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HOMEM E TEMPO – HISTÓRIA VIVÊNCIAL

O que é tempo?
“Quando alguém me pergunta o que é o tempo, eu sei o que é, mas quando
procuro explicar, já não sei o que é”, diz Santo Agostinho.
O tempo é uma coisa toda natural. Sem hesitação, vemos no relógio que horas
são. Sem dificuldade, localizamos um acontecimento que se deu faz muito tempo.
Marcar um encontro para um dia próximo não requer esforço algum. Estamos de
posse do tempo. Fluímos com ele: pois o tempo flui, compreendemos isto
perfeitamente, mesmo quando estivemos dormindo: tornou-se mais tarde. Todos
os dias temos confirmação de que o tempo passa depressa ou devagar, sem
esforço, sem estudo ou dificuldade. O tempo é óbvio, evidente por si mesmo. Mas
quando queremos saber o que é o tempo, o que está fluindo e como está fluindo,
não há explicação.
Tentamos considerar essa pergunta através de exemplos ou mesmo de nossas
experiências pessoais.
Uma pessoa que, depois de longa ausência, venha a visitar os lugares em que
passou a infância, ficará certamente muito surpreendida: os lugares lhe pareciam
diferentes quando era criança. A proporção das casas, as suas portas e janelas, a
largura e o aspecto da rua, as luzes noturnas, os ruídos matutinos, a aparência
que tudo revestia no verão e no inverno; tudo era diferente, e com este “diferente”,
que não pode ser verificado, é que vivemos e decidimos nosso futuro.
A primeira coisa a dizer a respeito do passado, é que ele nos fala no presente. O
passado não é primordialmente significativo no tempo em que se deu; naquele
tempo, talvez não tivesse significado algum. O passado é significativo agora. O
passado que é significativo é o passado como aparece agora. O passado que tem
significância é o passado presente.
O passado tem uma tarefa. Enquanto essa tarefa não for cumprida, o passado se
nos apresentará – a despeito de todos os controles – impregnado do sentido
dessa tarefa.
Quem, depois de anos de ausência, visita os cenários da sua infância e repara
que a sua memória conservou uma lembrança mais amiga e mais agradável que a
realidade agora observada, chega à conclusão de que o passado tem um valor a
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ser conservado. Dirá ele: “Talvez fosse melhor não ter voltado aqui”, e ele terá
razão: é conveniente que o passado fique como está. O neurótico, porém, está
errado quando evita os cenários da sua infância. Está procurando escapar de um
passado de natureza prejudicial. Talvez seja a ocasião oportuna para que veja seu
passado sob uma luz diferente. Será útil que consulte um terapeuta, para discutir
com ele o passado. Se, com essa discussão, sentir-se melhor, terá tornado seu
passado mais acessível. Poderá então visitar os sítios em que passou a infância;
porque estar curado significa estar apto a mover-se. Talvez encontre mistérios em
vários lugares, mas já não se defrontará com portas fechadas.
Resumindo, o passado não é a posse de um tempo passado. O passado é: o que
era, como parece agora. O passado, que é real, é real agora. O fato de ser real
desta maneira não é desprovido de sentido. O passado desempenha um papel,
tem que preencher uma tarefa atual, para melhor ou para pior. Se o passado não
tem tarefa alguma a cumprir, absolutamente nenhuma, então ele não está aí;
então recordação alguma desse passado é possível.
Para alguns pacientes, até que a situação destes se torne mais clara, o passado
não desempenha papel. Às vezes não desempenha papel no sentido de não dever
desempenhá-lo e sempre deixa de desempenhar papel porque não pode
desempenhá-lo. O presente impede-o. O presente é de outra natureza, de
natureza tal que o passado constituiria um fator por demais perturbador.
“Nem tudo o que acontece é uma experiência”, diz E. Straus. Portanto, aquilo
que não tem função, não tem realidade. Está ausente. Está apenas presente como
fato bruto ou condição. A vida terá que decidir como a condição se torna realidade.
Não nos é dada a recordação pura e simples. As nossas recordações têm um
motivo. È este motivo que decide a natureza da recordação: encantadora,
deliciosa, agradável, desapontadora ou aborrecida.
O motivo é que decide o passado. O motivo é o futuro.
Se observamos melhor, veremos que é duvidoso que exista um ato qualquer que
seja determinado somente pelo passado. As condições de decisão são dadas pelo
passado, mas o ato, em si, origina-se do futuro, da expectativa, da vontade, do
medo ou do desejo. Isto é verdadeiro para toda a vida; se o passado fornece as
condições para o que vai acontecer na vida, são os próprios atos da vida que
estão enraizados no futuro.

