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II Jornada de Pensamento Político Brasileiro

GT III – Pensamento Internacional Brasileiro

HAITIANISMO: MEDO E AÇÃO DAS ELITES NA PRODUÇÃO DO BRASIL

Área Temática:

Teoria das Relações Internacionais

Autor: Miguel Borba de Sá

Instituição: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Belo Horizonte, 25 a 28 de Julho de 2017


Resumo

O processo de construção do Estado no Brasil, ao longo do século XIX, revela que as elites
políticas do jovem país tinham por prática enunciar seus interesses particulares como se
fossem nacionais. Chama atenção a mobilização do medo do “Haitianismo”, que servia
como dispositivo recorrente de comunicação intra-elites e como fator de reforço de pactos,
alianças e identidade racial (branca) entre seus diferentes setores, quando situações de
crise e instabilidade poderiam ameaçar o sistema de poder em construção. A frequente
alusão ao “grande perigo” de ver repetidos no Brasil as cenas violentas da Revolução
Haitiana trazem à tona as antinomias de uma elite política cuja aspiração modernizante de
construir um Estado liberal se chocava com o racismo que lhe era constitutivo e com a
necessidade prática de manter uma economia de exportação baseada no trabalho de
negros escravizados. A partir da análise de 40 jornais e episódios ocorridos durante debates
parlamentares travados entre as décadas de 1830 e 1840, argumenta-se que o nó górdio
formado por práticas repressivas, retórica racial, sensação de medo, políticas públicas e
exploração do trabalho marcou o Brasil em um instante fundacional, deixando legados que
podem ser percebidos na história política subsequente do país. Toma-se o Haitianismo,
assim, como uma manifestação da “colonialidade do poder” (QUJANO, 2005) à moda
brasileira. A hipótese sugerida é que o Haiti e sua “revolução negra” serviram como
referentes negativos em oposição aos quais as nascentes elites políticas brasileiras forjaram
sua representação privilegiada de identidade nacional: se o Brasil e os brasileiros não
nasceram prontos e, portanto, precisaram ser produzidos historicamente, essa produção
acabou servindo-se fartamente do temor haitianista como dispositivo delimitador dos
conflitos entre os diferente projetos políticos em disputa na elite imperial. As consequências
sociais, domésticas e exteriores, desta complexa operação histórica, sugere-se, fazem-se
sentir até os dias atuais.

Palavras-chave: Brasil; elites; Estado; Haitianismo; racismo.

  1  
1. Introdução

O Brasil não nasceu pronto, nem sua elite. É partindo desta premissa básica que o
presente trabalho busca indagar a respeito de determinados acontecimentos históricos, de
caráter político, que tiveram lugar durante o primeiro século de independência formal do país.
Dentre os processos que contribuíram para a formação nacional brasileira ao longo do
século XIX, destaca-se aqui um elemento recorrentemente encontrado nas narrativas e
debates que concorreram para a produção discursiva de sua jovem elite política: o
Haitianismo. Como veremos a seguir, ele foi um dispositivo de poder político-retórico
intensamente mobilizado pelos diferentes setores, partidos e variações regionais das elites
oitocentistas brasileiras. Trata-se de um conjunto de palavras novas no léxico político e de
um alerta nelas embutido, que pareciam conferir aos que deles se utilizavam de um maior
poder de argumentação e convencimento, uma vez que apelavam para um fenômeno a ser
evitado a qualquer custo pelas elites brasileiras, relegando suas eventuais desavenças
internas para um segundo plano de preocupações e disputas.
Como é sabido, o Haitianismo denota o medo dos proprietários e da população branca
em geral no Brasil com relação a uma possível repetição em solo nacional de uma revolução
bem-sucedida da população negra e escravizada (CARVALHO, 2014; MOTT, 1988;
SCHWARCZ & STERLING, 2015), como ocorrera entre 1791 e 1804, na ex-colônia francesa
de São Domingos, rebatizada como “Haiti” no momento de sua emancipação do jugo
colonial (BLACKBURN, 2006; DUBOIS, 2004; GEGGUS, 1997; JAMES, 1989). Tanto a
historiografia tradicional quanto os estudos históricos mais recentes fazem repetidas
menções ao Haitianismo das elites brasileiras (AZEVEDO, 2004; EISENBERG, 2004;
FREITAS, 1978; FREYRE, 2004; GOMES & SOARES, 2002; PRADO JR, 1979). Também é
possível encontrar com relativa facilidade exemplos diretos de mobilização política deste
medo em jornais de época e pronunciamentos disponíveis nos arquivos históricos da Era
Imperial brasileira (1822-1889). No entanto, nenhum estudo ou fonte primária informa sobre
o fim desta prática retórica, deixando-nos com um silêncio produtivo, que propicia
indagações sobre possíveis desdobramentos futuros.
Nas páginas que se seguem, destacaremos exemplos primários relevantes
encontrados em nossa pesquisa acerca deste dispositivo discursivo, a fim de compreender
como e para que agendas políticas ele foi efetivamente mobilizado entre 1831 e 1848,
período em que o Haitianismo era um dos tropos discursivos mais freqüentes no debate
político nacional. Em paralelo, sugere-se uma hipótese acerca dos efeitos de poder que tal
prática parece ter inscrito nas instituições de segurança do Estado brasileiro e no modo de
agir e tomar decisões de suas elites políticas, interna e externamente. Ao fim, indica-se
caminhos para a continuidade de pesquisas sobre o tema e a relevância que podem ter para

  2  
o estudo crítico das relações internacionais contemporâneas, em especial para a inserção
internacional do Brasil no século XXI.

2. Haitianismo e elites políticas imperiais brasileiras: enunciados e ações.

Neste artigo, abordaremos sete usos encontrados nos documentos históricos


pesquisados1, que revelam a multiplicidade de agendas políticas e a variedade de sentidos
que a mobilização do Haitianismo podia ter. Em outras palavras, rastrearemos uma
genealogia do Haitianismo a partir dos “efeitos de poder” (FOUCAULT, 1981, p. 171) que ele
produziu e das marcas que deixou. O primeiro deles diz respeito às restrições de direitos
individuais e garantias públicas constitucionais (para que as tinha, numa sociedade
escravista e patriarcal) que tal política de medo propiciava. Em 7 de Abril de 1835, dia de
eleição para a Regência do Império, o jornal O Pão D’Assucar, da Corte, estampava em sua
capa a seguinte matéria:

Foram suspensas as garantias constitucionais pela Assembleia Provincial


do Rio de Janeiro em virtude da existência do Haitianismo, que, segundo a
mensagem, da mesma Assembleia, consta a todos (menos a nós!) que as
doutrinas haitianas são aqui apregoadas com impunidade (...) É sem
dúvida repreensível a indolência da Polícia da Corte, quando constando a
todos, e com tantas particularidades, a existência das Sociedades
Haitianas, ela tudo ignore. Nada cremos mais pernicioso que a propalação
dessas ideias de haitianismo (...) Protestamos a devida submissão à
Assembleia Provincial, porém não podemos esquivar-nos a esta censura
que a Lei permite. A suspensão de garantias só pode ter lugar em ocasião
de risco iminente: ora, não existindo um só fato que o comprove, cremos
não apropriada a suspensão de garantias públicas; por quanto, não
podendo militar esta medida em questão com os escravos, posto que eles
não usufruem dos gozos de Cidadãos Brasileiros, segue-se que semelhante
medida só poder ser tomada para com os mesmos Cidadãos Brasileiros, a
respeito dos quais nenhum fato de haitianismo depõe contra eles, porque,
a simples expressão de – a todos consta – não autoriza a existência, que
apesar da manifestação pública da Mensagem, não se reveste daquelas
circunstâncias positivas que dão por certo a existência da coisa. Se pois
existem fatos, só podem ser aqueles dos africanos da Província da Bahia: e
2
para africanos não releva a suspensão de garantias.

