Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
SCHNITZLER, Arthur. O caminho para a Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2011, p. 117
tornaria, assim, digno de experimentação, já que para ele bastava se despedir do seu colega
que o seu conforto era facilmente restaurado.2
Leo, por sua vez, é um jovem socialista entusiasmado com o sionismo e com a
ideia de que o seu povo tem direito sobre a terra dos seus antepassados, que há um
pertencimento inerente ao lugar onde nasceu a sua tradição, a tradição judaica. Diante do
preconceito e exclusão que vê o seus semelhantes sofrerem na europa, entende que uma nação
reservada a eles é a solução para anos e anos de deslocamento e represálias. A discussão
presente no terceiro capítulo entre ele e Heinrich se delineia nessas diferentes perspectivas.
Para um, não há cabimento que vienenses não judeus se sintam mais “em casa” que os judeus
nascidos ali; para o outro, há uma certa “justificativa histórica e antropológica” para tanto.
Contudo, de onde nasceria a identificação com um lugar que não é aquele em que você nasceu
e cresceu, mas que desde que você nasceu e cresceu é dito como a sua “pátria-mãe” mesmo
não sendo a sua “terra natal”? Heinrich observa, a esse propósito, que mesmo os ancestrais de
Georg, que não é judeu, não nasceram no lugar em que ele hoje vive e nem por isso é
considerado menos austríaco do que os outros. Tais nuances nos levam a pensar que talvez a
questão seja mais complexa do que isso e se relacione tanto com os valores de coletividade e
tradição que a comunidade judaica agrega, com o modo que eles se instalaram e viveram
durantes anos na europa — nos guetos — quanto com a maneira que os seus costumes são
recebidos pelos cristão e não-judeus que se empenham em criar e alimentar a exclusão. Diante
desses fatores, uma certa desigualdade já está posta e não pode ser negligenciada.
Os personagens judeus de O caminho para a liberdade se encontram divididos entre o
reconhecimento e preservação de suas raízes e a assimilação e dissolução das mesmas para a
cultura hegemônica do contexto em que se encontram. Alguns, no entanto, pouco resistem ou
mesmo almejam esta “assimilação”, e quanto a isso podemos considerar sintomática a
adulação e estima pelo “senhor barão” Georg que parte de personagens como os membros da
rica família judia Ehrenberg, uma vez que Georg “encarna à perfeição” (como diria Luis
Krausz em seu livro Passagens) os valores e a estética de uma aristocracia que, mesmo em
declínio, é uma referência aos burgueses em ascensão e à sociedade vienense como um todo.
Ainda que o patriarca dessa família empreenda uma viagem à Palestina e preserve o Jargon
2
“Cada vez mais rápido, como se precisasse fugir desse mal-estar, ele andou de volta para casa. Ao chegar,
trocou de roupa apressadamente a fim de que Anna não precisasse esperar muito por ele. (...) Era como se
estivesse voltando para casa de uma longa viagem, e fosse encontrar o único ser que pertencia comletamente a
ele.” Ibidem, p. 152
em seu modo de falar, a sua mulher e seus filhos, principalmente Oskar Ehrenberg, “como
que para compensar o deselegante judaísmo paterno, imita, a ponto de tornar-se ridículo, os
gestos, costumes e a aparência de uma classe declinante em termos políticos e econômicos,
para a qual o esteticismo se torna uma espécie de refúgio, e a própria estética do declínio um
ideal”3.
Nesse ponto, não deixo de me recordar do abandono simbólico e literal de sua
comunidade operado pelo Rabi Abrãao e a bela Sara lá no tempo em que se passa o livro O
Rabi de Bacherach, de Heinrich Heine, como um gesto inaugural de ruptura que vai
desembocar no contexto retratado em O caminho para a liberdade. Em certa medida, a fuga
do casal consistia em um gesto de sobrevivência e exercício da liberdade individual, valores
que continuam sendo almejados e questionados neste livro de Schnitzler. Assim como o Rabi
e Sara poderiam ser considerados “egoístas” e “individualistas” por deixarem o seu povo para
trás salvando a própria pele e, deste modo, rompendo com certos valores de sua religião,
assim Henrich o é considerado por Leo ao encarar o sionismo como “o pior dos fados que
jamais havia caído sobre os judeus”.
