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MAURA IGLÉSIAS

A relação entre sensível e inteligível:


methexis ou mimesis?

E comum apresentar Platão como o lósofo que, postulando a existência


de seres inteligíveis separados e independentes dos sensíveis, as ideias, relegou
o mundo sensível à condição de imagem do inteligível.
Essa a rmação talvez não seja infundada. Requer, entretanto, algumas
importantes precisões, a começar do fato de que ela diz respeito à relação entre
universais e particulares, e que esseé um problema que aparece mesmo antes
de Platão ter operado a cisão sensível/inteligivel. Com efeito, a distinção entre
universal e particulares não é uma invenção nem uma hipótese socrática ou pla-
tônica, ela é um fato. Poderíamos dizer que qualquer língua pressupõe essa
distinção, o que não signi ca que os usuários desse instrumento, os falantes,
tenham consciência disso. O questionamento socrático dos primeiros diálogos
revela justamente a di culdade que os interlocutores de Sócrates têm de olhar
para o eidos comum aos casos particulares e de nir justamente esse eidos comum,
em vez de dar um exemplo ou de nir um caso particular. Em outras palavras:
o simples reconhecimento da distinção entre eidos e particulares já é um produto
da re exão losó ca, e o Sócrates dos diálogos da primeira fase está justamente
revelando essa distinção com que a língua trabalha. Essa distinção pressupõe
uma relação, e essa relação é entendida como presença do eidos no particular,
ou como participaçao do particular no eidos, seja esse particular uma coisa, um
fato ou uma açāo.
Assim, aceitando a ordenação cronológica em que os diálogos são normal-
mente apresentados, podemos constatar que o vocabulário utilizado por Platão

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ESTVDOS PLATÔNI(OS

para referir-se à relação existente entre o eidos comum e os particulares que têm
em comum esse eidos, nos diálogos da primeira fase, em que ainda não é
aparentemente,
reconhecidaacisãosensível/inteligível , é ligado ànoçãode
presença: einai, eneinai, pareinai, gignesthai, engignesthai, paragignesthai. 0
que faz que a coisa seja x é o fato de o eidos X estar na coisa ou ao lado da coisa.
A coisa, por sua vez, tem (ekhei)o eidos. No Górgias, Sócrates refere-se mesmo
à relação entre eidos e coisa como participação:

As coisas que não são nem boas nem más são aquelas que participam (uetéyéu)
ora do bem ora do mal ora nem do bem nem do mal... (467 E10)

O que esse vocabulário revela é que entender a diferença entre universais e


particulares não requer a postulação dos universais como entidades existentes em
si, separadas, isto é, como ideias "transcendentes". Os universais foram primeira-
mente entendidos como "imanentes" nas coisas.
Observemos, entretanto, que os termos transcendência e imanência são
usados pelos comentadores de forma ambígua, quando aplicados à teoria das
ideias. No seu uso mais geral, eles indicam o estatuto ontológico da ideia: elaé
transcendente quando sua existência é reconhecida como separada, independen-
te de seus homônimos sensíveis; imanente, quando não existe à parte deles, mas
apenas neles, embora com eles não se confunda. Nesse uso, transcendência e
imanência nada diriam a respeito da relação da ideia transcendente, em si, com
as coisas sensíveis. Mas esses termos são usados também, por alguns comenta-
dores, para indicar não o estatuto ontológico do universal, mas o tipo de relação
que tem a ideia transcendente, separada, com as coisas particulares que são suas
homônimas.Nessecaso,imanência signi caria que a relação entre ideia e sen-
síveis é a rmada como presença da ideia nas coisas sensíveis. A transcendência
seria outra forma de relação, que não admitiria essajunçāão, ainda que metafő-
IIça, entre inteligíveis esensíveis.
E aqui chegamos à a rmação sobre a qual propusemos fazer algumas pre-
cisões -a concepção de que, para Platão, o sensível é imagem do inteligível.
Comecemos por dizer que, apesar do que normalmente se a rma, a relação
entre ideias e sensíveis, mesmo depois da postulação da ideia como entidade em
si, não foi pensada sempre, nem primeiramente, por Platão, segundo o paradigma
modelo/imagem. Em verdade, nos diálogos em que a cisão sensível/inteligível
já está claramente presente, Platão emprega, para referir-se à relação entre a
ideia e seus homônimos sensíveis, uma grande variedade de termos.

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A RELAGÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

Em Plato s Theory of ldeas', Ross apresenta, na parte nal, em que resume as


conclusões de suas considerações sobre a teoria das ideias, um levantamento, que
não se pretende exaustivo, de termos usados por Platão para referir-se à relação
entre ideias e coisas particulares. Os termos são ordenados em dois grupos: um que,
segundo Ross, sugeriria a "imanência"e outro, a "transcendência" das ideias. Note-
se que Ross dá à imanência o sentido mais geral, de estatuto não separado da ideia,
uma compreensão da relação inteligível/sensível que ele acredita ter perdurado ao
longo de toda a obra de Platão, com exceção aparentemente do Timeu, ao lado da
compreensão da ideia como transcendente, isto é, separada. A transcendência, por
outro lado, signi ca, para ele, não só que a ideia é separada, mas que a forma de
sua relação com a coisa é outra que não a presença. Note-se que esse sentido que
ele dá à transcendência o levará a concluir que Platão, em um mesmo diálogo, ora
a rma a ideia como transcendente, isto é, separada, ora não, uma vez que se refere
à sua relação com as coisas sensíveis como presença ou participação.
Por outro lado, usar o termo imanência para indicar a presença da ideia
transcendente isto é, separada como forma de sua relação com seus homô-
nimos sensíveis, resulta em admitir que a ideia é ao mesmo temnpo transcendente
e imanente.
Para evitar a ambiguidade, empregamos os termos imanência e transcendên-
cia apenas para designar o estatuto ontológico da ideia. É imanente a ideia conce-
n, bida como o eidos, comum mas não separado, de uma multiplicidade de sensíveis.
E transcendente a ideia concebida como separada, independente dos sensíveis e
fundamento de sua possibilidade de ser e de ser conhecidos. Segundo nossa es-
colha interpretativa, a imanência da ideia aparece apenas nos primeiros diálogos,
sendo substituída por Platão, nos diálogos da fase média, pela concepção, que
ele não mais abandonou, de uma ideia separada, transcendente.
Para designar a forma de relação da ideia separada, transcendente, com
os sensíveis, nossa nomenclatura será outra, e é para essa questão que nos
voltamos agora.

1. D. Ross, Plato s Theory of ldeas, Oxford, Oxford University Press, 1951.


2. Isto é, em suas conclusões, ele sugere que Platão hesitou, do começo ao m, entre
admitir ou não a existência separada da ideia. ...he (Platão) thought of them (sc. as ideias),
as existing separately from sensible things; but to the question whether Plato consistently so
thought of them no simple answer can be given. Help may be sought from a study of the
words he uses from time to time to express the relation between Forms and particulars.
These may be divided into a group of words implying or suggesting the immanence of the
Forms, and a group implying or suggesting their transcendence (228). (Segue a relação do
vocabulário levantado e, em seguida, as ocorrências nos textos.)