Ainda que o editor deste periódico seja ligado ao partido Restaurador e mostre
ceticismo (e ironia) quanto às razões da Assembleia Provincial fluminense para decretar a
suspensão das garantias constitucionais, sua reclamação mostra o quão sérias eram tais
medidas. Até mesmo os membros das elites políticas e econômicas ligadas aos setores
mais conservadores do Império temiam a instrumentalização do medo haitianista como
                                                                                                               
1
Todos os documentos originais pesquisados tiveram sua grafia atualizada pelo autor para a norma vigente na
língua portuguesa hoje. Os originais podem ser consultados na página eletrônica da Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional e serão citados aqui em notas de rodapé com as iniciais abreviadas. Ver:
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/ (ultimo acesso, Julho 2017)
2
PA, nº27, 07/04/1835, p. 1 (negritos adicionados).

  3  
justificativa para abusos do poder estatal. Como vê-se, o mesmo jornal menciona um
“Parecer da Comissão d’Assembleia Provincial acerca do Haitianismo”, que fora
encaminhado ao Poder Executivo imperial na forma de uma ‘Mensagem ao Trono’ naquela
mesma data. Para tanto, o projeto tivera que ser aprovado em três discussões no plenário
da casa, até chegar à sua votação final, que lhe conferiu uma redação definitiva. Dos oito
artigos, destacam-se dois a seguir, que exemplificam o cerceamento seletivo de direitos
decorrente dos efeitos de poder do Haitianismo:

Art.1. Ficam suspensas em toda a Província do Rio de Janeiro até a


primeira reunião ordinária ou extraordinária da Assembleia Legislativa
Provincial, as formalidades do artigo 179, §§ 7, 8 e 9 da Constituição do
Império, a fim de proceder-se sem as garantias dos seguintes parágrafos,
contra todos os indivíduos sobre quem recaírem indícios veementes de que
tentam perpetrar o crime de insurreição, e por este crime somente. Os que
escreverem, e os que publicarem proclamações e quaisquer outros papéis,
assim impressos como manuscritos, ou proferirem discursos diretamente
tendentes a promover insurreição, serão punidos como cúmplices desde
crime.

Art. 6. Todas as associações secretas, onde for encontrado algum


estrangeiro de cor, entrando nessa classe os Africanos libertos, e os que
forem escravos, ficam declaradas criminosas: e todos os indivíduos que
nelas forem apreendidos, serão reputados como achados em ato de
tentativa de insurreição, ainda que a reunião se verifique de dia, e não
exista alguma outra prova, que o simples fato da reunião em forma de
3
associação, provada pelo auto legal do corpo de delito de apreensão .

Um segundo uso, bastante frequente, do Haitianismo era como veículo de insulto


político e difamação pessoal. Daí vem a variação adjetiva “Haitiano”/”Haitiana”, que nesta
época era, via de regra, enunciada para designar pejorativamente a pessoas, jornais,
agremiações ou práticas políticas de adversários. O termo assim empregado significava que
o acusado seria contrário ou traidor do “causa do Brasil”. Deve-se ter em mente que apesar
(ou por causa) de sua evidente conotação racial - medo de uma “revolução negra” - o
Haitianismo no Brasil, como fenômeno estruturante do discurso político, era uma conversa
praticamente restrita aos homens brancos, abastados e influentes, parlamentares e/ou
editores e jornalistas dos periódicos e folhetins que proliferaram durante a liberdade de
imprensa inaudita experimentada durante o Período Regencial (FLORY, 1978).
No dia 23 de Setembro de 1831, o jornal O Jurujuba dos Farroupilhas, de inspiração
Liberal ‘exaltada’, como se dizia à época, trazia a seguinte manchete de capa: “MAIS
HAITIANISMO”. Em seguida, o editor discorre longamente sobre supostas injúrias proferidas
contra si e seus aliados políticos, revelando-se ofendido com tais acusações (mesmo sendo
um liberal-radical). Junto com seu aliado Nova Luz Brasileira, devolvem-nas na forma de
denúncias sobre o “verdadeiro Haitianismo”, praticado por outros atores políticos, como os
                                                                                                               
3
A Mensagem ao Trono foi publicada na íntegra pela Aurora Fluminense, vol. 8, nº 1032, 27/03/1835, p.2.

  4  
Liberais Moderados à frente do governo regencial e os Restauradores, “agentes do gabinete
inglês”, que estariam formando em conluio um “gabinete secreto” para disseminar rumores
de revoltas no Brasil, a fim de criar um clima de tensão que propiciasse o retorno de d.
Pedro I e a restauração de seu regime. Ou pelo menos desta forma vociferavam os editores,
em réplicas à inculpação de Haitianismo.

É do haitianismo em 31 que ainda vai falar o Jurujuba, posto que os


Servos do Governo só querem que se diga serem os Srs. Barata, Ezequiel,
e a Nova Luz, os únicos autores do Velho novo haitianismo de 31. Já
serviu-nos o bom folheto do Sr. Silva para irmos descobrindo os pérfidos
haitianos de hoje (...) Tragam à memória nossos Leitores que em tempo da
fusão das Câmaras um preto escravo seleiro na Rua da Cadeia, e
relacionado com Chalaça, fora achado com insígnias d’haitiano Bourbon;
que antes o Conde dos Arcos e Camamú eram haitianos traquejados: que
são hoje os queridos do Sr. Feijó, e do Governo os mesmos que
sustentaram o seu Bourbon, os amigos do ministério, dos Theobaldos, e
Joões Paulos: que persegue aos Jurujubas, que não se vendem a tirano
algum, do que antes do 6 d’Abril e nesse dia fizeram tratado com Pedro
para manter o trono: que voltou à França Luis X depois de 20 anos de
desterro; que apareceu em Valença Baependi, S. João Marcos &c. o
haitianismo de hoje, como profetizou o Sr. Silva; e a Explicação do Sonho
de Itajurú não levada ao Júri: que contudo finge crer o Governo que o
haitianismo é de Queiroz, o qual nem é louco nem tem meios para exercer
a má influência que se lhe atribui por ódio particular, e por política bisonha
&c. &c.; que afinal de constas conhecerão todos e os poderão ainda apontar
o dedo para os malvados traidores e corcundas, e haitianos, que querem
arruinar nosso Brasil só para evitarem as Reformas da Constituição, e do
4
trono aristocrático.

Do extremo oposto do espectro político, o aristocrático Pão D’Assucar mantinha, no


entanto, a mesma prática textual, usando o adjetivo “Haitiano” como sinônimo de anti-
patriota em relação Brasil. Só que para esta agenda política, os “Haitianos” (traidores, anti-
brasileiros) não seriam os portugueses nem outros nobres ou comerciantes ricos, como
acusara O Jurujuba dos Farroupilhas. Neste emprego como insulto político, o Haitianismo,
pela ótica dos conservadores, é também um atributo dos outros, sempre dos adversários
políticos daqueles que estão fazendo uso da palavra. Naquele momento histórico e deste
ângulo político particular, os inimigos do Brasil, i.e. “Haitianos”, da vez seriam os Liberais
Moderados no poder após o 7 de Abril de 1831:

Assim, se existem haitianos, eles são somente aqueles homens que


afugentam do Brasil a esses mesmos Portugueses e adotivos, levando-lhes
a perseguição e a morte. São haitianos esses que toleram insultos e
ameaças dos Ingleses e Franceses que açoitam brasileiros, e que vindo ao
Brasil nos levam o ouro, deixando em seu lugar meia dúzia de trapos, e
podres fitas. São haitianos, esses que odeiam os Portugueses, e pelo
                                                                                                               
4
JF, nº 5 de 23/09/1831, p.1 (negritos adicionados, itálicos no original). O Nova Luz Brasileira nº 147, de
17/06/1831 traz longo artigo com a mesma teoria conspirativa a respeito de planos de re-colonização do Brasil
pela Santa Aliança, dos quais a abdicação de d. Pedro I em 7 de Abril de 1831 teria sido apenas um episódio
planejado dentro desta estratégia.

