sua vontade. Só atuam, legitimamente, quando sejam capazes
de fundamentar racionalmente suas decisões, com base na
Constituição164.

Portanto, é nisso que reside o segundo limite a ser apontado


em relação ao ativismo judicial, vale dizer, o seu caráter subsidiário em relação
às opções políticas, devendo o Judiciário tão somente amparar o cidadão nas
hipóteses de omissão das instâncias políticas, nunca substituindo-as, mas sim
admoestando-as para que desempenhem suas funções a contento.

164
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 12.
Porém, não basta estabelecer quais são as circunstâncias que
ensejam o ativismo judicial, isto é, quando praticá-lo; deve-se definir, em linhas
gerais, como deve proceder o juiz ao empreender tal conduta. É que, como
dito, caso não observados os limites da razoabilidade da atuação jurisdicional,
o ativismo judicial pode vir a contrariar o propósito a que se destina,
convertendo-se em instrumento de opressão estatal.

Portanto, adentrando nessa discussão pertinente à postura


interpretativa do ativismo judicial, cumpre observar que as decisões ativistas
devem sempre atuar no sentido de expandir os direitos fundamentais, e nunca
para restringi-los. A corroborar esse entendimento, faz-se menção à posição
sustentada por José Antonio Gomes Ignácio Júnior, que adiante segue:

Muito embora o ativismo na interpretação conforme à


Constituição, garantindo direitos usurpados ou omitidos pelo
legislador infraconstitucional, seja saudável, o mesmo não se
pode dizer daquelas decisões que, fora da previsão positiva
constitucional, retiram direitos165.

Com efeito, se o ativismo judicial pode ser compreendido como


uma postura pela qual o magistrado busca uma interpretação que amplia o
alcance da norma constitucional, como se tem exaustivamente sustentado, não
é legítimo que o juiz, fora da previsão positiva constitucional, atue de forma
restritiva. Isso se justifica pela própria teleologia constitucional, fundada na
dignidade da pessoa humana, que impõe a maior amplitude possível às
garantias individuais, salvo disposição em sentido contrário. Ademais, há que
se levar em consideração o princípio constitucional da legalidade, pelo qual o
que não é vedado é permitido.

Em outras palavras, se a Constituição contém uma previsão


genérica da qual derivam direitos fundamentais, esses direitos devem ser
considerados sob a acepção mais ampla possível, somente se admitindo
eventual restrição que esteja em consonância com as disposições
constitucionais.

165
IGNÁCIO JÚNIOR, José Antonio Gomes, op. cit., p. 156.
Do contrário, concebendo-se que as decisões judiciais
pudessem atuar no sentido de restringir direitos, estar-se-ia diante de grave
risco à segurança jurídica, uma vez que o cidadão correria o constante risco de
ter em desfavor de seu direito fundamental, além da própria omissão
institucional, a força imutável da coisa julgada.

De acordo com o postulado da segurança jurídica, é desejável


que os destinatários da norma jurídica saibam, com razoável exatidão, o que
esperar do direito. Isso significa que as decisões judiciais não devem
representar um fator de incerteza para a vida social. Nesse sentido, convém
citar os ensinamentos de Norberto Bobbio quanto ao princípio da certeza do
direito:

Um outro fator de natureza também ideológica é representado


pelo princípio da certeza do direito, segundo o qual os
associados podem ter do direito um critério seguro de conduta
somente conhecendo antecipadamente, com exatidão, as
consequências de seu comportamento. Ora, a certeza só é
garantida quando existe um corpo estável de leis, e aqueles
que devem resolver as controvérsias se fundam nas normas
nele contidas e não em outros critérios166.

Em que pese tenha o jusfilósofo italiano mencionado esse


princípio como sendo uma das causas que determinaram o advento da Escola
da Exegese, que não mais se sustenta, não se pode refutar a importância da
segurança jurídica para a coesão do atual paradigma hermenêutico.
Consequentemente, a segurança jurídica se apresenta como um dos limites
que podem determinar o sucesso, ou não, do ativismo judicial.

De fato, prevalece, ainda em tempos atuais, a necessidade de


se preservar a previsibilidade das decisões judiciais, sem o que não se pode
conceber o ideal de justiça colimado. Destarte, mister se faz que as decisões
estejam solidamente fundamentadas na Constituição, inclusive como garantia
da segurança jurídica, sendo este, portanto, outro limite a ser observado pelo
ativismo judicial. Na esteira desse entendimento, cabe mencionar o
166
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, compil. por Nello
Morra, trad. e notas Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
posicionamento de Maria Celina Bodin de Moraes, ao traçar um panorama que
parte “do juiz boca da lei à lei segundo a boca do juiz”, que se expressa no
seguinte excerto:

A constatação de que vivemos em uma era de incertezas e de


que o mecanismo de aplicação do direito é guiado por uma
lógica informal não permite abrir mão da segurança jurídica. A
previsibilidade das decisões judicias é também uma questão de
justiça, pois decorre da necessária coerência e harmonia que
devem caracterizar o sistema. Ao que parece, todavia, parte do
Judiciário não percebeu que a derrubada do limite externo,
formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção –
não significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário,
impôs um limite interno – metodológico – a exigência de
fundamentação (argumentativa) da sentença167.