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ESTUDOS PLATÔNI(Os

O levantamento de vocabulário da relação ideia/particulares feito por Ross,


embora não exaustivo, é su ciente como nosso ponto de partida. Restringindo-
nos aos diálogos em que a separação entre ideia e coisa é reconhecida, podemos
constatar, acredito, que a variedade de termos utilizada pode ser subsumida a
algumas noções: presença, posse, participação (methexis), semelhança, comunhão,
mimesis. Essas noções, por sua vez, podem ser subsumidas a apenas duas, que
vão constituir os dois paradigmas que Platão parece ter explorado para entender
a relação entre ideias e coisas: methexis e mimesis.
Nos diálogos da fase mediana, quando a ideia passa a ser concebida como
transcendente, o vocabulário comandado pela noção de methexis parece substi-
tuir, cada vez mais, embora sem eliminar, o vocabulário indicativo de presença,
praticamente o único utilizado nos diálogos iniciais, nos quais a ideia é imanente.
Além de participação, Platão introduz também a noção de comunhão (koinonia),
claramente com o mesmo sentido. Assim, todas essas noções presença, pos-
se, participação, comunhão podem ser assimiladas, e subsumidas sob a noção
de methexis, o termo mais geral usado para explicar uma mesma modalidade de
ręlação entre ideiaş e coisas: a que compreende que a coisa é o que é por uma
espécie de cońtato com a ideia, ainda que isso seja uma mnetáfora.
A mimesis, ao contrário, seria a o termo que designa a relação de modelo
e imagem entre inteligível e sensível, o que dispensa à noção de contato.
Resta a questão de saber a qual desses dois paradigmas pertence a noção de
semelhança, cujo vocabulário Ross não hesita em colocar no grupo de termos
que, para ele, sugerem “transcendência, entendida não só no sentido de a rmação
da ideia em si, mas de uma relação com o sensível que não implica presença.
Isso signi ca assimilar a semelhança à mimesis. Assim, dizer que uma coisa é o
que é por ser semelhante à ideia, seria a rmá-la como imagem da ideia.
Se insistirmos entretanto na diferença entre os dois paradigmas, methexis e
mimesis, essa assimilação da semelhança à mimesis não é de modo algum eviden-
te. No Fédon, por exemplo, Platão emprega, para falar da relação inteligível/sen-
sível, tanto a noção de semelhança quanto a de participação, presença e comunhão.
Isso, é claro, não seria importante, caso se aceite a posição, largamente difundida,
de que methexis e mimesis são apenas metáforas usadas por Platão para falar de
uma relação a rigor impossível de ser compreendida, e que o uso de uma ou de outra
se deve ao fato de os problemas dessa relação serem mais bem conmpreendidos
ora por uma, ora por outra. O que propomos mostrar aqui, entretanto, é que esses
dois paradigmas talvez sejam mais que metáforas; que as conotações de um e de
outro são distintas e, a rigor, incompatíveis; e que compreender a relação entre

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ARELAÇÃO ENTRESENSÍVELE INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

inteligivel e sensível segundo o paradigma da relação modeloimagem é um dos


aspectos importantes da última ontologia de Platão.
Essas a rmações não são novas.
Henry Jackson, em uma série de artigos que tiveram por título geral Platos
Later Theory of ldeas, advogava, pela primeira vezaparentemente, anecessidade
de se reconhecer uma reformulação da teoria das ideias feita por Platão, após a
formulação clássica tal como aparece no Fédon e na República. Uma das diferenças
fundamentais nessa que ele chamou de "nova ontologia" de Platão era justamente
a substituição da noção de participação do sensível na ideia pela noção de ser o
sensível uma imagem da ideia.
Muitas das conclusões revolucionárias de Jackson tornam seus artigos, em
grande parte, datados, não por serem antigos, mas por serem realmente comprome-
tidos com certas correntes de interpretação em vigor na época em que foram escri-
tos. E o caso de sua interpretação do último pensamento platônico como um idea-
lismo radical (thoroughgoing idealism): as ideias platônicas seriam certos "tipos
naturais existentes na mente universal e coisas particulares seriam o mesmo pensa-
mento imperfeitamente realizado por metes nitas no tempo e no espaço. Talvez
por essa razão, a interpretação de Jackson acabou sendo posta de lado.
De qualquer forma, a respeito dessa questão, a opinião que acabou preva-
lecendo é a de que a relação sensívelinteligível é compreendida por Platão si-
multaneamente como participação elou como baseadana relação modelo magem,
e que a única coisa importante é a rmar que essa relação existe e é ela que dá
nrca
inteligibilidade ao sensível.
Jackson, entretanto, reconhecendo em certos textos platônicos uma ontologia
que não condizia com a chamada teoria das ideias tal como formulada no Fédon
e na República, temo mérito de ter chamado a atenção para essa questão. A partir
dele, di cilmente se deixou de reconhecer uma mutação importante nos diálogos
hoje considerados da última fase de Platão, embora variem as interpretações
sobre o que seria essa mutação.
Talvez a resistência em aceitar que methexis e mimesis sejam paradigmas
concorrentes e inconciliáveis, que se eliminam um ao outro e que é, portanto,
preciso escolher entre os.dois, venha do fato de que, nos dois diálogos da fase
mediana em que Sócrates se estende mais longamente sobre o que seja a teoria

3. H.JACKSON,Plato 's Later Theory of Ideas. I. The Philebus and Aristotle's Metaphysics
I6, The Journal of Philology, 10 (1882) 253-298; II. The Parmenides 11 (1882) 285-331;
II. The Timaeus, 13 (1885) 1-40; IV. The Theaetetus, 13 (188S) 242-272; V. The Sophist, 15
(1886) 173-305.

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ESTUDOS PLATÔNICOS

dasideias – RepúblicaeFédon , arelaçãoentreideiasesensíveispareeser


tratada tanto como methexis quanto como mimesis.
Ora, a tese de que Platão substituiu um paradigma por outro, como aliás
outros aspectos de sua última ontologia, passa pela crítica do Parmênides. É
nesse diálogo que se levantam di culdades sérias sobre a maneira de entender
a relação entre ideias e sensíveis como participação, di culdades que levam
Sócrates a sugerir a Parmênides que essa relação seja entendida como a de mo-
delo e imagem. O que seria de esperar, portanto, é que o paradigma da mimesis
só aparecesse nos últimos diálogos e que, anteriormente ao Parménides, o sensí-
vel não apareça absolutamente como imagem do inteligível..
E exatamente isso, entretanto, que se pretende manter aqui: que, propriamente
falando, a relação do sensível com o inteligível entendida como relação demodelo
e imagem, inçompatível com a noção de participação, só é, a rigor, presente nos
diálogos posteriores ao Parmênides; e que reconhecer esse tipo de relação entre
inteligível e sensível nos diálogos anteriores se deve à confusão criada pela noção
de semelhança, que Platão emprega tanmbém para falar dessa relação, e pelo uso
metafőrico da noção de imagem, explorado sobretudo na República.
Foi dito anteriormente que não é evidente a qual dos dois paradigmas, me-
thexis ou mimesis, está subsumida a noção de semelhança. Poderíamos sertentados
a considerá-la um terceiro paradigma. A nal, semelhança não pressupõe neces-
sariamente um original e uma cópia. Pode tratar-se de uma relação recíproca, não
hierárquica: A é semelhante a B, como B é semelhante a A. Cada um é o que é
em si mesmo, nenhum é o original copiado pelo outro. A maneira, entretanto,
como Platão emprega o vocabulário da semelhança quando se refere à relação
ideia e sensível não deixa margem a dúvidas: é sempre uma relação assimétrica
e hierárquica. Ideias e coisas não são reciprocamente semelhantes como dois
homens, por exemplo, que se assemelham. Na relação ideia e particular sensível,
existe algo que é o que é, e outro algo que recebe o mesmo nome porque se
assemelha ao primeiro. Essa maneira de entender a relação de semelhança entre
ideia e sensível parece, pois, dar razão a Ross, que a considera tout court como
a relação entre modelo e imagem.
A análise dos textos, entretanto, não coń rma essa interpretação. Enquanto
prevaleceu, nos diálogos da fase mediana, o paradigma da participação, é a esse
paradigma que a semelhança é assimilada. E é essa assimilação justamente que
parece ter levado à assimilação da própria mimesis à participação, ou à visão de
que esses dois paradigmas são intercambiáveis, e que Platão emprega ora um
ora outro, sem jamais ter renunciado a um em favor do outro.