  5  
contrário preferem homens de outras Nações que longe de construir
edifícios públicos, e promover o nosso aumento de prosperidade, chegam a
ponto de mandar vir de seus países a própria comida já cozida, e a mesma
roupa lavada que vestem! São haitianos somente os que promovem a
divisão do Brasil, que o salpicam de sangue fratricida, que não desejam o
perdão de leves erros políticos, e pelo contrario querem que graves
atentados gozem de indulgência. Haitianos são unicamente esses
moderados que tem apregoado a licença em vez da liberdade, a discórdia
em lugar do patriotismo, e um sistema efêmero em vez de uma Monarquia
Representativa sólida e duradoura, que faça a felicidade dos povos. Estes
são os verdadeiros haitianos, que indiretamente conduzem as coisas ao
5
termo do Haitianismo.

A tautologia da última frase mostra como o campo semântico do Haitianismo


penetrou de forma profunda nos imaginários elitistas e permeou o léxico político brasileiro
em um instante fundacional, onde se definiam quem eram e o que deveriam fazer os bons
brasileiros, assim como o tipo de regime a ser adotado, a partir de contraposições
lingüísticas binárias onde o outro, o adversário ou inimigo político, é sempre tratado como
“Haitiano”, ainda que o debate não verse diretamente sobre nada relativo ao Haiti.
Este tipo de uso ligado à ofensa política cotidiana foi o mais freqüente dentre os
encontrados nesta pesquisa. Nele, a produção discursiva de um “Ego” e um “Alter”
contribuía para gerar uma versão elitista e racialmente marcada da idéia hegemônica de
identidade nacional e lealdade ao jovem Estado independente no Brasil, uma vez que o
Haitianismo servia, como visto, para desqualificar tanto a moderados, como a exaltados ou
conservadores, sendo o dispositivo retórico mais eficaz na demarcação de fronteiras e
linhas políticas constitutivas das disputas pelo exercício do poder. O Haitianismo, assim,
ajuda a localizar o momento político por excelência (the political, em inglês), aquele em que
as “linhas de insegurança” (WALKER, 2006) são traçadas, negociadas e refeitas
constantemente ao sabor das marés de força do embate político em cada época particular.
Em 23 de Junho de 1848, na câmara de deputados do Império, houve forte
discussão entre os deputados Pedro Fernandes Chaves (RS) e Dr. Joaquim Candido
Soares de Meirelles (RJ). Este último reclamava das perseguições sofridas pela suposta
participação que teria tido na revolta liberal de 1842, em Minas Gerias. Chaves chegou a ser
expulso do plenário na sessão anterior, dia 17, ao gerar reações acaloradas dos
parlamentares por acusar ao colega de Haitianismo, quem se defendia afirmando ter dados
provas suficientes de que era monarquista, sendo até médico pessoal do Imperador.
Meirelles argumentava que nem estava no Brasil em 1842, que estava ‘bem tranquilo em
Paris, e mesmo assim fui punido e acusado de haitianismo, talvez por ser mulato”:

                                                                                                               
5
PA, nº 27 de 07/04/1835, p.3 (negritos adicionados).

  6  
Ora, se todos os que nascem no Brasil são cidadãos , quer sejam ingênuos
ou libertos; se todo cidadão pode ser admitidos aos diversos cargos da
nação sem outra diferença que não seja dos seus talentos e virtudes, se a
lei é igual para todos, quer proteja, quer castigue, se são abolidos todos os
privilégios, os privilégios de casta, só sustentados os que estão ligados aos
cargos por utilidade pública; como senhores se proclama em boa fé
haitianismo no Brasil? Não se conhece pelo contrário mui palpavelmente
que o que não quer o nobre deputado pelo Rio Grande, e os que com ele
pensam, é a execução da constituição do país, feita no país e para o país?
 
E na sessão do dia seguinte:
 
Ontem, continua o orador, disse o nobre deputado que não se referia a mim,
que o nobre deputado pelo Ceará foi quem pôs este aparte na minha
cabeça. Senhores, eu não creio que sejamos tão inocentes, que hoje, na
época em que nos achamos de 1831 pra cá, quando se fala em
haitianismo, em sociedade haitiana, não se refira tudo isto a Meirelles. Se
pois eu acredito que não ofendi com o meu aparte ao partido do nobre
deputado, nem a indivíduo algum de que ele se compõe, e menos ainda ao
nobre deputado, como disse ele, que desforçando-me eu de semelhante
6
injúria, vim para esta casa com o ânimo deliberado de o atacar caluniar?

O terceiro uso do fenômeno discursivo em questão advém do anterior, pois também


é parte da batalha política cotidiana do Brasil imperial. Mas, neste caso, trata-se menos de
ofensas pessoais sob adjetivação haitianista e mais de intrigas eleitorais e ministeriais que,
mesmo utilizando-se da desqualificação dos adversários, visavam a fins políticos mais
palpáveis, como a vitória em eleições ou nomeações de gabinetes. O jornal pernambucano
A Voz do Beribi, de 19 de Junho de 1835, afirmava neste sentido que “No Rio de Janeiro se
disse, que a perseguição dos pretos, e assoalhamento de haitianismo era uma invenção dos
Moderados para tornar necessário um Regente enérgico como o Sr. Feijó”7. A principal folha
do Partido Moderado, a Aurora Fluminense, de Evaristo da Veiga, deputado, editor e o “mais
respeitado liberal da época”, segundo José Murilo de Carvalho (2014, p. 295), sentia a
necessidade de rebater tais acusações, que eram freqüentes por sinal. Em matéria de capa
de capa do mesmo ano sob o titulo de “INTERIOR”, indicativo do contexto doméstico de
mobilização do Haitianismo no Brasil, lê-se na Aurora Fluminense:

É o haitianismo um invento da Moderação para dar votos a Feijó; os fatos


melancólicos do Pará [Cabanagem] são devidos à Moderação e tem por fim
dar ainda votos a Feijó. Qual o remédio específico contra estas cruéis
enfermidades? Votar no Sr. Holanda Cavalcanti com quem não podem
haver mais receios de haitianismo, nem atrocidades do 7 de Janeiro.
Assim discorrem pouco mais ou menos O Eleitor, A Novidade, O Pão
D’Assucar e outros; vejamos se discretamente. É a voz do haitianismo um
invento dos Moderados? (...) Note A Novidade que as mesmas suspeitas,
nascidas no Rio de Janeiro acerca da existência de uma sociedade

                                                                                                               
6
Anais do Parlamento Brasileiro, sessões de 27 e 28 de Junho de 1848, p. 282 e 241.
7
VB, nº 16 de 19/06/1835, p. 3.

  7  
haitiana, aparecem há tempos na Bahia e em Pernambuco, aonde contudo
o partido Moderado não é o que prepondera (...). Se o haitianismo é puro
invento da Moderação, para a eleição de Feijó, como explica a Novidade o
vosso voto na Assembléia Provincial? Como, os de muitos membros que
8
nunca fizeram parte do partido Moderado?