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Todos nós sabemos que os outros são capazes de dar um rumo diferente ao
nosso destino. Por exemplo: recebemos uma carta com uma proposta de
emprego. Nesse momento, modifica-se toda a nossa perspectiva. Pois bem, assim
é que o futuro se apresenta; está fora da esfera da nossa pessoa, da mesma
forma que aquela que aquela carta; age independentemente e decide o nosso
presente: o futuro é o fator primordial.
A carta convoca o futuro, o futuro invocado pelo signatário da carta, isto é, por
outra pessoa. O futuro nunca se origina de uma subjetividade puramente pessoal.
O futuro está estreitamente ligado com outras pessoas e também com outras
coisas.
O futuro é o que está por vir, como está vindo ao nosso encontro agora;
sublinhando-se agora e vindo. O futuro está vindo em nossa direção; é Zu-kunft, a-
venir. Essas palavras expressam movimento. Pensando no futuro, o tempo corre
para nos encontrar e nós já estamos aí, no tempo que está vindo para nós.
O futuro sempre tem o sentido ligeiramente paradoxal de ali nos encontrarmos a
nós mesmos.
Contudo o passado não fica sem função. O passado nos encontra, vindo do
futuro.
Resumindo, passado e futuro não são duas esferas distintas que se estejam
tocando num ponto zero, chamado presente. Realmente o passado e o futuro
diferem: o passado está aí, atrás de nós, o futuro ali diante, á nossa frente.
Todavia, ambos têm um valor atual; futuro e passado estão incorporados num
presente. O presente tem dimensões; ás vezes ele contém uma vida toda e,
excepcionalmente, pode conter um período mais longo que uma existência
individual. O passado está dentro deste presente: é aquilo que era, da maneira
como está aparecendo agora. E o futuro, o que está vindo, da maneira que está
nós encontrando agora. Este aparecimento e este encontro estão intimamente
relacionados. O passado aparece no que está vindo ao nosso encontro; se não
aparece está ausente. Assim pois, realmente, o passado é o que se estende atrás
de nós, mas somente porque um futuro permite que aí se estenda. E o futuro está
aí adiante, á nossa frente, mas somente porque é alimentado pelo passado. O
presente é, então, o convite vindo do futuro para ganharmos o domínio dos
tempos passados.

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Um indivíduo perturbado, muitas vezes, se preocupa com seu passado, o
passado que, para ele, se assemelha a um caos. O futuro tornou-se inacessível;
pois um futuro acessível significa um passado ordenado.
Às vezes aparecem traumas no passado de alguns indivíduos. O trauma tem que
desempenhar um papel, como tudo na existência humana. O papel desse trauma
consiste na eliminação de uma relação conflitante. Pois é o conflito que alimenta o
trauma. As relações erradas tornam o trauma sério e assim continuam a mantê-lo.
Exemplo: A perturbação nos contatos, entre pai e filho, transforma um simples
tapa em ato nocivo. Desse modo, um sorriso transforma-se em riso de escárnio,
uma observação trivial em áspera censura. O contrato dá origem ao trauma
(embora a condição nunca esteja ausente).
Não é necessário que o “trauma” receba o significado na época de sua
ocorrência. Por exemplo, uma pessoa que entra em conflito com um velho amigo e
que já não confia nele, tende interpretar diferentemente os incidentes do passado.
Verifica que os incidentes estão se apresentando sob nova luz. Esta mudança é
uma mudança para nova realidade; a realidade necessária no contato perturbado.
Pois o passado destituído de preconceitos não existe.
O tratamento to paciente, por conseguinte, não consiste em libertá-lo do seu
trauma infantil, mas em liberá-lo do significado desses traumas por meio da sua
liberação do contato perturbado. Durante o tratamento o paciente aprende a ver o
passado de modo diferente. No consultório do psicoterapeuta, recapitula, falando,
sua infância e sua vida toda e, ao fazer isso, torna-se-lhe claro que a sua vida
poderia ter sido diferente e, conseqüentemente, ainda pode tornar-se diferente,
tornar-se melhor. O paciente modifica seu passado e, ao fazer isso, dá ao seu
futuro (de onde seu passado se apresenta a ele) uma nova confirmação.
Poder-se-ia observar que nessa ordem de raciocínio, grande responsabilidade é
conferida ao paciente. Mas, quando o terapeuta aceita o paciente para tratamento,
nada fez mais que isso. Nada se pode fazer a respeito do passado como
realmente aconteceu. Assim mesmo, o terapeuta, ao propor um tratamento,
durante a própria conversa explica ao paciente até que ponto a sua recuperação
deve ser promovida por ele mesmo. É o paciente que carrega o fardo do seu
passado. È ele que deve assinar outro papel no seu passado. Assim pois, o
psicoterapeuta acompanha o paciente, mas este é que se torna responsável pela
própria cura.
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O terapeuta também toma parte nessa cura. Doença e cura se realizam
juntamente com outras pessoas.
Finalizando: O paciente é o dono do seu tempo.

Bibliografia:
BERG, jan Hendrik van den; O paciente psiquiátrico: esboço de psicopatologia
fenomenológica; São Paulo; Ed. Mestre Jou, 1981.

Obs.: O resumo acima refere-se ao capítulo II, item “Homem e tempo – História
vivêncial.”

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