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

Mas vejamos, para corroborar essas a rmações, as passagens mais signi -


cativas nos diálogos da fase mediana que mais explicitamente abordam essa
questão: Fédon, República e Parmênides.
No Fédon, duas passagens são especialmente importantes para a questão da
relação entre ideias e sensíveis. Em ambas, a teoria das ideias está não só explícita,
mas até mesmo explicada com certos detalhes. Uma delas é aquela em que Sócrates
usa, a favor da tese da imortalidade da alma, o argumento da anamnesis como con-
dição de possibilidade de aprendizado, entendido como reminiscência de um conhe-
cimento anteriormente adquirido (Fédon, 72 E2 ss.). A outra, que abordaremos
primeiro, é a célebre passagem da "segunda navegação (99 C ss.), que conclui a
história narrada por Sócrates, iniciada em 96 AS, de seu percurso intelectual em
busca das causas de todas as coisas. Sua decepção com o tipo de explicações dadas
por esse tipo de saber chamado investigação da natureza (Tepi þúoeoç ioropi«) e
sua expectativa frustrada com Anaxágoras, que anunciou a inteligência (voiç) como
causa de todas as coisas, mas dispensou-a nas explicações que deu sobre como tudo
vem a ser, levaram Sócrates à formulação do que é conhecido por teoria das ideias.
Pela maneira de sua apresentação, entretanto, mais bem a designaríamos como a
hipótese das ideias. Segundo essa hipótese, a melhor explicação sobre o que seja
uma coisa, a causa que ele, Sócrates, penosamente procurou e não encontrou nas
explicações dadas por seus antecessores, aquilo que faz uma coisa ser o que ela é,
é a participação dessa coisa na ideia da qual deriva seu nome.

Examina o que se segue da existência dessas realidades ... Para mim é muito
claro: se há outra coisa bela além do belo em si, essa coisa não é bela senão
por uma razão: porque participa (ueréņeL) desse belo. (100 CS)

Um pouco adiante aparecem os termos parousia e koinonia:

Eu me apego a essa razão: nada torna essa coisa bela a não ser a presença
(Tepovoia) ou a comunhão (Kouvovia) desse belo. (100 D5)

A passagem toda é, assim, uma perfeita ilustração da equivalência entre


presença, participação e comunhão.

4. Cf. H. ECHERNISS,The Philosophical Economy of the Theory of Ideas, Studies in


Plato's Metaphysics, R. E. ALLEN (ed.), London, Routledge&Kegan Paul, New York, The
Humanities Press, 1965.

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ESTUDOS PLATÔNICOS

Se tivéssemos apenas essa passagem do Fédon sobre as ideias, nada nos


indicaria, como observa Ross com razão, que, nesse diálogo, as ideias sãocom-
preendidas como separadas, pois o tipo de relação é o mesmo que aparecenos
diálogos socráticos em busca da de nição: é a presença da ideia Xem a que faz
que a seja x.
Observe-se que essa concepção é compreensível pelo tipo de eidos que pri-
meiro interessou Sócrates, ou o Sócrates platônico: algumas ideias matemáticas
não ideias geométricas, mas coisas comoo igual, o grande, o pequeno-e as
virtudes em geral. Correspondem às ideias sobre cuja existência Sócratesdeclara
não ter dúvidas no Parmênides (130 BE), Para esse tipo de coisa, é intuitivo que
se pensem os casos particulares segundo o paradigma da presença: 0 que torna a,
que é x, distinto de X, é o fato de a poder ser, em outras relações, um caso de nãox
e até mesmo de y, contrário de x: a é x quando X está presente, e deixa de ser
x quando X não está presente. Mas, enquanto x, aéx. Em outras palavras: não é o
caso que, ao mesmo tempo, na mesma relação, a seja xe não seja x. Isso também
quer dizer que a não é x plenamente; mas, na medida em que é x, a é x.
Ora, isso vai acontecer também na passagem sobre a anamnesis (72 E2 ss.),
em que, entretanto, a transcendência da ideia é claramente indicada. Nem poderia
ser diferente, pois, aqui, tanto a imortalidade da alma, que sequer provar,quanto
as ideias transcendentes, a que ela teria acesso enquanto nãoassociada a um
corpg, são necessárias para sustentar a tese de que o aprendizado é rememoração
(anamnesis) de um conhecimento prévio.
Em toda a passagem, a relação entre ideia e coisas sensíveis é expressa no
vocabulário da semelhança, e é claramente indicado que a semelhança não é
simétrica, mashierárquica: há algo, X, querealmente é x, e a éx por serseme-
Ihante, embora sob outro aspecto dessemelhante a esse algo realmente x.
Assim sendo, Platão parece estar a rmando a diferença radical entre o seme-
Ihante e aquilo a que ele é semelhante, isto é, a diferença radical entre original
eimagem:

Dizemos que há algo que é o igual (tò Loov)? Não quero dizer um pedaço de
pau igual a outro, ou uma pedra igual a outra, nem nada desse tipo, mas outra
coisa para além dessas o igual ele mesmo («ỦTÒ Tó Loov)...
De onde derivamos o conhecimento disso? Não é das coisas de que falamos
agora? Não é vendo pedaços de pau ou pedras ou outras coisas iguais que deri-
vamos a partir delas o conhecimento do igual mesmo, que é outra coisa que não
elas? Ou não achas que é uma outra coisa?..

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

Pois considera da seguinte maneira: pedras ou pedaços de madeira iguais, embora


permaneçam os mesmos, não nos aparecem às vezes iguais, sob um aspecto, às
vezes não, sob outro aspecto?...
Mas ... a igualdade pareceu-te alguma vez desigualdade?..
Logo, esses iguais não são o mesmo que o igual ele mesmo. (74 AC)

Mas, em seguida, Sócrates sugere que a diferença se deve a uma de ciência.