É possível que o próprio Evaristo da Veiga tenha sido responsável pela cunhagem
do termo Haitianismo no Brasil, em 1831, durante uma reunião da Sociedade Defensora da
Liberdade e Independência Nacional, uma das muitas agremiações e clubes políticos,
secretos, públicos ou semi-abertos, freqüentados pela elite imperial brasileira. Esta é, pelo
menos, a suposição de outros atores políticos da época, que acusam o redator da Aurora
direta ou discretamente deste feito, como faz o editor d’A Malagueta em sua coluna “Dois
Mocinhos” de 25 de Fevereiro de 1832: “Custou pouco ao Redator do Independente copiar o
Padre Januário, e ainda menos custa, ao Sr. Evaristo declamar contra o Haitianismo que
ele mesmo promoveu, talvez sem querer”9. A intriga política envolvendo este dispositivo de
linguagem iria além de momentos de campanhas eleitorais, sendo usada também para
politicagem envolvendo nomeações de ministros e outros cargos estatais do Império, como
embaixadas. Com boa dose de racismo, o jornal liberal-exaltado A Mutuca Picante, do Rio
de Janeiro, insinua em sua seção de “BOATOS” que:

Há quem diga que o Sr. Batista Matraca será nomeado para tratar com as
Autoridades Africanas as condições com que admitirão os pretos que se
exportarem do Brasil, em conformidade com a Lei de Novembro de 1831.
O Haitianismo conhecido de S. Sª fará sem dúvida, que contentando-se,
para desempenho desta missão, com a ajuda, noutros tempos gramada,
não quererá aumentar com grande ordenado o peso, que já causa um
10
exército de Diplomatas, que povoam a Europa.

O quarto uso político do Haitianismo no Brasil imperial é talvez, um dos que mais
marcas pode ter deixado nas fundações históricas do país, pois trata da militarização e
“securitização” (WEAVER, 1995), dos conflitos e “dramas sociais” (FRAGOSO, 1981, p.33;
TURNER, 1995). Liga-se, portanto, com as práticas de mobilização do medo branco em
                                                                                                               
8
AF, vol. 8, nº 1034, de 01/04/1835, p. 1 (negritos adicionados, itálicos no original).
9
AM, nº 144, de 25/02/1832, p. 3. O Pão d’Assucar nº 27, de 07/04/1835 traz na página 2 a seguinte versão para
a origem do fenômeno que ora nos ocupa: “Tratava a Sociedade Defensora sobre medidas relativamente ao
Pará, quando apareceu um sócio requerendo que na circular às províncias se falasse no haitianismo. Este
requerimento por sua natureza era de grande importância, revolveu a coisa de todos os modos, e o haitianismo
ali se desenrolou em toda a sua extensão. Valha-nos Deus com tanto haitianismo! Entre todos os objetos
daquela Sessão, nada houve para nós mais maravilhoso como o que disse um Sócio indagando a origem do
haitianismo. Disse o nobre Sócio; que raivosos os Portugueses por haverem perdido o Brasil com a
independência deste; e que tendo perdido a esperança de o reaver tinham recorrido à mais atroz vingança para
com os Brasileiros, revoltando os Africanos contra os brancos; e acrescentou, que tanto sabia por lh’o haverem
dito dois mesmos Portugueses! Nós não assistimos à Sessão da Defensora, mas temos ouvido isto geralmente.
Custa crer que hajam homens que assim se expliquem! Não se pejou aquele Sócio da Defensora quando disse
que dois Portugueses lhe haviam dito que os Portugueses eram os fautores do haitianismo?! Será crível que
sendo bem conhecido o tal defensor por seus feitos moderados, dois Portugueses lhe dissessem tanto, quando
fosse verdadeira essa vingança?” (negritos adicionados).
10
MP, nº 10, de 17/10/1834, p.3 (negrito adicionado, itálicos no original).

  8  
função das supostas atrocidades que homens negros - fossem africanos ou já nascidos no
Brasil; escravizados ou ‘livres’ - estariam sempre dispostos a cometer contra a boa
sociedade, branca e proprietária11. A defesa da família, “esposas e filhos”, não era incomum
neste tipo de discurso securitizante, cujos efeitos apontam, via de regra, para o incremento
da militarização.
Assim, desde antes do termo Haitianismo ser encontrado pela primeira vez (em
1831), as comparações com o Haiti que evocavam os “horribilíssimos crimes” ocorridos na
ex-colônia francesa de Santo Domingos já eram feitas no sentido de avançar agendas
conservadoras e de controle sócio-racial cujo objetivo declarado era evitar “fazer do Brasil
um novo Haiti”12, conforme discutido numa série de editoriais do jornal pernambucano O
CRUZEIRO ao longo do ano de 1829. No entanto, o episódio concreto que levou estas
alegorias de medo a parecerem assustadoramente mais próximas da realidade local foi a
irrupção da Revolta dos Malês em fins de Janeiro de 1835 nas imediações de Salvador,
Bahia, primeira capital do Brasil colonial (FLORY, 1981). Neste quarto caso, portanto, os
efeitos de poder de tais invocações de medo sócio-racial são, conforme já percebidos por
Mello Mourão (2009), o fortalecimento “as hostes monarquistas” de agendas políticas ultra-
conservadoras, além do incremento das práticas de vigilância, controle e repressão estatal
seletivas, direcionadas aos inimigos domésticos, negros e “licenciosos”:

Lancemos espaçosas vistas sobre o teatro do mundo e vejamos o quanto, e


quão lamentáveis males tem causado a inculcada liberdade (ou verdadeira
licença). A França ainda hoje se horroriza da lembrança dos cadafalsos, das
mortes, dos assassinatos, da guerra civil. Os navegantes a passarem pelas
Antilhas apontam para o Haiti e dizem: “Eis ali a sepultura de tantos mil
homens brancos, que foram imolados pela licença dos negros”.
Pernambuco ainda goteja sangue, ainda treme de susto, ainda se lembra
dos partidos, das mortes, dos horrores. Os honrados pernambucanos ainda
afastam as vistas das Cinco Portas para não verem um bando de
licenciosos, que, como as fétidas hapias, fartando-se nos manjares mesmos
sujos pelo sangue de uma vítima européia, a conduzem ao leito da morte, e
de uma morte lenta, para serem muitas mortes: essa cáfila de bárbaros não
satisfeita com o assassinato, que é fraca satisfação para corações inchados
de infernal peçonha, não respeita ao exangue cadáver, que vem a ser
13
objeto de escárnio.

Na mesma linha alegórica de “medo branco” (AZEVEDO, 2004; MALAGUTI


BATISTA, 2014), porém propondo contornos mais precisos quanto às providências a serem

                                                                                                               
11
C.L.R. James (1989) em seu Jacobinos Negros explora fecunda e literariamente a hipocrisia contida nestas
alegorias de terror branco em relação às narrativas sobre as supostas violências sem igual da revolução
haitiana. Sobre o caso do Brasil, ver a obra de referência de Célia Azevedo (2004), Onda Negra, Medo Branco: o
negro no imaginário da elite – Século XIX. Sobre o nexo entre medo branco e militarização, lugar-comum na
criminologia crítica contemporânea, ver a obra de Vera Malaguti Batista (2003), O Medo na Cidade do Rio de
Janeiro: dois tempos de uma história, que traz uma série de referências de haitianismo em seus achados
empíricos.
12
OC, nº 40, 25/06/1829, p.4.
13
OC, nº 35, 17/06/1829, p. 1 e 2 (itálicos no original).

  9  
tomadas em termos de políticas públicas frente ao risco haitianista, um artigo intitulado
“BAHIA”, do já mencionado nº 27 do conservador Pão d’Assucar é paradigmático. Ao
reproduzir matéria da Gazeta Comercial sobre as repercussões da Revolta dos Malês,
elenca-se uma série de medidas e uma racionalidade conhecida pelo leitor brasileiro
familiarizado com os debates sobre “segurança pública” contemporânea travados no campo
da criminologia crítica no país (BATISTA, 2000; ZAFARONI, 2000; NEDER, 1996; 1981). Diz
o jornal:
Passemos agora a considerar por alguns momentos o perigo em que
estivemos de ver nossas esposas e filhos mortos desapiedadamente por
bárbaros Africanos, se um acidente feliz não estorvasse a execução de um
intento tão cruel. Isto bem meditado deve nos horrorizar para que não
sejamos tão frouxos e descuidados como até agora temos sido, em tomar a
este respeito as medidas mais eficazes, para que outro igual rompimento
não nos apanhe de improviso. Parece que as mais óbvias e imediatas que
se devem tomar, é estabelecer primeiramente uma Polícia ativa e vigilante,
que observe com cuidado todos os passos que os Africanos derem, que
pareçam encaminhar-se a conjurações contra nossa existência, para que a
tempo se previnam, empregando para este fim todos os meios que mais
convenientes forem para se descobrirem intenções tão pavorosas; segundo,
termos uma força armada suficiente, que pela sua disciplina, gente
escolhida que se compuser, nos inspire confiança, e aos escravos terror, e
quando nos seja preciso possa rebater qualquer assalto, que da parte deles
14
nos possa sobrevir.