Enfim, o que se quer demonstrar é que o ativismo judicial, se


praticado com estrita observância dos limites ora apresentados, pode ser uma
alternativa bastante razoável para amenizar os males advindos da atual
problemática tangente à efetividade da Constituição. Porém, é certo que o
ativismo não é uma solução definitiva para o problema, mas uma medida
meramente paliativa, pois não incide sobre o cerne da questão, que é a
irrefragável crise das instituições políticas brasileiras.

Nesse ponto, faz-se oportuno mencionar a conclusão de Luís


Roberto Barroso, que comunga do entendimento de que o problema é
abarcado pela seara política e de que, apesar dos esforços empreendidos pelo
Poder Judiciário, a solução definitiva não pode ser alcançada unicamente pela
postura dos magistrados, como segue:

Uma nota final: o ativismo judicial, até aqui, tem sido parte da
solução, e não do problema. Mas ele é um antibiótico
poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado. Em dose
excessiva, há risco de se morrer da cura. A expansão do
167
MORAES, Maria Celina Bodin de. Do juiz boca da lei à lei segundo a boca do juiz: notas
sobre a aplicação-interpretação do direito no início do século XXI. In: 10 anos de vigência do
Código Civil de 2002: estudos em homenagem ao professor Carlos Alberto Dabus Maluf, coord.
Christiano Cassettari, orientação Rui Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Saraiva, 2013.
Judiciário não deve desviar a atenção da real disfunção que
aflige a democracia brasileira: a crise de representatividade,
legitimidade e funcionalidade do Poder Legislativo. Precisamos
de reforma política. E essa não pode ser feita por juízes168.

De qualquer sorte, espera-se que os juízes e tribunais possam


prestar significativa contribuição para a superação desse panorama crítico da
eficiência estatal, julgando com a neutralidade que lhe é inerente, mas com
responsabilidade para com os ditames da Constituição e atendendo às
legítimas expectativas da população que têm sido depositadas sobre o
Judiciário.

Aliás, é o que se espera de todo e qualquer cidadão: que,


dentro das condições que lhe são próprias, possa se comprometer com o
projeto democrático, conduzindo a sociedade rumo à uma consciência geral
acerca da força normativa do direito constitucional, vale dizer, à promoção de
uma genuína vontade de Constituição, a fim de que a norma fundamental
alcance a efetividade que dela se almeja.

4. CONCLUSÃO

Em um primeiro momento, logrou-se delinear a


contextualização social e política da “Constituição Cidadã”, ressaltando-se o
papel desempenhado pelo Poder Judiciário nesse quadro em que a
Constituição adquire função diretiva, apontando rumos para a concretização de
valores fundamentais. Nesse contexto, verifica-se que a função jurisdicional
adquire contornos políticos, sobretudo em vista da crise institucional enfrentada
pelo Poder Legislativo e pelo Poder Executivo no atendimento das demandas
de uma sociedade extremamente complexa e dinâmica. Consequentemente, o
Poder Judiciário assume grande parcela de responsabilidade perante os
jurisdicionados no escopo de concretização das normas constitucionais.

168
BARROSO, Luís Roberto, Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática,
op. cit., p. 19.
Sendo assim, é inegável que o Poder Judiciário se apresenta
como uma última instância da população na busca pela apreciação daquelas
demandas sociais não atendidas pelas instâncias políticas ordinárias, motivo
pelo qual os juízes e tribunais, investidos que são da função inafastável de
apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça a direito, são instados a se
manifestarem sobre questões de relevante valor social, assumindo um papel de
centralidade no cenário político brasileiro.

Portanto, pode-se concluir que esse protagonismo


representado pelo Poder Judiciário, destacadamente pelo Supremo Tribunal
Federal, nada mais é do que uma outra face do inativismo legislativo e do
inativismo executivo; trata-se de uma reação do Judiciário a esses dois
desenvolvimentos patológicos que derivam da crise do “Big Government”, em
que o Poder Legislativo e o Poder Executivo se agigantam perante a
população, chamando para si uma responsabilidade com a qual não podem
arcar, e acabam por frustrar as expectativas legítimas do cidadão, que recorre
aos juízes e tribunais para pleitear seus direitos, de modo que o Judiciário,
consequentemente, também acaba por se agigantar.