O semelhante a algo almeja (bouletai) ser esse algo, mas ca aquém, sem con-
seguir ser inteiramente isso que almeja ser.

os pedaços de pau e coisas iguais de que falávamos agora... parecem-nos


iguais como o igual ele mesmo, ou de alguma forma são de cientes (evõEL T)
quanto a ser como o igual? (74 D)

E logo depois:

Concordamos então que quando alguém, vendo uma coisa pensa: "essa coisa
que eu vejo almeja (BoúAerK) ser como alguma outra coisa que existe, mas ca
em falta (võeL Oč) e é incapaz de ser como essa coisa, mas é inferior a ela",
aquele que assim pensa deve necessariamente ter tido conhecimento prévio
dessa coisa que ele diz que se assemelha mas é de ciente em relação a ela
(evõeéorepoç čyeLw). (74 DE)

A semelhança que alguém reconhece entre a ideia que ele conheceu e a


coisa que se dá à sua percepção consiste, pois, no fato de essa coisa não ser
sempre e não ser inteiramente isso que ela almeja ser. Ainda assim, é o fato de
ser, em certa medida, isso que ela não é inteiramente que lhe dá a semelhança
a isso que ela é, mas não é inteiramente. A relação entendida como semelhan-
ça parece pois assimilável à relação entendida como participação ou presença
da ideia na coisa; poder-se-ia dizer, em ambos os casos, que a é x, mas não
sempre e não inteiramente; éx, na medida em que participa de X, ou na medida
em que é semelhante a X; e não é x na medida em que não participa ou não é
semelhante a X.
Assim, os modelos de relação inteligível/sensível - semelhança e participa-

ção-, que pareciam ser distintos nas duaspassagensdo Fédon quecitamnos,pode-


riam ser fundidos em um só, e poderíamos dizer que o que dá a algo a, que é se-
melhante a X, essa semelhança é a presença em a daquilo a que ele se assemelha.
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ESTUDOS PLATÔNI(OS

Essa comnpreensão da relação de semelhança entre sensível e inteligível ére.


forçada pela maneira como a teoria das ideias é introduzida na própria República.

Aquele que pensa que há belas coisas, mas não um belo em si, nem é capazde
seguir alguém que o conduziria ao conhecimento disso, parece-te que elevive
realmente desperto, ou que vive como em sonho? Pois examina. O sonharnão
éo seguinte: se alguém, quer em sonho, quer acordado, crê ser o queseparece
com algo (tò ŐLOLOV TỘ) não o que se parece com algo mas aquilo mesmo a
que se parece (uh őuoLOv, dAN' airò iyñtau elvau G čouKev)? ...
Ao contrário, aquele que reconhece o belo em si e é capaz de perceber tanto obelo
mesmo como as coisas que dele participam (ràČKELVOUHeTÉzovre), e nãoacredi-
tando que são o belo mesmo as coisas que dele participam, nem queo belomes-
mo é as coisas que dele participam, parece-te que este vive desperto ou como
em sonho? (Rep., V 476 B ss.)

Como se vê, também aqui semelhança e participação parecem sera mesma


relação.
Sobre a natureza das ideias, porém, a passagem acima citada não é, certa-
mente, na República, nem a única nem a mais importante. De longe, a mais
conhecida é a passagem da linha dividida, antecedida da passagem da analogia
entre o sol e o bem e seguida da alegoria da caverna.
Em República 506 B ss., Sócrates, instado a falar sobre o bem, esquiva-se,mas
consente em falar sobre aquele que aparece como "o rebento do bem e o que há
de mais semelhante possível a ele'". Esse rebento, como vai revelar-se, é o sol, e,
em 509 A9, Sócrates refere-se a ele como a imagem do bem (thy eikóva aito).
A relação entre bem e sol, entretanto, ao longo de toda apassagem, não é
evidentemente a da ideia inteligível com seus homônimos sensíveis. Trata-se
claramente da construção de uma metáfora, ou melhor, do estabelecimento de
Juma analogia entre o bem eo sol: o bem está para o inteligível como o solpara
sensível, propõe Sócrates.
Ora, "analogia', como se sabe, é um termo proveniente da matemática, e
Signi ca PEOPOrção, em especial a proporção geométrica, que foi transposta
por Platão para a loso a como um recurso para falar de coisas de di cil com;
preensão. De fato, estabelecendo a igualdade entre duas ou mais relações, essa
proporção permite falar de uma relação desconhecida (no caso, a relação entre
o bem e o inteligível), a partir de uma conhecida (no caso, a relação entre o sol
eo visível).

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVE L: METHEXIS OV MIMESIS?

Apesar de o uso da analogia por Platão provir claramente da matemática, há


uma forma de analogia intuitiva, como que inerente à linguagem, a metáfora, que,
como a analogia, permite estabelecer relações entre termos de domínios diferentes.
A analogia matemática, transposta para a loso a, permite construir uma metáfora.
O sol é o bem do sensível, como o bem éo sol do inteligivel. Dizer que o sol é
uma imagem do bem equivale, pois, a dizer que ele é uma metáfora do bem.
Na passagem da linha dividida, por outro lado (509 D-511 E), o termo eikon
é usado principalmente em seu sentido próprio: Sócrates pede que se tome uma
linha dividida em dois segmentos desiguais (correspondentes ao visível e ao in-
teligível)e que cada parte seja dividida segundo a mesma proporção. A primeira
seção do visível será a das imagens (eikones), e ele explica o que são elas:

Chamo imagens (eiKÓvEG) em primeiro lugar as sombras (OKL«G), em seguida os


re exos (Gavtéoucta) nas águas e em todas aquelas super cies que são com-
pactas, lisas e brilhantes, e tudo o mais desse tipo. (510 A)

Trata-se pois de imagens de coisas sensíveis.


Em seguida, Sócrates pede que se ponha a outra seção (do visível) à qual esta
se parece, e nela localiza as coisas que dão origem às imagens da primeira seção.
Passando ao segmento do inteligível, a primeira seção deste é descrita como
aquela em que a alma utiliza, como se fossem imagens (oç eiKÓow xpouévn
juxi), as coisas que antes eram imitadas (toûç tóre Lundeiow, 510 B3). A re-
ferênciaé ao procedimento dos que se ocupam de geometria, aritmética e coisas
do gênero, como explicado na sequência do texto:

Sabes também, não é?, que eles utilizam guras visíveis e constroem raciocínios
sobre elas, embora não seja nelas que pensem mas em outras às quais essas se
parecem (oiç toûta čoLKE), construindo raciocínios em vista do quadrado mesmo
(tonTETprycóvou eiroü), da diagonal mesma (6Lauétpou «irîc), e não da diagonal
que traçam, e assim também para as outras guras. Todas aquelas que eles mo-
delam ou traçam, das quais há sombras (oKLcí) e imagens (eiKóveç) nas águas,
eles as utilizam como se fossem imagens (oçELKÓOLUaỦ XpóuevoL), ao procurar
ver aquelas coisas mesmas que não se veem senão pelo pensamento. (510 D)

Isso é tudo que se diz explicitamente sobre imagens em toda a passagem


da linha. A segunda seção do inteligível é descrita apenas em termnos de méto-
do usado para atingir os inteligíveis. Nenhuma palavra sobre a natureza da

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ESTUDOS PLATÔNICOS

relação entre inteligíveis e sensíveis. Entender todo o sensível como imagem


do inteligível é, de fato, produto da construção da linha, segmentada analogi-
camente, isto é, proporcionalmente, de tal modo queo segmento dosensível
está para o do inteligível assim como, no segmento do sensível, a seção das
imagens está para a das coisas que produzem imagens. Assim, a linha se torna
uma metáfora que pode ser entendida como a a rmação de que o sensível éa
imagem do inteligível.
Também na alegoria da caverna, que se segue a essa passagem, o mundo
sensível, como um todo, aparece como imagem do inteligível. Mas, de novo,
isso aparece claramente como metáfora. De fato, o termo "imagem" (eikon) é
usado para referir-se à própria alegoria, apresentada como imagem do que havia
sido dito antes (aparentemente a passagem da analogia do beme do sol e a
passagem da linha).