O mesmo espírito punitivista também estava presente na já referida Mensagem ao


Trono de 1835 aprovada pela Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, fruto da Comissão
d’Assembleia Provincial acerca do Haitianismo. Em todos os exemplos deste tipo de
mobilização cujo efeito é o incremento da militarização, o nexo entre garantia de
financiamento público contínuo e ação ilimitada das forças repressivas é enfatizado pelos
que assim argumentam. Há sempre, portanto, uma locução autorizativa de emprego de
“todos os meios convenientes” e “fazer as despesas necessárias”. Em outras palavras,
percebe-se uma correlação entre a autorização, preventiva e discricionária, da exceção
policial e fiscal.
Art. 3. O Presidente da Província fica autorizado a fazer deportar para fora
da mesma todos os estrangeiros de cor de um e outro sexo,
compreendendo-se nesta classe os Africanos libertos; e com especialidade
aqueles que divagam pela mesma Província, entretidos no tráfico de
mascates e pombeiros. Para este fim, os Juízes de Paz, e mais autoridades
que exercem com eles função jurisdicional policial cumulativa, farão prender
os ditos estrangeiros de cor, onde quer que forem encontrados, e os
remeterão com segurança à disposição do Presidente da Província.

Art. 7. O Presidente da Província fica autorizado para fazer as despesas


necessárias para execução desta Lei, e para manter uma vigilante Polícia
de inspeção em todos os lugares da Província onde julgar conveniente:
devendo dar conta de tudo o quanto houver chegado ao seu conhecimento

                                                                                                               
14
PA, nº 27, 07/04/1835, p.3.

  10  
e dependido a este respeito, à Assembleia Legislativa Provincial na sua
15
primeira reunião ordinária ou extraordinária, em ofício reservado.

O quinto efeito de poder do Haitianismo, que contribuiu para forjar as feições das
nascentes elites políticas brasileiras, diz respeito às conseqüências materiais mais agudas
desta prática retórica peculiar: a agressão física violenta - preventiva ou punitiva, pública e
privada - sobre corpos negros decorrente de rumores de Haitianismo. Mesmo sendo um
universo semântico preponderantemente pertencente ao mundo dos homens brancos e
politicamente influentes no Império, era nas vidas racializadas como não-brancas que a
biopolítica própria da construção do Estado brasileiro se encarnava. Mais do que um difuso
biopoder exercido sobre corpos avulsos, tratava-se de uma verdadeira técnica de
governamentalidade da população negra e escravizada, que teve importante espasmo
demográfico no período estudado, em virtude da aprovação da Lei de 1831, conhecida
como “lei para inglês ver” na historiografia nacional (CARVALHO, 2014, p. 294). Dois
episódios são ilustrativos de tais “efeitos de poder” biopolíticos (FOUCAULT, 1981):

Tal é o estado da Corte depois que tomou posse a Exmª Regência


Permanente pelo Sr. d. Pedro II; e bem disse a Nova Luz que é horrorosa
quase sempre a história das Regências em Menoridades de Reis. Cutiladas
em pretos cativos é coisa que já se vê sem que faça mossa na gente
capitalista d’improviso; diz ela que é boa política espantá-los a ferro, e
16
bacalhau , para que não tenham eles novos intentos haitianos. Em
Valença consta que houve preto que levou mais de mil açoites, pela simples
presunção d’Haitianismo (que é impotente aqui na Corte, ainda que
malvada mão poderosa meneie essa alavanca). E o mesmo Juiz Ordinário,
a quem ouvimos esta notícia na Cadeia desta Corte asseverou, diante de
várias pessoas, que o haitianismo de Valença foi todo uma pura invenção.
Quanto à invenção, podemos afirmar apenas unicamente pelo dito daquele
Juiz Ordinário; porém é preciso ter um coração moderado fingido para não
se compadecer dos míseros africanos que levam mil açoites por simples
suspeitos, e como em pagamento dos produtos que para nós arrancam do
17
seio da terra com o suor de seu rosto.

***
Mas o que são os tempos!! Dali dizia um sujeito da barafunda, e que tinha
sido Chimango (e ainda era): olhe que esse ladrão está assim engraxado de
preto porque é um refinado haitiano, e deve chuchar 800 açoites de uma
assentada, um Cabo de quarteirão dizia.
(...) muitas outras encrespações, todas de natureza semelhante, foram
feitas ao Bacorinho, e em conformidade com o Código foi ali mesmo na
Praia condenado a levar 1.200 vergalhadas por haitiano, e ir depois para a
18
Casa de Correção pelo estelionato.

                                                                                                               
15
AF, vol. 8, nº 1032, 27/03/1835, p.2.
16
“Bacalhau” era o nome de um tipo de cassetete policial utilizado pela Polícia da Corte para patrulhar as ruas e
coibir a vagabundagem. Ver, a respeito, a descrição detalhada das operações policiais do início do século XIX
em Polícia no Rio de Janeiro, de Thomas Holloway (1997, p. 49), que cita o Haitianismo e faz referência a Miguel
Vidigal, temido chefe da corporação na Corte entre 1809 e 1824, conhecido pela violência racial desmesurada e
notabilização do “bacalhau”.
17
JF, nº 15, 16/11/1831, p.2 (itálicos no original, negritos adicionados).
18
OB, nº 2, 19/02/1836, p. 1 e 2 (itálicos no original, negritos adicionados).

  11  
O sexto, e penúltimo, efeito de poder do Haitianismo no Brasil oitocentista é o único
que se relaciona diretamente com as relações internacionais do país. Aqui a referência ao
Haiti é literal e talvez surpreenda a leitores desavisados, pois também é elogiosa, ainda que
o tema central gire em torno de discussões sobre raça e civilização. Trata-se do debate
ocorrido após a Revolta dos Malês (1835) entre alguns jornais e personalidades políticas
acerca das medidas destinadas a evitar um intento similar no Rio de Janeiro. Apesar de
ferrenhos adversários e protagonistas de ácidas disputas (e algumas conspirações
palacianas entre si), os editores da Aurora Fluminense e do Pão d’Assucar neste momento
conseguiram encontrar pontos em comum no racismo. O consenso principal era que as
medidas repressivas, que ambos exigiam, de nada adiantariam sem uma interrupção do
influxo de africanos escravizados e uma gradual abolição. O seu corolário era a
conveniência de estabelecer uma colônia brasileira na “Costa d’África”, para lá deportar os
negros insubordinados que se condenassem no Brasil e os demais que se fossem libertando.