Mas, além da circunstância atual da política brasileira, há que


se fazer menção a outros fatores determinantes para a configuração do
protagonismo judicial, que são fatores de natureza técnica inerentes ao
presente estágio do direito constitucional e da hermenêutica jurídica, os quais
se consubstanciam na Constituição de 1988, favorecendo uma atuação mais
contundente do Poder Judiciário no processo de afirmação do Direito.

É que, atualmente, em razão de tendências como o pós-


positivismo e o neoconstitucionalismo, a Constituição assume a condição de
norma fundamental do ordenamento jurídico nacional, estabelecendo, através
de princípios, uma normatividade que norteia toda a atividade estatal, no que
se incluem os atos administrativos, a legislação infraconstitucional e a atividade
jurisdicional. Isso quer dizer que esses princípios, que são normas jurídicas
dotadas de elevado grau de abstração e generalidade, fornecem subsídios
para que os agentes públicos atuem em prol das finalidades estatais
consagradas na Constituição.
Contudo, como nem sempre a atuação desses agentes
públicos se dá em conformidade com a principiologia da Constituição, faz-se
mister que esses atos se sujeitem a um controle de constitucionalidade, que,
no ordenamento brasileiro, é exercido pelo Poder Judiciário. Nesse ponto, cabe
ressaltar que a Constituição de 1988, ao adotar um sistema híbrido, que
possibilita tanto o controle de constitucionalidade concentrado quanto difuso,
atribui uma significativa parcela de responsabilidade ao Poder Judiciário como
um todo na concretização das normas constitucionais.

Em razão dessa tendência de ampliação da esfera de atuação


do Poder Judiciário, verifica-se que a jurisprudência tem desempenhado papel
de destaque entre as fontes do direito, mesmo sendo o Brasil um país de
tradição romano-germânica, baseado no sistema jurídico do civil law, que tem
como característica o primado da lei em relação às demais fontes. Há, como se
tem observado na doutrina, uma forte tendência de aproximação entre os dois
sistemas jurídicos do mundo ocidental, a saber, o civil law e o common law, o
que deve ser creditado também ao amplo processo de globalização que se
verifica na contemporaneidade, promovendo a homogeneização de padrões
culturais e a adoção de posturas semelhantes para o enfrentamento de
problemas comuns.

Em linhas gerais, esse é o cenário no qual se desenvolve o


protagonismo do Poder Judiciário, fenômeno que engloba vários conceitos
relevantes à hermenêutica constitucional, dentre os quais o ativismo judicial e a
judicialização da política, que, como se expôs, caminham juntos, mas não se
confundem. Com efeito, a distinção que foi estabelecida no presente trabalho
se baseia no fato de que a judicialização da política deriva das condições
estabelecidas pelo legislador constituinte, que confere uma atuação mais
ampla ao Poder Judiciário, ao passo que o ativismo judicial deriva da vontade
do intérprete de conferir maior amplitude semântica à norma constitucional.

E, justamente a partir dessa distinção, evidencia-se a


pertinência do ativismo judicial à problemática apresentada neste estudo, qual
seja, a efetividade das normas constitucionais. Com efeito, não basta a
previsão em abstrato de diversos mecanismos que assegurem ampla
participação ao Poder Judiciário no processo de afirmação da Constituição se o
juiz, pela sua própria vontade, não assume a responsabilidade de julgar os
casos que lhe são submetidos de modo a assegurar tanto quanto seja possível
a eficácia das normas constitucionais.

O que se verifica, portanto, é que as pretensões da população


têm chegado à apreciação do Poder Judiciário graças ao amplo acesso à
justiça que foi oportunizado pela Constituição Cidadã, mas isso ainda não
significa que a efetividade das normas constitucionais está garantida. Cabe ao
magistrado decidir se irá assumir uma postura proativa na interpretação da
Constituição, ainda que para isso tenha que se opor ou se impor aos demais
Poderes, ou se irá afastar de si essa responsabilidade, relegando-a para
aqueles que dela já têm se afastado, criando, assim, um ciclo interminável de
omissões.

É nesse sentido que o ativismo judicial se apresenta como uma


nova proposta ao Poder Judiciário para o enfrentamento da problemática
pertinente à efetividade da Constituição. O fundamento legitimador dessa
proposta, como visto, é a dignidade da pessoa humana, sendo essa a condição
elementar que permeia toda a normatividade constitucional, devendo nortear os
rumos da atividade estatal para a plena realização das finalidades humanas, o
que demanda a plena eficácia dos direitos fundamentais dispostos na
Constituição.

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