De fato, Heinrich diz não se sentir “estreitamente ligado a ninguém, isso mesmo, a
ninguém no mundo. Aos judeus chorando em Basileia tão pouco quanto aos nacionalistas
alemães furibundos no parlamento austríaco.”4 Esse despertencimento total não poderia ser
considerado, contudo, nada além de uma defesa tanto brutal quanto desesperada? Em certa
altura do romance, ele diz a Georg: “Me diga uma coisa, caro Georg, o senhor de fato ainda
não percebeu que sou um covarde?” A Heinrich falta perspectiva, ele é aquele personagem
que inúmeras vezes, quando para, tem as rugas na testa evidenciadas enquanto fixa o vazio.
Talvez a Leo seja reservada uma perspectiva do futuro do povo judeu porque o mesmo
consegue reconhecer e estabelecer seus vínculos com o passado. Essa perspectiva tanto está
ligada ao desejo de se conquistar novamente o território da “pátria-mãe” de sua comunidade
quanto está ligada ao futuro desolador que pode estar reservado aos judeus da europa
(aspectos definitivamente conectados) e que é antevisto em uma passagem tanto profética
quanto sombria em que ele diz, após Heinrich afirmar que jamais se batizaria mesmo diante
de toda a “patifaria antissemita”: “Hum — disse Leo —, mas e quando as fogueiras medievais
voltarem a ser acesas…?”
3
KRAUSZ, Luis S. Passagens. Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole. São Paulo, p. 246
4
SCHNITZLER, Arthur. op. cit., p. 138
Nesse momento, Georg, que se encontrava engasgado e silencioso durante toda a
conversa, se manifesta quase como se sentisse no dever de falar pelos não-judeus que “Oh —
objetou Georg —, mas esses tempos jamais voltarão” e apaziguar a situação — fato que
desperta o riso dos dois colegas. Estar presente em toda aquela discussão, contudo, parece
alterar de algum modo a sua recepção para com o termo “judeu” e as questões desse povo,
como se evidencia no trecho em que o narrador nos apresenta os sentimentos de Georg frente
a situação em que se encontra:
Pela primeira vez a designação judeu, que ele tantas vezes usara de modo tão leviano,
sarcástico e desdenhoso, pareceu se mostrar em uma luz completamente diferente
para ele. Uma noção acerca do destino misterioso daquele povo bruxuleou dentro
dele, um destino que parecia se revelar em cada um dos que se originaram dele; não
menos naqueles que buscavam fugir àquela origem como se fosse uma vergonha, um
sofrimento ou uma fábula, que não lhes interessava, do que naqueles que insistiam em
chamar a atenção para ele como se mesmo isso fosse um destino, uma honra, ou um
fato determinado historicamente, incontestável e inevitável5
A comoção de Georg diante deste diálogo, ainda que nos mostre a sua permeabilidade
diante das angústias de Heinrich, aquele que se uniria ao grupo dos que “buscavam fugir
àquela origem como se fosse uma vergonha, um sofrimento ou uma fábula” e das angústias de
Leo, aquele que encararia a sua identidade judaica como “uma honra, ou um fato determinado
historicamente, incontestável e inevitável”, essa comoção nos evidencia, por outro lado, o teor
do distanciamento que existia da parte de Georg para com os judeus até então: não fosse
assim, a surpresa e o “bruxulear do seu destino” já teriam brilhado antes em seus pensamentos
e reflexões. Mesmo com a proximidade que vai se delineando ao longo do romance entre o
barão e Heinrich Bermann, parece não ser superada a arrogância e um distanciamento da parte
do diletante aristocrata, que em diálogos presentes em capítulos posteriores evidencia a sua
dificuldade de acolher a complexidade e a contradição dos sentimentos de Bermann enquanto
judeu e quanto à sua comunidade.
A resposta dada por Heinrich à Georg após o mesmo chamá-lo de antissemita6 cabe
muito bem à própria situação (presente no capítulo quarto) quanto a uma situação que aparece
no capítulo sexto, onde dessa vez, Georg o identifica como afim ao posicionamento de Leo
5
Ibidem, p. 140
6
Ainda que pareça absurdo, a incongruência inerente à figura de um judeu antissemita pôde ser assistida como
um desdobramento da figura do westjude, como comenta krausz: “menos judeus do que vienenses em relação
aos Ostjuden e mais judeus do que austríacos aos olhos da burguesia e da aristocracia cristã, os Westjuden ou
judeus modernizados da capital, criaram universos culturais e espirituais singulares, cujas distorções possibilitam
o surgimento de aberrações como a do judeu antissemita. ” KRAUSZ, Luis S. Op. cit., p. 268
Golowski apresentado no capítulo terceiro — fato que evidencia as contradições inerentes à
existência de nosso personagem. Parte da resposta é:
Vocês não nos compreendem. Alguns talvez tenham uma ideia a respeito. Mas
compreender?! Não. Nós, de qualquer modo, compreendemos muito melhor vocês do
que vocês a nós. Por mais que o senhor balance a cabeça! E não se trata nem de um
mérito da nossa parte. A verdade é que foi bem mais necessário para nós aprender a
compreender vocês do que para vocês aprender a compreender a nós. Esse dom de
compreender teve de se desenvolver à força em nós no decorrer do tempo… Segundo
as leis da luta pela existência, se o senhor quiser. Pois veja bem, para conseguir se
orientar entre estranhos, ou, como eu já disse antes, em território inimigo, para estar
municiado contra todos os perigos e traições à espreita, obviamente é necessário
sobretudo que se conheça seus inimigos tão bem quanto possível… Suas virtudes e
suas fraquezas.7
7
SCHNITZLER, Arthur. Op. cit., pp. 193-194.