Por isso cumpre à nossa Assembleia Provincial, prover-nos os meios que


lhe parecer mais acomodados a fazer exequível a Lei, que proíbe a entrada
de novos escravos, tomando em muita consideração este objeto, não só
como muito essencial à nossa segurança, mas como muito necessário para
que não se afaste de nós a entrada de trabalhadores livres, que são os
únicos que podem cooperar para o progresso, e melhoramento da nossa
indústria, opulência, e civilização. Estas são as providências, que mais
imediatamente nos parece se devem tomar em nossa defesa; mas que
pesado encargo não será para nós se sempre nos virmos obrigados a
estarmos em contínuos cuidados pela nossa conservação, e em armas para
rebater agressões de escravos, se não principiarmos desde já a cogitar em
outras, que tendam a diminuir essa temerosa multidão, que nos ameaça a
quase todos os instantes, obrigando-nos a estarmos sempre alerta? O que
nos ocorre é a gradual libertação dos mesmos, provendo ao mesmo tempo
em África uma colônia para receber aqueles, que se forem libertando por
alguma medida geral, medida esta, que os Americanos do Norte julgaram
muito necessária para sua própria segurança: outra não menos eficaz, que
nos cumpre tomar para que os Africanos não se afoitem mais a nos
acometer, é procurarmos aumentar nossa população branca, animando a
emigração de estrangeiros da Europa com partidos vantajosos, facilitando a
sua naturalização, e igualando-os em direitos aos nascidos, como praticam
os Estados Unidos da América do Norte, e as mesmas Repúblicas do Sul.
Os conselhos, que o amor da nossa Pátria nos inspira para tão
afoitamente dá-los aos nossos Concidadãos, se fundam em verdades de tal
intuição, que não escaparam aos pretos da ilha do Haiti, que pretendendo
consolidar um sistema de homens de sua cor, determinaram que um dos
artigos do seu Código Constitucional, que nenhum branco de qualquer
Nação, que fosse, que pisasse o seu território, poderia ser Proprietário, nem
Cidadão; permitindo ao mesmo tempo, que os Africanos ou os que
procedessem de seu sangue, quer nascidos nas Colônias, quer em países
estrangeiros, fossem reconhecidos Haitianos, e depois de um ano de
19
residência gozassem dos Direitos de Cidadão.

***

                                                                                                               
19
PA, nº 27, 07/04/1835, p.3.

  12  
Sobre um projeto de lei apresentado na Assembléia Provincial da Bahia a
respeito de Africanos libertos, diz o Pão d’Assucar algumas coisas que
parecem razoáveis, sem embargo que muitas dificuldades se oporiam à
fundação dessa colônia que pretende estabelecer na Costa d’África. Mas,
como que arrependido de haver tido senso comum por espaço de algumas
linhas, ele se apressa a reclamar a dissolução dos Corpos de Permanentes
que hoje pertencem às províncias, a reorganização do exército e a de
Corpos Suíços e Alemães, comandados por Oficiais Brasileiros. Forte sanha
há de apagar até os vestígios da revolução de Abril, e de repor todas as
20
coisas no estado que existiam sob o governo de d. Pedro I!

O último efeito de poder rastreado nesta pesquisa genealógica sobre o Haitianismo


no Brasil segue dizendo respeito à questão racial, tema que apareceu de forma apenas
subjacente ou implícita em alguns dos usos anteriormente vistos. No entanto, como seria de
se esperar, o léxico do Haitianismo também influenciou e foi mobilizado diretamente nos
debates sobre raça e “intrigas de cor” nos veículos impressos das elites imperiais. Segundo
a hipótese de Thomas Flory (1977), o abuso da terminologia haitianista em coincidência com
a Revolta dos Malês em 1835 teria resultado, inclusive, em uma mudança de postura
tacitamente compartilhada por diferentes segmentos das elites, que a partir daquele ano
começam, de fato, a falar bem menos em Haitianismo e a ter mais cuidado no momento de
racializar seu discurso político. O medo se tornara real demais, segundo sua interpretação
(FLORY, 1977, p. 215 e 216).
Nesta visão, o Haitianismo teria sido, então, um ponto de inflexão na forma de
abordar a questão racial no Brasil imperial: de um ápice de construção de identidade
(branca, civilizada) via alteridade racializada (negra, bárbara) que encontrou no Haitianismo
uma forma por excelência deste mecanismo21; até chegarmos ao ponto em que o mesmo
fenômeno haitianista é central justamente na transição da afirmação da diferença para a
celebração da mestiçagem brasileira, da suposta igualdade de direitos e oportunidades no
país, além da simetria de interesses entre indivíduos (homens) de todas as cores de pele.
Evaristo da Veiga, no Aurora Fluminense nº 1036, dedica longo e exclusivo artigo a esta
argumentação romântica sobre igualdade racial no Brasil escravista:

RIO DE JANEIRO

Tem-se procurado confundir = haitiano = com homem de cor = haitianismo


= com um acidente em que nem a Constituição nem a Razão
estabeleceram motivo de diferença. Sabemos bem quais são os fins
daqueles que arranjam essa confusão estudada, e o afinco que sem
emprega em reunir todos os pardos num só grupo a parte, fazendo-lhes
acreditar que sua causa, os seus interesses são alheios aos do resto da
Sociedade. No entanto, não cremos que tão funesta cizânia possa grassar
entre nós: os pardos, no número dos quais há pessoas de consumadas

                                                                                                               
20
AF, nº 1039, 29/04/1835, p. 2.
21
“O Brasil se inventou assim, como um anti-Haiti: por oposição, éramos todos brancos, cristãos e civilizados”
(SCHWARCZ & STERLING, 2015, p. 229).

  13  
instrução e muita gente de siso, não ignoram que eles não tem no Brasil as
queixas que exasperaram por exemplo os homens de cor em S. Domingos,
nem mesmo as que na América do Norte deve trazer o isolamento e
desprezo em que está posta essa parte da população. No Brasil, as coisas
se passam muito diversamente: quer no tempo do Governo absoluto, quer
sob o regime constitucional, nenhuma diferença legal foi estabelecida entre
os brancos e a gente de cor livre. Alguns prejuízos da educação a tal
respeito, que acham origem na existência da escravatura e nas castas a
que a escravatura pertence, perdem todos os dias da sua força, e cedem o
campo aos triunfos da Filosofia. Não há maior iniquidade do que confundir
homem de cor com haitiano: dos homens de cor livres, muitos tem
escravos, e são tão interessados como os nossos Cidadãos, em que as
ideias do feroz haitianismo não triunfem. Pardos con... [ilegível] nós em
que o horror a semelhantes tentativas não pode ser excedido, e que tem
mesmo prestado serviços importantes ao País, indicando as fontes do mal,
e mostrando quais tem sido a sua marcha e os seus progressos; no entanto
que sobre dois brancos, escritores bem conhecidos pela exageração de
suas doutrinas, recaem justificáveis suspeitas de que trabalham em favor do
haitianismo. Ao menos tem sido eles por vezes acusados de semelhante
crime e não puderam até agora lavar-se da imputação. Não equiparemos o
que é filho ou de fanatismo político ou de depravação de alma, com um
acidente de que ninguém é culpado, e que não torna menos estimáveis
quantos são merecedores de estima ou por suas virtudes cívicas, ou por
seus talentos. Não fazemos corte a esta ou aquela casta, a esta ou àquela
classe da Sociedade, e bastante o havemos mostrado, combatendo sem
cessar o espírito de classes que a Retrogredação tem querido manter
contra o fim da Comunidade. Mas não podemos sofrer que a pretexto de
defender os direitos e a causa dos homens de cor, se lhes esteja fazendo a
mais cruel injúria, e se empenha numa tática perversa, para separá-los da
massa Social, formando no Estado um novo Estado. Amalgamar todas as
prevenções, todos os interesses mesquinhos em um pensamento e
interesse comum que é o do Brasil, o da nossa pátria, deve ser todo o afã
dos amigos da prosperidade do país e da justiça. Quem a isto prefere ou
injustos ressentimentos, ou cálculos de ambição privada, não é digno do
nome de patriota. Pode ser útil em Governo livre que a Nação se divida em
partidos, contanto que estes não lancem mão da violência e dos meios
ilegítimos; mas nunca pode deixar de ser aí funesto que a população se
ache dividida em castas rivais, uma inimiga da outra, e cujo rancor muito
venha assim a ser eterno, por que os acidentes da natureza que os
separam, nem mudam, nem se modificam. Nada de confundir haitianos
22
com homens de cor.