Então, caro Gláucon, disse eu, é preciso aplicar essa imagem (taútnv thv eikóve)
ao que foi dito antes, assimilando a região revelada pela visão (thv ôu' öljewç
þavouévmv öpav) ao local da prisão e a luz do fogo que há nela à potência do
sol... (517 B)

O que deve ser notado é que o mundo sensível, fora da caverna, faz o papel
do inteligível, o que quer dizer que, sendo a alegoria toda uma imagem, o sensí-
vel, de novo, aparece, também metaforicamente, como imagem do inteligível.
Note-se também que a República não é um diálogo sobre a natureza dos
aspectos sicos do mundo sensível, como será o caso do Timeu. Ē verdade que
é na República que a extensão do mundo das ideias atinge sua amplitude máxi-
ma. Ao contrário de outros diálogos, que parecem reconhecer claramente apenas
algumas ideias, ou até mesmo só uma (Banquete), a República reconhece a ideia
de tudo, até mesmo de artefatos?. Mas a investigação da República é sobre a
natureza do bem e das virtudes necessárias para a boa constituição da polis,
certamente sobre a paideia, o que leva ao exame minucioso de tudo o que tra-
dicionalmente se inclui na formação dos cidadãos, como a música e a poesia.
Não parece, porém, que a natureza do mundo sensível, como tal, seja objeto do
interesse de Platão, como será o caso no Timeu. O aparecimento do mundo todo
como imagem do inteligível é uma espécie de acidente, resultado das analogias
e metáforas usadas por Platão, na busca pela compreensão do bem.

5. Ver Rep.VI, 507 B; X, 596 B ss.

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTE LIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

O fato de aparecer como metáfora certamente não tira a força da noção de


imagem, que, nos últimos diálogos, vai acabar suplantando a noção de participa-
ção. Mas ainda não há na República nada que indique que Platão tenha descartado
a methexis como explicação da relação entre sensível e inteligível, ou que a
tenha compreendido como incompatível com a mimesis.
Em verdade,a mimesis, entendida como uma relação entre sensível e inteli-
gível perfeitamente distinta da methexis, só aparece no Parmênides, em que ela
é apresentada como uma alternativa à methexis, entendida como presença da
ideia na coisa, para tentar contornar as aporias desse paradigma.
Lembremos que, na cena inicial das conversações narradas nesse diálogo,
Sócrates apresentara as ideias, como realidades em si, para solucionar um dos
paradoxos que Zenão apontara como resultante da aceitação da multiplicidade.
Mas não cabe aqui analisar como as ideias resolvem o paradoxo de Zenão, mas
a maneira como são apresentadas. Colocando essa teoria na boca de um Sócrates
ainda muito jovem, é lícito supor que Platão está apresentando uma versão pri-
meira das ideias transcendentes, e é assim que ele as apresenta:

... não julgas haver uma certa forma em sie por si da semelhança («itò Ka°xitò
eLöóç TL ÖuoLótntoc) e, por outro lado, contrária a tal forma, uma outra, aqui-
lo que realmente é dessemelhante (ô čoTuv dvópoLov)? E que, nestas duas
coisas, que são, tanto eu quanto tu, quanto as outras coisas que chamamos
múltiplas, temos participação (ueraÀaßévew)? E que algumas coisas, tendo
participação na semelhança (tñç ỏụoLÓtntoG ETaÀKußévoVTa), se tornam se-
melhantes, por causa disso (reÚti) e na medida em que nela tenham partici-
pação, e que outras, tendo participação na dessemelhança, se tornam desse-
melhantes, e que outras, tendo participação em ambas se tornam semelhantes
e dessemelhantes? (129 A)

A sequência do texto se apresenta como uma série de pedidos de esclareci-


mento feitos amenamente por um Parmênides extremamente interessado no que
diz Sócrates, que, em defesa de sua tese, tenta contornar as serissimas di cul-
dades levantadas por seu interlocutor.
Muitas dessas di culdades referem-se justamente à compreensão de como
se dá a relação entre ideia e sensível, uma relação que havia sido descrita como de
participação e que, no diálogo entre Parmênides e Sócrates, se revela como
equivalente, grosso modo, à presença da ideia na coisa, compreendida à maneira
da presença sica de uma coisa em outra.

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ESTUDOS PLATÔNICOS

Há outra característica importante que se poderia apontar na versão da teo-


ria das ideias defendida por Sócrates no Parmênides: a noção de que a ideia é
eminentemente isso que a coisa sensível é em menor grau. A ideia é assim outra
ocorrência, embora hierarquicamente superior, daquilo que as coisas sensíveis
são, por participação nela. Essa característica, conhecida no comentarismo atual
como autopredicação", é essencialmente ligada a uma concepção sobre cau-
salidade, que, segundo Charles Kahn, seria típica do pensamento grego: a de
que um efeito deve necessariamente ser semelhante a sua causa, uma vez que a
causa não poderia transmitir o que não tem. Assim, as coisas são grandes por
participação na ideia do grande, e a ideia do grande só pode fazer grandes as
coisas se ela própria for eminentemente grande.
São essas duas características a maneira de entender a relação entreideia e
coisa como uma espécie de presença sica, mais a noção de que a ideia tem a quali-
dadequetransmite - que vãoensejarmuitasdascríticasdeParmênides.
Poder-se-ia objetar que os argumentos de Parmênides são, em verdade,
so sticos, pois Sócrates, ao falar de participação, ou de presença, não pensa
absolutamente em uma presença sica. Seria um uso metafórico do vocabulário
da participação e da presença, e aliás um uso incorporado na língua corrente:
dizer que uma coisa participa da beleza, ou que a beleza está na coisa, seria
equivalente a dizer que essa coisa é bela.
O problema é que, assim reduzida a uma forma de expressão corrente, a
noção dę participação não teria nenhuma conotação ontológica. Mas, paraParmė-
nides, e para Sócrates, o problema ontológico existe, e, seja em que vocabulário
for, a relação entre ideia e coisa requer uma explicação. Se se diz que a coisa
participa da ideia, é preciso entender o que é essa participação. Seé apenasuma
maneira de dizer, que se explicite o que signi ca de fato participação, quando
aplicada à relação entre ideias e coisas. Nesse sentido, não parecem absolutamen-
te so sticos os argumentos levantados por Parmênides. Serviriam, no mínimo,
para revelar a inadequação do vocabulário empregado por Sócrates e para mostrar
que ele nada explica sobre como de fato a ideia é causa da coisa sensível. E isso,
pelo menos, acontece.
Entender a relação entre a ideia e seus homônimos sensíveis como participa-
ção desses naquela, e que isso é equivalente à presença daquela nesses, mostra-se
impossível. Concebida como a unidade inteligível de uma multiplicidade sensível,

