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Texto I Exposição oMuseu (2022)

Tocar, Suspender, Cingir e Pender...

O Jeanne, pour aller jusqu’à toi


quel drôle de chemin il m’a fallu prendre
Pickpocket (1959) Robert Bresson

O toque vai para além dos limites da nossa pele. Sentir o toque de outro ser, ativa o nervo
cerebral vago, uma via de comunicação ramificada, que transmite sinais do corpo para o
cérebro, controlando as nossas emoções ou pensamentos, estados de relaxamento ou de
alerta, regulação da frequência cardíaca, ou respiratória. Tocar significa o ato de alcançar
algo ou alguém, assim como a possibilidade de exercermos influência sobre as coisas ou
outros seres. Numa floresta, as plantas, árvores e fungos, também estão ligados no subsolo
por uma rede complexa de raízes, que lhes permite comunicar e trocar vários nutrientes,
numa constante interajuda. Tocar é mais do que uma sensação, é um modo como comu-
nicamos, vivemos em coletivo, experienciamos o mundo e afetamos a natureza ao nosso
redor.

A investigadora e antropóloga Mariana Mora no texto Tocar/ reflexiones sobre los


sentidos y la pandemia demonstra como o surto de covid-19 veio ressaltar a perda de
proximidade, a falta de afetos ou a ausência de contacto físico. A pandemia veio reforçar
o impulso contemporâneo de sentirmos, comunicarmos e interagirmos, pelo meio de um
ecrã. Passadas horas a trabalhar no computador, o que nos resta é conviver através do
telemóvel e disfrutar de algum entretenimento vindo de um dispositivo eletrónico. O olhar
mediado por uma superfície na qual se projetam imagens fixas ou em movimento, tornou-se
um dos sentidos dominantes. O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han em A Salvação do
Belo (2016) define a contemporaneidade como uma superfície lisa, sem cicatrizes, fendas
ou arranhões. Um mundo sem textura, onde o modo como interagimos é através de um
ecrã plano. Han ainda reitera que a estetização crescente gerada unicamente por objetos
voláteis, passageiros e precários, torna impossível a experiência do belo, pois nada tem
consistência, duração ou vínculo. O belo, como algo perene, que foi sendo transformado
em objeto de agrado, arbitrário e gratificante está em crise e a sua salvação é a do que
vincula.
Gilles Deleuze e Felix Guattari em Mil Planaltos (1980) mencionam o historiador
de arte Alois Riegl, enquanto defensor de que a tatilidade na arte, como nas múltiplas ca-
madas dos relevos egípcios ou românicos, foi desaparecendo, dando lugar a um espaço
ótico, dominante desde o Renascimento pela criação da perspetiva. Riegl cunha as noções
dicotómicas entre espaço ótico e espaço háptico, ou visão distanciada, por diferença a vi-
são aproximada. Deleuze e Guattari explanam que o liso aparece como visão aproximada
e elemento de um espaço háptico (visual, auditivo ou tátil) e pelo contrário o estriado como
uma visão longínqua e para um espaço mais ótico. No filme Pickpocket (1959) Robert Bres-
son utiliza prementemente planos pormenor, sobretudo das mãos do protagonista no ato de
roubar, reduzindo o ponto de fuga, acentuando o espaço háptico, transmitindo uma sensa-
ção de clausura, caminho labiríntico ou ciclo vicioso, onde a única saída possível é a prisão.
Por outro lado, Lygia Clarck e Hélio Oiticica, artistas seminais do movimento neoconcreto
brasileiro, ou o artista norte americano Robert Morris, nas suas práticas artísticas, abriram
o figurativo da tela para o espaço escultórico e por sua vez a participação, manipulação e o
corpo do espectador na feitura das obras, evidenciando uma arte mais tátil e participativa,
que se instaurou na década de 1960. Veja-se Caminhando (1964) de Clarck, Tropicália
(1967) de Oiticica, ou a exposição Robert Morris (1971) na Tate Gallery, revisitada em 2009
na Tate Modern, como Bodyspacemotionthings.
Tocar, Suspender, Cingir e pender..., tal como um pendulo de Newton, quando
puxamos a esfera de uma das pontas e a soltamos, fazendo tocar na seguinte, esta fica
suspensa, ao contrário da esfera da ponta oposta, que adquire maior parte da velocidade
balançando num arco tão alto como o da primeira, cingindo-se a este movimento pendular
infinitamente. O funcionamento deste dispositivo, relembra-nos que sentir o toque do outro
é vital, pois é nos dado esse pulsar essencial às nossas funções sensitivas e motoras, co-
nectadas à natureza e ao meio envolvente. Na atualidade, em que cada vez mais as inte-
rações funcionam via contactless (sem contacto), em ecrãs sem fissuras, com fragmentos
de imagens múltiplos, instáveis e temporários, os espaços hápticos e óticos necessitam de
coabitar equilibradamente.