Mesmo sendo um detrator de Veiga, da Aurora Fluminense e do partido Liberal Moderado


como um todo no poder regencial, o jornal O Rusguentinho, da Corte, de linha política Liberal-
Exaltada, também entrava fundo no debate racial. E, assim como Evaristo da Veiga, quem explicava
o que era um bom “homem de cor”, ou seja, aquele que não devia ser confundido com “haitiano”, o
editor exaltado igualmente se achava na posição de dizer aos “bons pardos” o que fazer politicamente
e como serem “bons brasileiros”. Ecoando os alertas de Edward Said (2003) e Gayatri Spivak (1988)
acerca do poder das representações do outro subalternizado pelos próprios discursos sobre ele
enunciado pelos homens brancos em posições de poder, informa o jornal:

Lembrem-se os Pardos, e Adotivos, que custa pouco intrigá-los ao gosto


dos futuros colonos Irlandeses do Conego Januario, chamando a uns

                                                                                                               
22
AF, nº 1036, 06/04/1835, p. 2 e 3 (negritos adicionados).

  14  
haitianos, e a outros Lusitanos Restauradores de José Bonifácio.
Lembrem-se os Pardos do que ouviram na discussão da intitulada Lei de
serviços, e naturalização: lembrem-se os Pardos que nos promotores, e
denunciantes das cantigas de Maio, do 14 de Julho, do 28 de Setembro, &c.
havia muito Pardo, que se fingia medroso de haitianismo, e acusador de
Barata como haitiano! Os Pardos bons Brasileiros, e liberais devem
desconfiar muito de Pardo que finge ser branco, e dos Pardos que querem
figurar, ou enriquecer: estes com os Restauradores d’Evaristo, e do Esbarra
são os maiores inimigos do Brasil, e dos Pardos, que são bons Brasileiros, e
Liberais, como são a maior parte destes nossos Patrícios. Pardo
empertigado, ou dengue ora é haitiano, ora Evaristeiro, e sempre terrível
inimigo dos bons Pardos aos quais ilude, vende com a mesma segurança
com que furta o ladrão de casa. O Pardo bom Exaltado e Brasileiro
Andradista deve sempre guiar-se pelo virtuoso patriota Barata, e fugir de
23
Rusgas.

3. Considerações finais

Neste artigo revisitamos o fenômeno discursivo do Haitianismo brasileiro durante as


duas primeiras décadas de soberania formal do país sul-americano. Procurou-se mostrar
como e para que agendas políticas este dispositivo retórico foi efetivamente mobilizado a
partir das enunciações encontradas em periódicos e discursos parlamentares que evocaram
este universo lingüístico, especialmente freqüente durante o Período Regencial (1831-1840)
do Império Brasileiro. Como em outras comunidades políticas, também no Brasil, desde
cedo, têm-se o costume de cunhar termos e expressões próprias, que só fazem sentido
naquela formação social. Significantes que precisam de tempo e lugar para obterem
significado. E, mais importante, tais inovações comunicacionais podem atuar como “atos-de-
fala”, que vão construindo traços da realidade social no instante em que são proferidos
(AUSTIN, 1962; DOTY, 1993; ONUF, 1989) e assim interferem concretamente na vida
política, produzindo efeitos de poder rastreáveis pela pesquisa histórica e genealógica.
Dos sete efeitos encontrados por esta pesquisa, apenas dois não aparentam ter
deixado marcas perceptíveis nos dias atuais. Não se utiliza mais o termo “Haitiano” como
instrumento de injúria política ou difamação pessoal no mainstream da vida pública. Ainda
que tenha surgido uma xenofobia específica anti-haitiana em decorrência do influxo de
imigrantes advindos do Haiti após a ocupação militar brasileira iniciada em 200424 na ilha
caribenha, e que a grande imprensa tenha propalado o temor de uma “invasão haitiana”25,
hoje em dia são outros termos que povoam o debate principal entre as elites políticas
brasileiras. A intriga palaciana e ministerialista continua na ordem do dia, mas o Haitianismo
deixou de ser um veículo importante para tais expedientes.

                                                                                                               
23
OR, nº 04, 21/12/1833, p. 3 (itálicos no original, negritos adicionados).
24
Ver (acesso em Julho 2017): http://osoldiario.clicrbs.com.br/sc/noticia/2015/10/haitiano-morto-em-navegantes-
sonhava-em-morar-com-a-familia-nos-estados-unidos-4885824.html
25
Ver (acesso em Julho 2017): https://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-
3549381

  15  
No entanto, os outros cinco efeitos de poder correlacionados ao Haitianismo fazem-
se presentes no cenário político brasileiro posterior ao século XIX, quando o fenômeno que
ora nos ocupa teria supostamente chegado ao seu fim. Pois a suspensão seletiva de direitos
e garantias constitucionais – estados de exceção - em nome de ameaças sócio-raciais à boa
sociedade segue recorrente, especialmente no Rio de Janeiro, quando se trata de
operações policiais em favelas e demais territórios de população predominantemente pobre
e não-branca. Os direitos a vida, à inviolabilidade do lar, da presunção de inocência e ao
tratamento digno são alguns dos cotidianamente violados em ações estatais contra os
“inimigos domésticos” (ANDRADA E SILVA, 2011) atuais. Outro efeito de poder ligado ao
Haitianismo que remete à atualidade é o clamor por uma “polícia mais ativa e vigilante”, de
proximidade, que vigie todos os passos das classes e raças perigosas, somada ao chamado
pelo emprego das forças armadas nacionais em operações domésticas contra tais ameaças,
tendo em vista o risco existencial enunciado na forma de medo branco. Os discursos que
promovem as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro e o uso de
Garantias da Lei e da Ordem (GLO) como fundamento de empregos de tropas militares em
operações (de defesa?) contra brasileiros, em território nacional, são deveras similares aos
ecoados por volta de 1835, após a Revolta dos Malês, como visto.
No mesmo sentido, os pedidos pelo estabelecimento de colônias brasileiras em
países identificados no discurso por sua negritude (“Costa d’África”) tem uma assustadora
semelhança com os que hoje defendem a invasão armada e presença brasileira numa
“República Negra” (KAWAGUTI, 2008), como a imprensa brasileira tem por hábito referir-se
ao Haiti. O sociólogo haitiano Franck Seguy (2015) defende a tese de que a Missão das
Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) faz parte de um projeto maior de
“recolonização” de seu país, tema igualmente evocado por amplo espectro da sociedade
civil e dos movimentos sociais haitianos, quase em sua totalidade contrários à ocupação
estrangeira26. Por sua vez, sob a ótica da criminologia crítica, pode-se ver que os efeitos de
poder nos corpos negros resultantes de tantos chamados por mais militarização cotidiana e
ocupação bélica de territórios vistos como não-brancos, que geravam “vergalhadas e
açoites”, hoje produzem um recorde de “autos de resistência” lavrados pela Polícia Militar do
Rio de Janeiro: somente entre 2010 e 2015 houve mais de 3.250, dos quais menos de 3%
resultaram em processo investigativo; em Março de 2017, houve um aumento de 96,7% em
relação ao ano anterior 27 . No Haiti, os oficiais brasileiros responsáveis pelo Centro de

                                                                                                               
26
Conferir as seguintes organiazções da sociedade civil Haitianas e suas posições em (acesso Julho/2017):
http://www.papda.org/;
http://sofahaiti.blogspot.com.br/2012/11/solidarite-fanm-ayisyen-sofa.html;
http://www.alterpresse.org/spip.php?article12268#.WXSy_iMrJ9I
27
Conferir as reportagens (acessadas em Julho/2017):
https://oglobo.globo.com/rio/escalada-no-numero-de-autos-de-resistencia-revela-tendencia-de-alta-na-letalidade-
policial-21276182;