6. Ch. H.(KAHN, Plato and the Socratic Dialogue, Cambridge, Cambridge University
Press, 1996, 333.

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVELE INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

a ideia, presente na coisa, perderia, inexoravelmente, sua unidade: ou bem se divi-


diria entre as coisas que dela participam, e cada coisa participaria apenas de uma
parte da ideia, ou bem teria, o que não parece possível, de estar inteira, simulta-
neamente, em cada uma das coisas sensíveis em que está presente (131 AC).
outro lado, entendê-la como tendo ela própria a qualidade que elatrans
mite às coisas que dela participam provoca o célebre paradoxo conhecido por
"terceiro homem": há que postular uma segunda ideia para uni car a primeira
ideia com a multiplicidade sensível que ela uni ca e assim sucessivamente, ao
in nito. E, assim, de novo, é rompida sua unidade (132 AB2).
E diante dessas aporias que Sócrates tenta novas maneiras de compreender
a relação entre ideias e coisas. Uma vez rejeitada a compreensão de serem as
ideias pensamentos, Sócrates propõe que a relação seja compreendida como a
existente entre modelo e imagem:

a mim está sendo evidente que o que se passa é, antes, o seguinte: que estas
formas estão na natureza como paradigmas (%OTEP TKpaðeLyu«ta), e que as
outras coisas se parecem com elas (tà 8e čada toútouç ČOLKÉVAL)e são seme-
Ihanças delas (Kaù elvaL juouóuata). E que essa participação (h uéêmğLç aÚtn)
nas formas, para estas outras coisas, não vem a ser senão o serem estas feitas
como imagens daquelas (oůK čan tuG îi eİK«ativeL aitotc). (132 D)

A passagem apresenta uma curiosa mistura do vocabulário utilizado para des-


crever a relação sensível/inteligível, fazendo uso dos termos methexis, semelhança,
modelo (paradeigma), e propondo que a participação da coisa sensível na ideia seja
compreendida como "ser feita como imagem da ideia" (eikasthenai)'. Seria engano,
entretanto, concluir que essa mistura reforça a tese daqueles que creem que, para
Platão, os dois paradigmas, methexis e mimesis, são intercambiáveis.
De fato, a relação modelo/imagem é introduzida como uma alternativa para
resolver as aporias da concepção anterior, embora Sócrates não pareça disposto a
abrir mão do termo methexis para designar a relação entre ideia e sensíveis. Assim,
tudo se passa com0 se methexis fosse um termo já consagrado por Sócrates para
falar dessa relação, um termo que ele quer conservar, mesmo alterando fundamen-

7.A tradução de eikaoħvaL segue a de Robin, que remete, em nota ad loc., a Timeu 28 A ss.,
30 C ss., et passim. O termo poderia ser traduzido como parecerem", evitando a introdução da
palavra imagem. Mas, aqui, parece que realmente entra em jogo a noção de imagem, no seu
sentido próprio, de cópia do modelo, independentemente de sua ligação com a produção divina
do Timeu, a que alude a nota de Robin. PLATON, Oeuvres complètes. Traduction nouvelle et
notes établies par L. Robin avec la collaboration de M. J. Moreau, Paris, Gallimard, 1950.

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ESTVDOS PLATÔNICOS

talmente seu sentido. Se entender participação como presença provoca aporias,ele


sugere que seja entendida como "ser semelhante", E, ao contrário do que sepassa
nos diálogos anteriores, a semelhança, aqui, não pode ser vista como dada pela
presença da ideia na coisa. E uma alternativa que exclui essa compreensão, em
favor de uma noção de semelhança que conserva uma radical separação entrealgo
e aquilo que a ele se assemelha, isto é, entre o modelo e suas imagens.
Submetido à crítica de Parmênides, também esse paradigma parece provocar o
argumento do terceiro homem. Se a unidade dos homônimos sensíveis é dada pela
semelhança que têm com a ideia da qual são homônimos, a semelhança da ideia
com seus homônimos seria dada pela semelhança que essa ideia e seus homônimos
teriam com uma segunda ideia, e assim por diante. Esse argumento entretanto é
falacioso. Ele assume que a semelhança entre os homônimos sensíveis é do mesmo
tipo da semelhança entre eles e a ideia da qual são homônimos. Ora, isso equivale
a assumir que, também nesse paradigma, a ideia, posta como modelo, tem a mesma
qualidade que seus homônimos sensíveis, postos como suas imagens.
Mas, evidentemente, esse não é o caso. Isso de a ideia ser eminentemente
o que a coisa é em menor grau é uma concepção essencialmente ligada à noção
de presença da ideia na coisa, uma presença que impregna a coisa com a quali-
dade da ideia, e assim é causa de a coisa sero que é.
A relação entre modelo e imagens, entretanto, é fundamentalmente diferen-
te. Em princípio, modelo e imagens são coisas de natureza distinta. A não ser
que se trate de réplicas, o que não é aqui o caso, não há como englobar modelo
e imagens e fazê-los "participar" de uma mesma forma única (evòG toûn cửcoû
LõovG LetÉYELV, 132 E). O fundamento da homonímia entre modelo e imagens
decididamente não.é alguma qualidadeessencial que eles tenham emcomum.
Essa diferença radical entre modelo e imagem, que no Parmênides Sócrates
parece vislumbrar, mas que não consegue sustentar contra um argumento fala-
cioso de Parmênides, vai ser tematizada e explorada no So sta.
A questão, entretanto, não é nesse diálogo tratada explicitamente naperspec-
tiva da relação entre ideias transcendentes e coisas sensíveis. O So sta, aliás,
como os outros diálogos platônicos da última fase, com exceção do Timeu, admite
uma leitura segundo a qual, em seu último pensamento, Platão teria renunciado
à teoria das ideias, isto é, à cisão sensível/inteligível, em virtude das aporias que
ele próprio apresentara no Parmênides.

8. Essa interpretação foi proposta e sustentada sobretudo por Owen, que, para contornar
o obstáculo representado pelo Timeu, que a rma inquestionavelmente a transcendência das

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

Mas transcendentes ou não, os universais, designados sobretudo como gene


e eide, são objeto de especial atenção naquela que é considerada normalmente
a principal parte do diálogo (236 E-264 C), que consiste na demonstração da
possibilidade do discurso falso, negada pelo so sta. Essa demonstração, literal-
mente encravada no meio da discussão que se dá ostensivamente como o tema
do diálogo a busca da de nição do so sta -, apareceincidentalmente, uma
espécie de desvio necessário para o esclarecimento de uma das de nições en-
contradas, a que de ne o so sta como um contraditor.
Pois, analisando os temas sobre os quais o so sta contradiz, o Estrangeiro dá-se
conta de que "praticamente nenhum assunto Ihe escapa" (232 E). O que é mais
espantoso é que ele contradiz até mesmo eada especialista, no assunto de sua espe-
cialidade (232 D). Ora, o que Platão recrimina sobretudo no so sta é justamente
essa pretensão ao saber total. A conclusão que se segueé que o saber total de que
se gaba o so sta _só pode ser um saber aparente. E essa produção de aparências de
saber, Platão compara à mimética", isto é, à produção de imagens. Assim como
um pintor parece, para uma criança pelo menos, produzir tudo, porque produz ima-
gens de tudo, o so sta parece saber tudo, para os ingênuos pelo menos, porque
produz imagens faladas'" (eôoda deyóEv) sobre todas as coisas. A so stica então
só pode ser a mimética no discurso, uma técnica da palavra