Backes, no mesmo posfácio já citado, chega a sugerir uma certa proximidade entre o
posicionamento do personagem Heinrich e do autor de O caminho para a liberdade. Embora
Schnitzler tenha partilhado uma proximidade com Theodor Herzl — o fundador do sionismo
moderno — assim como o personagem, ele “jamais se encantou com o sionismo”, recusou o
convite de Herzl a se mudar com ele para a Palestina e é dito que, no fundo ele “ (...) se
considerava um vienense”8 e desconhecia a beleza do pertencimento que para alguns seria
inerente à terra de seus antepassados assim como o judeu Hermann. Krausz vai mais longe
afirmando que Schnitzler “torna-se o representante, por excelência, da cultura estética de uma
burguesia educada cuja sensibilidade estava afinada com os ‘estados da alma’, uma
Gefühlskultur [cultura dos sentimentos] amoral, (...) voltando as costas o mundo de seus
ancestrais, e consequentemente a todos os tipos de enraizamento na tradição (...)”9
Ainda que Schnitzler não tenha assumido uma postura ou feito escolhas radicais em
seu posicionamento político enquanto indivíduo e judeu no contexto vienense em que se
encontrava, O caminho para a liberdade por si só é uma obra de resistência por se propor a
reproduzir cruamente a obscuridade daquele momento em sua capital. Desnudar a negligência
e ambiguidade de figuras como Georg, que circulava muito bem entre os territórios de uma
aristocracia antissemita e dos salões dos judeus ricos que o bajulavam, denuncia o cinismo
nocivo de uma figura que mesmo com toda a proximidade não era capaz de se colocar no
lugar do outro. Além disso, o teor do antissemitismo com o qual nos deparamos no livro
antevê toda a barbárie onde ele desembocou no século XX, podendo assim colocar em
perspectiva a leitura do nazismo e traçar percursos do seu desenvolvimento desde a sua fase
embrionário. A importância de se dar forma a essa perspectiva histórica é a possibilidade que
ela abre de se identificar o contexto de uma sociedade que veio a desencadear aberrações
como a ideologia do nazismo e o Holocausto. De fato, sem essa perspectiva é impossível nos
atentarmos ao presente, já que esse é um exercício tão trabalhoso e delicado, como podemos
identificar na cegueira que pairava em tantos personagens do romance, que não conseguiam
enxergar os seus preconceitos como um perigo antes de um mero costume, um chiste, uma
frivolidade, e “jamais” imaginariam que os mesmos, na verdade, se tratavam do ovo da
serpente.10
8
BACKES, Marcelo. Posfácio in: SCHNITZLER, A. Op. cit., p. 524
9
KRAUSZ,Luis S. Op. cit., p. 258
10
Inevitável referência ao filme homônimo de Ingmar Bergman.
Bibliografia11
SCHNITZLER, Arthur. O caminho para a Liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2011
KRAUSZ, Luis S. Passagens. Literatura judaico-alemã entre gueto e metrópole. São Paulo:
EDUSP/FAPESP, 2012.
11
Foi importante para a realização do trabalho a leitura do capítulo “Is judaism zionism?” que integra o livro
“Parting Ways Jewishness and the Critique of Zionism” (2012) de Judith Butler e a entrevista realizada com
Moishe Postone acerca do “Sionismo, antissemitismo e a esquerda” que está disponível no link
https://arlindenor.com/2015/04/12/sionismo-antissemitismo-e-a-esquerda-uma-entrevista-com-moishe-postone/
(último acesso em 11/07/2017). Contudo, ambos os textos abordam o sionismo após a existência do Estado de
Israel, fator que dá outra complexidade e teor à discussão do sionismo em relação ao que está em jogo no livro.
Por falta de tempo hábil não pude abordar de tais questões, considerando que elas demandam um certo cuidado
para serem tratadas.