  16  
Informações do Delta Camp da MINUSTAH não sabem informar quantos haitianos foram
oficialmente mortos por soldados brasileiros desde 200428. Ao mesmo tempo, a agência
Associated Press revela uma poderosa rede de exploração e abuso sexual de menores
haitianos e haitianas envolvendo os capacetes azuis da ONU sob comando de generais
brasileiros durante toda a operação.29 São os corpos negros e vidas de pessoas racializadas
como negras que continuam sofrendo as violentas conseqüências da retórica e dos
discursos imperiais brancos, incluindo aqueles de viés “humanitário” e filantrópico (BORBA
DE SÁ et. al, 2017; CHOMSKY, 2008).
Por fim, o último e possivelmente mais persistente efeito de poder decorrente das
práticas discursivas das elites brasileiras que criaram o Haitianismo é a “colonialidade do
poder” (QUIJANO, 2005) particular que deixou inscrita nas fundações do Estado e na
Sociedade Civil e nos modos de agir de quem ali ocupa altas posições, de tecnocratas a
professores universitários em instituições prestigiosas. Dentre os cinco efeitos que merecem
investigações futuras, este é o que possui agendas de pesquisa mais frutíferas para as
abordagens pós-coloniais e “descoloniais” (CASTRO-GÓMEZ & GROSFOGUEL, 2007) em
voga na teoria de Relações Internacionais e nos estudos críticos sobre pensamento social
latino-americano.
Esta batalha institucional das idéias não é menos importante, uma vez há na
academia brasileira do século XXI um movimento que busca reabilitar as teses de
‘Democracia Racial’ de Gilberto Freyre aos dias atuais, para isto lançando mão da negação
revisionista do Haitianismo e da própria idéia de raça no Brasil imperial escravista (BERBEL
& MARQUESE, 2007). Por mais que o contorcionismo argumentativo e a baixa qualidade
empírica devessem desqualificar tais agendas, seu financiamento contínuo tem crescido,
dada a receptividade institucional, privada e pública, aos discursos que hoje tentam
corroborar com uma epistemologia neo-positivista (mediante exagerada determinação
estatística e demográfica) as mesmas teses políticas defendidas por Freyre em 1936 sob
linguagem humanística30 e, como descobriu-se nesta pesquisa, já formuladas pelo próprio
Evaristo da Veiga, cem anos antes, em 1835, em meio à retórica própria do Haitianismo.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
https://oab-rj.jusbrasil.com.br/noticias/3134972/autos-de-resistencia-no-rj-so-3-7-dos-casos-viraram-processo;
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/rio-teve-mais-de-3250-autos-de-resistencia-entre-2010-e-2015-
diz-isp.html
28
Porto Príncipe, Haiti: Comunicação Pessoal, MINUSTAH Public Information Office (MPIO), 24/01/2017.
29
Conferir as reportagens (acessadas em Julho/2017):
http://diplomatique.org.br/militarizacao-tipo-exportacao-o-perigo-da-industria-humanitaria-brasileira/;
https://www.apnews.com/e6ebc331460345c5abd4f57d77f535c1/AP-Exclusive:-UN-child-sex-ring-left-victims-but-
no-arrests
30
Escrito em 1936, com edição atualizada em 2004, o livro de Freyre menciona o Haitianismo em diversas
passagens a fim de elaborar sua tese sobre a relativa brandura do escravismo brasileiro: “É o que vai nos
explicar o novo movimento de insatisfação da gente de cor do Recife que se verificou em 1824, com a rebelião
do batalhão dos pardos comandados por Emiliano Mundurucu. Atuava sobre Emiliano a sugestão do exemplo do
Rei Cristovão: “Qual eu imito Cristóvão/ Esse imortal Haitiano/ Eia! imitai o seu povo/ Oh! Meu povo soberano”. É
um ponto a se estudar com minúcia, a repercussão dos grandes movimentos de rebeldia dos escravos das

  17  
Portanto, desde os debates sobre políticas de “(in)segurança pública” na criminologia
contemporânea até os estudos descoloniais nas Relações Internacionais, o Haitianismo é
fonte de um vasto arsenal de correlações entre discursos e práticas históricas que merecem
atenção das pesquisas críticas e dos movimentos sociais que contestam as posições e
relações de poder constitutivas da sociedade brasileira. Sem isto, perder-se-á relevante
elemento da “nova cara da contra-revolução” (MARINI, 1977, p.3) preventiva e permanente
acerca da qual importantes autores como Caio Prado Jr. (1966), Florestan Fernandes (1976;
1981) e Ruy Mauro Marini (1977; 1978) se esforçaram para alertar.
O Haitianismo, afinal, existia na forma uma série de efeitos materiais e tecnologias
de prevenção e repressão afim de evitarem uma revolução que nunca aconteceu. Por isso,
tudo o que envolve a militarização sócio-racialmente seletiva no âmbito da atuação do
Estado brasileiro (incluindo os discursos e indústrias ligadas à pacificação humanitária
Liberal), seja para dentro ou para fora das fronteiras do país, deve ser tratado com muito
cuidado, a fim de evitar que os diálogos entre a escravidão branca sobre negros, durante
quatrocentos anos de História, e as escolhas políticas das elites brasileiras atuais sejam
escamoteados. No âmbito da disciplina de Relações Internacionais, em especial, tal
preocupação deveria ser compartilhada por todos aqueles que estudam as relações entre
Brasil e Haiti, uma vez que trata-se de uma séria escolha política abordar quaisquer
aspectos concernentes à MINUSTAH hoje sem levar em consideração que o Brasil é o único
país que teve um fenômeno histórico, de razoável alcance, cujo nome fora, justamente,
esse: Haitianismo.

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Antilhas, sobre as diferentes áreas escravocratas do Brasil. Particularmente sobre as áreas de civilização
açucareira mais intensa, como o extremo Nordeste e o Recôncavo. As duas grandes civilizações do Açúcar na
América – a das Antilhas e a do nordeste do Brasil – tendo seguido atitudes psíquicas e sociais diversas com
relação aos escravos africanos importados para as suas plantações de cana, tiveram entretanto problemas
comuns em face do negro e do mulato; e não deixou de haver repercussão dos acontecimentos revolucionários
verificados na França e nos Estados Unidos, em Haiti e em São Domingos, sobre o nordeste do Brasil. A
ideologia libertária da Revolução Francesa e da Revolução Americana chegou aos dois sistemas escravocratas
– o das Antilhas e o do Brasil – pelos meios mais surpreendentes e mais sutis. No Brasil, até por intermédio de
padres. Mas sem encontrar nunca entre nós ambiente tão favorável ao ódio do escravo contra o senhor, do preto
contra o branco, como o que encontrou naquela outra parte da América, onde a monocultura do açúcar
igualmente separa a população em senhores e escravos: mas escravos e senhores mais distanciados
socialmente do que no nordeste do Brasil.O motivo para essa diversidade de ambiente, já se disse que foi
principalmente a doçura maior do português com a relação à gente de cor; o hibridismo em que se abrandou tão
cedo a colonização do Brasil, mesmo onde ela foi mais aristocrática pela sua origem e pela distância social
imposta pela técnica de produção a senhores e escravos, a brancos e homens de cor. Algumas famílias mais
nobres já se recordou que, no Nordeste, tomaram, desde os primeiros anos, sangue indígena; outras, mais
tarde, até sangue negróide ou ilhéu como, segundo bons depoimentos estrangeiros e a despeito de cartas de
branquitude triunfalmente citadas por cronistas ingênuos, a família de João Fernandes Vieira. E a verdade é que
a política portuguesa no Brasil sempre foi neste ponto, mais humana que a inglesa ou a francesa nas Antilhas”
(FREYRE, 2004, p.135-136).

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