... por mneio da qual se poderá, aos jovens que uma longa distância separa ainda
da verdade das coisas, despejar pelos ouvidos palavras sedutoras, apresentar de
todas as coisas imagens faladas (eLõoa deyóueva) e dar assim a ilusão de que
aquilo que eles ouvem é verdadeiro e que aquele que fala sabe tudo melhor
que ninguém. (234 C)

A questão da imagem aparece pois para caracterizar a fala so stica, que


parece ser a verdade mas não é, assim como as imagens feitas pelos pintores
parecem mas não são as verdadeiras coisas de que são imagens.
Mas reconhecer que o so sta produz imagens não basta. E preciso enquadrá-
lo em uma das divisões que o Estrangeiro reconhece na mimnética: eikastike (pro-

ideias e que a tradição sempre considerou um dos últimos diálogos, propôs uma data para
sua composição próxima à da República. A posição de Owen foi veementemente criticada
por Cherniss. As duas posições estão expostas em artigos reimpressos em Studies in Plato 's
Metaphysics, R. E. ALLEN (ed.), London, Routledge&Kegan Paul; New York, The Humanities
Press, 1965, G. E. L. OWEN, The Place of the Timaeus in Plato's Dialogues, 313-338, e H. E.
CHERNISS,Relation of the Timaeus to Plato's Later Dialogues, 339-378.

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ESTUDOS PLATÔNICOS

dução de eikones, imagens que guardam as proporções do original), e phantastike


(produção de phantasmata, imagens que distorcemo original para mais bem ilu-
dir e se fazer passar por aquilo que não são).
Para proceder, entretanto, a esse enquadramento, o Estrangeiro tem um
problema preliminar a resolver. Pois o so sta tem, em sua defesa, um argumen-
to formidável: ele nega que haja imagens, e invocará em seu apoio o próprio
Parmênides:

Jamais forçarás os não seres a ser


Dessa via de pesquisa afasta teu pensamento... (237 A8)

Note-se que as palavras citadas de Parmênides não signi cam diretamente a


negação da possibilidade de imagens. Elas se referemà impossibilidade do não ser.
Mas é o próprio Estrangeiro que argumenta, se o não ser realmente não é, imagens
são impossíveis, pois imagens são misturas inextricáveis de ser e de não ser.
Parafraseando o que diz o Estrangeiro, pode-se dizer que isso que se reconhece
como imagem não é, decididamente, aquilo que parece ser, mas é evidentemente
alguma coisa. Para o so sta, porém, essa coisa é o que ela é em si mesma, e não a
imagem de outra coisa. Assim, um cacho de uvas de plástico, por exemplo, não
seria a imagem de um cacho de uvas verdadeiras, mas sim um verdadeiro cacho de
bolinhas de plástico verdadeiras. Apoiando-se pois em Parmênides, o so sta parece
ter razão: é possível manter que nada é, em si mesmo, imagem de outra coisa, e que
cada coisa só é, verdadeiramente, aquilo que ela, em si mesma, é.
Mas, se assim for, a tese de Platão que a rma o mundo sensível como
imagem do inteligível não poderá ser mantida. Pois essa tese depende, justamen-
te, do reconhecimento de que há coisas que são, essencialmente, imagens.
Não é porém, aparentemente, em conexão com a relação entre sensível e
inteligível que o Estrangeiro se lança na empreitada de mostrar, contra Parmênides,
que, de alguma forma, o não ser é, e, assim, salvar a possibilidade de haver ima-
gens. O interesse aparente do Estrangeiro na refutação de Parmênides é poder
manter sua a rmação de que o saber do so sta é aparente, uma técnica de pro-
dução, no discurso, de imagens da realidade e da verdade.
Não se pode negar a importância dessa refutação e da a rmação da possi-
bilidade de haver imagens para a questão da de nição do so sta, nem a
importância desse tema ostensivo do diálogo para a crítica de Platāão à sofística.
Mas convém lembrar que, para a esmagadora maioria dos intérpretes, o tema
principal do So sta não é seu tema aparente, mas a refutação de Parmênides,
com a consequente descoberta do não ser como alteridade, e a elaboração de

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A RELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

uma estrutura do inteligivel que é o cerne da última ontologia de Platão. E se


assim é, o tema ostensivo do diálogo, a de nição do so sta, é que corre o risco
de ser considerado incidental talvez apenas um pretexto para a refutação de
Parmênides e a apresentação de uma ontologia que, admitindo o movimento e
a multiplicidade, permite, contra Parmênides, tornar inteligíveis tanto o mundo
sensível quanto o pensamento e a linguagem como os conhecemos.
Um aspecto marcante sobre o tratamento da questão do não ser no So sta é
a diferença na formulação dessa questão, quando introduzida e quando objeto de
investigação na parte central. De fato, a questão é introduzida a partir da noção
de imagem. Mas, na parte central, o não ser que será objeto de refutação é o não
ser que, aplicado ao discurso, signi ca o discurso falso, isto é, o discurso que diz
"coisas que não são". Eé o discurso falso, e não o discurso como imagem que
será objeto de investigação. Tudo se passa como se a acusação contra o so sta
fosse agora a de produzir não imagens nos discursos, mas simplesmente discursos
falsos, independentemente do fato de parecerem ou não verdadeiros?. A noção de
imagem praticamente desaparece em toda a argumentação dos vários temas interli-
gados da parte central. Tudo que Platão aí desenvolve o não ser como ser outro,
a dedução dos gêneros supremos, a tessitura das formas, a estrutura do discurso, a
elucidaçãode como odiscursopodeserfalso , tudoissopareceter uma inter-
pretação que dispensa inteiramente a noção de imagem, tal como havia sido in-
troduzida algo que parece mas não é aquilo que parece.
Aliás, é assim que grande parte da literatura sobre o So sta o aborda: extraindo
sua parte central como um fruto de sua casca'° e ignorando inteiramente que a
ontologia nela contida foi introduzida a partir da noção de imagem. Dessa forma,
a investigação sobre a natureza do não ser é vista como introduzida a partir da ne-
cessidade de elucidar como o discurso falso pode acontecer, uma elucidação que,
paralelanmente, elucida a própria natureza do discurso. Toda a ontologia exposta
pelo Estrangeiro parece ser então elaborada em função de uma teoria da linguagem
desenvolvida por Platão.
Isso, seja dito de passagem, também é verdade. A ontologia que Platão propõe
para substituir a de Parmênides salva a inteligibilidade da linguagem e do pensa-
mento, que é a linguagem da alma consigo mesma, tal como os conhecemos,
comprometidos com a multiplicidade e o movimento, negados por Parmênides.

9. É digno de nota que o exemplo que o Estrangeiro dará de discurso falso, "Teeteto voa",
proferido diante de Teeteto sentado, não tem absolutamente a aparência de verdadeiro.
10. Ë de Th. Gomperz a comparação da parte central do So sta ao fruto e das de nições
do so sta à casca que o envolve.