-Ana Martins
PM#105

No texto Ohio, 1949, Barnett Newman relata, a propósito de uma viagem aos montes sepul-
crais Índios de Ohio, uma experiência de “desorientação por uma multiplicidade de sensa-
ções”. Para Newman a paisagem do cume do monte de Miamisburg faltava em comparação
com o espaço no interior deste túmulo. As paredes de lama, desprovidas de qualquer mo-
tivo que pudesse ser apropriado ou fotografado para ser exposto num museu, invocavam
uma sensação singular de espaço. Um espaço, ou obra de arte, que para além de incapaz
de ser vista só conseguiria ser experienciada no local. A experiência de um “aqui… e mais
além” e um “visível… e mais além” (Didi-Huberman, G. p.313) de um espaço que Newman
declarou como uma experiência de “sensação física de tempo”.

Em PM#105 a imagem de uma antena é recolhida no Pico da Barrosa, uma ele-


vação situada sensivelmente no centro geográfico de São Miguel nos Açores, local coin-
cidente com uma das zonas de maior trânsito turístico do “único arquipélago no mundo
certificado como Destino Turístico Sustentável”. Numa ilha onde, em 2019, se realizou o
desembarque de 571,2 mil passageiros, dos quais 73% corresponderam a voos de tipo ter-
ritoriais e internacionais. (Serviço Regional de Estatística (SREA): Estatísticas de Turismo).
A proximidade da Antena da RDP do atual miradouro da Lagoa do Fogo no Pico da Barrosa,
presume que grande percentagem de turistas é, na sua visita, confrontada com estas estru-
turas. A consciência de que a passagem pelo miradouro da lagoa do Fogo pode implicar o
encontro com as instalações da antena de comunicações do Pico da Barrosa e de que as
atenções sobre estes instrumentos impliquem um virar-de-costas à paisagem sobre uma
lagoa, reconhecida como reserva natural, admitem um paradoxo.
A apresentação, através da sigla PM, antecipa um conjunto de pinturas que assu-
mem processos fotomecânicos. O cariz imaterial convocado pela transferência, transposta
para tela, da imagem subentende a impossibilidade de expressão de uma imagem nova
e acentua o valor do trabalho na tradição na pintura. A transferência, realizada a partir do
pigmento de uma impressão jato de tinta, coloca o objeto no interstício entre a reprodução
e a unicidade – no sentido em que o seu processo mecânico facilita um conjunto de aciden-
tes na superfície. A retórica analítica da transmissão mecânica de uma imagem sobre um
suporte, reconhecido do campo da pintura, aproxima o objeto final da condição de matriz.
A pegada na paisagem é reproduzida no transporte do pigmento para a tela em busca de
uma prova uniforme. E esta prova condenada pela profundidade do espaço representado e
pelo seu acesso.
Se a transferência assumia anteriormente a função de enquadramento, ela reco-
nhece-se, agora, em si mesma e na sua natureza diagramática. Permite-se registar o com-
portamento e responsabilidade da decisão na sua construção. A imagem é reformulada e
rasurada com a mesma cor que enforma o seu suporte. A moldura em reserva revela a cor
de fundo, tradicionalmente empregue na pintura. A condição pictórica do objeto é enfatizada
num esforço por um momento contínuo.
Em Onement, conjunto de trabalhos que Newman começa a realizar pela altura da
visita a Ohio, noções de espaço e tempo começam a ser aprimoradas em função do que
poderíamos considerar uma condição virtual para a pintura. A experiência, de cariz subje-
tivo, de Newman – na verdade um primórdio para a definição de aura de Walter Benjamin
(p.314) – condensa o tempo na experiência de um espaço, ou de um objeto.

-João Miguel Ramos

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