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ESTUDOS PLATÔNICOS

De tudo que é dito sobre a natureza do discurso, há alguns aspectos que é


importante aqui mencionar: 1) o discurso (logos) só é discurso se diz algo (ti)
arespeitode algo (peri tinos) o que,para simpli car,podemosentender
como: um predicado (ti) a respeito de um sujeito (peri tinos) e cada um
desses elementos tem de ter uma referência no real, sensível ou inteligivel; 2) o
discurso diz algo sobre algo fazendo uma tessitura entre dois tipos de palavra,
que signi cam, convencionalmente, esses dois elementos: ononma (que tem por
referência o sujeito) e rhema (que tem por referência o predicado a rmado ou
negado do sujeito); 3) ele é verdadeiro ou é fålso, conforme a tessitura que faz
com as palavras corresponda ou não à maneira como as coisas de que fala estão
tecidas na realidade.
Ora, reconhecer que é essa a estrutura do discurso é reconhecer sua natureza
de imagem, embora isso não seja explicitado pelo Estrangeiro. Torna-se claro,
entretanto, a partir da própria investigação que ele realiza, que sons articulados
emitidos pela boca, ou pensados, só são palavras e discurso porque não são, essen-
Cialmente, isso que são em si mesmos, mas sim porque revelam, tornam presente
isso que eles decididamente não são: aquilo de que eles falam. Ễ verdade que
as palavras que compõemn o discurso, sem serem o som pelo qual são pronuncia-
das, tampouco são imagens, mas apenas símbolos convencionais disso a que elas
se referem. Ora, símbolos convencionais não são problema para o so sta, ele
não tem por que negá-los. Mas o discurso tem uma ligação natural com aquilo
de que fala: ele só é discurso se tem uma estrutura (onoma mais rhema) que, de
alguma forma, imita a tessitura do real, correta ou incorretamente, conforme
seja verdadeiro ou falso. Poder-se-ia argumentar que o discurso falso não imita
absolutamente a tessitura do real, ao contrário. Mas imita sim. Explorando a
metáfora usada pelo Estrangeiro, que fala da estrutura do real como um tecido
(auumÀOKh tôv eLôôv), podemos dizer que tudo está, de certa forma, tecido com
tudo, seja como o lado direito (o que a coisa é), seja como o avesso (o que a coisa
não é) do tecido. Ora, o discurso falso troca o direito pelo avesso, diz o que é
como não sendo e o que não é como sendo. Ainda assim, é uma imitação -uma
imitação equivocada de como as coisas estão tecidas.
Ainda que implícita, essa revelação do discurso como imagem não deixa de
ser surpreendente, pois o Estrangeiro tinha dado a entender que isso de fazer
discursos que são imagens é coisa de so sta. Eis agora que todo discurso se apre-
senta como imagem, seja ele falso ou verdadeiro. Diante desse fato, e justamente
se aceitarmos que a refutação de Parmênides e a exposição da ontologia feita
pelo Estrangeiro constituem o principal objetivo do So sta, parece não ser casual

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ARELAÇÃO ENTRE SENSÍVEL E INTELIGÍVEL: METHEXIS OV MIMESIS?

que a questão do não ser tenha sido introduzida a partir da noção da imagem,
quando poderia perfeitamente ter sido introduzida tal como foi discutida, isto é,
como a questão do discurso que diz o que não é.
Reconhecer isso reforça a tese de que a ontologia do So sta mantém as ideias
como realidades transcendentes e a rma sua relação com o sensível como a relação
de modelo e imagem. Para essa ontologia, é indispensável não só que imagens
sejam possiveis, mas que, de fato, existam. Eo Estrangeiro não se limita a provar,
por argumentação, que imagens são possíveis, uma vez que o não ser, de alguma
forma, é. Ele mostra que inmagens existem: o discurso é imagem. E, o que é mais
importante: não é uma imagem qualquer; a relação que ele tem com aquilo de que
ele fala é um exemplo privilegiado da relação modelo/imagem tal como Platão a
concebe para a relação inteligível/sensível: não só modelo e imagem são coisas
de natureza radicalmente distinta, como a relação entre eles não remete a nenhum
tipo de semelhança que os sentidos poderiam detectar, como no caso da seme-
Ihança entre uma coisa e sua imagem produzida pelo pintor.
Não é mais o caso de dizer que a coisa homônima da ideia é, de maneira
de ciente, isso que a ideia é plenamente, tampouco que a ideia, presente na coisa,
a faz ser isso que ela é. Porque a coisa, vista como imagem, não é absolutamente
o que é a ideia, nem mesmo de maneira de ciente. Não há como ligar modelo e
imagemn em um eidos comum.
Mas o que faz então uma coisa ser imagem da outra, isto é, ter, por natureza
e não por convenção, a propriedade de revelar, de trazer à presença isso que ela
radicalmente não é? No caso do discurso, vimos que é a tessitura de palavras que,
ao imitar a tessitura do real, produz a sua imagem. Entretanto, sobre como as
coisas sensíveis são imagens do inteligível, o So sta nada nos diz. Após a longa
digressão que demnonstrou como o discurso pode ser falso, o Estrangeiro retorna,
por assim dizer, ao plano do sensível, onde se insere a investigação sobre quem é
o so sta. E nesse mundo, tal como o tomamos intuitivamente, as coisas das quais
se diz que são por natureza (tà uev þúseL deYóuEVa, 265 E3) são tidas por aquilo
mesmo que elas parecem, e é assim que o Estrangeiro as toma todas - animais,
plantas, os componentes dos seres vivos como fogo, água e coisas desse tipo,
coisas inanimadas que se formam na terra, fundíveis ou não(265SC, 266 B). Delas,
ele não diz que são imagens, mas que delas há imagens: sonhos, sombras, re exOs
em super cies lisas e brilhantes (266 B6-C7). Mas a discussão sobre o que elas
realmente são é um assunto do qual ele deliberadamente se esquiva, limitando-se
a expressar sua convicção de que são obras da razão e da ciência divina, contra a
opinião de muitos, para quem é por uma causalidade espontânea que a natureza

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ESTUDOS PLATÔNICOS

as engendra. De seu interlocutor, um Teeteto hesitante entre essas duas opiniões,


ele consegue, no momento, a adesão à sua própria crença (265 D), o que lhe per-
mite continuar a caçada ao so sta. Ele sabe perfeitanmente, entretanto, que poderá
ser necessário dar conta de sua convicção:

Se acreditássemos seres tu um daqueless que, no futuro, terão outras opiniões,


trataríamos de agora, recorrendo a uma persuasão que se impõe, fazer-te con-
cordar com essa tese. (265 D5-8)

Assim, Platão remete para outra ocasião para o Filebo e, em especial,


para o Timeu - a demonstração de como e por que o mundo sensívelé obrada
inteligência divina. Ele parte do reconhecimento da ordenação do mundo, e a
compreende como resultado da imposição de justas medidas e de uma estrutura
matemática no sensível, que impede que ele se desfaça, apesar de mergulhado no
uxo incessante do devir. Para Platão, isso não pode ser produto do acaso. Ẽ
produto de uma inteligência, que tem por modelo algo que realmente é -sempre,
sempre o mesmo, imutável, imune aos assaltos do devir. E à imagem dessa reali-
dade que ele forja o mundo, e são as relações matemáticas utilizadas pelo demiur-
go divino na sua produção que fazem do mundo essa imagem que ele é - tão
perfeita, que aos olhos dos que não sabem ver é a própria, a única realidade.
Mas aqueles que têm abertos os olhos da alma, capazes de ver além dasaparências,
reconhecem o mundo sensível pelo que ele realmente e verdadeiramente é: não
a realidade que parece ser, mas a imagem, uma verdadeira imagem, a imnagem
perfeita que permite alcançar, tanto quanto possível, a verdadeira realidade que
ele, realmente, e verdadeiramente, não é.

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